Revista do MDA - Ministério do Desenvolvimento Agrário Nº 5 - Junho 2008 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Mais Alimentos com Mais Qualidade Í N D I C E 6 DESENVOLVIMENTO 8 Produtividade no leite SOCIOECONÔMICO 16 Aposta na avicultura 20 Conceito agroecológico E AMBIENTAL 24 REFORMA AGRÁRIA E ACESSO AOS RECURSOS AMBIENTAIS 26 Fruticultura em alta 32 Dessalinização da água 36 Cura pela natureza 38 QUALIDADE DE VIDA NO BRASIL RURAL 40 Conquista dos palcos 46 Bibliotecas rurais 50 Instrumentos reciclados 54 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL 56 Trabalhadoras organizadas 62 Autonomia produtiva 66 ARTIGO Resposta às crises TERRA DA GENTE JUNHO DE 2008 Publicação especial do Ministério do Desenvolvimento Agrário/Incra Circulação Nacional Presidente da República: Luiz Inácio Lula da Silva Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário: Guilherme Cassel Secretário Executivo do Ministério do Desenvolvimento Agrário: Daniel Maia Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra: Rolf Hackbart Secretário de Agricultura Familiar: Adoniram Sanches Peraci Secretário de Reordenamento Agrário: Adhemar Lopes de Almeida Secretário de Desenvolvimento Territorial: Humberto Oliveira Coordenador de Comunicação Social/MDA: Luiz Felipe Nelsis Coordenador de Jornalismo/MDA: Ricardo Schmitt Coordenadora Administrativa/ASCOM/MDA: Marcela Silva Chefe da Assessoria de Comunicação/Incra: Chico Daniel Editor: Géssica Trindade Reportagens e textos: Caroline Drummond, Clarita Rickli, Cristiane Santiago, Daniel Pereira, Débora Azevedo, Jucimeire Costa, Juliana Caldas, Lúcio Mello, Maísa Cardoso, Manoela Frade, Marina Koçouski, Palova Brito, Sarita Coelho, Telma Peixoto e Virgínia Rodrigues Fotos: Ubirajara Machado, Tamires Kopp, Cooperativa Grande Sertão e Arquivo CAA Banco de Imagens: Cleiton Parente Planejamento Gráfico: Caco Bisol Impressão: Fórmula Gráfica Nossos agradecimentos ao Projeto Dom Helder Câmara e à Funai/Chapecó Mais informações: www.mda.gov.br Ministério do Desenvolvimento Agrário A P R E S E N T A Ç Ã O O Brasil rural que já temos e o Brasil rural que queremos A busca por um desenvolvimento rural sustentável, capaz de suprir as necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade de atendimento às necessidades das futuras gerações, é um desafio constante do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O objetivo é que o Brasil rural seja extremamente produtivo em alimentos e que os princípios da diversidade, igualdade, inclusão, solidariedade e sustentabilidade estejam de fato presentes no trabalho no campo. Para ser alcançado, depende de planejamento e do reconhecimento de que os recursos naturais são finitos. E de que desses recursos depende não só a existência humana e a diversidade da fauna e da flora, mas também o próprio crescimento econômico do País. O propósito do MDA ao priorizar o tema desenvolvimento rural sustentável e solidário é o incremento e a aplicação de políticas públicas integradas para a agricultura familiar, permitindo que o meio rural seja um lugar para se viver dignamente. Para isso, é necessária a presença mais efetiva do Estado e da sociedade civil organizada, criando-se mecanismos ágeis, desburocratizados e transparentes para garantir o pleno acesso aos direitos definidos pela Constituição Federal. Nessa diretriz, foi lançado em fevereiro de 2008 o Programa Territórios da Cidadania, para que os lugares com maior pobreza rural tivessem prioridade na distribuição de recursos e na execução de obras. Dezenove Ministérios estão empenhados nesta ação, que incide nos locais com mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e menor dinamismo econômico. Hoje, são 60 Territórios da Cidadania em pleno funcionamento no País, com espaço para debates entre os diferentes âmbitos governamentais e a sociedade civil, e espaço para definições do que se pretende inclusive a curto prazo. A P R E S E N T A Ç Ã O É por ouvir o que a população rural precisa para produzir mais alimentos e com qualidade, gerando renda e expandindo a prática da diversificação de culturas, que o Governo Federal está destinando R$ 13 bilhões para o Plano Safra da Agricultura Familiar 2008/2009 e mais R$ 200 milhões para a assistência técnica. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) mudou justamente para atender melhor os agricultores e agricultoras familiares, assentados da reforma agrária, extrativistas, ribeirinhos, silvicultores, pescadores artesanais, integrantes de comunidades quilombolas ou indígenas. Mudou para que ninguém deixe de retirar o seu Pronaf por desconhecer as regras nas quais se enquadra. Mais alimentos No contexto atual, em que a crise na produção dos alimentos passou a centralizar discussões no mundo inteiro no primeiro semestre de 2008, um novo desafio se interpôs ao Brasil. Somada à preocupação em desenvolver o campo de forma cada vez mais rentável e sustentável, o Governo Federal se antecipou na busca de soluções para o atual problema que o mundo vive: o drástico aumento de preços e a escassez na oferta de alimentos. É uma crise que coloca em cheque o modelo de produção e abastecimento em todo o planeta, mas à qual o nosso País tem condições de pronta resposta. É por isso que o MDA elaborou o Programa Mais Alimentos, com o foco na impulsão ao segmento produtivo que pode ampliar mais rapidamente sua produção e sua produtividade: a agricultura familiar. Nele, o Pronaf passa a contar com uma nova linha de crédito de até R$ 100 mil para beneficiar um milhão de pro- 4 TERRA DA GENTE dutores rurais até 2010. Essa é uma aposta a médio prazo que visa reestruturar inteiramente a produção nas propriedades rurais, impedindo que fiquem suscetíveis a oscilações como a dos preços e a gargalos no fornecimento. É uma iniciativa que prevê um redesenho da assistência técnica e extensão rural brasileira e o incentivo à mecanização no campo. A equipação com 60 mil tratores e milhares de outros implementos agrícolas é a meta em dois anos. Para tanto, houve um acordo com a cadeia produtiva de maquinário que prevê a redução de preços praticados com a agricultura familiar. O desconto será de 15% – o que representa a diminuição de R$ 10 mil, por exemplo, na compra de um trator de 75 cavalos. A ampliação da capacidade de armazenagem nas propriedades rurais e nas cooperativas também é projetada, além do investimento em sementes, genética animal e melhoria da qualidade das pastagens para que o homem e a mulher no campo obtenham melhor rendimento. A perspectiva com o Programa Mais Alimentos é de que a agricultura familiar produza um excedente de 18 milhões de toneladas, em especial no leite, milho, feijão, arroz, mandioca, trigo, aves, café e frutas. Os 4,1 milhões de estabelecimentos de agricultores e agricultoras familiares contribuem, atualmente, com 56% do leite, 67% do feijão, 89% da mandioca, 70% dos frangos e 75% da cebola produzidos no País, entre muitos outros produtos. Na média, a agricultura familiar é responsável por 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros. O Brasil reúne condições para expandir a produtividade especialmente na agricultura familiar e um exemplo disso é o do leite. Enquanto nos Estados Unidos um animal produz 9,4 toneladas de leite por ano, no Brasil produz 1,7. Apenas na cadeia leiteira, cuja produção atual nas propriedades familiares é de 5,5 milhões de toneladas a cada ano, a previsão de incremento com o Programa Mais Alimentos é de 28% até 2010. Por esse motivo, a aposta na agricultura familiar. Anos de trabalho São diversas as causas da crise alimentar mundial. O Brasil, no entanto, tem os seus efeitos muito atenuados. O MDA vem desenvolvendo estratégias de fortalecimento da agricultura familiar, como a ampliação incessante do crédito do Pronaf; a criação de seguro de clima e de preços; o alcance da assistência técnica a dois milhões de famílias de agricultores familiares e assentados da reforma agrária; a inclusão de 100 mil famílias na cadeia do biodiesel. Ao mesmo tempo, o Governo Federal vem desenvolvendo e estruturando uma política nacional de segurança alimentar articulada em torno do Programa Fome Zero. Nesse período, também foram criados dispositivos legais, como a Lei da Agricultura Familiar e a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional. Ambas estabelecem as diretrizes para a formulação de uma política nacional de fortalecimento do segmento produtivo. A solução para garantir a segurança alimentar e a estabilização dos preços internos passa por esse conjunto de medidas estruturais. A oferta suficiente de alimentos se consegue com o fortalecimento da agricultura familiar e com uma reforma agrária que garanta a distribuição mais justa de terras para serem usadas na produção alimentar. Este é o objetivo do MDA e do Incra: terra para quem quer trabalhar, mas com manejo sustentável, com a redução do desmatamento ilegal e com conscientização ecológica. Conferência Nacional Todos esses avanços e desafios ganharam espaço de debates e definições em um evento preparado para gestar novas idéias e novas políticas públicas: a I Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (I CNDRSS), em Olinda (PE), em junho de 2008. O intuito de promover essa discussão articulada entre os movimentos sociais, representantes de órgãos governamentais e organizações não-governamentais (ONGs) foi a possibilidade de ampliar ainda mais os horizontes da agricultura familiar. O Brasil rural que temos ainda não é o Brasil rural que queremos. Mas já tivemos avanços com a eliminação paulatina de favelas rurais e a aposta na qualidade de vida, com pessoas trabalhando e produzindo mais alimentos, garantindo a preservação do meio ambiente e inseridas no projeto de desenvolvimento socioeconômico do País – essa é a agricultura familiar que está estampada nas páginas seguintes. Queremos mais. Por esse motivo e para congregar tantos sotaques Brasil afora, a I CNDRSS foi precedida por conferências territoriais e estaduais, desde o final de 2007, a fim de que desses encontros se extraíssem diretrizes para conquistar tudo o que queremos no Brasil rural. Não é pouco o que se quer, só que, depois dos avanços obtidos, já não é possível traçar um projeto de futuro para o País sem incluir a agricultura familiar e a reforma agrária nesse debate. Esses atores sociais do campo abandonaram a figuração para se tornar cada vez mais protagonistas do desenvolvimento nacional. Conheça nas próximas páginas alguns desses protagonistas. TERRA DA GENTE 5 DESENV0LVIMENTO SOCIOECONÔMICO E AMBIENTAL Agricultura familiar produz cada vez mais D E S E N V 0 LV I M E N T O SOCIOECONÔMICO Produtividade no leite Há um lugar onde a agricultura familiar brinda com leite o desenvolvimento econômico. Seu nome é sugestivo: Jóia. Nesse município na região Noroeste do Rio Grande do Sul, agricultores familiares e assentados da reforma agrária decidiram transformar o tapete verde onde reinava a soja em campos povoados por vacas holandesas, jersey e gir leiteiras. Em vez de padecer sob intempéries climáticas, que vinham se agravando, preferiram apostar na renda semanal e certeira com a produção de leite. É nessas colinas que hoje uma vaca chega a render 40 litros em um dia de ordenha, enquanto a média nacional é de 3,27 litros. Essa transformação de paisagem e mentalidade é protagonizada por gente como Roni Machado Escobar, 41 anos, sua mulher Elonara, 36, e a filha, Priscila, 18, que, apesar da idade, também é perita no manejo com ordenhadeiras mecânicas. Às 5h, faça chuva, sol ou geada, a família parte 8 TERRA DA GENTE Roni e Elonara Escobar aprenderam sobre a genética das terneiras e a lucrar mais com o manejo para o batente. São 10 hectares com 45 cabeças de gado. As fêmeas produzem 460 litros de leite todos os dias. A família Escobar ainda cultiva milho e pastagens de verão para o gado em outros nove hectares. Impressiona a alta produtividade em um espaço tão reduzido. “Nasci e cresci neste lugar. Meu pai sempre plantou soja, chegou a ter 500 hectares. Entre 1982 e 1985, se deu mal. Perdeu muito”, recorda Roni, que já o ajudava na lavoura. Vendo tanto prejuízo, o filho passou a questionar a prática da monocultura. Na época, começava a brotar em municípios com forte alimentos influência rural, como Jóia, o conceito da diversificação. “Quando casei, há 19 anos, só tinha uma vaca. E não era de leite. Eu vivia de domar cavalos e, de cada doma, comprava mais uma vaca. E ia tirando o leite, porque acreditei”. Era um tempo em que Roni pilotava um Fusca. Depois de casados, ele e Elonara jamais voltaram a morar na cidade. Encamparam juntos a batalha pela valorização do trabalho no campo. A evolução dos veículos motorizados na garagem de casa, na localidade de São João Mirim, prova o quanto frutificou essa aposta. Há cinco anos, já tripulavam um Gol. Há dois anos, retiraram o Pronaf C para investimento em uma ordenhadeira canalizada direto para o resfriador de leite, e em mais cinco novilhas. Agora, andam a bordo de uma F-1000. “Tem gente que diz: ‘Tirar leite é uma escravidão’. Mas não é, basta gostar de trabalhar. No nosso futuro, me vejo assim: tirando leite e ganhando bem. Ir para a cidade? Nem pensar!”, garante Elonara. Faça vendaval ou estiagem, seus planos não os distanciam do leite. “Se dá uma seca, com soja precisamos três anos para nos recuperar. Com leite, seis meses. Se a pessoa está organiza- RIO GRANDE DO SUL Porto Alegre Jóia, RS da, com silagem, se recupera fácil, fácil”, completa o marido, que passou a investir na genética das terTERRA DA GENTE 9 SOCIOECONÔMICO D E S E N V 0 LV I M E N T O Luz no caminho Sebastião Oneide Machado Silva recebe a visita do presidente da Coopermis, Carlos Deniz Lima, com uma lista de dúvidas na ponta da língua. Troca idéias sobre obras no galpão de ordenha, discute a produtividade das vacas e traça planos, muitos planos. Aos 44 anos, sequer lembra o agricultor familiar que perdeu uma vaca leiteira, animal que custa aproximadamente R$ 2 mil naquela região, por deixá-la comer milho em demasia. “Quando eu ia imaginar isso?”, indaga, sem nostalgia de um tempo no qual apostava no escuro, sem conhecer ao certo como era o manejo. Não faz tanto tempo assim. Foi em 2003. Silva vivia literalmente às escuras. Nos 11 hectares e meio de sua propriedade, em Jóia, sequer tinha acesso à energia elétrica. “Nesta casa, morei três anos sem luz. Foi muito sofrido. Levava o gado todo o dia para tirar leite na casa do meu pai, andando por meia hora na madrugada, no gelo. Plantava para comer, a vida era empatada. Me desacorçoei”, desabafa. Essa história teve uma reviravolta na aplicação simultânea do Pronaf, do MDA, e do Programa Luz para Todos, do Ministério de Minas e Energia. Com os R$ 6 mil retirados no Pronaf C, Silva investiu em vacas e em um galpão. Com a chegada da luz elétrica, em 2006, deu adeus aos tempos de privações. “Enfim, deu pra ter uma geladeira, uma ordenhadeira e um resfriador de leite”, conta, fazendo questão de apresentar uma por uma dessas suas conquistas. 10 TERRA DA GENTE Pedro, Vagner e Marilise são uma família-modelo em diversificação neiras e rebatizou a propriedade de Agropecuária Escobar. “É mais glamour”, brinca ele. Impulso à produção Diferenciado por propiciar renda semanal aos produtores, o leite foi um dos principais alvos de políticas públicas do MDA nos últimos anos. Dos R$ 12 bilhões destinados ao Plano Safra da Agricultura Familiar 2007/2008, a estimativa é de que R$ 1 bilhão tenha sido empregado em custeio ou investimento para a cadeia leiteira. Essa preocupação reflete-se, em Jóia, no aparelhamento da Cooperativa Mista dos Pequenos Produtores Mas de acordo com o regramento do Mercosul, o Brasil poderia destacar 100 produtos com tarifas de importação diferenciadas (produtos mais sensíveis às importações). Onze produtos lácteos passaram, então, a ter tarifa de 27% para importações de fora do bloco. Com a aplicação do atual nível tarifário, as importações de lácteos de fora do Mercosul, que representavam 60% do total em 1995, passaram para 15% em 2006. Isso quer dizer que a tarifa de exceção influenciou de forma decisiva redução das importações advindas de países que subsidiam a produção de leite. Agora o MDA trabalha para que esse nível tarifário seja transformado em tarifa definitiva, e não mais como uma solução provisória. Conheça ações do Governo Federal na cadeia produtiva do leite A) Programa de Garantia de Preços para a Agricultura Familiar (PGPAF) O PGPAF é um seguro de renda que garante o custo de produção do agricultor(a) familiar quando os preços de mercado estiverem abaixo do custo de produção. O limite é de R$ 3,5 mil por produtor ao ano. B) Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) Utilizando a linha de crédito Pronaf Agroindústria, é possível comprar equipamentos, inclusive para as agroindústrias leiteiras. Essa linha de crédito oferece recursos para investimento tanto de forma individual quanto por meio de cooperativas e associações que visem beneficiar ou industrializar sua produção. Entre as cooperativas que queiram financiar equipamentos para processa- mento e industrialização do leite, o enquadramento deve ser de 70% de cooperados com Pronaf – e esses devem representar 55% da produção para que se acesse a modalidade Agroindústria. O novo limite é de R$ 28 mil por agricultor. O Pronaf Agroindústria pode ser utilizado para custeio, com taxa de juros de 3% ao ano. Caso seja retirado para investimento, a taxa de juros varia de 1% a 2% ao ano. C) Consolidação da Tarifa Externa Comum de 11 produtos lácteos O MDA tem trabalhado de forma decisiva na consolidação da Tarifa Externa Comum (TEC) para 11 produtos lácteos de maior importância, considerados produtos especiais. Com o início das negociações do Mercosul, em 1995, foram estabelecidas tarifas de 14% e 16% para os produtos importados de fora do bloco. D) Programa de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) O Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural (Dater) está trabalhando nos princípios da Política Nacional de ATER (Pnater), que são: promoção do desenvolvimento rural sustentável, estímulo à adoção dos princípios da agroecologia, capacitação dos agricultores e multiplicadores regionais, dentre outros, sempre com vistas ao fortalecimento da agricultura familiar, inclusive do setor leiteiro. E) Incentivo à Produção e ao Consumo do Leite (PAA/Leite) É uma modalidade do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), executada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, criada para possibilitar o consumo de leite pelas famílias que se encontram em estado de insegurança alimentar e nutricional e, também, para incentivar a produção familiar. O PAA/Leite é operacionalizado por meio de convênios entre os governos federal e estaduais. Para participar desse programa, o produtor deve: produzir no máximo 100 litros de leite por dia (mas, atenção, a prioridade será para os que produzam até a média de 30 litros/dia); possuir Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP); realizar a vacinação dos animais; e respeitar o limite de recebimento semestral de R$ 3,5 mil por produtor beneficiado. TERRA DA GENTE 11 D E S E N V 0 LV I M E N T O SOCIOECONÔMICO (Coopermis). A cooperativa, que recolhe a cada mês 500 mil litros de leite de 250 agricultores familiares e assentados – eles estão espalhados por cinco municípios da região –, estreou em junho de 2008 mais um caminhão com capacidade para nove mil litros, com recursos do MDA. Há outros dois caminhões já operando desde 2007, de nove mil e de quatro mil litros de capacidade, também obtidos com auxílio do Ministério. Um Fiat Strada serve como suporte à assistência técnica. Esse investimento recente do MDA nos quatro veículos e em um convênio com a Universidade Regional do Noroeste do Estado (Unijuí) para a capacitação produtiva chega a R$ 400 mil. Autonomia no campo A organização dos agricultores familiares locais na cooperativa remonta a 1999. No começo, eles eram apenas 24. Ao obter cada vez mais lucros, atraíram a atenção da vizinhança, como a dos Hickembick. “Há cinco anos, comecei a produzir o meu leite. Foi a necessidade que me levou a isso. O que sei é que, se não estivesse trabalhando com leite, com certeza seria agora um empregado na propriedade dos outros”, diz Ricardo, 40, enquanto pastoreia suas 26 cabeças de gado pelos 32 hectares da propriedade. Ao aderir à produção leiteira, depois de sucessivas tentativas de lucro com a plantação de soja em pequenos espaços, ele conheceu o significado da palavra empreendedorismo. Há dois anos, retirou R$ 18 mil no Pronaf, para investimento, de olho no crescimento do rebanho. Comprou um trator para facilitar a lida com a pastagem do gado e mais nove vacas. Até essa época, Com a conjunção do Pronaf e do Luz para Todos, Sebastião Oneide Silva melhorou a qualidade de vida 12 TERRA DA GENTE Feijão com biodiesel No final de maio, quando termina o período de chuva, a colheita do feijão tem início no Assentamento Santa Terezinha, no município de Itatira, a 173 quilômetros de Fortaleza. O alimento serve para o consumo das 46 famílias que ali vivem, no Sertão do Ceará, e fica estocado até a safra seguinte. Mas no roçado, ao lado do grão que nutre as famílias, cresce um outro tipo de arbusto. Com seus galhos retorcidos e frutos rodeados de espinhos, a mamona, matéria-prima para a produção do biodiesel, hoje representa forte incremento na renda dos assentados. Eles, que também vi- vem da venda de milho, mel e banana, passaram a somar ganhos de cerca de R$ 200 mensais depois de assinar contrato de fornecimento da oleaginosa com usinas produtoras do biocombustível. Interessante nessa paisagem é que a mamona não exclui a produção de alimentos. Esse é um ‘casamento’ incentivado pelo MDA. Ao assinar contrato com a Petrobras para a venda da matéria-prima, em dezembro de 2007, o assentado Francisco Antônio da Silva, o Louro, 37, recebeu da empresa sementes selecionadas e reconhecidas pelo Ministério, além de orientações para plantar a mamona consorciada ao feijão. “Pois não é que eles me explicaram que o milho precisa dos mesmos nutrientes do solo que a mamona? Por isso, é melhor plantar ela apenas com o feijão, que não compete”. Gente como Louro fez de Itatira o maior produtor de mamona no Ceará em 2007. Foram colhidas 58 mil toneladas em 500 hectares plantados. O mu- nicípio tem 480 agricultores atualmente cadastrados no cultivo da oleaginosa – em 2006, o número não passava de 160. A obrigatoriedade da adição de 3% do biodiesel ao óleo diesel, a partir de julho de 2008, propicia ainda maior segurança de comercialização da mamona. Os assentados, porém, não esquecem sua missão primordialmente alimentar. Louro é um dos que refuta a possibilidade de deixar de plantar alimentos: “E ficar sem meu sustento? A mamona ajuda, mas não pode ser tudo”. Fortaleza CEARÁ Itatira, CE TERRA DA GENTE 13 SOCIOECONÔMICO D E S E N V 0 LV I M E N T O Hickembick produzia oito mil litros de leite por mês. Desde então, atinge a marca dos 14 mil litros. “Sobra de 30% a 40% do que ganho todo o mês para investir”, calcula, sem conter a euforia. Com a mulher Dalva, 34, que já cursou aulas de capacitação para agregar valor à produção, ele acalenta o sonho de organizar uma feira só com produtos da agricultura familiar. Para tanto, queijos, geléias, biscoitos e muitas outras guloseimas já têm a produção testada em seu fogão à lenha. Adesão massiva ao leite A reforma agrária ajudou a transformar o mapa produtivo de Jóia. Seiscentas famílias de trabalhadores rurais foram ali assentadas desde 1996. “Aquilo que a gente pregava antes de ser assentado, há 12 anos, agora põe em prática. Fomos para os acampamentos com esse objetivo: ter a nossa terra e produzir nela para o autosustento. E o leite, naquela época, era algo que a gente já tinha em mente”, conta Pedro Calonego, 50, um dos pioneiros no Assentamento Rondinha, 14 TERRA DA GENTE ostentando uma senhora abóbora de 15 quilos entre as mãos. A 40 quilômetros do centro de Jóia, o assentamento parece uma avenida de cidade movimentada, com canteiro repleto de flores e pneus demarcando os espaços. Dos dois lados da via, surgem casas de alvenaria, in- clusive de dois andares, com pintura nova. São os pomares, os porcos e galinhas, alguns dos indícios da diversificação de culturas no local, a garantia de que os visitantes continuam, sim, em plena zona rural. Calonego já não se atém à mera compra de vacas: montou a própria estufa, debate com as outras 231 famílias assentadas as novidades em genética bovina e a utilização de reprodutores de qualidade, forma consórcio entre os assentados para investirem juntos na mecanização. Só com laranjas, peras, pêssegos, tangerinas e maçãs, contabiliza 50 pés de árvores frutíferas. Mantém 82 cabeças da raça holandesa, com mais três famílias, e ainda planta milho e soja, de forma rotativa. O assentado já obteve sete tipos de crédito, entre os do Incra e os do Pronaf. “Sei o que é puxar uma enxada e plantar milho todo o dia só para ter o sustento da família. E hoje sei também o que é produzir excedente, vender, lucrar. Quem disse que a reforma agrária não tinha de ser muito mais do que plantar só para comer”? Entenda o porquê da crise mundial O aumento dos preços internacionais dos alimentos é causado por vários fatores. Os principais são: Aumento mundial do consumo de alimentos. Este aumento é resultado do crescimento dos países em desenvolvimento e de mudanças nos hábitos alimentares. Há uma elevação no consumo de carnes, lácteos e outros produtos processados. Para cada quilo de carne a mais que é consumido, são necessários sete quilos a mais, em média, de grãos para ração. A produção de etanol de milho pelos Estados Unidos. Esse país usa mais que 10% da produção mundial de milho para produzir etanol. Isso corresponde a mais de 81 milhões de toneladas – é o equivalente a duas safras brasileiras. Aumento dos custos de produção. A alta do preço do petróleo e dos outros insumos, como fertilizantes, impacta nos preços dos alimentos. Aumento da especulação nas commodities agrícolas. A crise americana no setor imobiliário fez com que muitos investidores buscassem outras formas de investimento. Por isso, trocaram os in- vestimentos imobiliários pela compra de commodities agrícolas. A troca gerou um grande aumento de demanda de produtos agrícolas num curto espaço de tempo, o que elevou ainda mais os preços. Esse conjunto de fatores está levando a uma redução significativa dos estoques mundiais e a um novo patamar de preços para os produtos agrícolas. Os efeitos são sentidos em todas as regiões do mundo. Os países que não têm políticas de segurança alimentar e de apoio à agricultura familiar são os que mais estão sofrendo. Alguns países, inclusive, buscaram restringir as vendas de produtos ao exterior para garantir o abastecimento interno, aplicando impostos sobre as exportações. Como os preços internacionais estão altos, há uma pressão por parte dos produtores para canalizar sua produção ao mercado externo, em detrimento do abastecimento interno. Como resultado, os preços internos também sobem. No Brasil a situação é diferente. O País não está completamente imune, mas bem preparado. Isso porque nos últimos anos houve o fortalecimento da produção de alimentos por meio da agri- cultura familiar. Com exceção do trigo, situação que pode ser alterada em médio prazo, não há nenhuma outra carência de produção. Com o objetivo de aumentar ainda mais a produção e fortalecer ainda mais a agricultura familiar, além das políticas públicas que já vinham sendo implementadas, acaba de ser criado o Programa Mais Alimentos. TERRA DA GENTE 15 Município degradado pelo garimpo renasce com a reforma agrária D E S E N V 0 LV I M E N T O SOCIOECONÔMICO Aposta na avicultura Mais do que oferecer terra, casa e garantia de produção e renda às famílias assentadas, a reforma agrária representa o aquecimento da economia e a melhoria de serviços e de infra-estrutura para toda a população de Nova Marilândia, a 270 quilômetros de Cuiabá, no Mato Grosso. Com o fim da atividade garimpeira na década de 80, o município havia mergulhado num período de estagnação e seus habitantes começaram a migrar para outras cidades em busca de trabalho. Em 2001, a história começou a mudar. Nesse ano, foram implan- 16 TERRA DA GENTE tados os Projetos de Assentamento (PAs) São Francisco de Paula e Vila Nova, com 109 famílias assentadas. Simultaneamente, surgia a parceria do Incra com a prefeitura de Nova Marilândia em um projeto de avicultura de corte pelo sistema de integração. Em apenas quatro anos, de 2002 a 2005, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita do município cresceria 93,8%, passando de R$ 7.697 para R$ 14.918. No cenário anterior, não havia posto ou agência bancária. Hoje, Nova Marilândia conta com posto da Caixa Econômica Federal, do Banco do Brasil, do Bradesco e do Sicredi (cooperativa de crédito). Nova Marilândia é uma “Cidade que Renasce” – este é inclusive o seu slogan. Renasce no campo, substituindo as áreas degradadas com o garimpo de diamantes por aviários. E renasce na cidade, com ruas asfaltadas, mais lojas e serviços (postos da Polícia Militar, Correios, Exatoria Estadual). As perspectivas são promissoras: continuar crescendo e beneficiando também os municípios vizinhos. Em dezembro de 2008, é prevista a inauguração de um frigorífico em Nova Marilândia com capacidade de abate de 140 mil aves por dia e a criação de 1,2 mil empregos diretos. Para 2009, é estimado o início da construção de 325 casas populares, além das 154 construídas nos últimos cinco anos pelos governos federal e estadual, e a implantação de uma fábrica de ração. Recursos do Pronaf Falar em desenvolvimento em Nova Marilândia significa falar também da integração de políticas públicas e das parcerias entre os governos nos seus diversos âmbitos com a iniciativa privada. A primeira parceria dessa história pujante foi a do Incra com a prefeitura, para a imple- Edson Menezes: “É uma vitória, não é mesmo?” MATO GROSSO Cuiabá Nova Marilândia, MT mentação do Projeto Casulo, o que determina, por exemplo, que o assentamento da reforma agrária seja próximo à área urbana. A prefeitura obteve a terra, fez as estradas e levou energia elétrica até os lotes. O Incra ofereceu o crédito para a construção das casas e viabilizou, junto com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, os recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) para a produção. TERRA DA GENTE 17 SOCIOECONÔMICO D E S E N V 0 LV I M E N T O Ex-vaqueiro Durvalino Nogueira empolgado com a nova vida Para a construção de aviários, os assentados acessaram o Pronaf A. Para o custeio inicial de sua produção, recorreram ao Pronaf A/C. Agora, estão modernizando os aviários com os recursos do Pronaf D. Nesse modelo de integração de políticas públicas, contaram ainda com apoio do governo estadual de Mato Grosso na aquisição de equipamentos e mudas de árvores para a recuperação de áreas degradadas, por intermédio do programa MT Fomento. O sistema de integração foi firmado com uma das maiores empresas de alimentos do País, que será a responsável pela construção e pela mão-de-obra do frigorífico. Hoje, o abate é feito em Nova Mutum, distante 200 quilômetros de Nova Marilândia – essa distância reduz o faturamento dos avicultores. A construção do frigorífico, atraído pela produtividade dos assentados e agricultores familiares locais, é, portanto, um prenúncio de mais lucros. 18 TERRA DA GENTE 4,5 mil naqueles de 100 metros. No total, são cerca de 1,4 milhão de aves no ciclo de 45 dias, todas elas oriundas dos assentamentos – são 109 lotes em Nova Marilândia – e da agricultura familiar. “Eu mesmo trabalhava de vaqueiro em fazenda, uma hora aqui, outra lá. Agora já vamos para seis anos numa colocação só. É muito, muito bom”, empolga-se Durvalino CosJoão Alecrim faz a montagem do silo Como é a integração Pelo sistema de integração, a empresa oferece aos assentados os pintinhos, a ração, assistência técnica, os medicamentos e o transporte das aves. Os avicultores entram com o trabalho e com o custo da energia elétrica. Ao final de 45 dias, o lucro é certo: variando de R$ de 3,2 mil a R$ 3,5 mil nos aviários com 72 metros de comprimento; e de R$ 4,2 mil a R$ Aviários têm medição de temperatura ta Nogueira, 45 anos, assentado no PA São Francisco de Paula. Essa opinião é compartilhada por João Antônio Rocha Alecrim, o Didi, de 42, do PA Vila Nova. “Melhorou muito. É tão bom trabalhar pra gente mesmo e com renda certa... Além do aviário, tiro uns R$ 600 por mês com a venda de leite e de hortaliças. E hoje a gente tem até crédito no comércio e no banco”, orgulha-se. O lucro ainda advém, uma vez por ano, da venda da ‘cama de frango’. Ela vai se formando no piso dos galpões com as fezes das aves e é considerada excelente adubo orgânico. O rendimento da ‘cama de frango’ chega a ser o mesmo de um ciclo de abate – de 45 dias, em média, para crescimento das aves, e mais 15 para descanso. É considerado pelos avicultores o equivalente a um 13º salário. Qualidade de vida Os ex-garimpeiros, ex-peões de fazendas, ex-vaqueiros, ex-cortadores de cana-de-açúcar e ex-desempregados do município esboçam a satisfação com tamanha mudança de vida. Suas casas agora estão equipadas com móveis e eletrodomésticos e todos têm carro ou motocicleta. A melhoria da qualidade de vida extrapola os bens materiais, na concepção do assentado Lindemar da Costa, 37. “Agora a minha família está junta dentro de casa. Na hora do almoço e à noite, tá todo mundo aqui reunido. Melhorou demais!”, reconhece esse morador do PA Vila Nova. E os solteiros se sentem até mais empolgados, com tanta bonança, a constituir família. “Posso pensar em casar porque tenho casa, tenho emprego, renda e condições de criar os filhos”, justifica Edson Pereira de Menezes, 28, que batizou com o nome de “Edson Vitória” o seu lote da reforma agrária. A explicação: “Ter tudo isto é uma vitória, não é mesmo?”. Assentados podem estruturar seus lotes com o Pronaf O Pronaf tem linhas especiais de financiamento para apoio ao desenvolvimento de assentados da reforma agrária. O Pronaf A, por exemplo, é destinado às famílias assentadas (e também às do Crédito Fundiário) que precisam montar toda a infra-estrutura básica para iniciar a produção. Após acessar a linha A, os produtores assentados podem aderir à linha A/C para financiar a produção nas atividades agropecuárias e não-agropecuárias. Para acessar os créditos do Pronaf, os interessados devem primeiro obter a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), Pronaf A* Público Modalidade Finalidade Crédito/Teto Juros Bônus de Adimplência Prazo de pagamento Carência Pronaf A/C* Público Modalidade Finalidade Crédito/Teto Juros Bônus de Adimplência Prazo de pagamento Carência que pode ser solicitada nas entidades oficiais de assistência técnica ou nos escritórios do Incra. Depois, é preciso definir o melhor projeto produtivo a ser financiado para cada família, com a participação de todos, homens, mulheres e jovens. É importante, ainda, procurar a assistência técnica para trocar idéias e elaborar uma proposta de crédito para o banco. Com o projeto concluído e a DAP em mãos, é só apresentá-los ao banco, junto com os documentos pessoais. O banco analisará o cadastro e o projeto de cada família para aprovar ou não a contratação do financiamento. Assentados(as) da reforma agrária ou beneficiários(as) do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) Investimento Estruturação dos lotes dos(as) assentados(as) Até R$ 20 mil + R$ 1,5 mil para assistência técnica e extensão rural 0,5% ao ano De 45% (se houver assistência técnica) ou de 40% (nos demais casos aplicados em cada operação) Até 10 anos Até 5 anos, dependendo do projeto técnico Produtores(as) egressos(as) do Grupo A Custeio Custeio de atividades agropecuárias Até R$ 5 mil 1,5% ao ano Não há Até 2 anos Não se aplica * Dados já relativos à safra 2008/2009. TERRA DA GENTE 19 SOCIOECONÔMICO D E S E N V 0 LV I M E N T O Orlando Correia e toda a sua comunidade praticam a Agroecologia Conceito agroecológico Convívio harmônico com a fauna e a flora Os ninhos do casaca-de-couro agora proliferam na região 20 TERRA DA GENTE O ninho do casaca-de-couro não permaneceu solitário por muito tempo na Fazenda Carrasco, localizada no município de Esperança, interior da Paraíba. Por todos os 60 hectares da propriedade, dividida desde 2005 entre 10 famílias beneficiárias do Programa Nacional de Crédito Fundiário, é possível enxergar ninhos dessa e de muitas outras espécies de pássaros pendurados pelas árvores, além de deparar com borboletas sobre os canteiros de hortaliças e com tatus em meio às lavouras de milho e feijão. PARAÍBA João Pessoa Esperança, PB Para surpresa da comunidade, animais outrora típicos do local reaparecem, depois de anos e anos de ausência nessa paisagem agreste. O convívio hoje harmônico entre a fauna, a flora e a agricultura familiar é resultado da adoção de princípios agroecológicos no manejo e no cultivo da terra. Incentivada pela Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural do MDA, a Agroecologia vem propiciando uma produção mais sustentável e menos agressora. Ao perceber o retorno dos pássaros à Fazenda Carrasco, Joanceli Maria Gonçalves Correia, 34 anos, teve uma idéia: catalogar todos eles e usar essas informações na monografia do curso de graduação em História, que planeja concluir em 2009 pela Universidade Vale do Acaraú (UVA), de Campina Grande. Nos momentos em que ajuda o marido, Orlando Soares Correia, 37, na lavoura, Joanceli está sempre acompanhada de um caderno de anotações. Nele, já registrou nomes populares de 69 espécies de pássaros. Os mais comuns têm sido os gaviões, beija-flores, tico-ticos, peiticas, canários-domato, rouxinóis, bem-te-vis, vem-vens, papa-capins e tesourões. No segundo semestre de 2008, ela começa a disciplina de História Ambiental e planeja guiar o professor numa visita à Fazenda Carrasco. “Quero que ele veja as espécies daqui. Meu sonho é ser pesquisadora Comercialização garantida Todas as famílias da Fazenda Carrasco já assinaram contrato com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e podem agora vender produtos semanalmente ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Maria Ângela da Silva, 32, não esconde o entusiasmo em comercializar de uma só vez a produção de 150 quilos de feijão faveta, além de abóbora, macaxeira, farinha de mandioca, laranja e limão, direto para o preparo da merenda nas escolas de Esperança. “É muito bom saber que as crianças vão se alimentar do nosso trabalho”, diz ela, com satisfação. A adesão ao PAA proporciona uma renda certa para a família. Por ano, o Programa pagará até R$ 3,5 mil por agricultor. Esboçando curiosidade para o aproveitamento dos seis hectares de sua família, o marido de Maria Ângela, Edmilson Luna, 37, não pára de testar novas culturas. Depois de produzir abacaxis com quase dois quilos em um espaço de cerca de cinco metros de extensão, o primo de Francinaldo aumentou a plantação para nove mil pés do fruto que, no mercado, alcança preço próximo a R$ 1 (a unidade). Os três filhos do casal, além do compromisso com a escola, passaram a cumprir pequenas tarefas no pomar. “Isso é para eles se acostumarem a valorizar a terra”, ensina o pai. TERRA DA GENTE 21 SOCIOECONÔMICO D E S E N V 0 LV I M E N T O Como fazer o biofertilizante 80 quilos de esterco fresco bovino 180 litros de água 5 litros de leite ou soro sem sal 2 quilos de melado ou 4 litros de caldo de cana 4 quilos de esterco de aves Preparo: Reúna todos os ingredientes num recipiente e dissolva tudo derramando a água aos poucos; Agite o conteúdo do recipiente três vezes ao dia; Se a preparação do biofertilizante ocorrer no inverno, é necessário que o recipiente receba luz solar. Se for no verão, é necessário que fique protegido do sol. O recipiente deverá estar sempre coberto. Fermentação: Pode variar entre 20 e 30 dias; Após 50 dias, o produto não é mais indicado, pois há perda de nutrientes. Dosagem e modo de usar: Ao usar esse biofertilizante, é indicado que ele seja diluído em água. A proporção é de 1 litro do material para cada 3 litros de água; Deve-se aplicar 1 litro da mistura acima (biofertilizante e água) na cova, por ocasião de transplante, e em cobertura (por cima), nos casos de culturas mais frágeis (tomate, pimentão e pepino); Se usado em cobertura, é indicado derramar a mistura nos espaço entre as plantas, seguindo a linha da plantação. Fonte: Emater/PB 22 TERRA DA GENTE nessa linha da História e da Agroecologia. Tem tudo a ver comigo!”, conta Joanceli, cheia de planos. Comunidade-modelo O reaparecimento de tantas espécies de pássaros é um dos indícios de que a Agroecologia, prática generalizada nessa comunidade-modelo do Crédito Fundiário, tornouse sinônimo de vida mais saudável para os trabalhadores no campo e também para os animais. Ao adotar essa diretriz, as famílias da Fazenda Carrasco são estimuladas a praticar a agricultura sustentável, aproveitando a luz solar para desenvolver as culturas, preservando a cobertura vegetal nativa para evitar que o calor cause perda de nutrientes ao solo, e utilizando toda a água da chuva para melhorar a produtividade. Nada do que é produzido ali carrega agrotóxicos ou produtos químicos que possam contaminar o solo, os mananciais ou a própria produção. “É uma agricultura limpa, saudável para quem planta e para quem consome”, explica Gilvan Salviano de Araújo, agrônomo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Paraíba (Emater/PB) e responsável pela orientação agroecológica no local. Para revigorar o solo são utilizados os biofertilizantes produzidos pelos moradores da comunidade. Entre as matérias-primas, estão incluídas fezes de aves e de bovinos, água, caldo de cana-de açúcar e soro lácteo. “Isso é muito bom porque a gente também economiza. Não precisa comprar nada, tá tudo aqui no quintal”, observa o presidente da Associação dos Produtores Orgânicos da Fazenda Carrasco, Francinaldo da Silva Luna. O plantio alternado de culturas nos canteiros de hortaliças é outra técnica ali aplicada. O objetivo é Francinaldo Luna só usa repelentes naturais entre os pés de hortaliças controlar pragas e evitar o desgaste do solo pela monocultura. Após dois canteiros de alface, por exemplo, Luna planta sempre um de cebolinha verde – repelente natural de insetos. Outros repelentes utilizados pelo agricultor são o coentro, o hortelã e a citronela. E, se for necessário pulverizar as folhas, é usado o Ácido da Castanha de Caju (ACC). Renda diversificada Assim como os demais agricultores familiares da comunidade, Luna trabalha em feiras orgânicas que acontecem em Campina Grande, Lagoa Nova, Esperança e em outros municípios do Território da Borborema, um dos 60 incluídos em 2008 no Programa Territórios da Cidadania. Criou nas feiras um canal de comercialização. E o progresso é visível na sua vida. A casa onde mora com a mulher e quatro filhos, inicialmente com apenas dois quartos e construída com recursos da Caixa Econômica Federal, já foi ampliada e hoje exibe entre os cômodos uma grande área de serviço. A segurança alimentar da família também está garantida com a produção das hortas, com a fartura de frutas, sucos e biscoitos caseiros, e com os frangos do quintal. O próximo passo do agricultor será iniciar a venda de tilápias. Seis mil alevinos já estão em crescimento numa barragem da propriedade, de onde provém a água para regar as hortaliças no tempo da seca. As folhas que não servem para a venda são de imediato aproveitadas na alimentação dos peixes. Nada se perde. A idéia que norteia o crescimento local é a do empreendedorismo familiar. Com o objetivo de que essas famílias aprendam a ser empresárias de tudo o que possuem na sua área, outro projeto em estudo é a implantação da apicultura na reserva legal de 12 hectares da Fazenda Carrasco. O lote de cada uma das famílias foi demarcado para ter parte dessa reserva legal e do riacho que corta a fazenda. Quem participa do Crédito Fundiário Trabalhador(a) rural sem terra; Agricultores familiares que sejam arrendatários, parceiros, meeiros, agregados ou posseiros; Pequenos proprietários (propriedade rural inferior ao módulo familiar); Jovens rurais entre 18 e 28 anos (filhos de agricultores, estudantes de escolas agrotécnicas ou do Programa Escola-Família); Atenção: todos precisam comprovar cinco anos de experiência na atividade rural. Quais são as Linhas de Crédito Combate à Pobreza Rural: destinada a trabalhadores de baixa renda. Disponível para as regiões Nordeste e Sul, e para os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Consolidação da Agricultura Familiar: voltada a agricultores que estejam ou não organizados em associações. Disponível para 21 estados (nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, além de Rondônia e Tocantins). Nossa Primeira Terra: destinado a filhos de agricultores familiares ou trabalhadores entre 18 e 28 anos. No caso de associações, pode haver 30% de jovens com até 32 anos. Terra para a Liberdade: para trabalhadores libertos de situações análogas à escravidão. Terra negra: para trabalhadores negros (e que não sejam quilombolas). Pagamento: para todas essas linhas, o prazo é de até 17 anos, com taxas de juros entre 2% e 5% ao ano, conforme o valor financiado (que pode atingir até R$ 40 mil). Informações pelo site www.creditofundiario.org.br ou e-mail [email protected] TERRA DA GENTE 23 REFORMA AGRÁRIA E ACESSO AOS RECURSOS AMBIENTAIS Colhendo os frutos da produção sustentável A C E S S O A O S R E C U R S O S Fruticultura em alta Ana Cristina (à frente) é a presidente da Associação das Mulheres Produtoras do Gameleira Banana-maçã, pacovan, comprida, prata, peroara, banana-sapo e outras variedades da fruta tropical são hoje sinônimos de fartura e desenvolvimento sustentável para cerca de 400 famílias do Projeto de Assentamento (PA) Gameleira, no Pará. E de lucro alto. A produção consorciada de bananas tem gerado entre as famílias assentadas uma renda mensal de R$ 2 mil, em média, além de muitos planos para o futuro. Hoje o assentamento, localizado em São Geraldo do Araguaia, produz 120 toneladas de primeira qua- 26 TERRA DA GENTE lidade da fruta a cada mês. Além de propiciar o sustento, ela é responsável por impulsionar a comercialização de produtos dessas famílias nas cidades do Pará, Tocantins e Maranhão. São famílias como a de Guilherme Gomes, 41 anos. Com 1,3 mil bananeiras ocupando um quarto dos seus 50 hectares, Gomes consegue sustentar uma família de sete pessoas. “Faço dois cortes por mês e produzo cerca de 200 caixas nesse período, a R$ 13, cada. Não dá para ficar rico, mas está dando para sustentar bem Independência feminina minha esposa e meus quatro filhos”, ressalta ele. O assentado reconhece que, com a renda obtida, é possível até planejar o futuro. “Financio uma moto desde novembro e comprei bicicletas para os meninos irem à escola, que fica a três quilômetros de casa. Antes, não dava”. Cinqüenta famílias do PA Gameleira utilizaram os recursos do Pronaf E, assim como Gomes. Elas investiram os recursos na compra das primeiras mudas de banana-maçã e maracujá, de vacas leiteiras e, ainda, para preparar a lavoura. “O custo da plantação de bananas é só o da mão-de-obra, porque a gente vai podando e usando as bananeiras velhas como adubo. A muda, que eu mesmo preparo, serve por cinco anos. Só precisa sempre limpar o ba- No rastro dessa lucrativa primeira edição do festival, 45 assentadas criaram a Associação das Mulheres Produtoras do Gameleira. “A idéia surgiu quando a gente viu reunido o fruto do nosso trabalho e percebeu que dava mesmo para melhorar a nossa renda”, lembra a presidente, Ana Cristina de Oliveira Moraes, 28. Criada formalmente em novembro de 2007, a associação tem como objetivo a agregação de valor ao produto. “A gente usa as bananas que não estavam bonitas para vender, mas eram boas para comer. Em vez de jogar fora, fazemos doces”. Atualmente, elas já produzem bolos, banana desidratada (popularizada como banana chips), licor, brigadeiro, bananinha, mariola, doce, geléia, vinagre e farinha de banana. “No começo, muita gente achou que não ia dar em nada. Quando começou a render dinheiro, as mulheres buscaram a associação para não ter de pedir R$ 1 aos maridos e ainda ouvir: ‘Pra que esse um real?’”, diverte-se Ana Cristina, ao recordar um passado ainda recente, em que sustento da casa e dinheiro no bolso eram exclusividade dos maridos. Ela calcula que a renda mensal de cada associada, com a demanda crescente, possa atingir R$ 700. Ana Cristina destaca o papel da capacitação para as associadas. “Nós, mulheres, temos de conseguir mais espaço para mostrar que conseguimos vencer os obstáculos. É muito bom saber que o nosso trabalho já tem reconhecimento lá fora”. nanal, tomar cuidado, senão ele pára de produzir”, ensina. Superando as dificuldades Quem hoje vê famílias como a de Gomes não imagina as dificuldades pelas quais elas passaram há 10 anos, quando chegaram ao local. O Sudeste do Pará era na época afetado Belém PARÁ São Geraldo do Araguaia, PA TERRA DA GENTE 27 R E C U R S O S A O S A C E S S O Costa (à esquerda) produz bananas em consórcio com outras culturas, como o cacau por décadas de práticas de ocupação predatória, com queimadas, desmatamento irregular, pecuária extensiva e uso indevido do solo. Assim que desembarcaram ali, muitos assentados optaram por lavouras convencionais, com agrotóxicos, como as de soja e milho. Logo constataram que as terras, antes cobertas por floresta, enfraqueciam a cada colheita e suas propriedades estavam sendo atingidas por erosão causada pela forte chuva. Havia o risco de contaminação dos pequenos rios. Os que optaram pela criação de gado de corte também não tiveram muito êxito – conviviam com doenças, dificuldades de escoamento da produção e preços baixos, por conta dos atravessadores. Os assentados, então, se mobilizaram e decidiram preservar suas terras e apostar em um produto seguro e 28 TERRA DA GENTE Gomes obtém renda certa para a família de sete pessoas rentável. Partiram em busca de recursos e de assistência técnica. Ao aderir às linhas de crédito do Pronaf, reescreveram seus destinos. Manejo adequado Desde 2002, quando 180 famílias resolveram produzir a fruta em consórcio com outras culturas, a expressão “a preço de banana” não se limita ao significado de “coisa barata”. Ao longo do tempo, a banana tornou-se sinônimo de renda e produção ambientalmente sustentável. Maranhense de Riachão, o mesmo Gomes que hoje produz de forma consorciada, lembra que chegou a tentar a vida no garimpo antes de se tornar um beneficiário da reforma agrária. Ele conta que, ao chegar em São Geraldo do Araguaia, os assentados demoraram a descobrir como lidar com o solo da região. “No começo, tudo aqui era mata. Na época, nossa idéia era derrubar e fazer capim. Depois, com o tempo, o capim morreu e a gente ficou sem renda e sem terra boa”. A segunda fruta mais consumida no País começou a ser plantada na região apenas para prover a mesa dos próprios assentados. De fácil manejo, aos poucos ela se mostrou excelente solução para recuperar uma terra tão judiada. A cultura é mantida em conjunto com o milho e a mandioca. As cascas da fruta também são aproveitadas para alimentar o gado leiteiro, pequenas aves e os tambaquis, criados em açudes. Produção consorciada Com o manejo sustentável, a fauna nativa voltou ao lugar e já não assusta mais os assentados, que passaram a conviver de perto com animais de médio porte. Mesmo sem ser convidados, porcos-do-mato, antas, cutias e guarás, provenientes da Reserva Indígena do Suruí, próxima a lotes da reforma agrária, se aventuram a repentinas visitas. São atraídos pelas pencas de banana. Adepto a essa forma não-agressiva de produção, o assentado Márcio Gomes da Costa, 25, começou a recuperar sua terra há dois anos. Na época, decidiu plantar a fruta em consórcio com outras culturas que necessitam de sombra, como o cacau. “Com a banana, dá para tirar R$ 1,2 mil por mês e, com o leite, consigo mais R$ 100 por dia. Agora tenho segurança para planejar outras lavouras permanentes, de retorno a médio prazo, de três anos em média, como a do cacau”. Costa também se preocupa com sua produção a longo prazo e com uma renda constante. Desde 2006, planta árvores da região, como o mogno, pois projeta um futuro mais estável. “Elas não atrapalham a banana nem o cacau. Deixando lá, crescem sozinhas. É só ter paciência que dá renda. E, o que é melhor, dão sempre”, explica ele. Abrindo caminhos Em 2005, a fama da banana produzida no assentamento começou a TERRA DA GENTE 29 R E C U R S O S A O S A C E S S O se espalhar e atrair supermercados e distribuidores. No entanto, a falta de estradas para transportar o produto perecível era um dos principais problemas dos assentados. Na época das chuvas, chamada de inverno na região, a maior parte da produção estragava e era jogada fora. Associado ao crédito do Pronaf, os fruticultores buscaram em 2005, numa etapa seguinte à implantação do assentamento, o apoio a projetos de infra-estrutura. Naquele ano, os recursos do Incra garantiram a abertura e o reparo de 30 quilômetros de estradas na região. A distância entre produtores e consumidores ficou menor. Hoje a banana-maçã, principal variedade produzida no Projeto de Assentamento Gameleira, pode ser encontrada em feiras e merca- 30 TERRA DA GENTE dos de municípios de maior porte, como Marabá, São Geraldo, Imperatriz do Maranhão, Eldorado dos Carajás, Parauapebas e Araguaína, entre outras. Festival da banana O caminho inverso também começou a ser percorrido. Com as estradas recuperadas, os consumidores da banana passaram a buscar a fruta na fonte. Em julho de 2007, o PA Gameleira promoveu o I Festival da Banana, atraindo ainda mais visitantes. A iniciativa partiu dos próprios assentados, que começam a se organizar em cooperativas para divulgar sua produção. Foram recebidas 1,5 mil pessoas e distribuídas 13 mil bananas em dois dias de festas, shows, palestras e premiações para os produtores. Fábio Moraes de Souza, 30, avalia que o festival teve o mérito de apresentar de forma massiva a produção do assentamento. “Sem a união do pessoal, nada disto teria acontecido. Preparamos tudo em 30 dias, mas valeu a pena, porque pudemos vender diretamente ao consumidor e melhorar nossa renda”. Para Souza, o evento também estimulou as famílias assentadas a tomarem a iniciativa de diversificar a produção. Há um ano, ele participou da fundação da cooperativa dos produtores do PA Gameleira e já está discutindo desafios como infra-estrutura, distribuição, diversificação e agregação de valor. Souza estima que o lucro do festival só com os produtos extraídos da banana chegou a R$ 2,5 mil. Em 2008, prevê que chegue a R$ 10 mil. Conheça as ‘linhas verdes’ do Pronaf O Pronaf conta com três linhas de investimento para os agricultores familiares que querem produzir e sabem da importância de preservar suas terras, o meio ambiente da sua região e o ma- nejo sustentável. São o Pronaf Floresta, Pronaf Agroecologia e, o mais recente, Pronaf ECO. Conhecidas como as ‘linhas verdes’ do Pronaf, elas disponibilizam entre R$ 7 mil e R$ 36 mil, com juros entre 1% e 5%. O agricultor familiar interessado nos benefícios das ‘linhas verdes’ pode procurar os agentes financeiros do Pronaf na sua região (bancos e cooperativas de crédito). Pronaf Floresta* Pronaf Agroecologia* Pronaf ECO* Público Todos os agricultores(as) familiares enquadrados no Pronaf. Público Agricultores(as) familiares do Pronaf que desenvolvam sistemas de produção agroecológicos e/ou orgânicos, exceto os dos grupos A, A/C e B. Público Agricultores(as) familiares do Pronaf, exceto os dos grupos A, A/C e B. Modalidade Investimento. Modalidade Investimento. Modalidade Investimento. Finalidade Implantação de projetos de sistemas agroflorestais, exploração extrativista ecologicamente sustentável, plano de manejo e manejo florestal. Finalidade Implantação dos sistemas de produção agroecológicos e/ou orgânicos. Finalidade Implantação, utilização ou recuperação de tecnologias de energia renovável, biocombustíveis, armazenamento hídrico, pequenos aproveitamentos hidroenergéticos e silvicultura. Crédito/Teto e Juros Juros de1% ao ano. Recursos dos Fundos Nacionais do Nordeste, Norte e Centro-Oeste: até R$ 10 mil. Recursos dos Fundos para outras finalidades ou recursos das demais fontes: até R$ 7 mil. Crédito/Teto e Juros Para quem retirar até R$ 7 mil, juros de 1% ao ano. Até R$ 18 mil, juros de 2% ao ano. Até R$ 28 mil, juros de 4% ao ano. Até R$ 36 mil, juros de 5% ao ano. Crédito/Teto e Juros Para quem retirar até R$ 7 mil, juros de 1% ao ano. Até R$ 18 mil, juros de 2% ao ano. Até R$ 28 mil, juros de 4% ao ano. Até R$ 36 mil, juros de 5% ao ano. Prazo de pagamento Até 12 anos. Prazo de pagamento Até 8 anos. Prazo de pagamento Para os Fundos Constitucionais, até 16 anos. Para as demais fontes, até 12 anos, segundo a finalidade do financiamento. Carência Até 8 anos. Carência Até 3 anos. Carência Como regra geral, é de até 3 anos, podendo chegar até 8 anos. * Dados Já relativos à safra 2008/2009. TERRA DA GENTE 31 R E C U R S O S A O S A C E S S O Os guardiões do tesouro, José Ailton da Silva e Genival Alves Dessalinização da água Assentamento sertanejo vence a seca Mesmo depois da conquista da terra, há uma década, sobreveio uma realidade difícil. Em uma área marcada pelo sol escaldante e longos períodos de estiagem, a água que brotava da terra, bombeada por um poço artesiano, trazia consigo o sal. Salobra e imprópria para o consumo humano, era um símbolo da precariedade das condições de vida entre famílias recém-assentadas em Poço Verde, no interior de Sergipe. Terra havia, água faltava. A única alternativa para matar a sede no Projeto de Assentamento (PA) Santa Maria da Lage vinha, então, da aliança entre a coragem típica do povo do Sertão e a força de sofridos animais, 32 TERRA DA GENTE que vagavam por quilômetros para ajudar no transporte de galões, barris e latões, sempre cheios da água retirada de uma barragem vizinha. Nessa época, os caminhões-pipa enviados pela Defesa Civil também surgiam como um socorro imediato, ajudando a matar a sede e alimentando a esperança por dias melhores. Entretanto, não era o suficiente. Um ano depois de criado o assentamento é que viriam as cisternas, construídas com recurso federal. Distribuídas por todo o assentamento, amenizaram a escassez de água e garantiram, com o acúmulo obtido com a chuva entre os meses de maio e agosto, uma vida mais digna para crianças, jovens e adultos. Só que a história de drama no Sertão sergipano não se encerrava ali. A seca, velha companheira do 1 4 Utilização racional do equipamento e da água é prática diária na comunidade, como mostra a seqüência de imagens 2 povo sertanejo, era persistente. No período de estiagem, as dificuldades voltavam e a água armazenada durante a temporada de chuva precisava ser racionada. Só assim se garantia a sobrevivência. Vida renovada Essa é hoje uma realidade que o tempo transformou apenas em recordação. Dez anos depois de criado pelo Incra, o PA Santa Maria da Lage tornou-se referência no Território do Sertão Ocidental quando o assunto é organização coletiva, aproveitamento racional da água e produtividade nas lavouras. Com recursos do Crédito Semiárido, que garantiu R$ 1,5 mil para cada uma das 27 famílias ali residentes, a associação dos moradores do assentamento decidiu implantar um novo sistema de abastecimento. Tudo para acabar de vez com a escassez de água. Com o apoio de técnicos do Incra e do governo estadual, o novo sistema foi instalado em dezembro de 2007 por uma empresa particular. 3 Baseado no funcionamento de um aparelho dessalinizador, o sistema transforma a água salobra bombeada pelo poço artesiano em água potável e assegura, assim, maior qualidade de vida para as famílias assentadas. “A vida da gente melhorou muito, tem água boa para todo mundo. A gente já pode até dispensar a ajuda do caminhão-pipa”, comemora José SERGIPE Aracaju Brás de Jesus, o Mizé, 51 anos, o primeiro presidente da associação. Responsável pela regularização do abastecimento local, o novo sistema, que purifica 50% da água proveniente do poço, é protegido e mantido pelos próprios assentados. Dois deles, capacitados pela empresa que instalou o equipamento, foram escolhidos pela comunidade como os ‘guardiões’ do dessalinizador. São os responsáveis pela ativação, limpeza e proteção do aparelho. “A gente sabe que essa é uma máquina cara e muito importante para a comunidade. Então, cuidamos de tudo e não deixamos que ninguém chegue perto”, conta Genival Alves, 27, um dos ‘guardiões’. As instruções são seguidas à risca: “Na hora em que a gente sai de casa para ligar o dessalinizador, tudo já é muito pensado. A gente sabe que não pode cometer erros, porque o equipamento é muito delicado”, reforça José Ailton Luiz da Silva, 32, o outro incumbido da missão. Respeito ao ambiente Poço Verde, SE A implantação do novo sistema de abastecimento ainda intensificou TERRA DA GENTE 33 R E C U R S O S A O S A C E S S O Mãos femininas geram mais renda Acostumadas à vida dura no campo, as mesmas mãos femininas que cuidam das lavouras e das atividades domésticas também contribuem para a geração de mais renda dentro do assentamento, com a produção de artesanato. Peças de palha de milho e tecelagem, como bonecas, tapetes, cobertores, redes e jogos de banheiro, são confeccionadas por seis assentadas que fizeram um curso oferecido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Hoje, elas incrementam a renda familiar com as vendas em exposições e em feiras de toda a região. 34 TERRA DA GENTE a consciência ambiental das famílias. Mesmo com o dessalinizador, os assentados seguem evitando o desperdício e utilizando de forma racional a água do poço artesiano. “A gente controla bem a retirada da água. O dessalinizador só é ligado duas vezes na semana, na quarta-feira e no domingo. Assim, todo mundo pode ter água boa em casa. Se a gente não desperdiça nada, vai ter sempre o que beber”, ensina José de Jesus, 43, atual presidente da associação dos moradores e homônimo ao primeiro. Segundo ele, além de manter a preocupação com o desperdício da água, as famílias assentadas zelam diariamente pela área de reserva legal existente no assentamento, a fim de proteger os animais que ali vivem. “Temos muitos animais e não deixamos ninguém fazer mal a eles, nem de dentro nem de fora do assentamento. Até para roçar o mato e liberar a estrada do assentamento, todos têm de pedir autorização”. Conhecendo bem a influência da vegetação sob o clima árido da região, os assentados ainda combatem o desmatamento para garantir os bons resultados na lavoura. “A gente sabe que o mato chama chuva. Então, aqui ninguém tira um tronco que seja”, salienta o presidente da associação. Produtividade garantida Inserido na região que mais produz feijão e milho no estado de Sergipe, o PA Santa Maria da Lage também é destaque por sua produtividade. Com a dedicação e o suor das famílias, as lavouras dessas duas culturas, que pintam de verde os lotes do assentamento, vêm garantindo renda e mesa farta a todos. Com financiamentos do Pronaf C e a boa quantidade de chuva em 2008, os agricultores esperam uma colheita abundante, que supere as mais de 480 toneladas de milho produzidas na última safra. E os bons resultados que já começam a brotar nos lotes das famílias se repetem na área coletiva do assentamento. O local, destinado ao cultivo pelos filhos dos assentados, já está coberto por plantações de milho e feijão e é utilizado, ainda, para a criação de animais e uma pequena horta. Além do Pronaf, outro trunfo para o aumento da produtividade tem sido a organização coletiva. Unidas, as famílias criaram e mantêm ativa a sua associação de moradores e garantem a atualização das orientações sobre as diversas formas de investimento. É assim que o assentamento conta com o crédito nos bancos e com o sistema de dessalinização da água. Conseguiu comprar um trator e implementos agrícolas e, para os eventuais tempos de adversidades, mantém um caixa de reserva emergencial. Como ocorre a arrancada da produção Os recursos repassados por meio do Crédito Instalação possibilitam o suporte inicial dos trabalhadores nos assentamentos criados ou reconhecidos pelo Incra. Esse benefício visa a segurança alimentar e hídrica das famílias, a construção e recuperação de moradias, e a aplicação em bens de produção para a geração de renda. As modalidades do Crédito Instalação são as seguintes: Apoio Inicial, Aquisição de Materiais de Construção, Recuperação Materiais de Construção, Fomento, Adicional do Semi-Árido e Reabilitação do Crédito Produção. A concessão dos recursos ocorre depois da criação do assentamento e da formulação de uma lista de beneficiários pelo Incra. De olho no futuro Os bons resultados na lavoura e a melhoria constante da qualidade de vida não tiram a preocupação das famílias em relação ao futuro. Pensando em garantir dias ainda melhores para as futuras gerações, elas zelam pela escola, mantida no local pela prefeitura de Poço Verde. Todas as crianças e adolescentes do assentamento estão matriculados e freqüentando as aulas. E quem já passou pelas séries iniciais, assiste às aulas em escolas instaladas na sede do município ou em um povoado vizinho. Mas a valorização da educação vai mais longe. Buscando a formação de professores dentro do próprio assentamento, dois jovens da comunidade ingressaram em um curso de nível superior, mantido com recursos do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) e fruto de uma parceria entre o Incra, a Universidade Federal de Sergipe (UFS) e movimentos sociais. O curso de Pedagogia da Terra, iniciado em 2007, transformará já em 2010 os jovens Adriano Souza Santana e Gilene Leal de Santana nos primeiros moradores do assentamento com formação superior. Um esforço que visa a formação imediata de multiplicadores de conhecimentos no PA Santa Maria da Lage. Crédito (destinação) Crédito Apoio Inicial: destinado à segurança alimentar das famílias beneficiadas e ao suprimento de suas necessidades básicas. Crédito Aquisição de Materiais de Construção: destinado à construção das habitações rurais, podendo ter incluído o pagamento de mão-de-obra. Crédito Fomento: suporte à geração de renda, a fim de se garantir a segurança alimentar das famílias. Visa o fortalecimento das atividades produtivas no entorno das habitações e as experiências de microcrédito associativo. Crédito Adicional do Semi-árido: se destina a atender as necessidades de segurança hídrica das famílias assentadas nas áreas do Semi-árido, reconhecidas pelo IBGE. É focado nas famílias expostas a freqüentes períodos de estiagem e que necessitam de soluções em captação, armazenamento e distribuição de água (é vedada a utilização em equipamentos de transporte, como carro e caminhão-pipa). Crédito Recuperação Materiais de Construção: visa suprir as necessidades de melhorias habitacionais apontadas por laudo técnico individual que indique os valores necessários a serem investidos na reforma e/ou na conclusão da moradia. Crédito Reabilitação do Crédito de Produção: destinado a recuperar a capacidade de acesso a novos créditos entre as famílias que contrataram financiamentos, exclusivamente no âmbito do Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária (Procera). TERRA DA GENTE 35 Assentados apostam nos fitoterápicos e homeopáticos A C E S S O A O S R E C U R S O S Cura pela natureza O manejo sustentável dos recursos naturais garante a conversão das frutas e outras plantas em óleos e xaropes Em meio a uma paisagem de troncos retorcidos e folhas duras brotam as plantas que garantem saúde e sustento para as famílias do Projeto de Assentamento (PA) Americana, no município de Grão Mogol. Ali, um grupo de 12 famílias sobrevive da extração de frutos típicos do Cerrado no Norte de Minas Gerais, como pequi, cagaita, mangaba, pana e rufão. O manejo sustentável dos recursos naturais assegura, ainda, que esses frutos sejam convertidos em óleos, xaropes e tinturas pelas mãos dos assentados. Um dos pioneiros na produção de fitoterápicos, Cristovino Ferreira Neto, 51 anos, exprime o orgulho de fazer seu próprio remédio: “Dificilmente eu vou em farmácia. Passo 10 anos sem tomar comprimido”. Os fitoterápicos, mais usa- 36 TERRA DA GENTE dos em seres humanos, são empregados no combate a verminoses, gripes, infecções, micoses e em tratamentos cicatrizantes. Já os homeopáticos são mais difundidos para a melhoria do solo e o combate a parasitas que atacam os animais, como os carrapatos. No PA Americana, a extração de óleos fitoterápicos ainda tem outro atribu- to: permitir renda extra às famílias assentadas. O litro do óleo de rufão, um potente antiinflamatório, pode ser vendido por até R$ 200. “Pouca gente sabe extrair o óleo, porque se perdeu o costume”, observa Cristovino. Mas em sua família o conhecimento é transmitido de geração em geração. “Meus avós praticamente não conheciam médico. Iam no cerrado, apanhavam o fruto e curavam”. A sabedoria acumulada com as práticas fitoterápicas já beneficia as comunidades das imediações. Como a cidade mais próxima fica a 40 quilômetros de distância, quando padece de alguma gripe ou infecção, a vizinhança sabe onde achar a cura. Em vez de depender unicamente dos médicos, recorre aos xaropes e óleos extraídos por Cristovino. Saiba qual a diferença Fitoterapia Trata-se do uso das plantas com fins terapêuticos. Isso significa que flores, vegetais, ervas, folhas, sementes, raízes, cascas e até frutos são empregados sob forma de chás, cremes, loções, xaropes, banhos, inalações, entre outros, para combater diversos tipos de doenças, além de servirem como preventivos eficazes a infecções e outros males. desenvolve projetos de apicultura e de pequenas fábricas de farinha e rapadura. Com tantas alternativas de produção, cada família chega a faturar, em média, R$ 600 por safra. O plano é crescer sem destruir o ambiente e sem esgotar os recursos naturais. Salvando a boiada Biodiversidade do Cerrado Além de se dedicar à produção de fitoterápicos, as famílias do assentamento criam pequenos animais, mantêm hortas e roças de milho, feijão e mandioca. Fazem uso da biodiversidade do Cerrado, manejando as variedades nativas, cultivando mudas, colhendo seus frutos e cuidando da multiplicação das suas sementes. Os frutos são comercializados na feira do município de Grão Mogol e na Cooperativa Grande Sertão. No ano de 2007, as famílias do PA Americana entregaram na cooperativa cerca de 3,5 toneladas de araçá, pana e cagaita, e 80 litros de óleo de pequi. Lá, a matéria-prima vira polpa de fruta e segue para o mercado local e também para a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), para abastecer escolas, creches e asilos. Preocupados em preservar variedades tradicionais de milho, feijão e fava, os assentados ainda cultivam sementes crioulas. A intenção é perpetuar as espécies e diminuir custos. “Com a produção de sementes, não precisamos recorrer ao mercado para comprá-las”, justifica Aparecido Alves de Souza, 40. Para diversificar ainda mais as atividades, um grupo de assentados também No município mineiro de Tumiritinga, a aproximadamente 380 quilômetros de Belo Horizonte, na região do Vale do Rio Doce, a homeopatia animal já salvou de prejuízos as 25 famílias do PA Primeiro de Junho. Uma erva tóxica, ingerida pelo gado junto com o pasto, provocou em 2004 a perda de 10% das cabeças de gado. “A gente tinha tentado todo o tipo de remédio e nada resolvia. Fizemos a homeopatia com o gado e nenhum deles morreu mais por causa da erva”, conta o assentado Deusdete Pereira, 42. Ele calcula que os gastos com medicamentos chegavam, antes da adesão à homeopatia, a R$ 20 mil por ano. Os problemas de saúde gerados pelo uso de agrotóxicos MINAS GERAIS Belo Horizonte Grão Mogol, MG Homeopatia Obtidos a partir de produtos dos reinos animal, vegetal e mineral, os remédios homeopáticos buscam o equilíbrio integral do indivíduo, não apenas no campo físico, como também no psíquico e espiritual, e devem ser prescritos e acompanhados por especialista. e o empobrecimento do solo devido à prática de queimadas, no passado, acabaram contribuindo para a mudança de postura em relação ao ambiente. Em 2006, o trabalho com homeopatia animal dos moradores do PA Primeiro de Junho foi um dos 50 premiados no Concurso Nacional de Sistematização de Experiências em Agroecologia, promovido pelo MDA. O prêmio, de R$ 20 mil, acabou destinado ao desenvolvimento de canteiros ecológicos para a produção de sementes. Com a homeopatia, os custos de manutenção da horta coletiva de 1,5 hectare também diminuíram. E ao mesmo tempo a renda aumentou, já que os produtos do assentamento conquistaram preferência no mercado por serem agroecológicos. A produção mensal é de mais de mil quilos de hortaliças e de dois mil quilos de mandioca. A experiência já é difundida em outros assentamentos mineiros nas oficinas realizadas pelo programa de Assessoria Técnica, Social e Ambiental (Ates), do Incra. “Nós também recebemos pesquisadores e visitantes de outras partes do Brasil e do exterior”, acrescenta a presidente da cooperativa dos assentados, Marlene Ferreira Martins, radiante com o êxito. TERRA DA GENTE 37 Q U A L I D A D E D E V I D A N O B R A S I L R U R A L V I D A Conquista dos palcos Q U A L I D A D E D E Arte e cultura despontam Francisca e Raimundo, seu marido, entoam versos sobre a luta travada pela reforma agrária 40 TERRA DA GENTE na reforma agrária O que é o cordel Peleja de cantadores, quadrão e folheto são algumas das formas como o nordestino se refere à literatura de cordel. Essa tradição portuguesa de pendurar em cordas, cordéis ou barbantes os folhetos rústicos nos quais eram impressas poesias populares (rimadas e ilustradas com xilogravuras) chegou ao Brasil no início da colonização. Os cordelistas, assim como Dona Luísa, recitam esses versos de forma melodiosa e também fazem declamações. Reisado e teatro de bonecos são algumas das manifestações culturais em cena Olhos e mãos já cansados, marcados pela vida de trabalho na roça. Mas a nordestina de 76 anos não sossega. Tem um novo desafio pela frente: apresentar-se a um vasto público cantando versos remanescentes de sua infância. Dona de uma voz serena e cativante, Luísa Dimas da Rocha Silva é prova viva de como é possível preservar uma tradição primordialmente oral. Acompanhada por um violão, ela já se exibiu em diversos palcos cearenses cantando músicas que aprendeu lendo cordéis. “Não fico com vergonha, não. Eu gosto. Quando canto, o público acha muito ‘invocado’ e se aproxima para ver”, brinca a moradora do Assentamento Lagoa do Mineiro, em Itarema, município litorâneo a 232 quilômetros de Fortaleza. Dona Luísa se orgulha por já ter ficado diante de um público de aproximadamente 300 pessoas na capital e também por chamar a atenção dos jovens vizinhos de assentamento, que despertaram para o cordel. “Eu fico mais feliz porque agora eles me acham importante”. Dona Luísa faz parte de um conjunto de trabalhadores rurais que transformaram seu cotidiano e o convívio social a partir de um contato mais constante com a arte e o folclore. Ela integra um universo de seis mil pessoas envolvidas nas atividades do Projeto Arte Dona Luísa: voz serena resgata os versos e Cultura na Reforma Agrária, aprendidos na infância criado em 2003 pelo Incra/ CE para incentivar expressões artísticas populares presentes Incentivo a subir aos palcos no dia-a-dia dos assentamentos. Primeiramente, foi realizado um levantamento da arte popular nos assentamentos do Ceará. Os grupos, então, passaram a receber orientações sobre o acesso a poFortaleza líticas públicas de cultura e a trocar experiências entre si. O Incra/CE também passou a incentivar a partiCEARÁ cipação desses grupos em festivais e a publicação de materiais próprios que aliam os temas culturais à reforma agrária. Atualmente, nos 85 municípios cearenses onde existem assentaItarema, CE mentos do Incra, 75 grupos se alterTERRA DA GENTE 41 Q U A L I D A D E D E V I D A nam em atividades culturais. Mesmo nos tempos de luta pela terra, eles mantiveram vivas as mais diversas tradições artísticas, a maioria originárias de Portugal. O reisado, também chamado de folia de reis, a comédia de drama, os cordéis, músicas e festejos que remontam a um Brasil colonial são postos em cena nos palcos montados em assentamentos. Os participantes são na maioria agricultores familiares, jovens, mulheres e idosos do Semi-árido. Mas há também grupos do Litoral e da Serra cearenses. O Projeto, que reúne 35 assentamentos em plena atividade, destaca a cultura como direito básico assegurado pelo Estado na área rural e auxilia na reconstrução da identidade cultural dos assentados. É o caso do reisado do mestre Zé Augusto no Assentamento Cachoeira do Fogo, em Independência; do grupo de dança-do-coco do Assentamento Sabiaguaba, em Amontada; e da dança de São Gonçalo do Assentamento Riacho Novo, em Santa Quitéria. Há, ainda, teatro popular, repente, banda de lata, teatro de bonecos, poesia, música e quadrilha juninas, artesanato, ativida- 42 TERRA DA GENTE Confecção de bijuterias agrega renda aos jovens Apresentações despertam potencial turístico des audiovisuais e de preservação do patrimônio histórico. Desestímulo ao êxodo Com fantasias e adereços coloridos, músicas e animação, essas atividades levam mais alegria a uma população acostumada a ter as mãos calejadas pela foice e a enxada manejadas sob sol escaldante. “Qualidade de vida nos assentamentos não se limita à infra-estrutura, engloba também o desenvolvimento humano. A arte e o folclore contribuem para esse desenvolvimento, consolidam a identidade cultural dessas famílias e melhoram a qualidade de vida e a auto-estima”, opina a técnica do Incra/CE Silma Magalhães, que coordena o Projeto. O incentivo à preservação da história e da cultura popular nos assentamentos também está ajudando a manter os jovens no campo. Filhos de assentados, eles são atraídos pelas possibilidades de emprego nas grandes cidades. É o caso de Maria Rocilda de Santana, 25, que havia saído do Lagoa do Mineiro para trabalhar como doméstica em Fortaleza. Quando inserida em um grupo de confecção de bijuterias organi- As apresentações artísticas sempre aconteceram no Assentamento Lagoa do Mineiro e cada vez atraem mais visitantes. “Foi uma antiga professora que definiu sexta-feira como o dia dedicado ao drama na escola e ensinou várias comédias bonitas, como a do casal de namorados, a do bêbado”, relembra a assentada Maria Ivaniza Martins de Sousa Nascimento, 37, que hoje integra o grupo de drama Lagoa das Artes. Lagoa das Artes é o nome dado a todos os grupos existentes no assentamento, sejam de reisado, drama, dançado-coco e teatro popular. O número de componentes varia entre seis e 20 – participam desde crianças até os mais idosos. Suas fantasias são costuradas pelos próprios assentados. Os tecidos e materiais são doados, patrocinados por programas de incentivo à cultura ou, então, comprados com a renda obtida no Festival de Quadrilha e Vaquejada, que acontece no assentamento sempre em junho, em parceria com a prefeitura de Itarema, e atrai gente de toda a cidade. Não é somente na época dos festejos juninos que aflora o potencial turístico em Lagoa do Mineiro. O lugar, a 80 quilômetros da praia Enseada dos Patos e próximo a um dos destinos mais pro- Maria Ivaniza integra o grupo de drama Lagoa das Artes curados do Ceará, Jericoacoara, também encanta por suas belezas naturais. Com uma lagoa cristalina rodeada de coqueiros, o assentamento recebe a visita de muitos estudantes estrangeiros. Mas são as datas importantes para essa população que mais atraem visitantes. No dia 6 de janeiro, o público chega de ônibus para assistir ao grande reisado, a dança profano-religiosa de origem portuguesa que festeja os três reis magos. Já no dia 12 de agosto, data de recebimento da posse da terra, acontece a Caminhada dos Mártires, na qual a população se reúne em procissão até a praia carregando cruzes nas mãos. “O objetivo é preservar a memória de todos os brasileiros que morreram na luta pela reforma agrária”, conta Ivaniza. E os visitantes também participam da caminhada. TERRA DA GENTE 43 V I D A D E Q U A L I D A D E zado pelo Arte e Cultura, ela voltou para casa. “A gente passa a ter orgulho ao ver que as pessoas de fora se interessando pela nossa arte e, a partir do momento em que o Projeto ajuda a ganhar dinheiro, não temos mais por que sair do assentamento”, justifica a jovem. As atividades artísticas dos assentados já foram apresentadas para um público de aproximadamente 30 mil expectadores. O Projeto também resultou na publicação do livro Arte e Cultura na Construção da Reforma Agrária, de Oswald Barroso; na produção do documentário Terra e Cultura: Cultivando a Cidadania, exibido em Paris em 2005 como parte das comemorações do Ano do Brasil na França; e na exposição fotográfica Uma Terra onde Corre Leite e Mel, de Leonardo Melgarejo. A consagração veio com a conquista do Selo Cultura Viva, do Ministério da Cultura, em reconhecimento a seu caráter inovador e à sua importância para a cultura do País. bertamos: estamos assentados, temos nossa terra, vivemos em paz”, diz parte da letra. Segundo Francisca, quando as 45 famílias do Assentamento Lagoa do Mineiro obtiveram do Incra o título de posse da terra, em 1986, chegaram a receber olhares desconfiados da população de Itarema. Vinte e dois anos se passaram e, hoje, não acontece festa na cidade praiana sem a presença dos artistas do assentamento. A mudança, na opinião de Francisca, é fruto da arte e da luta desses bravos descendentes de índios tremembé: “Tenho orgulho ao ver que nós avançamos muito de lá para cá. Sempre tivemos o reisado, sempre tivemos o drama, mas a gente colocava pouco em prática porque lutava em outros sentidos. Agora, queremos expor toda a nossa cultura para que os jovens também possam aprender”. Maria Rocilda retornou da capital para trabalhar no campo Um lugar onde emerge a criatividade Nem todas as manifestações artísticas têm origem em Portugal. Algumas foram adaptadas e reinventadas para retratar um cotidiano bem mais próximo dessa gente do campo: a luta por um pedaço de terra. É o caso da comédia de drama criada pelos assentados do Lagoa do Mineiro sobre a relação do lavrador com a sua foice. Eles também montaram uma peça para contar às crianças e ao grande público a história do assentamento. O Teatro Dramático da História da Luta pela Terra é composto por 18 atores e já começou a ser exibido nas escolas locais. Uma das protagonistas é Francisca Martins Sousa Nascimento, 59. Com sete filhos, a mãe de Ivaniza chegou a ser jurada de morte. Foram tempos difíceis, que a assentada não deixou passar em branco. Tanto que ela resolveu compor uma música para expressar sua vitória pessoal. “Com fé, nos li- 44 TERRA DA GENTE Como funciona o Projeto? O Incra/CE tem um papel de articulador, mapeando as políticas de incentivo à cultura em nível federal, estadual e municipal, integrando os grupos culturais dos assentamentos a essas ações e possibilitando o intercâmbio de experiências. Para isso, conta com a formação de parcerias, entre as quais, com o Governo do Estado do Ceará, Secretaria de Desenvolvimento Territorial e Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural do MDA, Serviço Social do Comércio (Sesc), Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae/CE), grupo Formosura de Teatro de Bonecos, ONG Encine, movimentos sociais do campo, associações dos assentamentos da reforma agrária e prefeituras. Como aderir ao Arte e Cultura? Não existe uma adesão formal. Primeiramente, foi realizado um levantamento das manifestações artísticas e culturais presentes nos assentamentos do Ceará. Essa catalogação já serviu para a inserção dos assentamentos no Projeto. A partir disso, os grupos recebem assessoria do Incra/CE sobre as políticas públicas na área de cultura no País e na elaboração de projetos culturais. Esse levantamento é permanentemente atualizado. Só os cearenses participam? Por enquanto, o Projeto só existe no Ceará, onde foi criado. A intenção é levá-lo ao Brasil inteiro, tendo como referência a experiência cearense. Inicialmente, é previsto um mapeamento cultural nos assentamentos dos estados. Depois, oficinas regionais e estaduais para orientar sobre as políticas e programas de cultura. Em seguida, um acompanhamento constante para divulgação, preservação e fortalecimento das manifestações artísticas. No primeiro semestre de 2008, começou a ser constituído um grupo nacional de trabalho que irá articular a difusão do Projeto no Brasil. Há outros incentivos à cultura nos assentamentos? Sim. O Programa Mais Cultura, que também faz parte das ações do Territórios da Cidadania, irá ampliar as atividades dos Pontos de Cultura, Pontos de Leitura, Pontos de Memória, Pontos de Audiovisual e Projeto de Agentes Culturais. Os critérios para a implantação dessas atividades estão sendo definidos pelo Ministério da Cultura (Minc) e pelo MDA. É importante para os grupos culturais dos assentamentos se organizarem para participar das instâncias de decisão nos Territórios da Cidadania. No Ceará, por exemplo, começou a discussão sobre a criação dos comitês de cultura para cada território. Mais informações: www.territoriosdacidadania.gov.br Quais programas patrocinam grupos culturais do Ceará? O Programa BNB de Cultura, do Banco do Nordeste do Brasil (www.bnb. gov.br); o Petrobras Cultural (www. petrobras.com.br/cultura); e o Programa Cultura Viva, do Minc (www.cultura. gov.br). TERRA DA GENTE 45 V I D A D E Q U A L I D A D E Ingrid Letícia (acima) aprofunda os conhecimentos agroecológicos na biblioteca rural, enquanto Adjane (à direita) entusiasma as crianças a ler Bibliotecas rurais Incentivo à leitura de mãos dadas com a O Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Sepé Tiaraju, localizado na região de Ribeirão Preto, em São Paulo, é cenário de produção 100% orgânica. Nesse ponto de afloramento e recarga do Aqüífero Guarani, o maior manancial de água doce subterrânea já rastreado no planeta, os assentados orgulham-se de haver banido os agrotóxicos e destinado 35% da área do assentamento à re- 46 TERRA DA GENTE serva legal. A legislação exige 20%. E orgulham-se também da adesão cada vez maior à leitura diária, propiciada pela chegada do Programa Arca das Letras, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em janeiro de 2007. A opção pelo cultivo saudável é fruto da conscientização dos assentados, decisão reforçada pela assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministé- rio Público do Estado de São Paulo e pela disseminação da educação ambiental por meio da leitura. Especialmente entre os jovens. Nessa legítima ‘ilha agroecológica’ no município de Serrana, que contrasta com a monocultura da canade-açúcar em propriedades privadas da região, cresceu Ingrid Letícia Rodrigues Franco. Aos 16 anos, Letícia, como é mais conhecida pelos ami- Literatura e reflorestamento Agroecologia gos, freqüenta o curso de Agroecologia por intermédio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), do Incra, e aprofunda seus conhecimentos na biblioteca do Programa Arca das Letras. Antes de a biblioteca rural ser instalada em seu assentamento, ela e os demais jovens até dispunham de um acervo, mas com poucos títulos. “O Arca das Letras é uma ótima op- ção para que jovens e crianças tenham mais cultura. Há crianças no meio rural que nem sabem o que é um livro”, alerta a adolescente. Na literatura, Letícia tem uma predileção pelos romances, mas revela interesse cada vez maior por obras referentes à produção orgânica. “A Agroecologia nos mostra o futuro dos nossos filhos, que é o consumo de produtos orgânicos”. Aos olhos do pai, Júlio Rodrigues Franco, 58, a adolescente evoluiu muito com o acesso à leitura. “Ela amadureceu, está atuante nas discussões do assentamento. A arca (móvel-estante onde os livros são todos dispostos) reúne os nossos jovens. É mais fácil colocar o hábito de estudo e leitura nos mais novos do que nos adultos”, observa ele. O lote onde vive Agnaldo Vicente de Lima, 37 anos, foi um dia um canavial. Atualmente é área de reserva do assentamento, onde ele cultiva mais de 100 variedades orgânicas, entre espécies lenhosas (árvores, arbustos e palmeiras) e cultivos agrícolas. É o chamado Sistema Agroflorestal (SAF), uma ferramenta de reflorestamento de áreas abertas. O interesse do assentado pelo assunto é tão grande que ele até pediu um livro para o acervo do Programa Arca das Letras, com o título Árvores Brasileiras. Para Agnaldo Lima, “o cerco está se fechando” na questão agroecológica. “A gente faz a nossa parte por consciência, mas acredito que no futuro será por obrigação, assim como o voto. Se a sociedade não parar para debater o assunto, vai ficar cada vez pior”, prevê. Ele, que sempre trabalhou com Agroecologia, conta que usa como adubo verde o feijão de porco e o guandu. E sobre o acordo firmado com o Ministério Público do Estado de São Paulo é enfático: “Pelas regras, quem usa fogo ou agrotóxico no assentamento paga multa de 10 salários mínimos e ainda corre o risco de perder o lote”. SÃO PAULO São Paulo Serrana, SP TERRA DA GENTE 47 V I D A D E Q U A L I D A D E Jair Ferreira difunde as práticas da agricultura saudável entre os mais jovens Opção pela vida saudável A troca de conhecimentos práticos e teóricos está presente nas relações entre os assentados – seja na comunidade ou na família – e acabou acentuada pelo acesso agora facilitado aos livros. Samuel Soares Ferreira, 18 anos, também faz o curso de Agroecologia. O pai, Jair Soares Ferreira, 53, esbanja sabedoria por trás de seu jeito simples, mas se diz disposto a receber ainda mais conhecimentos do filho e dos outros jovens. “A ganância veio junto com o agrotóxico e a tradição de orgânicos que existia acabou. Hoje estamos tentando retomar um caminho que nossos antepassados fizeram. Estamos tentando recuperar uma época que já se foi”, reflete o pai. E completa: “O pessoal vai ao mercado, vê aqueles tomates grandes, bonitos. Não sabe que tudo aquilo é veneno”. Seu Jair é ciente de que a produção orgânica tende a ser ainda mais procurada. Já acessou por duas vezes o Pronaf, para investir de forma coletiva em um trator, além de comprar animais e equipamentos e fazer benfeitorias no lote. Tem em vista abastecer um mercado consumidor mais atento, como ele, à necessidade de uma alimentação saudável. 48 TERRA DA GENTE Semente da cultura O Programa Arca das Letras no PDS Sepé Tiaraju já recebeu mais de 500 títulos, por meio de campanhas de doação promovidas pela comunidade, além do acervo original. Em razão da falta de espaço para guardar tantos livros novos, a biblioteca rural já “passeou bastante”, como brinca a irmã Vera Schinato dos Santos. Ela é uma das três religiosas da Congregação Franciscanas da Penitência que moram em uma casa na área comunitária do assentamento. Atual- mente, a biblioteca rural encontra-se sob os cuidados das irmãs, mas a intenção é construir um espaço comunitário que possa abrigá-la definitivamente. Irmã Vera sempre quis trabalhar no meio rural e conta que assumiu a missão de enfrentar as mesmas dificuldades dos assentados. Ela diz perceber que a comunidade não está “lendo por ler”, mas entendendo as mensagens. “Não devemos plantar apenas a semente do alimento, mas também a da cultura, que faz tão bem ao ser humano”, ensina. Biblioteca itinerante Para divulgar a leitura, não falta criatividade aos jovens e adolescentes envolvidos com o projeto – muitos deles capacitados como agentes de leitura para difundir o hábito de ler em toda a comunidade. Eles costumam levar a arca aos eventos promovidos no assentamento ou fora dele, para propiciar maior visibilidade ainda aos livros. Adjane Dionísio Pereira, de 25 anos, conta que um dia a turma resolveu carregar a biblioteca rural em um ônibus lotado até a praça do município de Serra Azul. “Aproveitamos a praça, que é um espaço destinado a brincadeiras e lazer. O pessoal da cidade ficou encantado”, recorda. Adjane, que já abrigou a arca em sua casa, diz que é notável a mudança no hábito de leitura, principalmente entre jovens e crianças. “Te- nho uma filha (Vitória) de seis anos. Ela não lia livros. Mas, quando a arca foi para minha casa, ela pegou gosto pela leitura. Dizia sempre: ‘Mãe, deixa eu ler mais um livro da arca’”. Adjane relata que Vitória está lendo cada vez melhor e não perdeu mais o interesse pelos livros, mesmo que a arca tenha ido agora passar uma temporada em outra casa do assentamento. Como é o Sepé Tiaraju O PDS Sepé Tiaraju foi criado em 2004, numa área de quase 798 hectares, onde vivem 79 famílias. É a primeira experiência de Projeto de Desenvolvimento Sustentável no estado de São Paulo. Tem como proposta reverter a situação de degradação ambiental da antiga fazenda Santa Clara, situada na área de afloramento e recarga do Aqüífero Guarani. Em toda a fazenda, anteriormente, se plantava cana. A área é composta por Sistemas Agroflorestais, Sistemas Silvopastoris e outros cultivos agroecológicos. Para garantir a viabilidade econômica do assentamento, existe uma parceria com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), no âmbito do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), modalidade Doação Simultânea. Pelo programa, cada assentado tem a garantia de poder comercializar até R$ 3,5 mil por ano com a Conab. Arca das Letras O Programa Arca das Letras foi criado em 2003 pela Secretaria de Reordenamento Agrário (SRA/MDA) com o objetivo de incentivar a leitura no campo. Desde o seu lançamento, já foram implantadas mais de cinco mil bibliotecas em comunidades rurais de 1,7 mil municípios brasileiros, beneficiando 570 mil famílias. Em 2008, a previsão é de entrega de mais 500 arcas nos 60 Territórios da Cidadania criados em todo o País. Como participar O pedido de biblioteca rural deve ser encaminhado para o e-mail: [email protected]. A solicitação pode ser feita pelo município, por um morador da comunidade a ser atendida, líder comunitário ou representante de movimento social. O solicitante receberá um formulário do Programa Arca das Letras e deverá preenchê-lo com a participação de toda a comunidade. O Programa analisará as respostas e, se viável a implantação, o pedido será incluído no planejamento de bibliotecas rurais para o estado. Atenção: é mais fácil atender comunidades que possam produzir a própria arca (móvel de madeira que acomoda os livros). Quem são os beneficiários O público do Programa é formado por assentados da reforma agrária, comunidades de agricultores familiares tradicionais, quilombolas, indígenas, extrativistas, ribeirinhos e associações do Programa Nacional do Crédito Fundiário. Obtenha mais informações O telefone do Programa Arca das Letras no MDA é: (61) 3961-6451. TERRA DA GENTE 49 V I D A Sinfonia dos assentados ecoa no Semi-árido potiguar Q U A L I D A D E D E Instrumentos reciclados Dezessete trabalhadores assentados compõem o Som da Terra O que poderia ser apenas mais uma oficina pedagógica na grade curricular do curso de Pedagogia da Terra na Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN) acabou transformando os conceitos de educação, música e destinação do lixo. Estudantes do penúltimo ano da formação acadêmica, promovida por intermédio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), do Incra, criaram o Grupo de Percussão Som da Terra tocando os mais improváveis instrumentos. Tambores de bombonas plásticas e latas, ganzás de garrafas pet e 50 TERRA DA GENTE Luiz Benício conta que a banda surpreendeu o ambiente universitário sementes de milho e feijão, além de flautas de cano em PVS e pedaços de madeira – esses são os principais acessórios das sinfonias. Eram produtos que normalmente, depois de utilizados, ficavam sem serventia. Seu único destino era o descarte. Dezessete estudantes de assentamentos no Território do Açu/Mossoró (RN) trataram de inverter essa lógica. Formaram uma banda e estão tirando da sucata os mais variados sons. A história do Som da Terra teve início no final de 2006. A turma de Pedagogia da Terra na UERN, formada por 120 alunos, recebeu a tarefa de realizar uma oficina pedagógica cujo tema central era a importância da reciclagem. Ao final, a turma deveria apresentar um seminário sobre o meio ambiente. A destinação do lixo nas áreas de assentamento, e principalmente a utilização de material reciclável, levou um grupo desses estudantes a ir além: construir os próprios instrumentos musicais só com o que seria jogado fora. E a oficina passou a englobar o aspecto cultural. Luiz Benício Júnior, 41 anos, do Projeto de Assentamento (PA) Favela, em Mossoró, explica que os instrumentos musicais, inicialmente, representavam apenas o produto final da oficina. Para a avaliação, os alunos, então, resolveram fazer uma apresentação aos demais colegas. A idéia era demonstrar como alguns produtos poderiam ser transformados em instrumentos, além de utilizados como brinquedos pelas crianças e adolescentes dos assentamentos. O resultado da oficina não só surpreendeu os professores, como também a coordenação do curso e os próprios alunos. O som oriundo dos instrumentos ganhou os corredores da UERN e provocou vibração entre os universitários. Todos os que assistiram àquela estréia do Som da Terra aplaudiram de pé os colegas. O grupo não só terminou com sucesso a oficina, como resolveu dar continuidade ao trabalho. Assim surgiu a banda. Despertando a musicalidade A banda tornou-se uma referência para o Projeto de Pedagogia da Terra e para a própria universidade. Até maio de 2008, foram realizadas mais de 60 apresentações em eventos da UERN e da Superintendência Regional do Incra, lotando auditórios, praças públicas, salas de aulas e palcos improvisados nos assentamentos em Mossoró e nas cidades vizinhas. Os instrumentistas da reforma agrária tocam em formaturas, seminários, feiras agropecuárias, festas folclóricas. Numa dessas apresentações, a trabalhadora rural Valquíria Maria dos Santos, 40 anos, moradora do Projeto de Assentamento Fazenda Nova, em Mossoró, percebeu que a filha Keila, de 21, estava na platéia em companhia das colegas de escola. Era um fim de tarde e o Som da Terra se apresentava em praça pública, no Centro de Mossoró, uma das maiores cidades do interior, para mais de 300 pessoas. No fim da apresentação, a filha, que nunca tinha ouvido a mãe tocar, abraçou Valquíria. Confessou que não imaginava ter uma mãe artista. “Eu pensei que tudo isso não passava de uma brincadeira. Para mim, só podia tocar quem estudava música. Nunca toquei nada na vida, nem quando RIO GRANDE DO NORTE Natal Mossoró, RN TERRA DA GENTE 51 V I D A D E Q U A L I D A D E era solteira e não tinha filhos. Mas a banda não é uma brincadeira, tudo isto é verdade! Vendo minha filha e as colegas na platéia me aplaudindo, descobri que também sei levar música e alegria às pessoas”, entusiasma-se Valquíria. Luiz Gonzaga e Zé Ramalho Valquíria, Isaac e Ana Cruz transformaram suas vidas com a música O estudante Isaac Jeremias de Paula, 26, do Projeto de Assentamento Três Marias, em Governador Dix-Sept Rosado, concorda que a banda mudou o conceito de música entre todos os seus integrantes. “Nenhum de nós sabia tocar e não imaginávamos um dia tirar o som de qualquer instrumento”, conta ele. A evolução da banda despertou nos componentes o desejo de estudar música, em especial, a do cancioneiro nordestino. O aluno do Pronera – Programa que em 2008 completa 10 anos e já formou mais de 500 mil estudantes no Brasil – explica que o grupo de percussão optou por tocar repertórios de compositores da região. Tudo porque eles expressam nas letras a tradição e os hábitos no campo nordestino. Nas apresentações, sempre executam músicas como Asa Branca (de Luiz Gonzaga) e Vida de Gado (de Zé Ramalho). “Essas duas músicas, em especial, falam da luta e do amor do trabalhador nordestino pela sua região”, destaca Isaac. Na concepção do estudante, a banda tenta reproduzir no repertório a realidade vivida nos assentamentos. “A gente não foge do nosso contexto. Como o nome da banda diz, fazemos o som da nossa terra e procuramos despertar nas pessoas o interesse pela música como alimento da alma, complemento do dia-a-dia da luta no campo”, reflete. Impulso à criação Outra aluna do projeto, a trabalhadora rural Ana Maria da Cruz, 33, 52 TERRA DA GENTE encontrou na banda espaço para divulgar as suas composições. Poetisa que vive no Assentamento Riachão, também em Governador Dix-Sept Rosado, era acostumada a recitar poemas somente entre os familiares e nas rodas de amigos. Depois de ingressar no grupo de percussão, Ana Cruz escreveu muitas e muitas músicas. “Estou ficando famosa”, brinca ela. Sua mais recente composição foi criada para homenagear o curso que lhe abriu tantos caminhos. Ana Cruz compôs o Hino de Pedagogia da Terra, uma referência a todos os assentados que têm a oportunidade de cursar a graduação visando a for- mação de educadores. Mais do que compor e tocar ganzá no Som da Terra, ela o defende como exemplo a ser seguido. Justifica que a experiência de construir instrumentos musicais com material reciclável deve ser levada a todos os espaços de formação de educadores. “O que fazemos é educação”, frisa. Além de se revezar entre os afazeres de aluna e trabalhadora rural, Ana Cruz também dá aulas de alfabetização para crianças no assentamento em que mora. São meninos e meninas que têm pouco acesso a brinquedos. A idéia de construir tambor, ganzá e flauta, vivida na universidade, foi então reprisada na classe in- fantil. “Ensinamos as crianças a fazer os seus instrumentos, que, na verdade, acabam sendo seus brinquedos favoritos”, anima-se ela. A ‘Bandinha’, como a universitária a chama, ainda está ensaiando os primeiros sons, mas a experiência de utilizar material reciclável surtiu efeito imediato na turminha. A professora identificou melhoria no rendimento escolar dos alunos, já que eles aprenderam a trabalhar em equipe na construção dos instrumentos musicais. “Nos dias de aula com os instrumentos, sinto que eles ficam mais felizes e prestam mais atenção”. Som da terra na formatura Essa predileção não se restringe à sala de aula infantil. Os estudantes de Pedagogia da Terra que compõem a banda são unânimes em afirmar que a melhor hora da aula é mesmo a do ensaio. Para não atrapalhar o ren- Saiba mais sobre o Pronera O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) é uma política de educação em áreas de reforma agrária executada pelo Incra e que atende jovens e adultos. As ações vão do ensino fundamental à graduação, com propostas pedagógicas adaptadas à realidade do campo. A participação no Programa se dá por meio das universidades, escolas técnicas federais, escolas família agrícola e secretarias estaduais ou municipais de Educação, que são as instituições com as quais o Incra faz o convênio para oferecer os cursos. Os assentados que tiverem interesse em participar devem, por meio de suas representações – associações, cooperativas, sindicatos, movimentos sociais – procurar uma dessas instituições para propor uma parceria. A instituição é que apresentará o projeto ao Incra. A documentação exigida ao assentado para participar dos cursos é a comprovação de que é beneficiário da reforma agrária. Esse documento é fornecido pelo Incra. Não é necessário pagar nada. O Pronera arca com todos os custos dos cursos. No caso dos cursos de alfabetização e escolarização em nível fundamental, as aulas são realizadas nas próprias áreas de reforma agrária. No caso de nível médio e superior, normalmente, elas ocorrem na universidade ou na escola parceira. dimento da universidade, os treinamentos são realizados nos intervalos e ao final das aulas. A professora Fátima Resende, secretária-geral do Projeto e eleita madrinha da banda, já não abre mão do Hino do Pedagogia da Terra, de Ana Cruz, nos eventos realizados na Faculdade de Educação da UERN. E anuncia que essa composição fará parte da abertura e do encerramento da solenidade de colação de grau da turma. A festa, a toque dos instrumentos reciclados, é prevista para o segundo semestre de 2009. As instituições interessadas em oferecer cursos devem procurar as Superintendências Regionais do Incra nos estados. Em cada uma delas, há uma pessoa coordenadora do Pronera. Lá, os interessados receberão todas as orientações. No caso de se firmar parceria, haverá uma contrapartida por parte da instituição, como funciona em todos os convênios do Governo Federal. Todos os cursos do Pronera são formais, ou seja, têm o mesmo peso de um curso convencional. No caso dos cursos técnicos de nível médio, são conferidos certificados pelas escolas técnicas federais, estaduais ou municipais, conforme o caso. Nos cursos superiores, os estudantes recebem o diploma de graduados. Atualmente, 14 universidades no País oferecem o curso de Pedagogia da Terra. Para ingressar no curso superior, o assentado passa por um processo seletivo um pouco diferenciado, envolvendo conhecimentos mais adaptados ao campo. O período de seleção e de ingresso na universidade é de acordo com o calendário estabelecido pela instituição de ensino, juntamente com o Incra e os movimentos sociais. Não seguem, portanto, o calendário acadêmico convencional. O orçamento do Pronera para 2008 é de R$ 52,2 milhões, sendo R$ 15,4 milhões para educação de jovens e adultos, R$ 7,2 milhões para concessão de bolsas e R$ 29,6 para projetos de nível médio e superior. TERRA DA GENTE 53 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL Quebradeiras de coco agregam valor aos P A R T I C I P A Ç Ã O P O L Í T I C A Trabalhadoras organizadas Trabalhadoras rurais de quatro estados organizaram sua produção 56 TERRA DA GENTE derivados do babaçu “Com a venda da amêndoa e do azeite, hoje eu já posso comprar arroz, farinha e outros mantimentos para ajudar em casa”. O relato de Maria Demetriz de Mendonça Santos, a Demétria, uma quebradeira de coco de 53 anos, casada há 27 e mãe de seis filhos, ilustra como as mulheres de sua comunidade têm assumido junto aos maridos o encargo de sustentar a família. “A mulher agora compra a farda dos meninos para a escola e traz comida para casa com a renda do sabonete”, empolga-se Lucilene Mota Silva, 41, ao explicar como as mudanças no modo de produção têm refletido na economia doméstica. Viúva há 13 anos, ela é a principal responsável pelo sustento da casa onde mora com os quatro filhos, um genro e duas netas. Suas histórias se desdobram, respectivamente, nas comunidades de Itaquaritiua, a 30 quilômetros do centro da cidade de Viana, e em Bairro Novo, no município de Penalva. Trabalhadoras rurais da Baixada Maranhense, elas têm muito em comum: toma- ram as rédeas de seu destino e, por conseqüência, da produção familiar. Aprenderam o que é agregar valor. E não estão sozinhas nessa virada. Em cursos de capacitação realizados com recursos do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia (Ppigre/MDA), coordenados pelo Movimento Interestadual das Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), 300 trabalhadoras rurais do Tocantins, Pará, Piauí e Maranhão aprendem desde 2006 os fundamentos da organização produtiva e da agregação de valor e renda. O grupo do azeite Em Itaquaritiua, uma comunidade com cerca de 120 famílias e marcante descendência indígena, o grupo de 29 mulheres participantes do projeto conquista, com a produção do azeite, a melhoria na qualidade de vida. Com a experiência de sócia-fundadora do grupo do azeite, formado em 2004, Demétria exalta a valorização de seu trabalho e o das colegas no mercado. As utilidades do babaçu Amêndoa – a semente serve para a produção de azeite, sabão, xampu, doce, farinha e sabonete, entre outros subprodutos. Do seu óleo pode-se ainda produzir combustível alternativo, como o biodiesel. Palha – é utilizada na cobertura de habitações e na produção de artesanatos regionais. Talo – usado na confecção de cercas. Palmito – alimento humano e animal. Mesocarpo – dele se produz chocolate, bolos, mingaus e outros alimentos de alto teor protéico, usados na multimistura e na merenda escolar. Casca do coco – é aproveitada como alimento animal e na produção do carvão para uso industrial, especialmente nas usinas de ferro gusa. Fonte: Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) São Luís MARANHÃO Viana, MA TERRA DA GENTE 57 P O L Í T I C A P A R T I C I P A Ç Ã O Retorno aos bancos escolares A capacitação em Itaquaritiua foi o estopim para que Simone Santos Silva, 32 anos, retornasse aos bancos escolares. Até então, ela não tinha cursado o Ensino Médio. “Com a capacitação, acumulei conhecimento, conheci lugares novos, troquei experiências com outros grupos, me desinibi. Percebi que faltava estudar mais. Minha mãe até perguntou: ‘Por que sacrificar os finais de semana e as noites? Por que voltar agora a estudar’? E eu respondi que decidi melhorar de vida, por mim e pelos meus dois filhos”. Além do Ensino Médio, que cursa todas as tardes, Simone guarda fôlego para assistir às aulas de Magistério aos finais de semana. 58 TERRA DA GENTE Antes da participação no projeto, elas vendiam o coco babaçu em estado bruto, no comércio e em feiras da vizinhança, por R$ 0,50, o quilo. A adoção da nova estratégia possibilitou capital de giro à sua associação. “Agora, o MIQCB compra das sócias e de outros produtores da região o quilo da amêndoa por R$ 1,10”. É mais que o dobro do valor obtido anteriormente só com o produto bruto. As mulheres também aprenderam a tirar proveito de outros derivados do babaçu e a aprimorar a produção Conscientização ambiental Demétria e as colegas obtêm mais que o dobro do valor do produto bruto – até então, tudo era produzido manualmente nos pilões. O MIQCB hoje compra das quebradeiras de coco o carvão vegetal feito com a casca do babaçu, assegurando a elas mais uma fonte de renda (cada lata de 18 litros sai por R$ 2). É o carvão que alimenta o forno coletivo onde é torrada a amêndoa, em uma das etapas de preparação do azeite. O grupo do sabonete A opinião de Lucilene sobre o papel ativo das sócias do grupo do sabonete no sustento de suas famílias é compartilhada pelas colegas. “Em muitas casas dessa comunidade, as contas agora são divididas entre homens e mulheres. É do trabalho nesse grupo que tiro minha renda”, revela Sandra Maria Machado Aires Barbosa, 27, três filhos e atual gerente de produção da associação de Bairro Novo, formada em 2000. Tatiana Costa Correia, 39 e dois filhos, é enfática: “A gente ainda acaba trabalhando mais, porque ajuda na roça, extrai o coco e cuida da casa e dos filhos”. Em Bairro Novo, o curso de capacitação tem ensinado às 45 integrantes da associação local de que- bradeiras de coco que a produção de sabonetes também pode abrir novas perspectivas de mercado. Superada a etapa experimental do programa, as mulheres dessa localidade planejam elevar a média mensal de fabricação do sabonete de 240 para cinco mil unidades. O aumento da produção é possível graças às conquistas obtidas pela organização coletiva. Com recursos doados em 2006 pela Aktionsge- Para garantir a manutenção de suas atividades, as quebradeiras de coco babaçu são defensoras permanentes da vegetação nativa nas áreas onde retiram a matéria-prima. E a conscientização a respeito da preservação dos babaçuais começa em casa. “Meu marido cortava o babaçu para fazer roça. Agora ele compreende que é um meio de vida. Hoje, todos olham a palmeira como uma mãe. Para alguns é alternativa, para outros é renda”, conta Vitória Balbina Torres Mendonça, a Bárbara, 30. Além da conscientização ambiental, o MIQCB tem sido responsável pela orientação dessas mulheres no resgate da identidade de cada grupo e na reivindicação de direitos. Zulmira de Jesus Santos, 40, coordena as ações do movimento na defesa da aprovação e do cumprimento de leis que protejam os babaçuais e garantam o acesso das mulheres à extração do coco – ou seja, a “Lei do Babaçu Livre” –, na Baixada Maranhense. “Com o tempo, nossas mulheres se tornam mais articuladas e destemidas. Viram multiplicadoras do conhecimento”, reconhece. No Congresso Nacional, elas fazem vigília pela aprovação do Projeto de Lei nº. 231/2007, que dispõe sobre a proibição da derrubada dos palmeiras de babaçu nos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins, Pará, Goiás e Mato Grosso. O texto também prevê o livre acesso das quebradeiras de coco aos babaçuais para o trabalho de coleta. TERRA DA GENTE 59 P O L Í T I C A P A R T I C I P A Ç Ã O meinschaft Solidarische Welt (ASW), ou Ação Mundo Solidário – organização não-governamental alemã de cooperação técnica –, as mulheres de Bairro Novo construíram a sede da associação e adquiriram as máquinas de fabricação, molde e corte do sabonete, além da balança digital. Tudo está prestes a entrar em funcionamento. manda de mercado, além de noções sobre os controles financeiros, como o fluxo de caixa. As discussões envolveram a definição dos padrões de apresentação dos produtos derivados do babaçu. Conforme estava previsto no projeto, ainda foram inves- tidos recursos na compra de novas embalagens. O movimento teve um novo projeto aprovado no Apoio à Organização Produtiva de Mulheres Trabalhadoras Rurais, que prevê a liberação, também pelo Ppigre, de R$ 162,7 mil Como ocorre a capacitação Por meio da chamada de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) Setorial voltada especificamente às mulheres, o Ppigre/MDA liberou R$ 199,8 mil em 2006 para a execução do primeiro projeto de capacitação proposto pelo MIQCB. Esse projeto funcionou até dezembro de 2007. As mulheres envolvidas na capacitação receberam orientações sobre planejamento, controle e organização da produção, viabilidade econômica, produto, preço, ponto de venda e de- 60 TERRA DA GENTE Casa típica das quebradeiras no interior do Maranhão Saiba mais O que é a ATER Setorial? É uma linha de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) criada em 2004 pelo MDA e direcionada às comunidades de mulheres, indígenas e quilombolas. Quem pode participar? Empresas de assistência técnica, associações, sindicatos ou organizações não-governamentais. Para receber apoio financeiro, devem apresentar projeto ao Ppigre/MDA. No âmbito dos indígenas, as propostas devem ser encaminhadas à Secretaria da Agricultura Familiar (SAF/MDA). até o final das atividades. Elas foram iniciadas já no ano de 2008. Os encontros desse segundo projeto prevêem orientações sobre formulação de preços, intercâmbio, participação em feiras e cooperativismo. O desafio da comercialização Entre tantos outros desafios, as quebradeiras de coco babaçu preten- dem, por meio da capacitação, traçar estratégias que possibilitem ampliar a comercialização dos produtos. Até o momento, as vendas estão muito restritas às feiras e aos comércios das cidades de Viana, Matinha e Penalva. “Nossa esperança é ter demanda para produzir sempre e cada vez mais”, projeta Demétria. O azeite de babaçu é vendido por R$ 6, o litro. O sabonete de 90 gramas, por R$ 1. Alcançar a renda fixa é, entre elas, uma das principais metas. Como avalia a consultora técnica do MIQCB Luciene Dias Figueiredo, a garantia de periodicidade de renda para essas trabalhadoras rurais é um incentivo à permanência delas no grupo de trabalho e um impulso ao aperfeiçoamento. Com o pensamento voltado à expansão comercial, o grupo de Itaquaritiua tem investido todo o lucro na estruturação de suas atividades. Entre outros equipamentos, planeja adquirir a segunda forrageira, máquina de moer amêndoas para acelerar a fabricação do azeite. Em Bairro Novo, as quebradeiras de coco babaçu reúnem recursos para a aquisição de uma prensa, o que deve agilizar a fabricação de ingredientes básicos dos sabonetes. Quais as linhas apoiadas? Mulher: projetos que desenvolvam obrigatoriamente ações de Gênero e Desenvolvimento Rural e Políticas Públicas de Apoio à Produção e Comercialização. É necessário, ainda, que o projeto contemple pelo menos uma das ações prioritárias definidas na Chamada Anual de Projetos para este grupo. Quilombolas: podem ser apoiadas duas linhas de projetos, ATER e Apoio ao Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Quilombolas, com 14 tipos de ações prioritárias relacionadas à diversidade étnica e aos saberes tradicionais. Indígenas: podem ser apoiados projetos de gestão e controle territorial; abordagem agroecológica da produção e valorização de técnicas produtivas tradicionais da etnia; comercialização, agregação de valor, agroindustrialização e certificação socioparticipativa da produção indígena; conservação, revitalização e beneficiamento de espécies tradicionais, entre outros. Para outras informações, acesse: www.mda.gov.br/aegre ou www.mda.gov.br/saf TERRA DA GENTE 61 Reserva indígena conquista a sonhada auto-sustentabilidade P A R T I C I P A Ç Ã O P O L Í T I C A Autonomia produtiva Produção de leite prioriza a nutrição das 300 crianças do Kondá Muitos foram os percalços até raiar o dia da primeira colheita coletiva de milho na Reserva Indígena do Kondá, em maio de 2008. Encravada entre as colinas de Chapecó, no Oeste de Santa Catarina, essa comunidade de 105 famílias kaingangs enfrentou um vendaval no final de 2007 que transtornou a todos em plena época de semeadura das sementes, com a destruição da única escola do local. Ainda assim, liderados pelo cacique Carlos Salvador, de 39 anos, os 62 TERRA DA GENTE indígenas perseveraram ante a inclemência do vento e organizaram um mutirão de plantio. Afinal, tinham em mãos as sementes crioulas doadas por intermédio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) – o sonhado passaporte para alcançarem a auto-sustentabilidade nas próximas safras. Em dezembro de 2007, eles sofreriam outro revés. Já em flor, os 12 hectares semeados com milho ficaram à mercê da estiagem que atin- giu Santa Catarina e o Rio Grande do Sul. Nada vingou. “No campo, não se pode desistir, não é? Fomos em frente, de novo, para ver se o milho ia dar”, conta orgulhoso Nilton Loureiro, 33 anos e sete filhos. Integração de políticas O Kondá descobriu, então, que a integração de políticas públicas pode na prática salvar a lavoura. Pelo PAA, operacionalizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) forneceu 280 quilos de sementes de milho crioulo. Era a senha para o recomeço. O estímulo à organização produtiva entre os indígenas contou com os técnicos da Fundação Nacional do Índio (Funai), que já atuam há 12 anos junto à comunidade. E o acompanhamento atento de agrônomos da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), do governo estadual, impediu novas perdas. Ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), coube articular nos âmbitos federal e estadual essa verdadeira força-tarefa pró-Kondá. “Nesses anos todos em que estamos aqui, a lavoura nunca rendeu tanto!”, surpreende-se Marino Salvador, 28, piloto do trator com carroce- SANTA CATARINA Florianópolis Chapecó, SC ria que transportou 42 toneladas de milho da lavoura direto para o galpão de armazenagem da reserva indígena. Foi uma festa. Faceiro com a produtividade, mesmo que dias antes da colheita um vento forte ainda tenha derrubado dezenas de pés de milho, dificultando o trabalho, o irmão do cacique já acalenta planos auspiciosos. Pretende mais que triplicar a área plantada. Olhos fitos no horizonte, contabiliza 43 hectares disponíveis para os pés de milho na próxima safra. “Agora a realidade é outra. Tudo o que vamos plantar, tudo é com semente própria”. TERRA DA GENTE 63 P O L Í T I C A P A R T I C I P A Ç Ã O Perspectiva é mais que triplicar a área plantada com milho Como funciona O PAA Por meio do Programa de Aquisição de Alimentos, o Governo Federal garante a compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar para a alimentação escolar e para populações sob o risco de segurança alimentar. Com isso, impulsiona a emancipação das famílias de agricultores. Em 2006, o MDA passou a ter orçamento próprio para a execução de duas das modalidades do PAA: Compra Direta e Formação de Estoque pela Agricultura Familiar. Somente em 2006 e 2007, foram aplicados nas operações de compra dessas duas modalidades mais de R$ 138 milhões. Esse recurso permitiu a aquisição de 183 toneladas de alimentos, beneficiando quase 50 mil famílias, entre elas, as de agricultores enquadrados no Pronaf, aqüicultores e pescadores artesanais, silvicultores, extrativistas, indígenas, integrantes de comunidades quilombolas e assentados da reforma agrária. 64 TERRA DA GENTE O cacique arremata: “Chega de perder o tempo do plantio. Às vezes, a terra estava ali, pronta, mas a gente não tinha as sementes. Não queremos depender de mais ninguém”. Diversidade produtiva O projeto desencadeado no Kondá (e em outras nove reservas catarinenses) compreende, ainda, a doação de sementes de feijão pelo PAA. A Conab compra de volta o excedente produzido entre os indígenas, propiciando segurança de escoamento da produção. E essa aposta de toda a comunidade na auto-sustentabilidade não está restrita aos grãos. Influenciados pela cultura leiteira do Norte do Rio Grande do Sul, com o qual fazem divisa, os habitantes do Kondá previnem a subnutrição de suas crianças fornecendo leite das próprias vacas para a merenda escolar e para o posto de saúde instalado na reserva. As raças jersey e gir leiteiro, tradicionais nesse tipo de produção, começam a povoar as manadas dos kaingangs. Júlio da Silva, 56, é um dos patriarcas indígenas que já multiplica ano a ano as cabeças de gado. Em 2006, na arrancada de sua produção leiteira, eram quatro vacas. Depois de dois anos, há 11 bovinos no pasto. “A gente ainda não vende para fora, mas contribui com toda a comunidade. O leite das minhas vacas já chega a 32 famílias do Kondá”, conta, satisfeito. Passado e presente Com casas erguidas às margens do Rio Uruguai, essas famílias aos poucos mesclam suas culturas tradicionais aos novos manejos, como o do gado leiteiro. Nada é feito ali por acaso. Entre os kaingangs, a força dos ensinamentos ancestrais transparece a cada diálogo. Eles dizem ser impensável abandonar na reserva o cultivo das ervas medicinais ou dos frutos nativos. A agricultura orgânica, sem agrotóxicos, é tida como a única prática aceitável com a ‘mãe terra’. E no sinuoso Uruguai, persiste a pesca de jundiás, traíras e carpas para o consumo diário. A façanha da comunidade tem sido preservar a herança das gerações anteriores sem retroceder ante a modernização produtiva, sempre com vistas ao auto-sustento e, algum dia, à comercialização rotineira da produção. “Meu sonho agora é termos uma cooperativa indígena. Às vezes, fico olhando aquelas caixinhas de leite que vêm de dentro de assentamentos da reforma agrária e pensando: ‘Aqui ainda vamos ter isto!’”, projeta Antônio Vicente, 39 anos. Preservando as origens Ronai Vicente, 11 anos, veste o colar com sementes de uva japonesa e juarana antes de tomar o rumo da escola. Esse é um ritual diário. O menino já não freqüenta classes indígenas, como os irmãos, mas nem por isso refuta sua origem diante dos colegas, a maioria deles descendentes de imigrantes europeus em Chapecó. Ao contrário, faz questão de ostentar em meio às vestes sua história kaingang. Na varanda de casa, suas irmãs, Marcilene, 19, Marlise, 14, Viviane, oito, e Maristela, de sete, confeccionam colares, cocares, pulseiras e cestos de cipó, com o auxílio do caçula, Ronae, cinco anos. Todos embalados pelo canto do pai, Antônio Vicente, gravado para a posteridade em CD. Canto em kaingang e também em português, para que todos compreendam a história de luta desse povo. Eles lutam dia-a-dia, até nas circunstâncias mais corriqueiras, como cozinhar o pixé de milho no almoço, para não deixar sua cultura esmaecer. E esse rito de renovação cultural repete-se nas varandas de toda a vizinhança do Kondá. “O artesanato, a música, a dança kaingang estão dentro de nós e dos nossos filhos. As nossas crianças vão para a escola e, mesmo estudando, refazem o artesanato que aprendem em casa. Todo o dia, sempre e sempre. Assim ninguém esquece”, aposta a artesã Justina Sales, 27. TERRA DA GENTE 65 A R T I G O Sustentabilidade e produtividade: respostas às crises Guilherme Cassel* Vivemos no mundo contemporâneo duas crises de fôlego e que devem durar por algum tempo. A primeira, e que se avizinhou nos últimos anos, é a crise do esgotamento dos combustíveis fósseis e do padrão petróleo. O barril de petróleo estava em US$ 30 há seis anos e hoje atinge US$ 140. Isso impactou enormemente o preço dos alimentos. Hoje todos entendem a necessidade de construir outro padrão de energia, uma matriz energética limpa, renovável, que preserve o meio ambiente e que não reproduza aquilo que o padrão petróleo reproduziu – concentração de renda, desigualdades regionais e inclusive guerras. Quanto a essa crise, o Brasil está bem posicionado. Na nossa matriz energética, os biocombustíveis equivalem a 42%. No resto do mundo, apenas 2%. Na política de incentivo aos biocombustíveis, a agricultura familiar ocupa um lugar central. O Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel já inclui 100 mil famílias de agricultores familiares, que produzem a matéria-prima do biodiesel. A inclusão dessas famílias foi garantida com a criação do Selo Combustível Social. As usinas que possuem o Selo assumem compromissos de responsabilidade social com agricultores familiares e suas organizações. 66 TERRA DA GENTE Além disso, o Governo Federal acaba de criar uma empresa subsidiada da Petrobras para tratar com os biocombustíveis, que deve disseminar ainda mais o biodiesel e o etanol. Temos a possibilidade de incluir cada vez mais agricultores familiares nessa cadeia, produzindo com qualidade, agregando renda, trabalho, estabilidade e prosperidade. E produzindo matérias-primas para o biodiesel sem esquecer da produção de alimentos. Esse é um Brasil rural que já vivenciamos. A outra crise, que deve se prolongar por pelo menos cinco anos, é a dos preços dos alimentos. Ela é causada especialmente pela utilização indiscriminada do milho nos Estados Unidos para produzir o etanol, a migração dos especuladores dos fundos de ações para especular alimentos e questões climáticas. Isso impõe ao Brasil a necessidade de produzir mais alimentos e temos clareza de que no nosso país quem pode responder a esta demanda é a agricultura familiar. É ela que tem uma lavoura diversificada e pode, num processo de mecanização acelerado, ampliar muito sua produtividade. É por isso que decidimos lançar o Programa Mais Alimentos, que visa conduzir a um processo ágil de modernização e conta com uma nova linha de crédito, de juros muito baixos. Uma oportunidade para um salto de produção e de qualidade. Neste momento de crise, a agricultura familiar surge como protagonista, assim como é protagonista quando buscamos resolver um problema histórico deste país, a pobreza rural, com o Territórios da Cidadania. Estamos à frente de uma oportunidade de reafirmar os valores de sustentabilidade e de solidariedade na agricultura familiar, a necessidade de persistir no processo de reforma agrária neste País e o projeto nacional de desenvolvimento sustentável. O País só conquistará segurança e soberania alimentar se continuar investindo na eficiência da agricultura familiar e da reforma agrária. Essa não é uma resposta para o futuro do País, mas para o presente. * Ministro do Desenvolvimento Agrário Ministério do Desenvolvimento Agrário