DANIELE DE ANDRADE FERRAZZA
A MEDICALIZAÇÃO DO SOCIAL
um estudo sobre a prescrição de psicofármacos
na rede pública de saúde
Assis
2009
DANIELE DE ANDRADE FERRAZZA
A MEDICALIZAÇÃO DO SOCIAL
um estudo sobre a prescrição de psicofármacos
na rede pública de saúde
Dissertação apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras de Assis – UNESP –
Universidade Estadual Paulista para a
obtenção do título de Mestre em Psicologia
(Área de Conhecimento: Psicologia e
Sociedade).
Orientadora: Dra. Cristina Amélia Luzio
Assis
2009
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Ferrazza, Daniele de Andrade
F381m
A medicalização do social: um estudo sobre a prescrição de
psicofármacos na rede pública de saúde / Daniele de Andrade
Ferrazza. Assis, 2009
144 f. il.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista.
Orientador: Cristina Amélia Luzio
1. Saúde mental. 2. Reforma psiquiátrica. 3. Psicotrópicos.
I. Título.
CDD 616.89
615.78
Dedicatória
Aos meus pais, Hildete e Antônio,
que sempre me consideraram capaz de
fazer coisas que sempre achei
impossíveis. E à minha avó Maria, que
aos 94 anos apresenta a sabedoria que
ainda não encontrei nos livros.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Cristina Amélia Luzio, pela confiança em mim depositada,
pela paciência e dedicação com que me orientou e pelo apoio compreensivo nas horas difíceis.
Ao professor Silvio Yasui, pelas contribuições como professor e membro de minha
banca de qualificação.
À professora Maria Inês Assumpção Fernandes, pelas valiosas contribuições no
exame de qualificação.
Aos mestres e amigos, que muito contribuíram para minha formação pessoal e
intelectual, Justo, Soráia, Ana Maria, Mario Sérgio, Francisco, Sônia, Abílio e Heloísa.
Às amigas Mariele, Maria Elvira, Karina, Adrielli, Renata, Marina, e às
companheiras de mestrado, Marli, Dani, Liège e Noemi, pelo afeto e acolhimento.
Ao
Rapha, amigo
dedicado, que contribuiu
com sugestões e
realizou,
atenciosamente, a revisão final deste texto.
Ao meu irmão, Rodrigo, que me auxiliou tão cuidadosamente na construção do
banco de dados e no tratamento desse material.
À minha família, em especial, aos meus pais pelo carinho e incentivo na realização
deste trabalho.
Ao Lu, companheiro de todas as horas, pela contribuição intelectual, paciência e
carinho nessa minha trajetória e, em especial, pelo olhar cuidadoso e atento a este trabalho.
À FAPESP, pelo suporte financeiro à realização dessa pesquisa.
RESUMO
Atualmente, qualquer sinal de sofrimento psíquico pode ser rotulado como uma patologia
cujo tratamento será a administração de psicofármacos.
Com o advento dos modernos
psicofármacos e com a ênfase preventiva que assumiu o atendimento psiquiátrico após a II
Guerra Mundial, a psiquiatria modificou suas práticas e deixou de ser um saber voltado
exclusivamente ao tratamento da loucura para dedicar-se a medicar qualquer mal-estar
cotidiano. Essa tendência tem-se ampliado de tal modo que é possível perceber a ocorrência
de uma generalizada “medicalização do social”. Neste trabalho, desenvolvemos dois
movimentos de pesquisa distintos para estudar o tema da medicalização social e da atual
expansão da prescrição de psicofármacos. O primeiro desenvolve um enfoque histórico-social
de contextualização geral do processo de medicalização do social. Nele procuramos percorrer
a trajetória da constituição do saber e das práticas médico-psiquiátricas desde a fundação
manicomial do alienismo até a atual ênfase psicofarmacológica da psiquiatria contemporânea.
O segundo movimento busca aproximar-se da capilaridade do processo de medicalização por
meio do desenvolvimento de um estudo exploratório amostral sobre a prescrição de
psicofármacos no âmbito de um serviço de atendimento à saúde mental de uma pequena
cidade do interior paulista. Nossa pesquisa mostra que todos aqueles que passaram pelo
atendimento psiquiátrico receberam prescrição de psicofármacos e que não há qualquer sinal
de
alta
nos
tratamentos
daquele
serviço
no
qual
seus
usuários
permanecem,
indeterminadamente, sob medicação psicofarmacológica. Por fim, ainda que longe de cobrir
toda a extensão da temática abordada, à guisa de conclusão apresentamos uma preocupação
inquietante: a expansão do alcance de instituições de atendimento em saúde mental que
reproduzam o modelo médico tradicional, como aquela de nosso estudo, poderá realizar as
tendências tão pretéritas de expandir o atendimento psiquiátrico para amplos contingentes
populacionais que, em nossos dias, significará a extensão da medicação psicofarmacológica
para a população em geral. Nesse âmbito podemos pensar que até mesmo o direito universal à
saúde, estabelecido no direito constitucional brasileiro, corre o risco, nos termos em que vem
sendo praticado nos serviços públicos de saúde mental, de constituir-se numa forma de
drogadição da população promovida por aparelhos de estado que, ao contrário de cumprir
direitos constitucionais de cidadania, acabaria por colocar em risco a própria autonomia da
população ao promover sua dependência a drogas distribuídas pelos serviços estatais de saúde
pública.
Palavras-chave: Saúde Mental; medicalização; psicofármacos; Reforma Psiquiátrica
ABSTRACT
Currently, any sign of distress can be labeled as a pathology which treatment will be the
administration of psychotropic drugs. With the advent of modern psychiatric drugs and with
the preventive emphasis that psychiatric care assumed after World War II, psychiatry has
changed its practices and no longer is a knowledge exclusively turned to madness but has
been devoted itself to medicate any daily discomfort. This trend has been expanded in such
way that is possible to notice the occurrence of a generalized "medicalization of society". In
the present work we developed two distinct research movements to study the issue of
medicalization and social expansion of the current psychotropic drugs ´prescription. The first
develops a historical-social emphasis at the general process of contextualization in the social
medicalization. For that, we sought to travel through knowledge´s constitution and medicalpsychiatric practices going through the asylum alienisms foundation to the current emphasis
on psychopharmacology of contemporary psychiatry. The second movement seeks to
approximate itself to the capillarity of the medicalization process by developing an
exploratory sample of psychotropic prescription in a mental health service care from a small
town in São Paulo. Our research shows that everyone who went through psychiatric treatment
received psychotropic prescription and there is no sign of leaving the treatment from that
service care in which they remain indefinitely under psychopharmacological medication.
Finally, although it is still far from covering the entire length of the selected theme, as a
conclusion we present a disturbing concern: the expansion of mental health care institutions´
range that replicates the traditional medical model like the same of our study may hold old
trends in order to expand psychiatric care to large population groups that in our days will
mean the extension of psychopharmacological medication for the general population. In this
context, we may think that even the universal right to health established in the Brazilian
constitutional law, takes the chance in the terms that it has been practiced in public mental
health, to constitute a manner to lead the population to an addiction promoted by the state
apparatuses that, unlike fulfilling citizenship´s constitutional rights it would eventually
endanger the population autonomy to promote their own dependence on drugs distributed by
public health government services.
Keywords:
Mental Health;
medicalization;
psychotropic,
the
Psychiatric
Reform
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ....................................................................................................................... 10
PRIMEIRA PARTE - UMA REVISITA À HISTÓRIA CONSTITUTIVA DA
PSIQUIATRIA E À CONSTRUÇÃO DOS DISPOSITIVOS DE ATENDIMENTO EM
SAÚDE MENTAL....................................................................................................................14
Capítulo I: Sobre a origem do modelo médico-psiquiátrico, sobre sua ampliação para a tutela
da saúde mental e sobre a atual reforma psiquiátrica.................................................................. 15
Das primeiras instituições de encarceramento ao alienismo .................................................. 15
Da constituição da loucura biológica e do higienismo ........................................................... 18
Do desprestígio da instituição manicomial ao surgimento das primeiras reformas
psiquiátricas ............................................................................................................................... 21
A expansão
psiquiátrica marcada pelo
desenvolvimento
dos modernos
psicofármacos ............................................................................................................................ 39
Capítulo II: Sobre o fenômeno da generalizada medicalização do sofrimento psíquico .......... 42
O mal-estar na pós-modernidade.............................................................................................. 42
A medicalização do sofrimento psíquico e a generalizada prescrição de psicofármacos ..... 43
O conluio entre indústria farmacêutica e medicina psiquiátrica ............................................ 47
Capítulo III: Sobre a origem da psiquiatria no Brasil, sobre a expansão das práticas
psiquiátricas, sobre a reforma psiquiátrica brasileira e a atenção psicossocial ......................... 52
Do encarceramento da loucura no Brasil à medicalização do hospício ................................. 52
O higienismo e a ampliação do alcance psiquiátrico .............................................................. 56
A implantação dos ambulatórios de saúde mental e a expansão das práticas
psiquiátricas ............................................................................................................................... 59
A constituição do movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil ......................................... 64
As quatro dimensões da Reforma Psiquiátrica brasileira e da construção de uma Atenção
Psicossocial no campo da Saúde Mental ................................................................................. 68
SEGUNDA PARTE - A TRAJETÓRIA DA PRESCRIÇÃO DE PSICOFÁRMACOS EM
UM AMBULATÓRIO DE SAÚDE MENTAL: UM ESTUDO EMPÍRICO..........................73
1. Caracterização do local da pesquisa empírica ......................................................................... 75
1.1. Características do município e o formato de sua rede de atendimento em saúde mental.. 75
1.2. Sobre os antecedentes do atendimento em Saúde Mental no município e sobre o
surgimento do ambulatório de saúde mental ............................................................................... 76
1.3. Descrição do fluxograma de funcionamento do ambulatório e dos seus procedimentos de
encaminhamento............................................................................................................................ 77
2. Objetivos, parâmetros e procedimentos da pesquisa empírica realizada no ambulatório de
saúde mental .................................................................................................................................. 82
2.1. Objetivos da pesquisa ............................................................................................................ 82
2.2. O desenho geral da pesquisa empírica: o procedimento de coleta e o plano de análise dos
dados....................................................................................................................................83
3. Apresentação dos dados............................................................................................................ 87
3.1. Elementos para um perfil da população de usuários do serviço ......................................... 87
3.2. Apresentação de dados sobre a trajetória dos usuários no ambulatório ............................. 95
4. Discussão dos dados ............................................................................................................... 106
4.1. Sobre o perfil da população atendida pelo ambulatório de saúde mental estudado ........ 106
Sobre a incidência da prescrição de psicofármacos anterior à entrada dos usuários no
ambulatório.. ........................................................................................................................... 108
Sobre medicação, gênero e faixa etária da população atendida pelo ambulatório ............. 110
Sobre a relação entre a medicação, as queixas e os sintomas apresentados pelos usuários do
serviço..................................................................................................................................... 112
4.2. Sobre a trajetória da medicalização em um ambulatório de saúde mental....................... 115
Sobre o encaminhamento psiquiátrico determinado pelo atendimento de entrada do
ambulatório ............................................................................................................................. 115
Sobre o tratamento dispensado aos usuários encaminhados à psiquiatria: as prescrições de
psicofármacos.... ..................................................................................................................... 116
Sobre o tratamento dispensado aos usuários encaminhados à psiquiatria: as internações
psiquiátricas... ......................................................................................................................... 123
Sobre a ausência de diagnósticos psiquiátricos àqueles submetidos à medicação
psicofarmacológica... ............................................................................................................. 126
Sobre a evolução dos casos dos usuários encaminhados à psiquiatria ............................... 128
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................130
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................... 133
ANEXO A ................................................................................................................................... 143
10
APRESENTAÇÃO
Atualmente, qualquer sinal de sofrimento psíquico pode ser rotulado como uma
patologia cujo tratamento será a administração de psicofármacos. Esta tendência tem-se
ampliado de tal modo que, conforme Birman (2000), pode-se dizer que está ocorrendo uma
generalizada “medicalização do social”.
O fenômeno da medicalização pode ser compreendido, conforme a tradição inspirada
em Illich, como um processo de apropriação por parte da medicina de tudo aquilo que não é
da ordem exclusivamente médica. Consiste na idéia de tornar médico aquilo que é da ordem
do econômico, do político, do cultural e do social (AMARANTE, 2007). Para Illich (1975), o
processo de expansão da medicina científica na intervenção dos comportamentos e modos de
vida dos homens promoveu o desenvolvimento e a ampliação daquilo que denominou
iatrogênese, com seus aspectos clínicos, sociais e culturais.
A partir de outro ponto de vista, mas no mesmo sentido crítico, os olhares de
inspiração foucaultiana observam o processo de medicalização como uma forma da medicina,
através da utilização de um conjunto de tecnologias e estratégias, governar o modo de vida dos
homens num processo de disciplinamento dos corpos e de controle populacional biopolítico.
(IGNÁCIO E NARDI, 2007).
Sobre esse processo de medicalização, Hora (2006), a partir dos estudos e concepções
de Madel Luz (2004), elaborou um verbete para o glossário do Grupo de Estudos e Pesquisas
“História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR), onde o termo medicalização é
assim apresentado:
medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado pela
medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas de
moral e costumes prescritos – sexuais, alimentares, de habitação – e de
comportamentos sociais. Este processo está intimamente articulado à idéia de que não
se pode separar o saber - produzido cientificamente em uma estrutura social - de suas
propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas implícitas. A
medicalização tem como objetivo a intervenção política no corpo social.
Com esses referenciais, a noção de medicalização, que nos remete a um fenômeno
complexo, polêmico e multifacetado, atravessa todo este estudo sobre a banalização da
prescrição de psicofármacos.
Nessa perspectiva, o presente trabalho discutirá, como particularidade do processo de
medicalização, o fato de os psicofármacos estarem constituindo-se, na atualidade, com uma
11
inquietante tendência ao absoluto, como o recurso terapêutico mais utilizado para tratar
qualquer mal-estar das pessoas, sejam eles a tristeza, o desamparo, a solidão, a inquietude, o
receio, a insegurança, ou mesmo a ausência de felicidade. Amarante (2007), um dos principais
críticos dessa tendência, sugere as expressões “farmacologização” ou “medicamentalização”
para nomear esse processo.
No âmbito exploratório deste estudo, na tentativa de analisar esse processo de
medicalização e, dentro dele, o de banalização do uso de psicofármacos, definimos dois
movimentos de pesquisa distintos, mas complementares, pelos quais buscamos dar forma ao
objetivo exploratório do tema da medicalização social e da atual expansão da prescrição de
psicofármacos. O primeiro movimento desenvolve um enfoque histórico-social do tema e
procura fazer uma contextualização geral do objeto de estudo no âmbito da complexidade de
seus múltiplos determinantes. O segundo busca aproximar-se da capilaridade do processo de
medicalização, desenvolvendo um estudo empírico amostral da prescrição de psicofármacos
no âmbito de um serviço de atendimento à saúde mental de uma pequena cidade do interior
paulista.
Neste primeiro movimento de nossa pesquisa, apoiados por um enfoque históricosocial e de contextualização do objeto de estudo na complexidade de seus múltiplos
determinantes, procuramos percorrer, na bibliografia especializada, a trajetória da constituição
do saber e das práticas médico-psiquiátricas desde a fundação manicomial do alienismo, na
passagem dos séculos XVIII para o XIX, até a atual ênfase psicofarmacológica da psiquiatria
contemporânea.
Neste trajeto, buscamos situar a origem dessa ênfase no organicismo moreliano da
segunda metade do século XIX, que compreendemos como a noção fundamental para o
desenvolvimento do higienismo. Posteriormente, abordamos os primeiros movimentos de
Reformas Psiquiátricas, que surgiram na segunda metade do século XX, cujas críticas ao
modelo asilar e às práticas tirânicas da psiquiatria, dentre elas a própria internação asilar, se
apresentaram de diferentes formas e legaram diferentes elementos para às práticas
reformadoras da atenção em Saúde Mental. Procuramos, em especial, estudar os vínculos
dessas experiências de reforma que proporcionaram a construção do alcance populacional do
atendimento psiquiátrico da atualidade e influenciaram marcadamente a organização de
alguns serviços de saúde no Brasil. Nesta trajetória, procuramos estudar o desenvolvimento
dos modernos psicofármacos em seu aparecimento, na década de 50, paralelo aos primeiros
12
movimentos das reformas psiquiátricas, quando ainda representavam um papel secundário nas
práticas médico-psiquiátricas que continuaram centradas nas internações hospitalares.
Posteriormente, passamos a estudar a expansão da prescrição de psicofármacos que
se desenvolveu a partir da década de 80. Abordamos essa banalização da prescrição de
psicofármacos no âmbito das características da subjetividade no contemporâneo e das relações
de mercado entre a produção farmacêutica e a prescrição de medicamentos.
Procuramos, também, estudar os desdobramentos desse processo de medicalização e
dessas experiências de reformas psiquiátricas no Brasil. Primeiramente, abordamos a história
do encarceramento da loucura no Brasil e como o hospício, que antes passava ao largo do
domínio médico, passa a ser um espaço totalmente medicalizado. Traçamos algumas
considerações sobre o higienismo brasileiro e suas propostas de extensão das práticas
psiquiátricas para um maior número de pessoas. Desenvolvemos um tópico especial sobre a
implantação dos ambulatórios de saúde mental no Brasil, instituição de atendimento em saúde
atinente à nossa pesquisa empírica que, influenciada pela psiquiatria preventiva norteamericana, iria promover a expansão de intervenções psiquiátricas a amplos contingentes
populacionais. Finalmente, estudamos o surgimento e a consolidação do movimento da
Reforma Psiquiátrica no Brasil e seus desdobramentos na construção de caminhos para uma
Atenção Psicossocial que, no âmbito da Saúde Mental, tem-se apresentado como principal
contraposição ao modelo médico psiquiátrico tradicional.
No segundo movimento, a partir dessas considerações sobre a constituição do
fenômeno da medicalização em um âmbito geral, procuramos nos aproximar das capilaridades
desse processo apresentando um estudo empírico-exploratório sobre a expansão da prescrição
de psicofármacos em uma unidade da rede pública de saúde do estado de São Paulo. Para isso
investigamos, através do estudo de prontuários, a trajetória percorrida pela população de
usuários de um ambulatório de saúde mental da recepção de entrada à prescrição de
psicofármacos realizada na consulta psiquiátrica. Os objetivos e os procedimentos
metodológicos dessa pesquisa empírica estão apresentados na parte que precede a
apresentação dos dados.
A apresentação dos dados tem o formato de uma descrição da distribuição percentual
dos diversos registros e procedimentos, constantes dos prontuários, relacionados à prescrição
de psicofármacos. Na discussão dos resultados obtidos, apesar de trabalharmos com alguns
13
aspectos sobre o perfil da população assistida por aquele ambulatório, enfatizamos
principalmente os aspectos relacionados à trajetória da prescrição de psicofármacos a partir de
um ponto de vista crítico em relação ao modelo médico tradicional.
Na realização dessa pesquisa, não houve a pretensão de discutir a adequação de
diagnóstico ou particularidades técnicas da terapêutica medicamentosa, o que estaria
totalmente fora de nossos objetivos e condições técnico-científicas. Muito diferente disso, o
objeto de estudo desta pesquisa vincula-se ao próprio processo de medicalizar, neologismo de
significado distinto de medicar e aqui compreendido como fazer de algo ou alguém um objeto
do saber, da prática, ou da tutela médica, como entendemos ser o caso no crescente processo
de prescrição de psicofármacos.
Por fim, traçamos algumas considerações finais sobre o estudo realizado, ainda que
conscientes das dificuldades de abarcarmos toda a complexidade referente ao processo de
medicalização do social e de sua tendência atual de banalização da prescrição de
psicofármacos.
14
PRIMEIRA PARTE
UMA REVISITA À HISTÓRIA CONSTITUTIVA DA PSIQUIATRIA
E À CONSTRUÇÃO DOS DISPOSITIVOS DE ATENDIMENTO
EM SAÚDE MENTAL
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a
pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da
minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia
é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o
por si mesmo. Com efeito, um dia de manhã, estando a
passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio
que eu tinha no cérebro. Essa idéia era nada menos que a
invenção de um medicamento sublime, um emplastro antihipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica
humanidade. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens
pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um
produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém,
que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo:
para que negá-lo? Eu tinha a paixão do ruído, do cartaz do
foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse
defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer
os hábeis. Assim a minha idéia trazia duas faces, como as
medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De
um lado, filantropia e lucro, de outro lado, sede de
nomeada. Digamos: amor da glória.
Memórias póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis
15
CAPÍTULO I
SOBRE A ORIGEM DO MODELO MÉDICO-PSIQUIÁTRICO, SOBRE SUA
AMPLIAÇÃO PARA A TUTELA DA SAÚDE MENTAL E SOBRE A ATUAL
REFORMA PSIQUIÁTRICA
Se não houvesse médicos, nunca haveria doentes, nem
esqueletos de mortos, doentes para serem esfolados e
retalhados; pois a sociedade não começou com os doentes, mas
sim com os médicos.
Loucura e magia negra,
de Antonin Artaud
Das primeiras instituições de encarceramento ao alienismo
Na história ocidental, a loucura já teve representações muito diversas das atuais.
Foucault (1972), em História da loucura na idade clássica, expõe que a loucura, antes do
século XVIII, circulava mais livremente entre os homens e encontrava expressão em variados
meios: na iconografia, como na Nave dos Loucos, de Bosch; nas obras filosóficas, como no
Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdã; na literatura, como em Dom Quixote, de Miguel
de Cervantes e no teatro, como nos espetáculos de Shakespeare. Até então, a loucura
circulava, fazia parte do cenário, da linguagem comum e da experiência cotidiana.
Entretanto, já em meados do século XVII, conforme Foucault (1991, p.78), aparecem
evidências de que “o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão e do silêncio”.
Esse golpe de força, no entanto, não atinge somente a loucura. Sua marca está no
surgimento de grandes estabelecimentos de internação que, a partir do século XVII, se
espalham por toda a Europa. São trancados os loucos, mas também os mendigos, ladrões,
órfãos, aleijados, portadores de doenças venéreas, rebeldes, incapacitados e inconvenientes de
todo o tipo. É a época da grande internação dos pobres que acompanhará, na Europa, o
cercamento das terras comuns e a expulsão das suas populações de origem. Na França, esses
internatos de pobres se chamarão Hospitais Gerais, mas nada tinham a ver com a medicina ou
com qualquer tipo de prática ou saber médico (FOUCAULT, 1972). Na Inglaterra, funções
16
semelhantes eram desenvolvidas pelas Work houses paroquiais, na Holanda pelas Rasp haus e
na Itália por instituições denominadas Hospícios.
O caráter dessas instituições, onde também a loucura era contida, compreendia uma
mistura de punição, assistência, trabalhos forçados e exclusão características do grande
movimento de internação dos pobres que, fruto do cercamento das terras comuns e da
dissolução das formas costumeiras de subsistência da “velha ordem” (feudal), espalhou-se
pela Europa até pelo menos, o final do século XVIII. É nessas instituições que se fará o
recorte criador das instituições características da contemporaneidade disciplinar, como o
penitenciário, as escolas correcionais e, entre outros, o asilo de alienados que fundará a
submissão manicomial da loucura e sua apropriação pelo poder médico.
É em Bicêtre, uma típica instituição de aprisionamento de pobres de todo tipo, que a
história moderna da Saúde Mental vai encontrar o ato fundador de Pinel que, em 1793, rompe
a corrente dos loucos, instaurando o que Birman (1978) denominou de primeira revolução
psiquiátrica. Ilustrar os princípios do alienismo através da obra de Pinel não significa lhe dar
todo o mérito da „revolução‟, pois personalidades como Tuke, na Inglaterra, e Chiarugi, na
Itália, já promoviam em seus países reformas no mesmo sentido. Pinel não construiu sua obra
em um “vazio terapêutico”, visto que, à época, já existiam diversos tratados médicos que
discursavam sobre a loucura. Contudo, foi somente com sua obra, o Traité médicophilosophique sur l`alienation mental, que se estabeleceram as três dimensões técnicas do
alienismo: o ordenamento do espaço institucional, a classificação das doenças mentais e a
imposição “terapêutica” da relação de poder entre médicos e alienados (CASTEL, 1978).
A loucura, que para o homem medieval tinha significações demoníacas, sagradas e
mágicas, foi apropriada pela medicina e transformada em objeto do saber médico. Nesse
estabelecimento do novo status da loucura, o louco, doravante objeto da medicina, será
submetido a uma terapêutica específica de tratamento moral, forjada por uma medicina
especial. Uma medicina que, ao se apropriar da loucura, engendrará um discurso próprio para
classificá-la e tratá-la. O surgimento dessa medicina, com características especiais tinha muito
pouco em comum com a medicina geral que se desenvolvia na época. Essa medicina especial,
o chamado alienismo e seu tratamento moral, não pretendiam ainda, naqueles tempos de
origem, encontrar a sede orgânica da loucura. Sua atenção se atinha mais a uma
fenomenologia de sintomas e sua terapêutica era fundamentalmente disciplinar.
Na concepção de Pinel, a alienação mental caracterizava-se como um distúrbio no
controle das paixões, ou seja, uma falha ou uma fraqueza nos controles racionais que
17
permitiria um extravasamento das paixões, o que resultaria na inadequação moral e social do
alienado, sinal evidente de sua doença. Para curar esse mal, conforme as concepções alienistas
da época, herdeiras das tradições de internamento que haviam se espalhado pela Europa, era
necessário que os alienados fossem tratados sob rígido encerramento asilar, isolados do
mundo exterior no qual se alienara. Só assim seriam possíveis a observação apurada do
enfermo, o exercício de um poder total sobre ele e a organização de um ambiente
disciplinado, hierárquico e suficientemente ordenado para recolocar a ordem naquele alienado
que a perdera. Fundamentalmente, o isolamento, para os alienistas, seria o próprio centro do
tratamento moral. Isso porque as causas da alienação estavam presentes no meio social.
Assim, nada melhor do que retirá-los desse meio, utilizando-se das técnicas de exclusão e
clausura que a sociedade de então desenvolvia, de sobejo, nos exercícios asilares,
hospitalares, fabris, correcionais e penitenciários. Criava-se então, o manicômio.
Nas práticas de tratamento moral visava-se resgatar as mentes desregradas com o
intuito de o louco reencontrar o domínio racional de suas paixões. Reeducar moralmente a
mente alienada, para que se recuperasse e reconstituísse sua moral, era algo muito mais
próximo de uma pedagogia de internato que de uma medicina que, à época, encontrava pouca
utilidade para seus purgativos, vomitórios e sangrias no tratamento daquela loucura que
insistia ser de sua alçada. Mas, ainda assim, a medicina alienista da época já possuía aquela
característica que jamais deixaria de ser marcante na medicina mental, que é a idéia de que só
pela mão firme e absoluta do médico, o louco poderia recuperar a liberdade e o juízo um dia
perdidos por seu descontrole.
O tratamento proposto pelos alienistas, baseado na ordem e na disciplina, mantinha
íntimas relações com a nova ordem social que seria característica daquele século XIX que se
iniciava. Naquela época de moralização dos pobres e desregrados, a terapêutica só teria êxito
se pudesse introjetar normas para o controle eficiente dos alienados. Para tanto, conforme
Foucault (1991, p. 82), o louco era submetido
a um controle social e moral ininterrupto; a cura significará reinculcar-lhe os
sentimentos de dependência, humildade, culpa, reconhecimento que são a armadura
moral da vida familiar. Utilizar-se-ão para consegui-lo meios tais como as ameaças,
castigos, privações alimentares, humilhações, em resumo, tudo o que poderá ao
mesmo tempo infantilizar e culpabilizar o louco.
Essa medicina especial inaugurada por Pinel, de caráter tão disciplinar e tão pouco
médico, obteve bem mais que o desenvolvimento de práticas e técnicas tutelares da loucura.
Nascida e exercitada na intervenção em grandes instituições de controle social, logo obteria
18
reconhecimento para intervir em questões sociais para bem além dos muros manicomiais. A
medicina psiquiátrica tornava-se um poder que colocava ao alcance do seu diagnóstico e
terapêutica um número crescente de pessoas e se pode perceber nisso, claramente, uma
característica de gerenciamento da vida humana. Ampliava seu alcance de tal forma que
levava sua medicina especial para o ajuizamento de questões da vida social, constituindo o
início da psiquiatrização do social que observamos na atualidade. Nas palavras de Birman:
A medicina mental, através de sua trama conceitual, procurará encontrar a
alienação mental em todos os lugares, gestos, palavras e ações. Há uma evidente
ofensiva da Psiquiatria no sentido de fundamentar um conjunto de práticas sociais e
morais, de invadir regiões estabelecidas pela Cultura e pela tradição histórica. (...)
Movimento de patologização do espaço social, que é apenas um aspecto de um
movimento mais amplo que então se passava, de medicalização da sociedade.
(BIRMAN, 1978, p.8)
Da constituição da loucura biológica e do higienismo
Esse processo de medicalização terá seu ponto crucial na segunda metade do século
XIX ,com a introdução da teoria da degenerescência desenvolvida por Bénédict Augustin
Morel. Diferentemente dos alienistas, que se baseavam na descrição dos sintomas da
alienação mental, Morel enfatizará, pela primeira vez, a existência de um fator causal
orgânico na origem da loucura. Dessa forma, Morel inauguraria, com sua noção de
degenerescência, o organicismo em Saúde Mental. O tratamento da alienação mental, que
antes era compreendido por uma medicina especial, agora poderá ser objeto de uma medicina
geral. Essa operação conceitual, que parece trazer a obscuridade da loucura para mais perto da
possível objetividade do organicismo médico, pode parecer um resultado do avanço do
espírito científico do século XIX. Entretanto, bem ao contrário disso, a concepção de
degenerescência de Morel era pautada em idéias medievais de pecado original, conforme
expõe Rocha (2004, p. 35):
a profunda religiosidade de Morel fora buscar apoio na medieval teoria da queda,
que encontrava no pecado original o fundamento do afastamento do homem da
perfeição de seu criador. Portanto, é uma noção medieval de pecado que esta na
base do conceito de degeneração sob o qual se fundará o avanço médico sobre a
saúde mental das populações.
O organicismo de Morel, nessa compreensão, fundava-se numa profissão de fé de
extrema gravidade. O suposto degenerado levaria seu mal, hereditário e incurável, a toda sua
descendência, constituindo uma linhagem de degenerados que estariam fadados à extinção:
19
As degenerescências são desvios doentios em relação ao tipo normal da
humanidade, transmitidas hereditariamente. Elas podem ter diversas causas e o
plano do Traité dês dégérescences de Morel se ordena em função dessa
diversidade: intoxicações diversas, influências do meio social ou da
hereditariedade, doenças adquiridas ou congênitas... Mas, uma vez que a doença se
instala, ela segue seu curso e se transmite aos descendentes até a extinção da
linhagem. (CASTEL, 1978, p. 232)
Morel aspirava aplicar métodos profiláticos em toda a sociedade com a função de
combater as causas dos desvios doentios e, posteriormente, de readaptar os degenerados ao
seu meio, mas não sem antes “armá-los contra eles mesmos”. Nas palavras do próprio Morel,
a prevenção da doença mental era compreendida como uma “modificação das condições
intelectuais, físicas e morais daquele que, por razões diversas, foram separados dos outros
homens; deve, antes de devolvê-los ao meio social, armá-los, por assim dizer, contra eles
mesmos, a fim de atenuar o número de reincidências” (CASTEL, 1978, p.262).
Essa teoria, marcada fundamentalmente pelo preconceito, será a base de uma
extraordinária expansão do tratamento moral para além dos muros do hospício. Disposta a
estender, com sua chamada profilaxia ativa, a ordem manicomial às concentrações de pobreza
que a nascente sociedade industrial produzia nas cidades, a proposta moreliana de expandir
„cuidados preventivos‟ para toda a sociedade visava, nas palavras de Morel, “combater as
causas das doenças e a prevenir seus efeitos” (CASTEL, 1978, p. 262). Ditas nos anos 50 do
século XIX, essas palavras de Morel caberiam perfeitamente num manual moderno de
psiquiatria preventiva, como o de Caplan (1980), que na década de 60 do século XX seria
conhecido como o fundador da chamada psiquiatria preventiva. A disposição preventiva já
estava plantada pela proposta moreliana que, conforme Castel, vinculava-se a uma evidente
preocupação de gestão das populações pobres:
Mas apesar da sociedade inteira estar no horizonte de uma intervenção preventiva,
são evidentemente seus pontos fracos os focos de desordem e de miséria, que serão
prioritariamente visados. É sobretudo para uma „moralização das massas‟ que a
medicina mental deve contribuir, ajudando no encargo dessas „classes declinantes
que mal entrevêem o movimento ascendente das classes superiores e que não
podem atingi-lo se forem abandonadas às suas próprias forças‟. (CASTEL, 1978, p.
262)
A teoria proposta por Morel constituirá um novo discurso sobre a doença mental. O
organicismo se estabelecerá como o mote inarredável da tutela psiquiátrica sobre a loucura. E
a noção de degenerescência será central na disposição higienista da época.
Será ainda com base na noção de degenerescência que Magnan, no último quarto do
século XIX, cunhará o conceito de „predisposição‟, que ampliará em muito o alcance social
20
do discurso psiquiátrico como um dos principais fundamentos do higienismo. É nesse período
que a teoria da degenerescência e seus desdobramentos alcançarão seu maior prestígio.
Mesmo quando a psiquiatria passar pela reorganização kraepeliniana da passagem ao século
XX é necessário reconhecer, conforme Amarante (2008), seu papel de fundamento da nova
organização sistêmica que a psiquiatria alemã espalhará pelo mundo: “Se é verdade que este
prestígio encontra limites com o surgimento da noção de unidades nosológicas de Kraepelin,
que passa a se opor ao conceito de degeneração, é também verdade que a teoria de Morel está
na base da condição de possibilidade epistêmica do sistema de Kraepelin.” (AMARANTE,
2008, p. 57)
Emil Kraepelin (1855-1926) dotará a psiquiatria de um sistema de classificação que
dispõe a doença mental em unidades nosológicas. E aqueles pressupostos morelianos
fundadores da medicina mental já estarão, tanto quanto hoje, solidamente instalados como
própria condição de ser da psiquiatria, ainda que nunca possam abandonar a condição de
suposição. Nas palavras de Kraepelin, “a suposição é de que os distúrbios mentais são
hereditários, constitucionais ou, de alguma outra forma, „organicamente‟ determinados”
(TALBOTT et al., 1992).
Kraepelin constituirá descrições detalhadas de sintomas, construirá uma sistemática
classificatória de doenças mentais que combinará “a etiologia, as condições de aparecimento
da doença, a tendência à predisposição, o curso da moléstia, a sintomatologia, a perspectiva
prognóstica, a idade, o sexo, os hábitos, etc.” (AMARANTE, 2008, p.58). Isso terá grande
importância na estruturação interna da psiquiatria como disciplina médica e proporcionará a
extensão das práticas médico-psiquiátricas para um número cada vez maior de pessoas, mas
não arranhará as intervenções manicomiais.
Posteriormente, segundo Alexander (1971), a psiquiatria sofreria um “impacto”
promovido pela psicanálise, o que faria com que se desenvolvesse uma nova tendência na
área, a psiquiatria dinâmica. Conforme Ey (1969, p. 60), adepto desse ponto de vista, “as
descobertas fundamentais da estrutura do inconsciente e de seu papel patogênico por Sigmund
Freud revolucionaram a clássica psiquiatria kaepeliniana”. Mas, a par do prestígio do
pensamento freudiano, talvez a própria falta de perspectivas terapêuticas da psiquiatria de
então tenha se constituído numa contribuição de maior peso para aproximar muitos
profissionais da psicanálise. De qualquer forma, ainda que a chamada psiquiatria dinâmica se
exercitasse muito mais no conforto dos consultórios, a incompatibilidade entre suas
concepções humanísticas e as práticas manicomiais provocava uma inevitável perplexidade e
21
realizava certa semeadura. Mas, naturalmente, a vertente hegemônica da psiquiatria manteria
distância da influência da psicanálise e continuaria desenvolvendo o legado kraepeliano e a
herança manicomial.
Após a Segunda Guerra Mundial surgem as primeiras experiências de reformas
psiquiátricas nos países da Europa e nos EUA. Nesse cenário de pós-guerra, por reconhecer-se
uma condição muito semelhante a dos campos de concentração, contingentes importantes da
opinião pública democrática começaram a se sensibilizar com a condição vivida pelos
internos em manicômios. Segundo Boarini (2006), esse clima de sensibilidade social e
política teria sido decisivamente coadjuvado pela ausência de resultados positivos da
terapêutica manicomial e, principalmente, pelos altos custos inerentes à sua estrutura
hospitalar. De qualquer forma, é certo que foi no sopro do espanto deixado pela ascensão e
queda do nazismo que começaram a aparecer as práticas e teorias de questionamento da
internação psiquiátrica, que abririam espaço para as primeiras reformas nesse campo. A essa
altura se abrem várias experiências de Reformas Psiquiátricas.
Do desprestígio da instituição manicomial ao surgimento das primeiras
reformas psiquiátricas
O principal aspecto das primeiras experiências chamadas de Reformas Psiquiátricas
era o de problematizar o papel da instituição manicomial. Enquanto algumas dessas
experiências propunham a transformação das práticas psiquiátricas ainda circunscritas ao
âmbito manicomial, outras contestavam a própria existência do manicômio e as características
do saber médico psiquiátrico.
Neste capítulo, ainda que de forma breve, pretendemos abordar o surgimento dessas
novas práticas psiquiátricas com o intuito de delimitar algumas diferenças entre as abordagens
que se dedicaram a problematizar e/ou criticar o papel do dispositivo manicomial. Também
pretendemos explorar as relações das psiquiatrias reformadas com a expansão do tratamento
psiquiátrico e com o tema da atual tendência da medicalização da população. Conforme
Amarante (2009, p. 49), deve-se atentar para o fato de que
as experiências de reformulação das práticas psiquiátricas ocorridas na Itália,
Inglaterra, França, EUA e Brasil se encontram relacionadas e, ao mesmo tempo,
marcadas por singularidades, merecendo, portanto, leituras particulares. Tal
particularidade não exclui a possibilidade de marcos históricos comuns- como, por
exemplo – as demandas sociais de reorganização do espaço hospitalar e sua
medicalização, deflagradas com o advento da modernidade e, posteriormente, com a
eclosão e término da II Guerra Mundial.
22
Nessa perspectiva, esta apresentação não seguirá um enfoque cronológico. Ela está
organizada conforme a contextualização estabelecida por Amarante (2007) e caminha pela
seguinte ordenação: primeiramente, aborda a Psicoterapia Institucional e a Comunidade
Terapêutica, experiências que se caracterizaram por profundas transformações nas relações de
todos os atores da cena manicomial que, entretanto, mantêm suas propostas de transformações
ainda restritas ao âmbito hospitalar; posteriormente, exploraremos os aspectos da Psiquiatria
de Setor e da Psiquiatria Preventiva,
movimentos que visavam superar as reformas
circunscritas ao âmbito asilar e propunham um conjunto de serviços comunitários para o
tratamento da doença mental; finalmente, examinaremos as propostas da Antipsiquiatria e da
Psiquiatria Democrática Italiana, dois grupos nos quais a palavra reforma parece inadequada,
pois ambos criticavam severamente as práticas e as instituições relacionadas ao modelo
médico-psiquiátrico.
Pretendemos abordar, também, como essas reformas se relacionaram de diferentes
maneiras com a questão da prescrição dos modernos psicofármacos, medicamentos que
surgiram na mesma época dessas experiências, dado ao fato de que algumas dessas reformas
psiquiátricas deram “(...) primazia ao modo medicamentoso de intervenção, outras associaram
os psicofármacos com as psicoterapias, e outras ainda, como a antipsiquiatria, recusaram o
uso dos psicofármacos”. (LAMB, 2008, p. 27).
Sobre a Psicoterapia Institucional e suas propostas de modificações do
equipamento manicomial
Em 1940, François Tosquelles, um jovem catalão combatente do governo ditatorial
do General Franco na Espanha, refugia-se na França para trabalhar no hospital psiquiátrico de
Saint-Alban. Nesse período extremamente crítico da Segunda Guerra Mundial, em que a
França era ocupada pela Alemanha nazista, Tosquelles deu início a uma série de
transformações nesse hospital psiquiátrico, inaugurando uma nova experiência que daria
origem a denominada Psicoterapia Institucional. Os primeiros anos de reformas seriam
marcados pela resistência ao nazismo e pela melhoria das condições de vida dos doentes ali
internados, o que logo transformaria Saint-Alban num local de encontro de outros refugiados
e de membros da resistência francesa, de militantes marxistas, de artistas surrealistas e de
intelectuais freudianos que viriam a elaborar um novo movimento de transformação das
práticas psiquiátricas na França. Conforme Amarante (2009, p. 32), “Saint-Alban passa a ser
23
o palco privilegiado de denúncias e lutas contra o caráter segregador e totalizador da
psiquiatria.”
O principal objetivo da Psicoterapia Institucional era o de resgatar a função
terapêutica do hospital psiquiátrico, perdida na dimensão do autoritarismo asilar à qual
estavam relegados. Na visão de Tosquelles, era necessário transformar a instituição
manicomial num instrumento de cura, tal como desejara, em 1822, Esquirol, uma das figuras
fundamentais do alienismo francês, para o qual “uma casa de alienados é um instrumento de
cura nas mãos de um médico hábil; é o agente terapêutico mais poderoso contra as doenças
mentais” (FLEMING, 1976, p. 43).
Ao comentar o objetivo desse movimento francês de restituir ao hospital psiquiátrico
sua função de tratamento, Amarante (2009) aponta que Tosquelles acreditava em um hospital
eficiente e dedicado à terapêutica para a cura das doenças mentais e que “em conseqüência do
mau uso das terapêuticas e da administração e ainda do descaso e das circunstâncias políticosociais, o hospital psiquiátrico desviara-se de sua finalidade precípua, tornando-se lugar de
violência e repressão”. (IDEM, p. 32). Para que a instituição hospitalar deixasse de ser aquele
espaço de descaso e opressão no qual se tornara e pudesse retomar suas originais funções
terapêuticas, Tosquelles considerava necessário expandir a intervenção terapêutica para todos
os espaços da instituição. Para esse reformador o hospital apresentava, ele próprio,
características doentias que deveriam ser constantemente examinadas e também submetidas a
tratamento.
A psicoterapia institucional alimentava-se das idéias de questionamento das práticas
psiquiátricas de caráter segregador, das críticas a função autoritária do médico e da
condenação às relações de hierarquia e verticalidade que constituíam o espaço institucional.
Os adeptos desse movimento de reforma apontavam para a necessidade de questionar as
funções tradicionais do médico, consideradas impeditivas do estabelecimento de autênticas
relações terapêuticas, dada à posição hierarquicamente superior e absolutista ocupada por
aquele profissional.
A bem sucedida experiência de Saint-Alban levaria à expansão da psicoterapia
institucional a outros hospitais franceses. Com seu desenvolvimento e com a expansão da
psicanálise no pós-guerra, a Psicoterapia Institucional passaria a constituir-se em um
24
movimento de “tentativa de conciliação da psiquiatria com a psicanálise” 1 (FLEMING, 1976,
p.45), experiência que, conforme Castel (1987), iniciara-se na clínica de La Borde, instituição
modelo da psicoterapia institucional, fundada por Jean Oury e Félix Guattari em 1953
(CASTEL, 1987). Nessa clínica eram desenvolvidas diversas atividades (ateliês, grupos
terapêuticos, atividades de animação e festas) com a finalidade de proporcionar um espaço de
encontro e de relação entre as pessoas. Os pacientes eram incentivados a participar ativamente
de reuniões e assembléias, que tinham como objetivo proporcionar uma experiência de
discussão de problemas institucionais e de definição de novas atividades (GOLDBERG, 1996;
FLEMING, 1976).
A finalidade última de todas essas atividades seria, em suma, a de
promover uma transformação no âmbito manicomial que se distanciasse daquelas práticas
autoritárias tão claramente características do modelo da medicina alienista.
Entretanto, os partidários da psicoterapia institucional não dispensavam os métodos
tradicionais – eletrochoques, terapêutica de sono, insulinoterapia, quimioterapia e
farmacoterapia – para o tratamento dos doentes mentais. (FLEMING, 1976). Aliás, para
Castel (1987, p. 45), além da utilização dos instrumentos terapêuticos tradicionais da
psiquiatria, “a psicoterapia institucional redescobre as virtudes do tratamento moral do século
XIX”.
Apesar das pretensões de caráter reformador, essa experiência não lograria romper
totalmente com a função autoritária do médico e permaneceria comprometida com as
representações de loucura vinculadas a idéia de erro e desvio, conforme as concepções
alienistas do século XIX. Esse movimento estava centrado em transformações restritas ao
âmbito hospitalar e, conforme Castel (1987, p. 86), apresentava “a maioria das características
objetivas de uma verdadeira „instituição totalitária‟”, e não chegava a questionar a função
social da psiquiatria e da instituição manicomial, conforme explicita Amarante (2009, p. 34):
O alcance transformador do projeto da psicoterapia institucional recebe uma crítica
às bases excessivamente centradas, senão restritas, ao espaço institucional asilar,
resumindo-se a uma reforma asilar que não questiona a função social da psiquiatria,
do asilo e dos técnicos, não objetivando transformar o saber psiquiátrico que se
pretende operador de um conhecimento sobre o sofrimento humano, os homens e a
sociedade.
1
Essa fusão da psiquiatria com a psicanálise foi muito criticada por Castel (1987, p. 85), que pondera que essa
relação iria fomentar “a pertinência da psicanálise em fecundar um trabalho psiquiátrico na comunidade”, algo
que ultrapassaria os quadros bem delimitados do reformismo psiquiátrico nos manicômios, como era o caso da
psicoterapia institucional, e expandiria o poder controlador das estratégias e práticas de tratamentos psiquiátricos
para toda a comunidade, como foi o caso da psiquiatria de setor francesa.
25
As Comunidades Terapêuticas e a tentativa de humanização do dispositivo
manicomial
No período pós Segunda Guerra Mundial, muitos soldados ingleses, que haviam
sofrido os danos de uma grande guerra, foram internados em hospitais psiquiátricos para o
tratamento de problemas emocionais. Os asilos psiquiátricos situavam-se em um quadro de
precariedade que agravavam a condição dos doentes e traziam à lembrança as condições
deprimentes dos campos de concentração que ninguém mais podia tolerar. Ademais, a
condição daquelas instituições era disfuncional diante da preocupação de promover a
recuperação do amplo contingente de soldados invalidados pelos traumas de batalha, cuja
força de trabalho era, agora, necessária à reconstrução da nação devastada pela guerra.
Birman e Costa (1994, p. 46) expõem bem essa situação:
não era mais possível assistir-se passivamente ao deteriorante espetáculo asilar: não
era mais possível aceitar uma situação em que um conjunto de homens, passíveis de
atividades, pudessem estar espantosamente estragados nos hospícios. Passou-se a
enxergar como um grande absurdo este montante de desperdício da força de
trabalho.
Para recuperar a mão-de-obra encerrada nos hospícios, surgiriam propostas para a
reformulação do espaço asilar. É nesse contexto que, em 1946, Main, juntamente com Bion e
Rickman adotariam, no hospital Northfield na Inglaterra, medidas de transformação das
práticas no âmbito manicomial, processo que foi denominado de Comunidade Terapêutica.
Com um número enorme de soldados/pacientes para serem atendidos e a relativa falta de
psiquiatras e enfermeiros nessas instituições, havia a necessidade de se fazer um trabalho
maior ainda com um número pequeno de profissionais (SCHITTAR, 1985). Foi nessa
configuração que surgiram as idéias de trabalhos em grupo dentro do hospital e começaram a
se desenvolver as práticas grupais de tratamento que viriam a constituir o movimento das
Psicoterapias de Grupo.
Mas foi somente em 1959, com Maxwell Jones, principal autor e operador dessa
experiência, que a comunidade terapêutica se consagrou. Um dos principais objetivos desse
movimento era o de envolver os doentes em seu próprio tratamento. Eram organizadas
reuniões e assembléias entre a equipe técnica e os pacientes com o intuito de discutirem as
dificuldades enfrentadas, os projetos e propostas de trabalho em que todos pudessem estar
envolvidos. Nas palavras do próprio Jones, as pessoas em tratamento,
(...) em colaboração com a equipe, tornam-se participantes ativos em sua
própria terapia, na de outros pacientes e em muitos aspectos das atividades gerais da
26
unidade. Isto em contraste notável com seu papel relativamente passivo, receptivo,
característico do tratamento convencional. (JONES, 1972, p.89)
Segundo Jones, essa proposta de liberdade de comunicação em todos os níveis
levaria à constituição de uma comunidade dentro do hospital, onde haveria uma redistribuição
do poder e da autoridade, algo que proporcionaria a desarticulação das relações hierárquicas e
verticais das instituições tradicionais:
A ênfase na comunicação livre entre equipe e grupos de pacientes e nas atitudes
permissivas que encorajam a expressão de sentimentos implica numa organização
social democrática, igualitária e não numa organização social de tipo hierárquico
tradicional. (JONES, 1972, p. 89)
Para os adeptos da comunidade terapêutica, o funcionamento de grupos terapêuticos
e grupos operativos, como forma de envolver os internos em seu tratamento e, até mesmo, na
organização da instituição, proporcionaria a desarticulação dos principais problemas da
instituição tradicional. Consideravam a possibilidade de diminuir ou mesmo de extinguir os
instrumentos terapêuticos tradicionais, como a insulinoterapia e até mesmo a farmacoterapia
(SCHITTAR, 1985). Entretanto, conforme a mesma fonte, na maioria das experiências de
comunidades
terapêuticas,
não
eram
dispensados
esses
métodos
de
tratamento
tradicionalmente utilizados pela psiquiatria.
A comunidade terapêutica foi uma experiência importante para a prática de tentativas
de modificações das relações dentro do hospital psiquiátrico. Conforme Desviat (1999), a
Organização Mundial de Saúde, no ano de 1953, chegou a recomendar que todos os hospitais
psiquiátricos deveriam adotar o feitio de uma comunidade terapêutica. Mas, ainda assim, essa
experiência não conseguiria superar o problema da exclusão social da loucura e do controle
que a psiquiatria sempre exercera sobre os indivíduos acometidos por qualquer sofrimento
psíquico. Conforme pondera Schittar (1985, p. 135),
A comunidade terapêutica parece ser o “último grito” da psiquiatria, a estrutura em
cujo seio deveriam ser encontradas as soluções para as contradições contra as quais
se debate a psiquiatria institucional, continuamente incerta quanto à própria vocação
terapêutica e a pretensa necessidade social de excluir e controlar os indivíduos que
apresentam um suposto comportamento patológico.
27
A Psiquiatria de Setor e a propostas de intervencionismo psiquiátrico no âmbito
territorial
O movimento da Psiquiatria de Setor francesa, do mesmo modo que as outras
psiquiatrias reformadas já comentadas anteriormente, resultou da conscientização, no período
do pós-guerra, das condições precárias e desumanas que viviam os asilados em manicômios.
Conforme Birman e Costa (1994, p. 45), no período da Segunda Guerra Mundial, “só na
França, registrou-se a morte de quarenta mil doentes mentais, todos internados em asilos, pela
má alimentação e maus cuidados”. Nessa configuração, um grupo de psiquiatras progressistas
franceses que havia passado pela experiência dos campos de concentração e de extermínio
visualizou a necessidade premente de modificar as “formas de atendimento com base na
internação asilar” (DESVIAT, 1999, p. 26).
Entre os anos de 1945 e 1947 foram realizadas na França do pós-guerra as Jornadas
Nacionais de Psiquiatria, momento em que se estabeleceriam novas propostas de uma
política de assistência psiquiátrica. Dentre o grupo de adeptos dessa experiência, despontavam
os psiquiatras Bonnafé e Daumezon, que preconizavam a transferência do tratamento dos
doentes mentais, então confinados em instituições asilares, para instituições extra-hospitalares
que seriam implantadas nas suas próprias comunidades de origem. A internação em hospital
psiquiátrico deveria ser compreendida apenas como uma etapa auxiliar ao tratamento, que
deveria ser continuado no próprio meio social e cultural da pessoa em tratamento. Audisio,
um dos autores do célebre Livro Branco da Psiquiatria Francesa, publicado pelos partidários
da psiquiatria de setor em 1965, propunha que:
O aparelho tradicional de assistência, o hospital psiquiátrico, deve sofrer uma
profunda mudança em seu modo de funcionamento, deixando de ser o lugar único
ou preferencial para ser um elemento a mais num sistema complexo de cuidados e
assistência. (DESVIAT, 1999, p. 29)
Os partidários da psiquiatria de setor instituíram, como princípio, a divisão do
território francês em setores ou zonas geográficas. Em cada setor seria instalado um centro de
saúde mental que deveria ter a função de prevenção, tratamento e acompanhamento pós-cura
das doenças mentais. Nessas instituições extra-hospitalares eram, pela primeira vez,
fornecidos os medicamentos e a estrutura terapêutica necessária, seja antes, após ou
independentemente da internação hospitalar. (AMARANTE, 2007).
Esses centros de saúde mental já tinham o suporte de uma equipe de profissionais
constituída por psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros. Os adeptos dessa
proposta de reforma também defendiam o princípio de continuidade terapêutica, de forma que
28
“uma mesma equipe, no conjunto de cada setor, deveria fornecer o tratamento e se encarregar
do paciente nos diferentes serviços e momentos do tratamento, desde a prevenção até a cura e
a pós-cura” (DESVIAT, 1999, p.31).
Esse movimento na França, diferentemente da psicoterapia institucional também de
origem francesa, não se restringiu a experiências isoladas de transformações das práticas
psiquiátricas. Pelo contrário, a psiquiatria de setor representou a organização de uma política
pública de saúde que abrangeu todo o território francês. Em 1960 esse projeto se concretizou
e o setor tornou-se uma política oficial naquele país. Nessa configuração, diversos centros
foram implantados no território francês, com objetivo de tratar o paciente psiquiátrico no seu
próprio meio social e cultural, conforme indicado por Fleming (1976, p. 54)
Daí a idéia de levar a psiquiatria à população, evitando ao máximo a segregação e o
isolamento do doente, sujeito de uma relação patológica familiar, escolar,
profissional, etc. Trata-se, portanto de uma terapêutica in situ: o paciente será tratado
dentro do seu próprio meio social e com o seu meio e a passagem pelo hospital não
será mais do que uma etapa transitória do tratamento. Este projeto prevê pois a
possibilidade de uma continuidade no tratamento pós-hospitalar através de
instituições pós-cura, que terão por função a progressiva ressocialização do paciente.
No entanto, a psiquiatria de setor não alcançou os resultados esperados e o hospital
psiquiátrico continuou sendo o principal dispositivo para atendimento dos doentes mentais
(DESVIAT, 1999). Dessa forma, o hospital permaneceu como principal instrumento de
tratamento, não só por ter estruturas fortemente estabelecidas, difíceis de serem
transformadas, mas também devido as suas tecnologias, às quais os adeptos do setor haviam
se ajeitado e recorriam em qualquer situação de urgência. Para Castel (1987), as práticas da
psiquiatria de setor haviam sido moldadas nas tecnologias hospitalares e não propunham
“tecnologias específicas”:
(...) não existem tecnologias específicas para o trabalho do setor, mas sobretudo um
coquetel de técnicas ou de receitas diversas, experimentadas primeiro na instituição
(hospitalar): um pouco de psicoterapia, um pouco ou muito de medicamentos, um
pouco de ergoterapia, etc. Mas, por exemplo, a intervenção in vivo, em uma situação
de urgência [...] não é de uma outra natureza que a maioria das outras condutas
terapêuticas. (CASTEL, 1987, p. 47)
Os centros de saúde implantados nas comunidades, na prática, passaram apenas a
realizar o encaminhamento de novos pacientes aos hospitais psiquiátricos e raramente
exerciam a função de continuidade do tratamento pós-hospitalar.
Nas propostas da psiquiatria de setor havia a preocupação de identificar pessoas
supostamente desadaptadas socialmente, com o intuito de prevenir o desenvolvimento das
doenças mentais. Nas palavras dos seus principais representantes, Bonnafé e Daumezon, “a
29
competência dos psiquiatras qualificados deve ser considerada como estendida a todos os
problemas que dizem respeito à saúde mental, individual ou social para a readaptação das
pessoas desadaptadas” (CASTEL, 1987, p. 44. Grifos nossos). Em tais concepções de
prevenção da doença mental se reconhece aquela psiquiatria de “engenhosos especialistas” da
segunda metade do século XIX que, inspirados em Augustin Benedict Morel, vislumbravam
métodos profiláticos com a função de combater as causas dos desvios doentios e de readaptar
os suspeitos de degeneração ao seu meio social. De fato, se a psiquiatria moreliana já
pretendia expandir suas práticas de normalização para um número cada vez maior de pessoas,
as propostas consideradas „reformadoras‟ da psiquiatria de setor não serão fomentadas de
maneira muito diferente. Os adeptos do setor propunham o esquadrinhamento do território
francês e a instalação de diversas instituições psiquiátricas nos territórios comunitários. Esses
centros de saúde instalados na comunidade exerceriam funções de prevenção que
promoveriam a disseminação das práticas psiquiátricas em um processo de gerenciamento
político da vida humana.
Delacampagne (2004, p. 32), ao comentar sobre a política de setor francês, nos leva
ao seguinte questionamento: o setor é “um método progressista de tratar os doentes em suas
casas, ou uma técnica sutilmente repressiva de enquadramento social?”
A Psiquiatria Preventiva americana e as propostas de expansão do processo de
medicalização da população
Na década de 60, os Estados Unidos da América, que enfrentavam grave crise social
com desdobramentos na saúde mental pública, proporiam um programa nacional de saúde
mental, cujo alcance nunca havia sido tão amplo. Em consonância com as propostas do
governo norte-americano da época, Gerald Caplan, principal elaborador de programas de
saúde comunitária, publicaria a obra que seria conhecida como a“bíblia” 2 da reforma
preventiva, denominada de Princípios de Psiquiatria Preventiva. É o surgimento da
psiquiatria preventiva, também denominada de psiquiatria comunitária, influenciada pelas
propostas da reforma de setor francesa, da reforma comunitária inglesa e, de resto, marcada
por uma modernização reconhecível das práticas profiláticas dos alienistas do século XIX.
Na introdução de sua obra, Caplan (1980, p. 17) retomaria o pronunciamento oficial
do presidente norte-americano, Jonh Kennedy, e definiria que a mensagem para um novo
2
Robert Felix, diretor do National Institute of Mental Health, que fez a apresentação do livro de Caplan,
publicado no ano de 1963, escreve: “Este livro é não só uma cartilha para o assistente comunitário de saúde
mental – é uma Bíblia”. (CAPLAN, 1980)
30
programa em saúde mental enfatizava “(...) a prevenção, tratamento e reabilitação dos
enfermos mentais e dos retardados mentais que devem ser considerados responsabilidade
comunitária, e não um problema privado (...)”. Nessa perspectiva, Caplan definiria o principal
objetivo dessa nova intervenção psiquiátrica, a prevenção da doença mental através de
programas de ação comunitária.
A psiquiatria preventiva, voltada fundamentalmente para a problemática da
profilaxia da doença mental, não poderia abandonar os elementos do higienismo que, desde o
continente europeu, tematizara e enfrentara com algum sucesso questões da mesma natureza.
Essas referências permitiram a medicalização de um amplo repertório de comportamentos
sociais que supostamente se afastavam da saúde, ou das normas da moral ou da disciplina, e
colocavam sob suspeita indivíduos e setores sociais fragilizados ou incômodos da sociedade.
Para que a política preventivista se desenvolvesse, era necessário que a intervenção
em psiquiatria fosse redirecionada para o âmbito social, com o objetivo de identificar tudo
aquilo que pudesse vir a causar possíveis patologias entre as pessoas da comunidade.
Conforme os adeptos dessa reforma, todas as doenças mentais poderiam ser prevenidas ou
detectadas precocemente. Para encontrar os possíveis candidatos à enfermidade era necessário
“(...) sair às ruas, entrar nas casas e penetrar nos guetos para conhecer os hábitos, identificar
os vícios, mapear aqueles que, por suas vidas desregradas, por suas ancestralidades, por suas
constitucionalidades, venham a ser suspeitos (...)” (AMARANTE, 2009, p. 37).
A “busca de suspeitos”, expressão utilizada por Caplan que lembra muito os
predispostos de Magnan de outrora, demarcava a principal estratégia dessa psiquiatria que
objetivava se estender para toda a sociedade. Os discursos e as práticas psiquiátricas, com as
propostas reformistas, alastrar-se-iam para além dos muros dos manicômios, com o intuito de
exercerem um controle ampliado para toda a coletividade. A esse respeito, Caplan explicita:
Disso deduz-se que a psiquiatria preventiva é um ramo da psiquiatria, mas é também
parte de um esforço comunitário mais amplo em que os psiquiatras dão sua própria
contribuição especializada a um todo maior. Em minha opinião, a psiquiatria
preventiva deve ser abrangente. (CAPLAN, 1980, p. 31).
Os adeptos do preventivismo acreditavam ter descoberto a estratégia de intervirem
nas causas e no surgimento das doenças mentais, o que possibilitaria não só a prevenção,
como também a promoção da saúde mental na comunidade. (AMARANTE, 2009). Nessa
configuração, a reforma preventiva iria demarcar um novo território para a psiquiatria, cujo
tratamento da doença mental daria espaço para um novo objeto, a saúde mental.
31
Conforme Birman e Costa (1994), a psiquiatria preventiva incorporaria alguns
conceitos da Saúde Pública e estabeleceria três formas de intervenção:
1) Prevenção primária: intervenção nas condições possíveis de formação da doença
mental, condições etiológicas que podem ser de origem individual e (ou) do meio;
2) Prevenção secundária: intervenção que busca a realização de diagnóstico e
tratamento precoces da doença mental;
3) Prevenção terciária: que se define pela busca da readaptação do paciente à vida
social, após a sua melhoria. (p. 54)
Segundo os autores, as prevenções secundárias e terciárias não correspondem a
nenhuma novidade no que tange as propostas do sistema psiquiátrico tradicional, composto
pelo diagnóstico, tratamento e readaptação. A grande novidade do sistema da nova psiquiatria
é a prevenção primária, compreendida pela localização e intervenção das possíveis causas
geradoras da doença mental, conforme explicitado por Caplan (1980, p. 35).
Creio que a psiquiatria preventiva deve incluir a prevenção primária como
ingrediente essencial e promover a saúde mental entre os membros da comunidade
que não sofram correntemente de quaisquer distúrbios, na esperança de reduzir o
risco de que eles venham a ser amanhã mentalmente perturbados. Admito que a
inclusão da prevenção primária resultará numa reduzida capacidade para
desenvolver nossos esforços psiquiátricos nas áreas da prevenção secundária e
terciária (...).
Mesmo reconhecendo que o deslocamento de profissionais para a prioritária área da
prevenção primária resultaria numa proporcional diminuição do contingente dedicado às
outras áreas (secundária e terciária), Caplan (1980) pregava que essa redução seria provisória.
Isso ocorreria, primeiramente, porque o conjunto de ações da atenção primária, com a
ampliação dos programas no âmbito da saúde pública, levaria a uma natural redução da
vulnerabilidade da população em adquirir um distúrbio mental, o que reduziria a demanda
secundaria e terciária. Além disso, sua proposta compreendia o treinamento de agentes
comunitários e considerava que o próprio desenvolvimento das práticas preventivas
estimularia outros personagens da comunidade a auxiliarem no processo de detecção precoce
de fatores predisponentes à doença mental. À primeira vista, a proposta pode parecer um
convite a ação comunitária em torno dos objetivos gerais da Saúde Mental. Mas, vista do
ângulo do controle social, essa proposta de que os próprios integrantes da comunidade se
vigiassem pode realizar a utopia do completo esquadrinhamento social da sociedade de
controle.
Segundo Caplan (1980), a doença era compreendida como um desvio da norma ou
um desajuste da ordem social. Dessa forma, nada melhor do que procurar descobrir
precocemente os indivíduos, supostamente, desajustados socialmente para reajustá-los e
32
readaptá-los. Nas palavras de Caplan (1980, p. 42), a prevenção primária era uma abordagem
baseada “no pressuposto de que muitas perturbações mentais resultam de inadaptação e
desajustamento e que, pela alteração do equilíbrio de forças, é possível conseguir uma
adaptação e um ajustamento saudáveis.”
Na tentativa de impedir a produção de condutas consideradas patológicas, os
psiquiatras preventivistas iriam centrar suas práticas e intervenções no meio social. A
psiquiatria preventivista, com o intuito de identificar o suposto desequilibrado, utilizará o
conceito de “crise” individual, estabelecido a partir de conceitos de „adaptação‟ e
„desadaptação‟ social provenientes da sociologia. Para Caplan (1980), os primeiros indícios
de modificações das pessoas que adoeceram ocorreram em um momento de crise emocional.
Nesse contexto, o psiquiatra, sua equipe e até mesmo as pessoas da comunidade deveriam
atuar nas situações que antecedessem a doença mental de forma a identificarem os momentos
de crise. Como Birman e Costa (1994, p. 57) analisaram, nos pressupostos dessa psiquiatria,
as crises que conduziriam a enfermidade poderiam ser:
1°- Crises Evolutivas geradas pelos processos “normais” de desenvolvimento físico,
emocional ou social. Na passagem de uma fase a outra do processo evolutivo, onde a
conduta não está caracterizada por um padrão estabelecido – período transitório que
perde sua caracterização anterior sem adquirir ainda a sua nova organização –
conflitos podem ser gerados, levando à desadaptação, que não sendo elaborados
pelas pessoas podem conduzir à doença;
2°- Crises Acidentais, imprevistas, precipitadas por uma grande ameaça de perda ou
por uma perda, que por sua capacidade de perturbação emocional teria a capacidade
de poder levar futuramente à doença.
Se as “crises” poderiam ocorrer com qualquer pessoa da comunidade, a intervenção
psiquiátrica não poderia se limitar ao hospital. Nesse contexto, a psiquiatria preventiva
propunha a implantação de diversos centros de saúde mental espalhados pelas cidades e
regiões, com o objetivo de identificar os sujeitos supostamente suscetíveis a qualquer uma
dessas crises emocionais que prenunciavam o desenvolvimento das ditas doenças mentais.
Esses centros de saúde preventivos, além da função de peneirar nas comunidades todo o tipo
de suspeito de desordens mentais para “evitar” que essas pessoas enlouquecessem,
funcionavam também como serviços para o tratamento extra-hospitalar.
Na época havia uma preocupação do Estado norte-americano em diminuir os gastos
com o sistema de saúde, principalmente em relação às altas despesas de internação e reinternação hospitalar. No entanto, havia também outros interesses governamentais. Em uma
época que o governo norte-americano se preocupava com o alastramento de diversos
33
problemas sociais que fugiam de seu controle, a teoria proposta por Caplan caberia como uma
luva na tentativa implantar uma política de população, onde não se isentam objetivos de
controle social e “moralização das massas”.
A trajetória percorrida pela psiquiatria preventivista revela seus caminhos de
enfrentamento da problemática da organização das populações, daí a necessidade do
esquadrinhamento do território, do estabelecimento de disciplinas e rotinas, da criação de
regras, de todos os elementos, em fim, daquela perspectiva higienista que marcara o ambiente
europeu no período da implantação industrial.
Uma das principais propostas da psiquiatria preventiva era de estender as políticas de
prevenção de problemas de saúde mental à população em geral. As políticas preventivistas
norte-americanas, consideradas na época como progressistas e inovadoras, não deixavam de
ter um reconhecível toque das práticas psiquiátricas européias daquela „profilaxia ativa‟
engendrada, na segunda metade século XIX, pela proposta de Augustin Benedict Morel. Na
época, Morel não só inauguraria a noção de degenerescência e de organicismo em Saúde
Mental, como também a idéia de prevenção, sob o nome de profilaxia ativa, na qual a
sociedade toda deveria estar no horizonte de uma intervenção preventiva, onde a psiquiatria
deveria estender seu controle do asilo para as grandes concentrações populares (CASTEL,
1978; ROCHA, 1997).
Nos princípios da psiquiatria preventiva, são perfeitamente reconhecíveis
semelhantes propostas. Para os adeptos do preventivismo, era necessário o reconhecimento de
candidatos à enfermidade. Dessa forma, as intervenções médico-psiquiátricas deveriam ser
prévias e abrangentes. Todos os espaços sociais seriam potencialmente objetos de um
processo de psiquiatrização, do qual não estariam isentas regras de conduta e conceitos de
higiene física e moral. Na ponderação de Birman e Costa (1994, p.59)
A psiquiatria preventiva vai querer repetir a prática histórica dos primeiros
higienistas do século XIX para justificar uma atuação sem conhecimento de causa e
chamar a isto de Prevenção Primária. Entretanto, o que ocorre nesta prevenção sem
sustentação teórica efetiva, é uma forma abusiva de psiquiatrização da vida social,
com o nome de promoção da saúde mental, já que a doença ou sua ameaça torna-se
caracterizada como desadaptação social ou negativismo social. A terapêutica ou a
promoção da saúde torna-se idêntica à realização de práticas de ajustamento social.
O projeto de prevenção norte-americano se caracterizaria, então, como uma nova
forma de medicalização da vida social e uma reiteração da vocação psiquiátrica para o
exercício de uma política de população. Um processo de atualização do dispositivo de
controle e disciplinamento dos corpos que, como esclarece Amarante (2009, p. 41), “vai da
34
política de confinamento dos loucos até a moderna „promoção da sanidade mental‟, como a
conhecemos agora”.
Essa ênfase “preventivista”, na expressão crítica de Birman e Costa (1994), seria muito
importante por sua decisiva influência na expansão do tratamento psiquiátrico para um número
abrangente de pessoas e teria marcante influência na organização dos serviços de saúde mental
no Brasil na década de 70, motivo pelo qual retomaremos especificamente essa questão no
item deste trabalho, sob o título “A implantação dos ambulatórios de saúde mental no Brasil e
a expansão das práticas psiquiátricas”.
A Antipsiquiatria e o movimento de uma proposta contra-hegemônica à
psiquiatria
No final da década de 50, um grupo de psiquiatras ingleses, dentre os quais se
destacavam David Cooper, Ronald Laing e Aaron Esterson, iniciou um movimento
denominado antipsiquiatria. Esse movimento não era de contestação apenas das práticas
asilares – o eletrochoque, os medicamentos psicofármacos, as restrições de liberdade
infringidas aos doentes mentais – mas, sobretudo, dos discursos de saber e poder da
psiquiatria (DELACAMPAGNE, 2004). A crítica à instituição psiquiátrica se estabelecia nas
denúncias de violência que a psiquiatria exercia ao sujeitar os doentes às suas práticas de
controle e aos seus discursos de verdade (FOUCAULT, 2006).
Os precursores desse movimento foram influenciados por diversas correntes teóricas
como o existencialismo, a fenomenologia, a crítica sociológica e, de fundo, pela psicanálise e
pelo marxismo. Nessa configuração, o pensamento antipsiquiátrico “se converteu
rapidamente em movimento contracultural que questionou a própria doença mental e a
psiquiatria”. (DESVIAT, 1999, p. 41).
A antipsiquiatria propunha romper com a ideologia psiquiátrica que se apropriara da
loucura e engendrara discursos e práticas, constituídos por um sistema de pensamento
organicista que convertera o louco em objeto médico passível de observação, experimentação
e manejo.
A trajetória desse movimento teve início com David Cooper que, inspirado nas
comunidades terapêuticas de Maxwell Jones, iniciara um trabalho em uma unidade de um
hospital psiquiátrico londrino, o pavilhão “Vila 21”, com o intuito de por fim às estruturas
hierárquicas e à disciplina hospitalar. Apesar dos bons resultados, que compreendiam a
diminuição de recaídas dos pacientes internados, muitas pressões da administração do hospital
fizeram, então, com que Cooper se demitisse (FLEMING, 1976).
35
Já em 1965, os precursores desse movimento fundariam a Philadelphia Association,
uma associação de investigação científica com o objetivo de libertar a doença mental de todas
as descrições nosológicas e de divulgar, de debater, de formar pessoal e de criar locais de
acolhimento a pessoas acometidas por esse sofrimento.
Laing e Cooper, em meio aos movimentos underground da contracultura, proporiam
uma ação para bem além do campo da psiquiatria. Propuseram o empreendimento de um
trabalho de subversão dos “valores culturais relacionados com a loucura e com as formas de
organização social, em particular a família”, e sugeriram a criação de comunidades não
institucionalizadas de desintegração dos “valores da cultura burguesa” (FLEMING, 1976, p.
68):
O projeto antipsiquiátrico apresenta-se, não somente como um desejo de negação da
psiquiatria, mas também um movimento de crítica da ordem social estabelecida, não
como a elaboração de uma nova doutrina ou de um saber instituído (facilmente
recuperável pelo sistema), mas como um movimento de contestação radical das
estruturas sociais e dos valores culturais, tais como a adaptação, a normalidade, a
saúde mental... (FLEMING, 1976, p. 70).
Os adeptos desse movimento consideravam que a experiência dita patológica era
algo das relações estabelecidas entre indivíduo e sociedade, de tal forma que a loucura era
compreendida como um fato social, político, ou mesmo como uma experiência de libertação.
Na medida em que o conceito de doença mental era recusado, o movimento da antipsiquiatria
rejeitava, também, métodos terapêuticos da psiquiatria tradicional, como o tratamento
químico, físico e moral. Conforme Fleming (1976), para os antipsiquiatras, a violência da
psiquiatria se revelaria na obrigação de ministrar medicamentos, na rotulagem diagnóstica e
na institucionalização ou cronificação da doença mental, princípios e práticas tradicionais que
estariam baseados, fundamentalmente, em critérios de normatização e de adaptação social.
Contudo, faltou a esse movimento de grande vitalidade crítica o poder de convencer
a sociedade “de sua capacidade de propor técnicas alternativas, quer dizer, capazes,
ultrapassando uma contestação abstrata do tecnicismo dos profissionais, de fornecer
ferramentas para atacar concretamente as dimensões sociais e políticas da doença mental”.
(CASTEL, 1987, p. 31). De qualquer forma, esse vigoroso movimento trouxe diversas
contribuições, principalmente no que se refere à transformação prático-teórica do conceito de
desinstitucionalização como desconstrução manicomial (AMARANTE, 2009).
36
A Psiquiatria Democrática e as propostas de desinstitucionalização da psiquiatria
A experiência da Psiquiatria Democrática italiana iniciou-se na década de 60, em
Goriza, onde Franco Basaglia, principal protagonista desse movimento, introduziu o processo
de desinstitucionalização da psiquiatria. Em um primeiro momento, Basaglia, juntamente com
um grupo de psiquiatras críticos, propôs a transformação do hospital de Goriza em uma
comunidade terapêutica. Com o passar dos anos, consciente das limitações dessa modificação
limitada ao interior do hospital, iniciara um percurso de denúncia das práticas tradicionais da
psiquiatria que culminou com propostas de abolição da internação em hospitais psiquiátricos.
Basaglia, com formação marxista e influenciado pelas obras de Michel Foucault e Erving
Goffman, introduziu um movimento político de contestação às instituições de marginalização
e contenção populares, mobilização que envolvia também outras organizações italianas, como
o movimento estudantil e os sindicatos dos trabalhadores.
Para Basaglia (1985), a psiquiatria sempre exerceu uma relação de opressão e
violência ao distanciar o louco do seu convívio social, forma encontrada pela psiquiatria para
produzir um saber/poder sobre a loucura. Dessa forma, compreendia que as condições de
medicalização da loucura estavam fundadas na caracterização do louco como marginal,
doente e perigoso, noção de fundo necessária para justificar sua exclusão da sociedade através
do enclausuramento em instituições sob o domínio médico. Por isso teria sido preciso
engenhar, também, a organização dessas instituições de exclusão e de gerenciamento total
dessa fonte de perigo e desordem social. A loucura, enquanto objeto médico, fora submetida a
toda uma produção de falsas verdades, caracterizada por práticas diagnósticas e de
medicalização que compreendiam também a estruturação necessária de aparatos institucionais
que justificassem a gravidade da intervenção psiquiátrica pela gravidade do perigo a ser
controlado. Nessa configuração, conforme Amarante (2007, p. 56), Basaglia visualizaria a
necessidade de negar não só a estrutura física do manicômio, mas a “psiquiatria enquanto
ideologia”:
Franco Basaglia passou a formular um pensamento e uma prática institucional
absolutamente originais, voltados para a idéia de superação do aparato manicomial,
entendido não apenas como a estrutura física do hospício, mas como o conjunto de
saberes e práticas, científicas, sociais, legislativas e jurídicas, que fundamentam a
existência de um lugar de isolamento e segregação e patologização da experiência
humana. (AMARANTE, 2007, p. 56)
A psiquiatria democrática italiana fez diversas críticas em relação à nosologia
psiquiátrica, que considerava representar apenas uma série de classificações que o psiquiatra
utilizava para se defender daquilo que não compreendia (FLEMING, 1976). Sobre a
37
administração de medicamentos, essa concepção não foi diferente. Para os adeptos da
psiquiatria democrática, o medicamento agiria sobre os sintomas e esvaziava o problema
político e existencial da loucura, mas principalmente, responderia à necessidade de acalmar a
própria ansiedade do psiquiatra. Nessa relação da psiquiatria com a prescrição de
medicamentos, Basaglia (1985) comenta:
(...) os medicamentos agem simultaneamente sobre a ansiedade enferma e a
ansiedade daquele que a cura, evidenciando um quadro paradoxal da situação:
através dos medicamentos que administra, o médico acalma sua própria ansiedade
diante de um doente com o qual não sabe relacionar-se nem encontrar uma
linguagem comum. Compensa, portanto, usando uma nova forma de violência, sua
incapacidade para conduzir uma situação que ainda considera incompreensível,
continuando a aplicar a ideologia médica da objetivação através de um
perfeccionismo da mesma. A ação „sedativa‟ dos medicamentos fixa o doente no
papel passivo de doente. (p.128-129)
Os partidários da reforma basagliana trabalhavam com a hipótese de que o mal da
psiquiatria sempre esteve em colocar o homem entre parênteses e se dedicar ao objeto
loucura, sem interagir com a existência sofrimento. Havia que fazer o contrário. “Sobre esta
separação artificial se construiu um conjunto de aparatos científicos, legislativos,
administrativos (precisamente a instituição), todos referidos à doença.” (ROTELLI et al.,
1990, p. 28). Para desmontar esse conjunto de instrumentos e recolocar a pessoa no centro da
atenção, vislumbrou-se a necessidade da desinstitucionalização da psiquiatria. Somente assim
seria possível entrar em contato direto com a experiência-sofrimento do sujeito.
As outras reformas que ocorreram na mesma época, na Europa e nos EUA,
propuseram uma política de desospitalização, com a construção de serviços na comunidade.
Entretanto, em todos esses novos sistemas de saúde, a internação no hospital psiquiátrico
permanecia como principal prática psiquiátrica. Conforme Rotelli et al. (1990, p. 27), “a
psiquiatria nascida das reformas faliu, seja no objetivo de superar a cronicidade, seja no
objetivo de liberar-se da sua „função‟ de coação e internação.” Para os inovadores psiquiatras
italianos era preciso a desinstitucionalização da psiquiatria:
(...) um processo social complexo que tende a mobilizar como atores os sujeitos
sociais envolvidos, que tende a transformar as relações de poder entre os pacientes e
as instituições, que tende a produzir estruturas de Saúde Mental que substituam
inteiramente a internação no Hospital Psiquiátrico e que nascem da desmontagem e
reconversão dos recursos materiais e humanos que estavam ali depositados
(ROTELLI et al., 1990. P. 18).
Foi em Trieste, já na década de 70, que Basaglia iniciou o completo esvaziamento do
hospital psiquiátrico, além da operação estratégica de deslocamento das práticas tradicionais
da psiquiatria para a construção de novos serviços e para a reinvenção das outras formas de a
38
sociedade lidar com a loucura. Foram construídos centros de saúde mental em diversas áreas
da cidade, com o objetivo de se produzir um espaço de socialização e promoção de encontros
da comunidade com os sujeitos em sofrimento psíquico. Em relação à implantação desses
centros em territórios comunitários, é possível observar a influência da política de setor
francesa e da reforma comunitária da psiquiatria americana. Porém, diferentemente dos
centros franceses e norte-americanos, os centros de saúde mental triestinos não funcionavam
como serviços de continuidade do tratamento após a alta hospitalar e, tampouco,
encaminhavam pacientes para re-internação no manicômio, cuja abolição estava no centro da
proposta. (AMARANTE, 2007).
Outro aspecto de destaque dos centros italianos era o projeto de inclusão social para
que os ex-internos dos hospitais voltassem a habitar a cidade, através das cooperativas de
trabalho e das residências terapêuticas.
O trabalho italiano de desinstitucionalização culminou na aprovação da Lei n° 180,
em 1978, que decretava a proibição da construção de novos hospitais psiquiátricos, a
construção de serviços na comunidade que viessem a substituir inteiramente a internação e
abolissem o estatuto de periculosidade social do doente mental (ROTELLI et al., 1990, p. 4849). Contudo, Basaglia e seus seguidores sempre apontaram para a necessidade de dar
continuidade à luta contra a exclusão social da loucura e contra o manicômio, esse tipo de
fênix que teima sempre em ressurgir das cinzas que deveriam sepultá-lo para sempre. E
estenderam esse alerta, com muita pertinência, ao perigo da reprodução de práticas de
exclusão institucional, mesmo nas instituições extramanicomiais (SCARCELLI, 1998).
39
A expansão psiquiátrica marcada pelo desenvolvimento dos modernos
psicofármacos
Os psicofármacos utilizados atualmente, cujas primeiras descobertas são datadas da
década de 50, não modificaram na época o cerne da assistência psiquiátrica, que continuaria
por muitos anos a exercer sua ênfase predominantemente manicomial. Bem por isso, seria a
questão manicomial, com seus críticos e entusiastas, que marcaria os primeiros momentos da
Reforma Psiquiátrica.
Mesmo com esse início pouco expressivo, seria a partir dos anos 50, com a síntese da
clorpromazina seguida pela descoberta de outros medicamentos psicofarmacológicos, que a
psiquiatria daria seus primeiros passos de sua entrada na “era da farmacoterapia” (LAMB,
2008).
Após a Segunda Guerra Mundial, o cirurgião francês Henri Laborit desenvolveu um
medicamento anestésico com a função de minimizar o choque operatório de soldados
gravemente feridos que precisavam ser submetidos a procedimentos cirúrgicos. O cirurgião
observou que com a aplicação da clorpromazina, um medicamento com efeito tranqüilizante,
era possível evitar as reações orgânicas exageradas e realizar o tratamento dos soldados
feridos (LAMB, 2008; BOGOCHVOL, 2001; PICCINI, 2000). Delay e Deniker, psiquiatras
de um manicômio francês, ao tomarem conhecimento das descobertas do cirurgião Laborit,
testaram a clorpromazina em pacientes psicóticos agitados. Diante dos bons resultados de uma
“enfermaria silenciosa”, “em 1952, Delay e Deniker sugerem oficialmente o emprego da
clorpromazina para combater a agitação psicomotora” de pacientes diagnosticados com
esquizofrenia (LAMB, 2008, p. 50).
Conforme Birman (2000), o desenvolvimento da psicofarmacologia e da neurologia
no século XX, com a descoberta da clorpromazina, possibilitou à medicina psiquiátrica
conquistar, finalmente, sua suposta legitimidade científica: “(...) a psiquiatria realizou seu
sonho, perseguido desde o século XIX, de ser uma especialidade médica, de fato e de direito.
Além disso, a psiquiatria ainda poderia se gabar de ter seus fundamentos no discurso rigoroso
da ciência biológica.” (p.241)
A rigor, pode-se dizer que, desde sua origem, a psiquiatria sempre procurara a sede
orgânica da loucura, a lesão que provocaria o mal, o órgão que poderia estar envolvido com a
doença. Contudo, a racionalidade conquistada pela medicina alienista, bem por isso
denominada „medicina especial‟, era apenas classificatória e se esgotava na constituição de
nosografias de acordo com as observações das manifestações aparentes da doença enfrentadas
40
pelas técnicas disciplinares do tratamento moral (CASTEL, 1978). A psiquiatria da época, nas
palavras de Birman (2000), buscava as causas físicas do distúrbio mental, mas encontrava
apenas as causas morais.
No entanto, mesmo sem encontrar as causas físicas da loucura, a psiquiatria já se
utilizava de diversas medicações de ordem física ou fisiológica. O uso de drogas para
tratamento no interior dos hospitais psiquiátricos encontra registros desde o século XIX
(FOUCAULT, 2006). As drogas essencialmente utilizadas eram o ópio, o nitrato de amila, o
clorofórmio e o éter, medicações prescritas para acalmar os estados ansiosos de agitação.
Todas essas medicações, inclusive as de caráter físico como as cauterizações, as
duchas, a cadeira rotatória, eram prescritas já em função da concepção psiquiátrica de que as
doenças mentais teriam uma causa orgânica. Nessas concepções, os métodos psicofísicos
serviriam para descongestionar o corpo e fazer circular o sangue, enquanto as medicações de
ordem fisiológica funcionariam para acalmar o sistema nervoso do doente (FOUCAULT,
2006). Apesar das explicações do saber psiquiátrico sobre o uso dessas substâncias, Foucault
(2006) explicita que todas as medicações tinham, na verdade, a função de “prolongar até o
interior do corpo do doente o sistema do regime asilar, o regime da disciplina; era garantir a
calma que era prescrita no interior do asilo, era prolongá-la até o interior do corpo do doente”.
(p. 226). Aliás, a utilização dos medicamentos e dos métodos de intervenção psicofísicos, na
medida em que eram procedimentos profundamente ameaçadores e desagradáveis, eram
utilizados principalmente como forma de punição e ameaça.
A psiquiatria do século XIX buscava uma causa orgânica para a origem da
perturbação mental e tentava aliar-se aos métodos fisiológicos de tratamento da medicina
geral que se desenvolvia na época, momento em que a medicina “abria os cadáveres” e
encontrava nos tecidos e órgãos o princípio de uma compreensão subjacente da doença,
exploração orgânica que viria a constituir o modelo de cientificidade médica (CASTEL,
1978). O discurso da anatomia clínica, base da medicina dita científica, não encontrava
legitimidade no campo daquela psiquiatria de Pinel e Esquirol que, considerada uma falsa
medicina, não se fundamentava nos saberes médicos (BIRMAN, 2000).
O organicismo de Morel, da segunda metade do século XIX, buscara recuperar para a
medicina geral, ainda que sob os pressupostos medievais de sua teoria da degenerescência,
aquela loucura que os alienistas da medicina especial enfrentavam com o tratamento moral.
Suas suposições já ofereciam a fundamentação básica para toda a ênfase higienista marcante
da época, porém, foi somente na segunda metade do século XX, com o desenvolvimento da
psicofarmacologia e da neurologia, que a psiquiatria ganhou nova identidade e pôde
41
aproximar-se dos dogmas da medicina. Com o desenvolvimento dos discursos da
neurociência e com o investimento na criação de drogas psicofarmacológicas, as concepções
formuladas pela psiquiatria na segunda metade do século XIX sobre a origem orgânica das
doenças mentais ganhariam, finalmente, algum recurso terapêutico efetivo para enfrentar as
disfunções biológicas supostamente inerentes à loucura. Segundo Birman (2000),
“completou-se, com isso, o sonho do saber psiquiátrico de se transformar não apenas em
ciência, mas em especialidade médica.” (p. 181).
As explicações originadas pela busca incansável da psiquiatria em encontrar um fator
causal orgânico da loucura tornaram-se, na atualidade, a principal argumentação dos discursos
e das práticas psiquiátricas. De fato, a psiquiatria tornaria-se uma ciência biológica e,
conseqüentemente, passaria a aderir um novo modo de funcionamento de sua clínica, onde os
medicamentos psicofármacos seriam o novo e o principal dispositivo para o tratamento e cura
dos transtornos mentais (AGUIAR, 2003).
Nessa configuração, iniciou-se um processo de grande valorização da concepção
biológica do sofrimento psíquico, no qual a natureza humana passou a ser reduzida à sua
estrutura biológica. Nesse aspecto, o tratamento também passou a ser biológico e
fundamentado em recursos químicos produzidos em laboratórios farmacêuticos.
Mas, para além da descoberta de constituírem-se num recurso terapêutico capaz de
responder às velhas concepções organicistas da psiquiatria, os psicofármacos permitiriam à
moderna psiquiatria expandir seus discursos e suas práticas a um número cada vez maior de
pessoas, promovendo um processo de medicalização da população numa escala, até então, só
comparável aos momentos mais típicos do movimento higienista. Obviamente, pode-se
argumentar que as práticas higienistas constituíam-se numa intervenção eivada de
preconceitos nos costumes populares e a expansão de medicamentos à população teria o
caráter da extensão de serviços de saúde. Mas, nesse caso, certamente não será inútil lembrar
o alerta que Foucault (2006) nos faz ao comparar as medicações utilizadas para tratamento
psiquiátrico no século XIX com os medicamentos utilizados atualmente: (...) “quanto às
drogas – essencialmente o ópio, o clorofórmio, o éter – elas eram, evidentemente, como as
drogas atuais continuam sendo, um instrumento disciplinar evidente, reino da ordem, da
calma, da colocação em silêncio.” (p. 301).
42
CAPÍTULO II
SOBRE O FENÔMENO DA GENERALIZADA MEDICALIZAÇÃO DO
SOFRIMENTO PSÍQUICO
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar...
A Felicidade, de Antônio Carlos Jobim e
Vinícius de Moraes
O mal-estar na pós-modernidade
Atualmente, na análise feita por diversos autores que estudam as formas de
subjetivação na contemporaneidade, é possível observar a existência de um autocentramento
do sujeito, uma forma de exaltação da individualidade que contribui para a constituição de
subjetividades narcísicas (BIRMAN, 2006; 2000; RODRIGUES, 2003). Essa visão
individualista de mundo foi consagrada por Christopher Lasch como um traço fundamental da
denominada “cultura do narcisismo” (BIRMAN, 2000).
Esse autocentramento se apresentaria sob a forma de estetização da existência, numa
infinita exigência de performances, onde o que importa para as subjetividades individualistas
é a exaltação do eu. A exibição passa a ser o lema essencial da existência, processo
denominado por Guy Debord de “cultura do espetáculo” (BIRMAN, 2000). A cultura da
imagem é propalada pela mídia que promove a estetização do eu, em que o sujeito não vale
pelo o que é, mas sim pelo o que parece ser. (LUZIO 2000).
Nessa perspectiva, a contemporaneidade se caracterizaria pela “cultura do
narcisismo” e pela “cultura do espetáculo” que constituíram um modelo de subjetividade em
que são silenciadas as possibilidades de reinvenção do sujeito. O destino do desejo, como
afirma Birman (2000), acaba por tomar uma direção exibicionista e autocentrada, que tem em
contrapartida o esvaziamento do intersubjetivo, a fragmentação da subjetividade e o
desinvestimento nas trocas inter-humanas. Nesse contexto, são instituídos novos “ideais e
43
padrões de comportamentos totalitários e totalizantes” (YASUI, 2006, p. 81), que
instrumentalizados pelas ciências humanas, são inseridos em uma lógica de mercado em que o
importante é consumir:
A psiquiatria, a psicologia, as ciências humanas de maneira geral, como saber e
conhecimento científico e racional sobre o humano, instrumentalizam e legitimam
estes ideais e padrões, inseridos em uma lógica de mercado, em que não importa ser,
mas consumir. Acena-se com promessas de rápida e imediata satisfação. (YASUI,
2006, p. 81).
Dessa forma, são elaboradas, também, novas rotulações diagnósticas que,
instrumentalizadas e legitimadas pelos saberes “psi”, fundamentados no discurso biológico e
aliados ao maciço investimento da indústria farmacêutica, tendem a servir de suporte para a
propagação da idéia simplista de que o consumo de psicofármacos proporcionaria o
tratamento cabal de quadros de sofrimento psíquico perfeitamente conhecidos e delimitados
pela ciência moderna.
A medicalização do sofrimento psíquico e a generalizada prescrição de
psicofármacos
Conforme Pelegrini (2003), o discurso atual valoriza o estar sempre bem, de bom
humor, pois o contrário pode configurar uma ameaça à inserção social e produtiva do
indivíduo. Cordeiro (1985, p.34) explica que quando alguém se encontra doente,
“impossibilitado de cumprir com os papéis sociais que lhe correspondem, torna-se uma
ameaça às necessidades e ao funcionamento do sistema social.” Conforme esse autor, na
atualidade, a doença afigura-se como um desvio social. E o doente, momentaneamente
excetuado da sociedade dos saudáveis, submete-se a qualquer tipo de estratégia para superar
esse desvio e retornar à vida cotidiana dos normais. O homem de hoje, ao colocar-se na
posição de doente, enfermo ou paciente, se sujeita à condição de quem precisa de cuidados
que ele não acredita poder prover e não crê estarem ao alcance daqueles que lhe são próximos.
Esse sujeito irá buscar soluções para seus problemas na exterioridade de um saber
especializado e poderá encontrar num profissional de saúde o alívio para seu sofrimento.
Entretanto, o saber médico se materializa em práticas discursivas específicas e define
o que é normal, o que é próprio, o que é tratamento e pode até obscurecer os determinantes do
problema do paciente. Na realidade, o saber médico exerce sobre a população um controle
social que, como explicita Cordeiro (1985), imobiliza as pessoas e atinge “todas as dimensões
da vida do indivíduo, ao legitimar e institucionalizar o papel do doente.” Esse gerenciamento
político da vida humana é comentado por França (1994, p. 50):
44
Nesse fato político de gerenciar a vida humana, a medicina adquire um papel
normativo e pedagógico que autoriza a uma ação permanente no corpo social.
Distribuir conselhos, reger relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade são
táticas da racionalidade médica para assegurar a inserção de ambos a uma série de
modelos específicos de seu campo de ação.
Conforme Machado et. al. (1978), a psiquiatria não se constitui como uma idéia ou
como um simples efeito ideológico com objetivo de encobrir os mecanismos de dominação de
uma classe sobre a outra. Segundo Foucault (2006), a psiquiatria tem uma ação mais
penetrante e eficaz, pois a aplicação de todo seu poder é sempre, e essencialmente, no corpo
dos indivíduos. Como explicita Machado et. al. (1978, p.447), a psiquiatria:
atinge diretamente o corpo das pessoas; é uma realidade que desempenha um papel
de transformação dos indivíduos, assumindo o encargo de sua vida, gerindo sua
existência, impondo uma norma de conduta a um comportamento desregrado. [...]
Através da psiquiatria o médico penetra ainda mais profundamente na vida social, dá
as cartas em um jogo que passa a existir segundo regras por ele mesmo criadas.
Nessa configuração, qualquer sinal de sofrimento psíquico pode estar suscetível a ser
transformado em objeto das práticas médicas constituídas de rotulações diagnósticas, de
terapêuticas medicamentosas, de práticas de tutela e internações psiquiátricas. Nesse processo
de transformar qualquer mal-estar psíquico em doença pode-se perceber uma tendência geral
da medicina em tornar médico aquilo que é da ordem do social. Dessa maneira, o conceito de
doença mental pode ser pensado como uma construção do saber médico psiquiátrico que criou
uma ampla produção discursiva que veio a constituir a psicopatologia moderna.
Fleming (1976) fez uma análise desse processo de ampliação dos discursos e das
práticas médico-psiquiátricas que antes estavam restritos ao âmbito hospitalar e que agora se
expandem para um número cada vez maior de pessoas:
se assiste a um fenômeno de “psiquiatrização” em massa da sociedade. A psiquiatria
sai do “gueto” em que foi fechada até o presente, o hospital psiquiátrico, e invade o
conjunto das instituições sociais... Ela reveste-se de uma aparência mais humana e
social, constitui-se em equipes que acompanham o paciente sem que este tenha de
sair de sua casa, interessa-se pelos problemas sociais e econômicos dos pacientes...
Daí, a profilaxia, a despistagem, e a fragmentação do território em setores
psiquiátricos... (FLEMING, 1976, p. 32)
Sobre as práticas psiquiátricas e o caráter preventivista que assume a psiquiatria após
a Segunda Guerra Mundial, Yasui (2006) comenta:
a psiquiatria é o discurso que instrumentaliza e legitima uma intervenção política,
uma prática disciplinadora, mediadora da sutil violência repressiva que caracteriza
as sociedades contemporâneas. Após a Segunda Guerra Mundial, a psiquiatria vai
deixar as grandes anomalias e voltar-se para a “saúde mental”, para a prevenção dos
desvios. Não se trata mais de corrigir, mas de educar para produzir um indivíduo
45
saudável e de prever a doença, antecipando-se onde houver comportamentos de
risco, desviantes de norma. As reformas propostas pela psiquiatria comunitária
norte-americana e pela psiquiatria de setor francesa concretizam este ideal (...).
(YASUI, 2006, p.80)
E se a medicina psiquiátrica pretende se antecipar e prever comportamentos ou
atitudes inadequadas à ordem social estabelecida, uma das formas de controle e
disciplinamento desses corpos, na atualidade, será através da prescrição de psicofármacos.
Se antes o que curava era o dispositivo hospitalar (FOUCAULT, 2006), na
contemporaneidade a “máquina de cura” da psiquiatria será deslocada para os psicofármacos.
A prescrição de medicamentos, esse procedimento exclusivo da medicina, constituiuse num avalizador importante desse papel de gerenciamento humano exercido pela medicina
porque, muitas vezes, se não na grande maioria dos casos, prescrever medicamentos aparenta
ser a única alternativa científica de tratamento. Para isso, vale passar por cima de qualquer
questão que possa implicar outra explicação e/ou tratamento à doença.
O uso da medicação se insere no campo da relação médico/paciente, em que são
estabelecidos lugares sociais, nos quais o médico é aquele que sabe e o doente aquele que
espera, pacientemente, a cura. Neste sistema vertical e hierárquico implicado no ato da
prescrição e da receita médica, o medicamento irá atuar na confirmação dessa relação de
dependência do paciente para com o médico. Para Luzio (2003), a maciça propaganda acaba
por incutir na maioria das pessoas a idéia de que medicar é sinônimo de tratar, e, portanto, o
bom médico é aquele que medica. Com os medicamentos psicofármacos, essa relação não
será diferente. O sujeito apresenta sua dificuldade ou queixa ao especialista, que a associa a
uma listagem sindromica vinculada a uma rotulação diagnóstica, cujos componentes serão
tratados com medicamentos. Mas há autores, no entanto, que consideram essa conduta como o
próprio abandono da clínica:
Fundar uma prática de diagnóstico com base no consenso estatístico de termos
relativos a transtornos – que, por conseguinte, devem ser eliminados com
medicamentos- é abandonar a clínica feita de sinais e sintomas que se liguem à uma
estrutura clínica, ou seja, a estrutura do próprio sujeito. (QUINET, 2001, p. 75)
A psiquiatria atualmente, mediada pelo discurso da neurociência e da
psicofarmacologia, define novas rotulações diagnósticas e novas formas de tratamento do
sofrimento psíquico, cunhando termos e definições terapêuticas que se tornaram parte da
linguagem cotidiana. A psiquiatria criou uma concepção de que a única explicação válida para
qualquer tipo de desconforto psíquico seria a descrição fisicalista, em que a vida psíquica do
homem seria reduzida a sua estrutura biológica. Associada a essa idéia, há uma
46
psiquiatrização da vida social, que transforma todo o mal-estar psíquico em doença, fato
correlato a uma grande valorização da concepção biológica do sofrimento psíquico,
fundamentado na neurologia e na genética, fatores que incentivam o tratamento baseado
essencialmente em recursos químicos. Nessa configuração, Bogochvol (2001) comenta que há
uma “marcante biologização” da vida humana:
A euforia associada às neurociências e à biologia é correlativa de uma
marcante biologização do homem. Para os defensores mais radicais do
biologicismo que se instalou no pensamento moderno, a natureza humana se
reduz à sua estrutura biológica, o mal-estar que a afeta é explicável
biologicamente, seu tratamento é biológico e tudo isto já estaria
definitivamente comprovado pela ciência. (BOGOCHVOL, 2001, p. 37)
O próprio ato de receber a receita médica e utilizar o psicofármacos pode atuar de
maneira a promover a desresponsabilização e despolitização do sujeito em relação a seu
sofrimento psíquico, o que, para Bogochvol (2001), esta relacionado a um evidente processo
de biologização que atualmente tende a transformar qualquer mal-estar em doença. Os
medicamentos reduzidos a algo trivial, transformados em uma “droga da felicidade”, são
prescritos e utilizados como solucionadores mágicos de um sofrimento cujas bases vivenciais
paciente e profissional parecem fazer questão de desconhecer. Alguns autores que estudam a
banalização da prescrição de psicofármacos, problematizam a condução de terapêuticas
medicamentosas que tendem a produzir sujeitos medicados em série “sem abordarem o
sintoma como uma manifestação subjetiva” (QUINET, 2001, p. 76).
Sobre essa tendência de banalização da prescrição de psicofármacos, podemos
destacar os antidepressivos como um dos tipos de psicofármacos mais prescritos pela
psiquiatria na atualidade. Calligaris (2007) comenta que os antidepressivos, atualmente,
passaram a ser uma “espécie de aspirina”, concebidos como capazes de “aliviar qualquer
tristeza”.
No Brasil, entre os anos de 2003 e 2007, a venda de antidepressivos em farmácias
cresceu 42%, conforme levantamento da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)
com base nos dados fornecidos pelo IMS Health. No ano de 2003 eram comercializados 17
milhões de unidades de antidepressivos, no ano de 2007 foram consumidas 24 milhões e os
números em 2008 tendem a serem ainda maiores: os registros de janeiro a julho somam 15
milhões de unidades de medicamentos (GUIMARÃES, 2008).
A banalização da administração de antidepressivos pode ser constatada nos
discursos de alguns psiquiatras que propagam a idéia de que esse tipo de droga poderia trazer
“benefícios” também para pessoas que não apresentam qualquer mal-estar psíquico. Esse
ponto de vista de medicalização geral é, também, propagado na grande imprensa. Em
47
entrevista publicada numa revista de grande circulação nacional, Gentil Filho defendeu a tese
de que a medicação psiquiátrica deve ser prescrita até mesmo para as pessoas que não
apresentam qualquer tipo de sofrimento ou transtorno psíquico, uma vez que a utilização dos
psicofármacos – antidepressivos - poderia fazer essas pessoas se sentirem “melhor do que
bem” (GENTIL et. al., 2007). Ao ser interrogado se a medicina psiquiátrica não estaria
superdiagnosticando ou, como consideramos, supermedicando, ele expõe que é melhor a
psiquiatria “pecar pelo excesso do que pela falta”, defendendo a idéia de que seria sempre
melhor colher os benefícios da medicação do que temer seus efeitos prejudiciais
(BUCHALLA, 2007). Nesse processo de medicalização proposto pelo psiquiatra, o objetivo é
atingir toda a população com a prescrição de psicofármacos. Um procedimento de
higienização que poderá produzir, inusitadamente, o sujeito anormal justamente naquele que
não utiliza o psicofármaco.
O conluio entre indústria farmacêutica e medicina psiquiátrica
O processo de ampliação do alcance da psiquiatria promovido por uma medicina que
tende a estender suas concepções de saúde a toda população ainda encontrou, como aliada, a
indústria de psicofármacos que, com seus interesses lucrativos, utiliza-se de estratégias que
influenciam a expansão dessa prática médica.
A indústria farmacêutica, através de diversas estratégias, tem exercido grande
influência na prescrição médica (GREENLAND, 2009). Um dos recursos utilizados pelos
laboratórios tem sido propalar a idéia de que o bom médico é aquele que está disposto a ter
sempre em seu consultório novidades de medicamentos, o que representaria - ilusoriamente uma maior eficiência médica, tanto para o próprio profissional, como também para o paciente.
A concepção de que novos medicamentos, supostamente produzidos com base em novas
premissas científicas e modernas tecnologias, apresentam maior eficácia em comparação a
produtos mais antigos permeia os discursos de propaganda e comercialização dos laboratórios
farmacêuticos. Entretanto, nem sempre novos medicamentos cumpririam uma função
diferente ou melhor que os mais antigos (MANTOVANI, 2009; ANGEL, 2007; CORDEIRO,
1985).
Na década de 50, quando foi sintetizado o primeiro psicofármaco da atualidade, a
clorpromazina, as indústrias de medicamentos passaram a investir no financiamento de drogas
48
para o tratamento psiquiátrico, cujo resultado foi o surgimento de um número excedente de
psicofármacos no mercado (GUIMARÃES, 2008). Essa grande quantidade de medicamentos
raramente são produtos inovadores, em sua maioria são versões aparentemente novas de
medicamentos já existentes no mercado (ANGELL, 2007; CORDEIRO, 1985).
Apesar da concepção médica de que essa multiplicidade de medicamentos serviria
para possibilitar o tratamento dos diversos tipos de sofrimento psíquico, na realidade o que se
evidencia é uma produção de novos sintomas, antes inexistentes, e sua conversão em doenças
mentais. Conforme Angell (2007), os laboratórios farmacêuticos freqüentemente anunciam
novas doenças para se encaixarem nos medicamentos que pretende lançar. A autora cita como
exemplo o laboratório Lilly, que converteu os sintomas de tensão pré-menstrual, comum a
todas as mulheres, em uma doença denominada de “Transtorno de Disforia Pré-Menstrual”.
Apesar dessa doença ainda não constar dos manuais de diagnósticos psiquiátricos, não seria
surpresa seu aparecimento numa próxima edição. Interessante notar que o novo medicamento
para o tratamento desse “transtorno que acomete as mulheres” é o mesmo do Prozac, aquele
antidepressivo descoberto no final dos anos 80, cuja carreira de verdadeiro best seller é
bastante conhecida.
Nesse aspecto, pode-se considerar que os diagnósticos psiquiátricos possam estar
mais perto das construções de uma medicina corporativa e do marketing da indústria
farmacêutica do que, propriamente, de eventos da natureza. Essa relação da psiquiatria com a
indústria de medicamentos, conforme aponta Guarido (2007), constitui-se num dos
determinantes da conformação da psicopatologia moderna:
A produção de saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se associada à produção
da indústria farmacêutica de remédios que prometem aliviar os sofrimentos
existenciais. O consumo em larga escala dos medicamentos e o crescimento
exponencial da indústria farmacêutica tornam-se elementos indissociáveis do
exercício do poder médico apoiado em um saber consolidado ao longo do século
XX. (p.159).
Cordeiro (1985), ao comentar a produção de novos medicamentos, indica que muitas
das queixas apresentadas por pacientes “correspondem a sintomas inespecíficos” e que muitas
inovações da indústria farmacêutica surgiriam apenas para organizar esses sintomas antes
dispersos e facilitar ao médico a possibilidade de uma “nova indicação terapêutica”. “Na
realidade, longe de representar uma forma de intervenção técnica, o novo medicamento
substitui o diálogo do médico com o paciente, garante o prestígio profissional e medicaliza
problemas vitais.” (CORDEIRO, 1985, p. 72)
49
A relação da indústria farmacêutica com o profissional da medicina é marcada,
muitas vezes, por uma conjunção de interesses que guarda pouca ou nenhuma relação com a
saúde do paciente. O médico ganha com a propaganda da suposta eficácia do novo
medicamento, pois além de ter aumentadas sua credibilidade, produtividade e possibilidade de
um maior número de atendimentos, ainda tem sua fidelidade recompensada por meio de uma
série de vantagens e oferecimentos cujo significado financeiro não é nada desprezível
(GREENLAND, 2009). Já a indústria ganharia seu melhor e mais eficiente representante.
Telles (2000) comenta aquilo que chama de “espúrio conluio” entre a medicina e a indústria
de medicamentos:
a prestigiadíssima New England Journal of Medicine confessou ter por várias vezes
cedido a essas pressões [da indústria farmacêutica], publicando artigos, favoráveis a
determinadas medicações, escritos por médicos que tinham vínculos financeiros
com os laboratórios que fabricavam tais medicações. Isso mostra a que níveis
podem chegar essa aliança, envolvendo o que seria o grupo de elite da medicina
americana, estabelecendo espúrios conluios entre a indústria farmacêutica e a
academia, tudo sacramentado sob o título de "investigações científicas". Envolvidos
neste escândalo estavam desde pequenos laboratórios até gigantes como a BristolMyers Squibb, a Merck and Co., Pharmacia &Upjohn, Wyeth-Ayerst.
Sobre essas relações nada terapêuticas e pouco éticas entre as grandes corporações e
os agentes da saúde humana, Quinet (2001, p. 19) nos convida a uma reflexão necessária:
Até que ponto o desenvolvimento das neurociências e da psicofarmacologia se
presta ao discurso capitalista? O dinheiro investido em suas pesquisas não poderia
inverter a ordem das coisas? Em vez de termos drogas cada vez mais eficazes para
combater novos males decorrentes da transformação da sociedade, será que agora
não são os „males‟ que são criados e categorizados em novas síndromes, para serem
tratados pelas novas drogas? A evolução da ciência na psiquiatria produz novos
remédios para novos males ou produz novos males, pseudomales, para que sejam
tratados pelos medicamentos que fabrica? Nesse caso, vemos as neurociências a
serviço do discurso capitalista não só produzindo novas drogas (novos gadgets) mas
também novas categorias diagnósticas que justificam „médica-mente‟ a utilização
dos psicofármacos. (QUINET, 2001, p.19)
A indústria farmacêutica, impedida de vender esse tipo de medicamento diretamente
aos consumidores, que só podem obtê-los através da prescrição médica, privilegia relações de
parceria com a medicina. Na aliança entre indústria farmacêutica e medicina ocorre um
esforço “para estabilizar na sociedade um discurso biológico e o conceito das doenças,
fazendo com que a população aprenda a reconhecer em suas experiências de vida os critérios
de diagnóstico” (AGUIAR, 2003, p. 8)
O discurso da saúde/doença, fortemente veiculado na mídia de consumo, cumpre o
papel de promover, na população, o consumo de medicamentos. Na sociedade contemporânea
50
de consumo todos os desejos, sonhos, projetos, paixões, materializam-se e são oferecidos pelo
mercado como produtos que podem ser comprados e consumidos (LEFÈVRE, 1991).
Segundo Lefèvre (1991), falar de saúde no mundo atual significa dizer das
mercadorias de saúde, tanto quanto falar do lazer é remeter-se à televisão. As soluções para a
promoção de saúde são materializadas e transformadas em diversos objetos consumíveis,
como seguros de vida, alimentos específicos - chás, xaropes, iogurtes - e medicamentos. O
autor, em seu livro “O medicamento como mercadoria simbólica”, explicita que assim como a
sociedade atual transforma a saúde em bens de consumo, também transforma o medicamento
em símbolo de saúde. Cordeiro (1985), citado por Lefèvre, relaciona esta circunstância do
medicamento à própria economia industrial:
O medicamento ocupa o lugar de símbolos e representações, que invadem os
determinantes sociais das doenças, iludindo os indivíduos com a aparência de
eficácia científica e como mercadorias realizam o valor e garantem a acumulação
de um dos segmentos mais lucrativos do capital industrial. (LEFÈVRE, 1991, p.22)
E o discurso da “promoção de saúde”, que obviamente não precisa estar adicto a
interesses econômicos ou corporativos, acaba sendo instrumentalizado para uma maior
circulação e venda dos medicamentos como mercadorias que devem cumprir seu ciclo de
mediadoras de acumulação de capital. O investimento da indústria farmacêutica em pesquisas
farmacológicas vinculado a oportunidades de mercado favorece o surgimento de uma
quantidade ilimitada de novas drogas, cujo principal objetivo, numa lógica capitalista de
produção e consumo, é a obtenção de lucro com a venda desse produto. No entanto, os efeitos
colaterais das substâncias produzidas para substituírem as mais antigas nunca ou quase nunca
são divulgados (ANGEL, 2007).
Em recente reportagem, publicada em um jornal de grande circulação nacional,
revelou-se que os antipsicóticos modernos, chamados de drogas de segunda geração, não são
mais seguros que seus antecessores no que toca aos efeitos na saúde cardiovascular dos
pacientes (MANTOVANI, 2009). Estudos já mostravam que os antigos antipsicóticos
aumentavam o risco de morte súbita cardíaca e, bem por isso, o fabricante apresentava um
novo produto para o mesmo tratamento. Entretanto, os efeitos colaterais das novas drogas
antipsicóticas não eram divulgados. Talvez porque um mês de tratamento com os novos
antipsicóticos pode custar mais de R$ 1.000, enquanto uma caixa com 20 comprimidos do
mais usado dos clássicos, o haloperidol, pode ser encontrada por R$ 7,00 (IDEM, 2009).
51
Casos como esses são exemplos ilustrativos de como o advento dos psicofármacos
deu à psiquiatria, conforme Carvalho e Amarante (2000), bem mais do que o ensejo de
discursar sobre a sede orgânica da doença mental:
Atravessando o tempo até os dias atuais, pode-se constatar uma tendência
contemporânea na psicofarmacologia que, animada pela injeção de recursos
financeiros das indústrias farmacêuticas, busca encontrar na intimidade invisível das
sinapses e na especulativa funcionalidade celular a tal „realidade objetiva‟. Trata-se,
muito mais do que de um idealizado anseio de busca de uma verdade „cada vez mais
verdadeira‟ e pura, de uma questão de mercado e de estratégia de hegemonia. (p.
45).
52
CAPÍTULO III
SOBRE A ORIGEM DA PSIQUIATRIA NO BRASIL, SOBRE A EXPANSÃO DAS
PRÁTICAS PSIQUIÁTRICAS, SOBRE A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
E A ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
Estou no hospício, deus. E hospício é este branco
sem fim, onde nos arrancam o coração a cada
instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo,
exangue – e sempre outro. Hospício são as flores
frias que se colam em nossas cabeças perdidas em
escadarias de mármore antigo, subitamente futuro –
como o que não se pode ainda compreender. São
mãos longas levando-nos para não sei onde –
paradas bruscas, corpos sacudidos se elevando
incomensuráveis: Hospício é não se sabe o que,
porque Hospício é deus.
Hospício é deus,
de.Maura Lopes Cançado
Do encarceramento da loucura no Brasil à medicalização do hospício
A trajetória do louco na história do Brasil colônia pouco difere da européia antes do
século XVII, época em que os loucos constituíam um elemento comum à vida cotidiana e
vagavam livremente na condição de errantes. A loucura era vista como pertencente à
paisagem urbana e rural e só era excluída do convívio no caso de tornar-se perigosa. Os
loucos tampouco se somavam ao contingente de clientes das instituições de caridade e das
Santas Casas de Misericórdia, existentes desde o século XVI no Brasil, onde se abrigavam
velhos, órfãos, mendigos e doentes pobres (RESENDE, 1987).
As modificações e transformações da sociedade brasileira no começo do século XIX,
decorrentes da chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, determinariam o
encerramento daqueles que, por qualquer razão, representassem perigo à ordem pública.
Seriam estabelecidas medidas de controle social com a finalidade de excluir os perturbadores,
desordeiros ou qualquer obstáculo que pudesse interferir na ordenação das populações e no
crescimento econômico das cidades. O louco, cuja liberdade era anteriormente tolerada, viria
a engrossar o contingente de pobres, vagabundos, incapacitados e arruaceiros que
representassem ameaça à ordem urbana que, então, se instalava. A loucura, enfrentada como
problema social, será objeto de intervenção do Estado.
53
Os loucos e os marginalizados de todas as espécies, impedidos de transitar
livremente pelas ruas das cidades, seriam encerrados nos porões das Santas Casas de
Misericórdia, circunstâncias muito semelhantes ao grande aprisionamento de pobres que,
desde o século XVI, estabelecera na Europa aquilo que Foucault denominou como “o grande
enclausuramento”.
A partir de 1830, a recém-criada Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro
investirá em protestos contra a situação dos loucos nas Santas Casas de Misericórdia e, a
exemplo da medicina alienista européia, irá reivindicar para si o domínio da loucura. A
argumentação médica estava circunscrita à idéia de que o Hospital de Misericórdia não
oferecia condições para promover a cura do doente e, portanto, seria necessária a criação de
uma instituição destinada especificamente para tratar a loucura. A luta médica pelo
saber/poder em torno da loucura culminaria na construção do Hospício D. Pedro II no Rio de
Janeiro, inaugurado no ano de 1852, considerado por diversos autores um marco institucional
da psiquiatria brasileira (RESENDE, 1987; MACHADO et. al, 1978; AMARANTE, 1994).
Após a instalação do hospício do Rio de Janeiro, novas instituições psiquiátricas
seriam inauguradas em diversas localidades do país. Entretanto, esses novos hospícios, ainda
que criados sob o amparo dos discursos da medicina alienista, permaneceriam sob
administração de leigos e continuariam a funcionar apenas como local de depósito de
indesejáveis. Os médicos, excluídos da direção e organização dos hospícios, reivindicavam o
poder institucional e argumentavam sobre a necessidade desses estabelecimentos oferecerem
condições de recuperação do louco, algo que, supostamente, só o tratamento médico poderia
proporcionar.
Com o advento da República, a medicina social brasileira, marcada pelos ideais
positivistas do pensamento científico e social da época, será autorizada a intervir mais
ativamente no campo da doença mental. A instituição asilar que antes estava sob o domínio da
Igreja e das Santas Casas de Misericórdia seria, finalmente, transferida para a tutela médica,
que passaria a ocupar a direção dos hospícios que então se instalavam. O hospício, principal
instrumento terapêutico da psiquiatria emergente será, a partir de então, o espaço institucional
de controle do louco onde, também no Brasil, se legitimaria o discurso médico-psiquiátrico no
controle e administração dessa contingência humana.
Machado et. al. (1978), inspirados nos estudos de Foucault sobre as instituições
européias, irão analisar os principais aspectos de organização da vida asilar brasileira. O
primeiro aspecto apontado pelos autores foi o estabelecimento do isolamento institucional que
promoveu a separação do louco do meio social e familiar. O segundo foi a organização do
54
espaço interno da instituição, onde os doentes seriam distribuídos de forma ordenada e
regular. O terceiro foi a vigilância do louco em todos os momentos e lugares. O quarto, a
distribuição do tempo, evitando-se o ócio do doente através da prescrição de uma ocupação
regrada e sistemática.
Finalmente, o quinto, composto pela repressão, controle e
individualização, seria obtido através do estabelecimento de normas e comportamentos
adequados, principalmente, no que se refere à questão da dependência e da submissão do
alienado à figura suprema do médico (MACHADO et. al., 1978). Essa ordem disciplinar, que
caracterizaria o espaço manicomial, sempre foi considerada fundamental à ação terapêutica
fundada no tratamento moral, que só poderia ser realizada no interior dessa configuração
hierárquica e rigidamente regrada de espaço e de poder (FOUCAULT, 2006).
Da legitimação do poder médico dentro da instituição asilar, os alienistas brasileiros
partiriam, também, para a organização do espaço social. Conforme Cunha (1986), a ofensiva
da psiquiatria para além dos muros dos hospícios constituirá um discurso médico de
moralização e disciplinarização das camadas populares que atingirá todas as instâncias da
vida cotidiana:
Autorizada por seu caráter científico, a medicina higiênica – como a medicina
mental – vai constituir um discurso sobre todas as instâncias da vida, invadindo a
esfera das relações pessoais para moldá-las segundo os propósitos da ordem e da
disciplina urbanas. (...) Elas transitam por diferentes questões e iniciativas que
incidem sobre o cotidiano da vida urbana, da habitação à saúde, da sexualidade à
norma familiar, do crime às mobilizações operária, do medo das turbas e multidões
ao receio à loucura, à promiscuidade, à devassidão. (CUNHA, 1986, p. 35).
Nessa perspectiva, a medicina higiênica, juntamente com a psiquiatria, investirá no
saneamento das cidades que, à época, estavam em acelerada expansão, onde proliferavam
cortiços e favelas, considerados focos de doenças infecciosas e do perigo representado pela
aglomeração da população de maltrapilhos e desempregados (RESENDE, 1987). Os
processos de saneamento das cidades e de disciplinarização da vida cotidiana levariam ao
recolhimento e ao enclausuramento daqueles que fossem considerados foco de perigo, de
desordem e, até mesmo, daquele remanescente improdutivo da força de trabalho que era
chamado de vadiagem.
Toda essa sistemática de organização do espaço urbano estaria fundamentada em
pressupostos científicos que, supostamente, permitiriam ao saber psiquiátrico medicalizar
todo tipo de comportamento social que se distanciasse das normas da moral e da disciplina.
A psiquiatria alienista brasileira, que já incluíra como um de seus fundamentos a
teoria da degenerescência moreliana, estenderia seu domínio para as grandes concentrações
populares e legitimaria um discurso sobre as populações marginais que habitavam as grandes
55
cidades. “Nesta ótica, o ambiente urbano será expressamente responsabilizado pela geração de
um número crescente de „degenerados‟(...)” (CUNHA, 1986, p. 26).
No Brasil, da mesma forma que ocorrera na Europa no período da psiquiatria
moreliana, a disseminação daquele enfoque organicista, no qual os fatores hereditários e
fisiológicos seriam apontados como uma das causas das doenças mentais, caminharia junto
com a percepção de que os aspectos referentes ao meio social deveriam ocupar um lugar de
destaque na etiologia das doenças mentais. Dessa forma, “as degenerescências e os desvios
passaram a ser vistos não apenas como produto da hereditariedade, mas também como
resultado da desordem social (...)” (ENGEL, 1999, p. 550).
Nessa configuração, o hospício continuava sendo um local de enclausuramento de
contingentes populacionais pobres considerados indesejáveis e inconvenientes à sociedade,
característica asilar descrita por Lima Barreto, escritor que sofrera com a mentalidade da
época e fora diversas vezes submetido a internações em hospícios na cidade do Rio de
Janeiro. Em seu livro Cemitério dos Vivos, escrito no começo do século XX, Lima Barreto
descreve a composição da população de internos que era depositada nos pavilhões dessas
instituições:
Os loucos são de proveniências das mais diversas; originam-se, em geral, das
camadas mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes italianos,
portugueses, espanhóis e outros mais exóticos; são negros roceiros (...); são
copeiros, são cocheiros, cozinheiros, operários, trabalhadores braçais e proletários
mais finos: tipógrafos, marceneiros etc. (BARRETO, 2007, p. 357)
O tratamento da loucura dentro dessas instituições estava circunscrito às práticas de
coerção e de tortura. Tais métodos repressivos, coadjuvados à imposição do trabalho forçado
nas colônias agrícolas, iriam constituir a base do tratamento moral nas instalações brasileiras.
Dentre os tipos de tratamento da época, os principais eram: os banhos frios ou quentes; a
aplicação de “capacetes de gelo”; a “malarioterapia”, que consistia na inoculação da malária
no organismo de pacientes; a aplicação de injeções de morfina e de outras substâncias
sedativas; o isolamento em “quartos fortes”; e a “traumaterapia”, macabra conquista da
psiquiatria brasileira, “orgulhosamente” descoberta pelo médico Franco da Rocha, que
consistia em uma violenta pancada na boca do estômago do paciente, da qual advinha aquela
imobilidade contida que gratificava a expectativa de tranqüilidade das terapias psiquiátricas
de então (CUNHA, 1986).
56
O higienismo e a ampliação do alcance psiquiátrico
Nas primeiras décadas do século XX, a intervenção da psiquiatria no campo social se
tornaria ainda mais ampla, com o advento das concepções e práticas do movimento higienista
que, com o objetivo de direcionar e racionalizar a existência humana, procuraria perscrutar as
concentrações populares, dando início ao processo de patologização da vida cotidiana.
Juliano Moreira, designado no ano de 1903 para substituir Teixeira Brandão na
direção da Assistência Médico-Legal aos Alienados e do Hospício Nacional de Alienados no
Rio de Janeiro, daria continuidade ao enclausuramento de contingentes populacionais pobres.
Sua vinculação à psicopatologia alemã, que também tinha suas bases na teoria da
degenerescência, levá-lo-ia a elaborar, juntamente com outros psiquiatras da época, a primeira
classificação
psiquiátrica
brasileira,
muita
semelhante
à
nosologia
kraepeliniana
(VENÂNCIO, 2003). A fundamentação na idéia de predisposição hereditária à doença
mental, que constituiria a base da nova classificação psiquiátrica, abriria caminhos para a
psiquiatria brasileira adotar as concepções e os projetos eugênicos como forma de,
supostamente, enfrentar o problema daquela degeneração congênita que a própria psiquiatria
havia inventado e desenvolvido na segunda metade do sec. XIX europeu.
Influenciado pelo moderno pensamento europeu da época, Juliano Moreira
acreditava que assim como a microbiologia determinava grandes avanços no tratamento de
doenças infecciosas, o isolamento dos seus agentes e a prescrição de pautas de higienização
da vida cotidiana também operariam uma ação eficiente da psiquiatria na prevenção da
doença mental (LOUGON, 2006).
Nessa configuração, a psiquiatria procuraria adaptar os conceitos de higiene social
para o campo da profilaxia da doença mental e deslocaria seus discursos e suas práticas para
além dos domínios médicos tradicionais. Dessa forma, o alvo de cuidados dos psiquiatras
deixaria de ser exclusivamente o sujeito considerado doente e passaria a englobar também o
indivíduo tido como normal, ou seja, aquele suspeito ainda não acometido dos males
insidiosos da loucura (COSTA, 2007).
No processo de prevenção da loucura, a psiquiatria ampliaria seu campo de
abrangência para além das instituições manicomiais, para intervir na família, na educação, nas
disposições „raciais‟, na vida social como um todo. Isso proporcionará à psiquiatria brasileira
uma extraordinária expansão de seu alcance diagnóstico, um passo marcante do
expansionismo médico que produzirá a ampla medicalização do social característica das
sociedades contemporâneas.
57
A psiquiatria, no começo do século passado, tinha pretensões de estender seus
métodos de higiene mental para todo o povo brasileiro. Isso levaria ao investimento de
recursos na construção de serviços de tipo ambulatorial, com o intuito de identificar e intervir
na fase inicial da doença mental, através da ampla triagem de pacientes que seriam
encaminhados para o hospital psiquiátrico. No ano de 1924, Gustavo Riedel (citado por
Lougnon, 2006, p.75) definiria as seguintes funções para os ambulatórios: “realizar a
prevenção das doenças mentais, pelos methodos mais modernos, pôr em prática paralelamente
os mais úteis objetivos eugenéticos e, como pretexto, prestar ótima assistência médica a
grande parte da população pobre dos subúrbios”
As propostas de intervenção psiquiátrica e de prevenção da doença mental focadas
nas populações pobres, assim como pretendia Riedel, não era puro acaso. Desde sua origem, o
projeto psiquiátrico de profilaxia da enfermidade mental sempre esteve centrado nas
populações miseráveis, conforme o legado de Morel que, no fim do século XIX, a partir das
observações do proletariado pobre da região de regiões manufatureiras da França, construiria
as concepções de profilaxia dos desvios doentios pelos quais se interpretava os males da
miséria de então. (CASTEL, 1978; ROCHA, 1997). A profilaxia consistia em exercer uma
constante vigilância da população para o controle da deterioração hereditária e para evitar as
manifestações da degeneração, vista à época como causa geral da doença mental.
Nas primeiras décadas do século XX, período de intensa industrialização e
urbanização das cidades brasileiras, todas as esferas da sociedade estariam sob o olhar da
medicina higienista e eugenista que, seguindo os mesmos passos do alienismo da época, iria
transpor o olhar vigilante e a observação sistemática, característica da instituição manicomial,
para os hábitos sociais e para o saneamento das cidades (SEIXAS, 2005).
A institucionalização das concepções higienistas e eugenistas iria culminar na
organização de algumas associações que desenvolveriam estudos e investiriam em programas
de higienização e eugenização da população, com o propósito de conquistar a perfeição física
e moral da nação brasileira. Dentre as associações, destacam-se: a Sociedade Eugênica de São
Paulo, fundada pelo médico Renato Kelh, em 1917; a Sociedade Brasileira de Higiene,
organizada em 1923; a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), criada por Gustavo
Riedel, em 1923; e a Liga Paulista de Higiene Mental, fundada por Pacheco e Silva, em 1926.
Renato Kelh, um dos grandes eugenistas brasileiros (citado por Boarini e Yamamoto,
2004, p.), definia, no ano de 1935, as diferenças entre o higienismo e a eugenia:
a higiene, por exemplo, procura melhorar as condições do meio e as individuais, para
tornar os homens em melhor estado físico, a eugenia, intermediária entre a higiene
social e a medicina pratica, favorecendo os fatores sociais de tendência seletiva, se
58
esforça pelo constante e progressivo multiplicar de indivíduos “bem dotados” ou
eugenizados.
Para evitar à propagação de indivíduos degenerados, as medidas eugênicas caberiam
perfeitamente nos propósitos médicos. Os principais objetivos dos programas eugênicos eram
preservar as gerações futuras das doenças, que seriam transmitidas hereditariamente, e
promover o aperfeiçoamento da „raça‟. Para a conquista de tais propósitos seria necessário
regenerar a população através do controle da sua reprodução, o que compreendia um conjunto
de ações eugênicas:
movidos pelo ideal de aperfeiçoamento do homem brasileiro, os psiquiatras da
LBHM vão definindo seu campo de ação, elegendo certos temas como prioritários,
na tarefa de garantir a “defesa da mentalidade da raça”, combate ao alcoolismo e aos
“vícios sociais”; imigração selecionada; controle dos casamentos (para prevenir
uniões indesejáveis, bem como incentivar as eugenicamente desejáveis);
esterilização compulsória dos ditos degenerados; seleção e orientação profissional;
atenção à infância para um desenvolvimento mental sadio e eugênico (REIS, 2003,
p. 186).
A presença crescente do modelo eugênico alemão que, por sua vez, chegaria a
dimensões especialmente vigorosas e trágicas no período nazista, levaria a psiquiatria
brasileira aos mais radicais propósitos. Por volta da década de 30, as propostas de
esterilização compulsória ganhariam força no interior da Liga Brasileira de Higiene Mental
(LBHM) e, em alguns casos, tais medidas já eram colocadas em prática. Conforme Reis
(2003), Ernani Lopes em uma das reuniões da Liga comentara que Juliano Moreira já vinha
autorizando medidas de esterilização mesmo em casos de pacientes que, mais tarde, foram
considerados passíveis de cura e de alta hospitalar. As argumentações daqueles que defendiam
tal procedimento, que já era praticado em países como os EUA e a Alemanha, estavam
relacionadas à defesa da sociedade e da „saúde racial‟ da população (REIS, 2003).
Entretanto, também existiam as vozes daqueles que discordavam dos procedimentos
propostos pela corrente radical da psiquiatria eugênica. O psiquiatra Ulisses Pernambucano,
que mantinha ligações com a LBHM, propunha a extinção das celas-fortes e das camisas-deforça e pretendia oferecer no Hospital de Recife, onde era diretor, a humanização do
tratamento e a assistência personalizada aos internos (BOARINI, 2006; COSTA, 2007). Esses
psiquiatras divergentes, que orientavam suas pesquisas na direção diversa à higiene social
racista e propunham a humanização dos hospitais, não se destacavam diante da marcante
hegemonia da psiquiatria, que continuaria, ainda por muitos anos, a enclausurar aqueles
identificados como degenerados e a submetê-los a terapêuticas repressivas e violentas.
Mas a construção de novos hospitais e a ampliação dos já existentes não cessou de
crescer. A psiquiatria, na década de 30, ainda encontraria novos recursos pretensamente
59
terapêuticos. É a época da descoberta do choque insulínico, do choque cardiazólico, da
eletroconvulsoterapia e das lobotomias, tratamentos hospitalares que levariam a psiquiatria a
tornar mais frequente o asilamento. Na década de 50, com a descoberta dos antipsicóticos, a
psiquiatria fortaleceria ainda mais este processo de psiquiatrização e utilizaria essas
medicações dentro dos asilos como mecanismo de repressão, violência, ou como forma de
tornar os enfermos mais dóceis e a instituição manicomial mais tranqüila (AMARANTE,
1994).
A implantação dos ambulatórios de saúde mental e a expansão das práticas
psiquiátricas
Se nos EUA e na Europa as primeiras experiências de reformas psiquiátricas
ocorreram após a Segunda Guerra Mundial, no Brasil essas inovações demoraram alguns anos
para influenciar as políticas públicas de Saúde Mental. Conforme Amarante (1994, p. 79), o
desenvolvimento tardio e pouco expressivo dessas novas experiências no Brasil “deve-se à
forte oposição exercida pelo setor privado que, em franca expansão, passa a controlar o
aparelho de Estado também no campo da saúde.” A criação, em 1966, do Instituto Nacional
de Previdência Social (INPS) promoveria uma política de ações curativas e individuais que,
como expõe Luzio (2003), incentivava a indústria hospitalar e a farmacêutica. O número de
leitos em hospitais psiquiátricos privados conveniados com o poder público crescia
expressivamente. A psiquiatria se transformara em um poderoso e lucrativo negócio e os
recursos públicos cumprem um papel nada desprezível nesse contexto.
No fim da década de 60, as experiências das comunidades terapêuticas começariam a
influenciar as ações de alguns psiquiatras diretores de hospitais públicos no Brasil. Entretanto,
se existia a tentativa de construir dentro dos hospitais um espaço mais democrático e de
liberdade para os internos, essas propostas fracassaram ou tiveram um êxito muito limitado e
localizado. No fundamental, o problema manicomial permanecia praticamente intocado nas
grandes instituições públicas e privadas nas quais essas experiências de comunidades
terapêuticas pouco passavam de recursos de “marketing”, de meros adereços de aparente
modernidade, sem qualquer impacto significativo na organização interna asilar. (TENÓRIO,
2002).
Na década de 70, as propostas da psiquiatria preventiva e comunitária norteamericana começariam a exercer influência nos programas de assistência psiquiátrica no
Brasil. Diante das denúncias de violência e segregação dentro da instituição manicomial,
60
alguns intelectuais críticos do campo da saúde veriam na proposta da psiquiatria preventiva
comunitária norte-americana uma alternativa plausível ao encarceramento da loucura.
Nessa configuração, seriam criados, em caráter ainda experimental, alguns
ambulatórios de saúde mental com a finalidade de proporcionar algumas modificações na
assistência psiquiátrica, principalmente no que se refere à diminuição da internação
psiquiátrica e à priorização das ações extra-hospitalares no tratamento da doença mental.
Entretanto, o hospital psiquiátrico nem de longe seria descartado. Pelo contrário, as
internações hospitalares ainda eram consideradas uma etapa necessária do tratamento da
doença mental. Nessa perspectiva, as propostas mais progressistas da época eram de que a
instituição manicomial se organizasse conforme os princípios das comunidades terapêuticas,
com o intuito de melhorar as condições dos doentes internos. E os serviços ambulatoriais,
organizados conforme os fundamentos da psiquiatria preventiva, deveriam oferecer
tratamento extra-hospitalar aos egressos manicomiais, para evitar a re-internação que
agravava os orçamentos hospitalares de então. Curiosamente, funcionava uma sistemática na
qual os aparelhos de um recurso preventivo entravam em cena somente depois do atendimento
manicomial.
No ano de 1982, na elaboração do projeto do programa de governo do então
candidato do Estado de São Paulo, Franco Montoro, reuniu-se um grupo de pessoas que,
dentre outras questões, também pensaram sistematicamente um programa de saúde mental
para o estado. Nem todas as pessoas desses grupos de discussão eram adeptas do mesmo
partido político da candidatura de Montoro, mas tinham em comum a vontade de modificar a
situação do país, que passara por períodos de escuridão com a ditadura militar. No programa
de saúde mental elaborado por essas equipes, as principais propostas eram a ampliação da
rede de ambulatórios e a criação de equipes de saúde mental que oferecessem atendimento
nos próprios centros de saúde (CESARINO, 1989). Propunha-se, também, a progressiva
redução dos hospitais psiquiátricos, o oferecimento de tratamento extra-hospitalar aos doentes
mentais e a promoção de ações que pudessem ampliar a participação comunitária no
enfrentamento dos problemas relacionados á tentativa de superação das práticas manicomiais.
Em 1983, já sob a gestão de Montoro no governo paulista, as coordenadorias de
Saúde Mental elaboraram um texto denominado "Proposta de Trabalho para Equipes
Multiprofissionais em Unidades Básicas e em Ambulatório de Saúde Mental" que ficaria
conhecido como a “Cartilha da Coordenadoria de Saúde Mental”. O documento propunha a
criação, em toda rede de saúde do estado, de ambulatórios de saúde mental constituídos por
61
equipes multiprofissionais compostas por enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais,
psiquiatras, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e farmacêuticos. Preconizava que a
recepção e a triagem dos pacientes deveriam ter como finalidade o atendimento imediato, de
forma a conduzir, de acordo com cada caso, à escuta e ao acolhimento da queixa do sujeito ou
à formulação de um plano terapêutico para o paciente, conforme as condições de cada
instituição. (FRANÇA, 1994). Além disso, nos casos em que fossem identificadas
necessidades específicas, os profissionais deveriam encaminhá-los para outras instituições,
com o propósito desses pacientes serem atendidos por outras especialidades do campo da
saúde.
Nesses equipamentos ambulatoriais de saúde, além do atendimento de egressos de
internações em hospitais psiquiátricos, a recepção e o pronto-atendimento deveriam ser
destinados a avaliar a urgência requerida pelo caso, a pertinência dos possíveis
encaminhamentos a ações de saúde no próprio ambulatório e a necessidade de
encaminhamento para internações de curta, média ou longa duração (FRANÇA, 1994).
Os ambulatórios de saúde mental eram considerados, na época, um dispositivo
inovador, pois representavam a perspectiva de criação de formas de assistência ambulatorial
multidisciplinar à população de risco, antes restrita ao tratamento asilar. Essas instituições
públicas, articuladas à atenção básica de saúde, seriam posicionadas para prestar assistência
psiquiátrica àqueles que apresentassem qualquer tipo de sofrimento mental. Conforme França
(1994, p. 75):
Esta articulação das ações psiquiátricas aos Serviços Básicos de Saúde objetiva dar
cobertura a toda população de risco, incentivando o diagnóstico precoce e o
tratamento oportuno, prevenindo o agravamento do mal, o risco de internações, e
aumentando a resolutividade das ações extra-hospitalares. Isto significa rever as
práticas médico-psiquiátricas restritas aos Hospitais, redimensionar a relação da
doença mental com a sociedade e favorecer o acesso da população a esse tipo de
serviço.
Na proposta desses ambulatórios, ao lado da preocupação social de estender os
serviços de saúde à população em geral, percebe-se uma clara influência das concepções da
psiquiatria preventiva norte-americana de Caplan. Nesse contexto, assim como acorrera nos
Estados Unidos dos anos 60, pessoas supostamente identificadas com qualquer tipo de doença
mental passaram a ser encaminhadas por profissionais dos centros de saúde, das escolas e de
outras instituições da sociedade aos ambulatórios de saúde mental. A despeito de esse serviço
62
caracterizar-se claramente como atenção secundária, suas pretensões de alcance e amplitude
assinalavam, também, uma preocupação preventiva caracteristicamente caplaniana.
Na experiência brasileira, assim como ocorrera na norte-americana, as equipes
multiprofissionais mostrariam uma tendência a reproduzir a divisão de trabalho em
especialidades técnico-profissionais do campo da saúde, gerando a hierarquização das
relações institucionais. Sob essa tendência, as equipes de saúde centrariam sua ação em torno
do atendimento psiquiátrico, fazendo que aquela nova estrutura multidisciplinar convergisse
para as velhas tradições do atendimento médico. Essa característica, aliada a pretensão de
amplo alcance que esse atendimento trazia de sua matriz preventiva, faria com que se
estendesse amplamente na população brasileira, um modelo de assistência em saúde mental
caracteristicamente médico-psiquiátrico, cujo efeito imediato seria justamente o aumento das
internações psiquiátricas que tantos de seus formuladores pretendiam evitar.
Nos Estados Unidos, os programas de prevenção propostos por Caplan já haviam
redundado em resultados parecidos, ocasionando um aumento significativo no número de
pessoas atendidas pelos centros de saúde mental que, a mercê do modelo médico, contribuía
para multiplicar novas internações em hospitais psiquiátricos. O que se observou foi que os
doentes permaneceram internados em hospitais psiquiátricos e os programas de prevenção
apenas retroalimentavam os manicômios (AMARANTE, 2009).
No Brasil, a aplicação do modelo também não obteria a redução das internações
psiquiátricas. Pelo contrário, a ampliação do acesso da população às consultas psiquiátricas
ocasionou um aumento das internações em hospitais psiquiátricos e a ampliação do uso
exclusivo de recursos medicamentosos (COSTA-ROSA e YASUI, 2008).
Apesar dos ambulatórios terem surgido no âmbito das críticas em relação ao
paradigma psiquiátrico hospitalocêntrico, essas instituições não conseguiram superar as
práticas da psiquiatria tradicional (IDEM, 2008). Os serviços ambulatoriais se constituíram
como porta de entrada para as internações psiquiátricas e para a reprodução de práticas
exclusivamente medicamentosas, o que ampliaria o controle social da psiquiatria sobre a
população, conforme Silva Filho (2000, p.17):
A questão ambulatorial foi sempre apresentada por setores auto intitulados
progressistas como a solução para a crise político-financeira da assistência médica
no Brasil. [...] No entanto, como logo se constatou, esta „solução‟, apesar de
implantada, não reduziu as internações, tendo aumentado o número de leitos
contratados e de internações produzidas. Podemos dizer que, ao contrário, ela serviu
de meio para acumulação capitalista tanto para a indústria farmacêutica quanto para
63
o setor privado contratado, ampliando o controle social e atualizando o mandato
político-ideológico da psiquiatria sobre a desordem pública.
Conforme Costa (1980), na época do programa nacional preventivo norte-americano,
também se registrou um acentuado aumento do consumo de psicotrópicos devido às
transformações da assistência psiquiátrica que deixou de atuar no interior dos asilos para
voltar-se, prioritariamente, a população dita sadia. Dessa forma, em decorrência do aumento
das demandas para tratamento psiquiátrico e psicológico houve o “consumo induzido,
prescrito e autoprescrito de medicamentos”. (AMARANTE, 2009, p. 117). No Brasil essa
tendência não seria diferente.
Costa-Rosa (1995), já registrava o perigo dessa tendência nas instituições
ambulatoriais nos anos 90:
Ainda predomina em tais instituições a medicação como uma regra praticamente
geral para os problemas que ali afluem. Uma indicação dessa situação é dada pela
existência daquilo que tem sido chamado no setor, pelos próprios trabalhadores,
„epidemia de benzodiazepinização‟ (efeitos de dependência na clientela pela
administração indiscriminada de medicamentos à base de benzodiazepínicos).
(IDEM, p. 67).
Na análise da organização das ações dos profissionais nesses dispositivos de saúde
mental, Costa-Rosa e Yasui (2008) apontam que a consulta psiquiátrica era considerada como
procedimento prioritário e essencial, o que gerava uma agenda repleta de consultas,
atendimentos de curtíssima duração e grandes intervalos entre uma consulta e outra. No
atendimento psicológico, havia uma reprodução do modelo da prática do profissional liberal,
onde se repetia uma versão piorada do trabalho de consultórios privados que, ao lado de uma
eficiência meramente representativa, promoveria nos serviços ambulatoriais uma longa lista
de espera. Os grupos de orientação, coordenados pelo profissional de enfermagem ou pela
assistência social, reproduziam aquele modelo pedagógico “geralmente à margem das
demandas subjetivas específicas daqueles indivíduos”. (p.32)
No contexto do movimento da Reforma Psiquiátrica, seriam apontadas as limitações
dos dispositivos ambulatoriais no que se refere à superação das práticas da psiquiatria
preventiva tradicional e do modelo médico hegemônico. (COSTA-ROSA e YASUI, 2008;
LUZIO, 2008; TENÓRIO, 2000; GOLDBERG, 1996; AMARANTE, 2008). Nessa
perspectiva, surgiriam novas propostas para a criação de um modelo de atenção em saúde
mental que superasse aquele paradigma médico tradicional que tão bem se aproveitara da
expansão dos serviços de saúde mental promovido pela instalação dos ambulatórios.
64
A constituição do movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil
Antes de mais nada, é preciso dizer que a denominação Reforma Psiquiátrica
brasileira, a despeito de tratar-se de expressão absolutamente consagrada pela literatura
especializada, está longe de identificar um pensamento doutrinário ou mesmo homogêneo.
Pelo contrário, ela é expressão de contribuições provenientes de uma pluralidade de aportes
teórico-metodológicos e de variadas experiências junto aos problemas da Saúde Mental, que
têm, em comum, duas características intimamente relacionadas: uma ponderada crítica
antimanicomial e uma esperança de que as pessoas em sofrimento psíquico possam receber
acolhimento adequado às suas necessidades, sem que isso implique em sua redução a
estereotipias profissionais e a interesses corporativos.
A Reforma Psiquiátrica brasileira tem sua origem recente no final da década de 70,
onde se desenvolve junto a outros movimentos sociais que lutavam contra a ditadura militar,
pela democratização do país e pelos direitos sociais às conquistas de nossa civilização. No
contexto do enfrentamento do autoritarismo ditatorial, emergiriam as críticas ao sistema
público de saúde, onde despontava o inconformismo com as péssimas condições a que eram
submetidos os doentes mentais enclausurados nos hospitais psiquiátricos.
No ano de 1978, em meio à denúncia da trágica e desumana situação vivida pelos
reclusos de um grande hospital psiquiátrico, nasce o Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental. O movimento, que seria conhecido pela sigla MTSM, denunciava o abandono, a
violência, e os maus-tratos a que eram submetidos os internos e revelaria, também, a
utilização de instituições psiquiátricas como instrumentos do aparelho repressivo da ditadura
militar (LUZIO, 2008). O movimento se organizaria para requerer melhores condições de
trabalho, desenvolveria críticas ao uso do eletrochoque, denunciaria a cronificação produzida
pelo manicômio e reivindicaria a humanização dos serviços de saúde mental, para promover
melhores condições de assistência à população. Identificado como um marco importante do
movimento da Reforma Psiquiátrica, conforme Amarante (2009), o MTSM teria presença
marcante em todos os outros acontecimentos que fariam avançar a luta contra o caráter
manicomial da assistência psiquiátrica.
No mesmo ano, o movimento da Reforma Psiquiátrica seria reforçado pela
realização, no Rio de Janeiro, do “I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e
Instituições”, que contaria com a participação de diversas personalidades que inspiravam o
pensamento crítico a respeito do saber e das práticas psiquiátricas e psicológicas. Dentre os
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convidados estavam Felix Guatarri, Robert Castel, Erwing Goffman e, em especial, Franco
Basaglia que, com seu lema “contra o pessimismo da teoria, o otimismo da prática”,
contagiaria os participantes e fortaleceria o discurso e a prática do MTSM (YASUI, 1999;
AMARANTE, 2009).
A década de 80, marcada pela grave crise financeira que assolava a economia
brasileira e desgastava o governo militar, seria o palco de lutas democráticas que culminariam
com a campanha “Diretas Já”, que embora não pudesse conquistar o direito de realizar
eleições presidenciais livres na época, resultaria na eleição, ainda que indireta, do primeiro
presidente civil após o golpe militar de 1964. (YASUI, 1999).
Nesse clima de luta e de redemocratização do país iriam se fortalecer, também, os
movimentos que pleiteavam a reformulação do sistema nacional de saúde. Nessa
configuração, no ano de 1986, ocorreria a 8° Conferência Nacional de Saúde que, ao contrário
das conferências anteriores, seria marcada pela participação popular, contando com a
representação de diversos setores da sociedade. Desta conferência surgiria uma nova
concepção de saúde: “saúde como um direito do cidadão e dever do Estado” e se definiriam,
também, princípios importantes como a universalização, a equidade, a descentralização, a
regionalização, a participação comunitária e a integralidade dos serviços de saúde,
pressupostos que culminariam, posteriormente, na organização de um Sistema Único de
Saúde (SUS).
Como desdobramento desta conferência histórica, no ano de 1987, seria realizada a I
Conferência Nacional de Saúde Mental. Em clima de intensas discussões, seriam definidas
propostas de reorganização da assistência em saúde mental, com prioridade para o sistema
extra-hospitalar e para um modelo assistencial que revertesse o caráter organicista e
medicamentoso dos procedimentos terapêuticos. Nessa conferência seria tomada a decisão de
realizar, no mesmo ano, o II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental.
Nesse congresso, o MTSM perceberia a necessidade de transformar-se em um
movimento social com o intuito de envolver e comprometer toda a sociedade na discussão das
formas tradicionais de lidar com a loucura e na construção de alternativas para a atenção em
saúde mental. Dessa iniciativa, seria criado o Movimento da Luta Antimanicomial, que
assumiria como lema principal uma bandeira tão ao gosto de Basaglia, que falecera no início
daquela década: “por uma sociedade sem manicômios”.
Considerado como um dos acontecimentos mais importante para o desenvolvimento
da Reforma Psiquiátrica, aquele congresso contaria com a participação de trabalhadores, de
usuários dos serviços de saúde mental, de familiares e outros setores da sociedade. Nessa
66
perspectiva, aqueles que antes eram silenciados e excluídos da sociedade pela intervenção
psiquiátrica, agora participariam ativamente nas discussões sobre o processo de
desinstitucionalização da loucura. Dessa forma, os sujeitos antes denominados de pacientes,
cujo conceito tem como significado a espera passiva de cuidados, passariam auto nomear-se
„usuários‟ dos serviços de saúde mental, uma forma de enfatizar a ruptura com a passividade e
a afirmação de seu direito de uso dos recursos adequados a um atendimento de qualidade em
saúde mental.
A disposição crítica quanto ao modelo tradicional da psiquiatria e o imperativo da
construção de um projeto alternativo a esse modelo, levaria os atores do movimento da
Reforma Psiquiátrica a circularem por diversos campos de saber. Longe de dogmatismos, era
preciso ter a independência de apropriar-se das contribuições do campo da psicanálise, do
materialismo histórico, do existencialismo, assim como, dos aspectos teórico-conceituais e
técnico-assistenciais das experiências históricas de reformas psiquiátricas que aconteceram na
Europa e nos EUA: a Psicoterapia Institucional, a Comunidade Terapêutica, a Psiquiatria de
Setor
francesa,
a
Psiquiatria
Preventiva
norte-americana,
a
Antipsiquiatria
e,
predominantemente, a Psiquiatria Democrática Italiana. (LUZIO, 2008).
As experiências brasileiras, influenciadas pela psiquiatria preventiva norteamericana, que visavam à construção de um modelo alternativo ao manicomial, não
conseguiram superar as práticas da psiquiatria tradicional. As propostas de transformação
dessas experiências ficaram restritas ao simples rearranjo de recursos e serviços estabelecidos
em uma rede extra-hospitalar sem qualquer questionamento sobre o arcabouço teórico da
psiquiatria. Eram apenas medidas de desospitalização.
Diferentemente desse processo de desospitalização, herdado do preventivismo norteamericano, a finalidade do movimento da Reforma Psiquiátrica, inspirado na trajetória
prático-teórica desenvolvida por Basaglia, era de constituir, conforme Amarante (2008), um
processo de desinstitucionalização da loucura.
Na busca da superação de soluções exclusivamente técnicas e administrativas, seriam
enfatizadas a criação de novos dispositivos de saúde e novas tecnologias de cuidado com
objetivo de superar aquelas restritas ao saber médico-psiquiátrico tradicional:
não se trata de aperfeiçoar as estruturas tradicionais (ambulatório e hospital de
internação), mas de inventar novos dispositivos e novas tecnologias de cuidado, o
que exigirá rediscutir a clínica psiquiátrica em suas bases. Substituir uma psiquiatria
centrada no hospital por uma psiquiatria sustentada em dispositivos diversificados,
abertos e de natureza comunitária ou „territorial‟, esta é a tarefa da reforma
psiquiátrica. (TENÓRIO, 2002, p. 35)
67
Nessa configuração, vários municípios brasileiros, no final da década de 80,
desenvolveriam novas experiências no âmbito da saúde mental. Compromissadas com
diversos desafios, tais experiências criariam novos dispositivos de cuidado ao sujeito em
sofrimento psíquico e construiriam a possibilidade de um novo lugar social para a loucura que
não fosse o da anormalidade, da periculosidade, do erro, da incapacidade. Duas experiências
seriam marcantes nesse processo. A primeira seria o Centro de Atenção Psicossocial Prof.
Luiz Cerqueira, em São Paulo; e a segunda, o Programa de Saúde Mental de Santos, que
implantaria os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) em substituição ao hospital
psiquiátrico, totalmente instinto no município. Ambas as experiências demarcariam novas
formas de intervenção no campo da saúde mental e proporcionariam a construção da Atenção
Psicossocial. (LUZIO, 2008).
Nesse mesmo período, tramitava no Congresso Nacional a Lei da Reforma
Psiquiátrica. O projeto de lei n° 3.657/89, proposto pelo deputado Paulo Delgado em nome da
pluralidade social compreendida nessa luta, era constituído por três artigos. O primeiro previa
a extinção progressiva dos manicômios e impedia a criação de novos hospitais psiquiátricos, o
segundo previa o redirecionamento dos recursos públicos para os serviços substitutivos e o
terceiro obrigava a comunicação das internações compulsórias à autoridade judiciária, única
instância aceitável às decisões sobre a liberdade no contexto da sociedade de direito.
(TENÓRIO, 2002).
Em virtude das dificuldades de aprovação no Senado, esse projeto de lei, objeto de
diversas emendas e substitutivos, seria aprovado somente doze anos depois, em 2001. A lei
aprovada, Lei 10.216/01, não contemplava a extinção progressiva dos manicômios e não
estabelecia as condições para internação psiquiátrica nos termos definidos pelo projeto de lei
original. Entretanto, apesar de resquícios de conservadorismo mantidos por interesses
corporativos e ideológicos, essa lei representou um importante passo para o processo da
Reforma Psiquiátrica brasileira e para todo atendimento nacional em saúde mental (LUZIO,
2003).
Após a aprovação da Lei 10.216/01, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica,
outras portarias do Ministério da Saúde regulamentariam a criação de serviços substitutivos
ao hospital psiquiátrico, como os Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial (CAPS e
NAPS), onde a criatividade conjunta de trabalhadores e usuários, no que pesem as
dificuldades instituintes do novo, tem a possibilidade de forjar melhores caminhos de atenção
no âmbito da saúde mental.
68
As quatro dimensões da Reforma Psiquiátrica brasileira e da construção de
uma Atenção Psicossocial no campo da Saúde Mental
estou vivendo
no mundo do hospital
tomando remédio
de psiquiatria mental
haldol, diazepam,
rohipnol e prometazina
meu médico não sabe como
me tornar um cara normal...
Sufoco da vida, canção do
Grupo Harmonia Enlouquece,
formado por egressos manicomiais
entusiastas da luta antimanicomial
O movimento da Reforma Psiquiátrica e da construção de uma Atenção Psicossocial
no campo da Saúde Mental são compreendidos como processos sociais complexos, que
abrangem diversos âmbitos e demandam o desenvolvimento de um conjunto de ações teóricopráticas, político-ideológicas e éticas norteadas pela superação do modelo médico e
manicomial. (COSTA-ROSA, LUZIO, YASUI, 2003). Conforme Amarante (2007), o
processo de construção de uma atenção psicossocial requer o entrelaçamento de ações
transformadoras nas dimensões teórico-conceitual, técnico-assistencial, político-jurídico e
sociocultural do âmbito da saúde mental.
As transformações no campo teórico-conceitual desenvolvem o questionamento do
paradigma psiquiátrico e o trabalho de desconstrução do arcabouço conceitual sobre doença
mental e mal-estar psíquico sustentados pela psiquiatria e pela psicologia tradicionais. Essa
disposição reformadora compreende que a história constitutiva da psiquiatria mostra o
desenvolvimento de um processo de apropriação do fenômeno da loucura e do sofrimento
psíquico humano por parte de saberes e práticas de base corporativa que transformaram uma
contingência humana em objeto exclusivo de saberes e práticas institucionais da medicina
psiquiátrica e da psicologia clínica tradicionais. Basaglia, expoente histórico desse movimento
crítico, já trazia a denúncia de que a psiquiatria tendia a colocar o sujeito entre parênteses em
sua visão reducionista de focar a „doença‟ que ela mesmo inventara como objeto de sua ação.
E propunha o movimento inverso: colocar a “doença mental entre parênteses” para olhar a
“existência sofrimento do sujeito” dentro das complexidades e especificidades que a
constituem. (AMARANTE, 2007).
69
A disposição de colocar a “doença entre parênteses” e olhar para o sujeito em sua
experiência, com suas vicissitudes, com seus problemas cotidianos, com seus projetos e
anseios próprios da singularidade da aventura humana significa ampliar a noção de
integralidade em saúde mental (AMARANTE, 2007) e romper com práticas essencialmente
prescritivas de psicofármacos e de psicoterapias. Nessa perspectiva, os dispositivos de
atendimento em saúde mental deixariam de ser lugares de exclusão, de repressão, de
disciplinamento, de moralização e de medicalização estereotipadas para se constituírem como
lugares especialmente propícios ao acolhimento da problematização inerente ao processo de
construção subjetiva do ser humano. O próprio fato de não limitar-se ao paradigma de doençacura, do normal-patológico, possibilitaria a construção de outras formas de acolhimento do
sujeito que não fosse apenas a remissão de sintomas através da prescrição de medicamentos,
que remediariam uma existência marcada pelo desvio, pelo defeito e pelo transtorno de uma
suposta normalidade do ser humano reduzido ao seu funcionamento neuro-fisiológico.
Dessa forma, a produção de outros conceitos e práticas tem sido uma das
preocupações fundamentais da Reforma Psiquiátrica. A proposta compreende a construção de
um novo campo teórico-conceitual, estabelecendo um intenso diálogo horizontal entre as
diferentes disciplinas e experiências que possam contribuir para a compreensão e atendimento
do sujeito em sofrimento psíquico (YASUI, 2006). Nesse âmbito de uma atenção
psicossocial, aqueles serviços de saúde mental, antes constituídos por uma equipe
multiprofissional na qual cada profissional atua no âmbito restrito de sua especialidade
formal, deveriam ceder espaço para a organização de uma equipe de saúde de caráter
transdisciplinar. Na perspectiva dessa transdisciplinaridade, as ações da equipe deixariam de
ser centradas na consulta psiquiátrica ou na aplicação de procedimentos psicoterápicos para se
focarem nas necessidades e especificidades do sujeito em sofrimento psíquico. Nessa
perspectiva, a transdisciplinaridade “subverte o eixo de sustentação dos campos
epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização tanto da dicotomia sujeito/objeto quanto
da unidade das disciplinas e dos especialismos”. (PASSOS E BARROS, 2000, p.76).
Nesse contexto, a transformação do campo técnico-assistencial compreende a
construção de uma rede de novos serviços substitutivos àqueles centrados no modelo médico
tradicional e nas práticas manicomiais que lhe deram origem. A proposta é a de construção de
serviços territoriais que visem à sociabilidade daqueles antes excluídos da diversidade da
convivência social pelo estigma da “doença mental”. Uma proposta de romper com as práticas
70
disciplinares, moralizantes, medicalizadoras e psicopatologizantes, para promover ações que
garantam a possibilidade desse sujeito em sofrimento psíquico ser cuidado nos espaços sociais
que promovam seu desenvolvimento como sujeito de sua própria existência. (LUZIO, 2008).
Esses são alguns dos princípios orientadores dos projetos dos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS), dispositivos compreendidos como estratégicos para uma atenção psicossocial em
saúde. (COSTA-ROSA e YASUI, 2008).
As transformações dos serviços no âmbito da saúde mental vinculam-se a desafios no
campo político-jurídico. A aprovação da lei 10.216/01 e de outras portarias que regulamentam
a implantação dos serviços substitutivos foi uma grande conquista no campo legislativo da
Reforma Psiquiátrica. Entretanto, conforme Amarante (2007), é necessária a revisão de toda a
legislação que está repleta de referências nocivas aos sujeitos em sofrimento psíquico e
representam um grande obstáculo ao exercício de cidadania desses sujeitos.
No âmbito sociocultural, a proposta é a da construção de práticas sociais que visem à
transformação do imaginário social relacionado com o tema da loucura, da doença mental, dos
hospitais psiquiátricos e do próprio processo de medicalização da população. Franco Basaglia
já propunha a desconstrução não só da estrutura física das instituições psiquiátricas, mas da
própria “psiquiatria enquanto ideologia”. (AMARANTE, 2008).
No âmbito deste trabalho, poderíamos acrescentar, ainda, a necessidade de promover
discussões referentes à questão da banalização da prescrição de psicofármacos. A partir da
promoção de discussões de amplo alcance social e da produção cultural e artística dos atores
envolvidos nesse processo, talvez seja possível construir outro lugar social para a loucura e
para o sofrimento psíquico que não esteja relacionado àquelas idéias de anormalidade, de
periculosidade, de erro, de fragilidade, de incapacidade. (AMARANTE, 2007).
No âmbito do movimento da Reforma Psiquiátrica e da construção de estratégias de
uma Atenção Psicossocial, os ambulatórios de saúde mental, como aqueles no qual
desenvolvemos nossa pesquisa, costumam ser avaliados como serviços extra-hospitalares que
tendem a reproduzir o modelo médico tradicional. Ainda hoje, decorrido um tempo
considerável de reformas psiquiátricas, evidencia-se nesses serviços ambulatoriais uma
grande quantidade de usuários atendidos exclusivamente com medicamentos. Apesar disso,
71
Tenório (2000) não deixa de ressaltar a importância dos ambulatórios como estruturas ainda
fundamentais e estratégicas na concretização dos pressupostos de uma Atenção Psicossocial:
o ambulatório continua ocupando um lugar privilegiado na rede de saúde, seja na
função de porta de entrada para onde converge parte significativa da demanda, seja
na função de unidade que pode absorver resolutivamente uma clientela que não tem
necessidade de freqüentar serviços mais sofisticados e de atendimento integral – que
são os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). (TENÓRIO, 2000, p. 80).
Entretanto, é prudente destacar as dificuldades em superar o modelo da psiquiatria
tradicional que parece se perpetuar, especialmente, na estrutura ambulatorial. E é nesse
contexto, também, que damos destaque aos principais dispositivos considerados estratégicos
para a constituição de uma atenção psicossocial, os CAPS, que também não estão, todavia,
isentos do risco de se tornarem serviços que reproduzam aquelas práticas medicalizadoras e
de controle social tão características dos ambulatórios de saúde mental.
As estereotipias e limitações do modelo médico-centrado, que parecem ainda guiar
as práticas de muitos profissionais desses serviços de saúde, se contrapõem às orientações,
mais modernas e socialmente atentas, que preconizam uma Atenção Psicossocial sensível às
complexidades e especificidades do sujeito em sofrimento psíquico.
Para Luzio (2008), as diretrizes e as propostas da Atenção Psicossocial advindas do
movimento da Reforma Psiquiátrica, ganham cada vez mais espaço entre os profissionais dos
dispositivos de saúde e entre a sociedade em geral. Entretanto, ainda assim enfrentamos
diversos problemas no que tange à problemática da superação do modelo manicomial e do
paradigma psiquiátrico:
a Reforma Psiquiátrica tem avançado, como processo de construção de novo
ordenamento institucional para o cuidado de pessoas com sofrimento psíquico.
Assim, observamos a ampliação da rede de atenção, estruturada em serviços abertos
e ações territoriais, diminuição da internação e leitos psiquiátricos, redução da
exclusão social do usuário, criação de uma cultura contra os manicômios. [...]
Entretanto, a Reforma Psiquiátrica brasileira precisa enfrentar, ainda, muitos
problemas e desafios, decorrentes da acirrada oposição de alguns segmentos sociais
e demais vicissitudes próprias de um processo de transição paradigmática, além de
construir estratégias para ampliar o processo de mudança da atenção em Saúde
Mental no país. (LUZIO, 2008, p.)
Nesse âmbito dos desafios a serem enfrentados, é preciso desvendar os processos
manicomiais que, através de novos discursos e práticas, se perpetuam pelos serviços de
atenção em saúde mental. (FERNANDES, 1999). Uma das novas roupagens da reprodução
desse modelo médico tradicional é o que aqui denominamos de um novo tipo de
manicomialismo, que parece abandonar o antigo imperativo da contenção física para
72
estabelecer-se como uma forma de contenção química: a prescrição de medicamentos
psicofarmacológicos.
Observamos nesses serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, o predomínio do
tratamento restrito aos recursos medicamentosos, o que demarca uma das principais
dificuldades na construção de uma atenção psicossocial em saúde. Conforme Lamb (2008), a
prescrição de psicofármacos nos serviços de saúde mental do SUS é um procedimento que
vem apresentando um crescimento inquietante. Em seu recente estudo realizado na região do
sudoeste paulista, abrangendo 25 municípios, a pesquisadora verificou que, entre os anos de
2002 e 2006, houve um crescimento progressivo no consumo de psicofármacos dispensados à
população pela rede pública de saúde, que incluí serviços como os CAPS e os ambulatórios.
(LAMB, 2008).
Nesse âmbito, podemos pensar que até mesmo o direito universal à saúde
estabelecido no direito constitucional brasileiro, corre o risco, nos termos em que vem sendo
praticado nos serviços públicos de saúde mental, de constituir-se numa forma de drogadição
da população promovida por aparelhos do Estado que, ao contrário de cumprir direitos
constitucionais, acabaria por colocar em risco a própria autonomia da população ao promover
sua dependência em relação a drogas distribuídas pelos serviços médicos estatais.
Nessa configuração, não se pode deixar de lado o alerta apresentado por Lancetti
(1989), que analisou os pressupostos profiláticos influenciados pelo projeto preventivista
norte-americano, e consagrados nesses serviços reprodutores do paradigma psiquiátrico:
“Quando se pensa em estratégias de saúde mental há dois planos preventivos a serem
considerados, o primeiro é a prevenção do manicômio e o segundo é a prevenção da própria
prevenção.” (LANCETTI, 1989, p. 87).
73
SEGUNDA PARTE
A TRAJETÓRIA DA PRESCRIÇÃO DE PSICOFÁRMACOS EM UM
AMBULATÓRIO DE SAÚDE MENTAL: UM ESTUDO EMPÍRICO
Em primeiro lugar, não se trata de analisar as formas
regulamentares e legítimas do poder no seu centro, no
que possam ser seus mecanismos gerais e seus efeitos
constantes. Trata-se, ao contrário, de captar o poder em
suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá
onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas
e instituições regionais e locais, principalmente no
ponto em que ele se prolonga, penetra em instituições,
corporifica em técnicas e se mune em instrumentos de
intervenção material, eventualmente violento.
Michel Foucault, Soberania e Disciplina, aula de 14 de
janeiro de 1976 no Collège de France.
74
APRESENTAÇÃO
No segundo movimento de nosso estudo exploratório sobre o processo de
medicalização, procuramos realizar um estudo empírico amostral para investigar, através do
exame de prontuários, a trajetória percorrida pela população de usuários de um ambulatório
de saúde mental de um município de pequeno porte do oeste paulista. Neste estudo,
procuramos acompanhar a trajetória desses usuários desde a sua condição de entrada até a
definição do procedimento terapêutico, com especial atenção aos fatores determinantes da
prescrição de psicofármacos. Para a apresentação deste segundo movimento do estudo
dividimos essa exposição em quatro unidades.
Na primeira unidade, para a contextualização desse estudo empírico amostral,
apresentamos algumas características daquele município onde se localiza o serviço
ambulatorial que serviu como base de nossa coleta de dados, resgatamos alguns elementos da
história de como aquele dispositivo de saúde mental foi implantado naquela cidade e
descrevemos o funcionamento interno daquele ambulatório.
Na segunda unidade, apresentamos os objetivos específicos desse estudo empírico e
o desenho geral da pesquisa, com os procedimentos de coleta da amostra e o plano de análise
dos dados.
Na terceira unidade, apresentamos os dados coletados. A apresentação dos dados tem
o formato de uma descrição da distribuição percentual dos diversos registros e procedimentos
constantes dos prontuários relacionados à prescrição de psicofármacos.
Na quarta unidade, apresentamos a discussão dos resultados obtidos sobre o perfil da
população do ambulatório e da trajetória da prescrição de psicofármacos naquele serviço.
Consideramos necessário fazer registro de nossa clara consciência dos limites das
possibilidades de generalização de nossas observações para outros âmbitos do serviço de
atendimento em Saúde Mental. Sabemos que estamos estudando uma pequena instituição
desse sistema que, seguramente, apresenta grande heterogeneidade. No entanto, consideramos
que as observações permitidas por esses dados não podem ser incomuns em outras unidades
de Saúde Mental e podem demonstrar as características do fenômeno estudado em uma
realidade mais geral.
75
1. CARACTERIZAÇÃO DO LOCAL DA PESQUISA EMPÍRICA
1.1. Características do município e o formato de sua rede de atendimento em
saúde mental
A pesquisa empírica foi realizada no serviço de Pronto-Atendimento (PA) de um
Ambulatório de Saúde Mental que funciona nas dependências de um Centro de
Especialidades em Saúde de uma cidade de pequeno porte do interior do Estado de São Paulo.
Trata-se de um município localizado na região do sudoeste paulista, com uma
população aproximada de 30 mil habitantes e que apresenta uma distribuição sexual bastante
equitativa (IBGE, 2007).
A atividade econômica predominante é a agropecuária, principalmente o cultivo da
cana de açúcar e do café. Em menor extensão, também são cultivados soja, trigo, milho e
mandioca. Outras atividades econômicas são a fabricação de bebidas, de farinha e de fécula
de mandioca.
Em relação aos índices socioeconômicos, a incidência de pobreza na população do
município é de 23,74% e o índice de GINI (utilizado para calcular a desigualdade de
distribuição de renda) é de 0,41 (IBGE, 2003).
Atualmente, aquele município possui uma rede de saúde composta por um Hospital
Geral (filantrópico), três Unidades Básicas de Saúde, um Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS), um Ambulatório de Saúde Mental, um Ambulatório de Especialidades, duas
Unidades de Estratégia Saúde da Família (ESF), uma Unidade de Vigilância Sanitária e uma
Unidade de Vigilância Epidemiológica.
Por pertinente, cabe registrar que em recente pesquisa realizada naquele município
onde se localiza o ambulatório estudado, Lamb (2008) observou uma queda no consumo de
antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores de humor no último ano do período de 2002 a
2006. Essa queda destaca-se como um caso ímpar entre os 25 municípios da mesma região
que, nessa série histórica, apresentaram um progressivo crescimento do consumo de
psicofármacos.
76
1.2. Sobre os antecedentes do atendimento em Saúde Mental no município e
sobre o surgimento do ambulatório de saúde mental
Desde 1989, com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) como política
nacional, a assistência em Saúde Mental no município onde realizamos a pesquisa passou a
ser oferecida por uma equipe mínima composta por um psicólogo e um médico clínico,
profissionais que realizavam apenas psicodiagnósticos e avaliações psiquiátricas (LUZIO,
2003). Entretanto, a maioria dos usuários atendidos por esses profissionais eram
encaminhados para atendimento psicoterápico em um Ambulatório de Saúde Mental de uma
cidade vizinha ou para internações em hospitais psiquiátricos da região. Conforme essa
autora, era comum a internação de pacientes sem o exame do médico: “As guias, muitas
vezes, eram entregues para algum membro da família que solicitava a internação de seu
familiar. Outras vezes o próprio motorista da ambulância desse município auxiliava as
famílias a conseguir a guia de internação.” (LUZIO, 2003, p. 162)
Somente no ano de 1994 alguns profissionais do Departamento de Saúde Mental
daquele município começaram a desenvolver ações assistenciais substitutivas à internação
psiquiátrica, em consonância com as diretrizes do SUS e de acordo com alguns princípios da
Reforma Psiquiátrica. Nessa configuração, se constituiu uma equipe mínima multidisciplinar
composta por três psicólogos, um assistente social e um médico psiquiatra. As ações no
âmbito da saúde mental eram desenvolvidas na Unidade Básica Central e tinham como
principal objetivo priorizar ações substitutivas à internação psiquiátrica (LUZIO, 2003).
No fim da década de 90 foi criado o Ambulatório de Saúde Mental, de acordo com as
propostas de organização típicas desse tipo de serviço. A equipe de saúde passou a ser
composta por um maior número de profissionais, com a finalidade de atender em maior
freqüência, duração e especificidade à demanda de usuários que procuravam assistência em
saúde mental.
Quando da realização da pesquisa, o Ambulatório de Saúde Mental daquele
município estava composto por uma equipe de cinco psicólogos, um psiquiatra, um assistente
social e um atendente. Os procedimentos oferecidos à população consistiam em: serviço de
Pronto-Atendimento (PA), consultas psiquiátricas, grupo de orientação a dependentes
químicos, grupo de familiares de dependentes químicos, psicoterapias em grupos de adultos e
de crianças, psicoterapias individuais de adultos e de crianças, grupo de orientação de pais,
visitas domiciliares e oficinas terapêuticas de artesanato para mulheres e idosos.
77
No final do ano de 2004 foi implantado, naquele município, o Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS I). Os CAPS foram regulamentados como serviços de atendimento em
Saúde Mental no inicio da década de 90, com a finalidade de ampliar as ações assistenciais no
âmbito da saúde mental, de modo a garantir o acolhimento efetivo aos sujeitos portadores de
intenso sofrimento psíquico.
Apesar da rede de atenção em Saúde Mental naquele município ser constituída por
esses dois serviços, o CAPS e o ambulatório, esta pesquisa foi realizada apenas no
ambulatório pelo fato de se situar nesse serviço a porta de entrada de todos os usuários que
procuram atendimento em Saúde Mental. Essa porta de entrada é denominada de ProntoAtendimento do Ambulatório de Saúde Mental, local de entrada obrigatório para o ingressante
no conjunto de serviços de Saúde Mental do município.
Como nosso estudo tem interesse em acompanhar o processo de medicalização desde
a entrada, a delimitação de nossa pesquisa situou-se no Pronto-Atendimento, o local
específico da coleta de dados.
1.3. Descrição do fluxograma de funcionamento do ambulatório e dos seus
procedimentos de encaminhamento
Para compor uma idéia geral do funcionamento da assistência em Saúde Mental no
município estudado e, mais especificamente, em seu ambulatório de saúde mental,
compusemos um fluxograma3 do funcionamento do serviço, acompanhado por uma descrição
sucinta da organização de suas ações, com especial atenção aos elementos determinantes da
prescrição psicofarmacológica. Essa descrição sobre o funcionamento daquela instituição foi
realizada a partir de observações do cotidiano institucional e da nossa participação em
reuniões de equipe e em supervisões institucionais com as equipes de saúde mental.
3
Aqui, utilizamos símbolos, convencionados universalmente, para a representação gráfica de nosso fluxograma.
Ainda que não tivéssemos o propósito de construir um fluxograma conforme aquele proposto por Franco e
Mehry (2003), que objetiva auxiliar equipes de saúde a olharem para a operacionalização do seu trabalho
cotidiano, utilizamos alguns elementos dessa convenção para a construção de nosso organograma de
funcionamento daquela instituição. Utilizamos três símbolos para essa representação: a elipse representa a
entrada do processo de produção do serviço; o losango indica momentos que deve ocorrer uma decisão para a
continuidade do trabalho; e o retângulo refere-se ao momento de intervenção do serviço. (BRASIL, 2005).
Orientação
para retornar
no outro dia
às 7hs para
agendar
horário de PA
Usuário
do
serviço
Não
Sim
Disponibilidade
de horários na
agenda do PA
Usuário
em intenso
sofrimento
psíquico?
Indisponibilidade de
horários na agenda
do PA (usuário não
agendado)
Recepção do
Ambulatório
de Saúde
Mental
Ambulatório de Saúde
Mental
Usuário
agendado
Reunião de equipe
PA
Retorno ao
PA
Encaminhamentos
FLUXOGRAMA DE FUNCIONAMENTO DO AMBULATÓRIO DE SAÚDE MENTAL ESTUDADO
CAPS
Lista de espera da
psicoterapia
Psiquiatria e outras
modalidades de
atendimento
Outras modalidades de
atendimento
Psiquiatria
Somente PA
Outras especialidades da
rede pública de saúde
78
79
Os usuários da rede pública de saúde que procuram pela primeira vez aquele
atendimento ambulatorial são orientados a agendar na recepção da instituição um horário para
um Pronto-Atendimento (PA). O agendamento do PA é realizado pela ordem de chegada dos
usuários na recepção daquele ambulatório e o atendimento, preferencialmente, deverá ocorrer
no mesmo dia. Quando não há mais horários disponíveis no dia, o usuário é orientado a
retornar no dia seguinte para novamente reiniciar sua tentativa de conseguir um agendamento.
É usual que a demanda maior que a disponibilidade de horários de PA provoque a formação
de uma fila de pessoas que começam a chegar até duas horas antes do horário de
funcionamento daquele ambulatório. Nesses dias de grande procura, cabe apenas ao atendente
da recepção, profissional solícito, mas sem qualquer formação específica para isso, avaliar os
casos e determinar os que serão incluídos em um horário de PA e atendidos naquele mesmo
dia.
A função desse serviço de PA, oferecido diariamente naquela instituição, é a de
acolher a queixa do usuário, abrindo um espaço de escuta ao sofrimento daquele sujeito, e
realizar uma triagem para determinar o encaminhamento de cada caso. Cada prontoatendimento tem a duração de, aproximadamente, 30 minutos, período em que o profissional
da equipe de saúde poderá, de acordo com cada caso, determinar o encaminhamento do
usuário a ações de saúde no próprio ambulatório ou em outras instituições de saúde. Os
profissionais que atendem no PA preenchem uma ficha de entrevista inicial em que constam
dados de identificação do sujeito, de características relacionadas ao motivo da consulta e a
vida pessoal e social do usuário (Anexo A). A ficha de triagem irá compor os registros do
prontuário, que é constituído por diversos documentos, exames médicos e relatos referentes
ao estado geral de saúde e aos procedimentos oferecidos aos usuários pelos serviços da rede
pública de saúde do município.
A partir do serviço de pronto-atendimento, o caso de cada usuário estará sujeito a três
tipos de providência: apenas acolhimento do usuário; oferecimento de orientações e
disponibilização do serviço de pronto-atendimento para outro eventual momento de
necessidade; encaminhamento do caso à reunião de equipe, em que serão decididos os
possíveis encaminhamentos; determinação direta de algum encaminhamento ao usuário do
serviço. Estes encaminhamentos determinados pelos profissionais da equipe de saúde ou pelo
profissional do pronto-atendimento podem ser:
80
- encaminhamento a um retorno ao Pronto-Atendimento;
- encaminhamento a outras especialidades da rede pública de saúde;
- encaminhamento ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS);
- encaminhamento à consulta psiquiátrica;
- encaminhamento a outras modalidades de atendimento;
- encaminhamento à consulta psiquiátrica e a outras modalidades de atendimento.
Agrupamos na categoria “outras modalidades de atendimento” todos aqueles
procedimentos que não estão relacionados à consulta psiquiátrica e são oferecidos à
população naquele ambulatório. Esses procedimentos consistem nos seguintes atendimentos:
grupo de orientação a dependentes químicos, grupo de familiares de dependentes químicos,
psicoterapias em grupos de adultos e de crianças, psicoterapias individuais de adultos e de
crianças, grupo de orientação de pais, visitas domiciliares, ou oficinas terapêuticas de
artesanato.
Apesar da equipe de saúde tentar atuar como um grupo de profissionais envolvidos
na realização de um trabalho conjunto orientado por relações mais horizontais, os
procedimentos oferecidos naquele serviço ambulatorial são marcados pela especialidade
profissional. O serviço de PA e as “outras modalidades de atendimento” são procedimentos
sempre realizados apenas pelos profissionais de psicologia e de assistência social. As reuniões
de equipe, que deveriam ocorrer sempre com a participação de todos os profissionais, na
maioria das vezes acontecem sem a presença do médico psiquiatra. Nas raras reuniões em que
é possível contar com sua presença, aquele profissional se ocupa do preenchimento das
inúmeras receitas de medicamentos e participa muito pouco das discussões. Nesse contexto, a
proposta de realizar reuniões de equipe para um intenso diálogo de caráter transdisciplinar
sobre a organização das ações do serviço e sobre a discussão e encaminhamento dos casos
fica prejudicada pela ausência do psiquiatra ou por sua presença meramente formal.
Interessante destacar que aquela equipe de saúde, que conta apenas com um
profissional de psiquiatria, tende a priorizar os encaminhamentos dos usuários à consulta
psiquiátrica. Essa tendência tornou a consulta psiquiátrica o principal procedimento daquele
serviço ambulatorial, conforme mostra um levantamento de dados realizado pela própria
equipe de saúde daquela instituição. O encaminhamento à consulta psiquiátrica é um
procedimento determinado por aqueles profissionais que atendem no pronto-atendimento, os
psicólogos e o assistente social. O médico psiquiatra daquele serviço, contratado para o
81
cumprimento de uma carga horária de trabalho de 20 horas semanais, corriqueiramente não
chega a cumprir metade de sua jornada contratual e acaba por limitar seu trabalho à realização
de consultas que não ultrapassam dez minutos. A pouca participação daquele profissional nos
espaços coletivos de discussão da equipe - e de decisão sobre as problemáticas dos usuários não impede que a consulta psiquiátrica seja o mais freqüente encaminhamento determinado
pela equipe. Essa tendência sugere que a equipe de profissionais do ambulatório parece
encontrar dificuldades para superar os estritos limites de um paradigma médico, um dos
principais determinantes do reducionismo que levará a uma freqüência muito alta de
prescrição de psicofármacos.
Esses, dentre outros problemas enfrentados por aquele serviço, têm levado os
profissionais da equipe de saúde a discutirem, em supervisões institucionais realizadas a partir
de 2008, as dificuldades de organização das ações de saúde, principalmente no que se refere à
superação do modelo médico tradicional.
82
2. OBJETIVOS, PARÂMETROS E PROCEDIMENTOS DA PESQUISA EMPÍRICA
REALIZADA NO AMBULATÓRIO DE SAÚDE MENTAL
2.1. Objetivos da pesquisa
Objetivo geral
O objetivo geral desta pesquisa empírica foi investigar, através do exame de
prontuários, a trajetória percorrida pela população de usuários do Ambulatório de Saúde
Mental desde sua condição de entrada até a definição do procedimento terapêutico, com
especial atenção aos fatores determinantes da prescrição de psicofármacos. Esse objetivo
geral foi desdobrado em oito objetivos específicos apresentados a seguir.
Objetivos específicos
a) Verificar e descrever a proporção dos usuários que deram entrada no serviço de
pronto-atendimento do ambulatório já sob prescrição de psicofármacos e investigar a
procedência dessa prescrição prévia;
b) Examinar as características dos usuários do serviço, como gênero, faixa etária, queixa
inicial e sintomas, para traçar um perfil da população do ambulatório. Investigar a
relação dessas características com a prescrição prévia de psicofármacos e com a
prescrição psicofarmacológica determinada na consulta psiquiátrica do ambulatório;
c) Investigar como se distribuem os encaminhamentos dados aos usuários pelos
profissionais do atendimento de entrada do serviço: somente acolhimento,
encaminhamento à consulta psiquiátrica, encaminhamento a outras modalidades de
atendimento, ou encaminhamento simultâneo à consulta psiquiátrica e a outras
modalidades de atendimento. E verificar a relação entre a condição de medicação
anterior à entrada no serviço e o tipo de encaminhamento dado pelos profissionais do
ambulatório;
d) Levantar a terapêutica determinada aos usuários encaminhados para tratamento
psiquiátrico no ambulatório e sua relação com a condição de medicação anterior à
entrada no serviço;
e) Verificar as classes de psicofármacos presentes na prescrição prévia e comparar com
as da primeira prescrição do ambulatório. Examinar a quantidade de psicofármacos
prescritos na primeira consulta psiquiátrica do serviço;
83
f) Levantar os diagnósticos estabelecidos pelo atendimento psiquiátrico aos usuários que
foram submetidos a tratamento psicofarmacológico no serviço;
g) Investigar a evolução dos casos, com especial atenção à evolução do tratamento de
usuários encaminhados à psiquiatria;
h) Examinar a ocorrência e os motivos de encaminhamentos à internação psiquiátrica
determinada pelos profissionais do ambulatório.
2.2. O desenho geral da pesquisa empírica: o procedimento de coleta e o plano
de análise dos dados
A pesquisa empírica foi realizada no serviço de Pronto-Atendimento (PA) de um
Ambulatório de Saúde Mental de uma cidade de pequeno porte do interior do Estado de São
Paulo. Este estudo, cujo objetivo foi conhecer a trajetória percorrida pela população de seus
usuários desde sua condição de entrada até a definição do procedimento terapêutico, foi
realizado através do exame de prontuários.
Isso colocado, apresentamos os fatores que determinaram a delimitação do período
pesquisado.
A delimitação do período
Selecionamos os prontuários de usuários que deram entrada no serviço de prontoatendimento do Ambulatório de Saúde Mental durante os anos de 2005 a 2008. Esse recorte
deve-se ao fato de que foi em fins de 2004 que foi iniciado o funcionamento de um Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS), com o que se definiu o atual formato da rede de assistência em
Saúde Mental naquele município e, conseqüentemente, as atuais atribuições de seu
Ambulatório de Saúde Mental, onde foi realizado o estudo.
A definição da amostra
Como já dissemos, a pesquisa empírica foi realizada através do exame dos registros
dos prontuários de usuários que deram entrada no serviço ambulatorial pela primeira vez no
período de 2005 a 2008.
No município, há um controle mensal dos atendimentos realizados pelos
profissionais da equipe de saúde, dados que estão arquivados na Secretaria de Saúde. Nesses
registros, que também estão separados por ano, é possível verificar os números dos
84
prontuários de todos os usuários que deram entrada no pronto-atendimento do Ambulatório de
Saúde Mental. Selecionamos, então, nesses arquivos, a numeração dos prontuários dos anos
de 2005 a 2008, conforme a delimitação do período já apresentada. O conhecimento dessa
numeração era o que precisávamos para localizar os respectivos prontuários no arquivo geral
da unidade de atendimento. A listagem desses números foi utilizada, também, para o
procedimento aleatório sistemático de retirada da amostra.
A definição da amostra consistiu nos seguintes procedimentos:
- primeiramente, fizemos uma listagem, já dividida pelos respectivos anos, das
numerações de todos os prontuários do período;
- respeitada a proporção dos extratos anuais, definimos uma amostra de 20% da
população obtida por sorteio aleatório em cada grupo de cinco, com o auxílio do
programa Bioestat (2007);
- dessa amostra provisória, excluímos os prontuários de usuários menores de 18 anos.
Na definição do espaço coberto pela amostra, nos deparamos com alguns problemas
sobre os quais tivemos que fazer opções, das quais damos aqui o devido registro. Verificamos
não constar dos arquivos do órgão da Secretaria de Saúde local os dados referentes a quatro
meses do ano de 2005. Optamos por tomar os oito meses restantes no procedimento de
amostra. Além disso, observamos que a falta do médico psiquiatra em quatro meses no ano de
2007 e em três meses no ano de 2008 determinou um período muito especial em comparação
ao funcionamento regular da instituição. Como os objetivos de nossa pesquisa são
exclusivamente concernentes às questões da medicalização, optamos por excluir de nossa
amostra esses meses referentes à falta do médico-psiquiatra no serviço ambulatorial.
Tomamos os oito meses restantes do ano de 2007 e os nove meses restantes do ano de 2008.
Na tabela abaixo, podemos observar a distribuição dos prontuários da amostra
conforme os anos do período de 2005 a 2008.
85
TABELA 1 – DISTRIBUIÇÃO DOS PRONTUÁRIOS DA AMOSTRA,
CONFORME OS ANOS DO PERÍODO DE 2005 A 2008
ANOS
AMOSTRA
2005
100
2006
145
2007
81
2008
104
Total
430
Obtivemos, então, uma amostra de 430 prontuários da população adulta de usuários
do Ambulatório de Saúde Mental.
Sobre os procedimentos de distribuição dos dados
Em primeiro lugar, de acordo com os objetivos desta pesquisa, dividimos nossa
amostra em dois grandes grupos: o dos usuários que deram entrada no pronto-atendimento do
serviço com medicação prévia de psicofármacos (CMPP) e o dos usuários que deram entrada
no pronto-atendimento do serviço sem medicação prévia de psicofármacos (SMPP). Depois,
distribuímos os usuários de cada um desses grandes grupos nas seguintes categorias:
A- Usuários que não receberam outro encaminhamento além do prontoatendimento;
B- Usuários que o pronto-atendimento encaminhou a outras modalidades de
atendimento;
C- Usuários que o pronto-atendimento encaminhou à consulta psiquiátrica;
C1- Usuários que não receberam prescrição de psicofármacos quando
encaminhados à psiquiatria;
C2- Usuários que receberam prescrição de psicofármacos quando
encaminhados à psiquiatria;
D- Usuários que o pronto-atendimento encaminhou simultaneamente à consulta
psiquiátrica e a outras modalidades de atendimento;
D1- Usuários que não receberam prescrição de psicofármacos quando
encaminhados à psiquiatria;
D2- Usuários que receberam prescrição de psicofármacos quando
encaminhados à psiquiatria.
86
O plano de nossa pesquisa empírica consistiu na análise exploratória descritiva dos
grupos acima caracterizados, onde se calculou as freqüências percentuais relativas e se
realizou os cruzamentos e comparações concernentes aos objetivos desta pesquisa, com as
eventuais análises estatísticas. O diagrama abaixo pode ilustrar a base do procedimento de
definição dos subgrupos.
AMOSTRA
CMPP
A
1
1
1
1
1
1
B
B
SMPP
D
C
A
D2
B
D
C
D2
D1
C1
C2
D1
C1
C2
87
3.
APRESENTAÇÃO DOS DADOS
Para a apresentação dos dados coletados, dividimos a exposição em duas partes:
- Na primeira, apresentamos os dados sobre algumas características da população de
nossa amostra, na tentativa de organizar alguns elementos para elaboração de um perfil da
população de usuários do serviço.
- Na segunda, apresentamos os dados sobre a trajetória percorrida por esses usuários
no interior daquele serviço ambulatorial.
3.1. Elementos para um perfil da população de usuários do serviço
No primeiro atendimento aos usuários que chegam ao Ambulatório, o profissional do
PA deve preencher uma ficha de entrevista inicial (Anexo A). Nessa triagem, além da
identificação do paciente, também constam o motivo da consulta (queixa inicial); tratamento
anterior; dinâmica familiar; vida profissional, escolar e social; sinais e sintomas e
encaminhamentos. Todas essas características são preenchidas na folha de entrevista inicial
no momento em que o usuário do serviço dá entrada no Ambulatório de Saúde Mental. A
coleta e o tratamento desses dados nos possibilitariam traçar um perfil bastante completo da
população dos usuários do serviço. Entretanto, uma observação preliminar do conjunto do
material mostrou que raramente são preenchidos os dados sobre dinâmica familiar, vida
profissional, escolar e social. A falta dessas anotações inviabilizou a organização de dados
sobre essas características reconhecidamente importantes para o estabelecimento de um perfil
da população.
Realizamos, então, a organização dos dados dos usuários que foram encontrados nas
fichas. São eles o tratamento psicofarmacológico anterior à entrada no serviço, o gênero, a
idade, os sintomas e as queixas iniciais.
Como o foco de nossa pesquisa é a medicação psicofarmacológica, optamos por
apresentar todos os dados classificados (gênero, idade, sintomas e queixas iniciais) conforme
a presença ou ausência de prescrição psicofarmacológica anterior à entrada do usuário no
serviço.
88
3.1.1. Sobre a medicação anterior: apresentação de dados sobre a prescrição de
psicofármacos anterior à entrada dos usuários no serviço
Para examinarmos os dados sobre o tratamento anterior, definimos a condição de
entrada dos usuários conforme sua relação com a prescrição de psicofármacos. Assim,
estabelecemos dois grupos: o grupo dos usuários que já chega com medicação prévia de
psicofármacos (CMPP) e o grupo de usuários que chega sem medicação prévia de
psicofármacos (SMPP). Os resultados dessa distribuição estão apresentados na tabela
seguinte.
TABELA 1- DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E PERCENTUAL DOS
USUÁRIOS CONFORME SUA CONDIÇÃO DE MEDICAÇÃO ANTERIOR
À ENTRADA NO SERVIÇO (PERÍODO 2005 / 2008)
CONDIÇÃO DE
FREQÜÊNCIA
ENTRADA
N
(%)
299
70%
CMPP
131
30%
SMPP
430
100%
Total
CMPP: usuários com medicação prévia de psicofármacos
SMPP: usuários sem medicação prévia de psicofármacos
Como mostra a Tabela 1, do exame de 430 prontuários de usuários do ambulatório,
constatamos que 70% dos usuários já deram entrada no serviço sob prescrição de
psicofármacos.
Além de constatar que uma ampla maioria de usuários já chega ao serviço sob
prescrição de psicofármacos, procuramos organizar dados sobre a procedência dessa
prescrição.
Apresentação de dados sobre a procedência da prescrição prévia de
psicofármacos
Colhemos dados sobre as especialidades médicas que prescreveram psicofármacos
aos usuários antes de sua entrada no serviço. Apenas em 4% dos casos não havia identificação
da especialidade médica prescritora. Os dados, já excluídos os sem identificação, estão
apresentados na tabela a seguir.
89
TABELA 2 – DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E PERCENTUAL DOS
USUÁRIOS SEGUNDO AS ESPECIALIDADES MÉDICAS PRESCRITORAS
(PERÍODO 2005 / 2008)
ESPECIALIDADE MÉDICA
PRESCRITORA
FREQÜÊNCIA
N
%
Psiquiatria
116
40%
Clínica Geral
86
30%
Neurologia
40
14%
Cardiologia
16
6%
Ginecologia
13
5%
Outras especialidades médicas*
14
5%
Uso de psicofármaco por conta própria
3
< 1%
288
100%
Total
*Outras especialidades médicas: nefrologia, ortopedia e atendimento médico no Programa da Saúde da Família.
Conforme se observa na Tabela 2, somente 40% dos usuários que já chegaram
medicados no ambulatório haviam recebido sua prescrição psicofarmacológica de médicos
psiquiatras. A maioria, 60% dos casos da amostra, recebera a prescrição prévia de
psicofármacos de outras especialidades médicas.
Depois da psiquiatria, a clínica geral
aparece como a especialidade mais freqüente (30%) nas prescrições prévias de psicofármacos
aos usuários do serviço.
3.1.2. Apresentação de dados sobre o gênero dos usuários do serviço
Levantamos dados referentes ao gênero dos usuários do serviço ao longo do período
examinado. A distribuição dos dados está apresentada na tabela abaixo:
TABELA 3- DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E PERCENTUAL POR
GÊNERO DOS USUÁRIOS DO SERVIÇO
(PERÍODO 2005 / 2008)
FREQÜÊNCIA
GÊNERO
N
(%)
281
65%
FEMININO
149
35%
MASCULINO
430
100%
TOTAL
90
Como indica a Tabela 3, a maioria da população que procura atendimento no
Ambulatório de Saúde Mental, numa proporção aproximada de dois para um, é composta por
usuários do sexo feminino.
Apresentação de dados sobre o cruzamento do gênero dos usuários com sua
condição de medicação anterior à entrada no serviço
Fizemos a distribuição dos usuários CMPP e SMPP segundo o gênero. Da
distribuição desses dados, obtivemos a seguinte tabela:
TABELA 4- DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E PERCENTUAL DE GÊNERO
DOS USUÁRIOS SEGUNDO A CONDIÇÃO CMPP E SMPP
(PERÍODO 2005 / 2008)
GÊNERO
CONDIÇÃO DE ENTRADA
FEMININO
MASCULINO
N
(%)
N
(%)
CMPP
193
69%
106
71%
SMPP
88
31%
43
29%
TOTAL
281
100%
149
100%
CMPP: usuários com medicação prévia de psicofármacos
SMPP: usuários sem medicação prévia de psicofármacos
Como indica a Tabela 4, a freqüência de mulheres que já deram entrada no serviço
sob prescrição de psicofármacos (69%) é praticamente igual à freqüência de homens que já
chegavam medicados (71%).
3.1.3 Apresentação de dados sobre a faixa etária dos usuários do serviço
Levantamos dados referentes à idade dos usuários do serviço e os distribuímos
segundo os intervalos de faixa etária adaptados daqueles do IBGE. Podemos observar os
dados na tabela abaixo:
91
TABELA 5- COMPARAÇÃO DA DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E
PERCENTUAL DA POPULAÇÃO DO MUNICÍPIO COM OS USUÁRIOS DO
AMBULATÓRIO SEGUNDO A FAIXA ETÁRIA
(PERÍODO 2005 / 2008)
Amostra
População do município*
FAIXA
(n=430)
(n=19.771)
ETÁRIA
N
(%)
N
(%)
29
7%
3.514
18%
18-24
40
9%
2.299
12%
25-29
81
19%
4.619
23%
30-39
95
22%
3.644
18%
40-49
76
18%
2.461
12%
50-59
37
9%
991
5%
60-64
24
6%
867
4%
65-69
14
3%
560
3%
70-74
10
2%
496
3%
75-79
24
6%
320
2%
80...
430
100%
19.771
100%
TOTAL
*Fonte: IBGE (2003)
Como indica a Tabela 5, a população que procura atendimento no serviço
ambulatorial é composta por pessoas com mais idade do que a população do município. O
valor da mediana da distribuição etária da população do município registra 38 anos de idade,
enquanto os valores da média e da mediana da distribuição etária da população amostral
registram 48 e 47 anos, respectivamente.
Investigamos, então, a distribuição da idade dos usuários que deram entrada no
ambulatório com medicação prévia (CMPP) e sem medicação prévia (SMPP).
Apresentação de dados sobre o cruzamento da faixa etária com sua condição
de medicação anterior à entrada no serviço
Calculamos os valores da média e da mediana da distribuição das idades dos usuários
em relação à sua condição de medicação anterior à entrada no serviço (CMPP / SMPP).
Distribuímos os dados conforme a tabela abaixo:
92
TABELA 6- VALORES DA MÉDIA E DA MEDIANA DE IDADE DOS USUÁRIOS
SEGUNDO CRUZAMENTO COM A CONDIÇÃO CMPP E SMPP
(PERÍODO 2005 / 2008)
CONDIÇÃO DE ENTRADA
MÉDIA
MEDIANA
CMPP
SMPP
51 anos
50 anos
41 anos
38 anos
POPULAÇÃO
GERAL
48 anos
47 anos
CMPP: usuários com medicação prévia de psicofármacos
SMPP: usuários sem medicação prévia de psicofármacos
Como mostra a Tabela 6, o grupo dos usuários com medicação prévia (CMPP) tem
média e mediana de idade superiores ao grupo dos sem medicação prévia (SMPP).
3.1.4. Apresentação de dados sobre o registro dos sintomas apresentados pelos
usuários ao serviço
Coletamos dados sobre os registros dos sintomas nos prontuários dos usuários no
momento de entrada no serviço. Neste estudo, contabilizamos a frequência dos usuários que
apresentavam cada sintoma. Reconhecemos que a mera quantificação de cada sintoma fica
longe da potencial capacidade reveladora de examinar os conjuntos específicos que formam.
De fato, fizemos uma trabalhosa tentativa de conhecer cada conjunto específico e buscar-lhe a
respectiva freqüência. Essa tentativa, no entanto, resultou numa pulverização dos dados por
um número muito grande de categorias, o que torna inviável qualquer análise. Assim, mesmo
reconhecendo os limites da simples, mas exeqüível, quantificação da distribuição de cada
sintoma na população estudada, consideramos que esses dados podem oferecer uma
contribuição ao nosso estudo, quando cruzados com os dados sobre a condição CMPP e
SMPP.
Feita a distribuição da freqüência da apresentação de cada sintoma nesses
subconjuntos de usuários, obtivemos os dados apresentados na Tabela 7. Dela já estão
excluídos os 22 prontuários nos quais não havia registros sobre os sintomas dos usuários. A
soma dos percentuais de incidência dos sintomas de cada grupo supera os 100%, uma vez que
cada usuário pode apresentar vários sintomas. Os dados, já excluídos os sem registros, estão
apresentados em ordem decrescente na tabela abaixo:
93
TABELA 7- DISTRIBUIÇÃO DOS USUÁRIOS SEGUNDO O REGISTRO DOS
SINTOMAS E A CONDIÇÃO CMPP E SMPP
(PERÍODO 2005 / 2008)
CONDIÇÃO DE ENTRADA
SINTOMAS
CMPP
SMPP
TOTAL
(%)
(%)
(%)
(n=299)
(n=131)
(n=430)
Ansiedade
206
69%
91
69%
297
69%
Angústia
182
61%
89
68%
271
63%
Nervosismo
185
62%
81
62%
266
62%
Irritabilidade
166
56%
70
53%
236
55%
Choro fácil
120
40%
51
39%
171
40%
Insônia inicial
108
36%
36
27%
144
33%
Hiporexia
76
25%
39
30%
115
27%
Insônia final
70
23%
31
24%
101
23%
Perturbações no sono
66
22%
24
18%
90
21%
Agressividade
38
13%
28
21%
66
15%
Diminuição da libido
37
12%
14
11%
51
12%
Aumento de apetite
25
8%
20
15%
45
10%
Persecutoriedade
23
8%
12
9%
35
8%
Alucinações auditivas
25
8%
8
6%
33
8%
Anorexia
18
6%
9
7%
29
7%
Alucinações visuais
16
5%
13
10%
27
6%
Desvio de conduta
13
4%
4
3%
17
4%
Agitação psicomotora
7
2%
0
0%
7
2%
CMPP: usuários com medicação prévia de psicofármacos
SMPP: usuários sem medicação prévia de psicofármacos
Os sintomas que mais aparecem nesses registros são: „ansiedade‟(69%),
„angústia‟(63%), „nervosismo‟(62%) e „irritabilidade‟(55%), o que significa que mais de
metade dos usuários apresenta algum desses sintomas.
Como mostram os dados da Tabela acima, a distribuição de sintomas no grupo com
medicação psicofarmacológica prévia de psicofármacos (CMPP) e no grupo sem medicação
prévia de psicofármacos (SMPP) é bastante semelhante e não apresenta diferenças
significativas, exceto nos sintomas de „agressividade‟ e „aumento de apetite‟ (p< 0,05).
3.1.5. Apresentação de dados sobre os registros da queixa inicial apresentada
pelos usuários ao serviço
O registro das queixas iniciais dos usuários apresenta uma variação muito grande, o
que torna inviável a distribuição de freqüência por cada conjunto específico de queixas.
Procuramos, então, construir um conjunto de categorias que, sem desprezar nenhum conjunto
de queixa, apresentasse uma melhor possibilidade de agrupamento dos dados. Mesmo assim,
o número de categorias resultou elevado, com a conseqüente dispersão dos dados, o que
94
inviabiliza sua distribuição percentual. Cruzamos essas categorias de queixas iniciais com a
condição de medicação anterior à entrada no serviço (CMPP / SMPP). Esses dados estão
apresentados em ordem decrescente da distribuição do total, conforme a tabela abaixo:
TABELA 8: DISTRIBUIÇÃO DOS USUÁRIOS CONFORME O REGISTRO DAS QUEIXAS
INICIAIS E A CONDIÇÃO CMPP E SMPP (PERÍODO 2005 / 2008)
FREQUENCIA
CATEGORIAS DAS QUEIXAS INICIAIS
CMPP
Uso abusivo de bebida alcoólica
Perda de ente querido e tristeza
Dificuldades no relacionamento com familiares e tristeza
Nervosismo, tristeza e desânimo
Desânimo, tristeza e isolamento
Dificuldades no relacionamento com familiares
Queixas de dores físicas
Queixas de dores físicas e tristeza
Ver coisas, ouvir vozes e ser perseguido
Uso de drogas ilícitas
Dificuldade no relacionamento com familiares e falta de paciência
Sentimentos de agonia e intranqüilidade
Sentimentos de agonia e medo
Desorientação e tremores
Problemas no trabalho e nervosismo
Tentativa de suicídio
Sentimentos de medo exagerado
Problemas no trabalho e sono irregular
Perda de ente querido e queixas de dores físicas
Dificuldade de se relacionar com outras pessoas, poucos amigos e desânimo
Desânimo e queixas de dificuldades na relação sexual
Pensamentos ruins
Idéias de suicídio
Queixas de dores físicas e esquecimento
Perda de emprego e dificuldade no relacionamento com familiares
Dificuldades de relacionamento familiar e queixas de dores físicas
Esquecimento e tristeza
Compulsão para comer e dificuldades para dormir
Dificuldade de controlar as próprias ações e brigas cotidianas
Dificuldades para dormir, fala repetitiva e confusa
Perda de emprego e nervosismo
Oscilações de ânimo e tristeza
Dificuldade de superar experiências traumáticas
Atitudes agressivas e sem vontade de comer
Comportamentos auto-agressivos
Dificuldades para dormir e para controlar as próprias ações
Comportamentos repetitivos
Sem anotações específicas da queixa inicial
Total
28
24
19
22
14
9
15
13
13
10
8
7
6
10
8
7
6
7
7
6
4
3
6
4
3
4
1
1
2
3
1
2
1
1
2
1
1
20
299
SMPP
TOTAL
11
10
15
8
6
11
3
3
3
5
6
4
5
0
2
2
2
0
0
1
3
4
1
3
3
2
4
4
3
1
3
0
1
1
0
0
0
1
131
39
34
34
30
20
20
18
16
16
15
14
11
11
10
10
9
8
7
7
7
7
7
7
7
6
6
5
5
5
4
4
2
2
2
2
1
1
21
430
95
Como indica a Tabela 8, o registro das queixas mais comuns dentre os usuários que
procuram atendimento no ambulatório são “uso abusivo de bebida alcoólica” (39 usuários);
“perda de ente querido e tristeza” (34 usuários); “dificuldades no relacionamento com
familiares e tristeza” (34 usuários); e “nervosismo, tristeza e desânimo” (30 usuários).
A distribuição de queixas iniciais no grupo CMPP e no grupo SMPP, ponderadas por
seus respectivos totais, é bastante semelhante e não apresenta diferenças significativas.
Destacamos em itálico, nas categorias elencadas na tabela acima, aquelas queixas
referentes às circunstâncias contingentes ao cotidiano e às situações existências da vida
humana, aspectos que examinaremos na discussão dos dados.
Apresentados esses dados sobre as características da população, passamos a
apresentar os dados sobre a trajetória percorrida pelos usuários no ambulatório, desde sua
condição de entrada até a definição do procedimento terapêutico, com atenção especial aos
fatores determinantes da prescrição de psicofármacos.
3.2. Apresentação de dados sobre a trajetória dos usuários no ambulatório
Os dados aqui apresentados procuram seguir a trajetória da população de usuários do
ambulatório desde sua entrada no pronto-atendimento até sua situação no momento da coleta
desses dados, com especial atenção à prescrição de psicofármacos.
Nessa empreitada, começamos organizando dados sobre o primeiro encaminhamento
dado aos usuários pelo atendimento de entrada no serviço. Depois, destacamos o grupo
encaminhado à psiquiatria e investigamos a frequência de prescrição de psicofármacos a esses
usuários. Examinamos, a seguir, as classes e as quantidades de psicofármacos receitadas, bem
como os diagnósticos relacionados a essas prescrições. Procuramos, também, reunir dados
sobre a evolução do tratamento (alta, continuidade, abandono) e, por fim, colhemos dados
sobre a frequência e o motivo diagnóstico da ocorrência de internações entre os usuários do
serviço.
96
3.2.1. Apresentação de dados sobre o encaminhamento dado aos usuários pelo
atendimento de entrada no serviço
Coletamos dados sobre o primeiro encaminhamento dado aos usuários pelo serviço
de pronto-atendimento (PA) do ambulatório. Agrupamos os encaminhamentos em cinco
categorias:
- somente pronto-atendimento;
- encaminhamento à consulta psiquiátrica;
- encaminhamento a outras modalidades de atendimento;
- encaminhamento simultâneo à consulta psiquiátrica e a outras modalidades de atendimento.
Dos 430 usuários da amostra, apenas 12 não retornaram ao ambulatório e,
conseqüentemente, não receberam qualquer encaminhamento. Excluídos esses casos, os dados
estão apresentados na tabela abaixo, já subdivididos conforme a condição CMPP e SMPP.
TABELA 9- DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E PERCENTUAL DOS
ENCAMINHAMENTOS DADOS PELO SERVIÇO AOS USUÁRIOS SEGUNDO A
CONDIÇÃO CMPP E SMPP
(PERÍODO 2005 / 2008)
CONDIÇÃO DE ENTRADA
ENCAMINHAMENTOS
CMPP
N
(%)
7
Psiquiatria
SMPP
TOTAL
N
(%)
N
2%
24
18%
31
7%
144
50%
25
19%
169
41%
Outras modalidades de
atendimento
10
3%
45
35%
55
13%
Psiquiatria e outras
modalidades de atendimento
127
44%
36
28%
163
39%
Total
288
≈100%
130
100%
418
100%
Só Pronto-Atendimento
(%)
No total da amostra, se somarmos o percentual dos usuários encaminhados somente à
consulta psiquiátrica (41%) ao dos encaminhados simultaneamente à consulta psiquiátrica e
outras modalidades de atendimento (39%), temos que o total de encaminhamentos à
psiquiatria chega a 80% dos usuários. Isso quer dizer que oito em cada dez usuários desse
97
serviço de saúde mental são encaminhados à psiquiatria. Esse percentual acumulado de
encaminhamentos à psiquiatria é bastante diverso nos grupos CMPP e SMPP. No grupo
SMPP, a soma dos percentuais dos usuários encaminhados à psiquiatria resulta em 47%
(19%+28%). No grupo CMPP essa soma chega a 94% (50%+44%). Isso quer dizer que no
grupo de usuários pré-medicados quase todos são encaminhados à psiquiatria.
Procuramos, então, examinar quais os tratamentos determinados a essa ampla
maioria de usuários encaminhados à consulta psiquiátrica.
3.2.2.
Apresentação de dados sobre o tratamento prescrito aos usuários
encaminhados à psiquiatria
Colhemos dados sobre o tratamento determinado aos usuários encaminhados à
consulta psiquiátrica. Preliminarmente, classificamos os usuários conforme os tratamentos
prescritos pela psiquiatria: tratamento com prescrição de psicofármacos (TCPP) e tratamento
sem prescrição de psicofármacos (TSPP). Descontamos desses dados 8% de usuários que não
compareceram à consulta agendada. Esses dados, cruzados com a condição de entrada CMPP
e SMPP, estão apresentados na tabela abaixo:
TABELA 10 – DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E PERCENTUAL DOS
USUÁRIOS CONFORME A AUSÊNCIA OU PRESENÇA DE TRATAMENTO
PSICOFARMACOLÓGICO E A CONDIÇÃO DE ENTRADA CMPP E SMPP
(PERÍODO 2005 / 2008)
FREQUÊNCIA
TRATAMENTO
CMPP
SMPP
TOTAL
TCPP
N
250
(%)
99%
N
53
(%)
98%
N
303
(%)
99%
TSPP
2
1%
1
2%
3
1%
252
100%
54
100%
TOTAL
306*
100%
TCPP: tratamento com prescrição de psicofármacos
TSPP: tratamento sem prescrição de psicofármacos
*Dos 332 usuários encaminhados à psiquiatria, 26 não compareceram à consulta.
Como indica a Tabela 10, 99% dos usuários encaminhados à psiquiatria receberam
prescrição psicofarmacológica. Isso quer dizer que, a despeito das mais variadas queixas e
sintomas registrados nos prontuários, praticamente todos que compareceram à consulta
psiquiátrica receberam prescrição de psicofármacos.
98
Procuramos, então, colher dados sobre as classes de medicamentos constantes das
prescrições psicofarmacológicas.
3.2.3. Apresentação de dados sobre as prescrições psicofarmacológicas
Coletamos dados sobre as classes de psicofármacos prescritos aos usuários do
serviço. Para estabelecer nossas categorias, acompanhamos a classificação de Cordioli (2004),
que divide os psicofármacos em quatro classes principais: ansiolíticos e hipnóticos;
antidepressivos; antipsicóticos ou neurolépticos; e estabilizadores de humor.
Os dados foram colhidos em dois momentos: o momento da entrada, onde colhemos
dados sobre a medicação prévia de psicofármacos (CMPP), e o momento da primeira consulta
psiquiátrica do Ambulatório, onde colhemos dados sobre o primeiro tratamento com
prescrição de psicofármacos (TCPP). Essa disposição de dados nos permite comparar a
medicação prescrita fora do serviço com prescrita pelo psiquiatra do ambulatório que, como já
vimos, medica 99% dos usuários que já chegam medicados previamente.
Em 21 prontuários dos usuários que já chegaram medicados no PA não havia
identificação do tipo de psicofármaco prescrito previamente. Os dados, já excluídos os sem
identificação, estão apresentados na tabela abaixo.
TABELA 11 – DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E PERCENTUAL DOS USUÁRIOS
POR CLASSES DE PSICOFÁRMACOS PRESENTES NA PRESCRIÇÃO PRÉVIA E
NA PRIMEIRA PRESCRIÇÃO DO AMBULATÓRIO (PERÍODO 2005 / 2008)
FREQUENCIA
CMPP
(n=278)
CLASSES DE PSICOFÁRMACOS
TCPP
(n=303)
N
(%)
N
(%)
ANSIOLÍTICOS
204
73%
214
71%
ANTIDEPRESSIVOS
129
46%
231
76%
ANTIPSICÓTICOS
45
16%
105
35%
ESTABILIZADORES DE HUMOR
31
11%
56
18%
OUTROS MEDICAMENTOS
30
11%
48
16%
CMPP: com medicação prévia de psicofármacos.
TCPP: tratamento com prescrição de psicofármacos, na primeira consulta psiquiátrica.
Outros medicamentos: Antiparkisonianos4, Anticonvulsivantes, Inibidores opiáceos.
4
Antiparkisonianos (divididos em anticolinérgicos e anti-histamínicos) são drogas utilizadas para o tratamento
dos efeitos colaterais produzidos por antipsicóticos típicos (Oliveira e Sena, 2006) e compõem 77% do grupo de
“outros medicamentos”.
99
Como indica a Tabela 11, os ansiolíticos são a classe de psicofármacos mais prescrita
nos dois subgrupos. Mas a comparação entre o grupo CMPP e TCPP revela, sobretudo, um
significativo aumento no número de prescrições de antidepressivos, antipsicóticos e
estabilizadores de humor na medicação do serviço (p<0,05).
No processo de nossa coleta de dados, pudemos observar que a quantidade de
psicofármacos prescritos no ano de 2008 na primeira consulta psiquiátrica parecia
visivelmente superior às prescrições realizadas nos anos anteriores.
Decidimos, então, comparar a medicação do ano de 2008 com o período anterior, de
2005 a 2007.
Comparação das prescrições de psicofármacos do serviço entre o ano de 2008
e o período de 2005 a 2007
Coletamos dados sobre quantidade de psicofármacos prescritos na primeira consulta
psiquiátrica do Ambulatório (TCPP) e comparamos as prescrições psicofarmacológicas do
período de 2005 a 2007 com as do ano de 2008, o último ano de nossa coleta de dados.
Para comparar a quantidade de psicofármacos prescritas no ano de 2008 com o
período de 2005 a 2007, coletamos dados sobre a quantidade de rótulos de medicamentos
psicofarmacológicos prescritos por usuário nos períodos comparados.
TABELA 12 – DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E PERCENTUAL DOS USUÁRIOS
CONFORME A QUANTIDADE DE MEDICAMENTOS PSICOFARMACOLÓGICOS
PRESCRITOS NO PERÍODO DE 2005 A 2007 E NO ANO DE 2008
2005 a 2007
2008
Total
QUANTIDADE DE
(n=228)
(n=75)
(n=303)
MEDICAMENTOS
N
(%)
N
(%)
N
(%)
1 medicamento
36
16%
5
7%
41
14%
2 medicamentos
116
51%
19
25%
136
45%
3 medicamentos
63
28%
18
24%
81
27%
4 medicamentos
12
5%
20
27%
32
11%
5 medicamentos
0
0%
8
11%
8
3%
6 medicamentos
0
0%
2
3%
2
1%
7 medicamentos
0
0%
2
3%
2
1%
228
100%
75
100%
303
100%
Total
100
Como indica a Tabela 12, as prescrições de um e dois medicamentos diminuem
significativamente no ano de 2008 e as prescrições acima de três medicamentos aumentam
significativamente no mesmo ano (p<0,05).
No período de 2005 a 2007, a quantidade de psicofármacos prescritos por usuários se
concentrava em torno de dois, com média de 2,2 por usuário. As prescrições de quatro
medicamentos eram raras (5%) e nossa amostra não encontrou prescrição maior que essa. No
ano de 2008 a quantidade de psicofármacos prescritos por usuários concentrava-se entre dois
e quatro, e apresentava média de 3,2 por usuário. A antes rara prescrição de quatro
psicofármacos é agora a mais freqüente (27%) e 17% dos usuários receberam prescrições
maiores que essa. Como mostram nossos dados, a quantidade de psicofármacos prescritos
pela psiquiatria no ano de 2008 é significativamente maior que a do período anterior (p<0,05).
Constatada essa diferença, retomamos o período geral (2005 a 2008) e procuramos
organizar dados sobre as anotações diagnósticas constantes dos prontuários.
3.2.4. Apresentação de dados sobre os diagnósticos psiquiátricos dos usuários
do serviço
Procuramos levantar dados sobre os diagnósticos registrados nos prontuários dos
usuários medicados pela psiquiatria do serviço. Para trabalhar apenas com os diagnósticos
determinados pelo serviço de psiquiatria, excluímos os 42 usuários que já deram entrada no
ambulatório com diagnósticos determinados por outros médicos. Consideramos tanto as
determinações diagnósticas escritas nos prontuários por extenso quanto o registro do número
do diagnóstico referente ao CID-10. Mesmo assim, verificamos que um número muito grande
de prontuários não continha qualquer anotação diagnóstica. Contabilizando essa presença ou
ausência de diagnósticos nos prontuários, verificamos que dos 261 prontuários
acompanhados, apenas 58 apresentavam algum tipo de diagnóstico e que nos restantes 203,
não era possível encontrar nenhum indício de anotação diagnóstica.
Isso quer dizer que, dos usuários submetidos ao tratamento psicofarmacológico,
apenas 22% receberam algum tipo de determinação diagnóstica na consulta psiquiátrica do
Ambulatório. A maioria, 78%, não apresentava nenhum registro de diagnóstico psiquiátrico.
Mesmo tratando-se de uma minoria, coletamos dados sobre os tipos de diagnósticos
determinados pela psiquiatria. Apresentamos os dados na tabela a seguir:
101
TABELA 13 – DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E PERCENTUAL DOS
USUÁRIOS CONFORME OS DIAGNÓSTICOS PSIQUIÁTRICOS
DETERMINADOS PELO AMBULATÓRIO (PERÍODO 2005 / 2008)
DIAGNÓSTICOS
N
(%)
PSIQUIÁTRICOS
0
F00-F09
0%
25
F10-F19
43%
5
F20-F29
9%
F30-F39
9
16%
16
F40-F49
28%
0
F50-F59
0%
0
F60-F69
0%
F70-F79
3
5%
0
F80-F89
0%
0
F90-F99
0%
58
≈100%
TOTAL
Como mostra a tabela acima, os diagnósticos que mais aparecem registrados nos
prontuários dos usuários são: “Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de
substâncias psicoativas” (F10-F19), com 43%; “Transtornos neuróticos, transtornos
relacionados com estresse e transtornos somatoformes” (F40-F49), com 28%; e “Transtornos
do Humor” (F30-F39), com 16%.
3.2.5
Apresentação de dados sobre a evolução dos casos dos usuários
encaminhados à psiquiatria
Coletamos dados sobre a evolução dos casos dos usuários que receberam prescrição
de psicofármacos no atendimento psiquiátrico. Nossa amostra original compreendia um total
de 430 prontuários. Aqui, devido aos nossos objetivos de pesquisa referentes às questões da
medicalização, procuramos trabalhar exclusivamente a distribuição dos registros da evolução
dos 332 casos dos usuários que foram encaminhados à psiquiatria e receberam prescrição de
psicofármacos. Agrupamos a evolução dos casos nas seguintes categorias:
- Continuação do tratamento psiquiátrico;
- Abandono do tratamento psiquiátrico;
- Transferência do tratamento psiquiátrico para outra instituição;
- Atual internação psiquiátrica;
- Encaminhamento para continuidade do tratamento no CAPS;
- Encaminhamento ao tratamento neurológico;
- Alta no tratamento psiquiátrico.
102
Examinamos os registros de evolução dos casos até maio de 2009, quando foi
realizada a coleta dos dados. Isso compreende um período variável de cinco a cinqüenta e três
meses, se tomarmos por limites, respectivamente, os casos de final de 2008 e início de 2005.
Dos 332 usuários encaminhados à psiquiatria, não incluímos na distribuição 26
usuários que não compareceram à consulta psiquiátrica. Não constam, também, os três casos
que não receberam prescrição de psicofármacos após atendimento psiquiátrico. Feita a
distribuição dos 303 casos restantes pelas categorias acima elencadas, obtivemos a seguinte
tabela:
TABELA 14- DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL E PERCENTUAL DOS USUÁRIOS
ENCAMINHADOS À CONSULTA PSIQUIÁTRICA CONFORME A EVOLUÇÃO
DOS CASOS (PERÍODO 2005 / 2008)
FREQUENCIA
EVOLUÇÃO DOS CASOS
N
(%)
Continuação do tratamento psiquiátrico
185
61%
Transferência do tratamento psiquiátrico para outra instituição
13
4%
Atual internação psiquiátrica
12
4%
Encaminhamento para continuidade do tratamento no CAPS
6
2%
Encaminhamento ao tratamento neurológico
4
1%
80
27%
3
1%
303
100%
Abandono do tratamento psiquiátrico
Alta no tratamento psiquiátrico
Total
*Usuários que informaram que iriam transferir o tratamento psiquiátrico para outra instituição devido à
mudança de cidade ou preferência por médico particular.
A maioria relativa dos usuários, 61%, ainda estava sob tratamento psiquiátrico
medicamentoso na própria instituição, quando da coleta dos dados. E 27% dos usuários
haviam abandonado o tratamento psiquiátrico, como indica a Tabela 14.
Dentre os usuários que foram encaminhados à psiquiatria e receberam prescrição de
psicofármacos, ressaltamos que praticamente ninguém recebeu alta do tratamento
psiquiátrico, salvo três exceções (1%).
103
3.2.6. Apresentação de dados sobre as internações psiquiátricas dos usuários
do serviço
Levantamos dados sobre as internações psiquiátricas determinadas pelo atendimento
psiquiátrico do serviço no período estudado. E procuramos levantar quais foram os principais
motivos para a determinação da internação psiquiátrica no Ambulatório de Saúde Mental.
Como mostram nossos dados, 11% dos usuários receberam determinação de
internação psiquiátrica após consulta com o psiquiatra do serviço. Os motivos encontrados
para as internações psiquiátricas, salvo em dois casos, sempre estavam ligados à drogadição.
A seguinte tabela apresenta a distribuição dos usuários encaminhados à internação pela
psiquiatria do Ambulatório, segundo as causas das internações.
TABELA 15 – DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL DOS USUÁRIOS
INTERNADOS CONFORME AS CAUSAS DAS INTERNAÇÕES
(PERÍODO 2005 / 2008)
CAUSAS DAS INTERNAÇÕES PSIQUIÁTRICAS
FREQUENCIA
USO DE ÁLCOOL
22
USO DE OUTRAS DROGAS
9
OUTRAS CAUSAS
2
TOTAL
33
Como mostra a Tabela 15, a maioria dos usuários encaminhados à internação
apresentava problemas quanto ao uso de álcool e outros tipos de drogas.
Como a principal causa que leva à internação psiquiátrica no ambulatório refere-se
ao uso de álcool e outras drogas, decidimos verificar a freqüência da incidência de internação
em todos os usuários de nossa amostra que se apresentaram ao serviço com queixas
relacionadas ao uso de álcool e outras drogas. Os dados estão apresentados na Tabela abaixo:
104
TABELA 16 - DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL DOS ENCAMINHAMENTOS
DADOS AOS USUÁRIOS COM QUEIXAS REFERENTES AO USO DE
ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS (PERÍODO 2005 / 2008)
QUEIXAS
USO DE
USO DE
ENCAMINHAMENTOS
ÁLCOOL
OUTRAS
TOTAL
DROGAS
22
9
31
INTERNAÇÃO
OUTROS
TRATAMENTOS
TOTAL
16
7
23
39
15
54
Como indica a Tabela 16, dos 54 usuários que deram entrada no serviço com esse
tipo de queixa, 31 deles, mais que a metade do total, foram encaminhados à internação
psiquiátrica.
Ainda sobre a incidência de internações, levantamos dados sobre as causas das
internações psiquiátricas que ocorreram no período de 2003 a 2008 em todo o município onde
realizamos a pesquisa. Com os dados obtidos nos relatórios anuais de gestão da secretaria de
saúde daquele município, construímos a tabela abaixo, onde podemos observar a distribuição
das internações psiquiátricas realizadas no município.
TABELA 17– DISTRIBUIÇÃO FREQUENCIAL DAS INTERNAÇÕES
PSIQUIÁTRICAS REALIZADAS PELO DEPARTAMENTO DE SAÚDE MENTAL 5
DO MUNICÍPIO, NO PERÍODO DE 2003 A 2008
ANOS/FREQÜÊNCIA
DIAGNÓSTICO
2003
2004
2005
2006
2007
2008
TOTA
L
50
34
26
31
16
32
189
OUTROS
DIAGNÓSTICOS
25
15
7
2
4
12
65
TOTAL
75
49
33
33
20
44
254
TRANSTORNO DE
COMPORTAMENTO
DEVIDO O USO DE
ÁLCOOL E DROGAS
5
O Departamento de Saúde Mental contabiliza o número de internações psiquiátricas realizadas pelo Ambulatório de
Saúde Mental, pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e pelo Hospital Geral daquele município.
105
Como indica a Tabela 17, independente do diagnóstico do usuário, houve uma
tendência de redução das internações psiquiátricas realizadas em todo o município com um
posterior aumento no ano de 2008, quando as internações psiquiátricas de usuários
diagnosticados com “transtorno de comportamento devido o uso de álcool e drogas” dobrou e
as internações de usuários com outros diagnósticos triplicaram em relação ao ano anterior.
Apresentado o conjunto de dados coletados, passaremos agora à sua discussão.
106
4. DISCUSSÃO DOS DADOS
4.1. Sobre o perfil da população atendida pelo ambulatório de saúde mental
estudado
Sobre a ausência de dados na ficha de entrada do serviço ambulatorial
No primeiro atendimento aos usuários que procuram o serviço ambulatorial, o
profissional do pronto-atendimento deve preencher uma ficha de entrevista inicial (Anexo A).
Na matriz desse documento, além da identificação do paciente, também constam o motivo da
consulta (queixa inicial); medicação anterior à entrada no serviço; dinâmica familiar; vida
profissional, escolar e social; sinais e sintomas; e encaminhamentos. Todas essas
características preenchidas na folha de entrevista inicial no momento da entrada do usuário no
serviço, possibilitar-nos-ia traçar um perfil bastante completo da população atendida pelo
serviço ambulatorial. Entretanto, observamos que raramente são preenchidos os dados sobre
dinâmica familiar, vida profissional, escolar e social. A falta dessas anotações impossibilitou a
organização e análise dessas características reconhecidamente importantes para o
estabelecimento de um perfil da população. Indubitavelmente, esse conjunto de dados sobre a
população, se corretamente anotados, poderia auxiliar os profissionais da equipe de saúde na
organização das ações daquele serviço.
Na nossa pesquisa, apesar da falta dessas características populacionais, examinamos
os dados que foram encontrados nas fichas de triagem daqueles que procuraram o serviço, que
se compõem somente de tratamento psicofarmacológico anterior à entrada no serviço, gênero,
idade, sintomas apresentados e queixas iniciais.
Sobre o perfil da população quanto a gênero
Para a análise da distribuição de gênero da população atendida no ambulatório,
levantamos dados do IBGE sobre a distribuição sexual da população daquele município e
comparamos a dos usuários atendidos pelo serviço. Os dados do IBGE (2007) mostram uma
distribuição sexual bastante equitativa da população do município. Já a distribuição de gênero
de nossa amostra dos usuários do ambulatório apresenta um percentual mais elevado (65%) de
mulheres. Esses dados corroboram estudos desenvolvidos no Brasil (MENDONÇA e
CARVALHO, 2005; TRAVASSOS et. al, 2002), e nos Estados Unidos (VERBRUGGE,
1989), que constataram que a população feminina utiliza mais freqüentemente serviços de
saúde e usam mais medicamentos. Essas pesquisas mostram que o uso de serviços de saúde
107
pela população feminina depende, dentre outros fatores, do poder aquisitivo das famílias, do
nível de escolaridade, do tamanho da família e do sexo do provedor da família.
(TRAVASSOS et al., 2002). Atualmente, preocupado com os índices de saúde da população
masculina, o Ministério da Saúde tem realizado campanhas nacionais com o especial intuito
de promover o desenvolvimento de ações e serviços para o cuidado preventivo da saúde
masculina e tem procurado sensibilizar essa população para a procura desse atendimento nos
serviços públicos. (BRASIL, 2008).
Sobre o perfil da população quanto à idade
Quanto à distribuição etária, nossa pesquisa mostra que a população que procura
atendimento no serviço ambulatorial é composta por pessoas proporcionalmente mais velhas,
com mediana nos 47 anos, enquanto a população do município registra a mediana por volta
dos 38 anos de idade. Essa incidência de pessoas com mais idade no serviço ambulatorial está
em conformidade com a literatura especializada, que mostra que o aumento da idade implica
maior procura por serviços de saúde. (FLEITH et al., 2007; RODRIGUES et al., 2006;
ARRAIS et al., 2005; LOYOLA et al., 2002; TEIXEIRA e LEFÈVRE, 2001; ALMEIDA et
al., 1994).
Sobre as queixas e sintomas que levam o usuário ao serviço
Em relação ao registro das queixas, nossos dados mostram uma grande dispersão, e
as categorias nas quais as agrupamos nunca chegam a reunir mais que dez por cento da
população de usuários do serviço. Nessas condições, as que apresentam a maior freqüência
relativa são as de “uso abusivo de bebida alcoólica” (39 usuários); “perda de ente querido e
tristeza” (34 usuários); “dificuldades no relacionamento com familiares e tristeza” (34
usuários); e “nervosismo, tristeza e desânimo” (30 usuários).
A incidência de usuários, principalmente do sexo masculino, com queixas referentes
ao “uso abusivo de bebida alcoólica” está em concordância com a literatura sobre a questão,
que aponta altas prevalências do consumo de álcool entre as populações. (BARROS, et. al.,
2008; GALDURÓZ e CAETANO, 2004; ALMEIDA e COUTINHO, 1993). Convida à
atenção a freqüência relativamente alta da queixa de “tristeza”, que geralmente vem
acompanhada de acontecimentos da vida cotidiana, que permitem a identificação bastante
precisa do motivo do sentimento de tristeza e denota que o usuário tem uma consciência
bastante clara dele. Entretanto, conforme Birman (2009), a tristeza passa a ser camuflada de
108
maneira incipiente nas dobras do espírito para ser, assim, debelada preventivamente em
estado nascente através da prescrição de psicofármacos, que, atualmente, se tornaram uma
nova panacéia da possibilidade de felicidade ampla e irrestrita de todos.
Em relação aos sintomas, os que mais aparecem registrados nos prontuário são
„ansiedade‟(69%), „angústia‟(63%), „nervosismo‟(62%) e „irritabilidade‟(55%). Isso significa
que mais de metade dos usuários apresenta algum desses sintomas, que estão entre aqueles
destacados por alguns autores como principais manifestações sintomáticas comuns da
contemporaneidade. (RODRIGUES, 2003; BIRMAN, 2000; ROUDINESCO, 2000).
4.1.1. Sobre a incidência da prescrição de psicofármacos anterior à entrada dos
usuários no ambulatório
Nossa pesquisa mostra que é comum que os usuários sejam medicados com
psicofármacos, antes mesmo de procurar o primeiro atendimento em saúde mental. Nossos
dados mostram que uma maioria de 70% dos usuários já deu entrada no serviço ambulatorial
sob medicação psicofarmacológica e que 60% dessa pré-medicação originavam-se de
prescrições de outras especialidades médicas que não a psiquiatria, como a ginecologia, a
cardiologia, a neurologia, a clínica geral. Depois dos psiquiatras, os clínicos gerais que
atendem na rede pública de saúde compõem a especialidade médica que mais prescreve
psicofármacos e, em nossos dados, esse percentual chega a 30% do total. Mas encontramos
prescrições prévias de psicofármacos originados das mais diversas especialidades médicas, o
que corrobora a preocupação, presente em ampla literatura sobre o tema, de que a atual
banalização do uso de psicofármacos seja alavancada pela crescente freqüência de prescrições
originadas de fora das especialidades médicas psiquiátrica e neurológica. (FALCÃO et al.
2007; ANDRADE, ANDRADE e SANTOS, 2004; MARI e JORGE, 2003; NOTO et al.
2002; ALMEIDA, COUTINHO e PEPE, 1994).
Essas mesmas fontes consideram que a prescrição de psicofármacos fora da
psiquiatria se desenvolveu a partir da década de 70, época em que a psiquiatria, respaldada
pelas
neurociências,
iria engendrar novas
etiologias, diagnósticos
e terapêuticas
medicamentosas relacionadas ao modelo biomédico. Nesse contexto, o investimento na
invenção de entidades nosológicas descritas em manuais psiquiátricos e o desenvolvimento de
um número cada vez maior de drogas psicofarmacológicas para o tratamento dessas novas
„doenças‟ levariam a psiquiatria a uma integração mais forte com a medicina geral, da qual
109
ela se distanciara na época clássica da prevalência do tratamento moral e naquela, mais
recente, de sua aproximação com a psicanálise. O correlato dessa integração da psiquiatria
com as tradições biomédicas seria, conforme Martins (2005, p. 110), a disseminação da
prescrição dos novos recursos psiquiátricos por toda clínica médica:
Os efeitos reducionistas da clínica psiquiátrica, com a sobreposição da dimensão
biológica à simbólica, vêm promovendo uma biomedicalização da saúde [...] que
incide sobre a vida e que se atualiza através do saber psiquiátrico que tende a passar
cada vez menos pelos manicômios e pelos psiquiatras difundindo-se por todo o
corpo da sociedade e elegendo, como lócus privilegiado de sua efetuação, o
consultório dos clínicos gerais.
Os desdobramentos desse modo médico de lidar com o mal-estar psicossocial,
conforme a literatura especializada (ROUDINESCO, 2000; BIRMAN, 2000), vêm se
desenvolvendo em detrimento de um atendimento mais atento às condições particulares da
pessoa sob sofrimento psíquico:
(...) a utilização de psicofármacos transcendeu em muito a prática psiquiátrica,
migrando então para o campo da clínica médica. Foi nesta, aliás, que a escala de
utilização dos psicofármacos se realizou de maneira farta e massificada. Diante de
qualquer angústia, tristeza ou desconforto psíquico, os clínicos passaram a
prescrever, sem pestanejar, os psicofármacos mágicos, isto é, os ansiolíticos e
antidepressivos. A escuta da existência e da história dos enfermos foi sendo
progressivamente descartada e até mesmo, no limite, silenciada. Enfim, por essa via
tecnológica, a população passou a ser ativamente medicalizada, numa escala sem
precedentes. (BIRMAN, 2000, p. 242)
Como o foco de nossa pesquisa é a medicação psicofarmacológica, procuramos
examinar os dados encontrados na ficha de triagem do serviço (gênero, idade, sintomas e
queixas iniciais), conforme a presença ou ausência de prescrição psicofarmacológica. O
propósito do cruzamento dessas características da população com a prescrição de
psicofármacos foi o de examinarmos se esses poderiam ser fatores que influenciaram ou
determinaram a prescrição psicofarmacológica, tanto aquela anterior à entrada do usuário no
serviço quanto a determinada pelo ambulatório de saúde mental estudado.
110
4.1.2. Sobre medicação, gênero e faixa etária da população atendida pelo
ambulatório
Nossos dados mostram que, apesar de um maior número de mulheres procurarem
aquele serviço, a freqüência da prescrição de psicofármacos anterior à entrada no ambulatório
na população feminina é praticamente igual (69%) à da população masculina (71%). Esses
percentuais muito altos e relativamente equânimes entre homens e mulheres divergem de
diversas pesquisas que apontam um percentual relativo de mulheres medicadas com
psicofármacos mais elevado em relação aos homens. (RODRIGUES et al., 2006;
MENDONÇA e CARVALHO, 2005; TEIXEIRA, 1998; ALMEIDA et al., 1994).
Quanto à prescrição de psicofármacos realizada pelo ambulatório, a despeito da
literatura especializada ressaltar a maior incidência de medicação psicofarmacológica entre as
mulheres, nossos dados mostram que no serviço psiquiátrico a prescrição de psicofármacos é
significativamente mais frequente na população masculina (86%) que na feminina (75%),
ainda que ambas sejam bastante altas. Mas, diferentemente dessas tendências, como já
dissemos, pesquisas apontam que é mais comum pessoas do sexo feminino serem submetidas
a diagnósticos psiquiátricos e a prescrições psicofarmacológicas. Essa incidência de mulheres
medicadas, conforme nossas fontes, pode estar relacionada tanto a maior utilização dos
serviços de saúde pela população feminina quanto à percepção médica de que “transtornos
mentais” são mais prevalentes entre as mulheres, suposição que levaria a psiquiatria a
diagnosticar e prescrever psicofármacos com mais frequência a pessoas do sexo feminino.
(GARCIA et al., 2005; LUNA et al., 2000).
Na
comparação
da
faixa
etária
do
grupo
submetido
ao
tratamento
psicofarmacológico (média aproximada de 50 anos de idade) com a faixa etária daqueles que
não foram encaminhados à psiquiatria e, portanto, não foram medicados (média aproximada
de 40 anos de idade), nossos dados mostram que a prescrição de psicofármacos no serviço é
significativamente mais frequente com o aumento da idade. Essa tendência está em
conformidade com outras pesquisas que mostram a prevalência do consumo de psicofármacos
entre pacientes de idade mais elevada. (FLEITH et al., 2007; RODRIGUES et al., 2006;
ARRAIS et al., 2005; LOYOLA et al., 2002; TEIXEIRA e LEFÈVRE, 2001; ALMEIDA et
al., 1994). A incidência da prescrição de psicofármacos entre pessoas com mais idade ou
considerados idosos pode estar relacionada a duas tendências. A primeira, condizente com a
literatura especializada, refere-se aos altos índices de consumo de psicofármacos entre os
idosos. A segunda, mais apropriada aos nossos dados, refere-se às particularidades daquele
111
ambulatório, onde a faixa etária da população que procura o serviço é composta por pessoas
mais velhas, quando comparadas à população do município.
Nossos dados mostram, também, que a população masculina que recebe prescrição
de psicofármacos no ambulatório é relativamente mais jovem, com média nos 46 anos de
idade, do que a correspondente população feminina, que apresenta média de 53 anos de idade.
Esses dados são divergentes das informações da literatura especializada, que mostra maior
incidência do consumo de psicofármacos entre mulheres jovens, com idades a partir dos 20
anos, do que entre homens jovens (RODRIGUES et al., 2006; ALMEIDA et al., 1994).
No caso do ambulatório estudado, a tendência de encaminhar à medicação
psiquiátrica a população jovem masculina pode estar ligada ao fato de a maioria das ações não
psiquiátricas oferecidas pelo ambulatório de saúde mental estar estruturada para atender
usuários do sexo feminino. A falta de outras modalidades de atendimento à população
masculina pode ser responsável pela alta frequência relativa de prescrição medicamentosa aos
homens, tanto quanto a estrutura do serviço, voltada principalmente ao atendimento de
mulheres, pode ser um fator produtor da maior procura feminina aos serviços do ambulatório.
Essas observações sugerem a possibilidade de que o serviço estudado apresente mais recursos
para o atendimento feminino justamente por fundar-se na informação bibliográfica, que
destaca maior prevalência de problema de sofrimento psíquico entre as pessoas do sexo
feminino. No entanto, nossos dados sugerem que talvez sejam as características do próprio
atendimento, prioritariamente voltado ao atendimento de mulheres, que contribua para a
maior procura feminina. E a população masculina, na falta de outros recursos ambulatoriais
apropriados, esteja sendo relegada à praxe da mera prescrição de psicofármacos.
Essa incidência maior de prescrição de psicofármacos entre os homens, observada
em nossos dados, pode limitar-se apenas a uma particularidade do funcionamento daquele
ambulatório.
Entretanto, conforme A política nacional de atenção integral à saúde do
homem, “os estereótipos de gênero, enraizados há séculos em nossa cultura patriarcal,
potencializam práticas baseadas em crenças e valores do que é ser masculino. O homem julgase invulnerável, o que acaba por contribuir para que ele cuide menos de si mesmo e se
exponha mais às situações de risco.” (BRASIL, 2008). Isso também poderia levar os homens
a apresentarem certa resistência em procurar outras modalidades de tratamento que não fosse
aquele atendimento rápido e prescritivo da medicina psiquiátrica.
112
4.1.3.
Sobre a relação entre a medicação, as queixas e os sintomas
apresentados pelos usuários do serviço
Não há diferenças significativas entre a distribuição das queixas apresentadas,
quando comparamos os grupos que chegam ao serviço sem medicação ou já medicados.
Muito curiosamente, também não é possível encontrar diferença significativa entre os grupos
daqueles que serão ou não medicados pelo serviço. Nossos dados sobre os registros das
queixas mostram ainda que, entre os usuários encaminhados à medicação, quase metade
(42%) apresentava queixas relacionadas a situações existenciais da vida e a circunstâncias
relativas ao cotidiano. São queixas relacionadas à “perda de ente querido” (31 usuários);
“dificuldades no relacionamento com familiares” (22 usuários); “perda de emprego” (17
usuários); “problemas no trabalho” (15 usuários), todas relacionadas ao que podemos
considerar como circunstâncias comuns da vida cotidiana. Outros 43 usuários relataram
queixas que envolviam situações de “nervosismo”, “esquecimento”, “desânimo” e,
frequentemente, a “tristeza”, que já comentamos anteriormente. São motivos que podemos
considerar absolutamente comuns na existência humana.
Longe de negarmos que essas experiências e sensações possam produzir sofrimentos
e mal-estares difíceis de se enfrentar, nos chama atenção o fato desses sofrimentos
constituírem o rol de queixas de uma expressiva maioria daqueles usuários que não escapam
do tratamento psicofarmacológico. Isso parece ser uma manifestação local de uma tendência
da medicina atual em prescrever psicofármacos para o tratamento de qualquer queixa
existencial ou de qualquer mal-estar psíquico, que “não é mais compreendido como uma
experiência subjetiva de um determinado indivíduo, mas sim, como uma entidade nosológica
que o acomete.” (RODRIGUES, 2003, p. 15). Édouard Zarifian, citado por Roudinesco
(2000, p. 24), comenta essa tendência psiquiátrica de prescrever medicamentos em qualquer
situação em que as pessoas se sentem infelizes: “quantos médicos receitam tratamentos
antidepressivos a pessoas que estão simplesmente tristes e desiludidas e cuja ansiedade levou
a uma dificuldade de dormir!”. Na mesma linha, para Roudinesco (2000), qualquer pessoa
que relate algum desconforto psíquico estará sujeita à prescrição de psicofármacos:
Hoje em dia, (...) a psicofarmacologia tornou-se, a despeito dela mesma, o estandarte
de uma espécie de imperialismo. De fato, ela permite que todos os médicos- em
especial os clínicos gerais – abordem da mesma maneira todo tipo de afecções, sem
que jamais se saiba de que tratamento elas dependem. Assim, psicoses, neuroses,
fobias, melancolias e depressões são tratadas pela psicofarmacologia como um
punhado de estados ansiosos, decorrentes de lutos, crises de pânico passageiras, ou
de um nervosismo extremo, devido a um ambiente difícil. (ROUDINESCO, 2000, p.
23).
113
Como indicam nossos dados, as pessoas submetidas à medicação psicofarmacológica
passam a utilizá-las por um tempo muito maior do que o dos acontecimentos circunstanciais
que as levaram a procurar atendimento.
Assim, o início do uso da medicação
psicofarmacológica pode estar marcado por algum acontecimento comum e de efeitos
passageiros, mas os efeitos do uso prolongado da medicação que nele se insere podem
prolongar-se indefinidamente e o que se torna um problema, então, é qualquer perspectiva da
falta desse medicamento. (MENDONÇA e CARVALHO, 2005).
Os registros dos sintomas apresentados pelos usuários do serviço mostram grande
semelhança entre grupo sem medicação e o grupo que já se apresentou ao serviço sob prévia
medicação psicofarmacológica. Na distribuição de suas frequências, não encontramos
diferenças significativas (p< 0,05), exceto nos sintomas de „agressividade‟ e „aumento de
apetite‟. Na comparação equivalente entre os medicados e os não medicados pelo próprio
serviço, não encontramos qualquer diferença significativa. Aqui, no âmbito dessa
indistinguível semelhança, é preciso reconhecer a absoluta importância da intensidade e das
relações de conjunto dos sintomas apresentados, aspectos que não pudemos analisar nessa
pesquisa. Mas, ainda assim, queremos tecer alguns comentários sobre a noção de sintoma e a
prescrição de medicação.
O modelo médico-psiquiátrico, atualmente, costuma empreender sua terapêutica
pelos indícios inferidos do conjunto de sintomas, de suas gradações e interações, cujas
medidas permitiriam fazer o vínculo com uma síndrome cujo tratamento será a prescrição dos
medicamentos que devem controlá-la. E, não sem motivo, o sucesso desse controle será
inferido da esperada remissão dos sintomas. No âmbito dessa conduta muito usual no modelo
médico-psiquiátrico, reduzir sintomas é o centro da questão, como expressa, caricaturalmente
bem, o psiquiatra Rubens Pitliuk (2008) quando, em defesa das vantagens da imediata
medicação de qualquer sintoma, adverte: “sintomas em Psiquiatria e Neurologia, assim como
em várias áreas de Medicina, quanto mais tem, mais tem, e quanto menos tem, menos tem”.
No pólo oposto ao modelo médico, o empreendimento da psiquiatria em definir o
que seria „normal‟ ou „patológico‟ depende apenas da interpretação feita pelo médico sobre a
narrativa do paciente. Nesse contexto, diferentemente de outras especialidades médicas, na
psiquiatria a inexistência de um marcador biológico específico e reconhecível para aquilo que
é considerado como „transtorno mental‟ possibilita ao médico, conforme aponta Foucault
(2006), transcrever qualquer demanda em doença e fazer existir os motivos da demanda em
sintomas de doença. Dessa forma, como pondera Foucault (2006, p. 348), “trata-se de fazer
114
existir como doença ou eventualmente como não-doença, os motivos dados para um
internamento ou uma intervenção psiquiátrica possível”. Nesse contexto, a psiquiatria se
autoriza a intervir sobre aquilo que ela considera como sintomas de uma doença que, por sua
vez, deverão ser tratados com medicamentos psicofarmacológicos. A medicação psiquiátrica,
então, apenas funcionaria para eliminar aquilo determinado como sintoma, e qualquer outra
tentativa de reflexão sobre a demanda daquele que apresenta qualquer sofrimento psíquico
será eliminada. Dessa forma, a prescrição de psicofármacos funcionaria exclusivamente como
um “tampão”, que obstrui os sentimentos e as vivências singulares de cada sujeito, num
processo conhecido como “tamponamento da subjetividade”.
Conforme explicita Roudinesco (2000, p. 21):
Embora não curem nenhuma doença mental ou nervosa, eles (os psicofármacos)
revolucionaram as representações do psiquismo, fabricando um novo homem, polido
e sem humor, esgotado pela evitação de suas paixões, envergonhado por não ser
conforme ao ideal que lhe é proposto.
Nessa configuração, e diante da inutilidade mostrada por nossos dados quanto a
procurar nos sintomas a causa da medicação, indagamos sobre o real papel da noção de
sintoma na prática psiquiátrica. E Foucault nos apresenta uma perspectiva de entendimento do
sintoma na prática psiquiátrica, tão interessante quanto inquietante, que o coloca no âmbito da
definição de papéis e de poderes:
Na medicina orgânica, o médico formula obscuramente essa demanda: mostre seus
sintomas e eu direi que doente você é. Na prova psiquiátrica, a demanda do
psiquiatra é muito mais pesada, é muito mais sobrecarregada, é a seguinte: com o
que você é, com a sua vida, com o que se queixa a seu respeito, com o que você faz
e o que você diz, forneça-me sintomas, não para que eu saiba que doente você é, mas
para que eu possa ser médico diante de você. Ou seja, a prova psiquiátrica é a dupla
prova de entronização. Ela entroniza a vida de um indivíduo como tecido de
sintomas patológicos, mas entroniza sem cessar o psiquiatra como médico ou a
instância disciplinar suprema como instância médica. (FOUCAULT, 2006, P. 349)
Ressalvada essa função de relação de poder e de definição de lugares nessa teia,
reiteramos que nossos dados sugerem que não se pode encontrar nas queixas e nos sintomas
as possibilidades de distinguir a decisão de medicar ou não medicar tomada pelo serviço
estudado. Supomos mesmo, dadas as semelhanças resistentes ao exame do simples olhar e
confirmada pela apuração estatística, que os determinantes do ato de medicar com
psicofármacos daquele serviço não estejam, em absoluto, nas características dos usuários, mas
naquelas do próprio serviço, que passaremos a discutir agora.
115
4.2
Sobre a trajetória da medicalização em um ambulatório de saúde mental
Nessa parte da discussão dos dados de nossa pesquisa, abordaremos a trajetória pela
qual o serviço estudado conduz seus usuários à medicação psicofarmacológica. Para a análise
desse processo, primeiramente, examinaremos os encaminhamentos à consulta psiquiátrica e
destacaremos alguns aspectos que consideramos decisivos para que a equipe de saúde
determine o atendimento psiquiátrico. Posteriormente, a análise dos tratamentos determinados
pela psiquiatria nos conduzirá à identificação de dois tipos específicos de tratamento
psiquiátrico, que a literatura aponta como os principais do dispositivo da psiquiatria
tradicional. O primeiro, objeto específico de nossa pesquisa, são as prescrições de
psicofármacos e suas especificidades. O segundo é a internação psiquiátrica, essa herança do
passado manicomial que tanto temos dificuldade de resolver. Para a finalização da análise
desse processo de medicalização, discutiremos nossos dados sobre os desdobramentos e a
evolução dos casos daqueles que foram submetidos ao tratamento psiquiátrico pelo serviço
ambulatorial.
4.2.1 Sobre o encaminhamento psiquiátrico determinado pelo atendimento de
entrada do ambulatório
Os dados colhidos indicam uma perceptível tendência dos profissionais do
atendimento de entrada do serviço de encaminhar a ampla maioria (80%) dos usuários à
consulta psiquiátrica, ainda que, por vezes, esse encaminhamento possa estar acompanhado de
outros procedimentos. Essa alta freqüência de encaminhamentos à psiquiatria é fortemente
sugestiva da subordinação do trabalho dos profissionais da equipe de saúde a um paradigma
eminentemente médico de atendimento em Saúde Mental (COSTA-ROSA e YASUI, 2008;
LUZIO, 2008; TENÓRIO, 2000).
A alta freqüência de encaminhados à psiquiatria determinada pelos profissionais do
ambulatório parece estar fortemente influenciada pelo fato de grande parte dos usuários, 70%,
já se apresentarem ao serviço sob prescrição prévia de psicofármacos. De fato, nesse subgrupo
de pacientes pré-medicados, a porcentagem de encaminhamentos à psiquiatria chega a quase
totalidade (94%) e mesmo as poucas exceções não parecem estar isentas de uma continuada
submissão a um tratamento psicofarmacológico. Essas exceções (6%) são formadas por
usuários que, devido a uma representação negativa dos problemas psíquicos, se recusavam a
116
qualquer intervenção da equipe de saúde mental do ambulatório, ou daqueles que já contavam
com um acompanhamento médico de confiança e, por isso, não manifestavam qualquer desejo
de transferi-lo para o atendimento psiquiátrico do ambulatório. A bem dizer, poderíamos
computar também essas pessoas como continuamente medicadas, ainda que não tenham
ingressado na medicação do serviço.
Diferentemente da quase totalidade de pré-medicados, que são sempre encaminhados
à psiquiatria, entre aqueles que chegam sem uso prévio de psicofármacos percebe-se um
encaminhamento muito mais plural e variado. Menos da metade (47%) foi encaminhada à
consulta psiquiátrica e é comum, nesse grupo de usuários, passar por outras modalidades de
atendimento naquele ambulatório, o que incluí além do pronto-atendimento, as psicoterapias
grupais e individuais, os grupos de atendimento a dependentes químicos e as oficinas
terapêuticas. Isso sugere que a equipe de saúde proporciona outras formas de atendimento e
tratamento aos usuários que chegam àquele ambulatório sem o uso prévio de psicofármacos,
que fatalmente os conduzirá á psiquiatria.
A princípio, não há o que estranhar no fato do usuário previamente medicado ser
encaminhado à psiquiatria, posto que este encaminhamento seria necessário para avaliar a
adequação da medicação e, conforme o caso, confirmá-la, fazer as adequações necessárias ou
suprimi-la. No entanto, esse cuidado aparentemente criterioso é fortemente contraditado por
nossos dados que mostram, como examinaremos a seguir, que todos os usuários prémedicados encaminhados à psiquiatria recebem continuada prescrição de psicofármacos.
4.2.2. Sobre o tratamento dispensado aos usuários encaminhados à psiquiatria:
as prescrições de psicofármacos
Todos aqueles que passaram pelo atendimento psiquiátrico do serviço, salvo
raríssimas exceções, receberam prescrição de psicofármacos.
Nossos dados mostram que 99% dos usuários que chegam ao ambulatório
previamente medicados e aceitam o encaminhamento psiquiátrico recebem, praticamente
sempre, uma reiterativa prescrição psiquiátrica de psicofármacos. A inserção do usuário no
uso de psicofármacos iniciada por qualquer especialidade médica é sempre acompanhada pela
prescrição de psicofármacos por parte do serviço psiquiátrico estudado. Dessa forma, pode-se
dizer que o atendimento psiquiátrico nunca nega sua chancela, ainda que possa operar
eventuais adequações à generalizada prescrição de psicofármacos operada por outras
117
especialidades médicas ou mesmo à automedicação. A simples presença do uso de
psicofármacos, seja qual for o motivo, parece ter o poder de conduzir, na sistemática daquele
serviço, o usuário a uma maior e continuada prescrição desses medicamentos.
Dentre os usuários encaminhados à psiquiatria sem medicação prévia, 98% também
não escapam da prescrição psicofarmacológica. Isso quer dizer que, independente da condição
de entrada, o encaminhamento à psiquiatria sempre implica prescrição de psicofármacos. É
verdade que encontramos, dentre os 306 usuários encaminhados à psiquiatria, três casos em
que não houve prescrição de psicofármaco. Investigamos o motivo específico daqueles três
usuários não terem recebido prescrição psicofarmacológica. Pudemos observar que eram
casos extremamente excepcionais: uma mulher grávida que não poderia ser medicada com
psicofármacos, uma pessoa que apenas solicitava atestado médico-psiquiátrico para constar
em requerimento de benefício financeiro ao INSS e um usuário encaminhado pelo Hospital
Geral local por tentativa de suicídio relacionada a especificidades da medicação, que foi
mantido, então, sob observação sem o uso de medicamentos. Como se pode observar, tratavase de casos especiais em que a medicação era absolutamente contra-indicada ou tratava-se de
mera obtenção burocrática de um atestado médico.
Nesse sentido, nossos dados corroboram a existência de uma tendência generalizada
da psiquiatria de prescrever psicofármacos, que a literatura especializada, ainda que não
suspeitasse chegar ao paroxismo da totalidade que nossos dados encontraram, já percebera
como tendência preocupante nas ações dos serviços em saúde mental (BARRIO, PERRON e
OUELLETTE, 2008; COSTA-ROSA e YASUI, 2008; LAMB, 2008; LUZIO, 2008;
TENÓRIO, 2000; BEZERRA, 1987). Essa tendência vem estabelecendo o psicofármaco
como principal, ou mesmo o único e obrigatório dispositivo da psiquiatria no tratamento de
qualquer tipo de sofrimento psíquico (LAMB, 2008; AMARANTE, 2007; GUARIDO, 2007;
IGNÁCIO e NARDI, 2007; RODRIGUES, 2003; BIRMAN, 2000; BEZERRA, 1987). Como
explicita Guarido:
a medicação é atualmente indicação prioritária das intervenções médicopsiquiátricas, associada a procedimentos diagnósticos descritivos, objetivados
pelo discurso científico, bem como levando em consideração a socialização do
discurso médico estabelecido pela mídia e as campanhas de marketing financiadas
pela indústria farmacêutica, pode-se reconhecer em relevo o paradigma do
discurso médico na produção de verdade acerca do sofrimento psíquico e de sua
natureza. (GUARIDO, 2007, p.154)
Essa verdadeira “compulsão” da psiquiatria em prescrever psicofármacos a qualquer
paciente que se encontra sob seu âmbito de ação, além de revelar uma estereotipia profissional
118
não condizente com as práticas de base científica, acaba por trazer extraordinárias
dificuldades para a construção de outras ações terapêuticas (LUZIO, 2003); além de expor o
usuário a um contato com a droga psicofarmacológica, com seus efeitos colaterais e de
dependência, da qual nem sempre terá condições de se libertar (BARRIO, PERRON e
OUELLETTE, 2008; MENDONÇA e CARVALHO, 2005).
Como pudemos observar, todos os usuários que deram entrada no serviço
ambulatorial pré-medicados receberam uma reiteração da prescrição psicofarmacológica pelo
atendimento psiquiátrico. A princípio, chegamos a pensar que essa reiteração medicamentosa
poderia compreender alguma estratégia de retirada gradativa da medicação anterior ao
atendimento, ou mesmo alguma redução que prenunciasse a busca de uma medicação mínima
necessária. Mas não foi isso que encontramos. A comparação entre as prescrições
psicofarmacológicas prévias com a primeira prescrição daquele ambulatório, como
examinaremos a seguir, revela que não há nenhuma perspectiva de redução, mas um
acréscimo em praticamente todas as classes de psicofármacos receitados.
Sobre o aumento da prescrição de psicofármacos operada pelo
atendimento psiquiátrico do serviço ambulatorial
Na comparação da medicação psicofarmacológica prescrita fora do serviço com
aquela prescrita na primeira consulta psiquiátrica do ambulatório, os dados colhidos mostram
que há, na medicação do serviço, um aumento significativo em praticamente todas as classes
de psicofármacos (antidepressivos, antipsicóticos e estabilizadores de humor). A falta do
registro das dosagens referentes às medicações prévias nos impediu de realizar a comparação
com as dosagens das medicações prescritas pelo atendimento psiquiátrico do ambulatório.
Mas não há duvida que nossos dados mostram uma extensão de quase todas as classes de
psicofármacos a um percentual muito maior de usuário, quando se compara a prescrição do
atendimento psiquiátrico do serviço com aquela com a qual se apresentaram os usuários já
medicados, antes de procurarem o ambulatório.
Essa tendência de ampla prescrição de psicofármacos comporta, conforme nossa
revisão bibliográfica, duas interpretações distintas, que não por acaso se agrupam justamente
nos dois referenciais que compõem os pólos principais da Reforma Psiquiátrica: o modelo
médico e modelo psicossocial. No âmbito do modelo médico, o aumento das prescrições de
psicofármacos estaria relacionado à alta prevalência de “transtornos mentais” entre as
populações que agora estariam sendo atendidas. Já do ponto de vista do modelo psicossocial,
119
essa tendência de aumento das prescrições psicofarmacológicas é uma das decorrências de um
processo de patologização e medicalização operada pelo próprio modelo médico-psiquiátrico,
conforme aponta Amarante:
Doença de pânico, fobia social, estresse do executivo, fadiga crônica, dentre tantas
outras, são categoriais que patologizam o cotidiano em suas bases fundamentais: não
apenas inscrevendo na ordem da patologia o que é próprio do cotidiano da natureza
humana, mas também produzindo/induzindo neste cotidiano formas de mal-estar,
isto é, patologizando a cultura. Os problemas deixam de ser humanos, em seu
sentido mais amplo, para tornarem-se orgânicos, numa distinção radical entre mentecorpo-socius. Neste entendimento, qualquer investimento de cuidado “terapêutico”
torna-se um investimento tão-somente farmacológico, nas enzimas ou sinapses, e
não nos sujeitos da experiência. (AMARANTE, 1999, P. 51)
É no contexto do modelo de atenção psicossocial que iremos discutir o aumento da
prescrição de cada uma dessas classes de psicofármacos, fazendo as relações específicas com
a literatura sobre a questão.
Nossos dados mostram que os medicamentos da classe dos antidepressivos estavam
prescritos a 46% dos usuários que já se apresentaram ao ambulatório sob mediação
psicofarmacológica. Esse percentual sobe para 76% na prescrição psiquiátrica do serviço, o
que significa que três em cada quatro usuários atendidos pela psiquiatria do serviço são
submetidos a antidepressivos.
Essa ampla prescrição de antidepressivos encontrada em nossos dados está em
conformidade com a literatura crítica sobre a questão, que também registra o crescimento do
uso desse tipo de fármaco (BIRMAN, 2009; GUIMARÃES e PINHO, 2008; LAMB, 2008;
BARRIO, PERRON e OUELLETTE, 2008). Em recente pesquisa realizada na mesma região
onde se localiza o ambulatório estudado, Lamb (2008) verificou que num território de 25
municípios, entre os anos de 2002 e 2006, houve um crescimento progressivo do consumo de
antidepressivos que passou de 10,9 para 17,0 doses diárias por mil hab./dia. E o progressivo
crescimento da prescrição de antidepressivos não é um fenômeno isolado dessa região do
oeste paulista. Dados divulgados em 2007 pelo Instituto de Auditoria do Mercado
Farmacêutico (IMS Health) mostram que houve um aumento de 150% no consumo mundial
de antidepressivos no período de 1995 a 2004 (LAMB, 2008). No Brasil, entre os anos de
2003 e 2007, conforme levantamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA), a venda de antidepressivos em farmácias cresceu 42%. (GUIMARÃES e PINHO,
2008).
120
A presença de medicamentos da classe de estabilizadores de humor nas prescrições
prévias dos usuários que se apresentaram já medicados ao serviço era de 11%. Essa
porcentagem sobe para 18% na primeira consulta psiquiátrica do serviço, apresentando um
aumento de aproximadamente 64%.
Os medicamentos da classe dos antipsicóticos estavam prescritos a 16% dos usuários
que se apresentaram já medicados ao serviço. Esse percentual sobe para 35% na prescrição
psiquiátrica do serviço. Isso significa que o atendimento do ambulatório estendeu em 119% as
prescrições de antipsicóticos à população que já se apresentara medicada ao serviço. No
âmbito do modelo médico-psiquiátrico, essa tendência pode ser justificada sob a
argumentação de que o serviço especializado em psiquiatria estaria cumprindo a função tratar
em atendimento ambulatorial sujeitos com “graves transtornos mentais” e egressos
hospitalares encaminhados por outras especialidades médicas. Outro argumento da mesma
origem seria que a prescrição dessa classe de medicamentos não se restringiria à apenas
aqueles casos considerados graves, mas que essa medicação também seria indicada para
“transtornos mentais leves”. Entretanto, de um ponto de vista crítico em relação a essa
posição, observa-se que essa tendência de uso de medicações “mais pesadas” estaria
relacionada a uma preocupante banalização da prescrição de drogas psicofarmacológicas que
podem causar diversos efeitos indesejáveis, como é o caso dos antipsicóticos, cujos efeitos
colaterais aumentam, significativamente, entre outros, o risco de morte súbita cardíaca.
(MANTOVANI, 2009)
Os medicamentos da classe dos ansiolíticos são os únicos cujo percentual de
prescrição não apresenta acréscimo na comparação da medicação do ambulatório com aquela
com a qual o usuário já se apresentara ao serviço. Essa comparação revela uma estabilidade
em percentuais bastante elevados, superiores a 70%, na prescrição desse psicofármaco à
população atendida pelo serviço psiquiátrico do ambulatório.
A alta frequência observada nas prescrições de ansiolíticos está em conformidade
com a literatura sobre a questão, que mostra esse fármaco como um dos medicamentos mais
utilizados mundialmente. (BARRIO, PERRON e OUELLETTE, 2008; MENDONÇA e
CARVALHO, 2005; AUCHEWSKI et al., 2004; NOTO et al., 2002; SILVA, 1999). Essas
mesmas fontes ressaltam ser comum o desenvolvimento de dependência a essa classe de
psicofármaco. E, de fato, nossos dados mostram que cerca de 25% dos usuários prémedicados com ansiolíticos vinham utilizando essa medicação há mais de 10 anos, fato que
corrobora a alta dependência física e psíquica que causa esse tipo de fármaco.
121
O aumento significativo de praticamente todas as classes de psicofármacos na
prescrição da psiquiatria, aliada à estereotipia de sempre e em qualquer caso prescrever
psicofármacos, sugere que o serviço psiquiátrico prescreve medicações com pouca atenção
aos efeitos colaterais de certos medicamentos. Se a psiquiatria acredita que o medicamento se
aplica, então, indubitavelmente, ela prescreve a medicação, ainda que o medicamento possa
ter uma gama de efeitos indesejáveis, muitas vezes superior ao mal-estar que se pretende
tratar.
Dentre aqueles efeitos indesejáveis, a dependência da droga psicofarmacológica pode
conduzir o sujeito a ter a sensação de que não é possível viver sem a ingestão das pílulas
psiquiátricas prescritas pela autoridade médica. Nesse estado, o sujeito medicado também se
tornaria dependente daquele que possibilita, através da formulação de receitas, o fornecimento
das drogas psicofarmacológicas. Mas é claro que, para além da necessidade de obtenção da
droga, há na relação médico-paciente outros tipos de dependência. O paciente se submete ao
médico e delega a ele todo o conhecimento e toda a responsabilidade pelo tratamento de seu
sofrimento. O médico, por sua vez, opera a transformação do mal-estar do paciente em uma
“doença”, cuja possibilidade de enfrentamento está completamente fora do âmbito de ação
possível do sujeito, que passa a necessitar da assistência especializada. Nesse processo, que
vamos chamar de “dessubjetivação” do sujeito, o paciente é inscrito no lugar daquele que não
é mais „senhor de si‟, mas é totalmente dependente do outro, o médico, único portador dos
conhecimentos necessários ao enfrentamento possível de seus sofrimentos. Foucault (1982, p.
127), muito propriamente, parodia a fala médica da seguinte maneira:
“Sabemos sobre a sua doença e sua singularidade coisas suficientes, das quais você
nem sequer desconfia, para reconhecer que se trata de uma doença; mas desta
doença conhecemos o bastante para saber que você não pode exercer sobre ela e em
relação a ela nenhum direito. Sua loucura, nossa ciência permite que a chamemos
doença e, daí em diante, nós médicos estamos qualificados para intervir e
diagnosticar uma loucura que lhe impede de ser um doente como os outros: você
será então um doente mental”.
No contexto de nosso estudo, a conduta psiquiátrica de sempre medicar e medicar
cada vez mais corrobora a noção de uma psiquiatria imprescindível, produtora de uma estreita
dependência em relação ao poder médico (FOUCAULT, 2006). Essas relações de
submetimento à medicação e desresponsabilização do sujeito, conforme Ignácio e Nardi
(2007, p.94) “prometem o afastamento do sofrimento de diversas origens (...) em detrimento
de outras formas de resistência aos modos de captura subjetiva ali presentes.”
122
De modo geral, os medicamentos psicofarmacológicos provocam a regulação de
sensações físicas e emocionais, que podem produzir a redução e/ou o desaparecimento de
desejos, a falta de estímulo e a ausência de contato vital com o outro (BARRIO, PERRON e
OUELLETTE, 2008). Nessa configuração, a submissão da população à medicação
psiquiátrica, com seus efeitos e implicações subjetivas, poderá definir formas de repressão dos
processos de subjetivação e a perigosa criação de subjetividades serializadas.
Nessa perspectiva, a prescrição de psicofármacos, da forma como vem sendo
praticada, poderá se constituir numa nova forma de controle social através da drogadição da
população que, refém de modalidades terapêuticas psicofarmacológicas, pode sacrificar
seriamente qualquer perspectiva de autonomia e liberdade.
Sobre o aumento na quantidade de psicofármacos prescritos pela
psiquiatria, no ano de 2008
No processo de nossa coleta de dados, pudemos observar que a quantidade de
psicofármacos prescritos no ano de 2008 parecia visivelmente superior às prescrições
realizadas nos anos anteriores. Convidados por essa impressão, comparamos a quantidade de
psicofármacos prescritos no ano de 2008 com o período de 2005 a 2007.
Em nossa pesquisa, apesar do período estudado não ser suficiente para compor uma
série histórica, o que nos possibilitaria estudar tendências, é fato claramente observável que
naquele ambulatório se prescreveu mais psicofármacos por usuário no ano de 2008 do que no
período anterior.
Constatamos que no período estudado (2005/2008), 50% dos usuários que já se
apresentavam pré-medicados ao serviço consumiam apenas um medicamento e que 40%
consumiam dois medicamentos psicofarmacológicos. No período de 2005 a 2007, a maioria,
67%, permaneceu com um ou dois medicamentos prescritos pelo atendimento psiquiátrico do
serviço ambulatorial. Entretanto, no ano de 2008 essa situação se inverteu. Apenas 32%
permaneceram com um ou dois medicamentos, enquanto uma expressiva maioria de 68%
passou a receber a prescrição de mais de três medicamentos e a antes rara prescrição de quatro
medicamentos (5%) passou a ser a mais comum (27%). Encontramos ainda, em 2008,
prescrições de até sete medicamentos, enquanto nossa amostra não encontrara nenhum caso
com mais de quatro medicações no período anterior. Não resta dúvida, portanto, que o
atendimento psiquiátrico do serviço estudado prescrevia muito mais medicamentos no último
ano de nossa pesquisa (2008) do que no período anterior (2005-2007). Essa constatação é
123
preocupante,
porque
a
combinação
de
um
número
elevado
de
medicações
psicofarmacológicas está correlacionada ao aumento dos efeitos colaterais e à possibilidade de
potencialização de sintomas. (PINHO, 2008).
Nossos dados sobre o aumento da quantidade de medicamentos prescritos pela
psiquiatria do serviço no ano de 2008 poderiam comportar ao menos duas explicações. A
primeira, referente a um âmbito mais geral, estaria relacionada às tendências mundiais e
nacionais de aumento da prescrição e de consumo de psicofármacos nos últimos tempos,
conforme a bibliografia sobre a questão (BARRIO, PERRON e OUELLETTE, 2008; LAMB,
2008; GUIMARÃES e PINHO, 2008; ANGEL, 2007). A segunda estaria relacionada às
particularidades daquele atendimento ambulatorial no ano de 2008, época da mudança do
profissional responsável pelo atendimento psiquiátrico.
Como mostram nossos dados, a troca de psiquiatra naquele ambulatório foi
coincidente com a elevação do número de medicamentos prescritos, que já era alto. Naquele
ano, registrou-se, também, o aumento do número de internações psiquiátricas, conforme
discutiremos no próximo item. Dessa forma, a intensificação da psiquiatrização dos usuários
daquele ambulatório no ano de 2008 pode ser pensada a partir de particularidades da
organização da equipe de saúde daquela instituição. Entretanto, acreditamos que, longe de ser
exceção, essa situação parece ser a regra na maioria dos atendimentos em saúde mental no
Brasil, o que aponta para o perigo de, em futuro próximo, amargarmos todos os problemas de
uma população sujeita aos efeitos do uso crônico e crescente de psicofármacos distribuídos
por aparelhos de Estado.
4.2.3 Sobre o tratamento dispensado aos usuários encaminhados à psiquiatria:
as internações psiquiátricas
O histórico de internação psiquiátrica anterior à entrada no serviço ambulatorial é um
fator que conduz invariavelmente o usuário à consulta psiquiátrica e daí, por sua vez, à
medicação psicofarmacológica em todos os casos. Esse usuário, uma vez inserido no âmbito
médico-psiquiátrico das intervenções medicamentosas e das práticas de confinamento e tutela,
dificilmente se libertará de novas intervenções psiquiátricas. Nessa configuração, como
nossos dados confirmam, todos aqueles com histórico de internação psiquiátrica tornam-se,
invariavelmente, reféns vitalícios da prescrição de psicofármacos.
124
Nossos dados mostram que 11% de todos aqueles que passaram por atendimento
psiquiátrico foram encaminhados à internação psiquiátrica. Dentre esses, 36% apresentavam
histórico de internação psiquiátrica anterior à entrada no ambulatório. Diferentemente daquela
sentença absoluta da psiquiatria de prescrever psicofármacos a todos aqueles usuários
previamente medicados, o procedimento de re-internação psiquiátrica só ocorre em casos
bastante específicos, geralmente ligados ao consumo excessivo de álcool e outras drogas.
Dentre os 33 casos de internação alcançados por nossa amostra, os dois únicos casos de
internação psiquiátrica que não se relacionavam ao uso de álcool e outras drogas haviam
recebido diagnósticos de “Transtorno Psicótico” e “Retardo Mental Grave”.
Como a principal causa que leva à determinação de internação psiquiátrica pelo
serviço do ambulatório refere-se ao uso de álcool e outras drogas, examinamos a incidência de
internação em todos os usuários de nossa amostra que se apresentaram ao serviço com esse
tipo de queixa. Nossos dados mostram que mais da metade desses casos recebeu
encaminhamento de internação psiquiátrica.
Apesar das ressonâncias do pensamento antimanicomial naquele município (LUZIO,
2003), o elevado percentual de internação dentre os usuários com diagnósticos referentes ao
“uso de álcool e outras drogas” é um indicativo da dificuldade desse serviço em superar as
práticas de internação no atendimento desses casos. A “Política do Ministério da Saúde para a
atenção integral a usuários de álcool e outras drogas” (Portaria GM/MS 816/2002), elaborada
dentro dos princípios da Reforma Psiquiátrica, preconiza o tratamento preferencialmente não
manicomial a esses casos. É preocupante que nossos dados indiquem que a internação
psiquiátrica é o principal tratamento determinado pelo serviço àqueles considerados
“dependentes químicos”, uma vez que, como já dissemos, atinge mais da metade dos casos
assim diagnosticados.
Essa alta incidência de internações relacionadas à drogadição nos levou ao
levantamento de dados sobre as causas das internações psiquiátricas que ocorreram no
período de 2003 a 2008 em todo o município onde realizamos a pesquisa. Com os dados
obtidos nos relatórios anuais de gestão da secretaria de saúde daquele município, pudemos
observar que o número de internações de usuários com diagnósticos referentes ao uso de
álcool e outras drogas sempre esteve muito acima das internações por outros diagnósticos. Os
dados que compõem essa série histórica nos permite circunscrever alguns fatos e traçar
algumas tendências.
125
No ano de 2005, as internações devido a outros diagnósticos não relacionados com o
uso de álcool e outras drogas registraram uma queda superior a 50%. Como o CAPS do
município foi implantado em fins de 2004, a queda das internações pode estar relacionada ao
oferecimento de recursos alternativos às práticas de internação na região. O CAPS, como um
dispositivo estratégico no contexto da transformação do modelo de atenção em saúde mental,
é um serviço com propostas de que a assistência ao sujeito em sofrimento psíquico deixe de
ser a internação em hospitais psiquiátricos para ser a criação de múltiplas e diversas
estratégias de cuidado no âmbito extra-hospitalar. (LUZIO, 2008; COSTA-ROSA e YASUI,
2008; AMARANTE, 2007)
Como indicam os dados, mais especificamente em relação ao ano de 2007, a queda
de 30% no número de internações, referentes “ao uso de álcool e outras drogas”, pode estar
relacionada ao fato de o ambulatório, responsável pelo tratamento e pelo encaminhamento
para internações psiquiátricas de usuários com essa queixa no município, estar sem
atendimento psiquiátrico durante alguns meses.
Esse levantamento de dados sobre as internações psiquiátricas no município também
mostra dados alarmantes. Pelas informações do IBGE (2007), o contingente populacional da
cidade praticamente não apresentou alteração no período de 2003 a 2008, mesmo período de
nossa série histórica. Entretanto, como pudemos observar, houve um aumento significativo
no número de pessoas internadas no município no ano de 2008, quando as internações devido
aos diagnósticos referentes à drogadição dobraram e as internações de usuários com “outros
diagnósticos” triplicaram. Essa alta incidência de internações, tanto daqueles com
diagnósticos referentes à drogadição quanto daqueles com “outros diagnósticos”, pode estar
relacionado àquelas particularidades do atendimento ambulatorial naquele ano, quando a
mudança no atendimento psiquiátrico no serviço parece ter carreado tanto o aumento no
número de prescrições de psicofármacos na primeira consulta médica quanto o aumento no
número de internações psiquiátricas.
Esse aumento das internações psiquiátricas pode ser resultado da maneira como se
organiza aquele ambulatório, em que a equipe não consegue superar as práticas mais
tradicionais da psiquiatria, como a internação. Conforme Luzio (2003, p. 157), a criação de
serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico e sua implantação nas comunidades “na maioria
das vezes não rompe com o modelo manicomial. Pelo contrário, o seu espaço para cuidar da
clientela continua sendo o asilo psiquiátrico e a terapêutica é físico-químico-moral.” Mas essa
situação pode também ser um resultado perverso do recente movimento contra a Política
126
Nacional de Saúde Mental que, alavancado por entidades da psiquiatria tradicional e de donos
de hospitais psiquiátricos, tem propagado na mídia a necessidade de mais leitos hospitalares e
recursos asilares para atender a população com diagnósticos ligados à drogadição e a quadros
psicopatológicos graves, como foi destacado na reportagem de AGGEGE (2007) e no trabalho
de GENTIL (2007).
Como já pudemos observar, nossos dados mostram que todo encaminhamento à
psiquiatria sempre implica tratamento psicofarmacológico e, por vezes, chega ao
encaminhamento de internações. Seria esperado que esse tipo de tratamento, fortemente
vinculado à noção de doença mental, estivesse acompanhado de um trabalho de avaliação
diagnóstica de rigor compatível com a gravidade do tratamento. No entanto, nossos dados
mostram que, mesmo entre aqueles submetidos ao tratamento psicofarmacológico, a ausência
de qualquer tipo de diagnóstico é uma constante, como examinaremos a seguir.
4.2.4. Sobre a ausência de diagnósticos psiquiátricos àqueles submetidos à
medicação psicofarmacológica
A despeito de a medicina psiquiátrica trabalhar com a idéia de formulações
diagnósticas para a determinação do tratamento psiquiátrico, aquele diagnóstico supostamente
necessário está ausente na expressiva maioria de 78% dos casos atendidos pela psiquiatria, o
que significa que cerca de oito em cada dez usuários medicados estão sendo submetidos aos
mais diversos psicofármacos sem a explicitação de qualquer determinação diagnóstica.
Investigamos os dados dos poucos prontuários com registro de diagnósticos
psiquiátricos e encontramos características que mostram que, ao contrário do que seria
razoável supor, é a presença de diagnóstico e não sua ausência que é produzida por
circunstâncias especiais. De fato, os usuários que têm diagnósticos em seus prontuários os
obtiveram, basicamente, por dois motivos especiais: solicitação de atestado médico ou
determinação do ambulatório à internação psiquiátrica.
Nessa perspectiva, nos parece que a rotulação diagnóstica só é usual para a
comunicação entre as diferentes especialidades médicas, entre as diferentes instituições
médicas e, em absoluto, não parece importante para a determinação do tratamento do
paciente.
127
Essa ausência de diagnósticos psiquiátricos para a grande maioria daqueles
submetidos ao tratamento psicofarmacológico nos convida a algumas considerações.
Nesse contexto, começamos o nosso raciocínio pelo fato de que o ato médico de
instituir uma doença é o fator determinante para autorizar a intervenção psiquiátrica. A
instituição de uma doença é o símbolo do nascimento da psiquiatria que, em fins do século
XVIII, se apropriou da loucura e a transformou em doença passível de ser curada pelo único
“detentor” do saber sobre ela: o médico. Conforme apontado por Birman (1978), para que a
loucura fosse objeto médico, ela deveria ser transformada em doença:
Para que a loucura fosse uma doença, seria necessária a conjugação do recorte
combinatório dos seus sinais e sintomas com um quadro bem determinado de uma
lesão cerebral, como se estabelecia e se determinava nas enfermidades da Medicina
somática as suas lesões específicas, na era anátomo-patológica (...). Para que os
loucos passassem a ser objeto da percepção e da escuta médicas, seria necessário
que a loucura fosse tornada uma doença. Se o médico é definido como quem possui
o saber sobre as doenças, para que os loucos sejam cuidados pelos médicos é preciso
que sejam transformados em doentes. (BIRMAN, 1978, p. 56)
No estabelecimento de práticas psiquiátricas sobre a alienação, a psiquiatria também
precisaria engendrar os tipos de loucura, para que a intervenção médica fosse mais „precisa‟ e
abrangente, e assim seriam construídas as classificações e organizados os quadros de sintomas
definidos em categoriais diagnósticas.
A psiquiatria contemporânea não abandonará suas origens e continuará intervindo
sobre aquilo que ela definirá como doença. Aliás, atualmente, cada vez mais qualquer malestar, qualquer comportamento considerado “inadequado”, qualquer situação existencial e, até
mesmo, qualquer circunstância cotidiana poderá ser transformada em doença e diagnóstico
psiquiátrico.
A respeito dessa questão, Guarido (2007, p.) comenta que “estamos convivendo com
sofrimentos codificados em termos de uma nomeação própria do discurso médico, que se
socializa amplamente e passa a ordenar a relação do indivíduo com sua subjetividade e seus
sofrimentos.” São tantas as descrições e definições de “transtornos psiquiátricos” e são tão
abrangentes seus indícios classificatórios, que quase ninguém escaparia de ser enquadrado em
um deles, caso se apresentasse a um atendimento psiquiátrico. Porém, há uma inversão na
lógica de construção diagnóstica. Para a psiquiatria não parece haver mais aquela práxis em
torno de hipóteses etiológicas prenhes de historicidade a serem consideradas pela reflexão
científica, pois a verdade do sintoma estaria no funcionamento bioquímico que os próprios
efeitos da medicação psicofarmacológica darão validade. Dessa forma, os psicofármacos
128
passam a participar, decisivamente, da nomeação dos “transtornos psiquiátricos” que vão
compor os manuais diagnósticos (GUARIDO, 2007) e, acrescentaríamos, daquele subentendimento característico da clínica psiquiátrica tradicional que, em seu formato, se
assemelha tanto com aquele do preconceito (CROCHÍK, 2008).
Em nossa pesquisa, a ausência do registro de diagnósticos na maioria dos prontuários
examinados não significa que não exista uma patologia sub-entendida pela psiquiatria, pois o
que autoriza a intervenção médica-psiquiátrica é a determinação de uma doença. Mais que
isso, trata-se de fazer existir uma doença. Porém, na dialética da prática, a abordagem do
paciente se faria apenas na identificação de sinais e sintomas medicalizáveis, sem qualquer
reflexão etiológica-nosológica, algo que ocuparia um tempo incompatível com a brevidade
sumária das consultas. Dessa forma, o tratamento psiquiátrico ficaria, via de regra, adstrito
“ao manejo farmacológico dos sintomas”. (TENÓRIO, 2000, p. 81).
Dupuy e Karsenty (1980) apontam que, em teoria, a “mola mestra” do ato médico é o
diagnóstico e que sem a determinação do diagnóstico não haveria a possibilidade de implicar
a prescrição medicamentosa. Entretanto, é perfeitamente possível observar que a clínica
medico-psiquiátrica deixou de elaborar diagnósticos e atravessa “diretamente dos sintomas
aos medicamentos”, constituindo-se em uma prática profissional estereotipada movida pelo
desenvolvimento da farmacopéia e de seus modos de construção e penetração:
Na ausência de um esquema médico da doença e de seu tratamento, o médico
aprenderá a passar diretamente dos sintomas aos medicamentos que atuam sobre
esses sintomas por absorção, erradicação ou prevenção. Este curto-circuito da
atividade analítica propriamente médica é sobretudo encorajado pela riqueza da
farmacopéia, que se renova freqüentemente e pelo esforço de adaptação a uma
sintomatologia fina, traduzindo-se pelo emprego dos mesmos termos e das mesmas
imagens que os do paciente. Se parece que tal procedimento satisfaria a clientela, a
ausência freqüente de diagnóstico pesará cada vez menos nas exigências dos
médicos em relação à sua própria prática [...] A memória médica é pouco a pouco
substituída pela memória farmacêutica. (DUPUY e KARSENTY, 1980, p. 100-101)
4.2.5. Sobre a evolução dos casos dos usuários encaminhados à psiquiatria
Os dados sobre o desenvolvimento dos casos medicados pela psiquiatria mostram
que, até o momento da coleta dos dados, 61% dos usuários continuavam em tratamento
psiquiátrico no próprio ambulatório e a porcentagem dos encaminhados para tratamento em
outros serviços somava 11% dos casos. Se considerarmos que a parcela da população
encaminhada para tratamento em outros serviços continuará sendo submetida a
psicofármacos, o que é bem mais que plausível, então o percentual de usuários em continuado
129
tratamento psicofarmacológico chega a um total de 72%. O restante dos casos apresenta uma
distribuição curiosa: as anotações de abandono de tratamento perfizeram 27% e os registros
de alta respondem por apenas 1% dos casos. Isso significa que a alta é muito rara e que o
abandono é muito alto.
Interessante destacar que mesmo aquele 1% de altas no tratamento correspondente a
três usuários que, como pudemos verificar, somente a obtiveram porque solicitaram
explicitamente o fim do tratamento psiquiátrico. Isso quer dizer que, assim como não há
registro de usuário que tenha passado pela psiquiatria sem receber prescrição de medicação,
também não há nenhum caso de alta por iniciativa do atendimento psiquiátrico.
A baixíssima freqüência de alta dos casos atendidos pelo serviço psiquiátrico
ambulatorial sugere uma tendência preocupante. A despeito de a psiquiatria moderna operar
amplamente com a noção de transtorno, que não pode deixar de supor algo de transitoriedade,
a verdade é que nossos dados não registram a ocorrência de altas no tratamento psiquiátrico.
Rigorosamente, encontramos três episódios de alta nos 303 casos acompanhados. No entanto,
como já dissemos, foram altas concedidas a pedido do usuário. De forma que, num período
que variou de cinco a cinqüenta e três meses de acompanhamento, nossa amostra não
conseguiu encontrar nenhum caso de alta determinada pelo atendimento psiquiátrico a
qualquer usuário que, por alguma vez, tivesse sido submetido a tratamento com drogas
psicofarmacológicas: todos continuaram presos aos psicofármacos ou abandonaram o
tratamento.
Como não é plausível considerar o abandono de tratamento como “cura”, torna-se
impossível deixar de ver nessa inexistência de alta uma tendência a cronificação, que tende a
vincular o usuário ao psicofármaco para todo o sempre, com todos os seus desdobramentos
relativos aos efeitos colaterais, à dependência química e psicológica, sempre contrários a
autonomia do sujeito. Como uma paródia daquela internação manicomial vitalícia de outros
tempos, em que a tragédia dos campos de concentração e as conquistas democráticas tornaram
dificilmente defensável, estaríamos sujeitos, hoje, aos riscos de um tipo de manicomialismo
químico que também tende a se estender indeterminadamente.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E Simão Bacamarte dizia...
O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar
profundamente a loucura, os seus diversos graus,
classificar-lhes os casos, descobrir enfim a causa do
fenômeno e o remédio universal.
O Alienista, de Machado de Assis
Neste trabalho, procuramos realizar um estudo exploratório do tema da
medicalização do social e de sua tendência atual de banalização da prescrição de
psicofármacos. No âmbito exploratório ao qual nos propomos, conscientes de que seria
ilusória a pretensão de abarcarmos toda a complexidade de nosso tema de estudo, tivemos que
fazer uma clara delimitação de nossa pesquisa. Optamos, então, por desenvolver dois
movimentos de pesquisa distintos que, mesmo longe de cobrir toda a extensão de nossa
temática, pudessem abordá-la com certa amplitude e complementaridade.
No primeiro, nos propusemos a uma aproximação da complexidade de nosso tema
mais geral de estudo através do desenvolvimento de um enfoque histórico-social do processo
de medicalização e de um esforço de contextualização geral, dentro dos limites de nossas
possibilidades, desse objeto de estudo.
Fomos buscar as origens da psiquiatria no alienismo europeu da primeira metade do
século XIX e lá encontramos as bases fundadoras da internação manicomial e de seu
tratamento moral, que percebemos muito ligados aos costumes de internação de pobres que
marcavam aqueles tempos e que condicionariam histórica e decisivamente as primeiras
modalidades de tratamento da loucura. Depois, visitando as modificações operadas no
alienismo pelo ideário em torno da noção de degenerescência, encontramos a fundação das
concepções organicistas da psiquiatria e percebemos nas propostas de profilaxia ativa da
época a extensão do tratamento moral manicomial às camadas mais pobres da população.
Essas concepções dariam novo impulso ao higienismo e estabeleceriam as bases de
uma psiquiatria de população já organicista, ainda que não dispensasse aquelas práticas do
tratamento moral da qual se originaram. Foi nessa extensão dos preceitos médicos e
disciplinares a toda população que encontramos os fundamentos mais pretéritos daquilo que
seria denominado, bem mais tarde, de “Políticas de Saúde Mental”. Abria-se, então, um
período no qual a noção de predisposição à loucura, acompanhada por uma profusão de
classificações de “doenças mentais”, se expandiria pelo mundo, oferecendo essa matriz de
131
entendimento aos problemas sociais que se avolumavam. Tal circunstância encontraria no
preventivismo norte-americano de Caplan a fórmula básica da semeadura de serviços de
saúde mental por todos os territórios nos quais despontasse algum sinal daquele perigo
insidioso da doença mental. Essa modalidade de atendimento seria também a inspiração da
instalação desse tipo de serviço de saúde mental no Brasil. São serviços de atendimento amplo
e essa amplitude se estenderia muito com o crescimento dos serviços de saúde em nosso país.
A psiquiatria, naturalmente, sempre desenvolveria nesses serviços aquela modalidade
de prática à qual estava afeita, dando continuidade a concepção que a acompanha, pelo menos
desde o alienismo, de que toda a população pode – e deve – beneficiar-se de seus serviços. Já
fora assim com o tratamento moral, com a profilaxia ativa e, nos tempos atuais, será
justamente o psicofármaco, correlato perfeito de suas concepções neurológicas, o mote
psiquiátrico pelo qual ela exercerá essa tendência bem típica de suas origens de medicina de
população.
Assim, os psicofármacos proliferarão pelo mundo e colonizarão toda a prática
psiquiátrica, que a amplitude dos serviços de saúde metal tratará de elevar a toda a população.
Nosso histórico do desenvolvimento desse processo de medicalização procurou percorrer,
também, as principais experiências críticas de reformas psiquiátricas, que comporiam a base
do enfrentamento daquele modelo médico cuja constituição acabamos de resumir. Mas, com o
psicofármaco estabelecido como principal instrumento do modelo médico de intervenção em
saúde mental, já chegamos ao que agora queríamos destacar: a prescrição de psicofármacos
está entronizada no centro da atenção psiquiátrica que ela mesma, pela sua história
constitutiva, acostumou-se a considerar essencial e necessária a toda a humanidade.
Nessa configuração, podemos considerar que a conjunção do desenvolvimento dos
psicofármacos modernos, com o amplo alcance que assumiu a ênfase preventiva em saúde
mental na atualidade, modificou as práticas da psiquiatria, que deixou de ser um saber voltado
exclusivamente ao tratamento da loucura para dedicar-se a medicar, através da prescrição de
psicofármacos, qualquer manifestação de sofrimento psíquico. O advento de modernos
psicofármacos, fomentado pelas indústrias farmacêuticas que, particularmente interessadas
nesse amplo campo de lucratividade, engendraram “novas” substâncias para “novos
transtornos mentais”, proporcionou à psiquiatria levar a cabo os seus mais pretéritos ideais de
abrangência populacional. É nesse contexto que passamos a falar do segundo movimento de
nossa pesquisa.
132
No segundo movimento de nossa pesquisa, procuramos descer às capilaridades desse
processo de medicalização, colhendo e examinando dados sobre a trajetória da prescrição de
psicofármacos em uma instituição de atendimento em saúde mental. Esse percurso nos
permitiu perceber que as ações e as formas de organização dessa instituição permanecem
focalizadas no modelo médico-psiquiátrico tradicional que, por sua vez, parece guiar-se pelo
lema: “psicofármacos para todos e para sempre”.
As estereotipias desse modelo, que aqui observamos a partir da perspectiva crítica da
atenção psicossocial, parecem fazer com que o atendimento psiquiátrico desse serviço faça
cumprir sistemática e meticulosamente aquele lema. Primeiramente, lembremos daquela
conduta compulsória da psiquiatria de determinar, como mostraram nossos dados,
psicofármacos a todos que passam pelo seu atendimento. Medicação para todos. Em seguida,
recuperemos os dados que mostram que, simplesmente, não se encontra sinal de alta nos
tratamentos daquele serviço no qual seus usuários são mantidos permanentemente sob
medicação psicofarmacológica. Medicação para sempre. Isso evoca a existência de um
moderno fenômeno de enclausuramento do sujeito, um aprisionamento a um medicamento
psiquiátrico que nos faz lembrar aquele encerramento manicomial da psiquiatria ancestral,
que só a duras custas a luta antimanicomial conseguiu conter. Assim, independentemente das
particularidades individuais, da singularidade de cada sujeito, das distinções de cada
demanda, de cada queixa, a psiquiatria sempre encontrará motivos para prescrever o
infindável tratamento psicofarmacológico a todos aqueles que passam por seu atendimento.
Parodiando o personagem machadiano evocado por nossa epígrafe, poderíamos dizer que esse
serviço sofre de uma espécie de “Síndrome de Simão Bacamarte”.
A expansão de instituições de atendimento em saúde mental que reproduzam o
modelo médico tradicional, como aquela de nosso estudo, levará esse tipo de atenção a todos
aqueles que procurarem por serviços de saúde. Isso significa que as tendências tão pretéritas
de estender o atendimento psiquiátrico para amplos contingentes populacionais, em nossos
dias, significarão estender a medicação psicofarmacológica para um número cada vez maior
de pessoas. Será, enfim, o cumprimento do sonho daquele “remédio universal” que almejara o
personagem machadiano. E, talvez, a realização das mais funestas utopias totalitárias que a
ficção foi capaz de imaginar: uma sociedade em que todos dependam de drogas produzidas
por oligopólios industriais privados e distribuídas por aparelhos de estado de atendimento
público.
133
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143
ANEXO A
ENTREVISTA INICIAL 6
1. Identificação
Nome do paciente:
Data de nascimento:
Estado civil:
Profissão:
Endereço:
Nome do pai:
Nome da mãe:
Nome do Cônjuge:
2. Origem do encaminhamento:
3. Queixa (motivo da consulta):
4. Tratamento anterior
( ) Sim
( ) Psicologia
( ) Não
( ) Psiquiatria
5. Quanto tempo?
( ) Medicação_______________
( ) Internação_______________
( ) Outros___________________
6. Dinâmica familiar (histórico, número de filhos, tempo de casamento e ou
relacionamento familiar)
7. Vida escolar (freqüência, período, relacionamento com colegas e professores)
8. Vida profissional (trabalha ou trabalhou, quanto tempo, mudanças)
6
A entrevista inicial consta nos prontuários de todos os usuários que deram entrada no PA do ambulatório.
144
9. Vida social (amigos, esporte, lazer)
10. Antecedentes familiares (doença mental)
11. Uso de bebida alcoólica/drogas/cigarro
12. Sinais e sintomas
(
(
(
(
(
(
(
(
(
(
(
(
(
(
(
(
(
(
)Ansiedade
)Hiporexia (diminuição de apetite)
)Anorexia (ausência de apetite)
)Perturbações durante o sono
)Nervosismo
)Persecutoriedade
)Alucinações auditivas
)Insônia inicial
)Insônia final
)Desvio de conduta
)Angústia
)Aumento de apetite
)Choro fácil
)Irritabilidade
)Agressividade
)Diminuição de libido
)Alucinações visuais
)Convulsões
13. Qual expectativa do usuário quanto ao tratamento?
14. Encaminhamento:
15. Observações:
16. Hipótese diagnóstica:
Data:____/____/_____
Profissional: __________________________
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