Aristóteles: Estado e participação política Área: Demais áreas das CSA - Ciência Política José Otacilio da Silva Universidade Estadual do Oeste do Paraná -UNIOESTE Rua Manuel Ribas, 3537 – Cascavel-PR [email protected] Resumo: O artigo tem propósito de analisar como Aristóteles concebe a origem do Estado e como ele fundamenta o poder político e a participação dos cidadãos nos processos de tomadas de decisões nas instituições políticas, ou seja, nas instâncias legislativa, executiva e judiciária. Nas análises pôde-se observar que, ao partir do pressuposto de que tudo o que ocorre no mundo tem uma finalidade, Aristóteles chegou à conclusão de que o Estado e, com ele, o poder político, foi criado pelos homens com a finalidade de promover a felicidade do cidadão e, assim, de todos os membros da coletividade. No entendimento de Aristóteles, uma vez que a finalidade do Estado é a promoção da felicidade, o mais adequado seria que apenas os homens livres, habilitados por natureza para o desempenho das funções políticas, devessem participar das decisões políticas. Mais do que isto, o estudo permitiu observar que embora Aristóteles tivesse a preocupação em empreender um estudo objetivo dos fenômenos políticos, ele não deixou de emitir seu juízo de valor acerca da melhor forma de governo. A seu ver, o governo misto - aristocracia e democracia - seria a melhor forma de governo, pois permitiria que apenas os virtuosos ou ricos ocupassem os cargos públicos e que os demais homens livres tivessem apenas o direito de eleger os magistrados. E com esse entendimento que Aristóteles considerou que Sólon e outros legisladores, corretamente, concederam ao povo o direito de eleger os magistrados, não só por considerar esse direito um mecanismo adequado para evitar as hostilidades dos homens livres contra o governo dos virtuosos, mas também por considerar que, embora individualmente não tivessem condições para ocupar os altos cargos, coletivamente teriam o necessário entendimento para escolher os notáveis ou homens de posse que deveriam ocupar os cargos públicos. Palavras-chave: Aristóteles, Estado, participação política Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 Aristóteles: Estado e participação política O objetivo do presente artigo é analisar a obra de Aristóteles com intuito de averiguar como ele trata da questão do Estado e da participação política. Especificamente, trata-se de investigar como Aristóteles concebe a origem do Estado e como ele fundamenta o poder político e a participação dos cidadãos nos processos de tomadas de decisões políticas. Conforme Saldanha (198, p. 48), por Estado deve-se entender “coletividade humana, ou sociedade, vivendo organizadamente sobre um território próprio e sob um governo soberano”. Trata-se de uma concepção de Estado que pressupõe uma estrutura governamental ou política que, embora varie ao longo do tempo e do espaço, tem como característica básica o poder político, ou seja, o uso da força física como instrumento imprescindível para a obtenção da obediência civil. Por participação política deve-se entender não a participação dos indivíduos nas relações sociais que estabelecem entre si na vida social cotidiana, mas, tão-somente a participação nas instituições políticas, isto é, no poder legislativo, no poder executivo e ou no poder judiciário. Aristóteles, sua obra e seu método. Aristóteles nasceu em 384 a.C. em Estagira, cidade distante de Atenas e localizada em território da Macedônia, na costa setentrional do Mar Egeu. Estagira era considerada uma cidade grega porque foi fundada pelos gregos e porque seus habitantes falavam a língua grega. Aristóteles possuía um filho chamado Nicômaco com sua segunda esposa, ou, como sugerem alguns de seus biógrafos, com sua concubina, Herpilis. Seu pai era médico e possuía laços de amizade com Amintas II, rei da Macedônia (Laertios, 1988, p. 129). É possível que a atividade profissional do pai de Aristóteles, a medicina, bem como a amizade de sua família com as autoridades políticas da época tenham influenciado o interesse do filósofo pelas ciências naturais e, depois, pela aplicação de aspectos dos métodos das ciências naturais nos estudos sociais e políticos. Como diz Morrall (1985, p. 35-36), “Aristóteles cresceu sobre a influência da medicina que seu pai praticava” e, daí, a sua “ênfase na investigação empírica e no respeito à prova das particularidades concretas”. Daí, também, sua preocupação em estudar as diversas constituições existentes em sua época e em levar em conta os fatores geográficos, climáticos, topográficos que poderiam influenciar a organização de uma polis ideal, ou seja, a melhor forma de governo. Mais do que isto, o interesse de Aristóteles pelos estudos políticos, provavelmente, sofreu forte influência da amizade de sua família com as autoridades políticas da época: em virtude dessa amizade o jovem Aristóteles pode, por exemplo, viver na corte macedônica com a incumbência de dar aulas a Alexandre, filho de Felipe, neto de Amintas. Aristóteles foi para Atenas no ano 367 a. C., com dezoito anos de idade, para ingressar na academia criada por Platão (428-348 a.C.). Na academia, Aristóteles permaneceu por vinte anos – ou seja, de 367 até 347 a.C., ano da morte de Platão – primeiro na condição de aluno e, depois, como colaborador nas atividades acadêmicas. (Morrall, 1985, p. 36). Com a morte de Platão, Aristóteles deixou Atenas e foi para a cidade de Assos ao encontro Hérmias, seu Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 colega de academia. Segundo Pesanha (1978, p. VIII), Aristóteles permaneceu em Assos até o ano 346 a.C., quando então foi chamado por Felipe, rei da Macedônia, para a importante missão de educar seu filho, Alexandre. Will Durant (2000, p. 69-72), afirma que, talvez num gesto de reconhecimento do trabalho realizado pelo mestre, Alexandre chegou a dizer que “Aristóteles lhe ensinara a arte de viver”. Em 338 a. C., os macedônicos derrotaram os gregos na batalha de Queronésia e, assim, chegou ao fim a autonomia que as cidades-estados até então desfrutavam. Em 336 a. C., Felipe foi assassinado e Alexandre subiu ao trono iniciando a construção do Grande Império Macedônico. Com a emancipação de seu aluno, Aristóteles deixou a Corte de Pela e retornou a Atenas. Ali, em 335 a. C., Aristóteles abriu sua própria academia, o Liceu. Diferentemente da academia fundada por Platão, o Liceu tinha certas características particulares: enquanto a academia de Platão estava voltada para os estudos matemáticos, o Liceu de Aristóteles se voltava para os estudos das ciências naturais, em particular, para a biologia. Esses estudos iriam exercer grandes influências na física e na metafísica de Aristóteles, bem como em seus estudos políticos. Depois de treze anos na direção do Liceu, Aristóteles novamente teve que abandonar suas atividades em Atenas. Com a morte de Alexandre em 323 a. C. e com a exacerbação do sentimento antimacedônico entre os atenienses, Aristóteles, simpático às causas macedônicas, foi perseguido e acusado de impiedoso pelo partido nacional ateniense dirigido por Demóstenes. Mais do que isto, os atenienses não perdoaram Aristóteles por ter composto um hino em louvor a Hérmias que fora executado pelos persas: segundo Cressson (1981, p. 12) na cultura grega, somente os deuses poderiam receber tal honra. Diante dessas acusações, Aristóteles resolveu não esperar um julgamento que certamente o condenaria e preferiu deixar Atenas. Como diz Cury (1985, p. 6), alegando o intuito de evitar que os atenienses pecassem duas vezes contra a filosofia – a primeira seria o processo de acusação se Sócrates que culminou com a sua morte – Aristóteles deixou o Liceu sob o comando de Teófrastos e refugiou-se para a cidade de Cálcis, na ilha de Eubéia. Ali, Aristóteles morreu um ano depois, em 322 a. C., com 63 anos de idade. Aristóteles deixou uma filha, Pítias, e um filho, Nicômaco, a quem dedicou uma de suas principais obras políticas: a Ética a Nicômaco. A obra de Aristóteles se destaca pela variedade de temas por ele abordados e, também, por suas inovações metodológicas. Ou seja, ao longo de sua vida, Aristóteles não se ocupou apenas com estudos filosóficos e políticos. As circunstâncias de sua vida e sua curiosidade o levaram a se ocupar, em um primeiro momento, com estudos sobre os fenômenos físicos e biológicos e sobre as próprias abordagens teórico-metodológicas utilizadas pelos diversos estudiosos e por ele próprio. Will Durant avalia que uma grande virtude de Aristóteles foi ter retomado os estudos pré-socráticos – estudos dos fenômenos a partir de fatos objetivos, materiais, e não a partir de mitos ou do sobrenatural – e ter combinado esta maneira de ver o universo físico com as maneiras de ver o universo moral. Nas palavras de Durant (2000, p. 80-82), ”uma das maiores glórias de Aristóteles foi ter sido suficientemente liberal e corajoso para compreender e combinar essas duas linhas do pensamento grego: a física e a moral”. Por meio da combinação de estudos físicos e morais, Aristóteles encontrou um caminho próprio para a realização de seus estudos políticos. Com os ensinamentos da biologia e da física – observar a ocorrência dos fenômenos particulares para que então se pudessem estabelecer as generalizações – Aristóteles, de certa maneira, evitou adotar o sobrenatural como explicação da ocorrência dos fenômenos como o fazia seus antecessores, entre eles Platão. Ao invés disso, para compreender os fenômenos políticos e sociais, Aristóteles preferiu partir do Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 princípio de que a causa dos acontecimentos políticos – por exemplo, do nascimento e evolução das constituições políticas ou dos Estados – se encontram na própria natureza das coisas. Foi essa compreensão que levou Aristóteles a analisar 158 constituições de sua época com o intuito de classificá-las e de averiguar qual é a melhor forma de constituição política, ou seja, de organização de uma sociedade. É neste sentido que, segundo Cresson (1981, p. 44) Condorcet (1743-1794), procurou enaltecer o espírito observador de Aristóteles e que Auguste Comte (1798-1857) não se esqueceu de considerá-lo precursor do espírito positivo e da sociologia. O método utilizado por Aristóteles em seus estudos sobre a vida social é uma decorrência de sua crítica ao pensamento de Platão, em especial, à idéia de “Idéia em si”. Em suas explicações acerca dos fenômenos que ocorrem no universo, Platão pressupunha a existência de dois mundos: o mundo sensível e o mundo inteligível. O mundo sensível seria o mundo das realidades terrenas, imperfeitas, mutáveis. O mundo inteligível seria o mundo das realidades perfeitas, das Idéias em si, das verdades eternas, imutáveis. No entendimento de Platão, o conhecimento que temos acerca dos fenômenos que ocorrem no mundo sensível seria um conhecimento tosco, distorcido, das coisas verdadeiras que existem no mundo inteligível. O conhecimento verdadeiro existente no mundo inteligível não seria acessível ao homem comum, pois suas paixões e sua indisciplina intelectual não o permitiriam ascender ao mundo das verdades eternas, das Idéias em si, dos conceitos imutáveis. Somente o filósofo, por ser disciplinado e portador do método dialético, conseguiria contemplar os seres em sua verdade eterna, imutável, universal. Como diz Pesanha (1978, p. XV), Platão ensinava, na academia e em seus diálogos, que a compreensão dos fenômenos que ocorrem no mundo físico depende de uma hipótese: a existência de um plano superior da realidade, atingida apenas pelo intelecto e constituído de formas e idéias; arquétipos eternos dos quais a realidade concreta seria a cópia imperfeita e perecível. Por meio da dialética, ou seja, de sucessivas oposições e superposições de teses, seria possível ascender do mundo físico – apreendido pelos sentidos e objeto apenas de opiniões múltiplas e mutáveis – à contemplação dos modelos ideais – objetos da verdadeira ciência. No entendimento de Aristóteles, a dialética platônica não é um instrumento seguro para se chegar ao conhecimento verdadeiro dos fenômenos que ocorrem no universo, pois, ao invés de lidar com as próprias coisas, lida com as idéias que se tem sobre essas coisas. Radicalmente contra essa maneira platônica de pensar, Aristóteles considera que não é verdade que exista a Idéia em si, a coisa em si, como pressupunha Platão; não é verdade que os objetos particulares que existem na realidade objetiva, sejam imitações, cópias imperfeitas de modelos ideais. Não se pode provar, por exemplo, que há um carvalho em si na origem dos carvalhos particulares que existem nas florestas. Não há como provar, ainda exemplificando, a existência de idéias anteriores aos objetos que inspiram o trabalhador a dar forma a um produto (Cresson, 1981, p. 19-20). Para Aristóteles, a dialética platônica seria, quando muito, uma forma de exercitar o espírito que visa atingir o conhecimento, mas nunca um instrumento que permitisse chegar à certeza acerca das coisas que ocorrem no universo. É com o intuito de superar os inconvenientes da dialética platônica que Aristóteles desenvolveu novos instrumentos e mecanismos capazes de conduzir o pensamento rumo à descoberta da verdade: a lógica formal; a indução e o estabelecimento de relações causais. A lógica formal criada por Aristóteles é um conjunto de normas de pensamento que, ao contrário da dialética platônica, permitiria a demonstração correta das proposições Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 enunciadas pela consciência cognoscente. Como diz Pesanha (1978, p. XVI), a lógica formal é parte da lógica que “prescreve regras de raciocínio, independentes do conteúdo dos pensamentos que esses raciocínios conjugam”. Na lógica formal, uma proposição só deve ser considerada verdadeira, se ela estiver coerentemente articulada com as premissas anteriores. Por exemplo, a afirmação “Sócrates é mortal” é verdadeira se se considera, antes, que todos os homens são mortais e que Sócrates é homem. Essas premissas – os homens são mortais; Sócrates é homem – não deixam outra opção de conclusão. Baseando-se nessas premissas, a firmação de que Sócrates é mortal, seria a única afirmação coerentemente possível, a única afirmação verdadeira. Entretanto, pode ocorrer que uma afirmação não seja verdadeira, mesmo baseando-se em premissas anteriores. Por exemplo, a afirmação de que “Sócrates é imortal” seria verdadeira se se baseasse nas premissas anteriores “os homens são imortais” e “Sócrates é homem”, logo, Sócrates seria imortal. Considerando-se as regras do pensamento estabelecidas pela lógica formal, a afirmação “Sócrates é imortal” seria verdadeira, mas, considerando a realidade dos fatos, esta afirmação estaria longe de expressar a verdade. Assim, o silogismo, entendido Aristóteles (2004a, p. 80) como “um razoamento em que, dadas certas premissas, se extrai uma conclusão conseqüente e necessária”, só poderia ser considerado correto se se baseasse em premissas corretas; em verdades que antecedessem o conhecimento produzido pela lógica, ou seja, pelo conhecimento científico. A indução, no entendimento de Aristóteles, seria o mecanismo do pensamento capaz de levar aos axiomas, isto é, aos princípios ou definições universais, verdadeiras, que se fazem necessárias para o estabelecimento de conclusões também verdadeiras. Por meio da indução – e não por meio da dialética, entendida como superposição de teses, antíteses e sínteses, como pensava Platão – chegar-se-ia aos princípios e definições universais gerais sem desconsiderar a realidade dos fatos. Para Aristóteles – assim como para Platão – as definições das coisas devem indicar o essencial e não o acidental nos seres. Se é verdade que os seres podem ser descritos em conformidade com suas características particulares, individuais, as suas definições devem expressar o que neles há de geral, de universal. Assim, por exemplo, a racionalidade do ser humano seria uma característica geral, universal, essencial do homem, para que se pudesse definir, com correção, o que é o homem. Ao contrário, a cor da pele, a estatura, etc., do homem, seriam características individuais importantes para a descrição de um determinado ser humano, mas, enquanto características particulares seriam sem relevância para a definição do ser humano. Enfim, o método indutivo permite a construção das definições dos seres destacando as características gerais, universais da espécie em questão. Com a indução, os conceitos universais deveriam não só expressar as regras do pensamento correto – como quer a dialética platônica ou a lógica aristotélica – mas também representar a realidade dos processos que ocorrem no universo ou dos seres que o habitam. Ao propor a indução como método de se chegar aos universais, Aristóteles estava rejeitando a idéia de Platão, segundo a qual, os universais seriam modelos incorpóreos e eternos e os particulares seriam cópias imperfeitas destes modelos. Para Aristóteles, os modelos incorpóreos imaginados por Platão, ou seja, as Idéias em si, eternas, imutáveis, verdadeiras, não possuem relação com a realidade. A seu ver, as definições essenciais devem ser estabelecidas pela ciência a partir do conhecimento empírico para atingir o universal que é seu objeto. Ou seja, somente a partir de dados sensíveis que se manifestam nos particulares, a consciência poderia chegar às definições, aos conceitos universais, enfim, à verdade. Como Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 diz Ross (1969, p. 17), para Aristóteles “toda substância no universo é individual; o universal é sempre algo que – embora perfeitamente real e objetivo – não tem existência separada”. Enquanto Platão tem os universais, as idéias em si, como realidades, Aristóteles os têm como algo que existe apenas no espírito humano sob a forma de conceito, como uma criação subjetiva fundamentada na estrutura dos objetos. Na elaboração dos conceitos, é a metafísica – estudo do ser enquanto ser – que teria a incumbência de revelar a estrutura dos objetos para que o pensamento pudesse construir os conceitos. Pesanha (1978, p. XIX-XX), diria que “a metafísica seria então, a garantia de que os conceitos não são meras convenções do espírito humano e de que a lógica – o instrumento que permite a utilização científica desses conceitos – estaria fundamentada na realidade, sobre a qual ela poderia legitimamente operar”. Aristóteles não se preocupou apenas em criar um mecanismo capaz de tornar os conceitos mais realistas. Mais do que isto, Aristóteles estava interessado, também, em explicar as causas da ocorrência dos fenômenos. Em sua obra Metafísica, Aristóteles (1979c, Metafísica, p. 24-25) reconhece que muitos de seus antecessores já haviam ensaiado uma tentativa de explicar a ocorrência dos fenômenos pressupondo a existência de relações causais entre eles. No entanto, para Aristóteles, seus precursores não aprofundaram a discussão. Anaxágoras (500-428 a.C.) e Empédocles (483-430 a.C.), por exemplo, “apenas entreviram a causa material” e, Platão, ainda exemplificando, se deu conta apenas da causa material e da causa formal da existência das coisas. Aristóteles reconhece que, no mundo objetivo, as coisas agem e interagem umas sobre as outras numa relação de causalidade, mas, a seu ver, além da causa material e formal, o conjunto das causas geradoras dos fenômenos é constituído de outras espécies de causas. Considerando “causa” como tudo o que “contribui para a existência do ser”, Aristóteles (1979c, p. 16) avalia que há pelo menos quatro espécies de causas geradoras dos seres: a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final. A causa material é a própria matéria que constitui um ser ou que há de constituí-lo. Neste entendimento, a matéria seria o ser em potência, a condição necessária para que um ser seja o que é ou então seja outra coisa. Como avalia Cresson (1981, p. 23), a matéria é o ser em potência: assim como, “o espermatozóide é o homem em potência”, o bronze é a estátua e a semente é a árvore em potência. A causa formal é a causa da forma que a matéria assume em um dado momento ou que há de assumir em outro; é a causa que fornece as características da matéria ou do ser. A mesa, o martelo, a casa, por exemplo, possuem suas formas específicas, suas características próprias. Para Platão, as características desses objetos seriam representações distorcidas das Idéias em si, dos seus respectivos modelos perfeitos que existem no mundo inteligível. Para Aristóteles, ao contrário, as características dos objetos se encontram apenas nos objetos em suas manifestações objetivas. Entretanto, entre as características que constituem a forma de um ser, há aquelas que se manifestam apenas nesse ser particular e há aquelas que se manifestam em um conjunto de seres que, assim, constituem uma espécie. A causa eficiente seria o conjunto de ações que produzem certos efeitos ou certas transformações na matéria, ou seja, na forma de um ser. Por exemplo, fundir o minério de ferro para dar forma ao martelo, preparar a madeira para da dar forma ao cabo desse martelo, etc., são ações que constituem as causas eficientes da existência do martelo. Sem essas ações, o martelo não existiria, apesar da sua existência em potencial no minério, na madeira, etc., e apesar do artesão ter concebido a sua forma. Outro exemplo: a relação sexual entre um homem e uma mulher é a causa eficiente da existência da criança – criança que existia apenas em potencial no espermatozóide e no Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 óvulo, porém sem a sua forma ou características atuais. A causa final, como sugere Pesanha (1978, p. XXI), é a causa que “rege o movimento do universo”; é o objetivo, a meta, a finalidade de cada coisa ou de cada ação. A causa final ou a finalidade do tijolo é construir casas; da criança e transformar-se em adulto; da faca, é cortar; do cortar é fragmentar a matéria. Quer dizer, no entendimento de Aristóteles, cada ser existente no universo ou cada ação dos seres tem uma causa final, ou seja, uma finalidade ou uma função a cumprir. Na teoria da causalidade elaborada por Aristóteles é fácil notar sua concepção do movimento ou da transformação dos seres que constituem o universo e do próprio universo. A transformação de um ser ocorre com a atualização – provocada por outro ser – de suas potencialidades. O mármore se transforma em estátua, ou seja, transforma-se para a forma de estátua, porque tem sua potencialidade de ser estátua atualizada pelas ações do escultor e porque tem a finalidade de eternizar um indivíduo, ou uma espécie, representando-o. A vaca, sobre a ação dos homens, se transforma em carne porque teria a finalidade, a função de alimentar os homens. Quer dizer, como entende Pesanha (1978, p. XXI), na concepção de Aristóteles é sempre a causa final que rege os movimentos do universo: “um ser atualiza suas potencialidades devido à ação de outro ser que, possuindo-as em ato, funciona como motor daquela transformação”. Em outras palavras, para Aristóteles, os fenômenos que ocorrem no universo – e o próprio universo – são regidos por finalidades. Os movimentos em que os seres atualizam suas potencialidades são interdependentes e hierarquizados de tal modo que os seres mais atualizados são os motores que movimentam os menos atualizados. Nessa hierarquia, Deus seria o primeiro “motor imóvel”, isto é, um ato puro que impulsiona tudo. A idéia de motor imóvel concebida por Aristóteles, ao que parece, é uma decorrência de sua necessidade de explicar a origem do movimento das coisas. Como sugere Will Durant, no pensamento aristotélico, “a divina providência coincide inteiramente com a ação das causas naturais”. Embora a matéria – enquanto potencialidades de futuras formas – seja eterna, o seu movimento não o é. Neste caso, se não cabe explicar a origem da matéria – uma vez que ela é eterna – cabe explicar a origem de seu movimento, a transformação de suas formas e finalidades. Assim, para evitar o regresso ao infinito, ao movimento que gerou outro movimento, Aristóteles pressupôs a existência de um motor imóvel, isto é, de um agente ou de um “ser incorpóreo, indivisível, sem espaço, assexuado, sem paixão, sem alteração, perfeito e eterno”. Um Deus que não criou o mundo, mas que criou o movimento: um movimento que não é uma força mecânica, mas um motivo total de todas as ações no mundo. Neste sentido, Deus movimentaria o mundo tal como um objeto adorado movimenta o seu adorador. Enfim, o primeiro motor, Deus, seria a causa final da natureza, o impulso e o propósito das coisas, a forma do mundo, o princípio da vida neste mundo: como sugere Durant (2000, p. 87-88), mais que uma pessoa, ele é uma força magnética. Deus seria um rei que reina, mas não governa; só contempla as ações e reações que ocorrem entre os seres tendo em vista uma finalidade. A idéia de que as coisas se movem tendo em vista o alcance de alguma finalidade e de que esta finalidade, bem como as demais causas das coisas, podem ser encontradas na própria natureza dos acontecimentos e não no místico ou no sobrenatural, constitui o principio básico que norteia as análises de Aristóteles sobre os acontecimentos políticos. Como diz o próprio Aristóteles no final de sua Ética a Nicômaco (1979, p. 234-35), com o intuito de “distinguir qual é a melhor constituição”, necessário se faz passar em revista o que foi exposto pelos seus antecessores e depois, com base na natureza das cosias, no caso, “com base nas constituições Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 existentes”, examinar que espécies de influências “preservam ou destroem os Estados” e que outras espécies de coisas têm efeitos sobre os tipos particulares de constituições e a que causas se deve o fato de ser umas bem e outras mal aplicadas. Em outras palavras, é por meio do método indutivo, do silogismo e de sua teoria das quatro causas que Aristóteles irá realizar seus estudos políticos e, assim, revelar seu entendimento acerca da origem e fundamentos do Estado ou do poder político e, também, seu entendimento sobre a participação dos cidadãos nas decisões políticas. Fundamentos do poder político A concepção de Aristóteles acerca da origem e dos fundamentos do poder político está estreitamente relacionada com seus princípios teórico-metodológicos. Como vimos acima, no entendimento de Aristóteles, tudo que ocorre no universo ocorre em virtude de quatro causas básicas: a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final. O Estado ou associação política e, com ele, a justiça e o poder político, surgiu naturalmente, pois existia a matéria necessária para sua existência, ou seja, homens vivendo juntos em um território; existiam formas possíveis de organização social ou de governo; existia desejo natural dos homens em viver em sociedade e uma finalidade para a existência social, ou seja, a busca da auto-suficiência, da felicidade ou do bem-comum Com base nestes princípios, Aristóteles tratou da questão acerca da natureza e importância do poder político tanto em sua Ética a Nicômaco como também em sua Política. Ao averiguar, nessas obras, qual é a melhor constituição, ou seja, qual é a forma de governo capaz de propiciar uma vida mais “feliz” para os cidadãos e quais são as virtudes necessárias para que os governantes e governados pudessem construir e participar dessa felicidade, Aristóteles procurou mostrar, também, o que é o poder político, qual é sua origem e como se classificam as diversas constituições ou formas de governo. Deve-se notar que, ao realizar estes estudos, Aristóteles parte do pressuposto de que a explicação dos fenômenos políticos deve se encontrar na realidade da vida política e não em supostas Idéias em si, em princípios abstratos, como o fizera Platão. Ao contrário, como diz Morral (1985, p. 93), Aristóteles realiza seus estudos políticos na “crença de que a melhor forma de viver e a melhor constituição têm de estar intimamente ligadas à natureza das coisas”. Ou seja, partindo do princípio de que a compreensão da natureza e da ocorrência dos fenômenos políticos não deve basear-se em pressupostos desvinculados da realidade, Aristóteles procurou observar na natureza da vida social qual é a sua finalidade e, por esse meio, qual é a importância do Estado ou da associação política e, assim, do poder político. Na teoria política de Aristóteles, o Estado ou a associação política, e com ela, o poder político e a justiça política, é uma decorrência da natural existência humana. Quer dizer, no entendimento de Aristóteles (2004, 146 e 222), “o Estado é uma criação da natureza”, pois, se foi criado pelo homem, é porque “o homem é por natureza um animal político”. A seu ver, o homem que, por natureza – e não por mero acidente – não tem cidade nem Estado, seria muito mal ou muito bom, subumano ou super-humano. Na condição de subumano, o homem seria como “alguém sem família, sem lei, sem lar”; seria, por natureza, amante da guerra e, ao invés de ser um colaborador, seria uma peça fora do xadrez. Como super-humano, seria um deus: um ente auto-suficiente que não necessitaria de vida comunitária. É por não ser nem muito mal nem muito bom, nem subumano nem super-humano, que o homem necessita viver em Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 comunidade. Se o homem constituiu o Estado e as demais instituições políticas, é porque ele é o único animal dotado de razão e do dom da palavra. Por meio da razão e da voz, o homem conseguiu não só distinguir o bem do mal, a justiça da injustiça e “expor o conveniente e o inconveniente, o justo e o injusto”, mas também perceber, entre eles, a existência de aspirações comuns. Aos olhos de Aristóteles (2004, p. 146), são essas qualidades da natureza humana que levam os homens a construir a família, a cidade ou o Estado e as instituições políticas. O Estado, na avaliação de Aristóteles (2004, p. 145), nada mais seria senão o resultado da evolução das formas primitivas de vida social: família, aldeia, cidade-estado. A família seria a associação estabelecida por natureza, para suprir as necessidades diárias dos homens. Uma família, mesmo que isolada das demais, teria condições de garantir a existência de seus membros. Quando as famílias buscam algo mais que satisfazer suas necessidades cotidianas, então, elas passam a viver em um mesmo local formando uma associação mais ampla, uma aldeia ou uma tribo. Aristóteles considera que, provavelmente, as primeiras aldeias foram constituídas por diversas famílias portadoras de laços de consangüinidade. É na aldeia que surge, naturalmente, o poder monárquico – poder do mais velho da tribo – em substituição ao poder paterno da família isolada. O Estado, ou seja, a associação política ou a cidade se formou com a união de várias aldeias. Nas palavras de Aristóteles (2004, p. 146), “quando várias aldeias se unem numa única comunidade, grande o bastante para ser auto-suficiente (ou para estar perto disso), configura-se a cidade, ou Estado”. O Estado se forma com a finalidade de assegurar o viver de seus membros e, depois de formado, para assegurar o “bem viver”, isto é, a “perfeição e a auto-suficiência” da vida comunitária. Assim, no entender de Aristóteles (2004, p. 228), “o Estado não pode ser definido simplesmente como uma comunidade que vive num mesmo lugar e protege seus membros dos malfeitores e promove a troca de bens e serviços”. A seu ver, “o Estado existe para capacitar todos, famílias e aparentados, a viver bem, ou seja, a ter uma vida plena e satisfatória. Isso só pode ser alcançado quando esses grupos familiares ocupam um único e mesmo território”. Em resumo, para Aristóteles, o Estado é uma associação de homens livres que utiliza o poder político para alcançar a sua finalidade: a promoção da justiça política tem em vista o bem-comum, ou seja, a busca da auto-suficiência ou a felicidade da comunidade. O poder político, na filosofia política de Aristóteles, tem certas características específicas que o distingue das demais formas de poder. Entendendo que as diversas formas de poder devem ser classificadas conforme a natureza dos interesses a que o poder visa atender, Aristóteles (2004, p. 223), avalia que há pelo menos três espécies de poder: poder senhorial, poder paterno e poder político. O poder senhorial seria o poder do senhor sobre o escravo; um poder que é exercido em “benefício do senhor” e apenas acidentalmente em benefício do escravo, pois a seu ver, o escravo não teria outro interesse senão o interesse de seu senhor. O poder paterno seria o poder do pai sobre sua esposa e seus filhos. Neste caso, o poder seria exercido pelo pai tanto “em benefício dos que lhe são subordinados” como “em benefício das duas partes”. Seria o caso, por exemplo, da relação entre médico e paciente: o poder do médico sobre o paciente é exercido, primordialmente, com o intuito de atender aos interesses do paciente, embora às vezes atenda aos interesses de ambos. O poder político, por sua vez, nada mais seria senão o poder que é exercido nas relações que se estabelecem entre homens livres; um poder que visa atender, a um só tempo, aos interesses dos governantes e dos governados. Uma vez que tanto os governantes como os governados têm o interesse de Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 buscar a felicidade própria e a da sociedade como um todo, as ordens dos governantes devem ser obedecidas, pois elas visam a felicidade de todos, o bem comum. Além da natureza dos interesses a que o poder visa atender – interesses dos governantes e dos governados ou de todos – Aristóteles utiliza outro critério decisivo para distinção entre o poder senhorial, o poder paterno e o poder político. Trata-se das semelhanças ou diferenças existentes entre os agentes sociais envolvidos nas relações de poder. Os agentes envolvidos nas relações de poder senhorial – senhores e escravos – são de naturezas diametralmente distintas. O senhor é, por natureza, um homem livre e dotado das virtudes necessárias para o exercício do poder. O escravo, ao contrário, é considerado por Aristóteles como uma “besta” ou como uma ferramenta à disposição do senhor na sua missão de promover a felicidade entre os cidadãos. Da mesma forma, os agentes envolvidos nas relações de poder paterno – relações pai, esposa e filhos – também teriam as diferenças necessárias para que Aristóteles pudesse justificar o poder do pai sobre os demais membros de sua família. Embora o pai, a esposa e os filhos sejam igualmente livres por natureza, o pai teria o direito de exercer o poder, pois – diferentemente dos demais membros da família – é o mais bem dotado, pela natureza, das virtudes necessárias para o exercício do poder. Como diria Aristóteles, (2004, p. 165) “O homem é mais talhado para o poder do que a mulher, a menos que as condições sejam completamente anormais; e o mais velho e mais maduro é mais moldado ao comando do que o jovem imaturo”. Já os agentes sociais envolvidos nas relações de poder político seriam os homens livres por natureza: sendo igualmente livres por natureza, governantes e governados teriam as mesmas condições para governar e serem governados. Como diz Aristóteles (2004, p. 223), a “autoridade política” existe “sempre que ela for constituída com base na igualdade e na similaridade dos cidadãos; estes têm o direito de exercer a autoridade de governar, fazendo-o em turnos”. As justificativas para a existência do poder político na vida social podem ser encontradas na comparação que Aristóteles elabora entre o organismo social e os demais organismos vivos existentes na natureza. Assim como, por exemplo, o organismo humano é constituído de diversas partes – pés, mãos, olhos, nariz, etc. – Aristóteles entende que o organismo social também é constituído de partes – indivíduo, famílias, categorias profissionais, etc. Assim como o pé, a mão, o olho ou o nariz não teria existência fora do organismo humano, pois, separado, não teria uma função a cumprir, assim também o indivíduo, a família ou as categorias profissionais, separados da sociedade, não teria existência, pois, fora da vida social, não teria nenhuma função a desempenhar. Aristóteles (2004, p. 147) enfatiza essas considerações afirmando que aquele que fosse “incapaz de viver em sociedade ou que não tivesse necessidade disso por ser auto-suficiente, seria uma besta ou um deus, não uma parte do Estado”. É por isso que Aristóteles considera que “aquele que primeiro fundou o Estado foi o maior dos bem-feitores”, pois, “o homem, quando perfeito, é o melhor dos animais, porém, quando apartado da lei e da justiça é o pior de todos”. Quer dizer, aos olhos de Aristóteles, as partes só têm importância em relação ao todo: sem o todo as partes não existiriam; sem que cada um cumprisse sua função no organismo social, o bem comum almejado por todos não seria alcançado. Dessa forma, é de se admitir que, para Aristóteles, o poder político é o poder supremo num Estado ou associação política pois representa o poder do todo sobre as partes que o constitui: um poder instituído com a finalidade de promover a felicidade do indivíduo e da coletividade, ou seja, a auto-suficiência da comunidade ou o bem-comum. Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 Na Ética a Nicômaco, Aristóteles novamente volta a enfatizar a importância do poder político na sociedade. A seu ver, o poder político encontra a justificativa de sua existência na vida social, na medida em que é um instrumento utilizado pela sociedade na busca de sua finalidade geral: a auto-suficiência ou a felicidade de todos os membros da coletividade. Aristóteles, (1979, p. 188-89) afirma que todas as formas de comunidades – marinheiros, soldados, agricultores, etc – que existem no interior do Estado ou da associação política, são importantes porque visam atender a finalidades particulares – a navegação, a defesa da sociedade, o fornecimento de alimentos, etc. Mas essas comunidades são importantes também porque, como “partes da comunidade política”, ao cumprir suas finalidades particulares estariam contribuindo com a promoção do bem-comum. Ou seja, se os marinheiros, por exemplo, visam propiciar uma navegação segura para os tripulantes; se os soldados visam obter a vitória na guerra ou se os agricultores visam obter lucro com o resultado de sua atividade, eles estariam procurando atender a objetivos específicos, mas estariam, ao mesmo tempo, contribuindo com a busca do objetivo final da sociedade: a auto-suficiência ou a felicidade de todos. Entretanto, o Estado ou associação política, constitui uma associação mais importante ainda, pois a sua finalidade é a finalidade de todos os membros da comunidade e não de uma ou outra de suas partes. Assim, o poder político justifica sua condição de poder supremo, pois é um instrumento utilizado pelo Estado ou pela associação política, para promover a justiça tendo em vista a “vantagem comum”, ou seja, para propiciar uma vida auto-suficiente, justa e feliz para todos os membros da comunidade. É por causa dessa vantagem comum propiciada pelo poder político que os homens lhe devem obediência. Enfim, nas palavras de Aristóteles, o poder político tem a sua importância, pois ele “não visa à vantagem imediata, mas ao que é vantajoso para a vida no seu todo”. Atribuir poder superior ao poder político não significa dizer que, no entender de Aristóteles, os seus detentores – monarca; aristocratas ou povo – estariam autorizados a utilizá-lo como instrumento para atender às suas paixões ou interesses particulares. Ao invés disso, Aristóteles considera que o exercício do poder político deve basear nas leis. É neste sentido que Aristóteles (1979, p. 130) é enfático ao dizer: “aí está por que não permitimos que um homem governe, mas o princípio racional, pois o homem que o faz em seu próprio interesse, converte-se num tirano”. Caso o detentor do poder político não possua as virtudes necessárias para a busca do bem comum, para a promoção da justiça política, o exercício do “poder supremo” – diz Aristóteles (2004, p. 230) – “deve ser reservado à lei” pois somente a lei elaborada pelo legislador virtuoso pode promover a justiça política. A justiça política é definida por Aristóteles por meio dos mesmos parâmetros utilizados na fundamentação do poder político: a vida social e a sua finalidade. A justiça política, para Aristóteles (1979, p. 130), é a justiça que “é encontrada entre homens que vivem em comum tendo em vista a auto-suficiência, homens que são livres e iguais, quer proporcionalmente, quer aritmeticamente, de modo que entre os que não preenchem esta condição não existe justiça política, mas justiça num sentido especial e por analogia”. A justiça política existe justamente para solucionar as injustiças que existem entre os homens livres que vivem em sociedade visando alcançar o bem-comum. Em outras palavras, justiça política é a justiça praticada por homens livres – governantes ou governados – que agem tendo em vista a felicidade de todos e que têm a proporção e o meio-termo como parâmetros para a orientação de suas atitudes e comportamento. Como Aristóteles considera que o bemcomum, a auto-suficiência ou a felicidade é mais fácil ser alcançada quando os cidadãos e Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 autoridades públicas obedecem às leis prescritas pelos virtuosos legisladores e não quando eles seguem as suas paixões, é fácil perceber que, para ele, justiça política é, também, a observância das leis. “Com efeito – diz Aristóteles (1979, p. 130). a justiça existe apenas entre homens cujas relações mútuas são governadas pela lei; e a lei existe para os homens entre os quais há injustiça, pois a justiça legal é a discriminação do justo e do injusto”. Nestes termos, poder-se-ia afirmar que, entre homens que não fossem livres por natureza e que não tivessem interesses recíprocos e comuns a serem respeitados, não poderia haver Estado ou associação política para abrigá-los num mesmo território, nem mesmo poderia haver a justiça política para discriminar o justo e o injusto e tampouco poderia haver o poder político para coibir as disposições e as atitudes injustas dos indivíduos. No entendimento de Aristóteles (1079, p. 126), a justiça política manifesta-se sob duas formas distintas: justiça “corretiva” e justiça “distributivista”. A justiça corretiva seria a justiça que visa corrigir os atos dos cidadãos em geral que constituem obstáculos para que o Estado ou a associação política alcance a sua finalidade: o bem-comum ou a felicidade de todos. É a justiça que é aplicada, indistintamente, a todos os cidadãos com base na proporção aritmética. Neste caso, a justiça estaria de fato se manifestando quando, por exemplo, se considerassem justos os mesmos atos praticados pelos diversos cidadãos, ou quando fossem considerados injustos outros atos que também fossem praticados por todos eles. Exemplificando, haveria justiça corretiva quando qualquer homem livre, independentemente de sua posição social ou riqueza, fosse punido ao cometer adultério. Da mesma forma, se a justa lei estabelece que todo cidadão deve desempenhar bem a sua função tendo em vista o bem comum, haveria justiça se todos os cidadãos relapsos fossem punidos da mesma forma e haveria injustiça se eles não fossem igualmente punidos. A justiça distributivista se refere à distribuição dos bens – ao que parece, bens materiais, oportunidades, poder, etc. – entre os membros da comunidade política com base na proporção geométrica de suas posses. Ou seja, a justiça distributiva se manifestaria quando os bens fossem distribuídos proporcionalmente, isto é, em conformidade com o nível das virtudes ou da posse de bens materiais de cada cidadão. Por exemplo, se numa associação política houvesse um único homem livre com as virtudes necessárias para o exercício do poder político seria justo que esse poder ficasse concentrado em suas mãos e seria injusto se ele fosse distribuído entre todos cidadãos, ou seja, se se permitisse, igualmente, a participação do virtuoso e dos não virtuosos nas decisões políticas. Na continuidade de sua argumentação, Aristóteles dá outro exemplo de justiça distributivista: a distribuição de fundos entre acionistas de uma associação. Neste caso, na distribuição dos lucros entre os diversos acionistas, seria justo que os maiores acionistas ficassem com a maior parte dos rendimentos e os menores acionistas com as menores partes desses rendimentos. Em sua classificação das diversas formas de governo, Aristóteles utilizou os mesmos critérios empregados na definição do poder político e da justiça política. Depois de analisar as diversas constituições que vigoraram ou vigoravam até sua época, Aristóteles chegou à conclusão de que existem constituições boas ou justas e constituições que desviam desse padrão, isto é, constituições más ou injustas. As constituições boas ou justas são aquelas que têm em vista a busca do bem comum e adotam tanto a justiça corretiva quanto a justiça distributista na organização social e na distribuição do poder. As constituições más ou injustas são aquelas que, ao invés de visar o bem comum, visam o bem de uma parte da sociedade e Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 que, portanto, não adotam nem a justiça corretiva nem a justiça distributivista em sua forma de organizar a vida social e política. Com base nestes critérios, Aristóteles (2004, p. 223; 1979, p. 189) distinguiu duas espécies de governo ou de constituição: governos ou constituições boas ou justas por visarem o bem-comum e por aplicar a justiça distributiva na divisão do poder político – monarquia, aristocracia e politéia – e governos ou constituições más ou injustas por visarem o bem de apenas parte da sociedade e não de todos os cidadãos e por não aplicar a justiça distributiva na divisão do poder político – democracia, oligarquia e tirania. Entre as três formas boas ou justas, a monarquia seria a forma constitucional de governo onde o poder político se encontra em mãos do único homem possuidor de virtudes políticas e que governa respeitando as leis e a justiça política, tendo em vista o bem-comum. A aristocracia seria a segunda forma de governo boa ou justa pois o poder supremo se encontra em mãos de mais de um, ou seja, em mãos de uma minoria constituída dos melhores homens – homens possuidores de virtudes políticas e que valorizam o bem-comum, as leis, a justiça política – e que governam objetivando o bem de todos. A politéia – forma de governo que, segundo Bobbio (1985, p. 56) é substituído por timocracia na Ética a Nicômaco – por sua vez, seria a terceira forma de governo boa ou justa pois o poder político é exercido por todos os cidadãos que, por meio de revezamento, se alternam na condição de governantes e de governados e que, como a monarquia e a aristocracia, visam a promoção do bem comum, ou seja, o bem dos governantes e dos governados. Entre as três formas más ou injustas, a democracia seria um governo que está em mãos dos cidadãos. Mas, ao invés de estar em mãos todos os cidadãos e de visar o bem comum – como é o caso da polítéia – está apenas em mãos da maioria constituída de pobres ou não-proprietários de riqueza e visa apenas ao bem destes e não de todos. Em outras palavras, a democracia seria uma forma de governo injusta pois a maioria – na verdade, trabalhadores sem posse de riquezas e ou de virtudes políticas – governaria tendo em vista atender apenas aos seus próprios interesses em detrimento dos interesses dos proprietários que, injustamente, não participam do governo. A oligarquia, segunda forma má ou injusta de governo, seria uma forma de governo exercida por poucos ou pela minoria dos cidadãos. Mas, ao contrário do que ocorre na aristocracia, a minoria que governa na oligarquia é constituída, injustamente, apenas pelos proprietários da riqueza que governam visando atender apenas aos interesses próprios e não aos interesses de todos. Na tirania, assim como na monarquia, o poder político é exercido por um único homem. Mas, ao contrário do que ocorre na monarquia, esse homem visa atender a seus próprios interesses e aspirações e não aos interesses e aspirações de todos. A tirania seria a pior das formas de governo – se é que se pode chamar de governo – não só porque o poder se concentra, injustamente, apenas em suas mãos, mas também porque o “governante” não possui as virtudes políticas de um monarca; não exerce o poder político visando ao bem comum e nem se preocupa em adotar qualquer espécie de justiça em sua relação com os súditos. Em sua teoria política, além de classificar as formas de governo ou de constituição, Aristóteles procurou revelar também qual é a melhor forma de governo. Como diz próprio Aristóteles (1979, p. 234), sua intenção era “examinar que espécies de influências preservam ou destroem os Estados” para que pudesse “distinguir qual é a melhor constituição”, ou seja, qual é a constituição ideal para ser implantada em qualquer associação política. Segundo Morral (1985, p. 66), Cresson (1981, p. 42) e Durant (2000, p. 102), a melhor constituição, ou seja, a forma de governo mais justa, segundo Aristóteles, deveria ser o governo misto: uma Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 mistura de elementos da constituição democrática e da constituição aristocrática, a exemplo do que fora a constituição de Sólon de 594, a.C. – constituição que inaugurou a democracia ateniense. Esse governo misto, seria, para Aristóteles, um “meio-termo” entre a monarquia e a democracia. Seria uma forma de evitar que apenas um homem, ainda que virtuoso, ou que uma maioria, despreparada para o exercício das funções políticas, assumisse o poder supremo. Com o governo misto, os altos cargos do poder executivo ficariam reservados para a aristocracia e seria garantida a participação dos demais cidadãos, pelo menos nas decisões legislativas e judiciárias por meio da representação política. No entanto, reconhecendo que nos diversos Estados ou associações políticas os cidadãos têm níveis muito diferenciados de virtudes políticas, Aristóteles considera que, na realidade, a melhor constituição seria aquela que expressa os costumes dos povos. Ou seja, sem a ironia de nossos dias, Aristóteles estaria dizendo que “cada povo tem o governo que merece”. Participação política Assim como sua concepção de Estado ou de poder político, a concepção de Aristóteles acerca da participação dos cidadãos nas decisões políticas está estreitamente relacionada com seus princípios teórico-metodológicos. Uma vez que o objetivo do Estado ou da associação política é a busca da felicidade dos cidadãos, individual e coletivamente, e uma vez que o poder político, ou poder supremo, não é outra coisa senão um instrumento utilizado pelo Estado para promover a felicidade geral ou o bem comum, a participação dos cidadãos nas decisões políticas, deveria ocorrer apenas na medida em que esta participação seja qualificada e contribua, portanto, com a eficiência do poder político na busca do bem-comum. Assim, como demonstraremos a seguir, Aristóteles reserva o direito de participação política a apenas uma elite da sociedade: somente os homens livres, portadores de sabedoria e de certas virtudes políticas, estariam habilitados – em seu governo ideal – a participar das decisões políticas. Note-se que, mesmo quando se trata da participação dos cidadãos nas diversas formas de governo existentes, Aristóteles estaria se referindo apenas à participação de certos homens nas decisões políticas e não à participação de todos os homens. Quer dizer, na teoria política, de Aristóteles a grande maioria da população é excluída do direito à participação política. De início, é preciso observar que os escravos – homens que constituíam a grande maioria dos habitantes das cidades-Estado do Mundo Antigo – foram enfaticamente excluídos por Aristóteles do direito à participação política. Um dos argumentos de Aristóteles para excluir os escravos da cidadania pode ser encontrado em sua comparação entre um escravo e uma ferramenta. Aristóteles (1979, p. 191), considera que o escravo não deve participar das decisões políticas, pois, a seu ver, o escravo nada mais é que “uma ferramenta viva”, da mesma forma que uma ferramenta nada mais é que “um escravo inanimado”. Como ferramenta viva – diz Aristóteles na Política (2004, p. 14) – o escravo é uma propriedade necessária à existência do homem livre, pois “nenhum homem pode viver bem, ou mesmo viver, a menos que atenda às próprias necessidades”. Ou seja, Aristóteles considera que, como ferramenta e parte da propriedade do homem livre, como um servo que “pertence totalmente a ele”, o escravo é o instrumento “destinado a tornar o homem capaz de viver”, isto é, o instrumento que, naturalmente, existe com a função de produzir os bens ou de prestar os serviços necessários para a vida dos homens livres. Assim, conclui Aristóteles, “qualquer ser Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 humano que, por natureza, pertença não a si mesmo, mas a outro, é por natureza escravo; e um ser humano pertence a outro sempre que fazer parte da propriedade, ou seja, um instrumento que tem uma existência separada e útil para os propósitos da vida”, mas, não para a vida política. Outra justificativa para a exclusão dos escravos da participação política pode ser encontrada na distinção feita por Aristóteles entre o corpo e a alma do escravo e o corpo e a alma do senhor.. Aristóteles (2004, p. 151) considera que tanto o corpo como a alma do escravo é naturalmente diferente do corpo e da alma do senhor. A natureza fez forte o corpo do escravo com o propósito de qualificá-lo para o trabalho servil, para o trabalho braçal, e fez “esguio” o corpo do senhor para torná-lo “inútil para o trabalho físico”, mas “útil para a vida política e para as artes”. Com base nesta convicção, Aristóteles conclui que, “se os homens diferem uns dos outros na mera forma de seus corpos tanto quanto as estátuas dos deuses diferem dos homens, tudo indica que as classes inferiores devem ser escravas das superiores”. Se isto é verdade para os corpos – continuaria Aristóteles na seqüência do raciocínio – “é mais do que justo que diferença similar exista entre as almas”. A alma do escravo é inferior à alma do homem livre, pois, como os animais inferiores, o escravo não concebe a razão: ao invés de seguir à razão, “obedece às paixões”. Assim, Aristóteles avalia que “onde existir essa mesma diferença entre corpo e alma ou entre homens e animais – como no caso dos que têm como único recurso usar o próprio corpo, não sabendo fazer nada de melhor – a casta inferior será escrava, por natureza, e é melhor para os inferiores estar sob domínio de um senhor”. Enfim, no entendimento de Aristóteles, os escravos não poderiam participar das decisões políticas, pois não foram dotados de razão pela natureza e nem possuem as virtudes necessárias para as tomadas de decisões políticas. As mesmas razões que levaram Aristóteles a excluir os escravos da cidadania foram também utilizadas por ele para excluir as mulheres. Embora Aristóteles reconheça algum valor na mulher ao comparar o governo aristocrático com a administração familiar, em outros contextos de sua obra, ele a coloca nas mesmas condições do escravo. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles (1979, p. 190) assegura que “a relação marido mulher parece ser aristocrática, pois o homem governa como convém o seu valor, mas deixa a cargo da esposa os assuntos que pertencem a uma mulher”. “Se o homem governasse em tudo” – continua Aristóteles – “a relação degeneraria em oligarquia, pois assim ele não agiria de acordo com o valor respectivo de cada sexo [...]”. Em sua Política, Aristóteles (2004, p. 165) chega a conceder à mulher o status pessoa livre na medida em que tem o poder do marido sobre a esposa como um poder político, isto é, como relações de poder entre pessoas livres. Entretanto, logo adiante nas páginas seguintes de sua obra, Aristóteles chega a insinuar que, como os escravos, as mulheres também não teriam as qualidades necessárias para a vida política. Em um momento, ele assegura que “a faculdade de decisão, na alma, não está completamente presente num escravo; na mulher, é inoperante; numa criança, não desenvolvida”. Assim, Aristóteles conclui que “as mesmas condições prevalecem também em relação a virtudes éticas, isto é, que todas elas participam da alma dos dominados, embora não na mesma extensão, mas apenas como deve ser exigido de cada um para a sua função peculiar”. Em outro momento, enfaticamente, Aristóteles afirma que “o homem é superior à mulher inferior, o primeiro manda e a segunda obedece” e que esse princípio deve, necessariamente, se estender “a toda a humanidade”. Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 Até mesmo os trabalhadores que desenvolvem as diversas funções no interior da sociedade são também – como o fez Platão – excluídos por Aristóteles do direito à participação política. Esta exclusão pode ser observada na distinção que Aristóteles (1979, p. 145-47) elabora entre sabedoria filosófica, sabedoria prática e sabedoria política. A sabedoria filosófica – conforme uma possível interpretação dos escritos de Aristóteles – seria a sabedoria que “produz a felicidade”, isto é, a sabedoria que indica qual é a finalidade de cada ser existente no universo, no caso, sabedoria que tem a auto-suficiência, a felicidade ou o bem-comum como objetivo último do Estado ou da associação política. A sabedoria prática seria a sabedoria que indica os meios adequados para que os homens possam alcançar os objetivos, específicos e comuns, de suas ações rotineiras. Trata-se da sabedoria de todo ser humano, inclusive de “alguns animais inferiores” que optam por certos meios para atingir alguma finalidade. Ou seja, enquanto a sabedoria filosófica indicaria os fins a serem alcançados, a sabedoria prática indicaria os meios para atingi-los; enquanto o filósofo indicaria qual é a finalidade de cada coisa, o homem comum escolheria os meios que o levaria a atingir essa finalidade. A sabedoria política, por sua vez, seria a sabedoria “que se relaciona com os assuntos da cidade como particulares dentro do seu universal”; uma sabedoria que se ocupa, a um só tempo, com a deliberação e com a ação. Uma sabedoria que indica aos homens livres – aptos a participar da vida política – o fim a ser alcançado e os meios que devem ser utilizados na atividade política para que a finalidade seja alcançada. Nestes termos, embora todos os homens possuam a necessária sabedoria prática para decidir sobre o desempenho de suas funções e, portanto, para participar da vida social, Aristóteles considera que somente os portadores de sabedoria política, isto é, os que sabem deliberar e agir adequadamente tendo em vista a felicidade geral e que, portanto, sabem agir com justiça política, “tomam parte da política”. Em outras palavras, é do entendimento de Aristóteles (2004, p. 213-221) que somente o homem que possui sabedoria política estaria habilitado a participar das decisões políticas, pois, este homem possuiria as “virtudes do cidadão virtuoso”, isto é, as virtudes necessárias para o exercício das atividades políticas – deliberar e agir tendo em vista o bem comum. O homem que possui apenas sabedoria prática não estaria habilitado a participar das decisões políticas, pois ele seria portador apenas das “virtudes de homem”, isto é, das virtudes necessárias para desempenhar sua atividade social específica – agricultor, sapateiro, construtor de casas, etc. Enfim, ao ter a sabedoria política como condição necessária para a participação política, Aristóteles acaba excluindo até mesmo os trabalhadores da vida política. A exclusão dos trabalhadores das decisões políticas fica mais evidente ainda quando Aristóteles se ocupa em definir o que é o cidadão. É verdade que, ao considerar que “o objetivo de todos os cidadãos, não importa quão dessemelhantes possam ser, é a segurança da comunidade, isto é, a segurança da constituição da qual são cidadãos em determinado momento”, Aristóteles em Política (2004, p. 216) poderia estar insinuando que todos os homens livres que habitam a cidade – independentemente da função que exercem e da natureza das virtudes que possuam – seriam cidadãos. Entretanto, mais adiante Aristóteles é enfático na exclusão dos trabalhadores das atividades políticas: “nem por um momento aceitamos a idéia de que devemos chamar de cidadão todos aqueles cuja presença seja necessária para a existência do Estado”. Mais adiante ainda, Aristóteles volta a afirmar: “o melhor Estado não fará do trabalhador um cidadão”, pois “se até mesmo o trabalhador for cidadão, então aquilo a que denominamos virtude de um cidadão não pode ser atribuído a todos, ou só aos homens livres, mas àqueles que na verdade estão livres de todas as tarefas Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 inferiores”, isto é, de tarefas que são “cumpridas por servos pessoais, por trabalhadores ou por funcionários do serviço público”. Enfim, no entendimento de Aristóteles (2004, p. 213 e 219), cidadão é apenas aquele homem livre que possui a “virtude de cidadão” e que está, portanto, “capacitado para participar da autoridade, deliberativa ou judicial”; que “sabe bem como governar e como ser governado”; aquele que, efetivamente participa “no judiciário e na autoridade, isto é, nos cargos públicos e na administração”. Ao tratar dos critérios para a “distribuição dos direitos políticos”, Aristóteles (2004, p. 235), mais uma vez, revela quais são as qualidades necessárias para que o homem livre possa ser considerado cidadão e, por conseguinte, quais homens livres devem ser excluídos da participação política em sua forma ideal de governo. No entendimento de Aristóteles não é qualquer espécie de superioridade existente entre os homens livres que justifica a distribuição desigual dos cargos públicos. As superioridades relevantes para a distribuição dos direitos políticos devem ser “aquelas que contribuem para manter o Estado como um todo” e que, portanto, “têm o direito a ser consideradas”: “berço nobre, berço livre e propriedade”. Ou seja, no entendimento de Aristóteles, para serem considerados cidadãos com direito a participar das decisões políticas, os membros de um Estado ou associação política “devem ser livres e contribuintes [de tributos], pois não se pode formar uma cidade de pobres, nem de escravos” e devem possuir, ainda, “virtudes de justiça e de bravura militar”. Essas características do genuíno cidadão são importantes, pois, “sem população livre e rica não existe cidade; sem justiça e valor, ela não pode ser bem organizada”. Nestes termos, portanto, é de se admitir, mais uma vez, que Aristóteles não considerava como cidadãos, nem os escravos, por não serem livres e por não terem a razão necessária para possuir virtudes políticas e nem as mulheres e os trabalhadores por não serem proprietários ou por não possuírem a sabedoria e virtude políticas. Os critérios que Aristóteles utilizou para definir o que é cidadão, e assim, para distribuir os direitos políticos, foram os mesmo critérios que utilizou para classificar as diversas formas de governo ou de constituições, e assim, as possibilidades de participação política. Como vimos anteriormente, as formas de governo que Aristóteles (1979, p. 190; 2004, p. 224) considera boas ou justas são justamente aquelas que consideram têm certos homens livres como habilitados a participar das decisões políticas: homens que, além de serem livres, possuem nobreza, propriedade e, particularmente, virtude e justiça política. A monarquia – mesmo não concedendo honras, ou seja, mesmo não permitindo a participação de todos os homens livres e proprietários no governo – seria a melhor forma de constituição, pois seria governada pelo único homem que possui virtudes políticas; homem que compreende a finalidade da vida social e que sabe conduzir a vida social com justiça. Nesta forma de governo, apenas o monarca, respeitando as leis e tendo em vista o bem comum, toma as decisões políticas. Na aristocracia alguns homens – e não apenas um – possuidores de virtudes políticas, teriam a oportunidade teriam o direito de tomar as decisões políticas pis somente eles possuiriam as virtudes políticas. O mesmo ocorre na politeia. Nesta terceira forma de governo justo ou correto, todos os cidadãos, isto é, todos aqueles que possuem virtudes políticas – uma pequena minoria dos homens livres uma vez que até os trabalhadores, por serem pobres e sem virtudes políticas, estariam excluídos da participação política – participariam das decisões políticas governando por turno, de modo que, em um momento seriam governantes e em outro momento seriam governados, Nestas formas de governo boas ou justas, os cidadãos – um; alguns ou todos aqueles que são considerados cidadãos – Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 participariam das decisões políticas visando a promoção do bem-comum ou a felicidade de todos. As demais formas de governo – democracia, oligarquia e tirania, (1979, p. 190; 2004, p. 224) – são consideradas por Aristóteles como formas más ou injustas, justamente porque, nelas, não são necessariamente os melhores homens livres que participam das decisões políticas, ou seja, não são necessariamente os homens livres que possuem propriedades, sabedoria ou virtude política necessárias para que se pudesse governar visando o bem comum. Como diz Aristóteles (2004, p. 224), são formas de governo em que “aqueles que participam não são cidadãos”, pois, se o fosse deveriam “partilhar o bem comum”. Na democracia – desvio da politeia – o direito de participação política, ou seja, o poder político “pertence aos que não têm recursos”; seria, ao que parece, o governo dos pobres, dos trabalhadores que, sem propriedade e sem virtudes políticas, governariam em benefício próprio em detrimento dos benefícios pretendidos pelos ricos, portanto. Na oligarquia – desvio da Aristocracia – o poder político pertence aos proprietários que, sem as necessárias virtudes políticas, governam tendo em vista seus próprios interesses a expensas dos interesses dos não proprietários. Na tirania – desvio da monarquia – o poder político pertenceria a um só homem; homem que não possui nenhuma virtude política e que, por isso, governa segundo suas paixões visando atender a seus interesses pessoais. Enfim, essas formas de governo são más ou injustas não só porque nenhuma delas visa o bem comum, a felicidade de todos, mas também porque a distribuição do poder político não se mão observa a proporção dos méritos que os homens livres possuem: riqueza e sabedoria política. Nem mesmo em sua melhor forma possível de governo – governo misto exercido pela aristocracia e representantes do povo – Aristóteles defende a participação plena de todos os homens livres na vida política. É verdade que em diversos contextos de sua obra, Aristóteles ora defende a monarquia, ora a aristocracia e ora até mesmo a politeia como melhor forma de governo, ou seja, como forma de governo boa ou justa por ser exercida por cidadão ou cidadãos possuidores de virtudes políticas e que governam tendo em vista o bem comum. Entretanto, talvez por considerar que a atividade política é mais “eficiente” na busca de sua finalidade quando “várias pessoas ocupam os postos públicos” (Aristóteles, 2004, p. 205-206) – e não apenas uma como é o caso da monarquia –; por considerar um “risco” a participação dos homens livres em geral “nos altos cargos do governo”, pois “seus padrões inferiores os levariam a agir de modo errado” (Aristóteles, 2004, p. 231) e por considerar, ao mesmo tempo, que a participação do “povo” nas decisões políticas os dispõe a “zelar pela constituição” (Aristóteles, 2004, p. 202), Aristóteles não via alternativa senão defender a participação dos homens livres, ainda que de forma limitada, nas decisões políticas. Daí, sua defesa da constituição de Sólon como modelo de governo possível: um governo misto que permite a participação de virtuosos e não virtuosos na vida política; uma forma de governo que permite a participação dos virtuosos nos altos cargos públicos e que dá aos não virtuosos pelo menos o direito de eleger os magistrados. Aristóteles (2004, p. 231) considera que Sólon e outros legisladores, corretamente, concederam ao “povo” o direito de eleger os magistrados, não só por considerar esse direito um mecanismo adequado para evitar as hostilidades dos homens livres contra o governo dos virtuosos, mas também por considerar que, embora individualmente, não tivessem condições para ocupar os altos cargos, coletivamente, eles teriam “o necessário entendimento” para escolher “os notáveis ou homens de posse” que deveriam ocupar os cargos públicos. Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008 É preciso reconhecer que, em vários momentos de sua obra, Aristóteles vê alguma qualidade nos homens livres que os habilitariam a uma efetiva participação nas decisões políticas. Por exemplo, em sua obra, Política, Aristóteles (2004, p. 244) reconhece que “em numerosas ocasiões, a maioria julga melhor do que um só homem”; que “é mais difícil corromper ou chegar a um acordo com a maioria” assim como é mais difícil “poluir uma grande quantidade de água” do que uma pequena quantidade, e que “o julgamento de um pode ser deturpado se ele tiver um mau temperamento ou sentimentos demasiado fortes por alguma coisa; mas dificilmente muitos perderiam a calma deturpando o julgamento”. Entretanto, mesmo com essa defesa da sabedoria coletiva, seria um erro ter Aristóteles como um defensor da democracia como o faz Morral (1985, p. 68). Em primeiro lugar, é preciso observar que, em sua teoria do governo misto, Aristóteles concede aos homens livres em geral apenas o direito de eleger os notáveis para a ocupação dos cargos públicos e não o direito de ocupar esses cargos. Em seguida, porque entre os homens livres que estariam habilitados a escolher os notáveis, logicamente, não estariam incluídos os escravos e nem mesmo, conforme sua definição de cidadão, as mulheres e os trabalhadores em geral. Referências bibliográficas: ARISTÓTELES, Metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1979. ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas. São Paulo: Nova Cultural, 2004b. ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1985. ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 2004. ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 2004a ARISTÓTELES. Tópicos. São Paulo: Abril Cultural, 1978a. BOBBIO, Norberto. As teorias das formas de governo. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985 CHÂTELET, François. História das idéias políticas. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. CRESSON, André. Aristóteles. Lisboa: Edições 70, 1981. DURANT, Will. A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2000. KURY, Mário da Gama. Apresentação. In: ARISTÓTELES. Política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1985. LAERTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas de filósofos ilustres. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1988. MORRALL, John B. Aristóteles. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1985 PESANHA, Vida e Obra. In: Aristóteles. Tópicos / Dos argumentos sofísticos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ROSS, David. A metafísica de Aristóteles. In: ARISTÓTELES. Metafísica. Porto Alegre: Globo, 1969. SALDANHA, Nélson. O Estado. In: CURSO de introdução à ciência política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1984. *** Cascavel – PR – 17 a 19 de junho de 2008