PERFIL
Aos 38 anos, a jogadora
de pólo carioca parece
ter vivido o dobro da sua
idade e recentemente
descobriu a razão de ter
vivido tanto em tão
pouco tempo
Ex-modelo internacional, ex-lutadora de judô
e ex-tetraplégica, ela precisou parar de andar e voltar
ao mundo engatinhando para sentir a vida pulsar
de novo. Mãe de cinco filhos, Kristie morou 20 anos fora
do país e está de volta há três. Hoje, jogadora de pólo,
quer fazer com que sua história movimente vidas paradas
por Carol Sganzerla fotos Calé /Curupira
O FABULOSO DESTINO
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DE KRISTIE HANBURY
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O ano era 1986 e Kristie Karbstein Gerep, 17 anos, estava às
vésperas de embarcar para os Estados Unidos para ingressar na
melhor faculdade de medicina do país. O acaso a impediu de
viajar. Ela conseguiu ir seis meses depois, empurrada.
Literalmente. Estava tetraplégica e a caminho do hospital em
uma cadeira de rodas.
O ano é 2006 e Kristie Hanbury, 38, está às vésperas de concluir um importante projeto: formar o primeiro time de pólo feminino do Brasil. Sim, ela está de pé há 18 anos, dois e meio após
ter perdido os movimentos do pescoço para baixo, num acidente
na garagem de um shopping, no Rio de Janeiro. Saindo apressada de um vernissage, correu para alcançar os amigos que a esperavam do lado de fora do shopping. Estava escuro e Kristie avistou um obstáculo no caminho. Em vez de parar, pulou. No exato
segundo em que saltou, a porta da garagem coincidentemente
soltou e caiu em sua cabeça. A batida foi um pouco acima da
testa. Ela só não caiu no chão porque um príncipe a segurou: um
dos amigos era dom João de Orleans e Bragança. Sentindo a
boca latejar e o pescoço doer, via tudo cinza. “Quer ir para o hospital?”, perguntou outro amigo. “Se eu for para o hospital não vou
mais sair de lá, vamos jantar”, respondeu. “E fui andando.” “Para o
hospital?”, pergunto eu. “Não, para o jantar.”
No restaurante, bateu o desespero. Kristie não controlava seus
braços soltos e não fazia mais idéia de onde ficava sua boca. Sem
respirar, foi para o hospital. Ao chegar, já não movia nada do
pescoço pra baixo. Estava tetraplégica. Diagnóstico: inversão da
curva cervical, quebra da terceira e da quinta vértebra, deslocamento da quarta, compressão da medula e um edema cerebral,
FOTOS ARQUIVO PESSOAL
Em sentido horário: na capa
da revista aos 20 anos; única
foto que guarda do período
em que ficou tetraplégica;
seus cinco filhos, em 1993
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descoberto mais tarde. “Se eu perder a consciência, quero morrer.
Manda desligar as máquinas”, pediu a outro amigo.
caindo pra levantar
Antes de o destino obrigá-la a parar, era uma garota cheia de
atividades, movida pelo ir e vir. Desde os três anos de idade participava de programas na TV Tupi. Com a mudança da emissora do
Rio de Janeiro para São Paulo, morou no colégio interno Santa
Marcelina dos cinco aos 12 anos. Na volta ao Rio viveu com o pai, o
engenheiro mineiro Márcio Gerep, até conseguir comprar seu
apartamento aos 14 anos, fruto dos trabalhos como modelo. Aos 15,
mesma idade em que se formou no ensino médio, casou-se com
um cara com o dobro da sua idade. “Meus pais se separaram quando eu era pequena, fui muito sozinha. Eles não tinham maturidade
nem condições financeiras para ter uma criança, brigavam muito.
Fui do começo ao fim um problema”, desabafa. “Nasci prematura e doente. Tenho uma disfunção sanguínea hereditária que deixa meus ossos frágeis.
Aí apareceu um sujeito que queria ficar comigo.
Achei o máximo.” O casamento durou dois anos. Dele, nasceu
Kim Hanbury, hoje uma modelo de 20 anos.
Recém-separada, Kristie se entregou aos esportes e à carreira
de modelo. Enquanto treinava judô dez horas por dia — o plano era
conseguir uma vaga na Olimpíada de 1988 — era alçada ao topo da
moda pelo fotógrafo americano Bruce Weber, que a descobriu
quando veio fazer um ensaio sobre o Rio. Mas Kristie parou tudo e
foi ao shopping. Ficou seis meses de bruços numa maca giratória
em um hospital da capital carioca até ser transferida para o
Hughston Orthopedic Hospital, em Columbus, na Geórgia, EUA.
Sua filha, Kim, ficou no Brasil sob os cuidados de uma amiga, a
mesma que tomou as rédeas da situação na noite do acidente. A
mãe de Kristie, Yara Karbstein, ex-modelo e atriz paulista, estava
em São Paulo, e seu pai estava morando nos
Estados Unidos. No melhor hospital para atletas,
ela desafiava os especialistas que a pediam para
desistir da idéia de voltar a andar. Kristie estava
raivosa: “Eu sei que posso. E, se não puder, vou
morrer tentando, não tenho mais nada para fazer”.
Ela não obedecia ninguém, não permitia ser
cuidada. Afinal, nunca teve essa troca. “Não
sabia que podia pedir socorro.
Chorar era perda de tempo, o negócio era resolver.” Para baixar a guarda, foi
preciso que um fisioterapeuta, Bill Hutchinson, exparalítico, a jogasse no chão, literalmente. “Ele
havia me pedido que mostrasse como conseguia
me arrastar até o banheiro, sozinha, usando
metade de um braço. Não quis. Sem eu ver, ele me tacou da
cadeira e me deixou afogada nas minhas lágrimas e no meu nariz
escorrendo. É a maior humilhação que alguém pode passar. Ser
incapaz de tirar o rosto da própria sujeira. Quando voltou, disse:
‘Está pronta para trabalhar?’. Meu orgulho morreu ali, aprendi a
aceitar ajuda.” Foi o ponto de partida para uma grande amizade
e para sua recuperação, batalhada com 16 horas diárias de tratamento, pago com o dinheiro ganho na TV e com a carreira de
modelo. Sua família estava distante e teve pouca participação no
processo, com exceção do namorado Duda, que já estava nos
Estados Unidos quando foi transferida. Na época do acidente,
inclusive, esperava por ela.
Kristie é a única pessoa registrada no mundo que teve recu-
Com o husky
siberiano Lobo,
na casa onde moram
o ex-marido e seus
quatro filhos menores,
no Rio de Janeiro.
Ela se divide entre
seu apartamento
e seu quarto próprio
na “casa-sede”
da família
da maca à sela
culdade em fazer isso. Fui mãe nova, a minha vida sempre foi para
alguém”, diz a carioca, que enfrentou um nascimento prematuro,
uma doença genética, uma tetraplegia e um tumor.
A que ela credita os infortúnios? Carma, destino, injustiça?
“Acho que é a lei da compensação. Você não pode ter tudo. Nasci
com muita sorte, nunca tive dificuldade intelectual e a minha
aparência sempre foi benéfica. Os acidentes acontecem porque
você precisa deles, merece o que for que seja”, reflete. “Por
que quebrei o pescoço? Talvez precisasse de um
freio, tinha vivido 40 anos em 18. Já tinha casado, separado, tido filho, trabalhado, ganhado
muito dinheiro, me formado. Precisei parar de
andar, literalmente, e voltar para o mundo
engatinhando.”
Recentemente, Kristie descobriu o valor de sua história e
percebeu que podia salvar vidas. Soube que uma ex-paciente
de leucemia, depois de conhecer sua batalha, se curou. A partir
daí, se viu obrigada a divulgar sua vitória, coisa que não gostava
de fazer. E muitas ainda estão por vir. O The Amazons Polo
Team, o primeiro time feminino de pólo do Brasil, está prestes a
dar as primeiras galopadas. Mais do que promover o esporte,
quer beneficiar crianças paralíticas e mulheres carentes vítimas
de câncer de mama. Tudo isso em cima de um cavalo. Se ela tem
medo de se machucar novamente? “Só tenho medo de três
coisas. De barata, de gente e de mim mesma.”
Caminhando com as próprias pernas, Kristie saiu do hospital e
ficou seis meses em Nova York finalizando a reabilitação. Dois anos
e meio depois do acidente, retomou os trabalhos e não demorou
a integrar o hall das 20 modelos mais bem pagas do mundo.
“Cheguei a receber 300 mil dólares por 2h30min de trabalho.”
Deixou NY com destino a Tóquio convidada a integrar o casting da
mesma agência de Cindy Crawford, Linda Evangelista e Elle
Macpherson — com quem até dividiu apartamento.
Foi lá que conheceu o inglês Tobias Hanbury, pai
de Shanna, 15 anos, Nina, 14, Konan, 13, e Maya, 10.
Parou de modelar e abriu uma pequena empresa de
importação de polpa de fruta. Moraram sete anos no
Kristie só tem olhos para
Japão, três em Hong Kong, até se fixarem em
o futuro e prefere não
Cingapura, onde somaram mais sete.
relembrar o passado,
Lá se interessou pelo pólo. “Quem já esteve
que muitas vezes lhe
falta à memória. Hoje
em uma cadeira de rodas sabe a falta
só pensa em engrenar
que faz a velocidade quando se perde
o time feminino de pólo
a mobilidade. Ter as pernas do cavalo
e seus projetos sociais
como suas é uma sensação maravilhosa.” Antes de começar a competir no país, foi
até a Irlanda e a Argentina aprender a montar. Nos
anos seguintes, competiu na Austrália, em Portugal,
na Malásia, na França, no Paquistão, entre outros
países. Sua vida se dividia entre o pólo e os filhos,
que carregou com ela na maioria das viagens. Kim, a
mais velha, só não ia quando suas férias não coincidiam com a dos irmãos, na época em que estudou
em um colégio interno na Inglaterra. Eles adoravam.
Afinal, os campos de pólo se situavam em clubes, e
costumavam ficar soltos enquanto a mãe competia.
Tudo corria bem até aparecer um caroço no
seio. Ela não disse nada à família. “A palavra câncer
faz imediatamente as pessoas pensarem em morte.”
Nos momentos de adversidade, a escorpiana prefere vestir a luva de boxe a chorar. Odeia drama.
“Viro bicho, não me permito dor”, admite.
Kristie voltou sozinha ao Brasil para se tratar, há
três anos. A família veio depois. O incômodo mesmo
foi o pós-operatório. Ela, que sempre cuidou de todo
mundo, se viu precisando de cuidados. “Essa visão
de quase morrer coloca sua cabeça em outro lugar,
porque você tem de dar valor à sua vida. Tenho difi42
MAQUIAGEM ADRIANA DE BOSSENS
peração total dos movimentos, ao lado de duas reabilitadas parcialmente. Uma delas é a esquiadora americana Jill Kinmont, que
inspirou o filme Uma Janela para o Céu (do diretor americano
Larry Peerce). Por que acha que conseguiu? “Além de ser
atleta, jovem e de ter dinheiro, a minha infância
difícil gerou no meu peito frustração e raiva.
Essa raiva criou obstinação. Foi uma cura dupla
porque ela foi embora. De repente, é por isso
que tive de viver essas coisas, para eu ter essa
raiva num momento de que precisasse.”
Hoje, Kristie ainda não sente muito bem a perna esquerda e
a sola dos pés. Para não tropeçar em possíveis obstáculos, usa
salto plataforma. Quando o tempo esfria, seu corpo fica mais
sensível. Mas as limitações não a impedem de nada: dirige com a
perna direita o carro automático, tem aulas de surf e skate e mantém há 18 anos o ritual diário do alongamento.
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