FRANCINE MACIEL DE ALMEIDA HARRY POTTER NO ORKUT: FORMANDO LEITORES ADOLESCENTES UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS CENTRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO CURSO DE LETRAS FRANCINE MACIEL DE ALMEIDA HARRY POTTER NO ORKUT: FORMANDO LEITORES ADOLESCENTES Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Orientador: Profª. Drª. Simone Souza de Assumpção São Leopoldo 2006 Para todos aqueles que passaram. AGRADECIMENTOS À minha família, especialmente meus pais e meu irmão, por todo o apoio, carinho, paciência e compreensão; À professora Simone, que teve tanta paciência, empenho e exigiu sempre muita dedicação de minha parte; Aos meus amigos Cínthia Dexheimer e Matthew Hallam, que durante todos esses meses ouviram meus comentários e lamentos sobre este trabalho e me deram forças para que eu pudesse concluí-lo; Aos meus alunos, pois sem eles eu jamais seria a profissional que sou. RESUMO O trabalho consiste na análise da busca que os adolescentes fazem por sua identidade através da série Harry Potter, de J. K. Rowling, aliado ao Orkut (http://www.orkut.com). No primeiro capítulo, é elaborado o embasamento teórico sobre a importância do ato de ler, enfocando a questão dos contos de fadas tradicionais, da literatura juvenil e da identidade do leitor. No segundo, trata-se dos diversos temas que fazem da série Harry Potter um sucesso literário. E, no terceiro, é feita a relação entre comunidades virtuais, especialmente o Orkut, e a formação de leitores adolescentes e são mostrados textos criados pelos jovens participantes de comunidades sobre Harry Potter no Orkut, as fanfictions, onde são citadas e analisadas versões e especulações sobre a continuidade da narrativa sobre as aventuras do bruxinho. PALAVRAS-CHAVE: Leitura; Identidade; Comunidades Virtuais; Harry Potter; Orkut. PERÍODO: 2006/2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................... ........7 1 A IMPORTÂNCIA DO ATO DE LER.....................................................11 1.1 O adolescente e a leitura na escola.........................................................13 1.2 Histórias de ontem e de hoje...................................................................17 1.3 A descoberta da identidade do adolescente através da leitura............20 2 O FENÔMENO HARRY POTTER............................................................23 2.1 Quem é Harry Potter ........................................................................ ......23 2.2 Temas que fazem de Harry Potter um sucesso.......................................29 3 COMUNIDADES VIRTUAIS E IDENTIDADE.............................. ......40 3.1 O Orkut e suas comunidades ............................................................ ......42 3.2 Harry Potter, Orkut e identidade.…………………………………........45 CONCLUSÃO ......................................................................................... ......57 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................. ......61 7 INTRODUÇÃO O que se pretende com este trabalho é mostrar o resgate do hábito da leitura entre adolescentes através dos livros da série Harry Potter, de J. K. Rowling, e da utilização do Orkut (http://www.orkut.com.br). Para isso, verificar-se-á como e por que Harry Potter tornou-se um fenômeno de leitura entre adolescentes e de que maneira comunidades virtuais, especificamente o Orkut, podem aprimorar a formação e despertar o interesse do leitor adolescente pela literatura, ajudando a formar sua identidade. O tema foi escolhido devido à constatação de que a leitura de obras literárias não é uma das atividades preferidas dos adolescentes há muito tempo. As razões para isso são muitas: podem ser citados os avanços tecnológicos – que “facilitam” o acesso à informação e à diversão, a exemplo da Internet e da própria televisão – e a “obrigação” de ter de ler, a pedido dos professores, obras mais antigas de nossa literatura, com vocabulário considerado “difícil” e arcaico. Estas histórias mostram um contexto social totalmente diferente do conhecido pelo leitor adolescente, o que engloba hábitos e costumes totalmente distintos dos atuais, ou seja, o “não gostar” de ler obras literárias está muito relacionado com o fato de o adolescente não se identificar nem um pouco com aquilo que lê. 8 É dentro desse contexto de certo repúdio à literatura que surgiu, no final da década de 1990, na Grã-Bretanha, o bruxinho Harry Potter, personagem criado por J. K. Rowling. A partir do lançamento do primeiro livro da série – Harry Potter e a pedra filosofal –, houve algo que pode ser considerado um “fenômeno” de vendas e também um resgate do hábito da leitura, praticamente abandonado e marginalizado pelos adolescentes. Com os seis livros lançados até então – Harry Potter e a pedra filosofal, Harry Potter e a câmara secreta, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, Harry Potter e o Cálice de Fogo, Harry Potter e a Ordem da Fênix e Harry Potter e o enigma do príncipe –, Harry Potter trouxe algo que estava faltando na literatura: uma história que fascinasse os leitores por seu universo mágico e fantástico, mas que, ao mesmo tempo, fizesse com que os adolescentes, pobres seres humanos mortais que nada sabem de magia, ou “trouxas”, como são chamados na obra, fossem levados a se identificar com os personagens. A obra de J. K. Rowling nos apresenta personagens de todos os tipos, não caricaturizados como as personagens dos contos de fadas tradicionais. Em Harry Potter, os “mocinhos” da história também têm ataques de fúria, também pensam em vingança, riem, choram e aprendem com seus erros. E isso atraiu um público imenso. Além de os adolescentes correrem às livrarias para conhecer a fabulosa trajetória de Harry e seus companheiros, ocorreu algo que também pode ser chamado de “fenômeno”: Harry Potter começou a ser discutido virtualmente. Apenas no Orkut – uma comunidade virtual, um “ponto de encontro” de pessoas com os mesmos interesses e amigos em comum – existem mais de mil comunidades que discutem Harry Potter constantemente. 9 O que move um adolescente a ficar em casa debatendo virtualmente uma história? Por que Harry Potter virou este fenômeno que levanta tantas questões? Um novo tipo de leitor está se formando, o leitor que passa do papel para o debate virtual, e este leitor, até mesmo o mais tímido, agora tem a oportunidade de tentar descobrir a sua identidade, de questionar as histórias que lê, virtualmente, mas da maneira mais real possível. No primeiro capítulo deste trabalho, organiza-se um embasamento teórico sobre a importância do ato de ler. Para isso, traça-se um panorama sobre a relação existente entre o adolescente e a escola. Aborda-se como os contos de fadas tradicionais foram, com o passar do tempo, sendo modificados e como as histórias para jovens leitores mostram personagens diferentes, mas que em muito se aproximam da personalidade do leitor a quem são destinadas as histórias e mostra-se como o adolescente contemporâneo descobre sua identidade através da leitura. O segundo capítulo trata do fenômeno literário Harry Potter, de J. K. Rowling. Primeiramente, analisa-se a verdadeira identidade do pré-adolescente Harry Potter através de suas aventuras na narrativa da autora inglesa. Após, apontam-se os diversos temas que fazem da saga do bruxinho um grande sucesso. No terceiro capítulo, explora-se como as comunidades virtuais, especialmente o Orkut, são utilizadas para a formação de novos leitores. Para tanto, apresentam-se histórias criadas pelos leitores adolescentes de Harry Potter, as fanfictions, e são analisados debates nas comunidades sobre a história e como os leitores adolescentes se identificam com aquilo que lêem, debatem e escrevem. Os adolescentes participantes das comunidades foram selecionados devido ao tipo de fanfiction que escreveram, pois, além de muita criatividade, usaram seus próprios anseios, dúvidas e 10 problemas comuns a todos os adolescentes nos textos. O texto original foi respeitado em todas as transcrições. 1 A IMPORTÂNCIA DO ATO DE LER Vivemos em um mundo no qual comunicar-se é de suma importância, pois para nos alimentarmos, trabalharmos e mantermos qualquer tipo de relacionamento com as pessoas e com o ambiente em que vivemos, é preciso que nos comuniquemos. Tudo e todos estão aptos a se comunicar, e a informação, a cada dia mais rápida e essencial, deve se fazer presente na educação do ser humano. Conforme Silva (1995, p. 35), a educação do ser humano, seja ela formal ou informal (sistemática ou assistemática), sempre envolve dois fatores fundamentais: formação e informação. Mais especificamente, o processo educativo exige que às novas gerações sejam transmitidos conhecimentos, sejam trabalhados determinados valores e costumes de modo que ocorra a sobrevivência e a convivência social e de modo que não pereça a linha evolutiva da cultura. A informação, a educação e a leitura estão diretamente relacionadas. É evidente que não apenas a leitura de obras literárias forma opiniões: não se pode esquecer que, na internet, nos jornais, nas revistas, nos cartazes etc. a leitura também se faz presente, uma vez que há a interpretação daquilo que se lê. A leitura de obras literárias é uma das principais responsáveis pelo desenvolvimento do verdadeiro leitor, aquele que não apenas decifra o código, mas que também compreende e interpreta aquilo que está lendo, relacionando as idéias ali contidas com seus próprios pensamentos. É desde a infância, na escola, que se inicia 12 esse processo de formação e de “libertação”. Cattani e Aguiar (1993, p. 24) afirmam que a aprendizagem da leitura é fundamental, portanto, para a integração do indivíduo no seu contexto socioeconômico e cultural. O ato de ler abre novas perspectivas à criança, permitindo-lhe posicionar-se criticamente diante da realidade. O ato de ler é encarado de várias maneiras pelos adolescentes: alguns o repudiam por ser “chato” ou “uma perda de tempo”. Porém, muitos realmente apreciam as horas dedicadas à leitura, conscientes de que é um caminho para o conhecimento e conquistas na sociedade. Como afirma Ezequiel Theodoro da Silva (1995, p. 12), o ato de ler é, fundamentalmente, um ato de conhecimento. E conhecer significa perceber mais contundentemente as forças e as relações existentes no mundo da natureza e no mundo dos homens, explicando-as. Aos dominadores, exploradores ou opressores interessa que as classes subalternas não percebam e nem expliquem as estruturas sociais vigentes e o regime de privilégios. Sem conhecimento é muito difícil conseguirmos ver e “ler” o mundo à nossa volta. Sabe-se que não é apenas lendo livros que se adquire conhecimento, mas que neles estão grande parte dessa caminhada. Não há caminhos certos e errados na leitura e na aprendizagem; há interpretações e visões diferentes. Jamais se deve esquecer que, se houver qualquer tipo de privação no acesso à leitura e às fantásticas experiências que ela pode proporcionar, dificilmente boas oportunidades surgirão em nossas vidas. 13 1.1 O adolescente e a leitura na escola Falar em leitura na escola, atualmente, é mencionar algo instável e desinteressante, sobretudo quando o público-alvo são os pré-adolescentes e adolescentes. Vivemos em um mundo globalizado, onde a tecnologia a cada dia se faz mais presente e necessária. O surgimento do computador e da internet facilitaram tanto a vida das pessoas devido à rapidez com que se consegue qualquer tipo de informação que muitos dos antigos “hábitos” que costumavam ter passaram a ser considerados obsoletos, como é o caso do hábito da leitura. O costume de passar horas e horas, dias e até semanas sentado e lendo um bom livro apenas por deleite agora é considerado por muitos uma perda de tempo, pois se uma pesquisa rápida em qualquer site de busca na internet for feita, tem-se acesso a todo tipo de resumo e guia de estudos sobre a obra, os quais já fornecem as idéias, constatações, interpretações e críticas prontas ao leitor, privando-o de fazer sua própria leitura do texto. Isso faz com que especialmente os adolescentes, os principais usuários da rede mundial de computadores, percam o interesse pela leitura, além de comprometer o desenvolvimento de seu senso crítico e de suas próprias opiniões. Para Bamberger (1987, p. 11), a leitura favorece a remoção das barreiras educacionais, concedendo oportunidades mais justas de educação principalmente através da promoção do desenvolvimento da linguagem e do exercício intelectual. Contudo, presencia-se, hoje, principalmente nas escolas públicas, uma triste e preocupante realidade no que tange ao assunto leitura e formação de bons leitores: vêem-se professores mal preparados para mostrarem os alunos como ler pode ser algo prazeroso e professores que não dão valor ao texto como ferramenta essencial no aprendizado de qualquer disciplina. Há, também, os problemas estruturais das escolas, 14 que envolvem desde a questão da má remuneração dos professores, a falta de material escolar e de livros nas bibliotecas, o que interfere diretamente na qualidade de aula proporcionada ao aluno. Entre as conseqüências geradas pelo descaso para com a educação, a falta de competência dos professores em lidar com o texto literário e com a leitura, em geral, é uma das mais evidentes. (SARAIVA, 2001, p. 24) Outro grande problema que a educação e a leitura enfrentam é o livro didático. Parece incrível colocar em dúvida a eficácia de uma das poucas ferramentas de trabalho disponíveis para professores e alunos. No entanto, Zilberman (1993, p. 21) afirma que o livro didático exclui a interpretação e, com isso, exila o leitor. Propondo-se como auto-suficiente, simboliza uma autoridade em tudo contrária à natureza da obra de ficção que, mesmo na sua autonomia, não sobrevive sem o diálogo que mantém com seu destinatário. E, enfim, o autoritarismo se apresenta de modo mais cabal, quando o livro didático se faz portador de normas lingüísticas, delegadas da ideologia do padrão culto e expressão de classes e setores que exercem a dominação social e política. Ou quando a interpretação se mobiliza em respostas fechadas, de escolha simples, promovidas por fichas de leitura, sendo o resultado destas a anulação da experiência pessoal e igualitária do texto. Para Marisa Lajolo (1993, p. 52-53), o texto não deve ser pretexto para nada: ele apenas existe na medida em que constitui ponto de encontro entre dois sujeitos: o que escreve e o que lê. No entanto, a autora salienta: Em situações escolares, o texto costuma virar pretexto, ser intermediário de aprendizagens outras que não ele mesmo. E, no entanto, texto nenhum nasceu para ser objeto de estudo, de dissecação, de análise. Salvo raras e modernas exceções – por exemplo, os textos produzidos de encomenda e sob medida para alguns livros escolares – um texto costuma ser produto do trabalho de seu autor, e encontra sua função na leitura igualmente individual de um leitor. 15 Os professores, principalmente os de Língua Portuguesa e de Literatura, sofrem, diariamente, com o repúdio dos alunos a algo que é maravilhoso, desde que bem trabalhado e feito com objetivos claros e, obviamente, por prazer: o ato de ler. Vive-se numa sociedade repleta de avanços tecnológicos, que “roubam” a atenção dos adolescentes – tais como a internet e a televisão – afastando-os ainda mais da Literatura, uma vez que, além disso, os jovens estudantes são “obrigados”, na escola, a ler obras mais antigas de nossa literatura – com vocabulário considerado “difícil” e arcaico – e que mostram um contexto social totalmente diferente do conhecido –, o que engloba hábitos e costumes totalmente diferentes dos atuais –, ou seja, o “não gostar” de ler obras literárias está muito relacionado ao fato de o adolescente não se identificar nem um pouco com aquilo que é obrigado a ler. O espaço para o estudo de literatura na escola, conforme Juracy Assmann Saraiva (2005, p. 100), contribui para reduzir a submissão cultural de nossos estudantes e para aprimorar seu domínio da linguagem e seu senso estético, como também para promover sua conscientização sobre os efeitos decorrentes do uso da linguagem e do poder que ela exerce. É necessário que ocorra o encontro entre os textos literários e seus leitores para que se deflagre uma reflexão sobre a ética dos comportamentos humanos, o que não vem ocorrendo há muito tempo. De acordo com a autora (2005, p. 106), por maior que seja o esforço de professores em mobilizarem seus alunos, eles próprios compartilham concepções equivocadas a respeito da literatura, valendo-se de estratégias ineficientes para desenvolver o processo de leitura e enfrentando dificuldades geradas pelas orientações do sistema de ensino. Neste contexto, Regina Zilberman (1993, p. 16-17) traça o panorama atual da relação entre Escola e Ensinar a ler: 16 Sendo a entidade que recebe a incumbência de ensinar a ler, a escola tem interpretado esta tarefa de um modo mecânico e estático. Dota as crianças do instrumento necessário e automatiza seu uso, através de exercícios que ocupam o primeiro – mas dificilmente o segundo – ano do primeiro grau. Ler confunde-se, pois, com a aquisição de um hábito e tem como conseqüência o acesso a um patamar do qual não mais se consegue regredir; porém, a ação implícita no verbo em causa não torna nítido seu objeto direto: ler, mas ler o quê? Desta maneira, o cerne da leitura não se esclarece para o aluno que é beneficiário dela. Por conseguinte, sabendo ler e não mais perdendo esta condição, a criança não se converte necessariamente num leitor, já que este se define, em princípio, pela assiduidade a uma instituição determinada – a literatura. Os estudantes adolescentes estão inseridos em um mundo totalmente novo e instável, no qual a leitura de obras literárias tem pouco espaço. Entretanto, não é possível formar bons leitores sem que se passe por vários estágios e diferentes tipos de texto. O que os alunos consideram maçante e arcaico nas leituras exigidas nas aulas de Língua Portuguesa e Literatura pode e deve desenvolver sua capacidade crítica como leitores e, conseqüentemente, como cidadãos. A escola, contudo, não vem cumprindo seu papel como deveria, já que a cada ano mais e mais alunos saem dos bancos escolares sem saber interpretar ou mesmo compreender um texto. Zilberman (1993, p. 17) afirma, ainda, que não apenas se trata de enfatizar o valor da leitura enquanto procedimento de apropriação da realidade, mas também de delimitar o sentido do objeto através do qual ela se concretiza: a obra literária. Pois, acreditando-se que o ato de ler, em decorrência de sua natureza, se reveste de uma aptidão cognitiva, esta não se complementa sem o texto que demanda seu exercício. Compreendida de modo amplo, a ação de ler caracteriza toda a relação racional entre o indivíduo e o mundo que o cerca. Por fim, é importante lembrar, conforme afirma Lajolo (1993, p. 54), que o aluno tem o direito de não gostar de um texto, assim como o professor. Esse mínimo de liberdade é garantido a qualquer leitor, uma vez que cada um reage de maneira diferente a um texto, mesmo que seja uma pessoa que goste muito de ler. 17 1.2 Histórias de ontem e de hoje Os contos de fadas, conforme Luiza Vilma Pires Vale (2001, p. 46), surgem como modelo na França, no final do século XVII, quando Charles Perrault publica Os contos da Mãe Gansa. Segundo Nelly Novaes Coelho (1991, p. 66), Perrault pretendia provar a identidade de valores entre a criação dos novos povos e a produção dos antigos (gregos e romanos), tidos como modelos superiores pela cultura oficial. Após, aparecem, em outros países, outros nomes, como os Irmãos Grimm e Hans Christian Andersen e todo o material reunido por estes autores forma o acervo dos contos de fadas que povoa o imaginário de crianças e adultos. Inicialmente escritos para adultos, com o tempo foram adaptados e estigmatizados como histórias para crianças sendo que, já de longa data, este tipo de literatura ajuda tanto crianças como adolescentes na busca de sua identidade, de seu lugar no mundo, proporcionando-lhes alguns questionamentos e associações com as personagens das histórias lidas. Os contos de fadas, à diferença de qualquer outra forma de literatura, dirigem a criança para a descoberta de sua identidade e comunicação, e também sugerem as experiências que são necessárias para desenvolver ainda mais o seu caráter. Os contos de fadas declaram que uma vida compensadora e boa está ao alcance da pessoa apesar da adversidade – mas apenas se ela não se intimidar com as lutas do destino, sem as quais nunca se adquire verdadeira identidade. Estas estórias prometem à criança que, se ela ousar se engajar nesta busca atemorizante, os poderes benevolentes virão em sua ajuda, e ela o conseguirá. As estórias também advertem que os muito temerosos e de mente medíocre, que não se arriscam a se encontrar, devem se estabelecer numa existência monótona – se um destino ainda pior não recair sobre eles. (BETTELHEIM, 2005, p. 32) É claro que Bettelheim focaliza, em seu texto, a criança, mas não se pode esquecer que o adolescente também vive uma eterna busca por seu lugar ao sol e dos porquês da vida durante a puberdade. 18 Nesse sentido, os contos de fadas têm um papel importantíssimo na formação dos jovens leitores, uma vez que, normalmente, é com esse tipo de literatura que eles têm o primeiro contato quando são crianças, seja ela contada por seus pais ou mesmo lida quando já foram alfabetizados. Bettelheim (2005, p. 14) assegura ainda que “os contos de fadas transmitem importantes mensagens à mente consciente, à préconsciente e à inconsciente, em qualquer nível que esteja funcionando no momento”. Repletas de fantasia, as histórias de fadas exercem grande influência na busca pela identidade da criança, pois ela as usa para elaborar e tentar entender seus problemas íntimos com sua pouca experiência sobre a realidade que a cerca. De acordo com Nelly Novaes Coelho (1991, p. 80), com o passar dos anos e o avançar do racionalismo cientificista e sua febre de conhecimento exato e objetivo, o maravilhoso dos contos de fadas foi gradativamente sendo marginalizado e recusado pelas novas diretrizes do Ensino. Conforme Bettelheim (2005, p. 147-149), alguns pais resistem e desencorajam os filhos a realizar este tipo de leitura, com medo de que a criança, em pleno processo de desenvolvimento intelectual e moral, fique presa ao mundo fantástico apresentado nos textos e fique alheia aos quadros de vida “verdadeiros”, conseqüentemente pouco saudáveis. Para o autor, há um equívoco por parte dos adultos, não lhes ocorrendo que existem diferentes “verdades” na vida das crianças e dos adultos. Salienta, ainda, que elas acreditam em mágica e deixam de fazê-lo ao crescer, e os que não passaram por este processo acabam colocando a “mágica” em prática com um grande poder destrutivo que atinge outras pessoas e a si mesmas. Contudo, é importante salientar que uma criança apreciadora de contos de fadas não se tornará, necessariamente, um adolescente ou um adulto que tenha desenvolvido o gosto pela leitura, tampouco um seguidor das lições de moral e bons costumes contidas nesses 19 textos. Cada pessoa reage de maneira diferente às idéias contidas nos contos de fadas, sendo que a criança ainda não tem capacidade para assimilar qualquer lição intrínseca: o que normalmente ocorre é que ela fica deslumbrada com os elementos mágicos da história fantástica, pois a boa história prende a sua atenção, desperta sua curiosidade e a entretém. Diferentemente dos contos de fadas modernos, conforme Bettelheim (2005, p. 14-16), é nos contos de fadas tradicionais que se encontram personagens caricaturizados, os heróis e os vilões, que normalmente seguem padrões morais préestabelecidos pela sociedade com o fim de educar o leitor e passar-lhe uma lição, geralmente pregando a obediência, a auto-estima e a coragem apesar das desventuras pelas quais passa: As figuras nos contos de fadas não são ambivalentes – não são boas e más ao mesmo tempo, como somos todos na realidade. Mas dado que a polarização domina a mente da criança, também domina os contos de fadas. Uma pessoa é boa ou má, sem meio-termo. Um irmão é tolo, o outro esperto. Uma irmã é virtuosa e trabalhadora, as outras são vis e preguiçosas. Uma é linda, as outras são feias. Um dos pais é todo bondade, o outro é malvado. Os textos de hoje também têm o ideal de herói e vilão, afinal todo protagonista tem seu antagonista. Entretanto, nos textos contemporâneos voltados para jovens leitores os personagens fogem à antiga regra de ser apenas “bonzinho” ou apenas “malvado”: eles são apresentados como seres dotados de todos os sentimentos, portanto capazes de errar e de acertar; riem, choram, zangam-se, burlam as regras e cometem atos bons e ruins. O estigma de ser apenas o “sofredor injustiçado” ou o “malvado” não mais figura nas histórias de hoje, a exemplo dos personagens de Harry Potter, de J. K. Rowling. 20 1.3 A descoberta da identidade do adolescente através da leitura A criança, desde que começa a se fazer entender pelo mundo que a cerca, começa a demonstrar diversas sensações e interesse por todo o tipo de coisas, tais como vontade de se divertir, de dormir, de se alimentar, ou mesmo de reclamar sobre algo que a incomoda, como a dor e qualquer tipo de desconforto. Como citado anteriormente, aliado a isso, há os contos de fadas, que colaboram no florescimento de muitas dessas jovens mentes. Os jovens contemporâneos, de acordo com a educadora Maria Helena Bonilla (2005, p. 73), não aceitam silenciosamente as imposições que recebem: Eles querem participar, decidir, questionar, desafiar e discordar. Estão se tornando cada vez mais críticos, gostam de desafiar idéias, pessoas, afirmações, de argumentar e debater, aceitam pouca coisa pelo significado óbvio. Dentro desse contexto de rebeldia em seguir ordens é que está se desenvolvendo a identidade dos adolescentes. Entretanto, não são apenas os adolescentes de hoje que têm resistência a isso: o ser humano passa por diversas etapas de amadurecimento e aprendizagem durante sua vida, e cada uma delas está repleta de dúvidas, receios, frustrações e descobertas. Porém é na adolescência que estas inquietações normalmente são mais intensas, já que há mais mudanças ocorrendo tanto no âmbito físico como no psicológico e no social, como o crescimento e desenvolvimento corporal e hormonal e a intensificação da vida social. O problema que engloba todo este quadro surge na escola, lugar em que atualmente o adolescente utiliza não só para obter conhecimentos, mas também para intensificar suas relações de integração social e descobrir-se com pessoa. No mundo predominantemente urbano em que vivemos, é na escola que as crianças e os 21 adolescentes conhecem seus primeiros amigos e desenvolvem parte significativa de sua identidade. Contudo, é justamente na escola onde há muita resistência e rebeldia quanto às regras que são impostas e ao tipo de acesso ao conhecimento que é proporcionado. Os adolescentes têm acesso muito rápido a todo tipo de informação diferenciada através da internet e da televisão, tornando difícil para a escola e seus educadores chamar e prender a atenção de seus jovens alunos. Tentar convencer um aluno a ler um livro clássico da literatura universal, por exemplo, é tarefa árdua para o professor de Literatura, uma vez que em poucos segundos se pode acessar um site de busca na internet e achar uma resenha ou um simples resumo do livro. É difícil um professor convencer seu aluno a “gostar” da idéia de ter de ler esse tipo de texto e não provocar grande polêmica em sala de aula. Todavia, os alunos adolescentes têm razão em afirmar que certo tipo de leitura, como a de textos clássicos, pode ser um tanto maçante, sobretudo por não haver uma identificação direta com o texto que está sendo lido. Para jovens que estão acostumados a toda uma parafernália eletrônica que envolve computadores, televisores, IPODs, telefones celulares e câmeras digitais, por exemplo, torna-se um tanto complicado ter interesse por textos com vocabulário arcaico e com um contexto social completamente avesso ao que estão acostumados. Igualmente o âmbito reservado à literatura se vê assolado pela crise de ensino, somada agora a uma crise particular – a da leitura – que extravasa o espaço da escola, na medida em que se depara com a concorrência dos meios de comunicação em massa. (ZILBERMAN, 1993, p. 7) Cabe à escola e seus educadores não permitir que o processo de aprendizagem através da leitura seja marginalizado. É preciso que a escola se adapte às 22 novas tecnologias e procure conscientizar os educandos de que sua formação como leitores e, conseqüentemente, de sua identidade, também dependem deste tipo de texto. 2 O FENÔMENO HARRY POTTER Era uma vez, na Inglaterra, um menino órfão, de onze anos de idade, que vivia com seus dois tios e seu primo. Maltratado no estilo Cinderela, este menino, impassível, nada tinha a fazer a não ser obedecer e seguir sua vida. Um belo dia, este menino recebeu uma carta da Escola de Magia de Hogwarts, e sua vida mudou para sempre: ele descobriu que era um bruxo, e, não só ele, mas o mundo todo passou a querer saber sobre sua vida, seu passado, presente e futuro. Este menino chamava-se Harry Potter. 2.1 Quem é Harry Potter No começo da narrativa, Harry era apenas um menininho de onze anos, ingênuo, órfão, um pouco revoltado por ser maltratado pelos tios e pelo primo. O pobre Harry, criado com desprezo por sua família, passava por situações em que as coisas pareciam ocorrer por “mágica”: era sua essência de bruxo aflorando, junto às mudanças da pré-adolescência, período cheio de dúvidas, rebeldia, descobertas e desafios pelo qual todos passamos. E é assim que a autora J. K. Rowling apresenta aos leitores a vida de Harry Potter, mostrando-lhes o processo de amadurecimento do personagem através de seus atos, suas descobertas, dúvidas, seus medos e desafios, seus amigos e inimigos. 24 O episódio em que Potter – em Harry Potter e a pedra filosofal (2000) – não só se comunica, mas também ajuda a libertar uma cobra criada em cativeiro no zoológico revela ao leitor quão preso o menino se sentia na casa dos tios. Adolescentes normalmente querem gritar por liberdade, mostrar que tudo podem e tudo sabem, mas são abafados pelas mãos mais fortes dos adultos. Harry sente-se assim na casa dos Dursley, com o agravante de que ele é obrigado a ser o criado da família e “saco de pancadas” de todos. Harry veio se postar na frente do tanque e estudou a cobra com atenção. Não se admiraria se a própria cobra morresse de tédio – não tinha companhia a não ser aquela gente idiota que batucava no vidro, tentando incomodá-la o dia inteiro. Era pior do que ter um armário por quarto, onde a única visita era a tia Petúnia esmurrando a porta para acordá-lo, mas ao menos ele podia visitar o resto da casa. (ROWLING, Harry Potter e a pedra filosofal, 2000, p. 28) Potter, pela primeira vez, tinha uma amiga e, também pela primeira vez, ele revelou-se o garoto virtuoso, amigo e corajoso que seria durante a saga de Rowling. A mesma liberdade que ele proporcionou à cobra lhe foi proporcionada pela carta que viria a receber da Escola de Magia de Hogwarts e por Hagrid, que o levaria embora da casa dos Dursley e o apresentaria ao fantástico mundo da magia. O que se passou em seguida aconteceu tão depressa que ninguém viu como foi: num segundo, Pedro e Duda estavam encostados no vidro, no segundo seguinte, estavam saltando para trás soltando uivos de terror. Harry sentou-se e parou de respirar: o vidro da frente do tanque da jibóia tinha sumido. A grande cobra se desenrolou depressa e escorregou pelo chão – as pessoas no alojamento dos répteis gritaram e começaram a correr para as saídas. Quando a cobra passou rápido por ele, Harry poderia jurar que uma voz baixa e sibilante tinha dito: “Brasil, aqui vou eu... Obrigada, amigo.” (ROWLING, Harry Potter e a pedra filosofal, 2000, p. 29) Quando Harry recebeu a carta de Hogwarts, informando-o de que ele era um bruxo e que sua vaga para estudar na escola o aguardava, o garoto, que até então pouco 25 sabia sobre seus pais, descobriu ser filho de bruxos poderosos, bons e corajosos, os quais foram assassinados por Lord Voldemort, o representante das trevas. Algum tempo depois, Potter deveria ir à estação de trem, à Plataforma nove e meia – que não existe no mundo dos “trouxas”, como são chamados os seres humanos alheios à existência da magia – e tomar o trem para Hogwarts. Foi na plataforma que o bruxinho encontrou mais uma parte de sua nova família: ele conheceu a família Weasley, especialmente Rony, seu melhor amigo durante toda a trama. Imediatamente foi acolhido por todos, como se fosse um deles, e, pela primeira vez desde que podia se lembrar, Harry Potter tinha uma família e era amado por pessoas como ele. E foi justamente a Sra. Weasley quem lhe ajudou a passar por mais um obstáculo, dando-lhe uma grande lição: atrás da grossa parede de tijolos da estação, estava a Plataforma nove e meia e o Expresso de Hogwarts, aguardando-o para levá-lo à sua nova vida. Foi Molly Weasley quem disse a Harry que ele deveria correr de encontro à parede se estivesse com medo: as aparências podem enganar. E Harry, valente, acredita, confia, enfrenta seus medos e vai: Ele começou a andar em direção a ela. As pessoas a caminho das plataformas nove e dez o empurravam. Harry apressou o passo. Ia bater direto no coletor de bilhetes e então ia se complicar – curvandose para o carrinho ele desatou a correr – a barreira estava cada vez mais próxima – não poderia parar – o carrinho estava descontrolado – ele estava a um passo de distância – fechou os olhos se preparando para a colisão... E ela não aconteceu... ele continuou correndo... abriu os olhos. Uma locomotiva vermelha a vapor estava parada à plataforma apinhada de gente. Um letreiro no alto informava Expresso de Hogwarts, 11 horas. Harry olhou para trás e viu um arco de ferro forjado no lugar onde estivera o coletor de bilhetes, com os dizeres Plataforma nove e meia. Conseguira. (ROWLING, Harry Potter e a pedra filosofal, 2000, p. 84) 26 Agora sabia que estava indo ao lugar certo; as lacunas de sua vida pareciam começar a ser preenchidas, e o menino começou a encarar ainda mais corajosamente seus problemas. Enfrentar uma simples parede de tijolos revelou quanta coragem e esperança Harry tinha para mudar e procurar suas raízes. Ele não era mais o desprezado garotinho que morava na Rua dos Alfeneiros: era Harry Potter, um bruxo corajoso, bom, virtuoso, mas que, como qualquer pessoa, é capaz de errar e ser punido por isso. Potter agora queria provar a todos que era capaz de aprender – não só com aulas e livros, mas também com seus erros –, de ser ele mesmo, de explorar seu potencial, de deixar sua marca na vida das pessoas. Quando, aos onze anos de idade, se descobre um bruxo, Harry passa da condição de um garoto desprezado, impotente, desconhecido, cujas perspectivas de futuro são bastante sombrias, para a condição de alguém que é querido, amado, mesmo famoso em sua sociedade e ao qual são oferecidas, pela primeira vez, as ferramentas e oportunidades adequadas para a realização de suas potencialidades. Para tanto, ele precisa se reorganizar de modo a forjar uma nova identidade para si, pois seu futuro depende de suas escolhas pessoais. (VARGAS, 2005, p. 205) No trem para Hogwarts, Harry fez uma nova e importante amizade: Hermione Granger, bruxinha audaciosa, estudiosa, ambiciosa e defensora dos amigos, também companheira inseparável de nosso herói e Rony. É com ela que Harry e Rony passam a maior parte do tempo em Hogwarts, e também é ela uma importante conselheira que conforta nosso herói nas horas difíceis. É preciso lembrar que ser valente não quer dizer, necessariamente, ser ajuizado, ainda mais quando se é dominado por diversos sentimentos inquietantes: – Harry, por favor – pediu Hermione, os olhos agora brilhando de lágrimas – por favor, tenha juízo. Black fez uma coisa horrível demais, mas não corra riscos, é isso que Black quer... Ah, Harry, você vai fazer o jogo do Black se for atrás. Seus pais não iam querer que você se machucasse, iam? Jamais iam querer que você saísse 27 procurando o Black! (ROWLING, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, 2000, p. 177) Na chegada a Hogwarts, o mundo da magia fica ainda mais incrível para os ávidos leitores: carruagens que andam sozinhas, fantasmas que trafegam pelos corredores, quadros que se movem e falam: a escola de magia localiza-se em um enorme e maravilhoso castelo, com muitos segredos ocultos, algumas passagens secretas e muita, muita magia. No Grande Salão, onde todos faziam as refeições – as quais “magicamente” apareciam sobre os pratos –, havia quatro mesas compridas, uma para cada casa da escola: Grifinória, Lufa-lufa, Corvinal e Sonserina. Harry, Rony e Hermione foram escolhidos para ficarem na casa de Grifinória. Nesta parte da história, há a primeira prova de que, apesar de ser um mundo mágico, teoricamente diferente do mundo dos trouxas, a sociedade também se divide de acordo com as características de cada pessoa, sendo que, em Grifinória, há os valentes e ousados; Lufa-lufa abriga os pacientes, justos e leais; Corvinal é a casa dos sábios e estudiosos, e Sonserina, aquela na qual homens de astúcia usam quaisquer meios para atingir seus objetivos. É neste ponto, com a separação dos alunos do primeiro ano, que começam a aparecer as diferentes índoles e tendências dos personagens da história: aparece a figura de Draco Malfoy, bruxinho rico da casa de Sonserina, que gosta de se sentir superior a todos devido ao poder, influência e dinheiro de seu pai e de seu grande ego. Harry Potter, valente e ousado aluno de Grifinória, passa a descobrir, com o decorrer do tempo, que seu nome é bastante conhecido no mundo dos bruxos, pois foi ele quem provocou o desaparecimento e a provável morte de Lord Voldemort quando ainda apenas era um bebê. O menino descobre, para sua própria crise pessoal, que foi tentando defendê-lo que seus pais morreram nas mãos do Senhor das Trevas. Deste episódio, sobrou apenas, na testa de Harry, uma cicatriz na forma de um raio, a qual sempre doía quando o que restou de Voldemort representava algum perigo iminente. 28 Outra descoberta maravilhosa feita por nosso herói foi seu amor pela prática do quadribol, esporte praticado por bruxos em suas magníficas vassouras voadoras: quando Harry subiu na vassoura e voou pela primeira vez, vivenciou uma nova e maravilhosa sensação de liberdade, e acabou revelando-se muito talentoso como apanhador do time de Grifinória. O diretor de Hogwarts, Alvo Dumbledore, um bruxo sábio, muito poderoso e virtuoso, é um dos guardiões dos grandes segredos da vida de Harry. É através dele que o bruxinho aprende muito sobre si mesmo, sobre a vida e sobre magia. Porém, para frustração do menino, seu professor não lhe revela todos os porquês de sua história. Apenas com o tempo e aparições ameaçadoras de Voldemort, Potter consegue desvendar sua história passada. Dumbledore é, na verdade, a única figura masculina que conhece fatos sobre a vida de Harry que ele próprio desconhece e cujas ações marcam o destino do menino de forma indelével. Praticamente onipresente na vida do herói, Dumbledore sempre manteve sob carinhosa vigilância, estando ciente das aventuras de Harry e várias vezes interferindo favoravelmente a ele. Dumbledore é o responsável pela colocação do herói, ainda bebê, junto a sua família adotante, pela sua segurança na infância contra os poderes do mal, por sua entrada em Hogwarts e, em última análise, pela sua chegada à segunda fase da adolescência, quando finalmente lhe revela a terrível profecia que paira sobre seu destino. (VARGAS, 2005, p. 198-199) Como qualquer adolescente normal – que ri, chora, esbraveja, rebela-se, briga, gazeia aulas, arranja confusão, faz amigos e inimigos – o bruxo Harry Potter ansiava por encontrar seu lugar ao sol, conquistar sua independência e, sobretudo, ser ouvido. Sua identidade está se formando, e a falta de informação sobre seu passado – o meio que Dumbledore e seus defensores encontraram para protegê-lo de Voldemort – o revolta e, à medida que lhe são revelados os fatos obscuros de seu passado tão confuso e cheio de desventuras, sua raiva e revolta, tão típicas de um adolescente, transparecem: 29 – O SENHOR NÃO SABE COMO ESTOU ME SENTINDO! – urrou Harry. – O SENHOR... FICA PARADO AÍ... SEU... Mas as palavras já não eram suficientes, quebrar coisas já não adiantava; ele queria fugir, queria fugir sem parar, sem nunca olhar para trás, queria ir para algum lugar em que não visse aqueles olhos azul-claros encarando-o, aquele rosto velho odiosamente calmo. Ele correu para a porta, tornou a agarrar a maçaneta e puxou-a com força. Mas a porta não abriu. (ROWLING J. K., Harry Potter e a Ordem da Fênix, 2003, p. 666) Harry Potter, até o último livro lançado – Harry Potter e o enigma do príncipe (2005) –, tem apenas dezesseis anos. Porém, já enfrentou, de cabeça erguida, muito mais do que muitas pessoas. Tentando desvendar os segredos ocultos sobre sua vida, Potter atrai os leitores e os instiga a saber sobre eles mesmos. O mundo dos trouxas é repleto de Harrys, ávidos por autoconhecimento, por saber de onde vieram e para onde vão. A diferença é que, aqui, não temos vassouras voadoras, dementadores, bichos-papões, fotos que se movem, jogos de quadribol, varinhas mágicas, elfos, centauros, ao menos não da mesma forma como no mundo da magia. Temos, sim, seres que, como nosso herói, fazem uma eterna busca por si mesmos e por algo que está cada vez mais difícil de encontrar: a verdadeira identidade. 2.2 Temas que fazem de Harry Potter um sucesso Fenômeno literário: assim é chamada a série Harry Potter, que conta a história e aventuras do bruxinho homônimo criado por J. K. Rowling na Grã-Bretanha no final da década de 1990. Com os seis livros lançados pela autora até 2006 – Harry Potter e a pedra filosofal, Harry Potter e a câmara secreta, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, Harry Potter e o Cálice de Fogo, Harry Potter e a Ordem da Fênix, Harry Potter e o enigma do príncipe – as aventuras e desafios de Harry e seus amigos são mostradas 30 enquanto o bruxinho tenta descobrir quem ele é e o que fazer de sua vida. O menino quer saber sobre seu passado para poder combater o que virá no futuro. E qual adolescente não quer saber mais sobre si e o que virá? Será apenas de Harry Potter e seus companheiros bruxos o tormento de passar por tantas dificuldades e situações extremamente confusas e perigosas? Obviamente não. J. K. Rowling mostra ao leitor um mundo mágico, cheio de criaturas fantásticas e bruxaria que tanto lembram a infância. Sob a máscara da magia, aborda temas tão corriqueiros para os jovens leitores que eles simplesmente não conseguem se livrar do “feitiço” que a leitura exerce sobre eles: é, realmente, um fenômeno também poder resgatar o gosto pela leitura entre adolescentes que vêem o ato de ler como algo tedioso. Tomar partido do realismo para descrever um mundo totalmente imaginário e, ao inverso, usar artifícios para descrever o mundo real significa lembrar que a verdade do mundo ou sobre o mundo nem sempre pode ser buscada nas abordagens “realistas” ou no estilo dos documentários. Ela reside igualmente, e sobretudo, no nosso imaginário, no universo de nossos desejos e de nossos fantasmas. Em resumo, fazer falar nosso imaginário pelo recurso aos mitos, às velhas lendas ou a bruxos é informar o homem sobre ele mesmo – sua psicologia, seu inconsciente, seus desejos confessados ou inconfessos – tanto quanto ou mais do que fazem as teorias jornalísticas ou os documentários. (SMADJA, 2004, p. 19-20) Conforme a afirmação de Isabelle Smadja, J. K. Rowling usa e abusa da relação imaginário–real e são muitos os temas “atrativos” para o adolescente contemporâneo abordados pela autora britânica durante a saga de Harry Potter. A vida escolar e seus desafios são importantes temas abordados pela autora, já que a maior parte da história de Harry Potter se passa na Escola de Magia de Hogwarts. E é justamente por situar o mundo mágico dentro de uma escola que Corso (2006, p. 256-257) afirma que a experiência de Rowling deu certo, pois a “escolaridade para as crianças contemporâneas se inaugura praticamente junto com sua capacidade de 31 falar, quando não antes”. Vive-se em um mundo em que a cada dia as famílias estão menores, e, na escola, os adolescentes aprendem a conhecer novos tipos de pessoas, fazem amigos, até inimigos, apaixonam-se, decepcionam-se, angustiam-se, descobremse. Com o crescimento da população e das cidades, é difícil termos, durante a infância e adolescência, aquele espaço em nossas casas ou apartamentos minúsculos para podermos brincar e nos divertir como as gerações anteriores faziam. Aqueles “amigos de infância” que costumavam ser os vizinhos da rua agora são os amigos que conhecemos na escola. Um exemplo dessa afirmação é a amizade que o próprio Harry e seus melhores amigos – Rony e Hermione – desenvolveram devido ao tempo que passaram juntos na escola de magia. Hogwarts é rígida quanto à obediência de normas: a cada infração, os professores retiram pontos da casa da qual o aluno faz parte. Quando trabalha com afinco e se destaca, ganha pontos. Como em qualquer escola, os alunos têm seus professores preferidos e os que são detestados, levam “bomba” nas matérias quando não estudam ou não seguem corretamente as instruções dos feitiços e poções e se não fazem o dever de casa. Entretanto, Potter, apesar de ser tão bondoso e corajoso, revela-se um tanto preguiçoso para os estudos: está sempre deixando os livros de lado e burlando as regras para ajudar alguém ou mesmo para descobrir sobre seu passado. Essas características tão importantes que formam a personalidade de Harry – a bondade e a coragem (bem como a capacidade de criar confusão e transgredir regras, segundo todos falam) – são citadas sempre ao longo da saga, e é muitas vezes através delas que ele próprio passa a saber sobre seu passado e seu presente. Em diversos momentos da história, fica claro para o leitor que uma das lições básicas a serem aprendidas é a da amizade. Harry fez amizades boas e duradouras em Hogwarts, além de Rony e Hermione, passou a confiar em todos os seus amigos e a 32 ter a confiança deles, e em várias ocasiões teve sua ajuda para sair de dificuldades. Apesar de poderoso e corajoso, Harry jamais teria sobrevivido sem o suporte desses amigos, tanto nos momentos em que se exigiu lutar usando a magia quanto nos de tristeza pelos quais passou. Um personagem marcante na questão amizade e que muito ensina ao leitor é Hagrid: apesar de sua aparência um tanto amedrontadora no início – ele é descendente de gigantes –, revela-se extremamente generoso, bondoso e preocupado com as pessoas a quem ama. Não se pode esquecer que foi Hagrid quem ajudou Dumbledore a proteger Harry de Voldemort após o assassinato de seus pais e foi ele quem deu os primeiros presentes que o bruxinho recebeu na vida: seu bolo de aniversário de onze anos e sua tão amada coruja de estimação, Edwiges – mais uma grande companheira de Potter. Entretanto, é preciso ter cuidado e saber, também, que existem tipos diferentes de amizades. Segundo Harald Thorsrud (2004, p. 49-58), assim como nosso herói tinha seus fiéis companheiros, seus inimigos, Draco Malfoy e Lord Voldemort, também os tinham. Como afirma o autor, no caso de Malfoy, por exemplo, seus companheiros Crabble e Goyle são vistos como dois garotos que seguiram o caminho errado, ou apóiam a pessoa errada: são os ditos amigos úteis. Mas o fato é que, para serem amigos de alguém tão desagradável como Draco, com certeza, eles são motivados por medo e ganância, além da incrível sensação de poder ao triunfar sobre alguém considerado “inferior” através do imenso ego de Malfoy. E, é claro, há o fato importantíssimo de que eles são filhos de dois Comensais da Morte, como são conhecidos os seguidores do Senhor das Trevas, assim como Draco. O próprio Voldemort tinha seus seguidores, alguns fiéis, outros nem tanto, como é o caso de Lúcio Malfoy, pai de Draco, e de Rabicho. Malfoy é movido pela conveniência: ao se ver sem seu líder, finge ter saído do lado das trevas e não ser mais 33 um Comensal da Morte. Em Harry Potter e o Cálice de Fogo, ao ressuscitar, Voldemort o intimida devido a seu abandono: – Lúcio, meu ardiloso amigo – murmurou ele se detendo diante do bruxo. – Ouço dizer que você não renunciou aos seus hábitos antigos, embora para o mundo você apresente uma imagem respeitável. Acredito que continue pronto para assumir a liderança de uma torturazinha de trouxas? No entanto você nunca tentou me encontrar, Lúcio... as suas aventuras na Copa Mundial de Quadribol foram engraçadas, devo dizer... mas será que suas energias não teriam sido melhor empregadas em procurar ajudar seu amo? (ROWLING, Harry Potter e o Cálice de Fogo, 2004, p. 516) Já a “amizade” e devoção de Rabicho dão-se unicamente porque ele teme o Senhor das Trevas: “Você voltou para mim, não por lealdade, mas por ter medo de seus antigos amigos. Você merece sentir dor, Rabicho. Você sabe disso, não sabe?” (ROWLING, Harry Potter e o Cálice de Fogo, 2004, p. 516). A divisão social e a econômica também se fazem presentes na saga de Harry Potter, e se percebe que o racismo e a discriminação econômica, temas sempre muito polêmicos, também fazem parte do mundo mágico. Slytherin queria ser mais seletivo com relação aos estudantes admitidos. Ele acreditava que o aprendizado da magia devia ser mantido no âmbito das famílias inteiramente mágicas. Desagradavalhe admitir alunos de pais trouxas, pois os achava pouco dignos de confiança. (ROWLING, J. K. Harry Potter e a câmara secreta, 2000, p. 131) Harry Potter tinha mãe trouxa e pai bruxo, portanto era considerado “mestiço” entre os bruxos. Rony e Draco eram “puro-sangue”, ou seja, tinham pais bruxos; já Hermione, por ter ambos os pais trouxas, era considerada “sangue-ruim”. Ora, apesar de, em Hogwarts, haver alunos de várias raças diferentes, como é o caso das gêmeas Patil, por exemplo, elas nunca foram discriminadas pela cor de sua pele. O que se chama de discriminação racial, no mundo mágico, é justamente ofender alguém por 34 ser mestiço ou por ser sangue-ruim. Em Harry Potter e a câmara secreta (2000), Rowling aborda esta questão quando a câmara secreta de Hogwarts é aberta pelo “herdeiro de Sonserina” e um monstro que ali habita deverá matar todos os alunos sangue-ruins da escola. – É praticamente a coisa mais ofensiva que ele podia dizer (...) Sangue ruim é o pior nome para alguém que nasceu trouxa, sabe, que não tem pais bruxos. Existem uns bruxos, como os da família de Malfoy, que se acham melhores do que todo mundo porque têm o que as pessoas chamam de sangue puro. (ROWLING, Harry Potter e a câmara secreta, 2000, p. 102) Nesta parte da história, dá-se ênfase ao termo “herdeiro de Sonserina”, que, depois, descobre-se ser o próprio Lord Voldemort não por acaso. O verdadeiro nome do fundador da casa de Sonserina é Salazar Slytherin, e, segundo Smadja (2004), em Harry Potter: as razões do sucesso, há uma evidente alusão ao famoso ditador português Salazar. Portanto, há também uma evocação ao fascismo. Com o decorrer da saga, é revelado que Voldemort, tão discriminador, também era mestiço, mesmo sendo ele o último herdeiro de Sonserina. Aqui, há uma relação com Adolf Hitler, que, assim como o Senhor das Trevas, também não mediu esforços e crueldades para atingir seu insano objetivo: a raça pura. A discriminação e a desigualdade econômica e social também são questões levantadas durante a saga de Harry Potter. É preciso lembrar que o próprio Harry, no início, era extremamente discriminado por sua família e tratado como um criado enquanto Duda, seu primo, chegava a ganhar mais de trinta presentes dos pais no dia de seu aniversário. Outro exemplo marcante disso são as famílias Weasley e Malfoy. Enquanto a primeira é pobre e numerosa, sempre batalhando com bom humor e generosidade para vencer os obstáculos, os Malfoys são ricos, extremamente cruéis e discriminadores com 35 os bruxos que não têm tanto poder e dinheiro quanto eles. Entretanto, Percy Weasley foge ao estereótipo de “rapaz pobre, bonzinho e maltratado” e se revela um traidor extremamente ambicioso, apesar de ter sido criado com valores diferentes. Ainda nesta questão de discriminação social não se pode deixar de citar os elfos domésticos Dobby e Winky, que representam toda uma raça escrava de famílias bruxas ricas. No decorrer da história, Hermione luta para mudar a situação dos elfos, inclusive criando o Fundo de Apoio à Liberação dos Elfos (F.A.L.E.), porém o conformismo deles é tão grande com seu estado de servidão e escravidão que praticamente ninguém dá ouvidos à garota. Mais uma vez a história transmite a idéia de liberdade: primeiramente, Harry liberta Dobby da escravidão da família Malfoy. Assim como Potter, o elfo doméstico era extremamente maltratado e usava roupas rasgadas ou panos velhos; após, há a tentativa infrutífera de Hermione de convencer a todos os elfos de Hogwarts a serem libertados e tratados dignamente. Segundo Patterson (2004, p. 121), o mundo da magia reconhece que a escravidão é um mal, e que existe o dever de extingui-la, porém isso não acontece porque há questões mais urgentes a serem tratadas, como a necessidade de combater os Comensais da Morte. A paixão pelos esportes, também um grande atrativo para os adolescentes, é abordada na saga de Rowling. O esporte preferido dos bruxos, como mencionado anteriormente, o quadribol, tem seus times, ídolos, suas seleções, torcidas organizadas, campeonatos e toda a euforia que envolve este tipo de atividade. Um dos mais admirados ídolos do esporte é o jogador búlgaro Vitor Krum, que se destaca em Harry Potter e o Cálice de Fogo no Campeonato Mundial de Quadribol e, depois, torna-se adversário de Harry no Torneio Tribruxo, famosa competição com tarefas difíceis entre escolas de magia do mundo todo. 36 Porém, nem tudo é assim tão belo: aqui, tem-se outra amostra da divisão social: os mais ricos tinham as vassouras mais velozes – Nimbus, Firebolt – e os menos afortunados usavam as velhas vassouras disponíveis na escola. Na saga de Rowling, a vassoura é uma das principais estrelas do mundo mágico. O contexto da Idade Média, do tempo das bruxas perseguidas pela Inquisição, surge atualizado pela linguagem da sociedade de consumo de massas: a vassoura ganha inovações tecnológicas a cada ano, como os automóveis e os aparelhos de televisão; ganha também preços mirabolantes e vira objeto de desejo de crianças e adultos. Para o prosaico objeto, Rowling inventa um catálogo de inovações; existem até agora a antiga versão da Shooting Star, o modelo utilizado pelo amigo pobre de Harry, Rony, capaz de ser ultrapassado no vôo até por borboletas; a Cleansweep Sevens, um pouco menos lenta, utilizada pelo time de Corvinal; o modelo Nimbus 2000, a primeira vassoura adquirida pelo herói, com que ele estréia no jogo de quadribol aos 11 anos; a Nimbus 2001, com a qual o inimigo Malfoy tenta ser mais rápido do que Harry, e o fantástico exemplar da Firebolt, presente de Natal, anônimo, que se supunha enfeitiçado e perigoso, mas que, ao final, revela-se um regalo de Sirius, o padrinho foragido, no livro Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban. (GUTKOSKI, 2005, p. 80) Harry sente-se livre ao voar em sua vassoura e jogar quadribol. A sensação de leveza e de ter o ar batendo em nossos rostos sempre foi objeto de fascínio do ser humano. Tanto que, em Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, aparece o hipogrifo, animal mitológico que voa e que também serve como símbolo de coragem no momento em que Harry, Rony e Hermione salvam-no de ser sacrificado injustamente. Não só o hipogrifo, mas também outros animais, bons ou maus, têm papel importante na saga de Potter. Entre os chamados “bons”, destaca-se a coruja de Harry, Edwiges. Segundo afirma Colbert (2001, p. 64 e 152), as corujas eram o símbolo da bruxaria e também da sabedoria em Atenas, bem como, no Cristianismo, o nome da santa padroeira dos órfãos (Harry e Voldemort são órfãos). Rony e Hermione também têm seus animais de estimação – um rato e um gato, respectivamente –, e ainda há animais lendários e mitológicos, como a fênix, o lobisomem e o unicórnio. Os 37 animagos, bruxos que se transformam em animais, têm destaque na figura da professora Minerva McGonagall – que se transforma em um gato –, de Sirius Black, padrinho de Harry (black, em inglês significa “negro”, e o animago de Sirius é um cachorro negro), e do professor Remo Lupin (Remo é o nome de um dos lendários fundadores de Roma, alimentados por uma loba, e Lupin vem do latim Lupus, que significa “lobo”). O próprio Patrono – um tipo de energia positiva, uma projeção de esperança, felicidade, desejo de sobrevivência – de Harry é representado por um cervo. E em Harry Potter e a câmara secreta (2000), há a serpente comandada por Voldemort na eliminação dos sangue-ruins, mostrando que a maldade não está vinculada apenas às pessoas. Outro objeto atrativo, sobretudo para as leitoras adolescentes, aparece também em Harry Potter e a câmara secreta: Gina Weasley acha o diário mágico de Tom Riddle – Voldemort –, e nele escreve todos os seus anseios e confidências. Há uma alusão ao hábito que as garotas têm de escrever em diários, agendas e blogs. A pequena Gina anda escrevendo nele há meses, me contou suas tristes preocupações e mágoas, como os irmãos implicavam com ela, como teve de vir para a escola com vestes e livros de segunda mão, como – os olhos de Riddle brilharam –, como achava que o bom, o famoso, o importante Harry Potter jamais iria gostar dela... (ROWLING, Harry Potter e a câmara secreta, 2000, p. 260-261) Mais uma importante questão presente na história é a da humildade, e um exemplo marcante disso ocorre quando Hagrid e McGonagall questionam Dumbledore sobre o porquê de ele deixar o então bebê Harry Potter aos cuidados de pessoas tão detestáveis como os Dursley; o diretor de Hogwarts diz que o bruxinho precisa primeiro sofrer e saber como é viver humildemente, para que, depois que lhe for revelada sua verdadeira identidade de bruxo famoso e poderoso, ele saiba como lidar com isso e fazer o bem. 38 Isto seria o bastante para virar a cabeça de qualquer menino. Famoso antes mesmo de saber andar e falar! Famoso por alguma coisa que ele nem vai se lembrar! Você não vê que ele estará muito melhor se crescer longe de tudo isso até que tenha capacidade de compreender? (ROWLING, J. K. Harry Potter e a pedra filosofal, 2000, p. 17) E, por fim, a tristeza. Em Harry Potter e o enigma do príncipe (2005), o mundo da magia perde um de seus maiores benfeitores, Alvo Dumbledore, morto por Severo Snape, professor de sua escola, alguém em quem confiava. O leitor, desolado, acompanha a dor do mundo mágico: apesar de, desde o início da saga, o tema morte estar presente, agora alguém realmente querido pelos bons bruxos fora assassinado. O esteio de Harry Potter se foi. Todos choram. O leitor chora. E Harry, mais uma vez provando sua coragem e valor, promete que, no ano seguinte, não retornará a Hogwarts para terminar seus estudos: ele vingará a morte de seus pais, de Dumbledore, de Sirius Black, enfim, de todos a quem amava e que foram levados por Voldemort e seus seguidores. Se Potter conseguirá cumprir sua audaciosa promessa, apenas o último livro de Rowling, ainda não lançado, dirá com certeza. Enquanto isso, o leitor, pensativo, pesaroso, imagina como será o desfecho dessa trama tão envolvente e instigante. Assim, centenas de teorias sobre o final da saga de Harry Potter são criadas e debatidas por leitores ansiosos por respostas: quem nunca perdeu alguém, se apaixonou, foi traído, injustiçado, tirou notas baixas, teve amigos fiéis e inimigos cruéis? Quem não se identifica com as aventuras do bruxinho? A trama criada por J. K. Rowling faz com que o leitor se identifique com a história e seus personagens uma vez que os sentimentos, alegrias e aflições pelos quais os bruxos passam qualquer pessoa também enfrenta. Todos têm seus bons e maus momentos, suas crises, suas angústias, suas dúvidas, principalmente os leitores adolescentes que comparam e questionam suas vidas através da história de Potter. 39 Um exemplo disso é a divisão em grupos e semigrupos dos adolescentes tanto na escola como na vida. Cada grupo e sua escolha representam muito para cada um, pois é ali que se consolidarão os traços já inclusos na índole. Cada um escolhe os amigos que quer ter, o grupo do qual quer participar. O problema, muitas vezes, é que os que não são “iguais” são discriminados, situação que, infelizmente, pode-se vivenciar a todo o momento e em qualquer lugar. Também é um tanto peculiar Rowling apresentar os elfos domésticos, seres servis no mundo mágico, sinalizando que se ignora o que não é lucrativo nem interessante de se ver e resolver. Durante a história, pode-se perceber que os elfos poderiam ser “libertados” e poderiam ter maiores oportunidades de crescimento se houvesse maior mobilização da sociedade e dos mais poderosos. Então, como no mundo mágico existem estes fatos tão comuns no dia-a-dia do leitor – além dos vários outros elementos relacionados à magia –, fica fácil identificar-se com a história, que faz com que haja, ao mesmo tempo, fascínio e identificação com Harry Potter. 3 COMUNIDADES VIRTUAIS E IDENTIDADE A internet disponibiliza, em segundos, diferentes tipos de informação e de oportunidades que normalmente levariam horas, dias ou semanas para serem alcançadas, como a compra de livros, eletrodomésticos, a procura de oportunidades profissionais, consulta imediata a dicionários de todos os tipos etc. Seu número de usuários cresce a cada dia e, como é cada vez mais presente e necessária à comunicação, interação e aprendizagem, o uso desta “ferramenta” já é realidade em muitas escolas brasileiras e do exterior. Quando uma escola se conecta à Internet, um novo mundo de possibilidades se abre diante de alunos e professores. Não mais falamos, a partir daí, de alguns instrumentos didáticos como um livro ou uma enciclopédia; falamos de uma infinidade de livros e de sites que o aluno pode visitar; de uma nova realidade de conceitos, representações e imagens com as quais o aluno passa a lidar e que vão ajudar a desenvolver outras habilidades, capacidades, comportamentos e até processos cognitivos que a escola tradicional não previa e que o mundo pós-moderno já exige dele. Além disso, os conteúdos que chegam pela Internet se tornam mais interessantes e atraentes do que quando apresentados em livros ou apostilas, material já tão conhecido pelos alunos; aprender pode se tornar algo divertido, realístico e mais significativo. (RAMAL, 1996) Com sua constante utilização, novas comunidades virtuais disponíveis aparecem diariamente, promovendo não só a comunicação, mas também a interação e a aprendizagem de temas culturais os quais normalmente seriam de mais difícil acesso sem o uso deste tipo de recurso. Para Andréa Cecilia Ramal (1996), a “conexão da sala 41 de aula à Internet faz com que o universo de conhecimentos se amplie. Ao navegar no ciberespaço, o aluno tem acesso a um sem-número de informações, com a vantagem de elas serem provenientes de diferentes culturas, indicadoras de diferentes visões de mundo e de significações diversas. Isso abre os horizontes do ensino.” Uma comunidade virtual pode, por exemplo, organizar-se sobre uma base de afinidade por intermédio de sistemas de comunicação telemáticos. Seus membros estão reunidos pelos mesmos núcleos de interesses, pelos mesmos problemas: a geografia, contingente, não é mais nem um ponto de partida, nem uma coerção. Apesar de “nãopresente”, essa comunidade está repleta de paixões e de projetos, de conflitos e de amizades. Ela vive sem lugar de referência estável: em toda parte onde se encontrem seus membros móveis... ou em parte alguma. A virtualização reinventa uma cultura nômade, não por uma volta ao paleolítico nem às antigas civilizações de pastores, mas fazendo surgir um meio de interações sociais onde as relações se reconfiguram com um mínimo de inércia. (LÉVY, 1996, p. 9) Sobre o ciberespaço e as comunidades virtuais como ferramenta de aprendizagem e de socialização Shaffer e Anundsen (1993) apud Palloff e Pratt (1999, p. 45) afirmam que o ciberespaço é o espaço conceitual em que palavras, relacionamentos humanos, dados, riqueza e poder são manifestados pelas pessoas que usam essa infra-estrutura tecnológica; as comunidades virtuais são agregações culturais que emergem quando um número suficiente de pessoas encontra-se no ciberespaço. No passado, a diferenciação e a participação em um grupo social eram fatores relevantes para o desenvolvimento da comunidade. As pessoas que possuíam interesses comuns formavam grupos e comunidades a fim de buscar aquilo que as distinguia de outros grupos. Além disso, as comunidades formavam-se com base em um local determinado. A pequena cidade ou bairro no qual se vivia era a comunidade de que se participava. Aderir às normas dessa comunidade permitia que se continuasse a ser um membro dela. Expressar sua singularidade como pessoa era às vezes um problema, por causa da necessidade de que tais normas fossem respeitadas. (SIC) Entretanto, é fundamental deixar claro que, mesmo dentro de comunidades virtuais – em específico o Orkut, foco deste trabalho –, há regras de convivência preestabelecidas pelo criador, o “dono” da comunidade. Então, existem 42 limites, mas há muito mais chances de se desenvolver a capacidade de comunicação e de se descobrir – ou redescobrir – como leitor, como crítico e como pessoa. Palloff e Pratt (1999, p. 4) citam, em sua obra, Steven Jones (1995), falando sobre as possíveis identidades que as pessoas assumem em ambiente virtual: Ingressar na comunidade virtual e continuar a ser membro dela acarreta um processo muito diferente, que pode ser algo difícil para algumas pessoas. Steven Jones (1995, p. 156), em seu livro Cybersociety, afirma: “O quanto as pessoas utilizam a comunicação por computador como meio para inventar novas personas e para recriar suas identidades – ou para fazer uma combinação de ambas –, bem como os modos pelos quais o fazem, são questões centrais à construção de uma sociedade em que o computador exerce um papel tão importante.” Jones descreve o que se chama de personalidade eletrônica: a pessoa que nos tornamos quando estamos on-line. Nosso trabalho (PRATT, 1996, p. 119-120) demonstrou que, para essa personalidade eletrônica existir, certos elementos devem manifestar-se, tais como: - a capacidade de dar continuidade a um diálogo interno a fim de formular respostas; - a criação de uma imagem de privacidade, tanto em termos do espaço a partir do qual a pessoa comunica-se quanto da capacidade de criar um sentimento interno de privacidade; - a capacidade de lidar com questões emocionais pela forma textual; - a capacidade de criar uma imagem mental do parceiro durante o processo comunicativo; - a capacidade de criar uma sensação de presença on-line por meio da personalização do que é comunicado. (SIC) 3.1 O Orkut e suas comunidades O Orkut (http://www.orkut.com) é uma comunidade virtual, um site de relacionamento que se transformou em “ponto de encontro” de pessoas com os mesmos interesses e amigos em comum. Segundo o publicitário André Telles (2006, p. 21), o Orkut foi criado em 22 de janeiro de 2004, e seu nome é uma homenagem a seu projetista chefe, Orkut Büyükkokten, engenheiro do grupo Google. Contudo, o inventor 43 de software provavelmente não previu que sua criação alcançasse a enorme repercussão e sucesso que tem atualmente, contando com cerca de 13.250.000 usuários cadastrados. A “febre” Orkut invadiu a internet, chegou a muitos países e faz grande sucesso no Brasil, sobretudo entre adolescentes. Conforme Telles (2006, p. 24), o Brasil é o país com maior número de membros, equivalendo a 72,91% dos usuários. O autor afirma ainda que, “na realidade, esse número não é a expressão da verdade, já que muitos membros se inscrevem como habitantes de outros países ou criam mais de um perfil por usuário. As estatísticas oficiais do site, portanto, não podem ser consideradas precisas.” André Telles (2006, p. 25) explica que “as pessoas mais jovens têm mais interesse no Orkut. Cerca de 52,57% de seus membros são pessoas na faixa etária dos 18 aos 25 anos. Esse número também não é expressão da verdade, pois menores de 18 anos participam da rede fornecendo idades incorretas.” No Orkut, os participantes têm total liberdade para criar seu próprio perfil e nele escrever o que quiserem: podem colocar nomes diferentes e alterá-los ao longo do tempo, quantas vezes isso for de seu agrado, podem ou não preencher a gama de informações que são requisitadas, que vão desde a data de nascimento, endereço, telefone etc. até a hábitos, filmes, programas e comidas prediletas. Os usuários criam a seu bel-prazer algumas das mais interessantes informações do perfil: o preenchimento do campo intitulado “quem sou eu”, onde pode ser escrito qualquer tipo de texto, de autoria ou não do usuário. Muitos se descrevem usando poemas, músicas ou mesmo criam seus próprios textos falando de si mesmos, de suas preferências e pontos fortes e fracos. Entretanto, há os que não desejam registrar coisa alguma ou que simplesmente escrevem “quem me conhece que me descreva”, por exemplo. Rena M. Pallof e Keith 44 Pratt (2002, p. 46) comentam estes tipos de comportamento existentes em comunidades virtuais: O indivíduo cria um ambiente virtual que permite o surgimento de sua personalidade eletrônica. Os introvertidos são mais hábeis na criação de um ambiente virtual, pois sabem como processar informações internamente e são menos abertos socialmente. Para o introvertido, é mais fácil demorar-se em pensamentos sobre determinada informação antes de responder a ela. É mais difícil – mas não impossível – para os extrovertidos fazer o mesmo, talvez porque tenham menor necessidade de fazê-lo. Outra característica que chama a atenção no Orkut é que os participantes não necessitam revelar seus verdadeiros nomes, e podem criar nicknames ou simplesmente nicks (apelidos, em inglês). Os nicks são mais populares entre os adolescentes que participam da rede, entretanto os adultos também são seus adeptos. Para Andréa Cecília Ramal (2002, p. 118), os nicks desconstroem simbolicamente uma série de outros elementos tradicionalmente mais valorizados – as vozes dominantes da idade, do gênero, do poder econômico, do status social. Detrás do nick não se conhece ao certo quem fala e, se por um lado, sua voz não pode ser sobrevalorizada, também não pode ser excluída a priori em função de qualquer pré-conceito ou estereótipo. No Orkut, qualquer um dos participantes pode criar e participar de até mil comunidades usando um perfil, conforme os assuntos com os quais se identificam. Existem comunidades para todos os gostos e de todos os tamanhos, algumas com milhões de participantes, algumas com pouquíssimos, inclusive há uma delas que se intitula “Comunidade Vazia”, sem participantes. Com apenas um clique, pode-se participar de uma dessas comunidades e reencontrar pessoas que não fazem mais parte de nosso convívio, fazer novos amigos com interesses em comum, paquerar e até fazer 45 novos contatos profissionais. Tudo é livre no Orkut: pode-se escolher quando e como participar de qualquer comunidade e se expressar espontaneamente. 3.2 Harry Potter, Orkut e identidade Como já mencionado anteriormente, Harry Potter é considerado um fenômeno literário. E este fenômeno alcançou tamanha proporção que atingiu o Orkut. Neste site de relacionamento, existem mais de mil comunidades que fazem referência à Harry Potter, sua trama, personagens, livros e autora em português. Com uma pesquisa simples, encontra-se todo o tipo de comunidade sobre o assunto, e seu fórum – parte da comunidade onde são postados tópicos com críticas e discutidas idéias – é escrito com textos repletos de “internetês”, a linguagem utilizada pelos internautas, com palavras como “aki” (aqui), “vc” (você), “axo” (acho), “entaum” (então) e “eh” (é), por exemplo. Ao longo deste trabalho, foram feitas pesquisas no Orkut durante os meses de setembro, outubro e início de novembro de 2006 em comunidades disponíveis em língua portuguesa sobre Harry Potter, tais como Harry Potter Brasil, Harry Potter Fanfic, AD – Armada de Dumbledore, Luna Fonteles e Contra o fim de Harry Potter. Nos meses em que o conteúdo das comunidades foi observado e analisado, consultavam-se as comunidades escolhidas de nove a dez vezes por semana por cerca de duas horas diárias. Constatou-se que as comunidades do Orkut em que mais há polêmica e discussão sobre o assunto são aquelas que tratam de especulações sobre o sétimo livro da série, ainda não publicado, e as que abrem espaço para os participantes escreverem fanfictions. De acordo com Tânia M. K. Rösing e Maria Lucia Bandeira Vargas (2005, p. 76), 46 o fenômeno da fanfiction surpreende pela transposição, para o meio virtual, de várias práticas e valores caros ao sistema escolar, numa atividade de lazer altamente absorvente para seus participantes. Fanfictions são histórias escritas por fãs de textos originais – não necessariamente impressos, pois que muitos deles imagéticos – envolvendo os cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidos pelo autor daquele original, sem que exista nenhum intuito de quebra de direitos autorais e de lucro envolvidos na prática. Os autores de fanfictions dedicam-se a escrevê-las em virtude da profundidade da experiência que vivenciam no contato com o texto original. No Orkut, os participantes dessas comunidades, além de criticarem a história, discutirem e especularem sobre o desfecho da saga do bruxinho criado por J. K. Rowling, ainda escrevem, capítulo a capítulo, sua própria versão para o sétimo livro. Um exemplo disso pode ser encontrado na comunidade Contra o fim de Harry Potter (Disponível em <http://www.orkut.com/CommTopics.aspx?cmm=3287426>. Acesso em: 05 nov. 2006), no tópico intitulado “Fic pra quem leu o 6º livro”, criado pela participante A1. Neste tópico, até o dia 05 de novembro de 2006, a participante A, de 18 anos, havia escrito nove capítulos de sua fanfiction (ou fanfic) sobre o sétimo livro da série Harry Potter. Ao longo deste texto, percebe-se que a história criada pela adolescente foi escrita em uma linguagem semelhante à da narrativa de Rowling e inicia exatamente após o último episódio do sexto livro da saga, Harry Potter e o enigma do príncipe (2005), quando ocorre o funeral de Dumbledore e o juramento de vingança de Potter. A participante A segue a seqüência lógica e continua a história no que seria a próxima atitude a ser tomada após o final de um ano letivo na escola de magia: tomar o Expresso de Hogwarts e voltar para casa. Estavam os quatro num compartimento do Expresso de Hogwarts. Harry olhava pela janela, o castelo se afastando aos poucos. Acabara 1 Para preservar as identidades dos participantes das comunidades do Orkut, será usado este tipo de nomenclatura para identificá-los. 47 de ver, pela última vez, aqueles oclinhos de meia-lua apoiados no nariz torto e a expressão serena e calma de sempre na face de Dumbledore. Em sua cabeça pairava um turbilhão de dúvidas: onde estariam Snape e Malfoy agora? Qual seria o próximo plano de Voldemort? Como seria continuar sem Dumbledore...sem Sirius...não haveria quem o proteger... E como seria Hogwarts após essas férias de verão? Absorto em seus pensamentos, aquela voz doce e familiar o fez despertar. Na verdade, o que a autora adolescente questiona em seu texto reflete a curiosidade que ela tem em sanar suas próprias dúvidas e expectativas em relação à continuação da história de Rowling. Os leitores de Harry Potter estão ansiosos para saber sobre o paradeiro de Malfoy e Snape, pois a trama que envolve as aventuras de Harry instiga a curiosidade do leitor de tal maneira que ele tem necessidade de saber o que acontecerá em seguida. A participante A, ainda em seu primeiro capítulo, mostra as descobertas e os anseios dos bruxinhos adolescentes sobre os relacionamentos amorosos em meio à ameaça iminente dos ataques de Voldemort. Ao escrever sobre este assunto, pode-se perceber a identificação da adolescente com os possíveis acontecimentos corriqueiros dos conturbados relacionamentos amorosos dos adolescentes, o que possivelmente também ocorre com a autora da fanfic: Agora estavam só os dois ali. Harry não sabia o que dizer. Gina, apesar da expressão determinada de sempre, parecia não saber como começar a falar. Passados alguns segundos, ela quebrou o silêncio. Harry, e agora, como vai ser? - Perguntou ela dessa vez com um olhar de súplica. (...) - Bem... tenho que encontrar as horcruxes, não é? E depois liquidar Voldemort, não tenho escolha... - Gina balançou a cabeça, abafou um soluço e em seguida se curvou do banco onde estava, aproximando-se muito do rosto de Harry. – Você sabe que não estou falando disso, Harry. Estou falando de nós dois... – Mas ele lutava contra o dragão em suas entranhas, resistindo a manter sua decisão e continuou. (...) - Então é essa a sua decisão definitiva? Sinceramente Hary (SIC), eu esperava mais de você. Prefere ignorar o que estou dizendo, me evitar... Você que já viu a morte de perto, já enfrentou sozinho o 48 bruxo mais temido de todos os tempos, pensei que havia mais coragem em Harry Potter... Mas vejo que... - Enfrentar Voldemort só exige que eu reúna todo o ódio que tenho dele para criar forças a meu favor... Com você é diferente... Não agüentaria olhar nos seus olhos, encara-la (SIC) e dizer que não podemos continuar juntos. Um fato interessante e estimulante presente na comunidade virtual são os comentários dos colegas da comunidade, que lêem os textos da adolescente, elogiam e incentivam a jovem autora a continuar escrevendo. Alguns dos leitores chegam a chamar a adolescente de “clone da Rowling”. É claro que também há algumas críticas desfavoráveis, mas são poucas. Um exemplo de busca e questionamento de identidade pode ser visto no terceiro capítulo postado na mesma comunidade pela participante A. Nesta parte do texto, ainda é abordado o relacionamento amoroso entre Harry Potter e Gina Weasley, e Harry tem dúvidas sobre sua vida e sua importância no mundo mágico. - Oi – Sussurrou baixinho no ouvido dela entregando-lhe a flor. Ela sorriu, parecendo irradiar felicidade. - Pensei que não viesse falar comigo. Ah, obrigada. A flor é linda, mas hoje é o seu dia de ganhar presentes. – disse ela. - Trouxe para compensar a demora, te deixei esperando muito? - Bem... quando eu aceitei me tornar namorada de Harry Potter estava ciente de que teria que dividi-lo com todo mundo. - Por esse e outros motivos eu preferia não ser Harry Potter. - Mas foi pelo Harry que eu me apaixonei. Não seria a mesma coisa com outro. - Então se eu não fosse “o menino que sobreviveu” ou “O Eleito” como dizem, não estaria aqui comigo agora? - Não é isso Harry. Não estou com você pelo que te rotulam e sim pelo que você é. O que quero dizer, é que em parte as suas virtudes estão ligadas à (SIC) tudo o que você já viveu. A coragem que tem em enfrentar o que há de pior, a lealdade aos amigos... e por isso te admiro tanto. Pouco me importa se você seja “O Eleito”, o que importa pra mim é que você seja sempre “o meu Harry”. Estarei ao seu lado, aconteça o que acontecer. – Ela lhe entregou uma pequena caixinha vermelha em forma de coração. Ele abriu, lá estava um cordão de prata com um pingente e nele estava gravado: “H & G”. O pingente também se abria e dentro havia uma foto de Gina sorrindo, linda como sempre. Ele observou o presente um tempo sem nada dizer. Então ela falou: 49 - Espero que tenha gostado.O cordão é pra te proteger, te dar sorte e... pra você não esquecer de mim nunca. - De proteção e sorte eu vou precisar a partir de hoje. Mas quanto a te esquecer... nem que apaguem minha memória vão conseguir tirar de lá uma ruivinha que há muito tempo ocupa um lugar especial. – Ela o abraçou, como se nunca tivesse feito isso antes. O fato de Potter ser o responsável pela morte de Voldemort quando era um bebê está presente neste trecho, assim como na obra de Rowling. Todavia, quanto mais velho, mais o bruxinho parece detestar toda esta notoriedade, pois isto, aliado ao retorno do Senhor das Trevas e dos Comensais da Morte, impede que ele tenha uma vida tranqüila como qualquer adolescente. Esta resistência em aceitar seu papel é tão evidente para o leitor de Harry Potter que, até mesmo quando é elaborada uma fanfiction como esta, o assunto é abordado. Outra fanfiction encontrada no Orkut, na comunidade Luna Fonteles, intitula-se “Tiago Potter”, o pai de Harry <http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=20648317>. (Disponível Acesso em 07 em de novembro de 2006). Nesta fanfic, a participante B conta a história de Tiago desde que ele era um garoto, sua amizade com Sirius Black e sua rotina na escola de magia. Este texto é inovador, pois, durante a série Harry Potter, nunca se explorou profundamente detalhes corriqueiros da vida do pai de Harry quando ele era apenas um adolescente em Hogwarts: Rowling expõe apenas os acontecimentos relevantes à formação da identidade de Harry, sendo que eram revelados esporadicamente e a muito custo durante a sua obra. Aos onze anos Tiago tinha os cabelos muito rebeldes. Era um menino de cabelos negros e olhos castanhos. Também era muito curioso... Na verdade sua casa que era muito interessante... Uma noite o sr. Potter deixara a porta de seu escritório aberta ao sair apressadamente para falar com a esposa. Era muito raro ela deixar a porta aberta, então Tiago entrou sem perder tempo. Já estivera ali com a permissão do pai, mas nunca sem ela. Seu pai deixara claro que ele não deveria entrar ali sem permissão, mas qual seria o problema? Ele só queria dar uma espionada. Viu em cima de uma cadeira uma capa que parecia ser 50 tecida de fios de água prateada. O que seria aquilo tão curioso? Tiago andou em direção à capa, mas antes que pudesse tocá-la ela pulou para trás fazendo um som horrível de madeira sendo lixada. Antes que Tiago tivesse tempo de sair dali, sentiu uma mão em seu ombro. - Filho, eu te avisei para não entrar sem minha permissão. Mas o sr. Potter não castigou Tiago, apenas disse que o faria se aquilo se repetisse. Ele admirava muito seu filho por sua criatividade e curiosidade (até certo ponto). Lembrou de um dia que Tiago fez uma chaleira sair voando pela janela cinco anos atrás. É claro que era difícil esquecer tal coisa, uma vez que nunca mais acharam a chaleira. Outra característica da fanfic da participante B é que é mostrada a juventude dos atuais professores de Hogwarts. Neste texto, é exposta a inimizade entre Tiago Potter e Severo Snape, que, no texto de Rowling, transfere este sentimento para Harry: O malão tinha os dizeres S.S. Prince e dois garotos do primeiro ano discutiam. Ambos estavam com uma expressão de puro desdém e tinham os cabelos negros. Um tinha os cabelos mais longos e um rosto pálido, com olhos negros e frios. A primeira impressão que Tiago teve foi que aquele menino não tinha muitos amigos. Alem (SIC) do mais tinha cara de quem comeu e não gostou. O outro garoto mesmo discutindo tinha cara despreocupada e dava respostas frias. Também tinha olhos negros, mas era charmoso. Você vai pagar caro – disse o garoto pálido pegando a varinha – muito caro, Black. - Oooooo! Tá ficando corajoso, até me desafiou! – zombou Black também pegando sua varinha. O garoto pálido pulou em cima de Black, jogando sua varinha nos pés de Tiago. Tiago apanhou-a e devolveu a Black. O garoto pálido olhou Tiago com profundo desprezo. - Obrigado, – disse Black a Tiago – mas mesmo sem varinha eu poderia estraçalhar esse imundo! O garoto pálido olhou para Tiago e disse: - Sai daqui, você não tem nada que se meter! - Cala a boca, Snape – retrucou Black – você ta (SIC) é com inveja dele porque o seu cabelo é seboso e o dele não! Afinal, o que você faz pra ser tão pegajoso nojento? Snape fez um movimento brusco com a varinha, mas nada aconteceu. Outros personagens, como Remo Lupin, Lúcio Malfoy, Pedro Pettigrew e o pai de Goyle também se fazem presentes na história criada pela participante B. Os feitiços proferidos pelos personagens, os nomes, os fatos, todos se encaixam perfeitamente com a história ao longo da saga. A participante B apenas baseou-se nos 51 poucos episódios sobre a juventude desses personagens e criou sua própria versão. É o adolescente fazendo sua leitura do texto e transformando-se em escritor. Snape empalideceu, mas se virou para encará-lo. - Não é da sua conta! Seu... Mas antes de Snape terminar, o prof. Hokenwood vinha em direção à (SIC) eles. - Snape! Qual de vocês é o Snape? – Snape foi em sua direção – Ah, bom. Venha cá, por favor. – e se afastou com Snape em seus calcanhares. Sirius olhou para Tiago e perguntou: - Será que o prof. Hokenwood também notou que o Ranhoso é um covarde incapaz de montar numa vassoura? Rindo, os dois acompanharam Lupim (SIC) em direção à entrada do castelo. Pedro, o garoto gordinho que estava sempre correndo, passou por eles, mas parou ao vê-los. - Por favor, me ajudem! Lúcio jurou me mandar para a enfermaria em forma de pó se eu não pagar a aposta. - Afinal, que aposta é essa? – perguntou Lupim (SIC) – E por que você não paga? - Não tenho 10 galeões para dar a ele! – gemeu Pedro – Eu apostei que o prof. Slughorn convidaria alunos da Grifinória para a “festinha” dele, mas ele não convidou! Ele se encolheu quando terminou de falar e se escondeu atrás de Tiago. Tiago olhou para a frente e viu que um menino de cabelos loiros e cara arrogante se aproximava. - Sai daí, Pettigrew – disse o menino loiro – vem aqui, covarde! Um garoto grande se aproximou. - Deixa o Pedro em paz! – gritou Tiago. - Ele me deve 10 galeões! Fizemos uma aposta e ele perdeu! Não saio daqui até receber o meu ouro. - Ah, vai sair sim. - disse Sirius começando a fechar a cara – Expelliarmus! O feitiço de Sirius atingiu Lúcio com tanta força que o derrubou no chão. Ele se levantou e correu em busca da varinha e gritou para o menino grande com cara surpresa: - Faça alguma coisa, Goyle! Goyle foi na direção de Sirius, mas Tiago gritou “petrificus totales” e ele caiu no chão com os braços e as pernas juntas do corpo. Lúcio recuperou a varinha e também gritou: - Expelliarmus! Um dos exemplos mais famosos de fanfiction no Orkut, entretanto, é aquela intitulada Harry Potter e o segredo ancestral. A história, escrita pela participante C, está disponível na comunidade Harry Potter Brasil <http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=30890&tid=2432292015405326999>. 52 A comunidade contava com 248.863 participantes até o dia 05 de novembro de 2006. Entretanto, constatou-se, no decorrer deste trabalho, que são poucos os participantes que fazem contribuições escritas à comunidade. Todavia, aqueles que participam do fórum fazem várias postagens diárias. Capítulo Um – Luvas e Cartas Harry revirou na cama, não conseguia dormir. Apertou o frasquinho de “Inertie” na mão esquerda, abriu-o e tomou outro gole do líquido transparente e amargo. Harry havia roubado isso no armarinho do banheiro na casa do Dursley. Sua tia Petúnia sofria de insônia desde o incidente com um berrador há dois anos e tio Valter comprava caixas e mais caixas desse remédio para que ela conseguisse dormir tranqüila. Harry gostaria de saber o porque (SIC) de tanta preocupação, mais que isso, ele queria saber se ela conseguia resultados com uma dose. Era o quarto frasco que Harry quase esvaziara e ainda não tinha conseguido dormir. Contemplou o teto do seu quarto escuro, iluminado apenas pela luz fraca da janela. Ele sabia que o único lugar em que estava completamente protegido até completar dezessete anos era ali na rua dos Alfeneiros Nº 4 Dumbledore disse isso a ele no ano anterior... Harry sentiu um aperto no peito, era duro pensar em Dumbledore quando há apenas duas semanas estava velando seu corpo nos terrenos de Hogwarts, sua ex-escola de magia. Os professores tentaram impedir que a fechassem, mas o Ministério advertiu que isso seria um grande perigo para todos os alunos e proibiu o começo do que seria o último ano letivo de Harry. Ele tentou não pensar em mais nada relacionado à antiga escola, que lhe trouxera as melhores lembranças de sua vida. Foi lá que aprendeu magia, foi lá que conheceu seus melhores amigos, Ron Weasley e Mione Granger, foi lá que descobriu mais sobre seus pais, foi lá que ele salvou a pedra filosofal, que salvou Gina... Esta fanfic já apresenta uma versão diferente daquela escrita pela participante A: aqui, Hogwarts foi fechada. Entretanto, a angústia provocada devido à morte de Dumbledore é um tema mantido em ambas as histórias. Na verdade, as autoras das fanfictions escreveram sobre a impressão que têm do que acontecerá no próximo livro de Rowling; como não há certezas sobre o futuro da escola de magia, é possível explorar várias possibilidades. O que é certo é apenas o fato de haver muito pesar pela perda de Dumbledore, além de muitas dúvidas e esperanças dos leitores com relação à 53 morte do grande bruxo. Existem vários fóruns de discussão em muitas comunidades sobre este assunto, e um deles faz parte da comunidade AD – Armada de Dumbledore (disponível em <http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=158175>. Acesso em 07 de novembro de 2006). No tópico intitulado “Dumbledore vivo, Snape aliado, Londres sitiada!!!” existem cerca de 28 postagens debatendo esta questão. O participante D, por exemplo, mostra suas teorias: Apenas 3 koisas (SIC), breves e rápidas: - Dumbledore não morreu, foi um plano com Severo, para ele ganhar a confiança de Voldemort novamente; - Severo é um aliado e espião de Dumbledore; - Todo o mundo trouxa irá descobrir a existência do mundo Mágico, e haverá uma verdadeira guerra bem no meio de Londres, com direito ao Parlamento e o Big Bang com imagem de fundo. (SIC) Entretanto, a teoria é contestada imediatamente por alguns integrantes da comunidade, a exemplo dos participantes E e F, respectivamente: Teoria sem argumentos nem rola, embora tambem eu duvide de q algum argumento me convença dessas 3 teorias! Mas posta ai se vc tiver, quem sabe aparece algo diferente daquelas q to cansado de ouvir. São improváveis, mas eu gostaria que fosse assim... principalmente a terceira... Mas tipo, ficar especulando é legal, até porque pode se descobrir alguma coisa. Mas não tem como saber... As suas duas primeiras expeculações (SIC) já foram feitas várias vezes feitas e há um racha de opniões. Na minha opnião (SIC): 1. Dumbledore morreru (SIC) 2. Snape é do bem 3. Improvável, mas empolgante... Outra fanfic, escrita pela participante G, que, segundo ela própria, desistiu de esperar pelos capítulos finais da história da participante C e então resolveu escrever a sua própria, foi intitulada Harry Potter e o salvamento improvável, disponível em <http://www.orkut.com/CommTopics.aspx?cmm=3241507>, na comunidade Harry 54 Potter Fan-Fic, com cerca de 954 membros até 07 de novembro de 2006. Até esta data, haviam sido postados três capítulos. Na fanfiction, pode-se ver mais um exemplo da criatividade do leitor de Harry Potter: a jovem autora criou Júlia, sua protagonista e filha de Harry e Gina. A menina, então com onze anos, é apanhadora de quadribol como o pai e começa o seu primeiro ano em Hogwarts, onde seus pais são professores. Harry, além de professor, ocupa o cargo de vice-diretor, que antes era de Minerva McGonagall. Na história, Draco Malfoy é casado com Pansy Parkinson, ambos ex-alunos de Hogwarts da casa de Sonserina. Ironicamente, seu filho chama-se Adolf, provavelmente uma alusão que o autor faz ao ditador nazista Adolf Hitler, demonstrando a visão pouco agradável que ele tem do casal. Com um toque shakespeariano, o autor adolescente narra uma provável paixão entre Júlia e Adolf, filhos de famílias inimigas. Já dentro do trem Adolf, Júlia e Felipe ocuparam um vagão, mas Felipe foi chamado pelo Angel para ir rapidamente no vagão deles. - Então, quer dizer que você é uma ótima apanhadora? - Eu não me acho, mas os meus primos dizem que sim. - Eu sou razoavelmente melhor no gol... - Então espero que ano que vem entremos para o time de nossas casas... - Soube que seu pai entrou no time da Grifinória no 1° ano... - Sim, como apanhador também. - Então o talento vem do sangue? - Acredito que sim - O meu era horrível...Mas sempre se vangloriou de ter vencido o seu pai... - É, mas o meu pai tinha sido derrubado por dementadores... - O meu pai nunca tinha me dito essa parte - disse Malfoy rindo (...) - Deixa que eu arrumo isso- E Júlia murmurou algo em que fez o fogo cessar. - Nossa você é boa nisso...- Disse Malfoy - Obrigada - Disse Júlia corando até a cor de seus cabelos escarlates... - Bom...Acho que chegamos...Temos de mudar de roupa...Hei porque eu já estou de roupa – E olhou para Júlia que esta ela (SIC) ficou realmente muito vermelha... 55 Já em Hogwarts eles fizeram a fila para a entrada do salão principal. E então viu-se ao longe o Harry com o chapéu seletor na mão e a lista. - Meu pai é o vice-diretor! É interessante como os leitores adolescentes de Harry Potter se preocupam em mostrar o lado sentimental do bruxinho. Todas as fanfics transcritas fazem menção, de uma maneira ou de outra, a relacionamentos, tanto amorosos como de amizade, o que é também uma preocupação comum aos adolescentes em plena descoberta de um mundo completamente novo, cheio de novidades. A continuidade do último livro é também abordada, mas não com tanta intensidade quanto os relacionamentos. É mais comum encontrarmos tópicos com comentários sobre possíveis versões sobre a vingança de Harry contra Voldemort do que fanfictions com capítulos inteiros como foi transcrito anteriormente. Na Fanfic coletiva, também disponível na comunidade Harry Potter Fan-fic <http://www.orkut.com/CommTopics.aspx?cmm=3241507>, há mais um tópico que comprova a preocupação em escrever sobre Harry Potter, porém, os participantes parecem mais interessados em definir quem serão os casais no final da saga. O nome do tópico é “Vamos escrever uma fic” (acessado em 07 de novembro de 2006), e nele há mais debate do que narrativa propriamente dita: É o seguinte cada um coloca um pedaço dai a gente escreve uma fic... blz, vou começar... *** A festa de casamento ainda rolava na Toca. Harry saiu um pouco da festa pra dar uma volta pelos terrenos, ele estava um pouco irritado pelo fato de Gina ter o perseguido o dia todo, ele simplesmente nao gostava mais dela, e tambem poruqe Hermione nao falou direito com ele, ela estava radiante como no dia do baile de inverno no quarto ano... (Participante H) (SIC) ele estav apenas sentindo a brisa em seu rosto e em seus cabelos, adorava fazer isso. -ah, esta aqui harry! - disse um voz fina e invergonhada. era gina. -ah, ola gina! - disse harr sem ao menos virar para olha-la. 56 -por que saiu da festa esta tao legal? - disse ela tentnado olha-lo mais visivelmente harry estava evitando seu olhar. -me desculpe gina, nao quero ser chato e nem te deixar chateada, mas poderia me deixar sozinho, pelo menos aqui fora? - perguntou harry olhando para ela corando ligeiramente. -ah ta desculpe - disse gina se virando e voltando para o casamento. harry nao sabia mais oq ai fazer de sua vida, ele estava preucupado com sua vida, nao tinha mais a dumbledore, nem a sirius, apenas a rony e mione, que eram seus unicos amigos e companheiros. adorei a ideia viu amada!!! muito boa (Participante I) (SIC) Não gostei muito de harry com mione mais tudo bem!!!! Daí a mione Chegou...... (Participante J) (SIC) ...- Harry, está tudo bem? voce saiu da festa sem falar nada, Hermione disse, Harry sentiu um calafrio passar por seu corpo, quando viu que Hermione se aproximava dele com um sorriso irresistivel... (Participante H) (SIC) o.o harry com mione?? nao... seis qeurem fazer assim? eu nao concrdo nao gosto desse casal nao o.o' aushaushuauashuhs (Participante I) (SIC) Os escritores das fanfictions sobre Harry Potter focam seus textos em detalhes mais corriqueiros, que não são revelados por J. K. Rowling; na verdade, a autora os deixa implícitos ao longo da obra. Entretanto, os leitores de Harry Potter estão tão ávidos por respostas e por mais informação que parecem querer compensar esta lacuna produzindo textos e especulando com os colegas de comunidades as muitas possibilidades que cada teoria apresenta. CONCLUSÃO A informação, a educação e a leitura estão diretamente relacionadas. Não apenas a leitura feita em obras literárias forma opiniões. A internet, os jornais e as revistas também são instrumentos que disponibilizam a leitura, uma vez que há a interpretação daquilo que se lê, e muitas vezes a própria internet ajuda de maneira muito eficaz na formação do leitor adolescente, como é o caso dos exemplos de fanfictions sobre Harry Potter presentes nas comunidades do Orkut em que foi feita esta pesquisa. Vivemos em mundo conturbado, repleto de máquinas que “pensam” por nós, e também por isso o ato de ler é encarado negativamente pelos adolescentes: alguns o repudiam por ser “chato” ou “uma perda de tempo”. Porém, muitos deles realmente apreciam as horas dedicadas à leitura, conscientes de que é um caminho para conhecimento e conquistas na sociedade. Durante a realização deste trabalho, foi possível o acesso a todo tipo de informação e a todo tipo de pessoa por meio do Orkut. Existem inúmeras pessoas, principalmente adolescentes, que têm muita curiosidade de saber detalhes corriqueiros relacionados ao bruxinho que outrora era alguém muito maltratado por sua família, mas que na verdade é muito poderoso e corajoso. Os leitores adolescentes de Harry Potter vivem intensamente as aventuras de Harry, e a seriedade com que lêem os textos de J. K. Rowling os levou ainda mais longe, estimulando seu senso crítico e sua curiosidade, 58 o que fez com que eles, através de sua própria leitura da história, se tornassem bons escritores, algo raro hoje em dia. A leitura é um tanto repelida por muitos adolescentes, principalmente aqueles que estão ainda na escola, pois muitas vezes os próprios professores não sabem lidar com esta ferramenta fundamental de trabalho que é o texto. Não se ensina ninguém a gostar de ler, mas é possível mostrar que os textos não servem apenas para se aprender gramática, mas que, através deles, pode-se “voar” para muito longe sem sequer sair do lugar. Basta querer. Basta imaginar. Basta ler. Neste contexto de rejeição à leitura por parte dos adolescentes, Harry Potter conquistou os jovens leitores porque eles começaram a se identificar com a história e seus personagens, uma vez que os sentimentos, alegrias e aflições pelos quais os bruxos passam qualquer pessoa também enfrenta. Todos têm bons e maus momentos, suas crises, suas angústias, suas dúvidas, principalmente os leitores adolescentes que comparam e questionam suas vidas através da história de Potter. E, como no mundo criado por J. K. Rowling existem ainda a magia e os elementos fantásticos ligados a ela, como poções, feitiços, animais mitológicos e lendários, vassouras voadoras, dementadores, por exemplo, aumenta o fascínio dos adolescentes pela história. Uma das principais questões que motivaram este trabalho foi o que leva os adolescentes a passarem horas diante de um computador acessando fóruns de comunidades no Orkut discutindo e escrevendo histórias sobre Harry Potter. A resposta para a esta indagação é justamente o fato de eles se identificarem com aquilo que lêem nas histórias de J. K. Rowling. Assim como Harry e seus amigos, os adolescentes têm muita dificuldade em expressar suas carências, seus problemas, seus sentimentos, que parecem surgir como um turbilhão de fatos e informações que antes pareciam não existir em suas vidas. De repente, como em um passe de mágica, é preciso saber lidar 59 não só com a família e a escola, mas também com outros problemas, principalmente os de ordem amorosa, que parecem estar à flor da pele. E, por mais informação que se tenha disponível sobre este assunto, parece nunca ser o bastante para que todas as dúvidas e anseios sejam devidamente sanados e explicados. Então, num piscar de olhos, estes adolescentes, tão necessitados de respostas, encontram, em uma história, algo com que possam se identificar e pessoas com os mesmos problemas que eles têm. É principalmente disto que vem toda a força de Harry Potter: da capacidade que a autora tem de explorar os medos, anseios e dúvidas de seus personagens para tornar seu texto ainda mais interessante. Foi possível reconhecer e refletir sobre todo esse interesse principalmente durante a leitura e análise das fanfictions escritas pelos leitores adolescentes no Orkut. Nas fanfics transcritas ao longo deste trabalho, pôde-se perceber o quão criativos os leitores adolescentes podem ser desde que bem estimulados através de uma história com a qual se identificam. Idéias e críticas muito boas surgiram das jovens mentes por causa da união Harry Potter e Orkut, e isto não pode ser desperdiçado. A popularização da internet e o surgimento das comunidades virtuais como o Orkut muito facilitaram não somente o desenvolvimento das relações interpessoais, mas também a capacidade de se expressar livremente, sem timidez. Sem haver necessidade de revelar nomes e endereços, os internautas têm acesso a uma gama de informações variadas que em muito corroboram para seu desenvolvimento e formação. Através das comunidades do Orkut, pode-se descobrir mais sobre si mesmo e sobre seus amigos, além de poder expressar sentimentos, ter dúvidas sanadas e até ajudar a quem precisa. A tecnologia é também uma nova maneira de encarar o vasto mundo cheio de necessidades que a cada dia aumentam. Ferramentas como o Orkut, que nos proporciona tantas coisas, podem e devem ser usadas a nosso favor. O incentivo ao ato de ler, a 60 escrever a fanfictions, a debater Harry Potter e à busca da identificação com os textos é apenas um pequeno exemplo das amplas possibilidades a que poderíamos ter acesso. 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