CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM DIREITO FELIPE SANTOS ESTRELA DE CARVALHO REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO Salvador 2011 (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM DIREITO FELIPE SANTOS ESTRELA DE CARVALHO REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO Monografia de Conclusão de Curso, sob orientação da Prof. Dra. Isabela Fadul de Oliveira, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Salvador 2011 (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. FOLHA DE AVALIAÇÃO A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia, elaborado pelo graduando FELIPE SANTOS ESTRELA DE CARVALHO, sob o título REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO será submetida em 08 de Julho do ano de 2011, às 11 horas, à banca examinadora composta pelos seguintes docentes: (i) Samuel Santana Vida (Presidente), (ii) Isabela Fadul (Orientadora) e (iii) Vitor de Athayde Couto (Examinador), sendo considerada _______________ (aprovado/reprovado) com nota _______. Salvador, 08 de Julho de 2011. BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________________ Isabela Fadul de Oliveira (Orientadora) – Universidade Federal da Bahia/ UFBA – Doutora em Direito – Universidade de São Paulo/ USP, Brasil _______________________________________________________________ Samuel de Santana Vida (Presidente da Banca/ Examinador) – Universidade Federal da Bahia/ UFBA – Mestrando em Direito, Universidade Federal da Bahia/ UFBA, Brasil _______________________________________________________________ Vitor de Athayde Couto (Examinador) –Universidade Federal da Bahia/ UFBA – Doutor em Economia, Université de Toulouse II, França (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. AGRADECIMENTOS Pão, Terra e Liberdade. Dedico esta monografia à luta dos movimentos populares campesinos que com sangue e suor cultivam o mundo novo. É bem provável que ao final destas linhas eu cometa alguma injustiça, pois, esta monografia não é resultado exclusivo desses últimos meses de estudo, mas fruto de uma longa caminhada construída dentro e fora do espaço acadêmico. Por isso, agradeço logo a todas as pessoas que contribuíram de alguma maneira para a construção daquilo que sou hoje. Não poderia deixar de agradecer a Dona Lúcia, mãe querida, pelo amor imensurável. As horas de riso largo ficaram a cargo de Mozart, irmão e amigo. A trajetória na Faculdade de Direito só foi possível pela caminhada ombro a ombro junto a grandes amigos e muitos coletivos. Pelo calor vivo em meio ao mármore frio, ao Núcleo de Educação Popular – NEP/SAJU, que já foi GTAC junto e misturado com Assessoria, quase fora NAJEGA, quiçá Núcleo Sem Nome (NSN). Rumo à aliança camponesa e operária. De mãos dadas num grande MUTIRÃO, cultivamos as flores do MANDACARU para VIRAR o MUNDO em festa, trabalho e pão. Por um CARB dos/as trabalhadores/as. Lugar especial para o pé-de-pau e nossa galera. Árvore da resistência que nos rendeu sombra e bons frutos quando nada fazia mais sentido. À amizade que ali pude cultivar com outros tropicais. À doce degustação dos dias na forma de poemas, cores, dizeres, gritos e amores. Paredes e balaustradas coletivas. Pinte (n) o peripatético! A Isabela, pela orientação pedagógica no presente trabalho. Obrigado pela disposição e por ter ajudado a dar corpo às minhas inquietações. Como a Universidade não se restringe a nossa isolada torre de marfim, agradeço ao coletivo LEPEL/FACED/UFBA, em especial à educadora militante Celi Taffarel pelo exemplo e mística revolucionária. Aos meus companheiros e companheiras do Núcleo de Estudos e Práticas em Políticas Agrárias – NEPPA. Pelo desafio histórico que assumimos (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. e construímos juntos nesses cinco anos. Obrigado por me mostrar que novas práticas e valores são possíveis. Agradeço a AATR pela oportunidade de formação crítica dentro do Direito. Um agradecimento especial ao SINTAGRO, na figura de Domingos Rocha, e a CPT de Juazeiro, em nome de Marina Rocha, pelo apoio à realização da pesquisa. Exemplos de militância junto ao povo. Aos trabalhadores e trabalhadoras da fruticultura irrigada do Pólo Juazeiro e Petrolina. À rebeldia necessária. Por fim, agradeço a Joice, pela maravilhosa companhia; pelas longas conversas às vezes levadas horas a fio, e principalmente pelo nosso despertar repleto da preguiça dos gatos. Muito obrigado! (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. “Patrão: Meus senhores, vou lhes apresentar uma gente não sei de que lugar, uma coisa que imita a raça humana: eis aqui o trabalhador da cana. Pois agora eles só querem falar em direitos e leis a registrar, imagine a confusão que dá! Eu explico pra eles a tarde inteira esse tal de registro na carteira atrapalha, é burrice, é besteira. Bóia-Fria: Mas o traquejo da lei e do direito não degrada quem dele se apetece pois enquanto se nutre de respeito é o trabalhador que se enobrece. Além disso quem chega-se à virtude e da lei se aproxima e se convém tá mostrando ao patrão solicitude por querer o que dele advém. Desse modo o registro na carteira será nossa causa verdadeira. Patrão: Mas que raça de gente muquirana me saiu esse trabalhador da cana! ignora que a lei e a justiça é da autoridade submissa e quando jegue se mete a gato mestre vai um pé pr'oeste e outro pro leste. E assim no seu tema predileto o diabo já passa por dileto com esse tal de registro na carteira que atrapalha, é burrice, é besteira. Bóia-Fria: Da justiça e da lei quem se aproxima tá louvando o que vem de lá de cima mas o luxo, o palácio, o desperdício é com Deus que se ajusta cada vício. Sei que a nossa caneta é o machado mas poetas da popularidade (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. com sonetos e versos caprichados já disseram por nós lá na cidade: Que lutar por registro na carteira será nossa causa verdadeira. Patrão: Não me traga cantores de protesto, eta raça de gente que eu detesto, só de ouvir este nome de política eu já fico agastado e com azia, sinto dores, a febre me arrepia tenho a tosse a maleita e a raquítica, pelo campo é o voto, a abertura, já não tem mais pureza a criatura com esse tal de registro na carteira que atrapalha, é burrice, é besteira. Bóia-Fria: Pois pra mim você tá é misturando ter pureza com ser ignorante tá chamando a burrice de elegante a bobeira mental advogando. Se eu estudo é lutando na peleja da maneira de a vida melhorar e com isso não vou abandonar a pureza da alma sertaneja. Desse modo o registro na carteira será nossa causa verdadeira”. Desafio do Bóia-Fria, Tom Zé (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. RESUMO Da colônia ao atual modelo do agronegócio, o desenvolvimento do capitalismo na agricultura nacional teve [tem] na intensa exploração da força de trabalho seu mote de reprodução ampliada. Nesse processo, a intervenção estatal ocupou papel fundamental tanto na regulação das formas de acesso à propriedade da terra como na organização social do trabalho no meio rural. Mesmo com o advento da legislação social trabalhista, a regulação pública encontrou dificuldades em incidir concretamente na vida dos/as trabalhadores rurais. Nesse sentido, a presente pesquisa se propõe a analisar o processo de regulação pública das relações de assalariamento na agricultura brasileira, a partir da confrontação dos postulados protetivos do Direito do Trabalho (bem como de seus instrumentos normativos) com a realidade concreta dos/as assalariados/as da fruticultura irrigada do Pólo Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), a fim de se problematizar a capacidade da legislação social em dar respostas significativas às contradições impostas pela relação capital-trabalho no campo. Palavras-Chaves: Direito do Trabalho; Emprego Rural; Fruticultura; Agronegócio; Precarização do Trabalho (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS TABELA 1: Uso de Tratores no Brasil (1950 – 1985).......................................91 TABELA 2: População Desocupada em Áreas Rurais (1992 – 2009)..............99 TABELA 3: Faixa de renda: Empregados Permanentes e Temporários (2008)...............................................................................................................100 TABELA 4: Rendimento Médio Mensal da Atividade Principal (2008)...........101 TABELA 5: Valor (em R$) do rendimento médio mensal da PEA rural por região e por sexo (2008)..................................................................................101 GRÁFICO 1: Contingente de Pessoas Ocupadas em Atividades Agrícolas (2008) ............................................................................................................102 (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................11 1. TERRA DE NEGÓCIO, TERRA DE TRABALHO..................................15 1.1. A Questão Agrária: decifra-me ou devoro-te.....................................15 1.2. “Terra à vista...” A colonização e as formas de exploração do trabalho rural....................................................................................................17 1.2.1. A colonização do Vale do São Francisco..........................................20 1.3. O Trabalho Cativo..............................................................................23 1.3.1. A Força de Trabalho Indígena...........................................................24 1.3.2. A Força de Trabalho Negra Africana.................................................27 1.4. Crise e Transição do Trabalho Cativo..............................................30 1.4.1. A Transição Nordestina.....................................................................37 1.4.2. A Transição “Sudestina”....................................................................39 1.4.2.1. A Intermediação de mão-de-obra estrangeira e as relações de assalariamento na agricultura brasileira.......................................42 2. “O TRAQUEJO DA LEI E DO DIREITO1”: A REGULAÇÃO PÚBLICA DO TRABALHO RURAL........................................................................46 2.1. A Regulação Jurídica como Categoria Histórica...............................46 2.2. A Legislação Trabalhista Rural no Período Pré-Vargas....................54 2.2.1. Leis de 1830, 1837, 1879: o contrato como expressão do trabalho livre....................................................................................................54 2.3. Gênese do Direito do Trabalho no Brasil...........................................59 2.3.1. A Regulação Social do Trabalho na Era Vargas...............................62 2.4. Princípios Protetivos e os Sujeitos “Protegidos” pela CLT................70 2.5. A Regulação “Social” do Trabalho Rural em Tempos de Modernização....................................................................................79 2.5.1. Sujeitos Protegidos pela Lei n. 5.889/1973.......................................83 1 Trecho da música “Desafio do Bóia-Fria” do compositor baiano Tom Zé. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. 3. FRUTOS DA MODERNIZAÇÃO: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO E EXPLORAÇÃO CONTINUADA DO TRABALHO RURAL – O CASO DA FRUTICULTURA IRRIGADA NO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO...........................................................................................87 3.1. Bases da Modernização Conservadora da Agricultura no Brasil......88 3.1.1. O Agronegócio como Síntese Histórica da Modernização................94 3.2. Modernização da Agricultura e os Impactos nas Relações de Trabalho Assalariado Rural...............................................................97 3.3. Relações de Assalariamento na Região Submédio do São Francisco: exploração da força de trabalho rural na fruticultura irrigada..........103 3.3.1. A Enxurrada Modernizadora: CVSF, SUVALE, CODEVASF e Política de Desenvolvimento da Agricultura Irrigada no Vale do São Francisco.........................................................................................105 3.3.2. Fruticultura Irrigada e Relações de Assalariamento: entre a proteção social e a realidade do trabalho rural...............................................108 3.4. As Condições de Trabalho Pelos/as Próprios/as Trabalhadores/as.............................................................................110 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................122 REFERENCIAS..........................................................................................127 (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 12 INTRODUÇÃO Dificilmente um jovem parado na sessão de frutas de um supermercado qualquer dos países da União Européia chegaria a imaginar que por de trás dos volumosos cachos de bolinhas rosadas e uniformes pudesse existir outra coisa senão a mais pura candura das uvas do Vale do São Francisco. A coisa pronta esconde o processo que a criou. Concentração fundiária, destruição da natureza, altas taxas de informalidade, jornadas exaustivas, intoxicação por agrotóxicos, baixos salários. A lista de violações é longa e não é necessário cruzar o Atlântico para se verificar o grau de desconhecimento acerca da dura realidade do trabalho rural não só na região Submédio São Franciscana, mas nos diversos ramos da “moderna” agricultura brasileira. O padrão intenso de exploração da mão-de-obra rural não é exclusividade do atual modelo do agronegócio. Encontra suas bases no próprio desenvolvimento do capitalismo na agricultura nacional, a partir da articulação de uma diversidade de fatores como as formas históricas de apropriação da propriedade da terra, de organização social do trabalho e principalmente na intervenção exercida pelo Estado na mediação desse processo. A regulamentação pública também não é fato recente na história do trabalho rural. Desde o período colonial, a reprodução das relações trabalhistas no setor agropecuário contou com a intensa normatização estatal. Entretanto, o que se pode verificar ao longo da história foi o exercício estratégico da atividade jurídico-legislativa com vistas ao atendimento dos interesses do capital em expansão, muito mais do que garantir melhores condições de trabalho para o homem e a mulher do campo. O movimento crescente de industrialização das atividades agrícolas, vivenciado de maneira mais intensa a partir da década de 1970, repercutiu diretamente nas formas de inserção da mão-de-obra no mercado de trabalho rural, trazendo a reboque novos desafios à ordem jurídico-trabalhista. É justamente nesse sentido que a presente pesquisa se propõe a analisar o processo de regulação pública das relações de assalariamento na agricultura brasileira, a partir da confrontação dos postulados protetivos do Direito do Trabalho (bem como de seus instrumentos normativos) com a (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 12 realidade concreta dos/as trabalhadores/as rurais da fruticultura irrigada do Pólo Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), a fim de se problematizar a capacidade da legislação social em dar respostas significativas às contradições impostas pela relação capital-trabalho no campo. A monografia tem no materialismo histórico-dialético sua vertente metodológica, pois se coloca a compreender as interseções entre o movimento de regularização jurídica das relações trabalhistas e o fenômeno da exploração continuada do trabalho assalariado no campo no interior do processo histórico, já que essa empreitada não se dá de maneira deslocada dos movimentos gerais da história. O método tem na incessante dialética entre o passado e o presente sua dinâmica fundamental, enriquecendo-se com o desenvolvimento histórico das sociedades e atualizando-se “à luz das experiências práticas das lutas populares e das estruturas e processos que têm lugar no contexto atual do capitalismo contemporâneo” (BORON, et al, 2006: 34). A perspectiva adotada é a interdisciplinar, já que os debates em torno dos direitos sociais trabalhistas, sua incidência concreta no cotidiano dos/as trabalhadores/as e a situação da mão-de-obra rural no atual estágio da crise estrutural de acumulação capitalista não se inserem somente como variáveis apreendidas pela ordem jurídico-legalista. Desta forma, o fenômeno em destaque não pode ser compreendido isoladamente, hermético às implicações do real, já que são processos em constante transformação, dotados de relações contraditórias e complementares, influenciados por uma dada conjuntura política, social e econômica. Assim, estrutura-se a pesquisa em três partes fundamentais. A primeira se dedica à realização de um panorama histórico tanto do processo de formação da estrutura fundiária como da exploração do trabalho rural ao longo do desenvolvimento do capitalismo no meio rural brasileiro, pontuando as formas de inserção da mão-de-obra rural (escrava e “livre”) no processo produtivo agrícola, com o intuito de evidenciar a práxis construída e seus possíveis desdobramentos na realidade atual do trabalho assalariado no campo. Já o segundo momento cuidará da gênese do processo de construção da legislação social no país, abordando elementos fundamentais à compreensão de como se deu a inserção dos trabalhadores rurais nesse novo (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 13 projeto de proteção social trabalhista, principalmente no que diz respeito aos conteúdos e à abrangência dos instrumentos normativos e principiológicos à realidade do trabalhador rurícola. Será dada prioridade à contextualização do desenvolvimento do Direito do Trabalho no Brasil, em sua perspectiva histórica, política, econômica e social, caracterizando seus institutos protetivos basilares [e sua evolução] a partir da análise do movimento real e da correlação de forças entre capital e trabalho na sociedade brasileira. Serão analisadas ainda as especificidades da regulação do trabalho rural, a partir do estudo dos seus instrumentos jurídicos, problematizando sua compatibilidade com as orientações gerais do ordenamento trabalhista, com destaque à Lei n. 5889/73. Por fim, a monografia se dedicará ao estudo da situação jurídicotrabalhista dos assalariados (diaristas, safristas) da fruticultura irrigada na região Submédio do Vale do São Francisco, a partir da análise dos mecanismos de compra e venda e de inserção da força de trabalho rural na estrutura produtiva do agronegócio, a fim de se verificar a dimensão da regulação pública e a incidência/observância dos direitos e garantias sociais na relação estabelecidas entre empregadores e assalariados rurais. Para tanto, a pesquisa cuidará de analisar o processo de transformação das relações produtivas vivenciados na agricultura a nível nacional e regional, bem como as condições concretas em que se dão a realização do trabalho do assalariado. Do ponto de vista da abordagem, a pesquisa se apresenta num viés qualitativo, na medida em que a verificação da relação dinâmica entre o mundo real e os sujeitos dessa realidade é seu principal objetivo. Optou-se pela realização de entrevistas (viabilizadas pela imensurável contribuição do SINTAGRO2 a quem dedico os maiores votos de luta e esperança) para melhor apresentar os fenômenos e indicadores da situação dos/as trabalhadores/as na região em destaque. A invisibilidade dos conflitos existentes no interior das relações de emprego no meio rural muitas vezes encontra resposta na fragilidade e 2 As entrevistas foram viabilizadas, primeiramente pela disponibilidade e colaboração dos/as trabalhadores que aceitaram a relatar o cotidiano dos seus processos de trabalho na fruticultura irrigada da região; e segundo, pela imensurável contribuição do SINTAGRO Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas Agrícolas, Agroindustriais e Agropecuárias dos Municípios de Juazeiro, Curaçá, Casa Nova Sobradinho e Sento Sé – na figura de Domingos Rocha, militante de base e presidente da entidade de representação de classe. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 14 dependência econômica dessa força de trabalho frente às grandes empresas agrícolas, motivo pelo qual o sigilo foi uma das condições para realização dos depoimentos. Sem delongas, está dado o desafio. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 15 1. TERRA DE NEGÓCIO, TERRA DE TRABALHO. “Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho”. (José de Souza Martins) O presente capítulo tem por intuito fundamental discutir o processo de exploração da força de trabalho a partir da análise histórica da formação da estrutura fundiária brasileira. Tomar-se-á como ponto de partida, a contextualização do desenvolvimento do capitalismo na agricultura nacional através da percepção crítica das mediações estabelecidas entre capital, terra, trabalho humano e Estado. Para tanto, será dada prioridade: (i) à construção de um panorama da estrutura agrária no Brasil ao longo da história; (ii) à caracterização das formas históricas de inserção e exploração da força de trabalho na unidade produtiva latifundiária; (iii) à participação do Estado na manutenção e [re] produção de um padrão precário de relação de trabalho no campo. 1.1. A QUESTÃO AGRÁRIA: decifra-me ou devoro-te! A história do/a trabalhador/a rural é a história da luta pela terra. Assim, a realidade agrária brasileira, em toda sua complexidade, pode ser apreendida através da ênfase dada às inúmeras variáveis que a compõem. Seja pela relação que a concentração fundiária tem no desenvolvimento das forças produtivas e de sua repercussão nas formas de dominação política e econômica; pelas formas sociais de apropriação da terra e da ocupação territorial humana; ou mesmo pela evolução da luta política e da luta de classes na disputa pelo domínio da terra (STEDILE, 2005: 18), a “questão agrária” assume uma dimensão dialética e multifacetária. O presente trabalho se propõe iniciar a análise da espoliação continuada da mão-de-obra assalariada rural a partir do resgate histórico tanto das formas de organização das relações sociais produtivas no campo, como dos mecanismos de acesso, utilização e exploração das terras na sociedade brasileira. A propriedade privada rural deve ser apreendida enquanto construção social, que no desenvolvimento intestino do modo de produção capitalista no Brasil, configurou-se num complexo envolvendo “trocas, mediações, contradições, (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 16 articulações, movimentos, transformação (MARTINS, 1981: 169) e seu controle concentrado numa determinada classe potencializa-se a opressão políticoeconômica desta sobre os demais setores do meio social. O modo de produção capitalista possui como característica básica a subordinação do trabalho humano ao capital, tendo nessa relação dialética a base da sua dinâmica. Em um dos lados dessa relação têm-se a figura do capitalista que, detentor da propriedade privada dos meios de produção, compra a força de trabalho necessária à expansão do capital, e do outro, o trabalhador materialmente expropriado vende seu potencial de trabalho3 como condição de sobrevivência. Esse movimento se realiza historicamente, portanto não se desenvolve de forma apartada da realidade, manifestando suas contradições a partir das especificidades de conformação histórica, ambiental e cultural de cada sociedade, tendo na intensificação da expropriação do trabalho “livre” seu mote de reprodução ampliada. O capital não é uma entidade homogênea, estrutura-se a partir de uma multiplicidade de interesses e antagonismos, “sendo o ‘capital social total’ a categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas as suas contradições” (MÉSZÁROS, 2007:66). Assim como dialeticamente, a totalidade do trabalho também não pode ser homogênea, na medida em que aglutina uma diversidade de trabalhadores e pautas históricas. Cumpre destacar que o capitalismo tem por característica sua tendência expansionista, direcionandose à apropriação progressiva de todos os setores de produção tanto na cidade como no campo. No meio rural, o processo de expansão do modo de produção capitalista materializa-se, dentre outras formas, na crescente dissociação dos trabalhadores dos meios necessários à produção de sua subsistência (sejam estes posseiros ou pequenos proprietários). Apropria-se a terra como forma de liberar a mão-de-obra. A maior síntese dessa relação reside justamente na transformação continuada do homem e da mulher do campo em “trabalhadores livres, isto é, libertos de toda propriedade que não seja a propriedade da sua força de trabalho, da sua capacidade de trabalhar” (Idem, 152). Não são 3 Segundo Marx, “a utilização da força de trabalho é o próprio trabalho. O comprador da força de trabalho a consome ao fazer trabalhar o vendedor dela. O último torna-se, desse modo, actu [de fato], força de trabalho realmente ativa, o que antes era potentia [em potencial]” (MARX, 1983:149) (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 17 proprietários de nada, nem dos instrumentos necessários à realização do seu trabalho; são livres para colocar as horas do seu dia à disposição das vontades de um terceiro. A força de trabalho é a única mercadoria capaz de extrair maisvalor, criando a riqueza, cuja medida se dá pelas horas de trabalho socialmente necessárias à produção de uma dada mercadoria. Desta maneira, o salário aparece como contraprestação à venda da força de trabalho, cumprindo um papel de reposição do trabalhador no cenário produtivo, sendo tal troca processada aparentemente entre “iguais”. Contudo, ao final da relação de subsunção do trabalho ao capital, o que se verifica são resultados distintos para as partes envolvidas. De forma bastante simplificada, enquanto o trabalhador, após disponibilizar sua força de trabalho, termina com o salário que malmente o ajuda a reproduzir-se como era no dia anterior; o empregador capitalista, com a apropriação privada dos meios de produção e dos produtos do trabalho alheio, ao raiar o novo dia, passa a deter mais riqueza do que se tinha anteriormente. “Isso é possível por que a desigualdade econômica entre o capitalista e o trabalhador só pode ocorrer com base na igualdade jurídica sob a qual eles se defrontam” (Idem, 154-5). Em 2004, 17 813 802 milhões de pessoas tinham na agricultura sua atividade econômica principal, sendo desse total 4 907 998 milhões de empregados (27,6% do total de ocupados)4. Nos últimos anos essa relação tem crescido vertiginosamente (ampliação do assalariamento via contratos temporários) e como ela o avanço da exploração. Entretanto, as raízes da expropriação do trabalho assalariado rural encontram-se articuladas com o desenvolvimento das relações sociais produtivas na agricultura, cujas bases históricas se deram nos movimentos privados e institucionais de controle sobre a terra e a mão-de-obra. Eis o primeiro desafio. 1.2. “TERRA À VISTA”: A COLONIZAÇÃO E AS FORMAS DE EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL “A terra queimará e haverá grandes círculos brancos no céu. A amargura surgirá e a abundância desaparecerá. A terra queimará. A época mergulhará em grandes trabalhos. De qualquer modo, isso será visto. Será tempo de dor, das lágrimas e miséria. É o que está para vir” (Profecia Maia sobre a chegada dos europeus às Américas). 4 Dados PNAD 2005. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 18 No caso brasileiro, a constituição das estruturas de dominação do trabalho e da terra remonta ao período da colonização portuguesa, onde “a organização da produção e apropriação dos bens da natureza aqui existentes estiveram sob a égide das leis do capitalismo mercantil” (STEDILE, 2005: 22). A maioria significativa das atividades produtivas e/ou extrativistas desenvolvidas estavam direcionadas à expansão e dinamização do capital metropolitano europeu através do pacto colonial. As condicionantes históricas do processo colonialista brasileiro favoreceram o predomínio da grande propriedade rural como unidade central de produção da riqueza e organização da sociedade. Para Prado Junior, “o caráter mais profundo da colonização reside na forma pela qual se distribui a terra”. (PRADO JR, 1980: 16) O Direito vigorante no Brasil durante o período colonial se encontrava fundamentado basicamente nas Ordenações Reais Lusitanas (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas). O modelo jurídico colonial foi fortemente caracterizado pelos princípios e normas já consolidados em nas terras portuguesas, refletindo nitidamente a estrutura de dominação metropolitana. A constituição desse modelo estatal garantiu a manutenção do poder político nas mãos das elites colonialistas, na medida em que a atividade institucional (no plano executivo e legislativo) estava orientada para a ampliação das atividades privadas, e conseqüentemente, dos lucros repassados monopolicamente à Coroa via pacto colonial. Assim, regula-se a terra e o trabalho como forma de maximizar os interesses impostos pelo regime da acumulação primitiva. Experiência adotada em larga escala nas colônias do Açores e da Madeira, o regime das capitanias hereditárias cumpriu função dúplice para a Coroa lusitana, pois, a política de colonização do extenso litoral, ao mesmo tempo em que representou mecanismo de preservação do domínio português sobre fração do “novo mundo” (combatendo constantemente as irrupções das demais nações européias), desonerou a metrópole dos significativos gastos da ocupação efetiva do território, pois à iniciativa privada foi dado o convite para a execução da empreitada. Nessa linha, pontua COUTO (1998: 219): Por carta de 28 de setembro de 1532, o rei comunicou ao encarregado da ‘Governança da Terra do Brasil’ que decidira demarcar o litoral sul-americano compreendido entre Pernambuco e o rio da Prata em capitanias, cada uma de 50 léguas de costa, com o objetivo de ocupar toda aquela orla marítima, ficando os respectivos (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 19 titulares obrigados de armar os navios, a proceder ao recrutamento da gente e a arcar com as restantes despesas. Os beneficiários faziam parte de um seleto grupo, escolhidos em função da combinação de uma série de requisitos, passando por gargalos como o aspecto pessoal (convivência com a Coroa), o político (identidade de projeto), o religioso (tinham de seguir a Ordem de Cristo) e de sua capacidade econômica para empreender e defender as terras concedidas (FERRARO JR, 2008: 22). Em função da ineficácia do sistema de capitanias, muito pela onerosidade elevada do empreendimento, o processo de colonização passou a contar com uma nova forma jurídica de regulação do uso territorial. O regime das sesmarias, integrante do corpo de leis das Ordenações Filipinas de 11 de janeiro de 1603, tornou-se arcabouço jurídico para a consolidação da colonização das terras de além-mar (MOTTA, 2009: 129). Uma das características fundamentais do instituto das sesmarias era a reversibilidade das glebas à Coroa portuguesa no caso de improdutividade. Assim, entre os sujeitos se firma uma relação jurídica cuja obrigação principal era o devido aproveitamento das áreas por parte do beneficiário dentro de certo prazo. Como sanção ao descumprimento, previa-se multa pecuniária podendo chegar até a devolução da área concedida para exploração (PRADO JR, 1980: 16). Para FAORO (1975: 123), o colono (beneficiário de terras) constituía-se em agente de uma “imensa obra semipública, pública no desígnio e particular na execução”. Quanto a sua aplicação concreta, se pouco se fazia valer no seu cotidiano, em caso de disputas políticas, desavenças pessoais, ou por simples vontade real, ela mostrava toda sua força cogente. A Coroa ignorava a maior parte das terras mantidas sob seu domínio, conhecidas ou desconhecidas. Por outro lado, abdicava de qualquer controle sobre elas, na medida em que cedia a súditos de posses, em troca de contribuições anuais, imensas áreas e todo o poder fiscal, militar, judiciário e político exigida para administrá-las (FERRARO JR, 21). Em termos jurídicos, o regime de sesmarias dividia a propriedade em direta e útil, onde a primeira ficava com o proprietário primitivo, no caso a Coroa Portuguesa concedente das léguas, e a última com aquele que deveria fazê-la produzir (BALDEZ apud MOLINA et al,, 2002: 98). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 20 A imensidão foi o parâmetro para as concessões. Áreas de 10 a 100 léguas foram distribuídas por toda a colônia, “no Nordeste foram freqüentes as concessões de terras, mais largas do que Estados de nossos dias, como as da Casa da Torre, dos Guedes de Brito, de Certão, etc. (FAORO, 1975: 124). 1.2.1. A COLONIZAÇÃO DO VALE DO SÃO FRANCISCO A colonização do Vale do São Francisco remonta aos idos de 1553, quando o então monarca D. João III ordena o Governador Tomé de Souza a explorar as terras banhadas pelo rio. Apesar da base econômica colonial ter sido a grande produção açucareira, coube à pecuária extensiva cuidar da interiorização das ocupações no Nordeste brasileiro. Enquanto a zona litorânea era concentradora de lavouras de cana, escravos e engenhos, sendo sua sociedade acentuadamente senhorial e hierarquizada, “a sociedade pastoril tinha linhas de diferenciação social um pouco diluídas caracterizada basicamente pelo trabalho livre do vaqueiro, ocupando pouca gente” (MARTINS, 1981: 50). No plano da agricultura, ao lado da produção do açúcar se tinha ainda o cultivo do algodão, cultura agroexportadora mais “democrática” do que a canavieira. Permitia não só aos grandes proprietários o seu plantio, mas também aos pequenos produtores e posseiros da região, viabilizada em função dos custos reduzidos de seu beneficiamento quando comparados com a unidade produtiva do engenho com todos os seus encargos (ANDRADE, 1973: 151). A criação de gado ao longo do processo de colonização sertaneja sempre se desenvolveu subsidiariamente à lavoura da cana-de-açúcar. No seu início, a pecuária se deu como resposta à rígida e onerosa hierarquia social da sociedade açucareira, fixando estruturas de abastecimento de alimentos, couro e transportes à grande propriedade senhorial (ANDRADE, 1973). Em 1701, a Coroa portuguesa decreta a proibição da criação de gado numa faixa de 10 léguas da costa, dando calço ao processo de interiorização pecuária (FERRARO JR, 2008: 29). Foi no Vale do São Francisco que as maiores casas senhoriais de toda a colônia foram desenvolvidas, com as sesmarias da Casa da Torre (pertencente a Garcia D’Ávila) e da Casa da Ponte (pertencente a Antonio Guedes de Brito). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 21 O desenvolvimento específico dessas propriedades de currais configura-se como caso representativo da história fundiária nacional, externalizando todo seu caráter elitista e concentrador. Os avanços na ocupação dos territórios se deram a base de grandes investidas militares, assassínio indígena e criação de enormes “fazendas-currais” (concessões públicas voltadas não para produção agrícola, mas para áreas de livre pasto para o gado), empregando pouquíssimos trabalhadores. “Construíram assim, os maiores latifúndios da história brasileira, em 1710, [os Ávila] tornaram-se senhores de 340 léguas de extensão territorial, às margens do Rio São Francisco e de alguns afluentes (ANDRARDE, 1973: 180). Entretanto, ao contrario da historiografia oficial das elites, não foi incumbência destes “grandes homens” a ocupação do sertão nordestino. Os movimentos de interiorização sertaneja foram tocados pelos vaqueiros, muitos ex-escravos, posseiros da região, cuidando da criação do gado, sofrendo os ataques defensivos dos indígenas. As populações originárias que dominavam a caatinga sertaneja não viam com bons olhos a vinda do homem branco, sendo a guerra uma constante nesse processo. A ocupação espacial se deu forma bastante singular, tendo em vista a diferenciação dos aspectos produtivos desenvolvidos na região. Os grandes sesmeiros mantinham seus currais nas áreas mais férteis, abundantes em recursos hídricos, cujo comando comumente estava nas mãos de algum escravo de confiança ou agregado mais próximo, cuja remuneração se dava, não em pecúnia, mas no regime da quarteação, onde a cada quatro crias vingadas, uma lhe pertencia (Ibidem). A este ainda era dado o direito de produzir alimentos para subsistência numa pequena gleba. Do outro lado se tinha os chamados foreiros, indivíduos que reconhecendo a propriedade do grande senhor, submetiam-se a um regime similar ao da enfiteuse, formando os “sítios” e obrigando-se ao pagamento de um foro anual. A agricultura se desenvolveu em pequenas áreas, preocupadas essencialmente com o abastecimento alimentar dos “currais”, cabendo ao vaqueiro e sua família garantir o trabalho na terra. Com a crise da produção do açúcar, principal mercado consumidor de carne e couro do sertão nordestino, os grandes currais começaram a entrar em processo de decadência e suas terras aos poucos foram sendo ocupadas por posseiros e pelos trabalhadores (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 22 das próprias fazendas (escravos, libertos e livres). Gradualmente, o gado foi sendo substituído pelos caprinos, por serem animais de pequeno porte, de manejo mais simples e barato, mais resistentes ao clima do semi-árido. Assim, constituiu-se uma forma “singular de ocupação, produção e gestão da vida social na Caatinga” (AATR, 2008: 19). A história do sertão é também a história das comunidades de fundo e feche de pasto5. Tais grupos sociais constituem um sistema de ocupação coletiva de terras que dentre os diversos elementos específicos de suas trajetórias históricas, trazem como traços característicos6: (i) forte relação de compadrio; (ii) herança da cultura indígena; (iii) presente a tradição africana; (iv) preservação da memória dos antepassados; (v) livre utilização das áreas pelos membros da comunidade; (vi) relação harmoniosa com o meio ambiente. Aspectos como auto-definição coletiva, forma de organização social baseada na solidariedade, construção tradicional de práticas agro-silvo-pastoris, delinearam “um jeito próprio de criar, viver e fazer práticas coletivas no sertão” (NOVA, 2007). A resistência na luta pela terra também é uma característica marcante dessas comunidades sertanejas que ainda hoje lutam pelo direito de reproduzir seus modos de vida nos territórios tradicionalmente ocupados. As formas históricas de regulação jurídica do acesso a terra guardam relação direta com as formas também históricas de exploração do trabalho rural. O fundamental neste processo é compreender o movimento de segregação dos trabalhadores rurais do meio de produção básico à sua subsistência, que é a terra. Essa paulatina dissociação amplia a conversão dos antigos trabalhadores autônomos em assalariados rurais dos grandes empreendimentos agrícolas, e nesse movimento, o Estado cumpre papel protagonista contribuir para a reprodução dessas relações precárias de 5 “Existem cerca de 300 de associações de fundos de pasto na Bahia, totalizando 20 mil famílias, e mais de 100 mil sertanejos. Até o momento foram regularizadas cerca de 60 áreas. As comunidades de fundo de pasto integram um conjunto de forças sociais e políticas que visam instituir um novo paradigma e olhar sobre o contexto regional, substituindo a noção de "combate às secas" pela "convivência com o semi-árido” – IN: http://www.pambazuka.org/pt/category/comment/52758 acessado às 21h45min’. 6 Tais características foram definidas pelo conjunto de trabalhadores/as organizados/as na Articulação Estadual de Fundo de Pasto da Bahia constante na seguinte publicação: http://biblioteca.inga.ba.gov.br/phl82/img/arquivo/34_mma_02_fundodepasto.pdf (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 23 trabalho, através das políticas institucionais de fomento desse padrão produtivo, mediada pelo seu exercício jurídico. 1.3. O TRABALHO CATIVO A economia colonial estava estruturada a partir dos desígnios da acumulação primitiva, com base na grande lavoura monocultora, direcionada ao abastecimento do mercado internacional em expansão, alicerçada pela exploração intensiva de significativo contingente de mão-de-obra e enclausurada pelo pacto metrópole-colônia. A pequena propriedade rural não encontrou suporte para seu desenvolvimento integrado, restando-lhe papel secundário na reprodução da ordem social vigente. A economia colonial movimentava-se em torno da agricultura de exportação e tinha no açúcar seu produto mais lucrativo. O processo de implantação da grande propriedade açucareira remonta aos idos de 1530-40, onde extensões infindáveis de terra foram destinadas ao cultivo da cana-deaçúcar, sendo a sociedade do período colonial, “reflexo fiel da sua base material” (PRADO JR, 1980: 23-5). Baseado em um regime de exploração permanente, a unidade produtiva colonial encontrava-se alicerçada sobre o pilar do trabalho escravo, já que não se mostrava possível o usufruto de um contingente consideravelmente vantajoso (para os interesses econômicos metropolitanos) de trabalhadores livres, disponíveis para vender sua força de trabalho a preços miseráveis. Isso porque, mesmo marginalmente, estes, em última hipótese, poderiam promover sua subsistência através da posse da terra (ainda livre até a lei de 1850) ou da execução de serviços acessórios ao latifúndio monocultor. Além de cativo, o trabalho deveria ser compulsório, devido às baixas taxas de produtividade e às margens estreitas de lucro, fatores que obrigavam a empresa colonial a subjugar permanente e disciplinadamente um grande quantitativo trabalhadores expropriados. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! de 24 1.3.1. A FORÇA DE TRABALHO INDÍGENA Inicialmente, a economia açucareira se desenvolveu através do subjugo da força de trabalho das populações que historicamente já ocupavam o território sul-americano. A inserção da mão-de-obra indígena nas estruturas econômicas colonialistas, segundo SCHWARTZ (1988: 40-72), se deu, dentre outras formas específicas, através de três estratégias mais expressivas do ponto de vista da espoliação do trabalho, articuladas por setores diferentes da sociedade da época, segundo seus interesses. (1) Os senhores titulares das concessões de exploração utilizavam-se da coerção direta, escravizando as populações originárias em função das necessidades de reprodução ampliada da produção açucareira, já caracterizada pelo uso intenso do trabalho humano cativo. (2) Já as ordens religiosas, onde se destaca a atuação dos jesuítas, cuidaram da formação de pequenas unidades produtivas campesinas indígenas, orientadas pela aculturação das comunidades em função do padrão cristão europeu de “civilização”. E em menor escala, (3) a integração através do trabalho assalariado, a partir de setores médios, em atividades complementares à grande lavoura. O que todas tinham em comum: o caráter físico e culturalmente depredatório da exploração do trabalho, embora levadas a cabo de maneiras distintas. A escravidão dos indígenas durou pouco em termos legais (aproximadamente de 1500 a 1570); contudo, [a grande propriedade açucareira] lançou mão de várias formas de coerção, bem depois dessa época, para se obter o trabalho indígena (Idem, 40). Mesmo após a edição da legislação que restringiu a escravidão em 1570, a exploração da mão-de-obra originária continuou a ser utilizada. A produção açucareira era o sustentáculo da acumulação da metrópole lusitana e a grande lavoura monocultora sua principal unidade produtiva (empreendimento privado dos colonos portugueses). O aumento dos valores recebidos como contraprestação à concessão das sesmarias guardava relação diretamente proporcional com o aumento da produtividade agrícola. Os pontos de interseção entre concentração fundiária, ampliação da mão-de-obra e intensificação da exploração do trabalho se tornam cada vez mais imbricados. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 25 O ritmo de trabalho no campo era tão intenso que repercutiu na desestruturação social de vários grupos indígenas: As novas relações de incorporação compulsória do trabalho íncola [indígena], além de implicarem na desestruturação e inviabilização da sobrevivência do sistema organizacional dos grupos indígenas, também violava a divisão do trabalho tradicional das sociedades Tupi. (...). Outras razões tornavam a nova forma de trabalho para o grupo. Uma delas era a ruptura das suas formas de organização do sistema produtivo e do consumo, que não se baseava nos moldes portugueses, mas numa concepção comunitária, na qual a preocupação com a formulação da solidariedade e das alianças era o elemento ordenador; e inviabilizar a reprodução social do grupo por não dispor do tempo necessária para as práticas tradicionais (PARAÍSO, 2005: 6) Todo esse processo não se deu livre de tensionamentos. Revoltas, fugas, sabotagens, emboscadas, queimadas. Muitas foram as formas de resistência indígena, obrigando a unidade produtiva a assumir também um caráter militar. A guerra justa7 (similar ao instituto da “legítima defesa”, só que usada para dizimar e aprisionar povos) garantia a reposição legal da mão-deobra escrava mesmo na vigência da legislação restritiva de 1570, pois, autorizava o cativeiro dos indígenas rebeldes mobilizados contra o processo de colonização. Brecha estratégica, pois, com um estado belicoso permanente, fruto das contradições impostas pelo regime aos povos originários, a exceção já nascia regra. Em relação ao trabalho assalariado indígena, este era aplicado em atividades específicas na indústria do açúcar, variando a remuneração conforme a especialidade da mão-de-obra. Em 1596, a metrópole portuguesa passa a legislar sobre o assalariamento da força de trabalho originária, estabelecendo taxativamente que os trabalhadores indígenas não poderiam passar mais de dois meses seguidos de prestação de serviços ao engenho. Sem estruturas efetivas de cumprimento da lei, a norma jurídica vira letra morta, ficando o indígena a mercê dos desígnios particulares da lavoura e sua dinâmica destrutiva. A legislação proibia o uso desses trabalhadores a não ser como assalariados e assim deveriam ser tratados. Todavia, o padrão de 7 Autorização do aprisionamento indígena nos casos de guerra contra os povos locais. Sobre o tema: (PARAÍSO, 2005: 1-21). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 26 exploração do trabalho era bastante precário em comparação ao uso da força de trabalho branca ou negra. No engenho de Sergipe, um nativo [indígena] carpinteiro recebia 20% do salário pago aos brancos pela mesma tarefa. Durante o século XVII, os trabalhadores indígenas receberam apenas $020 por dia, e os artesãos especializados, $030. Na década de 1630, a câmara municipal de Salvador pagou aos trabalhadores nativos um salário diário de $030, (...). Os escravos negros em contraste podiam ganhar em média $240 réis por dia (SCHWARTZ, 1988: 70). O uso da mão-de-obra indígena cativa esteve presente no processo de gênese da economia colonial e seu sistema de relações de trabalho não pode ser compreendido como uma fase prófuga do período de acumulação primitiva do capital no Brasil. As formas de regulação e de inserção da força de trabalho dos/as índios/as contribuíram para a delimitação dos aspectos sociais e raciais que caracterizariam a sociedade colonial e marcariam profundamente a história nacional, principalmente no que diz respeito à relação do Estado com os povos primeiros8. O fato da força de trabalho negra africana ter assumido dimensão preponderante na reprodução do capitalismo mercantil no interior da colônia, não representou obstáculo à contínua exploração dos indígenas ao longo do desenvolvimento das relações sociais de produção no campo. 8 Predominou durante muito tempo uma visão eurocêntrica sobre a formação social das comunidades tradicionais, sendo estas consideradas resquício de um passado remoto, reduzidas ao rótulo pseudo-científico de primitivas, cristalizadas no tempo, prontas a serem conduzidas ao caminho da civilidade, por meio da tutela do Estado. O Código Civil de 1916 considerava como relativamente incapazes os índios que ainda viviam em seus territórios tradicionais e mantinham suas culturas e modos de vida, intitulando-os de silvícolas (moradores das selvas). Fruto de uma série de políticas institucionais de “integração” (leia-se, aculturação) desenvolvidas desde o início do século XX, com a criação do SPI – Serviço de Proteção ao Índio (1910), em 1973 entra em vigência o Estatuto do Índio (Lei n. 6001/73), mesmo a norma elencando como uma de suas prioridades a garantia de preservação das culturas indígenas, ainda se verifica a política integracionista com vistas à segurança e ao desenvolvimento nacional. Ver (AATR, 2008, p. 10-12). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 27 1.3.2. A FORÇA DE TRABALHO NEGRA AFRICANA. “[...] gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de tréguas, nem de descanso: quem vir em fim toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno (Pe. Antonio Vieira - 1633) A transição do uso da força de trabalho indígena para a negra africana se deu num processo lento e gradual, encontrando-se intimamente ligada à ampliação e complexificação das relações sociais de produção na economia colonial (acelerada expansão em função do crescimento do mercado europeu e dos elevados preços internacionais do açúcar). A substituição paulatina da mão-de-obra não pode ser compreendida pelas teses [racistas] da predisposição natural dos/as negros/as ao cativeiro, nem pela “ociosidade” das populações originárias, guardando relação com um leque mais amplo de elementos sociais, políticos, econômicos e culturais. KOWARICK (1994) pontua que enquanto o aprisionamento da força de trabalho indígena mostrava-se como problema exclusivo a ser resolvido internamente pela Coroa portuguesa (altos custos com as guerras justas), o tráfico de africanos/as surgia como singular instrumento de acumulação primitiva mercantilista, na medida em que proporcionava a extração de um duplo excedente de capital via comercialização monopolizada tanto da mão-deobra como da produção agrícola gerada por esta9. A escravidão dos povos africanos já se encontrava legislada num complexo de normas (codificadas, extravagantes e gerais do reino) antes da colonização das terras brasileiras, sendo aqui introduzida como coisa lícita, onde o “comércio de escravos foi natural e suavemente estabelecido para a colônia, e até protegido e promovido pelo Governo” (MALHEIRO, 1866: 24). 9 Boa parte da mão-de-obra escrava provinha da parte ocidental do continente africano, de culturas que já dominavam o trabalho com o ferro, com pastoreio de gado e tinham familiaridade com a agricultura em longo prazo. Todos esses aspectos tornavam a apropriação da força de trabalho africana mais estratégica na reprodução do capital açucareiro Segundo SCHWARTZ (1988: 72), “o preço médio de um africano arrolado com ocupações em 1572 era de 25 mil-réis enquanto o de nativos com a mesma habilidades atingia apenas 9 mil-réis”. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 28 Assim, as políticas institucionais direcionadas ao trabalho agrícola tinham por objetivo maior resguardar O direito do senhor proprietário sobre o homem escravizado, a lei garantia a imposição da vontade, o arbítrio do senhor sobre o escravo. A barateza e estabilidade forçada do trabalhador agrícola sob a garantia da lei, sua obediência à rigorosa disciplina e submissão absoluta ao domínio e mando do proprietário (ANÄLISE apud KIRDEIKAS, 2003: 3). O entendimento das condições e formas de trabalho travadas entre senhores e escravos na grande propriedade açucareira é fundamental para se explicar a natureza das relações sociais estabelecidas nessa sociedade. A intensa disciplina foi marca característica das relações escravocratas, onde a força física e as punições faziam parte da jornada. Entretanto, os senhores tinham de lidar com uma contradição: ao passo que o disciplinamento rigoroso se mostrava fundamental para garantir a produtividade, seus excessos poderiam representar-lhes prejuízos devido ao alto custo de aquisição da mãode-obra. Devido à severidade do tratamento no interior das relações de trabalho, com todos seus castigos e abusos físicos, juntamente com a intensificação da resistência dos escravos (aumento das revoltas, dos boicotes produtivos em função das condições de trabalho) e da mobilização da Igreja, a Coroa promulga duas leis dando a qualquer um, inclusive aos próprios escravos, o direito de denunciar os abusos às autoridades civis ou eclesiásticas como forma de garantir o mínimo de proteção aos trabalhadores (SCHWARTZ, 1988: 123). Péssimas condições nutritivas, de alojamento, de vestimenta, a maioria dos/as africanos/as passava boa parte do dia labutando nos campos de canade-açúcar, quando não se faziam jornadas noturnas. Ao analisar os processos de trabalho nos engenhos da Bahia, o historiador detalha que se exigia de cada trabalhador cativo sete mãos de cana por dia de lida. “Cada mão consistia em cinco dedos, cada dedo continha dez feixes e cada feixe doze canas. Portanto a cota diária era de 7 mãos x 5 dedos x 10 feixes x 12 canas ou seja 4200 canas o total” apontava o historiador (Idem, 129). O canavial e o interior da manufatura açucareira representavam os trabalhos regulares que ocupavam a maior parte da jornada da força de (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 29 trabalho africana, afora todos os tipos de serviços eventuais orientados pelas necessidades e desejos dos senhores de engenho a completar a jornada dos trabalhadores. Os aparatos de controle da produtividade e da disciplina dentro do canavial se davam através do terror premeditado exercido pela figura do gerente-feitor-capataz (incentivo negativo à produção). Entretanto, essa vigilância apesar de intensa não obstava a resistência do trabalhador escravizado dentro do processo de produção (principalmente por meio dos boicotes10), impondo à grande lavoura latifundiária sempre um padrão baixo de produtividade. Sem falar nos métodos precários de cultivo, na destruição da biodiversidade, no empobrecimento do solo, na redução das áreas de subsistência, fatores que contribuíam para a manutenção da taxa média de produção em níveis rasteiros. O ritmo intenso de trabalho também advinha da alta quantia investida para se ter acesso à mão-de-obra. Assim, como o senhor de engenho aplicava um alto custo na compra da força de trabalho, o retorno do seu investimento somente viria ao longo da vida produtiva do escravo. A imposição de uma rotina extenuante de trabalho surgia como forma de se tentar resgatar o investido o mais rápido e extrair o máximo de excedente possível. A rentabilidade da economia colônia encontra-se vinculada ao grau de exploração do trabalho. O envelhecimento precoce da mão-de-obra ocasionado pela intensa exploração da força de trabalho era um problema enfrentado pelos senhores latifundiários, mais ainda pelos próprios escravizados. “Acidentes de trabalho” eram comuns, principalmente nas atividades mais delicadas, como nas moendas. Um [a] escravo [a] inexperiente, ou que se tornasse desatento por haver trabalhado demais ou se embriagado com a garapa distribuída aos cativos durante a safra, podia facilmente ter a mão esmagada pelos tambores, junto com a cana. Se tal acontecesse numa moenda de grande porte, o corpo inteiro poderia seguir-se ao braço. [...] um pé-de-cabra e uma machadinha eram mantidas próximos à moenda para, no caso de um escravo ser apanhado pelos tambores, estes serem separados e a mão e o braço amputado, salvando-se a máquina [a produção] de maiores estragos (Idem, 130). 10 Destruição dos instrumentos de trabalho, controle do tempo de execução das tarefas, incêndios nos canaviais, revoltas, dentre outras. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 30 Os incentivos positivos (prêmios e recompensas) à produção também foram utilizados pela grande lavoura como forma de ampliar a produtividade e para se conquistar, mesmo que temporariamente, a colaboração dos escravizados. Porcentagens sobre a produção, distribuição de bebidas alcoólicas, brecha camponesa11, eram algumas dessas formas que obviamente variavam a depender de senhor para senhor, dos costumes regionais, das demandas específicas do mercado, do grau de satisfação com o regime, mas no geral guardavam similitudes. A atribuição de salário por cotas de produção ou por tarefas aos assalariados especializados também era utilizada como estímulo à mão-deobra. Através do uso combinado dos incentivos produtivos e da coerção, a grande lavoura conformava um sistema de trabalho orientado à extração da máxima produtividade do trabalhador a ela vinculado, regime cujas marcas desdobram-se ainda hoje nas formas de inserção do trabalhador rural no mercado de trabalho. Todos esses elementos mostram que as relações de trabalho estabelecidas entre proprietários e escravos eram mais complexas do que o simples cativeiro. Articulavam uma série fatores visando à ampliação da produtividade dos empreendimentos agrícolas, avançando ou recuando a depender da correlação de força das partes envolvidas. 1.4. CRISE E TRANSIÇÃO DO TRABALHO CATIVO As determinações específicas tanto da unidade produtiva colonial (latifúndio) como da organização social do trabalho (escravo e “livre”) são partes constitutivas do desenvolvimento singular do capitalismo no Brasil. Sua compreensão deve ser dar a partir da relação dialética, e não subordinada, entre formações sociais distintas (metrópole e colônia), articuladas num determinado período histórico. São estruturantes e estruturados. Por isso, a análise combinada dos fatores endógenos e exógenos referentes à colonização 11 Possibilidade [consentida ou não] do escravo cultivar seus próprios alimentos através do trabalho em roças de subsistência, sendo uma das pouquíssimas possibilidades de acumulação de algum ordenado, normalmente poupado para no futuro ser despendido na compra da sua própria liberdade e/ou de seus familiares. Na verdade além dos dias trabalhados na grande lavoura, para o senhor era interessante que o escravo retirasse seu sustento através da sua cona e risco.. Sobre o tema: (REIS, 2005.) (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 31 brasileira se torna fundamental, na medida em que se busca compreender os pontos de interseção entre o desenvolvimento das forças gerais do capital a nível global e as especificidades do processo histórico brasileiro. Durante a maior parte do século XIX, a economia nacional vivenciou um forte período de expansão da lavoura exportadora, com o crescimento das cidades e a intensificação do trabalho escravo. É também neste século que a escravidão brasileira chega a seu ápice, “difundida como estava em todo o território nacional, nos diversos setores da economia, conformando praticamente todas as instituições sociais” (REIS, 1995: 2). A escravidão estruturou-se [de maneira geral e sistemática] ao longo de quase quatro séculos e os mecanismos de resistência do povo negro à dominação político-econômica estiveram fortemente presente em seu desenvolvimento interno. Desde o boicote ao sistema produtivo a insurreições envolvendo grande contingente de africanos/as12, as respostas populares ao regime escravista se deram de variadas formas e por uma quantidade igual de motivos. As rebeliões representaram a via mais incisiva de resistência coletiva dos escravos. Seja pela destruição completa do escravismo; pela sua simples reforma visando corrigir excessos de tirania até um limite tolerável de opressão ou mesmo no intuito de se conseguir benefícios em função do trabalho prestado os objetivos estratégicos que orientaram as lutas dos/as trabalhadores/as negros/as foram muitos (Idem). As revoltas ganharam amplitude no século em destaque pela conjuntura favorável de expansão dos ideais libertário-abolicionistas na sociedade brasileira, ficando a batalha de idéias a cargo dos setores médios. Somente na Bahia, num curto período de tempo, revoltas e rebeliões fervilharam a sociedade escravocrata podendo-se citar as de 1798 (Revolta dos Búzios), 1807, 1809, 1810, 1814, 1816, 1822, 1826, 1827, 1828, 1830, 1835 (Revolta dos Malês), além de inúmeras outras travadas silenciosamente no interior do regime e que não viraram registro na historiografia brasileira (VERGER, 1987). 12 Segundo o historiador João Reis (1995), foi no século XIX que o país recebeu o maior número de africanos, estima-se que na primeira metade do século tenham chegado mais de um milhão e meio de africano principalmente pelo porto do Rio de Janeiro, o maior porto escravista do Atlântico. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 32 Outro importante instrumento de luta para a derrocada do escravismo foi o processo de formação dos quilombos. Baseando-se no reconhecimento étnico-racial, proporcionado pela opressão política e econômica dos povos negros, os quilombos materializavam outra forma de vida, de relação de produção. Para João Reis (1996: 16), além dos africanos e seus descendentes, as formações quilombolas aglutinavam uma diversidade de segmentos sociais explorados13 direta e indiretamente pela escravidão, sendo o local onde se administravam as diferenças, forjando novos laços de solidariedade, recriando culturas. O Conselho Ultramarino de 1740 definia quilombos como “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. Tal conceito não exprimia de fato a realidade, não representando a complexa rede de relações que envolviam os agrupamentos quilombolas. Combatendo a historiografia oficial, REIS (1996: 18) atesta que embora [as comunidades estivessem situadas] em lugares protegidos, os quilombolas na sua maioria viviam próximos a engenhos, fazendas, lavras, vilas e cidades, na fronteira da escravidão, mantendo uma rede de apoio e interesses que envolvia escravos, negros livres e mesmo brancos, de quem recebiam informações sobre movimentos de tropas e outros assuntos estratégicos. Com essa gente eles trabalhavam, se acoitavam, negociavam alimentos, armas, munições e outros produtos; com escravos e libertos podiam manter laços afetivos, amigáveis, parentais e outros. Assim, os quilombos representavam risco em potencial aos interesses econômicos e políticos das elites agrárias, pois, concreta e simbolicamente manifestavam para os escravos possibilidade de vida diversa ao cativeiro imposto pelo senhorio latifundista, comprometendo a ordem social vigente. Por isso foram tão duramente combatidos. As comunidades negras de quilombos trouxeram na sua gênese a intensa resistência que não ficou restrita ao passado. Mais de duas mil comunidades quilombolas disseminadas ao longo de todo território brasileiro mantiveram-se vivas e atuantes, lutando pelo reconhecimento do direito de reprodução sociocultural de suas formas de vida em suas terras tradicionalmente ocupadas14. 13 “Para ali também convergiram outros tipos de trânsfugas, como soldados desertores, os perseguidos pela justiça secular e eclesiástica, ou simples aventureiros, vendedores, além de índios pressionados pelo avanço europeu” (REIS, 1996: 16). 14 Ver http://www.cpisp.org.br/comunidades/; Só na Bahia, de 2004 a 2009, 258 comunidades remanescentes quilombolas foram certificadas, segundo dados da SEPROMI – Secretaria de (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 33 As pressões pelo fim da escravidão também chegavam de além-mar. Impulsionando o ritmo da acumulação de capitais a nível global, a Inglaterra forjava em seu interior revoluções urbano-industriais que gradualmente foram repercutindo nas estruturas socioeconômicas do regime escravista. As transformações do modo de produção capitalista, por meio de sua tendência expansionista, alavancadas pela ampliação da maquinofatura, exigiam a ampliação do mercado de consumo como forma de absorver a produção em larga escala e o escravismo mostrava-se como problema a ser superado. No sistema colonial, o pagamento da força de trabalho se dava inteiramente fora da colônia, limitando a baixos níveis o fluxo monetário consumidor interno (GNACCARINI, 1980). Em 1845, o parlamento inglês aprova a Lei do Bill Aberdeen15, marco [institucional] no combate internacional do tráfico de escravos. A legislação autorizava a marinha britânica a interceptar os navios e submeter sua tripulação à jurisdição inglesa como forma de coagir o comércio ilegal de mão-de-obra. No Brasil, em 1830, o tráfico de escravos já tinha sido considerado atividade ilegal, mas é com a edição da Lei n. 581 de 4 de setembro de 1850, mais conhecida como Lei Eusébio de Queiroz, que a política legislativa de combate ao tráfico de escravos, pelo menos simbolicamente, assume maior dimensão. Nesta data, o comércio de mão-de-obra escrava africana estava [institucionalmente] proibido, entretanto, não impediu a continuidade das práticas de submissão dos trabalhadores ao cativeiro. Uma informação interessante é que muitos escravos de origem africana, importados após o ano de 1831, impetraram ações contra seus proprietários, por se encontrarem em estado de escravidão ilegal. Embora as ações de liberdade tivessem um caráter mais individualizado de resistência à escravidão (na medida em que não se estruturava como instrumento coletivo de enfrentamento), exerceram grande papel na conjuntura das lutas antiescravistas, principalmente pelos boatos generalizados através dos canais informais sobre tal possibilidade de Promoção da Igualdade do Governo do Estado da Bahia. Destas, somente quatro tiveram reconhecidos seus direitos de propriedade com base no art. 68 do ADCT/CF-88 e no decreto n. 4887/2003 (cuja validade constitucional deste último instrumento vem sendo atacada pelos setores conservadores na ADIN n. 3239). 15 Texto legal na íntegra: http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=bill-aberdeen-integralondres-1845, acessado em 08 de maio de 2011. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 34 ruptura com o domínio da grande propriedade, incrementando o estado de mobilização das populações negras (SÁ, 2010). Outra frente importante de pressão internacional pelo fim da escravidão foi impulsionada pela força dos trabalhadores de outras terras. A metrópole francesa amargou a tomada do poder político da ilha caribenha de São Domingos, uma das colônias mais lucrativas [e exploradas] do “Novo Mundo”. A Revolução Haitiana ou Revolta de São Domingos (1798-1804) marcou a construção do primeiro Estado negro das Américas, após sangrentas batalhas entre escravos revolucionários, elites coloniais e o Estado francês. “Os transtornos foram fatais para os senhores, suas famílias e propriedades” (AZEVEDO, 2008: 28). A revolução tornara-se símbolo das lutas escravas em todo o hemisfério, mostrando que a classe senhorial não era invencível (REIS, 95: 10). Para os latifundiários brasileiros tal rumo não parecia impossível de se reproduzir por aqui. Isso porque, elementos concretos podiam ser retirados da realidade histórica do sistema colonial nacional como sua grande absorção de mão-de-obra africana, forjando um imenso contingente de escravos e principalmente pelas insurreições terem sido uma constante em seu desenvolvimento. Seja por fatores internos ou externos ao sistema colonial brasileiro, a questão da transição do trabalho escravo estava colocada. No primeiro quarto do século XIX, a escravidão já apresentava seus limites estruturais frente às novas demandas impostas pelo capital a nível global, principalmente no que diz respeito ao seu baixo padrão de produtividade. Num cenário crescente da competitividade internacional e de perda de posição dos produtores nacionais, a substituição da força de trabalho aparecia como importante elemento a ser pensado. As elites políticas entediam que o fim do escravismo sem a construção de um processo planejado de reposição da mão-de-obra poderia acarretar numa grave crise econômica, uma vez que todo o sistema de extração do excedente se encontrava estruturado na intensa exploração de um grande contingente de trabalhadores. Aliado a isso vinha a questão da subordinação regular dessa nova força de trabalho, que sob novas orientações precisava ser disciplinada. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 35 Assim, ao longo da segunda metade do século XIX foram promovidas inúmeras medidas com vistas a cuidar da transição do trabalho escravo, mas sem alterar os interesses e privilégios políticos da ordem social vigente. A atuação do Estado no intuito de viabilizar esse processo foi crucial. Começando pela terra. A independência do Brasil no ano de 1822 representou juridicamente o fim da vigência do corpo de leis lusitanas no território brasileiro. Com ela se foi o regime de sesmarias, ficando a estrutura fundiária sem regulamentação pelas décadas seguintes. Nesse período, multiplicaram as ocupações de pequenas glebas por posseiros voltadas tanto para subsistência como para o abastecimento do mercado local. Com um regime de posse aberto, o trabalhador poderia ter acesso ao meio de produção necessário à sua sobrevivência sem ter que se subjugar aos mandos dos latifundiários. Foi em 18 de setembro de 1850, com a edição da Lei n. 601, mas conhecida como a Lei de Terras, que se impõe o instituto da compra e venda como mecanismo legal de aquisição de novas terras. Legitimava-se a grande propriedade, batizando o latifúndio, ao mesmo tempo em que liberava os trabalhadores para venderem sua força de trabalho, já que não tinham condições de acessar formalmente o meio de produção. A pequena posse do trabalhador rural negro não foi reconhecida, pois, a preferência estava nas áreas adquiridas por doações de sesmarias. A Lei de Terras (BRASIL, 1850) cumpriu um papel estratégico num momento de significativas mudanças na forma de organização e reprodução do capital no campo e na cidade, afastando o trabalhador do acesso ao meio de produção, legitimando sua condição de proletário, pronto para vender sua força de trabalho para o projeto em ascensão. Em 1871, a Lei n. 2040, ou Lei do Ventre Livre, extinguia o último elemento de reposição da mão-de-obra no cativeiro (tirando o fato de que os filhos de escravas nascidos na vigência dessa lei se mantinham vinculados ao senhor latifundiário até os vinte e um anos completos). Dentre sua disposições destacam-se duas mais significativas para a análise. A primeira foi a preocupação do legislador (leia-se Estado) com a questão da disciplina para o trabalho do liberto ao estabelecer a necessidade desse indivíduo recém saído (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 36 da escravidão voltar a submeter regularmente sua força de trabalho aos comandos da capital: Art. 6.º - Serão declarados libertos: §5.º - Em geral, os escravos libertados em virtude desta lei ficam durante 5 anos sob a inspeção do govêrno. Êles são obrigados a contratar seus serviços sob pena de serem constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos públicos. Cessará, porém, o constrangimento do trabalho, sempre que o liberto exigir contrato de serviço (BRASIL, 1871). O que a transição tinha que representar era a substituição das formas de aprisionamento do trabalho humano, passando gradualmente da coerção física [mas sem superá-la] para os tipos de assalariamento, condicionando a sobrevivência do trabalhador à venda da sua força de trabalho. Assim, era fundamental que o recém liberto continuasse a subjugar seu trabalho, continuasse a submeter-se regularmente a vida do trabalho, não podia ser autônomo (pois não tinha condições) e nem “vadio” (pois sua força de trabalho era indispensável para o projeto de acumulação em andamento) (KIRDEIKAS, 2003: 5). O segundo elemento da Lei do Ventre Livre (BRASIL, 1871) foi a autorização da formação de um pecúlio (tipo de poupança) próprio do escravo, proveniente de doações, heranças, legados ou mesmo de remuneração por trabalhos. Art. 4.º - É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O governo providenciará nos regulamentos sôbre a colocação e segurança do mesmo pecúlio. Esse dispositivo incidiu diretamente na configuração da situação da mão-de-obra anos depois, no momento da abolição. O pecúlio foi utilizado em larga escala como forma do escravo comprar sua liberdade nas mãos do seu senhor, garantido de alguma forma a disciplina necessária ao trabalho e a restituição do valor “investido” com a mão-de-obra, dinamizando a extração do seu excedente. “Em seu conjunto, os escravos no Brasil eram 1.715.000 em 1864, 1.540.829 em 1874, 1.240.806 em 1884 e apenas 723.419 em 1887, às vésperas da abolição (REIS, 95: 3). As mesmas preocupações com a submissão regular da força de trabalho liberta foram expressas na Lei dos Sexagenários n. 3270 de 28 de setembro de 1885, destacando-se os parágrafos 17 e 18 do artigo 3º ao disporem: (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 37 §17. Qualquer liberto encontrado sem occupação será obrigado a empregar-se ou a contratar seus serviços no prazo que lhe fôr marcado pela Policia (BRASIL, 1885). § 18. Terminado o prazo, sem que o liberto mostre ter cumprido a determinação da Policia, será por esta enviado ao Juiz de Orphãos, que o constrangerá a celebrar contrato de locação de serviços, sob pena de 15 dias de prisão com trabalho e de ser enviado para alguma colonia agricola no caso de reincidência (BRASIL, 1885). Bem como o parágrafo 5º do artigo 4º estabelece: § 5º O Governo estabelecerá em diversos pontos do Imperio ou nas Provincias fronteiras colonias agricolas, regidas com disciplina militar, para as quaes serão enviados os libertos sem occupação (BRASIL, 1885). Depois de um longo período de transição, de forte atuação institucional, onde boa parte da força de trabalho já não mais se encontrava no cativeiro, depois de anos de sangue e suor dos povos negros, a Lei n. 3353 de 13 de Maio de 1888, com a assinatura da Princesa Imperial Regente Izabel em nome de sua Majestade Imperador, declara extinta [formalmente] a escravidão. 1.4.1. A TRANSIÇÃO NORDESTINA O processo de ocupação territorial do nordeste brasileiro esteve diretamente ligado ao desenvolvimento das atividades econômicas da grande lavoura canavieira, desde o período colonial. Paralela à produção do açúcar, a pecuária extensiva ocupou papel característico na conformação da estrutura fundiária nordestina e nas formas de vida do semi-árido. No início da produção pecuária no sertão, os primeiros senhores de engenho assumiram a promoção de unidades de produção pecuária subordinadas e mantidas por eles. Com o tempo, criadores especializados foram assumindo a atividade, consolidando enormes sesmarias dedicadas à pecuária (FERRARO JR, 2008:30) Um fator singular no desenvolvimento socioeconômico nordestino foi o processo de transferência da competência jurídico-administrativa das terras devolutas16 para o domínio dos estados federados. Às oligarquias regionais foi dada a responsabilidade pelo desenvolvimento das políticas institucionais de concessão de terras, ampliando o domínio político local e a concentração 16 A Lei de Terras passou a estabelecer que as propriedades que não fossem regularizadas, segundo os critérios imperativos (art. 3º e ss.) seriam devolvidas ao patrimônio do Estado, por isso chamada de terras devolutas. Ver: (TEIXEIRA, 2008). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 38 fundiária (MARTINS, 1981). Esse processo contribuiu para o desenvolvimento do fenômeno do coronelismo17, traço marcante da história política nordestina. Um dos aspectos da diferenciação da política de terras entre nordeste e sudeste estava na forma de inserção da força de trabalho livre nas grandes unidades de produção. No Sudeste, mais especificamente em São Paulo, os trabalhos anteriormente executados pela força de trabalho negra escravizada passaram a ser realizados por colonos europeus, sendo este trabalhador livre que recebia salário (em espécie e/ou in natura), tinha direito a uma gleba de subsistência, recebendo eventualmente por serviços extraordinários, sendo permitido contratar trabalhadores avulsos para auxiliá-lo na cultura particular, trabalhando ainda uma quantidade de dias gratuitos para o fazendeiro (Idem, 44). Na região Nordeste, a economia canavieira já demonstrara a muito sua derrocada como pólo dinâmico da produção nacional, muito em função das conseqüências sociais do regime da grande lavoura, da baixa produtividade dos empreendimentos, da alta concorrência internacional (antilhana e cubana) e da interrupção [legal] do tráfico de escravos africanos. Com a transferência do centro de reprodução econômica para o eixo sudestino, tendo no estado de São Paulo seu pólo mais importante, juntos foram também boa parte dos escravos, vendidos como forma de recompor as divisas do senhorio em forte crise econômica. Os antigos moradores da região (ex-escravos, trabalhadores livres), dedicados à produção de subsistência e a prestação de trabalhos eventuais ao latifúndio, foram sendo incorporados como trabalhadores assalariados. Para ter acesso à terra de subsistência, deveria oferecer seu trabalho por determinados número de dias gratuitos ou mediante baixa remuneração no canavial (Ibidem). Diretrizes históricas distintas produzem sínteses sociais distintas. As relações de trabalho desenvolvidas na produção agroexportadora nordestina, em especial na cana-de-açúcar sempre tiveram na intensa exploração da mão-de-obra sua característica fundamental, impondo ao 17 “Os chefes políticos municipais ou regionais acabaram sendo conhecidos como ‘coronéis’. [...] O coronelismo se caracterizou pelo rígido controle dos chefes políticos sobre os votos do eleitorado , constituindo [aquilo que se intitula pejorativamente em relação à figura do/a nordestino/a] os ‘currais eleitorais’ e produzindo o voto de cabresto” (MARTINS, 1981: 46) (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 39 trabalhador um ritmo de trabalho altamente degradante que ainda hoje se reproduz. Tal tema será objeto de análise mais aprofundada no capítulo terceiro do presente trabalho, com destaque às relações de assalariamento temporário rural na região Submédio do São Francisco. 1.4.2. A TRANSIÇÃO SUDESTINA O processo de transição do trabalho escravo para o trabalho “livre” no Brasil não pode ser apreendido pela relação simplória e maniqueísta que contrapõe um suposto negro despreparado para o trabalho livre, incapaz de interagir com os novos padrões do capitalismo em expansão contra um europeu racionalista, politicamente ativo, forjado pelas contradições da grande produção agrícola e industrial (AZEVEDO, 2008: 18). Mais do que alardear uma dicotomia entre a irracionalidade do regime escravocrata e a racionalidade do trabalho livre ou mesmo uma hierarquização abstrata e ahistórica de variáveis mais ou menos importantes para se explicar a gênese do assalariamento no Brasil, o presente trabalho buscará abordar o tema através da análise articulada das especificidades do desenvolvimento das formas de organização da produção e do trabalho no sistema colonial brasileiro com as transformações ocorridas no modo de produção capitalista a nível global. A marginalização do povo negro não pode ser explicada somente pelos elementos internos do escravismo (polaridade senhor-escravo manifestada em diversas dimensões da vida social), pois, sendo as relações sociais escravistas desenvolvidas no Brasil componentes de um todo (processo de colonização envolvendo outros atores sociais), a desarticulação e a fragmentação desse todo opera uma amputação do mesmo e elimina a possibilidade de conhecê-lo como tal. O conhecimento de uma região do todo não é ainda conhecimento do todo, porque o conhecimento de partes isolados do conjunto não é conhecimento nem das partes e nem do conjunto (CARVALHO, 2008: 2). O ponto de partida é a compreensão de que os rearranjos da substituição do trabalho [prioritariamente] pela cativo para o trabalho manutenção dos privilégios “livre” orientaram-se classistas da elite agroexportadora brasileira. A partir desse entendimento, pode-se partir para (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 40 uma breve análise de como se deu a inserção da força de trabalho imigrante na grande lavoura nacional e analisar sua dinâmica de exploração. O desenvolvimento das relações sociais de produção no sistema colonial brasileiro esteve baseado na concentração de recursos em grandes unidades produtivas, no regime de plantation, explorando grande contingente de mão-deobra. Tal formação não impediu, mas obstaculizou formas de produção alternativas ao modo imposto pelo monopólio comercial metropolitano, relegando as pequenas propriedades e os trabalhadores livres nacionais à execução de atividades acessórias ao latifúndio monocultor. Com o fim do tráfico de escravos, o problema da reposição da força de trabalho aparecia, no mínimo, como elemento preocupante para a economia, já que a base de extração de excedente da classe senhorial se encontrava na exploração intensa de grande quantidade de trabalhadores. Nesse sentido, a grande lavoura precisa não necessariamente de escravos (que no período da abolição já eram reduzidos), mas sim de mão-de-obra suficientemente barata para que as fazendas produzissem em custos mínimos, ampliando a acumulação. O empresariado não tinha como se apoiar no contingente interno de trabalhadores livres, tendo em vista a relação social específica desenvolvida historicamente deste segmento com o trabalho, ainda mais o braçal, para quem não era escravo. Assim, em função da rigidez da ordem escravista colonial, resumidamente composta pelos senhores, escravos e a burocracia cívicomilitar, a inserção produtiva fixa dos homens livres na estrutura social se mostrou insuficiente, restando a estes o desenvolvimento de atividades marginais nas grandes glebas senhoriais (KOWARICK, 1994). Os negros escravizados e o conjunto dos trabalhadores livres já conheciam e muito as “benesses” advindas dos serviços prestados à ordem senhorial e construíram historicamente, no interior do regime escravista, seus mecanismos de resistência à dominação política, econômica e cultural impostos por essa ordem. É nesse contexto que insere os movimentos de intermediação internacional de mão-de-obra, alavancados em meados do século XIX. Nessa política institucional, o negro foi preterido do processo produtivo, inexistindo (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 41 mecanismos compensatórios às mazelas sociais produzidas pelo cativeiro prolongado. A ação oficial proporcionou o aprofundamento da marginalização e proletarização do povo negro. A imigração de trabalhadores estrangeiros para os cafezais paulistas veio como estratégia das elites para dinamizar a produção agropecuária numa conjuntura crescente de competitividade mercantil, sem falar nos sinais claros de definhamento do regime escravista. Os grandes produtores necessitavam de trabalhadores material e culturalmente expropriados para manutenção/reprodução lucrativa dos empreendimentos agrícolas. Nessa transição, diversos outros aspectos perpassaram os planos discursivos públicos e privados, tendo como idéia central a passagem de um Brasil repleto de arcaísmos, marcado pela relação antagônica entre senhores e escravos, para um “novo Brasil”, orientado pelas leis de mercado, onde trabalhadores e patrões teriam liberdade e igualdade de condições jurídicas para celebrar relações trabalhistas (AZEVEDO, 2008). Sem dúvida, os contornos e conflitos étnico-raciais estiveram presentes também como elementos condicionantes das políticas de imigração, alavancados pelo crescimento das teses do racismo científico tanto na Europa como nos Estados Unidos. Disseminação de idéias como a “inferioridade natural” dos/as negros/as, colocando os problemas estruturais do regime de trabalho escravo como questões inerentes à própria raça foram justificativas utilizadas para explicar a nova fase de desenvolvimento do capitalismo no Brasil (Idem, 54). Era necessário embranquecer a população “brasileira”, com base na idéia de inferioridade do negro, da sua não adaptabilidade aos novos moldes de produção (trabalho livre para o desenvolvimento do liberalismo e capitalismo), e de decretação da sua invisibilidade (BONFIM, 2008: 66). Um aspecto interessante é que o problema da substituição do trabalhador escravo exprimia-se de formas distintas tanto para o Estado (através do exercício jurídico-normativo) como para os grandes produtores latifundistas. Para o primeiro, inúmeros processos e interesses estavam envolvidos (expansão do capitalismo internamente; formação de um mercado de trabalho livre; construção de uma identidade nacional; ideal de (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 42 modernização, civilidade; “branqueamento” populacional). Já para os fazendeiros, “o problema tendia a ser avaliado em termos dos resultados econômicos oferecidos pelo imigrante em confronto com o escravo” (MARTINS, 1973: 57). O fato de se comparar em termos econômicos não obstaculiza a interferência de todo um padrão social racista a orientar as relações entre as elites e as populações negras, que mesmo após 123 (cento e vinte e três) anos de abolição formal ainda sofrem e resistem às conseqüências sociais da escravidão. Considerando o objeto de estudo do presente trabalho, parte-se agora para a análise do processo de imigração de mão-de-obra estrangeira, suas formas de inserção na agricultura nacional e seus desdobramentos para o trabalho livre e assalariado no Brasil. 1.4.2.1 A INTERMEDIAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA ESTRANGEIRA E AS RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA AGRICULTURA BRASILEIRA. Nessa órbita, KOWARICK (1994) assinala o intenso processo de importação de mão-de-obra estrangeira para os campos nacionais, tendo seu ápice em meados do século XIX. A questão dos movimentos migratórios internacionais se inseriu numa lógica de aprofundamento da exploração do trabalho, através da ampliação da oferta de mão-de-obra como forma de baratear/deteriorar o preço dos salários pagos aos trabalhadores do campo. O outro desdobramento cuidou de criar as condições para desarticular a resistência desse contingente de trabalhadores, na medida em que a ampliação do exército de reserva incide diretamente no aumento da concorrência intertrabalhadora. Até 1895, cerca de 220 mil colonos, materialmente expropriados pelas sucessivas crises vivenciadas no continente europeu, aportaram no Brasil, mediadas através das agências patronais de importação de mão-de-obra criadas e financiadas pelas elites agrárias da época. Para a garantia de sucesso da estratégia adotada, o aparato jurídicoestatal foi largamente utilizado. Semelhante forma de explorar trabalhadores livres, do ponto de vista jurídico, deveria apoiar-se num aparato legal que coagisse os colonos a cumprir seus contratos de trabalho. Antes de mencionar os (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 43 expedientes utilizados pelos fazendeiros para atar os colonos às fazendas [acima apresentados], convém indicar a lei votada em setembro de 1830, logo após o tráfico africano ter sido legalmente proibido, bem como a que foi aprovada em outubro de 1837, quando se intensificaram as pressões inglesas sobre a importação de escravos: ambas especificavam severas sanções penais, como prisão com trabalhos forçados, julgadas em processos sumários para aqueles que não cumprissem seus contratos (KOWARICK, 1994:, 67). O imigrante europeu, por estar alheio a todo processo de conformação histórica da relação capita-trabalho na ordem produtiva colonial, e nem ter conhecimento das condições concretas em que os serviços se dariam, poderia ser submetido às violências privadas e institucionais, as quais, e a todo custo, a mão-de-obra nacional procurava combater/resistir. O contrato de trabalho-parceria (conhecido como ‘parceria por endividamento’) estabelecido entre o fazendeiro e os/as trabalhadores/as estrangeiros/as consistia no adiantamento da quantia necessária a fim de custear o transporte e a instalação das famílias trabalhadoras, além da concessão de uma gleba vinculada à grande fazenda. Os trabalhadores além de realizarem os trabalhos na grande propriedade poderiam extrair subsistência ou mesmo apropriar-se do excedente de sua pequena empreitada, desde que devidamente compartilhado com o latifundiário, conforme o acordo firmado. Salientando que sobre os empréstimos incidiam altos juros, não podendo o colono se afastar da fazenda até finalmente quitá-las. O endividamento foi utilizado como forma de aprisionar a força trabalho livre, e para isso os grandes proprietários multiplicavam as formas de adiar o cumprimento desses compromissos. Cobrança de juros, taxas, comissões, escamoteamento de pesos e medidas da produção, etc. Cumpre destacar que a tática tinha como objetivo fixar a mão-de-obra livre nas fazendas para que esta, de tão livre, não fosse procurar sustento com outro empregador, deixando para traz os dividendos adquiridos com grande proprietário que o importou. Essa estrutura impôs ao colono um regime de trabalho altamente espoliador, na medida em que o seu produto deveria ser na pior das hipóteses, suficiente para saldar a cadeia de endividamento que esta mão-de-obra estava envolvida. Por isso intensifica-se o trabalho para se extrair o máximo de valor além daquele referente ao seu próprio custo. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 44 Com o passar dos anos, o Estado passou a custear integralmente os gastos referentes à importação de mão-de-obra. A partir desse momento, a classe ruralista não mais precisaria imobilizar os trabalhadores em torno das dívidas “contraídas” como forma de garantir a regularidade da força de trabalho, passando a estabelecer mecanismos politicamente mais eficientes e economicamente mais viáveis para subjugar os trabalhadores, apoiados no manejo estratégico do exército de reserva em expansão. O processo de inserção do trabalho imigrante no campo também não se deu de maneira uniforme. Imigrantes de diferentes nacionalidades tiveram trajetórias distintas em contato com a sociedade brasileira, mediadas pelas características sociais e culturais de cada grupo bem como da região de destino. A superexploração do trabalho esteve exemplarmente presente no processo de constituição do mercado de trabalho livre no Brasil, sendo a abundância de mão-de-obra um dos fatores responsáveis pela regulação do preço a ser pago na compra desta força de trabalho. Foi próximo à abolição da escravidão que os movimentos migratórios estrangeiros assumiram caráter de massa, deixando de ser firmado na forma de vínculos pessoais e específicos entre o fazendeiro e as famílias. Agora, a importação passa a se processar de maneira generalizada, disponibilizando para as grandes lavouras mão-de-obra livre a negociar a venda da sua força produtiva àqueles dispostos a pagar. A atuação jurídica estatal foi intensa, principalmente no subsídio ao custo do translado dos colonos, liberando os fazendeiros em parcela significa dos gastos referentes à aquisição dessa força de trabalho. A imigração deixa de ter um caráter individualizado e esporádico entre este ou aquele fazendeiro para assumir uma dimensão de política estatal de constituição de mercado de trabalho no Brasil, restando aos grandes produtores o manejo estratégico do crescente exército de reserva. Estruturam-se formas politicamente mais eficientes e economicamente mais rentáveis de se explorar o trabalho assalariado. A exploração desmedida foi marca característica também no trabalho estrangeiro. A abundância de mão-de-obra possibilitou a deterioração dos salários, além do desenvolvimento de um conjunto de práticas espoliativas que (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 45 tornavam ainda mais precário o trabalho do colonato. Aplicação de multas, taxas, juros, espancamentos públicos, alteração dos pesos e medidas, confisco de salários, dentre outras. Nesse sentido, a partir do delineamento das relações de trabalho desenvolvidas historicamente na agricultura brasileira, o presente trabalho parte para a análise do processo de gênese e desenvolvimento do Direito do Trabalho no Brasil, abordando elementos fundamentais para o entendimento do cenário de violação continuada dos direitos e garantias dos trabalhadores rurais, como: a conjuntura socioeconômica em que estava inserido no momento da sua formação; em que consistia seu discurso protetivo; o papel específico cumprido e a dimensão dos seus instrumentos normativos e principiológicos gerais e típicos do trabalho rural; e principalmente, como os/as trabalhadores/as rurais se inseriram [ou não] nesse novo projeto nacional que tinha no reconhecimento da “questão social do trabalho” a sua pedra de toque. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 46 2. “O TRAQUEJO DA LEI E DO DIREITO18”: A REGULAÇÃO PÚBLICA DO TRABALHO RURAL Como foi exposto no capítulo anterior, o desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira forjou formas específicas de exploração da mão-deobra rural. Da unidade produtiva açucareira colonial ao avanço do modelo do agronegócio, o trabalho no campo foi objeto de intensa regulamentação jurídica, tendo as relações entre assalariados e proprietários, assumido diversos conteúdos legais no decorrer da história. O movimento de normatização ocupou papel singular na manutenção e reprodução da espoliação do/a trabalhador/a rurícola. Entretanto, antes de se analisar os conteúdos históricos dessa regulação pública, suas interfaces no processo de constituição do Direito do Trabalho no Brasil e a abrangência protetiva dos seus institutos em relação ao trabalho rural, faz-se necessário delimitar a compreensão da regulamentação jurídica enquanto categoria propriamente dita. O fenômeno jurídico da regulamentação assume ao longo da história diversos conteúdos, sendo construído a partir dos imperativos específicos de cada momento histórico em que se encontra inserido. Cumpre agora problematizar por que determinado interesse de classe passa a ser tutelado especificamente sob a forma do direito, constituindo a regulamentação jurídica como tal (NAVES, 2008: 45). 2.1. A REGULAÇÃO JURÍDICA COMO CATEGORIA HISTÓRICA O alicerce metodológico para compreensão do fenômeno da regulamentação jurídica está no reconhecimento do caráter estruturalmente desigual da sociedade de classes, que contrapõe uma pequena parcela de proprietários dos meios necessários à produção da riqueza material contra a maioria dos trabalhadores, que têm na venda da força de trabalho sua única fonte de subsistência. Assim, o Estado surge como produto e manifestação do antagonismo inconciliável dessas classes (LENIN, 2007: 24). Nas palavras de Engels (1884: 61), 18 Trecho da música “Desafio do Bóia-Fria” do compositor baiano Tom Zé. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 47 O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é "a realidade da idéia moral", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da "ordem". Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. Nesta linha, Engels destaca que o Estado surge da necessidade imperiosa de se conter [na medida do possível] os interesses antagônicos das classes sociais em disputa, passando a se apresentar como instrumento da fração economicamente dominante. É através desse intermédio institucional que se dá a conversão do domínio já existente no plano econômico em domínio político de classe. Assim, o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado (Idem, 62). Para MÉSZÁROS (2010: 25), o Estado moderno, caracterizado pela “separação de poderes” em um “sistema político democrático”, com sua infinita multiplicação de regras e componentes institucionais, desempenha um papel dúplice, objetivando (i) manter sob firme controle o comportamento real ou potencialmente desafiador das forças do trabalho, ao mesmo tempo em que tenta (ii) conciliar de alguma forma os interesses distintos da pluralidade de capitais, que conforma a totalidade do capital social, se afirmando como entidade global. O Estado moderno construído como duro golpe ao Absolutismo e reflexo das necessidades de reprodução ampliada da burguesia européia, traz como estandartes a defesa fatal da vida, da liberdade e da propriedade privada, sendo o Direito, nos domínios da lei, espaço racional e neutro, o principal instrumento de proteção desses “bens jurídicos” essenciais. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 48 É nesse sentido que PACHUKANIS (1988: 210) defende que a concepção de direito deve contemplar não apenas o exame do conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas históricas, mas também examinar dialeticamente a “regulação” como forma social determinada, guardando na realidade concreta os elementos fundamentais ao seu entendimento. “Da mesma forma que a sociedade capitalista se apresenta como uma ‘imensa acumulação de mercadorias’, ela também constitui uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas” (NAVES, 2008: 55). A ordem capitalista se processa fundamentalmente no mundo jurídico, onde o direito aparece como intermediador necessário às relações sociais de produção que lhe são características. O processo de produção social do direito acompanhou o desenvolvimento histórico da propriedade privada desde as civilizações antigas até a consolidação do Estado moderno. Entretanto, foi na sociedade burguesa que a forma jurídica encontrou espaço fértil para consolidação de sua acepção mais desenvolvida19. Diferentemente das formações sociais pré-capitalistas, onde o direito manifestava-se em meio às diversas formas de representação do real, é com a consolidação do Estado moderno que a utilização da forma jurídica atinge globalmente a sociedade, com a reprodução crescente de seus complexos institutos e de suas formulações específicas. A concepção burguesa que reduz o direito à vontade geral serve tanto para retratar a propriedade privada como decorrência da vontade particular dos indivíduos como para justificar o desenvolvimento pleno destes sujeitos num ambiente máximo de liberdade e igualdade representado pelo mercado. São nas relações de propriedade, nos processos de troca viabilizados na esfera da circulação20 que se dá a criação de uma subjetividade jurídica baseada na igualdade formal, como reflexo do seu próprio movimento (Idem, 19 No sentido de desenvolvimento global de suas formulações, universalizando o fenômeno jurídico como mediação hegemônica das relações travadas entre os sujeitos sociais. Isso não quer dizer que todas as relações precisem necessariamente passar pelo filtro legal para se desenvolverem. 20 Cumpre destacar que para Marx, não existe esfera de circulação em si, que se desenvolve de forma independente, sendo esta determinada por um padrão de produção específico. Assim, é do modo de produção capitalista que se devem retirar os elementos para compreensão dos processos decorrentes da circulação das mercadorias (MARX, 1983). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 49 54). Daí o caráter derivado da forma jurídica, adquirindo o direito significação real quando corresponde à determinada relação social no plano concreto. Não é a norma que prevalece sobre a relação, mas a relação de impulsiona a criação da norma. Assim falam Marx e Engels (1991), ao explicar que a jurisdição burguesa reconhece como espontâneo o fato dos indivíduos estabelecerem relações [gerais] entre si, sendo o contrato sua maior síntese. Propagam os juristas burgueses que o conteúdo dessas relações reside única e exclusivamente no arbítrio individual dos sujeitos e que estaria na vontade atomizada o elemento fundamental à confirmação ou não dessas relações. Essa vontade só pode ser manifestada plenamente por sujeitos livres, mediados por uma condição de equivalência geral necessária à realização das trocas. As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, conseqüentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar a violência, em outras palavras, tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como coisas, é necessário que seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cujas vontades reside nessas coisas, de tal modo, que um somente de acordo com a vontade do outro, portanto, cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados (MARX, 1983: 79). Para Marx, sem essa subjetividade jurídica que permite o intercambio entre vontades livres, não seria possível se dar a circulação de mercadorias, muito menos a compra e venda da força de trabalho. Desta maneira, se é na troca que o indivíduo constitui sua liberdade plena, pode-se aferir que com a ampliação da esfera da comercialização, “mais livre então ele pode ser, de tal modo que a expressão a mais ‘acabada’, a mais completa, a mais absoluta de sua liberdade, é a liberdade de disposição de si mesmo como mercadoria” (NAVES, 2008: 67). É na troca de si mesmo que a liberdade plena do homem aparece para a sociedade em geral, restando para o direito “apenas” regular aquilo que já está dado e legitimado como a maior manifestação da liberdade humana. E é na sociabilidade burguesa que isso é levado ao extremo. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 50 Dentro dessa perspectiva, o direito, mas especificamente a lei, no interior do modo de produção capitalista, assume uma dimensão de predomínio [aparente, mas concreto] sobre as relações sociais e tem no Estado seu intermediador hegemônico21. O positivismo fundamenta a práxis jurídica do Estado, ao demarcar a lei como elemento central de definição das condições e das orientações específicas de uma sociedade. O Direito passa a se exprimir como norma abstrata sustentada pelo monopólio da força estatal, tendo na estrutura ideal do dever-ser22 sua categoria teórica mais importante. Dois pressupostos fundamentais da concepção burguesa auxiliam na compreensão da função do direito na estrutura social. O primeiro é que o presente real é produto da racionalidade humana e que as manifestações de injustiças são eventuais acidentes no processo de consolidação da espécie. Já o segundo afirma que as regras jurídicas, se respeitadas por todos, seriam suficientes para realizar a sociedade justa (GENRO, 1988: 22). Numa posição alienante, O positivismo – sobretudo no ensino superior jurídico – conduziu a um certo ‘fetichismo’ da lei e a uma atitude que, sob o pretexto da neutralidade científica, conduzia freqüentemente à aceitação da ordem em vigor, contanto que essa ordem seja ‘corretamente’ estabelecida, quer dizer, de acordo com os processos legais em vigor (MIAILLE, 2008). Tal afirmação não coloca a norma jurídica como filtro indispensável ao desenvolvimento da totalidade das relações entre os sujeitos, existindo formações e práticas sociais que não precisam necessariamente passar pela chancela do Estado através de instrumentos jurídicos determinados [pelo menos no plano imediato]. Esse cenário social marcado pela diversidade de grupos e de formas de organizar a vida comporia aquilo que a pósmodernidade intitula de pluralidade de ordens jurídicas. 21 Hegemonia em Gramsci. “Kelsen, maior expoente da teoria positivista jurídica, “separa fundamentalmente o dever-ser do ser. Evidentemente, essa postura não é aceita pela perspectiva marxista, porque o ser e o dever-ser se compõem numa relação dialética. (...) Na visão kelseniana, portanto na linha neokantiana, se faz diferença profunda e séria entre ser e dever-ser: o ser determina o deverser , isto é, ele é condição para o dever-ser. Ou seja, Kelsen aceita que a sociedade deve existir necessariamente para que exista o Direito, para que exista o dever-ser, a norma; mas o dever-ser não tem por fundamento o ser, ou seja, a relação social, a sociedade, e sim tem por fundamento um outro dever-ser, e este outro tem por fundamento um outro mais, até um deverser fundamental, que ele chama de norma fundamental” (ALVES, 2003). 22 (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 51 Segundo Souza Santos (2000), propondo uma melhor compreensão acerca do relacionamento entre direito, poder e conhecimento, propaga a relativa separação entre o primeiro e o Estado, articulando, numa perspectiva foucaultiana, o fenômeno do direito com o poder social. Esse seria exercido não de forma exclusiva pela via institucional, mas sim de maneira estratificada e horizontal entre a diversidade de sujeitos componentes da sociedade civil. Afirma que o reconhecimento dessa pluralidade é o resultado mais importante de suas críticas, “quer ao paradigma positivista moderno do direito e do poder, centrado no Estado, quer ao paradigma positivista do conhecimento, centrado na ciência” (SANTOS, 2000: 261). O fato é que o problema não está exclusivamente na [possível] falta de reconhecimento dessa pluralidade, mas sim, na incompreensão dos elementos estruturantes que envolvem essa “convivência” de ordenações jurídicas. O caráter monopolista do capital, impõe como modo de reprodução ampliada, a apropriação de todos os setores da vida social através (i) da incorporação dessas formas alternativas de organização no seu padrão produtivo e/ou (ii) da destruição dessas formas alternativas. Daí sua tendência universalizante. Os impactos dessa saga monopolista podem ser verificados na atualidade através da intensificação dos conflitos fundiários envolvendo o Estado (exercendo a práxis jurídica como forma de legitimação), a burguesia nacional e o capital financeiro internacional (que aglutinam os interesses do capital em expansão centrado na produção monopolista e latifundiária) na apropriação dos territórios das comunidades tradicionais sejam elas indígenas23, quilombolas24 ou fundos e feches de pasto25. 23 O rio São Francisco é o 3º maior do país, com cerca de 3 mil quilômetros de extensão, onde estão distribuídos 32 povos, em 38 territórios tradicionais, aglutinando 14 milhões de pessoas, dentre elas cerca de 70 mil indígenas. O projeto de transposição das águas do rio São Francisco, cujo objetivo principal é a viabilização dos projetos de irrigação para o agronegócio, representa forte ameaça à manutenção dos modos de vida dessas comunidades. Ver: (RELATÓRIO, 2010.) 24 Na Reserva Extrativista da Baía do Iguape, recôncavo baiano, o projeto de implementação do Pólo Industrial Naval (levado a cabo pela tríade Governo do Estado, empreiteiras e grupos econômicos) atingirá mais de trinta comunidades quilombolas, cerca de vinte mil pessoas, marisqueiras e pescadores artesanais que terão seus territórios, espaços de reprodução física e cultural, ameaçados pela especulação imobiliária e pelos projetos do nacional desenvolvimentismo. Ver: (MANIFESTO, 2009). 25 Sobre o processo de resistência das comunidades de fundo de pasto “Riacho Grande” contra a grilagem de terras e os grandes projetos agropecuários. Ver: (SIQUEIRA, 2011). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 52 O que Souza Santos não se atenta é que a articulação das formas específicas de direito em “constelações de juridicidade”, como idilicamente proclama, só é possível na medida em que essas formações não representem possibilidades de rupturas à ordem política e ideológica imposta pelo capital, e quando sua mera existência oferecer limites à sua reprodução econômica ampliada, essas serão atacadas tanto pela via institucional (que de alguma maneira as reconhecem e discursivamente afirma protegê-las) como pela iniciativa privada. A realidade está cheia de exemplo, vide a história de Canudos, confrontando sertanejos e as forças armadas nacionais. Ao mesmo tempo em que o Arraial de Belo Monte representava concretamente outra possibilidade de vida, forjando novas práticas, valores e pactos sociais entre os sertanejos, também representava a ruptura de um domínio político regional e até nacional, indo na contramão dos interesses das oligarquias agrárias. Antonio Conselheiro e seus adeptos foram combatidos e praticamente exterminados pelo Exército em 1896-1897, com base na acusação de que eram monarquistas (...). A Guerra de Canudos constituiu-se, portanto, num desdobramento das disputas entre os coronéis sertanejos ou entre estes e o governo. A necessidade de derrota dos habitantes de Canudos passou a representar peça importante na disputa pelo poder federal entre militares e civis ligados aos interesses do café (MARTINS, 1981: 54). É nesse sentido que para MÉSZÁROS (2010: 25-39) o capital representa a relação social extra-parlamentar por excelência e que ao mesmo tempo domina o parlamento [compreendido como Estado], sendo suas instituições, num plano mediato, instrumentos de auto-interesse da acumulação capitalista. Contudo, o fenômeno do Direito não pode ser simploriamente reduzido nem à instância econômica nem ao voluntarismo unilateral da classe dominante. A formação social não se [re] produz através de um sujeito central exclusivo, constitui-se numa unidade complexa, pois, articula “um conjunto de estruturas próprias, com eficácias específicas, com predomínio em última instância do aspecto econômico” (POULANTZAS, 1967: 4). Assim, para o teórico marxista, as unidades superestruturais (formas de representação do real que se fundam na relação dialética com a base material de produção, citando-se o próprio Direito) não são simples produtos da esfera econômica, (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 53 guardam entre si especificidades que lhe são características, constitutivas, com objetos e pressupostos específicos. Nesse sentido, dentro da realidade social, o Estado se manifesta concretamente a partir da correlação de forças entre as classes sociais em disputa. O sistema jurídico se estabelece em função do grau de pressão dos setores organizados no intuito de imprimir positivamente suas pautas estratégicas nas ordenações vigentes. Assim, assume um caráter mais ou menos progressista ou conservador a depender da capacidade de intervenção das forças sociais mobilizadas. A norma como síntese dos movimentos reais da história. Só a título de exemplo, a Constituição de 1988, considerada a carta constitucional mais progressista da história Brasileira foi possível, muito em função da conjuntura da época, onde as forças sociais encontravam-se mobilizadas, nas ruas, na luta pela garantia dos seus direitos. Enquanto, no período de janeiro a agosto de 1988, se registraram, segundo o DIEESE, 292 paralisações no Brasil, no mesmo período de 1989, o número de ocorrências ascendeu a 1.346, isto é, multiplicou-se por 4,6 a freqüência do ano anterior (PICHLER, 1990: 178). E nesse movimento, o Direito do Trabalho apresenta-se como campo característico. “A sua história é a história da luta de classes na formação, desenvolvimento e maturação do capitalismo” (GENRO, 1994: 27). Ao mesmo tempo em que representa o aprisionamento do trabalho humano através do reconhecimento jurídico do seu caráter de mercadoria passível de compra e venda, materializa conquistas históricas dos/as trabalhadores/as organizados na resistência e no combate às contradições do sistema. No Brasil, as leis do trabalho sempre estiveram presentes, desde a colonização, mas é em meados do século XIX, período de transição do trabalho escravo para o trabalho livre, que a legislação assume uma dimensão estratégica na reprodução e aprofundamento das relações capitalistas no país. Eis o novo desafio. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 54 2.2. A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA RURAL NO PERÍODO PRÉ-VARGAS Como foi problematizado no primeiro capítulo, a transição do escravismo para o trabalho livre no Brasil foi caracterizada pela forte interferência estatal, principalmente no que diz respeito à intensificação da normativização das relações de trabalho. Viu-se que as elites agrárias, majoritariamente as do sudeste cafeeiro, acreditavam que o processo de substituição da força de trabalho cativo dependia de um conjunto planejado de ações institucionais, com vista a consolidar o assalariamento, sem, no entanto, prejudicar os interesses políticos e econômicos secularmente preservados. Nessa perspectiva, o presente trabalho parte para o delineamento de um breve panorama de como o trabalho assalariado rural foi regulado nesse período anterior ao processo de constituição do Direito do Trabalho brasileiro, abrangendo meados do século XIX até a ascensão varguista em 1930, destacando (i) os aspectos da conjuntura histórica, (ii) a capacidade regulatória das leis do trabalho rural frente as novas necessidades do capital em expansão no país e (iii) suas interfaces com as formas de exploração da mão-de-obra assalariada no meio rural. 2.2.1. LEIS DE 1830, 1837, 1879: O CONTRATO COMO EXPRESSÃO DO TRABALHO LIVRE Até meados do século XIX, a legislação referente ao trabalho rural, mais especificamente ao livre assalariado, teve uma abrangência muito pequena no que diz respeito à interferência nas formas de acesso e exploração da mão-deobra agrícola. A atividade normativa sobre tais relações ocupou um papel residual perante a forma hegemônica de trabalho expropriado centrado nas relações de escravidão. É com a crise do escravismo que a regulação pública assume uma maior dimensão no cenário das relações capital-trabalho na agricultura nacional. A expansão da produção cafeeira paulistana (pólo mais dimanizado do capital nacional) logo veio encontrar seu limite na disponibilidade de grande contingente de força de trabalho, já que o acesso irrestrito a esta representava o mote para sua reprodução ampliada. Duas (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 55 foram as principais alternativas encontradas para o atendimento dessa carência. Uma estava focada nos deslocamentos internos de mão-de-obra. Uma possibilidade existente para solucionar essa restrição era a mobilização de população da Região Nordeste para o estado de São Paulo. Afinal, o Censo Demográfico de 1872 informava que a Região Nordeste respondia por quase 50% da população brasileira. A grande disponibilidade de força de trabalho livre estava ali localizada. Ademais, grande parte dessa população encontrava-se ainda, em sua maioria, vinculada à propriedade latifundiária em decadência do período açucareiro (DEDDECA, 2005: 96). A outra alternativa contou com maior dedicação do Estado. A política de mobilização de mão-de-obra estrangeira através das ações de incentivo à imigração de famílias de colonos teve grande dimensão no final do século XIX. Italianos, espanhóis, portugueses chineses, dentre outros, aportaram às levas no Brasil, com a promessa de tornarem-se pequenos proprietários ao custo de muito trabalho. Os primeiros imigrantes trazidos por empresas importadoras, em geral, eram obrigados a assinar contratos de parceria com o importador para trabalhar nas lavouras de café do Estado de São Paulo. O contratante adiantava as despesas de transporte da Europa às colônias e o necessário à subsistência inicial. Nas colônias, o imigrante recebia determinado número de pés de café para cultivar. Tinha direito à meação no resultado da venda. As dívidas contraídas na imigração eram pagas com juros de 6% ao ano, não podendo o colono deixar de cumprir o contrato antes de saldá-las integralmente, além de comunicar o contratante com seis meses de antecedência (MACHADO, 2003: 155). O processo imigratório brasileiro, sustentado pelo sistema de parceria, ampliou o assalariamento antes reduzido às atividades complementares à grande produção agrícola. Colocou para o proprietário uma nova experiência de relação com a mão-de-obra, mediada não mais pelo direito de propriedade absoluto ou pelas complexas relações de apadrinhamento, mas por um contrato escrito de comum acordo entre as partes envolvidas e submetido às formalidades legais do país (LAMOUNIER, 1986: 25). É nesse cenário de início das relações entre estrangeiros e proprietários que a Lei de 13 de Setembro de 1830 é editada. Contando com somente oito artigos, a lei tinha por objeto a regulação da prestação de serviços feitos por brasileiros ou estrangeiros dentro ou fora do Império. Duas eram suas (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 56 preocupações principais, (i) sinalizar a formalização do contrato escrito como instrumento da relação e (ii) garantir mecanismos coercitivos de cumprimento das obrigações, valendo-se tanto de multas pecuniárias (BRASIL, 1830, art. 3º) como da prisão do prestador que se ousasse a não cumprir seu dever contratual (BRASIL, 1830, arts. 4º, 5º, 6º). A Lei de 1830 vigeu somente por sete anos, pois o Decreto n. 108 de 11 de outubro de 1837 cuidou da sua revogação. Contando com dezessete artigos, nove a mais do que a antecessora, a nova lei tratou de regular a locação de serviços da força de trabalho estrangeira, instituindo o contrato escrito como componente obrigatório à regularidade da relação (BRASIL, 1837, art. 1º). Outro aspecto importante foi a possibilidade de intermediação dessa mão-de-obra imigrante pelas Sociedades de Colonização26. Tratava ainda da regulação do trabalho dos menores estrangeiros (BRASIL, 1837, arts. 2º ao 6º), a quem não se estipulara pena para os casos de não cumprimento dos contratos, onde a responsabilidade recaía sobre o seu representante legal. Intensifica o caráter disciplinar orientado à força de trabalho ao estabelecer a pena de prisão para os casos de não cumprimento do contrato e manutenção do cárcere até a restituição dobrada da dívida. Se caso o trabalhador não tivesse como quitar o débito em pecúnia, os serviços seriam realizados de “graça” até o tempo necessário à cobertura do montante devido. Art. 9º. O locador [colono], que, sem justa causa, se despedir, ou se ausentar antes de completar o tempo do contrato, será preso onde quer que for achado, e não será solto em quando não pagar em dobro tudo quanto dever ao locatário [proprietário], com abatimento das soldas vencidas; se não tiver como pagar, servirá ao locatário de graça todo o tempo que faltar para o complemento do contrato. Se tornar a ausentar-se será preso e condenado na conformidade do artigo antecedente (BRASIL, 1837). Um aspecto interessante é a previsão do instituto da rescisão contratual por justa causa cometida pelo proprietário-locatário da mão-de-obra, nos casos de não cumprimento das condições do contrato, agressões, insultos ou mesmo exigência de serviços não pactuados entre as partes podia o trabalhador26 Sociedade de proprietários agrícolas destinadas à importação de mão-de-obra estrangeira. Sobre o tema (LAMOUNIER, 1986); (MARTINS, 1973) (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 57 locador declará-lo extinto. Por fim estabelece as regras para processamento dos litígios oriundos da Lei de Locação de Serviços (BRASIL, 1837, arts. 14,15 e 16), estabelecendo o foro do locatário como o competente para as demandas. Sobre a Lei n. 108 de 1837, resta destacar ainda seu caráter “protecionista”, tendo em vista o amplo rol de garantias concedidas ao locatário-proprietário, com o intuito de se prevenir o retorno do investimento feito com a viabilização da vinda dos trabalhadores estrangeiros. A repressão e a coerção apareciam como instrumentos de aprisionamento da força de trabalho livre, forma de se garantir o retorno econômico. No sistema de parceria, cada família de colonos estrangeiros ficava responsável por uma quantidade determinada de pés de café, devendo tratálos, cultivá-los, beneficiá-los e colhê-los. Após a venda, o fazendeiro deveria pagar ao colono metade do valor líquido da produção. Assim, o regime de parceria foi a forma encontrada pelas elites agrárias para regular a organização do trabalho dos imigrantes, garantindo estabilidade e continuidade da oferta de mão-de-obra estrangeira, justamente por fixá-la na própria fazenda, sob o controle direito do proprietário. Com o passar dos anos, a legislação foi mostrando sua debilidade em regular os conflitos, pois, num cenário econômico de intensa concorrência, a maximização da exploração da força de trabalho surgia como única variável possível de ampliação da lucratividade, tornando as violações contratuais regras do cotidiano dos trabalhadores livres assalariados. A resistência vinha das paralisações, piquetes, organização coletiva dos trabalhadores, brigas. As conseqüências mais expressivas se deram no plano da produtividade, repercutindo diretamente na queda dos rendimentos gerais da produção agrícola. Por isso as greves eram tão temidas e reprimidas pelos latifundiários. Os fazendeiros pressionavam por um corpo de leis que garantisse o retorno dos investimentos feitos com a mão-de-obra. Daí a preocupação com o aspecto formal da relação trabalhista, em se ter garantias jurídicas tanto de que o contrato seria cumprido como da previsão de restituição dos investimentos nos casos de inadimplemento contratual. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 58 Após dez anos de longos debates, foi enfim editado o Decreto n. 2.820 de 22 de março de 1879, com seus oitenta e seis artigos, regulamentando os contratos de locação de serviços efetivados na agricultura, abrangendo trabalhadores nacionais, libertos e estrangeiros. A Lei Sinimbu, como ficou conhecida, foi o primeiro instrumento normativo destinado a regular amplamente a organização social do trabalho no campo, constituindo-se numa peça legal extremamente complexa. Cuidava principalmente das garantias necessárias ao perfazimento dos contratos de trabalho, prevendo com ”acuidade as faltas e negligências dos contratantes e dispunha detalhadamente do processo e das penalidades competentes” (LAMOUNIER, 1986: 102). Uma das novidades eram as disposições anti-greves, estabelecendo o processamento individual dos trabalhadores envolvidos para aferição de sua pena. Os contratos de locação de serviços e de parceria podiam ser feitos por nacionais, libertos e estrangeiros, tendo por forma necessária a escritura pública, devidamente registrada na Câmara Municipal. Tinham em média duração de seis anos para os nacionais, cinco para estrangeiros e sete para os libertos (MACHADO, 2003: 156). Em relação à pena de prisão, era aplicável nos casos de afastamento sem justo motivo, ou se permanecendo na fazenda se recusasse a trabalhar. A Lei de 1879 expressou o esforço institucional em assegurar aos fazendeiros o rígido controle sobre a mão-de-obra assalariada, operacionalizada através de complexas relações obrigacionais. Nesse movimento, a legislação do trabalho assalariado teve na formação do contrato individual de trabalho seu elemento central, mediando a relação contraditória entre a libertação histórica dos trabalhadores escravizados com o aprisionamento e disciplinamento da força de trabalho livre através de manobras legislativas e contratuais. Segundo LAMOUNIER (1986), as condições diversas com que a lei tratava os trabalhadores nacionais e estrangeiros já revelavam os interesses específicos e os tipos de relações privilegiadas. E são as garantias dos fazendeiros para o cumprimento dos contratos aquelas que compõem a fisionomia mais marcante da lei, no eu diz respeito aos estrangeiros. E isto bem o atestam, a minuciosidade dos capítulos sobre a matéria penal e o processo, o agravamento das (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 59 penalidades e os artigos anti-greves. Nesse sentido, a lei providenciava principalmente para que houvesse ordem e regularidade nos serviços contratados, assegurando a manutenção de um nível razoável de produtividade e a recuperação em tempo previsto dos investimentos feitos (Idem, 111). Melhorias também foram conquistadas em relação à Lei de 1837, fruto das intensas rebeliões que assolaram o período pré 1879. A proibição de transferências sem o consentimento do colono; a não incidência de juros sobre a dívida inicial do locador de serviços [trabalhador]; a permissão para o rompimento do contrato no primeiro mês no Império; a permissão para o casamento fora da área da fazenda, inúmeras garantias foram reconhecidas no interior do ordenamento jurídico nacional, servindo de base para os diversos institutos que mais tarde se incorporariam no Direito do Trabalho. 2.3. GÊNESE DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL O Direito do Trabalho é fruto das relações sociais oriundas da luta dos trabalhadores organizados contra a expropriação do capital, trazendo como fontes materiais de sua produção diversas experiências históricas que acumularam vitórias da classe trabalhadora no estabelecimento de limites a esta exploração. “As insurreições proletárias de Paris, em 1848; a Comuna de Paris, em 1871; as lutas sociais na Espanha, em 1889; a Revolução Mexicana de 1912 que inspirou a constituição de 1917; a Revolução Russa de 1917” (BIAVASCHI, 2007: 110), foram algumas dessas. As mudanças estruturais no sistema de reprodução do capitalismo, com o advento da Revolução Industrial, trouxeram à tona novos conflitos, além de potencializar os já existentes. Muitas vezes a história do Direito do Trabalho no Brasil é comumente retratada como obra exclusiva do voluntarismo dos governantes e/ou de forma linear/cronológica, sem articular a diversidade de fatores que o compõem. Nesse sentido, a retomada de alguns aspectos relevantes sobre a formação do mercado de trabalho nacional e o próprio desenvolvimento das relações de assalariamento no país é indispensável à compreensão aprofundada sobre o surgimento da legislação trabalhista brasileira. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 60 A história da regulação do trabalho anterior ao trabalho livre assalariado encontra pouquíssimas páginas na historiografia oficial. “Esse silêncio do direito do trabalho na verdade é eloqüente. (...) revela que não tivemos grandes rupturas na regulamentação do trabalho, senão renovados processos de recomposição no modo de produção” (MACHADO, 2003: 152). A abordagem histórica das permanências e mutações sofridas no trabalho rural e na sua regulação jurídica permite melhor compreender a situação atual de exploração da mão-de-obra campesina e seu cenário continuado de expropriação de direitos. Primeiramente, como já fora explicitado, a Lei de Terras (1850) cumpriu papel singular para viabilização das relações de assalariamento no Brasil ao regulamentar os mecanismos de acesso à propriedade da terra. Essa forma particular de estabelecimento da propriedade privada, forjada no período de passagem para o trabalho livre, garantiu estrategicamente a cisão entre trabalhadores e os meios produtivos, liberando a força de trabalho para se submeter ao latifúndio como quase única forma de subsistência. Como garantir mão-de-obra suficiente para atender as demandas colocadas pelo capital expansionista se o trabalhador poderia prover autonomamente seu sustento e o de sua família através do uso livre da terra? Libertam-se os trabalhadores, na medida em que se aprisiona a terra. Outra instrumento legal importante que interferiu no cenário de formação do Direito do Trabalho brasileiro foi a de Locação de Serviços (BRASIL, 1879). A lei reconhecia o caráter privado das relações de trabalho, concedendo a autonomia aos proprietários para estabelecerem e extinguirem unilateralmente o contrato. Era a manifestação jurídico-normativa do poderio econômico, expressada em caráter de norma pública, concedendo à classe de proprietários amplo domínio sobre as disposições contratuais. Influência liberal claramente percebida nos projetos de Moraes e Barros (1895 e 1899), ao declararem: Nas sociedades civilizadas a atividade humana se exerce em quase todas as formas sob o regime do contrato. Intervir o Estado na formação dos contratos é restringir a liberdade e a atividade individual nas suas elevadas e constantes manifestações, é limitar o livre exercício das profissões, garantidas em toda sua plenitude pelo art. 73, § 24 da Constituição (SÜSSEKIND, 2005: 49). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 61 É no movimento real estabelecido entre capital e trabalho que a síntese jurídica expressa os desejos das classes sociais em disputa. Assim, fruto de conflitos constantes, os trabalhadores conseguem pautar suas bandeiras e verem impressas no ordenamento garantias a muito pleiteadas. Em 5 de janeiro de 1904, é editado o Decreto n. 1.150, regulando o pagamento proveniente de dívidas salariais do trabalhador rural. No dia 20 de janeiro de 1907, o Decreto n. 6.532, regulamentando a Lei. 979 de 1903 autorizou o funcionamento dos sindicatos rurais, sendo a primeira lei a tratar da sindicalização no país27. O Código Civil de 1916, em sue capítulo IV, seção II, arts. 1216-1236 regulava de modo geral a locação de serviços, abarcando os serviços agrícolas, restringindo-se ainda à forma contratual, sem avançar no conteúdo das relações trabalhistas. Art. 1.222. No contrato de locação de serviços agrícolas, não havendo prazo estipulado, presume-se o de um ano agrário, que termina com a colheita ou safra da principal cultura pelo locatário explorada (BRASIL, 1916). Esse fora o palco das relações trabalhistas até a ascensão de Getúlio Vargas com a “Revolução” de 30 e do projeto de nação por ele representado. Esse período que abarca os anos de 1930 a 1943 foi cenário de intensas transformações ocorridas no interior da sociedade brasileira. O processo de industrialização-urbanização do país, inserido num contexto de ampliação tanto da acumulação interna de capitais através da dinamização da economia cafeeira como da expansão da circulação dessas divisas em escala global, repercutiu diretamente nas formas e nos conteúdos das regras sociais de proteção do trabalho. Assim, passa o presente trabalho a analisar a nova fase de institucionalização das relações de trabalho, a partir da problematização das especificidades da formação do marco regulatório trabalhista no período da “Era Vargas”, destacando em que medida se deu a inserção do trabalhador 27 Interessante destacar o art. 8º do referido decreto, já demonstrando sinais do que viria a ser o sindicalismo brasileiro. “Os sindicatos que se constituírem com o espírito de harmonia entre patrões e operários, como sejam os ligados por conselhos permanentes de conciliação e arbitragem, destinados a dirimir as divergências e contestações entre o capital e o trabalho, serão considerados como representantes legais da classe integral dos homens do trabalho e, como tais, poderão ser consultados em todos os assuntos da profissão”. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 62 rural nesse movimento de reconhecimento social do trabalho. Para além do estudo dos instrumentos normativos e principiológicos trabalhistas, sintetizados pela Consolidação das Leis do Trabalho (1943), e no caso dos rurais nas leis n. 4214/1963 e n. 5889/1973, a pesquisa buscará também analisar as nuances existentes entre o padrão de desenvolvimento nacional (ascensão do capital urbano-industrial) e o padrão de regulação pública das relações de trabalho (em resposta às contradições desse ultimo), como forma de perceber o espaço ocupado pelo trabalhador rural no ordenamento jurídico trabalhista. 2.3.1. A REGULAÇÃO SOCIAL DO TRABALHO NA ERA VARGAS Com a abolição da escravidão e a instauração da República, o capitalismo nacional se insere numa nova fase de reprodução, centrada no desenvolvimento gradual da indústria, a partir da intensa acumulação proporcionada pela produção agrícola cafeeira. Ao longo da história brasileira, as políticas institucionais estiveram em grande medida orientadas pelo pacto oligárquico travados entre as elites rurais, que até então se diferenciavam mais no plano horizontal que no vertical. A máquina pública foi largamente utilizada pelas oligarquias regionais com vistas a operar a reconversão dos ganhos na realização do valor da produção agromercantil, mediatizada pelo monopólio da terra. A transformação do valor de uso, na forma planta-ecologia, em valor de troca, na forma planta-mercadoria se deu de maneira mais intensa no período da monocultura do café, produto agrícola mais cotado no mercado internacional. Logo essa diferenciação no interior da classe dominante passou a se expressar também no plano vertical com a rápida expansão da economia paulistana. Nesse sentido, a cafeicultura passa a nuclear o padrão de acumulação agroexportador, estabelecendo em seu seio “a hegemonia da grande burguesia agrária, em particular a grande burguesia cafeeira” (MOREIRA, 1985: 49). É desse processo de diferenciação expressado no plano econômico, ora mais ora menos, que vai se delineando a fração fabril da burguesia interna, que mais tarde viria a hegemonizar o Estado e suas políticas institucionais. Nesse (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 63 movimento a atuação pública ocupou papel importante na conformação dessa nova hegemonia produtiva, pois, Na transição do antigo regime, [o Estado] conduz a instituição do mercado de trabalho livre, na forma do regime do colonato em terras de café, do morador em terras de açúcar e do seringueiro em terras de extração de borracha; sufoca as rebeliões camponesas de Canudos (1893-1897) e do Contestado (1912-1916); organiza a sobrevida do café quando este explode em crise; coordena o movimento de transfiguração da base econômica agromercantil para urbano-industrial; organiza e reinventa as formas de disciplinarização espacial da produção (Idem, 50). Embora o capital industrial tenha se derivado do agrário, não conseguiu controlar os mecanismos de seu movimento reprodutivo próprio, pelo menos em sua fase inicial. Os equacionamentos da acumulação industrial advinham das alianças articuladas com a ordem hegemônica agromercantil, necessárias até a constituição da sua ordem de dominação específica. Até a década de 1930, grande parte da população nacional estava na zona rural. Em 1920, a produção agropecuária representou em termos médios 58% do Produto Interno Bruto – PIB brasileiro, contra 23% da indústria nascente (BIAVASCHI, 2007). Nesse mesmo ano, 650 mil estabelecimentos agrícolas ocupavam cerca de 6 milhões e 300 mil trabalhadores contra 13.400 estabelecimentos indústria que ocupavam 300 mil operários (Idem). A crise do capitalismo de 1929 ampliou as possibilidades de desenvolvimento da indústria no Brasil, tendo em vista o declínio do comércio internacional e o processo decorrente de substituição das importações. Ao longo das primeiras décadas do século XX, o operariado urbano-industrial marcou presença com suas reivindicações político-econômicas contra o crescente processo de pauperização vivenciado pelos trabalhdores. Em 1903, a greve de 25 mil cocheiros, que paralisou a cidade do Rio de Janeiro, a greve de 40 mil têxteis também em 1903; a greve dos trabalhadores metalúrgicos da fábrica de pregos Ipiranga, em 1903 que obteve redução de jornada de trabalho de 11h30mim diárias para 9 horas; a greve dos pedreiros de São Paulo em 1907, que exigiu e conseguiu redução da jornada para 8h de trabalho (GENRO, 1994, p. 33). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 64 A “questão social” elemento central da luta dos trabalhadores, antes tratada como caso de polícia, serviu de base para implementação da legislação protetiva do trabalho nos anos subseqüentes. A “Revolução” de 1930, movimento político-militar que “foi algo mais que um golpe e menos do que uma revolução” (ANTUNES, 2006: 84), representou a ascensão política da fração industrial da classe dominante que ainda vivenciava seu momento de formação/ampliação. Para o projeto urbanoindustrial em expansão, promover a regulamentação dos fatores de produção, principalmente os relacionados à organização do trabalho, mostrava-se indispensável para a manutenção da ordem social, constantemente abalada pelas manifestações grevistas (multiplicadas ao longo das primeiras décadas do século XX) em função de melhores condições de trabalho. A luta políticoeconômica dos/as trabalhadores/as impulsionava a necessidade de uma resposta mais efetiva por parte do Estado sobre as conseqüências sociais da exploração desmedida da força de trabalho, redimensionando o tratamento dispensado à questão social (PARANHOS, 1999). É sobre esse pano de fundo, marcado pela luta de classes entre as múltiplas forças do trabalho e o capital expansionista, que se deve discutir o processo de criação da legislação social no período das décadas de 1930 e 1940. O advento das leis protetivas do trabalho não pode ser reduzido ao simples “utilitarismo” burguês, sem considerar os movimentos reais da história. Ainda no plano conjuntural, A agitação operária que atravessou, com seus altos e baixos, a Primeira República consistiu num fator não desprezível de aprofundamento da crise do chamado Estado liberal-oligárquico. O liberalismo, mundo afora, se achava sob fogo cruzado dos defensores dos autoritarismos e/ou ‘totalitarismos’ de todos os matizes. Em meio à revoltas tenentistas dos anos 20, à crise internacional do capitalismo dramatizada pelo crack da bolsa de 1929, ao abalo sofrido pelo modelo agroexportador e às cisões no interior das classes dominantes, o golpe de 1930 acabou abrindo caminho, concretamente, para uma nova configuração do Estado (Idem. p. 21). Getúlio Vargas, com toda sua habilidade política, aparece como peça de vitrine de um complexo e gradual movimento de transição das bases produtivas do país, encontrando na mediação entre o atendimento das pautas históricas dos trabalhadores e os interesses das oligarquias e frações dissidentes da classe dominante (que tinham o objetivo de quebrar o domínio monopolista do poder das oligarquias agrárias) a tática para a execução da empreitada. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 65 É nesse contexto que se forja a ideologia do trabalhismo, numa tentativa de recriação do imaginário coletivo, através da supressão da memória da luta dos trabalhadores no processo de constituição da legislação social, convertendo as garantias trabalhistas em bênçãos concedidas, mostrando o Estado como maior guardião dos interesses dos trabalhadores e Vargas como o “pai dos pobres”. Os trabalhadores há muito já lutavam pela redução da jornada de trabalho, pela regulação dos salários, pelos períodos de descanso. A apropriação das pautas históricas dos trabalhadores urbanos, sua reformulação ideológica e devolução maquiada à população foi um dos aspectos centrais do trabalhismo de Vargas, “combinando dádiva, manipulação e repressão” (ANTUNES, 2006: 86). Para a implementação consistente do projeto industrial, o governo Vargas precisava contar com o apoio da base social desse novo padrão de desenvolvimento. Por isso, o populismo varguista não podia se sustentar somente através de técnicas discursivas. De alguma maneira as ações institucionais deveriam se respaldar na realidade concreta dos trabalhadores, expressar benefícios palpáveis, pois, objetivamente o trabalhador tinha que botar comida na mesa. “A obra maior da engenharia política getulista foi trazer as classes trabalhadoras para a agenda do Estado, politizar a ‘questão social’, tirá-la do espaço exclusivo da criminalização e das delegacias“ (Idem, 84). Os trabalhadores urbanos ocuparam papel significativo no processo de constituição da legislação social e do Direito do Trabalho como ramo autônomo do Direito, pois, ao mesmo tempo em que exerceram função ativa para sua concretização, o apoio dado à Vargas imprimiu respaldo político para a condução do novo projeto de Brasil, como ponto de equilíbrio entre as forças políticas que o sustentavam (burguesia industrial ascendente e frações dissidentes das oligarquias rurais) e o pressionavam (setores tradicionais da economia agro-exportadora). Dentre os diversos aspectos que envolveram a formação da legislação social brasileira, quatro apresentam-se como mais relevantes para o andar da pesquisa. O primeiro foi a necessidade de criação de um órgão operacional responsável pela implementação das políticas voltadas para o trabalho a nível (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 66 nacional, a fim de se uniformizar as relações de assalariamento, tornando mais fácil o seu planejamento em escala global. Para tanto, em 26 de novembro de 1930, pelo Decreto n. 19.433, como primeira medida do governo, é criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, cuja pasta pertencia a Lindolfo Collor. Os desafios diziam respeito à organização sindical e aos direitos trabalhistas. O objetivo era trazer os trabalhadores e suas organizações para o projeto e desenvolvimento. Por isso, Collor cuidou de ampliar sua área de influencia condicionando a concessão dos benefícios sociais ao controle ministerial dos sindicatos. Estimulou ainda a organização de sindicatos patronais na perspectiva de consolidar a política do trabalho em bases corporativas, institucionais, vinculadas e limitadas politicamente pelo Estado (CPDOC-FGV, 2011). O segundo diz respeito ao processo de desestruturação dos instrumentos organizativos dos trabalhadores como forma de sufocar os conflitos sociais advindos da exploração ilimitada imposta pelo capital. A área sindical foi objeto certo de regulação, tendo em vista as experiências de luta construídas pelos sindicatos autônomos no pré-1930. O Decreto n. 19.770 de 19 de março de 1931, criou uma estrutura oficial de sindicatos, mesclando controle e repressão, na tentativa de excluir a manifestação da luta de classe em sua dinâmica. A maioria dos sindicatos foi convertida em entidades meramente assistencialistas, prestando serviços de saúde, lazer, entretenimento, etc. A proposta governamental tinha como pressuposto o ideal de colaboração de classe, “de feição nitidamente corporativista, cujo objetivo apontava pra a necessidade imperiosa de converter patrões e proletários em forças orgânicas de cooperação incorporadas ao Estado” (PARANHOS, 1999: 21). O terceiro aspecto se relaciona com a criação de um sistema previdenciário também nos moldes do corporativismo. A concessão dos benefícios vinculava-se à filiação nos sindicatos oficiais. O Decreto n. 20.465 de 01 de outubro de 1931, tomando as categorias profissionais como parâmetro, instituiu uma ampla reforma no sistema de aposentadoria e pensões, já reguladas pela Lei Elói Chaves de 1923 (DELGADO, 2008: 111), multiplicando os institutos de aposentadoria em âmbito nacional. Sobre este ponto cabe um comentário. Ainda hoje o acesso a previdência social é um dos maiores problemas dos trabalhadores rurais, apesar de seu enquadramento ser (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 67 como segurado especial, já que não precisa realizar os recolhimentos mensais, bastando comprovar o período de efetivo exercício da atividade rural em regime de economia familiar correlatamente ao tempo da carência exigida, fixando ainda o valor de um salário-mínimo como recurso máximo a ser recebido. Para os movimentos sociais do campo, a Previdência Social funciona como um importante mecanismo de transferência de recursos de ricos para pobres. “Como não temos uma política pública consolidada para o campo, a Previdência é uma das principais formas de distribuir renda no campo e manter os agricultores na roça”, afirma Rosângela Cordeiro, integrante da coordenação nacional do Movimento de Mulheres Camponesas – MMC (MELLO, 2011). Em termos práticos, os entraves à efetivação se materializam desde a ameaça dos setores conservadores (com projeto de leis que visam desqualificar o trabalho rural), a grande falta de informação, ao burocratismo imposto ao camponês, até esquemas de corrupção, com desvios dos recursos dos beneficiários rurais. Rosangêla Cordeiro (MMC) afirma que boa pare dos problemas remontam às próprias deficiências do país. Tirar o RG, por exemplo, é algo muito complicado para quem vive no campo. Sem ele, não se recebe o benefício. Outra questão é a burocracia: o INSS não enxerga no trabalhador um ser humano, pensa apenas nos papéis. Além disso, como as leis são pouco acessíveis à maioria da população, as pessoas não conhecem seus direitos. Um exemplo: o agricultor precisa comprovar 15 anos de atividade com notas para poder receber o benefício. Se ele não sabe disso, não guarda as notas durante esse tempo e fica impedido de receber, explica (Idem). Findo o parênteses, o quarto elemento diz respeito à criação de um sistema específico de solução judicial dos conflitos oriundos das relações trabalhistas como forma de se evitar a confrontação direta entre trabalhadores e patrões, colocando o Estado como mediador necessário à resolução dos litígios. Inicialmente regulada pelo Decreto n. 21.396 de 21 de março de 1932, a Justiça do Trabalho viria a ser consolidada pelo Decreo-lei n. 1.237 de 01 de maio de 1939. Para GENRO (1988: 62), a Justiça do Trabalho, dentre as suas diversas funções, cumpre papel estratégico dentro da ordem social, precisa apresentar-se como instrumento legítimo para solucionar os problemas vividos pelo conjunto de trabalhadores, se propondo a: (i) distribuir, com rapidez, a parte do produto social que foi apropriada ilegalmente, pelos critérios fixados pela ordem jurídica da propriedade privada; (ii) conciliar os conflitos de forma a repor a forma “pacífica” (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 68 da dominação do capital sobre o trabalho; (iii) constituir, pela própria jurisprudência, momentos de avanço, quer quanto à interpretação do Direito pré-existente, quer pelo exercício do poder normativo , visando resolver os conflitos individuais e coletivos; e (iv) ser uma jurisdição confiável aos trabalhadores, apta a absorvê-los como integrantes da sociedade de classes, como “cidadãos-trabalhadores”. A legislação social veio como resposta às necessidades imediatas dos trabalhadores urbanos, fruto das contradições desse modelo em expansão. Para tanto, estabeleceu-se na Constituição Federal de 1934, preceitos gerais que deveriam nortear a legislação do trabalho, apesar de timidamente aparecer a figura do trabalhador rural, mas seu cerne protetivo esteve centrado na figura do urbano. Art. 121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País (BRASIL, 1934). Segundo a Carta Constitucional de 34, a legislação trabalhista deveria seguir alguns preceitos com o intuito de promover melhores condições de trabalho, sem prejuízo de outros dispositivos que também viessem a contribuir para o desejado, podendo-se citar: a) proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; b) salário mínimo, capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região, às necessidades normais do trabalhador; c) trabalho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previstos em lei; d) proibição de trabalho a menores de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres; e) repouso hebdomadário, de preferência aos domingos; f) férias anuais remuneradas; g) indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa; h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte; i) regulamentação do exercício de todas as profissões; j) reconhecimento das convenções coletivas, de trabalho (BRASIL, 1934). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 69 Aos trabalhadores rurais, como se não se exigisse pressa fazer valer seus direitos, foi dado um espaço subsidiário, estipulando: §4º - O trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, em que se atenderá, quanto possível, ao disposto neste artigo. Procurarse-á fixar o homem no campo, cuidar da sua educação rural, e assegurar ao trabalhador nacional a preferência na colonização e aproveitamento das terras públicas (BRASIL, 1934, art. 121). Nesse “novo Brasil”, o governo liderado pelo estancieiro gaúcho tinha como desafio histórico lutar pela superação das características que, até então, marcavam sua estrutura econômica, social e política; os resquícios de uma ordem escravocrata, patriarcal e monocultora herdada dos tempos coloniais; uma sociedade eminentemente agrária; uma economia subordinada a um modelo primário exportador, um operário urbano esparso e não organizado; uma política ‘café com leite’, com domínio dos proprietários rurais do eixo Minas/São Paulo; o sufrágio não universal e não secreto, sem participação feminina; a Questão social, tratada genericamente como questão de polícia” (BIAVASCHI, 88). Nessa negação ao passado eminentemente agrário e ao peso do atraso que lhe fora atribuído, negou-se também o/a trabalhador/a rural e seus séculos de dominação e resistência. A barbárie da exploração do trabalho humano não é obra exclusiva do padrão industrial de produção. Entretanto, a “questão social” (base para a formulação das leis do trabalho) surge a partir de um período e em função de um sujeito histórico específico, ficando os trabalhadores rurais descobertos, com boa parte das pernas de fora dessa proteção social. Como num passe de mágica, a ascensão da urbanização e da industrialização parece ter apagado da história do país os desastrosos efeitos de séculos de escravidão, de submissão irrestrita do trabalho rural, fechandose os olhos para uma política articulada de reparação e garantia de condições dignas de trabalho. A exclusão do camponês do pacto político é o fato que cercará o entendimento da sua ação política. Mas essa exclusão não é, como às vezes tem sido entendida, mera exclusão política. Por isso, é necessário entender a história dessa exclusão, seus mecanismos econômicos, sociais, políticos. Essa exclusão define justamente o lugar do camponês no processo histórico (...) alguém que participa como se não fosse essencial, como se não estivesse participando. O escamoteamento conceitual é o produto necessário, a forma necessária e eloqüente da definição do modo de como o camponês tem tomando parte no processo histórico brasileiro – como um excluído, um inferior, um ausente que ele realmente é: ausente na apropriação dos resultados objetivos do seu trabalho, que aparece como se fosse desnecessário, de uma lado, e alheio, de outro lado (MARTINS, 1981:25). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 70 Com a edição da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, em 1943, os direitos dos trabalhadores urbanos foram apresentados em bloco, fruto de um processo que articulou importantes juristas da época, cuja tarefa era pensar um código trabalhista para a nova era. Nessa época, 81,4% da população viva na zona rural, em municípios como menos de 10 mil habitantes. Do total de pessoas ocupadas, 66,7% se dedicavam ao exercício de atividades agrícolas (DEDDECA & PRONI, 2006, p.12). Isso quer dizer que quando a CLT foi editada, mais de 2/3 dos trabalhadores nacionais não foram abraçados pela legislação de proteção ao trabalho, já que a norma consolidada excluiu expressamente os rurais em seu art. 7º, alínea “b”, que determina: Art. 7º Os preceitos constantes da presente Consolidação salvo quando fôr em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam: (b) aos trabalhadores rurais, assim considerados aqueles que, exercendo funções diretamente ligadas à agricultura e à pecuária, não sejam empregados em atividades que, pelos métodos de execução dos respectivos trabalhos ou pela finalidade de suas operações, se classifiquem como industriais ou comerciais (BRASIL, 1943). Vagarosa e fragmentariamente, aspectos da relação de trabalho no campo foram sendo positivados, sem construir uma política articulada de proteção do trabalhador rural. Somente 20 anos mais tarde, 84 anos depois da ultima iniciativa sistemática datada de 1879, é que as relações de trabalho no campo ganharam maior cobertura com o advento do Estatuto do Trabalhador Rural em 1963, que mais tarde seria revogado pela Lei 5889 de 1973. Resta agora o desafio de compreender como a constituição da CLT influenciou nas formas de regulação do trabalho rural pela legislação citada, a partir da análise de dois aspectos fundamentais que é o tipo de sujeito e de forma contratual que se pretendia proteger. 2.4. PRINCÍPIOS PROTETIVOS E OS SUJEITOS “PROTEGIDOS” PELA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO (CLT) De 1930 a 1943, se viu um intenso movimento de regulação social do trabalho abrangendo a normatização de diversos aspectos das relações de assalariamento, com vistas à imposição de limites à exploração do trabalhador pelo capital. A institucionalização de regras de proteção do trabalho no Brasil cresceu de forma aleatória, fruto de correlações de forças especificas entre as (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 71 categorias profissionais, os setores patronais e o Estado. Essa fragmentação legislativa gerou uma pluralidade de regras trabalhistas espalhadas pelo ordenamento jurídico. Além do estabelecimento de normas relativas à seguridade social e aos acidentes de trabalho, a legislação social abarcou o trabalho feminino, dos menores, os comerciantes, industriários, marítimos, mineiros, ferroviários, bancários, as estabilidades de emprego, o saláriomínimo, as estruturas de fiscalização, a Justiça do Trabalho, a organização sindical, culminando na CLT (BIAVASCHI, 2007). A constituição da CLT foi mais do que uma simples compilação da legislação existente, acrescentando inovações em termos de institutos trabalhistas e princípios norteadores, dando-lhe uma qualidade de Código mais do que uma Consolidação. Num processo de definição de suas fontes materiais28, base de sistematização da comissão redatora comandada por Arnaldo Süssekind, pode-se destacar (i) a Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII – clamando por respeito à dignidade cristã do homem, condenando a usura e a busca do lucro a qualquer custo; (ii) o primeiro Congresso Brasileiro de Direito Social realizado em maio de 1941, fórum composto pelo Governo Federal, pela Igreja Católica, pelo Supremo Tribunal Federal, agregando diversos especialistas brasileiros em torno do tema do direito social, cujos debates inspiraram diretamente a redação dos artigos 9º, 443, 451, 452 e 499, §3ª (BRASIL, 1943), destacando-se o art. 9º que estabelece a nulidade plena de qualquer ato que vise fraudar ou impedir a aplicação das normas da CLT, reconhecendo no plano jurídico a desigualdade existente no plano econômico; (iii) as Constituições ocidentais modernas, como as do México (1917) e de Weimar (1919), elevando o direito dos trabalhadores ao patamar de direitos fundamentais; (iv) as recomendações e convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), com vistas a universalização da justiça social trabalhistas. Suas normas quando ratificadas pelas regras constitucionais passam a integrar o sistema jurídico nacional do país signatário, possuindo força de lei; (v) as leis brasileiras do pré-1943; (vi) os julgados iniciais da nascente Justiça do Trabalho; e (vii) a Carta Del Lavoro, rol de princípios 28 Em última instância, de onde se extrai o sistema jurídico a partir das relações objetivas e subjetivas que os sujeitos travam entre si e com o meio social ao longo do processo histórico (GENRO, 1994). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 72 apresentados pelo Partido Nacional Fascista italiano, cujo objetivo era orientar a organização social do trabalho com base no sistema de corporações classistas, organizadas hierarquicamente entre trabalhadores, patrões e o Estado, sendo este último a instância subordinadora por excelência. Além dessas, outras disposições foram incorporadas pelo direito brasileiro, como o direito ao repouso, à jornada de oito horas diárias; à indenização por despedida arbitrária; às férias anuais; ao poder normativo da Justiça do Trabalho e á unicidade sindical compulsória. Nesse movimento de construção da autonomia jurídica e doutrinária do Direito do Trabalho alguns pressupostos norteadores foram se consolidando. Segundo GENRO (1994), princípios são categorias ideológicas, cujos conteúdos se submetem à significação do momento histórico em que se encontram inseridos. A Consolidação das Leis do Trabalho prescreve que: Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público (BRASIL, 1943). Da simples leitura do dispositivo percebe-se que os princípios do direito do trabalho são fontes constitutivas (base de produção) e orientadoras (base de aplicação/interpretação) das normas trabalhistas. Assim, os princípios que delineiam não só a CLT, como o todo o Direito do Trabalho, são produtos de um determinado período da humanidade e se atualizam na medida em que as relações sociais se desenvolvem. Como ramo característico do Direito, o ordenamento jurídico trabalhista conta com um rol principiológico específico a nortear suas atividades. Mesmo num cenário de inexatidão, tendo em vista a criatividade dos teóricos nacionais e estrangeiros em criar denominações diferenciadas que melhor se ajustem às suas orientações político-filosóficas, existem princípios trabalhistas nucleares que não fogem às classificações. Esses sim serão objetos de análise. Entretanto, antes de se iniciar os debates acerca da dimensão protetiva dos princípios no Direito do Trabalho, faz-se necessário melhor compreender que sujeito é esse que a legislação põe-se a proteger. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 73 Para Arnaldo Süssekind (2005), a Consolidação do Trabalho teve uma significação histórica, proporcionando o conhecimento global dos direitos e obrigações trabalhistas, “não só aos intérpretes e aplicadores das leis, mas, sobretudo, aos seus destinatários: os empregadores e empregados”. A missão educativa da CLT criou as condições para o desenvolvimento da industrialização no país a partir do atendimento de bandeiras históricas dos trabalhadores e estruturando um amplo sistema jurídico (com órgãos, leis e institutos) de composição dos litígios trabalhistas de modo a abrandar a ação/mobilização direta dos operários. Sobre a relação da CLT com o processo de avanço do padrão urbano-industrial, fala Orlando Gomes, A Consolidação das Leis do Trabalho deu generoso passo para a integração dos trabalhadores no círculo dos direitos fundamentais do homem, sem o qual nenhuma civilização é digna desse nome (...). Organizados os instrumentos jurídicos destinados a recompor os conflitos sociais, concorreram para amortecer inevitáveis choques, empregados como tem sido desde então para soluções pacíficas que arrefecem ardores belicistas das classes antagônicas, reincidentes de quando em vez. Nesse passo, o mérito maior da Consolidação parece que foi a sua função educativa, função própria das leis que se antecipam aos fatos. A seu crédito deve levar-se profilaxia desses conflitos, permitindo que não tivéssemos de repetir no campo das relações entre o patronato e o operariado dolorosa experiência de outros povos (apud SÜSSEKIND, 2005: 68). Nesse sentido, o controle da força de trabalho, contraditoriamente, se deu a partir do atendimento das necessidades históricas dos trabalhadores urbanos. Sem dúvida, um dos destinatários centrais da legislação social. A CLT excluiu expressamente os trabalhadores rurais de sua onda protetiva, como já fora visto. O sujeito de direito a quem a CLT pretende dar cobertura é a pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário (BRASIL, 1943, art. 3º). Assim, do conceito de empregado se pode retirar os requisitos necessários à confirmação da relação de emprego: (i) que é a sua pessoalidade, decorrente na natureza do contrato cujo objeto é a força de trabalho posta a serviço do seu comprador, logo, não podendo a pessoa jurídica celebrar relação de emprego na qualidade de empregado; (ii) seu caráter não eventual, sendo a prestação do trabalho necessária à atividade do empregador. Assim, para que o trabalhador desfrute das prerrogativas que a legislação do trabalho lhe confere, é preciso que a prestação do serviço seja perene, habitual (GOMES & GOTTSCHALK, 2001). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 74 A idéia de permanência assume uma dupla dimensão: de um lado estimula a máxima duração do contrato de emprego através das normas trabalhistas, materializando o princípio da continuidade da relação de emprego, do outro exclui o trabalhador esporádico, eventual, aquele intermitentemente ligado a vários empregadores do quadro de proteção, por não possuir um dos elementos essenciais à relação empregatícia. Entretanto, se a relação é descontínua, mas de caráter permanente, deixava-se de configurar a eventualidade, reconhecendo seu caráter habitual; (iii) de cunho oneroso, pois, a relação de emprego por ser sinalagmática, requer contraprestações recíprocas entre empregado (execução do serviço) e empregador (pagamento do salário); e (iv) a subordinação, representada pela introjeção do domínio do empregador pelo empregado, assumindo diversas acepções, podendo ser, hierárquica, quando decorrente das ordens de um superior funcional, econômica, quando o trabalhador se encontra num estado de dependência econômica em relação ao empregador, jurídica, estado de dependência produzido pelo direito positivo, técnica, dependência em função d conhecimento/papel no processo produtivo e social, representada pela subordinação de classe (RODRIGUES, 2004). Retrato claro do trabalhador urbano-industrial, fruto do novo padrão de desenvolvimento econômico vivido no país. O trabalhador rural aqui não aparece como sujeito de direito dessa legislação direcionada à proteção do trabalho. No plano dos princípios, o primeiro é justamente o da proteção, elemento estruturante do Direito do Trabalho. Inspirado em estabelecer um amparo jurídico preferencial a um pólo da relação negocial trabalhista, o princípio da proteção faz reconhecer no plano do direito uma desigualdade que se materializa no plano econômico. Tem por fundamento a própria crise do liberalismo, ao romper com igualdade formal, se propondo a combater as conseqüências danosas da liberdade contratual absoluta entre indivíduos com poder e capacidade econômica desiguais. Para se compensar a desigualdade cria-se um conjunto de regras protetivas à parte hipossuficiente, com o intuito de se nivelar a relação entre aqueles que vendem e os que compram a força de trabalho (PLÁ RODRIGUEZ, 2007). Cabe pontuar que o principio em destaque possui uma (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 75 limitação substancial na sua aplicação concreta que é a predominância de uma situação histórica fundamentalmente adversa ao trabalhador que é a manutenção do modo de produção da riqueza social calcado na apropriação privada do trabalho humano. O art. 9º da CLT expressa singularmente a intenção do princípio em destaque, ao dispor: “Art. 9º - Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”. Desdobra-se o referido princípio em três regras básicas, sendo: (i) in dubio pro operario – no caso da norma comportar mais de um sentido, deverá o operador/aplicador do direito optar pela mais conveniente ao trabalhador, desde que exista dúvida crível sobre o alcance da norma e não afronte clara disposição legal; (ii) norma mais favorável –quando o caso concreto for passível de regulação por mais de uma norma trabalhista, aplicar-se-á a que se apresentar de modo mais favorável ao trabalhador, independentemente da sua colocação na escala hierárquica das regras jurídicas; (iii) condição mais benéfica – direcionada a aplicação da norma trabalhista no tempo, com o intuito de se resguardar os benefícios conquistados pelo trabalhador mesmo que por ventura advenha norma pública prescrevendo menor nível de proteção. É dessa regra que se retira a garantia de acúmulo de vantagens pelo operariado, atualmente mitigado pelas investidas de flexibilização dos direitos sociais29. Destaca-se agora o princípio da continuidade da relação de emprego. Estipula a presunção de indeterminação do tempo do contrato de emprego, salvo disposição em contrário. Esse princípio aparece como reflexo de um período histórico em que a preocupação com a submissão regular e disciplinada de um amplo contingente de mão-de-obra ainda não estava superada para os empregadores e para o Estado. Ao mesmo tempo manifestava avanço para os trabalhadores, na medida em que foram instituídos instrumentos de garantia e indenização para os casos de despedida arbitrária (BRASIL, 1943, arts. 146, 147, 477, 481), criação do aviso prévio (BRASIL, 1943, art. 487), entre outros. Diante de um cenário de intensificação do desemprego estrutural e de conseqüente ampliação do exército de reserva, o 29 Sobre o tema ver: (DRUCK & FRANCO, 2007). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 76 princípio da continuidade vem sendo mitigado pela intensa rotatividade da força de trabalho nos postos de emprego. Com a fim da estabilidade decenal30 para implementação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), viabilizou-se o manejo estratégico e menos oneroso dos trabalhadores como forma de melhor responder às flutuações do cenário econômico, ou seja, criando as condições para o livre rompimento do contrato de emprego, livrando-se dos trabalhadores, pagandolhes o menor valor possível31. Dados do Dieese e do Ministério do Trabalho e Emprego referentes ao período de 2003 a 2009 dão a dimensão do grave problema que é a flexibilidade contratual do mercado de trabalho brasileiro. Dois terços dos trabalhadores são demitidos antes de alcançarem um ano de contrato; o tempo médio de emprego do trabalhador brasileiro é de apenas quatro anos; a remuneração média das admissões são inferiores à remuneração média das demissões; há um grande contingente de trabalhadores intermitentes no país, variando da condição de contratados e desligados por vários anos; 40% dos trabalhadores são demitidos com menos de seis meses de trabalho; 76% a 79% não completam dois anos de trabalho32. Quando se fala no meio rural esses números são ainda mais significativos. A taxa de rotatividade dos trabalhadores apesar de ter representado queda, passando de 79,9% em 2007 para 74,4% em 2009, ainda se mantém em níveis alarmantes (MTE/DIESSE, 2009). Outro princípio é o da irrenunciabilidade ou indisponibilidade de direitos. Tanto o rol de direitos básicos outorgados pela legislação como aqueles incorporados ao longo da vigência do contrato são irrenunciáveis pelo 30 Dispunha o art. 492 da CLT - O empregado que contar mais de 10 (dez) anos de serviço na mesma empresa não poderá ser despedido senão por motivo de falta grave ou circunstância de força maior, devidamente comprovadas. Assim, em casos de despedida sem justa causa fazia jus o trabalhador a indenização no valor de um mês de sua maior remuneração por cada ano ou ração maior do que seis meses de efetivo serviço prestado. Declarada como cláusula anti-produtiva, a estabilidade decenal foi substituída por uma garantia condizente aos bolsos dos patrões, sendo instituído o FGTS no ano de 1966 pela Lei n. 5.107, atualmente regulada pela Lei n. 8.036 de 1990. 31 As estatísticas apontam que em 2007 foram gerados 14,7 milhões de empregos formais com carteira assinada, enquanto mais de pouco mais de 13 milhões foram demitidos, deixando um saldo de admitidos positivo de 1,6 milhão – IN: http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/5464/A_Alta_Rotatividade_da_Mao_de_Obra_no_B rasil_Aponta_para_Necessidade_de_Regulamentacao_Proibitiva, acessado em 29 de maio de 2011, as 13:43. 32 Movimentação Contratual no Mercado de Trabalho Formal e Rotatividade no Brasil – DIEESE – IN: http://www.mte.gov.br/institucional/rotatividade_mao_de_obra.pdf, acessado em 29 de maio de 2011, às 14:13. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 77 trabalhador. Na sua condição de dependente econômico, o trabalhador por estar exposto a inúmeras fragilidades inerentes à relação de assalariamento, em situações extremas seria pressionado a abrir mão de certas garantias com vistas à manutenção do seu vínculo. Nesse princípio também se manifesta claramente a tentativa de limitar a autonomia privada como forma de equiparação das partes no estabelecimento das relações trabalhistas. Princípio da intangibilidade salarial. Em função do seu caráter alimentar, a remuneração do trabalhador encontra proteção legal de modo a assegurar seu valor de compra, seu montante e sua disponibilidade (DELGADO, 2008). “Salário é a soma em dinheiro que o capitalista paga por um determinado tempo de trabalho ou pela prestação de um determinado trabalho” (MARX, 2006: 34). Para o teórico revolucionário alemão, salário na verdade é nome fictício dado ao preço da mercadoria força de trabalho. Quando essa é colocada em ação, materializando-se em trabalho propriamente dito, passa a ser a própria atividade vital do proletário colocada à disposição na formamercadoria para o uso do seu comprador segundo seus interesses. Essa relação é mediatizada por um contrato “livre”, bilateral e sinalgmático, comportando prestações recíprocas às partes envolvidas, sendo a execução responsabilidade do operário e o pagamento da remuneração obrigação do empregador-proprietário dos meios de produção. Justamente pelo salário ser o componente essencial para a reprodução física e psíquica do trabalhador, é que se tem a necessidade de sua proteção. Princípio da razoalibilidade. Na verdade se propõe a orientar não só o ramo do Direito do Trabalho, mas sim, todo o sistema jurídico do Estado Democrático de Direito. Não possui um conteúdo fechado, aliás, como todos os princípios, relacionando-se diretamente com o problema da realidade a ser enfrentado. De maneira genérica, afirma que toda relação trabalhista, bem como as atividades de produção e interpretação das regras jurídicas laborais devem proceder segundo critérios de razoabilidade, bom senso, evitando situações grotescas. Esse postulado alarga as trincheiras de defesa da realidade concreta em detrimento do formalismo burocratizante, guardando seu conteúdo íntima relação com os princípios da primazia da realidade e da proporcionalidade. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 78 Por fim, passa-se à análise do princípio da primazia da realidade, postulado que bem caracteriza a natureza tutelar do direito laboral. No processo de desenvolvimento da normativização das relações trabalhistas, a liberdade contratual no mundo do trabalho se concretizava apenas no plano formal, sendo o conteúdo do contrato de trabalho delimitado a partir da autonomia privada das partes, objeto da lei civil. É a partir de 1930 que o trabalhador vai assumindo lenta e gradualmente a condição de sujeito de direito de uma legislação social vasta a regulamentar diversos aspectos da relação de trabalho assalariado, constituindo-se num Direito informado por princípios que lhe dão fisionomia, um Direito que, rompendo com o primado de autonomia das vontades, busca compensar a desigualdade econômica desfavorável ao trabalhador e mitigar o desequilíbrio inerente a uma sociedade capitalista (BIAVASCHI, 2007: 111). Assim, o pacto sunt servanda33, princípio tradicional do civilismo, centrado na obrigatoriedade das relações contratuais entre as partes, deixa de ser o parâmetro absoluto para a regulamentação do trabalho e nesse movimento de construção autônoma do Direito Laboral, a teoria da primazia da realidade e o contrato-realidade cumpriram [e cumprem] papel central no rompimento com o Direito Civil. Estabelece o princípio que entre a verdade formal e a verdade real, prevalece esta última como base para delimitação da relação de trabalho (NASCIMENTO, 2003). Nesse caso, “a relação objetiva evidenciada pelos fatos define a verdadeira relação jurídica estipulada pelos contratantes, ainda que sob capa simulada, não correspondente à realidade” (SÜSSEKIND, 145). E a questão do contrato aparece como aspecto diferencial. Estabelece a CLT: “Art. 442 - Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego” (BRASIL, 1943). O objetivo não foi suprimir a vontade de contratar entre trabalhador e empregador, já que este quesito é fundamental ao processo de compra e venda da força de trabalho, mas sim, trazer ao plano fático os critérios definidores da relação trabalhista, observados os limites de proteção social. Art. 444, CLT - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não 33 “Os pactos devem ser respeitados” (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 79 contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes (BRASIL, 1943). Essa é uma fase diferenciada, pois, para além da relação absoluta do direito de propriedade ou da igualdade formal entre as partes do negócio jurídico, o advento da legislação protetiva eleva a realidade à condição de elemento central para da relação de emprego ao mesmo tempo em que limita a autonomia da vontade a partir do momento em que represente prejuízo concreto ao trabalhador. Art. 468, CLT - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia (BRASIL, 1943). Assim, deve-se procurar concretamente a prática efetivada ao longo da prestação de serviço, independentemente do pactuado no momento de constituição da relação jurídica. O conteúdo do contrato não se restringe àquilo previsto no instrumento escrito, sendo conformado na medida em que as relações vão se desenvolvendo no cotidiano. Se concretamente se verificar os elementos jurídicos que definem a relação de emprego, o negócio inicial será reconsiderado em função da realidade. A CLT marca um momento de redefinição da posição jurídica do trabalhador na medida em que o ordenamento brasileiro passou a reconhecer sistematicamente no seu plantel normativo, instrumentos destinados à proteção social do trabalho. Mas e o trabalhador rural? 2.5. A REGULAÇÃO “SOCIAL” DO TRABALHO RURAL EM TEMPOS DE MODERNIZAÇÃO Adquirindo exponencial relevância no cenário econômico brasileiro, o setor industrial passa a assumir as rédeas do processo de reprodução do capital no país, pautando as decisões de ordem política e econômica, principalmente em função dos interesses predominantes da indústria [nacional e internacional]. Agora as palavras de ordem passam a ser a racionalização (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 80 taylorista e especialização do trabalho; desenvolvimento da mecanização e produção em massa (FERREIRA, 1993). A apreensão da modernização do campo no país não pode ser reduzida à inserção/uso de novas tecnologias dentro do processo produtivo, e nem mesmo às alterações travadas no plano da organização do trabalho. Deve necessariamente conceber um leque mais amplo de relações sociais, que englobam o elemento produtivo, mas caminham para além dele. Intensificação dos conflitos no campo, expropriação do campesinato, a inserção do Estado através da execução de uma política agrícola impulsionadora do modelo espoliador e a intensificação da concentração fundiária aparecem enquanto marcas características dessa avalanche modernizadora. A adjetivação “conservadora” aparece enquanto opção política do Estado e da elite nacional em manter as bases expropriatórias vinculadas historicamente ao latifúndio, dando-lhe uma nova cara [avanço na modernização], mas mantendo o velho corpo. A edição da lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida como Estatuto da Terra, representou um marco na modernização produtiva da agricultura, inserido num processo transitório, o Estatuto da Terra dividiu-se entre as expectativas dos trabalhadores rurais de verem ampliadas as possibilidades de democratização do acesso a terra [acúmulo político criado pela classe trabalhadora nas décadas anteriores] e o que de fato se verificou com a modernização do latifúndio, já inserido na crise de produtividade. Assim, a nova lei encerrou em sua estrutura dois aspectos contraditórios, cumprindo funções distintas que desembocaram num mesmo objetivo. As movimentações campesinas geradas nas décadas passadas (avanço organizativo da classe, intensificação e intencionalidade dos conflitos fundiários, etc), em função do crescimento das desigualdades, acirravam-se cada vez mais, aumentando os índices de conflitos por terra, e urgiam por uma resposta estatal. Paralelamente, o governo militar sofria pressão tanto da burguesia nacional quanto [e principalmente] do capital internacional para implementação de projeto de modernização que tem na concentração fundiária seu alicerce produtivo. Desta maneira, o estatuto cuidou de apaziguar as movimentações populares de luta pela terra, com a promessa [mal fadada] de execução de um plano de democratização do acesso a terra, através da (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 81 reforma agrária, bem como ofereceu as bases necessárias à consecução do projeto industrializante da agricultura sob as rédeas do capital estrangeiro. O Estatuto da Terra abriu brecha para o financiamento público de um projeto centrado no antagonismo entre modernização/industrialização e exclusão social. A política de instalação das grandes empresas no campo tomou e toma por base a expropriação e a expulsão dos trabalhadores rurais de suas terras, na concentração da propriedade fundiária e no aumento progressivo da produtividade. MARTINS (1985) atesta que a combinação desses fatores foi quem definiu o lugar e o alcance dos instrumentos legais e administrativos para a inviabilização de uma reforma agrária verdadeiramente democratizante. De 1970 a 1975, a política de distribuição fundiária, abalizada sobre o Estatuto da Terra, garantiu não só o avanço da concentração da propriedade rural (71% dos novos estabelecimentos rurais “distribuídos” tinham mais de mil hectares) como a multiplicação dos conflitos por todo país. O processo de amadurecimento da legislação social extensiva aos trabalhadores rurais não acompanhou o mesmo ritmo do operariado urbanoindustrial, tendo sido fruto de outras conjunturas históricas. Diferentemente dos trabalhadores citadinos, parcimoniosamente foram levadas algumas medidas de proteção social. Os trabalhadores rurais foram “preteridos de quase todas as leis sociais que conseguiram se corporificar nos esparsos decretos da Primeira República, excluído das leis do trabalho que se decretaram a Segunda República e continuou praticamente marginalizado na Consolidação das Leis do Trabalho” (FERRANTE, 1976: 190). Com vinte anos de atraso em relação ao código do trabalho urbano (sem considerar os séculos de exploração do trabalho no campo), foi com a edição da Lei nº 4.214 de 02 de março de 1963 que o trabalhador rural adquiriu seu estatuto próprio. Denso documento assinado pelo então presidente João Goulart, regulando diversos aspectos da relação de emprego e de trabalho ao longo dos seus 183 artigos, o Estatuto do Trabalhador Rural foi promulgado num período histórico em que vinham se multiplicando inúmeros conflitos sociais em função do problema da concentração fundiária. Os trabalhadores (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 82 estavam mobilizados politicamente através das Ligas Camponesas, dispostos/as a lutar por melhores condições de vida e trabalho. Cumprindo papel também contraditório, o ETR, assim como a CLT, ao mesmo tempo em que representava bandeiras históricas dos/as trabalhadores/as rurais, serviu estrategicamente, articulada com a forte investida militar, para desmobilizar o campesinato em luta contra o latifúndio e a exploração do trabalho. O ETR não conseguiu romper com a Consolidação, na medida em que não observou as especificidades das relações de trabalho na agricultura em função das relações de trabalho tanto na indústria como no comércio. Foi montado de uma perspectiva errada, tomando-se como modelo o trabalhador urbano, sem se levar em conta a diversificação das relações de trabalho rurais. De certa forma, vários benefícios por ele assegurados (salário mínimo, férias, aviso prévio, outros) de longa data eram direito do trabalhador rural, permanecendo, entretanto, como letra morta, sem que houvesse denúncias por parte das forças políticas interessadas, da escandalosa violação da lei (...). Principalmente por ter havido, quase que pura e simplesmente, uma transposição para o trabalhador rural das disposições legais traçadas para a legislação trabalhista ligada ao trabalhador urbano” (Idem, 195). Valendo-se das críticas ao Estatuto do Trabalhador Rural, só que reorientadas à manutenção dos interesses das elites rurais, dez anos mais tarde chega ao Congresso Nacional um projeto de lei acompanhado da exposição de motivos do então Ministro do Trabalho, Júlio Barata. Apontava uma série de críticas em relação a sua condição de cópia da CLT não “corretamente reproduzida”, à ausência de um sistema de sanções capazes de garantir a observância da lei; ao exorbitante número de leis sobre a matéria, tornando árduo o trabalho dos intérpretes e aplicadores do direito. Em 8 de junho de 1973, entra em vigor a Lei n. 5.889, propondo-se a regulamentar as relações de trabalho rural de maneira combinada com as disposições compatíveis da CLT. A redução quantitativa que produziu um texto final de apenas 21 artigos fundamentou-se na idéia de que a CLT era também o código do “homem do campo”, devendo a nova lei somente se preocupar em discriminar as peculiaridades do trabalho rural, tarefa não cumprida pelo antigo ETR. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 83 2.5.1. SUJEITOS PROTEGIDOS PELA LEI N. 5.889/1973. O contrato de trabalho subordinado pressupõe, como qualquer contrato, a existência de sujeitos necessários à conformação do negócio jurídico. E nessa relação, uma série de requisitos torna a relação de emprego rural bastante característica dentro do ordenamento. Desta maneira, parte o presente trabalho para a análise desses sujeitos, restando o estudo do contrato de trabalho como tarefa para o próximo capítulo. Assim, a Lei n. 5.889/73 tem por destinatário principal o empregado rural, sendo este: “Art. 2º - (...) toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviço de natureza não eventual a empregador rural, sob a dependência deste e mediante salário” (BRASIL, 1973). Um destaque à substituição do termo “trabalhador”, usado no ETR de 1963, para o termo “empregado”, cópia da CLT, no novo diploma legal. A mudança se deu em função de duras críticas aos desdobramentos da aplicação do conceito, já que o termo do velho estatuto abrangia um coletivo maior de trabalhadores, ampliando o campo de aplicação das regras sociais a contratos já tipificados no âmbito da legislação civil, como os de parceria e de arrendamento, onerando ainda mais os empregadores (PRUNES, 1975). A diferenciação mínima se deu com a incorporação das partes já descritas pelo antigo estatuto trabalhista rural. A similitude do conceito de empregado rural da Lei n. 5.889 com o disposto na CLT dispensa comentários. Pode-se extrair como elementos caracterizadores do empregado do campo: (i) pessoalidade – nos mesmos moldes do conceito celetista já explicitado, sendo aqui o sujeito é pessoa física que coloca à disposição do patrão sua força de trabalho; (ii) não eventualidade – vinculado à idéia de permanência, de continuidade, de perenidade da relação contratual, que no contexto do agronegócio mecanizado está cada vez mais difícil, chegando os índices a atingirem quase 80% de rotatividade da mão-deobra do campo (o tema será analisado especificamente no capítulo terceiro da presente pesquisa); (iii) subordinação – é a dependência inerente da sociedade de classes que confronta os proprietários privados dos meios de produção contra os detentores exclusivos da força de trabalho; (iv) onerosidade – relação (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 84 estabelecida mediante pagamento de contraprestação pecuniária destinada à reposição da força de trabalho; (v) propriedade rural ou prédio rústico – sendo compreendida como estabelecimento rural ou unidade de produção rural, elemento que reporta ao desenvolvimento de atividade rural; (vi) prestar serviços a empregador rural – cuja caracterização se dará mais adiante (BRASIL, 1973, art. 3º). O conceito de empregado rural trazido com a nova lei também foi não além das limitações já apresentadas, reduzindo a variabilidade das relações de trabalho no campo a um quadro mínimo de situações que não refletem a realidade do meio rural, reduzindo seu núcleo protetivo a uma pequena parcela de trabalhadores. Uma das características do trabalho rural é sua a multiplicidade de vínculos possíveis reconhecidos pelo ordenamento. Nessa perspectiva, dispõe o art. 17 da referida lei: “As normas da presente Lei são aplicáveis, no que couber, aos trabalhadores rurais não compreendidos na definição do art. 2º, que prestem serviços a empregador rural”. PIRES (1996, p. 43) define trabalhador rural como todo aquele que trabalha em serviço ligado à atividade agropecuária, ou indústria rural, não sujeito a um contrato de trabalho, não tendo a condição de empregado rural, e por isso sem direito à percepção dos direitos trabalhistas assegurados na Lei e na CLT. Nesse caso, o autônomo, o empreiteiro, o comodatário, o avulso, o temporário, o parceiro, o arrendatário, o empregado doméstico passam a contar com a proteção da Lei n. 5889/73, na medida de suas compatibilidades. Estabelece ainda como sujeito da relação de emprego, a figura do empregador rural, sendo este: “Art. 3º - (...) para os efeitos desta Lei, a pessoa física ou jurídica, proprietário ou não, que explore atividade agro-econômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de prepostos e com auxílio de empregados (BRASIL, 1973). Seguindo as orientações de VALERIANO (2003), deste conceito também se extrai elementos específicos que tornam “singular” o empregador rural, diferenciando-se do “empregador genérico” da CLT, a saber: (i) pessoa física ou jurídica – a pessoalidade é característica exclusiva do empregado, (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 85 admitindo o ordenamento trabalhista a compra da força de trabalho por um ente abstrato de direito com existência e obrigações distintas da dos membros que a integram; (ii) proprietária ou não – o que define a condição de empregador não é a as condição de proprietário do empreendimento agrícola, mas sim o simples desenvolvimento de atividade agropecuária; (iii) exploração de atividade agro-econômica – justamente por ser o elemento básico onde se recai o trabalho rural, atentando para a possibilidade elencada no art. 4º, ao permitir o empregador por equiparação, sem que haja exploração direta, mas de forma profissional mediante utilização de terceiros; (iv) em caráter permanente ou temporário – pouco importando a efetividade do empreendimento ao longo do tempo; (v) exploração direta ou através de prepostos – enquanto o empregador assume os riscos da atividade econômica, preposto é aquele que atua por delegação, sendo representante, agindo em nome do primeiro. Na exploração da atividade agrícola a relação de emprego pode se dar de três forma distintas, sendo (a) direta, entre o dono do empreendimento e o empregado, (b) indiretamente, por intermédio de um preposto que responde pelo proprietário do empreendimento e (c) indiretamente, através de um empreiteiro que atua por conta de quem explora atividade agro-econômica, em nome próprio (Idem, 45) Tanto na primeira como na segunda hipótese, a relação empregatícia se forma diretamente com o proprietário da atividade agropecuária, já na terceira, o vínculo se dará com o empreiteiro, enquadrando-se no disposto no art. 4º da lei em destaque. Visto quem são os sujeitos e seus critérios definidores, resta agora caracterizar as relações travadas entre empregados e empregadores rurais na realidade Pode-se perceber, então, com a análise do processo de regulação pública do trabalho rural, que esta estrutura teve como preocupação principal não a defesa concreta ou mesmo a criação de condições favoráveis ao exercício digno do trabalho rural, mas sim em garantir aos proprietários mecanismos de acesso à mão de obra de forma barata e em larga escala. É tanto que, como foi evidenciado, a legislação social posterior à Era Vargas, destinada aos trabalhadores rurais, se constituiu como reprodução dos (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 86 principais elementos da CLT, não abordando as especificidades do trabalho rural, repercutindo no baixo grau de incidência das garantias sociais trabalhistas no meio rural Em seguida, será possível verificar a partir de elementos concretos que, mesmo com o advento desta legislação social que rompe, em certa medida, com os postulados do liberalismo jurídico, a efetivação dos pressupostos legais encontrou obstáculos nas relações concretas de produção e de subsunção do trabalho ao capital. Neste sentido, o próximo capítulo tem como objetivo analisar no plano concreto, a capacidade regulatória dessa legislação social frente aos problemas enfrentados pelos trabalhadores rurais nesse cenário de expansão da modernização da agricultura no país. Para tanto, será estabelecido um panorama acerca das relações de emprego rural na fruticultura irrigada na região do Submédio do São Francisco como forma de confrontar realidade e os instrumentos protetivo direcionados ao trabalho no campo. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 87 3. FRUTOS DA MODERNIZAÇÃO: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO E EXPLORAÇÃO CONTINUADA DO TRABALHO RURAL – O CASO DA FRUTICULTURA IRRIGADA NO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO Após um longo caminho percorrido para melhor delinear o processo de regulação pública das relações de assalariamento rural, o que se pode verificar mesmo após o advento da legislação social trabalhista, foi um alto grau de exploração da mão-de-obra do homem e da mulher do campo. O processo de regulamentação social do trabalho rural encontrou grande limitação em garantir a proteção devida ao/a trabalhador/a da agricultura seja pela cultura histórica [institucional e privada] de desvalorização do trabalho no meio rural, com suas raízes cravadas lá no período da escravidão; ou ainda pela forte resistência dos setores patronais em efetivar a legislação trabalhista (forma de diminuir os custos de produção num cenário de forte concorrência econômica, onde a redução dos encargos representa muitas vezes garantia de competitividade); ou mesmo pela situação desfavorável na correlação de forças entre capital e trabalho no campo, a partir do avanço do modelo do agronegócio e do enfraquecimento/cooptação dos instrumentos organizativos dos trabalhadores. No período de edição da Lei 5.889/1973, o setor agropecuário vivenciou profundas mudanças no seu padrão produtivo, repercutindo tanto na estrutura das unidades de produção como nas formas de organização e utilização da força de trabalho rural. O fenômeno da industrialização da agricultura nacional, normalmente conhecido na literatura como modernização conservadora, veio acompanhado de modificações no plano das relações de trabalho no campo, trazendo novos desafios à ordem jurídico-trabalhista, principalmente no que diz respeito à cobertura social desses/as trabalhadores/as frente ao cenário de intensificação das violações. Altas taxas de informalidade, jornadas exaustivas, baixo padrão de salários, são alguns dos indicadores da situação [histórica] de precarização do trabalho no meio rural. Dentro dessa perspectiva, parte a presente pesquisa para a análise das formas de inserção e exploração da mão-de-obra assalariada rural na “moderna” agricultura brasileira, como forma de problematizar a regulação (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 88 pública das relações de emprego rural, principalmente no que diz respeito ao grau de incidência/observância dos direitos e garantias sociais na vida concreta dos trabalhadores do campo. Assim, será dada prioridade ao estudo da situação jurídico-trabalhista dos assalariados rurais na região do Submédio do São Francisco, a partir da análise tanto dos mecanismos de compra e venda da força de trabalho como das condições reais de exploração da mão-de-obra rural na estrutura produtiva da fruticultura irrigada, carro-chefe do agronegócio da região. Toda essa análise não pode se dar de forma deslocada dos movimentos gerais que orientaram essa “enxurrada” modernizadora do setor agropecuário no Brasil, por isso a caracterização desse fenômeno da “modernização” também se faz necessário. O objetivo é confrontar os rumos [e as conseqüências] do projeto hegemônico em pleno desenvolvimento na agricultura nacional com a realidade do trabalho no campo, a fim de se verificar a capacidade protetiva dessa legislação direcionada aos trabalhadores rurais. Eis o próximo desafio. 3.1. BASES DA MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA DA AGRICULTURA NO BRASIL Foi a partir da segunda metade da década de 1960 que a agricultura nacional passa vivenciar um novo estágio no seu padrão hegemônico de desenvolvimento, tendo na industrialização seu fenômeno mais expressivo. Esse processo de integração da indústria com a agricultura não se processou a margem das relações entre capital financeiro internacional, grandes empresas e Estado. A este último coube o papel de formulação de diretrizes e adoção de medidas favoráveis à expansão da modernização produtiva do setor agropecuário, viabilizando em larga escala recursos, infra-estrutura básica e assistência técnica especializada (LAVINAS, 2007). A orientação estava em garantir a expansão de novas plantas produtivas de capital nacional e estrangeiro, aprofundando as relações capitalistas na agricultura, a partir da combinação do uso de financiamento público, tecnologias sofisticadas e uma abundante mão-de-obra migrante, temporal e precária. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 89 Para LEITE (1995), a construção desse novo padrão agrário, redefinido a partir das novas formas de valorização do capital, articulou diversos aspectos, a saber: (i) econômico – ao concentrar os recursos financeiros disponíveis, como o crédito rural, nas mãos da grande produção; (ii) ecológico – ao intensificar/generalizar o uso de um padrão tecnológico baseado no binômio mecanização/química-mineral, cujos impactos sobre o meio ambiente já são amplamente sabidos; (iii) produtivo – na medida em que promoveu o processo de industrialização do campo, estreitando as interfaces entre agricultura e indústria, dominada por uma estrutura altamente oligopolizada; (iv) trabalhista – ao incrementar a sazonalidade da força de trabalho, principalmente nas culturas exportáveis, ao mesmo tempo em que fortalece o atrelamento do movimento sindical à estrutura estatal; (v) financeiro – ao passo que estimula a interferência do capital internacional na agricultura; (vi) demográfico – ao transferir mais de 28 milhões de pessoas do meio rural para o urbano no período de 1960-80, e deslocar sem as condições devidas, trabalhadores do centro e do nordeste para os projetos de colonização da Amazônia; (vii) social – ao manter condições insuficientes de trabalho e transporte no campo, aliada a um baixo padrão de salários, refletindo na diminuição da demanda por alimentos no mercado interno; (viii) geográfico – ao centralizar a modernização em determinadas regiões do país, principalmente no eixo sul-sudeste, ampliando as diferenças regionais. Outro elemento não elencado por Leite, mas que contribuiu sobremaneira à expansão do capital foi a inexpressiva inserção da regulação pública no interior das relações de trabalho no campo com vistas a imposição de limites à exploração da força de trabalho. A legislação trabalhista rural teve como objeto principal em boa parte da sua história a regulamentação dos aspectos formais da relação trabalhista (contrato, mecanismos de cumprimento, formas de rescisão, etc.), exercendo na prática papel estratégico na medida em que viabilizou o acesso amplo e o devido “aprisionamento” legal da força de trabalho pelos grandes proprietários. Quando na década de 60 esse corpo de leis assume dimensão social, o obstáculo se deu na falta de efetivação concreta na realidade dos/as trabalhadores/as. Nesse sentido, a fragilidade da regulamentação pública em estabelecer limites à exploração desmedida da força trabalho permitiu as elites agrárias o acesso fácil a um grande (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 90 contingente de mão-de-obra marginalizada da proteção social do trabalho, elevando os índices de produtividade e lucratividade. Mais a frente os impactos desse modelo no mercado de trabalho rural e nas condições de trabalho no campo serão melhor analisados. Retomando. O fenômeno da modernização da agricultura caracterizou-se pelo alto grau de complexidade e imbrincamento entre as diversas frações do capital agrário, industrial e financeiro. Nessa nova agricultura capitalista, as mudanças nos padrões técnicos de produção garantiram o aumento da produtividade basicamente através da expansão das áreas cultivadas (avanço da fronteira agrícola) e da inserção da alta tecnologia (o que proporcionou o aumento da produtividade física das lavouras). Segundo KAGEYAMA (apud STADUTO; SHIKIDA & BACHA, 2004), no processo de industrialização da agropecuária brasileira, dentre seu plantel, três transformações se destacam como as mais significativas. A primeira diz respeito às alterações no plano das relações de trabalho. Enquanto nos anos de 1960, o trabalho se mostrava num caráter mais individualizado, é com o avanço da tecnificação que este passa ter cunho coletivo, pois, ampliam-se as formas de submissão desse trabalhador no interior da estrutura produtiva. As atividades tornam-se cada vez mais especializadas, diferenciando o emprego da força de trabalho nas etapas do processo de produção, fragmentando as atividades do plantio a colheita. Acompanha-se o aumento das relações de emprego por tempo determinado. A regulamentação privada das relações expressa-se como situação mais freqüente no mercado de trabalho rural, num processo contínuo de violação das normas legais vigentes e mesmo as acordadas mediante negociação coletiva. Num cenário de regressão dos direitos sociais, a diminuta proteção e ausência de expressão sindical compõem a realidade do assalariado rural. Segundo dados de IBGE, em 2007, apenas 10% dos trabalhadores rurais do país – de um total de 16.579.000 – possuem carteira assinada. Isso quer dizer que, segundo dados oficiais, somente 10% dos trabalhadores num universo de quase 17 milhões, têm o reconhecimento formal público das suas relações de trabalho, conformando uma alarmante incapacidade regulatória dessas normas de proteção. Com a baixíssima incidência das normas públicas, delega-se à (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 91 iniciativa privada a função de estabelecer os parâmetros e as condições em que serão celebradas as relações de trabalho, ficando o/a trabalhador/a rural a mercê da saga acumulativa dos grandes proprietários. A segunda transformação refere-se á mecanização da agricultura. Inicialmente, no imediato pós-guerra, a inovação tecnológica residia em grande medida na substituição da força motriz dos animais (bovinos e muares) pela mecânica. Posteriormente aos anos 60, “a mecanização apresentava como principal característica a tentativa de substituir a habilidade manual e a destreza do homem” (Idem, 58). A terceira transformação diz respeito à internalização da produção de insumos, máquinas e equipamentos no interior do setor agropecuário, por meio da sua produção interna no país. A utilização desses implementos produtivos já se mostrava presente na agricultura, mas dependia em grande medida da capacidade econômica dos produtores em importar esses produtos. Com a produção interna no país, contando ainda com acesso fácil ao crédito rural pelos grandes proprietários, a mecanização vai se generalizando, conforme demonstra tabela abaixo ao apresentar o aumento do uso de maquinário, partindo da década de 1950 até as seguintes, sinalizando as mudanças do setor. Tabela 1 USO DE TRATORES NO BRASIL (1950-1985) ANO Nº DE TRATORES 1950 8.372 1960 61.338 1970 165.870 1975 323.113 1980 527.906 1985 665.280 Fonte: FIBGE – Censos Agrícolas do Brasil de 1950 e 1960; CensosAgropecuários do Brasil de 1970, 1975, 1980 e 1985. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 92 Se hoje o Brasil lidera como maior mercado de agrotóxicos do mundo34, movimentando uma cifra anual superior a U$ 7 bilhões de dólares, o inglório título se deve ao forte empenho dos setores públicos em introduzir novos padrões técnicos de produção monopolizados pelas grandes multinacionais de insumos e em menor parcela pelo empresariado nacional. A viabilização desse modelo se deu pela imposição via crédito rural e sua difusão ficou a cargo das agências estatais de assistência técnica, como explica Lia Giraldo35, pesquisadora da Fiocruz, ao fazer um resgate histórico de como se deu a inserção em larga escala dos venenos destinados à produção agrícola no Brasil: Desde a década de 70, exatamente no ano de 1976, o governo criou um plano nacional de defensivos agrícolas. Dentro do modelo da Revolução Verde os países produtores desses agroquímicos pressionaram os governos, através das agências internacionais, para facilitar a entrada desse pacote tecnológico. Em 1976, o Brasil criou uma lei do plano nacional de defensivos agrícolas na qual condiciona o crédito rural ao uso de agrotóxicos. Assim, parte desse recurso captado deveria ser utilizada em compra de agrotóxicos, que eles chamavam, com um eufemismo, de defensivos agrícolas. Então, com isso, os agricultores foram praticamente obrigados a adquirir esse pacote tecnológico. E também com muita rapidez foi formatado um modelo tecnológico de produção que ficou dependente desses insumos, e isso aliado ainda a uma concentração de terras, mecanização, com a utilização de muito menos mão de obra. Tivemos um grande êxodo rural: de lá para cá o Brasil mudou completamente, era um país rural e virou um país urbano, seguindo um fenômeno que aconteceu também em outros países. Então, o Brasil se rendeu às pressões econômicas internacionais na defesa desse modelo. Depois disso houve muito lobby político, inclusive, tivemos ministro ligado a empresas produtoras de agrotóxicos. E isso fez com que o Brasil não só passasse a ser consumidor, mas também produtor desses produtos. As cinco maiores produtoras de agrotóxicos têm fábricas no Brasil – Basf, Bayer, Syngenta, DuPont e Monsanto (...). Na divisão internacional do capital, o Brasil ficou com esse perfil de exportador de commodities, com um modelo de desenvolvimento baseado no agronegócio e essa é a explicação para sermos os campeões no uso de agrotóxicos (JÚNIA, 2011). Assim, para se entender a origem dessa política agrícola não basta verificar o aumento do número de maquinas ou do uso de fertilizantes 34 “O Brasil, segundo estudo da consultoria alemã Kleffmann Group, é o maior mercado de agrotóxicos do mundo. O levantamento foi encomendado pela Associação Nacional de Defesa de Vegetal (Andef), que representa os fabricantes, e mostra que essa indústria movimentou no ano passado US$ 7,1 bilhões, ante US$ 6,6 bilhões do segundo colocado, os Estados Unidos. Em 2007, a indústria nacional girou US$ 5,4 bilhões, segundo Lars Schobinger, presidente da Kleffmann Group no Brasil. O consumo cresceu no País, apesar de a área plantada ter encolhido 2% no ano passado”. Fonte: O Estado de S. Paulo. Disponível em: <http://migre.me/53mig>, acessado em 04 de junho de 2011, às 12:51. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 93 químicos, é preciso considerar que o golpe militar instaurado em 1964 teve, além de muitos outros objetivos estratégicos, a finalidade de “modernizar os coronéis latifundistas e [tentar] impedir o crescimento da luta dos camponeses, que vinham construindo suas formas de organização e resistência, principalmente a partir de meados da década de cinqüenta” (FERNANDES, 1998: 8). A aliança entre governo militar e o empresariado nacional e estrangeiro tinha como cerne a modernização tecnológica no campo, sem mexer na estrutura fundiária36 historicamente consolidada nas mãos das elites agrárias, sem falar no processo de valorização das terras mediante ação especulativa do capital financeiro internacional e na criação de uma grande reserva de força de trabalho. As políticas institucionais direcionadas ao desenvolvimento rural ficaram restritas em grande medida ao apoio à produção, principalmente para os setores ligados à economia exportadora de commodities agrícolas. Em 1965, logo no início da ditadura militar, o Governo Federal institui o Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) com o intuito de subsidiar em larga escala e de forma seletiva os médios e grandes produtores para investimento, custeio da produção em novas bases técnicas, comercialização, facilitando a implantação de indústrias de insumos (HESPANHOL, 2007), em suma, criando as condições para a ampliação e consolidação do modelo que ainda se tem hoje no campo brasileiro. O processo de expansão da agricultura capitalista não se deu à margem de problemas estruturais inerentes ao padrão desenvolvimentista adotado como a elevada concentração da propriedade da terra, a intensificação da exploração da força de trabalho, a forte expansão de vínculos trabalhistas instáveis (como os trabalhos por tempo determinado, temporário, diaristas, etc.), subordinação dos pequenos produtores aos ditames das grandes corporações agrícolas, o uso irracional dos recursos naturais (hídrico, mineral e florestal). 36 Segundo dados do Censo Agropecuário de 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o índice de concentração fundiária no Brasil 0,854. O índice de GINI é medido em uma escala de 0 a 1, em que o zero representa distribuição de terras absolutamente igual e o um, uma distribuição de terras totalmente desigual. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 94 3.1.1. O AGRONEGÓCIO COMO SÍNTESE HISTÓRICA DA MODERNIZAÇÃO A expansão da agricultura “moderna” ocorreu simultaneamente à formação dos complexos agroindustriais, na medida em que se aprofundou o processo de modernização das bases técnicas e das formas de produção agrícola (BALSAN, 2006). Já na década de 1950, pesquisadores da Universidade estadunidense de Harvard, John Davis e Ray Goldberg enunciavam o conceito desses complexos industriais agrícolas, ou agrobusiness, ou agronegócio como é comumente chamado no Brasil, sendo este: “a soma total das operações de produção e distribuição de suprimentos agrícolas, das operações de produção nas unidades agrícolas, do armazenamento, processamento, distribuição dos produtos agrícolas e itens produzidos a partir deles” (PADILHA JR, 2007: 3). Em termos formais, o complexo agroindustrial (CAI) pode ser definido como, um conjunto formado pela sucessão de atividades vinculadas à produção e transformação de produtos agropecuários e florestais. Atividades como: a geração destes produtos, seu beneficiamento/transformação e a produção de bens de capital e de insumos industriais para as atividades agrícolas; ainda: a coleta, a armazenagem, o transporte, a distribuição dos produtos industriais e agrícolas; e ainda mais: o financiamento, a pesquisa e a tecnologia, e a assistência técnica (MÜLLER, 1989: 45). Entretanto, essa definição técnica não revela a natureza da conjuntura histórica, das relações sociais e das bases materiais que envolveram a gênese e o desenvolvimento dessa estrutura produtiva na agricultura brasileira. Primeiramente, cumpre destacar que o agronegócio, nome dado ao modelo de desenvolvimento econômico da atual agropecuária capitalista, não é uma novidade, tendo sua origem datada lá no período da colonização, na estrutura da grande lavoura açucareira. Para os defensores do modelo do agronegócio, a pobreza e a miséria são mazelas vinculadas às grandes propriedades rurais latifundiárias, essencialmente improdutivas, e que foram transformadas, com a modernização, em “verdadeiras empresas rurais, ou seja, imóveis altamente (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 95 produtivos, explorados racionalmente e responsáveis por vários benefícios econômicos” (FABRINI, 2008: 37). Essa estrutura carrega muito mais inovações no plano político-ideológico do que significativas mudanças no plano econômico-produtivo, já que sua base de produção persiste na agricultura em extensas faixas de terra, monocultora, voltada para exportação, envolvendo complexos agro-industriais, utilizando-se em larga escala da financeirização dos capitais (FERNANDES, 2009). Segundo o autor, o agronegócio surge enquanto estratégia ideológica para tentar mudar a imagem negativa construída pelo latifúndio ao longo desses séculos de exploração, pois associa em sua essência a imagem da exploração, do trabalho escravo, da concentração fundiária, dos assassinatos no campo, mazelas que não deixam de macular a proposta “inovadora” do agronegócio. Em síntese, o agronegócio pode ser compreendido enquanto um complexo de sistemas englobando: (i) agricultura; (ii) indústrias; (iii) mercado; (iv) e finanças (FERNANDES, 2008). Avançando na formulação, a pesquisa retoma o conceito já utilizado no capítulo anterior por ser de uma completude característica. Apontam as mulheres camponesas da Via Campesina que o agronegócio é formado pela combinação de fatores como: (i) latifúndio - ao manter a grande propriedade como unidade produtiva por excelência, (ii) ciência e tecnologia – na medida em que amplia a inserção dos avanços tecnológicos direcionados à ampliação da produtividade física das lavouras, englobando desde a biotecnologia e a manipulação genética até o complexo maquinário das colheitadeiras por satélite, (iii) capital financeiro – justamente pela nova agricultura capitalista aglutinar diversos setores do capital financeiro internacional que passaram a investir seus recursos na terra como reserva de valor, (iv) indústria química e metalúrgica – por integrar na planta produtiva agrícola a produção dos insumos antes restritos à capacidade de importação dos proprietários rurais, (v) financiamento público – por ser o principal mecanismo de viabilização dos grandes empreendimentos rurais através da multiplicação das linhas públicas de crédito. Sobre esse ponto cabe um destaque. Como se não bastasse a monopolização do acesso ao crédito, o grande proprietário ainda representa os maiores índices de inadimplência quando o assunto é quitar a dívida pública. Segundo o Censo Agropecuário de 2006, as propriedades com até 10 (dez) (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 96 hectares, envolvendo 371.608 estabelecimentos, representam 7,1% do total da dívida, chegando a uma dívida média por estabelecimento de R$ 5,1 mil reais; já as propriedades com mais de 1.000 (mil) hectares, compreendendo 9.374 estabelecimentos, respondem por 33% do total da dívida, chegando a um valor médio de R$ 943 mil reais por estabelecimento; e por fim (vi) mídia – cumprindo o papel de travar a disputa ideológica perante a sociedade sobre as “vantagens” do novo modelo37. “O agronegócio é o novo rosto do latifúndio”, afirmam as camponesas em luta (VIA, 2011). CAMACHO et al (2011: 3-4) a partir de seus estudos incorpora outras categorias de análise para o entendimento da estrutura do agronegócio, como: (a) centralização – partindo de um controle centralizado da produção, processamento e de mercado, com unidades produtivas maiores e em menor quantidade; (b) dependência - no plano científico, de alto investimento tecnológico, no plano financeiro, de créditos e incentivos públicos; (c) competitividade – ênfase na eficiência, no controle de qualidade, vislumbrando maximizar o lucro; (d) domínio da natureza – redução da natureza a meros recursos a serem manipulados segundo as orientações do crescimento econômico; produtividade maximizada por meio de insumos industrializados e modificações de ordem genética; monopolização da produção através de royalties de produtos agrícolas patenteados; (e) especialização – predomínio da monocultura; sistemas de produção com certo grau de padronização e com etapas definidas; (f) exploração - intensa do trabalho e dos recursos naturais. Sobre o modelo do agronegócio, afirma João Pedro Stédile38: O investimento dos bancos internacionais em grandes empresas, através da compra de ações, deu origem a grandes conglomerados e verdadeiros oligopólios da agricultura, a exemplo do que aconteceu com o setor energético. A Monsanto é fruto desse fenômeno, formada por 56 empresas diferentes. Atualmente, produz a semente, vende o adubo, o fertilizante, as máquinas e até o remédio utilizado pelos agricultores que adoecem com o uso dos agrotóxicos. No setor de 37 Jornada de Lutas das Mulheres da Via Campesina 2011. IN: http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view=item&id=163:jornada-delutas-das-mulheres-da-via-campesina-2011, acessado em 04 de Junho de 2011, às 14:33. 38 "Agronegócio é o casamento das transnacionais com os grandes proprietários" – IN: Brasil de Fato, 12/07/2007: http://www.brasildefato.com.br/node/826, acessado em 04 de Junho de 2011, às 16:56. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 97 grãos, apenas cinco empresas controlam toda a cadeia, desde as sementes e insumos ao mercado internacional, entre elas a Monsanto, a Cargill e a Bunge. As transformações decorrentes desse processo de “modernização” da agricultura não ocorreram de maneira uniforme nas diversas regiões do país, muito menos em todos os tipos de produtores. Assim, privilegiou-se “as regiões mais desenvolvidas e os grandes produtores rurais, aumentando ainda mais a acumulação [monopolista] de capitais nesse segmento” (DIEESE, 2001: 212). É a partir da década de 1990, principalmente no pós-Plano Real (PRONI & HENRIQUE, 2003), que a modernização transcende os limites das regiões sul e sudeste. Na sua atual fase de expansão, a modernização tem sido feita com base nos elevados índices de mecanização nas diversas regiões produtoras do país, criando pólos de referência na produção agropecuária, pulverizados ao longo do território nacional, caso da fruticultura irrigada da região do Submédio do São Francisco que mais a frente será analisada. 3.2. MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA E OS IMPACTOS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO ASSALARIADO RURAL Inicialmente, cumpre destacar que quando o assunto é trabalho rural, deve-se partir do entendimento de que a diversidade de formas e relações é a marca característica do mercado de trabalho rural. Posseiros, arrendatários, parceiros, assalariados, que por sua vez se desdobram em permanentes e temporários, enfim, diversas são as possibilidades de ocupação e exploração da força de trabalho no campo. Em grande medida, essas relações encontramse reguladas pelo ordenamento jurídico nacional, num amplo leque normativo codificado e em legislação específica. Apesar dessa diversidade, a situação atual do trabalho no setor agropecuário tem sofrido sérios impactos com o avanço do padrão industrial e a crescente “modernização” das atividades produtivas dos empreendimentos agrícolas. Para a presente pesquisa, serão analisados os impactos dessas transformações nas relações de emprego rural, abrangendo empregados permanentes e temporários, principalmente no que diz respeito à situação jurídico-trabalhista dessa mão-de-obra. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 98 Uma das mudanças significativas dessa enxurrada modernizadora foi a expansão do assalariamento no campo, sobretudo no caso do emprego temporário (MORETTO; KREIN; POCHMANN & MACAMBIRA, 2010). Em relação às abordagens teóricas sobre a expansão do uso da mão-de-obra temporária na agricultura brasileira, duas se destacam como as mais influentes nos estudos sobre o tema. A primeira relaciona o crescimento das relações de emprego temporário ao surgimento das regras de proteção social do trabalho rural, como forma dos empregadores se eximirem do pagamento dos encargos trabalhistas, descaracterizando o núcleo protetivo central do ordenamento trabalhista (emprego por tempo indeterminado conforme preceitua o art. 443 da CLT [BRASIL, 1943]) para ampliar as margens de lucratividade das empresas agrícolas. Já a segunda referência teórica defende que o crescimento do trabalho assalariado temporário se deu em função da nova fase do desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira, potencializados pela crescente especialização das atividades agropecuárias (CACCIAMALI apud STADUTO et al, 2004). Por ser a realidade um todo dialético, não tem sentido polarizar de forma reducionista qual a causa específica do fenômeno, devendo sim compreendê-lo como síntese de múltiplas determinações sociais, econômicas e políticas, que englobam sem dúvida as causas acima descritas e ainda articulam outras a elas. Tanto a mecanização da produção agrícola das médias e grandes propriedades como a falta de uma política estruturada de apoio à agricultura familiar interferiram diretamente nas oportunidades de trabalho no campo brasileiro, operando-se a conversão de pequenos produtores em trabalhadores temporários, de forma permanente ou eventual como mecanismo de complementação da renda familiar (MORETTO at al, 2010). Existem ainda teóricos que explicam a expansão do trabalho temporário a partir da necessidade de acumulação ampliada do capital na agricultura brasileira. No caso nacional poderia haver, à primeira vista, três opções para essa acumulação capitalista, sendo essas (i) a extensão da jornada de trabalho; (ii) o aumento da intensidade do trabalho; e (iii) o aumento da produtividade. A primeira não perecia crível, tendo em vista os níveis já extremos da jornada. Quanto ao aumento da intensidade do trabalho, este deveria vir (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 99 acompanhado de uma contrapartida que no mínimo animasse o trabalhador, daí as gratificações, prêmios e a vinculação do salário à produção. A terceira via se deu através do alto investimento em capital constante, aplicado nos fatores de produção (matérias-primas, tecnologias, insumos, etc.), cuja modernização das unidades produtivas foi o principal reflexo. O aumento da produtividade repercutiu na exclusão parcial da força de trabalho rural, visualizadas tanto (i) na diminuição da capacidade de absorção da população rural - conforme demonstra o Censo Agropecuário do IBGE de 2006, o número total de pessoas ocupadas em atividades agropecuárias reduziu de 21,1 milhões, no ano de 1980, para 17,9 milhões em 1996, chegando a cifra de 16,4 milhões em 2006; (ii) como no aumento do desemprego rural, como se verificar na tabela abaixo. Tabela 2 Fonte: IBGE ANO POPULAÇÃO ANO DESOCUPADA EM ÁREAS RURAIS POPULAÇÃO DESOCUPADA EM 39 ÁREAS RURAIS 1992 271.408 2001 358.202 1993 260.132 2002 330.200 1994 * 2003 329.017 1995 281.048 2004 376.098 1996 341.725 2005 437.434 1997 358.479 2006 441.981 1998 463.331 2007 427.981 1999 503.652 2008 385.288 2000 * 2009 502.943 A década de 1990 representou um período de inserção intensa de tecnologias voltadas para a produção agrícola, direcionadas principalmente às 39 Número de pessoas que procuraram, mas não encontraram ocupação profissional remunerada na semana de referência da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), estimado a partir dos microdados da pesquisa. Elaboração: Disoc/Ipea. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 100 fases da colheita e pós-colheita, intensificando a redução da demanda de mãode-obra rural. O impacto das novas colhedoras sobre o nível de demanda de mãode-obra agrícola é muito significativo: na cultura do algodão, uma colhedora substitui o trabalho de 80 a 150 pessoas; no café, uma colhedora automotriz pode eliminar até 160 pessoas; na cana-deaçúcar, uma colhedora elimina o trabalho de 100 a 120 pessoas; na cultura do feijão, uma colhedora também pode substituir o trabalho de 100 a 120 pessoas (PRONI & HENRIQUE, 2003). Ao lado desse movimento de diminuição dos postos de trabalho no meio rural, percebe-se também um baixo nível de renda entre os/as trabalhadores/as rurais, segundo dados do IBGE apresentados na tabela logo abaixo. Tabela 3 Fonte: PNAD 2008 FAIXA DE RENDA EMPREGADOS EMPREGADOS PERMANENTES TEMPORÁRIOS ATÉ ¼ SALÁRIO MÍNIMO 10,00% 22,13% MAIS DE ¼ ATÉ ½ SALÁRIO 29,43% 30,79% 36,20% 32,33% 19,11% 12,35% 2,13% 0,75% 0,95% 0,05% 0,69% 0,04% SEM RENDIMENTO 0,00% 0,00% SEM DECLARAÇÃO 1,50% 1,56% MÍNIMO MAIS DE ½ ATÉ 1 SALÁRIO MÍNIMO MAIS DE 1 ATÉ 2 SALÁRIOS MÍNMOS MAIS DE 2 ATÉ 3 SALÁRIOS MÍNIMOS MAIS DE 3 ATÉ 5 SALÁRIOS MÍNIMOS MAIS DE 5 SALÁRIOS MÍNIMOS O cenário é tão degradante que quase 40% dos empregados permanentes e 55% dos empregados temporários recebem metade de um salário mínimo como contraprestação à venda da sua força de trabalho. Quando se eleva a renda até o limite de um salário mínimo as cifras chegam a atingir 75% e 85%, respectivamente. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 101 Apesar do valor mensal dos rendimentos das atividades agrícolas ter apresentado tímida melhora quando comparado aos anos anteriores (R$ 278 em 2004, R$ 295 em 2006), mantêm-se três vezes inferior do que o valor mensal das atividades não agrícolas, nem chegando ao montante de um salário mínimo, como pode ser observado na tabela abaixo. Tabela 4 Fonte: PNAD 2008 ATIVIDADE DO TRABALHO RENDIMENTO MÉDIO PRINCIPAL MENSAL DO TRABALHO PRINCIPAL (EM R$) AGRÍCOLA 335 NÃO-AGRÍCOLA 1.020 A institucionalização do salário-mínimo para os/as trabalhadores/as rurais no ano de 1963 não foi suficiente para garantir um padrão digno de contraprestação à venda da força de trabalho. O baixíssimo valor da remuneração mensal impõe uma situação de reprodução social desta mão-deobra em limites de escassez. E quando comparado o valor da remuneração mensal entre homens e mulheres da Região Nordeste, as trabalhadoras são exploradas de forma mais intensa, com salários mais precários, conforme demonstra a tabela a seguir. Tabela 5 - Fonte: PNAD 2008 Valor (em R$) do rendimento médio mensal da PEA rural por região e por sexo BRASIL E REGIÕES HOMEM MULHER Brasil 548 299 Norte 587 308 Nordeste 337 230 Centro-oeste 768 332 Sudeste 709 380 Sul 768 332 (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 102 Segundo a PNAD 2008, o contingente de pessoas ocupadas em atividades agrícolas desdobra-se em quatro categorias: (i) empregado40; (ii) conta-própria41; (iii) empregador42; e (iv) trabalhador não-remunerado43. No ano de realização da pesquisa em destaque, esse coletivo de ocupados encontrava-se distribuído da seguinte forma: Gráfico 1 Os trabalhadores não-remunerados representam o maior grupo de ocupados no setor agropecuário, somando 43% do total da mão-de-obra rurícola. Seguidos dos empregados (aglutinando permanentes e temporários), com 29 %. Em terceiro os trabalhadores por conta-própria, representando 25% e em menor escala, os empregadores com somente 3%. Para além da visualização esquemática, os dados revelam que mais de 2/3 dos/as trabalhadores/as rurais estão formalmente fora das relações de assalariamento, ou seja, encontram-se não abarcados pelos direitos e garantias do sistema jurídico-trabalhista estruturado centralmente na relação de emprego. Considerando o caráter expressivo dessa parcela excluída do pacto de proteção social do trabalho, aliado à falta de planejamento e de políticas 40 Conceito PNAD 2008: Pessoa que trabalhava para um empregador (pessoa física ou jurídica), geralmente obrigando-se ao cumprimento de uma jornada de trabalho e recebendo em contrapartida uma remuneração em dinheiro, mercadorias, produtos ou benefícios (moradia, comida, roupas, etc.). 41 Conceito PNAD 2008: Pessoa que trabalhava explorando o seu próprio empreendimento, sozinha ou com sócio, sem ter empregado e contando, ou não, com a ajuda de trabalhador não remunerado. 42 Conceito PNAD 2008: Pessoa que trabalhava explorando o seu próprio empreendimento, com pelo menos um empregado. 43 Pessoa que trabalhava sem remuneração, durante pelo menos uma hora na semana, em ajuda a membro da unidade domiciliar que era: empregado na produção de bens primários (que compreende as atividades da agricultura, silvicultura, pecuária, extração vegetal ou mineral, caça, pesca e piscicultura), conta própria ou empregador (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 103 efetivas de apoio à agricultura familiar, esse nicho fica exposto ao estabelecimento de relações precárias de trabalho, normalmente na forma do emprego temporário, como meio de complementação da já diminuta renda. Submetem eventualmente sua força de trabalho para os grandes empreendimentos, já que não possuem condições de garantir o sustento somente com seu trabalho autônomo. Muitas foram as transformações vividas na agricultura nacional com o avanço da modernização das relações produtivas. Esse padrão lastreado na concentração da propriedade privada da terra, na destruição crescente da natureza, no monocultivo e na usurpação dos recursos públicos trouxe novas questões para o mundo do trabalho, tanto no campo como na cidade. Essas mudanças repercutiram diretamente as formas de inserção do homem e da mulher no mercado de trabalho rural e nas condições de exploração da sua força de trabalho. Assim, parte o presente trabalho para caracterização um pouco mais detalhada dessa conjuntura do campo e do trabalho na vida do/a trabalhador/a. Para tanto, serão analisadas as especificidades dessa modernização na região Submédio do Vale do São Francisco, com o desenvolvimento da fruticultura irrigada, bem como a capacidade de inserção da legislação social na regulação dessas relações de assalariamento, com vistas à situação de observância dos direitos e garantias relativos ao trabalho rural. 3.3. RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA REGIÃO SUBMÉDIO DO SÃO FRANCISCO: EXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO RURAL NO PÓLO DA FRUTICULTURA IRRIGADA Com um mercado nacional e estrangeiro em estado de crescimento, a Região Nordeste desponta como grande centro produtor de frutas tropicais frescas do país, articulando uma série de elementos favoráveis ao título, como (a) condição climática, (b) solos férteis, (c) amplo acesso a recursos hídricos e a (d) mão-de-obra abundante (COSTA & COSTA, 2008). Dentro desse universo, o Vale do São Francisco tem se destacado. Abrangendo os estados de Minas Gerais, Bahia, Goiás, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, possui uma superfície de 639.219,4 km2, aglutinando 504 municípios, sendo 35,5 milhões (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 104 de hectares agricultáveis num total de 64 milhões (CODEVASF, 2010). O Vale do São Francisco tradicionalmente é dividido em quatro sub-regiões: Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco. No plano da fruticultura irrigada, a região Submédio São Franciscana, mais especificamente, o pólo Juazeiro-Petrolina tem conquistado posição de destaque, tornando-se o centro de exportação mais dinâmico do setor a nível nacional. O complexo produtivo é formado por oito municípios, sendo Petrolina, Santa Maria de Boa Vista, Lagoa Grande e Orocó representantes da fração pernambucana e Juazeiro, Curaçá, Casa Nova e Sobradinho as cidades do núcleo baiano. Dentre as frutas produzidas em larga escala, destacam-se a manga e uva. Com o tempo, a região tornou-se referencia na produção de frutas no Brasil, a saber, que 99% da exportação de uva e 87% da de manga, saiam do Vale do São Francisco (IBRAF- Instituto Brasileiro de frutas), sobretudo, para EUA, União Européia e Japão (SAMPAIO & NASCIMENTO, 2010: 1). Especificamente quanto à viticultura (produção de uvas) algumas peculiaridades do processo produtivo explicam a situação de destaque, pois, Trata-se da única região do mundo que produz uvas o ano todo, sendo possível, dependendo da cultivar, colher entre duas e três safras anualmente. Esta característica vem fazendo com que o Vale tenha a devida reputação e seja tão conhecido, com grande potencial de produção de vinhos com rentabilidade. Além disso, é possível realizar o escalonamento da produção ao longo do ano, o que reduz os investimentos em termos de infra-estrutura para a elaboração dos vinhos, além de possibilitar escolher os períodos do ano mais favoráveis para que se consigam uvas e vinhos de melhor qualidade e com tipicidades. A irrigação a partir da água do Rio São Francisco, de excelente qualidade, é o fator principal que permite com que as videiras se desenvolvam o ano todo, possibilitando decidir quando iniciar uma nova safra e prever a data da colheita (PEREIRA, 2007). A expressividade econômica do Pólo Juazeiro-Petrolina se deu pela expansão tanto da agricultura irrigada como da integração crescente entre as atividades agrícolas e industriais. Para viabilização dessa pujança agrícola, a atuação pública dos organismos estatais de fomento foi fundamental. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 105 3.3.1. A ENXURRADA MODERNIZADORA: CVSF, SUVALE, CODEVASF E A POLITICA DE DESENVOLVIMENTO DA AGRICULTURA IRRIGADA NO VALE DO SÃO FRANCISCO Até 1940, a principal atividade econômica do Vale do São Francisco era a pecuária extensiva. A experiência estadunidense do Tennessee Valley Authority (TVA), órgão criado pelo governo Roosevelt no período pósdepressão de 1929 para arquitetar o desenvolvimento regional do Vale do Tennesse, uma das regiões mais pobres do território norte-americano, através de programas de geração de energia (construção de barragens e hidroelétricas) e da expansão da agricultura irrigada (KASPI, 2004), exerceu forte influência para se pensar a os rumos econômicos do vale brasileiro. No plano legislativo, o art. 29 das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1946 estabelecia a obrigatoriedade da União investir quantia não inferior a 1% da renda tributária do país, num prazo de 20 anos, para o desenvolvimento do Vale do São Francisco (SECTI/BA, 2008). Assim, ainda na década de 1940, o governo brasileiro elabora o Plano de Aproveitamento do Vale do São Francisco, prevendo ações de regularização do curso do rio por meio de barragens, projetos de irrigação, geração de energia elétrica, delimitação das áreas industriais, colonização, exploração de minérios, construção de estradas, etc. (BLOCH, 1996). Para tanto, foi criada a Comissão do Vale do São Francisco por meio da Lei n. 541 de 1948, com o objetivo de implementar as políticas descritas, aliada a difusão da irrigação para os pequenos produtores ribeirinhos. No mesmo período também entrou em funcionamento a Companhia Hidroelétrica do Vale do São Francisco (Chesf). No curso da execução do projeto de desenvolvimento, vislumbrando o aumento da produtividade de energia para atender as novas necessidades produtivas, no ano de 1979 é inaugurada a barragem de Sobradinho, “formando o maior lago artificial da América Latina, com 4.200 km2, e desalojando nada menos do que setenta mil pessoas” (Idem, 22). Os grandes beneficiários dessa política desenvolvimentista foram [e ainda são] as populações urbanas localizadas a centenas de quilômetros da área, e em grande medida as empresas industriais que utilizam em larga escala os recursos hídricos em seus processos (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 106 produtivos e os grandes proprietários da agricultura irrigada, impondo às comunidades rurais o deslocamento forçado, a proletarização e a marginalização (ANDRADE, 1981). Em 1967, a CVSF é substituída pela SUVALE, resolvendo concentrar sua intervenção em áreas ditas como prioritárias. O pólo de Juazeiro-Petrolina foi uma delas. Pouco tempo depois, com a Lei n. 6.088 de 16 de Julho de 197444, a SUVALE é extinta sendo criada em seu lugar a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF), com as seguintes atribuições: Art. 4º. A CODEVASF tem por finalidade o aproveitamento, para fins agrícolas, agropecuários e agroindustriais, dos recursos de água e solo do Vale do São Francisco, diretamente ou por intermédio de entidades públicas e privadas, promovendo o desenvolvimento integrado de áreas prioritárias e a implantação de distritos agroindustriais e agropecuários, podendo, para esse efeito, coordenar ou executar, diretamente ou mediante contratação, obras de infraestrutura, particularmente de captação de águas para fins de irrigação, de construção de canais primários ou secundários, e também obras de saneamento básico, eletrificação e transportes, conforme Plano Diretor, em articulação com os órgãos federais competentes (BRASIL, 1974). Através da articulação com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), representantes do capital internacional interessados na agricultura brasileira, a CODEVASF coordenou e executou grandes obras de infra-estrutura, com destaque para os projetos de irrigação. Na região do Submédio foram implementados vários projetos. “Em Juazeiro/BA, os distritos de Tourão em 1978, Maniçoba em 1981, e Curaçá/BA em 1982; e em Petrolina/BA, os distritos de Nilo Coelho em 1984, e Maria Tereza em 1990” (SECTI, 2008: 2). Foi nesse processo de viabilização dos projetos públicos de irrigação que inúmeras empresas nacionais e estrangeiras, principalmente as do setor frutícola, instalaram suas unidades produtivas na região de Juazeiro e Petrolina. As principais culturas produzidas e beneficiadas eram o melão, a banana e a cana-de-açúcar, mas foi com a produção em larga escala da manga e da uva que o Submédio do São Francisco adquiriu o título de “Nova Califórnia”. 44 Texto da Lei na íntegra: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6088.htm (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 107 Basicamente, na região do Submédio a agricultura irrigada encontra-se concentrada nos projetos de colonização iniciados no final da década de 1960 e nas grandes empresas rurais. Nos perímetros implementados pela CODEVASF há geralmente dois tipos de áreas: uma destinada aos colonos e outra das empresas. Mais precisamente nesses perímetros é considerado colono quem possui menos de 12 há; as terras entre 12 a 18 há já constituem uma pequena empresa; entre 18 a 60 temos as grandes empresas (BLOCH, 28). A implementação dos projetos públicos de irrigação encontra fundamento jurídico no “interesse social”, conforme dispõe a Lei n. 6.662 de 25 de Junho de 197945. O instrumento normativo regula o Plano Nacional de Irrigação vislumbrando o desenvolvimento da agricultura irrigada (BRASIL, 1979, art. 1º), por meio dos programas (BRASIL, 1979, arts. 6º e 7º) e projetos de irrigação operados tanto pelo setor público como pelo privado (BRASIL, 1979, arts. 8º - 11), estabelecendo ainda os direitos e deveres do irrigante (responsável pela execução – BRASIL, 1979, art. 26) bem como as regras para desapropriação e seleção pública dos colonos e empresas. Os fundamentos da política de irrigação podem ser notados através da adoção de princípios e mecanismos de mercado, manifestados, dentre outros aspectos, pela prioridade à iniciativa empresarial e pela implantação da lógica do agronegócio, calcada na racionalidade econômica do mercado, em parâmetros de produtividade, competitividade e lucratividade. Essa perspectiva ganhou maior expressão a partir do movimento desencadeado no final da década de 1990 (NETO, 2006: 4). Nesse processo, a predominância da lógica empresarial impôs a substituição dos colonos que não conseguiam atender as exigências da agricultura irrigada modernizada, destinando a maior parte dos projetos públicos às empresas agrícolas, principalmente da fruticultura. (...) os projetos irrigados, implantados a partir da década de 1980, 9% deles foram ocupados exclusivamente por empresas, 64% apresentam predominância de ocupação por empresas, 18% possuem predominância de colonos e apenas 9%foi ocupado exclusivamente por colonos (Idem, 5). 45 Texto da Lei na íntegra: http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L6662.htm (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 108 Dentre os segmentos marginalizados com a expansão da fruticultura irrigada estão os/as trabalhadores/as assalariados/as do pólo JuazeiroPetrolina. Passa a presente pesquisa para a caracterização das relações de assalariamento estabelecidas nas atividades agrícolas do Submédio do São Francisco. 3.3.2. FRUTICULTURA IRRIGADA E RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO: ENTRE A PROTEÇÃO SOCIAL E A REALIDADE DO TRABALHO RURAL O processo de modernização da agricultura brasileira veio acompanhado do crescimento do trabalho assalariado no campo. Seguindo as mudanças colocadas a nível nacional, a expansão da fruticultura irrigada no Submédio São Franciscano se deu através da estruturação de um modelo produtivo que tem intensificado o contrato de trabalho “temporário, descontínuo, flexível” (MOTA, 2001: 114). Na relação de emprego rural existe a possibilidade de se firmar inúmeros tipos de contratos por prazo determinado como o contrato de safra, o contrato de trabalho temporário (Lei n. 6.019/74) ou mesmo o contrato de experiência. Sobre o tema, dispõe o art. 443, §2º da CLT: Art. 443 - O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito e por prazo determinado ou indeterminado. § 2º - O contrato por prazo determinado só será válido em se tratando: a) de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo; b) de atividades empresariais de caráter transitório; c) de contrato de experiência (BRASIL, 1943) Nesse sentido, o contrato de emprego por tempo determinado é considerado exceção dentro do ordenamento jurídico nacional, sendo permitido somente nos casos previstos na legislação trabalhista. Além do mais, os contratos a termo não podem ser estipulados por um prazo superior a dois anos (art. 445, CLT), passando a vigorar sem determinação de prazo quando prorrogado tácita ou expressamente por mais de uma vez (art. 451, CLT). Ainda no plano da afirmação do seu caráter excepcional, dispõe o art. 452 das normas consolidadas que também será considerado por prazo indeterminado, o contrato que suceder, dentro de seis meses, outro contrato por prazo (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 109 determinado, salvo se a expiração esteve relacionada à execução de serviços especializados ou da realização de certos acontecimentos. As formas mais comuns de assalariados rurais na região pesquisada são: (i) empregado permanente - aquele estabelecido no art. 2º da Lei 5889/73, contratado por tempo indeterminado e que possue a sua disposição mecanismos de proteção contra despedida arbitrária (a exemplo da multa do art. 477, das hipóteses de estabilidade no emprego), sendo o vínculo mais protegido no plano legal; (ii) safrista – aquele cuja duração do contrato depende da influência das estações sazonais típicas das atividades agrícolas, abrangendo normalmente as tarefas executadas entre o preparo do solo e a colheita, tratando-se de trabalho não-eventual, prestado de forma pessoal, com dependência e mediante salário. Findo o contrato de safra o empregador tem a obrigação de pagar ao empregado o saldo de salário, férias e décimo terceiro proporcional, além do FGTS recolhido durante a vigência do contrato. O empregado tem direito a indenização pelo tempo de serviço prestado correspondente a 1/12 (um doze avos) do salário por mês ou fração superior a 14 dias trabalhados (art. 14, Lei n. 5.889/73); (iii) diaristas – sendo mais comumente requisitados nos períodos de colheita e cuja remuneração se dá por tarefa ou por produção. Cumpre destacar que nesse tipo de relação não há vinculo empregatício, por faltar-lhe o requisito da continuidade, configurando simples prestação de serviço, estando o trabalhador excluído das garantias trabalhistas (VALERIANO, 2003). Apesar do seu caráter excepcional, o contrato de trabalho por tempo determinado é utilizado em larga escala nas unidades produtivas, chegando a superar em muitas de vezes o número de empregados permanentes, afirma um dos trabalhadores entrevistados na região. Lá tem uma faixa de vinte [trabalhadores] fichados (ou empregados por tempo indeterminado. O número dos contratados (empregados por tempo determinado) é muito maior. São três ônibus agora, uns 170 trabalhador. Reflexo de que boa parte da mão-de-obra encontra-se fora do núcleo protetivo central da legislação trabalhista. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 110 3.4. AS CONDIÇÕES DE TRABALHO PELOS/AS PRÓPRIOS/AS TRABALHADORES/AS Do ponto de vista da forma de abordagem do problema, a presente pesquisa assume um viés qualitativo, na medida em que as entrevistas realizadas com os assalariados rurais da fruticultura irrigada nos municípios de Juazeiro e Casa Nova servem enquanto instrumento de verificação da relação dinâmica entre o mundo real e os sujeitos dessa realidade. Aqui, o processo e seus significados são os principais focos de análise (SILVA & MENEZES, 2001). Os depoimentos foram prestados por empregados/as permanentes, safristas e diaristas principalmente da cultura da uva e manga, como forma de se visualizar, mesmo que de maneira panorâmica, os conflitos existentes no interior da relação trabalhista, muitas vezes não evidenciados pela própria dependência econômica do/a trabalhador/a num cenário de violação extrema e continuada. Assim, utilizar-se-á a metodologia de estudo de caso, pois possibilita a investigação de um fenômeno da atualidade dentro de seu contexto real, principalmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão bem definidos (YIN, 2005). Cumpre destacar que as entrevistas foram concedidas sob a condição de permanecerem em sigilo, tendo em vista o medo dos empregados de sofrerem retaliações pelos empregadores do ramo. Foram entrevistados quatro trabalhadores, um homem e três mulheres, sendo um trabalhador e uma trabalhadora empregados permanentes, uma trabalhadora safrista e uma trabalhadora diarista. Um aspecto interessante é que todos os trabalhadores já experimentaram as diversas formas contratuais junto à fruticultura irrigada, permitindo uma maior riqueza de detalhes. Como primeiro ponto, cumpre destacar a forte divisão sexual do trabalho no cultivo da uva na região. Nas empresas agrícolas, a mão-de-obra feminina predomina em boa parte do processo produtivo, no releio46, na desfolhagem47, 46 “O raleio de bagas é uma das operações com maior exigência de mão-de-obra e, conseqüentemente, com maior custo na produção de uvas finas de mesa (...). Essa prática pode ser feita em duas fases distintas. A primeira fase é na pré-floração, quando os botões florais soltam facilmente do cacho. Nessa fase é utilizado o "pente" plástico ou mesmo com a mão, em processo denominado "pinicagem". O raleio com pente possibilita um bom rendimento e uma boa eficiência, porém não deve ser utilizado em períodos chuvosos. O pente é passado várias vezes até se chegar à eliminação do número desejado de botões florais, o que, em alguns casos, chega a 80% do número total. Nessa operação são mantidos os ombros e pencas dos cachos, eliminado-se apenas os botões florais. Após o raleio com pente, é (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 111 na desbrota48, na própria colheita e na embalagem/encaixotamento, como afirma a empregada permanente de uma das empresas frutícolas, explicando seu processo de trabalho: Eu “raleava”, limpava, colhia, embalava, fazia a desfolha. A única coisa que eu nunca fiz dentro das firmas foi podar, irrigar, capinar e 49 aplicar o veneno, aplicava só o giberelim [ácido giberélico ] que era pra desenvolver a planta. As mulheres têm a preferência por que possuem a “fama” de serem mais habilidosas e cuidadosas do que os homens [expressão do machismo característico da realidade social brasileira], sendo estes comumente empregados “em outras tarefas, como limpeza, adubação, pulverização de pesticidas, etc.” (BLOCH, 1996, p. 58). No processo de produção, explica a trabalhadora diarista: Era uva, manga, melão. Eu trabalhava na parte do melão, por que a gente plantava e ali a gente podava ele que era pra vim as frutas selecionadas, maior, né? Nós ainda colhia e encaixava pra transportar, sabe. Na uva, nós raleava a uva, pinicana bem novinha, e necessário fazer a aplicação de um fungicida para proteção do cacho. Uma segunda fase para o releio de bagas é após a fecundação, a partir da fase de chumbinho. Nessa fase, é utilizada a tesoura de desbaste para eliminação das bagas. O raleio com tesoura é mais utilizado como uma complementação ao raleio com pente, uma vez que é bem mais trabalhoso e demorado. Com a tesoura são eliminadas as bagas pequenas, com algum tipo de defeito, localizadas na parte interna do cacho e as que estão ainda em excesso, deixando-se as bagas de tamanho e distribuição uniformes” (EMBRAPA, 2005). 47 “Desfolha é a remoção de folhas que encobrem os cachos, eliminando-se no máximo uma a duas folhas por broto, com o objetivo de equilibrar a relação área foliar/número de frutos melhorando a ventilação e insolação no interior do vinhedo, obtendo-se uma maior eficiência no controle de doenças fúngicas, especialmente em parreirais vigorosos. Essa operação deve ser realizada com muito cuidado, pois uma desfolha exagerada poderá trazer muitos prejuízos, pela menor acumulação de açúcares nos frutos e maturação incompleta dos ramos, bem como, a ocorrência de escaldaduras ou “golpes de sol” nas bagas. Em parreirais onde existe sobreposição de folhas, é necessário a realização de desfolha mais intensa, eliminando-se todas as folhas que não se encontram expostas à luz solar” (EMBRAPA, 2004). 48 “A desbrota é o processo que visa a eliminação do excesso de brotos promovendo uma melhor distribuição regular, evitando-se a sobreposição de brotos supérfluos, proporcionando uma melhor distribuição da seiva. Os brotos são eliminados quando apresentam-se com 10-15 cm de comprimento, deixando-se em torno de 2 a 3 brotações bem distribuídas em cada vara e, sempre que possível, uma na extremidade e outra na base” (EMBRAPA, 2004) 49 São muitos os efeitos do ácido giberélico em viticultura. Estes variam de acordo com a época de aplicação e as concentrações utilizadas, sendo que as variedades podem responder de forma diferenciada ao mesmo tratamento. Entre os principais efeitos do ácido giberélico estão: a) aumento do tamanho de bagas, especialmente em variedades sem sementes; b) formação de bagas partenocárpicas; c) promoção da abcissão, reduzindo o número de bagas por cacho; d) alongamento da ráquis e pedicelos, que aumentam de comprimento, propiciando a formação de cachos menos compactos; e) aumento do número de bagas verdes não desenvolvidas ou inviáveis, sendo que o aspecto das bagas de tamanho normal pode ser modificado, assumindo forma alongada; f) antecipação da maturação dos frutos (EMBRAPA, 2004). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 112 aí fazia o repasso, do repasso quando ela amadurecia nós ia selecionar o cacho, a baga “VS”, “BV”, esse tipo de uva da baga grande, esquadrão. Aí nos embalava aquela uva pra transportar pro exterior, pra Europa, pra esses mundo aí. Ainda na caracterização sobre a utilização do trabalho feminino no interior do processo de produção da fruticultura, afirma a trabalhadora safrista: Mulher trabalha mais com tesoura, pra embalar, limpar, colher. Mulher trabalha muito embalando uva. Colhe na área e vai para o galpão. Aí fica uma turma no galpão e outra na área. Prefere as mulher, que tem mais habilidade. A rotina de trabalho das assalariadas começa cedo, antes mesmo do nascer do sol. Nesse aspecto, os tipos de vínculos contratuais não representam diferenças significativas quando o parâmetro é a exploração do trabalho. Nós acorda 3 (três) horas da manhã, por que tem que organizar as nossas coisas de casa, por que tenho filho na escola, tenho que deixar as coisas feitas, o café feito. Aí quando é 5 (cinco) horas vou pro ponto, por que eu nunca gostei de chegar atrasada no trabalho. Quando já é 5 (cinco) horas eu já tô na pracinha esperando o ônibus. Quando chega lá toma o café nas carreiras que não dá até tempo, muitas vezes não danem tempo de tomar o café. E aí vai, chega lá vai. 6 (seis) horas já estamos lá. Apitou sete horas, nós já tá na área pra começar o trabalho. O trabalho é pinicar, desbastar a uva, despencar, fazer despontamento, tirar “ladrão”, tirar “galdinha”, torcer o pau da uva, ciscar, adubar a uva, tudo isso, jogar aquela coisa preta que joga debaixo da uva, um bicho véi fedorento, um adubo fedorento que a gente joga lá, fica com a cabeça doendo. Aí eu dizia, “se vocês não me tirarem daqui eu vou morrer com esse fedor”. Mas assim mesmo a gente enfrentava, né? Explica a empregada permanente da cultura da uva, o ritmo intenso de trabalho no período de safra, destacando a supressão dos intervalos para repouso e alimentação, obrigatórios e de no mínimo uma hora para trabalhos contínuos superiores a seis horas, conforme disposto nos arts. 71 da CLT e 5º da Lei. 5.889/73 (BRASIL, 1973). Minha rotina era cedinho de madrugada, 4 (quatro) horas acordava para perparar a marmita. Aí quando era umas cinco horas eu tinha que sair. Então a gente trabalhava, pegava de 7 (sete) horas. Ia em cima do pau-de-arara, tomando chuva, sereno, vento poeira, sol quente, aperreio que enchia os carros. Muita gente que não tinha jeito nem de fazer assim, respirar. Aí gente entrava lá, eles diziam que eram sete horas, aí entrava no serviço e a gente soltava meio dia pra (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 113 almoçar, depois que almoçava, antes de uma hora, ficava fazendo hora, tinha 10 minutos, 15 minutos pro almoço e ficava fazendo hora extra. E aí a gente pegava direto, as vezes quando tinha muita colheita, saímos de lá 11 (onze) horas da noite, doze horas, uma hora. As safras direto, tirada o ano todo. Aí as vezes eles pediam 10, 12, 15, 16 mil quilos de uva naquele dia tinha que sair. A gente se virava, ali era muitas áreas, quando terminava uma, ia pra outra. No horário normal, a gente largava 5 (cinco) horas da tarde, mas a maior parte a gente largava seis, seis e pouca. O empregado permanente – e membro da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) da empresa produtora de uva – relata sua rotina de trabalho com um caráter mais regular do que a das trabalhadoras entrevistadas: Meu serviço hoje é de brota, né, destocamento, abertura, colheita, peso eu não pego de maneira nenhuma lá, de 10 (dez) quilos em diante. Não tem negócio de mandar, não posso pegar e acabou aí. Tenho meus direitos que é das 7 (sete) ao meio dia, das 13 (treze) às 17 (dezessete). Dá 9 (nove) horas, por que todo mundo faz uma hora extra pra folgar no sábado. Paro pro almoço meio dia e volto uma hora, lá tem um canto de apoio pra nós almoçar lá, levo a comida de casa pra empresa. Lá tem refeitório pro povo do escritório. Os/as diaristas são comumente chamados na região de trabalhadores avulsos, que não se confundem com aqueles definidos no inciso VI do art. 12 da Lei nº 8.212/91, que considera avulso quem presta, a diversas empresas, sem vínculo empregatício, serviços de natureza urbana ou rural definidos no regulamento. Cabe apontar que para o avulso clássico é necessária a intermediação do sindicato da categoria para realizar a relação de trabalho. No caso do Submédio, explica a trabalhadora sobre a definição e a situação desse tipo de mão-de-obra: O avulso é que a gente trabalhava e não tinha o contrato na carteira. Tem muitos anos sem contrato na carteira. Que eu trabalhei avulso muito tempo sem ter direto a nada, não tinha fichamento na carteira, não tinha contrato, não recebia férias, não recebia décimo. Avulso é que você trabalha por dia de serviço que nem o diarista, só recebe a diária, não desconta nada. Quando era fim de semana é que recebia o dinheiro da semana, os dias trabalhando, mas os dias trabalhados não era por que você tava trabalhando por contrato pra depois receber não. Você trabalhava seus dias de serviço e pronto. E n’outras vezes você trabalhava mês, dois, três até anos, só na diária. Tem muito emprego que faz assim, com certeza. Sobre a situação dos trabalhadores avulsos e dos impactos sobre as garantias sociais trabalhistas, mais especificamente quanto às questões de ordem previdenciária, relata uma das trabalhadoras. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 114 Começou bem, aí ficaram colocando contrato de dois mês, de três mês, até de vinte e sete dias tem contrato na minha carteira, tu acredita? Tem muita senhora de cabeça branca subindo em cima de caminhão pra trabalhar avulso. Tem muita gente aí. Tem senhora que já passou da idade e não se aposenta por causa disso. Ela trabalhou, bem verdade, vários tempos como avulso, mas não vai contar na carteira que ela trabalhou, por que não tem registro. Como é que vai comprovar que ela trabalhou? Oxi, eu conheço gente aí que era pra tá aposentado, que tem quinze anos de trabalho aí avulso, trabalhando nesses projetos. Que desde o inicio de quando começou o trabalho avulso no Mercado do Produtor [Juazeiro – BA] que acompanha, que já não era pra tá em cima de caminhão, mas como é que vai comprovar? Ninguém vai comprovar por falta de registro que não tem. Por que se cada uma vez que uma pessoa subisse num caminhão pra trabalhar, tivesse um comprovante, né? Vai na porta de uma empresa e quando for com trinta dias rua, ah, “por que foi contratada por período por isso, acabou, bota a pessoa fora”. Mesmo sendo de caráter excepcional, os contratos de trabalho por tempo determinado são utilizados indiscriminadamente, suplantando uma série de garantias trabalhistas dos empregados temporários: Teve um dia quando eu cheguei lá na empresa tinha um recado lá falando assim, olhe, a fazenda foi vendida e é três meses de contrato. 50 Esse contrato aí eu trabalhei quase 8 (oito) anos fichada . Ficou com a carteira da gente quase 2 (dois) anos, só assinou depois de dois anos a gente trabalhando de avulso. Abre-se destaque para a forma de recrutamento dos/as trabalhadores/as diaristas, feito no boca-a-boca como se diz, a partir do manejo do grande contingente de força de trabalho disponível para os projetos públicos de irrigação. Ele [o preposto] chamava as pessoas. “Olhe, tem trabalho aí, se vocês quiserem ir...”. Vinha um encarregado para pegar as pessoas e aí mandava a gente chamar os colegas, outras pessoas, no boca-aboca. Aí acertava o carro de onde era que ia vim, na “gurita”, ou então na “pracinha”, o carro de “fulano de tal”, aí a gente ia. Isso aí era umas 4 (quatro horas da manhã). Explica a trabalhadora diarista como faz para conseguir serviço de diária na fruticultura: Eu vou pro Mercado do Produtor, aí quando eu chego lá, o comerciante que tem a manga para colher, tem o tomate pra colher, lavar o melão. Uns dá preço bom. Uns diz logo, “eu pago tanto pela diária, que é o suficiente pra vocês que não tem trabalho”. A diária é quarenta, então fecha logo o preço da diária. Se ele contratou o preço de quarenta ele não pode fugir da gente. Tem que pagar, né? 50 Termo utilizado para definir o empregado permanente com carteira assinada. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 115 A intensidade do trabalho sempre foi marca característica das relações de assalariamento na fruticultura irrigada, tendo em vista seu alto grau de especialidade e o controle excessivo de qualidade imposto pelas exigências do mercado internacional. As metas produtivas repassadas aos trabalhadores pelos fiscais de produção contribuem em grande medida para a manutenção do padrão precário de exercício do trabalho. Num contexto de vulnerabilidade econômica, os prêmios e gratificações pelo excedente de produção, aliado ao padrão baixo salário, garantem que o/a trabalhador/a se esforce ao máximo para complementar a renda e conseqüentemente produzir mais para o empregador. Relata a trabalhadora permanente: Tudo que e de uva eu sei fazer, dou produção, faço a minha diária [meta do dia], passo da diária, por que quando eu to em serviço na tem esse negócio de ficar conversando. Você acredita que eu já fiz produção de eu ganhar mil cachos acima [da meta diária], só com a produção minha, fora a meta. A meta de mil e duzentos cachos. Com uma tesoura boa eu faço bagaça! Tem que ter cuidado para não quebrar nenhum cacho, pois se quebra eles “desinteram” a produção nossa. Sobre o controle excessivo da produção, aponta a trabalhadora safrista sobre a experiência vivida: Lá tem controle sim, tem o gerente o sobre-gerente. Tinha fiscal que tratava agente bem, mas tinha fiscal que não, tinha fiscal que se achava mais que os funcionários. Os gerentes só passa olhava e tudo, mas qualquer coisa a bronca chegava e mandava parao escritório. Eu pessoalmente nunca fui chamada, mas eu ouvi muito minhas amigas. Lá não podia conversar, não podia merendar, não podia sair três ou quatro vezes para ir ao banheiro. Acontece muitas vezes, tem dias que as mulheres precisam ir mais de cinco vezes no banheiro e eles não gostavam. Todas as firmas tem isso. Não querem que as pessoas saiam. Mas muitas vezes as pessoas saem por que tem precisão, principalmente mulher. Aí isso eles não queriam, por isso reclamavam. Trabalhava carregando muito peso. Eu mesmo embalava uva, caixa de sete quilos, cinco quilos você passar o dia até uma hora, duas horas da madrugada, é muito peso. Das sete da manhã até esse horário, embalando elas, pegando daqui e passando pra ali. Embalava caixa pó caixa e botava pra lá. Eu cansei de trabalhar com seis pessoas e não dava conta. Aí eles ficam gritando, reclamando, “vamo, você tá atrasado, você não tá chegando na meta que a gente quer”. As trabalhadoras se queixam muito do controle abusivo exercido pelos fiscais de produção, numa situação continuada de desrespeito, desvalorização do trabalho e humilhação suportada pela necessidade econômica. O trabalhador rural deveria ter um pouco de cuidado com ele, por que se o fiscal e o gerente tá ali, quem dá qualidade do trabalho somos nós, quem dá a produção somos nós. Por que se nós quiser (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 116 condenar uma carga de uva, se nós se invoca nós derruba uma área de uma, mas como nós tem cuidado e quer dar qualidade no nosso trabalho no que é dos outros. Por que o fiscal tá lá só para mandar, não entende nada, nem a doença da uva. Só que deveria ter um pouco de melhoria pro trabalhador. Hoje tá melhor. Hoje já fizeram refeitório pra as pessoas comer, que comia embaixo das folhas da uva, no meio do sol, no molhado no fedor do veneno. Devia ter um lugar de fazer a comida, nem que descontasse no pagamento aquela taxa. Uma qualidade melhor de trabalho, melhoria pro trabalhador. As empresas só precisa da gente pra trabalhar, se você adoecer ela não liga pra você. A manipulação indevida dos produtos químicos destinados à produção agrícola é causa de intoxicação freqüente dos/as trabalhadores/as, sendo os principais problemas aqueles relacionados à pulverização durante as horas de trabalho, à proteção inexistente ou inadequada. A seguir dois casos de intoxicação no processo produtivo devido ao uso intensivo de agrotóxicos. A gente reclamava que as vezes a gente tava assim com a cabeça doendo e tinha que ta em cima do banco trabalhando. A gente trabalhava era em cima do banco. O banco depende da altura da pessoa. Mas se for uma área alta, o banco tem que ser alto pra poder a pessoa alcançar. Se caísse, levasse muita queda, eles num ligava não. Eu mesmo levei muitas queda e nós ficava assim tonto, ó, tonta. É porque a área era alta e o banco tinha de ser alto. Então o banco inda não dava pra mim e eu tinha que virar. Eu tinha que virar o banco assim pra eu ficar na ponta do banco pra poder eu fazer. Qualquer coisinha, caia lá uns pedaço. Trabalhava com as duas mão pra cima. O tempo todo com a cara pra cima. Tudo que a gente faz de uva, ela tano no parreral, é tudo com a cara pra cima e os braço. O tempo todo. Eu trabalhei na roça de Seu Alvo e tinham envenenado a uva e tava chovendo e eles queria que a gente fosse pra debaixo da uva tirar a folha, me molhei muito e aí aquela água caia nas costas. Meu couro ficou assim parecendo couro de lagartixa. Todo, todo quase que eu não fico boa disso daí. Dava aquela coceira nas costas, no corpo, por aqui. (...) Eles botava pra mim pinicar a uva, o cachinho bem pequenininho. Então a gente tinha que trabalhar com a mão, era com os dedo. Isso aqui racha tudo, chega escorre sangue. Trabalhava e depois do trabalho feito aí tinha umas bombinha assim que já era preparada aquele liquido, botava naquelas bombinha e a gente quando terminava de fazer aqui pegava aqui do arame e ‘xiiiiii’ no cacho. Então aquilo ali caia na vista da gente, então começava a arder e quando a gente vinha tava o zoio azedo, melho, ardenu. E aí daí foi que eu comecei... todos, todas pessoa que trabalhou nessa época que trabalhei... usa óculos. Muita, é muita gente. Eu acredito que seja do produto porque a gente sentia os olho arder, ardia que nem pimenta. Quando chegava em casa que lavava e tomava banho que a gente ficava com a vista ardenu, ardenu. E isso só pode ter sido disso aí, porque todas pessoa que trabalhou nisso, sempre falam. Eu nunca me afastei por acidente de trabalho nenhum. Acidentes de trabalho também fazem parte do cotidiano: (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 117 O trabalhador se machucava em queda. É o mais comum. Caia dentu da valeta, as veiz caia em cima do banco. Era o trabalho que a pessoa caia mais era do banco. Tinha gente que afastava mesmo, ficava muitos dias sem poder ir, porque caia, torcia o pé, outras vezes torcia os quarto, outras veiz dava problema na coluna. Ficava sem poder ir. A empresa num dava nada. Se fosse num médico, o médico dava um atestado e levava pra lá, só recebia pelo atestado. Se o medico desse três dia, era três dia, se desse quinze dia, era quinze dias. Mas, mais do que isso, ele num dava. [...] Eu mesmo adoeci no Ouro Verde, passei muito mal e eu só vim pra casa a hora que os outro vieram. Tive que esperar pra vim pra casa. Aprovada pela Portaria n. 86 de 03.03.2005, publicada no Diário Oficial da União em 04.03.2005, a Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, Pecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Aqüicultura, número 31, ou simplesmente NR – 31, apesar de ter como objetivo central estabelecer os preceitos a serem observados na organização e no ambiente de trabalho, de forma a tornar compatível o planejamento e o desenvolvimento das atividades citadas, com a segurança e saúde no meio ambiente do trabalho (BRASIL, 2005, 31.1.1), não conseguiu dar respostas significativas aos inúmeros problemas vividos pelos/as trabalhadores/as. A norma, exercendo regulamentação sobre a gestão de segurança, saúde e meio ambiente de trabalho rural, dispõe que Os empregadores rurais ou equiparados devem implementar ações de segurança e saúde que visem a prevenção de acidentes e doenças decorrentes do trabalho na unidade de produção rural, atendendo a seguinte ordem de prioridade: a) eliminação de riscos através da substituição ou adequação dos processos produtivos, máquinas e equipamentos; b) adoção de medidas de proteção coletiva para controle dos riscos na fonte; c) adoção de medidas de proteção pessoal (BRASIL, 2005, 31.5.1). E mesmo com a criação das Comissões Permanentes de Segurança e Saúde no Trabalho Rural, órgão vinculado às Superintendências Regionais do Trabalho (BRASIL, 2005, 31.4.2), de composição paritária (representantes do governo, dos trabalhadores e dos empregadores – [BRASIL, 2005, 31.4.4]), cujo objetivo é estudar, incentivar e propor medidas de controle e melhoria das condições de trabalho rural; mesmo com a exigência de constituição dos Serviços Especializados em Segurança e Saúde no Trabalho Rural – SESTR, órgão interno da empresa (podendo ser próprio, externo ou coletivo – [BRASIL,2005, 31.6.3.1]) destinado ao desenvolvimento de ações técnicas, integradas às práticas de gestão de segurança, saúde e meio ambiente do (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 118 trabalho, destinadas à promoção de melhoria e à preservação da integridade física dos/as trabalhadores (BRASIL, 2005, 31.6.1); os “esforços” legislativos não foram suficientes para se construir um padrão de relação trabalhista rural capaz de assegurar condições dignas aos/as trabalhadores/as. Cabe destacar que no processo de efetivação das garantias trabalhista, de reivindicação dos/as trabalhadores por melhores condições de emprego, o tipo de vínculo trabalhista e a situação no interior da empresa são significativos para a materialização dos direitos sociais. Relata o empregado permanente, membro da CIPA e beneficiário da estabilidade no emprego (art. 10º, II, “b”, c/c art. 165 da CLT). As pessoas não reclamam, elas recorrem a eu, por que eu tenho segurança. Os trabalhadores tem medo de perder o emprego e perde mesmo. Geralmente eles conversam comigo fora da empresa, que faz aquela rodinha assim, aquela resenha ali, né? Aí pronto, eles contam tudo, como é tudo, aí eu digo assim: “pera aí, escrava no papel aí tudo bem desenroladinho aí viu, que é pra evitar disse não disse”. Aí eu digo: “bom, agora fique calado, fique quieto”. Aí eu pego o papel e ligo lá pra Juazeiro. Conto lá como é, né? Eles reclamam muito do veneno, né, por que muitas vezes o fiscal novato não sabe lá das regras lá, né, aí fica lá o trator botando veneno, com o pessoal perto do veneno. Aí eu mando caí fora. “Ah, não que o gerente briga”. Aí eu digo: “meu amigo, faça o que eu to mandando, por que vai dar tudo certo, por que senão você vai se prejudicar, e é pior! Você prejudica eu e os outros!” Eles reclamam muitas vezes do adubo por que não tem luva pra pegar o adubo. Se meter a mão no adubo sem a luva, né, come as mãos. Aí eu chego pro gerente: “Oh, fulano tem luva de couro, de pano. Tem que dar o equipamento. As atividade tudo tem que ser com os equipamento, óculos, tem que chamar atenção. Como se pode analisar através do depoimento acima, vínculos trabalhistas mais sólidos como o emprego permanente, protegido pelas normas sociais, criam maiores condições para a afirmação das garantias trabalhistas frente às violações no curso do contrato de trabalho. No caso dos vínculos mais frágeis, ou flexíveis, a situação já é um pouco diferente, como relata a trabalhadora ao contar o caso de uma colega de trabalho e a situação prolongada das violações nos empregados temporários. A colega tava trabalhando e escorregou, estalou o pé. Aí essa dor atingiu ela, que faz o exame e não dá. A gente descobriu com outro exame mais detalhado que o pé dela tava quebrado, mais de mês com o pé quebrado. Ela tá trabalhando na empresa, trabalhou até de muleta, de muleta ela trabalhou, e jogam ela lá sozinha como uma desprezada, minha gente, mais fizeram tanta coisa pra essa coitada. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 119 Num processo de comparação entre as vantagens e desvantagens de ser “fichado” (empregado permanente com carteira assinada) ou contratado temporário, como o safrista e o avulso (diarista), ponderam os/as trabalhadores/as. Primeiro a trabalhadora diarista, depois um empregado e uma empregada permanente. O fichado tem mais segurança. Se esse estiver doente, ele tem mais um apoio. O avulso adoeceu, pronto, num tem como ir num médico, num pode botar um atestado, num tem direito a nada. Eu acho, né. O fichado tem mais segurança assim, pra saúde. Em termos de salário não... que um assalariado não ganha o tanto do avulso se um avulso trabalhar diretamente. Um cabra falou pra mim: “Óia, vocês ganha bem, o problema é que...” O assalariado num ganha, pode prestar atenção, se um assalariado chega a uma diária de R$ 40,00, num chega. Mas também só que num gera direto, né? Inda tem esse problema, que num é direto, né. Só isso, só esse apoio que eles dão pra gente porque eles diz: “Vão fichar pra vocês morrer de fome”. Eu falo: “não, que os fichado num morre de fome”. Porque pelo menos você vai trabalhando e vai recebendo, todo dia. É bom que nóis recebe dinheiro todo dia. Não é todo dia que encontra emprego e tem a data também, tem umas data aí que é meia difícil, viu. Agora esse mês mesmo de maio, num ta muito bom não de trabalho lá, de mercado. Tem muita gente que volta pra casa. Por ano, a gente fica dois mês, três mês sem trabalhar, mais ou menos. É porque assim, tem o tempo bom e o tempo ruim ali pro comércio. Muitas veiz se quebra, né também e aí fica difícil. Agora né ta sendo bom, to indo e to trabalhando. Mas as veiz um trabalho da quase o do fichado e aí ajuda. A família ajuda uns os outros. Lá mesmo tem desse, que o marido trabalha fichado e mulher vai pra lá, os filho trabalhar avulso, fazendo bico né. (...) Num ponto é bom por que não sendo contratado recebe mais do que os fichados, não é? Quem não é fichado recebe mais, pega a produção. Trabalhando nesses contrato de três mês, sai, recebe, né, aí passa um mês fora, volta, aí vai continuando direto. A empresa chama de novo se o cabra for bom, né? E continua direto. Tem um vizinho meu que tá lá com cinco contratos direto. Trabalha dois meses, trabalha um mês fora, volta de novo e continua. Trabalha mais três mês, né, aí sai e torna a retornar de novo. Tá com cinco contratos já. E o fichado recebe menos, por que tá fichado, não recebe aqueles tanto a mais Ele recebe mais por que quando acaba aquele contrato ali, né, ele recebe o tantinho dele, né, o fundo de garantia (FGTS) O fichado trabalha direto. Pra mim é melhor ser fichado, por que tem aquela garantia. Ele tando fichado direto, é o mesmo que tá aposentado pode comprar o que quiser. Uma estabilidade. Agora que não é fichado não quer ser fichado, vai e volta, vai e volta e pronto. (...) Eu acho que as pessoas tando fichada tá bom, por que a pessoa tá segura. Todo tempo você tem ali aquele serviço, aquele seu emprego certo. Por que você tá hoje trabalhando, amanhã você tá desempregado quinze, vinte dias, dois mês. Você tendo seu certo, você tem mais segurança, acontecendo algum acidente, já tá ali seus cinco anos, seis anos, já tem mais segurança. O trabalhador avulso não tem vantagem nenhuma, por que quase que ele não tem, como é que se diz, um direito, né? Se ele, uma comparação, acontecer um (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 120 acidente dentro do local do trabalho ele ainda tem uma chance, né, por que tava dentro do trabalho, mas se ele for fora do trabalho ele perde tudo, ele não tem nada. A pessoa ali fixa no seu trabalho, é melhor. Pode-se observar que os/as trabalhadores/as encontram vantagens e desvantagens na forma contratual permanente e temporária. Atribuem à primeira, elementos como estabilidade, segurança, tanto de ordem financeira (na medida em que podem arcar com débitos e compromissos em geral, pois, recebem de maneira continuada o salário devido pela venda da sua força de trabalho) como previdenciária, em função da garantia de sobrevivência em caso de acidentes relacionados ao trabalho. Já em relação ao emprego temporário, apesar da boa contrapartida econômica em função do alto valor da diária quando comparada à diária do salário do empregado permanente, a não cobertura de direitos e a intermitência dos salários são as principais desvantagens apresentadas. Mesmo com um valor relativamente alto da diária, quando se considera a divisão do valor total dos salários recebidos pelo tempo total de vínculos firmados ao longo do ano, a remuneração proporcional do temporário é menor do que a do empregado permanente. Sem falar no período de desemprego, que cada vez mais se apresenta de forma estrutural, como fora analisado. A situação de exploração da mão-de-obra rural na fruticultura irrigada do Submédio do São Francisco tem se intensificado na justa medida do crescimento do uso da mão-de-obra temporária. Na região, o Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas Agrícolas, Agroindustriais e Agropecuárias dos Municípios de Juazeiro, Curaçá, Casa Nova Sobradinho e Sento Sé, mais conhecido como SINTAGRO51, tem exercido importante papel na defesa dos direitos dos trabalhadores rurais na região, mas tem encontrado oposição junto aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR’s) tradicionais, que na disputa por base e em parceria com o empresariado frutícola tem procurado questionar a legitimidade do SINTAGRO, justamente pelo seu caráter mais combativo (COSTA, 2005). Todavia, a realidade ainda mostra que o desafio é muito grande. Outra dificuldade/desafio apresentada pelo Sindicato diz respeito à 51 Sobre o interessante processo de formação do SINTAGRO a partir das mobilizações dos assalariados desde o final da década de 1970, da crise da representação sindical tradicional, processo em que mobilizou e articulando diversas entidades da sociedade civil organizada: ver (COSTA, 2005). (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 121 representação e organização dos trabalhadores diaristas, mão-de-obra cada vez mais utilizada nas unidades produtivas da região. Entretanto, formalmente não são considerados empregados, ficando descobertos da base de atuação dos órgãos de representações sindicais. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, onde se deu, após muito tempo de ostracismo e negação do trabalhador rural, a equiparação dos direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, conforme preconiza o art. 7º da Carta constitucional (BRASIL, 1988), elevando as garantias trabalhistas à condição de direitos fundamentais, sem dúvida houve avanço no trato legislativo com a questão trabalhista rural, cuja luta política a muito tinha se dado com vistas à positivação de direitos. Entretanto, grafá-los na letra seca da lei não garante a eficácia dos mesmos e nem altera as relações sociais no plano da existência, onde a regra ainda continua sendo a extrema degradação do trabalhador, alavancada pelos desdobramentos da “modernização conservadora” do campo. O padrão de desenvolvimento (baseado num regime de reprodução expansiva), o atual estágio da crise estrutural do capital52 e a inexpressiva atuação pública para a proteção efetiva do trabalho, de forma concatenada criam as condições necessárias para o processo de regressão dos direitos sociais trabalhistas, tendo em vista os limites colocados por estes no movimento de reprodução do capital. 52 MÉSZÁROS (2011), reivindicando Marx, problematiza em quatro as principais características que definem a crise estrutural do capital: (1) seu caráter é universal, em contraposição aos ramos particulares da produção, da comercialização ou da financerização; (2) seu escopo é verdadeiramente global, em lugar de limitado a um bloco de países; (3) sua escala de tempo é extensa, ou melhor, permanente, ao contrário das anteriores, que tinha um caráter cíclico; (4) seu desenvolvimento é gradual, afetando a totalidade do complexo social. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 122 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da história brasileira, o/a trabalhador/a do campo sempre foi tratado/a como personagem subalterno, tendo seu trabalho sofrido intenso processo de desvalorização. A regulação pública, apesar dos avanços pontuais, passando de uma dimensão meramente formal, para outra de cunho mais social (com a edição do ETR em 1963, substituído pela Lei 5.889/73 e com a promulgação da Constituição Federal de 1988), não garantiu as transformações necessárias à construção de relações de trabalho menos degradantes no setor agropecuário. O oferecimento de trabalho rural digno é realidade para poucos. As políticas agrícolas levadas a cabo da Colônia à “Nova República” só reafirmaram a exclusão dos/as trabalhadores/as rurais do pacto de proteção social do trabalho, facilmente constatada pelas baixíssimas taxas de formalização do emprego rural. Dos engenhos senhoriais ao “moderno” agronegócio, o desenvolvimento do projeto hegemônico no campo balizou-se no tripé concentração fundiária, exploração intensa do trabalho humano e destruição da natureza, sempre com vistas à reprodução expansiva do capital. Essa lógica desenvolvimentista trouxe sérias implicações para o mundo do trabalho no campo principalmente no que diz respeito à multiplicação desvairada dos contratos por prazo determinado, fragilizando, assim, a incidência das garantias trabalhistas. Dentro dessa perspectiva, muito mais do que apresentar conclusões de forma absoluta, mais interessante seria sinalizar possíveis desdobramentos oriundos do exercício da pesquisa realizada, como forma de aprofundar o estudo da temática proposta. Nessa perspectiva, às inquietações que se apresentam em três. A primeira diz respeito à compreensão das especificidades do processo de reestruturação no modo de produção capitalista no interior da agricultura brasileira. A densa literatura direcionada ao estudo das transformações ocorridas no mundo do trabalho (fruto da emergência de novos processos de produção e organização53, intensificando a precarização social trabalho54) toma como base a realidade urbano-industrial para analisar tanto as mudanças como 53 54 Vide ANTUNES, 2010. Vide DRUCK & FRANCO, 2007. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 123 as conseqüências desse movimento. Tal referencial é plenamente justificável na medida em que se debruça sobre a fração hegemônica do capital, fundamental ao entendimento dos mecanismos de reprodução e expansão do próprio capitalismo. As repercussões do processo de crise do padrão fordista nas formas de acumulação e de inserção da força de trabalho na agricultura brasileira não têm sido objeto de estudo por parte dos pesquisadores. Daí a necessidade de aprofundamento da temática. Nessa linha, as análises em torno dos impactos do processo de reestruturação produtiva tanto (i) no setor agropecuário (compreensão da possível manifestação do fenômeno da acumulação flexível no campo brasileiro) quanto (ii) na vida dos/as trabalhadores rurais (compreensão dos fenômenos da precarização e da flexibilização dos direitos sociais trabalhistas no meio rural) devem partir das especificidades do desenvolvimento do capitalismo no campo, como forma de se evitar a transposição equivocada de conceitos formulados sobre realidades distintas. O segundo ponto diz respeito à situação da relação de emprego temporário e a modernização da agricultura. O art. 443 da CLT, §2ª, alínea “a”, estabelece que “o contrato por prazo determinado só será válido em se tratando de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo. Dentro dessa perspectiva, a multiplicação dos contratos temporários de emprego (como os de safra e o de experiência) foi um dos efeitos mais expressivos da modernização do setor agropecuário. Entretanto, cada vez mais a natureza foi sendo controlada no processo produtivo, principalmente através da aliança entre a alta tecnologia e a manipulação biogenética. A sazonalidade da produção agrícola tem diminuído consideravelmente nas últimas décadas, sendo possível produzir determinadas culturas o ano inteiro, como a manga e a uva, mitigando essa transitoriedade do serviço. Cumpre ressaltar que no período de edição da CLT, a agricultura encontrava-se num estágio de desenvolvimento muito aquém do “moderno” modelo do agronegócio. Nesse sentido, como falar de transitoriedade do serviço agrícola nas grandes empresas rurais se estas buscam tornar cada vez mais perene a produção agrícola? Por que os contratos temporários continuam sendo utilizados em larga escala se a alta tecnologia e as formas de organização da produção têm diminuído os intervalos naturais das culturas, (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 124 relativizando a transitoriedade típica das atividades agrícolas? Não estaria o direito atrasado em relação à realidade? E este atraso interessa a quem? Por fim, como se pode verificar, a regulação pública do trabalho rurícola há muito já demonstrou sua incapacidade em dar respostas significativas aos inúmeros problemas vividos pelos/as trabalhadores/as rurais. Seja pelo não atendimento no plano legislativo das especificidades que envolvem o trabalho rural, figurando a legislação como cópia da experiência urbana, cuja maior síntese é a CLT, como pela omissão institucional em fazer valer concretamente as leis no campo. Esse fenômeno criou as condições para que a iniciativa privada ditasse os termos e as condições da prestação do trabalho no setor agropecuário, num processo de contradição, pois foi contra a absolutização da autonomia privada que o Direito do Trabalho se estruturou, se propondo a intervir diretamente no seio das relações de trabalho como forma de equalizar na ordem jurisdicional as desigualdades latentes na ordem econômica. Assim, a mudança da legislação há muito se faz necessária. Agora resta saber pra que lado essa mudança vai acumular. Alguns setores já estão se mobilizando. A Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), órgão vinculado à Presidência da República, lançou no ano de 2008 um documento intitulado Agricultura Brasileira no Século XXI, com o objetivo de subsidiar os debates em torno das transformações ocorridas na agricultura nacional. A extensa agenda agrícola (como é apresentada) tem por objetivo “impulsionar o Brasil à condição de potência econômica e ambiental” do presente século e “procura explicitar, no plano das idéias, os desafios dessa empreitada e as principais iniciativas que devem acelerar a transformação do campo (SAE, 2008, p. 7). O documento possui duas partes, sendo a primeira destinada ao resumo das bases do novo modelo agrícola e a segunda às propostas legislativas para “dar vida às idéias”, como o texto mesmo diz. Para alcançar a meta de potência do novo século, mudanças no trato do trabalho rural precisam ser feitas. Apontam como principal problema a informalidade e a diminuição dos postos de trabalho no campo, sendo as distorções verificadas fruto do emaranhado legislativo e do alto custo da mão-de-obra. Como propostas sugerem mudanças pontuais na regulação do trabalho rural, “com a finalidade imediata de estimular e incrementar no curto e médio prazo, o emprego formal no campo, tendo em vista a reconstrução das relações entre o trabalho e o capital no Brasil” (Idem, (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 125 p. 29). Para tanto, apresenta a SAE um anteprojeto de lei com intuito de alterar as normas do emprego rural contidas na Lei n. 5.889/1973. Dentre os diversos pontos, destacam-se: (i) a inclusão do art. 5ª-A e seus parágrafos, prevendo a ampliação da jornada para até 12 horas em casos de adversidades climáticas, combate urgente às pragas, manejo imprevisto de animais e outras situações emergenciais peculiares à atividade rural, onde o acréscimo de salário decorrente das horas extras trabalhadas pode ser dispensado mediante acordo coletivo, possibilitando compensação na forma do banco de horas, conforme preceitua o § 2º do art. 59 da CLT; (ii) a alteração do art. 5º, ampliando o intervalo para repouso e alimentação de no máximo de 2 (duas) para 4 (quatro) horas. Será que as alterações propostas, diferentemente das anteriores, visam finalmente materializar o adjetivo social da legislação trabalhista rural? Essas são as mudanças estruturais para criação de condições dignas de trabalho no campo? E os/as trabalhadores/as o que acham dessas mudanças? Suas opiniões foram consideradas para formulação das propostas? As transformações necessárias apenas devem se operar no plano legislativo? Muitos são os questionamentos. Assim, cabe ressaltar que a divisão sugerida acima assume dimensão meramente didática, na medida em que os planos se articulam num todo dialético. No seu livro, A Atualidade Histórica da Ofensiva Socialista, Ístvan Mészáros (2010:17), alerta que no período de crise estrutural, as demandas centrais da classe trabalhadora para serem bem sucedidas, não podem estar limitadas aos instrumentos institucionais da insustentável democracia burguesa, pois, “o irônico e muitas vezes trágico resultado de longas décadas de luta política dentro dos limites das instituições políticas de autointeresse do capital revelaram que, sob as condições hoje prevalecentes, a classe trabalhadora foi espoliada em todos os seus direitos em todos os países capitalistas avançados e não avançados”. Nesse sentido, num exercício de resgate da força motriz necessária às profundas mudanças do atual sistema de reprodução da vida social, defende o teórico militante que os/as trabalhadores/as (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 126 Deve [m] ter plena consciência não apenas da magnitude da tarefa e das implicações de longo prazo das questões em jogo, também na resistência inevitavelmente tenaz da ordem socioeconômica, que deve seguir seus próprios imperativos para anular toda e qualquer concessão que possa ser feita na esfera jurídica/política, (...). Pois, o êxito duradouro nessa questão só é factível por meio de um intercâmbio sustentado – uma reciprocidade dialética – entre a luta pelo objetivo imediato (...) e a transformação progressiva da ordem social estabelecida, que não pode deixar de resistir e anular todas essas demandas (MÉSZÁROS, 2007:141). O grau de efetividade dos direitos no interior da ordem capitalista depende direitamente da compreensão do campo e das regras do jogo, conjugando as formas tradicionais de organização política das forças do trabalho (que lhes geraram acúmulos históricos) com a radicalidade necessária, não para conquistas das concessões fragmentadas da ordem do capital, mas sim para a construção de uma nova sociabilidade, fundada na articulação dos produtores livres e associados. Eis o nosso inadiável desafio. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! 127 REFERÊNCIAS AATR. Direito das Comunidades Tradicionais. Módulo de Formação em Educação Jurídica Popular. 2009. ALVES, Alaor Caffé; CARVALHO, Olavo. Marxismo, Direito e Sociedade. São Paulo: USP, 2003. Disponível em: <http://migre.me/5bDJ9>, acessado em 23 de Maio. ANDRADE, Manuel Correia. A terra e o Homem no Nordeste. 3ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1973. __________. 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