0
IDENTIFICAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO RACIAL NO BRASIL: O CASO DAS BANCAS DE VERIFICAÇÃO
DA AUTO CLASSIFICAÇÃO RACIAL NO VESTIBULAR DA UFPR.
MARCOS SILVA DA SILVEIRA1
RESUMO:
A proposta agora apresentada pretende ser uma continuidade frente ao que pode ser
apresentado e discutido na reunião da ABA em Natal, em 2014. Lá, apresentava uma
proposta inicial de pesquisa, na qual procurava considerar o (meu) papel de antropólogo
diante dos desafios colocados pela implementação das políticas de inclusão racial da
UFPR, entre os anos de 2005 e 2012. Neste segundo momento, pretendo me deter
exclusivamente na realização das bancas de verificação da auto identificação racial,
ocorridas na UFPR entre os anos de 2009 e 2010, recuperando o debate que se
estabeleceu na Antropologia, em torno desse tipo de Banca, cerca de 10 anos atrás.
Pretendo demonstrar que as questões polêmicas da organização e do funcionamento
desta banca podem ser melhor entendidas quando levamos em consideração as questões
antropológicas em torno de processos de Identificação e Classificação no Brasil como
um todo. A questão racial irá aparecer como uma dimensão, certamente privilegiada,
dos dilemas da cidadania no Brasil.
RAÇA - IDENTIFICAÇÃO RACIAL - CLASSIFICAÇÃO RACIAL
1
Professor Associado I no departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná
Programa de Pós graduação em Antropologia da Universidade Federal do Paraná
Pós doutorando no Programa de Pós graduação em Antropologia Social do Museu nacional –
UFRJ.
1
Ao longo da primeira década do século XXI diversas universidades públicas,
federais e estaduais, desenvolveriam cerca de sessenta programas de inclusão para
grupos sociais distintos – negros alunos de escola pública, alunos de baixa renda, alunos
da zona rural, indígenas, quilombolas, portadores de necessidades especiais, etc. No ano
de 2012, um programa de inclusão federal foi constituído para as Universidades
federais, instituindo que metade das vagas do vestibular será destinada a estudantes que
fizeram ensino médio nas escolas públicas e, destes, um percentual será destinado a
estudantes pretos, pardos e indígenas, dentro da proporção destes grupos étnicos raciais
na unidade da federação correspondente. Esta nova disposição federal obrigará uma
alteração nos Programas de inclusão racial da Universidade Federal do Paraná, que não
vinculava o critério racial à formação na escola pública, permitindo, por outro lado, uma
avaliação crítica desta primeira fase dessas políticas afirmativas em geral e das “Cotas
raciais” em particular – compreendendo os anos de 2005 a 2012 – e suas conseqüências
para a vida universitária da UFPR.
O tema a ser apresentado aqui vem a ser a Banca de verificação da auto
declaração de pertencimento étnico racial no vestibular da UFPR e o que pode ser
considerado em termos antropológicos a partir desta experiência. Que tipo de
conhecimento antropológico, por sua vez, pode ser produzido a partir deste tipo de
experiência, essa é a questão que nos interessa, afinal. Eliane Cantarino Od’wier2
(2005)se pergunta se estamos diante de um exercício profissional da disciplina ou diante
de uma pesquisa aplicada, quando trabalhamos neste campo político de aplicação dos
direitos constitucionais e do exercício da cidadania, no qual os limites entre as
atividades de pesquisa dentro e fora da academia torna-se tênue.
O problema que ela apresenta está em transformar este fato do fazer
antropológico num debate entre uma Antropologia aplicada comprometida com
interesses externos a prática antropológica e uma antropologia da ação eticamente
comprometida com os povos e grupos estudados pelo antropólogo, distinção pouco
relevante se não vem acompanhada de uma discussão sobre o próprio fazer
antropológico que deve estar presente em qualquer fazer antropológico...ou seja,
independente do que se faça é preciso discutir o que se está fazendo e o que está
acontecendo.
2
“Laudos antropológicos: pesquisa aplicada ou exercício profissional da disciplina? In LEITE, Ilka
Boaventura. Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: ABA/NUER, 2005.Pgs 215-238.
2
Nesse sentido, um ponto de partida melhor delimitado pode ser encontrado em
uma discussão do ano de 2005, publicada no periódico “Horizontes antropológicos”, da
UFRGS. O volume 23 foi dedicado a um dossiê sobre as cotas raciais, a partir de um
texto de Maio e Santos intitulado Política de cotas raciais, os “olhos da sociedade” e
os usos da antropologia: o caso do vestibular da universidade de brasília (UNB)”,
centrado nos problemas da banca de verificação da auto declaração, criada para evitar a
“burla racial” no Programa de cota desta instituição. A mesma trabalhava com fotos dos
candidatos que eram examinadas por uma comissão, que decidia quem poderia ou não
concorrer ao vestibular através das cotas raciais. Tal procedimento foi alvo de muitas
críticas, principalmente em função das evidentes dificuldades em definir quem era ou
não negro, de alguns casos complicados, como os dois irmãos que um foi aprovado e o
outro não, devido à ausência de critérios “objetivos” que pudessem ser aplicados....
O artigo, originalmente uma comunicação apresentada na ANPOCS, em 2004,
foi distribuído para uma série de pesquisadores que já haviam se manifestado em torno
do debate das cotas, que responderam com suas considerações. Ao final, os dois autores
redigiram uma tréplica. Podemos afirmar que este debate apresentou alguns pontos
importantes, que, por uma série de motivos, não foram desenvolvidos num debate
permanente, embora algumas questões tivessem tido um desenvolvimento importante
fora deste tema. Visto de hoje, parece que essa discussão muito mais silenciou um
debate do que o estimulou.
O primeiro problema a ser trazido é que, do ponto de vista da Banca, o número
de pessoas barradas era pequeno. No caso da UNB, de 4385 candidatos, apenas 212
foram rejeitados, menos de 5%! No caso da UFPR, o percentual de candidatos não
validados também ficava na faixa dos 5%, sendo que em torno de 10% tinham sua
declaração questionada, dos quais metade eram considerados aptos e a outra metade
não. Se a situação mais tranqüila dos 90% dos candidatos deveria ser melhor
considerada, as dificuldades envolvendo estes 10% também merecem ser apreciadas.
Uma questão interessante levantada por Maio e Santos é a possibilidade de ver a
banca de verificação como um “evento crítico” seguindo o conceito formulado pela
pesquisadora indiana Veena Das(1995). Veena Das usa o conceito de Evento crítico
para falar de algumas questões políticas na moderna Índia contemporânea, de diversas
comunidades políticas frente ao Estado, a União Indiana, entendidas como exercícios de
Etnografias experimentais, o que é uma boa ideia para este caso. Uma releitura dos
3
capítulos desta obra traz muita inspiração para uma abordagem mais antropológica e
menos tendeciosa de tão delicado tema.
Significativamente, uma das categorias utilizada por Veena Das para situar os
dramas da política cultural na India contemporânea é “Paixão”. Como ela afirma,
“Paixão” constitui também o novo campo político de identidades, atores,
reinvindicações frente ao Estado e afirmações de valores culturais em jogo. Eventos
críticos é um conceito inspirado pela revolução francesa e seu caráter inusitado no
quadro político e cultural da frança no século XVIII e serve para que se pense, em
situações contemporâneas, eventos fundamentais na construção dos novos estados
modernos, nos quais categorias e decisões já consagradas no cenário político tem que,
necessariamente, serem revistas a luz de novas questões e demandas. Nos casos que ela
analisa, temos várias situações que obrigaram a uma revisão de uma série de
estereótipos sobre a vida indiana: a Partição do antigo Império Britânico e suas
consequências para uma série de família, muçumanas e hindus; mulheres muçulmanas
reivindicando direitos de herança, mulheres hindus reivindicando o direito de
cometerem SATI3, o caso das reivindicações dos Sicks por um Estado independente, as
vítimas da tragédia de Bhopal. Em cada um destes casos, A autora procura mostrar
como novos agentes políticos vão sendo constituídos recriando suas tradições, suas
memórias coletivas e agenciando suas novas reivindicações diante de um Estado que
aparece ameaçador por um lado e que termina por se apropriar dos termos e significados
dessas reinvindicações por outro, de formas que vale a pena conhecer melhor para
comparar com o que vem acontecendo no Brasil atual.
De qualquer modo, A União indiana tem um padrão de relações entre Estado e
comunidades, e uma noção de Sociedade fundada em diversas comunidades, que é
estranho ao Brasil. O Estado indiano parece muito mais paternalista do que o brasileiro,
seus agentes ouvem as reinvindicações comunitárias, que são atendidas dentro de um
quadro de negociações políticas muito amplo, indo do local ao nacional por diversas
vias, com diversas vozes, que precisam ser devidamente etnografadas e interpretadas.
Cientistas sociais tem um papel importante nesse tipo de negociação e tanto sua ação
3
SATI é o ritual no qual uma viúva é queimada na pira funerária do Marido. Há uma longa discussão
sobre esta pratica na India, que foi proibida pelos britânicos. Há proibição foi mantida na constituição da
União Indiana e tem consequências na vida social e religiosa hindu. Um lugar onde o SATI é cometido –
um campo crematório no caso – é sacralizado ou tem sua sacralidade reforçada por tal prática. Nem os
britânicos nem os atuais governantes da India estão muito interessados neste reforço, o que gera
situações complicadas diante de uma constituição que afirma garantir direitos religiosos e culturais
específicos aos seus cidadãos.
4
política quanto sua produção textual merecem ser tomadas como mais uma “voz nativa”
nos casos, o que não é estranho ao Brasil.
Vistos desta forma, os programas de Cotas raciais – e não apenas as bancas de
verificação – constituem um Evento Crítico na sociedade brasileira, gerando, para além
das paixões políticas bastante evidentes, toda uma redefinição de uma série de
categorias fundamentais para o entendimento da vida cultural brasileira contemporânea.
Cor, raça, etnia, Negritude, educação, Inclusão, justiça, direitos, cidadania, tudo passou
e passa a ser redefinido e será essa redefinição de conceitos e valores por novos agentes
políticos que se recriam neste processo o que interessa ser investigado num Evento tão
crítico como este.4
Não era exatamente o que estava sendo discutido no Brasil, dez anos após a
publicação de Critical Events.5No caso da Banca racial, o temor pela criação de
“sociedades divididas”6, que a política de cotas estava causando a partir da verificação
da Auto declaração, em muitos dos pesquisadores que publicaram em Horizontes
antropológicos e em outras coletâneas7não fazia sentido mas deixava a pergunta, “Por
que causou tanto esse tipo de incomodo?”
Se olharmos melhor, o que a banca, seja a da UNB ou a nossa da UFPR, fazia?
Identificava fenótipos raciais dentro de um sistema classificatório de identidade “étnico
raciais” bastante presumido e pouco discutido. Grosso modo, partia-se do modelo de
classificação proposto pelo IBGE que define, Brancos, Pardos, Pretos e Amarelos – e a
partir do censo de 90 passou a considerar os indígenas separados dos pardos – e este
modelo era utilizado numa auto declaração realizada primeiramente pelos candidatos no
ato da inscrição no Vestibular, o que permitia aos Negros – também entendido pelo
mesmo IBGE como a soma dos Pretos e Pardos – o direito de optar pela vaga da cota
racial. No nosso caso, esta auto declaração passaria pela verificação na Banca para
garantir a vaga e não o direito de concorrer a ela, como na UNB.
4
O fato da constitucionalidade das cotas raciais terem sido alvo de votação na Plenária do STF apenas
confirma esse caráter crítico, nos termos de Veena Das.
5
O livro foi bem lido no Brasil e se encontra em várias bibliotecas. Veena Das cita Mariza Peirano e
Roberto da Matta no seu epílogo, esteve numa reunião da ANPOCS e publicou um dos capítulos desta
coletânea na RBCS.
6
Termo de Yvonne Maggie em seu artigo na coletânea referida: Politicas de cotas e o vestibular da UNB
ou a marca que cria sociedades divididas.
7
Há uma outra coletânea.”divisões perigosas”, um tanto repetitiva diante do que já foi publicado em
Horizontes antropológicos. É uma compilação de diversos artigos escritos por intelectuais brasileiros
sobre as cotas raciais, a maioria com pontos de vista desfavoráveis as mesmas. Sobre esta segunda obra
ver a resenha de Marcio Goldman: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1606200725.htm
5
Em 2009, quando fui assistir a Banca durante o registro acadêmico, coisa que
ninguém mais queria fazer, me chamou a atenção, inicialmente, a fala de um militante
do Movimento Negro local de que havia um número muito grande de pessoas querendo
fraudar o processo. Pessoas tomando sol para parecerem mais negras – o registro
acontece na primeira semana de fevereiro, após as férias de verão – fazendo tranças e
dread locks, e coisas assim. Que certas decisões eram difíceis e que a Banca as vezes
tinha dificuldade em decidir. Me passou um clima de tensão que acabei não encontrando
ao longo do processo que pude assistir.
O que me chamou a atenção, em primeiro lugar, é que ele corria com relativa
tranqüilidade. Os candidatos eram chamados pelo curso – seguindo a ordem do registro
acadêmico – traziam uma documentação para apresentar depois da banca, com o
documento da auto declaração deferida e era isso. As pessoas da Banca faziam
perguntas, principalmente se a pessoa tinha sido alvo de racismo ao longo da sua vida
escolar e lembravam que talvez viessem a passar por situações semelhantes na
Universidade. Praticamente todos os candidatos tinham casos para contar, embora não
fossem incentivados a se demorar muito nesta narrativa. Os casos eram muito
recorrentes, principalmente de brincadeiras com relação a cor, ao cabelo, mas também
casos de racismo e discriminação entre parentes, geralmente tios e avós, e em menor
escala, primos. A pergunta básica era: “- Quem é negro na sua família?”
Com relação as pessoas que tinham a auto declaração questionada, me parecia
que se “barrava” mais homens do que mulheres. Haviam alguns traços que realmente
eram eliminatórios, como olhos claros, embora pelo menos um candidato de pele bem
escura os tivesse. Acabou passando, mesmo assim, já que era baiano e evidentemente
negro aos olhares paranaenses!
Haviam casos delicados, como a de uma jovem, concorrendo a uma vaga no
curso de pedagogia noturno, que era muito clara e tinha o cabelo loiro e alisado. Ela era
faxineira numa firma e afirmou que só conseguiu este emprego depois que alisou e
tingiu os cabelos de loiro. Enquanto manteve os cabelos no estilo “afro” foi sempre
recusada. Ela teve sua auto declaração aceita. Era muito comum ver garotas com
“chapinha” e rapazes com a cabeça raspada, o que eu creditava ao fato de serem
calouros. Houve um rapaz, evidentemente pardo, que teve sua auto declaração
questionada em função de não apresentar nenhum outro traço evidente de fenótipo
negro. Também estava com a cabeça raspada. Ele alegou que já havia passado por uma
banca para vaga racial no serviço público paranaense e que tinha sido aprovado,
6
portanto, como poderia ser recusado ali? Houve um impasse que durou bastante tempo e
ele acabou sendo aprovado também. Outro rapaz, gaúcho de olhos claros, acabou tendo
sua autodeclaração não validada. Ele era motorista de taxi no Rio grande do Sul e
contou alguns casos de discriminação por passageiros que evitavam pegar o seu carro.
Ele tinha um tipo mais claro, como um todo, e acabou não sendo aprovado.
Em 2009 eu já havia assumido a direção do NAPA, núcleo de acompanhamento
das ações afirmativas, que cuidava mais dos estudantes indígenas do que das cotas, mas,
em função deste cargo fui presidir a Banca do ano de 2010. Eu cheguei a produzir um
pequeno texto de esclarecimento sobre a banca racial para ser incluído na página da
inscrição do vestibular e ser divulgado pela UFPR notícias, mas não sei se isso chegou a
acontecer.
A direção do NAA- Núcleo de assuntos acadêmicos, responsável pelo registro
acadêmico dos calouros e ligado à Pro reitoria de graduação - pediu para que eu tentasse
fazer uma banca mais ágil e tentasse também evitar o grande número de processo contra
as decisões da mesma, pois os processos seguravam as vagas – para a segunda chamada
– enquanto eles corriam. Achei que se poderia diminuir o número de membros da
Banca de 5 para 3, mantendo um número ímpar. Ao contrário da UNB, se o candidato
não obtivesse maioria, ele não era validado, mas, como eu tinha visto no ano anterior,
na prática prevalecia um consenso. Eu não votava, apenas assinava, enquanto
presidente, o veredito final e me colocava numa posição de interlocutor com a Banca,
principalmente nos casos mais difíceis.
O primeiro problema que me deparei foi com a composição da Banca. Eu tinha
que enviar para o Gabinete do Reitor uma lista com o nome dos participantes. Quando
questionei o então coordenador do NEAB sobre estes nomes, ele me respondeu muito
vagamente: “ A fulana sempre vem, o fulano que trabalha na ... também”. Achei tudo
muito informal. Noutro momento pedi que ele me enviasse uma lista de nomes
completos por email e os respectivos contatos para um convite formal. Era a última
semana de janeiro e não foi nem um pouco fácil conseguir garantir um número de
pessoas em cima da hora.
Na segunda feira começamos, com as pessoas que apareceram. Não havia
grandes problemas como no ano anterior, mas, por outro lado, o número de candidatos
“pardos” com a pele clara mais traços característicos do fenótipo negro eram freqüentes,
o que causava algumas dúvidas. A banca procurava perceber a compreensão que os
candidatos tinham da questão racial brasileira e da discussão em torno das cotas e se
7
decepcionava em constatar que a maioria ignorava a ambas, em larga medida. Havia um
militante do movimento negro local, professor muito conhecido ligado ao sindicato
local – APP sindicato – que insistia muito com os candidatos nesse sentido e exclamava
continuamente que tinham que aprovar apesar dos mesmos “não terem consciência”.
Aquilo me causou dúvidas, uma vez que o que estaria em jogo era o fenótipo. Ao
mesmo tempo, embora ele afirmasse que o que importava era o fenótipo, ele era o que
mais conversava com os candidatos, sendo que, em alguns casos, os mesmos não
tinham muita disposição para o diálogo. Ele também insistia muito em dizer que ali só
existiam “negros e brancos”, embora muitos candidatos insistissem em se apresentar
como “Pardos”!
No dia seguinte, eu tinha que dar um parecer sobre as pessoas que não tinham
sido deferidas e que fizeram o recurso a banca durante o processo. Alguns casos eu dei
ganho de causa ao candidato, principalmente de estudantes do Norte e Nordeste que não
tinham um fenótipo negro definido mas tinham tipos bastante discrimináveis no
contexto curitibano. Os membros da banca ficaram sabendo o que aumentou o mal
estar. Chegamos a discutir na hora do almoço, o sindicalista passou mal e se retirou e
outra pessoa assumiu o seu lugar. Socióloga, doutoranda na UNESP, mestre pela UFPR
e que era muito mal vista por alguns funcionários da Universidade e até mesmo por
pesquisadores do NEAB. Diziam que ela “criava caso” e atrasava a Banca. Eu me dei
muito bem com ela, estava diante de alguém com quem podia colocar minhas posições e
dialogar, o que trouxe um grande alivio. Combinamos que os candidatos voltariam a
sair em caso de dúvidas e que se evitaria tanta “falação” durante o processo.
Argumentei que se devia prestar mais atenção no que as pessoas falavam sobre elas
mesmas e que haviam diferenças evidentes entre os candidatos. No final do dia houve
uma reunião com a direção da Universidade e do NEAB para retornarmos os pontos
pendentes. Somente então comecei a ter acesso a uma memória do processo como um
todo e do que havia acontecidos nas bancas anteriores.
Fiquei sabendo dos problemas iniciais da primeira avaliação, com o grande
número de “barrados” e que se resolveu a partir daí que os critérios tinham que ser mais
brandos. Era consenso que sempre houve muito mais candidatos pardos do que pretos.
Aquelas pessoas que vinham participar da Banca eram membros respeitáveis do
Movimento Negro curitibano e tinham um comprometimento com o processo de
implantação das cotas na UFPR, que não fora fácil. Era evidente, por outro lado, que a
memória do processo estava com as pessoas mesmo, pois não haviam registros de nada.
8
O Coordenador do registro acadêmico aproveitou a oportunidade para pedir mais
agilidade a banca, pois o registro tem um prazo dentro do calendário da universidade
que precisa ser cumprido à risca. As funções da banca haviam sido alteradas com um
anexo a lei 37/04 no ano de 2007, quando a mesma passou a ter um caráter de “ validar
e orientar a auto declaração”. Era a tal “orientação” que atrasava o andamento da banca
e do registro, no entendimento da Pro reitoria de Graduação.
A banca seguiu em frente nos demais três dias. Vale a pena registrar alguns
casos ocorridos. Um rapaz pardo, mais mestiço do que negro, se apresentou como de
“Nação”, “filho de Obaluaiê” e embora sem ter um tipo negro, se considerava como tal
visto o seu pertencimento ao Candomblé e a toda discriminação que sofria com a
família de Santo. Ninguém questionou a sua auto declaração. Outro rapaz, com um tipo
parecido, apresentou-se como militante da causa negra e portanto fazendo jus a vaga.
Ele teve sua auto declaração não validada. Ele não só fez o recurso como no dia
seguinte o seu pai apareceu para questionar, argumentando que lutou anos por aquela
causa e que fazia questão que o seu filho pudesse cursar a Universidade pelas cotas. Ele
tinha um tipo muito mais negro do que o filho e sua argumentação me foi convincente.
Não foi o único caso deste tipo. Por exemplo, uma garota muito novinha, parda,
mas muito clara e sem nenhum outro traço fenotípico, com chapinha. Quando
questionada se já havia sofrido caso de racismo e sobre quem era negra na família dela
nada disse. Quando ela se retirou a banca se perguntou se não estávamos diante de uma
“burla”, pois a garota nada dizia... Ela não teve sua auto declaração validada e também
fez recurso contra a decisão da Banca. No dia seguinte, ela apareceu com o pai, um
Homem de certa idade, bem preto. Fiquei sabendo, através dele, que ela tinha uma irmã,
negra, que entrara no curso de medicina pelo sistema de cotas e que passara pela banca
sem problemas. Era evidente que a menina, de 17 anos, não tinha nenhuma elaboração
sobre sua condição, a ponto de não comentar a situação da irmã. O máximo que
conseguiu fazer foi chamar o pai. Eu também deferi o seu pedido.
Finalmente tivemos o caso da YVI. Ela era uma menina branca com os cabelos
muito cacheados e muito soltos, e um tipo nada europeu, estava mais para o Sarará. Ela
afirmou ser parda, filha de pai branco e mãe negra e que sofria muita discriminação
depois que vieram morar em Curitiba, vindo de Belo Horizonte. A banca não validou a
sua auto declaração e nem eu considerei o seu recurso. No dia seguinte, ela veio com a
mãe, uma senhora negra muito humilde e trouxe também um álbum de fotos de família.
A família do pai, um tipo loiro de origem italiana, era totalmente branca e loira,
9
incluindo suas primas. O lado da mãe, uma típica família negra do interior de Minas.
Ela era um tipo realmente intermediário. O problema, como ela colocara, era que em
Curitiba, ela era mal vista pelos vizinhos, que nunca falavam com a mãe dela e com ela
quando estava só com a mãe. Ser “filha de mãe negra” ganhara um novo significado,
que ela não conhecia em Minas Gerais. Mas ela não se via como branca, como as
primas do lado paterno, nem como Negra, como os primos do lado materno. Ela era,
portanto, “Parda”. O ponto é que ela não podia pender para nenhum dos lados porque
nos pólos haviam outros tipos e outras pessoas com um tipo muito diferente do dela.
Acabei validando o segundo recurso dela e ela veio a se tornar bolsista do NEAB com
bastante empenho em conhecer mais sobre as questões raciais no Brasil e no Paraná.
Um outro caso parecido foi o de um rapaz carioca, da Ilha do Governador, que
tinha um tipo mais português do que negro. Ele não foi validado e no recurso também
trouxe o álbum de fotos da família. A família era toda de pretos cariocas, sendo que ele
era de fato, o menos negro. Também deferi. Finalmente, surgiu um caso mais delicado.
Um homem de mais idade, aparentemente branco, trouxe todos os documentos dele, que
haviam sido tirados quando ele servira o exército, nos quais estava descrito que sua cor
era “PARDA”. Ele não passou no primeiro momento, fez recurso com essa alegação,
dos documentos e eu deferi, já imaginando o processo – e a jurisprudência – que poderia
surgir caso ele não fosse validado.
Houve um caso muito estranho. Uma garota loura, de um tipo bem alemão, se
apresentou como cotista racial. Quando perguntaram para ela o que ela fazia ali ela
declarou que tinha uma “avó nativa”, o que criou um desconforto entre os demais
membros da banca. Antes que a situação ficasse ainda mais estranha eu a levei, junto
com o seu pedido indeferido, para a sala do registro pedindo para conferirem se ela era
cotista racial ou social porque poderia ter havido um engano. Depois, o coordenador
disse que ela tinha se inscrito como cotista racial mesmo. Havia uma intenção de
“deboche” naquela candidata, que causou um enorme desconforto. Mas, no final das
contas, foi um caso fácil de lidar.
A tensão continuou mas tivemos alguns desdobramentos. No final do primeiro
semestre, haveria uma pequena banca – de uma tarde apenas – para atender aos
candidatos que faziam registro acadêmico para as vagas de segundo semestre que alguns
cursos ofereciam. Como era pequena, achei melhor convocar apenas os estudantes e
técnicos da UFPR até porque muitos tinham militância em coletivos negros. A banca foi
tranqüila, apareceu um único candidato que era, evidentemente, um homem branco de
10
origem europeia se dizendo “pardo”, que foi eliminado e os demais se auto declaravam,
em sua grande maioria, “pardos”, mesmo alguns sendo pessoas de pele preta.
A medida não agradou muito aos representantes do Movimento Negro que
entraram com um processo no Ministério público solicitando a garantia da presença do
Movimento Negro na Banca. Duas medidas foram tomadas. A primeira, o Núcleo de
Concursos resolveu colocar a banca entre as duas etapas do vestibular, como forma de
garantir a quem não tinha passado, o direito a concorrer na cota social ou na
concorrência geral. Essa medida agradou a opinião pública, ao Movimento negro, a
imprensa e aos críticos e apoiadores do Programa. A outra medida foi a realização de
um encontro com os representantes do Movimento Negro promovido pelo NEAB para
rediscutir os critérios da banca.
A reunião foi tensa, evidentemente. O professor sindicalista estava visivelmente
nervoso e insistia que eu não deveria usar o “critério da ancestralidade”. Eu não
entendia muito bem, uma vez que partia do princípio de que qualquer pessoa negra tem
que ter ancestrais negros, do contrário, como ela pode ser negra? O que ele queria dizer
é que não se deveria usar a idéia do “afro descendente” que poderia permitir a uma
alemã com uma avó “nativa” se candidatar às cotas. O que me causava estranheza era
isso estar sendo posto ali já que eu nunca havia considerado essa possibilidade. Eu pedi
para a YVI montar uma apresentação em power point do seu álbum de fotos familiares,
o que mostrava a sua condição de “parda”. Outra orientanda minha, Kaciane Daniela,
apresentaria o relato da sua condição familiar. Descendente de negros por um lado e de
poloneses por outro, ela era a filha mais clara, com os cabelos louros contrastando com
a pele parda. Ela era, de fato, cotista social. Segundo ela, os parentes sempre disseram
que ela era “loura” mas ela sempre se colocara como “Negra” e sua auto imagem fora
construída nessa tensão. Mesmo assim, como podia se candidatar pela cota social,
preferiu evitar a cota racial e um possível confronto com a Banca e com as sutilizas de
sua auto classificação.
Os dois depoimentos causaram alguns estranhamentos entre os membros do
Movimento Negros e alguns estudantes do NEAB. Alguns destes acreditaram que as
pessoas estavam expondo suas “intimidades”, ao o que Kaciane contra argumentou que
aquilo não era íntimo, era apenas a sua construção de Pessoa e que fazia parte da sua
memória e história familiar, como era o caso da YVI também. Elas não estavam
expondo “fraquezas” como também foi dito, mas o contexto social do qual suas
identidades emergiram. O estranhamento causado entre os militantes realmente me
11
deixou intrigado. Um dos motivos era o fato das duas jovens se colocarem na condição
de “pardas” e não se utilizarem da categoria “negro”. Um outro estudante, natural da
Bahia, com um passado de militância em várias instituições educacionais pelo país
ficara muito incomodado diante da apresentação dessa identidade, o que, naquele
momento, me fez perceber que deveria olhar melhor para isso. Afinal os negros não são
os Pretos e os Pardos? Porque os Pretos estavam incomodados com os Pardos? Se
ambas as categorias estavam incluídas na categoria Negro? Essa era uma questão mais
substantiva e muito mais importante do que a distinção entre Brancos e Negros, que era
fácil de fazer e o número de pessoas “barradas”, que era muito pequeno.
A nova resolução do COUN dava a banca um caráter de orientar os candidatos a
respeito da condição étnico racial, que era o que Maio e Santos denominaram de uma
“Pedagogia racial”, que visava transformar pretos e pardos em Negros. Tal prática já
havia causado algum incomodo entre os membros originais do NEAB que vinham nessa
postura algo de “doutrinação”, pelo Movimento Negro, num momento pouco oportuno.
Os que defenderam tal postura alegavam que a Banca deveria ter de fato, uma função
pedagógica complementar para os futuros calouros. Era um debate um tanto polarizado
entre pesquisadores e militantes.
O que foi transparecendo era que a Banca e as discussões que ela provocava, não
eram simplesmente um momento de verificação de uma identidade previamente auto
atribuída, a ser conferida ali, mas um momento fundamental de negociação de
identidades étnicas promovidas pelo próprio programa da Cota racial. O que todo
mundo estava fazendo, basicamente, era negociar o seu pertencimento étnico racial
possível naquele momento, em relação a uma condição interessante, o ingresso na
universidade federal, pública e gratuita, da maneira que fosse possível. Neste processo,
uma série de categorias e conceitos emergiam, muito além do que os envolvidos
propunham e percebiam, o fato que me incomodava bastante enquanto antropólogo,
uma vez que ninguém discutia essa dimensão “crítica” do processo.
O que deve ser resgatado, com relação a banca de verificação, é que tipo de
trabalho especializado de um Cientista social era necessário ali. Que especialista a
banca em verificação da auto declaração racial do vestibular da UFPR necessitava? Era
este o horizonte que eu perseguia. Santos e Maios estabeleceram um diálogo muito
interessante com João Pacheco de Oliveira(2002)8 e suas discussões a respeito do papel
8
OLIVEIRA, João Pacheco.“O Antropologo como Perito: entre o indianismo e o indigenismo” in
Antropologia, Imperios e Estados Nacionais. Rio: Relume Dumará, 2002.
12
do Antropólogo na produção de laudos. Se é a Antropologia que situa os conceitos de
Etnia, etnicidade e identidade étnica a partir de suas considerações teóricas, não
enquanto uma Cultura essencializada mas a partir de posições relacionais, que precisam
ser devidamente contextualizadas no fluxo das relações sociais em que se apresentam e
ganham sentido, para o Direito caberia ao Antropólogo dizer “quem é quem”, gerando
taxonomias e classificações de tipos e grupos sociais no molde das ciências naturais,
produzindo uma espécie de cartografia social a partir do qual se pode trabalhar com
relação a direitos e deveres. Esta é a grande questão envolvendo Direito e Antropologia
no tema dos laudos periciais e das políticas públicas em geral. Dessa contradição
emerge uma perspectiva jurídica, que busca definir direitos para determinados grupos
sociais envolvidos em determinadas disputas, deixando para uma perspectiva
culturalista definir esses grupos e esses direitos, mesmo que nas Ciências Sociais as
abordagens chamem a atenção para outras dimensões dos processos étnicos, nas quais
grupos e pessoas são, podem ser e assumem determinados papeis, posições e condições
conforme o contexto em questão, frente a outros grupos e indivíduos e frente ao Estado
e seus agentes. Para os agentes de direito, as diferenças culturais são similares as
espécies naturais estudadas pelos biólogos, cabendo aos antropólogos classifica-las. Por
isso chamo essa perspectiva de “Culturalista”, muito mais o que querem que nos
façamos do que aquilo que pretendemos fazer.
O perito pode ser um local de poder, discute João Pacheco de Oliveira, mas este
local de poder também é totalmente relacional. É ingenuidade de um cientista social
colocado nesta condição acreditar que o grupo pesquisado – e por ele “defendido” – fala
através dele, ou que sua voz é mais verdadeira que as demais envolvidas, inclusive a
nativa, por ser ele um “perito”.
Por outro lado, podemos nos perguntar até que ponto a Ciência Antropológica
pode falar através dele e em que medida, ou simplesmente, na condição de agente de
uma empresa Estatal, não é o Estado que se pronuncia em sua fala perita. O mais
razoável é perceber que todas estas perspectivas convergem neste tipo de trabalho – o
lugar no Estado, o Lugar diante do grupo e o lugar diante da Ciência - e que era como
eu me via inicialmente, Um professo Universitário de uma IFES (estado), especialista
em religiosidades de matriz africana/populações afro-brasileiras(um grupo) a partir de
pesquisas antropológicas no campo religioso brasileiro( a ciência). Ninguém, nem eu,
esperava que alguém atuasse ali como um especialista em Raça – que era o que gerava o
debate com os argumentos de Fry e Maggie, Santos e Maio e seus debatedores – que
13
não tinha lugar na experiência do plano de cotas raciais e na Banca de verificação. Por
isso este debate era incomodo para mim e para outros pesquisadores que se
pronunciavam sobre a questão.
Nem os membros do Movimento Negro, estudantes e pesquisadores associados
ao NEAB se viam neste papel. O que estava em jogo, sim, era a Pedagogia racial, uma
espécie de orientação aos candidatos com relação a sua auto identificação, que se
pretendia ser uma conversa “entre negros”, os mais conscientes e os não tanto, mas não
era. O que me incomodava, enquanto antropólogo, era perceber neste processo da
Pedagogia racial um jogo de negociação de identidade étnicas, do qual todos
participavam, inclusive eu, mas ninguém refletia sobre o mesmo. E o debate que havia
sido produzido até então, centrado na ideia da “divisão” do Brasil, até podia ser visto
como fazendo parte deste jogo, mas não acrescentava absolutamente nada a uma
tentativa séria de reflexão sobre o assunto.
Na Coletânea “A persistência da Raça”9, Fry(2005) reconhece que as políticas
afirmativas realmente geraram um novo debate sobre o tema da Raça no Brasil, com um
projeto reconhecível dos Movimentos Negros em redefinir e reforçar a categoria negro e
negritude. Neste sentido, a distinção entre Raça e Classe foi revisitada, refutando-se a
ideia de que a inclusão de estudantes da Escola Pública nas Universidades viria
“naturalmente” a incluir também os negros pobres. Dissociando a visão consagrada que
associa Negro a Pobre, os movimentos negros estariam propondo a criação do Negro,
como uma nova categoria jurídica, dentro de sua luta por cidadania. Não há o que
discordar desta constatação, mas, infelizmente, Peter Fry não aprofundou sua análise
nesta direção, preferindo somar-se as vozes que questionavam a legitimidade das cotas
raciais e viam nela ameaças a unidade nacional, sintetizadas no Manifesto dos 113
cidadãos anti racistas e recuperadas pelos debatedores de 2005 junto a outros
argumentos “ameaçadores”. Tais questões, além de equivocadas, não tocavam nos
problemas essenciais que procuro levantar aqui.
O grande problema para mim era o tal dos “olhos da Sociedade” que podiam
medir não a identidade, mas o racismo de quem alguém poderia ser vítima, por que essa
situação social estaria estampada na cara do candidato. O debate de 2005 pouco falava
sobre isso, para além do imediato, e somente no Pós DOC no museu nacional em 2014,
pude encontrar um caminho para situar esta questão. Um outro caminho, surpreendente,
9
FRY, Peter. A persistência da Raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a àfrica austral. Rio de
janeiro: civilização brasileira, 2005.
14
por trazer à tona não o complicado racismo brasileiro em si, mas a base jurídica na qual
ele se apóia e com a qual dialoga o tempo todo.
Quando trazemos esta questão para a discussão antropológica sobre Raça e
identidade racial no Brasil, rapidamente descobrimos que o problema da Banca não era
da banca por acaso, pois trata-se de um problema da sociedade brasileira moderna, do
Estado brasileiro e da maneira como classifica a diversidade presente na sociedade. João
Pacheco de Oliveira(1999)10, em seus Ensaios de Antropologia histórica, chama atenção
imediatamente para um grande problema e por que não dilema: “Para que serve a
categoria “raça” no Brasil? Segundo ele, não é para estabelecer um sistema
classificatório de tipos raciais, ou algo do gênero, mas, ao contrário, um “dócil
legitimador do discurso da mestiçagem”. A categoria censitária “pardo” não é uma cor,
não é uma raça e muito menos é uma Etnia. Índio também não é uma categoria racial,
embora seja étnica, é uma categoria mais política que as demais.
Em 1940, o Censo passa a trabalhar com 4 cores: Brancos e Pretos, Pardos e
Amarelos, uma concessão aos imigrantes asiáticos cuja participação na população total
até hoje é pequena. Pardo, formada pela mistura de Brancos e Pretos e pela exclusão
dos Índios torna-se uma categoria que vem crescendo nos censos desde 1940 e que
cresce as custas de uma eliminação de uma diversidade real, seja das categorias
presentes na sociedade – morenos, pretos, índios, indígenas, caboclos, bugres, brabos,
remanescentes, descendentes, seja das próprias categorias já utilizadas, como mulato,
mameluco, cafuzo, mestiço, etc....O número crescente de pessoas que se declaram
pardas nos Censos – por não poderem se declarar outra coisa – confirma a
insignificância das categorias étnicas e raciais no presente, confirma a sua evidente
desaparição e estabelece uma enorme confusão de tipos e fenômenos de parentesco
completamente distintos entre si. “Pardo” não é a mesma coisa no Sul do Brasil, no
Nordeste e na Amazônia, mas devido a este sistema, o Pará, estado da região amazônica
tem a segunda maior população negra – percentualmente – do País, embora a maioria
desses negros sejam pardos de ascendência indígena ou cafuza. “Pardo” não significa
apenas uma mistura de pretos e brancos ou um conjunto de pretos mais claros, significa
misturados vários que tem em comum apenas o fato de serem “misturados”.
O que garante o sucesso da categoria é outra coisa, todavia. É uma categoria
desestigmatizante que permite, ideologicamente, uma escapada frente às identificações
10
OLIVEIRA, João Pacheco. Ensaios de Antropologia Histórica.Rio de Janeiro: EdUFRJ, 1999.
15
racistas e segregacionistas, que marginalizam “Pretos”, “Africanos” e “Índios” em nome
da onipresença das políticas e ideologias que promovem o Branqueamento. O Censo,
inclusive enquanto rito, é um momento no qual o sucesso do Branqueamento brasileiro
é medido.
Toda a discussão racial brasileira, se, por um lado, parte da Fábula das três raças,
que como Roberto da Matta já percebera, são horizontalizadas como tendo a mesma
importância para a formação nacional original, numa espécie de gênese complementar,
tem essa diversidade original substituída pela sua negação, através da ideologia da
mestiçagem, onde a mistura racial surge como a solução justa e pacifica de solução dos
conflitos e contradições sociais. No racismo à brasileira, hierarquias sociais e
preconceitos étnicos convivem bem numa sociedade que se quer moderna e
democrática, pois a ênfase do discurso irá recair sobre a assimilação e a miscigenação,
vistas como exemplos de mobilidade social.
A (des)identificação promovida pela categoria “pardo” já havia sido percebida
por outros autores como Lilia Moritz Schwarcz.11 (1998), que também chamara a
atenção que ao definir aqueles que não são “nem brancos e nem pretos” a categoria não
define nada nem ninguém. Era este o desafio da banca frente aquelas pessoas
virtualmente inclassificáveis a partir dessas categorias, mas que se viam como tendo
direito à vaga racial. O que nos permite situar o problema real da banca, como
identificar dentro de um aparente sistema de classificação que na prática nem é um
sistema classificatório e muito menos serve para identificar as pessoas? Que serve para
produzir o efeito oposto, confundir grupos, categorias, e conceitos que originalmente
designariam, raças, cores, etnias e grupos?O fato de que somente um contingente de
10% dos candidatos apresentasse um fenótipo inclassificável, ao princípio, chama a
atenção de que o olhar da Banca – e não da sociedade –não era tão subjetivo assim.
Enfim, o que estava em jogo? Não é que fosse tão difícil assim “classificar” mas que os
tipos inclassificáveis – e incômodos – expunham um problema sério e muito maior, a
saber, não há, no Brasil, um critério classificatório disponível para esse tipo de exercício
“classificatório”, mas todo mundo agia e age como se houvesse. O que estava sendo
identificado então?
O problema tem raízes históricas mais gerais e abrangentes na construção da
ideia de identificação na república brasileira. Como apresenta Antônio Carlos de Souza
11
“Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In História da vida privada no
Brasil, vol.4. Companhia das Letra, 1998. Pgs 173-243.
16
Lima(1989)12, a partir de Carrara(1884)13, o tema da identificação de bens surgiu na
constituição de 1946, mas a identificação de pessoas era já uma prática policial desde o
século XIX. Com a descoberta das impressões digitais o olhar da medicina legal sobre
os problemas sociais ganhou um novo fôlego no Brasil. Carrara realiza um interessante
ensaio sobre a identificação individual no Brasil e as relações entre Direito e Medicina
Social. Para a Ciência positivista da virada do século, nem todos são seres humanos
seriam conscientes da mesma forma. Elevar a todos os homens a consciência e a
Verdade, seriam os verdadeiros objetivos do Estado e da Ciência Moderna. Este foi um
projeto de construção de uma cidadania moderna, centrada na objetividade cientifica, no
qual o cientista foi transformando em um perito em Modernidade.
A Medicina Legal configurou–se como uma Ciência altamente individualizante,
com a identificação de tipos sociais que pretendia promover, numa análise
individualizada do criminoso e do seu crime. Caberia a polícia, por outro lado, o
aparelho preventivo ligado ao Governo para atuar em todas as áreas da sociedade, como
organizações operárias, terreiros afro brasileiros, etc... combater as alienações,
ideologias e mistificações, ameaças a sociedade moderna que se pretendia construir.
A partir da primeira natureza, a datiloscópica, a Classificação de biótipos
naturais e a consequente hierarquização de tipos sociais, viria a tomar lugar a partir
dessa discussão. Processos que caminham junto ao desenvolvimento de
acessos diferenciados à cidadania que acompanham o igualitarismo
surgido com a Abolição e a Republica, já que a partir dessa
individualidade
básica
se
acrescentariam
as
classificações
propriamente hierárquicas da nossa república em formação, com
relação a raça, cor, etnia, religião e cultura, sempre tendo um ideal
de civilização moderna de padrão europeu como modelo.
Sobre que Homem essa concepção irá agir, senão sobre o homem
desconhecido, que, de fato, é gerado pela sociedade moderna industrial urbana, como
um novo personagem social. Então se temos um EU moderno livre, em construção,
temos um Estado que constrói todos os mecanismos possíveis para controla-los!É a
identificação civil que garantiria o acesso tranqüilo aos Direitos sociais transformando a
nossa sociedade moderna numa sociedade de suspeitos, até que se prove o contrário.
12
SOUZA LIMA, Antonio Carlos. A identificação como categoria histórica. In Oliveira, João Pacheco. Os
poderes e as terras dos Índios. RIO: Comunicações do PPGAS/MN, nº 14, 1989. Pgs 137-197.
13
CARRARA, Sérgio. A Sciencia e a Doutrina da Identificação no Brasil ou o Controle do Eu no templo da
técnica. In Boletim do Museu Nacional nº 50 – Antropologia – 10.12.1984. Rio de janeiro. 28 pgs.
17
Basicamente, o que eu quero chamar a atenção aqui, é que este aspecto da
construção da nossa modernidade, da nossa noção de indivíduo moderno e das
relações entre indivíduo e sociedade e indivíduo e Estado, sintetizadas pelos nosso
RGs, passa desapercebida, mas reaparece, como quando paramos para analisar mais a
fundo as questões postas em cena pela política de cotas raciais. Na prática a
datiloscopia serviria para instituir o Registro Geral(RG), uma
numeração geral dos indivíduos. O estado numera as pessoas para
poder controla-las, mas são esses indivíduos acima que estão sendo
numerados, indivíduos tão libertos de qualquer referência social
concreta que nenhuma alteridade torna-se disponível para a construção
de identidades coletivas. Só existem, idealmente, os ‘indivíduos
pessoas” diante do Estado. É essa base histórica da constituição da
nossa individualidade que não se deve perder de vista, pois informou
toda a discussão que levou a elaboração de um Código Penal no
Brasil, somente nos anos quarenta do século XX.
Na atual União Indiana, símbolos culturais são apropriados pelo Estado que
busca estabelecer um monopólio sobre pronunciamentos éticos. Esse Estado é
vivenciado como uma ameaça pelas pequenas unidades locais, já que passam a ter o seu
estilo de vida penetrado por ele, enquanto uma nova Totalidade englobante. A oposição
entre parte e todo num sistema hierárquico é característica da vida política tradicional na
Índia, era sobre isso que Dumont falava, e sendo assim, diferenças entre unidades
constitutivas são essenciais para que esse novo todo se constitua, agora enquanto o
Estado moderno. As pequenas unidades são constituídas por marcas especiais nessa
nova entidade hierárquica e essas marcas não podem, por definição, serem idênticas no
sistema como um todo. É a própria logica hierárquica que não permite que essas
unidades sejam engolidas no todo envolvente.
Se a noção de Direitos culturais refere-se aos direitos de pessoas, grupos e
minorias diante dos direitos de outros grupos minoritários, direitos destes grupos contra
política hostis e contra atos de violências que ameacem suas existências e suas
características culturais, referem-se também tanto ao sistema de significados que
definem a vida coletiva dos indivíduos quanto a um sistema de formulação de juízos
que são usados para excluírem alteridades e que mantêm os indivíduos dentro de
fronteiras socialmente definidas. Fronteiras que são negociadas continuamente, como
ela demonstra nos seus capítulos de maneiras bem distintas do que acontece no Brasil e
18
com resultados também distintos, onde a noção de Direitos Culturais coletivos até hoje
é uma noção problemática, como explicitada pela política de cotas raciais.
Retornando a Souza Lima(1989), e a sua discussão sobre Identificação e
Classificação na Sociedade Brasileira, temos que a necessidade da classificação por
um especialista, trabalho atribuído ao antropólogo no caso dos indígenas, irá passar
por uma identificação de seres humanos promovida pelo próprio Estado, para permitir
um melhor controle da mão de obra pelo Mercado de Trabalho e do acesso as terras da
União pelos proprietários rurais, somente a partir dos anos 30.Ainda no caso dos
Índios, com a FUNAI, nos anos 80, a identificação passaria por uma busca de sinais
culturais óbvios que permitissem medir o grau aculturação destes a sociedade
nacional, ou não, num processo no qual fenótipo – mestiçagem – e integração aculturação, caminhavam juntos.
Qualificar ou não um grupo ou o pertencimento de alguém a um grupo étnico
torna-se um esforço duplo, já que qualificação e desqualificação passam a andar junto
e tornam-se duas etapas de um mesmo processo. A morenização do Indigena e a sua
etnicização passam a serem apreciadas juntas, para se chegar a algum lugar
classificatório dos grupos indígenas dentro da sociedade nacional.
Se isso é verdade para os índios, a discussão em torno da banca racial parece
sugerir que assim o é também para os indivíduos negros do Brasil. Em primeiro lugar
está se lidando com indivíduos e não com membros de algum grupo social melhor
definido a partir de uma identidade coletiva qualquer. De fato, só o fenótipo era
requerido, não a ancestralidade ou a localidade – da onde vieram essas pessoas,
afinal? De uma tal maneira que este novo Ser Negro parece pretender fundir uma
Pessoa – tomada enquanto produto de um processo histórico social e um indivíduo –
um tipo portador de alguma característica distintiva difícil de determinar.
Similarmente, a Cor, como base para a identidade étnico
racial, deveria ter nos indivíduos o seu totem, manifestando-se
através deles, como um tipo ideal de pessoa com determinadas
características e atitudes, alvo de discriminação, já que a cor e seus
valores se fundem nesse indivíduo. Por outro lado o que mais a
banca poderia fazer senão medir um certo grau de tensão entre uma
pardização e um enegrecimento, esta sim, uma dialética étnico racial
dentro de um processo que não se assenta numa discussão a respeito
do jogo social que define as identidades que quer promover mas que
19
parece existir o tempo todo para dificultar a percepção das
dimensões étnicas da questão racial brasileira.
Não é à toa que o Movimento Negro se perde no seu esforço
de promover uma Pedagogia racial, já que trabalha o tempo todo
com categorias que constroem e desconstroem essa diferença,
enquanto acreditam estarem apenas construindo-a, numa via sem
perceberem que a desconstroem em outra. Assim, se concordam
com o IBGE que Negros são os Pretos e Pardos juntos, ao mesmo
tempo excluem deste primeiro conjunto os pardos que não
consideram negros segundo outros critérios fenotípicos, embora a
presença de traços “brancos” ou “outros” esteja contida na categoria
Pardo. Partindo de uma base tão individualizada de identidades
sociais – a pessoa – e de cidadania – o indivíduo – que noção de
Cidadão Negro poderia surgir? A banca trabalhava com a ideia de
uma pessoa discriminada, cuja descriminação deveria ser atestada
por uma comissão de peritos a partir de sua aparência fenotípica,
sem conseguir relacionar bem uma coisa com a outra.
Se tudo isso era e é evidentemente confuso, a raiz dessa confusão está na própria
origem das concepções de indivíduo cidadão na nossa república moderna, sendo
recolocadas e redefinidas pelo próprio processo de construção da política pública
inclusiva. Tal política jamais iria dividir a sociedade ao meio, como chegou a ser
cogitado, pois ela apenas estava evidenciando que a sociedade brasileira não sabe e
não quer classificar seus cidadãos a partir de critérios étnico raciais.Os problemas
iniciais do debate acadêmico das cotas raciais, ou seja é necessário um “perito” para
definir o “olhar da Sociedade” sobre o negro discriminado e esse “perito” precisa ser ou
ter treinamento antropológico, desaparece diante de um problema central da sociedade
brasileira, sobre o qual a Antropologia tem muito mais a dizer.
Download

A proposta agora apresentada pretende ser uma continuidade