USOS DA ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UM ESTUDO DE CASO Daniela Gaspar Pedrazzoli Bagnasco UNIANCHIETA e Colégio Santa Clara/SP [email protected] Ana Lúcia Guedes-Pinto FE – UNICAMP/SP [email protected] Alfabetização e infância Resumo: Neste artigo problematizamos as práticas de leitura de histórias na E.I, focalizando os usos da escrita pelas professoras junto às crianças. O estudo baseia-se na pesquisa de Mestrado defendida em 2014. Trata-se de um estudo de caso, tomando-se como referência o trabalho de quatro professoras de uma rede municipal do estado de São Paulo. Os pressupostos teóricos fundamentamse nos estudos do Letramento (Street, Kleiman) e na perspectiva de Certeau quanto às concepções de usos da escrita. Palavras-chave: estudos do Letramento; práticas de leitura e escrita; escrita e Educação Infantil Abstract: USES OF WRITTEN IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION: A CASE STUDY This paper question the stories of reading practices in early childhood education, taking focus on the uses of writing by teachers. The work is based on the Master's research defended in July 2014. This is a case study, taking as reference the practices of four teachers from a municipal school system of the state of São Paulo. The theoretical assumptions are based in Literacy Studies (Street, Kleiman) and Certeau perspective as the concepts of writing and reading of uses. Key-words: Literacy studies; reading and writing practices; written and Early Childhood Education 1. INTRODUÇÃO Neste artigo problematizaremos os usos da escrita dentro do contexto do segmento da Educação Infantil de um município do estado de São Paulo. Tomaremos os estudos do letramento (STREET, 1993; KLEIMAN, 1995) como uma das referências teóricas para o desenvolvimento das análises. Para tanto, traremos um pequeno recorte da pesquisa de Mestrado intitulada “Leitura de histórias na Educação Infantil: como se desenvolve? ”1. O objetivo dessa discussão – o valor legitimado à escrita na Educação Infantil – se inscreve na polêmica questão a respeito de se trabalhar aspectos da escrita que podem favorecer posteriormente a prática alfabetizadora. É importante destacar que buscamos trazer elementos que subsidiem a reflexão sobre o papel das práticas de linguagem, entre elas a escrita, com crianças pequenas no âmbito da instituição educacional. A ênfase do recorte se refere ao quanto a escrita se faz presente na apresentação das professoras participantes da pesquisa nos momentos de leitura de histórias junto às crianças. É importante ressaltar que os livros são reconhecidos como objetos culturais, constituídos de sentidos, e entre esses, destacamos especificamente, aquele atribuído por meio das palavras e das estruturas linguísticas utilizadas pelo autor ao escrevê-los. 2. REFLEXÕES ACERCA DO TRABALHO JUNTO AOS PEQUENOS Discutir sobre o trabalho a ser realizado nas instituições educacionais infantis requer atentar para a questão de a escola se constituir como um dos primeiros espaços sociais em que o indivíduo frequenta longe de sua família. Para tanto, essa caracterizase, a princípio, como um ambiente socializador, que busca proporcionar a interação e convívio de crianças de faixa etárias compatíveis ou próximas, com adultos que não fazem parte da família, e por ser regido por regras e tempos próprios. Como destacam os estudos socioculturais, é na interação que as crianças se desenvolvem cognitivamente e socialmente, aprendendo junto aos outros. Vinculado a isso, reiteramos que a educação nos primeiros anos de vida torna-se uma das bases para a constituição do sujeito e, por esse motivo, é fundamental conhecer e compreender como se dá o desenvolvimento das crianças pequenas (VYGOTSKY, 2007). O processo de intervenção, proporcionado pela convivência com os demais colegas e com os adultos, favorece diversas situações de mediação, através das quais cada criança vai se apropriando dos conhecimentos, e nesse caso, das funções da escrita em nossa sociedade (OLIVEIRA, 2001). Focalizando o tema abordado neste artigo, retomamos um dado da realidade contemporânea que se volta à presença maciça da escrita. Ela faz parte da paisagem 1 Pesquisa desenvolvida por Daniela Gaspar Pedrazzoli Bagnasco, iniciada no período de março de 2012 e defendida em julho de 2014 – UNICAMP/FE. cotidiana de todos nós, incluindo aí as crianças, principalmente com a inserção cada vez maior da tecnologia. Convivemos, portanto, com as práticas sociais da escrita e da leitura diariamente, dentro e fora da escola. Assim, conforme já evidenciado por vários estudos (KLEIMAN, 1995, 2009; KRAMER, 1982; LAJOLO, 2005; ROJO, 2009) os pequenos já estabelecem relação com o mundo letrado mesmo antes de aprender a ler e escrever convencionalmente, fator fundamental a ser considerado ao refletirmos sobre seu desenvolvimento. O conceito de letramento nos auxilia a refletir sobre as práticas de escrita presentes no segmento da Educação Infantil uma vez que opta por focar os usos e práticas sociais da linguagem que envolvem a escrita e a leitura – valorizadas ou não –, nas perspectivas de seus diferentes contextos sociais (ROJO, 2009). Os estudos do letramento compreendem a língua como prática social, as quais são social e culturalmente construídas. Sobre essa concepção, Street (1984; 1993), renomado pesquisador da área, introduz a definição do conceito no plural – letramentos – evidenciando que os letramentos são múltiplos, variados e determinados por relações de poder entre os sujeitos no uso da escrita. Compreende-se, assim, que as práticas de letramento mudam segundo o contexto. Acrescenta-se, ainda, que, entendido dessa maneira, não se prevê nenhuma relação entre letramento e progresso, não criando a dicotomia entre escrita e oralidade. Assumindo, portanto, essas a perspectiva de letramento abordada neste artigo defende que os sujeitos se constituem em meio às práticas socioculturais, envolvendo os aspectos da leitura e da escrita, reforçando e questionando valores, relações de poder e tradições. Ao encontro disso, Kleiman (2009), pesquisadora nas áreas de formação de professores e estudos do letramento, explicita o quanto o trabalho de leitura e de escrita com as crianças pequenas necessita ser planejado e concretizado de forma a dar continuidade aos usos que elas já trazem de suas práticas sociais: “No seu dia a dia, [a criança] está exposta a uma ampla e variada gama de atividades e textos, que fazem sentido graças à presença da escrita” (ibidem, p. 2). Defende-se, assim, no segmento da Educação Infantil, o desenvolvimento de um trabalho com a leitura e a escrita que oportunize às crianças a familiarização e a apropriação das diversas funções da língua portuguesa em nossa sociedade. Nessa mesma perspectiva, é relevante lembrar do trabalho de Bosco (2005), em seus estudos sobre a aquisição da linguagem pela criança, que expõe o quanto o espaço institucional destinado para a educação dos pequenos pode propiciar a vivência da linguagem em suas várias manifestações, realizando atividades que fazem parte de sua vida em sociedade. Ao encontro disso, a autora enfatiza o privilegiado papel de interlocutor assumido pelos professores nesse processo, indicando o quanto esses são responsáveis por selecionar e desenvolver as atividades, organizando o espaço e o tempo. É o professor que planeja sua ação junto às crianças, encarregando-se de proporcionar diversas situações que possam provocar os movimentos dos pequenos em torno da escrita. O professor ocupa o papel de mediador do processo de aprendizagem, tornando-se responsável por atuar intencionalmente junto às crianças, organizando os objetivos propostos, planejamento a melhor forma de atingi-los, buscando com isso o desenvolvimento dos alunos em todos os aspectos (VYGOTSKY, 2007). No contexto das políticas em torno da Educação Infantil, Arce (2010), ao propor uma reflexão sobre a função desse segmento, a defende como sendo a primeira etapa do longo processo escolar formal. A autora enfatiza a responsabilidade do professor em organizar ações deliberadas para que possa mediar o processo de conhecimento e aprendizagem da criança, buscando que ela aprenda a fazer sozinha aquilo que só sabe fazer com o outro. Contrária a uma posição meramente assistencialista e espontaneísta – que tem sido uma referência histórica do ensino junto às crianças pequenas2 -, a autora declara a defesa por um trabalho pedagógico que seja intencional, que envolva a articulação de conhecimentos para os pequenos, menores de seis anos, de forma que o ambiente escolar admita seu papel de socializar o conhecimento sistematizado, a cultura acumulada pela sociedade. Como explicita a autora: “A criança (...) é compreendida como um ser em construção, em processo de humanização, pois a natureza é fruto de nossa história social e (...) não está dada no ato do nascimento biológico” (p.30). O conhecimento é, portanto, impulsor do desenvolvimento infantil, sendo visto como o principal direito a ser garantido. 2 Para detalhes ver Kramer (1982; 2009), Kuhlmann Junior (2000). Assume-se, nesse sentido, uma escola que promove seu caráter educativo por ações criadas e planejadas. Ao professor, cabe o papel de ensinar, o que não significa eliminar aspectos fundamentais da educação junto aos pequenos, tais como a interação criança-criança, o cuidado, a ludicidade, a afetividade. Esses são elementos respeitados e trabalhados intencionalmente por parte do professor, uma vez que são entendidos em seus caráteres essenciais para o desenvolvimento da criança. Conforme a autora afirma: O professor aqui planeja antes de entrar em sala, prepara-se estudando os conteúdos, desenvolvendo estratégias de ensino e buscando metodologias eficazes para a aprendizagem. Enfim, ele sabe que o desenvolvimento de suas crianças será marcado pelo seu trabalho intencional em sala de aula. Desde o momento em que entra na escola, o professor tem plena consciência de que precisa estar 100% com as crianças, que suas atitudes, sua fala, reverberam na humanização das crianças sobre sua responsabilidade (ARCE, 2010, p. 35). Compreende-se, portanto, que a mudança concreta se define na ideia de que o conhecimento é algo selecionado e trabalho pelo professor com uma finalidade definida, opondo-se à ideia de uma educação espontaneísta. Para além do cuidar e do brincar, Arce apresenta e discute importantes fundamentos de trabalho docente refletindo sobre o papel do professor da faixa etária de zero a seis anos, conscientizando-o como propulsor do desenvolvimento cognitivo, social e afetivo da criança. No diálogo entre os estudos expostos, tomamos como referência a função do planejamento dos professores em suas práticas educativas junto às crianças pequenas, compreendendo que a leitura e a escrita, concebidas em seus usos reais, sociais e culturais, devem fazer parte dessa importante seleção. É nesse sentido que reconhecemos a prática de leitura de histórias como um espaço legitimado da escrita pela instituição educacional infantil. Entendemos, destarte, que a escola proposta aos pequenos aceita e abre espaço para o desenvolvimento da atividade de leitura de histórias, validando seu uso. Contudo, questionamos se essa legitimação é validada à escrita no ambiente da Educação Infantil. Sobre a ideia (equivocada) de que, ao se propor atividades que envolvem a leitura e a escrita significa que se está buscando alfabetizar as crianças precocemente, Kleiman (2009), apresenta o amplo leque de possibilidades que os projetos de letramento abrem na Educação Infantil. A autora reafirma a premissa de que as crianças não chegam ao 1°ano do Ensino Fundamental alheias aos movimentos causados pela leitura e pela escrita na sociedade. Desse modo, Kleiman (2009) enumera as muitas falácias decorrentes da crença de que o trabalho com leitura e escrita com os pequenos corresponderia a uma forma de antecipar a alfabetização e retirar deles a sua infância. 3. CAMINHOS ESCOLHIDOS A pesquisa em pauta baseou-se na perspectiva etnográfica, optando pelo estudo de caso, compreendendo a escola como uma instituição sócio-histórica, complexa e que se encontra em constante mudança. Ezpeleta e Rockweel (1989), sociólogas da educação, enfatizam o estudo do cotidiano como uma categoria que proporciona entender as relações de poder, de saberes, de trocas, de práticas culturais na escola. Destacam que o ambiente ali é construído e produzido por todos que nela atuam e um lugar que deve ser considerado em sua inserção histórica. Explicita-se a importância de entendermos as práticas escolares em suas realidades concretas, compostas pelos diversos sujeitos, com culturas e histórias diferentes e em locais particulares. Diante do exposto, as autoras pontuam que a observação e o registro descritivo podem se constituir uma das possíveis alternativas para o estudo da escola, buscando assim, indícios que possam captar o ponto de vista dos sujeitos ali inseridos. Hébrard (2000), estudioso da corrente da História Cultural, em entrevista para a revista Presença Pedagógica, pontua que a descrição da escola pode favorecer a apreensão de seus modos de funcionamento, possibilitando o entendimento de suas práticas. Certeau (1985) chama atenção de que, ao descrevermos uma prática cotidiana, estamos dela nos apropriando, concebendo-a com nosso olhar, relatando-a da forma como a compreendemos no momento e estamos produzindo conhecimento a partir daquilo. Sobre a complexidade dessa descrição Certeau pontua: (...) sobre a questão de como descrever. Uma experiência engraçada é tentar ler no dicionário a descrição de práticas cotidianas muito simples. Diverti-me, por exemplo, ao procurar no dicionário relativo à pesca a descrição das maneiras de se dar um nó. Quando lemos no texto “pegue um pouco de linha, passe-a para a direita e depois para a esquerda, etc.” não compreendemos absolutamente nada. Trata-se de um texto ilegível. O problema é saber como podemos descrever as práticas cotidianas, o que é questão muito importante (p.9). Descrever e retratar a realidade escolar é algo desafiador, complexo e de responsabilidade assumida pelo pesquisador ao se propor estudar relações constituintes da escola e dos que nela atuam. Ao mesmo tempo, como explicitado pelos autores destacados, a descrição da instituição educacional caracteriza-se como uma possibilidade de reconhecê-la e compreendê-la em sua realidade, cada vez mais e melhor. O recorte do estudo aqui apresentado pautou-se nesses pressupostos, buscando descrever práticas de leitura de quatro professoras de duas instituições públicas de um município do interior de São Paulo de Educação Infantil junto às crianças. Para tanto, houve a inserção da pesquisadora no campo e os registros sistemáticos no caderno de campo. A inserção nos contextos pesquisados buscou a construção de uma relação de confiança entre a pesquisadora e os sujeitos participantes. Fundamentando-se nos indícios do trabalho de campo, no que se remete à relação observador-observado, Silva (2006) demonstra que cabe ao pesquisador alguns rituais de conduta na aproximação aos indivíduos que aceitaram contribuir com o estudo. Para a discussão proposta neste artigo, selecionamos quatro episódios, referentes à prática de leitura de histórias de cada uma das quatro professoras que participaram do estudo. 4. EPISÓDIOS: COMO SÃO REALIZADAS AS LEITURAS? 4.1. Professora Mariana3 A turma de Mariana era composta por vinte e quatro crianças de um ano até um ano e seis meses de idade. A professora levanta, vai em direção à prateleira, escolhe um livro e diz baixinho aos alunos: “Agora, vou contar uma história”. Canta outra música que antecede este momento4. Essas músicas, para quem trabalha com a Educação Infantil, são familiares na rotina de trabalho. 3 Os nomes usados na pesquisa são fictícios. As professoras Mariana e Renata costumam cantar uma música junto aos alunos antes de começarem a leitura das histórias: “E agora minha gente/ uma história eu vou contar/ uma história bem bonita/ todo mundo vai gostar/ rê rê rê/ tra lá lá lá/ rê rê rê/ tra lá lá lá/”. 4 Professora: “Essa história se chama: o que foi aquele barulho? ”5. Mariana mostra a primeira página do livro, lê a frase inicial, mas logo passa a explorar as ilustrações, nomeando os animais que aparecem e imitando os barulhos que eles fazem. Junto com a professora, os alunos imitam os sons e mostram que estão se divertindo, dando risada e se aproximando da professora para ver as imagens mais de perto. Lajolo (2005), importante pesquisadora da área de práticas de leitura no espaço escolar, pontua o quanto o professor é responsável por organizar o espaço, planejar a atividade e refletir sobre a forma como a leitura será realizada, objetivando a formação de leitores. Nesse episódio, Mariana assume a posição de porta-voz da história a ser apresentada, utilizando-se das imagens do livro com maior ênfase, fazendo uso delas para mostrar aos alunos os animais e suas características, afastando-se do texto escrito nas páginas do livro que estava em mãos. Como pode-se observar no trecho: Mariana mostra a primeira página do livro, lê a frase inicial, mas logo passa a explorar as ilustrações. Questiona-se, assim, o que se destaca: a leitura da escrita, a da imagem ou das duas? A análise do episódio demonstra o quanto a leitura da imagem é realçada em relação à leitura da escrita, o que nos provoca na problematização deste artigo, ressaltando-se que não é reconhecido à escrita, nesse contexto específico, o lugar legitimado para a história contada pela professora. 4.2. Professora Renata A turma de Renata era composta por trinta e uma crianças de um ano e meio até dois anos e três meses. Professora: “Agora vou contar uma historinha...”. Pega o livro na estante, senta-se em uma cadeira e pede que os alunos sentem encostados na parede para ver a história. A turma canta a música que antecede ao momento de leitura de histórias. Professora: “O sapo Bocarrão”6 – lê o título mostrando a capa do livro. 5 CULTURAL, Ciranda (Ed). O que foi aquele barulho? São Paulo: Ciranda Cultural, 2009. FAULKNER, Keith; LAMBERT, Jonathan. O sapo Bocarrão. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2006. 6 Renata começa lendo, imitando a voz grossa do sapo Bocarrão. Na história escrita no livro, o sapo vai conhecendo vários animais e conversando com eles sobre o que gostam de comer. A professora lê e em seguida explica com suas próprias palavras o que acabou de ler. Um exemplo dessa dinâmica: A professora diz “O sapo Bocarrão tem um bocão bem grande e gosta de comer as moscas, ele pega com a língua...”. E na página específica à qual ela se refere está escrito: “- Eu sou o sapo Bocarrão e como moscas! – disse o sapo Bocarrão espichando a língua comprida e grudenta” (FAULKNER, 1995, p.1). No fim, o sapo encontra-se com o crocodilo com dentes brancos e pontudos (que saem do livro, tipo pop-up) e a professora comenta: “Ah, esse crocodilo quer comer o sapo, olha que dentões...”. Após terminar a história, a professora recomeça a contar a história, retomando os acontecimentos a partir das ilustrações. Conta um pouco e questiona os alunos: “O que é mesmo que acontece aqui? ”. Os alunos não estão mais atentos a ela, alguns levantam para se olhar no espelho e os que permanecem sentados distraem-se uns com os outros. Renata insiste em recontar a história e explicitar o nome de cada animal que aparece nas páginas do livro. Renata coloca-se também, assim como Mariana, como porta voz da história do livro junto às crianças. No episódio descrito fica ressaltado como as imagens são aproveitadas de forma a se constituírem um recurso para explicar a narrativa. Outro aspecto relevante na forma de trabalho da professora era o de retomar e insistir em recontar a sequência da história a partir das ilustrações. O episódio mostra o quanto as crianças dispersam naquele momento, realizando brincadeiras, saindo do lugar e abandonando a atividade proposta. Ao refletirmos sobre isso, retomamos Lajolo (2005), que afirma que a forma como lemos para nossos alunos pode ser ou não motivadora do prazer pela leitura. Por fim, o que se destaca? A leitura da imagem, da escrita ou das duas? Observando o episódio, notamos que as práticas de leitura são realizadas, mas o destaque maior recai, novamente, sobre o uso das imagens. 4.3. Professora Deise A turma de Deise era composta por trinta crianças de um ano e sete meses até três anos de idade. A professora Deise diz que vai contar uma história e convida os alunos a ajudala na escolha. Pega sete livros na prateleira e os distribui espalhados no chão, de forma que os alunos, que se aproximam rapidamente, possam vê-los. Permaneço sentada próxima da turma, com o intuito de observar a prática. Deise: “Qual vocês querem? ”. Os alunos falam juntos, de forma que fica difícil entender. Estão sentados perto dos livros, mas não mexem neles, apenas apontam para as opções. No meio disso, a professora pergunta: “Querem o do porquinho?7 ”. A maioria da turma diz que sim. A professora separa a escolha e guarda os outros livros na prateleira. Os alunos se acomodam perto dela, parecendo ansiosos pelo momento. A professora começa a leitura: “O porquinho Pitoco. Pitoco e Pati brincam na grama. Pula pra lá, pula pra cá e [leitura do texto do livro, página 1]... e depois gente, o que acontece? [pergunta a professora]”. Aluna 1: “Eles se jogam na lama e ficam sujos” – como mostra a ilustração. A professora vira a página e continua: “E aqui? ”. Aluno 2: “Aí o porquinho tem que tomar banho...”. Aluna 3: “Ele tá sujo e a mãe dele fica brava”. A professora vai virando as páginas e questionando os alunos sobre a história. Ela não se utiliza do texto escrito, pois os alunos vão contando sua própria história conforme as imagens do livro são mostradas. A proposta de trabalho de Deise com a prática de leitura de histórias diferenciase do das outras professoras. Percebe-se que os alunos se tornam porta vozes da história que foi escolhida e contada. Eles, participam, auxiliam na criação do sentido e da sequência da história através das ilustrações e talvez – considerando que o livro escolhido possa ser conhecido por eles – pelo uso da memória. As falas dos alunos foram ao encontro das imagens apresentadas e não houve interferência da professora na narração feita pela turma. A mediação baseou-se em questionar o que as ilustrações 7 TODOLIVRO (Ed.). O porquinho Pitoco. Blumenau: Todolivro, 2010. apresentavam, como mostrou o registro acima: Professora vira a página e continua: E aqui? Sendo assim, em concordância com as outras práticas de leitura de histórias apresentadas, a leitura da escrita deu espaço para a leitura e interpretação das imagens contidas no livro. 4.4. Professora Vanessa A turma da professora Vanessa era composta por vinte e sete crianças de um ano e três meses até dois anos e um mês. A professora e as crianças retornam à sala de aula e a professora, já com os livros escolhidos em mãos diz: “Vou contar uma história... vamos sentar para ouvir? ”. Vanessa separa dois puffs, senta-se em um e coloca os livros no outro. A maioria delas atende ao pedido da professora, contudo, algumas correm pela sala e uma das agentes conversa com elas, pedindo que se unam ao grupo que já sentou – no tapete do chão, em frente à professora -, pois a história iria começar. Eu sento ao lado do grupo, de frente para a professora. Antes de iniciar o momento, a professora explica que não é para mexerem nos livros que estão no puff ao lado, que ela irá mostrá-los. Professora: “Monstros animados8. É um livro de monstros! Uhhhhh...” – diz mostrando a capa. Professora continua: “Wow” – virando a capa – “É o monstro” – como o livro é pop up, a imagem do monstro vai e volta conforme a movimentação do livro; Vanessa faz esse movimento, aproximando o livro das crianças e brincando, como se o monstro pudesse pegá-las. Elas riem. Aluno: “Uhhhh... é um monstro, Dani” – diz olhando para mim e apontando para o livro. Professora: “Wow” – virando a página – “Olha, esse parece uma cobra... Wow, esse tá de ponta cabeça... Wow, ele tá na água, ele tem um dentão... Wow, esse monstro usa óculos...” – professora imita que veste um óculos com as mãos e convida as crianças a brincarem de imitá-la. 8 STEER, Dugald. Monstros animados. São Paulo: Brinque Book, 2010. Assim que a professora vira a última página do livro os alunos pedem: “Mais um, mais um...”. Professora pega o próximo livro9. Questiona: “Como se chama esse na capa? ”. Alguns alunos respondem juntos: “Leão”. Professora: “É o leão. Vamos ver quem mais aparece no livro? ” – em cada página enfatiza o animal que está na ilustração, não se utilizando do texto. Imita os sons dos animais e, quando a história termina, pergunta de qual animal ali as crianças mais gostam. Quase todas respondem que é do leão. Assim que termina, os alunos pedem: “Mais um, mais um...”. Professora: “É o último, tá? Este chama: cocô no trono10” – diz mostrando a capa. Durante a prática de leitura a professora vai contando, com as suas palavras, como cada animal que aparece faz cocô no trono. Ignora o texto de suas páginas. É um momento em que as crianças riem bastante, pois o livro traz imagens engraçadas dos animais e a professora enfatiza isso. Quando aparece a cobra, canta com elas uma música que se refere a esse animal11. A prática de leitura observada evidencia elementos da ludicidade, da fantasia, da invenção de histórias. Tais maneiras de proceder vão ao encontro das concepções de Rodari (1982), que apresenta em seu livro diferentes formas de se contar e recontar uma história, ressaltando o trabalho do professor com a imaginação, a fantasia e a criatividade das crianças. De acordo com o autor, esses são elementos fundamentais na formação de cada sujeito e por isso precisam ser impulsionados e estimulados. 9 RICHTER, Stevan. Orelhas e olhinhos, caudas e focinhos: no Safári. Blumenau: Vale Das Letras, 2006. 10 11 CHARLAT, Benoit. Cocô no trono. São Paulo: Companhia Das Letrinhas, 2006. A cobra não tem pé, a cobra não tem mão/como é que a cobra sobe no pezinho de limão? /Como é que a cobra sobe no pezinho de limão? /A cobra vai subindo, vai, vai, vai/Vai se enrolando, vai, vai, vai/A cobra não tem pé, a cobra não tem mão/Como é que a cobra desce do pezinho de limão? /Como é que a cobra desce do pezinho de limão? /A cobra vai descendo, vai, vai, vai/Vai desenrolando, vai, vai, vai. Acrescenta-se a isso a importância da escola, como um ambiente educador, garantir momentos que promovam esse tipo de atividade. A professora analisada explorava com intensidade as ilustrações dos livros que lia para as crianças. Ela costumava reinventar histórias a partir da manipulação do suporte material do escrito. Porém, não fazia valer o texto contido nas páginas. Nessas dinâmicas de leitura, muitas vezes relacionava com músicas que cantavam no espaço escolar ou inventava brincadeiras. Alguns exemplos recortados dos episódios acima: “(...) Wow, esse monstro usa óculos...” – professora imita que veste um óculos com as mãos e convida os alunos a brincarem de imitá-la”; Quando aparece a cobra, canta com seus alunos uma música que se refere a este animal; Professora: “É o leão. Vamos ver quem mais aparece no livro? ” – em cada página enfatiza o animal que está na ilustração, não se utilizando do texto. Imita os sons dos animais e quando a história termina pergunta de qual animal ali as crianças mais gostam. A dinâmica de leitura realizada por essa professora incluía livros com diferentes suportes, que traziam acessórios e desenhos chamativos. Observou-se que esses objetos, por sua característica, ultrapassavam o escrito, ou seja, destacavam-se pelas marcas ilustrativas, pela cor, pelo tamanho e por outras funcionalidades. Outro ponto marcante no trabalho desenvolvido por Vanessa é que ela não utilizou apenas um livro para o momento destinado à prática de leitura e sim três. 5. APONTAMENTOS Os episódios apresentados procuraram expor aspectos das práticas de leituras das quatro professoras, das relações estabelecidas por meio delas nesses momentos, entre as crianças e os livros. Destaca-se o quanto parecem ser significativos para as crianças. As ilustrações assumiram um papel fundamental nas singulares maneiras de ler, pontuando o quanto a materialidade desse objeto cultural portador da escrita se fez presente na atribuição de sentidos para as turmas. Podemos dizer que as formas de leituras se reinventam e se compartilham, tal como ressalta Certeau (1994). As imagens dos livros eram utilizadas pelas professoras de forma a contribuir na construção dos significados às histórias, não atreladas ao texto escrito. A apropriação das histórias pelas professoras e pelas crianças aparece de forma inventiva, trazendo sentidos outros, enfatizando possibilidades de se trabalhar a imaginação, a invenção e a criatividade no que concerne a essa prática de leitura, ressoando, por exemplo, as propostas de Rodari (1982). Entendemos, portanto, que as formas de trabalho das professoras se apresentam como uma das tantas possibilidades de desenvolvimento das práticas de leitura de histórias para a formação do pequeno leitor. Contudo, consideramos relevante questionar: qual é o papel ocupado pela escrita nas práticas de trabalho da Educação Infantil? Ao estudar as possibilidades de trabalho com a literatura junto às crianças pequenas, Corsino (2010) relata que é comum os professores “traduzirem” os textos para as crianças, buscando torná-los mais adequados, para que sejam compreendidos com mais facilidade. No entanto, essa ação acaba por reduzir a experiência da criança com as especificidades da linguagem escrita. Ao encontro disso, retomando o já exposto por Kleiman (2009), que nos lembra que a criança está em constante contato com as práticas de uso reais da escrita e da leitura em seu cotidiano. A autora nos alerta o quanto é equivocado agir, como professores de Educação Infantil, alheios a elas, tratando o trabalho com a escrita como um aspecto voltado apenas para a “alfabetização precoce”. Pretendemos, portanto, mostrar, baseadas nos pressupostos apresentados, que a escrita pode e deve se tornar presente nas práticas educativas junto aos pequenos. O espaço, que poderia legitimar – no desenvolvimento das práticas de leitura de histórias – não é explorado em sua plena possibilidade de trabalho. 6. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES O artigo aqui elaborado buscou indicar o quanto a escrita pode e deve ter seu lugar assegurado nas práticas educativas no âmbito da Educação Infantil. Acreditamos e reconhecemos que há um amplo leque de possibilidades para se trabalhar com a prática de leitura de histórias. No entanto, reiteramos que há uma diferença no caminho para a construção de sentidos aos usos da escrita, dentro do contexto de leitura de histórias, ao lermos o texto das páginas dos livros ou ao nos atermos as suas imagens para contá-los. Esse discernimento a respeito do papel da escrita nas práticas de leitura parece ser algo importante para o planejamento do professor tendo em vista as escolhas que fará na condução do processo de inserção das crianças pequenas nas práticas letradas. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARCE, A. O Referencial Curricular para a Educação Infantil e o espontaneísmo: (re)colocando o ensino como eixo norteador do trabalho pedagógico com crianças de 4 a 6 anos. In: ARCE, A. e MARTINS, L. M. (org.) Quem tem medo de ensinar na Educação Infantil? Campinas: Editora Alínea, 2010. BOSCO, Zelma R. 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