Às minhas filhas, Ana e Lara;
à Luciana;
aos meus pais;
a todos os surfistas do Brasil.
A Jaime Pinto (in memoriam), avô de Gabriel.
©Willyam Bradberry/Shutterstock
Prefácio, por Kelly Slater
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/1/ O dia da lycra azul
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/2/ O trem vermelho que deu partida na família Medina
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/3/ A vitória da onda sobre a bola
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/4/O anjo Charles
47
/5/ O nascimento do “freak kid”
69
/6/ O arrombador de portas
89
/7/O freio de arrumação
107
/8/ A busca da “coisa”
125
/9/ O sorriso do rei
143
/10/ A fúria do rei
157
/11/ Tubos sob pressão
171
/12/ O dia seguinte
195
Reprodução Instagram
PREFÁCIO
Quando se pratica um esporte por tanto tempo como eu, são poucas as coisas que
nos surpreendem – e menos ainda as que nos surpreendem repetidas vezes. Gabriel
Medina me surpreendeu tantas vezes ao longo destes seis anos que o vi surfar que
eu já começava a pensar: “Não, ele não vai fazer isso de novo.” No ano passado fui
obrigado a mudar de ideia.
A primeira vez que realmente prestei atenção em Gabriel foi em 2009, na França, durante o torneio King of the Groms. O nível de surfe de Gabriel estava muito além do de
um garoto de 15 anos. Na verdade, eu nunca tinha visto alguém dessa idade com talento suficiente para vencer um evento do circuito internacional (na época, o ASP Tour), e,
ali naquele dia, não sei se algum profissional seria capaz de vencê-lo. Fiquei surpreso,
mas pensei com meus botões: “As condições estavam perfeitas pro cara”, “Ele estava
com a prancha certa”, “Era seu dia de sorte”. Tinha que haver alguma explicação.
Seis meses depois voltei a vê-lo surfar, dessa vez num evento na Austrália, o Bells
Beach Rip Curl Pro de 2010. A prova havia sido transferida para outro ponto da costa
porque as ondas estavam pequenas onde ela normalmente era realizada. O novo local
era um pico que proporcionava algumas direitas longas bem bacanas e divertidas. As
ondas estavam um pouco lentas e bambas, de modo que o nível das manobras não era
lá grande coisa, mas sem prejuízo para o grau de competitividade entre os participantes. No fim das contas, venci Mick Fanning nas finais, mas o que realmente ficou na
lembrança das pessoas que estavam na praia naquele dia foi a facilidade de Gabriel ao
dropar para a esquerda com suas incríveis manobras aéreas. Vi marmanjos profissionais ficarem de queixo caído ao ver o moleque fazer miséria enquanto o resto de nós
havia passado o maior perrengue para fazer algo minimamente radical naquele mar
pequeno. Mais uma vez fiquei perplexo, mas não disse nada a ninguém. Apenas pensei
comigo mesmo: “É, as condições deviam estar favoráveis ao estilo dele.”
Naquele ano, Gabriel não estava participando do circuito, portanto não cheguei a encontrá-lo muitas vezes. Só fui voltar a vê-lo surfar quando ele se classificou para o
World Tour, em meados de 2011, aos 17 anos, o mais jovem surfista a chegar lá. Isso em
si já era uma grande façanha, porém o mais surpreendente foi quando o destemido calouro saiu vitorioso logo na primeira etapa de que participou (de novo na França, onde
dois anos antes eu o vira surfar pela primeira vez e o achara insuperável). Não satis-
SELFIE. Depois da vitória de Gabriel no Taiti, Kelly posta esta foto em homenagem ao brasileiro
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feito, também me derrotou nas quartas de final! Duas etapas depois, ele venceu em
São Francisco (onde conquistei meu 11º título mundial) e mais uma vez me derrotou!
“Isso já está virando rotina”, pensei. “O moleque é realmente bom.” A essa altura eu já
começava a ver Gabriel Medina como o grande favorito do circuito mundial de 2012.
Bem, para minha surpresa, ele não teve, em 2012, o desempenho que eu havia previsto.
Mas chegou a vencer a etapa classificatória de Lower Trestles, na Califórnia, novamente embasbacando o mundo do surfe com seu talento natural e o visível progresso que
havia feito no esporte. O mar de Trestles é considerado um dos mais difíceis em toda
a costa da Califórnia. Ninguém vence ali por obra da sorte; só se for realmente fera.
Depois disso não havia quem não soubesse quem era Gabriel Medina e do que ele era
capaz. Ele estava se tornando o adversário mais perigoso do surfe profissional.
O ano de 2013 começou com mais uma surpresa: Gabriel se contundiu logo no primeiro evento, em Snapper Rocks, cortando pela raiz qualquer esperança de sucesso
nessa sua nova campanha. Fiquei pensando: depois de não ter vencido nenhuma
etapa do circuito de 2012, sequer chegando perto do título, o mais provável seria que
o garoto voltasse com tudo em 2013 para se tornar o mais jovem campeão mundial
de toda a história do surfe. Pensei também que era minha obrigação defender aquele
recorde que me pertencia havia 21 anos e, para ser sincero, fiquei aliviado ao ver que
aquela contusão era a única coisa capaz de impedi-lo de obter mais essa conquista.
Para ele, um grande azar; para mim e para todos os demais, uma grande sorte.
Já 2014 foi completamente diferente. Gabriel soube aproveitar todas as oportunidades. Na Gold Coast australiana, logo na primeira etapa, venceu as quartas de final, as
semifinais e a final da mesma forma, sempre na última onda, no último minuto de
cada bateria. Também se tornou, após dez anos, o primeiro “goofy-footer” (surfista
que pisa com o pé esquerdo atrás da prancha) a vencer essa prova com um backside,
algo que ninguém poderia ter imaginado. Derrotou Joel Parkinson no seu próprio
quintal, nos segundos finais, e por muito pouco não provocou uma rebelião entre
os torcedores locais. Na praia havia um número praticamente igual de brasileiros e
australianos, e talvez por isso os “aussies” tenham pensado duas vezes antes de comprar a briga. Essa vitória foi o primeiro degrau da que viria a ser uma das campanhas
mais diversas e incisivas de um surfista em busca do título mundial. Gabriel voltou
a vencer tanto em Fiji, onde manteve o domínio durante todo o evento, quanto no
Taiti, onde surpreendeu a todos com seu desempenho nas ondas gigantes. O que me
deixou perplexo não foi a sua impetuosidade, mas a calma e o foco que soube manter
em todas as baterias, fazendo exatamente o que precisava para derrotar cada um de
seus adversários. Aquelas eram as maiores ondas que tínhamos visto nos últimos 30
anos de circuito mundial, e foi nelas que Gabriel Medina obteve sua terceira vitória
na temporada. Aí realmente fiquei surpreso com o garoto.
8
GABRIEL MEDINA
O título era praticamente dele. Aos demais competidores restava apenas correr
atrás do prejuízo e tentar transpor o abismo que Gabriel havia conseguido abrir
entre ele e nós. O resto do ano se passou sem que ninguém se desse conta, e seria
preciso um milagre em Pipeline para que alguém conseguisse passar a perna no
brasileiro. Mas não era para ser assim. Gabriel conquistou o título já nas quartas de
final (contra Filipe Toledo), foi carregado praia afora por uma exultante multidão de
fãs brasileiros, deu entrevistas por uns 15 minutos (enquanto os outros competidores ainda estavam na água), depois voltou para o mar para vencer a bateria e conquistar seu lugar no Pipe Masters. Chegou à final com o australiano Julian Wilson,
seu rival de longa data. Julian precisava vencer para conquistar a Tríplice Coroa;
para Gabriel, uma vitória seria apenas uma cereja no bolo de seu título naquele ano.
A adrenalina era grande, e a disputa se resolveu apenas no último confronto entre
os dois. Julian saiu vencedor por uma margem ínfima de pontos, mas para mim
aquela vitória pertencia a Gabriel.
Como atletas, precisamos lançar mão de diversos artifícios mentais para manter a
confiança ao longo dos anos. Precisamos tirar proveito da nossa experiência e dos
nossos conhecimentos se quisermos derrotar os rivais e evitar qualquer sinal de fraqueza. No entanto, também precisamos ter consciência de que o esporte evolui. Novatos chegam com mais sede de vitória do que você, com abordagens diferentes que
aos poucos vão estabelecendo novos padrões de desempenho. O atleta que se recusar
a progredir ficará para trás e, cedo ou tarde, se tornará irrelevante. Gabriel Medina
estabeleceu um altíssimo padrão de desempenho, fazendo o que para muitos era
impensável: um brasileiro conquistando sucessivas vitórias nas principais etapas do
circuito, contra os melhores surfistas do mundo, nas ondas mais difíceis.
Se fiquei surpreso ao ver Gabriel Medina conquistar o título mundial aos 20 anos?
Não. Pela primeira vez desde que o vi surfando aos 15 anos, eu finalmente não me
surpreendi. Essa vitória já era esperada. Foi resultado de muito trabalho e determinação na busca de um objetivo e de um sonho. A consequência natural de raro talento
e enorme paixão. Foi o presente que ele deu a um país inteiro à procura de um novo
ídolo no esporte, naquele ano de terrível desgosto com o futebol na Copa do Mundo. O
sonho de Gabriel Medina se tornou naquele momento o sonho de todos os brasileiros,
e nenhum outro resultado poderia ter vindo mais a calhar. Hoje, as únicas vezes em
que Gabriel me surpreende são aquelas em que ele não vence. O melhor de todos os
problemas possíveis.
KELLY SLATER, 11 vezes campeão mundial de surfe
Junho de 2015
PREFÁCIO
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©Don King / GettyImages
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O DIA DA LYCRA AZUL
HAVAÍ, PIPELINE
“PAI, EU
QUERO SER
CAMPEÃO
MUNDIAL.”
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GABRIEL MEDINA
– PAI, EU QUERO SER CAMPEÃO MUNDIAL.
GABRIEL ERA SÓ UM MENINO DE 11 ANOS DE MARESIAS, EM SÃO SEBASTIÃO, QUANDO
INFORMOU EM TOM SOLENE SUA DECISÃO. VIVIA À ESPERA DAS POTENTES ONDULAÇÕES
DE SUL QUE VOLTA E MEIA AVANÇAM SOBRE A COSTA DO LITORAL NORTE DE SÃO PAULO,
APENAS COM UM SHORT PUÍDO, COSTURADO VÁRIAS VEZES PELA AVÓ, E UMA PRANCHA
SURRADA EMBAIXO DO BRAÇO. ROÍA UNHAS, FALAVA POUCO, SURFAVA MUITO.
A MÃE, SIMONE, DESDOBRAVA-SE COMO VENDEDORA DE BUTIQUE E DOMÉSTICA NAS
CASAS DE LUXO DA REGIÃO. NÃO SE SABE O QUE A MANTINHA DE PÉ, DEPOIS DE TANTAS
RASTEIRAS DA VIDA. TALVEZ A BRISA SUAVE DA PRAIA, TALVEZ A RELIGIÃO. E O NOVO
PAI, CHARLES, SUJEITO RETO DE CARÁTER FIRME, LUTAVA PARA NÃO SE AFOGAR EM
SUA LOJINHA DE SURFE. A VIDA ERA DIFÍCIL, AS DÍVIDAS SE ACUMULAVAM, O ESFORÇO
ERA DE SOBREVIVÊNCIA.
MAS HAVIA ALGO QUE SOBRAVA NAQUELA FAMÍLIA: A FÉ.
DIANTE DOS PAIS, ESTAVA UM GAROTO MAGRO, DETERMINADO, QUE ODIAVA PERDER
E JÁ DEMONSTRAVA SER DIFERENTE SOBRE UMA PRANCHA. À MESA DE UM PEQUENO
APARTAMENTO DO BALNEÁRIO, TIVERAM UMA CONVERSA SÉRIA COM O FILHO. DECIDIRAM
MIRAR NUM DESTINO ATÉ ENTÃO INALCANÇÁVEL PARA BRASILEIROS. TEIMOSOS,
APOSTARAM A VIDA NUM SONHO ORDINÁRIO, COMUM A VÁRIOS GAROTOS DA IDADE DE
GABRIEL, MAS ESTRANHAMENTE POSSÍVEL PARA ELE. NASCIA, ALI, UMA MISSÃO.
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19 DE DEZEMBRO DE 2014, PIPELINE - HAVAÍ
Gabriel acorda muito antes do primeiro raio de sol no dia 19 de dezembro de 2014 na
ilha havaiana de Oahu. Ele está bem perto de Pipeline.
O primeiro som é o das ondas, que explodem a poucos metros dali. O líder do ranking
mundial desce para ver o mar e percebe, sob a luz da lua cheia, sucessivos filetes brancos de espuma a escorrer sobre a rasa bancada de coral.
O oceano pulsa novamente, depois de cinco angustiantes dias de espera por uma ondulação capaz de reiniciar a disputa do Pipeline Masters e, com isso, definir o campeão
do mundo da temporada de 2014.
Uma ansiedade incontrolável, histérica, orbita em torno de Gabriel. Torcedores, especialistas, patrocinadores, amigos de verdade, sanguessugas de ocasião, adversários e
juízes, todos querem saber se o garoto de 20 anos será capaz de confirmar o que dele
se espera desde que entrou no circuito mundial, em 2011, arrombando portas como
um raro fenômeno.
As dúvidas sobre a couraça de Gabriel se amplificaram depois da última etapa antes do
Havaí, em Portugal, quando o brasileiro tinha tudo para ser campeão do mundo, mas
perdeu precocemente, na fase 3, para um dos surfistas mais mal ranqueados do circuito. A derrota em terras lusas levou a decisão para o maior palco do surfe mundial, onde
a pressão costuma ser proporcional à potência das ondulações gigantes que atingem
as ilhas. Afoga qualquer mortal.
Mas Gabriel está em silêncio, blindado. É o primeiro a acordar na casa da Rip Curl. Ele
é assim, quer ser o primeiro em tudo. Sua vontade sempre pareceu maior que a dos outros, e não é diferente agora. Lá também está hospedado um de seus dois adversários
na luta pelo título, o australiano Mick Fanning. O outro rival é o americano Kelly Slater,
11 vezes campeão do mundo.
Nos dias de espera pelas ondas preguiçosas, o brasileiro chamou Mick para algumas
rodadas de pôquer entre amigos. O australiano, dono de três títulos mundiais e muita
serenidade, recusou o convite. Aceitou apenas ser o dealer (aquele que dá as cartas).
Bom jogador. Gabriel, como em outras praias, ganhou a maioria das mesas disputadas.
Mick é o maior ídolo da infância do jovem de Maresias. Sua combinação mortal de disciplina, foco e talento é venerada. Mas, na hora do jogo, é cada um por si.
Na parede do quarto do brasileiro, antes de descer para o que seria o dia mais importante de sua vida, Gabriel lê as mensagens pregadas num cartaz por Charles Saldanha,
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GABRIEL MEDINA
©Kelly Cestari / GettyImages
TENSÃO EM PIPE. Charles (ao centro) rodeado pela torcida brasileira no dia 19 de dezembro
um anjo que se multiplica na função de pai, técnico, cozinheiro, amigo e principal incentivador. São como mantras. As frases, motivacionais ou religiosas, falam de sacrifício momentâneo x glória eterna, exaltam a figura de Deus acima de tudo e revelam
a existência de um túnel invisível entre a casa e o mar, um caminho silencioso que só
estaria aberto ao surfista.
“Charlão”, como é chamado na intimidade, sabe como proteger o filho. Transformou
desde cedo o título numa missão, a vitória em algo sagrado. Ao vê-lo com Gabriel, não
há como não lembrar de Larri Passos e do tenista Gustavo Kuerten, ou de Richard
Williams e de suas filhas, as tenistas americanas multicampeãs Serena e Venus. À
semelhança de outros, o padrasto de Gabriel assumiu a função de pai e técnico, tornando-se fundamental na vida do surfista.
O DIA DA LYCRA AZUL
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Dias antes, ouvira do experiente Neco Padaratz,
talvez o primeiro surfista brasileiro cotado pela imprensa especializada estrangeira como candidato
real a um título mundial, a sugestão do túnel.
Neco, dono de duas vitórias na elite, sempre foi
um cara diferente, intenso, que parecia vencer
quando estava num transe espiritual, tornando-se aparentemente indestrutível. Charles pegou o
túnel dele emprestado e, com isso, a blindagem
contra todos os movimentos.
A lógica do túnel é clara: não escutar nada que
vem de fora. Outros gigantes do esporte buscam
ou já buscaram o isolamento. Ayrton Senna costumava mergulhar em seu próprio mundo, dentro
do cockpit, antes das largadas dos GPs de Fórmula 1. O tenista espanhol Rafael Nadal mantém, em
quadra, uma série de rituais obsessivos de organização, como as garrafas d’água alinhadas, para
silenciar em sua cabeça as outras vozes.
É legal Gabe me citar como
ídolo. Como competimos
pela mesma equipe, tenho
tido a oportunidade de
viajar e me hospedar com
ele. E vi que ele teve o mesmo
nível de comprometimento
para alcançar o objetivo de
ser campeão mundial que eu.
Medina não tem medo
do trabalho duro.”
MICK FANNING
, tricampeão mundial
e companheiro de equipe de Gabriel
Gabriel também tem sua liturgia antes das baterias, mas vale tudo para evitar o assédio, que beira a invasão nos últimos dias no Havaí. Uma repórter de tevê de uma
emissora brasileira furou o bloqueio da casa e só parou na porta do quarto de Gabriel.
Charles salvou o filho da fúria pelo furo jornalístico.
O havaiano Dusty Payne, especialista nas ondas de Pipeline, em grande forma e líder da
prestigiada Tríplice Coroa (circuito à parte que reúne três eventos do mundial realizados
exclusivamente no Havaí), é o mais simbólico obstáculo a ser superado. A bateria é eliminatória. Se Gabriel perder, está fora da etapa e deixa as portas abertas para Mick e Kelly
lhe tirarem o título da temporada.
O jogo é duro. Dias antes da disputa, durante o jantar num restaurante de Oahu, o
shaper (quem faz pranchas) do surfista havaiano se aproximou da mesa, interrompeu
a refeição da família Medina e disse, em tom provocativo:
– Dusty está chegando.
Longe dali, um outro caldeirão também ferve. A expectativa no Brasil é incontrolável.
Desde que Gabriel venceu a etapa do Taiti, meses antes, em ondas épicas de até 4 me-
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GABRIEL MEDINA
©Márcio Fernandes / Estadão
DENTRO DO TÚNEL. Para não perder o foco, o surfista sai da água direto para a casa da Rip Curl
tros, destronando o rei Kelly em seu reino, o surfe vive uma explosão de popularidade
sem precedentes. As principais emissoras do país mandaram equipes completas para
a cobertura das últimas etapas, o surfista estrela anúncios em todas as mídias, celebridades se declaram torcedoras e o grande público, enfim, é apresentado ao esporte.
A campanha “Vai, Medina”, com um vídeo de apoio estrelado por famosos, explode nas
mídias sociais. Todos estão à espera da consagração de um novo ídolo nacional. É difícil segurar o oba-oba num país acostumado a grandes heróis esportivos.
Charles trabalha na blindagem, mas confia cegamente na capacidade de Gabriel para
lidar com pressões insuportáveis. No caminho percorrido desde que chegou à elite,
o garoto foi submetido a toda sorte de situações-limite. Encarou e oprimiu lendas do
esporte, venceu em mares ordinários e extraordinários, bateu recordes, quebrou tabus e soterrou definitivamente a possível resistência cultural a um campeão mundial
de surfe vindo do Brasil.
Gabriel é meio Ayrton Senna também na relação com os adversários. Sua elevadíssima autoestima o livra de qualquer traço do velho “complexo de vira-lata” comum
a alguns esportistas. A expressão, criada por Nelson Rodrigues depois da derrota da
Seleção Brasileira de futebol em 1950, em pleno Maracanã, identifica o sentimento de
inferioridade de um estereótipo de brasileiro a que o dramaturgo se refere como “o
narciso às avessas, que cospe na própria imagem”.
O DIA DA LYCRA AZUL
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PARCERIA VENCEDORA. Charles blinda o filho num momento decisivo da prova de Pipeline
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GABRIEL MEDINA
©Kirstin Scholtz / GettyImages
Estou no comando e ponto. Gabriel,
estamos juntos, vamos ganhar essa
porcaria agora de qualquer jeito.
Não quero nenhum amigo em casa,
ninguém por perto. É concentração
total, só a gente.”
CHARLES SALDANHA
No surfe, esporte com raízes fincadas nas culturas australiana e americana, por vezes
notava-se certa deferência de alguns brasileiros a ídolos estrangeiros. Gabriel, ao lado
de outros bravos como Adriano de Souza, ajudou a sepultar esse tipo inferiorizado. Eles
extinguiram, com vitórias, o ritual de beija-mão de ídolo.
– Na hora de entrar na água, não tem ninguém melhor que eu. Sempre respeitei todo
mundo. Mas, se for para competir contra o Kelly, melhor ainda – costuma dizer Gabriel.
Agora, no dia decisivo de Pipe, a disputa não é mais apenas contra Kelly ou Mick,
passando por Dusty. Quase todos os competidores também estão contra ele – derrubá-lo seria um feito heroico, digno de batalha medieval, em que o oponente exibe a
armadura ou a cabeça do líder do bando como um troféu.
Por isso, Charles trata de reorganizar as ideias do filho. É hora de colocar Gabriel num
trilho protegido de treinamento e concentração. Em alguns instantes, ele vai enfrentar
Dusty, que não tem chances de título mundial, mas é uma ameaça real.
Ainda em casa, o brasileiro cumpre seus rituais. Escolhe a prancha preferida, da marca
havaiana Tokoro tamanho 6’4” (seis pés e quatro polegadas) e faz um forte aquecimento, rotina com a qual se habituou desde criança.
Corpo quente, ele dedica preciosos instantes à sua oração. “Ninguém é maior que Deus”,
diz a si mesmo. Em transe, enxerga o túnel construído por Charles e Neco, entre a casa
e o evento. Coloca nos ouvidos um potente fone, que toca no volume máximo a música
“Crystal”, do New Order.
O DIA DA LYCRA AZUL
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©Ryan Craig / A-Frame
GABRIEL MEDINA
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Ninguém
é maior
que Deus.”
Dentro da bolha, está preservada sua memória. Os bons amigos, a adolescência sem baladas, as grandes vitórias, as derrotas que ensinaram, o amor incondicional à família, a
paixão pelo Brasil, a certeza inequívoca de que a missão será cumprida.
Gabriel chega à praia, olhos fixos na areia, concentrado apenas em sua estratégia e
nos acordes acelerados da velha banda inglesa. Não vê e não ouve nada à sua volta.
A multidão que ocupa, de uma forma sem precedentes, cada centímetro de Pipeline,
quer alcançar o surfista. Fazer uma foto, trocar um olhar, desejar boa sorte, torcer contra ou secar. É muita intensidade.
Antes de entrar na água, um chamado tira sua concentração. Gabriel olha para o lado
e vê a mãe, Simone, em prantos. Ela diz que agora seu sonho faz sentido. Não há tempo
para explicações. Ele segue para o mar sem entender o choro da mãe e preocupado em
recuperar o foco antes que seja tarde.
A sirene de início da bateria é o prenúncio de uma revolução na história do surfe.
O mundo das pranchas fica em suspenso durante os 30 minutos de disputa entre o
brasileiro e o havaiano, à espera de algum sinal de Gabriel.
Todos querem saber como ele lida com o caldeirão em que se transformou a ilha de
Oahu. Dusty é um grande surfista, capaz de vencê-lo naquelas ondas, mas a única
derrota possível para o brasileiro, ali, seria para ele mesmo.
Gabriel não vacila. Deixa a fantasia de caiçara tímido na areia e veste a capa de um
predador competitivo, que atropela quem estiver na frente. Seu olhar ameaçador, como
o de um bicho feroz que corre atrás da presa, assusta até o comentarista que cobre o
evento de dentro d’água.
FÉ INABALÁVEL. A oração antes das baterias é parte fundamental de seu ritual de concentração
O DIA DA LYCRA AZUL
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©Kelly Cestari / GettyImages
O CAMINHO DA VITÓRIA. Gabriel entuba em Pipeline para vencer o havaiano Dusty Payne
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GABRIEL MEDINA
O DIA DA LYCRA AZUL
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©Kelly Cestari / GettyImages
A TRANSFORMAÇÃO. Tímido fora d’água, o jovem de Maresias vira um predador competitivo durante as baterias
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GABRIEL MEDINA
“EU ESTAVA MAIS PARA BAIXO, E O DUSTY VIROU PARA PEGAR
A ONDA. EU NÃO ESTAVA BOTANDO FÉ, MAS, QUANDO VI QUE ELE
IRIA, PENSEI: ‘TENHO QUE IR.’ REMEI E DESCI RETO, EU IA SAIR
DA ONDA. CAVEI E, DE REPENTE, VI QUE ELA ABRIRIA. SEGUREI
A BORDA NO TEMPO EXATO, CONSEGUI ACOMPANHAR A BOLA
DE ESPUMA E FICAR NA PAREDE, DENTRO DO TUBO. UM TUBAÇO.
SAÍ JÁ FAZENDO CONTA. AÍ, SÓ PENSAVA: ‘NÃO PODE VIR MAIS
ONDA’. FORAM OS QUATRO MINUTOS MAIS DEMORADOS DA
MINHA VIDA.”
– Ele parece imparável – desabafa Peter Mel durante a transmissão on-line.
Gabriel se impõe sobre Dusty. Assume a liderança com uma nota superior a 8 e outra
intermediária. Mas o adversário reage com uma boa onda. A janela está aberta para
uma virada havaiana, sobretudo porque as condições favorecem as ondas de Backdoor,
para a direita, onde surfistas “goofy”, que usam o pé esquerdo atrás da prancha, como
Gabriel, têm mais dificuldades. Ali, eles são obrigados a surfar de costas para a parede.
Dusty, ao contrário, é regular e, portanto, encara Backdoor de frente.
A bateria está em aberto. A menos de cinco minutos do fim, o horizonte se deforma
com uma onda insinuante apontada para Backdoor. Dusty está sedento, pronto para
fazer a nota da virada. Gabriel tem a prioridade (direito de surfar a primeira onda,
concedido a quem fura a arrebentação primeiro), mas não parece muito interessado.
Prefere esquerdas, como todos os surfistas de base “goofy”.
Só que o havaiano está decidido a tentar a sorte, e Gabriel percebe que precisa exercer sua preferência. Quase a contragosto, rema para a onda. A prancha balança, instável, mas ele segura na borda e passeia por um largo tubo até sair, de braços para o
alto, cada vez mais perto da maior glória de sua vida. Para espanto dos adversários,
contra todos os prognósticos de especialistas, a tão ardilosa onda de Backdoor acaba
de ser domada pelo brasileiro.
O DIA DA LYCRA AZUL
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©Márcio Fernandes / Estadão
PREMONIÇÃO? Simone, mãe de Gabriel, fala de seu sonho pouco antes da disputa contra Dusty Payne
“EU OUVIA MÚSICA E OLHAVA PARA A AREIA. ENTREI NO TÚNEL.
FORAM DIAS DENTRO DELE.”
Gabriel sai da água com 17,66 pontos em 20 possíveis, a maior média da fase 3. O
resultado elimina Kelly da disputa pelo título, desarma definitivamente os últimos
críticos e intimida Mick, único adversário ainda com chances de lhe roubar o caneco
de 2014. O recado está dado: o dia é dele.
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GABRIEL MEDINA
Agora, tudo faz sentido para Simone. Na areia, ela conta ao filho sobre o sonho que tivera antes da etapa de Portugal, a penúltima do ano. Gabriel aparecia em Pipeline surfando com uma camisa azul e, depois, levantando o troféu de campeão do mundo. Simone
imaginou o tempo todo que, assim como em outras etapas, ele surfaria em Pipeline
com a camisa dourada tradicionalmente destinada ao líder do ranking. Supersticiosa e
religiosa, escondeu de Gabriel a certeza de que o sonho era uma mensagem de Deus: o
filho não seria campeão naquele ano.
Mas o acaso da falta de ondas nos dias anteriores e divergências com surfistas locais
impuseram aos organizadores a realização de baterias simultâneas, com conjuntos de
lycras azuis e vermelhas, sem a cor dourada de Gabriel.
Ao ver o filho de azul, como no sonho, Simone desabou num choro compulsivo e teve,
ali, a certeza da conquista.
Para além da fé da mãe, a vitória sobre Dusty na fase 3 foi uma rara demonstração
de coragem e técnica sob enorme pressão. Não há outro caminho, em Pipeline, para
conquistar uma temporada. Especialmente para o surfista de uma nação sem história entre os líderes do esporte, considerado exótico, que teve de enfrentar, antes de
tudo, uma resistência cultural.
Alguns anglo-saxões rejeitam hábitos que definem o povo brasileiro. A alegria é entendida, muitas vezes, como excessivamente barulhenta. A emoção pode ser interpretada como falta de educação e de civilidade. Gabriel estreou na elite, em 2011, com
uma amável mas ruidosa família a tiracolo. Como assim? Mãe e pai entre marmanjos
líderes de um esporte rebelde? Muitos não entenderam.
Mas a família Medina é uma fortaleza. Não se deixou abater pelas inúmeras críticas
e, aos poucos, ajudou Gabriel a se tornar uma máquina de vencer, imune às circunstâncias à sua volta. Mais que isso: com o tempo, eles, ao lado de outros brasileiros,
contagiaram o circo dos surfistas com um novo modo de enxergar o mundo das pranchas, mais alegre, mais vivo.
Gabriel vencera um grande surfista havaiano, em plena Oahu, com sobras. A praia,
em vez do silêncio desconfortável da derrota, ouve a vibração de uma multidão sem
fronteiras, multicultural, que deseja, ao menos naquele dia, torcer pelo Brasil.
O título de 2014 ainda não tem dono, mas, a essa altura, o mundo já desconfia de que é de
Gabriel. A reverência viria, em grandes doses, horas mais tarde.
O DIA DA LYCRA AZUL
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