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Religiosos portugueses e franceses na Singapura
do século XIX. Notícias de desentendimentos na
correspondência diplomática portuguesa1
Maria de Jesus Espada2
Embaixada de Portugal em Pequim
Introdução:
Portugueses e luso-descendentes na fundação de Singapura
Em 21 de Dezembro de 1884, D. António Joaquim de Medeiros, prelado
de Macau, refere numa carta que:
“Na ilha de Singapura temos uma igreja na cidade com 1200 cristãos e
dois sacerdotes. Em Malaca, conta o padroado uma igreja, duas capelas, dois mil cristãos e três missionários (...). Todas as famílias cristãs
das duas missões falam português e não querem ser catequizadas em
outra língua. Dizem-se descendentes dos portugueses e nisto fazem
1
Estudo efectuado a partir da Dissertação de Mestrado terminada em 2005 com o título Singa Leão Pura Cidade: Laços e Traços Identitários de uma Comunidade LusoDescendente na Cidade do Leão, na Universidade Aberta, sob a orientação da Prof.
Doutora Ana Paula Avelar. Os nossos agradecimentos à Dr.ª Isabel Fevereiro do Arquivo
Histórico-Diplomático do MNE pelo apoio na pesquisa efectuada no acervo desse Arquivo. Acerca do tema vide Maria de Jesus Espada, “O Olhar Português sobre Singapura:
Reflexões da Academia Portuguesa em Finais do Século XIX”, Daxiyangguo, n.º 8,
2005, pp. 155-170 e idem, “Portuguese Cultural Heritage in Southeast Asia: The Eurasian Communities’ Quest for Survival. 16th to 19th Centuries”, Jurnal Kajian Wilayah
Eropa (Journal of European Area Studies), Jacarta, Universitas Indonesia (Universidade
da Indonésia), Maio, 2007, pp. 106-120.
2
Doutoranda na Universidade Aberta (Lisboa).
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Maria de Jesus Espada
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consistir a sua maior glória (...). Os nossos cristãos não se sujeitarão
aos padres franceses, e isto acabam eles de o declarar ao próprio vigário apostólico. Outra razão para não cedermos Singapura é ser ela um
interposto entre Macau e Timor (...). Além disto, temos em Singapura
empregada em prédios urbanos a maior parte do capital pertencente
às Missões da China para cuja administração precisamos de manter ali
um Padre (…).”3
Para compreendermos a presença de católicos portugueses na
ilha de Singapura, em finais do século XIX, impõe-se uma breve abordagem à história da cidade. Esta relata a evolução de uma sociedade,
numa ilha pesqueira, que desponta em inícios do mesmo século e que,
sendo composta principalmente por migrantes, se vem a transformar
numa grande metrópole e numa próspera cidade-Estado.
Figura central desta história é Sir Stamford Raffles, governador
da Companhia das Índias Orientais Inglesas em Benculen, na ilha de
Samatra, que propôs, em 1818, ao governador-geral da Índia, Lord
Hastings, que se encontrava em Calcutá, a abertura de um porto a leste do Estreito de Malaca, que permitisse um livre acesso ao ExtremoOriente, de modo a assentir o trato britânico nestes mares. Vendo o
seu plano aceite, Raffles é nomeado agente de Hastings e parte de Pe4
nang com cinco navios equipados com canhões e soldados .
Logo pela manhã de 29 de Janeiro de 1819, Raffles encontra-se,
5
em Singapura, com o chefe nativo – o Temengong de Johore, Abdul
Rahman – vindo a concluir um tratado que lhe permite o estabelecimento de uma feitoria e que apoia os interesses britânicos de controlo
de Batávia e Malaca contra os holandeses. Chama depois a si o filho
mais velho do falecido Sultão de Johore e reconhece-o como sucessor
de seu pai.
3
Citado por Manuel TEIXEIRA, Portugal em Singapura, Macau, Imprensa Nacional,
1985, p. 150.
4
Cf. Ibidem, p. 15.
5
O Temengong era um indivíduo que possuía um cargo administrativo na estrutura
organizativa de uma cidade malaia e tinha funções de segurança interna e de jurisdição sobre as comunidades nativas. Cf. João Pedro de Campos GUIMARÃES e José Maria
Cabral Ferreira, O Bairro Português de Malaca, Porto, Afrontamento, 1996, p. 17.
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Religiosos Portugueses e Franceses na Singapura do séc. XIX
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Chegado a Singapura em 1 de Fevereiro, o novo Sultão Hussein é
proclamado no dia 6 e, nesse mesmo dia, assina um tratado com
Raffles, data que marca o nascimento da Cidade do Leão como feitoria
britânica. Raffles afirma então: “Singapore is a child of my own. But for
my Malay studies I should hardly have known that such a place existed,
not only the European but the Indian world was also ignorant of it.
6
What Malta is in the West, that may Singapore become in the East” .
Singapura tem, à época, apenas 150 habitantes: 30 chineses e
7
os restantes malaios (da etnia orang laut ). Oferece uma localização
esplêndida, um porto natural e água potável suficiente. Em Junho de
1819, Raffles escreve: “já se reuniram sob a nossa bandeira mais de
8
5000 almas” .
A verdade é que este estabelecimento britânico vem a atrair
pessoas das mais variadas proveniências. Em 1824, apresenta já um
total de 10.683 habitantes compostos por 74 europeus – na sua maioria
9
britânicos, alemães, holandeses e franceses – 12 americanos, 15 ára10
bes, 4.850 malaios, 3.317 chineses, 756 indianos e 1.925 buguis . Estes últimos eram comerciantes nativos das ilhas mais a leste que vinham todos os anos, depois da monção, vender os seus produtos (café,
11
especiarias, sarongs , etc.).
A presença e a autoridade britânicas foram-se fazendo sentir
gradualmente. Logo de início, Singapura é administrada por um governador inglês, a que se chama Residente, que depende de Raffles, en-
6
Citado por Manuel TEIXEIRA, The Portuguese Missions in Malacca and Singapore,
1511-1958, vol. III, Singapore, 2.ª Edição, Macau, Instituto Cultural de Macau, 1987
(reed. facsimilada da obra com o mesmo título editada pela Agência Geral do Ultramar,
Lisboa, 1961), p. 9.
7
Literalmente, “orang laut” significa “homens do mar”. Cf. WONG Lai Sim, The Eurasian Population Of Singapore, 1819-1959, Singapore, University of Singapore, Geography Department, 1962/63, p. 13 (texto policopiado).
8
Citado por Manuel TEIXEIRA, Portugal em Singapura, op. cit., p. 16.
9
Cf. GEH Siew Ming, An Account of the European Population in Singapore 1819-1959,
Singapore, University of Singapore, Department of Geography, 1962/63, p. 9 (Texto
Policopiado).
10
Cf. Manuel TEIXEIRA, Portugal em Singapura, op. cit., p. 18.
11
Trata-se de uma peça do vestuário malaio.
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Maria de Jesus Espada
quanto governador de Benculen, sendo que, entre 1823 e 1826, passa
a depender directamente de Bengala.
Raffles faz-se rodear regularmente por artistas encarregados de
registar as imagens topográficas, assim como os monumentos e a história do Sueste Asiático. Um dos seus principais legados é o Plano da
12
Cidade, desenhado sob a sua supervisão em 1822 . O plano baseia-se
na divisão da cidade em distritos funcionais e - ainda que europeus e
asiáticos fossem encorajados a negociar lado a lado e Raffles afirmasse
que “(…) we cannot do better than apply the general principles of British law to all, equally and alike, without distinction of tribe or nation
13
(…)” - a população é segregada em comunidades.
Os europeus estabelecem-se junto ao distrito governamental, os
indianos recebem uma pequena área junto à actual Chulia Street, e os
chineses, que Raffles prevê virem a ser em maior número, ficam a sul
do rio, numa zona a que se chamaria China Town. O Temengong é deslocado do rio para uma grande área entre Tanjong Pagar e Telok Blangah, e o Sultão Hussein, cuja autoridade real é reconhecida por Raffles,
é colocado em Kampong Glam, onde os árabes, os buguis e outros muçulmanos são encorajados a estabelecer-se. Os limites destas zonas
residenciais podem verificar-se no mapa que se segue (pág. seguinte).
Importa chamar a atenção, num pequeno parêntesis, para este
pormenor da organização das comunidades por kampongs, que na Europa correspondia à ideia de bairro. Na verdade, antes mesmo da Expansão Portuguesa, este fenómeno era comum a ambas as áreas do
mundo: podemos referir cidades como Lisboa, com os muçulmanos a
viver na Mouraria e dispondo das suas próprias instituições, ou como
Bruges e Antuérpia, onde cada uma das comunidades estrangeiras vivia numa área delimitada. Na Ásia, entre outros, temos o exemplo de
Malaca, onde, após a conquista pelos portugueses, em 1511, se man14
teve este esquema organizativo , o qual viria, igualmente, a ser per-
12
Cf. Gretchen LIU, Singapore, a Pictorial History 1819-2000, Surrey, Edições Curzon,
2001, p. 19.
13
R. O. WINSTEDT A History of Malaya, 2ª ed., Kuala Lumpur, Marican & Sons SDN.
BHD., 1986, p. 202.
14
Cf. Sanjay SUBRAHMANYAM, O Império Asiático Português, 1500-1700. Uma História
Política e Económica, Lisboa, Difel, Colecção Memória e Sociedade, 1995, p. 316.
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petuado nas colonizações seguintes, no decurso das quais os descendentes dos portugueses adquiriram uma área residencial própria.
Plano da Cidade, por Stamford Raffles15
O mesmo fenómeno teve lugar aquando da criação da cidade de
Batávia, em 1619, quando os holandeses contribuíram para a formação
de um padrão social característico, ao preterirem a vinda dos javaneses em prol dos europeus, acompanhados pelos escravos que os serviam, e dos chineses. Ao redor da cidade de Batávia, formar-se-iam diversas bolsas comunitárias, organizadas de acordo com as regras do
16
colonizador, sendo que cada enclave, bairro ou kampung , possuía o
15
As recomendações apresentadas por Stamford Raffles ao Comité da Cidade foram
incorporadas neste Plano desenhado pelo tenente Phillip Jackson em 1928, segundo J.
Crawfurd, Jornal of an Embassy from the Governor-General of India to the Courts of
Siam and Cochin China, London, 1828, II, p. 323, apud Barbara Leitch Lepoer (ed.),
Singapore: A Country Study, Washington, DC, Library of Congress, 1991, 18
(http://www.cartoko.com/2010/06/plan-of-the-town-of-singapore-by-lieutenant-phillipjackson-1828 - consultado em Junho de 2011).
16
Uma pequena nota para o facto de kampong parecer ser a palavra utilizada em malaio e kampung a correspondente utilizada na língua indonésia, embora por vezes se-
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seu próprio capitão e onde também os descendentes dos portugueses
17
viviam na sua própria área de residência . Refira-se por curiosidade
que, muitas vezes, na prática, os kampungs não eram mais do que algumas cabanas de bambu, dispostas perto de mesquitas ou de alguma
18
zona comercial e rodeadas por coqueiros e bananeiras .
E tal como sucedido aquando da conquista de Malaca pelos portugueses, em 1511, e da criação de Batávia pelos holandeses, em
1619, o estabelecimento de Singapura pelos ingleses envolveu a separação do espaço pelos vários grupos existentes. Para além disto, o governo estabelece-se na margem norte do Rio Singapura e a zona comercial ao longo da margem sul. Os planos de Raffles contemplam
igualmente um jardim botânico, locais de culto e complexos educacionais.
Já em 1824, Singapura é reconhecida oficialmente pelos holandeses como colónia britânica, através do Tratado de Londres, ao mesmo tempo que o Sultão e o Temengong cedem toda a ilha à GrãBretanha. Finalmente, em 1826, dois anos antes da morte de Raffles,
os últimos de uma série de tratados são assinados, que asseguram o
futuro do estabelecimento britânico, cedendo Singapura aos ingleses e
incorporando a ilha, com Malaca e Penang, nos chamados Straits Settlements. A primeira sede do governo dos Estreitos localiza-se em Penang.
Como era natural, a chegada de indivíduos e de famílias de várias proveniências a Singapura implicava a criação de locais de culto e
a procura de missionários com vista à protecção e desenvolvimento
das pertenças religiosas de cada grupo, fosse ele ocidental ou asiático.
Pelo facto de a criação de Singapura também atrair membros da
19
comunidade portuguesa de Malaca , foi necessário um padre católico
jam utilizadas indiferenciadamente pelos autores que consultámos, o que se deve à
proximidade existente entre as duas línguas.
17
Sobre as comunidades luso-descendentes de Jacarta vide Maria de Jesus ESPADA, Io
Dali Vos Mori: Retrato Sumário de uma Comunidade Luso-Descendente em Tugu, Lisboa, Prefácio, 2009.
18
Cf. Maya JAYAPAL, Old Jakarta, Kuala Lumpur, Oxford University Press, 1993, pp. 36-
7.
19
Sobre a presença portuguesa em Malaca vide Luís Filipe THOMAZ, Early Portuguese
Malacca, Macau, CTMCDP e IPM (Co-edição), 2000 (baseado na tese Os Portugueses em
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e
para cuidar deste rebanho, tarefa que é assumida pelo P. Jacob Joaquim Freire Brumber, que era, desde 1813, Assistente do Vigário da
e
a
20
Igreja de S. Pedro de Malaca – o P. dominicano Daniel de St. Teresa .
e
Mas a estada do P. Jacob foi curta, regressando a Malaca em 1824,
pelo que três dos membros da comunidade católica escreveram ao Vigário Apostólico do Sião, Monsenhor Jean Louis Florens, solicitando o
envio de outro padre.
e
Em resposta ao pedido, seria enviado de Macau o P. Francisco
da Silva Pinto e Maia, em 1825, que daria origem à Missão Portuguesa
21
em Singapura . Continua, assim, o trabalho apostólico, com cerca de
200 católicos, iniciado no Sueste Asiático com a Missão de Malaca, cuja
comunidade cristã Campos Guimarães e Cabral Ferreira referem ser “a
mais antiga do Sueste Asiático e dela partiram ou por ela passaram,
como guarda avançada, as missões que primeiramente se estabeleceram, na época Moderna, no Sião, na China, no Japão e no arco inteiro
das inumeráveis ilhas que de Malaca se dispõem no mar, até às portas
22
da Austrália” .
A ausência de lugar de culto, leva-o a conduzir a Missa em casa
de um português, o Dr. José D’Almeida, um dos mais famosos pioneiros
na imigração em Singapura, que deu o seu nome a uma rua que desemboca na famosa Raffles Place, e que chegara em 1825, vindo a ser
um dos líderes da sociedade singapurense.
José de Almeida Carvalho e Silva nasceu em Portugal, em S. Pedro do Sul, em 27 de Novembro de 1784. Viria a trabalhar como cirurgião num navio português que viajaria até Macau, onde casaria com
Rosália Vieira de Sousa e onde se tornaria cirurgião da estação naval
Malaca (1511-1580), submetida pelo autor em Lisboa em 1964) e Manuel LOBATO,
Política e Comércio dos Portugueses na Insulíndia. Malaca e as Molucas de 1575 a
1605, Macau, Instituto Português do Oriente, 1998. Especificamente sobre a origem da
comunidade portuguesa de Malaca remetemos para um artigo que antecede este no
presente blogue: Paulo Jorge de Sousa PINTO, “Os Casados de Malaca, 1511-1641: Estratégias de Adaptação e de Sobrevivência”, Blogue de História Lusófona, IICT, Ano VI,
Junho de 2011, pp. 141-156.
20
Cf. Manuel TEIXEIRA, The Portuguese Missions in Malacca and Singapore, III, op. cit.,
p. 8.
21
Cf. Id., ibidem.
22
Campos GUIMARÃES e Cabral Ferreira, op. cit., p. 94.
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Maria de Jesus Espada
de Macau e director por inerência do hospital civil de S. Rafael. De lá
viajaria várias vezes para Calcutá, após a transferência da sede da
Companhia “Casa de Seguro Mercantil”, de que era sócio. A ida de José
D’Almeida para Goa teria sido consequência dos acontecimentos políticos em Macau, no início da década de 20, nos quais José de Almeida se
entrosaria.
Raffles iria buscar Lord William Farquhar a Goa para o cargo de
Residente na Cidade do Leão. Este, por sua vez, viu-se na incumbência
de escolher gente ligada a profissões essenciais para o desenvolvimento de uma nova cidade. Assim, sabendo da chegada do médico português, propor-lhe-ia a ida para Singapura, proposta que seria aceite por
23
Almeida .
Após a chegada a Singapura, e apercebendo-se das vantagens
24
da localização estratégica desta ilha , José D’Almeida adquiriria algumas terras em 1824 e instalar-se-ia em 1825, erguendo a sua casa na
Beach Road, em Kampong Glam, abrindo um estabelecimento na
Raffles Place e uma firma denominada “José D’Almeida” que se torna25
ria a maior e mais importante da ilha . Para além desta actividade
comercial, o cirurgião português introduz em Singapura algumas variedades novas de fruta, entre elas o Pisang D’Almeida, e dedica-se a
pesquisas agrícolas, publicando, aliás, um artigo de utilidade e valor
sobre a guta-percha, material resinoso que faz hoje parte da maioria
das técnicas odontológicas universalmente utilizadas, e que é um derivado vegetal que José D’Almeida verificou ser usado pelos nativos. Trata-se, como vemos, de um personagem da história da presença portuguesa no Sueste Asiático com um perfil multifacetado.
23
Cf. João GUEDES, “Médico Português Fundador de Singapura”, Revista Macau, Julho
de 2001, pp. 54-61; Manuel Teixeira, Portugal em Singapura, op. cit., p. 46.
24
Cf. P.e Francisco BATA, A Portuguese in Singapore… Dr. José D’Almeida, 1825-1850,
Macau, Imprensa Nacional, 1984, p. 1; Manuel TEIXEIRA, The Portuguese Missions in
Malacca and Singapore, III: op. cit., p. 30; Idem, Portugal em Singapura, op. cit., p. 45.
25
Cf. P.e Francisco BATA, op. cit., pp. 1-2.
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Religiosos Portugueses e Franceses na Singapura do séc. XIX
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1. Padroado Português versus Missões Francesas
Do ponto de vista da hierarquia da Igreja, Singapura havia sido colocada sob jurisdição do vigário apostólico do Sião Ocidental, por decreto
de Leão XII de 22 de Setembro de 1827. Para compreendermos as relações de força que surgiriam, em Singapura, entre os enviados das várias esferas missionárias, em particular, portuguesa e francesa, importa
entender o posicionamento desta nova cidade na arquitectura católica
regional.
Esta estava, primeiro que tudo, inserida no sistema que se convencionou designar de Padroado Português do Oriente e mais especificamente do ramo que se viria a autonomizar, não apenas do ponto de
vista da definição do espaço geográfico, mas também da existência de
uma instituição financeira própria. Falamos do Padroado Português do
Extremo Oriente, centrado na diocese de Macau e abrangendo os territórios de Malaca e Singapura, e da administração dos “Bens das Mis26
sões Portuguesas na China” . Charles R. Boxer define genericamente o
conceito de Padroado Português como ”uma combinação de direitos,
privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa de Portugal como
patrona das missões e instituições eclesiásticas católicas apostólicas
romanas em vastas regiões da Ásia e no Brasil. Esses direitos e privilégios advinham de uma série de bulas e breves pontifícios, que começaram com a bula Inter caetera de Calisto III em 1456 e culminaram com
27
a bula Praecelsae devotionis de 1514” . Assim, para além do dever de
propagação da fé católica, no sistema de Padroado, ao patrono cabia a
conservação e manutenção das dioceses por si criadas ou a si consig28
nadas pela Santa Sé .
No que diz respeito à ligação à rede de dioceses asiáticas, Singapura seria colocada, de início, sob jurisdição do vigário apostólico do
Sião, muito embora esta dependência viesse a sofrer algumas alterações, como veremos adiante.
26
Cf. Célia REIS, O Padroado Português no Extremo Oriente na Primeira República,
Lisboa, Livros Horizonte, 2007, p. 15.
27
C. R. BOXER, O Império Marítimo Português, 1415-1825, 6ª ed. (revista), Lisboa, Edições 70, 2001, pp. 227-8.
28
Cf. Célia REIS, op. cit., p. 14.
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290
Maria de Jesus Espada
Para além disto, devemos ter em conta que, em resultado de
acontecimentos ocorridos no século XVII, relacionados com a vontade
do rei francês de contrapôr ao poder dos ingleses na Índia e dos holandeses em Batávia, aquele entende enviar missionários franceses para a
Ásia recorrendo às chamadas “Missões Estrangeiras de Paris” (MEP).
Por outro lado, a Santa Sé cria uma instituição nova – a Propaganda
Fide – com vista a controlar o poder que Portugal detém com o envio
de missionários para as dioceses que compõem a rede do Padroado
Português no Oriente. Seria esta instituição que apoiaria a ida de missionários franceses para a Ásia, os quais se revelariam concorrentes
dos portugueses no processo de evangelização.
Daqui decorre que, no século XIX, em Singapura, existe uma outra entidade que é vista como rival pelos religiosos portugueses. De
facto, ademais da presença de católicos portugueses, Singapura conta
também com homens da igreja francesa, sendo que, ao que parece, as
relações entre uns e outros não se revelariam amistosas, conforme pudemos ler na citação com que abrimos o presente artigo.
A provar a existência de uma relação difícil entre as duas representações religiosas, desde cedo, temos, primeiramente, o envio de
correspondência ao soberano português assinada pelos missionários
português e francês e, mais tarde, pelo Cônsul português em Singapura. A análise da correspondência eclesiástica, bem como da oficial, capta a nossa atenção por revelar o sentir de um espaço. Revela também
como a definição das fronteiras nesse mesmo espaço, entre cada um
dos grupos em presença – neste caso, portugueses e franceses – evoca
questões mais profundas dos confrontos que se arrastavam desde o
século XVII.
Assim, a primeira peça de correspondência que encontrámos data do ano de 1832 e consubstancia-se no pedido conjunto dos representantes das duas missões, francesa e portuguesa, ao então Residente britânico, de cedência de uma porção de terreno, para construção de
uma Capela, que se localize preferencialmente na área de residência
da maioria dos Católicos Romanos. Como persuasor de consciência,
comunicam:
“that the difference which unfortunately exists between the representatives of the French and Portuguese Missions in this Settlement has at
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Religiosos Portugueses e Franceses na Singapura do séc. XIX
291
last been amicably terminated, and united by us the Rev. Boucho and
Anselmo Yegros, the delegated representatives of the said Missions”29.
e
O P. Boucho viera, em 1832, de Penang para Singapura, numa
altura em que a população cristã não ultrapassava as 320 ou 330 pes30
e
soas. Por seu lado, o P. Anselmo Yegros era natural de Espanha e
vivia em Manila. De lá partiria para Macau e daí para Goa, sendo depois, em 1832, nomeado superior e vigário da Missão de Singapura, em
e
substituição do P. Pinto e Maia.
Posteriormente, seria enviada uma outra missiva ao Governo loe
cal, desta feita pelo P. Corvezy, em substituição de Boucho, e pelo
e
mesmo P. Anselmo Yegros, solicitando, mais uma vez, “la construction
d’un eglise dans Singapure quand ce but aura eté atteint, nous chercherons a être utiles a la jeunesse et etablissant ici un college ou les
sciences humaines soient enseignent et ou elle reçoive une éducation
31
honete et chretiene.” O P.e Yegros regressaria a Manila em 1833,
e
após o seu acordo com o P. Boucho ser rejeitado pelo governador do
32
arcebispado de Goa .
Não obstante, as boas intenções dos missionários de fortalecimento de relações de amizade entre os católicos portugueses e franceses ver-se-iam goradas em resultado de alterações fundamentais das
circunstâncias, tendo em conta significativas alterações no Padroado
Português do Oriente. Por um lado, Goa havia visto o seu poder metro-
29
Carta assinada pelo missionário francês Boucho e pelo Vigário Delegado do Arcebispado de Goa em Singapura, Anselmo Yegros, remetida em 9 de Outubro de 1832 ao
Residente britânico em Singapura, Bonham. Anexa a José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, Ofício n. 6, remetido ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Maço
1847-1848, Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios
Estrangeiros, 6 de Novembro de 1846 (Manuscrito).
30
Cf. Carta de 1830, remetida por Mons. Bartolomeu Bruguière ao Coadjutor do Vigário
Apostólico do Sião, citada por Manuel TEIXEIRA, Portugal em Singapura, p. 166.
31
Carta assinada pelos missionários francês e português, Courvezy e Yegros, dirigida
ao Governador de Singapura, s.d., anexa a José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, Ofício n. 6 remetido ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Maço 1847-1848,
Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros,
6 de Novembro de 1846 (Manuscrito).
32
Cf. Manuel Teixeira, Portugal em Singapura, op. cit., p. 306.
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Maria de Jesus Espada
politano ser decretado por carta pastoral em 1832. Por outro, em 24 de
Abril de 1838, pelo Breve Multa Praeclare, que extingue privilégios e
encargos em terras não sujeitas politicamente a Portugal, o Padroado
Português, que já se encontrava em agonia, recebe um golpe fatal de
Gregório XVI: fica restringido a todos os territórios do arcebispado de
Goa e das outras dioceses sufragâneas, extinguindo-se a diocese de
Malaca, cujo território é confiado pela Santa Sé aos vigários-apostólicos
franceses.
Nesta fase, a importância de Singapura devida ao seu rápido desenvolvimento leva a que a sede do governo dos Estreitos seja deslocada de Penang para esta cidade, onde o governador fixa residência
33
em 1838 .
Após a extinção da diocese de Malaca, em 1838, deu-se o fortalecimento da presença religiosa francesa na península malaia com o
advento das MEP. O objectivo imediato da Missão Francesa era “que34
brar a autoridade de Portugal e estabelecer um clero indígena” . A
indigenização do clero (que viria a ser maioritariamente constituído por
chineses e indianos) permitiu a criação de uma Igreja nativa, adaptada
à cultura local, o que leva a que, no princípio do século XX, para alguns
autores, se possa dizer que a Igreja conseguiu a almejada implantação
35
na Península Malaia .
A consequência foi a formação de uma Igreja na península malaia com dois ramos e duas comunidades: uma, que seguia as Missões
Estrangeiras de Paris, e outra, “uma pequena minoria confinada a Malaca, e mais tarde a uma paróquia de Singapura, que sob a orientação
de missionários portugueses, ou pelo menos dependendo do Padroado,
36
prosseguia a sua rota isolada, precária e característica” .
Alguns anos depois, em 1840, o decreto de Leão XII, que colocava Singapura sob jurisdição do vigário apostólico do Sião Ocidental, é
confirmado por Gregório XVI, mas este documento papal não é reconhecido em Goa.
33
Id., ibid, pp. 18-9.
34
Williams citado por Campos GUIMARÃES e Cabral FERREIRA, op. cit., p. 104.
35
Cf. Ibidem.
36
Ibidem, p. 106.
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2. Sinais dos desentendimentos religiosos na correspondência
oficial
Devolvendo a nossa atenção aos acontecimentos em Singapura, impore
ta referir que o P. Maia construiria uma igreja portuguesa em Singapura por volta de 1840.
Raffles havia previsto que esta ilha seria rapidamente povoada
e, efectivamente, em 1841, a população perfaz os 35 mil habitantes,
dos quais 200 são europeus. Nesta altura, é recrutado um novo assessor do governo britânico que descreve nas suas memórias, Glimpses
into Life in Malayan Lands, os vários bairros comunitários: o europeu,
“studded with handsome mansions and villas of the merchants and of37
ficials” ; o chinês, “compactly built upon and resounded with very
38
busy traffic” , enquanto que os malaios “lived in villages in the suburbs and their houses were constructed of wood and thatched with
leaves. In the Chinese and Malay quarters, fire frequently broke out,
39
spreading devastation into hundreds of families” .
Em Singapura, embora não se saiba ao certo se Raffles delimitou
uma zona para os descendentes dos portugueses, Kampong Glam viria
a ser, em meados do séc. XIX, uma das áreas residenciais da comunidade cristã de descendência europeia, em geral, assim como dos descendentes dos portugueses.
Já em 1842, José D’Almeida regressa em visita a Portugal, sendo
nessa altura nomeado Cônsul-Geral português em Singapura, vindo a
receber sucessivos reconhecimentos pelo seu trabalho tanto pela Rai40
nha portuguesa como pelo monarca inglês .
O novo Cônsul viria a ter vinte filhos, de dois casamentos, dos
quais sobreviveram dez raparigas e quatro rapazes. A título de curiosidade, vale a pena citar um excerto da lavra de Edward Hodges Cree
(1814-1901), cirurgião ao serviço da Royal Navy britânica, que na sua
37
Citado por Gretchen LIU, op. cit., p. 34.
38
Ibidem.
39
Ibidem.
40
Cf. Fr. F. BATA, op. cit., p. 1; Manuel TEIXEIRA, The Portuguese Missions in Malacca
and Singapore, 1511-1958, Vol. III: Singapore, p. 30; Idem, Portugal em Singapura, pp.
43-48.
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294
segunda visita a Singapura, em 1844, foi recebido em casa do Dr. José
D’Almeida e registou, em relação aos seus filhos:
“They are all very musical and get up delightful concerts in their house,
twice a week, to which some of us have a general invitation. The ladies
are not good looking – Portuguese seldom are… but they sing and play
various instruments divinely”41.
Quadro I - Habitantes de Singapura em 1845
Europeos
Indo Britons
Armenios
Malayos
Chinos
Bengalis
Malabares e Coromandeis
Arabs
Javaneses
Portuguezes e subditos
Buguizes
Cafres
Judios
Parses
Boyanezy
Cochinchineses
Total
Galés
Militares
Policias
Doentes nos Hospitais dos
pobres e invalidos
Doentes no Hospital Europeo
Itinerantes
Total
Homens
Mulheres
Total
204
158
38
6.217
28.765
350
3.948
210
1.149
214
1.340
26
37
14
223
2
42.795
132
122
27
4.818
3.567
200
700
50
182
168
631
33
15
―
9
6
10.460
336
280
65
11.035
32.332
550
4.648
260
1.331
382
1.971
59
52
14
232
8
53.555
1.500
487
187
70
17
3.000
5.261
58.816
Fonte: “Censo dos Habitantes de Singapore e suas dependencias tomado em Julho de
1845”, José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, anexo ao Ofício n.º 3, remetido em 31 de Outubro de 1845 do Consulado Geral de Singapura ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, MNE, Arquivo Histórico-Diplomático (Lisboa), Caixa 704 (mss.).
41
Citado por Gretchen LIU, op. cit., p. 25.
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Religiosos Portugueses e Franceses na Singapura do séc. XIX
295
Em ofício datado de 31 de Outubro de 1845, José D’Almeida dá
conta do censo da população de Singapura e suas dependências, efectuado em Julho do mesmo ano, no qual, num total de 52.347 habitantes (42.793 homens e 10.454 mulheres), se contam 336 europeus (204
homens e 132 mulheres), 280 indo-bretões (152 homens e 122 mulheres), e 382 “portugueses e súbditos” (214 homens e 168 mulheres),
entre outros, conforme quadro supra.
Subsiste a dificuldade em entrever, nestes números, como foram
classificados os cristãos portugueses e europeus em geral, no entanto,
tal deve-se, por um lado, à inexactidão dos levantamentos estatísticos
da época, e, por outro, à incerteza sobre como denominar esta nova
classe. A este propósito, Myrna Braga-Blake menciona a indefinição na
denominação desta comunidade pelas próprias autoridades eclesiásticas: “In the mid-19th century, Father Beurel variously described his
Eurasian parishioners as European, Indo-Briton, Indo-Portuguese, Portuguese Native Christian, Malacca Native Christian or simply Native
42
Christian” .
No que diz respeito ao conceito de eurasiano, referido pela autora desta citação, este é geralmente utilizado para referir filhos de pais
europeus e asiáticos, sendo a sua mais lata utilização a que se refere a
asiáticos cuja linha genealógica consegue ser traçada até à presença
43
de um antepassado europeu . A designação foi pela primeira vez utilizada por Lord Hastings, referindo-se aos filhos de pai europeu e mãe
asiática, apesar de o termo mais utilizado por Hastings vir a ser o de
“indo-bretão”. Na verdade, eurasiano viria a ser usado, não na Índia,
mas em Singapura, onde foi pela primeira vez empregado no censo de
1849, embora fosse apenas definitivamente adoptado a partir da con44
tagem populacional de 1871 .
Regressando à nossa análise da correspondência oficial do representante português em Singapura, em ofício de 7 de Dezembro de
1846, o Cônsul de Portugal em Singapura, José D’Almeida, dá conta do
desenvolvimento de alguns acontecimentos que se revelam úteis para
42
Myrna BRAGA-BLAKE e Ann Ebert-Oehlers, Singapore Eurasians Memories and
Hopes, Singapura, Times Editions, 1992, p. 25.
43
Cf. WONG Lai Sim, op. cit., p. 12.
44
Cf. Ibidem.
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Maria de Jesus Espada
296
o entendimento das difíceis relações entre as duas congregações católicas (portuguesa e francesa), mas também entre católicos e protestantes, relatando alguns episódios que o preocupam e que estão relacionados com a proximidade do local do enterro dos católicos e dos protestantes.
Assim, José D’Almeida comunica ao Ministro português dos Negócios Estrangeiros o seguinte:
“Incluso achará V. Ex.ª um plano do Cemitério de Singapura designado
com o n.º 1. Este Cemitério pertence ao Governo local, em cujo gratuitamente tem permitido enterraremse os Catholicos Romanos promiscuamente com os Protestantes; sendo aliás limitado em relação à população, o Governo o acrescentou á sua custa, e mandou fazer uma
separação reservando um dos lados para os Catholicos Romanos”45.
Este lado do cemitério, no mapa proposto pelo Residente ao Padre Maia, dizia respeito a “uma parte, cuja é aqui vai designada com o
46
nome Portuguese Burying Ground como V.Ex.ª verá” .
De acordo com o relato de José D’Almeida, o governo de Singapura acedeu à separação dos terrenos e à concessão de uma porção
maior da que tinham anteriormente os católicos portugueses. No entanto, um pouco mais à frente, no mesmo ofício, Almeida relata como o
e
P. Maia acabaria por receber do Residente um novo mapa, segundo o
qual a parte que caberia em princípio aos portugueses estava designada de French Burying Ground, ao que ele comenta:
“esta designação a manter daria aos Propagandistas um titulo que é
em oposição aos nossos direitos e reclamações, em consequência do
que officiei ao Residente, protestando contra as medidas adoptadas, e
contra qualquer outro acto dos Propagandistas, que importasse reconhecimento ou jurisdição, pedindo ao mesmo tempo houvesse de anullar a decisão tomada, que não concentraria de modo algum que a parte
do Cemitério destinado para os Catholicos Romanos tivesse outra al-
45
José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, Ofício n.º 7, remetido ao Ministro
dos Negócios Estrangeiros, Maço 1847-1848, Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico e
Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 6 de Novembro de 1846 (Manuscrito).
46
Ibidem.
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297
guma designação senão a de Cemitério dos Catholicos Romanos, ao
que felizmente o Residente anuiu, recolhendo os planos já distribuídos,
e transmitindo outros segundo a minha reclamação”47.
Como vemos, os esforços do representante português teriam os
seus frutos e o cemitério viria a possuir uma designação mais própria
do ponto de vista do Cônsul português.
Para além da questão mais visível que se consubstanciou numa
disputa na designação de uma parcela de um território, julgamos que
as considerações citadas mostram a animosidade real que, em Singapura, resistia ao advento do espírito cristão, nestes anos do século XIX,
entre as duas igrejas – portuguesa e francesa.
A par destas citações, deparámo-nos com outras na correspondência de José D’Almeida, que contribuem para esta linha de raciocínio,
e que dizem respeito a um fragmento de um ofício datado de 6 de Novembro de 1846, no qual José dá conta da correspondência trocada
e
entre o Residente britânico e o P. Maia, assim como entre o governo
local e os missionários franceses, que designa de “missionários da propaganda”, e que é, uma vez mais, um sinal do mau ambiente vivido,
nos últimos anos, em Singapura, entre as duas igrejas, e que parece
ser assunto do interesse da própria coroa portuguesa. Assim:
“Tomando em toda a consideração a recomendação de V. Ex.ª respectivamente aos Vigários Apostólicos, e mostrar a V. Ex.ª que não tenho
olhado com indiferença esse objecto tão peculiar aos desejos de S. M.
tenho a honra de transmittir a V. Ex.ª incluso a Carta official do Residente de Singapura ao Rev. Padre Maya, em resposta a outra official dirigida pello Rev. Padre Maya, cuja copia lhe forneci: outras sim duas
cópias autenticadas por mim da correspondência entre os Missionários
da Propaganda, e o governo local; estes documentos me parecem da
maior importância para as nossas reclamações como V. Ex.ª poderá
avaliar”48.
47
Ibidem.
48
José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, Ofício n.º 6, remetido ao Ministro
dos Negócios Estrangeiros, Maço 1847-1848, Caixa 704, Lisboa, Arquivo HistóricoDiplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 6 de Novembro de 1846 (Manuscrito).
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Maria de Jesus Espada
Estes excertos dos ofícios dos missionários enviados pelas MEP e
pelo Padroado Português (Boucho, Corvezy e Yegros), datados de 1832,
e já por nós referidos, remetidos por José D’Almeida ao ministério português, mostram o zelo deste Cônsul em participar à coroa portuguesa
avanços das matérias que lhe são caras em terras de Singapura e que,
como vemos, dizem respeito à situação dos católicos membros da Missão Portuguesa, a qual assumia o papel de representante do Real Padroado naquela cidade.
Recordemos que, nestes meados do século XIX, os territórios
abrangidos pelo Padroado Português haviam sido reduzidos pelo Breve
Multa Praeclare, referido supra, aos territórios do arcebispado de Goa e
aos territórios portugueses das outras dioceses sufragâneas, ficando
49
dele separadas as dioceses de Cranganor, Cochim, Malaca e Meliapor .
Malaca ficava, assim, sob a jurisdição do vigário apostólico de Ava e
Pegu, enquanto Singapura permanecia sob a alçada do vigário apostó50
lico do Sião .
O não reconhecimento deste Breve por parte do Governo português, para além dos seus veementes protestos, levaram a que o sucessor de Gregório XVI, Pio IX, recomendasse ao seu Núncio em Lisboa
que encetasse negociações, das quais ficaria encarregue o Conde de
51
Tomar . Este comunicaria, em 1848, o desenvolvimento destas negociações ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, dizendo que, no que
dizia respeito ao direito da coroa portuguesa sobre o Padroado, “deixou
o Internúncio antever a possibilidade de criar um Bispado para salvar o
Padroado da coroa no território sujeito aos ingleses, que naturalmente
não se oporão; mas neste caso hão-de ficar excluídas as ilhas de Sin52
gapura e Pulo Penang” .
Estas negociações decorriam, como vemos, ao tempo em que José D’Almeida faz chegar a sua correspondência a Lisboa, pelo que se
compreende que a religião fosse assunto prioritário para a Coroa portuguesa.
49
Cf. Manuel TEIXEIRA, Portugal em Singapura, p. 164.
50
Cf. Ibidem, p. 165.
51
Cf. Ibidem, p. 167.
52
Citado por Ibidem, p. 168.
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Religiosos Portugueses e Franceses na Singapura do séc. XIX
299
É, assim, neste contexto aguerrido de protecção das áreas de influência do Padroado Português, que, em ofício de 1847, o Cônsul pore
tuguês acusa o P. Maia, devido à sua avançada idade, de ser o culpado de uma situação de decadência da Missão Portuguesa, que pode,
inclusivamente, levar ao desaparecimento da mesma, “tudo devido ao
abandono e maneiras rudes e desabridas do Rev. Padre Francisco da
53
Silva Pinto e Maya para com os Cristãos que seguem a nossa Missão” .
e
Outro sinal da opinião do Cônsul português, sobre a culpa do P.
Maia no pobre desempenho da Missão Portuguesa, surge, alguns meses mais tarde, quando Almeida notifica que, por motivo de doença do
padre português: “Os Christãos estão sem pastor e os Propagandistas
insidiosos trabalhando para os arrebatarem à nossa Missão; esta ur54
gência merece toda atenção do Governo de Sua Majestade” .
Os membros da comunidade luso-descendente, estão, assim, para todos os efeitos, incorporados na maior comunidade católica romana, sendo que a atenção oficial se concentra no perigo da perda de
‘ovelhas’ deste ‘rebanho’ para os concorrentes propagandistas ou, então, na ‘promiscuidade’ nos enterros em locais próximos dos protestantes britânicos.
Recorrentemente, observamos como a Ásia, e, particularmente,
o Sueste Asiático, se transformara, nestes anos idos de Oitocentos,
num palco de competição entre as potências imperiais europeias, com
as mais variadas manifestações políticas e religiosas.
Um outro excerto a referir da correspondência deste representante diplomático português, diz respeito a uma situação que foi considerada de tal modo séria que levou José D’Almeida a defrontar o Resi-
53
José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, Ofício n.º 1, Maço 1847-1848,
Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros,
8 de Fevereiro de 1847 (Manuscrito).
54
José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, Ofício n.º 7, remetido ao Ministro
dos Negócios Estrangeiros, Maço 1847-1848, Caixa 704, Lisboa, Arquivo HistóricoDiplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 6 de Novembro de 1847 (Manuscrito). A mesma chamada de atenção é feita em Ofício n.º 1, Maço 1847-1848, Caixa 704,
Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 7 de Março
de 1848, (Manuscrito), assim como em Ofício n.º 4, Maço 1849-1850, Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2 de Junho de
1849 (Manuscrito).
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300
Maria de Jesus Espada
dente britânico e a fazer dela matéria para uma confrontação diplomática luso-britânica, caso os ingleses não acedessem ao seu pedido de
intervenção num outro caso de desentendimento entre portugueses e
franceses. Residiu a origem deste problema no facto de:
“ter um Christao china por nome Pedro de Santa Maria alias Ah Kye
súbdito da Igreja da Missão Portuguesa, no dia 16 de Novembro exhumado o cadáver de sua mulher, enterrada e assistida pelo Rev. P.e Manoel J. Gomes, havia mais de um mês, e mudado para outro lugar contíguo com assistência do Padre Beurel da Missão da Propaganda, segundo as informações que tive; e dando-se que a nossa Missão se acha
sem Sacerdote algum excepto o Padre Maya, invalido como já tive a
honra de informar a V.Ex.ª. O marido da defunta pretende celebrar alguns officios pela alma da sua defunta mulher e não havendo sacerdote da nossa Missão se dirigiu ao Padre Beurel, cujo me consta assentiu
com a condição de fazer remover o cadáver para outra sepultura no
mesmo cemitério, a assistência deste ao cerimonial do segundo interro
confirma o facto”55.
Enquanto representante do Governo de Sua Majestade, o nosso
Cônsul entendeu dever requerer justificações ao Residente, e, inclusivamente, exigir que a trasladação do corpo para outra sepultura fosse
impedida, matéria em que, ao que parece, não foi bem sucedido.
Esta passagem, para além de revelar a inimizade ad aeternum
das missões portuguesa e francesa, indicia que a comunidade mestiça
de Singapura, pelo menos aquela parte que era fiel à Missão Portuguesa, incorporava no seu seio descendentes de chineses que, por meio da
adesão à religião católica, recebiam nome português.
e
Acontece que, tal como o P. Maia, também o nosso Cônsul sofria
nestes meados do século XIX de várias mazelas em resultado da avançada idade, motivo pelo qual, em Abril de 1849, Almeida solicita a sua
exoneração do cargo de Cônsul em Singapura, porque as “minhas moléstias, me inhabilitão para desempenhar como devo tão importante,
mas oneroso cargo, alem de que tenho de atender aos meus negócios
55
José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, Ofício n.º 10, Maço 1847-1848,
Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros,
6 de Dezembro de 1847 (Manuscrito).
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301
56
particulares” , deplorando que os seus “voluntários serviços tenhão
57
sido tão estéreis” . Não obstante, no mesmo ano de 1849, acede à
vontade do Ministro de continuar a prestar serviço, sem qualquer re58
muneração, a Sua Majestade e à Nação .
Para finalizar a consulta da correspondência deste Cônsul, sobre
o tema que nos ocupa, resta-nos referir como ficou o caso da situação
de ‘abandono’ da Missão Portuguesa noticiado por José D’Almeida. Este
e
dá conta do falecimento do P. Francisco da Silva Pinto e Maia, ocorrido
e
em Fevereiro de 1850 e informa que o novo P. da Missão Portuguesa
e
a
(P. Vicente de St. Catarina) era um “filho do país” enviado de Goa, o
qual “ahinda que de boa moral e bom carácter, talvez não tenha a
energia necessária para contrabalançar o ardil e malícia dos Propagandistas, cujos não perdem um momento, e se aproveitam de todos os
59
meios a fim de ultimarem a sua usurpação” .
De facto, ao falecer, em 1850, o Pe. Maia viria deixara os seus
bens para a construção de uma nova igreja, já que a primeira se revelara demasiado pequena, tendo em conta o aumento do número de
membros da congregação. No entanto, 1850 seria também o ano da
morte do Cônsul em Singapura, então com 66 anos de idade. Em carta
datada de 31 de Outubro de 1850, o filho primogénito do Dr. José
D’Almeida, Joaquim, participa a morte de seu pai, após “breve mas do60
lorosa moléstia” .
O novo local de culto viria a designar-se Igreja de S. José, e seria
e
a
edificado pelo P. Vicente de St. Catarina, entre 1851 e 1853. Para lá
56
José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, Ofício n.º 3, Maço 1849-1850,
Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros,
7 de Abril de 1849 (Manuscrito).
57
Ibidem.
58
Cf. José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, Carta particular, Maço 18491850, Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 10 de Setembro de 1849 (Manuscrito).
59
José D’Almeida, Cônsul de Portugal em Singapura, Ofício n.º 2, Maço 1849-1850,
Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros,
6 de Abril de 1850 (Manuscrito).
60
Joaquim de ALMEIDA, Carta ao Ministro e Secretário do Estado dos Negócios Estrangeiros, Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 31 de Outubro de 1850 (Manuscrito).
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302
e
seriam transportados os restos mortais do P. Maia, sob uma inscrição
que o nomeava “Fundador da Missão Catholica R. do Real Padroado
61
P’guez Em Singapura” .
A construção da nova igreja não contribuiria para o amenizar das
relações entre portugueses e franceses, já que estes haviam eles próprios construído a sua igreja, estando os membros da comunidade católica livres de escolha entre uma ou outra. Assim, em Singapura, os
eurasianos recordam como, na sua comunidade, havia quem, no virar
do século, servisse na Igreja de S. José e quem o fizesse na missão
francesa do Bom Pastor:
“What they [the Eurasians] had in common was a strong Roman Catholic tradition, family members served in either St. Joseph’s Church (the
Portuguese Mission) or the Good Shepherd Church (the French Mission).
The elders served as church wardens, organists, choir masters and
members of church councils while the children served as altar boys or
members in the various religious organizations such as the Legion of
Mary, St. Vincent de Paul, etc”62.
3. Alterações ao Padroado: as Concordatas
Entretanto, no século XIX, o sistema de padroado tomou nova forma,
enquadradando-se geograficamente o Padroado Português através da
assinatura de Concordatas pelo Estado com a Santa Sé.
A primeira Concordata referente especificamente ao Padroado
surgiu em 1857 e oficializou a separação geográfica dividindo-o em
duas partes: a China e a Índia. O art. 2º referia-se às catedrais na Índia
e o seguinte dedicava-se aos direitos de Padroado na China situados na
63
Igreja Episcopal de Macau . No que diz respeito à situação das representações religiosas portuguesas no Sueste Asiático, e contrariando as
decisões anteriormente referidas, na Concordata de 1857, acordou-se
61
Manuel TEIXEIRA, The Portuguese Missions in Malacca and Singapore, 1511-1958,
Vol. III: Singapore, p. 69.
62
Myrna BRAGA-BLAKE, op. cit., p. 54.
63
Cf. Célia REIS, op.cit., p. 14.
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Religiosos Portugueses e Franceses na Singapura do séc. XIX
303
que a diocese de Malaca deveria ser restaurada e colocada sob a alça64
da de um bispo português .
Um ano mais tarde - talvez em resultado da correspondência enviada por comerciantes portugueses, que defendiam a primazia de Joaquim de Almeida para o cargo de Cônsul-Geral de Portugal nos Estreitos, em detrimento do então Cônsul de Portugal, indicado por Macau,
tendo em conta que este não dominava a língua portuguesa - em 20 de
Fevereiro de 1858, Joaquim escreve ao Ministério acusando notícia da
honra em ser nomeado, por S. M. El Rey, Cônsul-Geral da Nação Portuguesa em Singapura, Malaca e suas dependências, por Decreto de 9 de
Setembro de 1857.
Em 3 de Setembro de 1858, o novo Cônsul-Geral daria notícia de
como a posição geo-estratégica da colónia de Singapura, no seio da
administração britânica, estaria a ser fortalecida pelo governo britânico, “tornando-a outra Malta ou Gibraltar, allem da intenção de estabe65
lecer aqui a principal estação naval em lugar de Trencomali” .
Vemos, assim, que, para além da importância ao nível do sistema de padroado, Singapura assume um papel de destaque na administração dos entrepostos britânicos na Ásia. Por outro lado, devemos ter
em conta, também, o interesse português nas rotas e relações de comércio da Ásia oitocentista, embora esta relevância não seja decorrente, na maior parte das vezes, directamente, de Portugal, mas de Macau. Isto porque: “Nas primeiras décadas do século XIX, numa linha de
clara e consistente continuidade, Macau tudo fez para manter a abertu66
ra aos mercados circundantes da Ásia do Sueste e do Mar da China” .
Esta nova arquitectura comercial havia sido desenhada pelo então ouvidor de Macau, Miguel de Arriaga Brum da Silveira e, nela, Singapura surgia, por um lado, como concorrente comercial que contribuía
para a ameaça de declínio económico que pairava sobre um dos par-
64
Cf. Campos GUIMARÃES e Cabral Ferreira, op. cit., p. 107.
65
Joaquim de ALMEIDA, Cônsul Geral de Portugal em Singapura, Malaca e suas dependências, Carta ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico e Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 3 de Setembro de 1858.
66
Jorge Santos ALVES, “Diplomacia e Comércio de Macau na Ásia do Sueste, em Inícios
do Século XIX”, Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, N.º 7, Lisboa, Instituto Camões, Out./Dez. 1999, pp. 129-130.
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Maria de Jesus Espada
ceiros diplomáticos e comerciais deste abrangente esboço, mais exac67
tamente, sobre Terengganu , mas por outro, como porto franco de
escala na rota das mercadorias, no âmbito de um projecto negocial
68
verdadeiramente panoceânico .
Assim, Joaquim de Almeida roga ao rei português a manutenção
do direito do Real Padroado nos Estreitos e na Cidade do Leão, bem
como o envio de um padre que domine a língua inglesa e que possa
representar mais eficazmente a Missão, remetendo, em anexo ao ofício, uma Petição dirigida à coroa portuguesa pelos cristãos da Igreja de
S. José, a quem designa de “súbditos de S. M.”.
Já em Agosto do ano seguinte, Joaquim de Almeida remeteria
nova petição, na qual os “freguezes da Igreja de S. José em Singapura
69
do Real Padroado Portuguez” , agradecendo a graça na manutenção
da Missão Portuguesa, “arrancando-nos das garras dos Padres France70
ses da Propaganda” , pergunta agora por notícias sobre o acordado na
referida Concordata de 1857, pela qual se havia decidido a restauração
das dioceses extintas pelo Breve Multa Praeclare, colocando-as sob a
jurisdição do arcebispado de Goa, ao mesmo tempo que se separava a
ilha de Penang da diocese de Malaca e se integrava Singapura nesta
71
mesma diocese .
O motivo por que os cristãos de Singapura clamavam por notícias está relacionado com o facto de a Concordata não ter sido levada
à prática, o que, segundo Pio IX, resultaria de três dificuldades que se
prendiam, por um lado, com a extensão excessiva da arquidiocese de
Goa e das outras dioceses, por outro lado, com a escassez de representantes do clero, e, por último, com a ausência de meios do governo
67
Id., ibid., p. 134.
68
Id., ibidem, p. 136.
69
Joaquim de Almeida, Cônsul-Geral de Portugal nos Estreitos, Petição anexa a Ofício
n.º 1 ao Ministro e Secretário d’Estado dos Negócios Estrangeiros e interinamente dos
da Guerra, Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos Negócios
Estrangeiros, 16 de Agosto de 1859 (Manuscrito).
70
Ibid.
71
Cf. Manuel TEIXEIRA, Portugal em Singapura, op. cit., p. 169.
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72
português para sustentar as suas representações . Devido a esta inutilidade do acordo firmado entre Portugal e a Santa Sé, os católicos de
Singapura escrevem ao rei português queixando-se das agressivas palavras, de que haviam sido alvo, por parte dos membros da Missão
73
Francesa . Na sua petição, os católicos de Singapura dizem-se alvo de
zombaria por parte dos padres e membros da Missão Francesa por
meio das seguintes questões: “que he feito da gloriosa Concordata?
Onde está o Bispo Portuguez para residir em Singapura? Onde estão os
mais Padres, e Professores Europeos, ainda não elles nascerão? Tiverão
alguma resposta das representações, que dirigirão ao Governo Portu74
guez?” .
Em 1870, seria a vez de ser criada a diocese anglicana de Singapura, com sede na catedral de St.º André, que havia sido construída
sete anos antes, em 1863. 1870 seria também o ano da regulamentação dos “Bens das Missões Portuguesas na China”, que suportavam
financeiramente o Padroado Português do Extremo Oriente. Os desentendimentos entre portugueses e franceses subsistiriam até à década
75
de 80 do século XIX .
Em 1886, é assinada uma Concordata entre o Papa Leão XIII e o
Rei D. Luís de Portugal, que mantém a separação do Padroado entre
Índia e China, segundo a qual os católicos de Malaca e Singapura passaram para a jurisdição da diocese de Macau. Por esta Concordata, o
Padroado ficou representado apenas por duas paróquias na península:
a de S. José em Singapura e a de S. Pedro em Malaca, sujeitas à diocese de Macau. A presença portuguesa seria assegurada pela sua Missão.
No final do século XIX, as missões religiosas mantêm o apoio às
respectivas congregações, contribuindo para a organização comunitária e para a coesão social. Também como resultado das actividades dos
missionários portugueses, em 1891, regista-se uma concentração da
72
Id., ibid, p. 170.
73 Petição anexa a Joaquim de ALMEIDA, Cônsul-Geral de Portugal nos Estreitos, Ofício
n.º 1 dirigido ao Ministro e Secretário d’Estado dos Negócios Estrangeiros e interinamente dos da Guerra, Caixa 704, Lisboa, Arquivo Histórico-Diplomático, Ministério dos
Negócios Estrangeiros, 16 de Agosto de 1859 (Manuscrito).
74
Id., ibid.
75
Cf. Manuel TEIXEIRA, Portugal em Singapura, op. cit., p. 18.
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Maria de Jesus Espada
população eurasiana numa zona residencial que corresponde basicamente à área que Raffles designara para os europeus. O facto de a
Missão Portuguesa se haver estabelecido dentro dos limites desta área
é indicativo da presença de eurasianos, desde muito cedo, a qual se
prolongaria até aos primeiros anos do século XX, talvez devido à proximidade das empresas de comércio e dos serviços da administração
pública, onde grande parte dos membros desta comunidade trabalhava, assim como da igreja e das escolas entretanto criadas e apoiadas
pela Missão.
Este facto entrevê-se no surgimento de notícias acerca de uma
das primeiras áreas de residência conhecida dos luso-descendentes,
76
“where Eurasians lived cheek by jowl with the Jews” , localizando-se
na área reservada aos europeus, na zona limitada pela Waterloo Street
e pela Queen Street, onde entretanto haviam sido construídas as igrejas e as escolas das Missões Francesa e Portuguesa.
Durante os quase cem anos seguintes, a comunidade portuguesa
de Singapura mantém a sua rota característica, com uma forte ligação
à Missão Portuguesa. Quase um século mais tarde, em 1985, as Missões Portuguesas de Singapura e Malaca passariam para a jurisdição
dos bispos locais.
Conclusão
Neste breve texto, analisámos os primeiros pontos da citação de D.
António Joaquim de Medeiros com que abrimos a nossa prosa e procedemos ao levantamento dos factos que estiveram por detrás das suas
afirmações, atentando às vicissitudes da comunidade portuguesa de
Singapura, nomeadamente, ao nível da sua organização, do ponto de
vista das zonas de residência e, principalmente, da religião.
As últimas referências deste prelado dizem respeito, por um lado, ao papel de Singapura como entreposto entre Macau e Timor, e por
outro, à importância que a cidade assumiu pelo facto de ter sido ali
empregue dinheiro dos “Bens das Missões Portuguesas na China”.
76
Myrna BRAGA-BLAKE, op. cit., p. 51.
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Embora tenhamos mencionado ambos os temas de forma concisa, um estudo mais detalhado dos mesmos não cabe no escopo da presente investigação, a qual pretendeu proceder a um relato sucinto dos
acontecimentos que estiveram na origem dos desentendimentos existentes entre missionários portugueses e franceses na Singapura do
séc. XIX, sublinhando a importância desta cidade a nível religioso, mas
também comercial, para as potências europeias. Verificámos, por outro
lado, o desenvolvimento daqueles acontecimentos em meados do século, de acordo com a correspondência oficial portuguesa encontrada
nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros português e no
quadro das alterações ocorridas no sistema do Padroado Português do
Oriente.
Fundos Documentais
Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros: Caixa
704.
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