Espaços Afro-indígenas no mapa Brasilia qua parte paret Belgis
Bartira Ferraz/Scott Allen/Ricardo Piqueras/José Luis Ruiz-Peinado
A escolha do mapa mural
O mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis vem sendo estudado por
especialistas de vários campos da história e da geografia como uma das obras
financiadas pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC) das mais avançadas
para sua época. Comemorando, em 2012, os 365 anos da sua primeira
publicação, realizada em 1647, pesquisadores da Universidade Federal de
Pernambuco e da Universitat de Barcelona reuniram-se para uma investigação
sobre os espaços com presença de indígenas, de africanos e de mestiços nele
representados. Neste trabalho, os textos e os desenhos contidos no mapa
serviram como base para a realização das interpretações históricas sobre os
territórios colonizados e os não colonizados, isto é, os contíguos aos já
dominados pelos europeus, apresentados neste mapa como espaços indígenas
com presença de africanos e de mestiços colocados fora do controle colonial
português.
Utilizando um conjunto de documentos históricos constituídos por mapas,
informes e cartas indígenas produzidos no período colonial foi possível
dialogar como o mapa como uma 'linguagem' viva, base para a pesquisa
histórica e social sobre o contato entre natureza, europeus, indígenas e africanos
ocorrido durante a conquista e a ocupação holandesa do Brasil no século XVII.
Mapa que registra mudanças e continuidades na cartografia holandesa e na
paisagem colonial brasileira, onde diferentes ações ocorridas nos espaços
coloniais podem ser acompanhadas. Temas novos envolvendo colonização,
escravidão, monoculturas, expedições e conquista foram inseridos por
Margrave em seus registros cartográficos durante esta época de ouro para as
ciências e as artes desenvolvidas nos Países Baixos (Matsura, 2011: 330). O
Brasilia qua parte paret Belgis confirma esta afirmação ainda por ser um
1
documento cartográfico importante no que ele apresenta como espaços nativos
e de escravos fugitivos do sistema colonial. A localização desses espaços nas
diferentes áreas do litoral ao Sertão pode ser a mais representativa e talvez,
única da costa do Nordeste do Brasil, do século XVII, quanto à localização da
área do quilombo dos Palmares.
Durante o período colonial, os interesses por mapas geopolíticos e planos
urbanos sobre diferentes regiões da América estavam, sobretudo, relacionados
a aspectos políticos enredados às fronteiras econômicas estabelecidas a partir
da expansão marítima de estados e reinos europeus modernos. Portanto, rotas
de navegação, mercadorias, contatos entre diferentes regiões e assentamentos
populacionais são alguns dos temas encontrados na cartografia produzida.
A costa Nordeste do Brasil foi a primeira região das Americas a receber um
grupo de cientistas financiado pela WIC, para desenvolver pesquisas em
diferentes campos da geografia, da cartografia, da botânica, da astronomia, do
desenho, da pintura, da medicina, entre outros. As atividades ocorridas neste
período tiveram apoio no comércio atlântico o que permitiu a Johanes de Laet,
geógrafo e diretor da WIC, a edição de alguns estudos como os de Willen Piso
e Georg Marcgrave na obra Historia Rerum Naturalius Brasiliae (Historia
Natural do Brasil), datada de 1648.
Sobre o duplo enfoque comercial e científico da WIC, Cabral de Mello afirma
terem os neerlandeses os recursos financeiros tanto para a ocupação do
Nordeste
do
Brasil
como
para
o
financiamento
de
importante
desenvolvimento cartográfico, iniciado no século XVI. Textos holandeses e
portugueses, mapas e
descrições pormenorizadas da costa, estudos
econômicos das plantações de açúcar e o custo das invasões, foram alguns dos
aspectos financiados que passaram a ser enfocados por uma ampla e variada
documentação histórica produzida no século XVII (Cabral de Mello, 2010).
Incluem-se entre estes documentos as cartas e os relatos de indígenas escritos
2
em tupinambá, holandês e português assim como documentos assinados por
mestiços e afrodescendentes.1
Em Portugal, desde o início do século XVI, documentação e cartografia vieram
a ser produzidas, mas foi na Holanda, a partir de 1580, que uma cartografia
mais detalhada sobre a América passou a ser desenvolvida. No final do século
XVI, Willem Janszoon Blaeu (1571-1638) cria, com base na projeção de
Mercator, um padrão que será seguido nos mapas sobre as Índias Ocidentais
da época, posteriormente, também utilizado por Georg Marcgrave, Johan de
Laet e Jean Blaeu, entre outros cartógrafos. A demanda por esse gênero de
imagem leva da cidade de Antuérpia para Amsterdam a liderança das
publicações de mapas, relatos de viagens e textos científicos. Ainda que os
grandes cartógrafos e cosmógrafos das monarquias ibéricas se encontrassem
em Lisboa, Sevilla e, depois da independência dos Países Baixos, em
Antuérpia e Amsterdam, os novos conhecimentos cartográficos também
passaram a ser impressos em outras partes do mundo incorporando
conhecimentos de culturas e indivíduos em contato. 2 Um exemplo é o Atlas
Universal de Fernão Vaz Dourado, feito em Goa. Fernão, um mestiço de
português com uma indiana, autor das 17 cartas náuticas reunidas neste atlas
é considerado, hoje, um dos melhores cosmógrafos do Renascimento.
(Gruzinski, 2010: 214-215).
Sobre o tema pode ser mencionada uma série de artigos e textos produzidos desde o século
XX, como o de Pedro Souto Maior, o de Teodoro Sampaio, o de Hullswyck, e o de Bartira Ferraz
Barbosa. Os documentos citados que se encontram arquivados no Arquivo Histórico
Ultramarino em Lisboa e no Arquivo da Companhia das Índias Ocidentais em Haia, Holanda.
2 A produção de mapas impressos em Amsterdam com financiamento da Companhia das Índias
Ocidentais inclui o de De Laet, a Novus Orbis publicada em Francês, em 1640, tinha a missão de colocar
resumidamente os espaços holandeses entre os continentes do globo; o mapa mural gravado em 1646
por Joan Blaeu (embora só publicado no ano seguinte), continha levantamento e desenho cartográfico
de Georg Marcgrave de 1643 com vinhetas de paisagens sobre o Brasil, atribuídas a Frans Post; o
primeiro mapa sobre o litoral brasileiro publicado pela WIC em 1632, intitulado Caerte vande Custe van
Brasiijl é atribuido ao capitao Geleijn van Stapels e trata sobre o litoral entre o rio Formoso e o Rio
Grande do Norte. Também fazem parte dele 4 desenhos sobre parte da costa perfilada e aquarelada.
Stapels compõe o mapa a partir de antigas informações e medições próprias. Outros mapas foram
posteriormente impressos no livro publicado por Caspar Barleus, e os do Atlas de Vingboons (c. 1665),
todos revelam avanços técnicos representativos do domínio geopolítico sobre a região do Nordeste do
Brasil conquistada. Grande parte da documentação original e de cópias guardadas na Holanda passou a
ser divulgada através do atlas De Oude WIC, 1621 – 1674, publicado, em 2011, na Holanda (Storms,
2011).
1
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Os mapas e os textos que se fizeram sobre essas relações interétnicas focavam
principalmente as áreas coloniais conquistadas e seus contornos, onde viviam
populações nativas ainda em liberdade. Sobre esta periferia dos espaços
coloniais, portugueses, castelhanos e holandeses aproveitaram dos saberes
nativos recolhidos por informações orais e por imagens nas quais eram
representados os espaços socioculturais e as toponímias de maneira própria e
suscetível a serem compreendidas por públicos europeus. Sem os lançados,
pombeiros ou tangomaus,3 com vivências na costa da África, ou sem os
chamados „lenguas ou línguas‟, nativos conhecedores de vários idiomas
existentes na América espanhola e na portuguesa, qualquer indagação teria
fracassado (Gruzinski, 2010: 241). Os detalhes das informações contidas no
mapa mural de Marcgrave apontam para uma fundamental participação de
indígenas, cafuzos, caboclos e africanos como intérpretes, intermediários,
colaboradores, informantes locais e testemunhas oculares.
Apesar de utilizar aspectos gerais encontrados na cartografia europeia da
época, o mapa Brasilia qua parte paret Belgis reúne, de maneira original e com
mais complexidade e quantidade de informações, temas envolvendo distintas
culturas em espaços do mundo colonial e o ainda não colonizado, localizados
no Nordeste do Brasil, no século XVII. Seu poder de comunicação chama
atenção quanto ao uso de símbolos e paisagens que seguem ideais de ordem,
riqueza, beleza e sentimentos. Ideias que parecem seguir propositalmente uma
ordem de importância. Traduzindo seu título colocado em latim temos uma
Lançados: inicialmente foram degredados portugueses lançados pela borda dos barcos para
entrar em contato com os povos africanos da costa da Guiné. Os sobreviventes chegaram a criar
redes comerciais entre os europeus e os diferentes reinos africanos. Posteriormente tratados
como mestiços de portugueses com africanas dedicados ao comercio no interior de continente.
Pombeiro: termo da língua quimbundo que significa negociante ou emissário que atravessa o
sertão comerciando. Também alude a una classe muito importante de comerciantes que
controlavam o comercio de escravos em Angola (Thomas 1997: 166 e Blackburn 1997: 176). Os
Tangomãos eram portugueses que falavam línguas africanas, tinham contatos com os povos do
interior e intermediavam entre comerciantes e chefes locais. Podiam residir no interior e tinham
certo prestigio na costa africana, centrando seus trabalhos na reunião de escravos para a
exportação. Foram acusados por religiosos católicos e autoridades portuguesas de terem
"origem judaica" e de viver como os "negros" (Lobo 1991: 67).
3
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primeira explicação sobre o que mais importa comunicar neste mapa mural, ou
seja: a parte do Brasil que cabia aos Países Baixos. Título que, portanto, nos dá a
entender tratar-se de mapa que reúne vários interesses envolvendo grupos do e
no Brasil e nos Países Baixos.
Uma segunda questão recai sobre o possível ano em que o mapa foi gravado
(1646) e o ano de sua publicação em 1647, por Joan Blaeu, envolvendo a
inclusão de um número significativo de ilustrações atribuídas a Frans Post e a
Albert Ekhout. As datas coincidem com o final do período do governo de João
Maurício de Nassau no Brasil e com a publicação de outras duas obras: a de
Gaspar van Baerle (1584-1648), ou Gaspar Barleus, como veio a ser conhecido
no Brasil, intitulada O Brasil Holandês sob o Conde João Maurício de Nassau, com
primeira edição no ano de 1647 (Barleus, 2005); e a obra Historia Rerum
Naturalius Brasiliae de Piso e Marcgrave, publicada em 1648, cuja edição foi
subvencionada por Nassau. As três obras citadas merecem destaque pelas
informações inéditas sobre o Nordeste brasileiro produzidas no século XVII e
pelos conteúdos artísticos e científicos nelas registrados. O conjunto de
informações sobre a fauna, a flora e os nativos de um Brasil até então pouco
divulgado e conhecido pelos Países Baixos ainda causa impacto quando
comparado a outros registros do período colonial e parecem acompanhar de
forma especial os interesses dos investimentos coloniais.
Quanto ao sentido geral encontrado em mapas do século XVII, o mapa mural
de Marcgrave inclui, como de costume para a época, elementos cartográficos,
paisagísticos, heráldicos, etnográficos, zoo-botânicos, geopolíticos e textuais
dados em um mesmo documento. O que o difere dos demais é o esforço da
justaposição ou colagem de diversas imagens com paisagens mais detalhadas e
ricas em elementos etnográficos nativos e em relação à localização de aldeias
indígenas, engenhos, caminhos, portos, currais, salinas e missões, entre outros
elementos. Trata-se de um mapa mural extraordinário pelo conjunto de
detalhes inseridos em nove pranchas com um pequeno mapa de Joan Bleau na
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parte inferior com o título Maritima Brasiliae Universae e o mapa de
Marcgrave ocupando a maior parte das pranchas que o compõe. A Joan Bleau
foi confiada a primeira edição do mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis
impressa em 1647. O número de edições impressas no século XVII demonstra
ter sido esta uma obra de relevância também para a sua época. Por outro lado,
seus diferentes gravadores nos fazem pensar em como o campo da cartografia
crescera junto com a profissionalização das oficinas de impressões existentes
nos Países Baixos. Um dos gravadores do mapa mural pode ter sido Jan
Brosterhuitzen, responsável pelas gravuras dos trabalhos de Frans Post para o
livro de Barleus (Corrêa do Lago, 2009: 413- 415). Nas diferentes edições do
Brasilia qua parte paret Belgis os desenhos das vinhetas foram atribuídos a
Frans Post tendo em vista a semelhança aos assinados por ele na obra de
Barleus. Um mapa, portanto, que inovava pelo conteúdo e inclusão de trabalhos
artísticos apoiados por Nassau e pela WIC e que dava início à divulgação das
primeiras experiências artísticas no Brasil.
As várias edições do mapa apresentam pequenas diferenças quanto às
adaptações, ao tamanho e às costuras dos desenhos de Frans Post. Na edição de
1659, o formato segue o mesmo conjunto de nove pranchas apenas mudando o
tamanho da prancha para 159 x 115 cm, somando no total 5,10 metros de
largura por 3,95 metros de altura e na versão de 1664, editada por Clemendt de
Jonghe, por exemplo, as nove pranchas mediam 121 x 160 cm cada uma
(Bibliothèque Nationale de France). Todas as edições exibem título, Notularum
Explicatio, guirlandas e escudos iguais. O que há de diferente entre elas são
algumas modificações nos detalhes existentes nas gravuras das paisagens e a
subtração de detalhes completos em outras, o que aponte para hipóteses como a
de que os gravadores foram pouco cuidadosos em copiar o original, a de que
foram subtraídos detalhes etnográficos nas ilustrações por falta de interesse em
divulgar estas informações, ou mesmo a de que sua missão era a de divulgar os
espaços geográficos controlados. Os desenhos com paisagens atribuídos a Frans
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Post compuseram cinco cenas, todas elas referindo-se ao mundo sócio cultural
colonial envolvendo população escrava africana, índios livres em diferentes
situações, trabalho escravo em engenho de açúcar e na casa de produção de
farinha de mandioca. As cenas incluem ainda índios saindo para guerra,
indígenas tapuias praticando o canibalismo, pescadores negros e animais em
meio à flora.
O mapa está recheado de termos e textos explicativos em mais de quatro
línguas como latim, português, tupinambá e holandês. Os termos das línguas
indígenas carecem de estudo mais aprofundado para verificar sua origem,
adaptação e entendimento. Embora a mistura das línguas no primeiro momento
nos leve a refletir sobre a complexidade dos espaços culturais tratados, a escrita
no mapa espelha as políticas defendidas por estrategistas da República das
Províncias Unidas dos Países Baixos. Principalmente, quanto aos resultados da
expansão do império marítimo batavo para o Atlântico, apresentando portos,
rotas comerciais e terras que possibilitaram a construção de espaços coloniais.
Notularum Explicatio
No quadro da legenda geral chamado “Notularum Explicatio”, situado na parte
central inferior do mapa, Marcgrave incorpora toda uma série de itens que nos
permitem uma leitura do mapa em sua parte terrestre, dada em função dos
diversos interesses geoeconômicos que se refletem no contexto das rotas
marítimas. O quadro oferece nomenclaturas escritas em português e em tupi,
com sua respectiva correspondência em latim, língua culta e de prestígio
utilizada na cartografia europeia moderna. A leitura em três idiomas incluindo
uma língua nativa do Brasil indica que o público ao qual se dirigia este mapa,
que por suas características murais a ser exposto em ocasiões especiais, deveria
ser curioso e erudito por dominar o latim. A possível razão da utilização do
português e não do holandês no quadro geral seria a vinculação da WIC e de
Maurício de Nassau com os interesses econômicos portugueses durante etapa
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na qual se tenta atrair os luso-brasileiros de Pernambuco para consolidar e
rentabilizar o território ocupado.
Um total de 16 itens com seus respectivos símbolos gráficos, exceto o termo
“caminho”, que não tem símbolo, foi relacionado a dois temas principais: a
geografia humana e a geografia econômica dos territórios ocupados pelos
holandeses.
Em relação à geografia humana, primeiro tema, se pretende mostrar a ocupação
do espaço colonial europeu com presença africana e indígena relacionando estes
locais aos com povoações indígenas existentes nas aldea das Indias e aldea das
Tapijya. Chama atenção a utilização do termo genérico Indiarum como conceito
aplicado aos grupos Tupinambás das zonas colonizadas em contraposição às
Aldeas das Tapijya como espaços povoados fora do marco colonial. A diferença
deve-se ao uso de distintos termos em latim: Domus Indiarum, em quanto a casa
ou fogo fixo dos índios do tronco Tupi já integrados no mundo colonial e
Domicilium Tapijyurum como sede/domicílio de indígenas do tronco Macro-Jê,
Cariri e outras línguas não classificadas, localizados no interior e mais
distanciados do controle colonial. A informação Lugar des povoado ou Domicilia
deserta indica aldeias anteriormente ocupadas por grupos que podem ter sido
reduzidos às missões, podem ter sido escravizados, podem ter sido deslocados
por descimentos ou que, ante a pressão portuguesa ou holandesa, abandonaram
suas aldeias por zonas de refúgio no interior. Por outro lado, os estragos que
causariam as epidemias que assolaram os territórios indígenas nos sertões
poderiam explicar alguns despovoamentos nestas e noutras áreas.
Assim, sobre a geografia envolvendo povoamento e presenças humanas
aparecem os seguintes termos:
Português
Latim
Inglês
Villa ou cidade………….Urbs vel civitas
Town or village
Povaçáo…………………Pagus vel vicus
Settlement
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Fortaleza………………..Fortalittum
Fort
Aldea das Indias………..Domus Indiarum
„Indian‟ Village
Aldea das Tapijya………Domicilium Tapijyurum
„Tapuya‟ Village
Igreia……………………Ecclesia
Church or chapel
Caza…………………….Domus
House
Lugar des povoado……..Domicilia deserta
Abandoned
Sobre a perspectiva da geografia econômica o mapa apresenta os espaços dos
engenhos açucareiros, os espaços com rebanhos em currais e outros recursos
como o da água das fontes, das salinas para a indústria do sal holandesa, e o
das rotas de comunicação por vias terrestres e por vias fluviais. Rotas que
ligavam vários pontos geográficos e, por isso, fundamentais para a
rentabilidade econômica dos ditos espaços produtivos que aparecem nos
termos seguintes:
Português
Curral
Caminho
Engº
dagoa
cum Igreia
Engº dagoa sem
Igreia
Engº d bois
cum Igreia
Engº d bois sem
Igreia
Salinas
Fonte,
olhe
dagoa/Canzaba
Latim
Stabula
diversarum
bestiarum
Via
Ingenio, vel Mola Sacchari quoe vi
aquaru rotatur
Idem sine ecclesia
Inglês
Corral
Road, path
Water-powered sugar
mill with Church
Water-powered sugar
mill without Church
Animal-powered
sugar
mill
with/without Church
Ingenio, Seu Mola
Sacchari quoe vi
animaliu
circumagitur
Idem sine ecclesia
Animal-powered
sugar mill without
Church
Saltworks
Spring
Salinae
Fons
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Entre os espaços de produção de açúcar mencionados no mapa, foram
diferenciados os engenhos com igreja dos sem igreja indicando, portanto,
construções arquitetônicas voltadas para cultos e para a representação do poder
religioso. Há ainda um claro interesse em diferenciar os engenhos açucareiros
movidos por água (hidráulicos), chamados Reais, com tecnologia mais
avançada e que davam maior rentabilidade, dos que utilizavam ainda força
animal (bois).
O termo curral usado na legenda relaciona diferentes espaços com a exploração
e utilização estratégica do gado para os objetivos colonizadores como: fonte de
alimentação, indústria do couro, transporte de cargas e como força animal nos
engenhos. O curral representava também um duplo avanço da colonização, pois
ao ocupar espaços interiores fronteiriços através dos estábulos abertos, ao
mesmo tempo, exercia uma constante pressão sobre as populações indígenas
localizadas nos sertões.
Ainda encontra-se neste quadro geral dois termos que fazem referência a
diferentes tipos de paisagens com maior ou menor densidade de vegetação
representando no mapa distintas zonas: a campina e o mato.
Portugués
Latim
Inglês
Campina
Campi
Meadow,
grasslands
Mato
Silvae
Forest, woods
No mapa as áreas com campina correspondem às planícies com poucas árvores
localizadas próximas ao litoral ou aos rios principais, onde, existem zonas de
assentamento e de comunicação entre elas por caminhos e rios. Já o mato ou
silvae representa a mata atlântica, mais espessa e localizada em zonas litorâneas
muitas vezes impenetráveis que serviram como áreas de reservas florestais e
também como áreas de refúgio para indígenas e negros em fuga.
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Quais são os interesses que se refletem no mapa? A quem interessa fazer
constar sobre o que há ou não há nos territórios do Brasil holandês?
Definitivamente, o quadro terminológico expressa as realidades humanas e
econômicas que interagiam no espaço do Brasil holandês nesta época. O mapa
serve como documento para confirmar espaços de ocupação política, econômica
e territorial, onde o controle europeu, populações indígenas colonizadas ou
hostis
(Tupinambá/Tapuias)
e
os
espaços
econômicos
ocidentais
(engenhos/fazendas) acabam por configurar a realidade colonial do Brasilia
Qua Pare Paret Belgis que os holandeses querem mostrar ao mundo.
Além de suas qualidades técnicas e suas dimensões, ele difere dos mapas do
seu tempo pelas informações precisas que sugerem refletir detalhes sobre a
presença de nativos, mestiços e africanos nas estratégias econômicas, políticas e
militares desenvolvidas no período colonial e nas ações de pesquisas científicas
voltadas ao controle do territorial colonial e suas comunicações. Sobre a
presença desses grupos incluem-se as aldeias, suas comunicações por via dos
caminhos indígenas para missões, engenhos, currais, cacimbas, com destaque
para os usados pelos terços de Felipe Camarão e de Henrique Dias em ataques e
defesas dos territórios do Nordeste do Brasil e os usados pelas expedições
científicas realizadas pelo próprio Marcgrave.
As diferentes visões no mapa mural
A cartografia de Marcgrave pode ser interpretada por várias aproximações em
relação a sua visão sobre o mundo colonial atlântico luso-holandês. Uma delas é
a aproximação oferecida através de paisagens realizadas por Frans Post sobre
espaços e ações ocorridas em terra e em mar ilustrados em vinhetas inseridas no
mapa Brasilia qua parte paret Belgis. Sobre os territórios conquistados pelos
holandês no Nordeste do Brasil, o mapa apresenta duas concepções distintas no
sentido do litoral para o interior. Esta bipolaridade permite ver o litoral com um
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olhar de cima apontando para combates navais ocorridos ao longo da costa,
topônimos referentes aos acidentes geográficos e às construções coloniais
distribuídas na costa e regiões da Mata Atlântica; em outra perspectiva em voo
de pássaro o mapa apresenta vinhetas colocadas em espaços deixados em
branco que correspondem ao interior e regiões que compreendem, hoje, o
Agreste e o Sertão nordestino.
As vinhetas de Frans Post sobre espaços socioeconômicos representados por
Marcgrave formam várias cenas, cinco delas enfocam aspectos da vida entre os
nativos, sendo quatro sobre usos e costumes de tapuias e uma referente a um
terço de índios saindo para guerra. Uma única cena é dedicada a um grupo de
negros pescando. Outras três vinhetas tratam sobre um engenho real, um
engenho de farinha e uma missão de índios incluindo aspectos de arquitetura e
de ações desenvolvidas na produção do açúcar, da farinha e dos espaços para
trabalhos religiosos nas missões.
Os espaços urbanos assinalados por símbolos no mapa não receberam vinhetas
nem desenhos especiais como os realizados por Frans Post para o livro de
Barleus. As vilas do litoral, os engenhos e os portos aparecem em número
menor que a soma de aldeias com missões, aldeias tapuias e aldeias da costa. As
aldeias da costa aparecem também em maior número que as casas de
moradores espalhadas pelo litoral e ribeiras de rios e riachos pelo interior o que
denota uma importância maior dada ao mundo agrícola, rural, nativo ou de
populações mestiças.
Em seu mapa mural, Marcgrave assinala também várias expedições científicas e
militares; uma delas se destaca, por se tratar de uma expedição militar
comandada por Felipe Camarão e Henrique Dias. Camarão, um nativo potiguar
e com patente de Governador dos Índios de Pernambuco liderava um terço
armado de índios e o liberto Henrique Dias liderava um terço de negros, ambos
estavam envolvidos na luta contra os holandeses e quilombolas. Nesta
expedição, eles voltavam para Bahia após a perda de Pernambuco para os
holandeses, partindo com eles pelas mesmas trilhas o resto das tropas luso12
brasileiras. Os espaços do interior das capitanias de Sergipe, Pernambuco,
Itamaracá, Paraíba e a do Rio Grande do Norte apresentados no mapa
aparecem controlados por grupos armados de tapuias assinalados pelas
vinhetas de Post.
Negros em liberdade podem ser associados a uma tapera, assinalada pelo termo
“Tapera de Angola”. Certamente um espaço baseado em alianças com diferentes
grupos indígenas instalados em aldeias fora do controle colonial. Negros,
também, foram registrados em vinhetas pescando, festejando e trabalhando em
engenho de açúcar e em outro de farinha como bem ilustrado por Post para nos
aproximar dos detalhes que incluem gestos, usos e vestimentas. Negros
possivelmente estariam trabalhando também nos currais do litoral e interior do
Agreste e do Sertão como confirma a crônica de padre Martinho de Nantes, um
missionário franciscano que teve índios de suas aldeias envolvidos em conflitos
localizadas no médio rio São Francisco com vaqueiros negros e mestiços dos
senhores da Casa da Torre.
Os espaços nas fronteiras entre as áreas de produção colonial e as áreas tapuias
apresentam elementos culturais híbridos, veja-se a cena de caça ao gado nos
sertões representando o aproveitamento da criação solta sem os cuidados do
vaqueiro pelos nativos. Também, observam-se as embarcações indígenas
utilizadas por negros em atividades de pesca no interior e embarcações nativas
colocadas no litoral como sinais de trocas de tecnologia e conhecimentos.
Nas vinhetas sobre os espaços indígenas ainda sem o controle colonial pelos
sertões aparecem cenas de lutas, rituais com canibalismo e redes em campina
para o descanso de um grupo de homens e mulheres tapuias. As crianças
indígenas aparecem em número pequeno e as crianças de escravos negros não
constam nas ilustrações de Post para o mapa, certamente, pelo não interesse na
no tema sobre reprodução da mão de obra escrava nas Américas. Portanto, à
típica cena da família cristã não foi dada importância. Comidas e bebidas são
levadas em cestos, panelas e cabaças como demonstram as cenas sobre os
nativos pelos sertões.
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As armas indígenas parecem pouco amedrontadoras, nenhum destaque foi
dado ao mundo da defesa ou sobre os ataques de tapuias ao mundo colonial do
litoral, como se eles estivessem nas fronteiras coloniais representando uma
ameaça. A luta entre os portugueses e holandeses só aparece no mar e em
pontos ao longo do litoral. Nas guerras pelo domínio da região em destaque, os
caminhos indígenas assinalados indicam ter sido detalhe importante a ser
conhecido. O citado “Caminho de Camarão”, por exemplo, forma uma rota entre
pontos de povoamento indígena, engenhos, fontes de água, missões e currais.
Nas vinhetas e na cartografia são destacadas redes de informações que
acompanhavam
as
rotas
internas
entre
os
diferentes
assentamentos
populacionais incluindo, neste mapa, uma área de negros e índios livres
vivendo no interior indicado pelo local chamado de “Tapera de Angola”. Como
mencionado anteriormente, seria este um dos pontos da rede de grande
interesse para o sistema colonial tanto português quanto holandês. Ressaltado,
portanto, como uma área de fuga de escravos africanos e indígenas para os
territórios pertencentes aos sertões da capitania de Pernambuco. 4 Buscando
explicação sobre a utilização e localização do termo “Tapera de Angola”,
chegamos à conclusão de que sua localização no mapa indica lugar que
corresponde a uma área de fronteira marcada por escrita registrada
verticalmente. Como hipótese, a leitura sugere que esta escrita seria utilizada
como área do espaço controlado por africanos e indígenas, neste caso o velho
Palmares descrito pelos holandeses. (Falta trecho de fonte sobre Palmares Velho
página 170)
4 Chama a atenção a utilização do genérico “Indiarum” como concepto aplicado aos grupos
Tupinambá da costa colonizada, em contraposição as Aldeias das Tapujas como espaços
povoados fora ainda do marco colonial. A diferença e levada aos termos em latino: “Domus
Indiarum”, a casa/morada fixa dos índios Tupinambá reduzidos e “Domicilium Tapijyurum”
como sede/domicilio dos itinerantes Tapuias do interior. A etiqueta de “Lugar despovoado” o
“Domicilia deserta” indicaria zonas o aldeias anteriormente ocupadas por grupos que, o
acabaram sendo reduzidos as aldeias missionares o, grupos que, ante a pressão portuguesa u
holandesa, tem fugido pra as áreas de refúgio nos interiores, lembrando-nos, dos estragos das
epidêmicas que assolaram o território e que poderiam explicar alguns despovoamentos.
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Sobre o termo Angola encontramos uma referência na documentação
portuguesa do século XVII, na qual, em São Tomé e Príncipe, aparecem revoltas
de escravos e formação de um importante quilombo que chamado de “Angola
do Pico”. Vale salientar que nestas ilhas ocorreram as primeiras experiências
com engenhos de açúcar e trabalho escravo africano do Atlântico, associado a
eles as primeiras fugas e revoltas de escravos. Citando parte do texto do
documento: “...escaparam a maior parte dos ditos escravos, e fizeram a sua aldeia num
Pico. E foram-se multiplicando de tal sorte, que, sem receio, com armas de flechas,
destruíram muitos engenhos, e no mesmo ano [1574] [...]. Desbaratando-os os soldados
e apelidando a vitória, desanimaram os negros Angola do Pico”.
Mais tarde, em 1599, o termo volta a aparecer em documento: “Não bastando,
para emenda, os incêndios passados como também não só o levantamento dos Angolas
do Pico” (Pinto, 2006: 71-78). Em terras pernambucanas o termo “Tapera de
Angola” pode ter sido usado para relacionar escravos africanos refugiados em
antigo assentamento indígena denominado Tapera. A localização deste termo no
mapa corresponde com indicação da área do quilombo abandonado do
Palmares Velho que foi encontrado e descrito pelo capitão holandês Blaer, em
1645. Em documentos portugueses escritos durante a segunda metade do século
XVII, utilizou-se o termo “Angola Janga”, que significa pequena Angola, em
referência ao quilombo de Palmares. Nenhuma vinheta representa um
quilombo ou o de Palmares Velho, mas há uma em que Frans Post retrata uma
aldeia com missão.
Na vinheta referente à aldeia indígena com casas e capela de uma missão, a
exemplo das jesuíticas existentes nessa época, um terço indígena marcha
armado para a guerra. Destacam-se nesta saída, também, a presença de
mulheres e crianças carregando utensílios e mantimentos. A cena inclui um
índio entre os guerreiros levando a bandeira tricolor com as insígnias da WIC.
15
Na parte interior do mapa referente à capitania de Pernambuco também é
mostrada cena de um extenso espelho d‟água, onde homens pretos aparecem
pescando. Esta representação tem sido associada por diversos historiadores ao
famoso quilombo dos Palmares com as práticas de pesca para a sua
sobrevivência e atalaia como elemento defensivo de um possível ataque
inimigo. A cena, também, pode ser vista como uma das alternativas que tiveram
os holandeses para conseguir comida através da utilização de pescadores
escravos ou livres no sul da capitania de Pernambuco. Seguindo a tradição de
feitorias de peixe salgado, estes pescadores abasteciam o mercado do Recife
sitiado por luso-brasileiros. Nos documentos holandeses, Verdonch fala da
grande produção de peixe seco “que todo é trazido para Recife”. Mais tarde, em
1674, Pedro de Almeida informou aos oficias da Câmara que pretendia fazer
um ataque a Palmares e, para isso, necessitava de mantimentos, 300 alqueires
de farinha e todo o peixe que se fizesse com o fim de ajudar na entrada ao
quilombo (Curvelo, 2012: 54). A vinheta da cena com homens pretos pescando
não tem, portanto, uma relação com o quilombo por nela estarem apenas negros
pescando.
Uma imagem de uma atalaia também foi pintada por Albert Ekhout no quadro
com escrava africana em primeiro plano. Trata-se de uma obra sobre
aculturação e escravidão no Atlântico, em que figuram plantas, comidas,
vestimentas africanas e americanas e ao fundo do quadro aparece uma atalaia
colocada à beira-mar sendo usada por homens pretos. A escrava está referida
como mulher do Congo e no esboço desenhado pelo pintor ele a apresenta com
a marca N no peito esquerdo, dando a significar que era uma escrava de
Mauricio de Nassau (Parker, 2010: 158-159).
Paisagens Socioeconômicas
A franja costeira do Nordeste do Brasil havia sucedido São Tomé e Príncipe
como principal centro exportador de açúcar e a espetacular decolagem da
produção de cana no Brasil pode ser considerada como o início da revolução
16
açucareira das Américas. Durante os séculos XVI e XVII, o Nordeste baseou sua
economia na produção e exportação de açúcar e o fenômeno açucareiro foi o
principal responsável pelo desenvolvimento do comércio escravista em grande
escala. (Klein, 1986: 43).
A tecnologia de produção de açúcar antes conhecida nas ilhas do Atlântico, da
Madeira até São Tome e Príncipe, chega a Pernambuco e a Paraíba no século
XVI e foi posteriormente aperfeiçoada pelos holandeses, aperfeiçoamento que
parece ter sido um dos principais focos utilizados por Post para a representação
da colonização e produção de açúcar controlada pelos holandeses, depois
implantada no Caribe, convertendo-se, posteriormente, em um referencial na
tecnologia açucareira.
O fato de situar o engenho próximo à área que correspondia à maior produção
açucareira, por exemplo, leva a concluir que e a paisagem de Post funcionava
como uma inclusão de marco visual na construção imagético-discursiva do
espaço geográfico. Nesta paisagem é possível ver o engenho em toda sua força
produtiva: a moagem da cana, o carro de boi sendo descarregado por escravos e
as fornalhas depurando o caldo para preparação do açúcar. Nesta vinheta as
cenas nos informam detalhes sobre a moenda de três cilindros movida à roda
d‟água e, a sua esquerda, mais detalhes sobre a construção da casa-grande e a
senzala.
O fato das pinturas a óleo de Frans Post sobre engenhos serem de engenhos
movidos à água não parece ser uma casualidade. Existe uma clara diferenciação
entre os engenhos movidos por água (hidráulicos) chamados Reais, com
tecnologia mais avançada para serem mais rentáveis, e os movidos por tração
animal (bois). Maiores ou menores, mais ricos ou mais pobres, ele pintou
engenhos movidos à água mostrando nos exemplos pintados as alternativas
tecnológicas da época para este tipo de engenho.
Nos desenhos e pinturas de Post sobre os engenhos no Brasil, índios e escravos
negros não só aparecem trabalhando, mas também em grupos conversando,
17
trocando mercadorias e dançando. Certamente, trocas e relações que se davam
em caminhos, veredas e encruzilhadas onde eles geraram espaços afroindígenas. Por outro lado, os índios não foram retratados trabalhando na
produção do açúcar, mas figuram nos desenhos e quadros de Post
frequentemente nas estradas e caminhos que levavam aos engenhos indicando
que o artista deve tê-los visto enquanto eles se deslocavam entre as áreas
açucareiras levando cestos, mantimentos, produtos manufaturados e crianças
(Soares, 2009: 7). Caminhadas de um engenho a outro também devem ter sido
feitas pelo artista que pintou índios e índias, geralmente em grupos, vestidos
com panos de algodão em modelos diferente aos usados pelos negros por ele
retratados. Segundo Parker, para atrair a atenção do artista os índios deviam
existir em grande número no período em que ele esteve pintando em
Pernambuco (Parker, 2010: 151-167). No entanto, o que a pintura pode indicar é
que existiam mais índios livres que escravizados na produção açucareira, ou
que os holandeses haviam tomado o poder com ajuda dos nativos em troca de
sua liberdade e apoio.
Apesar da exploração do trabalho escravo indígena não aparecer em sua obra, a
do escravo africano foi retratada em quase todos os quadros com engenho e
produção de açúcar como temática. Nestes quadros, assim como no desenho
escolhido para o mapa mural de Marcgrave, os negros escravizados estão
trabalhando sem a sombra de ameaças e de castigos. Os maus tratos existentes
nas condições de trabalho e as relações com os administradores dos engenhos,
se retratados, dariam uma imagem negativa do pensamento calvinista do
trabalho, como se pode ler na descrição do próprio Mauricio de Nassau, feita
para uma exposição oferecida a Luis XIV da França. A descrição acompanhava
uma das 34 pinturas de Post e 8 de Eckhout que compuseram a exposição
levada pelo pintor Paul de Mily, encarregado da entrega das pinturas e de um
catálogo que as descrevia para serem expostas. Um dos quadros descritos por
Nassau não tinha título, mas estava marcado com as letras „GG‟ e vinha assim
descrito no texto guia: “Um engenho de açúcar pela levada, com os seus fornos
onde se cozinha o sumo da cana de que é feito o açúcar. À beira do forno, o fogo
18
é tão ardente que os escravos negros preferem morrer, envenenando-se, que
suportar este calor. Os portugueses, para impedi-los de fugirem, cortam-lhes o
tendão.” (Cabral de Mello, 2010: 325-326). Através desta observação sobre o
quadro não há dúvidas, que esta foi uma das práticas de violência usadas por
colonizadores. No entanto, a violência atribuída aos índios nas cenas de
antropofagia foi uma estratégia ideológica para oferecer a boa imagem do
colonizador em detrimento da imagem sobre os autóctones neste período.
Noutra paisagem desenhada por Post e impressa no mapa mural de Marcgrave,
a farinha de mandioca ganha destaque como o produto nativo consumido por
todos os índios e que servia de sustento para quase todos os habitantes do
Brasil colonial holandês. Como mencionado nos escritos de Hamel, Bas e
Bullestraste, administradores da WIC, o alimento também era muito apreciado
pelos portugueses, nativos e mestiços que os holandeses chamavam brasilianos,
negros e outros europeus que viviam no interior. Durante a guerra entre
portugueses e holandeses a produção de farinha diminui implicando em um
forte aumento de seu preço no mercado do Recife. Nos territórios do Brasil
holandês senhores de engenhos, administradores e mercadores não conseguiam
a farinha necessária para alimentar escravos, tropas holandesas e população
livre em geral. Todos os problemas pela falta da farinha de mandioca e do trigo,
que não chegava regularmente para abastecer os mercados existentes neste
território, obrigou aos proprietários de terras a destinar parte de seus cultivos
anuais ao plantio de mandioca. Os senhores de engenhos, portanto, foram
obrigados a manter plantios de mandioca e sujeitos a inspeções por parte dos
agentes holandeses da colônia (Cabral de Mello, 2010: 294-295).
Nassau ditava uma série de determinações sobre a distribuição da farinha. Na
primeira delas, em cada comarca, se deveria declarar a extensão de terra que
cada um possuía com a finalidade de cobrar do proprietário a obrigação do
plantio, proporcionalmente a essa extensão (Barleus, 2005: 188). Dada a
importância adquirida para a alimentação, a farinha de mandioca passou a ser
um tema de sobrevivência a ser cuidado. Dela se beneficiaram também artistas
19
e cientistas nas diferentes viagens realizadas pelo litoral e interior, como as
realizadas por Marcgrave e Frans Post. Talvez seja a razão de aparecer um
engenho de farinha no mapa, que pode ser visualizado com clara diferença
quando comparado ao engenho de açúcar, e que permite visão na direção oeste,
no vasto sertão do território. A casa de farinha pode ser vista ao lado da
plantação de mandioca, e o trabalho é realizado por escravos negros, com
tecnologia indígena e europeia. Não se utilizam raspadores manuais feitos da
cortiça de palmeiras, mas, sim a partir de uma roda dentada que permite
aumentar consideravelmente a produção, mesmo que esta resulte mais perigosa
para o escravo, que nesta vinheta é representado por negros.
Na vinheta sobre a casa de farinha tão pouco aparece o tipiti indígena para
espremer o caldo venenoso da mandioca; em lugar dele é utilizada uma prensa
hidráulica que permite obter uma produção maior. Por último, o forno de barro
é de uma dimensão importante para permitir tostar a farinha em grandes
quantidades a ser armazenada e distribuída. Este tipo de engenhos exigia que
as plantações de mandioca estivessem ao redor deles e que a coleta e o
transporte dos bulbos de mandioca correspondessem a um sistema diferente do
praticado nas aldeias indígenas que a produziam apenas para o sustento de
seus moradores.
Negros e europeus adaptam o paladar para a farinha de mandioca, um
alimento indígena desconhecido na África e na Europa até o século XVI. De
produto de subsistência de base tecnológica indígena passou a ser um produto
comercializado e exportado. O mapa ressalta a política de Nassau
implementada para suprir as necessidades alimentares do Brasil Holandês, mas
também podemos imaginar como o alimento vinha a ser transportado por
barcos negreiros em direção aos portos africanos, onde ali, esta farinha
elaborada pela mão escrava negra serviria para alimentar os africanos
capturados e embarcados rumo a América (Alencastro, 2000). As culturas da
cana e da mandioca coexistiram muitas vezes na mesma propriedade. A
produção do açúcar dependeu da produção de farinha para alimentar escravos
20
e toda a população dos engenhos, vilas, aldeia e missões. Portanto, parte do
terreno produtor de cana de açúcar passou a ser revertido para a plantação de
mandioca realizada por escravos negros e não só por indígenas como antes.
A alimentação deste período também contava com as carnes como a de gado e
de porco. O termo “curral” se relaciona com a exportação e utilização
estratégica do gado para os objetivos dos colonizadores. Não só foi importante
como fonte de alimentação, indústria do couro, transporte de carga e força
animal nos engenhos, também representava uma frente da colonização,
ocupando espaços interiores fronteiriços e exercendo, ao mesmo tempo, uma
constante pressão (estábulos abertos) sobre as populações indígenas. Vejam-se
no mapa mural os futuros espaços a ocupar, onde, o gado é caçado por nativos
ainda livres da escravidão e das missões, localizados apenas no interior.
A implantação das fazendas de gado e sua reprodução pelo interior, no mapa
marcado como currais, abriram as portas para o extermínio de culturas nativas
que viviam dentro e fora das fronteiras agropecuárias do Nordeste. Pois a
introdução de escravos africanos nos currais assim com o de indígenas
ampliava as área de ocupação colonial e as formas de trabalho indígena nas
áreas das missões voltadas para a fabricação de fibras, cordas, linhas de pesca,
cerâmica ou para os serviços militares prestados ao sistema colonial pelos
sertões dos tapuyas.
Nos territórios mais distantes do litoral, uma cena aparece ilustrando o mapa
com um acampamento de indígenas desenhado por entre a mata com altas
colinas no fundo. A cena representa uma das paisagens „selvagens‟: onde a
vegetação predomina e a arquitetura desaparece. Os únicos sinais de presença
humana sugerem cenas de guerra entre diferentes grupos indígenas, a caça às
emas e o festim canibalesco. Imagens que criaram uma hierarquização dos
grupos étnicos que compunham a sociedade colonial no Brasil holandês e
evidenciaram uma visão neerlandesa a partir de um ranking de gradações que
iam da civilização à selvageria, passando pela barbárie, tendo a indumentária
como atributo de (in) civilidade para cada tipo étnico (Vieira, 2011: 14).
21
Bárbaros e Canibais
Nus, bárbaros, selvagens e antropófagos em imagens e argumentos para a
conversão, escravidão e extermínio de indígenas, foram usadas por políticas
colonialistas. A terra fértil para as novas plantações e para pasto de rebanhos foi
tirada dos nativos por “guerras justas”. A produção de imagens de
antropófagos já vinha com os colonizadores e serviram de etiquetas para captar
a atenção de um público europeu ávido por notícias e descrições sobre as terras
americanas. Em todo caso, foi uma imagem que justificou e facilitou as tarefas
da conquista e colonização que levaram a cabo, portugueses, franceses ou
holandeses.
Quando, em 1549, o mercenário alemão Hans Staden foi capturado pelos
Tupinambá, durante a defesa da fortificação portuguesa de São Felipe, não
imaginava que, oito anos mais tarde, o relato de suas vivências, durante os nove
meses de cativeiro, se converteria em um êxito de vendas que veio a modelar a
opinião europeia sobre os indígenas brasileiros.
A partir dessa obra, gravuras e pinturas reinterpretando livremente a odisseia
de Staden de maneira exagerada tornaram-se comuns em outras, como as tão
conhecidas narrativas das viagens ao Brasil de Jean de Léry, onde são descritos
os costumes dos Tupinambá, ou as de Theodoro de Bry que representam a
visão gráfica Tupinambá mais difundida do final do século XVI até o final do
XVII. A obra do franciscano André Thevet intitulada As singularidades da França
Antártica, 1557, com suas 41 gravuras ajudou também a definir a imagem e a
visão do selvagem canibal da América. Em todos eles se representa e visualiza
sempre o lado mais selvagem e mórbido da antropofagia com cenas do
banquete do ato canibal, ocultadas as explicações rituais e religiosas presentes
da própria narração de Hans Staden.
O título da obra do alemão não poderia ser mais eloquente nem tendencioso na
hora de apresentar aos seus carrascos (captores) nativos: Verdadeira história e
22
descrição de uma paisagem de selvagens, nus e ferozes comedores de gente no Novo
Mundo da América ( Warhaftige Historia und beschreibung eyner landtschafft der
Wilnen Nacketen Grimmigen Menschfresser Leuthen in der Newenwelt America
[1557].(Staden, 1983).
Canibalismo e ferocidade implicam resistência e justificam a aplicação do
conceito de “guerra justa” que tão bons resultados haviam dado já na América
espanhola durante a conquista. Conceito que suscitou a intervenção de teólogos
e juristas do nível de Francisco de Vitoria, de Francisco Suárez ou de Domingo
de Soto, vinculados à famosa Escuela de Salamanca. Da aplicação da “guerra
justa” deriva a escravidão indígena, consequência jurídica tão necessária para
pôr em marcha os espaços econômicos que portugueses e holandeses
desenvolveram no Nordeste do Brasil com constante necessidade de mão de
obra. A implantação dos engenhos de açúcar ou das fazendas agropecuárias
não se explica sem o controle da mão de obra e da utilização do trabalho
escravo.
Um século depois o Padre Cadornega, em sua História Geral das Guerras
Angolanas (1680), justificará o resgate de cativos das práticas caníbais dos
“barbaros” africanos e o tráfico de escravos até o Brasil. Segundo ele: “e com
estes resgates se evitam não haver tantos açougues de carne humana, e instruidos da Fé
de Nosso Senhor Jesus Cristo indo batizados e catequizados se embarcam para as partes
do Brasil ou para outras que têm uso católico” (Cadornega, 1972: 13-14).
É curioso observar como a ocupação territorial de grupos Tupi do litoral
haviam expulsado para o interior diferentes povos que denominaram de
Tapuyas/Tapuias, isto é, termo que os generalizaram como inimigos, em um
claro discurso de superioridade em relação a esses povos. O que parece ter sido
semelhante, no século XVI, quando portugueses contataram com nativos
Tupinambá, Caeté ou Potiguar do litoral e os classificaram todos como índios, e
neste caso como os índios da costa falantes da “língua geral”, bárbaros e
selvagens, portanto, inimigos dos que dão início ao domínio colonial.
23
Sobre os Caetés, por exemplo, foi decretado por parte da coroa portuguesa,
escravidão perpétua em 1562. Os motivos? Sua rebeldia ao contato e à
submissão colonial, além de uma constante prática canibal que havia de ser
extirpada. Os mesmos motivos que levaram aos castelhanos a acusar de hostis e
antropófagos aos caribes das Antilhas Menores com as mesmas consequências
imediatas, a escravidão. Por sorte de Staden, este não foi visto por seus
carrascos como um indivíduo de energia suficiente e “espírito” para ser
sacrificado e consumido ritualmente, assim seus “selvagens, nus, ferozes e
canibais” acabaram por livrarem-se do hospede inconveniente.
Quando os europeus conseguem estabelecer alianças e pactos com grupos da
costa utilizando-os como mão de obra em engenhos, fazendas e cidades, a
fronteira do espaço dito de nativos antropófagos e selvagens se traslada até o
interior dos tapuias.
O Tapuia do século XVII holandês, era o Caeté do XVI português. A ocupação
colonial utilizou sempre aqueles elementos das culturas indígenas que, reais ou
não, pois não se tem confirmação de que os Tapuias praticassem o canibalismo,
facilitavam as estratégias de dominação e de conquista de territórios a
“civilizar”. Por isso, no mapa de Marcgrave, os grupos Tupis do XVII, das
zonas de ocupação holandesa, já não são selvagens, mas são englobados na
categoria de índios (Aldea das Indias). Do outro lado, estão os Tapuias, sem
controle, livres e donos do sertão, que mantiveram uma identidade própria,
definida pelos europeus pela confrontação, ausência de vestimentas, de ordem,
de vontade de ceder e pelos vícios que vão justificar seu controle por parte dos
interesses políticos e econômicos europeus.
No mapa observamos como, apesar de suas atividades de caça tanto de emas
quanto do gado europeu que cobriam de sobra suas necessidades de aportes
proteicos, ao Tapuya é atribuída a festa canibal, atributo pelo qual quase
sempre foram invocados no imaginário europeu do século XVII. Seu mundo é o
24
do “selvagem” e do enfrentamento constante em lutas interétnicas, onde o arco
e as flechas ou o tacape servem para atacar contrários e os preparar para o
festim e o prazer canibal. Seu espaço é o mato, a natureza indomada onde
transita com inteira liberdade para buscar seus recursos alimentícios.
Os Tapuyas foram livres até seu espaço passar a ser necessário para o avanço
colonial; o mesmo gado escapado dos currais, objeto de caça coletiva dos
Tapuias, foi a ponta de lança de um mundo colonial que começava a pressionar
seus territórios. Esta imagem no mapa de Marcgrave representa a interação
entre o mundo selvagem do sertão e o mundo ordenado da colônia. Em seu
nomadismo, os “bárbaros do sertão” resistem a ser índios, a ter domicílio fixo
Domus, o que quer dizer que não querem ser considerados parte de um mundo
alheio a seus interesses que só entende de trabalhos forçados, missões
religiosas, produtividade e aculturação.
Georg Marcgrave nos mostra definitivamente a formação de um mundo
colonial onde primam motivações econômicas e políticas que nada tem a ver
com as realidades nativas dos territórios originais. A visão de um mundo
europeu que exige na maioria das vezes a transformação radical das formas de
vida indígenas e sua entrada forçada na História Moderna da Europa através de
imagens estereotipadas e discursos de marcado caráter eurocêntrico.
Espaços afro-indígenas
Mas, o que move fundamentalmente esta pesquisa é a pergunta sobre o que
aparece no mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis indicando ou
envolvendo afro-indígenas dentro ou fora das rotas europeias e seus espaços
coloniais.
Informações sobre indígenas foram registrados desde o início do século XVI
através de mapas, manuscritos, iconografias e impressos que reuniam ideias e
imagens sobre aspectos da natureza e de populações autóctones voltadas aos
25
interesses políticos e econômicos das metrópoles europeias. Distorcendo,
combinando e reconstruindo elementos da paisagem e de culturas indígenas
existentes no Brasil, no século XVI e no XVII, justificava-se o início da ocupação
e posterior colonização. Alianças entre chefes indígenas e donatários das
capitanias hereditárias, ataques aos índios não aliados e escravidão para os
sobreviventes, assim como, o auxílio de missões religiosas responsáveis pela
redução e submissão de populações nativas aliadas, muitas foram as formas de
relações interétnicas existentes, inclusive entre indígenas de grupos diferentes e
escravos africanos. Sobre indígenas, mestiços e negros, a ideia dada neste mapa
é a de existir espaços e territórios, onde o contato de culturas foi relevante.
Portanto, aparecem espaços geopolíticos com superposição de elementos
culturais indígenas, europeus e africanos. Incluem-se nestes espaços os contatos
entre culturas estando em jogo distintos grupos étnicos de três áreas do
atlântico: uma referente a duas regiões europeias, a da península ibérica e a das
províncias unidas dos países baixos, outra área referente às populações
indígenas do Nordeste brasileiro e, a terceira, a da costa ocidental e da área
centro africana.
A introdução de escravos africanos, a partir de 1530, significou contato entre
culturas tanto durante o trabalho da produção do açúcar quanto no dos currais
que alcançaram o interior dos sertões tapuias. Cada vez mais as fazendas, os
caminhos e as missões com a intervenção colonial, possibilitavam novas
paisagens com afro-indígenas. Na área representada no mapa, diferentes povos
africanos e indígenas envolvidos na produção colonial foram forçados a
deslocamentos caracterizando diásporas fora e dentro do Brasil. As diferentes
experiências foram amalgamadas na encruzilhada de múltiplas relações entre
os diversos povos africanos, povos indígenas e europeus que estiveram em
contato.
26
Alguns escravos se aliaram em lutas contra os portugueses, aproveitando a
chegada dos holandeses a Pernambuco, oferecendo seus serviços militares: “com
arcos e flechas, antigas espadas espanholas, escudos redondos e armas de fogo, e
celebravam as vitórias sobre seus antigos proprietários com batucada e dança”, logo os
portugueses ofereciam a liberdade aos escravos que servissem contra os
holandeses (Gregor Aldenburg, 2004: 363). Eles também fizeram parte do novo
mundo que estavam construindo deixando palavras e termos linguísticos
usados para designar lugares e objetos. Participaram com suas práticas e seus
conhecimentos mágico-religiosos, tecnológicos e artísticos na intersecção com
povos indígenas e europeus no mundo colonial.
A coroa portuguesa, os donatários, os caciques e seus guerreiros indígenas,
negros escravos e quilombolas, holandeses e franceses faziam das lutas um
meio de controlar os espaços políticos e geográficos. As missões com padres
jesuítas e, posteriormente, as de outras ordens religiosas “apregoavam” a
entrada de escravos africanos para abastecer de mão de obra as suas fazendas e
missões como alternativa ao trabalho forçado dos indígenas. No Nordeste
brasileiro, também ocorreram missões de catequese calvinista, como as ativadas
com a ocupação holandesa a Pernambuco que visavam manter alianças com
indígenas, necessários na luta contra os portugueses (Vainfas, 2008: 49). Índios e
negros passaram a conviver também com a imposição do cristianismo, com
aulas de catecismo, de leitura e escrita, mas, sobretudo, ensinava-se aos nativos
a defender os territórios portugueses de seus inimigos e a atacar os territórios
indígenas e de quilombos a serem conquistados. Os nativos catequizados foram
utilizados em lutas guiados por um capitão de índios, que poderia ser o
superior da missão. Líderes indígenas, africanos e afrodescendentes foram
fundamentais para a manutenção das alianças. Seus conhecimentos poderiam
passar por vários campos como do geográfico às línguas e tipos de comunicação
em uso na época.
Várias foram as formas de submissão de negros e índios. Os africanos, por
exemplo, recebiam o “batismo” católico nas costas da África antes de partir
27
para as Américas, mas com a salvação de sua alma vinha a escravidão do corpo.
Também os holandeses utilizaram o calvinismo para atrair a população negra,
para manter a servidão e submissão de escravos no Brasil holandês, para
afiançar as alianças políticas e econômicas com os reis africanos, mas, também,
para contar com eles nas guerras no Brasil e na África holandesa.
Saber como os índios e negros participaram neste processo com seus
conhecimentos e suas ações ou reações pode ser novo, mas imprescindível pra
compreender melhor o mundo colonial. Para os nativos não aliados e rebeldes
estava designada a morte ou a escravidão e a tomada de seus territórios; o
mesmo ocorreu aos quilombolas que, por não se subjugarem ao colonialismo
eram atacados por guerras justas nas quais os quilombolas voltavam como
escravos para engenhos, fazendas e indústrias (Perrone-Moisés, 1992: 115-132).
Acreditamos que se tratava de quilombos afro-indígenas, pois a busca pela
liberdade entre negros e índios escravizados e índios livres das missões levaram
muitos a formarem quilombos pelo Brasil setecentista, em lugares onde era
necessário manter estratégias de comunicação e de alianças com grupos nativos.
A historiografia sobre as elites europeias e o campo de análise para documentos
históricos produzidos por indígenas, mestiços e negros, quando da
transformação da paisagem dos seus territórios, vem a ser um desafio.
Fronteiras, aldeias indígenas, missões religiosas, mocambos, plantações,
colonos, guerras, escravidão, muitos foram os elementos responsáveis por esta
transformação nos antigos territórios dos nativos cariri, potiguar, tabajara,
caetés entre outros indígenas do Nordeste do Brasil. Mas, temos também que
incluir os territórios quilombolas dos palmarinos e outros, com minas, guinés,
entre outros africanos que nele conviveram. Portanto, afro-indígenas
extrapolaram os domínios coloniais criando e participando em mercados
informais por exemplo, de alimentos, cerâmicas e outros utensílios.
Por outro lado, ações diferentes ocorriam em espaços trabalhados por nativos e
africanos no litoral do Brasil, onde se vivia tempos de rotas mercantis e de
produção para os diferentes mercados internos e externos. No Brasil do século
28
XVII, mais precisamente no litoral do Nordeste, o porto do Recife figurava
como o porto holandês mais importante para a saída do açúcar em direção às
refinarias localizadas nos Países Baixos. No porto, onde se armazenava o açúcar
bruto para exportação, estava uma sociedade composta pelas relações de
escravidão e de trabalho livre necessário ao funcionamento do porto, da
administração colonial e do comércio local. Como bem documentado por Jean
Blaeu, em gravura de 1643, feita para a WIC, a empresa com maior número de
ações comercias destinadas ao Atlântico português, o Recife passou a ser o
porto mais focado nos mapas e portulanos detalhados do período por ser o
porto de entrada para a capital do Brasil holandês. Porto utilizado pelos
portugueses e anteriormente pelos indígenas caetés, o local, está carregado de
histórias de sistemas de trocas, de rotas fluviais e marítimas e de conquistas.
O Nordeste aparece no mapa mural de Marcgrave refletindo os tempos de
Nassau e de seus cientistas e artistas, tempo no qual as obras, e esta em
particular, parecem querer resumir em quadros algumas das ações humanas em
cenas de convivências pacíficas. Nas paisagens desenhadas para o mapa de
Marcgrave as cenas de lutas estão restritas às batalhas navais e às guerras
tribais indígenas, esta última colocada fora das áreas produtoras de cana, nos
espaços ainda não conquistados. Nestas cenas, os índios aparecem como
selvagens e como antropófagos, organizados quando ligados à área de missões
e saindo para guerra formando terços militares. O mapa Brasilia qua parte paret
Belgis quer nos contar muitas histórias. Sua atração está na soma dos vários
elementos representados: nos desenhos figurativos, na cartografia geopolítica
da ocupação holandesa e nos textos e palavras soltas que integram
subconjuntos.
Os intermediários
O cartógrafo Hessel Gerritsz registra em sua coleção geográfica que os
apontamentos fornecidos a Kilian van Resenlaer, no ano de 1628, em
29
Amsterdam, pelos nativos Gaspar Paraupaba do Ceará, 50 anos, André
Francisco do Ceará, com 32 anos, potiguar da Bahia da Traição, Antonio
Guirawassanay, Antonio Francisco e Luiz Gaspar, também da Bahia da Traição,
foram utilizados para a realização de mapas referentes ao Nordeste do Brasil
(Souto Maior, 1912: 26-61). Também acreditamos que Pedro Poty, aliado dos
holandeses como comandante das tropas indígenas da Paraíba e parente de
Felipe Camarão, o Capitão-Mor dos Índios do Brasil português, estaria entre os
nativos que dariam informações para a invasão holandesa realizada em 1630.
Ele estava na Bahia da Traição quando da passagem dos holandeses, após a
perda da guerra em Salvador da Bahia, e teria viajado para Holanda juntamente
com outros nativos. Localizados em Amsterdam e Leiden, ele e os outros
indígenas citados aprendem a falar e a escrever holandês, tornam-se
informantes, calvinistas, líderes nativos e estrategistas militares aliados aos
holandeses, quando da preparação e invasão à capitania de Pernambuco, em
1630. Além disso, eles passariam uma visão importante das relações entre
indígenas e do mundo colonial no qual participavam.
Durante o século XVII, muitos cartógrafos, como João Teixeira Albernaz, da
Casa da Índia e da Guiné, atuante entre 1602 a 1649, responsável por 400 cartas
náuticas e 19 atlas, assim como Hessel Gerritsz, Joan Blaeu, Joan Vingboons e
Georg Marcgrave, os últimos contratados pela WIC, teriam tido informações de
nativos para composições de topografia com localização de áreas indígenas.
Certo é que sem essas informações obtidas na África, Ásia, América ou na
Europa não se poderia ter chegado a tantos detalhes para se fazer as conquistas.
Para o desenho de mapas com a grande quantidade de topônimos indígenas e
afro-americanos, cartas e relatos de indígenas potiguares, produzidos a partir
da língua tupi e da escrita chamada "Língua Geral da Costa do Brasil" integram
documentos deste período. A participação nativa na produção documental e
seu conteúdo demonstram que houve uma importante captação do
conhecimento e poder de liderança indígena nas capitanias do Nordeste do
Brasil.
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O mapa de Marcgrave Brasilia qua parte paret Belgis faz referências aos
topônimos indígenas dos territórios colonizados com seus apoios e confirmam
que o conhecimento nativo da geografia foi importante para a construção de
uma nova paisagem e da cartografia histórica do período colonial. Mas, os
índios não foram os únicos, Domingos Fernandes Calabar, filho de Ângela
Álvares, indígena ou negra, com português desconhecido, participou de várias
expedições pelo sertão pernambucano acompanhando tropas portuguesas,
entre 1625 a 1630 (Cabral de Mello, 2010:138-141). Francisco Dias d‟Ávila em
uma entrada pelo sertão, na qual participou Calabar, obteve informações sobre
as trilhas e os caminhos essenciais usados pelos holandeses no Brasil, como
aparece nas informações do relatório de Walbeeck dado a WIC, em 1633
(Puntoni, 2000: 31).
Seus conhecimentos geográficos somavam-se aos das relações com escravos
envolvidos nas táticas de luta contra seus antigos donos e com o mundo
colonial português, para o qual se tornou “traidor” quando se aliou aos
holandeses.
Capturado
pelos
portugueses,
eles
não
o
pouparam,
o
desmembraram e penduraram, depois da entrega de Porto Calvo pelas tropas
holandesas. As importantes informações dadas pelos potiguares que viveram
por conta da WIC na Holanda, pelos judeus sefarditas envolvidos no tráfico de
escravos e nas plantações de açúcar na África, no Nordeste do Brasil e nos
Países Baixos, pelos espiões e, posteriormente, pelos desertores como o jesuíta
Manuel de Moraes, deram a base para a construção do mapa de Marcgrave.
Toda informação foi, por fim, reunida por estratégia da WIC e pelas mãos de
um importante geógrafo e diretor da mesma, Johan de Laet, editor deste mapa
mural.
As redes de informações eram vitais para a sobrevivência dos grupos nativos e
afro-americanos, como se constata no diário de viagem do capitão Blaer, chefe
da expedição holandesa contra Palmares em 1645: “…ainda mataram os nossos
brasilienses dois ou três negros no pântano vizinho; disseram ainda os negros
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pegados que o seu rei sabia da nossa chegada por ter sido avisado das Alagoas”
(Carneiro, 1988: 256).
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Espaços Afro-indígenas no mapa Brasilia qua parte paret Belgis