Entrevista
Luiz Eduardo - Fiocruz
Sua formação inicial é em saúde publica, formou-se em medicina, depois fez mestrado e
doutorado em saúde pública, mas desde o início, você se envolveu com cooperação
internacional. Como começou essa trajetória profissional?
Eu sou médico, mas ainda durante o curso de medicina comecei a estudar Ciências Sociais – na
época, eu queria fazer Antropologia, mas o curso não existia. Quando estava no meio do curso de
Ciências Sociais, já havia me formado em Medicina. Foi então que vi na faculdade um anúncio de
mestrado em Antropologia cujo pré-requisito era possuir uma graduação. Vim ao Rio de Janeiro
para fazer a prova, possuindo apenas dez dias para apresentar um trabalho incluindo pesquisa de
campo sobre o tema escolhido. Naquela época eu morava em Belo Horizonte. Acabei escolhendo um
tema relacionado a "cura e santos católicos". Foi uma loucura: em dez dias fiz entrevista, trabalho
de campo e análise, sem tempo para uma fazer pesquisa bibliográfica. Acabei não passando na
entrevista, acho que por ser muito ingênuo. Acabei me candidatando a uma vaga para residência em
saúde pública e fiquei no Rio. Durante meu mestrado em Planejamento, foi aberto em minha
universidade um departamento de ciências sociais. Troquei de curso, e conclui minha dissertação
com um trabalho baseado em pesquisas na Maré: “Criança carente repetente não é doente”. Fiz
recentemente meu doutorado em Saúde Pública com foco em saúde global, este sobre política e
saúde me situações pós-conflito baseado em minhas experiências no Timor-Leste.
Você esteve no Timor Leste no ano 2000?
Eu estive em Timor Leste em 2002, no ano da independência. Antes disso, eu havia trabalhado na
África. Quando eu passei no mestrado pra São Paulo foi que eu fui à África pela primeira vez. Foi
muito interessante, eu era o único pediatra.
Era um projeto do PNUD?
Não, era uma cooperação Brasil - Cabo Verde, uma relação bilateral em que o Brasil apoiava o país
com o suprimento de médicos. O Hospital de Brasília era o parceiro envolvido, mas houve um
problema e acabei sendo sondado para a vaga. Eu trabalhava então com a Fiocruz no hospital de
pediatria. O então ministro da saúde de Cabo Verde havia se formado no Brasil, na Bahia, e era
casado com uma brasileira. Ele conhecia bem o funcionamento do nosso sistema, e desejava alguém
com algum conhecimento de saúde pública. Fui a Cabo Verde e fiquei baseado na parte de pediatria
de um hospital. Foi muito bom porque eu não tinha muita experiência de hospital. Além disso, eu
trabalhava como uma equipe de seis ou sete enfermeiras locais, que sabiam trabalhar bem no
contexto em que estávamos. Não havia grandes distinções em relação a mim como médico,
trabalhávamos todos juntos. Os resultados na época foram muito positivos.
Mesmo como médico você está envolvido com cooperação internacional há muitos anos...
Meu curso de medicina tinha internato rural e ficamos seis meses no interior, na Serra dos Pinhais.
Era um currículo novo e considerado inovador. Foi uma ótima experiência, viver sozinho e sem
telefone. Quando vim fazer residência no Rio, trabalhávamos na periferia em Manguinhos. Ao
mesmo tempo comecei a iniciação científica em Acari e Nilópolis. Quando fui à África percebi como
a minha experiência prévia foi importante. Por outro lado, transformou também por completo a
minha percepção sobre a minha experiência anterior no Brasil. No começo dos anos 1990,
trabalhávamos nas favelas por meio das associações de moradores, antes do desenvolvimento
acelerado de ONGs no Brasil. Havia por exemplo um projeto da PUC em Acari que contava com uma
professora do serviço social da Universidade e nós com um ambulatório, constituído de dois
médicos e um enfermeiro. Três outras pessoas foram contratadas pelo projeto e havia outros três
voluntários. Essa era a estrutura da “cooperação” no país. Pouca mudança era observada, e era
muito complicado “fazer o bem” num contexto diferente daquele que você conhece. Quando você é
brasileiro trabalhando no Brasil dificilmente você desperta a sua sensibilidade ao contexto. Quando
você está em outro país, você vê tudo de modo diferente. Foi realmente uma experiência muito rica.
De modo prático, como Cabo Verde mudou seu engajamento no Brasil?
Quando voltei de Cabo Verde, trabalhava no hospital e era chefe do ambulatório. Eu passei a
perceber as relações raciais de modo diferente. Elas passaram a não constranger tanto o m eu modo
de lidar com as pessoas no ambiente de trabalho. Passei a compreender outras coisas também. Os
pacientes tinham muita dificuldade em encontrar as salas certas, e os médicos reclamavam muito
disso. Percebi que o problema era que muitos pacientes não sabiam e ler, e sugeri pintar a porta de
cada tipo de sala com uma cor diferente. Logo depois fui parar na Guiné Bissau, onde fiquei seis
anos. De todo modo, acho que apenas quando fui ao Timor-Leste é que tinha um entendimento
melhor do que era e o que implicava a cooperação entre países. São muitas coisas que motivam uma
cooperação: pode ser um trabalho, uma noiva. O pessoal costuma brincar que a cooperação era
motivada pelos “cinco Ms”: militar, militante, missionário, mercenário e... já não me recordo do
último.
Desde o inicio dos anos 1980, quando você foi trabalhar como médico pediatra em Cabo
Verde até hoje – apesar de sua mentalidade ser então muito diferente – quais você acha que
foram os principais avanços da cooperação brasileira, se é que houve avanços?
Naquela época não tinha ABC (Agência Brasiliera de Cooperação) e não havia discussão sobre a
cooperação brasileira. Hoje há uma sensibilidade desenvolvida em relação à importância disso. Mas
ainda me parece haver pouca preparação. Lembro-me de amigos suecos em meados dos anos 1980
em Cabo Verde, que trabalhavam para uma ONG semelhante a “Save The Children”. Eles então todos
eram selecionados um ano antes da sua missão, período durante o qual faziam um treinamento
cultural, frequentavam festinhas da comunidade respectiva no seu país, e aprendiam a língua. Ao
contrário dos brasileiros, todos eles falavam criolo. Essas coisas nós não temos. Mas hoje na Fiocruz
temos um mestrado em Saúde Global, na área de política internacional, o que já é um grande avanço
para cooperantes na área de saúde.
Esse mestrado é destinado para graduados em medicina ou para qualquer área?
É um mestrado para graduados de qualquer área. Geralmente a pessoa trabalha na área e seleção é
feita com base na experiência profissional. Mas sempre pensei que deveria haver um curso que
tratasse também da parte cultural para além dos conceitos principais da cooperação. O público-alvo
não precisaria ser da área, mas pessoas verdadeiramente interessadas na cooperação. Hoje temos
na Fiocruz dificuldade em assegurar a sustentabilidade de certas ações com algumas profissões.
Temos muita dificuldade de convencer médicos a participarem de projetos de cooperação
internacional por exemplo.
Parece que a China está com o mesmo problema. Já não mais conseguem facilmente
convencer os médicos a fazer cooperação, pois passaram a exigir condições muito melhores
do que a China costuma dar para os seus cooperantes. E parece ser realmente um problema
da corporação, da classe médica.
Nem todos os países são assim. Cuba é diferente, mas também enfrentará dificuldade se abrir muito
mais a economia. Trabalhei com médicos cubanos bem legais na Guiné Bissau.
Download

Entrevista Luiz Eduardo - Fiocruz Sua formação inicial é em saúde