O ENSINO MÉDIO POLITÉCNICO GAÚCHO: VOZES DISSONANTES SOBRE A AVALIAÇÃO CONCEITUAL E OS ÍNDICES DE APROVAÇÃO/REPROVAÇÃO. Éder da Silva Silveira1- UNISC Marcos Vilella Pereira2 - PUCRS Grupo de Trabalho: Políticas Públicas, Avaliação e Gestão da Educação Básica Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O texto confronta proposições sobre os índices de aprovação e reprovação no Ensino Médio Politécnico, implantado na rede estadual do Rio Grande do Sul, em 2012. Utiliza-se como fontes a publicação “O Ensino Médio e os desafios da experiência”, organizada pelo então secretário da Educação do Estado do Rio Grande do Sul, juntamente com Jonas Tarcísio Reis (2014), bem como relatos de professores de Ensino Médio que participaram do curso “Trabalho e Educação: tópicos especiais sobre o Ensino Médio Politécnico no RS”, oferecido pela EaD Unisc. Naquele momento, para a SEDUC-RS, o Ensino Médio Politécnico, já no primeiro ano de implementação, conseguiu diminuir consideravelmente os índices de reprovação em virtude das mudanças ocorridas no currículo. A modalidade politécnica teria provocado uma diminuição dos gastos públicos por aluno, somando reprovados e evadidos no Ensino Médio. Nesse ensaio questionamos como os professores de Ensino Médio estadual assimilaram a proposta curricular, e como vivenciaram as concepções e princípios da avaliação conceitual no primeiro ano de sua implementação. A questão norteadora centrou-se no conteúdo das narrativas de professores a respeito da avaliação que, a partir da reforma curricular que implantou o Politécnico, passou a ser expressada por conceitos. Confronta-se o discurso do governo com a experiência de professores que vivenciaram a implementação do Ensino Médio Politécnico em suas escolas, trazendo ao debate elementos que possam servir de mote para a problematização e a reflexão dos dados estatísticos apresentados pela SEDUC-RS sobre os índices de reprovação/aprovação. Palavras-chave: Ensino Médio Politécnico. Reforma Curricular. Avaliação. 1 Doutor em História; Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de História e Geografia da UNISC; [email protected]. 2 Doutor em Educação, Pesquisador CNPq, Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS; [email protected]. ISSN 2176-1396 23427 Introdução No Rio Grande do Sul, em 2012, o governo iniciou uma reestruturação curricular no Ensino Médio, com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio3. A partir de então, há três modalidades de cursos: Ensino Médio Politécnico, Ensino Médio Curso Normal e Educação Profissional Integrada ao Ensino Médio. Em toda a rede estadual de ensino, o Ensino Médio que não fosse curso “Normal” ou “Educação Profissional” passou a ser oferecido sob a modalidade “Politécnica”. Historicamente, o Ensino Médio no Brasil foi marcado por um “reformismo inconsequente” (PILETTI, 2002, p.21). Só no regime republicano, mais de 11 reformas sinalizaram movimentos contraditórios e desafiadores. Entre políticas de Estado e políticas de governo, as mudanças curriculares no Ensino Médio não foram capazes de abrandar ou solucionar o problema da identidade desta etapa final da educação básica, caracterizada por ambíguos movimentos pendulares entre uma formação propedêutica, mais geral, e uma formação profissional, mais técnica. Além disso, desafios relativos à universalização com acesso, igualdade e qualidade social, bem como os referentes à formação de professores e à diminuição da precarização do trabalho docente, fazem do Ensino Médio uma pauta constantemente atualizada no campo do debate educacional brasileiro. O estudo de Acácia Kuenzer (2010) trouxe vários dados que contribuem para essa reflexão sobre o Ensino Médio no Brasil. Ao pesquisar diferentes documentos produzidos pelo MEC, pelo CNE e pela sociedade civil, principalmente o Plano Nacional de Educação 2001/2010, a pesquisadora salienta que o quadro do Ensino Médio no Brasil é “preocupante”, pois, na medida em que os problemas continuaram os mesmos nos últimos dez anos, a “última década foi perdida para o Ensino Médio”. Segundo ela, houve retração da evolução das matrículas entre 1991 e 2001; - em 2007 mais de 41% das matrículas foram feitas no turno da noite (alunos que trabalham ou procuram trabalho); - a taxa de repetência de 18, 65% em 2000, aumentou para 22,6% em 2005, e de evasão, de 8% para 10%; - os dados do ENEM 2009 mostram que os mil piores resultados foram obtidos por escolas públicas, sendo 97,8% estaduais; - o custo do aluno do Ensino Médio por aluno é um dos mais baixos comparados a outros países pela OCDE (KUENZER, 2010, p.851-873). 3 PARECER CNE/CEB Nº 5/2011, Aprovado em 4/5/2011. Despacho do Ministro, publicado no D.O.U. de 24/1/2012, Seção 1, Pág.10. 23428 Os dados, mesmo “descontínuos”, como salienta Kuenzer, permitiram à autora inferir que o Plano Nacional de Educação 2001/2010 não conseguiu diminuir os problemas relativos à permanência e sucesso dos alunos no Ensino Médio com qualidade social. Sendo assim, foi também na “necessidade de reverter esse histórico quadro de desrespeito [...]” (KUENZER, 2010, p.859), conforme salientou, que a nova proposta de reestruturação do Ensino Médio gaúcho encontrou guarida. Nora Krawczyk (2011, p.755-756), na mesma direção, sublinha que o processo de expansão do Ensino Médio ocorrido na década de 1990, não pode ser caracterizado ainda como “um processo de universalização nem de democratização”. Para ela, “a tendência ao declínio do número de matrículas desde 2004 e a persistência de altos índices de evasão e reprovação” fomentam o descompasso e desenham um quadro preocupante. Nesse contexto, o Estado Brasileiro, através do Ministério da Educação, instituiu, com a Portaria 971 de 9 de outubro de 2009, o Programa Ensino Médio Inovador, visando “apoiar e fortalecer o desenvolvimento de propostas curriculares inovadoras nas escolas do ensino médio não profissional”. Desenvolver e reestruturar o Ensino Médio não profissionalizante, expandindo e melhorando sua qualidade de ensino através do apoio às Secretarias Estaduais de Educação, figuravam como as principais metas do Programa, que incentivava projetos pedagógicos que promovessem “a educação científica e humanística, a valorização da leitura, da cultura, o aprimoramento da relação teoria e prática, da utilização de novas tecnologias e o desenvolvimento de metodologias criativas e emancipadoras” (BRASIL, 2009, p.52). Em janeiro de 2012, o país define Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, em consonância com o Programa Ensino Médio Inovador. As diretrizes, também alinhadas com princípios, fundamentos e procedimentos para a Educação Básica definidos pelo Conselho Nacional de Educação, tinham como um de seus objetivos “orientar as políticas públicas educacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na elaboração, planejamento, implementação e avaliação das propostas curriculares das unidades escolares públicas e particulares que oferecem o Ensino Médio” (BRASIL, 2012). No mesmo caminho, uma nova ação foi implementada a partir de 2014, com o Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, instituído pela portaria 1.140 de 22 de novembro de 2013. Com um programa de formação voltado para docentes do Ensino Médio, o Pacto prevê o aprofundamento e materialização dos seguintes pressupostos: “trabalho, 23429 ciência, tecnologia e cultura como dimensões da formação humana; trabalho como princípio educativo; pesquisa como princípio pedagógico, direitos humanos como princípio norteador e sustentabilidade socioambiental como meta universal” (BRASIL, 2013). Sabemos que a reforma que implantou a modalidade Politécnica no Rio Grande do Sul insere-se em diferentes contextos. No entanto, é nesse mosaico de movimentos aparentemente consonantes e convergentes4, sobretudo a partir de 2009 com o Programa Ensino Médio Inovador, que a reestruturação do Ensino Médio gaúcho se inseriu e encontrou guarida. Observamos que as principais mudanças da reforma que implantou o EMP no RS concentram-se nos eixos da pesquisa, da avaliação, do planejamento e da significação interdisciplinar dos conteúdos, destacando-se a criação de um novo componente curricular, chamado de “Seminário Integrado”. O Seminário Integrado tem um papel fundamental na estrutura do novo currículo, particularmente no que tange à produção e execução de projetos de pesquisa (ou projetos de “vivenciais”, como também são chamados) e às possibilidades de integração de áreas e saberes na escola. O discurso do governo do Estado do RS dizia que a “formação politécnica é de caráter científico-tecnológico e sócio-histórico, pois parte do contexto social e cultural dos alunos, na integração de todos os conteúdos”, destacando-se o “diálogo entre campos de saber aparentemente não aproximáveis [...]” (AZEVEDO e REIS, 2014, p.35). Silveira e Pereira (2014) apresentam e refletem sobre alguns aspectos relativos à dinâmica de trabalho defendida para o Seminário Integrado e a ideia de interdisciplinaridade expressa nos documentos da reestruturação do Ensino Médio. Segundo os autores, uma das necessidades ou desafios da formação de professores está em repensar a questão da interdisciplinaridade, a partir de uma revisão reflexiva das formas como ela tem sido concebida e tratada no discurso e na prática docente. Pensamos que é preciso superar a ideia contida nas orientações da Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul de que “o pressuposto básico da interdisciplinaridade se origina no diálogo das disciplinas, no qual a comunicação é instrumento de interação com o objetivo de desvelar a realidade” (PROPOSTA..., 2011, p.19). Consideramos a necessidade de pensar que a construção interdisciplinar do conhecimento só ocorre quando o aluno consegue, através de meios, 4 Vale destacar que nesse mosaico de movimentos também se inserem os que (re)tomaram e ampliaram a discussão sobre politecnia, Ensino Médio Integrado e trabalho como princípio educativo. Ver, por exemplo: Kuenzer (1989), Saviani (1989, 2007), Ramos (s.d.), Nosella (2015). 23430 atividades e estímulos, executar e/ou produzir associações entre diferentes áreas e saberes. Para nós, “na interdisciplinaridade as disciplinas não perdem seu caráter disciplinar, uma vez que permanecem sendo universos de referência limitados por uma zona de imobilidade. É o sujeito quem realiza o trabalho interdisciplinar. Não há uma condição, um estado interdisciplinar em si entre as disciplinas.” (PEREIRA, 2014, p.122) O diálogo entre as disciplinas não garante, por si só, a construção ou significação interdisciplinar do conhecimento. A interdisciplinaridade “é um processo mais complexo que deriva de outros tipos de interação, especialmente os que a neurociência nos indica em relação ao cérebro humano e a aprendizagem” (SILVEIRA e PEREIRA, 2014). Interessa-nos, agora, ensaiar proposições que possam servir de mote para a reflexão sobre a percepção da Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul (SEDUC-RS) sobre os índices de aprovação e reprovação, a partir das mudanças que se apresentaram, desde 2012, nas práticas da avaliação escolar no EMP. A Avaliação no Ensino Médio Politécnico entre a percepção do Estado e a realidade narrada pelos professores Relembremos aqui algumas mudanças da reestruturação no campo da avaliação, de forma que possamos analisar a percepção do Estado e de professores a respeito dos índices de aprovação/reprovação, após transcorridos os três anos de Ensino Médio Politécnico. Primeiramente, as escolas ficam proibidas, a partir de 2012, de expressarem o resultado da construção da aprendizagem dos alunos através de notas. O regimento do EMP defende uma “avaliação emancipatória”, na qual a expressão dos resultados se dá através de três conceitos: CSA – Construção Satisfatória da Aprendizagem; CPA – Construção Parcial da Aprendizagem; CRA – Construção Restrita da Aprendizagem. A avaliação, no Regimento do Ensino Médio Politécnico, tem funções “diagnóstica, formativa, contínua e cumulativa”. Desde 2012, durante o período letivo, ocorrem dois tipos de avaliação da aprendizagem no Ensino Médio: por área do conhecimento e por componente curricular. Conforme o Regimento (2012, p.19-21): Como síntese desta construção, o coletivo dos Professores das Áreas de Conhecimento, em interface com a auto avaliação do aluno, após o planejamento, a execução e a avaliação do desempenho do aluno no seu processo de construção do conhecimento, estabelece, por consenso, como expressão do Resultado Parcial (trimestre) e Final, para Ensino Médio Politécnico, a seguinte formulação: 23431 Construção Satisfatória da Aprendizagem (CSA) – expressa a construção de conceitos necessários para o desenvolvimento dos processos da aprendizagem, embasados na apropriação dos princípios básicos, desenvolvidos na formação geral das áreas do conhecimento e na parte diversificada, relacionados no Plano de Trabalho do Professor. É atribuída a cada trimestre e ao final do período letivo. Este conceito ao final do período letivo resulta na APROVAÇÃO DO ALUNO. Construção Parcial da Aprendizagem (CPA) – expressa construção parcial de conceitos sobre o desenvolvimento dos processos da aprendizagem, embasados na apropriação dos princípios básicos, desenvolvidos na formação geral - nas áreas do conhecimento e na parte diversificada, relacionados no Plano de Trabalho do Professor. É atribuída a cada trimestre e ao final do período letivo. Durante o período letivo este conceito encaminha o aluno às atividades de Plano Pedagógico Didático de Apoio. Ao final do período letivo o aluno que recebe como resultado final o conceito CPA em uma área de conhecimento está aprovado, devendo realizar o PPDA; o aluno que receber CPA ou CRA em apenas uma área de conhecimento, mas com características de dificuldades mais complexas, é considerado CPA, e está aprovado com PROGRESSÃO PARCIAL, devendo realizar o PPDA, construído a partir do parecer descritivo elaborado no Conselho de Classe. O aluno promovido com Progressão Parcial no final do 1º e do 2º ano será submetido ao Plano Pedagógico Didático de Apoio. Ao final do 3º ano, o aluno será encaminhado ao PPDA na alternativa de Estudos Prolongados. Ao final do ano letivo o aluno que receber CPA, em mais de uma área de conhecimento é considerado com CRA e está reprovado. Construção Restrita da Aprendizagem (CRA) – expressa a restrição, circunstancial, na construção de conceitos para o desenvolvimento dos processos da aprendizagem, embasados na apropriação dos princípios básicos desenvolvidos na formação geraláreas de conhecimento e na parte diversificada, relacionados no Plano de Trabalho do Professor. É atribuída a cada trimestre e ao do final do período letivo. No decorrer do ano letivo o aluno deve ser submetido a atividades constantes no Plano Pedagógico Didático de Apoio. No final do ano, se este conceito for atribuído ao aluno em apenas uma área do conhecimento, transforma-se em CPA e o aluno é APROVADO com Progressão Parcial. No final do ano, se este conceito for atribuído ao aluno em mais de uma área de conhecimento, determina retenção, e o aluno está REPROVADO. A avaliação por área do conhecimento impõe às escolas e aos responsáveis pela formação de professores uma série de questões. Para melhor compreensão, imaginemos que um aluno é avaliado individualmente no trimestre por cada um dos componentes curriculares e seus respectivos professores. Ao final do trimestre, no Conselho de Classe, os professores, por área do conhecimento e por consenso, atribuirão um único conceito da área por aluno. E é esse conceito da área que aparece no boletim. Ou seja, a avaliação da área se sobrepõe à avaliação individual por componentes. Isto quer dizer que um aluno que, por exemplo, receber o conceito CPA (Construção Parcial da Aprendizagem) na área de Ciências Humanas não quer dizer que tenha sido CPA em todos os componentes da área (História, Geografia, Filosofia, Sociologia). Os componentes curriculares organizam-se por área, a avaliação final trimestral e anual dos alunos também é por área. Entretanto, quase não existe planejamento por área. 23432 Consideramos que é preciso investir em estratégias de formação continuada para que haja compreensão, por parte dos docentes, dos motivos pelos quais os componentes curriculares do Ensino Médio organizam-se por áreas do conhecimento. É preciso que os professores se perguntem o que caracteriza sua área do conhecimento, as especificidades da área, etc. É necessário questionar quais são os objetivos e competências comuns aos componentes curriculares de uma mesma área. Caso contrário, como conseguirão realizar uma prática pedagógica e um processo avaliativo coerente com a ideia de partilha? Quais critérios estarão guiando esses professores nos “consensos” dos Conselhos de Classe? O planejamento por área torna-se, então, fundamental para qualificar o trabalho pedagógico na escola, especialmente nos momentos de avaliação, Conselhos de Classe e elaboração dos Planos Pedagógicos Didáticos de Apoio. Do mesmo modo, talvez seja necessário que a Universidade promova, nos currículos das licenciaturas, momentos de reflexão, compreensão e formação sobre o trabalho pedagógico, a partir de um currículo que se organiza por áreas do conhecimento. Tabela 1 - Síntese da avaliação – Ensino Médio Politécnico SÍNTESE DA AVALIAÇÃO – ENSINO MÉDIO POLITÉCNICO PERÍODO S s 1º e 2º ANOS S 3º ANOS REGISTRO CSA = Aprovado CPA * = Aprovado com PPDA (com “recuperação”) CONCEITOS DURANTE O ANO LETIVO (TRISMESTRAL) CRA= Reprovado no trimestre (com PPDA) s s Idem aos 1º e 2º anos. (a partir de 2014) * Pode ocorrer em mais de um componente curricular e em mais de uma área. CONCEITO NO FINAL DO ANO LETIVO Por componente curricular (professor/diário de classe) CSA = Aprovado CSA = Aprovado CPA * = Aprovado com PPDA/PP (com Plano Pedagógico de Apoio para Progressão Parcial no ano seguinte). CPA * = Aprovado com PPDA/EP (com Plano Pedagógico de Apoio para Estudos Prolongados no ano seguinte). * Admite-se este conceito no final do ano em apenas uma área do conhecimento. * Admite-se este conceito no final do ano em apenas uma área do conhecimento. CRA = Reprovado (a partir de duas áreas do conhecimento) CRA = Reprovado (a partir de duas áreas do conhecimento) E Por área de conhecimento (Conselho de Classe / Diário de Classe / PPDA) 23433 Fonte: tabela demonstrativa realizada pelos autores Em 2014, o então secretário da Educação do Estado do Rio Grande do Sul, juntamente com Jonas Tarcísio Reis, organizam e publicam a obra “O Ensino Médio e os desafios da experiência”, através da Fundação Santillana e Editora Moderna. Este livro, tomado como um documento, permite aferir o discurso e a avaliação que o governo realizou sobre a reestruturação curricular iniciada em 2012. Considerando os limites e recortes desse artigo, elegemos, para nossa análise, a percepção do Estado e de professores a respeito dos resultados da reestruturação curricular, com destaque aos índices de aprovação e reprovação no Ensino Médio Politécnico. Serão tomados, como fontes para identificar o discurso do governo gaúcho na gestão do professor José Clóvis de Azevedo, o referido livro e texto(s) assinados por ele. Para identificar a percepção e a fala de professores que vivenciaram a implementação do EMP no RS, utilizaremos as manifestações textuais dos professores de Ensino Médio que participaram do curso “Trabalho e Educação: tópicos especiais sobre o Ensino Médio Politécnico no RS”. Trata-se de um curso de extensão ministrado por um dos autores, através da EaD Unisc. As doze sessões desse curso contribuíram para uma prática dialógica com colegas professores de Ensino Médio de diferentes cidades do Estado, que estavam vivenciando a reestruturação curricular. Nos fóruns de discussão das salas virtuais, os professores participantes relataram exemplos de diferentes leituras, práticas e necessidades que enfrentavam em suas escolas em relação à implementação do Novo Currículo. Os relatos dos professores, registrados nos diferentes Fóruns desse curso, foram utilizados como fontes e alguns serão utilizados aqui como indicadores da percepção docente sobre o mesmo processo. Na visão da SEDUC-RS, gestão 2011-2014, o Ensino Médio “tradicional” demonstrou historicamente sua inadequação concretizada em “resultados negativos”. Para ela, o EMP trouxe bons resultados já no primeiro ano de implementação, em 2012: O EMP mostrou bons resultados no seu primeiro ano de implementação, 2012. A reprovação diminuiu de 22,3% para 17,9%. Como consequência direta dessa nova forma de organização curricular, a aprovação passou de 66,3% para 70,4%. Em 2013, quando a reforma atingiu os segundos anos, a aprovação do primeiro ano do Ensino Médio passou para 63,7% e no segundo ano foi de 74,1% a 76,9%, e de reprovação 16,4%. São dados sem precedentes na história da educação gaúcha. A garantia da aprendizagem começa a ser aprofundada (AZEVEDO e REIS, 2014, p.41). 23434 Para a SEDUC-RS, o EMP, já no primeiro ano de implementação, conseguiu diminuir consideravelmente os índices de reprovação em virtude das mudanças ocorridas no currículo que instituiu o Politécnico. Essas mudanças teriam provocado uma diminuição dos gastos públicos por aluno, somando reprovados e evadidos no Ensino Médio. Teriam os professores de Ensino Médio assimilado a proposta curricular e conseguido materializar concepções e princípios da “avaliação conceitual e emancipatória”, já no primeiro ano de implementação? O que dizem as narrativas dos professores a respeito da avaliação no primeiro ano de implementação? Em que medida é possível confrontar a narrativa dos professores com a da SEDUC a esse respeito? Ocorrido no formato EaD entre 2012 e 2013, o curso de extensão “Trabalho e Educação: tópicos especiais sobre o Ensino Médio Politécnico” aglutinou em suas doze edições professores de diferentes cidades e escolas da rede pública estadual do RS. O curso ocorria em três semanas e nele destacavam-se dois Fóruns de Discussão entre os participantes. Enquanto um dos fóruns abordava questões de ordem mais conceitual, o outro provocava um intercâmbio de experiências. O Fórum conceitual exigia a participação dos professores em um debate que partia da seguinte sentença “Assumir o trabalho como princípio educativo é ir além da defesa de uma simples contextualização dos conteúdos em sala de aula”. O Fórum de experiências era dedicado ao registro das impressões dos professores quanto ao que fora abordado no 3º caderno de estudos do curso (Dinâmica de trabalho do Seminário Integrado e avaliação), solicitando a realização de um intercâmbio de experiências através da questão: “como vocês e seus alunos estão vivenciando esta nova disciplina na escola? Como vocês analisam suas experiências após os estudos realizados em nosso curso?”. Selecionamos entre os dois Fóruns algumas postagens que representam as angústias vivenciadas por diferentes professores sobre a mudança curricular, particularmente sobre a avaliação. A situação aqui não está diferente da de vocês, colegas. Concordo com vocês: muita mudança, pouca orientação. As mudanças vão ocorrendo durante o ano letivo. Notas, conceitos, regimento, seminários, projeto vivencial... mas a prática continua a mesma. Professora 2, 2012/2. Olá, colegas! Manifesto minha indignação sobre o que aconteceu em minha escola. No último Conselho de Classe fomos orientados pela direção a transformar as notas nos conceitos através de uma grade de equivalência apresentada aos professores. Fizemos a avaliação por notas e, no final, tivemos de alterar no caderno de chamada para conceitos. Quando vimos, tivemos uma número excessivo de alunos com CPA, o que aumentaria muito o número de reprovações. Tivemos que passar muitos alunos para o conceito CSA para não nos incomodar ou correr o risco de voltar para a escola em Janeiro, tamanha a confusão que nos encontramos. Ou seja: todo um 23435 trabalho de avaliação durante o ano que não valeu para nada, pois o que parece é que o que vale é aumentar o número de aprovados mesmo. Professor 3, 2012/2. Na escola de uma colega não foi diferente, professor. Agora no final do ano fomos orientados a deixar os alunos com CSA, pois a diretora disse que quem ficasse em mais de uma área com CPA teria de vir em janeiro fazer a tal de PPDA que ninguém sabe explicar o que é e como se faz. Professor 4, 2013/1. As falas dos professores exemplificam e provocam questionamentos sobre a percepção oficial do sucesso da reestruturação curricular nos índices de reprovação/aprovação no primeiro ano do Ensino Médio Politécnico. Elas denunciam que a diminuição dos índices de reprovação também estão relacionados aos diferentes problemas enfrentados pelos docentes no campo da prática. Temos escutado colegas que estão na rede atuando no Ensino Médio e percebemos que o ato de avaliar é carregado de dificuldades, vícios e práticas ritualizadas que se distanciam do trabalho que os professores realizam com seus alunos. Na prática escolar, a lógica da nota e do quantitativo ainda permanece5. E não se trata apenas de resistência. Tratase, principalmente, de um não saber fazer diferente, de não conseguir criar estratégias e instrumentos que traduzam a orientação teórica e metodológica da avaliação no Ensino Médio em práticas satisfatórias. A discussão e apropriação de conceitos, métodos e funções da avaliação no espaço escolar estiveram ausentes ou foram trabalhados superficialmente nas escolas. Da mesma forma, o discurso do governo a respeito dos índices de aprovação e reprovação no EMP oculta as dificuldades e os impactos no campo da prática escolar. Os dados apresentados pelo governo não contextualizaram com o que estava ocorrendo na realidade escolar. [...] As notas que até então eram utilizadas deverão ser substituídas, este ano (para amanhã), obrigatoriamente por conceitos CRA, CSA, CPA. Isso implica numa série de mudanças que exigiram um tempo de assimilação e discussão que não foi disponibilizado. Essa orientação seria para o próximo ano, porque exige a reorganização das disciplinas que serão elencadas em "grandes áreas de conhecimento": humanas, ciências da natureza, linguagens, matemática, ... Não preciso te dizer o resultado: caso algum aluno reprovasse somente na disciplina "x" teríamos que montar um planejamento e enviar para CRE explicitando todas as atividades previstas para auxiliar o aluno a construir aprendizagens não construídas este ano, ou seja, o aluno avançaria e faria uma "espécie de dependência " ano que vem... Estou em alas com meus cadernos de chamada! Fui orientada a adulterar 5 A constatação está baseada em outra etapa da pesquisa que foge do escopo desse ensaio. Nela, um de nós visitou 15 escolas para realizar formação continuada e coleta de dados sobre a maneira como ocorriam e se articulavam Avaliação Conceitual e Planejamento. As escolas visitadas estão localizadas em 10 diferentes cidades: Porto Alegre, Arroio dos Ratos, São Jerônimo, Charqueadas, Caxias do Sul, Santa Cruz do Sul, Dois Lajeados, Garibaldi, Carlos Barbosa e Antônio Prado. A pesquisa está vinculada a um plano de estágio de pósdoutoramento em Educação no PPGEdu da PUC-RS. 23436 dados para que todos alunos aprovem, caso contrário eu e minha "equipe/área" teríamos que passar o natal montando planos. Nesse sentido, tive que priorizar escolhas...Minha obrigação é entregar até amanhã as notas das demais turmas e pareceres do ensino Politécnico para a secretaria, impreterivelmente. Passei o meu dia envolvida nisso. As arbitrariedades do sistema e a falta de noção das CREs continuam burlando a educação. Mesmo tentando agir corretamente, questionando, chorando e argumentando, vejo que minhas concepções e ideologias estão sendo "engolidas" pelo maldito sistema. Professora 5, 2013/1 Relatos como o da professora acima denunciam importantes contradições e antagonismos entre a fala do governo e a fala dos professores, quanto aos índices de aprovação/reprovação no primeiro ano da reforma curricular do Ensino Médio gaúcho. Os índices de aprovação e reprovação do Ensino Médio da rede estadual de ensino no Rio Grande do Sul ocultaram a experiência de professores que, como no exemplo acima, durante o ano de 2012, trabalharam a avaliação na lógica da nota e, ao final do mesmo ano, foram surpreendidos pela obrigação de apresentar conceitos e pareceres. No campo da avaliação, se houve rupturas, também percebe-se permanências em relação às práticas docentes no Ensino Médio Politécnico. O regimento defende uma “avaliação emancipatória”, na qual a expressão dos resultados se dá através de conceitos. A finalidade da Avaliação Emancipatória é diagnosticar avanços e entraves, para intervir, agir, problematizar e redefinir rumos a serem percorridos. Propicia a mudança e a transformação e, dessa forma, não se reduz a mera atribuição de notas, conceitos ou pareceres que sinalizam aprovação ou reprovação, já que o processo educacional não pode ser tratado nem reduzido a esses aspectos. A investigação contínua sobre os processos de construção da aprendizagem demanda rigor metodológico, que se traduz por registros significativos, sinalizando as possibilidades de intervenção necessárias ao avanço e à construção do conhecimento. (REGIMENTO..., 2012, p.16-17.) Considerações Finais Não pretendemos, ao final desta reflexão, apresentar conclusões definitivas. Ao contrário: nossa intenção resume-se à constatação (quase óbvia) de que perduram contradições severas entre o discurso oficial e as práticas implementadas. A Rede Estadual de Ensino no RS, assim como outros espaços institucionalizados da Educação Básica, carrega marcas profundas de uma cultura de avaliação quantitativa e expressa por notas. Ela caracterizou-se mais como fim e não como um meio ou processo. Uma das dificuldades 23437 enfrentadas pelos professores tem sido migrar de uma avaliação quantitativa, expressada por notas ou conceitos, para uma qualitativa, baseada em pareceres e ponderações. Confrontar o discurso do governo com a experiência de professores que vivenciaram a implementação do Ensino Médio Politécnico em suas escolas, permite preencher o hiato produzido pela distância e pela contradição entre teoria e prática, na trajetória da Reforma Curricular do Ensino Médio no estado. Eventualmente, podemos afirmar que esse dilema não tem solução, uma vez que nem é plausível alcançar-se um consenso pleno ou uma unanimidade, nem que se chegue a um ponto de convergência sem diferenças. Entendemos que o caráter democrático está no percurso, no processo propriamente dito, e não em algum estado das coisas a que se acede com o passar do tempo. De qualquer forma, embora o EMP, através do Seminário Integrado, possa contribuir para inaugurar uma experiência curricular que estimule novas e profícuas dinâmicas em relação à pesquisa e à interdisciplinaridade, parece que muito há ainda o que se fazer, especialmente a partir da escuta dos docentes sobre os “desafios da experiência” do Politécnico no RS. Experiência denota um caminho formativo pautado no permanente deslocamento dos sujeitos nele envolvidos, ou seja, aqueles que partilham uma experiência, ao vivê-la, deixam de ser o que vinham sendo, em favor de algo que ainda não eram (PEREIRA, 2013). Assim, o caminho é sempre incompleto. Especialmente no campo do planejamento e da avaliação, as diferentes vivências da reestruturação curricular do Ensino Médio gaúcho apontam para a necessidade de analisar qualitativamente os dados estatísticos apresentados pela SEDUC-RS sobre os índices de reprovação/aprovação. REFERÊNCIAS AZEVEDO, José Clóvis de; REIS, Jonas Tarcísio. Democratização do Ensino Médio: a reestruturação curricular no RS. In: ______. O Ensino Médio e os desafios das experiência. Movimentos da prática. São Paulo: Fundação Santillana, Editora Moderna, 2014. BRASIL.MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. RESOLUÇÃO CNE/CEB Nº 2, DE 30 DE JANEIRO DE 2012. Brasília, MEC, Resoluções do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, 2012. BRASIL.MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Portaria. 1.140 de 22 de novembro de 2013. Brasília: MEC/DCNEM, 2013. BRASIL.MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Portaria. 970 de 9 de outubro de 2009. Diário Oficial da União nº 195 de 13 de outubro de 2009. Brasília: MEC/DCNEM, 2009. 23438 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Educação. Proposta Pedagógica para o Ensino Médio Politécnico e Educação Profissional Integrada ao Ensino Médio - 2011-2014. POA: SEDUCRS, Nov/out de 2011. Disponível em: http://www.educacao.rs.gov.br/pse/html/ens_medio.jsp?ACAO=acao1. Acesso em 06 jun. 2012. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. 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