Considerações periciais acerca da voz enquanto instrumento de trabalho
janeiro/2013
Considerações periciais acerca da voz enquanto instrumento de
trabalho
Maria do Socorro Barros da Silva – [email protected]
Perícias Médicas
Instituto de Pós-graduação - IPOG
Resumo
A voz profissional tem recebido um enfoque crescente. Para este trabalho usou-se um revisão
da literatura com o objetivo de analisar os últimos conceitos que podem ser aplicados na
pratica médica pericial. A apresentação clínica da voz enquanto instrumento de trabalho
varia de indivíduos assintomáticos até quadros de deficiência vocal. Nos transtornos da voz
profissional a fisiopatologia está relacionada ao excesso e ao ineficiente uso do mecanismo
vocal, com trauma repetido da mucosa da prega vocal. De acordo com os conceitos de
síndrome disfônica ocupacional e laringopatia ocupacional, a perturbação vocal é dividida
nas fases pré-patogênica, patogênica precoce, patogênica precoce discernível, patogênica
avançada e convalescença. Não há um padrão para se estabelecer nexo causal da disfonia
com o trabalho, assim como também não há respaldo legal para afirmar sobre incapacidade
laborativa nesses profissionais, portanto, na avaliação pericial pode-se utilizar o
conhecimento das fases evolutivas e os conceitos gerais de incapacidade da Lei 8213/1991.
Nos períodos pré-patogênico, patogênico precoce e patogênico precoce discernível não há
incapacidade laborativa. Na patogênese avançada pode haver incapacidade laboral
temporária ou voz adaptada e a manutenção da rotina laboral é importante para adaptação
adequada ao trabalho. Na convalescença, pode ser necessária a reabilitação profissional ou
até aposentadoria por invalidez.
Palavras-chaves: Síndrome Disfônica Ocupacional; Laringopatia Ocupacional; Profissional
da Voz; Perícia.
1. Introdução
A comunicação oral é fundamental para o desempenho da grande maioria das profissões. Há,
entretanto, um vasto grupo de indivíduos em que a voz constitui a ferramenta básica do
exercício profissional e sem ela o trabalho não pode ser desenvolvido. Esses são os
denominados profissionais da voz. Em Fortes et al. (2007) consta a informação de que cerca
de 25% da população economicamente ativa considera a voz como instrumento de trabalho
primordial. O Boletim COMVOZ nº1 afirma que aproximadamente um terço das profissões
têm a voz como ferramenta básica de trabalho (NUDELMANN, et al., 2010).
Devido à grande demanda vocal exigida para esses profissionais, os mesmos precisam de uma
adaptação precisa dos seus órgãos da fonação sob pena do surgimento de sintomas disfônicos,
mais ou menos precoces, que podem ser prejudiciais para o exercício profissional.
Sabe-se, entretanto, que há uma diversidade sintomatológica nos transtornos da voz, além de
múltiplos fatores de riscos que podem estar associados ao aumento da demanda vocal
(ALMEIDA E PONTES, 2010), o que dificulta a padronização da perda da saúde vocal pelo
uso profissional e a fixação do nexo de causalidade.
O 3º Consenso Nacional sobre Voz Profissional (CNVP) considerou esse tema como uma
questão de saúde e direito do trabalhador (ABORLCCF, 2004). Em 2009 foi constituído o
Comitê Brasileiro multidisciplinar de voz ocupacional com o objetivo de lutar pela saúde
vocal, por considerar que não há critérios de avaliação para os distúrbios de voz relacionados
ao trabalho.
Novos conceitos têm surgido na tentativa de minimizar essa problemática, como as definições
da síndrome disfônica ocupacional, deficiência vocal e voz adaptada.
Assim, o objetivo deste estudo foi descrever, mediante revisão de literatura, os achados
científicos quanto às alterações vocais e laríngeas que acometem os profissionais da voz, a
evolução das patologias vocais dentro do conceito de síndrome disfônica ocupacional e os
critérios que podem ser utilizados para determinação de incapacidade e de nexo de
causalidade com o trabalho dessas doenças. Dessa forma, esse estudo irá auxiliar na
prevenção de distúrbios vocais e contribuir para uma melhor avaliação pericial da capacidade
laborativa dos profissionais da voz.
Como fontes de informações para levantamento literário foram utilizados os bancos de dados
eletrônicos MEDLINE, LILACS e SCIELO, as lista de referências dos artigos identificados e
a base Periódicos CAPES. Também foram consultados dissertações e teses na Biblioteca
Digital de Teses e Dissertações da USP e na Biblioteca Digital da Unicamp, além de livros,
considerados relevantes para a realização desta revisão. A seleção dos descritores utilizados
no processo de revisão foi efetuada mediante consulta ao DECs (descritores de assunto em
ciências da saúde da BIREME). Nas buscas, os seguintes descritores em língua portuguesa e
inglesa, foram considerados: "voz”, “disfonia", "rouquidão", “distúrbios da voz”, "medicina
preventiva”, "saúde do trabalhador". Recorreu-se aos operadores lógicos "and" e "or" para
combinação dos descritores e termos utilizados para rastreamento das publicações.
Foram utilizados artigos originais e revisões da literatura, publicados no período de 1998 a
2010.
Foi realizada ainda pesquisa documental que incluiu a lista de doenças relacionadas com o
trabalho do Ministério da Saúde, o 3º Consenso Nacional Sobre Voz Profissional e o boletim
COMVOZ nº 1 do Comitê Brasileiro Multidisciplinar de Voz Ocupacional, além da legislação
que regulamenta os benefícios por incapacidade da previdência social.
A distribuição e análise dos resultados foram realizadas conforme a relevância e o valor
informativo dos dados para a finalidade do estudo.
2. Definições
A apresentação de alguns conceitos é necessária para uma melhor compreensão do contexto
das alterações vocais relacionadas com o trabalho.
2.1. Voz
A voz é uma função neurofisiológica inata, pois se desenvolve num paralelismo com o
desenvolvimento orgânico do indivíduo (MOTA et al., 2010), estando presente desde o
nascimento através do choro do bebê. Por ser fundamental nas relações humanas e para a
comunicação interpessoal, deve ser levada em consideração quando se fala na saúde geral do
indivíduo (SILVA, 1999). Sulica (2010) afirma que a vocalização humana é o resultado de
interações complexas de todos os elementos do trato aerodigestivo superior. Os componentes
básicos para a produção sonora são: uma fonte de força, uma fonte de vibração e um
ressonador. O ar é a principal fonte de energia, de força, para a fonação; as pregas vocais, com
suas propriedades biofísicas, compreendem a fonte de vibração e as estruturas supraglóticas,
faringe e laringe, formam a câmara de ressonância (COUREY, 2010). A voz, portanto, resulta
da cíclica interação entre o ar exalado, a elasticidade das pregas vocais somadas ao
fechamento glótico preciso e a vibração pela passagem do ar através da constrição formada
(SULICA, 2010).
A voz é produzida pela vibração passiva das pregas vocais pelo ar que flui entre elas enquanto
elas estão aduzidas, sendo esse som moldado pelo trato vocal supraglótico e estruturas
articulatórias (COUREY, 2010).
Além do fator orgânico, a voz humana também apresenta um conteúdo emocional e de
expressividade. É um som com características individuais, revelando a personalidade do
indivíduo e identificando-o, na medida em que espelha à sua auto-imagem e sua auto-estima
pessoal (PARK E BEHLAU, 2009).
Portanto, quando há uma harmonia entre os fatores psicológicos e orgânicos, obtemos um
som de boa qualidade para os ouvintes e emitido sem dificuldade ou desconforto para o
falante. Neste sentido:
Voz normal é um conceito que implica enorme variabilidade e subjetividade;
basicamente, as características incluem uma qualidade vocal agradável, freqüência
apropriada para sexo e idade, intensidade e modulação adequadas, e a não
interferência na inteligibilidade da fala nem nas funções sociais e ocupacionais
(BEHLAU, AZEVEDO, PONTES, 2004:54.)
A voz profissional é definida como a forma de comunicação oral utilizada por pessoas que
dela dependem para sua atividade ocupacional.
2.2. Disfonia
A disfonia é uma limitação vocal, “um distúrbio da comunicação oral, no qual a voz não
consegue cumprir seu papel básico de transmissão da mensagem verbal e emocional de um
indivíduo” (MOTA et al., 2010:28). A disfonia pode ser definida como qualquer dificuldade
ou alteração na emissão natural da voz e é o principal sintoma de distúrbio da comunicação
oral, limitando a transmissão da mensagem verbal e podendo trazer repercussões importantes
no uso profissional da voz (ABORLCCF, 2004). Dessa forma, a apresentação da voz
disfônica se dá através de um número ilimitado de alterações, tais como: fadiga vocal, esforço
à emissão, desvios na qualidade vocal, perda de potência da voz, falta de volume e projeção,
variações descontroladas da freqüência fundamental, baixa resistência vocal, perda da
eficiência vocal e sensações desagradáveis à emissão (BEHLAU et al., 2001).
De acordo com Behlau et al. (2001), os problemas de voz têm implicações nas investidas para
a obtenção de um emprego, no exercício da profissão e na almejada ascensão social e
profissional – especialmente naquelas funções que demandam comunicação oral e o uso da
voz. E devido à comunicação oral ser também um instrumento utilizado para os
relacionamentos sociais e afetivos e para as opções de lazer, a disfonia pode causar ainda
dificuldades psicológicas e consideráveis restrições emocionais, sociais e funcionais, afetando
inclusive a qualidade de vida e a auto-imagem do indivíduo (BEHLAU et al., 2001; VIEIRA,
1996; HOGIKYAN E SETHURAMAN, 1999). Portanto, segundo Park e Behlau (2009)
vozes disfônicas podem produzir um impacto negativo no ouvinte ou, até mesmo, influenciar
os relacionamentos interpessoais, prejudicando a vida social e interferindo no trabalho.
A disfonia pode ser considerada funcional, também chamada primária, quando o uso da voz é
a causa do problema; orgânica ou secundária, quando a voz apenas reflete uma alteração cuja
causa independe da produção vocal e organofuncional, quando o uso da voz gera lesões nas
estruturas envolvidas na produção vocal e tais lesões pioram a qualidade vocal. Segundo
Piccolotto (1998), a maioria dos distúrbios da voz parece relacionar-se à disfonia funcional,
ou seja, ao mau uso de mecanismos vocais ou abuso vocal, sendo que o mau uso da voz
ocorre quando há desvios de padrões corretos da emissão e o abuso está presente quando o
uso da voz ultrapassa os limites saudáveis, mesmo com a utilização de uma boa técnica vocal.
De acordo com o CNVP (ABORLCCF, 2004), existem quatro graus de intensidade da
disfonia:
 Grau leve: disfonia eventual ou quase imperceptível;
 Grau moderado: disfonia percebida continuamente, a voz é audível, com oscilações;
 Grau intenso: disfonia constante, a voz torna-se pouco audível;
 Grau extremo ou afonia: “quase ausência” ou “total ausência” de voz, a voz torna-se
inaudível.
2.3.Profissional da voz
De acordo com Ferreira e Souza (1998), o uso da voz nas ocupações profissionais sempre
existiu, podendo-se citar o teatro e o canto em todas as grandes épocas da história da
civilização e os oradores da Grécia Antiga.
Em algumas profissões, a voz é essencial para uma comunicação eficaz e para viabilização do
trabalho, além de ser influente na expressão de significados e enriquecimento do discurso
(UEDA et al.. 2008). Os indivíduos que necessitam primordialmente da utilização da voz para
o desempenho de suas atividades e ao produzir sua voz tem nela seu instrumento básico de
trabalho são chamado de profissional da voz. Há ainda outras profissões que apesar de não
dependerem diretamente da voz para o desempenho de suas funções, estas podem estar
associadas a um aumento de demanda vocal, como ocorre muitas vezes com gerentes,
vendedores, operários de indústrias com ruído elevado, educadores físicos, profissionais da
saúde, advogados, religiosos, entre outros. Para Ortiz et al. (2004) pode-se perceber a
ampliação do conceito de profissional da voz, incluindo nesse conceito profissões
incomumente relacionadas a alterações vocais, como promotor de eventos, lavadeira
industrial, operador de máquinas e secretária, não havendo ainda uma padronização ideal em
relação ao uso da voz durante o trabalho. Costa et al. (2000) sugerem a subcategorização
destes profissionais como necessária para melhor condução e entendimento deste tipo de
profissional, quanto ao uso vocal. Os fatores laborais de demanda, carga horária e intervalos
devem ser incluídos na categorização do profissional, quando se trata de voz ocupacional.
Em geral, esses trabalhadores têm o uso da voz de forma mais contínua e intensa quando se
trabalha em período superior a seis horas ao dia, ou, mesmo em tempo inferior, mas em
ambientes ou situações mais exigentes, seja por exposição a ruído, ar seco, úmido, vento, frio,
calor, poeira, mofo, odores, vapores, substâncias voláteis ou quaisquer agentes de poluição
que possam exigir maior esforço muscular e/ou respiratório na emissão vocal e/ou afetar a
integridade mucoepitelial das vias aerodigestivas superiores.
Putnoki et al. (2010) afirmam que há diferença em relação à quantidade e à forma do uso
vocal de acordo com a profissão.
Há diversas categorias de profissionais da voz, a saber:
1. Profissionais da arte: cantores (erudito, popular, coral, religioso e teatro musical)
e atores (teatro, circo, televisão e dubladores), entre outros;
2. Profissionais da comunicação: locutores e repórteres (televisão e rádio) e
telefonistas, entre outros;
3. Profissionais da educação: professores de diferentes áreas e graus;
4. Profissionais de atendimento (marketing): operadores, vendedores, leiloeiros,
camelôs, entre outros;
5. Profissionais de setores da indústria e comércio: diretores, gerentes, encarregados
de seção, supervisores, entre outros;
6. Profissionais de mercados financeiros (ou bursáteis): operadores de pregão a viva
voz;
7. Outros usuários da voz: profissionais liberais, religiosos, oradores, etc.
(ABORLCCF, 2004:14)
Baseando-se na relação entre o uso da voz e o trabalho e considerando-se a demanda e
importância da voz para o exercício profissional, Koufman e Isaacson (1991) sugeriram uma
classificação em que as profissões se dividem em quatro níveis:




Nível I – elite vocal (cantores e atores profissionais);
Nível II – usuário profissional da voz (professores, conferencistas, padres);
Nível III – usuário não-profissional vocal (comerciantes, médicos, advogados);
Nível IV – usuário não-profissional não-vocal (programadores de computação, operários).
De acordo com essa classificação, tem-se que:
Alguns destes profissionais têm maior demanda e risco vocal, como os pertencentes
aos níveis I e II, sendo que os profissionais do nível I utilizam a voz artística
(cantores e atores) e os profissionais do nível II a voz falada (professores,
operadores de teleatendimento, conferencistas, padres), embora geralmente em
maior quantidade de uso. (PUTNOKI et al., 2010: 489)
O sintoma de disfonia em profissionais dos níveis I e II pode ser um agente limitante do bom
rendimento profissional, podendo levar a faltas, frustrações, e até mesmo ao desejo de
mudança de profissão, pois se sabe que as alterações vocais podem influenciar na qualidade
de vida e os profissionais que tem na voz o seu instrumento básico de trabalho, tendem a
priorizá-la mais do que os indivíduos que não a utilizam profissionalmente (Park e Behlau,
2009)
O CNVP também sugere uma classificação, buscando uma forma objetiva de categorizar os
profissionais da voz, utilizando-se as seguintes variáveis: demanda, requinte, repercussão e
limitação, que devem ser pontuadas de 0 a 10. A demanda tem relação com o adequado
emprego (tempo e intensidade) da voz e com as condições do ambiente e da organização do
trabalho (salubridade ambiental, meios de apoio disponibilizados à comunicação verbal e grau
de solicitação proveniente da organização dos processos de trabalho); o requinte se refere às
necessidades de habilitação vocal e de controle sobre a voz necessária para desempenhar a
atividade profissional; a repercussão representa o grau de impacto que a voz (ou sua
alteração) poderia trazer ao resultado da atividade profissional e a limitação refere-se à
relação entre a alteração da voz e as exigências do seu uso profissional (ABORLCCF, 2004).
Com essas informações, tem-se a classificação:




Elite - pontuação total entre 75 e 100;
Superior - pontuação total entre 50 e 74;
Médio - pontuação total entre 25 e 49;
Básico - pontuação total entre 0 e 24.
Dentre os profissionais da voz, professores e cantores tem apresentado uma maior frequência
de distúrbios vocais, sendo que está entre os professores a maior incidência de disfonia
(VERDOLINI E RAMIG, 2001). Segundo Freitas, (2006: 145) “estudos mostram que mais
de 50% dos professores acabam por experimentar dificuldades fonatórias no decorrer da sua
vida profissional activa”. Fuess e Lorenz (2003) colocam que, quando na função de
magistério, as mulheres apresentam maior predisposição para a disfonia devido às dimensões
reduzidas da laringe e à pequena diferença entre a freqüência vocal delas e das crianças, o que
faz com que haja necessidade de se aumentar a intensidade da voz para se fazer ouvir.
Segundo Ortiz et al. (2004) a literatura ratifica o fato de haver maior freqüência de alterações
vocais no sexo feminino, relacionando com a ocorrência de mudanças significativas na
configuração glótica das mulheres durante a fonação prolongada e por a área pedagógica ser
tradicionalmente do domínio feminino, mas ressaltam que com o aparecimento de novas
categorias profissionais dentre os profissionais da voz, talvez essa proporção possa se
modificar.
2.4. Voz adaptada
Segundo Behlau, Azevedo e Pontes (2004) a voz adaptada é quando o trabalhador apresenta
estabilidade e resistência ao uso específico que habitualmente faz da voz. Segundo os mesmos
autores, pode-se empregar esse termo em todas as situações nas quais a voz é aceitável
socialmente e consiga transmitir a mensagem emocional do discurso, com frequência,
intensidade, modulação e projeção apropriados para o sexo e idade do falante.
De acordo com Oliveira (1999), mesmo diante da presença de alterações estruturais nas
pregas vocais, pode-se ter uma laringe adequada e com voz adaptada. Recomenda-se cautela
para não rotular uma alteração adaptativa ao uso mais intensivo da voz como sendo uma
patologia ou lesão incapacitante, pois “significativo percentual de trabalhadores que usam a
voz de modo mais intensivo podem apresentar lesões sem sintomas e com boas chances de se
manter estável e assintomática ao longo de meses ou anos de carreira” (ABORLCCF,
2004:22).
2.5. Deficiência vocal
Dentro da clínica de transtornos vocais há o indivíduo que não consegue produzir voz com
intensidade adequada para nenhuma das necessidades diárias. A sociedade, de forma
consciente ou inconsciente, considera que quem não se expressa verbalmente, não pensa,
portanto o indivíduo que não pode expressar suas idéias deixa de existir para a sociedade
(PARK E BEHLAU, 2009). Nesse contexto, tem-se a definição de deficiente vocal, que seria
a pessoa que apresenta incapacidade de desenvolver a função fonatória na comunicação
verbal, em caráter permanente e irreversível. A incapacidade de desenvolver a função
fonatória, inclui voz, fala e linguagem (ABORLCCF, 2004).
3. Laringopatias relacionadas com o trabalho
As laringopatias relacionadas com o trabalho podem ser definidas como um conjunto de
doenças que acometem o profissional que utiliza a voz como principal meio para a execução
de seu trabalho. De acordo com o CNVP são alterações, disfunções e/ou enfermidades
laríngeas, do aparelho fonador ou de quaisquer outros sistemas orgânicos que podem
repercutir na voz e na fala ou que sejam causadas pelo mau uso ou abuso da voz ocupacional
(ABORLCCF, 2004).
Há diversos sintomas e sinais que podem estar presentes nas laringopatias, como: esforço
fonatório, estridor respiratório, pigarro, tosse, fadiga vocal, oscilação vocal e episódios de
afonia, mas segundo Almeida (2005), as laringopatias desenvolvem-se no decorrer de anos,
sendo a disfonia o sintoma clínico principal. Forte et al. (2007) encontraram que as principais
laringopatias relacionadas com o trabalho são: alterações estruturais mínimas, nódulos vocais,
pólipo vocal, edema de Reinke e cordite, sendo essa última a patologia mais freqüente, se
caracterizando por um processo inflamatório inespecífico das pregas vocais.
3.1. Fisiopatologia
“As mudanças no esforço vocal e na qualidade são secundárias ao excesso e ao ineficiente uso
do mecanismo vocal e de trauma repetido da mucosa da prega vocal. Todo padrão carregado
de excesso de vibração laríngea resulta em trauma vocal” (COUREY, 2010:235). O trauma
prolongado leva a lesão, que induz um processo inflamatório, que é o início do processo de
cura, mas as sobreposições de trauma e de inflamação somadas a possíveis infecções e refluxo
gástrico podem impedir o adequado restabelecimento.
Segundo Leavell e Clark (1976), há dois períodos nos quais ocorrem o desenvolvimento e a
instalação da doença: pré-patogênico e patogênico. No período pré-patogênico tem-se o
indivíduo suscetível e os fatores de risco ambientais e no período patogênico o
desenvolvimento da doença propriamente dita.
O período patogênico pode ser dividido ainda em: patogenia precoce, patogenia precoce
discernível, patogenia avançada e convalescença, como se pode ver:
O período patogênico precoce se inicia no momento em que o fator desencadeante
atua e o hospedeiro (o profissional da voz) não se adapta e responde com
modificações funcionais ou nos tecidos no sistema fonatório. Estas alterações não
são evidentes pelos métodos atuais diagnósticos e necessitam de critérios de
conhecimento clínico que considerem a história natural da doença desde os seus
primórdios, ou seja, do período pré-patogênico e patogênico precoce. (ALMEIDA e
PONTES, 2010:347)
Caso ocorra evolução, passa-se para o surgimento de sintomas que ainda não impedem o
pleno desenvolvimento das atividades e que seria designado de período patogênico precoce
discernível. Até essa fase, há possibilidade de reversão do quadro. Quando ocorre surgimento
de lesão na laringe e há impedimento parcial das atividades, chama-se de fase da patogênese
avançada e necessita de tratamento. Na convalescença há cronicidade das alterações e suas
consequências extremas podem levar a um grau de incapacidade definitiva para atividades
com demanda vocal aumentada (ALMEIDA E PONTES, 2010).
3.2. Síndrome Disfônica Ocupacional
Almeida e Pontes (2010), considerando a diversidade sintomatológica e multicausalidade nos
transtornos da voz, introduziram o conceito de Síndrome Disfônica Ocupacional (SDO), que
seria o conjunto de fatores relacionados à perda de saúde vocal pelo uso profissional e
passaram a chamar de laringopatia Ocupacional (LO) a fase de evolução da doença em que
surgem lesões na laringe. A Síndrome Disfônica Ocupacional tem sua aplicação conceitual
nas fases precoces de patogenia da doença vocal funcional e orgânica, quando há capacidade
de reversão da doença. É, portanto, um sinal que alerta para medidas preventivas, específicas
para cada necessidade individual, com o objetivo de não permitir a evolução do quadro para a
Laringopatia Ocupacional. Os sinais e sintomas da síndrome disfônica são: dor ou irritação na
garganta, sensação de corpo estranho, dor cervical, necessidade de pigarrear e a rouquidão
(ALMEIDA et al., 2010). Fuess e Lorenz (2003) têm dois conceitos: Síndrome Laríngea de
Tensão-Fadiga que é a presença de qualidade vocal flutuante associada a suporte respiratório
inadequado, se manifestando pela fadiga vocal; Sintoma de Tensão Músculo-Esquelética a
presença de odinofonia. Tais sintomas estariam presentes em 55,6% e 28,6% dos professores
respectivamente (FUESS E LORENZ, 2003) e fazem parte da SDO.
Ao se identificar a SDO, a abordagem inicial multidimensional nos fornece critérios para a
prevenção das consequências patogênicas que poderiam culminar na exclusão do indivíduo de
seu ambiente profissional.
4. Avaliação pericial em transtornos vocais
A atuação da perícia médica em transtornos vocais relacionados com o trabalho se baseia na
determinação da capacidade ou incapacidade laborativa e na fixação do nexo de causalidade
entre a doença e o trabalho.
4.1. Incapacidade laborativa
De acordo com a Resolução do INSS/DC nº10 (1999), de forma generalizada, a incapacidade
laborativa é a impossibilidade de desempenho das funções específicas de uma atividade
devido a alterações morfopsicofisiológicas provocadas por doença ou acidente, incluindo-se
no conceito o risco de vida, para si ou para terceiros e o agravamento que a permanência na
atividade possa acarretar.
Segundo Ortiz et al. (2004), não há respaldo legal para afirmar sobre incapacidade laborativa
em profissionais da voz. O CNVP ratifica o fato de que legislação vigente sobre aptidão e
inaptidão vocal para o trabalho é ainda insuficiente e imprecisa, orienta o enquadramento
dentro do conceito geral de incapacidade, observando-se as Leis 8213/1991 e 9032/1995 e
cita o Quadro nº 3 do Anexo III do Decreto 3.048/1999 como um nível de conhecimento atual
sobre o tema (ABORLCCF, 2004).
O Decreto 3048/99 é o Regulamento da Previdência Social em vigor para a Lei 8.213/91. O
anexo III desse decreto dá a relação das situações que dão direito ao auxílio-acidente e coloca
no quadro 3 as situações em que há perturbação da palavra em grau médio ou máximo, desde
que comprovada por métodos clínicos objetivos. Essa é a única referência a doença vocal no
decreto.
Na avaliação da capacidade laborativa em profissionais da voz, há algumas peculiaridades,
como enfatizam Ortiz et al. (2004) ao destacar dois fatos relevantes: a manutenção da rotina
laboral é necessária para adaptação adequada às condições reais de trabalho, visto que o
tratamento do profissional afastado do trabalho torna-se inefetivo; o conceito de voz adaptada,
quando não há risco de comprometimento orgânico e fonatório com o exercício laboral,
mesmo que haja lesões estruturais. Tais autores concluem que a norma legal vigente que
recomenda afastamento do trabalho dos agentes de risco torna-se inadequada nas disfonias de
origem ocupacional. Essas orientações podem ser aplicadas nas situações em que mesmo com
sintomatologia vocal e lesão estrutural, é possível a emissão sonora compatível com as
necessidades profissionais.
Segundo os mesmos autores, deve-se atentar, inclusive, que o fato de se atestar incapacidade
por disfonia pode gerar conflitos para o próprio paciente, o que pode acontecer em exames
admissionais de profissionais com voz adaptada, que podem ser prejudicados por serem
considerados incapazes.
Quando se analisa a relação entre o grau de disfonia e a capacidade laborativa, tem-se a
seguinte orientação através do CNVP (ABORLCCF, 2004):
 Grau leve: o trabalhador consegue desempenhar suas atividades vocais habituais com
mínima dificuldade, rara fadiga, e sem interrupções;
 Grau moderado: o trabalhador consegue desempenhar suas atividades vocais habituais,
com percepção (por si próprio e/ou por ouvintes) de esforço, falhas, fadiga eventual a
freqüente e necessidade de interrupções;
 Grau intenso: o trabalhador não consegue desempenhar suas atividades, ou o faz com
grande esforço, intensa fadiga e com grandes interrupções;
 Grau extremo ou afonia: o trabalhador não consegue desempenhar suas atividades.
Portanto, haveria incapacidade para o trabalho apenas nos casos de disfonia em grau intenso
ou extremo. Quanto ao tempo de afastamento, há uma estimativa média de evolução,
tratamento, redução ou afastamento de uso profissional da voz, para restabelecimento de
condições plenas de trabalho:
Laringites virais agudas leves – 1 a 5 dias;
Laringites virais agudas moderadas – 5 a 10 dias;
Laringites bacterianas agudas leves – 5 a 10 dias;
Laringites bacterianas agudas moderadas – 10 a 20 dias;
Hematoma de prega vocal – 10 a 20 dias;
Nódulos, pólipos e cistos vocais pequenos – 30 a 45 dias;
Nódulos, pólipos e cistos vocais moderados – 45 a 90 dias;
Paralisias e lesões maiores ou processos mais intensos – indefinido.
(ABORLCCF, 2004:28)
Fazendo um paralelo com o que foi colocado sobre fisiopatologia e as definições de SDO,
pode-se deduzir ainda que nos períodos de pré-patogênese, patogênese precoce e patogênese
precoce discernível não há incapacidade laboral e que na fase de patogênese avançada pode
haver incapacidade laboral temporária, sempre se tendo o cuidado de não prolongamento da
incapacidade, considerando o que já foi discutido sobre a manutenção da rotina para melhor
adaptação. Na fase de convalescença, entretanto, por se tratar de um quadro cronificado e
avançado, podem ser necessárias a reabilitação profissional ou mesmo, em casos extremos, a
aposentadoria por invalidez, conforme os artigos 43 do decreto 3048/1999: “Art. 43. A
aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida a carência exigida, quando for o caso, será
devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz
para o trabalho e insuscetível de reabilitação”
Segundo Simões e Latorre (2006), as faltas ao trabalho devido à presença de alteração vocal
foram da ordem de 30%. Os afastamentos por incapacidade decorrentes de adoecimento
vocal causam um prejuízo estimado em mais de 200 milhões de reais ao ano, valor que ainda
pode estar subestimado pela baixa notificação (MEDEIROS, BARRETO e ASSUNÇÃO,
2006).
4.2. Nexo causal entre a doença e a existência do agente no trabalho
Para a caracterização do acidente de trabalho pela Previdência Social, segundo os arts. 19 a 21
da Lei n. 8.213 (1991), além da lesão e da incapacidade para o trabalho, é requisito essencial a
demonstração do nexo causal.
Nexo causal, ou nexo etiológico é o vínculo, a ligação ou relação de causa e efeito entre a
atividade laborativa e a doença.
O enquadramento como acidente de trabalho das doenças profissional e doenças do trabalho
pode ser considerado quando há:
I - doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo
exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva
relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;
II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em
função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione
diretamente, constante da relação mencionada no inciso I. (Art.20 da lei 8213/ 1991)
No Anexo II do Decreto 2.172/1997, que regulamentava a Lei 8.213/1991, consta apenas a
lista de agentes patogênicos, especificando os trabalhos que contem tal risco, sem a
identificação das doenças decorrentes dos efeitos da exposição ocupacional aos referidos
agentes. Havia, portanto, subjetividade das decisões administrativas e técnicas, gerando
controvérsias e conflitos. Em 1998, o Ministério da Saúde tomou a iniciativa de elaborar uma
lista de doenças profissionais ou do trabalho, para orientar o Sistema Único de Saúde (SUS)
no concernente ao diagnóstico destas nosologias, e às medidas decorrentes. Tal lista foi
adotada pelo Ministério da Previdência e Assistência Social e publicada no Decreto
3.048/1999, que revogou o decreto 2.172/1997. Portanto, no anexo II do decreto 3.048/1999,
além da lista de agentes patogênicos foi acrescentada a lista B de doenças e respectivos
agentes etiológicos ou fatores de risco de natureza ocupacional.
Entende-se, portanto que para que seja fixado o nexo causal entre o trabalho e uma
determinada doença, esta deve estar presente no anexo II do decreto 3.048/1999, o que
infelizmente não ocorre com as laringopatias relacionadas com o aumento da demanda vocal
no ambiente de trabalho. A única laringopatia citada é a laringotraqueíte relacionada com
exposição ao iodo e ao bromo, sem nenhuma menção às doenças respiratórias relacionadas
com o uso excessivo da voz no trabalho como fator de risco (MEDEIROS, BARRETO e
ASSUNÇÃO, 2006)
Apensar de não estar inclusa na lista de doenças ocupacionais, há riscos ambientais e
condições em postos de trabalho listados para qualquer atividade profissional e reconhecidos
pela legislação vigente que podem ser aplicados para a voz ocupacional segundo o CNVP
(ABORLCCF, 2004) como:
 Químicos: inalação de poeiras, fumos, névoas, gases, substâncias voláteis, compostas ou
produtos químicos em geral;
 Biológicos: exposição a vírus, bactérias, fungos e bacilos;
 Ergonômicos: tempo de uso vocal diário, período de uso (noturno e diurno) e múltiplos
períodos, uso contínuo, uso repetitivo, intensidade de uso, exposição a situações
causadoras de estresse;
 Físicos: condições de acústica, temperatura, umidade, movimento do ar (ventilação) e
pressão no posto de trabalho.
Podem-se citar os metalúrgicos, que segundo o estudo de Ubrig-Zancanella e Behlau
(2010:75), “apresentam alta referencia de sintomas vocais indicando a importância de
verificar possíveis relações com exposição a diversos riscos presentes no ambiente de
trabalho”, como ruído intenso, poeira, produtos químicos, fumaça, alteração de temperatura.
Para esses profissionais o uso da voz não é constante, mas em forte intensidade.
Jardim, Barreto e Assunção (2007) falam da necessidade de se investigar melhor o papel do
ambiente e condições de trabalho na qualidade de vida relacionada à voz de forma a contribuir
para políticas de intervenção efetivas que envolvam trabalhadores e gestores. Ignorar esses
riscos causa prejuízo na notificação das patologias vocais relacionadas com o trabalho e
subestima o problema.
A OMS, desde 1985, através de seu informe técnico, considera a disfonia como multifatorial,
ressaltando que pode ser relacionada ao trabalho (ORTIZ et al., 2004), portanto reconhece o
possibilidade de fixação do nexo de causalidade.
Ortiz et al. (2004) fixaram o nexo de causalidade entre a disfonia e a atividade laboral em
40% da amostra constituída por profissionais da voz, levando-se em conta os dados de
anamnese e os antecedentes pessoais, como o abuso vocal extra-trabalho, os sintomas
alérgicos, o refluxo gastresofágico, as alterações psíquicas e os hábitos.
5. Conclusão
Nas doenças vocais relacionadas com o trabalho encontramos um conjunto de doenças e um
polimorfismo de sintomas. A disfonia é o sintoma clínico mais evidente, mas é importante
considerar os períodos precoces da patogenia da doença vocal funcional e orgânica, quando
podem aparecer dor, irritação na garganta, sensação de corpo estranho ou dor cervical.
A fase inicial dos transtornos vocais pode ser enquadrada na síndrome disfonia ocupacional e
normalmente não causa incapacidade laborativa, mas é uma fase importante a ser identificada
para que se possa atuar de forma preventiva, visto se tratar de quadros reversíveis.
As laringopatias ocupacionais ocorrem quando surgem lesões na laringe. Nesses casos a
capacidade laborativa varia desde: a) plena capacidade para o trabalho, quando há a voz
adaptada e a lesão não implica em alteração na estabilidade e na resistência ao uso específico
que o trabalhador faz da voz; b) incapacidade temporária para restabelecimento de condições
plenas para uso profissional da voz; c) incapacidade definitiva para atividades com demanda
vocal aumentada, optando-se pela reabilitação profissional ou, em casos não passíveis de
reabilitação, pela invalidez.
Apesar de não haver legislação pertinente que considere o nexo de causalidade das
laringopatias com o trabalho e mesmo sem respaldo legal para afirmar sobre incapacidade
laborativa em profissionais da voz, a OMS já reconheceu que a disfonia pode estar
relacionada ao trabalho e há diversos fatores de risco reconhecidos pela legislação vigente que
podem ser encontrados em diversos postos de trabalho onde se encontram os profissionais da
voz. Muito ainda se precisa evoluir nos estudos desse tema para que, em um futuro próximo,
possam ser incluídos os diagnósticos que contemplem as laringopatias relacionadas com o
trabalho na lista doenças ocupacionais e assim alcançar uma notificação adequada para um
melhor dimensionamento do problema, para redirecionamento das políticas nacionais de
saúde pública e finalmente para um melhor respaldo das decisões periciais.
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