Conspiração do ouriço
Como julgar uma presidência instalada em ambiente político de altas contaminações, com a
presença de operadores da ubiquidade de ser governo e ser cliente de governo?
11 de dezembro de 2011 | 3h 09
Renato Lessa - O Estado de S.Paulo
RENATO LESSA
A hipótese de urdidura conspiratória para explicar a erosão sofrida pela equipe de
governo, em seu primeiro ano de vida, tem o sabor e a alma dos monomaníacos e
ocultistas. O saudoso pensador anglo-russo Isaiah Berlin propôs uma distinção
entre duas modalidades de percepção e de configuração imaginária do mundo e
associou-as zoologicamente a ouriços e raposas. A taxonomia de Berlin distinguiu
os ouriços como monotemáticos e portadores de uma crença que considera a
complexidade e a confusão da vida como sinais aparentes e ilusórios, cujo
entendimento exige a apreensão de causas fundamentais, sempre vinculadas à mãe
de todas as causas, seja lá qual for.
Cá entre nós, é crível, para espíritos paranoicamente deflacionados, a suspeita de
que o descarrego de sete ministros - sem considerar a visão da fila que se avizinha
- dependa de alguma conjura ou causa única? Claro está que há quem torça pela
desgraça do governo, e que veja em cada queda de ministro um sinal de que tudo
está perdido e a confirmação de certezas íntimas. Outros há que torcem pelo
simples infortúnio do indigitado da ocasião, por cobiça ou desejo de vingança
pessoal. Há, ainda e por certo, caluniadores profissionais e oposicionistas
desorientados sem qualquer coisa de substantivo a dizer ao país, aos quais vem
bem a calhar a fatiota de questores da moralidade pública. Mas fazer de torcedores
oportunistas e oposicionistas desenergizados algo como o motor imóvel de um
processo cósmico de destruição do governo, além de homenagem indevida a tal
conjunto heteróclito é ato de má fé, quando não de estupidez.
Se considerarmos os vetores de corrosão como endógenos, talvez ganhemos em
entendimento a respeito não da natureza deste governo, mas do modo de fazer
governos e da cultura política que se impôs ao País como esteio de governabilidade
democrática. Este governo ainda é uma incógnita: não sabemos ainda se poderá ser
avaliado como ortodoxo, nos termos da cultura de governo predominante no País,
ou se por ter semeado coisa distinta. Cedo para dizer, embora a tempo de apostar.
A despeito disso, há dois macrodesafios postos a este governo, inerentes tanto à
forma de governar como à cultura política que a movimenta. No desenho desses
macrodesafios estão inscritos alguns fatores internos e potenciais de erosão.
Um dos desafios é representado pelo que especialistas definem como um esteio de
governabilidade: a grande coalizão. A necessidade da composição ampla, quando
transformada em virtude, incorpora como naturais dinâmicas abertamente
perversas. A obtenção, por parte do Executivo, de meios para governar está
associada a uma partilha que afeta a própria capacidade do governo de fazer uso
eficaz de tais meios. Administrar a grande coalizão, se não é o principal item da
agenda interna do governo, é algo que limita a capacidade de conduzir sua agenda
externa, a que afeta as vidas dos cidadãos ordinários. Para usar metáfora
contabilista, o custo dessa administração interna não é neutro para o conjunto do
País, posto que restringe a capacidade do governo de exercer seu mandato
específico.
Ainda nos limites desse primeiro desafio, deve ser dito com toda clareza possível
que ele não é apenas de natureza política ou tática, ou algo que se circunscreva ao
enxuga-gelo da "coordenação política". O pouco hábito da análise politica em
reconhecer a relevância de dimensões sociais e históricas vale como uma anistia
sociológica aos operadores da grande coalizão. Tal animal político - a grande
coalizão -, mais do que expressão de apetite e de esperteza partidária, releva de
pesado lastro sociológico que - pace Paulo Mercadante, no já não mais lido A
Consciência Conservadora no Brasil - vem impondo ao País a resiliência do atraso e
do conservadorismo social e político predatório.
O segundo desafio diz respeito à fila de ministros expurgados ou indigitados.
Ressalvada sempre a possibilidade de que, individualmente, este ou aquele não
seja o caso, o cenário agregado convida à seguinte indagação: como operar em um
ambiente político marcado pela presença de um virtual estado de natureza? Tal
estado abrange, como é sabido, formas abertamente predatórias, arcaicas,
patéticas e heterodoxas em termos penais. Mas não fiquemos por aí, posto que ele
abrange, ainda, a sensação de ilimitação, a intoxicação com a ubiquidade, com a
deliciosa e beatífica possibilidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, por
parte de operadores políticos centrais. Falo da possibilidade de usufruir da
ubiquidade de ser governo, ser cliente do governo, ser consultor de quem negocia
com o governo, e por aí vamos. Tal concentração de papéis em um único operador
cria e alimenta animais políticos que exigem o estado de natureza como seu
oxigênio, ainda que a legalidade fique intacta. Ficou fora de moda falar em "cultura
política", mas não é isso um sinal de uma cultura de excesso?
Os fatores de erosão potencial, creio, são internos, embora os ruídos sejam
externos. Descontado o rumor insincero e oportunista, é possível supor, quando
pensamos nesses ruídos externos, a latência de um sujeito coletivo - tal como o
processo civilizador, brilhantemente analisado por Norbert Elias -, constituído aos
poucos, sem direção ou propósito claros, mas que aprende a manifestar
desconforto com sinais dessa cultura de excesso. É cedo para dizer qualquer coisa
de mais afirmativo a respeito, mas é algo que parece não caber na estreita moldura
do moralismo e na paranoia de ouriços conspiratórios.
A marca específica do governo de Dilma Rousseff, quando estiver clara, será
afetada, para além da agenda social e de desenvolvimento, pelo modo de lidar com
os desafios aqui aludidos.
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