CENTRO UNIVERSITÁRIO FRANCISCANO PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM ORGANIZAÇÕES E DESENVOLVIMENTO Cláudia Maria Vassão Políticas públicas para gestão de resíduos tecnológicos: limites e potencialidades. Curitiba 2010 CENTRO UNIVERSITÁRIO FRANCISCANO PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM ORGANIZAÇÕES E DESENVOLVIMENTO Cláudia Maria Vassão Políticas públicas para gestão de resíduos tecnológicos: limites e potencialidades. Dissertação apresentada ao Centro Universitário Franciscano do Paraná – UNIFAE, como requisito fundamental à obtenção do grau de Mestre em Organizações e Desenvolvimento, junto ao Centro Universitário Franciscano do Paraná – UNIFAE. Orientador: Prof. Dr. José Edmilson de Souza-Lima Curitiba, junho 2010. O laço essencial que nos une é que todos habitamos este pequeno planeta. Todos respiramos o mesmo ar. Todos nos preocupamos com o futuro dos nossos filhos. E todos somos mortais. John Kennedy AGRADECIMENTO Agradeço a Deus, profundamente, a vida e as infinitas possibilidades que me são concedidas para avançar um pouco mais na direção da realidade e, então, crescer como ser humano desprendido da ilusão. Em consequência, agradeço a tudo e a todos que, nesta jornada, tenham descortinado diante de meus olhos a verdade, como família (Romilda, Leopoldo, Kenzo, Yasmin), amigos (Danilo, Izabel, Ione), mestres (professores, autores ou alguém que, pela sincronicidade, trouxe uma palavra, um endereço, uma dica, uma outra pessoa), natureza, tecnologia, modernidade... Sócrates - Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública. Glauco - Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la. i (Platão, O Mito da Caverna in A República, V.II, p. 105 a 109) RESUMO A destinação final do lixo tecnológico em âmbito de estado do Paraná se destaca como tema deste trabalho para um estudo das práticas de descarte desse tipo de resíduo adotadas pelos órgãos públicos do estado. A realidade alerta, por outro lado, para a oferta de equipamentos eletroeletrônicos com crescentes capacidades de processamento a custos de aquisição cada vez menores, o que permite às mais diversas camadas sociais terem acesso a tais bens. O ritmo cada vez mais veloz de obsolescência também contribui significativamente para avolumar o acúmulo desses resíduos; porém medidas para disposição final dos equipamentos em desuso não crescem nessa mesma velocidade, pelo contrário, o que cresce são os riscos ambientais pelo descarte imprudente, sem contar os perigos a que fica exposta a saúde humana, quando em contato com componentes tóxicos que esses equipamentos contêm. Na busca de se identificarem soluções adotadas no Brasil e em outros países, não haveria caminho a ser trilhado que não fosse paralelo ao debate sobre desenvolvimento e pobreza, crescimento sustentável e degradação ambiental, modernidade e sociedade de risco. Palavras-chave: resíduos tecnológicos, risco ambiental, pobreza, catadores de recicláveis ABSTRACT The final destination of e-waste in the state of Parana is the main subject of this project, to a study of the measures of disposing this type of waste adopted by state’s public agencies. Reality draws attention, however, to electronic devices offers with increasing processing capabilities with each time lower costs, which allows the most diverse social classes to have access to these goods. The rhythm of obsolescence that grows faster each time also significantly contributes to increase the accumulation of these wastes. The measures for final disposal though do not grow in the same speed, on the contrary, what grows are the environment risks of the inadequate disposal, ignoring the dangers to the human health, when in direct contact with the toxic components of these devices. Trying to identify the solutions adopted in Brazil and other countries, the only track to follow would be a parallel to the debate about poverty and development, sustained growing, environment degradation, modernity and society of risk. Keyword: e-waste, environmental risk, poverty, recyclers LISTA DE TABELAS 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 10 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.................................................................... 15 3 2.1 Nosso futuro comum - Brundtland Report .................................................................... 15 2.2 Do sucesso da industrialização à sociedade de risco .................................................. 27 2.3 Desenvolvimento e pobreza ......................................................................................... 41 2.4 Do computador ao lixo tecnológico............................................................................... 44 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ..................................................... 53 3.1 Caracterização da pesquisa: parque de informática .................................................... 55 3.2 Caracterização da pesquisa: legislação ambiental e soluções adotadas para o tratamento dos resíduos de EEE ..................................................................................................... 57 4 ANÁLISE DOS DADOS................................................................................ 58 4.1 Parque de informática................................................................................................... 58 4.2 Soluções para destinação de EEE e legislação ambiental .......................................... 65 5 CONSIDERAÇÕES ...................................................................................... 79 6 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 84 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1. Monitores ................................................................................. 58 Gráfico 2. Impressoras ............................................................................. 60 Gráfico 3. Computadores X Impressoras ............................................... 60 Gráfico 4. Destinação de EEE nos órgãos públicos estaduais................. 61 Gráfico 5. Motivos para troca de Computadores ...................................... 63 Gráfico 6. Motivos para troca de Monitores.............................................. 64 Gráfico 7. Motivos para troca de Impressoras.......................................... 64 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 10 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.................................................................... 15 2.1 Nosso futuro comum - Brundtland Report .................................................................... 15 2.2 Do sucesso da industrialização à sociedade de risco .................................................. 27 2.2.1 Modernização reflexiva em uma sociedade de risco....................................... 29 2.3 Desenvolvimento e pobreza ......................................................................................... 41 2.4 Do computador ao lixo tecnológico............................................................................... 44 2.4.1 Destinação de resíduos sólidos no Brasil........................................................ 51 3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ..................................................... 53 3.1 Caracterização da pesquisa: parque de informática .................................................... 55 3.2 Caracterização da pesquisa: legislação ambiental e soluções adotadas para o tratamento dos resíduos de EEE ..................................................................................................... 57 4 ANÁLISE DOS DADOS................................................................................ 58 4.1 Parque de informática................................................................................................... 58 4.2 Soluções para destinação de EEE e legislação ambiental .......................................... 65 5 CONSIDERAÇÕES ...................................................................................... 79 6 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 84 10 1 Introdução O presente estudo centra sua preocupação na destinação dos detritos tecnológicos produzidos em órgãos públicos do estado do Paraná. O primeiro dos cinco capítulos deste trabalho traz a apresentação do tema, o problema, o objetivo geral e os específicos, justificativas, limitações e metodologia utilizada. Em seguida, desenvolve-se a fundamentação teórica no intuito de se oferecer uma síntese do tema em aspectos concernentes não apenas a questões ambientais do lixo tecnológico, mas também a questionamentos atuais de uma sociedade em que se evidencia a desigualdade entre classes sociais, de cor, de raça, de diversidade religiosa, em um momento de consumo desenfreado, de meio ambiente fadigado por agressões de toda ordem. Se em âmbito mundial mudanças se processam na seara das inovações tecnológicas semeando abundância de ofertas, se aparelhos de última geração pouco depois de lançados no mercado, para muitos, apresentam-se obsoletos porque outra novidade mais atraente suplanta a anterior e aguça o consumo numa velocidade celeremente irracional, assustadora, denunciando uma nova ameaça ao meio ambiente, cabe, então, ao próprio homem, centrar crescente preocupação na destinação dos produtos que descarta sob a forma de lixo tecnológico. Nações mais desenvolvidas, nos anos 1980, com o endurecimento das leis para destinação do lixo tóxico que produziam (em atitude irresponsável e impune na época), optaram por descartar no quintal do mundo esse tipo de detrito, despejando-o além dos muros de suas fronteiras, em ermos descampados de países em desenvolvimento, principalmente do Leste Europeu. Tal ação se consumava sub-repticiamente, muitas vezes não apenas sem o tácito consentimento dos países depositários, mas, até mesmo, sem que sequer esses países tivessem conhecimento da invasão de seus domínios; responsabilidade e ônus de abrigar esse mortal despejo eram transferidos, assim, sem consultas, sem pedidos, na mais insidiosa caracterização do crime de lesa-propriedade. Esse tipo de operação, se assim se pudesse afirmar, nem sempre logrou manterse em sigilo, denunciados que foram por acidentes, quer durante o transporte, em ocorrência de vazamentos, quer, também, pela inadequada deposição quando 11 chegavam ao seu destino, ao contaminar o sistema fluvial e o solo e que, no ato, ou ao longo dos anos, desencadeou irreparáveis danos à população local, provocando problemas de saúde gravíssimos e até mesmo fatais. A consciência de mundo como um bem a ser respeitado ainda não acordou a opinião pública planetária e, por essa razão, os mais fracos sofrem as consequências deletérias de danos inomináveis perpetrados pelos mais ricos. Segundo OECD (1993), em 1989, quarenta milhões de toneladas, valor aproximado de US$ 16 bilhões, foi destinado como sucata transfronteiriça entre os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Também de acordo com o Greenpeace, “estima-se que 5.2 milhões de toneladas de resíduos perigosos foram exportados para o leste europeu e para os países em desenvolvimento entre 1986 e 1990 ilegalmente. O Greenpeace estima também que a exportação entre países membros e não membros da OECD entre 1989 e 1994 seja de 2.6 toneladas” (GREENPEACE, 1990, p.328). A reincidência de casos de transporte ilegal de resíduos tóxicos tornando-se pública, inadiável se impôs um posicionamento coibidor contra tal prática; assim, o PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente elaborou uma proposta de convenção internacional para controle do transporte transfronteiriço de detritos tóxicos, apresentada em março de 1988, em uma conferência na cidade de Basiléia, Suíça, na qual 105 países e a Comunidade Européia assinaram a chamada Convenção de Basiléia para o Controle dos Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e sua Disposição. A Convenção de Basiléia destacou-se como um passo importante na discussão do problema mundial do descarte de lixo tóxico, porém muito há que se estudar, que se discutir, para se encontrarem soluções definitivas de deposição adequada não só para o resíduo tóxico, mas também para todo o lixo tecnológico e sucata de eletroeletrônicos. A Computer Industry Almanac (www.c-i-a.com) divulgou uma pesquisa intitulada Computers-In-Use Forecast By Country, que traz uma estimativa do número de computadores em uso em 57 países das seis regiões do mundo, como algo em torno de 1,19 bilhão em 2008. Observa-se que, nos EUA, a venda de computadores, em sua quase totalidade, consuma-se apenas para substituição e 12 não mais para upgrade dos computadores existentes. A venda de computadores no mundo inteiro, em 2007, superou o montante de 260 milhões de unidades. Com uma taxa mundial de vendas de substituição de cerca de 63%, estima-se que o quantitativo de máquinas em uso aumentou em 97 milhões de unidades nesse mesmo ano de 2007. Segundo o relatório, em 2008, um total de 86% dos americanos dispunha de um computador, e a porcentagem deve chegar a 100% em 2013. No topo do ranking situam-se os EUA, com 264,1 milhões, seguidos da China, com 98,67 milhões e o Japão, com 86,22 milhões de PCs. O Brasil ocupa a décima posição, com 33,3 milhões de máquinas (2,8% do total). Mesmo com o crescimento acelerado do volume de vendas dos EEE – equipamentos eletroeletrônicos, pouco se tem legislado no sentido de se estabelecer uma correta destinação para equipamentos em desuso, ou seja, ainda não existe no Brasil uma cultura de preservação de meio ambiente a respeito dos responsáveis pela sucata que se acumula, sobretudo no que tange a eletrônicos. No estado do Paraná, em junho de 2008, foi sancionada a Lei nº. 15.851, que obriga empresas que produzem, distribuem ou comercializam equipamentos de informática a criar e a manter programas de recolhimento, reciclagem e destruição dos equipamentos ora comercializados, desde que tais empresas estejam instaladas em áreas circunscritas ao estado. Essa lei, porém, não trouxe grandes mudanças no cenário de tratamento da sucata tecnológica do Paraná, pois as empresas exigem, além da nota fiscal de compra dos equipamentos, que tais conjuntos apresentem-se íntegros, em total conformidade com o descrito na nota, ou seja, caso o proprietário tenha adicionado peças acessórias para melhorar o desempenho da máquina, seja colocando um pequeno componente de memória, seja substituindo uma peça, já o descaracterizou e, desta forma, a empresa não o receberá para a devida destinação prevista na Lei nº. 15.851. O Paraná se destaca como uma dos poucas unidades da federação brasileira a manter uma empresa de informática estatal, não acompanhando, assim, a significativa maioria dos estados que terceiriza o setor. A Celepar – Companhia de Informática do Paraná é responsável por projetos sociais de inclusão digital do governo do estado; porém ainda não oferece empreendimentos 13 ambientais relacionados com a reciclagem e com a destinação do lixo tecnológico gerado por ela própria e pelos demais órgãos do estado. Diante de razão tão convincente, se resíduos tóxicos desencadeiam formas diversas de agressão ao meio ambiente, impõe-se a execução de urgentes medidas no que concerne à correta destinação da sucata tecnológica, a fim de efetivamente solucionar o problema e não simplesmente transferir tal responsabilidade a outrem por meio de leilões. Este trabalho que ora se desenvolve norteia-se, assim, pelo objetivo geral de investigar novas formas de gestão do lixo tecnológico no Estado do Paraná. E pelos objetivos específicos: 1. estruturar uma fundamentação teórica que embase o levantamento de alternativas para o problema da pesquisa; 2. inventariar o parque de informática do governo do estado do Paraná a fim de descrever quantitativamente a população a ser pesquisada; 3. diagnosticar soluções, em âmbito nacional e também nos principais países desenvolvidos, para a gestão do lixo tecnológico por meio da pesquisa exploratória; 4. elencar alternativas para uma correta destinação do lixo tecnológico nos órgãos públicos estaduais que subsidiem a elaboração de uma política pública de gestão sustentável para esse tipo de lixo. Quando se pensa em instituições públicas, serviços ao cidadão, administração pública, verbas e recursos oriundos de arrecadação tributária, a ausência de medidas eficientes permeia tais planejamentos. Do muito que é necessário fazer, muito pouco se alcança por conta de infindáveis entraves. Os prejuízos das ações que não se materializam partem da assustadora diversidade de origem: sociais, ambientais e econômicos. O maior prejuízo do fraco alcance das políticas públicas, porém, incide sobre a morosidade do desenvolvimento intelectual, cultural e econômico da população. de baixa renda. E essa situação finda por incrementar a dramaticidade que envolve a distribuição de renda no Brasil, alimentando o círculo vicioso, em que poucos detêm indefinidamente as melhores oportunidades por um lado, e por 14 outro, muitos dão o melhor de si em troca de uma forma sobrevivência às vezes nem mesmo digna. Felizmente, nas últimas décadas, dissemina-se tanto no setor público quanto no setor privado uma espécie nova de atitude, que privilegia tanto a preservação ambiental quanto o respeito pelo ser humano. Projetos de inclusão social e digital, defesa de matas nativas compreendendo fauna e flora, combate à poluição e ao aquecimento global, educação de jovens e adultos, e outras manifestações, dominam as preocupações de grandes corporações, abrindo espaço, então, para projetos denominados programas de responsabilidade socioambiental. Origina-se tal conceito de outro maior e mais abrangente, que é o conceito de desenvolvimento sustentável, resultado do trabalho da Comissão Brundtland, apresentado no relatório Nosso Futuro Comum (ONU, 1987), que trata de questões sobre a qualidade de vida do ser humano, atual e futura, cujo principal objetivo é alertar não só os governantes, mas também a população acerca da necessidade de se modificar o status quo que instituiu um estilo de vida baseado no consumo para outro alicerçado no tripé: igualdade social, preservação ambiental e desenvolvimento econômico. Alinhada a políticas públicas e sociais, a presente dissertação centra, assim, sua pesquisa nas soluções para uma adequada destinação da sucata gerada pelo desuso de equipamentos de informática, envolvendo tecnologia, preservação ambiental e responsabilidade social. 15 2 Fundamentação teórica Neste capítulo expõe-se uma revisão de literatura a respeito do desenvolvimento sustentável, modernidade, sociedade de risco, desenvolvimento e pobreza, a fim de formar uma base conceitual para o desenvolvimento de uma proposta de solução para a problemática pesquisada. 2.1 Nosso futuro comum - Brundtland Report O relatório Nosso Futuro Comum (ONU, 1987) se destaca como fruto do trabalho da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, liderada pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland1. A Comissão, durante três anos, reuniu-se com os principais líderes governamentais, especialistas e cientistas, em âmbito mundial, participando de audiências públicas, verificando a situação em que se encontrava cada local, avaliando os riscos futuros para, com base no levantamento obtido, traçar uma série de recomendações para um desenvolvimento sustentável de forma global. Curioso é o fato de que esse relatório, que já atingiu a maioridade, parece ter sido publicado nos dias atuais, tal a semelhança da conjuntura atual com aquela que há 23 anos se desenhava, seja em se tratando de âmbito econômico, seja ambiental, seja social O relatório Nosso Futuro Comum não defendeu uma previsão pessimista do futuro do planeta, ao contrário, seu ponto de vista abraçou o entendimento de que tanto o desenvolvimento quanto o crescimento econômico poderiam prosseguir sua caminhada, desde que de forma sustentável, observando ações políticas globalizadas. Desde então, cada vez mais se disseminou a necessidade de conscientização de que seria imprudente avaliar as questões relativas ao 1 Gro Harlem Brundtland, nascida em 20 de abril de 1939, em uma pequena cidade na Noruega chamada Bærum, política, diplomata, médica e líder internacional em desenvolvimento sustentável e saúde pública. Em 1981 tornou-se a primeira mulher Chefe de Governo do seu país. Foi pioneira na promoção da igualdade de direitos e do papel da mulher no processo político norueguês. Recebeu inúmeros prêmios, destacando-se o Prêmio Indira Ghandhi para a Paz, Desarmamento e Desenvolvimento, em 1988. Atualmente é uma enviada especial para as alterações climáticas da ONU – Organização das Nações Unidas. 16 desenvolvimento econômico dissociadas das questões concernentes ao meio ambiente. A publicação em referência inaugurou o conceito de "desenvolvimento sustentável", ou seja, a capacidade de se atenderem às necessidades da época garantindo-se igualmente às gerações futuras o direito inalienável de dispor do atendimento de suas necessidades. A pobreza, em âmbito mundial, foi identificada como um dos principais problemas, assim, para haver desenvolvimento sustentável, impunha-se, como condição sine qua non, que as necessidades básicas de cada pessoa fossem atendidas, minimizando-se a suscetibilidade individual diante de catástrofes ecológicas ou de outra natureza, na tarefa de romper o círculo que condenava uma população pobre, sem recursos, não apenas a enfrentar um meio ambiente fragilizado, mas também a obrigá-la, a fim de manter sua subsistência, ao ônus de extrair mais do que esse mesmo meio oferecia, degradando a pobreza em penúria e intensificando os meios de agressão aos recursos naturais, e assim sucessivamente. Porém, para que as necessidades básicas da população mundial fossem atendidas de forma continuada, paralelamente ao crescimento econômico, também deveriam ser criados mecanismos que garantissem a essa população pobre, condições para sua sobrevivência e, dessa forma, conferir-lhes a liberdade de dignamente entregar-se a um trabalho que lhes permitisse manter esse crescimento. A adoção, pelas nações mais ricas, de um estilo de vida compatível com os recursos disponíveis no planeta foi apontada no Relatório como opção inegociável e de vital importância para um desenvolvimento global sustentável, ou seja, escolhas difíceis exigiriam a cooperação da ínfima parcela privilegiada da população que sempre deteve quase a totalidade dos bens disponíveis em todo o espaço terrestre, o que, por si só, demonstrou que o desenvolvimento sustentável não perpassava simplesmente por medidas de redução da pobreza no mundo, de controle populacional, de crescimento econômico, mas, principalmente, dependia do empenho político e do envolvimento da população privilegiada, ou seja, daquela que mais possui e produz o lixo em escala potencialmente muito mais significativa. 17 Um conjunto de fatores deveria ter sido apreciado e conduzido à execução para atenuar os danos ao meio ambiente, o que não se limitava ao ambiente ecológico; atingia também aspectos econômicos, comerciais, energéticos, agrícolas, dentre outros, que deveriam ser encarados com muita seriedade nas mesmas agendas e nas mesmas instituições nacionais e internacionais. A solução para tal entendimento talvez tenha se apresentado como o maior dos desafios, pois medidas de reformas institucionais interpuseram-se como itens inegociáveis. As nações pequenas ou pobres necessitariam de apoio, em razão da deficiente capacidade tanto administrativa quanto financeira, sem falar ainda da carência de assistência técnica e de formação profissional que necessitariam ser supridas. O estudo mostrou a urgente necessidade de se estabelecer uma cooperação harmônica entre todas as nações, já que, figurativamente ilustrando a situação, se um pequenino ponto de uma fruta apodrece, a fruta inteira perde valor porque até mesmo a parte não visivelmente danificada revela no sabor e, sobretudo, na qualidade, que a fruta inteira sofreu os efeitos danosos daquela contaminação; assim o planeta, mesmo não exibindo visivelmente as marcas das agressões que sofria em regiões distantes, responderia agressivamente ao meio, manifestandose por meio dos fenômenos da natureza em convulsão, sob a forma de terremotos, chuvas torrenciais, tufões, secas inclementes, elevação de temperatura em níveis ainda não experimentados, comprometimento da camada de ozônio, além de outras formas de intempérie. O que se pôde observar há duas décadas é inegavelmente idêntico ao que constatamos na atualidade, momento em que a necessidade de mudança é global, não importando as dimensões, desde países pequenos, até os mais extensos; dos países pobres até os mais ricos porque o planeta é um só e ignora demarcação de fronteiras. Talvez a grande contribuição do relatório Nosso Futuro Comum tenha sido a inserção do termo desenvolvimento sustentável no circuito de debates sobre questões ambientais e economia global, pois, quando se lê ainda atualmente o Relatório, percebe-se que os problemas são os mesmos de vinte anos atrás, o que nos leva a crer que as recomendações contidas nesse documento não foram 18 levadas em consideração pelas nações ricas. No capítulo intitulado “Um futuro ameaçado”, o relatório aponta que ações individuais, tanto de preservação quanto de devastação, contribuem para a perda da unicidade no planeta, ou seja, o homem ainda não se conscientizou de que a biosfera, em sua ubíqua amplitude, ignora fronteiras, nela incluindo indistintamente todos os habitantes da Terra. Cada nação age solitariamente sem levar em conta a realidade de que a Terra é um planeta e o ar circula livremente sem limites nem fronteiras, e o impacto das ações de um país afeta outros países, compromete a vida de outros povos. A pobreza endêmica no mundo e o ritmo acelerado do capitalismo destacaram-se como as falhas mais danosas e que mais necessitavam ser corrigidas, porém atualmente esses dois fatores continuam denunciando-se como pontos centrais em fóruns de discussão por todo o mundo. Em 1987, em primeira análise, o relatório Nosso Futuro Comum identificou que a elevação do padrão de vida das pessoas atuou como o elemento provocador da fragilização do meio ambiente, porém a própria pobreza, por sua vez, causou degradação quando, para sobreviver, uma população abatia florestas, promovia a sobrepastagem, levava o solo à exaustão e, quando não conseguia mais produtividade na repetição reiterada desse mesmo ciclo, migrava para as cidades, sem previsão nem planejamento, sem perspectivas de trabalho nem de moradia, tendo então que amontoar-se em favelas construídas em áreas de preservação. Os problemas ambientais da época, assim, resultaram tanto do subdesenvolvimento de algumas nações pobres quanto do crescimento econômico, já que não existiam políticas efetivas de desenvolvimento capazes de cultivar uma visão de desenvolvimento sustentável e que perpassa igualmente pela ação predatória tanto desencadeada por populações mais afortunadas, quanto por ações de populações mais humildes. No passado, civilizações inteiras desapareceram pela falta de condições de continuidade da vida em seus locais de origem, resultado da destruição ambiental por conta da ignorância humana. Entretanto, tais fatos ocorriam de forma isolada, localizada, delimitada, e hoje a degradação do meio ambiente ocorre de forma globalizada. 19 Jared Diamond defende em Colapso (Diamond, 2005) que humanos e outros seres vivos não-humanos, atmosfera e oceanos formam um uno sistêmico, intrincado e complexo. Fato ilustrado pelo efeito-estufa2: não há revolta da natureza ou vingança, mas sim o descortinamento dessa unidade formada pelo homem e pelo meio em que ele vive. Não é novidade que a colonização humana de grandes áreas sempre causou graves impactos ambientais: derrubada de florestas, extinção de grandes animais "que evoluíram sem temer os seres humanos e foram facilmente abatidos, ou que sucumbiram à mudança de habitat, introdução de espécies daninhas e doenças trazidas pelo homem" (DIAMOND, 2005, p.25). Na Austrália, na América do Norte, na América do Sul, em Madagascar, nas ilhas do Mediterrâneo, no Havaí, na Nova Zelândia e em diversas outras ilhas do Pacífico, civilizações caminharam para um total colapso ou quase. Segundo Diamond (2005), descobertas recentes de arqueólogos, climatologistas, historiadores, paleontólogos e palinologistas (especialistas em pólen) têm confirmado a suspeita de suicídio ecológico (ecocídio) não intencional por parte das sociedades que entraram em colapso. Na trajetória do colapso, Diamond (2005) elenca várias evidências de dano ambiental "cuja importância relativa difere de caso para caso”: desmatamento e destruição do habitat; erosão do solo; salinização do solo; perda de fertilidade do solo; problemas com o controle da água; sobrecaça e sobrepesca; introdução de espécies invasoras e/ou exóticas; aumento per capita do impacto do crescimento demográfico. 2 O efeito estufa é um processo que ocorre quando uma parte da radiação solar refletida pela superfície terrestre é absorvida por determinados gases presentes na atmosfera. Como consequência disso, o calor fica retido, não sendo liberado no espaço. O efeito estufa, dentro de uma determinada faixa, é essencial para a vida na Terra, pois é ele o mantenedor do aquecido do planeta. Porém, o efeito estufa torna-se um problema quando há uma desestabilização do equilíbrio energético, originando o fenômeno “aquecimento global”. O IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change, estabelecido pela ONU e pela Organização Meteorológica Mundial em 1988) publicou resultados de estudos que apontam o aumento de gases chamados “de efeito estufa”, como o dióxido de carbono (CO2), metano (CH4), óxido nitroso (N2O) e os CFCs (CFxClx), como a causa para esta desestabilização e consequente aumento do aquecimento global. (Global Warming - The Complete Briefing de John Houghton - terceira edição - 2004 Cambridge Press). 20 A esses processos, a sociedade industrial acrescentou mais quatro: mudanças climáticas provocadas pelo homem; acúmulo de produtos químicos tóxicos no ambiente; carência de energia e utilização total da capacidade fotossintética do planeta. Diamond (2005) prevê que nas próximas décadas o impacto dessas doze ameaças se tornará crítico em âmbito mundial e, caso medidas de contenção não sejam implementadas em tempo, outras áreas do planeta terão destino parecido ao da Somália e de Ruanda. Contudo, o autor não prevê um destino apocalíptico de extinção da humanidade ou da civilização industrial: "Tal colapso pode assumir diversas formas, como a disseminação mundial de doenças ou de guerras provocadas pela escassez de recursos naturais" (DIAMOND, 2005, p.22). Outro fator tratado de maneira relevante no relatório Nosso Futuro Comum é a pobreza3. Seja na década de 1980, seja na década de 2010, distribuição desigual de renda por todo o planeta, pessoas vivendo em condições miseráveis, passando fome e morando em cortiços evidencia um quadro de ausência de planejamento global; além disso, o rápido crescimento dessa população intensifica ainda mais o dramático quadro de desolação. 3 Jeffrey Sachs, economista americano, acredita que a globalização não vai, por si só, solucionar o problema, mas pode ser uma força poderosa no combate a miséria. O desenvolvimento não é um processo inevitável. Há muitas regiões no mundo que não progridem. “A globalização permite que países pobres dêem saltos tecnológicos e alcancem rapidamente os de maior renda. Foi o que aconteceu com a China nos últimos 25 anos e com a Índia nos últimos 15. Espero que aconteça com o Brasil nos próximos 15. O país teve períodos de crescimento rápido, mas não por muito tempo consecutivo. Agora, a expansão voltou a acontecer.”, prevê Sachs para o Brasil, em entrevista concedida à Revista Exame, em 29/11/2007. Sachs afirma que a pobreza extrema é um anacronismo. A renda per capita média do mundo no século XXI é cerca de 9.000 dólares e, nos países ricos, pode ficar entre 35.000 e 40.000 dólares. Então, para fechar a conta, em alguns lugares do mundo, ela pode ser de apenas 350, ou seja, menos de 1 dólar por dia! O fato é que há pessoas morrendo de fome enquanto outras se beneficiam do moderno desenvolvimento econômico. Enquanto houver esse tipo de miséria, haverá instabilidades, doenças, migrações em massa, crescimento populacional acelerado, conflitos armados, degradação ambiental e berços para o terrorismo. (Sérgio Teixeira Jr., Um mundo menos pobre - mas muito desigual. Revista Exame, São Paulo: Ed. Abril, nº 907, nov/2007) 21 A resposta que se tem diante da exaustão a que o homem expõe o meio ambiente revela-se na intensificação da pobreza da população, e, sobretudo, na ocorrência de catástrofes naturais, como inundações, secas, abalos, e outras formas de intempérie que se manifestam cada vez mais intensas, cada vez mais devastadoras. Desde a revolução industrial4, o crescimento econômico e o desenvolvimento se mantiveram e prosperaram à custa não apenas da extração sem limites de matérias-primas, mas, sobretudo, da exploração de energia altamente poluente, dando início à época de maior impacto já registrado sobre o meio ambiente. A natureza exibia limites que, em sendo transpostos, colocariam em risco a integridade do sistema, ameaçando a sobrevivência na Terra. Exemplo disso é o efeito estufa, uma das ameaças à manutenção da vida no planeta, e que se origina diretamente da exploração de um dos recursos naturais: queima de combustíveis fósseis. De acordo com Diamond (2205), em praticamente todas as áreas de atuação em que se buscou o “desenvolvimento”, as ações acabaram revelando4 Em 1760 na Inglaterra, implantou-se o uso de máquinas em grande escala, substituindo a produção manufatureira pela maquinofatura. Esse evento marca o início da primeira fase da Revolução Industrial que teve profunda influência sobre a economia mundial, ocasionando significativas mudanças sociais, políticas e culturais para o homem contemporâneo. Graças à Revolução Industrial, o capitalismo da Época Moderna pôde amadurecer e constituir-se num sistema econômico, suplantando definitivamente os vestígios do feudalismo. A primeira fase da Revolução Industrial estendeu-se até 1850; nesse período a Inglaterra liderou o processo de industrialização. O desenvolvimento técnico-científico, que programou a modernização econômica, foi significativo; surgiram então as primeiras máquinas feitas de ferro que utilizam o vapor como força motriz. Por outro lado, a existência de um amplo mercado consumidor para artigos industrializados - América, Ásia e Europa - estimulava a mecanização da produção. A segunda fase da Revolução Industrial iniciou-se em 1850. Foi quando o processo de industrialização entrou num ritmo acelerado, envolvendo os mais diversos setores da economia, com a difusão do uso do aço, a descoberta de novas fontes energéticas, como a eletricidade e o petróleo, e a modernização do sistema de comunicações. Outro acontecimento de grande importância dessa fase foi a efetiva difusão da Revolução Industrial. Em pouco tempo, espalhouse por todo o continente europeu e pelo resto do mundo, atingindo a Bélgica, a França, a Itália, a Alemanha, a Rússia, os Estados Unidos, o Japão, etc. (Azevedo, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1999). 22 se agressivas ao meio natural, quer por danos que desencadeiam processos de desertificação, em que o solo se torna árido e improdutivo, diante do desflorestamento, da sobrepastagem, quer por outras formas de agressão que comprometem o solo causando a erosão e, consequentemente, ocasionando a extinção de espécies vegetais e animais, a redução da biodiversidade e dos ecossistemas do planeta. Tais ações produziram danos irreversíveis ao meio em tal proporção que ultrapassaram fronteiras, ganhando dimensões em escala global. Neste viés, o relatório demonstra que tais riscos, avolumados pela incomensurável e cotidiana agressão, aumentaram desproporcionalmente a capacidade de o homem administrar tal situação. Porém a maior ameaça ao meio ambiente, na ocasião da publicação do Relatório, sinalizou para a possibilidade de uma guerra nuclear, pois muitos países empenhavam-se em uma corrida armamentista que já ganhara contornos de exploração espacial. A preocupação central do trabalho convergiu, assim, para o meio ambiente, mas também o desenvolvimento econômico mostrou-se extremamente preocupante. Tal preocupação foi sentida mais intensamente nos anos 1980, época em que se registrou a estagnação do comércio mundial, e regiões como África e América Latina sofreram sobremaneira com a crise econômica. Meio ambiente e desenvolvimento não constituem desafios isolados, uma vez que se estabelece um inter-relacionamento inegável entre ambos. Ausentes os recursos ambientais, simplesmente não se mantém o desenvolvimento. Por outro lado, se o crescimento buscou avanços, desprezando, ignorando a preservação ambiental, o meio ambiente, desprotegido, evidenciou visíveis sinais de perecimento. Observa-se, então, um sistema complexo de causa-efeito, no qual o desenvolvimento merece tratamento de forma associada com a preservação do meio ambiente. As políticas ambientais equivocadas devem ser revistas e avaliadas sob novo tratamento, conclui a equipe de Brundtland, recebendo uma abordagem de maneira globalizada, em que as nações elejam a meta de um desenvolvimento que integre a produção aliada à conservação e à ampliação dos recursos, vinculando-as à garantia não apenas de uma base adequada de subsistência, mas também, e, sobretudo, de um acesso equitativo aos recursos que garantam o “desenvolvimento sustentável”. 23 Reconhece-se, agora, o desenvolvimento sustentável como aquele que atende às necessidades do presente sem que comprometa os recursos disponíveis para as gerações futuras proverem as próprias necessidades, porém deve ser considerado ainda que as necessidades essenciais dos povos menos favorecidos devem ser supridas; caso tudo se processe harmonicamente, em contrapartida, esforços convergirão todos, sem distinção, irmanados pelo mesmo fim de preservação para atenuar o impacto ao meio ambiente que os avanços da tecnologia e da organização social colocariam em risco, atingindo não só as necessidades futuras, mas também as presentes. Com um amparo legal à educação e ao desenvolvimento das instituições seria possível iniciar uma conscientização para que as pessoas passassem a exercitar seu pensar e seu agir norteados para ações que preservassem o desenvolvimento sustentável. Importante seria trabalhar por uma quebra do paradigma que se cultiva a respeito de transgressão: “uma transgressão solitária é inofensiva”, como uma lata de refrigerante que eu jogo na rua, porque ações solitárias “inofensivas”, a minha, a sua, transformam-se no “nosso” espantoso quantitativo de agressões ao meio; na verdade, ainda não se formou a consciência nas pessoas, que não entendem por que o planeta entra em convulsão: é justamente o somatório descomunal de agressões individuais, ao lado das agressões coletivas, que resultam no que se vê: um clima adverso e intempéries arrasadoras. Faz-se necessário desviar o olhar para a educação ambiental enquanto se discute os caminhos para o desenvolvimento sustentável, a fim de iniciar um movimento de resgate da percepção de que cada pessoa, cada ser vivo, faz parte de um todo interligado e interdependente onde as palavras de Leonardo Boff (2000, p. 91) tão bem direcionam, “cuidado significa, então, desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Estamos diante de uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude”. Não só a educação, mas também medidas precisas que atenuem o imenso abismo na distribuição de renda e na disputa pelo poder político, em outras 24 acepções, os países, sem distinção, disporiam de melhores condições se cada um considerasse os efeitos de suas ações sobre os demais. Importante destacar que o impacto ambiental não respeita limites nem fronteiras, não se produz limitado a áreas de uma dada jurisdição política, e quando um sistema se aproxima de seus limites ecológicos, as desigualdades se acentuam. A dificuldade de se promover o interesse comum no desenvolvimento sustentável encontra-se no fato de não se ter buscado adequadamente a justiça nem a econômica nem a social, tampouco a ambiental, não apenas circunscrito a um país, mas também entre países. O Relatório declarou que intercâmbios econômicos internacionais beneficiariam todas as partes envolvidas, porém, para isso seria necessário que, em momento anterior, fossem atendidas duas condições: a manutenção dos ecossistemas dos quais dependia a economia global fosse garantida, e os parceiros econômicos estivessem convencidos de que o intercâmbio se processaria em bases justas. Um novo impulso ao crescimento econômico teria como pré-requisito uma administração econômica eficiente e coordenada pelos principais países industrializados. Tal administração visaria facilitar a expansão, reduzir as taxas reais de juros e deter o avanço do protecionismo. Assim, em um mundo cada vez mais poluído e com recursos cada vez mais escassos, o crescimento econômico deveria promover práticas que preservassem e expandissem a base dos recursos ambientais, e, ao mesmo tempo, centralizasse uma atuação responsável e séria na mitigação da pobreza que vem se intensificando significativamente no mundo. Por outro lado, ações políticas que contemplassem uma administração criteriosa dos recursos ambientais em progressão continuada a fim de se preservar a sobrevivência do homem na Terra mostraram-se não só necessárias, mas urgentes. Tanto a proteção ao meio ambiente quanto o bem-estar das pessoas integra uma parcela das pretensões para a promoção do desenvolvimento de um país; fomentar o desenvolvimento econômico sem levar em conta o meio ambiente é medida temerária e a resposta que a natureza tem oferecido em todos os pontos da Terra trazem a constatação ditada pela teoria que afirma que, para toda ação, uma reação se consuma. Não é mais uma aproximação clássica e ecológica na qual a natureza deveria ser 25 preservada para o bem da saúde, agora o homem é visto como parte da figura global e deve agir para o bem da Terra para preservar-se a si próprio. Portanto, ciência, tecnologia e investimentos devem servir às três áreas: ao meio ambiente, à economia e ao homem como ser social. A sobrevivência e o bem-estar da humanidade dependeriam do sucesso de uma ética global para o desenvolvimento sustentável através de ações de todas as nações em harmonia, que alimentariam a meta de qualidade de vida no curto, médio e no longo prazo. Toda nação, rica e pobre, deveria imbuir-se da responsabilidade que individualmente lhe cabe, de assegurar a paz, mudar tendências e corrigir o sistema econômico internacional que intensifica as desigualdades e os problemas ambientais. As mudanças propostas no Relatório consideravam as dimensões ecológicas, políticas, econômicas, comerciais, energéticas, agrícolas e indústrias nos níveis nacional, regional e internacional, as quais se inter-relacionam e abrangem formas de se descobrir a origem dos problemas, de lidar com os correspondentes efeitos, de avaliar os riscos globais e de fazer opções com base segura para fornecer meios legais e investir no futuro. Em busca de respostas às indagações acerca do que efetivamente mudou da década de 1980 até os tempos atuais de maneira positiva, poupando o meio ambiente, refreando o crescimento populacional, produzindo bens de consumo em processos industriais limpos, reduzindo a pobreza, faz-se pertinente retroceder para alguns anos antes do estudo da Comissão Bruntland e relembrar que, anos antes, outros estudos sobre o meio ambiente foram relevantes no cenário mundial, alguns com previsões não tão otimistas como o Nosso Futuro Comum. Em 1968, constituiu-se o Clube de Roma, composto por cientistas, industriais e políticos e tinha como objetivos identificar e discutir os problemas mais críticos do mundo (Meadows, 1972). Os problemas levantados eram a industrialização acelerada, o rápido crescimento demográfico, a escassez de alimentos, o esgotamento de recursos não renováveis e a deterioração do meio ambiente. O Clube de Roma, com uma visão “ecocêntrica”, elegeu como o grande problema a pressão da população sobre o meio ambiente. Progredindo os 26 estudos neste viés, o grupo de pesquisadores liderado por Dennis L. Meadows publicou em 1972 o estudo intitulado Os Limites do Crescimento. O estudo projetou cem anos – sem considerar questões como progresso tecnológico ou a descoberta de novos materiais – apontando que, para atingir a estabilidade econômica e respeitar a finitude dos recursos naturais, seria necessário congelar o crescimento da população global e do capital industrial. A tese do Crescimento Zero, como foi chamada, era um ataque direto às teorias de crescimento econômico contínuo. Surgiram, imediatamente, diversas críticas à tese de Meadows, principalmente pelo caráter neomalthusiano quando apontava a variável crescimento populacional nos países do então chamado Terceiro Mundo (BARBIERI, 2004) como um impulsionador da crise ambiental global. Teóricos economistas de países em franco desenvolvimento, que defendiam o crescimento, criticaram com veemência os prognósticos catastróficos do Clube de Roma, mas também intelectuais de países subdesenvolvidos se manifestaram de forma negativa, alegando que as sociedades ocidentais, depois de um século de crescimento industrial acelerado, defendiam o congelamento do crescimento escorados na retórica ecologista, o que atingia de forma direta os países pobres, que tendiam a continuarem pobres. No mesmo ano da publicação de Os Limites do Crescimento, 1972, aconteceu em Estocolmo a conferência da ONU sobre o ambiente humano, conhecida como Conferência de Estocolmo, cujos produtos são a Declaração sobre o Ambiente Humano e o Plano de Ação Mundial, com o objetivo de orientar todas as nações sobre a preservação e melhoria do ambiente humano. As grandes preocupações, dentre elas a poluição e a questão da chuva ácida na Europa, levaram a Conferência de Estocolmo à reflexão, de forma mais ampla, das questões políticas, sociais e econômicas envolvidas, "onde as recomendações passaram a ser mais realistas e mais próximas da vida e da qualidade da vida humana" (Maimon, 1992, p.21). Como resultado deste evento, foi criado o PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, encarregado de monitorar o avanço dos problemas ambientais no mundo. 27 Em suma, Nosso Futuro Comum, Os Limites do Crescimento, a Conferência de Estocolmo e todos os movimentos que deram continuidade ao debate global acerca das questões ambientais, como a Rio 92, trataram e ainda tratam da urgência da consciência e do compromisso com a prática da sustentabilidade, pela integração entre as organizações e a sociedade, a erradicação da pobreza e a produção da riqueza financeira de maneira mais igualitária, enfatizando a importância do diálogo entre os saberes e dos debates interdisciplinares. 2.2 Do sucesso da industrialização à sociedade de risco A degradação do meio ambiente, a destruição da camada de ozônio5, o efeito estufa, a escassez de recursos naturais, a poluição generalizada, todos esses temas se propagam e se tornam populares, superficialmente acessíveis a todas as camadas da população, porém essa percepção, apesar de tardia, ainda não despertou uma reflexão mais profunda de que esses problemas tão atuais e tão preocupantes resultam de um processo de modernização marcado pela industrialização. A passagem da era agrícola para a industrial, e desta para a era da informação marca-se fundamentalmente impulsionada pelas novas formas e sistemas de geração de riqueza. A utilização da energia elétrica e dos combustíveis fósseis relaciona-se intrinsecamente às mais importantes mudanças da forma de produção de riqueza, porém todas essas mudanças produziram ainda mais intensamente impactos sociais, culturais, políticos, filosóficos, institucionais. Com a publicação da obra Risk Society (em alemão em 1986 e editado em inglês em 1992), Ulrich Beck recebe maior destaque dentre os teóricos sociais. A tese central de Beck nesse livro é que a modernidade pós-industrialização caracteriza-se pela produção extrema e má distribuição de bens, chegando à 5 A camada de ozônio ou ozonosfera é uma "capa" de gás que envolve a Terra, protegendo-a de várias radiações, sendo a principal delas a ultravioleta. Com o aumento da demanda de produtos que emitem clorofluorcarbono – como os refrigeradores, que é um gás que ao atingir a camada de ozônio destrói suas moléculas (O3), os chamados “buracos na camada de ozônio” têm aumentado progressivamente, permitindo uma maior incidência de raios ultravioletas na atmosfera terrestre. (TOLENTINO, M., ROCHA-FILHO, R.C. e SILVA, R.R. da. O azul do planeta. São Paulo: Moderna, 1995) 28 denominada “sociedade de risco”, na qual a distribuição dos riscos não corresponde às diferenças sociais, econômicas e geográficas do que ele chama de primeira modernidade. Tanto o desenvolvimento científico quanto o tecnológico não mais poderiam prever nem controlar os riscos que, decididamente, foram criados pela própria ciência e tecnologia e que geram graves consequências no que tange à saúde humana e ao meio ambiente, desconhecidas – ou ignoradas – no longo prazo, mas que, ao chegarem em situação de ameaças explícitas, tendem a se mostrar irreversíveis. Beck (2000, p.19) afirma que: "Na modernidade avançada, a produção social de riqueza é sistematicamente acompanhada pela produção social de riscos". Riscos que se materializam nas ações de diferentes atores, sejam eles do campo político, social, científico, tecnológico. Ameaças não previstas, ocultas nos meandros de uma sociedade industrial, expõem a população e o meio ambiente a contaminações e degradações nunca antes observadas. Uma vez que o processo de industrialização apresenta-se de forma indissociável do processo de produção de riscos, parece inevitável o surgimento do que, conceitualmente, podemos chamar de sociedade de risco. De fato, a geração de bens e de riquezas se consuma trazendo em sua esteira os riscos decorrentes da industrialização e do desenvolvimento de novas tecnologias. O que se esperava era que a ciência e a tecnologia, na modernidade clássica, pudessem oferecer certezas de que tais riscos seriam monitorados e controlados eficientemente, alimentava-se a suposição de que estariam restritos a contextos muito bem delimitados, e, mesmo que chegassem à coletividade, seriam produtos do desenvolvimento de novas tecnologias, portanto, também, de certa maneira, controlados. Na sociedade de risco, os riscos ultrapassariam os limites temporal e territorial, e surgiriam como produtos dos excessos da produção industrial (CASTIEL, 2001). Logo, o que se pensava poder obter da tecnologia, ou seja, as certezas com relação aos riscos graças à ampliação e domínio do conhecimento, não se concretizaram, muito pelo contrário, contribuíram para ampliar o universo das incertezas. 29 2.2.1 Modernização reflexiva em uma sociedade de risco Para Beck (1997), assim como para Giddens e Lash, não existe um marco histórico que quebre o conceito de modernidade e justifique, por essa razão, um novo conceito, o da pós-modernidade e, em tal discussão surge a teoria da modernização reflexiva, em que se preserva a modernidade, porém as transformações sociais remetem a um outro momento, sob um panorama ostentando novas configurações. Contrapondo-se aos teóricos que defendem a pós-modernidade, Beck (1997) acredita na existência de uma coesão social ao invés do caos e da fragmentação. Por mais que não se reconheça que ao longo do tempo a coesão social se modifique, a situação continua presente nas diversas fases da modernidade. Uma importante fase da modernidade operou até a década de 1980, período em que sociedade e Estado muitas vezes apresentavam conceitos equivalentes, uma vez que toda a sociedade era formatada como estados contêineres que proporcionavam coesão e proteção aos seus integrantes, tornando-se fonte de referência. A divisão entre as classes trabalhadoras e produtoras traçava-se nítida e se organizavam desta forma para sustentar a lógica da produção industrial. Beck (1997) chamou esta fase de primeira modernidade na qual a configuração da delimitação territorial do Estado-nação determinava o limite de alcance das respectivas ações. A primeira modernidade foi marcada por pautas coletivas de vida, progresso, controle, pleno emprego e exploração da natureza. Porém, a partir da metade da mesma década, em meio a crises, revoluções e rupturas, surge um novo momento da modernidade no qual a contínua busca da aceleração do desenvolvimento da sociedade logra romper as características de quase fusão de sociedade/Estado em decorrência mesmo do enfraquecimento estatal pelo aperfeiçoamento dos processos industriais e ações globalizadas, que obriga esse Estado a associar-se, ou, de certa forma, a globalizar-se; consequentemente, repita-se, enfraquece o papel de Estado protetor, enfraquece a posição de referência, e a crise se estabelece. Essa fase é definida por Beck como a segunda modernidade. A globalização, a individualização, a revolução dos gêneros, o subemprego e os riscos globais, processos intrinsecamente relacionados, sintetizam os desafios 30 que a sociedade da segunda modernidade enfrentará. Esses cinco processos, se analisados mais atentamente, apresentam-se como consequência inesperada do sucesso da primeira modernidade, em que a busca pela modernização era simples, linear e industrial, baseada no Estado-nação. Na fase da segunda modernidade, a sociedade torna-se mais consciente e passa a compreender com um pouco mais de clareza os resultados e os efeitos colaterais que vão surgindo ao longo do processo de modernização. Certamente que, em muitos aspectos, os resultados foram positivos e, de certa forma, mudaram consistentemente a maneira de viver dessa sociedade, ao oferecer progresso de ordem econômica, científica ou tecnológica, frutos da primeira modernidade. Esses resultados serviriam ainda para oportunizar a sociedade a conhecer melhor o mundo em que habita e, com isso, criar uma forma melhor de viver. Infelizmente, o outro lado dessa moeda denunciou que nem todos os resultados foram positivos: uma pequena parcela da população alcançou essa forma melhor de viver e ocorreram também os indesejáveis efeitos colaterais. Ao se atentar para os riscos e para as ameaças, percebe-se também que o Estado fragilizou-se; um novo tipo de capitalismo se configura, no qual se instala um tipo de economia ainda não conhecido, e, também, um novo tipo de sociedade se desenha. Surge, assim, a sociedade de risco global, cujo maior desafio é identificar como esta sociedade se relacionará com as diferentes manifestações de modernidade de outras partes deste mundo sem fronteiras. O enfraquecimento dos Estados, a desorientação social, a percepção dos riscos gerados pelo desenvolvimento globalizado e a emergência de um sentimento de humanidade são, para Beck (1997), os principais fatores que evidenciam uma quebra dos paradigmas até então vigentes, e uma sociedade moderna inaugura o conceito de desenvolvimento conhecido como a segunda modernidade. A sociedade contemporânea pode ser entendida com mais clareza sob a ótica do conceito de sociedade de risco: uma sociedade que toma consciência da urgência de novas formas de cooperação e de entendimento mundiais para o controle dos riscos oriundos do seu próprio desenvolvimento, como defende Beck (1997), ao reforçar o conceito de modernidade reflexiva, em que se instala um 31 constante confronto e interação entre os velhos temas da modernidade – organização capitalista, produção e consumo, conflitos sociais – e os novos riscos a ameaçar a humanidade – destruição do meio ambiente, catástrofes nucleares, contaminação. Em suma, a modernidade cotidiana atingiu um estado de supramodernidade e, com isso, torna-se possível trabalhar a realidade com um discernimento mais aguçado. Percebe-se a modernidade criticando a modernidade, raciocinando sobre si mesma e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma capacidade de exercitar também retrospectivamente tal reflexão. Os modelos de desenvolvimento das sociedades modernas criaram problemas e impasses fundamentais de tal gravidade que questionam qualquer movimento que preserve princípios semelhantes. Este é o conceito de modernização reflexiva, determinando significativas mudanças sociais. Mudanças que descortinam o real nível de insegurança, de periculosidade, culminando, enfim, na sociedade de risco, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais extrapolam as próprias instituições e imiscuem-se na sociedade globalizada. O problema do risco tecnológico ambiental se instala. O desenvolvimento tecnológico cria um paradoxo de descomunais dimensões, uma vez que, ao mesmo tempo em que propicia uma melhor forma de viver e de produzir, gera ameaças para a sociedade. Além da produção de riquezas e da criação de melhores condições de vida, a tecnologia insere conhecimentos indispensavelmente fundamentais à vida contemporânea, porém essa mesma ferramenta que oferece tão valiosos benefícios dissemina problemas de forma global, ou seja, ao mesmo tempo em que confere ao desenvolvimento tecnológico o status de motor do desenvolvimento econômico, aprofunda muito mais intensamente o abismo que separa as sociedades ricas das mais pobres. Em tempos de globalização, cumpre esclarecer o que se entende como globalização de risco. Infelizmente não se traduz como igualdade global que a todos atinja em proporções equivalentes porque, conforme reza a primeira lei dos riscos ambientais, a contaminação atinge muito mais cruamente os mais pobres. O desenvolvimento tecnológico envolve indiscutivelmente uma dimensão de risco para a humanidade, e os aspectos tecnológicos são enfatizados por Beck 32 que destaca certos riscos como riscos à vida, explicando-os não apenas como aqueles gerados pelo desenvolvimento da indústria bélica e seu elevado poder destrutivo, mas, também, pela destruição ecológica como resultado da infraestrutura das indústrias de tecnologia e da extração de materiais do meio ambiente pelas mesmas indústrias tecnológicas e, por fim, pelos riscos de exclusão social que o desenvolvimento de novas tecnologias da informação pode criar. Neste viés, é possível perceber que quando se fala em sucata tecnológica, os riscos são inumeráveis: riscos ambientais pela extração de matéria-prima para a cadeia produtiva, riscos à saúde e à vida humana quando populações pobres e sem qualquer conhecimento prévio tentam desagregar componentes valiosos de componentes tóxicos e perigosos que compõe equipamentos eletrônicos, por exemplo. Pela ótica ambiental, o homem exercita uma reflexão perigosamente tardia em relação às formas de produzir e de comercializar bens e serviços, já que força o ecossistema a uma transformação irreversível do seu ponto de equilíbrio. Neste novo ponto de equilíbrio, toda a atual organização social ruiria por incompatibilidade com o conjunto de recursos naturais e limites de temperatura, quantidade de chuvas e nível dos oceanos, que seriam regulares após as transformações. O volume de detritos que a tecnologia despeja no ecossistema não encontra precedentes na história humana e nos remete a uma dura crítica aos modelos econômicos e às bases tecnológicas da produção, além de, pela primeira vez, questionar os “modelos de vida” que durante décadas serviram de exemplo de modernidade e de desenvolvimento, mas que hoje se mostram ineficientes, alvos de críticas consistentes tanto pelo consumismo desenfreado, que gera custos exorbitantemente elevados, quanto pelos privilégios que apenas a uma ínfima parte da população contempla. A geração de energia bem como a produção e a distribuição dos bens e de serviços que garantem formas de organização e vida das sociedades humanas devem ser harmonizadas com a dinâmica dos ecossistemas. A questão do conhecimento sobre essa dinâmica e também sobre os seus limites pode contribuir para tornar sustentável a preservação da existência humana na Terra. 33 Todo o conjunto de conhecimentos científicos e tecnológicos disponíveis transmuda-se, então, em um instrumento de proteção e de manutenção da qualidade de vida para que as gerações futuras também desfrutem um nível de qualidade de vida compatível com as necessidades; no entanto, toda uma sociedade, incentivada pelo “jeito americano de viver” trabalhou arduamente pela conquista da tecnologia e pelo conhecimento que se acumulou, gerando uma aceleração do desenvolvimento e, paralelamente, ao invés da manutenção das condições de vida mais aprazíveis para as gerações futuras, produziu exatamente uma situação que descambou para o extremo oposto: aumentou os riscos. É a criatura se voltando contra o criador, ou seja, resultados desconhecidos e totalmente inesperados agora atingem não só a população mais pobre, mas extrapola as fronteiras das nações subdesenvolvidas e chega à casa da sociedade consumista, que começa a se preocupar com os excessos que perpetrou até agora irrefletida e irresponsavelmente. Patrick Lagadec, em seu estudo intitulado A civilização do risco, de 1981, alerta para a ocorrência de catástrofes tecnológicas e responsabilidade social, evidenciando a evolução desfavorável de uma série de fatores que determinaram um progressivo aumento do nível de risco tecnológico. Faltou às unidades de produção de bens e de serviços e dos governos a prática regular de canalizar investimentos específicos para o gerenciamento dos riscos tecnológicos implícitos em seu cotidiano. Os resultados dos estudos relatam ainda catástrofes tecnológicas ocorridas nas décadas de 1970 e 1980 (Tabela 1) que geraram um grande temor na população. Data Local Equipamento Substância Evento Jun/1974 Fixborough – UK Unidade de processo Ciclohexano Explosão Nov/1975 Beek – Holanda Planta petroquímica Propeno Explosão Ago/1979 Three Mile Island – USA Central nuclear Subst. radioativas Fusão do reator Abr/1984 Crernobil – URSS Central nuclear Subst. radioativas Explosão e incêncio no reator Nov/1984 Cidade do México – México Terminal de estocagem de gás liquefeito de petróleo (GLP) Propano + butano Explosão e incêndio Dez/1984 Bhopal – Índia Unidade de processo Isocianato de metila Vazamento de gás tóxico Fonte: Lees, Frank P. Loss prevention in process industries: hazard identification, assessment and control (1996) 34 Tabela 1. Acidentes Ambientais e Sociais Talvez o pior acidente industrial da história da humanidade tenha sido a tragédia de Bhopal6, ocorrida na madrugada de 3 de dezembro de 1984, quando 40 toneladas de gases tóxicos, como o isocianato de metila e o hidrocianeto, gases fatais, vazaram na fábrica de pesticidas da empresa norte-americana Union Carbide. Mais de 500 mil pessoas, a sua maioria trabalhadores, foram expostas aos gases e duas mil morreram imediatamente, sendo que pelo menos 27 mil vieram a óbito ao longo dos anos. Cerca de 150 mil pessoas ainda sofrem com os efeitos do acidente e aproximadamente 50 mil pessoas estão incapacitadas para o trabalho por problemas de saúde. As crianças que nascem na região, filhas de pessoas contaminadas pelos gases, também apresentam problemas de saúde. Apesar desse quadro, a fábrica da Union Carbide em Bhopal permanece impunemente abandonada desde a explosão tóxica, enquanto resíduos de elevado grau de periculosidade e materiais contaminados ainda restam espalhados pela área, contaminando solo e águas subterrâneas, dentro e ao redor da indústria. Estudos deste caso levantam a hipótese de que o desastre poderia ter sido evitado se os sistemas de segurança da fábrica fossem adequados (DUARTE, 2005). No Brasil, a preocupação com os riscos ambientais e ameaças à população ganhou ênfase em 1984, com o acidente ocorrido pelo rompimento de um duto de gasolina seguido de incêndio em Cubatão7 (SP), deixando mais de 400 feridos e 93 vitimas fatais. A partir daí, iniciou-se um processo de conscientização sobre o elevado grau de risco do Pólo Petroquímico de Cubatão, pela constante incidência de casos de deslizamento nas encostas da Serra do Mar, capazes de ocasionar a liberação de produtos tóxicos e inflamáveis, tornando-se uma ameaça constante para população local (CETESB, 2001). 6 Bhopal é a capital do estado de Madhya Pradeshdia. Tem cerca de 1541 mil habitantes. Foi fundada em 1728 para capital do antigo principado do Bhopal. 7 Cubatão é um município do estado de São Paulo, na região metropolitana da baixada santista, microrregião de Santos. A população é de aproximadamente 130mil habitantes. Com um grande parque industrial, Cubatão ficou nacionalmente conhecida pela ameaça constante da poluição. Contudo, após uma forte aliança entre indústrias, comunidade e governo, a cidade passou a controlar 92% das suas fontes poluidoras e, em 1992, recebeu da ONU o título de "Cidade Símbolo da Recuperação Ambiental". 35 Em setembro de 1987, em Goiânia (GO), ocorreu um sério acidente radiativo. No desastre foram contaminadas centenas de pessoas pela radiação emitida por uma cápsula que continha césio-137 (CHAVES, 1991). Foi o maior acidente radioativo do Brasil e o maior do mundo ocorrido fora de usinas nucleares. Foi um caso de imprudência por parte de um instituto de radioterapia que abandonou um aparelho radioterápico em desuso em suas antigas instalações. Catadores de lixo acabaram encontrando o referido aparelho, que foi removido com a ajuda de um carrinho de mão e levado para a casa de um desses catadores, a fim de desmontá-lo para revender as peças de metal e chumbo em ferros-velhos. Certamente ignoravam a existência de letal carga contida naquela máquina e a desmontagem expôs ao ambiente 19,26 g de cloreto de césio-137 (CsCl) que os atingiu. Cerca de um mês após o acidente, quatro pessoas vieram a óbito e cerca de 400 pessoas ficaram contaminadas. O trabalho de descontaminação dos locais atingidos gerou 13,4 toneladas de lixo (roupas, utensílios, materiais de construção), contaminados com o césio-137, que foi armazenado em 1.200 caixas, 2.900 tambores e 14 contêineres, em um depósito construído na cidade de Abadia de Goiás (GO), local em que deve permanecer por aproximadamente 180 anos. Após o acidente, mais 60 pessoas contaminadas morreram, entre eles funcionários que realizaram a limpeza do local. O Ministério Público reconhece apenas 628 vítimas contaminadas diretamente, mas a Associação de Vítimas contaminadas do Césio-137 calcula que esse número seja superior a 6 mil pessoas. Diferentemente do caso Bhopal, em que a Union Carbide permanece impune até a presente data, em 1996 a justiça brasileira julgou e condenou por homicídio culposo os sócios do Instituto de Radioterapia (Brasil Escola), responsáveis pelo aparelho tão irresponsavelmente abandonado. 36 O mais recente acidente tecnológico ocorrido no Brasil foi a explosão na base de lançamento de foguetes denominada Barreira do Inferno8, em Parnamirim (RN), em agosto de 2003. Houve a explosão do foguete, a plataforma inteira ruiu, e 21 engenheiros e técnicos morreram carbonizados por 41 toneladas de um combustível sólido que alcança temperaturas de até 3 mil graus centígrados. O motivo da explosão tem como hipótese mais provável a ignição prematura de um dos quatro motores de propulsão sólida do primeiro estágio do VLS (veículo lançador de satélites), o que teria propagado o fogo para toda a plataforma de lançamento (NOGUEIRA, 2003). Entretanto, independentemente da gravidade do risco, é necessário considerar que um acidente pode provocar, em questão de horas apenas, um impacto que em operação regular não ocorreria em toda a vida útil de uma instalação, seja de uma indústria, seja de um aparelho. Por tal razão, frisa Duarte (2005), a inclusão do tema “risco tecnológico” na pauta de um modelo de desenvolvimento sustentável representa a conscientização para um problema cujas origens históricas nos remetem às modificações introduzidas nas indústrias, principalmente a partir do século XX, quando a economia alterou os padrões de competição; na realidade, quando se incorporam vantagens competitivas, gradativamente tais modificações são adotadas igualmente pelos concorrentes, o que faz baixar a lucratividade do setor e justamente nesse ponto crucial, a balança da ambição pende para a redução de gastos que propiciem aumento dos lucros, imponderável se acusa em tal balança o fator que deveria mais peso oferecer: a segurança das instalações e dos processos. 8 Criado no dia 12 de outubro de 1965, o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI) está situado no município de Parnamirim (RN). A localização do Centro obedeceu a requisitos como proximidade com o equador magnético (linha situada a meia distância entre os pólos magnéticos norte e sul), suporte logístico já existente, baixo índice pluviométrico, proximidade de uma área de grande impacto (oceano) e condições de ventos favoráveis. A área é denominada Barreira do Inferno devido a falésias vermelhas que, iluminadas pelos raios solares ao amanhecer, assemelhavam-se, para os antigos pescadores, a labaredas de fogo (http://www.clbi.cta.br). 37 Pascal9 (1623-1662), ao assumir que o presente decorre em continuidade do passado, idealizou uma forma de se antever o futuro analisando o comportamento dos atores até o momento do corte e, mantendo-se as condições até dado momento, projetar o desenrolar dos fatos baseado em tais ações. O cálculo de probabilidades, elaborado por Pascal no século XVII, é bastante importante para a compreensão dos procedimentos de quantificação de riscos adotados pela ciência da análise de riscos utilizada na atualidade (BERNSTEIN,1997). A fim de se isolarem as ameaças mediante controle das instalações industriais, os riscos deveriam ser estudados ainda em fase de projeto (DUARTE, 2005). Seria possível, assim, detectarem-se, identificarem-se não apenas os tipos, mas também o potencial impacto dos acidentes, tornando possível prover os meios para melhor controlar as causas e também as consequências. Para as instalações projetadas sem que tais critérios técnicos tenham sido observados, é indispensável que, mediante levantamento e identificação de riscos, seja ativado um controle para que continuem operando dentro de padrões aceitáveis. Impõe-se, então, diferenciar risco de ameaça. Giddens (1997, p.42) entende que “ameaça e risco estão intrinsecamente ligados, mas não são a mesma coisa”. A diferença não reside no fato de um indivíduo avaliar conscientemente ou não alternativas para propor ou para assumir uma linha de ação específica. “O que o risco pressupõe é precisamente a ameaça (não necessariamente a consciência do perigo)” afirma Giddens (1997, p.42). Uma pessoa que arrisca algo, “brinca” com o perigo, e, em tal situação, “o perigo é compreendido como uma ameaça aos resultados desejados”. Sendo assim, qualquer pessoa que assuma um “risco calculado” está consciente das ameaças envolvidas na situação específica. No entanto, conclui o autor, é possível assumir ações ou sujeitar-se a situações sem que esteja consciente do quanto está arriscando. Quando isso ocorre, a pessoa está inconsciente das ameaças. Daí, ainda segundo Giddens (1997), a relação muda para a esfera que tangencia a confiança ao risco. A confiança atua como remédio que minimiza as ameaças às quais estão sujeitos certos tipos de atividade. 9 Blaise Pascal (Clermont-Ferrand, 19 de Junho de 1623 – Paris, 19 de Agosto de 1662) foi um físico, matemático, filósofo moralista e teólogo francês. 38 Mesmo com todos os recursos da análise de riscos, de cálculos de probabilidades, de legislação ambiental, de consciência ecológica, a sociedade contemporânea atua como uma sociedade órfã de segurança e de garantias e, em tal situação, a proteção empalidece, o que aumenta o perigo. Beck (2002) afirma que não existe instituição preparada para o pior acidente imaginável, como tampouco existe ordem social que garanta constituição social e política no pior caso possível. Porém muitos especialistas consideram a única possibilidade restante: negar a existência dos perigos. Segundo Beck (2002), as medidas preventivas que garantem a segurança são substituídas pelo dogma da infalibilidade tecnológica, que acabará refutada por ocasião de um novo acidente. Na linha de frente, em termos de ameaça, destaca-se a indústria química, que manipula milhares de produtos, multiplica os riscos e pouco se propõe para o controle ambiental e para a minimização dos perigos, protegida por uma legislação branda e ineficiente (DEMAJOROVIC, 2003). Para limitar os níveis aceitáveis de risco em uma sociedade, inquestionável se impõe a necessidade de intervenção por autoridade pública, por meio de poderes constituídos. Ao Poder Legislativo caberia criar um conjunto de leis que definisse os limites de interferência dos agentes públicos e privados ao operar e manter atividades de risco. As leis, além de definir os procedimentos necessários para o funcionamento das instalações, deveriam ainda prever penalidades e sanções a serem aplicadas quando do descumprimento da lei (DUARTE, 2005). Ao Poder Executivo caberia a fiscalização e o controle das permissões. Esse trabalho exigiria uma equipe técnica qualificada em relação à pesquisa e à análise de risco e de consequências, além de recursos materiais e financeiros mantidos pelo governo e ao Poder Judiciário se faz imperiosa a criação de varas especializadas nos Tribunais de Justiça para processo e julgamento de matéria ambiental O que realmente se constata é que as imediações dos locais em que se instalam as indústrias que operam sob condições de risco, tradicionalmente apresentam menor valor para o solo. O baixo preço dos terrenos atrai um movimento de famílias de baixíssima renda, situação que predispõe rapidamente à formação de uma periferia congestionada que intensifica as condições de risco. 39 Observa-se, em alguns casos, que a ocupação invade espaços já direta e potencialmente expostos a sofrer acidentes. Notadamente o risco em uma determinada sociedade varia conforme o contexto histórico ou outra situação particular. Por exemplo, os movimentos de retomada de desenvolvimento intensificam os riscos tecnológicos ambientais. Atualmente esse fenômeno em particular merece especial atenção, uma vez que praticamente todos os países da América do Sul estão empenhados no aumento de produção e de atividade econômica, alerta Duarte (2005). Todo processo de aumento da atividade industrial com objetivo de estimular a economia é composto por algumas etapas. Assim que a economia apresente algum aquecimento, a indústria aumenta a produção a fim de atender ao mercado demandante. Primeiramente, este aumento de produção é obtido apenas pela capacidade já instalada, mas que estivera ociosa por falta de demanda. Ora, quando a economia vai mal, funcionários são dispensados e máquinas paradas. Logo, um benefício social altamente desejável na retomada da produção industrial é a geração de empregos e manutenção dos postos já ocupados. Por outro lado, a contratação de novos empregados com nível de experiência variado, e que entram para a produção sob pressão da demanda, aumenta proporcionalmente os riscos. Conclui-se, dessa forma, que países chamados emergentes, como é o caso do Brasil, estabelecem uma agenda mínima para a redução do risco tecnológico nessa fase de aquecimento da economia. A iniciativa preventiva é muitas vezes simples e suficiente para garantir que esses países desenvolvam-se plenamente, passando a gerar riquezas para sua população valendo-se de seus próprios esforços, propiciando uma melhor qualidade de vida, ao invés de crescerem à custa de um meio ambiente devastado e uma população vivendo sob constante ameaça. De um ponto de vista sistemático, Beck (2002) distingue duas redes de conflito: a primeira instala-se no confronto entre as indústrias poluidoras e os grupos afetados enfrentando-se mutuamente de forma incisiva. Esta primeira rede, então, transforma-se em uma segunda rede, na qual se acirram os interesses de quem oferece auxílio, e a coalizão encoberta entre poluidores e 40 vítimas começa a desmoronar. Isso acontece quando setores do mundo dos negócios, assim como da inteligência profissional – engenheiros, pesquisadores, advogados, juízes – tentam atuar na função de resgate e auxílio e acabam por vislumbrar na questão ambiental uma forma de construir e expandir o poder e os mercados, o que pressupõe que a sociedade industrial está se tornando uma sociedade com intenções e consciência distorcidas e, consequentemente, uma sociedade de risco. Os desastres mais terríveis são os que se derivam da perseguição, passada ou atual, de soluções racionais. As catástrofes mais horríveis nascem – ou é mais provável que tenham nascido – da guerra contra as catástrofes [...] os perigos crescem com nosso poder, e o poder de que temos mais desejado é o mínimo que permitiria adivinhar sua chegada e avaliar seu alcance. (BAUMAN, 1992, p. 25 apud BECK, 2002, p.135) Enfim, o futuro da Terra, um pobre limitado planeta que abriga não apenas uma humanidade que não para de crescer, mas também ecossistemas praticamente esgotados pelo desolador processo industrialista que tudo devasta, e, ainda, pessoas cada vez mais angustiadas com relação ao futuro do planeta e, consequentemente, com seu próprio futuro, e outras que ainda sonham com o “jeito americano de viver”, trabalhando arduamente para, pura e simplesmente, conseguirem manter-se ativamente, movidos por insaciável desejo de consumo, e todas elas sendo governadas e lideradas por pessoas cujo objetivo real é o poder, o lucro imediato, camuflado em discursos comoventes em prol de um mundo melhor. Paradoxalmente, essa mesma sociedade que parece sem rumo, correndo em todas as direções, é a mesma que, pela primeira vez na longa história da humanidade, adquiriu, buscando o conhecimento científico e o tecnológico, a capacidade de alterar – para o bem e para o mal – o próprio ambiente em que vive, chegando a afetar consideravelmente processos físicos, químicos e biológicos da natureza, sem previsão do resultado disso tudo para a humanidade futura (CÂMARA, 2005). 41 2.3 Desenvolvimento e pobreza Para muitos, o desenvolvimento ainda prevalece como sinônimo apenas de crescimento econômico. Esse conceito limitado de desenvolvimento, associado ao aumento do PNB (Produto Nacional Bruto), cria a ilusão de que o indivíduo, ao conquistar maior renda ou viver em uma comunidade mais industrializada, ampliará o âmbito de sua liberdade. Mas a liberdade substantiva depende de outros determinantes, como o acesso à saúde, ao saneamento básico, à educação e, é claro, ao pleno exercício dos direitos civis. A liberdade de troca e de transação no mercado é ela própria uma parte essencial entre os componentes das liberdades básicas. Segundo reflexões do economista Amartya Kumar Sen10 (2000), que em 1998 recebeu o Prêmio Nobel de Economia, todo indivíduo pode exercer as capacidades que se referem a sua liberdade efetiva de, entre alternativas disponíveis, escolher diferentes tipos de vida. Sen estudou e publicou trabalhos, movido por um profundo desconforto diante das desigualdades sociais; dedicouse, por tal razão, a estudos envolvendo temas como a pobreza, a desigualdade, a fome e a privação de liberdades. Nos moldes da atual sociedade, parece impossível separar liberdade do indivíduo (mundo imaterial, liberdade transcendental), do mundo material (que privilegia apenas as riquezas econômicas) e, muitas vezes, é no enveredar-se por equivocados caminhos que se chega à falsa liberdade material que direciona o movimento e correlaciona vendas e realizações, mercadorias e capacidades, riqueza econômica e a possibilidade de viver como se gostaria (SEN 2000). Porém, o mundo material é praticamente dissociado do mundo imaterial, interligam-se fragilmente por uma ponte, por um tênue fio que conduz à essência discursiva do desenvolvimento e que permite maior liberdade na escolha de vida com qualidade. A reflexão que a idéia sugere norteia para uma visão de desenvolvimento extrapolando o anseio de acumulação material, ou seja, o 10 Nascido em 1933, em Santiniketan, Amartya Sen já lecionou na Delhi School of Economics, London School of Economics, Oxford e Harvard. Reitor de Cambridge, é também um dos fundadores do Instituto Mundial de Pesquisa em Economia do Desenvolvimento (Universidade da ONU). 42 desenvolvimento intrinsecamente relaciona-se com as possibilidades de escolha das “liberdades subjetivas para se deliberar a respeito daquilo que poderemos obter” (SEN 2000, p.27). Para Sen (2000), desenvolvimento consistiria na eliminação das privações de liberdade que impediriam ou que limitariam as escolhas e as oportunidades de as pessoas exercerem sua condição de agente. Seguindo este viés, a pobreza, a escassez de oportunidades econômicas, serviços públicos inexistentes ou ineficientes somados a uma excessiva interferência de estados repressivos afiguram-se, para o autor, fontes de privação da liberdade a serem removidas. “Uma concepção adequada de desenvolvimento deve ir muito além da acumulação de riqueza e do crescimento do produto nacional bruto e de outras variáveis relacionadas à renda. Sem desconsiderar a importância do crescimento econômico, precisamos enxergar muito além dele.” (SEN, 2000, p.28) A ausência de um emprego digno desencadeia na vida de um indivíduo uma situação que gera indefinidamente outras situações nesse círculo vicioso de privações da liberdade. O desemprego exclui socialmente, suprime da pessoa a capacidade de exercer seus direitos e aproxima dele a perda não apenas de autonomia, mas também de saúde física e psicológica. Sen (2000) explora incansavelmente os termos liberdade e capacidade. O primeiro deles começa sendo o principal meio para se atingir o desenvolvimento, enquanto este meio torna-se também o principal fim desse mesmo desenvolvimento. Sendo assim, a liberdade possui seu papel constitutivo, relacionado às capacidades básicas de todo indivíduo, como ser capaz de evitar privações como a fome, como a morte prematura, ou ser capaz de sair do analfabetismo, da saúde precária. Seriam estas algumas das capacidades que o desenvolvimento ampliaria. Por outro lado, exerce um papel instrumental por meio de eventos distintos, porém interrelacionados, como as facilidades econômicas, as liberdades políticas, as oportunidades sociais, as garantias de transparência e segurança protetora. Este conjunto de capacidades contribuiria para o aperfeiçoamento, para o acréscimo de liberdade de escolha que às pessoas legitimamente caberia exercer. Quanto a tal situação, Sen exemplifica (2000, p.95): “Uma pessoa abastada que faz jejum pode ter a mesma realização de funcionamento quanto a comer ou nutrir-se que uma pessoa destituída, forçada a passar fome extrema, mas a 43 primeira pessoa possui um conjunto capacitário diferente da segunda (a primeira pode escolher comer bem e ser bem nutrida de um modo impossível para a segunda)”. Voltando à liberdade de mercado, avalia-se que o mecanismo de alavancagem econômica, como base do desenvolvimento, exibe-se como uma herança antiga e, em muitos casos, pela negação da oportunidade de transação por meio de controles arbitrários, atua como uma fonte de privação de liberdade, pois tolhe as pessoas, elas, assim, são impedidas de atuar como julgam ser de seu direito. Exemplificando com o trabalho de coleta e de venda de materiais recicláveis, esses trabalhadores não conseguem trocar o produto de seu trabalho, mesmo sendo importante do ponto de vista ambiental, social e urbano, pela arbitrariedade de um mercado dominado por cartéis e, por isso, a liberdade de transação desses trabalhadores se anula diante da sujeição que os cartéis lhes impõem, ao ditar os preços das trocas e controlar o mercado. Comparativamente ao termo trabalho adscritício, utilizado para o trabalho da agricultura, e que significa a existência de algum tipo de coação para que uma pessoa viva e trabalhe em determinada propriedade, impedindo-a de oferecer seu trabalho no mercado, é possível dizer que o mercado de recicláveis no Brasil torna o catador um refém do sistema de trabalho adscritício imposto pelo meio, ao lhe tolher alternativas de escolha. O resultado é um trabalho que gera uma renda aviltada. De acordo com a lógica da liberdade do indivíduo, segundo ainda a visão de Sen, é possível concluir que a chave para o desenvolvimento consistiria em apontar alternativas que garantissem condições básicas para a existência; logo, livrando o homem da fome, oferecendo-lhe condições de saúde, de educação e de trabalho, essas mesmas pessoas poderiam tornar-se agentes, e a tais agentes seria possível garantir-se também o direito inalienável de viver dignamente como ser humano, que goza da prerrogativa de livremente caminhar para o próprio desenvolvimento. 44 2.4 Do computador ao lixo tecnológico Considera-se o ábaco como o precursor dos atuais computadores. Não se sabe ao certo quando e onde ele surgiu, mas muitos historiadores acreditam que tenha sido por volta de 4000 a.C. a 3000 a.C., no Oriente. O ábaco é um invento resultante da necessidade de o homem “contar”. A partir de então foram projetadas várias máquinas de calcular, que não obtiveram muito êxito. Com a industrialização e consequente avanço tecnológico, máquinas de calcular mais complexas começam a surgir. Por volta do século XIX, o inglês Charles Babbage projetou a primeira calculadora analítica apta a receber códigos de programação que eram instruções para a realização de cálculos. E foi Ada Lovelace11 quem desenvolveu o primeiro programa para cálculos, tornando-se a precursora da programação de computadores no mundo. Em 1900, com o a idealização do armazenamento de dados em memória magnética, por Waldemar Pulsen, impulsionou-se a chamada Era da Informática (LEITE, 2006). Essa idealização persiste até hoje na estrutura dos computadores. Após a mudança das válvulas para transistores, o computador tornou-se mais compacto, podendo ser utilizado comercialmente. Posteriormente, a invenção do circuito integrado tornou possível à pessoas comuns o seu acesso, chegando aos lares, então, os PCs – personal computers. Desde o advento da memória magnética até hoje, a cada inovação significativa marcou-se uma “geração” da informática. Atualmente estamos na 5ª Geração, na qual a demanda por maior velocidade de processamento, capacidade de armazenamento já supera a medida dos terabytes, manipulação de imagens e sons, processamento simultâneo de tarefas impulsionou o desenvolvimento de computadores mais potentes, menores e com preços compatíveis a uma economia globalizada. 11 Augusta Ada King (Lady Lovelace) nasceu na Inglaterra em 1815 e morreu em 1852. Existe uma linguagem de programação denominada ADA em sua homenagem, que foi desenvolvida e dotada como padrão pelas forças armadas americanas. 45 Tecnologia Exemplos de computadores Geração Período Primeira 1946-54 Válvulas IAS,UNIVAC Segunda 1955-64 transistores memória de núcleo IBM 7094 Terceira 1965-74 circuito integrado IBM S/360, DECPDP-8 1975-90 LSI, CI-VLSI memória de semicondutores (início da miniaturização dos circuitos: chip) IBM-PC Quarta 1991 - ? CI-ULSI processadores paralelos com execução de muitas operações simultâneas Intel Pentium Quinta Fonte: Leite, Mário. Técnicas de programação: uma abordagem moderna. 2006. Tabela 2. Gerações de computadores Basicamente, o computador dispõe de uma montagem particular de unidades de processamento, de transmissão, de memória e de interfaces para entrada e saída de informações (LÉVY, 1999). Essa é a sua base, mas, a partir daí e da evolução de cada um desses conceitos, chega-se nos tempos atuais em que o computador está presente em cada passo da humanidade. Em pouco mais de cinco décadas, essas três unidades básicas foram aperfeiçoadas de forma assustadoramente rápida, fazendo que a aplicação da informática chegasse a todas as áreas do conhecimento humano, em todas as classes sociais e nas mais variadas aplicações: da administração de uma lavanderia à realidade virtual que oferece muito mais que games envolventes, e que permite igualmente à medicina realizar cirurgias oferecendo a um médico, que se encontra distante do local da cirurgia, condições de interagir de forma sensório-motora, por modelos digitais, com outros médicos ou com o paciente, realizando um procedimento menos invasivo e mais preciso. Segundo prevê Pierre Lévy, filósofo da informação que pesquisa as interações entre a internet e a sociedade, em um futuro muito próximo a maioria dos aparelhos comuns de comunicação, como TVs, telefones, copiadoras, disporão, de alguma forma, de interfaces para o mundo digital, e poderão ser interconectados (LÉVY, 1999). Desta forma, o computador deixará de ser um centro para tornar-se um nó, um terminal, um componente de uma rede universal 46 dinâmica, viva. Num sentido mais filosófico, seria possível imaginar um único computador, porém impossível seria definir seus limites, traçar seus contornos. “É um computador cujo centro está em toda parte e a circunferência em lugar algum, um computador hipertextual, disperso, vivo, fervilhante, inacabado: o ciberespaço em si” (LÉVY, 1999, pág.44). O computador evoluiu em sua capacidade de armazenamento de informações, que é cada vez maior, o que possibilita aplicações com acesso em amplitude cada vez maior da informação. Com todos os avanços tecnológicos, foi possível também reduzir significativamente os custos dos equipamentos de informática, permitindo que a aquisição de um microcomputador esteja ao alcance da maior parte das pessoas. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD/2007, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, um a cada cinco lares brasileiros, em 2006, tinha microcomputador. Os dados mostram que o índice de presença do computador ficou em 22,1% das moradias do país em 2006 e 26,6% em 2007, um crescimento de 2,8 pontos percentuais em relação ao levantamento anterior de 2005. HABITAÇÃO Domicílios particulares permanentes 2006 2007 54.610.413 56.344.188 (%) (%) Fogão 97,7 98,1 Geladeira 89,2 90,8 Freezer 16,4 16,3 Máquina de lavar roupa 37,5 39,5 Rádio 87,9 88,1 Televisão 93,0 94,5 Microcomputador 22,1 26,6 Existência de alguns bens duráveis FONTE: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2006-2007. 12 Tabela 3. Habitação – EEE por domicílio 12 EEE – sigla utilizada para definir equipamentos eletroeletrônicos. 47 O desempenho dos PCs, em 2005, já superava o resultado apresentado por outros itens pesquisados pelo IBGE: geladeira, freezer, rádio, máquina de lavar roupa e televisão. Todos esses aparelhos, à exceção de freezer, que apresentou queda de 0,4 ponto percentual no período, e rádio, que teve expansão de apenas 0,6 ponto, apresentaram altas entre 1,2 e 1,7 pontos percentuais. Os dados do IBGE identificam-se com os da pesquisa apresentada pela ABINEE (Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica), que indica que houve crescimento de 43% nas vendas de computadores no primeiro semestre de 2006 em relação ao mesmo período de 2005. Dentre os motivos levantados estão medidas de incentivo à comercialização de PCs e de combate à ilegalidade na cadeia produtiva, que têm causado a queda dos preços. Após a crise econômica que abalou o mercado global, principalmente no segundo semestre de 2008, a ABINEE contratou a consultoria IT Data para realizar novos estudos no mercado brasileiro de PCs. Segundo dados levantados, comercializaram-se 2,217 milhões de microcomputadores no Brasil nos três primeiros meses de 2009. Na comparação com o mesmo período do ano anterior, quando foram negociados 2,510 milhões de computadores, a retração provocada pela crise chegou a 12%. A ABINEE prevê que a venda total de PCs no ano de 2009 deverá atingir cerca de doze milhões de unidades, apostando na recuperação do mercado nacional de computadores, baseada no crescimento de 20% na comercialização de PCs no segundo trimestre em relação ao primeiro trimestre deste ano. O Comitê Gestor de Internet no Brasil13, CGI, divulgou que cerca de 25% do total de domicílios brasileiros têm computador, mas um percentual um pouco menor (18%) conta com acesso à web. Os dados fazem parte da Pesquisa TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) Domicílios 2008, realizada pelo CETIC.br (Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação). O estudo também apontou grandes diferenças entre a cidade e o 13 O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) foi criado pela Portaria Interministerial nº 147, de 31 de maio de 1995 e alterada pelo Decreto Presidencial nº 4.829, de 3 de setembro de 2003, para coordenar e integrar todas as iniciativas de serviços Internet no país, promovendo a qualidade técnica, a inovação e a disseminação dos serviços ofertados (http://www.cgi.br). 48 campo. Na primeira, 28% das famílias possuem um microcomputador contra apenas 8% dos domiciliados em áreas rurais. Muito se pesquisa e se estuda do mercado de informática no Brasil e em muitos outros países, porém pouco se sabe sobre o destino de equipamentos ou parte deles após tornarem-se obsoletos e seu ciclo de vida chegar ao fim. Equipamentos ainda em perfeito funcionamento são trocados, pois a relação custo x benefício do upgrade de microcomputadores, ou seja, a substituição de componentes que os tornem mais rápidos ou que aumentem sua capacidade de armazenamento, em muitos casos não compensa, e o proprietário decide, então, por adquirir um novo equipamento. Tal situação resulta em um processo produtivo de bens caracterizados como de consumo, com produtos mais baratos e de curto ciclo de vida, ou seja, produtos praticamente descartáveis. Isso é estimulado principalmente no contexto da sociedade capitalista, na qual o mais importante não é a utilidade do produto, mas a sua capacidade de gerar fluxo financeiro. Porém, para suprir a constante demanda da sociedade moderna, o desgaste do meio ambiente pela retirada de mais e mais recursos naturais para linhas de produção atingiu o limite do recuperável, tornando-se urgente a necessidade de se investir mais em manufatura reversa, reciclagem e reaproveitamento no setor de eletroeletrônicos. Um computador é constituído de 32% de metal ferroso, 23% de plástico, 18% de metais não-ferrosos, como chumbo, cádmio, berílio, mercúrio; 15% de vidro e 12% de placas eletrônicas que contêm, além de ouro e prata, platina e paládio na sua composição, segundo dados do Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP, 2002). Dentre essas substâncias, algumas figuram como tóxicas: placas de circuito contendo metais tóxicos, como chumbo e cádmio; baterias (cádmio); tubo de raios catódicos — CRT (óxido de chumbo e óxido de bário); retardadores de chama bromados em placas de circuito impresso, cabos e coberturas plásticas; cabos de cobre, cobertos de PVC; 49 cobertura plástica que, quando submetida à ação de calor intenso, emite dioxinas e furanos; Interruptores (mercúrio); PCBs (difenilpoliclorados), em capacitores e transformadores (modelos antigos). Material % m/m % Reciclável, m/m Localização/finalidade Al (alumínio) 14,1720 80 estrutura, conexões Pb (chumbo) 6,2980 5 circuitos integrados, soldas, baterias Ge (germânio) 0,0010 0 semicondutor Ga (gálio) 0,0010 0 semicondutor Fe (ferro) 20,4710 80 estrutura, encaixes Sn (estanho) 1,0070 70 circuito integrado Cu (cobre) 6,9280 90 condutor elétrico Ba (bário) 0,0310 0 válvula eletrônica Ni (níquel) 0,8500 80 estrutura, encaixes Zn (zinco) 2,2040 60 bateria Ta (tântalo) 0,0150 0 condensador In (índio) 0,0010 60 transistor, retificador V (vanádio) 0,0002 0 emissor de fósforo vermelho Be (berílio) 0,0150 0 condutor térmico, conectores (liga Be-Cu) Au (ouro) 0,0016 98 conexão, condutor Ti (titânio) 0,0150 0 pigmentos Co (cobalto) 0,0150 85 estrutura Mn (manganês) 0,0310 0 estrutura, encaixes Ag (prata) 0,0180 98 condutor Cr (cromo) 0,0060 0 decoração, proteção contra corrosão Cd (cádmio) 0,0090 0 bateria, chip, semicondutor, estabilizadores Hg (mercúrio) 0,0020 0 baterias, ligamentos, termostatos, sensores Fonte: Microelectronics and Computer Technology Corporation (MCC, 2000) Electronics Industry Environmental Roadmap, Austin, TX MCC Tabela 4. Composição química de computadores e reciclabilidade. 50 Essas substâncias podem causar sérios danos à saúde humana e ao meio ambiente14, dificultando ainda mais a manufatura reversa desses equipamentos, pois sua correta manipulação exige aplicação de técnica apropriada, bem como de equipamentos e de produtos, o que gera um elevadíssimo custo para segregação de componentes. No relatório Electronics Recycling and E-Waste Issues - 2009 da Pike Research, empresa americana que realiza análises e pesquisas dos mercados mundiais de tecnologia limpa, diz que o descarte de lixo eletrônico no mundo, em 2010, será algo em torno de 73 milhões de toneladas. Porém o resultado desses estudos é bastante otimista, uma vez que prevê que essa quantidade declinará em decorrência de novas regulamentações governamentais e à adaptação da indústria para a manufatura reversa. Outro fator relevante é que há muito equipamento em desuso que não foi literalmente descartado por motivos de falta de alternativas. E isso não ocorre somente com equipamentos particulares, que ficam retidos nos domicílios, mas também com empresas que renovam seu parque de informática e estocam os equipamentos antigos em algum depósito esperando por uma solução viável de destinação. Tendências de mercado, como a substituição de monitores convencionais com tubos de imagem CRT (Cathodic Ray Tube), por monitores de LCD (Liquid Cristal Display), também aumentam o volume de sucata. Programas de inclusão social de organizações não governamentais que recebem equipamentos de informática, tanto de empresas quanto de órgãos públicos que, na sua maioria, por obsolescência, são retirados de uso, em uma análise superficial, apresentam-se como solução que incorpora um benefício social, porém, essa análise superficial não considera a destinação final desses equipamentos 14 quando quem recebe a doação precisa descartá-los Em estudo do Gartner Group, empresa de consultoria fundada em 1979 por Gideon Gartner, a tecnologia da informação desponta como uma das vilãs do aquecimento global, por consumir muita energia. O Gartner estima que só os computadores respondem por 2% de todas as emissões globais de dióxido de carbono (CO²) do planeta. Este é apenas um dos problemas causados pela toxicidade existente nos PCs (Gartner (2007) Gartner estimates ict industry accounts for 2 percent of global CO2 emissions, Disponível em: http://www.gartner.com/it/page.jsp?id=503867). 51 definitivamente. Analisando-se mais profundamente todo o percurso desses equipamentos, conclui-se que a inexistência de políticas públicas para o lixo tecnológico faz da doação, por si só, uma transferência do problema de uma entidade para outra e, até mesmo, para a população mais pobre. Logo, a doação não supre a carência por um programa de descarte ambientalmente correto e seguro para os envolvidos em cada uma das suas etapas até o descarte final, após esgotados todos os processos de reaproveitamento dos detritos. 2.4.1 Destinação de resíduos sólidos no Brasil Observa-se que o grande desafio da sociedade moderna é destinar de forma adequada toda a imensa quantidade de resíduos sólidos gerados diariamente, e aqui estão inseridos os resíduos eletroeletrônicos. No Brasil, a situação se agrava, pois estimativas denunciam que mais da metade dos 5.561 municípios do país continua depositando os resíduos sólidos em terrenos a céu aberto, os chamados “lixões”, atualmente e os projetos municipais ou estaduais para coleta e destinação de EEE ainda estão em fase experimental ou são muito jovens, portanto não há publicação de dados ou resultados. Os resultados da última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico – PNSB/IBGE/Ano 2008, demonstram que os vazadouros a céu aberto, conhecidos como “lixões”, ainda são o destino final dos resíduos sólidos em mais da metade municípios brasileiros, porém essa situação é bastante positiva quando se observa que há pouco mais de 20 anos, quase 90% dos resíduos gerados pela população brasileira eram depositados a céu aberto. Ano Destino final dos resíduos sólidos, por unidades de destino dos resíduos (%) Vasadouro a céu aberto Aterro controlado Aterro sanitário 1989 88,2 9,6 1,1 2000 72,3 22,3 17,3 2008 50,8 22,5 27,7 Fonte: Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 1989/2008 (IBGE PNSB 2008) Tabela 5. Destino final dos resíduos sólidos. 52 Contudo,outro indicador bastante otimista é o relativo aos programas de coleta seletiva e resíduos sólidos, que passaram de 58 identificados no levantamento de 1989 para 451 em 2000 e para 994 ativos em 2008. O avanço se deu, sobretudo, nas regiões sul e sudeste, onde, respectivamente, 46% e 32,4% dos órgãos municipais responsáveis pela coleta pública de resíduos sólidos informaram ter programas de coleta seletiva abrangendo todo o município. Se por um lado o insustentável volume de resíduos sólidos urbanos gerados diariamente causa apreensão, por outro, aumenta também o contingente de pessoas excluídas do mercado de trabalho e produção que encontra nesse nicho uma fonte de renda: são os chamados catadores de papel. Esses catadores percorrem as ruas da cidade com seu carrinho, muitas vezes acompanhados de toda a família, inclusive crianças, para recolher no lixo da população o material servível para posterior venda. Dependem dessa “economia marginal” para sobreviver, mesmo sendo tratados com descaso e preconceito pela população, pela polícia e até pelos órgãos da administração pública. Com o passar dos anos, os próprios órgãos municipais e estaduais responsáveis pela coleta pública de resíduos sólidos, e também os órgãos ambientais, começaram a reconhecer a importância do trabalho dos catadores, que então já formavam uma rede muito maior de coleta de recicláveis, dando vulto ao seu trabalho. Hoje, são considerados “agentes ambientais” e da marginalidade ascenderam como foco de projetos de inclusão social em todos os níveis: federal, estadual e municipal. Quando políticas governamentais utilizam áreas públicas disponíveis para a implantação de parques de reciclagem, constata-se a redução do número de ocupações de grupos que em tempos anteriores invadiam tais áreas, além da ampliação do número de cooperativas ou associações de catadores legalmente constituídas, criando novos postos de trabalho e gerando maior circulação de mercadorias, bens e serviços tributáveis, a fim de retroalimentar o sistema em questão. 53 3 Procedimentos metodológicos “As próprias questões e a maneira que alguém as compreende são importantes pontos de partidas, e não o método em si.”, afirma Van Manen (Godoi et al., 2006). Colocar a página da citação... Tendo como ponto de partida a indagação “para onde vai toda a sucata de equipamentos de informática?”, outros questionamentos vieram ao encontro dessa problemática, como o modo de vida de uma sociedade cuja crença de que o consumo é fonte de felicidade. A pobreza passou a ser vista como uma doença que recai somente sobre os descuidados e, para as que as classes mais afortunadas se resguardassem dessa terrível doença, ergueram-se barreiras dificultando, impedindo o acesso dos infectados pela pobreza, aprofundando os problemas que fazem fortalecer as diferenças sociais. Mostrou-se assim muito improvável perseguir a trajetória dos resíduos tecnológicos sem resvalar para os problemas sociais resultantes da configuração do que chamamos desenvolvimento nos dias de hoje, mesmo que inicialmente o foco incidisse sobre problemas essencialmente ambientais e em desvendar como o mundo vinha olhando para esses problemas. Mas foi aprofundando a leitura do relatório Nosso Futuro Comum (1988) que se explicitou a proximidade das questões ambientais com a pobreza e desigualdade social em todos os cantos do mundo. Este relatório de vinte anos atrás surpreende com o diagnóstico de problemas que se mostram contemporâneos; logo, fica evidente que as recomendações incluídas no tratado não ecoaram em intensidade suficientemente forte para, duas décadas depois, conseguirem efetivamente minimizar os problemas outrora identificados. As primeiras suspeitas dessa reflexão sobre o modus operandi da sociedade moderna, e aqui não se pretende adentrar na discussão se estamos na modernidade ou na pós-modernidade, alinha-se à teoria de Ulrich Beck (2002) sobre sociedade de risco, sustentando a hipótese de que as questões ambientais estão sempre acompanhadas por outras questões, como capitalismo, produção e consumo, desigualdades sociais, gerando riscos e ameaçando a vida humana. 54 Parece unânime dentre os autores estudados que a desigualdade social ligase intrinsecamente aos problemas ambientais, logo, como não contemplar uma abordagem sobre a pobreza? E neste viés, Amartya Kumar sem (2000) reforça a sua inquietude em relação à questão quando diz que é impossível separar a liberdade do homem, enquanto indivíduo, do materialismo contemporâneo e, indo um pouco adiante, diz da falsa liberdade daqueles que não circunscritos ao âmbito da pobreza, crêem piamente que bens, riquezas e possibilidades meramente materiais lhe garantem a liberdade. Assim, Sen nos convida a refletir sobre a pobreza como fator de tolhimento da liberdade individual do homem. Porém, com toda essa teorização sobre as questões ambientais globais e pobreza, ainda foi necessário investigar algumas questões que na vida cotidiana nos fogem aos olhos, como o processo por meio do que é criado, por exemplo, um equipamento de informática que, depois de finda sua vida útil, ignora-se o destino final desse equipamento, o que pode ser feito com ele, no que ele se transformará. O homem moderno desconhece as extremidades daquilo tudo que consome. A grande maioria não se questiona de onde vêm as coisas e muito menos para onde vão. É como se tudo existisse apenas enquanto estão dentro do campo de visão do observador, ou seja: da prateleira da loja até a lata de lixo. O presente estudo desenvolve-se como pesquisa exploratória, e, com base em Gil (1999), busca não apenas entendimento e familiarização com o fenômeno estudado mas, também, uma nova compreensão do tema, a fim de conferir-lhe mais clareza, gerando hipóteses e explorando problemas ainda precariamente conhecidos. Finalmente por meio da pesquisa descritiva, apresenta uma análise das características da amostra, tanto quantitativa quanto qualitativamente, mediante levantamento de inventário para melhor dimensionar o problema e, então, recorrendo a técnicas de pesquisa exploratória, identificar as mais adequadas alternativas para a avaliação do assunto, uma vez que essa modalidade de pesquisa proporciona maior familiaridade com o problema ao torná-lo mais explícito, oportunizando o aprimoramento das idéias acerca das hipóteses levantadas. 55 3.1 Caracterização da pesquisa: parque de informática O segundo objetivo específico deste trabalho contempla a meta de levantar quantitativamente o parque de hardware existente nos órgãos públicos do estado. A limitação espacial de abrangência desta pesquisa circunscreve-se ao estado do Paraná, mais especificamente ao parque de informática dos órgãos públicos estaduais. Sendo assim, foi realizada entrevista com o coordenador das equipes da Celepar – Companhia de Informática do Paraná, que atende os órgãos do estado que mantêm contratos com a Companhia para suporte e manutenção da infraestrutura lógica, de hardware e de software. Órgãos selecionados serão entrevistados levando-se em consideração o nível de informação sobre seu hardware, e esta aferição de resultado se baseará em uma amostragem intencional, uma vez que inexiste um sistema de inventário de informações abrangendo todos os órgãos públicos do estado do Paraná, que poderia embasar esta pesquisa com dados comprobatórios denunciando o quantitativo preciso desse material a descartar em forma de resíduo tecnológico. Com isso, foi possível levantar que, dentre todos os órgãos do estado, apenas 25 utilizam os serviços da Celepar, sendo que os demais utilizam outros recursos, como pessoal técnico no seu próprio quadro funcional ou, em alguns casos, não possui equipe para suporte e manutenção. Assim, fez-se uma amostragem estratificada não proporcional que, neste caso, coloca os órgãos públicos, clientes da Celepar, como um estrato de todos os órgãos públicos da administração estadual. Segundo Gil, no caso da amostragem estratificada não proporcional, a extensão das amostras dos vários estratos não é proporcional à extensão desses estratos em relação ao universo. A Celepar está desenvolvendo um projeto para implementação de um sistema informatizado inteligente que, por meio de rede de computadores e Internet, manterá atualizado um cadastro chamado Inventário de Parque de Informática do Paraná, em que cada equipamento terá um registro com todas as informações de hardware e software. Esse inventário expõe não apenas um panorama do estado como um todo, mas também de cada órgão individualmente, mantendo informações atualizadas de cada equipamento desde sua aquisição até 56 a sua “baixa”, ficando então registrada a sua destinação final. Este sistema será fundamental para alicerçar a hipótese norteadora deste trabalho, já que inexiste uma política estadual de destinação de sucata de equipamentos eletroeletrônicos, como traça o atual trabalho, porém, por ainda encontrar-se em fase de operacionalização, foi necessário lançar mão de outro método de pesquisa. Escolheu-se, então, como método, o questionário, definido em entrevista com o coordenador. Logo, a atual pesquisa será, num primeiro momento, descritiva, com o intuito de estabelecer a relação entre as variáveis: quantidade de equipamentos de informática no parque estadual e destinação dos equipamentos em desuso e descrição das características da população. Há ainda a intenção de se verificar a relação entre os motivos que levam à substituição de equipamentos em uso por novos e o volume de sucata que se acumula. O objetivo geral deste trabalho prende-se à necessidade de se realizar estudo acerca da gestão do lixo tecnológico no governo do estado. Assim, foi necessário caminhar por todos os objetivos específicos. A escolha da aplicação do questionário contempla, primeiramente, a meta de traçar o perfil quantitativo do parque de informática e identificar as soluções adotadas para a destinação dos equipamentos eletroeletrônicos em desuso ou sucateados. Para tanto, foram definidos quatro eixos norteadores para o questionário: 1. quantidade de equipamentos na instituição; neste eixo, o questionário se desdobrou por tipo de equipamento, num total de três subitens; 2. destinação para equipamentos em desuso, também desdobrando-se em subitens, aqui em número de sete, e mais uma opção para outras alternativas; 3. disponibilidade de equipamentos em desuso armazenados em depósitos por falta de alternativa de destinação; em caso de resposta afirmativa, especificar a quantidade por tipo (computador, monitor, impressora). Questão aberta sem subitens; 4. substituição de equipamentos em uso por novos equipamentos. Esta questão apresenta três alternativas para cada um dos seguintes itens: computadores, monitores e impressoras. A coleta de dados foi realizada mediante envio de questionários aos 25 órgãos que contratam os serviços da Celepar como suporte e manutenção. 57 Comumente, uma equipe de empregados da Celepar fica alocada fisicamente à disposição desses clientes. Os supervisores dessas equipes foram os responsáveis pelo preenchimento do questionário. Dentre os 25 clientes pesquisados, 14 responderam, e o retorno atingiu 56% da clientela. O governo do estado tem um total de 162 mil funcionários e a amostra estudada representa 2% do total de pessoas com algum tipo de vínculo empregatício com o estado. 3.2 Caracterização da pesquisa: legislação ambiental e soluções adotadas para o tratamento dos resíduos de EEE A fim de investigar a legislação ambiental e a destinação de resíduos de equipamentos eletroeletrônicos no Brasil e em outros países, conforme o terceiro objetivo específico optou-se pela realização de uma pesquisa qualitativa exploratória. Essa pesquisa envolveu levantamento bibliográfico, entrevistas com pessoas inseridas na realidade do problema pesquisado e investigação e análise de casos que oportunizaram desenvolver, esclarecer ou modificar conceitos e idéias para a formulação de abordagens posteriores. Sendo assim, este tipo de estudo proporcionou maior conhecimento para o pesquisador acerca do assunto (GIL, 1999). Na investigação da legislação vigente nas localidades selecionadas, uma das primeiras fontes de informação foi a existência de registros oficiais disponibilizados pelos órgãos afins, sob a forma de publicação de leis ou relatórios e indicadores em sítios da Internet. O uso de informações disponíveis na rede mundial reduziu tanto o tempo quanto o custo de pesquisas, além de essas informações serem consideradas estáveis e não dependerem de uma metodologia específica para ser coletada. Nos anos 1990, com a disseminação de informações oficiais na Internet e de outras tecnologias de comunicação e armazenamento de dados, a facilidade para obtenção de dados tem sido cada vez maior, assim como a quantidade de informações disponíveis para o pesquisador. 58 4 Análise dos dados Mesmo com a substituição da análise dos dados do sistema de Inventário do Parque de Informática do Estado do Paraná pelos questionários aos clientes da Celepar, foi possível realizar a pesquisa de acordo com os objetivos propostos. A utilização dessa ferramenta de pesquisa foi de fundamental importância, pois evidenciou uma baixa diversificação de ações de órgão para órgão do Estado quanto à problemática estudada, constituindo-se um referencial para as reflexões e as abordagens propostas. 4.1 Parque de informática Após a tabulação dos dados, tabelas e gráficos foram elaborados com a finalidade de traçar o perfil dos órgãos públicos quanto ao parque de informática, critérios de troca de equipamentos e método de destinação adotado. Questão 1 - Quantidade de equipamentos na instituição. Computadores – constituem as estações de trabalho. Atualmente é usual cada funcionário ter uma estação de trabalho para seu uso individual. Logo, podese estimar que, em um universo de 162 mil pessoas que trabalham para o estado do Paraná, existirão em torno de 162.000 microcomputadores. Monitores – a quantificação de monitores por tipo é importante diante da tendência atual da substituição dos monitores com tubo de raios catódicos por monitores de cristal líquido, o que provoca um aumento significativo de equipamentos em desuso e sem política de descarte. 32% LCD 68% CRT Fonte: pesquisa de campo Gráfico 1. Monitores As dificuldades técnicas e operacionais e o elevado custo para reciclagem ou destruição do CRT (Cathodic Ray Tube) resultam em um acúmulo de 59 monitores em depósitos, à espera de uma solução viável para a adequada destinação de tais detritos que se definem como sucata tecnológica. A opção por monitores de LCD (Liquid Cristal Display) vem calçada em diversos pontos positivos quando comparados aos monitores com tubo de imagem e vão desde economia de energia até a saúde de seus usuários, uma vez que não emitem radiação nociva como acontece com o CRT. O fato de serem menores e mais leves, ocupando menos espaço, também contribuem como um fator bastante relevante na escolha desse equipamento. Tipo LCD CRT Esquema Imagem Não existe alta tensão no LCD. É iluminado por uma lâmpada fluorescente CCFL. Necessita de alta tensão para que um feixe se projete na tela. Controle de Brilho O controle de brilho é feito no inversor através do pino DIM que controla a tensão que vai para as lâmpadas controlando assim o brilho É feito através da gr1 e gr2 diretamente no tubo de imagem (CRT) RGB Os sinais que entram no LCD na forma de informação digital controlam os transistores TFT que estão dentro do LCD (aproximadamente 2 milhões de transistores). Os sinais entram pelos cátodos RGB do tubo de imagem na forma analógica. Nos cátodos também estão presentes as tensões de BIAS que servem para polarizar os cátodos, sendo que quanto menor a tensão maior a emissão do cátodo. Resolução Fixa, podem ser utilizadas outras definições diferentes da resolução base mas a performance e ou qualidade diminuem significativamente Flexível, um CRT mais recente pode funcionar com resoluções superiores a 1600 x 1200. Fonte: Manual de eletrônica básica (Disponível em http://www.electronicapt.com/index.php/content/category/3/7/37/50/0/, acessado em 18/12/2009) Tabela 6. Quadro comparativo entre monitores LCD e CRT 60 Impressoras – é possível observar que há pouca utilização de impressoras matriciais. A substituição por modelos a laser ou a jato de tinta havia sido realizada anteriormente, em decorrência de drásticas mudanças que esses equipamentos sofreram ao longo do tempo para acompanhar o desenvolvimento e a disseminação de aplicativos gráficos, os quais aumentam significativamente as possibilidades de criação, desde textos ilustrados até trabalho com imagens e, desta forma, já que a impressão do material criado exigia impressoras compatíveis a cada uma das vertentes. A tecnologia de impressão foi também incluída em vários sistemas de comunicação, como o fax. Matriciais 6% 62% Laser 32% Jato de tinta Fonte: Pesquisa de campo Gráfico 2. Impressoras Em razão da necessidade dos serviços de redes de computadores, é bastante comum que as impressoras sejam compartilhadas dentre vários usuários por departamento ou por questões de logística. Isso permite que as estações de trabalhos sejam compostas basicamente pelo computador e por seus periféricos básicos: mouse, teclado, caixas de som, limitando-se o número de impressoras a uma proporção de uma para cada três microcomputadores. 2810 3000 2000 844 1000 0 Computadores Impressoras Fonte: pesquisa de campo Gráfico 3. Computadores X Impressoras 61 Questão 2 – Destinação para equipamentos em desuso. Não existe uma política de destinação para a sucata eletroeletrônica produzida em órgãos da administração pública do estado do Paraná. Uma determinação da Casa Civil orienta os órgãos públicos estaduais a encaminharem ao Provopar – Programa de Voluntariado do Paraná todo e qualquer equipamento e mobiliário, em perfeito estado e funcionamento ou não, desde que esse equipamento tenha entrado no sistema de patrimônio do órgão ao qual pertence. Destinação de Equipamentos de Informática em Desuso Programas sociais e/ou inclusão digital 9% Entrega a carrinheiros e/ou sucateiros 4% Leilão 0% Base de troca para compra de novos 0% Provopar 44% Desmonte seleção peças p/ reutilização 17% Doação outros órgãos/instituições 26% Gráfico 4. Fonte: pesquisa de campo Destinação de EEE nos órgãos públicos estaduais Com essa determinação, a sucata eletroeletrônica também passa a ser doada ao Provopar (44%), sem nenhum tipo de programa de reuso ou reaproveitamento de componentes e de peças; o Provopar organiza as doações em lotes e vende aos interessados por meio de leilões públicos. Porém outras formas de destinação são observadas dentre os órgãos pesquisados, como o remanejamento de equipamentos em funcionamento para outros órgãos. Essa prática é usual quando alguns equipamentos não conseguem mais suprir as necessidades de processamento para determinadas aplicações, embora ainda possam ser utilizados para outras aplicações que não demandem uma máquina tão potente, sendo então doados a outros órgãos. Esta prática 62 representa 26% do total de equipamentos descartados. Desmontam-se 17% das máquinas para reutilização de peças e componentes em outros equipamentos no próprio órgão. Em uma primeira análise, as soluções adotadas pelos diversos órgãos do estado para dar destino aos equipamentos sucateados parecem resolver o problema, uma vez que nada é encaminhado para lixões ou aterros sanitários; porém a responsabilidade do gerador de resíduos não termina no momento em que ele os encaminha para uma destinação, mas vai até a sua “final destinação”, ou seja, se um determinado resíduo é doado a associação de catadores, por exemplo, um monitor de computador, e nesse local esse monitor é aberto para separação dos componentes e venda aos recicladores por pessoas que não foram capacitadas para esta tarefa, tais pessoas podem expor-se a acidentes com sério risco de morte ou contaminação por químicos tóxicos, e o responsável, caso aconteça um acidente, será o gerador daquele resíduo, ou seja, o órgão que fez a doação. Os monitores, em geral, mesmo em desuso por meses, continuam mantendo no seu interior uma carga de alta tensão capaz de matar um ser humano. Além disso, os resíduos tóxicos, como o chumbo, que, nos monitores CRT está presente numa quantidade entre 2 e 4kg, pode causar diversos males ao cérebro e sistema nervoso, rins, sistema endócrino, sistema digestivo, sistema reprodutor. Leilões e doações também não podem ser considerados soluções definitivas, pois, na prática, apenas transferem para terceiros equipamentos ou sucata que, na sequência da trajetória, deverão ser descartados definitivamente. Questão 3 – Quantidade de equipamentos em desuso armazenados em depósitos Todos os pesquisados responderam que possuem equipamentos em desuso, porém não existe informação (inventário ou catalogação) de quantidade. As respostas mais encontradas foram: equipamentos não quantificáveis porque seus componentes foram retirados; ou seja, equipamentos desmontados; 63 equipamentos armazenados até que recebam parecer de inservíveis para serem doados; equipamentos com alto custo nos reparos, ficam em depósitos aguardando destinação; equipamentos em depósitos por burocracia para se efetivar a doação. Questão 4 – Motivos de substituição de equipamentos Computadores - Estima-se que os microcomputadores tornem-se obsoletos após dois anos de utilização. Outras Inadequado para a aplicação Danificado 4% 18% 36% Obsolescência Gráfico 5. 43% Fonte: pesquisa de campo Motivos para troca de Computadores Analisando–se o gráfico 5, pode-se observar que, em uma média de 4 a cada 10 casos de troca, o motivo é a obsolescência. Muito se discute sobre o fenômeno “obsolescência programada”, ou seja, um equipamento é construído de maneira a não tornar viável a substituição, por exemplo, de um microprocessador que é o que determina sua performance. Esse componente, novo e mais potente, apresenta variações de tamanho e formas de conexão à placa mãe, o que, em um efeito cascata, impõe a substituição de todas as placas e componentes por um “modelo mais atual”. Em segundo lugar, destaque-se a troca quando o equipamento apresenta algum tipo de avaria. Novamente aqui se pode especular sobre a obsolescência programada, pois muitas vezes, depois de um curto lapso de tempo, alguns componentes simplesmente não são mais encontrados no mercado, o que obriga seu proprietário a substituir muitos componentes bons para que sejam então 64 compatíveis com a “nova peça” colocada no lugar de uma danificada. Logo, ao invés de pequenos reparos apenas, o microcomputador sofre um upgrade muitas vezes não planejado pelo proprietário. Em 18% dos casos, o equipamento é substituído em razão do desenvolvimento de softwares que necessitam de uma melhor performance de hardware. Monitores – a manutenção de monitores CRT danificados não apresenta uma relação entre custo e benefício muito atraente, uma vez que essa tecnologia de monitores está sendo trocada substancialmente pela tecnologia LCD, conforme já foi observado nos comentários da Questão 1. Outras 5% 14% Inadequado para a aplicação 27% Obsolescência 55% Danificado Fonte: pesquisa de campo Gráfico 6. Motivos para troca de Monitores Impressoras – neste item a obsolescência perde no ranking dos motivos que levam a troca do equipamento para o item “danificado”, provavelmente porque as impressoras são equipamentos com maior ciclo de vida do que os computadores. Outras Inadequado para a aplicação Obsolescência 4% 19% 35% Danificado Gráfico 7. Fonte: pesquisa de campo Motivos para troca de Impressoras 42% 65 4.2 Soluções para destinação de EEE e legislação ambiental As diretivas da União Européia sobre resíduos tecnológicos e tóxicos, que vem inspirando a formulação de leis congêneres em diversos países e o Japão, pela própria concepção de sua legislação e aplicação do conceito de responsabilidade estendida do fabricante serviram como horizonte para esta etapa. União Européia A União Européia se destaca como líder mundial em questões concernentes não apenas à regulamentação de produtos químicos perigosos mas também à destinação de resíduos da indústria eletrônica. Inicialmente, duas diretivas foram implementadas nessa matéria: Diretiva 2002/95/EC do Parlamento e do Conselho Europeu, de 27 de janeiro de 2003, relativa à restrição do uso de determinadas substâncias perigosas em equipamentos elétricos e eletrônicos ou simplesmente RoHS, como é mais popularmente conhecida, e a Diretiva 2002/96/EC do Parlamento e do Conselho Europeu, de 27 de Janeiro de 2003, relativa aos resíduos de equipamentos elétricos e eletrônicos, a WEEE (ambas disponíveis em http://www.rohs.eu/english/legislation/rohs-legislation.html). A Diretiva 2002/96/CE, ou WEEE, fundamenta-se nos princípios do poluidor pagador, na precaução e na responsabilidade estendida do fabricante. A responsabilidade do produtor associa-se às etapas de coleta seletiva, tratamento, recuperação, reciclagem e financiamento. Essas medidas objetivam estimular o design verde ou ecodesign dos equipamentos e também o fornecimento de informações aos consumidores e recicladores a respeito dos produtos. O tratamento pode ser realizado pelo próprio fabricante ou por terceiros, desde que financiado pelo próprio fabricante. A taxa de recuperação varia de um mínimo de 70% a 80% do peso médio por equipamento e a taxa de reciclagem de componentes, materiais e substâncias, de um mínimo de 50% a 75% do peso médio conforme uma lista de equipamentos selecionados, como eletrodomésticos, produtos de informática e telecomunicações, ferramentas, brinquedos, entre outros. Dessa classificação, excetuam-se equipamentos usados em outros equipamentos que não integram essa diretiva e, temporariamente, os equipamentos médicos. 66 A RoHS visa restringir, senão banir, o uso de substâncias perigosas presentes nos equipamentos eletroeletrônicos, como o chumbo e consiste em uma diretiva complementar à WEEE, uma vez que a substituição de produtos perigosos na constituição dos equipamentos eletroeletrônicos por substâncias mais seguras promove e otimiza os processos de reciclagem. A RoHS estabelece uma tolerância para a concentração de 0,1% por kg (ou 1000mg/kg) em material homogêneo para chumbo, mercúrio, cromo, PBB e PDBE e o valor máximo de 0,01% (ou 100mg/kg) em material homogêneo para o cádmio. Em suas diretivas, a UE identificou as seguintes substâncias como perigosas, com significativo impacto ao meio ambiente: Cádmio (Cd) Chumbo (Pb) Cromo hexavalente (CrVI) Mercúrio (Hg) Polibromobifenilo (PBB) Éter difenil polibromado (PBDE) A RoHS também limitou três outros retardadores de chama pelo risco a que expõem a saúde humana e o meio ambiente. Éter PentaBDE; Éter octabromodifenílico, OctaBDE; Éter decabromodifenílico, DecaBDE.) As exigências são obrigatórias nos países que compõem o bloco, porém é importante salientar que o impacto da RoHS gerou tanto custos quanto benefícios. Os custos foram decorrentes principalmente de gastos com P&D e operacionalização de mudanças no processo produtivo. Neste item, a maior dificuldade se refere à substituição do chumbo no processo de solda, para a qual foram destinados em torno de 5% dos gastos totais em P&D. Considerável ainda foi o aumento no consumo de energia e consequente incrementos nos preços dos componentes. Os benefícios observados foram os relativos à simplicidade nos processos de reciclagem da maioria dos componentes, porém o mais relevante foi a redução entre 1400 a 4300 toneladas de chumbo (DTI, 2006). 67 Em julho de 2007 outra regulamentação importante foi implementada na União Européia, a REACH (Registration, Evaluation, Authorization and restriction of Chemical substances – Registro, Autorização e Restrição de Substâncias Químicas), sobre substâncias químicas e sua segura aplicação nas linhas produtivas, cuja principal preocupação centra-se no promover maior proteção à saúde humana e ao ambiente contra os riscos provocados por produtos químicos utilizados na indústria. A regulamentação REACH responsabiliza as indústrias pela avaliação e pela gestão dos riscos que esses produtos químicos oferecem e também pelas informações de segurança adequadas que aos usuários se deve oferecer para uma utilização sem riscos. A regulamentação ambiental da União Européia tem sido utilizada como modelo de política ambiental para o resto do mundo. Os pilares das diretivas se estruturam de acordo com os princípios da precaução, da prevenção e da correção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao meio ambiente e incluem ainda o conceito do poluidor-pagador. Japão No Japão foi promulgada em 2001 a lei chamada SHAR - Specified Household Appliances Recycling, com especificações sobre reciclagem de eletrodomésticos, porém já agregando em seu teor o conceito EPR – Extended Producer Responsibility, apresentado como uma estratégia de proteção ambiental que incentiva os fabricantes a reduzirem o impacto ambiental de seus produtos, cuja responsabilidade não finda quando o bem se reduz a uma sucata, uma vez que a própria sucata deve merecer um tratamento como tal. Sob esse conceito, os fabricantes tornam-se responsáveis não só pela fase produtiva, mas também até o fim da vida útil do produto. O objetivo último de uma política de EPR é promover incentivos ao fabricante para que ele inclua o tratamento final do produto ainda na fase de concepção do seu projeto (upstream), viabilizando assim um caminho de retorno quando do término do ciclo de vida daquele produto. Não só o Japão, mas outros países passaram também a incorporar o conceito EPR em sua regulamentação ambiental, a partir da década de 1990, para vários grupos de produtos, sendo o principal deles os equipamentos eletroeletrônicos, principalmente em decorrência dos problemas relacionados com 68 o aumento na variedade, com a quantidade e com o teor de substâncias perigosas utilizados na produção, além da complexidade de suas estruturas, e da identificação de recursos reembolsáveis em processos de reciclagem. A legislação japonesa estabelece uma taxa de reaproveitamento de 50 a 60% em relação ao peso do equipamento, atendida por meio da reutilização do próprio produto, reutilização de componentes do produto isoladamente ou reciclagem propriamente dita quando há valor de comercialização positivo. Os fornecedores atacadistas e varejistas são obrigados a receber novamente seus produtos quando outros novos são vendidos para sua substituição. O governo local torna-se, então, responsável pelo recolhimento de equipamentos não cobertos pelos fornecedores, e o consumidor final também poderá arcar com custos de destinação de equipamentos que tenha utilizado. Estudos dentre alguns dos principais fabricantes de eletrodomésticos e grandes aparelhos no Japão indicam que a promulgação da lei tem influenciado positivamente o processo produtivo. Experiências de reciclagem têm sido realizadas tanto individualmente como em parcerias e especial atenção tem sido dispensada ao ecodesign. E o mais difícil desafio apontado nesses estudos é a logística reversa. A concorrência de preços deve ocorrer, pois são os usuários finais que pagam pela reutilização ou pela reciclagem. Todos os produtos históricos e órfãos, isto é, produtos que foram colocados no mercado antes da aplicação da lei vigente, e aqueles cujos fabricantes tenham deixado de existir, estão cobertos pela Lei SHAR, uma vez que este é o principal argumento tanto para a promulgação desse tipo de legislação quanto para financiamentos: a urgência de tratamento de resíduos já existentes. Neste quesito, a dificuldade para os fabricantes encontra-se nos processos de desmontagem e identificação de materiais usados em produtos antigos e também o uso do material que é recuperado, cumprindo-se os requisitos de reciclagem, o que se mostra como um novo desafio. Algumas características encontradas no regulamento japonês incluem: cobertura de “produtos históricos” e órfãos; obrigação dos consumidores finais a pagarem taxas para recolhimento e reciclagem, no momento do descarte (responsabilidade financeira); 69 manipulação física real em fim de ciclo de vida pelos próprios fabricantes; criação de infra-estrutura take-back/recycling numa base individual; ênfase na realização de recuperação de recursos; exclusão de materiais reciclados com valor negativo do processo produtivo. Brasil A Constituição Federal de 1988 aborda, de maneira ampla e moderna, as questões de preservação ambiental e de um desenvolvimento sustentável da economia, reservando à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios a tarefa de proteger o meio ambiente e de controlar a poluição (CF, artigo 23). De acordo com Carvalho (2005), no Brasil a capacidade organizacional do Estado brasileiro e a estrutura do Poder Executivo evoluíram significativamente, desde a promulgação da atual Constituição, no que tange à necessidade de acompanhar a moderna legislação ambiental que o país tem sido capaz de formular. Nesse contexto de evolução de políticas ambientais, surgem o IBAMA, o Ministério da Meio Ambiente e secretarias de Meio Ambiente em todos os estados. E embora se deva reconhecer o esforço das organizações em referência, o empenho de tais políticas parece tímida em demasia diante da realidade posta, sobretudo quando se pensa no gigantesco trabalho de palmilhar a superfície continental do Brasil, considerando-se as peculiaridades regionais, a diversidade política, cultural, biológica e fitogeográfica, e tal quadro retrata a urgente necessidade de se ampliarem iniciativas de fortalecimento do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA. O Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA foi instituído pela Lei nº. 6.938, de 31 de agosto de 1981, regulamentado pelo Decreto nº. 99.274, de 06 de junho de 1990, sendo constituído pelos órgãos e entidades da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e pelas fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, e tem a seguinte estrutura: órgão superior: o Conselho de Governo; órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA; 70 órgão central: o Ministério do Meio Ambiente — MMA; órgão executor: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e o dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA; órgãos seccionais: órgãos ou entidades estaduais responsáveis pela execução de programas, de projetos e de controle e fiscalização de atividades capazes de provocar a degradação ambiental; órgãos locais: órgãos ou entidades municipais responsáveis pelo controle e fiscalização dessas atividades, nas suas respectivas jurisdições. O SISNAMA articula e coordena os órgãos e as entidades que o constituem, observado o acesso da opinião pública às informações relativas às agressões ao meio ambiente e às ações de proteção ambiental, na forma estabelecida pelo CONAMA. Atualmente o SISNAMA conta com 24.184 servidores, quantitativo insuficiente para suprir a demanda de serviços técnicos, administrativos e gerenciais por todo o país, a fim de garantir adequado funcionamento do sistema. O orçamento destinado ao Ministério do Meio Ambiente recebeu aporte significativo nos últimos anos, passando de R$ 733 milhões de 1999 para R$ 1,661 bilhão em 2002; todavia essa dotação orçamentária não pode ser utilizada em sua totalidade, já que 40% de tal montante queda-se indisponível em decorrência de política fiscal particularmente severa. Surgem então parcerias não apenas com as ONGs15, mas também com o setor privado, como parte de uma política macroeconômica que abarca todas as instituições ambientais do Estado. O fruto dessas parcerias traduz-se como um novo impulso e confere dinamismo às iniciativas que promovem a sustentabilidade ambiental e que prosperam atualmente em diversos setores e 15 ONG – Organização não governamental. A socióloga Maria da Glória Gohn, em seu livro Sem Terra, ONGs e Cidadania (São Paulo: Cortez, 2001), destaca que o valor das organizações nessa trajetória não é tanto na erradicação dos problemas sociais e ambientais quanto no aumento da participação da sociedade civil na tomada de decisões importantes para toda a população, ou seja, abrindo espaço para que os cidadãos sejam ouvidos na democracia em contínua construção no país. “Atualmente no Brasil, as ONGs são tidas como formas modernas de participação na sociedade, porque se organizam em torno dos direitos sociais modernos”, destaca Maria Luci. 71 regiões, evidenciando a amplitude de tal engajamento como apoio além-fronteiras mediante participação indistinta de governantes, da população, de empresas e do terceiro setor. Tais medidas se impõem diante da necessidade de se planejar seriamente a correta e efetiva destinação das máquinas em desuso. Apesar de a legislação ambiental brasileira ser considerada rigorosa, um aparato legal específico para o controle apropriado do descarte de resíduos sólidos foi aprovado somente em março de 2010. O Projeto de Lei 203/91 que regulamenta a Política Nacional de Resíduos Sólidos do Senado Federal que, em ementa inicial, “dispõe sobre o acondicionamento, a coleta, o tratamento, o transporte e a destinação final dos resíduos de serviços de saúde” tramitou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 203 desde 1991. A esse projeto inicial, cujo escopo alcançava apenas os resíduos hospitalares, estão apensos cerca de 100 projetos de lei relativos a resíduos sólidos variados. O processo foi objeto de análise por uma comissão especial que, em julho de 2006, aprovou a proposição principal e seus apensos na forma de um substitutivo. Posteriormente a essa aprovação, outras proposições foram apensadas ao PL 203/1991, incluindo o PL 1.991/2007, do Poder Executivo, que “institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos e dá outras providências” com objetivos, definições, princípios e instrumentos, bem como as diretrizes nacionais para o gerenciamento de resíduos sólidos no país, regulando responsabilidades e parâmetros técnicos. A política Nacional de Resíduos Sólidos: introduz o conceito de responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos; insere capítulo sobre resíduos perigosos; torna obrigatória a logística reversa para produtos que especifica; prevê a adoção de acordos setoriais; institui instrumentos financeiros e econômicos. Mesmo com a Comissão Especial formada em 2006, em 2008 a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados decidiu constituir nova comissão ora intitulada “Grupo de Trabalho” para examinar o parecer proferido pela Comissão Especial ao PL 203/91, a fim de, então, viabilizar a deliberação sobre a matéria. Esse prazo foi renovado sucessivamente até sua aprovação em 10/03/2010, 72 contemplando, além da ementa básica, a coleta seletiva nos serviços de coleta e limpeza pública, priorizando o trabalho de cooperativas e associações de catadores, a exemplo do que já foi implantado na cidade de Curitiba. Outra novidade é que os consumidores, ou seja, os geradores de resíduos ficam obrigados a classificar e acondicionar adequadamente, de forma diferenciada, os materiais recicláveis ou reutilizáveis para sua correta destinação. Esse tópico do PL 203/91 é importante, pois envolve não só os gestores públicos, mas todos os cidadãos passam a ser atores atuantes no processo de coleta seletiva de seus municípios, bem como o fortalecimento da classe dos catadores com o aumento da demanda. Os resíduos provenientes de produtos eletroeletrônicos foram mencionados detalhadamente na subseção IX do Projeto de Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos, buscando fomentar um programa responsável de reaproveitamento, reciclagem e descarte de produtos ao final de seu ciclo de vida. Anteriormente, resoluções do CONAMA sobre a destinação final de certos resíduos foram regulamentadas, como na Resolução nº 257 de 1999, que trata das baterias e pilhas esgotadas, determinando aos fabricantes a responsabilidade pelo gerenciamento da coleta, classificação e transporte dos produtos descartados, assim como o tratamento prévio dos mesmos produtos. Dentro do conceito de EPR, responsabilidade estendida do fabricante, diversos projetos de lei tramitam pelo Congresso e no Senado Federal, buscando cumprir a missão de atualizar a legislação brasileira segundo diretrizes do desenvolvimento sustentável, promovendo então um gerenciamento mais efetivo e eficiente da disposição final de resíduos sólidos, motivando ações que precedam soluções de recuperação da energia ou da matéria prima empregada na produção de equipamentos eletroeletrônicos. Porém, além da morosidade habitual no caminhar de todo e qualquer projeto de lei brasileiro, há forças contrárias provenientes do interesse de indústrias que não estão muito preocupadas com questões ambientais ou de saúde da população, e sim com seus interesses mercadológicos e econômicos. Em contrapartida, os estados da República Federativa do Brasil têm autonomia para deliberar por meio de leis estaduais, que podem vir a ser inclusive 73 mais restritivas, suprindo demandas regionais. Assim, alguns estados já votaram leis mais duras para o gerenciamento de resíduos sólidos e outros estão com projetos tramitando. No estado de São Paulo, um Plano Diretor de Resíduos Sólidos foi estabelecido pela lei nº 11.387 de 2003, para propor apropriadamente novas resoluções a respeito do gerenciamento de resíduos. No Paraná, uma legislação mais rigorosa foi previamente adotada: a lei nº 12493 de 22 de janeiro de 1999 que estabelece princípios, procedimentos, normas e critérios referentes à geração, acondicionamento, armazenamento, coleta, transporte, tratamento e destinação final dos resíduos sólidos no estado do Paraná, para controle da poluição, da contaminação e a minimização de seus impactos ambientais e a recentemente sancionada lei nº 15.851, que obriga empresas que produzem, distribuem ou comercializam equipamentos de informática a criar e a manter programas de recolhimento, reciclagem e destruição dos equipamentos ora comercializados, desde que tais empresas estejam instaladas no território do estado. Com a ausência de uma política nacional e com a autonomia dos estados, na prática o que ocorre no Brasil é que o gerenciamento dos resíduos sólidos de origem domiciliar, que inclui o grupo dos EEE, apresenta tratamento diferenciado em algumas regiões do país. Os processos de reciclagem desses equipamentos são feitos por poucas empresas especializadas, que contam com abundante e barata mão de obra para executar tarefas simples e pouco planejadas. A grande maioria dos produtos eletroeletrônicos ainda não recebe espécie alguma de tratamento e são depositados em aterros sanitários ou lixões ou permanecem armazenados ou em depósitos, no caso de empresas, ou em residências à espera de uma solução de destinação. Contudo, alguns casos de sucesso no Brasil nesta seara merecem ser destacados não só pela iniciativa e pioneirismo, mas também pela excelência dos projetos. É o caso da empresa Itautec que, desde 2003, vem estudando, implementando e incrementando soluções verdes no seu processo produtivo e na reciclagem e da USP, que inaugurou em dezembro de 2009 o CEDIR - Centro de Descarte e Reuso de Resíduos de Informática, na Cidade Universitária, resultado de pesquisas que vinham sendo realizadas desde 2007. 74 Caso Itautec – Fonte: Portal Itautec (www.itautec.com.br) Produção verde Em 2001, com a implantação de um SGA – Sistema de Gestão Ambiental, a Itautec começou a adotar processos de manufatura em linha com preocupações ambientais e uso racional de recursos, cuja experiência foi incorporada ao processo fabril, o que conferiu à Itautec um particular destaque que a levou a figurar entre as primeiras empresas na área de tecnologia no Brasil por fabricar equipamentos livres de chumbo, além de produzir microcomputadores e notebooks livres de outras substâncias tóxicas ao meio ambiente como o cádmio, o cromo hexavalente (um anticorrosivo para partes metálicas) e a cadeia de bromobifenilas (usadas para evitar a propagação de chamas). Sob a luz da diretiva européia RoHS (Restriction of Hazardous Substances), reconhecida em todo o mundo como uma referência de adequação ambiental por recomendar a restrição ao uso de substâncias que agridem o ambiente, a partir do 3º trimestre de 2007, a Itautec passou a oferecer ao mercado brasileiro equipamentos verdes, ficando então todos os portáteis fabricados pela empresa livres de substâncias tóxicas, e até o final de 2008, a empresa migrou suas demais linhas de produto para processos verde, com rígidos controles ambientais, o que demandou investimentos da ordem de R$ 3 milhões, aplicados ao longo de dois anos, na adequação de linhas de produção. Os investimentos foram destinados, entre outras atividades, à aquisição de maquinário e componentes específicos, e na adoção de uma nova liga de solda que substituiu o chumbo por uma liga composta de estanho, cobre e prata (lead free). Esta alteração nas linhas de produção da Itautec, refletiu nos processos de seus fornecedores, fazendo com que diversas empresas adequassem seus insumos segundo a diretiva ambiental. As mudanças nos insumos e nos processos, contudo, acarretaram um acréscimo de 2% nos custos de produção dos equipamentos, porém sem acarretar um acréscimo ao seu preço final para os clientes, política que a Itautec adotou por razões estratégicas. Em 2008, a Itautec obteve o índice de 93% de produtos fabricados em linha com a diretiva RoHS, sendo que os 7% restantes são de produtos cuja fabricação está em fase de substituição, devendo ser sucedidos gradativamente por novos 75 lançamentos. A previsão é de que, até o final de 2009, esse índice seja de apenas 2% dos produtos fabricados. Todos os equipamentos fabricados pela empresa atendem ainda à diretriz da agência ambiental norte-americana Energy Star 4.0 (http://www.energystar.gov para eficiência energética. Reciclagem A empresa investiu R$ 350 mil na implementação de uma área destinada à reciclagem de equipamentos de T.I. na sua planta de Jundiaí-SP, onde os equipamentos são recebidos, desmontados, descaracterizados, pesados e depois têm suas partes segregadas por tipo de material. O processo contempla computadores desktop, notebooks e equipamentos de automação. Após a etapa de separação por tipo, os resíduos são destinados à empresas de reciclagem devidamente homologadas para o processamento ou destinação final dos diversos produtos. Os recicladores, por sua vez, reinserem os resíduos novamente na cadeia produtiva, evitando a contaminação ambiental pelo descarte incorreto e reduzindo a extração de matérias primas virgens do meio ambiente. Em 2008, a Itautec destinou para reciclagem 469,97 toneladas de resíduos de EEE, sendo: 22,76 t placas; 180,54 t metal; 148,10 t plástico e 141,33 t de e-waste (cabos, borra de solda, dentre outros resíduos não recicláveis). O domínio deste processo vem se tornando cada vez mais importante para as operações da Itautec porque grandes clientes, de corporações a organizações do governo, já estão incorporando a preocupação com o ciclo de vida de produtos em seus processos de compra e descarte, bem como a observância à presença ou não de materiais tóxicos nos equipamentos, que facilitará seu manejo ao fim de sua vida útil. 76 Histórico Inicialmente, a reciclagem estava prevista no Sistema de Gestão Ambiental da Itautec. A implantação de um programa de coleta seletiva, que tinha como objetivo mudar a cultura dos colaboradores e fazer com que eles participassem, dentro de uma linha de conscientização ambiental, do melhor aproveitamento de materiais, evitando desperdícios, foi o primeiro passo. Esse caminho levou os trabalhos de P&D para soluções de reciclagem de microcomputadores pessoais, o que foi um grande desafio, uma vez que não havia empresas com conhecimento técnico para reaproveitar os materiais, produtos do processo de desmonte das máquinas. Porém, em 2003, surge o domínio deste processo a partir de ensaios realizados, permitindo que os materiais que constituem um computador retornassem à cadeia produtiva, em vez de seguir para aterros sanitários ou para o mercado cinza – mercado de computadores montados sem marca, com componentes de origem duvidosa. Atualmente esta segregação de materiais é realizada em um galpão de 715 m2. Processo Os equipamentos são recebidos, classificados e depois separados com base em seus componentes principais, como plástico, metais, cabos, embalagens e componentes eletrônicos, que incluem o HD, memórias e as placas de circuitos integrados. Todas as partes são descaracterizadas para prevenir o uso no mercado cinza. Após atingir uma quantidade pré estabelecida, estes materiais são acomodados em pacotes maiores, para facilitar armazenamento e transporte e, em seguida, são reintroduzidos no processo produtivo de empresas parceiras. A planta de reciclagem de Jundiaí ainda processa outros resíduos do processo fabril como embalagens plásticas, papel e papelão, que são acomodados em fardos, após passar por uma prensa industrial. A única exceção a esta reciclagem de materiais tecnológicos se aplica às placas de circuito impresso. Como não existe tecnologia homologada no Brasil para extrair destas placas os metais nobres utilizados, a Itautec acumula estas placas e, quando atingem um determinado volume, são enviados para parceiros em Cingapura e na Bélgica, onde elas são completamente recicladas. Do total de lixo eletrônico da Itautec destinado para reciclagem, aproximadamente 97% dos 77 materiais são reciclados por empresas instaladas no Brasil. Os demais 3%, que constituem as placas de circuito impresso, vão para parceiros no exterior. Caso USP – Fonte: Portal do Governo de SP (www.sp.gov.br) Com a finalidade de solucionar o problema do descarte de equipamentos de informática, o Centro de Computação Eletrônica da USP (CCE-USP) inaugurou em dezembro de 2009, na Cidade Universitária, o Centro de Descarte e Reuso de Resíduos de Informática – CEDIR, órgão pioneiro na sua modalidade em instituições públicas. Com área de 400m2, o galpão tem acesso para carga e descarga de resíduos, depósito para categorização, triagem e destinação de lixo eletrônico, além dos equipamentos necessários para a adequação do material. A iniciativa é resultado do trabalho voltado para a sustentabilidade em TI, iniciado 2007. O plano-piloto do projeto CEDIR teve início em junho de 2008, por meio de ação realizada entre os próprios funcionários da unidade, a “Operação Descarte Legal”. O resultado foi a coleta, em um único dia, de mais de cinco toneladas de peças e equipamentos eletroeletrônicos obsoletos. "Essa experiência permitiu-nos uma primeira avaliação sobre o volume de lixo eletrônico existente na USP e concluímos que ações precisavam ser tomadas", recorda a diretora do CCE, Tereza Cristina Melo de Brito Carvalho. O projeto foi estruturado no conceito de que a USP, como instituição de ensino e pesquisa referência no país, tem papel fundamental na disseminação de ações sustentáveis. A motivação de toda a equipe e o apoio da instituição foram responsáveis pela rapidez de realização, cujo projeto começou a ser elaborado em janeiro de 2009, executado em maio e concluído em outubro do mesmo ano. Para isso, contou, entre outros, com a parceria do Laboratório de Sustentabilidade do Massachusetts Institute of Technology (MIT), dos Estados Unidos, que compartilhou dois dos seus programas, e com a Itauctec, que prestou assessoria tecnológica, além do forte empenho da comissão de sustentabilidade do CCE, composta por oito membros e uma coordenadora. Etapas do projeto Aquisição de micros verdes, como são apelidados os computadores fabricados sem chumbo e outros metais pesados, e a criação do Selo Verde, 78 certificação própria para identificar as máquinas com material e funcionamento adequados ambientalmente. Essas foram as duas primeiras ações do projeto ewaste (lixo eletrônico), elaborado em 2007 pela comissão de sustentabilidade do CCE, formada por sete membros, que deu origem ao CEDIR. As próximas etapas do projeto são a estruturação do funcionamento do próprio centro, organizada em um projeto que contempla duas fases: a criação do Laboratório de Sustentabilidade para a realização de pesquisas e o treinamento de pessoas; depois a expansão do programa de sustentabilidade para outras unidades da USP e a comunidade em geral. A primeira fase do projeto, prevista para iniciar até o fim do primeiro semestre deste ano de 2010, compreende a realização de operações de coleta, triagem e categorização no campus paulistano e de coleta e triagem nos centros de informática dos campi de Ribeirão Preto, São Carlos e Piracicaba. Esta fase ainda se subdivide em etapas, com relação aos participantes: a inicial abrange funcionários das unidades da USP, a segunda, familiares de funcionários, alunos e docentes e a 3ª etapa, o público em geral, além de uma possível parceria com a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). A fase seguinte, a partir do segundo semestre, prevê operações de coleta e triagem nos campi de Bauru, Pirassununga e Lorena. O Laboratório de Sustentabilidade deve entrar em funcionamento com atividades de apoio em P&D do CEDIR, como pesquisas, treinamentos, seminários e workshops. Economia verde Outro desafio a ser enfrentado pela comissão de sustentabilidade é o de motivar a criação de uma empresa de reciclagem nacional especializada em placas de circuito impresso, uma vez que no Brasil ainda não há tecnologia para o reaproveitamento dos metais nobres que compõem as placas, como o ouro. Hoje, a única solução encontrada é enviar para outros países que já possuem tecnologia eficiente para que reciclem esses resíduos. Também outra importante demanda para o grupo é fomentar projetos de lei para regulamentar a produção verde e responsabilizar os fabricantes de EEE pela reciclagem ou destino sustentável ao fim da vida útil de seus produtos. 79 5 Considerações Este último capítulo procura verificar, sob a luz dos objetivos específicos, se o percurso trilhado na realização da pesquisa conduziu a novos horizontes. O primeiro dos objetivos centrou-se na estruturação dos fundamentos teóricos que embasassem o levantamento de alternativas para o problema de pesquisa. Nessa etapa foi possível conferir nitidez à idéia de que muito do que se reconhece hoje como “problemas da modernidade” podem apresentar um lado um tanto quanto obscuro ainda, mas cheio de possibilidades de atuar como um meio bastante viável de geração de novos postos de trabalho, com implementação de programas de capacitação para novas tarefas, atenuando o número de excluídos da sociedade. Esses excluídos, ou seja, os verdadeiramente pobres no sentido exato da palavra: a pobreza material, a falta de acesso a meios de suprimento de suas necessidades mais básicas, poderão ser justamente os maiores beneficiários dos novos programas de reciclagem que, num primeiro momento, visam a preservação ambiental. A constatação de que tudo o que se discute atualmente já foi debatido e pesquisado de forma aprofundada pela equipe liderada por Gro Harlem Brundtland do início da década de 1980 até a publicação do relatório Nosso Futuro Comum, em 1987, mostra a dura realidade da humanidade: mesmo com todo o conhecimento adquirido, mesmo com todas as previsões e mesmo diante da urgência de atitudes, muito pouco foi efetivamente realizado nesses últimos 20 anos! Ainda hoje se colocam em discussão os mesmos problemas que há vinte anos se debatia novas agendas e novos protocolos se repetem indefinidamente. Destacou-se a pobreza como o grande problema da sociedade globalizada, quando o tema se refere a meio ambiente, a economia ou a crescimento populacional. Os hábitos de vida e consumo da moderna civilização propiciam um grau de risco particularmente elevado para a sociedade que, mesmo detentora de informações e de conhecimentos suficientes para tornar-se agente de radicais mudanças comportamentais, tem permanecido inerme, com seus quintais murados, como se nenhuma força pudesse ruir suas fortalezas; não enfrentam a 80 dura verdade embora não sejam diferentes da camada mais pobre da população, pois enquanto esta perde sua liberdade pela imposição da incapacidade de exercer um trabalho digno, de ter acesso a moradia e a alimentação, a fatia da sociedade privilegiada, também acaba tendo cerceada sua liberdade pelo medo da perda, pela insegurança causada pelos riscos advindos de suas próprias escolhas. Em segundo lugar, havia a intenção de levantar quantitativamente o parque de informática do governo do estado. Este era um projeto da Celepar que, com a implantação de um software de gerenciamento de hardware, tornaria possível criar e manter, atualizado a distância, um completo cadastro de todos os equipamentos de todos os órgãos. Por motivos tanto de política interna da empresa quanto de falta de recursos para operacionalizar esse grande banco de dados, o projeto foi suspenso e, sendo assim, o levantamento quantitativo que subsidiaria informações para a presente pesquisa tornou-se inviável. Logo, por motivos meramente operacionais, este objetivo não foi totalmente atingido, porém os dados apresentados no Capítulo 3 acerca das políticas internas para equipamentos de T.I. supriram também a necessidade de informações quantitativas para melhor embasar este trabalho no tocante às conclusões e recomendações. Com o terceiro objetivo pretendia-se diagnosticar, no Brasil e fora dele, as principais medidas legais e soluções adotadas para a destinação de resíduos eletroeletrônicos. Observa-se que há uma tendência mundial acerca do conceito de responsabilidade estendida ao fabricante e na produção verde, na qual substâncias químicas nocivas à saúde humana e ao meio ambiente são substituídas por outros compostos; porém não se chega a um consenso com os chamados lixos históricos, ou seja, todo o contingente de equipamentos eletroeletrônicos que já se encontram em desuso, armazenados em depósitos de empresas ou em residências, aguardando uma política de descarte. Isso ocorre em todos os países, não só no Brasil. Quanto mais se demora na implantação de sistemas de coleta ou de responsabilização quanto à destinação, mais aumenta o volume dessa categoria de lixo “órfão” pelo mundo. A pesquisa evidenciou que a União Européia é a região que está à frente quanto à legislação ambiental no tocante aos resíduos tecnológicos, cuja abrangência vai da produção do bem até o fim de ciclo de vida, com retorno dos 81 componentes à cadeia produtiva ou destruição, causando nenhum ou o menor impacto possível. Porém o Brasil, mesmo pertencendo à categoria de “país em desenvolvimento”, incluiu na sua Constituição Federal matéria extensa sobre meio ambiente, bem como diversos estados legislam pela promoção de práticas que promovam a preservação ambiental e a saúde do homem. O quarto e último objetivo tencionou, após uma compreensão percebida com a exploração dos objetivos anteriores, apontar para uma ou talvez, mais pretensiosamente, elencar algumas medidas que poderiam ser soluções para o lixo tecnológico gerado nos órgãos públicos do estado do Paraná. Dois movimentos nos levaram a formar uma opinião, antes de chegar a uma conclusão ou propor uma solução. O primeiro foi percorrido ao longo do curso e da atual pesquisa. É de caráter exploratório com o objetivo primordial de apropriar-se de um conhecimento até então superficial, para lançar mão dele como ferramenta fundamental na construção de uma idéia mais ampla, mas ao mesmo tempo bastante específica. Ampla porque permitiu extrapolar os horizontes até então conhecidos, e específica porque, mesmo indo além, o foco permaneceu centrado no mesmo problema. Esse é o caminhar científico, que assegura, enriquece e transforma o conhecimento. O outro movimento, por sua vez, surgiu quando nos detivemos durante o caminho exploratório e, mesmo sem deixar esse caminho certo, seguro, dirigimos o olhar para um todo, para uma realidade maior. Assim, o olhar tornou-se um olhar capaz de absorver a realidade com toda a sua diversidade, pois só quando já conhecemos as particularidades, e a pesquisa exploratória nos permite isso, é que conseguimos olhar a realidade suportando-a em toda a sua plenitude. Esse tipo de percepção nos levou a conhecimentos diferentes daqueles que conseguimos no movimento exploratório. Porém, ambos são complementares, um e outro, pois assim como necessitamos, muitas vezes, dirigir o olhar do estreito para o amplo, o inverso também se mostra necessário. No movimento exploratório, olhando estreitamente para o problema ora apresentado, tornou-se compreensível, neste viés, acreditar que as soluções mais viáveis para a correta destinação dos resíduos tecnológicos dos órgãos públicos poderiam percorrer os meandros legislativos, propondo uma regulamentação mais 82 eficiente e, ao mesmo tempo e para que os resíduos não se acumulassem nos porões da burocracia estadual, os gestores poderiam lançar mão de leilões de vendas de sucatas e para alguns equipamentos que, apesar de incompatíveis para as tarefas realizadas na manutenção dos diversos serviços públicos, ainda podem oferecer oportunidade de inclusão digital para alguns indivíduos da sociedade, chamados de carentes ou pobres, sendo, então, doados para entidades governamentais ou não, atuantes nessa causa. O trabalho poderia encerrar-se aqui, com essas soluções bastante viáveis e de uma simplicidade que pareceria atraente para qualquer gestor. Todavia, o desconforto com uma outra questão persistiria. Quando falamos em “destinação final”, “correta destinação”, parece que estas ações estão chanceladas com um “certificado” que asseguraria que a sucata tecnológica teria sido “definitivamente e irreversivelmente” tratada, desmantelada, reinserida na cadeia produtiva, enfim, não haveria mais a menor possibilidade daquele “lote” de entulho eletrônico tornar-se, depois de certo tempo, novamente um problema. Porém, seja por meio de leilão ou por doação, esses equipamentos ou restos deles estarão agora não mais sob o domínio dos gestores públicos, mas, pior, sob custódia de uma organização que poderá ter menos condições não só financeiras, mas também de conhecimento técnico ou de responsabilidade ambiental, para tratar de uma “correta destinação” para esses rejeitos. Do ponto de vista ambiental, é inegável o estabelecimento de liames entre a preservação e uso sustentável dos recursos naturais com o reaproveitamento de resíduos sólidos, e aqui estão incluídos os resíduos de equipamentos eletroeletrônicos, seja na reutilização direta de materiais, reciclagem e retorno, seja como matéria prima para ciclos produtivos. Para a sociedade, projetos de coleta seletiva e outros similares que incentivam a reutilização e a reciclagem com inclusão dos catadores ou de outras classes marginais, como egressos do sistema penitenciário, apresentam possibilidades economicamente viáveis e ambientalmente sustentáveis pelo correto manejo de resíduos, uma vez que estimula a criação gradual de alternativas de reaproveitamento e reciclagem dos mais variados tipos de materiais e reduz a extração de recursos naturais, proporcionando a ampliação da 83 consciência ambiental e da participação da sociedade mediante mecanismos geradores de renda e trabalho e de educação ambiental. Há ainda um caminho que antecede o descarte de qualquer tipo de resíduo, e que se inicia com a sua aquisição. Imprescindível é elucidar que os órgãos públicos, sob o rigor da Lei Federal 8666 de 21/07/1993, têm toda e qualquer compra ou contratação de serviços atrelada a um processo licitatório. Tal processo poderia ser uma arma importantíssima que abarcaria desde a origem do produto até a sua destinação. Como simples exemplo, na aquisição de equipamentos de informática, seria possível descrever no objeto da licitação requisitos como a produção livre de químicos tóxicos ou perigosos e, no mesmo processo, aplicar o conceito de responsabilidade estendida ao fabricante ou fornecedor para que, ao final do ciclo de vida do produto adquirido, o mesmo fosse recolhido e corretamente destinado. Para a constituição de tal cenário, cabe ao administrador público o papel fundamental na construção de uma nova consciência socioambiental; seja lançando mão dos processos licitatórios para garantir a produção limpa, livre de químicos tóxicos ou perigosos, seja para prever uma correta destinação dos resíduos que fazem parte do objeto da licitação. Contudo, é de extrema importância à mobilização do Governo do Estado para o desenvolvimento social e para a construção de uma economia solidária, fomentando projetos que privilegiem a inclusão de classes com baixo grau de empregabilidade nos programas de reciclagem, promovendo-lhes não só a capacitação para uma nova profissão, mas ainda sua integração social por meio da formalização de cooperativas ou associações não só na capital do estado, mas também nos demais municípios, estabelecendo a gestão democrática, participativa e inclusiva de todos os atores 84 6 Referências ABINEE (2009) Estatística Desempenho Setorial. Disponível em: www.abinee.org.br Acessado em 28/08/2009. BARBIERI, J. C. (2004) Gestão ambiental empresarial: conceitos, modelos e instrumentos. São Paulo: Saraiva. BECK, U. (2000) Risk Society. Towards a New Modernity. London: Sage. BECK, U. (2002) La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo XXI de España Editores S.A. BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. (ORGS.) 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Sob a influência de Sócrates, ele buscava a verdade essencial das coisas.