XV Congresso Brasileiro de Sociologia 26-29 de julho, 2011, Curitiba, Paraná Crítica científica e crítica social Sonia K Guimarães UFRGS Paper a ser apresentado no Fórum Rumos da Sociologia no Brasil. Dia 29/07 às 18h30: A produção acadêmica em Sociologia no Brasil 2 Crítica científica e crítica social Sonia K Guimarães “A crença forte prova apenas a sua força, não a verdade daquilo que se crê.” “Convicções são inimigos da verdade mais perigosos que a mentira.” (Nietzsche – Humano, demasiado humano) “…criticism serves as an automatic default position it saves the critic from the trouble of thinking and asking probing questions.” (Furedi, 2006, p.163) Na 1ª metade do século xx, desenvolveu-se um intenso debate sobre a adequação do modelo das CN às CS, sendo a possibilidade de objetividade e o valor da neutralidade na produção do conhecimento um dos temas relevantes em discussão. Para Popper a tarefa da Ciência é a de desfazer mitos e as teorias científicas são sempre conjecturas; por mais corroborada que seja uma teoria, no futuro, poderá ser incapaz de responder adequadamente a novas questões e ser, portanto, necessário substituí-la. Nesta perspectiva, a objetividade da ciência seria uma questão entre cientistas, envolvendo a crítica recíproca. Para Popper, seria fundamental admitir “eu posso estar errado e vós podereis estar certos, e, por um esforço, poderemos aproximar-nos da verdade.” (...) (Popper, 1978, p. 23). O critério relevante sobre a validade de uma teoria – sempre questionável – seria a tentativa de sua falsificação, refutação. A teoria que se protege contra a refutação e que recorre à conversão de qualquer fato em confirmação ou verificação, é uma má teoria. Este é o caso dos astrólogos que argumentam que a sua “ciência” se apoia em 3 grande abundância de observações e verificações; dessa forma, facilmente conseguem encontrar grande quantidade de fatos que confirmam a teoria astrológica. A observação por si só não é prova cabal de uma verdade: se nossa observação conseguiu evidenciar apenas a presença de cisnes brancos, mesmo assim não podemos aceitar como inquestionável a generalização “todos os cisnes são brancos”. Portanto, para chegar-se mais próximo do conhecimento sobre a realidade ou da verdade, é necessário submeter-se à crítica dos pares. Mas, qual é o sentido do termo „crítica‟ no contexto da pesquisa científica? “Crítica” no contexto da Ciência significa o questionamento sobre o grau de validade do conhecimento produzido e proposto como verdadeiro pelo pesquisador. Ou seja, significa avaliar as bases sobre as quais um conhecimento é reivindicado como verdadeiro, ou seja, o grau de consistência e coerência lógicas e de não-contradição dos argumentos apresentados. Na 2ª. metade do século XX, o debate sobre a objetividade – outrora tão importante como se mencionou acima - foi cada vez mais sendo abandonado; em seu lugar cresce a influência da chamada “abordagem crítica”. Entretanto, o sentido do termo “crítica” adquire aqui significado bem diferente do proposto por Popper, por exemplo. A ideia de crítica como teste sobre a validade dos argumentos foi substituída pela ideia de “crítica social”, crítica ao status quo. Esta substituição tem implicações desastrosas para o desenvolvimento das ciências sociais, porque desfaz a distinção entre crítica intelectual e crítica sócio-política, entre crítica metodológica e crítica filosófica. A confusão entre crítica do conhecimento e crítica social evolui para um certo ceticismo quanto à possibilidade de chegar-se à verdade. E neste ponto, a busca do conhecimento é substituído por convicções. A chamada abordagem crítica reivindica independência em relação à “ideologia dominante”, para tanto, privilegia os princípios que se opõem ao status quo. Afirma-se que a 4 pesquisa deve ser engajada, a favor da transformação social. Igualdade e justiça social tornam-se os critérios de verdade. Essa disposição justifica a dispensa da lógica da argumentação e da validação cognitiva. O requisito de objetividade passa a ser identificado com o ataque ao status quo, qualquer que seja as condições de sua argumentação. Resultados “científicos” tornam-se parte da luta política e, nesse sentido, a pesquisa é avaliada e validada a partir de critérios políticos definidos como “a favor” ou em “oposição” ao status quo. Os objetivos da pesquisa tornam-se menos explicar ou compreender como e porque as coisas são da forma como são, e passam a ser o de reforçar argumentos que afirmem a necessidade de cumprir fins de ordem política. Opera aqui o chamado “viés de confirmação”, ou seja, demonstrar através de evidências parciais, a validade de crenças, convicções, expectativas ou teorias preexistentes. Uma das origens dessa concepção encontra-se em Hegel. Para Hegel, as ideias estavam relacionadas ao desenvolvimento espiritual da Humanidade ou de uma sociedade e as ideias mais verdadeiras eram as que apontavam para o ponto de chegada, o ponto de desenvolvimento absoluto, que coincidiria com o fim da História quando seria possível a emergência da verdade absoluta, da Ideia absoluta, quando a verdade seria transparente. A "Verdade Absoluta", diferente da verdade, não se refere a um enunciado em especial, mas ao conjunto de "enunciados que já sabemos ser verdadeiros", sustentando-se, portanto, em princípios metafísicos, pois não se satisfaz com o conhecimento cumulativo dos enunciados verdadeiros, mas os sintetiza numa perspectiva unitária. A "Verdade Absoluta" baseia-se na possibilidade de um conhecimento completo da realidade e seria a "Verdade" que supera todas as outras – consideradas verdades relativas ou incompletas. Sendo a "Verdade Absoluta" universal e expressando o conhecimento completo 5 da realidade, é eterna e imutável. As ideias de progresso e de fim da História resplandecem nesta proposição. A tese de Hegel foi preservada na perspectiva crítica-marxista: o critério de verdade torna-se a adoção do ponto de vista do grupo marginalizado. A pesquisa sociológica teria como objetivo denunciar a natureza injusta e desigual característica das instituições sociais, próprias do capitalismo. A epistemologia marxista, por exemplo, busca a verdade e o conhecimento científico através da perspectiva do proletariado que, no capitalismo, corresponderia à verdade. Da mesma forma, a epistemologia feminista reivindica às mulheres posição privilegiada para a descoberta da verdade. Decorre daí a concepção de que o cientista social deve ser um intelectual engajado ou, politicamente comprometido com a transformação social, ou, como propôs Gramsci, um intelectual orgânico, ligado ao partido. A “perspectiva engajada” é considerada, por seus adeptos, o caminho que levará à verdade, ao contrário dos critérios científicos tradicionais. Para a perspectiva engajada, a pesquisa científica discrimina os marginalizados e favorece os dominantes, enquanto a pesquisa engajada persegue um valor universal, a verdade absoluta, incontestável - a igualdade, a justiça social – que por serem valores tão verdadeiros são tomados como consensuais. Se são consensuais, não há necessidade de discussão e quem contrariá-los, é condenado. Neste silogismo encontra-se um grande equívoco. É muito provável que a grande maioria dos cidadãos de uma sociedade compartilhe sinceramente desse valor, todavia, ainda que admitindo-se essa hipótese, nada garante que a via para atingi-lo alcance o mesmo consenso. 6 Qual o equívoco da perspectiva engajada? 1) As ideias de igualdade e de justiça social são definidas na esfera da política; sendo assim, sua definição obedece a princípios próprios muito distintos dos que são validados pela ciência. Na esfera da política, os valores que definem a prática “adequada” são múltiplos e, frequentemente, devem ser sustentados em oposição aos que se pautam por valores distintos. No contexto das questões políticas ou sociais, não há uma única melhor solução e as concepções podem se transformar em conflitos, disputas e dilemas cujo resultado deve ser buscado através de negociação entre diferentes valores e/ou, como ocorre na maioria das vezes, através do exercício de poder. Na busca do conhecimento, o cientista necessita de autonomia para exercer prioritariamente sua capacidade de reflexão; por isso, não pode subordinar-se a princípios da prática política – em que prevalece o exercício de poder. O engajamento de intelectuais alemães e franceses na defesa do nacionalismo, ao final do século 19 e início do século 20, por exemplo, ilustra o dano causado à Ciência quando valores particularistas estão em jogo. A crítica científica tem por objetivo concentrar-se na validade cognitiva dos argumentos, avaliar a capacidade dos mesmos de resistir à prova dos erros e de confirmar a probabilidade de não estarem incorretos, dadas as evidências disponíveis, no momento. Através dos princípios da lógica, da consistência e da não-contradição é possível alcançar-se o consenso. Bem diferente é o que ocorre com a crítica social visto que, como bem ensinou Weber, o social não é um campo de consensos, mas ao contrário, é um campo de disputas, de lutas entre significados para definir o que é bom e o que não é, o que é belo e o que não é, entre concepções de mundo cujo significado não depende do saber empírico. Cabe aqui citar a afirmação de Weber: “...os ideais mais elevados, que mais intensamente nos comovem, agora 7 e sempre só se efetivam no combate com outros ideais tão sagrados para os outros quanto os nossos são para nós.” (A objetividade do conhecimento na ciência política e na ciência social, p. 21) A perspectiva acima não supõe a exclusão do cientista como ator público envolvido com a crítica social. O que deve ficar claro é que os objetivos e os papéis desempenhados na esfera pública e na esfera da pesquisa, são diferentes e, em cada espaço, há regras e limites que são próprios e que devem ser respeitados. O perigo de ultrapassar um desses limites é, por exemplo, supor que a ciência pode definir o que é ou não desejável, o que deve ou não ser implementado (ex. energia nuclear; código florestal) ou supor que valores e interesses podem ser validados pela ciência. Ao não separar as esferas da ciência e da política, corre-se o risco de que a crítica possa dirigir-se à pessoa do pesquisador – e não a seus argumentos – por ser sua pessoa identificada com interesses políticos. Esse tipo de crítica é extremamente prejudicial ao desenvolvimento de um campo científico, visto que tende a emudecer vozes contrárias e, com isso, congela-se o pensamento. Lembro de um caso em que ao apresentar resultados de sua pesquisa que fugia aos resultados esperados pela audiência, o pesquisador ouviu o seguinte comentário: “Há um traidor entre nós”. Um campo que se pauta por esse tipo de crítica, está morto! Outro tipo de crítica política é realizada por grupos de inspiração anarquista que buscam em seu trabalho intelectual, sobretudo, a desintegração do status quo sob o pressuposto de que será possível construir uma sociedade superior à presente. Esse tipo de perspectiva, estimulada pela ideia anarquista de transgressão, baseia-se na irresponsabilidade política, visto que não se pode supor que a crítica social na pesquisa científica produzirá as consequências esperadas. 8 Há, pois, grande risco em confundir os significados de “conhecimento” e “convicções”, pois naturalmente, temos dificuldades para processar informações que contrariam nossas convicções. Quando a convicção prevalece sobre o conhecer, produz-se pseudociências e o que é pior, teorias da conspiração. A crítica em relação aos resultados de uma pesquisa científica é um meio – não um fim – em que através da ação coletiva busca-se eliminar erros, de alcançar um conhecimento mais próximo do real. A crítica não pode preocupar-se com aparentes implicações políticas ou práticas do conhecimento produzido ou com alegadas orientações políticas do pesquisador na vida pública. A chamada abordagem crítica presente na Sociologia produzida no Brasil bloqueia uma série de temas relevantes (e autores) que traduzem particularidades da realidade atual. Alguns exemplos: Uma série de estudos realizada em vários países constatou mudanças relevantes sobre a realidade do trabalho no mundo atual, não necessariamente negativos, como, a emergência de um segmento da força de trabalho, cuja característica seria a de ser “empreendedora”, ou seja, disposta a enfrentar riscos e a aceitar maior grau de flexibilidade, tanto no emprego quanto na carreira, diferentemente do que ocorria com a força de trabalho do mundo industrial do passado, que buscava a estabilidade. Segundo alguns autores (Neff et al., 2005, p.309) esta é a verdadeira novidade da “nova economia”. Há estudos mostrando a convergência de avaliação tanto pela empresa quanto pelos empregados sobre as vantagens da flexibilidade: o pagamento por projeto, ainda que na categoria de remuneração eventual, é muitas vezes preferido pelos trabalhadores do setor de software. Constatações como esta alertam para a necessidade de cautela quando do exame de situações de trabalho flexível. Estudos sobre “trabalho atípico” tendem a ignorar elementos de 9 ordem cultural e subjetiva, que levariam as pessoas a internalizar fatores como risco e incerteza, integrando-os aos seus projetos. A flexibilidade das estruturas de emprego, seus riscos e incertezas podem ser percebidos como o custo a pagar pelo trabalho criativo e relativamente autônomo, altamente valorizado. Nesse sentido, talvez, esteja se afirmando, uma “nova ética do trabalho” (Neff et al., 2005). Outra fonte de distorção na pesquisa sociológica é definir certos conceitos com base em julgamentos de valor, a partir de um postulado ou axioma – que não requer discussão ou demonstração. Um desses conceitos, na sociologia praticada no Brasil, é o mercado, mercadoria. Como muito bem aborda Ricardo Abramovay em um texto brilhante – Entre Deus e o Diabo, há uma diabolização do mercado, definindo-o como expressão de uma forma social que privilegia o egoísmo privado em detrimento da cooperação humana. Essa concepção simplificadora é desfeita pelo autor ao argumentar como “as relações de mercado supõem a tentativa permanente de buscar o reconhecimento pelo outro e, portanto, envolvem, em algum grau, a reciprocidade nesse reconhecimento”; afirma ainda, opondo-se à tradição crítica que “a cooperação social voluntária e consciente não é o contrário da luta pela realização dos interesses privados.” Citando Amartya Sen lembra que, a restrição aos mercados, esta sim é responsável por garantir privilégios e impedir o exercício da liberdade. São inúmeros os exemplos que demonstram o papel social virtuoso dos mercados; basta lembrar que a ascensão das mulheres jamais seria alcançada não fosse a integração das mesmas ao mercado. Porém, como afirma Abramovay, na tradição marxista o reconhecimento do outro não passará jamais pela via do mercado. A forte influência da tradição marxista na Sociologia produzida no Brasil, deixa sua marca neste aspecto: estudos sociológicos sobre o 10 desenvolvimento dos mercados, como por exemplo, suas formas concretas de cooperação, são praticamente inexistentes. Outro tema maldito é empreendedorismo – uma área de estudo consolidada na ciência econômica, na administração, na história econômica e na psicologia. A Sociologia, particularmente no Brasil, tem-se detido muito pouco sobre o fenômeno, ainda que Max Weber seja uma referencia sobre o tema. Não compreender o aspecto histórico de uma teoria ou de determinados conceitos pode transformá-los em mitos e, portanto, prejudiciais ao avanço do conhecimento. O único e imediato objetivo da pesquisa científica deve ser a produção do conhecimento e a crítica deve preocupar-se em saber se esse objetivo foi alcançado, examinando o caminho percorrido para chegar até ele. Conclusão A sociedade brasileira por suas características próprias de uma sociedade com graves problemas econômico-sociais tem contribuído para levar os intelectuais a produzir análises críticas, o que, se contribuiu para evidenciar as iniquidades de uma sociedade muito desigual, por outro lado, ignorou muitos outros aspectos que distorcem a compreensão desta mesma realidade. Ao afirmar que a pesquisa deve ser engajada, a favor da transformação social, esta perspectiva torna-se irremediavelmente conservadora por incapacidade de perceber novos fenômenos que emergem e adquirem relevância, impondo-se a nós, a despeito das abordagens sociológicas, como só acontecer diante de mudanças sociais significativas. Ou, por rejeitar resultados que por serem mais objetivos contrariam suas convicções. 11 Referências ABRAMOVAY, Ricardo. Entre Deus e o Diabo - mercados e interação humana nas ciências sociais. In: Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, v. 16, nº 2, p. 35-64, 2004. NEFF, G.; WISSINGER, E.; ZUKIN, S. Entrepreneurial labor among cultural producers: „cool‟ jobs in „hot‟ industries. Social Semiotics, v. 15, n. 3, p. 307-34, 2005. POPPER, K. R. Lógica das Ciências Sociais. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Edições Tempo Brasileiro, 1978. SEN, Amartya. Comportamento econômico e sentimentos morais. In: Sobre Ética e Economia. Companhia das Letras, São Paulo, 1999. WEBER, Max. A “Objetividade” do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In: Metodologia das ciências sociais. Parte I. São Paulo: Cortez, 1992, p. 107-154.