USOS DA ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UM ESTUDO DE CASO
Daniela Gaspar Pedrazzoli Bagnasco
UNIANCHIETA e Colégio Santa Clara/SP
[email protected]
Ana Lúcia Guedes-Pinto
FE – UNICAMP/SP
[email protected]
Alfabetização e infância
Resumo: Neste artigo problematizamos as práticas de leitura de histórias na E.I, focalizando os usos
da escrita pelas professoras junto às crianças. O estudo baseia-se na pesquisa de Mestrado defendida
em 2014. Trata-se de um estudo de caso, tomando-se como referência o trabalho de quatro
professoras de uma rede municipal do estado de São Paulo. Os pressupostos teóricos fundamentamse nos estudos do Letramento (Street, Kleiman) e na perspectiva de Certeau quanto às concepções de
usos da escrita.
Palavras-chave: estudos do Letramento; práticas de leitura e escrita; escrita e Educação Infantil
Abstract: USES OF WRITTEN IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION: A CASE STUDY
This paper question the stories of reading practices in early childhood education, taking focus on the
uses of writing by teachers. The work is based on the Master's research defended in July 2014. This
is a case study, taking as reference the practices of four teachers from a municipal school system of
the state of São Paulo. The theoretical assumptions are based in Literacy Studies (Street, Kleiman)
and Certeau perspective as the concepts of writing and reading of uses.
Key-words: Literacy studies; reading and writing practices; written and Early Childhood Education
1. INTRODUÇÃO
Neste artigo problematizaremos os usos da escrita dentro do contexto do
segmento da Educação Infantil de um município do estado de São Paulo. Tomaremos
os estudos do letramento (STREET, 1993; KLEIMAN, 1995) como uma das referências
teóricas para o desenvolvimento das análises. Para tanto, traremos um pequeno recorte
da pesquisa de Mestrado intitulada “Leitura de histórias na Educação Infantil: como se
desenvolve? ”1.
O objetivo dessa discussão – o valor legitimado à escrita na Educação Infantil –
se inscreve na polêmica questão a respeito de se trabalhar aspectos da escrita que podem
favorecer posteriormente a prática alfabetizadora. É importante destacar que buscamos
trazer elementos que subsidiem a reflexão sobre o papel das práticas de linguagem,
entre elas a escrita, com crianças pequenas no âmbito da instituição educacional.
A ênfase do recorte se refere ao quanto a escrita se faz presente na apresentação
das professoras participantes da pesquisa nos momentos de leitura de histórias junto às
crianças. É importante ressaltar que os livros são reconhecidos como objetos culturais,
constituídos de sentidos, e entre esses, destacamos especificamente, aquele atribuído por
meio das palavras e das estruturas linguísticas utilizadas pelo autor ao escrevê-los.
2. REFLEXÕES ACERCA DO TRABALHO JUNTO AOS PEQUENOS
Discutir sobre o trabalho a ser realizado nas instituições educacionais infantis
requer atentar para a questão de a escola se constituir como um dos primeiros espaços
sociais em que o indivíduo frequenta longe de sua família. Para tanto, essa caracterizase, a princípio, como um ambiente socializador, que busca proporcionar a interação e
convívio de crianças de faixa etárias compatíveis ou próximas, com adultos que não
fazem parte da família, e por ser regido por regras e tempos próprios.
Como destacam os estudos socioculturais, é na interação que as crianças se
desenvolvem cognitivamente e socialmente, aprendendo junto aos outros. Vinculado a
isso, reiteramos que a educação nos primeiros anos de vida torna-se uma das bases para
a constituição do sujeito e, por esse motivo, é fundamental conhecer e compreender
como se dá o desenvolvimento das crianças pequenas (VYGOTSKY, 2007). O processo
de intervenção, proporcionado pela convivência com os demais colegas e com os
adultos, favorece diversas situações de mediação, através das quais cada criança vai se
apropriando dos conhecimentos, e nesse caso, das funções da escrita em nossa
sociedade (OLIVEIRA, 2001).
Focalizando o tema abordado neste artigo, retomamos um dado da realidade
contemporânea que se volta à presença maciça da escrita. Ela faz parte da paisagem
1
Pesquisa desenvolvida por Daniela Gaspar Pedrazzoli Bagnasco, iniciada no período de março de 2012
e defendida em julho de 2014 – UNICAMP/FE.
cotidiana de todos nós, incluindo aí as crianças, principalmente com a inserção cada vez
maior da tecnologia. Convivemos, portanto, com as práticas sociais da escrita e da
leitura diariamente, dentro e fora da escola. Assim, conforme já evidenciado por vários
estudos (KLEIMAN, 1995, 2009; KRAMER, 1982; LAJOLO, 2005; ROJO, 2009) os
pequenos já estabelecem relação com o mundo letrado mesmo antes de aprender a ler e
escrever convencionalmente, fator fundamental a ser considerado ao refletirmos sobre
seu desenvolvimento.
O conceito de letramento nos auxilia a refletir sobre as práticas de escrita
presentes no segmento da Educação Infantil uma vez que opta por focar os usos e
práticas sociais da linguagem que envolvem a escrita e a leitura – valorizadas ou não –,
nas perspectivas de seus diferentes contextos sociais (ROJO, 2009).
Os estudos do letramento compreendem a língua como prática social, as quais
são social e culturalmente construídas. Sobre essa concepção, Street (1984; 1993),
renomado pesquisador da área, introduz a definição do conceito no plural – letramentos
– evidenciando que os letramentos são múltiplos, variados e determinados por relações
de poder entre os sujeitos no uso da escrita. Compreende-se, assim, que as práticas de
letramento mudam segundo o contexto. Acrescenta-se, ainda, que, entendido dessa
maneira, não se prevê nenhuma relação entre letramento e progresso, não criando a
dicotomia entre escrita e oralidade.
Assumindo, portanto, essas a perspectiva de letramento abordada neste artigo
defende que os sujeitos se constituem em meio às práticas socioculturais, envolvendo os
aspectos da leitura e da escrita, reforçando e questionando valores, relações de poder e
tradições.
Ao encontro disso, Kleiman (2009), pesquisadora nas áreas de formação de
professores e estudos do letramento, explicita o quanto o trabalho de leitura e de escrita
com as crianças pequenas necessita ser planejado e concretizado de forma a dar
continuidade aos usos que elas já trazem de suas práticas sociais: “No seu dia a dia, [a
criança] está exposta a uma ampla e variada gama de atividades e textos, que fazem
sentido graças à presença da escrita” (ibidem, p. 2).
Defende-se, assim, no segmento da Educação Infantil, o desenvolvimento de um
trabalho com a leitura e a escrita que oportunize às crianças a familiarização e a
apropriação das diversas funções da língua portuguesa em nossa sociedade.
Nessa mesma perspectiva, é relevante lembrar do trabalho de Bosco (2005), em
seus estudos sobre a aquisição da linguagem pela criança, que expõe o quanto o espaço
institucional destinado para a educação dos pequenos pode propiciar a vivência da
linguagem em suas várias manifestações, realizando atividades que fazem parte de sua
vida em sociedade. Ao encontro disso, a autora enfatiza o privilegiado papel de
interlocutor assumido pelos professores nesse processo, indicando o quanto esses são
responsáveis por selecionar e desenvolver as atividades, organizando o espaço e o
tempo. É o professor que planeja sua ação junto às crianças, encarregando-se de
proporcionar diversas situações que possam provocar os movimentos dos pequenos em
torno da escrita.
O professor ocupa o papel de mediador do processo de aprendizagem, tornando-se
responsável por atuar intencionalmente junto às crianças, organizando os objetivos
propostos, planejamento a melhor forma de atingi-los, buscando com isso o
desenvolvimento dos alunos em todos os aspectos (VYGOTSKY, 2007).
No contexto das políticas em torno da Educação Infantil, Arce (2010), ao propor
uma reflexão sobre a função desse segmento, a defende como sendo a primeira etapa do
longo processo escolar formal. A autora enfatiza a responsabilidade do professor em
organizar ações deliberadas para que possa mediar o processo de conhecimento e
aprendizagem da criança, buscando que ela aprenda a fazer sozinha aquilo que só sabe
fazer com o outro.
Contrária a uma posição meramente assistencialista e espontaneísta – que tem
sido uma referência histórica do ensino junto às crianças pequenas2 -, a autora declara a
defesa por um trabalho pedagógico que seja intencional, que envolva a articulação de
conhecimentos para os pequenos, menores de seis anos, de forma que o ambiente
escolar admita seu papel de socializar o conhecimento sistematizado, a cultura
acumulada pela sociedade. Como explicita a autora: “A criança (...) é compreendida
como um ser em construção, em processo de humanização, pois a natureza é fruto de
nossa história social e (...) não está dada no ato do nascimento biológico” (p.30). O
conhecimento é, portanto, impulsor do desenvolvimento infantil, sendo visto como o
principal direito a ser garantido.
2
Para detalhes ver Kramer (1982; 2009), Kuhlmann Junior (2000).
Assume-se, nesse sentido, uma escola que promove seu caráter educativo por
ações criadas e planejadas. Ao professor, cabe o papel de ensinar, o que não significa
eliminar aspectos fundamentais da educação junto aos pequenos, tais como a interação
criança-criança, o cuidado, a ludicidade, a afetividade. Esses são elementos respeitados
e trabalhados intencionalmente por parte do professor, uma vez que são entendidos em
seus caráteres essenciais para o desenvolvimento da criança. Conforme a autora afirma:
O professor aqui planeja antes de entrar em sala, prepara-se estudando
os conteúdos, desenvolvendo estratégias de ensino e buscando
metodologias eficazes para a aprendizagem. Enfim, ele sabe que o
desenvolvimento de suas crianças será marcado pelo seu trabalho
intencional em sala de aula. Desde o momento em que entra na escola,
o professor tem plena consciência de que precisa estar 100% com as
crianças, que suas atitudes, sua fala, reverberam na humanização das
crianças sobre sua responsabilidade (ARCE, 2010, p. 35).
Compreende-se, portanto, que a mudança concreta se define na ideia de que o
conhecimento é algo selecionado e trabalho pelo professor com uma finalidade definida,
opondo-se à ideia de uma educação espontaneísta. Para além do cuidar e do brincar,
Arce apresenta e discute importantes fundamentos de trabalho docente refletindo sobre
o papel do professor da faixa etária de zero a seis anos, conscientizando-o como
propulsor do desenvolvimento cognitivo, social e afetivo da criança.
No diálogo entre os estudos expostos, tomamos como referência a função do
planejamento dos professores em suas práticas educativas junto às crianças pequenas,
compreendendo que a leitura e a escrita, concebidas em seus usos reais, sociais e
culturais, devem fazer parte dessa importante seleção. É nesse sentido que
reconhecemos a prática de leitura de histórias como um espaço legitimado da escrita
pela instituição educacional infantil.
Entendemos, destarte, que a escola proposta aos pequenos aceita e abre espaço
para o desenvolvimento da atividade de leitura de histórias, validando seu uso. Contudo,
questionamos se essa legitimação é validada à escrita no ambiente da Educação Infantil.
Sobre a ideia (equivocada) de que, ao se propor atividades que envolvem a
leitura e a escrita significa que se está buscando alfabetizar as crianças precocemente,
Kleiman (2009), apresenta o amplo leque de possibilidades que os projetos de
letramento abrem na Educação Infantil. A autora reafirma a premissa de que as crianças
não chegam ao 1°ano do Ensino Fundamental alheias aos movimentos causados pela
leitura e pela escrita na sociedade. Desse modo, Kleiman (2009) enumera as muitas
falácias decorrentes da crença de que o trabalho com leitura e escrita com os pequenos
corresponderia a uma forma de antecipar a alfabetização e retirar deles a sua infância.
3. CAMINHOS ESCOLHIDOS
A pesquisa em pauta baseou-se na perspectiva etnográfica, optando pelo estudo
de caso, compreendendo a escola como uma instituição sócio-histórica, complexa e que
se encontra em constante mudança.
Ezpeleta e Rockweel (1989), sociólogas da educação, enfatizam o estudo do
cotidiano como uma categoria que proporciona entender as relações de poder, de
saberes, de trocas, de práticas culturais na escola. Destacam que o ambiente ali é
construído e produzido por todos que nela atuam e um lugar que deve ser considerado
em sua inserção histórica. Explicita-se a importância de entendermos as práticas
escolares em suas realidades concretas, compostas pelos diversos sujeitos, com culturas
e histórias diferentes e em locais particulares.
Diante do exposto, as autoras pontuam que a observação e o registro descritivo
podem se constituir uma das possíveis alternativas para o estudo da escola, buscando
assim, indícios que possam captar o ponto de vista dos sujeitos ali inseridos.
Hébrard (2000), estudioso da corrente da História Cultural, em entrevista para a
revista Presença Pedagógica, pontua que a descrição da escola pode favorecer a
apreensão de seus modos de funcionamento, possibilitando o entendimento de suas
práticas.
Certeau (1985) chama atenção de que, ao descrevermos uma prática cotidiana,
estamos dela nos apropriando, concebendo-a com nosso olhar, relatando-a da forma
como a compreendemos no momento e estamos produzindo conhecimento a partir
daquilo. Sobre a complexidade dessa descrição Certeau pontua:
(...) sobre a questão de como descrever. Uma experiência engraçada é
tentar ler no dicionário a descrição de práticas cotidianas muito
simples. Diverti-me, por exemplo, ao procurar no dicionário relativo à
pesca a descrição das maneiras de se dar um nó. Quando lemos no
texto “pegue um pouco de linha, passe-a para a direita e depois para a
esquerda, etc.” não compreendemos absolutamente nada. Trata-se de
um texto ilegível. O problema é saber como podemos descrever as
práticas cotidianas, o que é questão muito importante (p.9).
Descrever e retratar a realidade escolar é algo desafiador, complexo e de
responsabilidade assumida pelo pesquisador ao se propor estudar relações constituintes
da escola e dos que nela atuam. Ao mesmo tempo, como explicitado pelos autores
destacados, a descrição da instituição educacional caracteriza-se como uma
possibilidade de reconhecê-la e compreendê-la em sua realidade, cada vez mais e
melhor.
O recorte do estudo aqui apresentado pautou-se nesses pressupostos, buscando
descrever práticas de leitura de quatro professoras de duas instituições públicas de um
município do interior de São Paulo de Educação Infantil junto às crianças. Para tanto,
houve a inserção da pesquisadora no campo e os registros sistemáticos no caderno de
campo.
A inserção nos contextos pesquisados buscou a construção de uma relação de
confiança entre a pesquisadora e os sujeitos participantes. Fundamentando-se nos
indícios do trabalho de campo, no que se remete à relação observador-observado, Silva
(2006) demonstra que cabe ao pesquisador alguns rituais de conduta na aproximação
aos indivíduos que aceitaram contribuir com o estudo.
Para a discussão proposta neste artigo, selecionamos quatro episódios, referentes
à prática de leitura de histórias de cada uma das quatro professoras que participaram do
estudo.
4. EPISÓDIOS: COMO SÃO REALIZADAS AS LEITURAS?
4.1. Professora Mariana3
A turma de Mariana era composta por vinte e quatro crianças de um ano até um
ano e seis meses de idade.
A professora levanta, vai em direção à prateleira, escolhe um livro e diz
baixinho aos alunos: “Agora, vou contar uma história”. Canta outra música que
antecede este momento4. Essas músicas, para quem trabalha com a Educação Infantil,
são familiares na rotina de trabalho.
3
Os nomes usados na pesquisa são fictícios.
As professoras Mariana e Renata costumam cantar uma música junto aos alunos antes de começarem a
leitura das histórias: “E agora minha gente/ uma história eu vou contar/ uma história bem bonita/ todo
mundo vai gostar/ rê rê rê/ tra lá lá lá/ rê rê rê/ tra lá lá lá/”.
4
Professora: “Essa história se chama: o que foi aquele barulho? ”5.
Mariana mostra a primeira página do livro, lê a frase inicial, mas logo passa a
explorar as ilustrações, nomeando os animais que aparecem e imitando os barulhos
que eles fazem. Junto com a professora, os alunos imitam os sons e mostram que estão
se divertindo, dando risada e se aproximando da professora para ver as imagens mais
de perto.
Lajolo (2005), importante pesquisadora da área de práticas de leitura no espaço
escolar, pontua o quanto o professor é responsável por organizar o espaço, planejar a
atividade e refletir sobre a forma como a leitura será realizada, objetivando a formação
de leitores.
Nesse episódio, Mariana assume a posição de porta-voz da história a ser
apresentada, utilizando-se das imagens do livro com maior ênfase, fazendo uso delas
para mostrar aos alunos os animais e suas características, afastando-se do texto escrito
nas páginas do livro que estava em mãos. Como pode-se observar no trecho: Mariana
mostra a primeira página do livro, lê a frase inicial, mas logo passa a explorar as
ilustrações.
Questiona-se, assim, o que se destaca: a leitura da escrita, a da imagem ou das
duas? A análise do episódio demonstra o quanto a leitura da imagem é realçada em
relação à leitura da escrita, o que nos provoca na problematização deste artigo,
ressaltando-se que não é reconhecido à escrita, nesse contexto específico, o lugar
legitimado para a história contada pela professora.
4.2. Professora Renata
A turma de Renata era composta por trinta e uma crianças de um ano e meio até
dois anos e três meses.
Professora: “Agora vou contar uma historinha...”. Pega o livro na estante,
senta-se em uma cadeira e pede que os alunos sentem encostados na parede para ver a
história. A turma canta a música que antecede ao momento de leitura de histórias.
Professora: “O sapo Bocarrão”6 – lê o título mostrando a capa do livro.
5
CULTURAL, Ciranda (Ed). O que foi aquele barulho? São Paulo: Ciranda Cultural, 2009.
FAULKNER, Keith; LAMBERT, Jonathan. O sapo Bocarrão. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
2006.
6
Renata começa lendo, imitando a voz grossa do sapo Bocarrão. Na história
escrita no livro, o sapo vai conhecendo vários animais e conversando com eles sobre o
que gostam de comer. A professora lê e em seguida explica com suas próprias palavras
o que acabou de ler. Um exemplo dessa dinâmica: A professora diz “O sapo Bocarrão
tem um bocão bem grande e gosta de comer as moscas, ele pega com a língua...”. E na
página específica à qual ela se refere está escrito: “- Eu sou o sapo Bocarrão e como
moscas! – disse o sapo Bocarrão espichando a língua comprida e grudenta”
(FAULKNER, 1995, p.1).
No fim, o sapo encontra-se com o crocodilo com dentes brancos e pontudos (que
saem do livro, tipo pop-up) e a professora comenta: “Ah, esse crocodilo quer comer o
sapo, olha que dentões...”.
Após terminar a história, a professora recomeça a contar a história, retomando
os acontecimentos a partir das ilustrações. Conta um pouco e questiona os alunos: “O
que é mesmo que acontece aqui? ”. Os alunos não estão mais atentos a ela, alguns
levantam para se olhar no espelho e os que permanecem sentados distraem-se uns com
os outros. Renata insiste em recontar a história e explicitar o nome de cada animal que
aparece nas páginas do livro.
Renata coloca-se também, assim como Mariana, como porta voz da história do
livro junto às crianças. No episódio descrito fica ressaltado como as imagens são
aproveitadas de forma a se constituírem um recurso para explicar a narrativa.
Outro aspecto relevante na forma de trabalho da professora era o de retomar e
insistir em recontar a sequência da história a partir das ilustrações. O episódio mostra o
quanto as crianças dispersam naquele momento, realizando brincadeiras, saindo do
lugar e abandonando a atividade proposta. Ao refletirmos sobre isso, retomamos Lajolo
(2005), que afirma que a forma como lemos para nossos alunos pode ser ou não
motivadora do prazer pela leitura.
Por fim, o que se destaca? A leitura da imagem, da escrita ou das duas?
Observando o episódio, notamos que as práticas de leitura são realizadas, mas o
destaque maior recai, novamente, sobre o uso das imagens.
4.3. Professora Deise
A turma de Deise era composta por trinta crianças de um ano e sete meses até
três anos de idade.
A professora Deise diz que vai contar uma história e convida os alunos a ajudala na escolha. Pega sete livros na prateleira e os distribui espalhados no chão, de
forma que os alunos, que se aproximam rapidamente, possam vê-los. Permaneço
sentada próxima da turma, com o intuito de observar a prática.
Deise: “Qual vocês querem? ”.
Os alunos falam juntos, de forma que fica difícil entender. Estão sentados perto
dos livros, mas não mexem neles, apenas apontam para as opções. No meio disso, a
professora pergunta: “Querem o do porquinho?7 ”. A maioria da turma diz que sim. A
professora separa a escolha e guarda os outros livros na prateleira. Os alunos se
acomodam perto dela, parecendo ansiosos pelo momento.
A professora começa a leitura: “O porquinho Pitoco. Pitoco e Pati brincam na
grama. Pula pra lá, pula pra cá e [leitura do texto do livro, página 1]... e depois gente,
o que acontece? [pergunta a professora]”.
Aluna 1: “Eles se jogam na lama e ficam sujos” – como mostra a ilustração.
A professora vira a página e continua: “E aqui? ”.
Aluno 2: “Aí o porquinho tem que tomar banho...”.
Aluna 3: “Ele tá sujo e a mãe dele fica brava”.
A professora vai virando as páginas e questionando os alunos sobre a história.
Ela não se utiliza do texto escrito, pois os alunos vão contando sua própria história
conforme as imagens do livro são mostradas.
A proposta de trabalho de Deise com a prática de leitura de histórias diferenciase do das outras professoras. Percebe-se que os alunos se tornam porta vozes da história
que foi escolhida e contada. Eles, participam, auxiliam na criação do sentido e da
sequência da história através das ilustrações e talvez – considerando que o livro
escolhido possa ser conhecido por eles – pelo uso da memória. As falas dos alunos
foram ao encontro das imagens apresentadas e não houve interferência da professora na
narração feita pela turma. A mediação baseou-se em questionar o que as ilustrações
7
TODOLIVRO (Ed.). O porquinho Pitoco. Blumenau: Todolivro, 2010.
apresentavam, como mostrou o registro acima: Professora vira a página e continua: E
aqui?
Sendo assim, em concordância com as outras práticas de leitura de histórias
apresentadas, a leitura da escrita deu espaço para a leitura e interpretação das imagens
contidas no livro.
4.4. Professora Vanessa
A turma da professora Vanessa era composta por vinte e sete crianças de um ano
e três meses até dois anos e um mês.
A professora e as crianças retornam à sala de aula e a professora, já com os
livros escolhidos em mãos diz: “Vou contar uma história... vamos sentar para ouvir? ”.
Vanessa separa dois puffs, senta-se em um e coloca os livros no outro. A
maioria delas atende ao pedido da professora, contudo, algumas correm pela sala e
uma das agentes conversa com elas, pedindo que se unam ao grupo que já sentou – no
tapete do chão, em frente à professora -, pois a história iria começar. Eu sento ao lado
do grupo, de frente para a professora.
Antes de iniciar o momento, a professora explica que não é para mexerem nos
livros que estão no puff ao lado, que ela irá mostrá-los.
Professora: “Monstros animados8. É um livro de monstros! Uhhhhh...” – diz
mostrando a capa.
Professora continua: “Wow” – virando a capa – “É o monstro” – como o livro
é pop up, a imagem do monstro vai e volta conforme a movimentação do livro; Vanessa
faz esse movimento, aproximando o livro das crianças e brincando, como se o monstro
pudesse pegá-las. Elas riem.
Aluno: “Uhhhh... é um monstro, Dani” – diz olhando para mim e apontando
para o livro.
Professora: “Wow” – virando a página – “Olha, esse parece uma cobra... Wow,
esse tá de ponta cabeça... Wow, ele tá na água, ele tem um dentão... Wow, esse monstro
usa óculos...” – professora imita que veste um óculos com as mãos e convida as
crianças a brincarem de imitá-la.
8
STEER, Dugald. Monstros animados. São Paulo: Brinque Book, 2010.
Assim que a professora vira a última página do livro os alunos pedem: “Mais
um, mais um...”.
Professora pega o próximo livro9. Questiona: “Como se chama esse na capa? ”.
Alguns alunos respondem juntos: “Leão”.
Professora: “É o leão. Vamos ver quem mais aparece no livro? ” – em cada
página enfatiza o animal que está na ilustração, não se utilizando do texto. Imita os
sons dos animais e, quando a história termina, pergunta de qual animal ali as crianças
mais gostam. Quase todas respondem que é do leão.
Assim que termina, os alunos pedem: “Mais um, mais um...”.
Professora: “É o último, tá? Este chama: cocô no trono10” – diz mostrando a
capa.
Durante a prática de leitura a professora vai contando, com as suas palavras,
como cada animal que aparece faz cocô no trono. Ignora o texto de suas páginas. É um
momento em que as crianças riem bastante, pois o livro traz imagens engraçadas dos
animais e a professora enfatiza isso. Quando aparece a cobra, canta com elas uma
música que se refere a esse animal11.
A prática de leitura observada evidencia elementos da ludicidade, da fantasia, da
invenção de histórias. Tais maneiras de proceder vão ao encontro das concepções de
Rodari (1982), que apresenta em seu livro diferentes formas de se contar e recontar uma
história, ressaltando o trabalho do professor com a imaginação, a fantasia e a
criatividade das crianças. De acordo com o autor, esses são elementos fundamentais na
formação de cada sujeito e por isso precisam ser impulsionados e estimulados.
9
RICHTER, Stevan. Orelhas e olhinhos, caudas e focinhos: no Safári. Blumenau: Vale Das Letras,
2006.
10
11
CHARLAT, Benoit. Cocô no trono. São Paulo: Companhia Das Letrinhas, 2006.
A cobra não tem pé, a cobra não tem mão/como é que a cobra sobe no pezinho de limão? /Como é que
a cobra sobe no pezinho de limão? /A cobra vai subindo, vai, vai, vai/Vai se enrolando, vai, vai, vai/A
cobra não tem pé, a cobra não tem mão/Como é que a cobra desce do pezinho de limão? /Como é que a
cobra desce do pezinho de limão? /A cobra vai descendo, vai, vai, vai/Vai desenrolando, vai, vai, vai.
Acrescenta-se a isso a importância da escola, como um ambiente educador, garantir
momentos que promovam esse tipo de atividade.
A professora analisada explorava com intensidade as ilustrações dos livros que
lia para as crianças. Ela costumava reinventar histórias a partir da manipulação do
suporte material do escrito. Porém, não fazia valer o texto contido nas páginas. Nessas
dinâmicas de leitura, muitas vezes relacionava com músicas que cantavam no espaço
escolar ou inventava brincadeiras. Alguns exemplos recortados dos episódios acima:
“(...) Wow, esse monstro usa óculos...” – professora imita que veste um óculos com as
mãos e convida os alunos a brincarem de imitá-la”; Quando aparece a cobra, canta
com seus alunos uma música que se refere a este animal; Professora: “É o leão. Vamos
ver quem mais aparece no livro? ” – em cada página enfatiza o animal que está na
ilustração, não se utilizando do texto. Imita os sons dos animais e quando a história
termina pergunta de qual animal ali as crianças mais gostam.
A dinâmica de leitura realizada por essa professora incluía livros com diferentes
suportes, que traziam acessórios e desenhos chamativos. Observou-se que esses objetos,
por sua característica, ultrapassavam o escrito, ou seja, destacavam-se pelas marcas
ilustrativas, pela cor, pelo tamanho e por outras funcionalidades.
Outro ponto marcante no trabalho desenvolvido por Vanessa é que ela não
utilizou apenas um livro para o momento destinado à prática de leitura e sim três.
5. APONTAMENTOS
Os episódios apresentados procuraram expor aspectos das práticas de leituras
das quatro professoras, das relações estabelecidas por meio delas nesses momentos,
entre as crianças e os livros. Destaca-se o quanto parecem ser significativos para as
crianças. As ilustrações assumiram um papel fundamental nas singulares maneiras de
ler, pontuando o quanto a materialidade desse objeto cultural portador da escrita se fez
presente na atribuição de sentidos para as turmas. Podemos dizer que as formas de
leituras se reinventam e se compartilham, tal como ressalta Certeau (1994).
As imagens dos livros eram utilizadas pelas professoras de forma a contribuir na
construção dos significados às histórias, não atreladas ao texto escrito. A apropriação
das histórias pelas professoras e pelas crianças aparece de forma inventiva, trazendo
sentidos outros, enfatizando possibilidades de se trabalhar a imaginação, a invenção e a
criatividade no que concerne a essa prática de leitura, ressoando, por exemplo, as
propostas de Rodari (1982).
Entendemos, portanto, que as formas de trabalho das professoras se apresentam
como uma das tantas possibilidades de desenvolvimento das práticas de leitura de
histórias para a formação do pequeno leitor. Contudo, consideramos relevante
questionar: qual é o papel ocupado pela escrita nas práticas de trabalho da Educação
Infantil?
Ao estudar as possibilidades de trabalho com a literatura junto às crianças
pequenas, Corsino (2010) relata que é comum os professores “traduzirem” os textos
para as crianças, buscando torná-los mais adequados, para que sejam compreendidos
com mais facilidade. No entanto, essa ação acaba por reduzir a experiência da criança
com as especificidades da linguagem escrita.
Ao encontro disso, retomando o já exposto por Kleiman (2009), que nos lembra
que a criança está em constante contato com as práticas de uso reais da escrita e da
leitura em seu cotidiano. A autora nos alerta o quanto é equivocado agir, como
professores de Educação Infantil, alheios a elas, tratando o trabalho com a escrita como
um aspecto voltado apenas para a “alfabetização precoce”.
Pretendemos, portanto, mostrar, baseadas nos pressupostos apresentados, que a
escrita pode e deve se tornar presente nas práticas educativas junto aos pequenos. O
espaço, que poderia legitimar – no desenvolvimento das práticas de leitura de histórias –
não é explorado em sua plena possibilidade de trabalho.
6. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
O artigo aqui elaborado buscou indicar o quanto a escrita pode e deve ter seu
lugar assegurado nas práticas educativas no âmbito da Educação Infantil.
Acreditamos e reconhecemos que há um amplo leque de possibilidades para se
trabalhar com a prática de leitura de histórias. No entanto, reiteramos que há uma
diferença no caminho para a construção de sentidos aos usos da escrita, dentro do
contexto de leitura de histórias, ao lermos o texto das páginas dos livros ou ao nos
atermos as suas imagens para contá-los. Esse discernimento a respeito do papel da
escrita nas práticas de leitura parece ser algo importante para o planejamento do
professor tendo em vista as escolhas que fará na condução do processo de inserção das
crianças pequenas nas práticas letradas.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARCE, A. O Referencial Curricular para a Educação Infantil e o espontaneísmo:
(re)colocando o ensino como eixo norteador do trabalho pedagógico com crianças de 4
a 6 anos. In: ARCE, A. e MARTINS, L. M. (org.) Quem tem medo de ensinar na
Educação Infantil? Campinas: Editora Alínea, 2010.
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Disponível
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acesso
em
17/06/2012.
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usos da escrita na educação infantil um estudo de caso