O OBJETO E A CENA CONTEMPORÂNEA
Dr. Fernando A. Stratico
Universidade Estadual de Londrina
RESUMO
Esta comunicação apresenta os resultados de pesquisa realizada no projeto Identidade,
Jogo Cênico e o Objeto/Imagem – Departamento de Música e Teatro - UEL, cujo
objetivo principal é identificar as abordagens relativas à presença do objeto cotidiano
nos processos pedagógicos do teatro, assim como na construção da cena teatral do
passado e da atualidade. O artigo apresenta o objeto cotidiano como ponto de
confluência da memória, do corpo, e da relação com o espaço, o que faz revelar a
presença de sujeitos contidos no objeto. Muito além de ser um mero estímulo para a
criação cênica, o objeto na contemporaneidade tem sido articulado por meio de um
constante processo de significação que nos remete a sujeitos e a contextos sociais.
Desde os readymades de Duchamp, aos manequins de TadeuszKantor, o objeto de cena
apresenta algo mais que uma construção cenográfica: o objeto revela marcas de um
tempo e de seus sujeitos. Com base em experiências práticas desenvolvidas com
estudantes do Bacharelado em Artes Cênicas – UEL, o artigo aponta para uma
metodologia de ensino, cujo centro é o objeto, e que conduz a uma construção
transdisciplinar e multimidiática da cena.
O objeto carrega marcas de seus sujeitos, marcas de quem o fez, e marcas
também daqueles que o utilizaram. Estas são presenças que insistem em aparecer por
meio da tinta gasta, das ranhuras e lascas, e a se tornar, assim, perenes. Estes sujeitos,
no entanto, são anônimos ou desconhecidos, e o mundo industrializado insiste em
eliminá-los. Na correria da produção industrial, estamos sempre prontos a descartar
rapidamente objetos velhos e usados para que novos produtos sejam adquiridos. Com a
rapidez com que os objetos industrializados passam por nossas vidas, cada vez mais,
deixamos de reconhecer nossas próprias marcas, e desse modo, o mundo pasteurizado
dos plásticos vaporiza a presença orgânica humana e também a sua própria história.
Objeto, Encantamento e Ação
Na individualização dos objetos, na sua artesania distinta e única,
provavelmente, resida o seu poder de encantamento. Pilões, cuias, panelas de ferro ou
barro, talvez tenham em seu respectivo contexto, mais poder e mais encantamento do
que os atuais teclados e monitores de computadores. Porém, por mais frios que sejam os
objetos contemporâneos, todos conservam uma história, seja de fabricação ou de uso.
Incrustrada em sua superfície está a presença de sujeitos ocultos. Assim, como se oculta,
no condomínio de luxo, a presença dos operários que o construíram, os objetos também
são obrigados, em sua constituição, a esvanecer a presença de seus criadores. Mas
estaríamos interessados nestes sujeitos? Que interesse teríamos em saber quem extraiu
aquele barril de petróleo, que posteriormente virou plástico e que virou uma cadeira?
Que interesse teríamos em saber quem cavou o mármore bruto da rocha, para depois ser
transformado em uma pia. Não queremos saber quem foram estes criadores poderosos
que deram forma à nossa casa ou nossos utensílios. Antes queremos esquecê-los e lidar
com os objetos como se fossem resultado de mágica - a mágica da aquisição que em
função do dinheiro faz surgir o produto à nossa frente.
Na contemporaneidade, movidos pelo reconhecimento do outro, e pelo valor que
este processo possui, inclinamo-nos a uma busca por este sujeito que fora perdido, ou
que facilmente se perde na explosão da indústria de bens. É quando a arte demonstra ser
um espaço para este encontro. E é quando artistas – conscientes destas “outras
presenças” – empenham-se em compartilhar a obra, no sentido de comungar os
processos de significação e produção artística. A Estética Conectiva, de Suzy Gablik, é
fundamental para o entendimento histórico dos processos que levaram artistas a abrir as
portas de seus ateliers, e abdicar de processos íntimos de criação, para, em conjunto
com não-artistas criar, compor, construir a obra. Antoni Miralda é exemplo vivo desta
conexão e compartilhamento entre artista e pessoas comuns. Em sua obra “Sabores e
Línguas” muitos pratos de porcelana foram distribuídos entre as pessoas de várias
cidades e países, para que elas os preenchessem livremente. Na mesma perspectiva,
Beth Moisés reuniu dezenas de mulheres, maltratadas pelos maridos, trajando seus
vestidos de noiva. O objeto é fundamental para a maioria dos artistas conectivos, pois o
objeto é registro de uma história ou é ainda símbolo de relações.
A Cena e o objeto
Desde a antiguidade clássica o teatro tem se construído com base em práticas
corporais, que, nas suas diversas manifestações, se fundamentam na relação com
objetos. Máscaras, guirlandas, jarros de vinho, trombetas, cornucópias, címbalos,
tambores, falos, espadas e lanças foram alguns dos objetos impregnados da energia da
dança, da música, do gesto e da fala teatral, de tal maneira, que é difícil conceber a
criação cênica – assim como sua origem – apenas no texto verbal. Os exemplos
poderiam ser muitos ou incontáveis: máscaras da Commedia d´ell Arte, do mesmo
modo, eram objetos de valor inestimável para atores ambulantes, cujo poder de
interpretação e caracterização residia justamente no que o corpo e o objeto-máscara
podiam construir. Objetos do teatro oriental perfizeram no passado e perfazem hoje em
dia construções cênicas que se fundam no manipular de objetos simples e cotidianos um leque ou um boneco-fantoche são elementos fundamentais de encenações que se
repetem através dos séculos. Em todo caso, sempre vemos a relação do ator/atriz com
estes objetos cênicos, que muito além de meros adereços, são elementos que se
relacionam ao corpo, de tal modo a se tornarem uma extensão do próprio corpo.
A história do teatro nos mostra exemplos de práticas nas quais relações são
estabelecidas entre o ator/atriz e o objeto cotidiano. Tadeusz Kantor colhia objetos das
ruas e levava para a cena. Grotowski levou bancos de igreja para os ensaios do Teatro
Laboratório. Se, por um lado, a entrada de objetos cotidianos no teatro tem sido, via de
regra, obliterada pela ficção, por outro, é no uso do espaço urbano e cotidiano que
residem presenças marcantes. Kantor foi precursor desta prática, que para nós, hoje em
dia, é tão comum. Em plena Segunda Grande Guerra, Kantor utilizava espaços
destruídos pelas bombas para suas apresentações.
Poderíamos dizer que a origem do teatro ou da cena performativa (num sentido
mais amplo, incluindo a performance-arte) se fundamenta na ação com objetos. Em seu
constante pulsar, de permanente origem dramática sempre em desvelamento e
fermentação, o rito utiliza elementos materiais cuja fisicalidade desencadeia seus
encantamentos próprios1, assim como faz explodir a energia dramática da ação
performativa e num outro momento da história, faz surgir o teatro como conhecemos
hoje. É bem verdade, que muitas manifestações performativas e teatrais (performancearte e teatro experimental), tentam recuperar na atualidade esta energia primeva da
relação com o mundo físico? e sua capacidade encantatória. Lygia Clark, Ana Mendieta,
Marina Abramoviç e Cildo Meireles, entre outros, criaram relações com elementos
materiais, ou com o mundo material, que estiveram carregadas de um sentido
ritualístico, e é correto afirmar que a performance-arte, em grande parte, é caracterizada
pela ação ritual. O corpo em sua relação com o objeto evoca um estado de alteração da
energia cotidiana. Eugênio Barba chamou a esta condição um estado “extracoditiano”,
ou como preferiu Richard Schechner, um estado “destacado do cotidiano”. Para Barba e
Schechner, tais conceitos serviram para desencadear análises importantes sobre o
comportamento espetacular ou performativo, e observadas as diferenças entre a
performance cotidiana e a performance artística, reconhecemos que o objeto – o ente
material e extracorpóreo - é parte importante dos processos de significação cênica. Há
que se reconhecer o papel do objeto nestes processos e há que se identificar o quê
exatamente emana e reside no mundo das coisas, no contexto da contemporaneidade.
É preciso reconhecer as diferenças entre os objetos que ganham um sentido
cênico. Há objetos produzidos para o fim teatral ou cênico, tais como as máscaras, os
títeres, adereços, figurinos e cenários. Há objetos que são transportados do cotidiano
para a cena, e nesta adquirem um sentido fictício, ou são imbuídos de ficção – os
manequins utilizados por Kantor, por exemplo. Há objetos retirados do cotidiano que
apresentam e carregam consigo a história e vínculo com a realidade cotidiana – os
vestidos de noiva das performances de Beth Moisés e a pilha de rádios de Cildo
Meireles. Há ainda aqueles objetos que não saem do cotidiano, ou de seu estado
cotidiano, tais como os tijolos das ruínas de um edifício, os quais pouco se modificam,
recebendo somente a ação cênica que lhes altera a condição para um ambiente ou
cenário. Há, por outro lado, aqueles objetos que são utilizados nas improvisações
teatrais, sendo que alguns são retirados destas ações sobre as quais se dedicam os atores,
ficando, muitas vezes, ausentes os objetos em determinada altura da criação cênica.
Restam, neste caso, as ações que são transformadas, estilizadas ou colocadas em outro
contexto, possivelmente com outros objetos. Preocupação mais comum entre os atores,
esta última perspectiva leva inevitavelmente a noções sobre técnicas e metodologias
técnicas para a criação. É quando se vê no objeto apenas possibilidades técnicas de
elaboração corporal.
Infelizmente não dispomos de muitos estudos sobre a presença do objeto na
cena. Não dispomos de estudos que apresentem um aprofundamento sobre as categorias
apresentadas acima. Não há uma teoria do objeto cênico, embora tenhamos teorias sobre
o signo cênico. Não há, tampouco, estudos que apresentem investigações acerca dos
vários aspectos da presença do objeto na cena. Muito oportunos são, portanto, exemplos
1
Há uma riqueza enorme de exemplos de rituais de xamãs, advindos de estudos antropológicos, cujas ações dependem da relação
com objetos sagrados. No Brasil, culturas tribais mantêm vivos rituais de cura e iniciação em que elementos materiais, seja da
natureza ou artefatos, são desencadeadores de ações performativas. As religiões afrobrasileiras, do mesmo modo, contêm uma
variedade enorme de objetos de cunho sagrado, sem os quais o rito não se formaria e o culto não aconteceria. A feira de São
Joaquim, em Salvador, apresenta uma profusão de objetos que são utilizados na Umbanda e no Candomblé.
de experiências cênicas – sejam teatrais, performáticas ou educativas - cujo enfoque é o
objeto cênico.
O Objeto Cênico: uma Experiência Pedagógica
Apresentamos agora algumas experiências desenvolvidas no curso de
Bacharelado em Artes Cênicas da Universidade Estadual de Londrina, cujo enfoque é o
objeto cotidiano. Tais experiências fizeram parte do programa da disciplina de
Interpretação IV que tem sua ementa voltada para o diálogo entre o teatro e outros
campos das artes, bem como para o hibridismo das artes. O principal objetivo da
disciplina é promover relações entre as perspectivas teatrais - desenvolvidas até então
nas disciplinas anteriores - e outras linguagens artísticas, tais como, a performance-arte,
a música, o vídeo, a instalação, o cinema, etc. O intuito é também situar a experiência
teatral no contexto das artes contemporâneas.
Assim, os estudantes são levados a refletir sobre a criação cênica, não mais
como dependente de técnicas corporais. O corpo é tomado como realidade inextricável e
autônoma. Lygia Clark, com sua perspectiva das proposições, é importante base para a
compreensão da ação física, como ato imanente, como construção autônoma do corpo,
que resgata o sentido de si próprio não como aparato técnico, mas como identidade,
como experiência, vivência e inter-relações. O objeto (um barbante ou tecido, por
exemplo) é material desencadeador do ato, que é desprovido de intenção cênica ou
teatral. É lúdico, é possibilidade do eu na sua fisicalidade, no espaço individual e
coletivo. Na perspectiva da proposição, os objetos são estimuladores do ato, que em sua
essência, leva ao que Clark chamou de nostalgia do corpo, a lembrança de si mesmo, de
sua verdade esquecida/perdida. A partir deste primeiro exercício da imanência, os
estudantes são convidados a escolherem um objeto da rua ao acaso, e na semana
seguinte, devem escolher um objeto da rua que tenha um valor e amplitude social. No
primeiro momento, a escolha naturalmente obedece ao acaso, sem muitas reflexões
sobre as implicações em torno do objeto. Porém, a segunda escolha, parte de um olhar
mais atento às ligações do objeto com seu contexto. Estes objetos são trazidos para a
sala de trabalho. Com estes objetos, ações são geradas individualmente, de modo a que
explorem as possibilidades de relação com tal objeto. Os estudantes são instados a
imaginarem a história destes objetos (como teriam ido parar naquele lugar? Quem os
teria jogado na rua? Que pessoas se relacionaram com estes objetos?)
O exercício cênico desenvolvido por Lis Peronti, intitulado Ave Chuva,
apresentou uma trajetória que incluía um rolo de fita magnética de áudio encontrado ao
acaso na rua, e também uma sombrinha bastante danificada que a aluna encontrara num
terreno baldio. Este último objeto, partiu da intenção de encontrar um objeto de valor
social. Em etapas diferentes, ao longo de quatro meses de trabalho esses objetos foram
utilizados no sentido de exploração do movimento e criação corporal. Como relata Lis,
os dois objetos, aliados à experiência inicial propositiva com barbantes (na perspectiva
das proposições de Lygia Clark) contribuíram para a alteração de seu estado corporal e
movimentação, além de desencadear sonoridades vocais. O barbante e a fita magnética
geraram movimentos circulares e limitados, e quando estes objetos foram por ela
retirados do exercício, permaneceram as ações e energias pesquisadas. O único objeto a
permanecer durante todo o processo foi a sombrinha amarela, velha e danificada. Para
ela, tal objeto possuía um sentido social na medida em que envolvia toda uma indústria
de objetos que são feitos para serem descartados.
Conforme Lis, as repetições compulsivas e movimentos circulares remetiam
toda a ação ao ritual e ao transe, ou ações que ampliam o estado de consciência, o qual é
bastante comum em trabalhos de performances. Neste sentido, Lis buscou referências
no trabalho de Márcia X, em especial Desenhando com Terços (2000-2003), em que a
artista realizou ações de maneira repetitiva e compulsiva. Ou ainda encontrou
referências na obra de Artur Barrio, que, do mesmo modo, realizou ações repetitivas e
compulsivas como em 4 Dias 4 Noites.
O figurino de Peronti também ecoou as experiências de Márcia X, que muitas
vezes, esteve vestida com uma camisola branca. Lis confeccionou uma camisola que,
para ela, representava a neutralidade e a força ao mesmo tempo.
A cena performática mostrava sinais de dramaturgia, conforme o relato de Lis,
em que a sua figura andava em círculos entoando um cântico ao segurar a sombrinha, o
que, conforme a estudante, “lembrava uma mulher procurando algo nos escombros”.
Lis ainda salienta que a música parecia um lamento, construído sobre a palavra fiore,
que, em italino significa “flor”, mas que para ela surgiu da junção de sons sem sentido
algum.
As três apresentações deste trabalho se deram em salas muito pequenas (mais ou
menos 2x3m), nas quais a estudante desempenhava suas ações, estando o público fora
das salas, à sua porta, disputando, de certo modo, o espaço para ver a performance. A
idéia de presentificação estaria, conforme Lis, presente no ato de interromper as ações
performativas e de certo modo dramáticas, e parar para beber um pouco de água de um
copo. No entanto a estudante afirma que se deu conta de que a presentificação maior
acontecia no espaço e tempo compartilhados por ela e pelas pessoas que assistiam. Ali,
todos coexistiam, sem nenhuma subordinação.
Ao longo do processo, a cena performática de Lis ganhou novos elementos, tais
como uma elaboração maior das ações físicas (exploração de equilíbrios precários, por
exemplo); dois monitores de TV foram também introduzidos no espaço; um deles
apresentava imagens ao vivo do próprio público, assistindo ao trabalho, e outro
apresentava uma suposta ausência de imagem, embora o monitor permanecesse ligado.
Flashes muito rápidos de imagens de catástrofes, como tempestades e furacões eram
apresentadas em frações de segundos, em mensagens subliminares. Nas palavras de Lis:
A televisão com os flashes seria uma tentativa de chamar a atenção para o
fator social, ao qual nos remetem os destroços do guarda-chuva e a
dramaturgia da cena, mas passando meio que despercebido, assim como se
fosse um objeto soterrado e tantos outros esquecidos que passariam pelas
pessoas em seu cotidiano (PERONTI, 2011).
O trabalho cênico de Lis Peronti mostra uma trajetória em que da rua o objeto
passa para o espaço de trabalho, agindo como estímulo para a criação, porém, sem
perder sua história. O processo de Lis é exemplo de trabalho em que o objeto permanece
durante todo o processo de construção da cena, e além de evocar questões mais amplas,
tais como o contexto de sua fabricação-industrialização, traz à tona outros aspectos que
se ligam ao flagelo e à degradação humana. A sombrinha velha e quebrada, soterrada
pela terra de um terreno baldio desencadeou uma cena performática de estrutura não
ficcional ou narrativa. Imagens trágicas vistas em uma pequena sala evocavam
sensações de abandono, desespero, angústia e lamento.
Outra investigação desenvolvida com a mesma turma foi a de Tatiane da Silva “Desesperos a partes…quinze maços de cigarro, oitenta e duas bitucas e ele ainda vai
voltar”. Sobre este trabalho Tatiane relata que o primeiro objeto encontrado na rua, ao
acaso – um CD - não fora uma escolha pensada. Tal objeto foi encontrado em frente da
casa de sua irmã; e motivada pela obrigatoriedade de levar um objeto para a aula, a
estudante pegou o primeiro que avistou naquele momento. Tatiane relata que não
conseguiu ultrapassar a compleição física do objeto nas improvisações com o CD, tendo
havido dificuldade de imaginar que tal objeto pertenceu a alguém e que possuía uma
história própria. Por outro lado, o segundo objeto encontrado na rua, partia da instrução
do professor que pediu que tal objeto tivesse um valor social. Tatiane relata que, ao
contrário do primeiro exercício, este, por sua vez instigou sua percepção sobre o espaço
urbano e seus elementos. Conforme a estudante:
A possibilidade de transformar qualquer coisa em arte aguçou meus instantes
de procura; era impossível passar por algo sem qualquer serventia sem ao
menos observá-lo e refletir sobre a sua incessante utilidade passada que
talvez gerou sua inutilidade presente (SILVA, 2011).
O acaso deu-lhe uma palmilha de sapato masculino, encontrada perto da
Universidade. Como na experiência de Artur Barrio, argumenta Tatiane, para quem “as
trouxas ensanguentadas ou os pães não eram simbólicos. Não simbolizavam nada.
Eram o que eram” – Tatiane argumenta que o início do trabalho foi marcado por
experimentos que testavam a forma concreta, e que aos poucos foram adentrando o
sentido simbólico do objeto. Assim, pôde sentir o objeto marcado pelo tempo como um
decrépito e esquecido corpo, e a partir deste momento, Tatiane pôde criar o que seriam
os “primeiros fragmentos” de sua cena: “a contagem de passos”.
Outros marcantes estímulos dentro dessa criação estavam nas pessoas a
minha volta, a presença delas possibilitava contínuas mudanças na obra, o
fato de me encontrar estática, como o meu objeto ao ser encontrado, como
uma árvore ou alguém plantado que espera e se desespera [...] (SILVA, 2011)
A sequência das aulas, conforme Tatiane, foi abrindo possibilidades para o
trabalho, que estabeleceu um diálogo com outras linguagens artísticas, como a vídeoinstalação. Inspirada na obra Balkan Baroque, de Marina Abramoviç (1997), em que a
artista limpa cerca de mil e quinhentos ossos enquanto canta cantigas de sua infância,
Tatiane elabora o primeiro vídeo de sua instalação: sozinha em um terreno baldio (um
espaço de terra nua), Tatiane constrói o que ela chama de “íntimo ritual” - a confecção,
por três horas seguidas de um casquete de tocos de cigarro, que para ela, simbolizaria o
matrimônio.
O segundo vídeo foi extraído das ruas, mostrando cenas cotidianas de “mulheres
fumantes, mulheres amigas, desconhecidas, mulheres que fumam e evidenciam a espera
que se obtêm ao fumar” (SILVA, 2011).
O trabalho cênico-performático que incluía o exercício a partir de objetos
encontrados na rua – um CD e uma palmilha de sapato masculino – apresentava uma
vídeo instalação com as imagens descritas acima, e posteriores ações de Tatiane em um
gramado vizinho da sala de trabalho. Ali, Tatiane cavou um pequeno buraco com uma
enxada, e permaneceu em pé neste. Ela própria enterra seus pés, de modo que parece
estar presa à terra. Um texto dramatúrgico bastante fragmentado apresenta imagens de
uma mulher que é deixada pelo marido, e que em sua incessante espera do retorno, fuma
desesperadamente. O texto, repetitivo e circular, indica uma eterna espera por alguém
que jamais voltará:
No real devaneio da espera que lhe desespera, da
culpa que ela se ocupa, entre passos, cigarros,
convidados, ela aguarda como tantas outras mulheres
Odetis por aquele que partiu.
Fincada na terra com suas únicas e últimas
recordações, ela enterra e desenterra uma história que a
muito tempo deixou de pertencer a ela, a ele ou a nos.
Ela caminha, caminha, minha, minha, minha….e
não chega a lugar algum (SILVA, 2011).
Como muitas outras mulheres maltratadas e deixadas pelo marido, a personagem
de Tatiane apresenta uma esposa presa à sua própria condição. Resta-lhe apenas o
esperar sem fim. Apesar de mostrar também força e energia – por exemplo, ao cavar a
terra, com fúria – a mulher abandonada está presa ao solo como uma árvore. Seu
contínuo falar remete-nos à uma ladainha agoniante, que parece evocar a presença
daquele que jamais voltará. Os cigarros consumidos compulsivamente indicam a
autocomiseração e estado degenerativo em que a figura se encontra. Porém, reside nesta
personagem uma força e energia latente, que a faz ligar-se à terra, e à terra pertencer.
Por mais que a atmosfera construída seja de ilusão e aprisionamento, a mulher mantemse viva, com os pés enterrados no solo, como se dali fosse recolher a seiva de vida de
que precisa. Uma vez abandonada seu retorno ao chão a faz retomar o que é primitivo o
que é latente e o que nunca a deixaria.
Para Tatiane, uma simples palmilha de sapato masculino desencadeou um
processo bastante complexo de construção de imagens. Ao contrário do trabalho de Lis
Peronti, a cena performática de Tatiane não incluía a presença do objeto que originou as
ações, embora tenha havido uma explosão sempre expansiva de significados. Havia ali a
presença da performer mas também uma presença-ausência de um homem – aquele
cujos pés andaram sobre a palmilha de sapato.
Considerações Finais
As experiências relatadas acima se situam num contexto bastante amplo da
presença do objeto na cena, seja esta considerada como teatro ou ainda como
performance. As limitações teóricas relativas a esta presença, nos levam a apresentar
aqui indagações e estudos introdutórios, os quais poderão levar à elaboração de uma
teoria do objeto cênico, ou ainda a metodologias mais diretivas quanto ao uso e
presença do objeto. A abordagem aqui apresentada procura fugir da mera apresentação
de elementos voltados para a técnica ou construção técnica a partir do uso de objetos.
Enfatizamos, ao contrário, aspectos sociais que residem no objeto cotidiano, e como
estes aspectos podem revelar ou desencadear significações a respeito de seus sujeitos.
Os relatos de exercícios aqui apresentados demonstram a possibilidade de
investigação que recusa o mero exercício técnico, e que aprofunda a possibilidade de
relações com o outro. Um dos aspectos mais relevantes deste exercício é a abertura
provocada nos processos de elaboração cênica, que deixa de ser fechada ou
enclausurada, para abrir-se para a rua. Há nesta atitude um compartilhar sutil dos
processos criativos com o próprio contexto. O sujeito da criação cênica envolve-se,
embora de maneira sutil e indireta, com outros sujeitos anônimos.
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