Práticas Interacionais em Rede Salvador - 10 e 11 de outubro de 2012 A INTERFACE DO TWITTER E SUAS APROPRIAÇÕES COM SENTIDO MEMORIAL: REFLEXÕES SOBRE O CASO 10 ANOS DO DIA 11 DE SETEMBRO DE 2001 Ana Lúcia Migowski da Silva 1 Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre as apropriações com sentidos memoriais desenvolvidas no microblog Twitter. A partir da análise do comportamento dos usuários no contexto dos 10 anos do dia 11 de setembro de 2011, serão evidenciados padrões de interação que permitem problematizar possibilidades e limitações apresentadas pela interface na direção da manifestação da memória coletiva sobre o acontecimento. Procurar-se-á identificar e mapear as possibilidades de ações mnemônicas coletivas derivadas da interface do microblog, com vistas a compreender de que modo os usuários dela se apropriam para esse fim. Serão destacadas as interações derivadas de alguns elementos da interface que, através dos contextos em que são empregados, adquirem e produzem sentidos memoriais aos conteúdos que circulam no ambiente. A teoria das materialidades da comunicação auxiliará no entendimento de que os sentidos memoriais provêm tanto da interação dos indivíduos quanto das condições de expressão da interface. Palavras-chave: memória coletiva, interfaces, apropriações, sentidos. Resumo: This article proposes a reflection on appropriations with memorial sense developed in the microblog Twitter. From the analysis of user behavior in the context of September 11 2011 10th anivesary, patterns of interaction that allow discuss possibilities and limitations presented by the interface toward the manifestation of a collective memory of the event will be shown. This research will identify and map the possibilities of collective mnemonic action derived from the Twitter interface, in order to understand how users use it for that purpose. The interactions derived from some elements of the interface, through the contexts in which they are employed, purchase and produce memorial senses of the content circulating in the environment. The theory of the materialities of communication will support to understand the memorial meanings that come from both the interaction of individuals and the interface’s conditions of expression. Palavras-chave: collective memories, interfaces, appropriations, senses. 1. Introdução: O Twitter como ambiente mnemônico Este texto trata, sobretudo, da temática das apropriações sociais em relação a ambientes digitais, com foco na produção de sentidos memoriais. Assim, serão problematizadas práticas que podem ser observadas em espaços de interação na web, bem como os sentidos produzidos a partir das possibilidades e limitações apresentadas pelas interfaces digitais. Para efeitos metodológicos, elegeu-se o microblog Twitter como objeto ilustrador de tais práticas, de 1 Mestranda do PPG em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. modo que se possa entender de que maneira o sistema atua na manifestação de memórias coletivas, por parte de seus usuários, a respeito de um determinado acontecimento. Vale ressaltar, portanto, os motivos que levam este artigo a focar-se em tal ambiente. Palestras e textos acadêmicos que propõem reflexões sobre o microblog Twitter com frequência explicitam o fato de que o slogan da marca modificou-se de “o que você está fazendo?”, que vigorou entre 2006 e 2009, para “o que está acontecendo?”. Esse fato deu-se devido ao modo como os usuários efetivamente se apropriavam da ferramenta, passando de uma abordagem mais individual para outra mais coletiva. Sendo assim, ainda que a intenção inicial dos idealizadores do microblog fosse aquela primeira, o público utilizador encontrou maneiras mais adequadas às suas necessidades para empregá-lo. Identifica-se, assim, que a “apropriação” é uma marca bastante característica do microblog, como coloca Zago ao definir a ferramenta em sua primeira fase e problematizar suas apropriações jornalísticas: [...] o Twitter é uma ferramenta de microblog na qual seus usuários são convidados a responder à pergunta “O que você está fazendo?” em até 140 caracteres. Entretanto, desde o seu surgimento, diversas apropriações da ferramenta vêm despontando, inclusive para fins jornalísticos, o que faz com que se possa ir bem além do que propunha o sistema inicialmente. (ZAGO, 2009, p. 69) Com essa perspectiva em mente, realizou-se, nos dias 10 e 11 de setembro de 2011, um estudo exploratório – a partir do monitoramento dos Trending Topics do Twitter em intervalos médios de 4 horas – no qual foram mapeados momentos em que havia alguma expressão de usuários do Twitter relativamente ao acontecimento que completava 10 anos naquele período: os “ataques” ou “atentados terroristas” especialmente às Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Nesse ponto, vale ressaltar que a escolha deste acontecimento deu-se em função da intensa mobilização observada em variados meios de comunicação com o viés de demarcar a passagem dos 10 anos transcorridos desde o ocorrido. Identificou-se, portanto, um caráter memorial, tanto de recuperação de informações quanto de atualização do acontecimento. Por sentido memorial define-se aqui, de maneira resumida, a intenção de expressar o passado a partir do presente, projetando-o, de certa forma, para o futuro (SANTOS, 2003; RICOEUR, 2007). O foco estará em compreender como essa ação se dá de maneira coletiva (HALBWACHS, 2006), situando-a no ambiente comunicacional do microblog e analisando-a através dos elementos disponíveis na interface. Assim, a partir dos dados coletados no estudo exploratório e de conceitos teóricos, serão identificados elementos da interface que potencializaram ou limitaram o uso do microblog como plataforma propícia para a ocorrência de trocas simbólicas e interações com sentido memorial, ou seja, a partir das quais foi possível recuperar e manifestar sentidos com conteúdos relativos ao acontecimento que completava 10 anos. Será ainda analisada a maneira como o design da interface do Twitter proporciona a interação entre os indivíduos e o sistema, de forma a evidenciar a relação estreita entre interação e memória. 2. Apropriações de ambientes sociais na web para fins memoriais: o caso do Twitter Para que se possa realizar uma reflexão mais aprofundada será necessário delimitar e definir os conceitos teóricos a serem trabalhados, bem como apresentar a relação entre eles. Espera-se, dessa forma, explicitar o contexto a partir do qual serão analisadas as propriedades da interface do Twitter e em que sentido elas serão abordadas. Neste texto, o conceito de apropriação será entendido como o “modo com o qual as tecnologias são adotadas, adaptadas e incorporadas a uma prática”, ou ainda uma “forma de fazer uso da tecnologia para propósitos além daqueles para os quais o sistema foi originalmente projetado, ou para servir a novos fins” (DOURISH, 2003, p. 2). Procurar-se-á, então, uma compreensão sobre o modo como as interações e expressões observadas a partir do Twitter, no contexto das celebrações dos 10 anos do dia 11 de setembro de 2001, revelam usos e práticas que vão além do propósito dos criadores do sistema. Essa apropriação percebida refere-se à atividade memorial, que ocorreu voluntária ou involuntariamente (SANTOS, 2003, p. 142) no período da observação. É preciso admitir, evidentemente, que as mensagens compartilhadas no Twitter naquele contexto de certa forma enquadravam-se na pergunta proposta pelos idealizadores da ferramenta, que é “o que está acontecendo?”, uma vez que foram analisados os conteúdos que circularam no período que marco a primeira década do fato. No entanto, propomos que este uso de cunho memorial seja visto como uma apropriação uma vez que este se dá como um movimento emergente (Johnson, 2003). Ou seja, as ferramentas e elementos de interação disponíveis e acessados através do Twitter tornaram-se produtores de sentidos na memória coletiva lá manifestada, como será visto a seguir. Segundo Shirky (2010, p. 173) “O que importa não é o que os usuários fazem e se aquilo fecha com o que os criadores planejaram. O importante é que eles estejam reagindo às oportunidades oferecidas pelo sistema”. Assim, trabalhar-se-á justamente sobre o modo como os usuários se apropriam dos elementos da interface, que dão vida ao sistema, produzindo através deles conteúdos memoriais coletivamente. A teoria das materialidades da comunicação pode ser cara a esta análise, uma vez que considera “a totalidade dos fenômenos que contribuem para a constituição de sentidos sem serem, eles próprios, sentidos” (Gumbrecht, 2010, p. 28). Ou seja, tal perspectiva traz a noção de que a valorização da ideia de “sentido”, que vigora na hermenêutica moderna, precisa ser relativizada a partir de um campo que vá além da interpretação, e que considere também a presença de aparatos técnicos na produção de sentidos2. Felinto chega a afirmar que: Um pensamento como o das materialidades da comunicação aparece como extremamente útil para a reflexão em torno das chamadas novas tecnologias da comunicação e informação. A interação entre corpo e máquina, entre sistemas de pensamento humanos e sistemas binários, entre o real e o virtual constitui um problema particularmente interessante para os instrumentos da teoria das materialidades. (FELINTO, 2001, online) Johnson (2001) produziu uma reflexão importante que explicitou as mudanças de percepção em relação às interfaces. Inicialmente, elas eram vistas como “ferramentas”, passando hoje a ser chamadas de “ambientes”. Além disso, o uso que antes era feito de maneira “individual”, época em que vigorou a ideia do “computador pessoal (PC)” passa a ser feito de maneira “coletiva” nos espaços on-line (sites de redes sociais, fóruns, games on-line, etc). A primeira característica está afinada com as explicações dadas por Fragoso (2001, p. 6), quando esquematiza e problematiza as “quatro diferentes perspectivas sobre a interação humano-computador” (KAMMERSGAARD, 1988): (1) usuário como máquina, (2) computador como pessoa, (3) computador como ferramenta, (4) computador como mídia. Ao ser encarado como mídia, o computador passa a adquirir o caráter de ambiente mediador – no qual os usuários trocam informações e sentidos entre si –, sobretudo devido à segunda característica, o “contexto de uso coletivo” (KAMMERSGAARD, 1988, p. 333). Este surge no momento em que as interfaces, que eram projetadas para serem utilizadas individualmente (computador pessoal), passam a ser pensadas enquanto espaços coletivos, como comunidades virtuais (JOHNSON, 2001, p. 160). Percebe-se, em tais evidências, que a materialidade das interfaces, aliada ao uso que delas fazem os sujeitos, propiciam novos modos de agir e produzir sentidos através dos meios de comunicação digitais. Projetar interfaces que terão uso coletivo pressupõe levar em conta, novamente, as apropriações. Alguns aspectos levantados por Dourish (2003, p. 19) serão aqui enfatizados, sobretudo no que se refere ao design das interfaces e interações: a) Suportar a interoperação 2 Esta explicação é bastante sucinta, no entanto explicita as características da teoria que tocam a temática aqui abordada. A teoria das materialidades da comunicação, originalmente trabalhada por Gumbrecht, e problematizada no Brasil por autores como Felinto (2001), Sá (2004), Hanke (2005), e Lemos (2010). entre múltiplas perspectivas e organizações para a mesma informação; b) fazer as ações e as consequências das ações visíveis na interface; c) oferecer controle sobre a informação diretamente na aplicação, e não na infraestrutura. Assim, o design da apropriação pressupõe que a aplicação esteja estruturada de modo a permitir que o usuário tenha autonomia para compor, estender ou ampliar o alcance dos conteúdos (ibid., p. 14), favorecendo a formação de comunidades de prática (ibid., p. 18), a customização e flexibilidade nas interações (ibid., p. 2). Mas, de que forma podem-se pensar esses aspectos quando se propõe uma análise a respeito das apropriações memoriais no microblog Twitter? A interface desse sistema foi projetada de maneira a operar como mediadora, tradutora, representante, trabalhando com símbolos e códigos, em um universo semântico (JOHNSON, 2001), que permite que os indivíduos comuniquem entre si e interajam com o sistema da máquina. As convenções e restrições (NORMAN, 1999) colocadas pelos elementos que compõem a interface são fatores que devem ser considerados, no entanto é interessante também identificar como o contexto de uso imprime novos significados para tais elementos. Nessa mesma linha apresenta-se a importância de destacar a estreita relação entre memória coletiva e interação que, como foi colocado anteriormente, juntamente com a materialidade da interface, constitui-se como base para a produção de sentidos memoriais no ambiente do Twitter. Posteriormente serão apresentados alguns dos elementos da interface que tanto atribuem sentidos para essas interações, quanto são igualmente significados por elas. 4 Memória coletiva e interação: uma relação estreita O conceito de memória em sua dimensão social é tratado por vezes com ênfase no indivíduo e em outras na coletividade. Neste texto tratar-se-á desta última perspectiva, embora se saiba que as duas são indissociáveis: é preciso que os indivíduos se expressem e narrem suas experiências para que a memória coletiva seja construída (Halbwachs, 2006; Ricoeur, 2007). No entanto, é através das interações sociais que os sentidos coletivos da memória se constituem, através dos atravessamentos que sofrem os indivíduos que estabelecem trocas simbólicas e materiais. Primo (2007), a partir de uma perspectiva sistêmico-relacional, propõe duas categorias de análise para as interações mediadas por computador: a reativa e a mútua. Essas duas categorias diferenciam-se em relação ao modo como os interagentes (humanos ou não) são afetados pelas trocas realizadas no processo. Assim, quando um indivíduo “interage” com a interface ao clicar em um link que o levará a outro ponto do hipertexto previamente determinado, diz-se que essa foi uma interação reativa, uma vez que nem o usuário nem o sistema sofreram alterações significativas3 ao entrarem em contato. Já se dois ou mais indivíduos, ao interagirem no sistema de comentários de um blog para discutir sobre um determinado tema, acabarão por impactar ou complementar o conteúdo proposto pelo autor do post, bem como nos comentários posteriores. Este último aspecto, que Primo (ibid., p. 114) chama de “historicidade das interações” (ROGERS, 1998), é fundamental para a questão da memória coletiva, pois essa é construída através das relações estabelecidas entre diferentes atores sociais. A memória está também intrinsecamente relacionada à história, e esta aos modos de narrar e registrar os fatos. Nas culturas orais os relatos históricos e o compartilhamento de experiências eram calcados nas interações sociais diretas, nos rituais e celebrações. Com a escrita o registro e a recuperação dos dados em dispositivos e ambientes materiais fazem com que a interação interpessoal não seja mais prioritária, já que o indivíduo passa a poder interagir e ter acesso a informações de cunho memorial de forma mediada (através de livros, museus, arquivos). Na web também há a possibilidade da recuperação dos dados, mas em muitos casos (como o do Twitter) a efemeridade das informações ali registradas faz com que a memória vincule-se ao momento, às interações que se dão naquele ambiente e que ali perduram e circulam por tempo limitado. Nesse contexto, propõe-se uma aproximação entre as memórias derivadas da cultura oral e as praticadas hoje em muitos sites de redes sociais, como o Twitter. Portanto, é necessário valorizar as trocas simbólicas e as construções narrativas derivadas das interações sociais no ambiente de comunicação digital. A aprendizagem é outra questão relevante nesse contexto, considerando-se que os conteúdos compartilhados, aos quais determinados indivíduos têm acesso, acabam por ampliar o conhecimento social a respeito de um determinado fato. Dubberly, Pangaro et al. (2009), ao expor sua categorização sobre os diferentes tipos de interação, trazem a ideia de sistemas dinâmicos de “segunda ordem”, ou “de aprendizagem”, os quais estão abertos a mudanças de contextos e a interferências de outros sistemas. Propõe-se, dessa forma, que o 3 Do ponto de vista cognitivo pode-se dizer que o indivíduo “sofre alterações” em sua base de conhecimentos uma vez que acessa conteúdos que antes não faziam parte de seu repertório. No entanto, considerar-se-á que a interação reativa não exige que o usuário elabore novos sistemas simbólicos para interagir, ainda que tenha que escolher caminhos e opções preestabelecidas na interface, seguindo apenas o que já estava programado. sistema do microblog Twitter seja classificado desta forma, uma vez que sua estrutura comporta a interação com outros sistemas dinâmicos, bem como estáticos. Percebe-se tal aspecto quando a interface se adapta às ações dos interagentes, fazendo um determinado tópico figurar nos Trending Topics; os interagentes se adaptam às determinações do sistema, o qual define, por exemplo, a sintaxe que deve ser utilizada para citações, links, número de caracteres, etc.; ou os interagentes afetam-se mutuamente nas situações de conversação. Tais perspectivas serão problematizadas a seguir, a partir da análise de alguns elementos da interface e sua relação com a memória coletiva, a apropriação, bem como os sentidos derivados da relação entre a materialidade do ambiente e seus interagentes. As evidências levantadas se darão a partir do estudo exploratório feito no período em que os atentados às Torres Gêmeas do World Trade Center completaram 10 anos. 5. Memória coletiva no Twitter: Elementos da interface e produção de sentidos Traçado o percurso teórico, chega o momento de avaliar de que modo os sentidos memoriais efetivamente se apresentam a partir das interações com e através da estrutura da interface do microblog Twitter. Sobre este aspecto, vale ressaltar que uma série de restrições físicas e lógicas, bem como convenções (NORMAN, 1999) de uso são encontradas nesse ambiente, como limitações de caracteres, recursos hipertextuais disponíveis, bem como organização geral das informações. Tais características são inerentes à arquitetura do sistema, que possui uma estrutura pré-definida, ainda que apresente certa flexibilidade e possibilidade de customização4 por parte dos interagentes. A reflexão aqui empreendida concentrará esforços no aspecto da produção de sentidos a partir de alguns dos principais recursos e elementos constituidores do sistema: os Trending Topics, as hashtags, os conteúdos hipermidiáticos e o sistema de busca. De acordo com Dahlgren (1997, p. 261), para explicar a produção de sentidos (políticos e de outros tipos) deve-se levar em conta três fatores: as interações entre os membros do público, as relações entre os meios e o público e os produtos midiáticos em si. Estes elementos serão discutidos na análise que segue, porém não antes da apresentação de algumas ressalvas. 4 É possível, por exemplo, agregar diferentes linguagens e fazer os conteúdos circularem para além dos limites do sistema – através de agregadores de conteúdo e dispositivos móveis –, adaptar o design da página pessoal, bem como organizar os contatos pessoais em listas, etc. Não se pode deixar de mencionar, evidentemente, que as condições de visualização e navegação na forma de uma timeline, bem como a possibilidade de geolocalização dos tweets, trazem temas essenciais para a questão da memória, tais como o tempo e o espaço. No entanto, não será dada uma atenção aprofundada a respeito de tais aspectos, pois isso implicaria em um estudo mais abrangente sobre a interface. Portanto, serão abordadas essencialmente características ligadas à recuperação de informações e ao registro de conteúdos de caráter memorial. Além disso, tais elementos também revelam características do design de apropriação do sistema, bem como sua flexibilidade de adaptação às ações de comunidades de prática. Esse termo vem sendo largamente utilizado na área da administração, que procura compreender o funcionamento de equipes de trabalho. Nesse campo o conceito é definido como “grupos de pessoas informalmente integradas pelo compartilhamento de experiências e paixões” (Wenger e Snyder, 2000). No entanto, acredita-se que tal noção possa ser ampliada para os domínios da manifestação da memória coletiva a partir de ambientes digitais de interação, como o Twitter. Passa-se agora à demonstração e à avaliação de alguns elementos da interface que corroboram com a manifestação de sentidos memoriais. Deve ficar claro que, a partir do horizonte teórico das materialidades da comunicação, serão destacados tanto os efeitos e significações atreladas aos interagentes humanos quanto aos aparatos e o ambiente técnico no qual ocorrem suas interações e expressões. 5.1 Trending Topics: visualização de dados Os Trending Topics (TTs) são uma lista gerada automaticamente pelo sistema do microblog Twitter que reflete os assuntos mais discutidos5 pelos interagentes em suas timelines6. Assim, quanto mais a palavra WTC7, por exemplo, for mencionada nos tweets8, maior a chance de entrar para a lista de TTs do momento (Figura 1). Há ainda a possibilidade de consulta dos assuntos mais mencionados em determinada país, estado ou cidade, gerando TTs específicos desses lugares. Propõe-se que este recurso da interface funciona como uma 5 Que apresentam uma tendência maior de crescimento em um determinado momento. Linha do tempo ou página/perfil do usuário cadastrado, onde aparecem seus últimos tweets publicados em ordem cronológica. 7 Abreviação para World Trade Center, nome dos prédios derrubados nos ataques às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. 8 Cada uma das mensagens, com até 140 caracteres, publicadas na timeline do usuário. Estes tweets são também apresentados nas páginas de outros usuários que “seguem” o perfil, bem como nos resultados de busca do sistema (desde que o perfil esteja configurado como “público”). 6 “visualização dos dados” que circulam no sistema, dando aos interagentes um feedback a respeito dos conteúdos que mobilizam os interagentes. Figura 1 Trending Topics dos Estados Unidos no dia 11/09/2011. Disponível em: http://search.twitter.com. Acesso: 11 de set. de 2011. Pensando nas orientações dadas por Dourish (2003) em relação ao design de apropriação, pode-se dizer que esta é uma forma de tornar visíveis na interface as consequências das ações ao usuário. Além disso, a percepção de que um determinado tópico mencionado pelo usuário passa a figurar nos TTs faz com que este se sinta parte de um determinado grupo, ou até mesmo comunidade de prática. O conceito de comunidade é extremamente pertinente à discussão sobre a memória coletiva, como demonstra Casalegno: É essa forma de exteriorização e de partilha de sensações e de informações em rede que modela a memória coletiva e viva das comunidades a que pertencemos e que nos permite, em última instância, dar sentido à nossa existência: criar associações, formar comunidades e partilhar as emoções em comum. (CASALEGNO, 2006, p. 32) A Figura 1 ilustra a forma de apresentação dos Trending Topics dentro do microblog. As palavras destacadas em vermelho são aquelas identificadas durante o estudo exploratório, anteriormente mencionado, e se referem a expressões memoriais relativas aos 10 anos do dia 11 de setembro de 2001. Ao clicar sobre o link de cada uma delas, uma página com os tweets públicos que contêm a palavra é carregada. Nela é possível identificar sentidos atribuídos ao termo, bem como identificar os atores envolvidos na construção da memória coletivamente. Além disso, diversos tweets contêm elementos hipermidiáticos (imagens, vídeos, links, etc.) que apontam para outros ambientes ou ilustram o conteúdo da mensagem. É válido ressaltar, ainda, que o sistema deve ser autoregulado para que possa oferecer um elemento como esse. Isso porque se faz necessário que haja um reconhecimento das palavras não relevantes (artigos, preposições, etc.), bem como o desenvolvimento de bots que filtrem conteúdos indesejados9. 5.2 Hashtags: categorização de conteúdos e expressão de sentidos coletivos Outro elemento importante do microblog são as hashtags, definidas como “metadados, gerados pelos usuários, que pretendem representar um tópico popular” (GOLOVCHINSKY E EFRON, 2010) entre os usuários do microblog. Este elemento se é constituído pelo sinal “#” associado a uma determinada palavra ou expressão. Na Figura 2 podem-se identificar duas hashtags utilizadas no dia 11 de setembro de 2011: “#11desetembro” e “#AllendeVive”. Essa última, por ter sido amplamente difundida entre os usuários brasileiros, figurou por um determinado tempo nos Trending Topics referentes ao país. Figura 2 Tweet encontrado no dia 11/09/2011 através dos Trending Topics do Brasil. Disponível em: https://twitter.com/#!/search/realtime/%23allendevive. Acesso: 11 de set. de 2011. As hashtags funcionam, portanto, como um hiperlink, já que o sistema compreende que a inclusão do sinal “#” transforma o texto em um link. Este, por sua, quando acionado, leva o usuário a uma página (de resultado de buscas) com tweets que contenham a expressão. Aqui vale salientar as contribuições de Aquino (2008), que procurou refletir sobre o hipertexto como potencializador da memória coletiva. A autora baseia-se largamente no conceito de inteligência coletiva (LÉVY, 2007), e atenta para o fato de que os meios digitais de comunicação, estruturados hipertextualmente, introduzem e potencializam formas de representação e recuperação de informações. Essas noções auxiliam no entendimento de que as hashtags auxiliam na representação e no processo de significação dos conteúdos memoriais, bem como na recuperação de informações que tratam, ainda que diversamente, da mesma temática. 9 O Twitter expõe em sua página institucional o funcionamento de seu mecanismo de busca, bem como os critérios de restrições automáticas de conteúdos compartilhados na rede. Disponível em: https://support.twitter.com/articles/42646-twitter-search-rules-and-restrictions. Acesso em: 22 de fev. de 2012. Primo (2003) problematiza o modo como as interações com o hipertexto afetam a produção de sentidos. Para o autor, o hipertexto pode ser potencial 10, colaborativo ou cooperativo: Enquanto no hipertexto potencial apenas o leitor se modifica, permanecendo o produto digital com suas características originais, no hipertexto cooperativo todos os envolvidos compartilham a invenção do texto comum, à medida que exercem e recebem impacto do grupo, do relacionamento que constroem e do próprio produto criativo em andamento. Já o hipertexto colaborativo constitui uma atividade de escrita coletiva, mas demanda mais um trabalho de administração e reunião das partes criadas em separado do que um processo de debate (nesses casos, inclusive, uma única pessoa pode assumir as decisões do que publicar). (Primo, 2003) Sugere-se, então, que no Twitter haja a possibilidade da construção de um hipertexto cooperativo, na medida em que as marcas dos elementos da interface, bem como as interações e o acesso a informações compartilhados através da timeline, fazem com que novos conteúdos sejam criados. Esse processo é de extrema valia para a memória coletiva, que encontra espaço para ser representada através dos elementos da interface do microblog. O uso das hashtags para ampliar e compartilhar conteúdos de caráter memorial, como no caso analisado, pode ser considerado outro traço do que se chama aqui de “apropriações com sentido memorial”. Este elemento faz com que outra diretriz colocada por Dourish (2003) seja atendida, uma vez que é possível que haja uma interoperação sobre a informação no momento em que diferentes indivíduos podem agregar diferentes conteúdos a uma mesma hashtag, expressando assim a pluralidade de visões que contribuem para a construção de uma memória coletiva. Muitas vezes ocorrem inclusive “campanhas” para que uma determinada hashtag seja destacada nos Trending Topics antes analisados, de modo que a expressão representativa de um determinado grupo ganhe visibilidade no contexto geral do sistema. Estes movimentos podem ser de grande valor para a identificação e potencialização da memória coletiva a partir dos meios digitais de comunicação. c) Conteúdos hipermidiáticos: Produção de sentidos memoriais O sistema de microblog Twitter permite ainda que os usuários agreguem a seus tweets conteúdos como imagens, vídeos e links externos à rede por ele formada. Tal recurso enriquece e atribui sentidos aos conteúdos compartilhados. A Figura 3 ilustra o modo como tais elementos são apresentados quando uma fotografia é incluída no conteúdo do tweet. Durante a realização do estudo exploratório as imagens publicadas em outras plataformas, e 10 Termo que vem das teorias básicas de Deleuze e Levy (apud Primo, 2003, p. 9). agregadas na forma de link no Twitter, eram apenas acessíveis em seu ambiente original. Hoje esta realidade encontra-se diferente, sendo possível visualizar fotos e vídeos diretamente na interface do Twitter. Figura 3 Tweet encontrado na listagem de mensagens relativas aos Trending Topics Estados Unidos no dia 11/09/2001. Disponível em: https://twitter.com/#!/search/realtime/ground%20zero. Acesso: 11 de set. de 2011. No caso apresentado na Figura 3, o indivíduo compartilha uma mensagem e ilustra-a com uma fotografia sua no momento em que fazia a cobertura jornalística do acontecimento dez anos antes. A possibilidade de utilizar tal recurso, e ainda divulga-lo publicamente, agrega valor às memórias coletivas, uma vez que mais pessoas terão contato com o conteúdo e participarão da elaboração de um imaginário coletivo sobre o acontecimento. Estes elementos, novamente, atuam na representação das memórias coletivas a partir da exposição de relatos e narrativas individuais que serão compartilhadas e poderão fazer parte de uma dimensão coletiva. d) Busca e apresentação de conteúdos relacionados: expansão de limites de sentido e relacionamento Destaca-se aqui, novamente, a ferramenta de buscas do microblog. Dessa vez atenta-se para a riqueza do relacionamento entre conteúdos, que traz novas perspectivas a respeito de um mesmo assunto. Assim, na Figura 4 pode-se observar a página de resultados de busca pelo termo “WTC”, que traz tweets com conteúdos relativos às experiências e sentimentos dos usuários em relação aos acontecimentos do dia 11 de setembro de 2001. Na barra direita da interface são apresentados conteúdos complementares e relacionados aos termos buscado ou, neste caso, advindo dos Trending Topics. Ao chegar a tal página, o usuário encontra então referências a outros perfis e conteúdos que versam, ao menos teoricamente (uma vez que essa filtragem é realizada automaticamente pelo sistema) a respeito do tema pesquisado. Assim, os sentidos sobre o acontecimento também vão se ampliando, uma vez que é possível encontrar, como no caso ilustrativo, um perfil dedicado ao acompanhamento da reconstrução das Torres Gêmeas, símbolo do acontecimento ali atualizado pela ação memorial. Figura 4 Print screen da página de resultados de busca para o termo "WTC", encontrado a partir dos Trending Topics dos Estados Unidos no dia 11/09/2011. Disponível em: https://twitter.com/#!/search/realtime/WTC. Acesso: 11 de set. de 2011 6. Considerações Finais Nesse percurso foram avaliadas as relações entre memória coletiva, interfaces digitais e apropriações, visando a demonstração do potencial que os ambientes digitais trazem para a produção de sentidos relativos a um acontecimento importante para a conjuntura política, econômica e social. Foi possível salientar que as interações, tanto entre os indivíduos, quanto com o próprio sistema, auxiliam no processo de representação e de recuperação de informações que adquirem um status memorial. Evidentemente este estudo baseou-se em um recorte temporal e temático, sendo importante ampliar os limites do estudo para que se sejam identificados outros domínios de produção de sentidos a partir das interfaces digitais. Pesquisas como essa podem trazer subsídios para que produtos e serviços que exploram as relações sociais calcadas na construção de memórias coletivas ou recuperação de informações de caráter memorial ampliem e maximizem seu potencial. Ao olhar para as interações e apropriações que ocorrem em seu interior, o próprio microblog Twitter poderia ampliar e enriquecer sua estrutura de modo a suportar mais objetivamente atividades e apropriações mnemônicas como essas. A questão da preservação e da manipulação dos conteúdos que circulam no ambiente certamente surgiria, fazendo com que medidas como a limitação de resultados de busca11 fossem revistas. 11 O sistema permite que sejam recuperados tweets postados apenas nos últimos quatro dias, com o limite de até 1.500 ocorrências. (Migowski e Zago, 2011, p. 12) Além disso, pode-se dizer que tanto os aspectos materiais das interfaces, bem como as apropriações propriamente sociais atribuem sentidos aos conteúdos compartilhados no ambiente interacional. O primeiro aspecto foi mais fortemente abordado nesta comunicação, no entanto trabalhos futuros deverão tratar também dos processos conversacionais e das interações de outras naturezas que aprofundam e expressam os contornos das relações que compõem os aspectos coletivos da memória. Referências Bibliográficas AQUINO, M. C. O hipertexto como potencializador da memória coletiva: um estudo dos links na Web 2.0. 2008. (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação, UFRGS, Porto Alegre. Disponível em: < http://bit.ly/UcRtGW >. Acesso em: 20 de maio de 2012. CASALEGNO, F. Memória cotidiana: comunidade e comunicação na era das redes. Porto Alegre: Editora Sulina, 2006. DAHLGREN, P. El spacio público y los medios. In: VEYRAT-MASSON, I. e DAYAN, D. (Ed.). Espacios publicos en imagenes. Barcelona: Gedisa, 1997. DOURISH, P. The appropriation of Interactive Technologies: some lessons from Placeless Documents. Computer Supported Cooperative Work (CSCW), v. 12, n. 4, 2003. 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