UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO DOUTORADO EM TEATRO EDER SUMARIVA RODRIGUES O EMBATE ALÉM DO SANGUE E DA CARNE DE RUTH ESCOBAR: FACETAS DE UMA GUERREIRA FLORIANÓPOLIS 2015 EDER SUMARIVA RODRIGUES O EMBATE ALÉM DO SANGUE E DA CARNE DE RUTH ESCOBAR: FACETAS DE UMA GUERREIRA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro, no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro. Orientadora: Prof. Vera Regina Martins Collaço, Dra. FLORIANÓPOLIS 2015 EDER SUMARIVA RODRIGUES O EMBATE ALÉM DO SANGUE E DA CARNE DE RUTH ESCOBAR: FACETAS DE UMA GUERREIRA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro – PPGT, do Centro de Artes – CEART, da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro. Área de Concentração: Teorias e Práticas do Teatro Banca Examinadora, integrada pelos professores: _________________________________________ Profa. Vera Regina Martins Collaço, Dra. (UDESC) Orientadora _________________________________________ Profa. Fátima Lima, Dra. (UDESC) Membro _________________________________________ Profa. Tereza Mara Franzoni, Dra. (UDESC) Membro _________________________________________ Profa. Luis Humberto Martins Arantes, Dr. (UFU) Membro _________________________________________ Profa. Elizabeth Ferreira Cardoso Ribeiro Azevedo, Dra. (USP) Membro Florianópolis (SC), 31 de março de 2015. R696e Rodrigues, Eder Sumariva O embate além do sangue e da carne de Ruth Escobar: facetas de uma guerreira / Eder Sumariva Rodrigues. – 2015. 387 p. : il. ; 21 cm Orientadora: Vera Regina Martins Collaço Bibliografia: p. 358-382 Tese (doutorado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis,2015. 1. Teatro brasileiro - História. 2. Atores - biografia. 3. Biografia. 4. Ruth Escobar. I. Collaço, Vera Regina Martins. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de PósGraduação em Teatro. III. Título. CDD: B869.209 – 20.ed. Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC Cântico negro "Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tetos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca princípio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou, É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou Sei que não vou por aí! Poema de José Regio proferido por Ruth Escobar. AGRADECIMENTOS Ao longo dos anos que me dediquei a esta pesquisa, recebi muitas contribuições que me serviram de incentivo para eu chegar a este resultado possível e não encerrado. Sim, este trabalho é transitório e como não poderia deixar de ser, carece de auxílios, reforços, agregados a outras percepções. Porém, nesse momento, agradeço àqueles que fizeram parte desta minha trajetória em que desempenho o papel de pesquisador, desejando, especialmente, desvelar Ruth Escobar. Em 2011, Vera Collaço acreditou que minha proposta de pesquisa pudesse se tornar uma tese. Após quatro anos, eis o resultado. Nesse tempo, Vera foi sábia. Soube compreender que a minha forma de pesquisar não era definida a priori, como costumeiramente a maioria dos pesquisadores fazem, mas a posteriori; necessitava “mergulhar” na história de vida de Ruth, nos arquivos, nos documentos e deixar que esse emaranhado de informações pululantes me contaminasse e demonstrasse os caminhos a serem percorridos. Ao mesmo tempo, Vera não podou, não impôs condições, mas incentivou, refletiu e se adaptou a essa forma diferenciada de pesquisar. Acima de tudo, Vera confiou nesse principiante como pesquisador, deixou que essa liberdade fosse motivadora e com ela as devidas consequências de meu crescimento intelectual. Assim, ao longo desse tempo, diante de Vera, não me senti como um orientando submisso às ideais de um orientador, mas dialoguei, discuti, concordei e, muitas vezes, discordei. Vera aparou as arestas, acompanhou. Aliás, o verbo acompanhar também foi presente nessa trajetória, não somente comigo no Brasil, mas quando estava realizando meu doutorado sanduíche em Portugal. De perto ou de longe, Vera seguiu junto. Essa atitude também pode ser vista nos encontros que realizamos junto de seus outros orientandos, nos cafés, nos almoços, nas reuniões de pesquisa, nas idas ao cinema. Por tudo isso, fica aqui registrado meu agradecimento pela parceria nessa pesquisa que, certamente, vai mais além do que o espaço acadêmico adentra a esfera da vida pessoal, outro aspecto sempre demonstrado por Vera; a preocupação com todos aqueles que fizeram (e fazem) parte da “equipe” ou, melhor, de sua vida. Leon de Paula foi outra pessoa para a qual quero registrar meus sinceros agradecimentos. Partimos do princípio. Conheci Leon ainda no período em que estudava na graduação em teatro no Centro de Artes da UDESC. Ele foi meu professor de Interpretação Teatral III. Esse primeiro contato não teve absolutamente nada de empatia, ao contrário, a apatia se estabeleceu. Ao longo do semestre, praticamente me recusei a fazer suas aulas. No mínimo, para mim, sua forma de lecionar era estranha. Ao menos, recordo-me que era essa a desculpa em que eu acreditava; no fundo não era isso. Na época, os embates internos da descoberta de eu ser gay se confrontavam com a figura de Leon; a mim era inadmissível ser homossexual. Ele era despachado, chamava atenção nos corredores, criava personagens femininos. Tudo isso, gerava em mim turbulência. Foi uma fase, na qual a figura de Leon me indagava todo momento. Após esse período de instabilidade pessoal, aceitei que meu caráter estava acima de minha preferências sexuais. Depois de alguns anos, reencontrei-o. A vida soube recolocá-lo no momento exato em meu caminho (nesse momento, choro) com tamanha precisão que, hoje, tenho profunda admiração por sua pessoa. Leon teve papel fundamental nessa trajetória, nessa pesquisa, em minha vida. Muitas vezes, foi responsável por me acolher, aconselhar, guiar, estender a mão, refletir. A apatia se transformou radicalmente em empatia. Hoje, olhares são sinônimos de confidências, de entendimentos. Atualmente, vibramos com as conquistas que cada um alcançou (e alcançaremos). Não deixamos de discordar, de termos opiniões diferentes, divergentes, mas isso é ínfimo diante da amizade que temos. Sabemos que “o mais lerdo, voa!” e que “deixar a bola quicar” não é uma opção, o “ataque” é quase mortal. Ainda que ele esteja morando em outro estado, a distância não separa, não é proporcional ao tempo. No reencontro, foi ontem que nos vimos. O tempo não dilata, não esvanece, mas de certa forma paralisa. Nada mudou, continuamos confidentes, por mais que o tempo passe. Nesses quatro anos, muitas histórias aconteceram, as quais nesse momento, é impossível registar. (Aliás, falei de mais de você! Na próxima, meus agradecimentos se reduzirão à nota de rodapé, fonte quatro, em palavra única!) Meu imenso agradecimento por tudo o que você representa para mim. Além deles, agradeço a todos do Programa de Pós-Graduação em Teatro do CEART/UDESC, fundamental no desenvolvimento dessa pesquisa: financiou viagens para estudos de campo; o corpo docente do programa colaborou nas reflexões para este pesquisa e as grandiosas meninas da secretaria acadêmica: Mila, Francine, pelos momentos de descontração e aprendizado e Sandra (in memoriam) que com suas sábias palavras num momento difícil de minha vida, não me deixou desistir desse doutorado. Ainda no âmbito institucional, agradeço a CAPES pela concessão da bolsa de doutorado sanduíche em Portugal que colaborou com meu crescimento pessoal, bem como com meu lado de pesquisador. Nessa oportunidade, conheci Maria João Brilhante, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa que me coorientou no período de nove meses. Esta pesquisa contou também com a participação dos críticos Jefferson Del Rios, Mariângela Alves de Lima, Ilka Marinho Zanotto, Alberto Guzik (in memoriam), Clóvis Garcia (in memoriam); o dramaturgo Aimar Labaki; a atriz Nidia Lycia; o produtor teatral Janjão e ao pesquisador Jacó Guinsburg que com seus depoimentos tive a oportunidade de aprofundar a presente pesquisa; em Portugal, os entrevistados, Maria Céu, atriz do Teatro A Barraca, a exfeminista Maria Tereza Horta e os encenadores Carlos Avilez, do Teatro Experimental de Cascais e, João Mota do Comuna Teatro Pesquisa. Sou grato, também, a todos os bibliotecários (as), arquivistas, recepcionistas, secretárias que me auxiliaram nos diversos arquivos que visitei no Brasil e em Portugal. Difícil recordar o nome de todos, mas aqui fica registrada a importância vital dessas funções, já que sem elas, não seria possível realizar essa extensa pesquisa. Os amigos que compreenderam e àqueles que não souberam entender o exercício da solidão, da abstinência de viver e as recusas dos convites; eles também foram decisivos. Relacioná-los seria injusto, pois corro o risco de “pecar”. Agradeço, ainda, as contribuições de Inês Cardoso e Patrícia Escobar, filhas de Ruth Escobar, que me receberam e colaboraram para que eu percebesse mais sobre sua mãe. Por último, mas não menos importante agradeço imensamente aos meus pais por acreditarem no meu projeto de vida. A todos, meus sinceros agradecimentos. Quando morremos, nada pode ser levado conosco, com a exceção das sementes lançadas por nosso trabalho e do nosso conhecimento. Dalai Lama Quando seu coração está pleno de gratidão, qualquer porta aparentemente fechada pode ser uma abertura para uma bênção maior. Osho RESUMO RODRIGUES, Éder Sumariva. O embate além do sangue e da carne de Ruth Escobar: facetas de uma guerreira. 2015. 468f. Tese (Doutorado em Teatro – Área: Teorias e Práticas do Teatro – Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2015. Quem foi Ruth Escobar? É possível responder a essa questão? A unicidade de uma pessoa, do ponto de vista adotado nesta tese, só é compreensível na percepção maior de sua individualidade, enquanto sujeito inserido em seu contexto social. Desta perspectiva, procurase compreender as trajetórias percorridas por Ruth Escobar entre 1935 e 1990, quando esta empreendeu uma série de atividades profissionais e de lutas sócio-políticas. Com este recorte temporal – 1935 a 1990 – e o acesso a inúmeros documentos, ainda não trabalhados na historiografia teatral brasileira, foi possível estabelecer um olhar multifacetado para Ruth Escobar, e construir uma narrativa de vida compreendida como relato de práticas. Ao olhar esse tempo de cinquenta e cinco anos, privilegiando o nível do indivíduo, percebe-se as inúmeras práticas, artísticas e políticas, que contaram com o impulso inicial ou com envolvimento posterior, porém muito relevante, de Ruth Escobar. Para melhor narrar essa dimensão do vivido, construiu-se oito facetas dessa personagem, que correspondem a traços bem definidos enquanto experiências elaborados com ou a partir de seu envolvimento pessoal. Para essas facetas procurei encontrar um título que sintetizasse a essência da prática que eu estava relatando no conjunto do capítulo em questão. Para recontar o percurso dessa personagem foram elaborados os seguintes títulos, em sequência com a estrutura dos capítulos desta tese: A Aventureira, A Novata, A Produtora, A Rebelada, A Organizadora, A Resistente, A Feminista, A Ressurgida. Estes foram os oito diferentes olhares para as experiências vivenciadas por Ruth Escobar. Ressalta-se que esse relato foi elaborado a partir do cruzamento de fontes orais e documentos escritos. Sendo esses último centrados, em sua grande maioria, em material jornalístico e documentos liberados dos porões da censura da última ditadura brasileira. Para complementar essa narrativa textual, elaborei ao final de cada capítulo, um dossiê de imagens, muitas delas inéditas no Brasil e em Portugal. O estudos dos diferentes caminhos trilhados por Ruth Escobar enquanto atriz, produtora, empresaria, feminista, deputada e agente cultural, tornam possível uma leitura dos acontecimentos e da sociedade na qual ela estava inserida. Permite, principalmente, compreender as transformações ocorridas no teatro paulista, e as suas reverberações no teatro praticado no Brasil, e, como consequência, alinhando o teatro brasileiro às vanguardas cênicas, e políticas, do século XX. Palavras-chave: Ruth Escobar, história do teatro brasileiro, histórias de vida, biografia. ABSTRACT RODRIGUES, Éder Sumariva. The clash beyond the blood and meat of the Ruth Escobar: facets of a warrior. 2015. 468 f. Tese (Doutorado em Teatro – Área: Teorias e Práticas do Teatro – Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2015. Who was Ruth Escobar? Is it possible to answer this question? The uniqueness of a person, the point of view adopted by this thesis, is only understandable when it comes to a bigger perception of it’s individuality as a subject of it’s social context. Through this outlook, I aim to comprehend the paths walked by Ruth Escobar betIen 1935 and 1990, when she undertook a series of professional activities and sociopolitical fights. With this time frame – 1935 to 1990 – and the access to countless unpublished documents was possible to establish a multifaceted view to Ruth Escobar and built a life narrative understood as the report of this practices. To review this 55 years frame, focusing on the quality of the being allow us to notice several artistic and politic practices which counted on the initial boost or the later involvement, but still relevant, of Ruth Escobar. In order to better narrate the dimension of what was lived, I built eight sides of this character, which are related to well defined features as experiences, made with or from her personal involvement. To this sides I sought titles that encapsulated the essence of the practice I narrate at the chapter in question. The titles, related to the chapters structure of this thesis, were created in order to retell the course of our character: the Adventurous, the Newbie, the Producer, the Rebel, the Mastermind, the Resistant, the Feminist, the Resurrected. Eight different looks to the experiences lived by Ruth Escobar. It stands out that this report was written from the intersection of written documents and oral sources. The written documents are mostly centered on the journalistic material and documents released from the dungeons of the last Brazilian censorship. To complement the textual narrative, I organized at the end of each chapter an image dossier, many of them unpublished in Brazil and Portugal. The study of the different paths followed by Ruth Escobar, as an actress, producer, businesswoman, feminist, deputy and cultural agent, make possible a reading of the events and of the society in which Escobar was involved. It allows, mostly, to understand the transformations that took place on the São Paulo Theater and it’s reflections on the theater made in Brazil, and as a result, aligning the Brazilian theater to the scenic and politic avant garde of the XX century. Key Words: Ruth Escobar, history of the Brazilian Theater, life stories, biography. LISTA DE IMAGENS Dossiê de fotos A Aventureira....................................................................................52 Dossiê de fotos A Novata...........................................................................................92 Dossiê de fotos A Produtora.......................................................................................138 Dossiê de fotos A Rebelada........................................................................................181 Dossiê de fotos A Organizadora.................................................................................220 Dossiê de fotos A Resistente......................................................................................250 Dossiê de fotos A Feminista.......................................................................................289 Dossiê de fotos A Ressurgida.....................................................................................339 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AC Ato Complementar AEL Arquivo Edgar Leuenroth AHSP Arquivo Histórico de São Paulo AI Ato Institucional ALESP Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo AM Amazonas AMS Arquivo Miroel Silveira AN Arquivo Nacional ANP Academia Nacional de Polícia APCT Associação Paulista dos Críticos Teatrais APESP Arquivo Público do Estado de São Paulo APETESP Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais de São Paulo APML Ação Popular Marxista-Leninista ARENA Aliança Renovadora Nacional ASP Agência de São Paulo AVC Acidente Vascular Cerebral BR Brasil BSB Brasília CBA Comitê Brasileiro pela Anistia CCC Comando de Caça Comunista CCSP Centro Cultural São Paulo CDB Conservatório Dramático Brasileiro CEC Conselho Estadual de Cultura CECE Comissão de Exame e Classificação de Espetáculos CECOPOM Centro de Comando da Polícia Militar CEDAW Comitê de Eliminação da Discriminação contra a Mulher CEDEM Centro de Documentação e Memória CEDOC Centro de Documentação CEEDAD Centro de Estudos de Escolas de Artes Dramática CELAC Centro Latino-Americano de Criatividade CET Comissão Estadual de Teatro CISA Centro de Informação de Segurança da Aeronáutica CITAC Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra CLT Consolidação das Leis Trabalhistas CMTC Companhia Municipal de Transportes Coletivos CNA Comitê Nacional de Anistia CNBB Confederação Nacional dos Bispos do Brasil CNDM Conselho Nacional dos Direitos da Mulher CNN Companhia Colonial de Navegação CNV Comissão Nacional da Verdade CODI Centro de Operações de Defesa Interna COM NAVAL Comando Naval COMAR Comando Aéreo Regional CPC Centro Popular de Cultura CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil DCDP DDP DEIP DGCE DIP DNI DOI DOP DOPS DOSP DPDC DPF DSGE EAD EBHO EGHO EMURB EUA FAPESP FCG FGV FIAC FIT FMI FUNARTE IAC IEB IST JK LCM LSN MAC MASP MCP MDB MEC MFPA MG MINC MNR MNT MPF OBCOM ONU OTASE PCB PDT PE Divisão de Censura e Diversões Públicas Divisão de Diversões Públicas Departamentos Estaduais de Imprensa e Propaganda Direcção-Geral da Cultura Popular e Espetáculos Departamento de Imprensa e Propaganda Departamento Nacional de Informações Destacamento de Operações de Informações Departamento Oficial de Publicidade Departamento de Ordem Política e Social Diário Oficial de São Paulo Departamento de Propaganda e Difusão Cultural Departamento da Polícia Federal Direcção de Serviços de Gestão Educativa Escola de Artes Dramática Encontro Brasileiro de Homossexuais Encontro de Grupos Homossexuais Organizados Empresa Municipal de Urbanismo Estados Unidos da América Fundação de Amparo à de Pesquisa do Estado de São Paulo Fundação Calouste Gulbenkian Fundação Getúlio Vargas Festival Internacional de Artes Cênicas Festival Internacional de Teatro Fundo Monetário Internacional Fundação Nacional das Artes Instituto de Arte Contemporânea Instituto de Estudos Brasileiros Instituto Superior Técnico Juscelino Kubitschek Liceu Carolina Michaëllis Lei de Segurança Nacional Museu de Arte Contemporânea Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand Movimento de Cultura Popular Movimento Democrático Brasileiro Ministério da Educação e Cultura Movimento Feminino pela Anistia Minas Gerais Ministério da Cultura Movimento Nacionalista Revolucionário Museu Nacional do Teatro de Portugal Mocidade Portuguesa Feminina Observatório de Comunicação Organização das Nações Unidas Organização do Tratado do Sudeste Asiático Partido Comunista Brasileiro Partido Democrático Trabalhista Pernambuco PFL PMDB PMSP PRO PSD PT PT PTB PUC RAN RIO RJ RS SC SENAC SESC SNI SNI SNT SP SPN TAIB TBC TCB TCU TEC TEL TEP TFP TIT TML TNC TPN TT TUCA UFRJ UNE UNESP UNICAMP URSS USP YFT Partido da Frente Liberal Partido do Movimento Democrático Brasileiro Prefeitura Municipal de São Paulo Processo Partido Social Democrático Partido dos Trabalhadores Portugal Partido Trabalhista Brasileiro Pontifícia Universidade Católica Resistência Armada Nacional Rio de Janeiro Rio de Janeiro Rio Grande do Sul Santa Catarina Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial Serviço Social do Comércio Secretariado Nacional de Informação (em Portugal) Serviço Nacional de Informação (no Brasil) Serviço Nacional de Teatro São Paulo Secretariado da Propaganda Nacional Teatro de Arte Israelita Brasileiro Teatro Brasileiro de Comédia Teatro Cacilda Becker Tribunal de Contas da União Teatro Experimental de Cascais Teatro Estúdio de Lisboa Teatro Experimental do Porto Tradição, Família e Propriedade Taller de Investigacion Teatral Teatro Moderno de Lisboa Teatro Nacional de Comédia Teatro Popular Nacional Torre do Tombo Teatro da Universidade Católica de São Paulo Universidade Federal do Rio de Janeiro União Nacional dos Estudantes Universidade do Estado de São Paulo Universidade de Campinas União das Repúblicas Socialistas Soviética Universidade de São Paulo Yiddish Folks Theater SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 21 CAPÍTULO I – A AVENTUREIRA..................................................................................... 27 1.1Da península rumo a Terra Brasilis .................................................................... 27 1.2 Dos diabos vicentinos aos primeiros movimentos artísticos .............................. 30 1.3 (Des)constru(ações) de Maria Ruth na década de 1950 ..................................... 40 1.3.1 Encontros e estratégias ................................................................................. 43 1.3.2 Cidade luz: um local de transformação e inspiração .................................... 49 1.4 Dossiê de fotos A Aventureira ........................................................................... 52 CAPITULO II – A NOVATA ............................................................................................... 65 2.1 Embates invisíveis, respostas visíveis ................................................................ 65 2.2 O signo do confronto: a contribuição do Teatro Ruth Escobar .......................... 82 2.3 Teatro Popular Nacional: um projeto itinerante ................................................. 87 2.4 Dossiê de fotos A Novata ................................................................................... 92 CAPÍTULO III - A PRODUTORA ...................................................................................... 97 3.1 Através do riso o desejo de mudança ................................................................. 97 3.2 Ruth, 1968: o ano que começou ....................................................................... 107 3.3 Romeu e Julieta: os monstros do balcão .......................................................... 118 3.4 Um nova década – difícil ditadura e a riqueza dos embates ............................ 124 3.5 Dossiê de fotos A Produtora ............................................................................ 137 CAPÍTULO IV – A REBELADA ....................................................................................... 155 4.1 Guerrilha teatral ............................................................................................... 155 4.2 Nova Feira dez anos depois ............................................................................. 161 4.3 A brutalidade do regime tira Ruth Escobar da depressão ou A vigilância continua .................................................................................................................. 165 4.4 Década de 1980: menos espetáculos, mais política ........................................ 170 4.5 Cela[s] e palco[s]............................................................................................. 174 4.6 Dossiê de fotos A Rebelada ............................................................................. 181 CAPITULO V – A ORGANIZADORA ............................................................................. 187 5.1 Da produção a crise do I FIT ............................................................................ 187 5.2 Os primeiros obstáculos do II FIT ................................................................... 194 5.3 A diversidade da programação: estética e política da América Latina à outros países ...................................................................................................................... 197 5.4 O tom da abertura do III FIT - 1981 ................................................................ 204 5.5 Dos grupos de resistência aos regimes militares às inovações estéticas .......... 208 5.6 Programação paralela ....................................................................................... 212 5.7 Da abertura ao encerramento. Novas perspectivas........................................... 216 5.8 Dossiê de fotos A Organizadora ...................................................................... 219 CAPÍTULO VI – A RESISTENTE .................................................................................... 225 6.1 A participação na luta pela anistia ................................................................... 225 6.2 A fé na aventura coletiva: Revista do Henfil .................................................... 237 6.3 O poder repressivo na Caixa de Cimento ......................................................... 243 6.4 Fábrica de Chocolate: os subterrâneos da tortura ........................................... 245 6.5 Dossiê de fotos A Resistente ............................................................................ 249 CAPÍTULO VII – A FEMINISTA ..................................................................................... 255 7.1 O movimento feminista e os antecedentes feministas na história de Ruth ...... 255 7.2 O engajamento no feminismo .......................................................................... 259 7.3 O direito de fala a todas as mulheres no III FIT .............................................. 261 7.4 A relação de Ruth Escobar com as temáticas feministas da América-Latina .. 264 7.5 Festival Nacional das Mulheres nas Artes, em 1982. ...................................... 268 7.7 O envolvimento de Ruth Escobar com as políticas para as mulheres .............. 271 7.7 A questão do aborto ......................................................................................... 280 7.8 Dossiê de fotos A Feminista ............................................................................ 288 CAPITULO VIII – A RESSURGIDA ................................................................................ 303 8.1 Lembra-se de mim? Sou a Maria Ruth ............................................................ 303 8.2 O espetáculo, a crítica, a censura de Missa Leiga ............................................ 306 8.3 Os recursos financeiros para Missa Leiga ........................................................ 312 8.4 A trajetória de Cemitério de Automóveis - censura .......................................... 320 8.5 Financiamento para a demolição cênica .......................................................... 329 8.6 A saga de Autos Sacramentais ou O ciclo se fecha ......................................... 332 8.7 Dossiê de fotos A Ressurgida .......................................................................... 338 CONSIDERO[AÇÕES] ....................................................................................................... 353 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 358 ANEXO I: Entrevista realizada por Ruth Santos com o General Gamal Abdel Nasser, presidente do Egito, em 1956. .............................................................................................. 383 ANEXO II – Contabilidade das apresentações no Teatro Rivoli, na cidade do Porto .. 385 ANEXO III – Contabilidade das apresentações no Teatro Gil Vicente, na cidade de Coimbra................................................................................................................................. 387 INTRODUÇÃO Escrever a vida é um horizonte inacessível, que no entanto, sempre estimula o desejo de narrar e compreender. François Dosse, 2009, p. 11. esde 2009 me debruço na busca sobre a presença de Ruth Escobar no Teatro Brasileiro. Neste ano iniciei minhas pesquisas, voltadas ao Curso de Mestrado em Teatro (PPGT/CEART) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), resultando na dissertação: A dinâmica da produção teatral de Ruth Escobar: entre estética e poder, arte e resistência, defendida em 2010. Na justificativa do trabalho, eu dizia que pesquisar as atividades teatrais de Ruth Escobar era bastante difícil, devido à escassez de material bibliográfico e à absoluta ausência de trabalhos acadêmicos sobre a sua pessoa e sua produção artística. Destaquei na dissertação duas obras que expunham alguns dados dessa personagem: Maria Ruth: uma autobiografia publicada em 1987 e 2003 (2a edição) e Teatro Ruth Escobar: 20 anos de resistência, uma compilação de críticas e fichas técnicas organizada por Rofran Fernandes, em 1985. A minha dissertação é, portanto, a primeira pesquisa acadêmica acrescida ao escasso material escrito sobre Ruth Escobar e sua produção artística da década de 1960 a 1980. Mas, ao término do mestrado percebi que inúmeras e relevantes lacunas da história da atriz, produtora, empresária, agente cultural, deputada e agente política Ruth Escobar ainda não tinham sido narradas na historiografia brasileira, sendo que minha dissertação, também, não cobria significativas passagens dessa personagem da cena brasileira. Havia, ainda, aspectos a serem trabalhados: seu engajamento político/artístico contra a ditadura brasileira (1964-1985), sua luta no movimento pela Anistia aos perseguidos pela ditadura militar na década de 1970 e suas práticas teatrais realizadas nos presídios brasileiros, seja pelo movimento da anistia ou por melhores condições de vida aos indivíduos presos no Brasil, além de sua passagem por Portugal. A compreensão de que a trajetória de Ruth Escobar, esquecida ou apenas citada na historiografia brasileira, deveria ter outra pesquisa e outros enfoques de abordagem, que só um tempo maior de estudos possibilitaria sua realização, levou-me a retomar essa temática no Curso de Doutorado em Teatro (PPGT/CEART), que encerro agora com a tese: O embate além do sangue e da carne de Ruth Escobar: facetas de uma guerreira. O acesso a novas fontes de pesquisa também foram relevantes na continuidade desse estudo. Quando da realização de meu mestrado, o acesso ao acervo pessoal de Ruth Escobar, em outubro de 2009, foi o elemento mais relevante da pesquisa. Esse acervo só foi acessível por um tempo muito curto e sem possibilidade de retomá-lo noutro período.1 E, a partir de então ele se tornou inacessível a todos os pesquisadores. Felizmente, eu consegui digitalizar o maior número de documentos possíveis, podendo assim continuar o trabalho de narração desse período da história do teatro brasileiro. Mas, a continuidade se deve também e principalmente, à liberação dos Arquivos da ditadura militar, do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que permitiu acompanhar as diferentes lutas empreendidas por Ruth Escobar contra D 1 No fim dessa pesquisa, faço um breve relato sobre as dificuldades do acesso ao acervo de Ruth Escobar. esse autoritarismo imposto aos brasileiros, bem como olhar o outro lado, ou seja, ver como o DOPS, a censura e o regime militar escoltaram, muito de perto, o trabalho realizado por essa produtora e agente cultural. Acrescente-se a esses elementos a possibilidade de uma pesquisa em Portugal, terra de nascimento de Ruth Escobar e de seu retorno em diferentes tempos históricos. Meu desejo se viabilizou, já que por nove meses, através de uma bolsa de doutorado sanduíche, concedida pela CAPES, sob a preciosa orientação da profa. Dra. Maria João Brilhante, permaneci na Universidade de Lisboa. Para abordar esse novo enfoque da intensa trajetória de fatos e produções de Ruth Escobar, restringi-me a um recorte temporal de 1935-1990. Nesse período, Ruth percorreu diversos caminhos sinuosos, que demonstraram a força e audácia da mulher frente aos problemas de seu tempo. Ao olhar esse tempo de cinquenta e cinco anos, privilegiei o crescimento do indivíduo, percebendo as inúmeras práticas artísticas e políticas que contaram com o impulso inicial ou com envolvimento posterior, porém muito relevante de Ruth Escobar. Para melhor narrar essa dimensão do vivido, construí oito facetas dessa personagem, que correspondem a traços bem definidos enquanto experiências elaboradas com ou a partir de seu envolvimento pessoal. Para essas facetas, procurei encontrar um título que sintetizasse a essência da prática relatada por mim no conjunto do capítulo em questão. Para recontar o percurso dessa personagem foram elaborados os seguintes títulos, em sequência com a estrutura dos capítulos desta tese: A Aventureira, A Novata, A Produtora, A Rebelada, A Organizadora, A Resistente, A Feminista, A Ressurgida. Estes foram os oito diferentes olhares às experiências vivenciadas por Ruth Escobar no período de 1935 a 1990. Para elaborar uma narrativa a contento das inúmeras facetas de Ruth Escobar, aproprieime do que Dosse denominava de “sentidos de uma vida”: [...] o significado de uma vida nunca é unívoco, só pode declinar-se no plural, não apenas pelo fato de as mudanças que a travessia do tempo implica, mas também pela importância a conceder à recepção do biografado e de sua obra que é correlativa do momento considerado e do meio que deles se apropria2. Neste sentido, a história de vida de Ruth Escobar se formou por um encadeamento de diversas histórias que se articulam e entrecruzam com outros sujeitos, contextos e tempos. Ainda que esta pesquisa esteja encadeada de forma cronológica, não deve ser compreendida de forma estanque, mas relativizada, pois há simultaneidades de acontecimentos paralelos impossíveis de captar. Além disso, em certa medida, a pesquisa da trajetória de Ruth Escobar também foi permeada por uma dose ficcional. A decisão de utilizar a cronologia, aqui, vai de encontro ao pensamento do pesquisador François Dosse que afirma: “em primeiro lugar, a biografia deve seguir a ordem cronológica, que permite conservar a atenção do leitor na expectativa de um futuro que desvelará progressivamente o tecido da intriga” 3. Sendo assim, nesta pesquisa os caminhos percorridos por Ruth Escobar são apontados, embora não haja completude de todos os fatos ocorridos, pois compreendo tal como colocou Robbe-Grillet que “o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório”4. Permito-me dizer que é impossível reconstituir a riqueza de detalhes que permeiam a história de vida do objeto pesquisado, ainda mais quando se trata de Ruth 2 DOSSE, 2009, p. 375. DOSSE, 2009, p. 56 4 ROBBE-GRILLET apud Bordieu In: Ferreira, 2006, p.185. 3 Escobar. Com isso me alinho ao pensamento de Pierre Bourdieu, percebendo que, para “produzir uma história de vida [...] como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja necessário conformar-se com uma ilusão retórica”5. Apoio-me também no que Paul Veyne delimita como uma pesquisa histórica: “o objeto de estudo nunca é a totalidade de todos os fenômenos observáveis, num dado momento ou num lugar determinado, mas somente alguns aspectos escolhidos”6. Sendo assim, a partir desses pressupostos, não almejamos que esta pesquisa seja um estudo definitivo a respeito de Ruth Escobar e nem mesmo que abranja todas as suas possíveis facetas e tempos históricos e sim, a criação de uma narrativa que dê conta de alguns aspectos que julguei prioritários na escrita de sua biografia. Para compreender a importância desse estudo sobre Ruth Escobar, aproprio-me de um pensamento de Friedrich Nietzsche, para quem a pesquisa histórica deveria ir contra “as cristalizações, os fatos consumados”7; o que é preciso, dizia o filósofo, é abrir “o passado a sempre novas interpelações e interpretações”8. Por que esse pensamento junto ao objeto de minha pesquisa? Porque pesquisar sobre Ruth Escobar é mergulhar em lacunas historiográficas do teatro brasileiro, em verdades enraizadas na historiografia elaborada sobre o nosso teatro nas décadas de 1970 e 1980. Ao observar o panorama do Teatro Brasileiro, principalmente, na segunda metade do século XX, constato que a figura dessa produtora foi esquecida pelos estudiosos do nosso teatro e, por causa disso, ela [ainda] não teve seu devido reconhecimento pela contribuição na renovação da cena brasileira. Na historiografia do Teatro Brasileiro, a trajetória de luta na classe artística e à resistência da produtora à ditadura militar no Brasil não teve seu devido registro. Breves passagens e o destaque de algumas de suas montagens demonstram a importância de seu percurso enquanto produtora teatral, mas não abordam as outras frentes de luta de que ela participou. A crítica Ilka Marinho Zanotto sintetizou a importância de Ruth Escobar para o teatro brasileiro da seguinte forma: Se quiséssemos traçar a evolução do teatro brasileiro no século XX [...] teríamos forçosamente de incluir entre os cumes de suas realizações a trajetória polêmica da atriz-empresária Ruth Escobar. Marcada pelo signo do inconformismo, pelo faro do verdadeiramente artístico e do anticonvencional e pela ousadia das avalanches que, uma vez traçado o rumo, chegam ao seu destino - o vale - a qualquer custo, Ruth Escobar marcou a cena brasileira com o carimbo indelével de sua personalidade. Talhada para as empresas aparentemente impossíveis. Promove debates em tempo de ditadura, leituras de peças proibidas com ameaças de bombas e de invasão à porta, passeatas de protesto. Invade gabinetes de ministros de Estado e de censores e, de peito aberto, vai várias vezes à praça pública clamar pelos direitos pisoteados do teatro. [...] Promotora incansável de tantas obras fascinantes, não se pode negar ao seu teatro o lugar privilegiado que soube conquistar nada tranquilamente na história da arte brasileira9. Ruth Escobar teve um caminho sinuoso no teatro brasileiro. Ela utilizou de astúcia e inteligência para contornar problemas, driblou a repressiva censura durante a ditadura militar, conseguiu parcerias com diversos segmentos da sociedade. Além disso, sua trajetória foi 5 BOURDIEU, 2006, p.185 VEYNE, 1995, p. 29. 7 NIETZSCHE, 2005, p. 24. 8 NIETZSCHE, 2005, p. 24. 9 ZANOTTO apud FERNANDES, 1985, p. 197. 6 marcada por sua posição renovadora na oxigenização dos procedimentos cênicos da cena brasileira, bem como com a realização de audaciosos projetos: a construção do seu próprio teatro, a produção constante de espetáculos arrojados e a organização de festivais internacionais. Todos esses projetos contribuíram para o desenvolvimento da cena teatral, pois ela sempre buscou mostrar uma nova possibilidade de criação espetacular, seja por meio de um novo processo de trabalho dos atores ou pela nova concepção na utilização do espaço teatral, como também estabelecendo novas relações entre público e espetáculo. Há de se destacar que raras foram as discussões acerca da importância de Ruth Escobar para a “fertilização” da cena brasileira, seja através da promoção de intercâmbios com experiências internacionais ou com suas arrojadas produções cênicas e pelo desafio aos censores. Responsável por um significativo número de produções teatrais entre 1959-1981, Ruth Escobar realizou experiências teatrais que serviram de impulso ao desenvolvimento da cena brasileira. Além disso, dentre os diversos integrantes da classe artística paulistana, Ruth Escobar assumiu uma posição de resistência à ditadura militar, não medindo esforços para efetivar seus projetos cênicos de cunho antagônico às regras militares; ela passou a ser alvo de “arapongas” de plantão, que a vigiavam por todos os lados, em todos os cantos sempre com o intuito de vetar suas ações, pois ela simbolizava a “revolução”, a “subversão” da sociedade. Para reduzir o tom ficcional dessa pesquisa, recorri a uma série de documentos jornalísticos, depoimentos, críticas teatrais e materiais arquivados por órgãos governamentais na tentativa de expor a trajetória de Ruth Escobar. O mapeamento de fontes de pesquisa incluiu consulta aos acervos físicos do Centro Cultural São Paulo, Cooperativa Paulista de Teatro de São Paulo, Arquivo Miroel Silveira (USP) e o acervo pessoal de Ruth Escobar, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Laboratório de Informação e Memória do Departamento de Artes Cênicas - LIM/CAC; Projeto Integrado sessão DEOPS; Biblioteca Mario de Andrade; Museu Lasar Segall local que abriga o arquivo do Anatol Rosenfeld; acervo Flávio Império; Acervo Histórico da Assembleia Legislativa de São Paulo; Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Censura (Arquivo Miroel Silveira); Biblioteca Raul Cortez; Tribunal de Justiça; o Centro de Documentação e Memória (CEDEM); Arquivo Edgar Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Além desses arquivos, consegui contato com João Ernesto Coelho Neto, censor durante o regime militar, mas infelizmente não pude realizar a entrevista, pois ele se encontrava num frágil estado de saúde, em virtude do Mal de Alzheimer. No Rio de Janeiro, estive na Biblioteca da Fundação Nacional das Artes CEDOC/FUNARTE (RJ), como também pesquisei, à distância, no Arquivo Nacional de Brasília e do Rio de Janeiro. Pontuo ainda a utilização de diversas bases digitais de acervos on line, como O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Revista Veja, entre outros. Para compreender ainda mais a trajetória de Ruth Escobar, fiquei nove meses na cidade de Lisboa, em Portugal, por meio da bolsa de doutorado sanduíche, concedida pela CAPES, sob a coorientação da profa. Dra. Maria João Brilhante. Esse período foi vital à investigação da infância e adolescência de Ruth Escobar, assim como à compreensão da importância de suas produções teatrais levadas por ela a Portugal. Na cidade de Lisboa foram consultados: Arquivo Arco do Cego, Arquivo da Fundação Calouste Gulbenkian, Arquivo do Comuna Teatro Pesquisa, Arquivo do Jornal Diário de Notícias, Arquivo do Ministério da Educação de Portugal, Arquivo do Teatro D. Maria II, Arquivo e Biblioteca Digital da Secretaria Geral do Ministério das Finanças Arquivo Fotográfico de Lisboa, Arquivo Histórico da Presidência da República, Arquivo Municipal de Lisboa, Arquivo Osório Mateus, Biblioteca Nacional de Portugal, CETBase – Teatro em Portugal, Cinemateca Portugal, Fundação Mário Soares, Hemeroteca Digital de Lisboa, Museu Nacional do Teatro de Portugal, Sociedade Portuguesa de Autores e Arquivo Nacional Torre do Tombo. Mais que a documentação física, entrevistei pessoas que tiveram contato com Ruth Escobar, a saber: Maria Céu - atriz do Teatro A Barraca, Maria Tereza Horta - feminista participante das Novas Cartas Portuguesas e com os encenadores Carlos Avilez - Teatro Experimental de Cascais – e encenador João Mota – A. Comuna Teatro Pesquisa, além de um encontro informal com Patrícia Escobar - filha de Ruth Escobar. Ainda assim foi preciso percorrer o país em busca de mais informações. Na cidade de Porto foram consultados: Arquivo da Casa do Infante, Arquivo da Escola Secundária Carolina Michaelis, Biblioteca Pública Municipal de Porto, Câmara Municipal do Porto, Direção de Documentação e Informação do Jornal de Notícias, Secretaria do Município de Porto, Teatro Rivoli; o Theatro Circo Braga, na cidade de Braga e uma entrevista com Carlos Henrique Escobar, ex-marido de Ruth Escobar, na cidade de Aveiro. Ao longo dos nove meses em que estive em Portugal, esses locais me proporcionaram entrar em contato com uma documentação que a história do Teatro Brasileiro desconhecia; parte dela, é inédita para os próprios pesquisadores portugueses. Toda a documentação recolhida nesse período resultou num capítulo da tese, além de colaborar com novas informações nos outros capítulos. Com o intuito de destacar as diferentes lutas de que ela participou, essa pesquisa foi dividida em oito capítulos para melhor compreender sua postura e seu envolvimento. Essa divisão também pode ser vista como facetas de vida, isto é, revelo a saga das Ruths que habitaram em Ruth Escobar. Essa maleabilidade de temas se justifica em virtude de ter sido uma mulher que estava na dianteira de distintos combates em prol do teatro e da sociedade. No primeiro capítulo, intitulado A Aventureira abordo desde sua infância até a partida para o Brasil, assim como sua experiência como jornalista em diversas partes do mundo, período que compreende de 1935 a 1959; em A Novata, apresento as primeiras produções teatrais entre 1959 a 1964. Nesse período de cinco anos, ela produziu o Festival Branco e Preto e os espetáculos Antígone América, Males da Juventude, Mãe Coragem e Almas de Tumulto; esta última peça é uma produção teatral inédita que até então era desconhecida em sua trajetória. Ruth Escobar construiu seu próprio teatro, criou o Teatro Popular Nacional e enfrentou os primeiros embates com a censura; no terceiro capítulo A Produtora exponho o perfil da fase profissional de Ruth Escobar no período de 1964 a 1977, quando colaborou no intercâmbio artístico ao realizar experimentações estéticas, tais como: radicalização do espaço cênico, cenografia arrojada e interpretação visceral, conectada ao contexto histórico. Essas características foram marcas de sua trajetória como produtora teatral aliada a um embate político pela luta da democratização do Brasil e pela afronta aos censores, à moral e aos bons costumes; na faceta de A Rebelada, analiso alguns eventos ocorridos no Teatro Ruth Escobar que foi alvo de vigilância e censura. Dentre os mais conhecidos, destacou-se a 1ª Feira Paulista de Opinião, em 1968 e, dez anos após, Ruth Escobar remontou o projeto com as mesmas características, intitulando-o de Feira Brasileira de Opinião. Além disso, seu teatro também foi ponto de encontro para realização de outros tipos de eventos, principalmente aqueles considerados minorias da sociedade: as feministas, os homossexuais, as mães dos presos políticos. Também foi palco de protestos e manifestações; no capítulo quinto, intitulado A Organizadora, sistematizo os espetáculos apresentados no Festival Internacional de Teatro, ocorrido em 1974, 1976 e 1981, assim como as dificuldades enfrentadas por Ruth Escobar na organização desses eventos: o foco do sexto capítulo, A Resistente é a análise da relação entre a produção de espetáculos e a defesa dos direitos humanos durante a ditadura militar. Para isso, Ruth produziu uma trilogia de encenações: Revista do Henfil (1978) Caixa de Cimento e Fábrica de Chocolate (1979) que corroboraram na discussão e na reflexão à criação da Lei da Anistia, assim como o direito à vida e à liberdade; A Feminista foi outra frente de luta de Ruth Escobar, a qual analiso, aqui, valendo-me de sua trajetória de vida, características pessoais, profissionais e políticas que a envolveram nessa enseada. No âmbito político, quando foi deputada estadual em São Paulo, Ruth Escobar apresentou projetos que defendiam os interesses das mulheres; por fim, o oitavo capítulo chamado de A Ressurgida, no qual investigo o “reaparecimento” e a importância de Ruth Escobar em Portugal entre os anos de 1972 a 1974, período em ela produziu os espetáculos, Missa Leiga (1972), Cemitério de Automóveis (1973) e Autos Sacramentais (1974). Além desses oito capítulos, no final de cada um deles, apresento um dossiê de imagens, muitas delas inéditas no Brasil e em Portugal. Porém, cabe ressaltar que essas fotos não serão alvo de análise, pois esta pesquisa não detém estudos da iconografia, mas elas servem como registro histórico dos momentos vivenciados por Ruth Escobar, as quais poderão ser estudadas a posteriori. Ao longo dessas oito facetas apresentadas, discorro sobre a importância da presença de Ruth Escobar, redimensionando-a ao teatro brasileiro. CAPÍTULO I – A AVENTUREIRA primeiro capítulo desta tese começa em 1935, ano quando Maria Ruth dos Santos nasceu na freguesia de Campanhã, em Porto e se estende até o final da década de 1950. Esse período foi marcado por uma série de acontecimentos marcantes em sua história: a vivência nas escolas portuguesas, a descoberta de seu pai, o contato com a ditadura militar portuguesa, a imigração para o Brasil, a criação de uma revista e a volta ao mundo. Componho, neste capítulo, um panorama dos caminhos que foram percorridos por Maria Ruth até a criação de uma nova “identidade”, da qual emerge a atriz e produtora Ruth Escobar. Para expor este breve percurso fiz uso, como menção principal, da obra de autoria da própria Ruth Escobar, Maria Ruth: uma autobiografia, publicada em 1987. A utilização deste material bibliográfico para formular a trajetória de Maria Ruth justifica-se pelos seguintes motivos: único registro do período pesquisado; amigos e familiares não se recordam desse período e, infelizmente, a própria Ruth Escobar se encontra impossibilitada de relatar suas histórias de vida, devido ao seu frágil estado de saúde. A construção de sua autobiografia possibilita a compreensão de suas estratégias de ação como cidadã e como produtora teatral. Neste capítulo abordo desde a singela e pacata vida em Portugal, até a frenética atividade da jovem jornalista em diversas partes do mundo. Porém, sua sagacidade contornou as dificuldades encontradas e a fez perceber oportunidades que lhe deram prestígio e reconhecimento junto à imprensa brasileira, assim como em outras partes do mundo. Casou-se. Morou na França. Retornou ao Brasil e começou um novo ciclo. Ruth, desde o início de sua trajetória, fez de sua vida uma aventura, permeada pela habilidade de contornar problemas e tirar proveito das dificuldades. O 1.1 Da península rumo a Terra Brasilis 31 de março de 1935: a pequena Maria Ruth dos Santos nasceu de Marília do Carmo, uma mulher de 28 anos de idade e de um pai desconhecido. O choro comprovava que mais uma vida estava chegando em Campanhã10, uma das maiores freguesias do Porto (Portugal) com uma área de 8,13 quilômetros quadrados. Foi nesse bairro com 25.972 habitantes, na década de 1940, que Maria Ruth passou sua infância e boa parte de sua adolescência. 10 Visto que a história do bairro de Campanhã é extensa e, nesse momento inicial da pesquisa serve para situar o ponto de partida de Ruth Escobar, apresento um breve resumo: “A referência mais antiga que se conhece relacionada a Campanhã surge num documento datado de 994, onde se lê, pela primeira vez, a expressão “ribulum campaniana”, Rio de Campanhã (o atual Rio Torto). No século XI, Campanhã aparece na documentação coeva como sendo a sede de uma “villa” relativamente importante, a “villa campaniana”, uma propriedade rural de tradição romana, cujas origens se perdem no século IV. Esta “villa campaniana”, domínio de uma velha família nobre, incluía grande parte das actuais freguesias de Campanhã, Rio Tinto e Valbom, e acolhia ainda o “Mosteiro de Santa Maria de Campanhã”, a mais antiga instituição religiosa local”. HISTÓRIA. Freguesia de Campanhã, 2015. Considerada zona rural, a freguesia recebeu um número significativo de novos moradores que buscavam oportunidades de emprego, devido ao desenvolvimento industrial que a região proporcionava após a construção da Estação Ferroviária de Campanhã (1877), transformando-se num centro comercial e industrial. Com o aumento da população, Campanhã desde 1907 sediou vários clubes11 que desenvolviam atividades recreativas e culturais, as quais proporcionavam aos moradores desse bairro entretenimentos coletivos: jogos esportivos e de mesa (futebol de salão, tênis de mesa, cartas, bilhar), teatro, excursões, entre outras atividades. Entre 1935 e 1951, período em que Maria Ruth viveu nessa freguesia, fundaram-se: a Associação Recreativa Os Bem Entendidos de Azevedo de Campanhã (1937), o Clube Recreativo do Bairro de São Roque da Lameira (1942), a Associação Recreativa Os Bem Entendidos de Pego Negro (1943) e o Clube Desportivo de Contumil (1946). Além desses clubes, que despontavam como pontos de encontro dos moradores no início do século XX, Campanhã, ainda hoje, possui um conjunto de patrimônios12 arquitetônicos construídos a partir do século XII: igrejas, capelas, palácios e quintas 13 que proporcionam harmonia entre o clima pacato de um bairro e a transformação industrial que estava ocorrendo em Porto e, consequentemente, em Campanhã. Charretes, bondes elétricos, mulheres com vestidos finos, homens de terno e gravata, “toda a sociedade elegante [da cidade] do Porto desfilava entre palmeiras e outras árvores majestosas14”. Foi nesse trajeto entre Campanhã e o centro de Porto que Maria Ruth passou dezesseis anos de sua vida, local viveu transformações econômicas e sociais a partir de 1933. Nesse ano, António de Oliveira Salazar, .luçimplantou um novo modelo governamental chamado de Estado Novo, que tinha como característica um poder personalizado, antiparlamentarista e ditatorial. Com Salazar no poder, a igreja católica15 se tornou importante aliada para a construção de um Estado coeso e autoritário. Convém salientar que, naquela época, o número de católicos em Portugal era superior a qualquer outra religião, facilitando que tanto a Igreja, quanto o Estado se tornassem os representantes oficiais do país. Essa relação simbiótica pode ser constatada nos discursos proferidos por Salazar: Nascemos já, como nação independente, no ceio do catolicismo; acolher-se à protecção da Igreja foi sem dúvida acto de alcance político, mas alicerçado no sentimento popular. [...] A Constituição de 1933, com a clarividência que hoje podemos apreciar, arrancou o Estado português à tentação da omnipotência e da irresponsabilidade moral, e permitiu atribuir à Igreja, na constituição dos lares e na formação da juventude, aquela parcela de mistério e de infinito exigida pela consciência cristã e que só por arremedos vis poderíamos substituir16. 11 A Associação de Gabinete Recreio de Azevedo de Campanhã foi o primeiro clube a ser fundado na freguesia que realizava festas, excursões e tênis de mesa dentre as principais atividades. MEIRELES; RODRIGUES, [entre 1990 e 2010]. 12 Dentre o conjunto patrimonial preservado em Campanhã desde o século XVI, destaca-se a Capela de São Pedro (século XII), Capela de São Roque (1737), Capela do Forte (edificado entre os finais do século XVIII e início do século XIX), Casa e Quinta de Villar, D'Allen ou Palácio Villar d'Allen ou Casa Allen ou Casa das Artes (1839), Estação de Campanhã (1877), Igreja de Campanhã (1714), Matadouro Industrial do Porto (1923), Palácio do Freixo (1742), Quinta da Revolta (século XVIII), Quinta das Areias (século XVIII), Quinta de Bonjóia (1402), Quinta de Vila Meã (entre os séculos XIV e XIX). MEIRELES; RODRIGUES, [entre 1990 e 2010]. 13 No Brasil, a quinta pode ser entendida como sítio, fazenda. Local de descanso e cultivo. 14 ESCOBAR, 1987, p. 20. 15 De acordo com a Comissão Episcopal da Pastoral Social e da Mobilidade Humana de Portugal, em 1940, o país possuía uma população de 7.722.152 habitantes, sendo 7.191.913 de adeptos à igreja católica. RELIGIÃO, 2012. 16 SALAZAR, 1959, p. 14. Este processo culminou com a assinatura de uma Concordata entre Portugal e a Santa Sé no dia 7 de maio de 1940, que oficializou as relações entre as duas partes. Firmado o acordo, surgiram estratégias de apresentar essa unificação à sociedade portuguesa, dentre elas, a fabricação de lemas que nela ecoavam. "Deus, Pátria, Família" e “Tudo pela Nação, nada contra a Nação" foram os mais conhecidos, reforçando a imagem da Igreja e do Estado em comunhão. Para isso, Salazar criou, em 1933, o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), dirigido pelo escritor, jornalista e publicitário António Ferro. Esta secretaria tinha como objetivo realizar uma intervenção na sociedade portuguesa, utilizando-se dos recursos publicitários e veiculação da propaganda dos ideários do Estado Novo. Em 1938, foi lançada uma série de sete cartazes intitulada A Lição de Salazar, cujos temas abordavam as finanças, obras, família, portos, trabalho, estradas e forças armadas para serem distribuídos nas escolas públicas de Portugal. Destaco o cartaz17, cujo slogan era “Deus, Pátria e Família: a Trilogia da Educação Nacional”, tal publicidade enfatizava os “valores considerados perenes e não sujeitos a discussão pela imprensa, nem por nenhum sector da vida pública”, conforme pontuou a pesquisa de Célia Maria Taborda da Silva18. A imagem produzida pela SPN demonstra uma família simples, cuja mulher cuida dos afazeres domésticos e dos filhos, e o homem é o trabalhador, responsável pela subsistência de seus dependentes. Todos seguem os princípios da Igreja Católica, representado, principalmente, pelo símbolo do crucifixo. Além disso, outras características podem ser percebidas na imagem: a bandeira de Portugal aparecendo pela janela num céu azul (que também está na porta); as cores da flâmula (vermelho, branco e verde) predominam no conjunto da obra, a limpeza da casa e as calças marrons do menino e do pai de família que remete ao uniforme militar português. Visto que a análise dessa imagem não é central na discussão desta tese, transcrevo um trecho do documento de uma organização portuguesa que detalha a simbologia do último cartaz da coleção A Lição de Salazar: [...] é uma esplêndida síntese da pedagogia e moral salazaristas: a imagem revela o lar perfeito, rústico, humilde, analfabeto, patriarcal, cristão. É a apologia da saudável e simples vida do campo, por oposição aos vícios gerados pela vida urbana. Lar simples, aconchegado, sem água nem electricidade, sem um jornal ou aparelho de rádio, nada que faça lembrar a indústria, a modernidade. A mulher que, submissa, cumpre a sua missão de esposa e mãe; o pai, chefe de família, que chega do campo onde labuta para angariar o sustento da casa; o crucifixo, o pão e o vinho sobre a mesa, fazendo lembrar o sacrifício da missa; os filhos que, reverentemente saúdam o pai, ali o Chefe; ao fundo, o castelo com a bandeira nacional revela a gloriosa história da pátria 19. Espalhadas por todo o país, principalmente nas salas de aulas das escolas primárias, a trilogia da educação nacional pretendia reforçar a ideia de Portugal como uma nação católica, assim como enaltecer o patriotismo e considerar a família como núcleo de base e estrutura fundamental da sociedade portuguesa. Além da série de cartazes, o slogan Deus, Pátria e Família também estava inserido nos livros didáticos e em obras de leituras obrigatórias dos estudantes portugueses. Lançados a partir de 1942 pelo Ministério da Educação Nacional, a publicação trazia em seu conteúdo lições e mensagens que remetiam diretamente ao ideário 17 Ver imagem 25 no dossiê de fotos. SILVA, 2009, p. 3111. 19 SALAZAR, 1959, p.14. 18 salazarista. As escolas eram uma maneira de inculcar os propósitos nacionalistas desde a infância, assim como era o modo mais fácil, pois estavam diretamente sob sua tutela. Assim, pode inferir-se que Maria Ruth desde pequena teve contato com os propósitos do governo português, por meio da veiculação desses materiais didáticos nos estabelecimentos escolares em que estudou. 1.2 Dos diabos vicentinos aos primeiros movimentos artísticos Em 17 de julho de 1946, o Delegado Aristides Sousa certificou a conclusão da 4ª Classe do Ciclo Elementar do Ensino Primário a Maria Ruth dos Santos, que frequentava a Escola da Ordem da Trindade na cidade do Porto. Após essa etapa, com onze anos de idade, ela ingressou no Liceu Carolina Michaëllis, local em que concluiu a segunda fase de seus estudos em 1951. Nesse estabelecimento, Maria Ruth, ao longo de cinco anos, estudou as disciplinas de português, francês, ciências, matemática, desenho, educação moral e cívica, educação física, canto coral, inglês, história, geografia, físico-química e lavores. Além disso, as portuguesas, estudantes ou não, desde os sete anos de idade deveriam estar matriculadas, obrigatoriamente, na Mocidade Portuguesa Feminina (MPF). Criada em 19 de maio de 1936 pelo Decreto-Lei n. 26.611, com o objetivo de, segundo Isabel Braga e Paulo Drumond, “inculcar nas crianças e nos jovens os ideais defendidos pelo regime [inspirada] nas organizações de juventudes existentes, na Itália de Mussolini e, na Alemanha, de Hitler”20. Em ambos os estabelecimentos em que Maria Ruth estudou, ela estava filiada à MPF que desenvolvia diversas atividades extracurriculares, dentre elas, as artísticas. Para melhor contextualizar o local de estudo de Maria Ruth, faço um breve recuo temporal. Em 09 de novembro de 1914, a Câmara Municipal de Porto autorizou a criação da Secção Feminina dos Liceus do Porto e, em 1915, abriu o primeiro liceu destinado exclusivamente ao sexo feminino. Após diversas trocas de nomes e locais, em 1926, recebeu o nome de Liceu Carolina Michaëllis21, em homenagem à primeira mulher nomeada que lecionou na Faculdade de Letras de Lisboa da Universidade de Coimbra, a filóloga Carolina Michaëllis de Vasconcelos. A criação dos liceus tinha como objetivo garantir as tradições portuguesas que zelavam pelo trabalho diário do homem e os afazeres domésticos das mulheres. Nesse liceu, Maria Ruth conviveu, exclusivamente, com mulheres e o considerava um “colégio quase interno, quase convento, quase quartel”22. Apesar de ela afirmar que “era a própria pentelha”23, a disciplina no interior do Carolina Michaëllis era rígida. Os pesquisadores António Nóvoa e Ana Teresa Santa-Clara, em seu livro Liceus de Portugal, citaram um relatório da instituição confeccionado no ano letivo de 1941/1942 que relatava os procedimentos durante as refeições: “durante as refeições era exercida vigilância discreta para acção educativa. São corrigidas posições defeituosas, chamada de atenção para a maneira correcta à mesa e 20 BRAGA; DRUMOND, 2012, p. 201-226. A professora Carolina Michaëllis de Vasconcelos realizou no início do século XX estudos sobre a literatura portuguesa, sendo ainda hoje reconhecidos no âmbito acadêmico: Notas Vicentinas: Preliminares de uma Edição Crítica das Obras de Gil Vicente e Autos Portugueses de Gil Vicente y de la Escuela Vicentina além de escrever o prefácio de Os Lusíadas, editado pela imprensa nacional portuguesa, de 1931. Hoje chama-se Escola Secundária Carolina Michaëllis. 22 ESCOBAR, 1987, p. 28. 23 ESCOBAR, 1987, p. 28. 21 orientando as conversas para que se obtenha algum proveito moral”24. Por outro, observo que, em seu boletim de notas de 17 de abril 1947, consta uma falta por desobediência e, em 07 e 24 de janeiro de 1949, ela ficou de castigo nas aulas de educação física e lavores25. No Carolina Michaëllis, a professora de teatro aproveitava a desinibição de Maria Ruth para colocá-la a encenar um dos principais papeis da dramaturgia de Gil Vicente: o diabo. Em entrevista ao jornalista Aramis Millarch, Ruth lembrou que “lá em Portugal tinha um grupinho amador de teatro e nós montamos vários autos de Gil Vicente e em todos os autos eu fazia os diabos. Eu era realmente endiabrada”26. Considerado o “pai do teatro português”, o dramaturgo escreveu trinta e seis obras teatrais entre autos e farsas, além de uma série de poemas. Ele tem a reputação de ser o principal representante da literatura portuguesa que retratou a passagem da Idade Média ao Renascimento. Em suas obras, Gil Vicente questionou o comportamento da sociedade e da ordem instituída pela hierarquia, subvertendo-as. Para isso, o dramaturgo utilizou, como traço característico em seus textos, a presença de personagens populares como marinheiros, ciganos e camponeses que demonstram a ocupação que exercem ou por algum outro traço social; e elementos mágicos como fadas, demônios, anjos e deuses que representam o comportamento humano. De acordo com Antônio José Saraiva27, “descontando os diabos, os anjos, as imagens mitológicas, lendárias, alegóricas e os heróis de cavalaria, são todas tipos sociais [portugueses]”.28 Num país em que predominava o catolicismo aliado a um governo ditatorial, que tinha como objetivo “civilizar” sua população, utilizar os autos vicentinos nos colégios como estratégia para uma polidez urbana se tornou uma ferramenta didática em prol de uma mecânica que proporcionava às instituições no poder e comando maior controle. As obras de Gil Vicente possuem um argumento moralizante, suas peças abordam fatos e acontecimentos degradantes dos costumes, das imoralidades e da corrupção, que pervertem e corrompem os valores da igreja e da família. Ao longo dos séculos, Gil Vicente assumiu uma posição de destaque no imaginário dos portugueses, tornou-se “representante”, ícone de um país, seja por meio da récita de suas poesias, seja pela encenação de sua dramaturgia. Seu legado cultural medievalista moralizante foi o primeiro contato de Maria Ruth com uma dramaturgia questionadora dos princípios da sociedade portuguesa: [...] a sua crítica da sociedade feudal tem um critério moralista, e não oferece para ela qualquer alternativa. Condena o fidalgo pela sua soberba, o artífice pela sua cobiça, o clérigo pela sua devassidão, e tem pelo camponês a simpatia do Sermão da Montanha pelos humildes e espoliados. A sua antipatia pelos valores feudais é evidente, mas a crítica que lhes faz é de raiz evangélica, por um lado, e de inspiração popular, por outro, não lhes contrapondo os valores burgueses, ainda então mal definidos. [...] 24 NÓVOA, SANTA-CLARA, 2003, p. 629. Ministério da Educação de Portugal. Secretaria Geral. LCM, CX. 43 e 49, respectivamente. 26 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. 27 Esse pesquisador fez uma analogia entre Gil Vicente e Bertold Brecht: “[...] notar que o auto narrativo foi em nossos dias praticado por Bertold Brecht em peças como Mãe Coragem e o Círculo de Giz Caucasiano. Esta última é um verdadeiro auto vicentino, e oferece até na sua personagem central uma variante do Juiz da Beira: o juiz que, por falta de senso comum, faz prevalecer a pura justiça contra os preconceitos reinantes. A analogia entre Gil Vicente e Brecht resulta não apenas de uma intenção análoga do espetáculo teatral. Num e noutro as peças narrativas constituem um género (sic) com as suas características próprias, uma espécie de história contada por personagens, que não deve ser apreciado unicamente como aproximação da comédia como a fixou Molière (SARAIVA, 1984, p. 11). Destaco que o texto de Mãe Coragem foi o primeiro espetáculo encenado por Ruth Escobar no Brasil, em 1960. 28 SARAIVA, 1984, p. 13. 25 Gil Vicente não poupa nas suas críticas a Roma papal, não se conforma credulamente com a tradição medieval que o Concílio de Trento viria a consagrar como ortodoxa 29. Coincidência ou não, nos três espetáculos vicentinos encenados no colégio, Auto da Alma e Auto da Barca do Purgatório, de 1518, e Auto da Barca do Inferno, de 1517, os papéis de diabos foram interpretados por Maria Ruth. No Auto da Alma, o Anjo e o Diabo travam uma batalha pela personagem Alma para quem oferecem, de um lado, os prazeres materiais da vida: o luxo, a riqueza e, de outro, a salvação e o perdão. Primeiramente, o duelo tem o Diabo como vitorioso, mas Alma, depois de algum tempo, é encontrada pelo Anjo 30. Arrependida pela escolha feita decidiu seguir os conselhos angelicais e ir até a Igreja em que foi recebida por Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Jerônimo e São Tomás com banquete e orações, exaltando a importância da instituição católica. No texto Auto da Barca do Inferno, o Diabo, juntamente com o Anjo, têm como função realizar um interrogatório com os mortos, que são obrigados a passar pelo julgamento de ambos, com o objetivo de direcionar para qual barca cada alma entrará em que, “evidentemente, um deles passa para o Paraíso, e o outro para o Inferno. Os batéis têm cada um seu Arrais [capitão] na proa: o do Paraíso, um Anjo, e o do Inferno, um Arrais Infernal e um Companheiro”31. O texto Auto da Barca do Purgatório apresenta personagens de classe social baixa: lavrador, vendedora, pastor, pastora, menino e um taful (jogador de cartas) que cometem pequenos pecados, mas que devem permanecer na praia (purgatório) até merecerem o Paraíso, exceto o menino que entra na barca do Anjo e Taful na barca do Diabo, por renegar a Igreja. Foi com esses textos dramatúrgicos, escritos em versos por Gil Vicente, que aconteceram as primeiras experiências teatrais de Maria Ruth, nos quais representou a imagem do diabo em seu colégio, expondo sua capacidade de se transformar diante das outras alunas. No entanto, sua repercussão no interior do liceu foi devida ao fato de que seu personagem – o diabo - na dramaturgia vicentina “ocupava [um] lugar à parte nas encenações, recebendo tratamento cômico”32. As personagens dos diabos nos textos de Gil Vicente não estavam somente associadas à malfeitoria em seus atos ou desejos de provocar medo na plateia, mas antes estimular o riso, pois sua imagem está “associada à dimensão festiva e alegre do universo carnavalesco”33. Por interpretar personagens tão relevantes na dramaturgia de Gil Vicente, Maria Ruth começou a acionar o mecanismo interpretativo perante diversas situações, principalmente naquelas em que precisava convencer a partir de sua autopromoção. De acordo com os documentos encontrados no arquivo do Ministério da Educação de Portugal, Maria Augusta da Rocha Marques foi professora de artes cênicas da MPF. Em seu relatório final, escrito em 1951, apresentado à direção do Carolina Michaëllis, ela relatou que: Em suas sessões semanais, ensaiei e encenei para a Festa de Natal o “Purgatório”, o episódio, “Os Quatro Irmãos” da farsa o Juiz da Beira e o episódio “Horas de Negligências Mundanas e Todo o Mundo e Ninguém” do Auto da Lusitânia de Gil Vicente. No segundo e terceiro períodos, criei dois grupos cénicos – um, representaria o “Médico à Força” de Moliére e o outro o “Julgamento da Mentira” da Autoria de uma filiada de 15 anos. Ainda que o seu relato não traga comprovações da presença de Maria Ruth nesses espetáculos, o fato é que as obras de Gil Vicente eram encenadas no interior do liceu. Além 29 SARAIVA, 1984. p. 18. VICENTE, 1980; MACHADO, 2005. 31 ABDALA, 1996, p. 37. 32 MACEDO, 2000, p. 214. 33 MACEDO, 2000, p. 216. 30 disso, pode averiguar-se pelo nome das peças que o cunho moral era um item indispensável para suas encenações na instituição. No liceu, Maria Ruth tinha um grupo de amigas composto por Jacqueline, Eurídice, Laura, Josefina (sic) (e outras, que em sua autobiografia não recordou os nomes). Elas manifestavam um comportamento avesso às normas instituídas daquele local, conduta “normal” de adolescentes que estavam em fase de descobertas e, principalmente, pelo desejo de se mostrarem rebeldes àquele sistema ou pelo simples fato de criar uma fricção com os professores. Sobre essa fase de sua vida junto a seu grupo de amigas, Ruth Escobar lembrou que “tinha sobre o grupo [de meninas] uma liderança que provinha da minha audácia na representação, onde quer que ela se fizesse necessária”34. Essa colocação permite pensar que, ao olhar para sua própria história, Ruth Escobar se coloca em posição de destaque em sua autobiografia e assume, perante suas colegas, um status que lhe possibilitava atrair ao seu entorno mais admiradores, em decorrência do seu desprendimento nas atuações num contexto repressor no interior do liceu. O fato de interpretar personagens que tinham como função provocar questionamentos com tom de deboche lhe proporcionava, em certa medida, uma liderança ante um grupo de meninas, a qual era reforçada quando assumia uma posição argumentadora diante de seus professores, principalmente naquilo que dizia respeito a questões polêmicas da época: “eu perguntava por que o telefone do Papa era de ouro, por que o Vaticano tinha o maior patrimônio da terra e por que os padres em Portugal estavam ao lado de Salazar, que era um ditador” 35. Realizar essas e outras argumentações pode, a priori, parecer questão de um confronto extremado ou de orgulho para Ruth Escobar, no entanto, todo e qualquer tipo de indagação sobre o sistema ditatorial soava como afronta. O fato de ela evidenciar essa passagem em sua autobiografia, não necessariamente a coloca como alguém inconformado com o regime imposto ao país, mas soa como uma centelha de posicionamento questionador. Outra passagem em sua autobiografia que, novamente, é colocada em evidência, para ressaltar sua posição de aluna atrevida que gostava de “provar” a suas amigas sua capacidade de convencer as professoras de que sua atuação dava resultados, foi a simulação de vários desmaios. Sobre essa passagem, Ruth Escobar escreveu que “sempre desmaiava na aula de matemática e era levada por três ou quatro amigas para o ambulatório e, quando não tinha ninguém por perto, elas sussurravam: Podes abrir os olhos”. Ela seguiu afirmando que: “cheguei à perfeição; ficava gelada, a pressão caía; quando abria os olhos, o queixo batia feito castanholas”. Observo que as memórias de Ruth Escobar, em sua autobiografia, também possuem momentos difíceis que a marcaram, deixaram cicatrizes. Ainda no Carolina Michaëllis, ela relatou que passou por uma situação muito dolorosa em sua vida. Com seus dezesseis anos, em 1951, Ruth descobriu que era filha de um relacionamento em que sua mãe assumia o papel de amante. Ela recordou: “Senti que alguém se levantava e corria atrás de mim. Era a Jacqueline: “Ela descobriu – e contou para o colégio. Teve um chilique de manhã e disse que a mãezinha dela estava para morrer, de saber que a filha da amante do pai estava aqui (a filha da amante era eu). Ela era a filha legítima de meu padrasto com sua mulher oficial”36. Posteriormente, ao saber dos “pecados” cometidos por sua mãe, Marília do Carmo, por ferir os princípios católicos portugueses que regiam o interior de sua família, Ruth Escobar, a respeito desse episódio 34 ESCOBAR, 1987, p. 28. ESCOBAR, 1987, p. 28. 36 ESCOBAR, 1987, p. 30. 35 escreveu: “odiei minha mãe, reneguei-a. Tive vergonha de ser dela, queria poder escolher outra mãe, reneguei-a”37. Esse episódio foi muito pesado para sua mãe. Nessa época, as mulheres portuguesas eram ensinadas a cuidar dos filhos e do marido, além dos afazeres domésticos. Aquelas que possuíam algum tipo de “pecado” mais grave que afrontasse a sociedade ficavam à margem. Conforme aponta a pesquisadora Julieta de Almeida Rodrigues: A missão da mulher na vida era primordialmente dedicar-se à casa e aos filhos e ser uma boa doméstica, uma boa esposa e uma boa mãe. Era um modelo semelhante à mulher dos três KKK: Kinder, Kuche, Kirche (filhos, cozinha, igreja), de inspiração nazi e fascista. Esta concepção do papel das mulheres na sociedade era fortemente apoiada pela igreja católica. Um importante exemplo da aliança entre o Estado e a Igreja foi a Concordata de 1940, acordo pelo qual os casamentos católicos não podiam ser dissolvidos pelos tribunais civis nem requeriam cerimónia civil. Assim, num país em que os ritos de passagem são tradicionalmente católicos, independentemente do grau de religiosidade e de frequência regular à Igreja, o princípio da indissolubilidade do casamento professado pelos católicos tinha-se tornado sub-repticiamente obrigatório para a população portuguesa38. Ao descumprir as normas vigentes relacionadas ao matrimônio considerado indissolúvel, sua mãe não aguentou a pressão da sociedade portuguesa por ter um “título” de amante e por se tornar desquitada; decidiu, em 1951, como forma de diminuir os transtornos causados por esse fato, tanto para ela quanto para Maria Ruth, partir a fim de reconstruir a vida no Brasil. No entanto, apesar de Maria Ruth ter “renegado” sua mãe, decidiu não tomar nenhuma atitude mais radical, dentre elas, fugir de casa ou morar com algum parente. A mãe tinha expectativas acerca do Brasil como um lugar de futuro, um país para ter uma vida digna, visto que Portugal nos anos de 1950 iniciava um difícil processo de transformação econômica. De acordo com o pesquisador João L. César das Neves, dentre os fatores que mais afetaram a economia do país estavam “as exportações portuguesas [que] mudaram de uma base agrícola (vinhos, azeite, cortiça, etc.) para as indústrias ligeiras.39 Mais tarde, a “maquinaria” e o “equipamento de transporte” ganharam alguma força”40. Sobre esse período ocorrido em Portugal, o pesquisador ainda afirma que “durante a golden age dos anos 50-60, [Portugal mudou] de uma velha economia rural para uma estrutura moderna”41. No entanto, os cidadãos portugueses, no início da década de 1950, não tinham a perspectiva de que a economia do país alavancasse outros patamares ou que houvesse alguma mudança no cenário político, dando-lhes melhores condições de vida. Por mais que Portugal não tenha participado ativamente da II Guerra Mundial (1936-1945), as notícias das consequências provocadas pelo embate entre os países envolvidos aterrorizava a população portuguesa. Como reflexo, o fluxo migratório de portugueses para outras partes do mundo pósguerra teve um aumento considerável, principalmente para o Brasil. O pesquisador Oscar Soares Barata, a respeito dessa fase ocorrida em Portugal, destacou: 37 ESCOBAR, 1987, p. 31. RODRIGUES, 1983, p. 909-910. 39 São indústrias que produzem produtos de pouco peso e volume, principalmente, aquelas que trabalham no ramo alimentício e têxtil. 40 NEVES, 1994, p. 1028. 41 NEVES, 1994, p. 1013. 38 A emigração voltou a ser mais fácil a partir de 1946 e cresceu rapidamente. Foi logo em 1950 mais de três vezes o que tinha sido em 1945. O Recenseamento de 1950 mostrou ainda um acréscimo populacional significativo (+9,7%). Mas é já, de novo, inferior ao saldo de nascimentos e óbitos. Depois disso dá-se o grande fluxo da emigração do pós-guerra. Nos anos 50 recomeça a emigração para o Brasil e para outros destinos fora da Europa42. Certamente, vários foram os motivos que levaram a mãe de Maria Ruth a abandonar Portugal, mas o principal deles dizia respeito ao não querer expor a filha a outros constrangimentos embaraçosos na escola e, por vislumbrar, no Brasil, melhores condições de vida para ambas. Além disso, outros fatores também devem ser considerados para a escolha do Brasil como destino de Maria Ruth e sua mãe Marília do Carmo: o país era conhecido como o grande irmão de Portugal, a língua como elemento facilitador de comunicação e por possuir parentes que moravam em São Paulo. De acordo com as palavras de sua mãe, recontadas por Ruth Escobar, ela a criou “com sacrifício da minha própria vida, abandonei teu pai para dar-te um futuro no Brasil”43. Novamente, percebe-se que Ruth Escobar, ao recordar de sua história em Portugal, evidencia um tom de cobrança de sua mãe ao alegar que abandonou seu marido em prol da necessidade de preservá-la de maiores constrangimentos e que a mudança de rumos de sua vida se deu por sua “culpa”. O ressentimento também pode ser percebido em Ruth Escobar ao colocar essas palavras em sua autobiografia. Foi do Porto de Leixões, situado ao norte de Portugal, que ambas vieram acompanhadas pelo Tio Faria e Tia Joaquina (sic) a bordo do navio Serpa Pinto44, embarcação que transportou45 entre 1940 a 1954 refugiados judeus para a América do Norte e do Sul durante a Segunda Guerra Mundial. Ficou conhecido como “navio herói” ou “navio da amizade”, por transportar “cerca de 110 mil passageiros e foi um dos mais populares transatlânticos da época”46. Marília do Carmo e Maria Ruth desembarcaram em 20 de julho de 195147 no Porto de Santos, um dos principais terminais de descarregamento de mercadorias e de pessoas do período no Brasil. Durante os primeiros quinze dias, ficaram hospedadas na casa da própria tia, no bairro de Tatuapé na cidade de São Paulo – fundado pelo português Brás Cubas, que também é considerado responsável pela fundação da cidade de Santos em 1543 – havia um significativo número de imigrantes italianos nessa região. Nesse local, alugaram um quarto de empregada neste mesmo bairro. Aos poucos, com o aparecimento de trabalhos esporádicos de costura para sua mãe, conseguiram um apartamento de dois quartos e sala no bairro Pari, local que desde o século XVI fora habitado por portugueses. No início do século XX, a região recebeu um contingente de imigrantes europeus, tornando-se uma localidade de operários. Nota-se que, 42 BARATA, 1985, p. 982. ESCOBAR, 1987, p. 37. 44 O transatlântico português Serpa Pinto, durante os 14 anos em que pertenceu à Companhia Colonial de Navegação (CCN), ficou conhecido como o Navio da Amizade, ligando Brasil e Portugal na década de 1940 e na primeira metade dos anos 1950. A reportagem completa pode ser consulta em GIRAUD, Laire, José. [Material digital sem ano de publicação]. 45 De acordo com a publicação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística nos Anuários Estatísticos, entre 1941-1950 a emigração de portugueses para o Brasil foi de 48.606 emigrantes e, entre 1951 a 1960 teve um significativo aumento, totalizando 239.945 portugueses em terras brasileiras. PADILLA; BOAS, 2007, p. 115. 46 ESCOBAR,1987, p. 37. 47 Maria Ruth teve o passaporte expedido em Lisboa em 05 de maio de 1951, sob n. 10.942 em caráter temporário como estudante. Informação retirada do Processo 50-Z-0-11951.APESP. 43 nessa fase inicial de estada em São Paulo, havia a necessidade de estar em contato com outros imigrantes, fossem portugueses ou não, pois todos estavam na mesma situação. Em pouco tempo de estadia em São Paulo, enquanto sua mãe conseguiu emprego como costureira, Maria Ruth ocupou uma vaga de vendedora de anúncios na Revista das Indústrias48. Foi nesse trabalho que desenvolveu uma faceta relevante, na qual os aprendizados adquiridos com seu patrão foram apropriados com afinco: a capacidade de persuasão. O dono da revista, um judeu chamado Miguel49, ensinou-lhe truques para ter sucesso na venda das revistas. Dentre eles: “incentivou-me a trabalhar com meu uniforme do Colégio Roosevelt: saia plissada azulmarinho, blusa branca, meia soquete branca e sapato preto”50. Com a jovialidade de Maria Ruth, vestida com peças de vestuário colegial, aguçando o imaginário masculino, Maria Ruth aprendeu a persuadir, convencer e a induzir seus clientes na compra do produto, conseguindo, deste modo, alcançar objetivos e metas da empresa, assim como seu próprio propósito pessoal: “comecei a ganhar o suficiente para pensar em sair de casa e me tornar independente de minha mãe, com que arrastava uma relação primária, repressiva e castradora”51. Apesar de Maria Ruth afirmar que possuía uma relação difícil com sua mãe, quando descobriu que era filha de pai incógnito por meio um tanto quanto impactante a seu ver, ela não cortou os laços afetivos com sua mãe, visto que dependia financeiramente dela para sobreviver. E mesmo, posteriormente, quando independente, manteve contato, cuidando dela até a morte, ocorrida em 2002. Ao aplicar os “conselhos” de seu chefe na prática cotidiana de vender revistas, percebeu que conseguia expressivos resultados, podendo lograr futuras conquistas ainda maiores como editar sua própria revista. Destaco que pouco antes de ser vendedora da Revista Indústrias, Maria Ruth se matriculou na Aliança Francesa e no Centro Cultural Brasil - Estados Unidos, onde fez sua primeira experiência teatral no Brasil – Viagem Feliz de Camden a Trenton, de Thornton Wilder, na qual a “veia cômico-patética aflorou pela primeira vez”52. Verifica-se que a comicidade dos personagens interpretados, durante sua passagem no Liceu Carolina Michäellis em Portugal, surtiu efeito na montagem paulistana. Assim, pode dizer-se que a arte teatral serviu como ferramenta expressiva a Maria Ruth para angariar novas possibilidades de expansão de sua profissão e de seus desejos pessoais. Maria Ruth, ao mesclar as primeiras experiências teatrais, realizadas no Liceu Michaëllis com o aprendizado da persuasão, percebeu que a utilização do melodrama lhe favorecia a angariar mais vendas; para convencer os clientes, dizia-lhes: “Estou trabalhando para ajudar minha mãezinha doente”53. Neste sentido, verifica-se que Maria Ruth percebeu que a forma de abordagem, por meio de discurso sentimental com a finalidade de convencer seu comprador, trazia-lhe benefícios, ao que Pavis54 denomina de “uma identificação fácil e uma catarse barata”55. Com isso, Maria Ruth conseguiu “nos primeiros seis meses, [ganhar] mais 48 Durante a pesquisa não foi encontrado detalhes sobre essa revista, nem informações sobre sua atuação na empresa. 49 Em sua autobiografia, Ruth Escobar não apresenta maiores detalhes sobre seu patrão. Tudo indica que Miguel foi um judeu emigrado que também utilizou o Serpa Pinto para chegar ao Brasil. 50 ESCOBAR,1987, p. 36. 51 ESCOBAR,1987, p. 37. 52 ESCOBAR,1987, p. 36. 53 ESCOBAR, Entrevista concedida a Oswaldo Mendes. 54 PAVIS, 1999, p. 239. 55 Segundo Patrice Pavis: “O melodrama (literalmente e segundo a etimologia grega: drama cantado) é um gênero que surge no século XVIII, aquele de uma peça – espécie de opereta popular – na qual a música intervém nos momentos mais dramáticos para exprimir a emoção de uma personagem silenciosa” (PAVIS, 1999, p. 238). Pontuo que, a palavra barata, não possui um tom pejorativo, mas significa que a catarse no melodrama acontece facilmente, espontaneamente, traduções que são mais adequadas a essa linguagem teatral. que [sua] mãe”56, isto é, a arte teatral lhe possibilitou praticar suas habilidades de vendedora, aliadas a um conjunto de recursos teatrais imprescindíveis em prol de seus objetivos, necessário à sua sobrevivência. No entanto, esse pensamento descrito por Ruth Escobar em sua autobiografia possui um elemento discursivo em que se coloca numa posição superior a da sua mãe. Ela que até então afirmava ter uma relação difícil com a mãe, mostra que, em pouco tempo de atuação profissional, alcançou maiores e melhores resultados que aquela ao longo dos anos. Além disso, o discurso de Ruth Escobar traz à tona o entendimento do ato de se desvencilhar da obrigação instituída em seu país, no qual predominava o cumprimento dos afazeres domésticos da mulher submissa ao homem, ao conseguir um emprego que não seguia o mesmo destino de sua mãe, ser costureira. Atenta ao seu entorno, Maria Ruth percebeu que havia uma lacuna de oferta e uma demanda para realizar a editoração de uma revista destinada, especificamente, à colônia portuguesa de São Paulo. Havia, de um lado, a necessidade de valorizar as raízes da cultura portuguesa entre os emigrados; de outro, uma jovem com desejo por espaço de respeito e prestígio. Foi a partir dessa percepção que criou a Revista Ala Arriba,57 na qual Maria Ruth direcionou a produção das reportagens da revista à colônia portuguesa58 como forma de atrair leitores com o objetivo de dar-lhe prestígio junto a essa comunidade. Em reportagem publicada no jornal Folha da Manhã, em 10 de março de 1957, o colunista disse que “saiu mais um número de “Ala Arriba”, revista para o mundo português, dirigida por Rute Santos”59. Nessa mesma matéria jornalística, o repórter afirmou que ela publicou um “poema inédito de Paulo Bonfim, um desenho de Jorge de Lima, colaboração de Percy Garnier, Mauricio Tractenberg, Mauro Rubens de Barros, etc.”60. Pela nota jornalística ficou constatado que houve publicações anteriores da Revista Ala Arriba; novamente se percebe que Maria Ruth buscava nomes expressivos para utilizar em seu projeto editorial, evidenciando que ela almejava, cada vez mais, estabelecer contato com jovens e inovadores artistas e intelectuais da época. Em 03 de junho de 1957, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), Maria Ruth participou de um recital de poesia concreta, promovido pelo grupo de música Ars Nova. Fundado em 195461 por Mariajosé, Diogo Pacheco, Alfredo Mesquita, Gianni Ratto, Klaus Dieter Wolff, Samson Flexor, Willys de Castro e Dilza de Freitas Borges, conjunto que tinha como objetivo “divorciar-se da música oficializada representada pelo convencionalismo dos conservatórios e da maioria dos programas de concertos […] e manter contato com os mais avançados grupos 56 ESCOBAR,1987, p. 36. Expressão popular portuguesa utilizada pelos pescadores, principalmente na região de Póvoa de Varzim, quando os barcos encalhavam à beira da praia e eram retirados com a força braçal dos moradores da comunidade. Essa expressão é muito utilizada por políticos portugueses. Também foi nome de uma produção cinematográfica de 1942, primeiro filme português a obter um prêmio internacional. Cabe observar que Maria Ruth utilizou uma expressão popular de seu país, assim como os pescadores e políticos, sugerindo aos imigrantes portugueses a necessidade de estarem unidos em torno de um objetivo comum. Existiu na cidade de Póvoa de Varzim, (Portugal), entre 1927 e 1928, uma revista com o mesmo nome, editada pela Sociedade de Defesa e Propaganda da Póvoa de Varzim. 58 Destaco que as colônias de imigrantes no Brasil tinham seus respectivos periódicos desde o fim do século XIX. Em relação às publicações portuguesas, destacam-se: Echo Portuguez (1897), O Lusitano: órgão dedicado à colônia portuguesa no Brasil (1908), Colônia Portuguesa: por Portugal, pelos portugueses (1925) e Folha Portuguesa: porta-voz da colônia portuguesa do Brasil (1956). 59 ESCADA, Folha da Manhã, 10 mar. 1957, p. 64. 60 ESCADA, Folha da Manhã, 10 mar. 1957, p. 64. 61 No manifesto de fundação do Ars Nova lê-se: “A situação musical em que nos encontramos, incompreensível, não só em relação à própria música, como também perante a atividade brasileira no campo das outras artes, faz surgir nítida a necessidade de um movimento que vise apenas a música em suas mais altas manifestações (…) num setor que se vem mantendo, de modo geral, rotineiro e academizante”. MACHADO; ABDALLA. [entre 2010 e 2011]. 57 artísticos que se tenha notícia”62. O nome adotado pelo grupo também foi um novo método de notação musical desenvolvido por músicos franceses e italianos do século XIV, cuja tradução do latim significa “técnica nova”. Na ocasião, Maria Ruth e Ítalo Rossi, juntamente com mais quatro vozes, interpretaram poesias concretas e partituras de verbalização (traduzindo, visualmente, as experiências sonoras desenvolvidas pelos concretistas) escritas pelo artista plástico Willys de Castro. Com uma trajetória de destaque na cena musical paulistana, o grupo Ars Nova fez “o modernismo e as vanguardas chegarem finalmente aos amantes da música”63, de acordo com o depoimento do crítico Décio de Almeida Prado. A Revista Ala Arriba foi apoiadora do recital musical ao lado de outras empresas. Tal apoio deve ter ocorrido devido à participação de Ruth no evento, visto que serviria para projetar sua imagem perante um seleto grupo de artistas e intelectuais paulistanos, além de angariar futuros negócios publicitários para sua revista. O recital concretista realizado pelo Ars Nova ganhou repercussão entre artistas e, principalmente, entre os músicos paulistanos que começavam a vincular, definitivamente, o trabalho musical do grupo ao movimento da escola concretista. Como forma de desvincular a imagem do grupo desse movimento artístico, utilizaram a Revista Ala Arriba como veículo de comunicação, na qual publicaram um texto elogiando “as pesquisas formais dos concretistas, mas [enfatizaram] a desvinculação do Ars Nova de “cores estéticas” e “sectarismos estreitos”64. O fato de publicar um assunto polêmico que ganhou repercussão entre os artistas e intelectuais paulistanos, gerava lucros com a venda da revista, assim como possibilitou maior projeção de seu nome no meio artístico. Como forma de promover ainda mais seu empreendimento editorial, Rute Santos realizou a seguir um pequeno recital em seu apartamento: Realizou-se dia 20 último, no apartamento da srta. Rute Santos, diretora da revista “Ala Arriba” um recital de canto do coral “Ars Nova”, que nessa ocasião reiniciou seus concertos em residências particulares. A audição que comemorou o lançamento do suplemento que o grupo “Ars Nova” dirigirá na revista “Ala Arriba”, compareceram as seguintes pessoas: sr. e sra. Sanson Flexor, sr. e sra. Fernando Lemos, sr. e sra. Leopoldo Raino, sra. Paulo Dantas, Alfredo Volpi, Vicente Ferreira da Silva, Theon Spanhudis, Flávio de Carvalho, Willys de Castro, Miguel Cohn, Wesley Duke Lee, Osvald de Andrade Filho 65, Hercules Barsotti, Claudio Petraglia, Alvim Barbosa e [....]66. Nessa breve nota jornalística, constata-se que a parceria entre Ars Nova e a Revista Ala Arriba não estava somente conectada pelo fato de trabalharem na área cultural na cidade de São Paulo, mas cada um possuía interesse particular na promoção desta “sociedade”. De um lado um grupo musical que buscava apoio e parcerias para prosseguirem com sua arte, de outro estava Maria Ruth, uma novata empresária do ramo editorial que visava à expansão de seus negócios. Percebe-se que havia um jogo de trocas de ambas as partes, principalmente na busca de um espaço de reconhecimento e projeção. Em setembro de 1957, logo após o recital concretista, o suplemento foi publicado na Ala Arriba: 62 MACHADO; ABDALLA. [entre 2010 e 2011]. MACHADO; ABDALLA. [entre 2010 e 2011]. 64 MACHADO; ABDALLA. [entre 2010 e 2011]. 65 A título de curiosidade, segundo Lulu Librandi: “Ruth criou um movimento no Brasil e na França para libertar Rudá de Andrade, filho da Pagu e do Oswald de Andrade, que estava preso havia quase seis meses numa masmorra congelada pelo inverno no interior da França”. LIBRANDI, 2012. 66 RECITAL, Folha da Manhã, 04 ago. 1957, p. 2. 63 Acaba de sair o número de Julho de ALA ARRIBA, revista de maior expansão no mundo português cuja revista está assim constituída: Ruth Santos, Diogo Pacheco, [...], Vera Mogilka, Alvim Barbosa e Movimento Ars Nova. Evidenciando progressiva e sensível melhora [...] intelectual e material, este número engloba trabalhos de [...] de Morais, Theun Spanudis, Reinaldo Bairão, Alvim Barbosa, Cavalheiro Lima, Erico Verissimo, João Francisco Lisboa e além de uma página dedicada ao I Festival Brasileiro de Poesia a realizar-se no começo do próximo ano em Porto Alegre promovido pelo grupo da revista QUIXOTE. O Movimento Ars Nova desta capital mantém nas páginas de Ala Arriba (Vértice) um suplemento onde figuram trabalhos de natureza concreta. Diversas reproduções de gravura completam a matéria desse número67. As atitudes de Maria Ruth em promover o encontro com o grupo musical, juntamente, com nomes da classe artística paulistana, também, podem ser compreendidas como um espaço de projeção e em busca de status. Ao mesmo tempo, aponta para a capacidade de Ruth de se envolver com artistas que desejavam modificar a realidade artística que a cercava. Em outra pequena nota localizada no Jornal Folha da Manhã, o jornalista José Tavares de Miranda noticiou que “a greve na indústria gráfica estava retardando a saída [da] última revista “Ala Arriba” em homenagem a Mário de Andrade que seria sucedida após este número por “Vértice””68. Destaco que o projeto editorial da Revista Vértice69 foi dedicado, exclusivamente, à abordagem da arte concreta, deixando de lado as reportagens da colônia portuguesa, em virtude do sucesso do recital e do suplemento publicado na última edição de Ala Arriba. Editada em dezembro de 1957, a Revista Vértice teve uma única publicação, acarretando o encerramento do ciclo editorial de Ruth, por causa da não aceitação do produto pelos consumidores da época (comunidade portuguesa e classe artística em geral). Era momento de providenciar novos rumos, projetos e facetas. Observo que o projeto editorial da Revista Vértice trouxe um corpo de integrantes, cuja finalidade, a priori, servia para solidificar parcerias e ampliar a rede de contatos que viriam ser fundamentais à projeção internacional das ações de Ruth Escobar. Consta como representantes da revista o pintor Walmir Ayalá (RJ), Grupo Quixote (Porto Alegre), Etelvina Lopes de Almeida (Lisboa), Antonio Menezes (Goa), David Barrote (Macau), Sebastião Maqui (Tóquio) e Abbas Chalaby (Cairo). Os responsáveis por representarem a publicação da revista no exterior foram pessoas com quem Ruth teve contato ao realizar viagens por diversos países, quando deu a volta ao mundo, firmando com eles parcerias mais concretas. Noutro grupo, dos diretores honorários, constam os nomes de José Marques da Costa, Nicolau Scarpa, Antônio de Oliveira, o prefeito de São Paulo Adhemar Pereira de Barros e o empresário Ciccilo Matarazzo. Ainda que fosse uma jovem editora de uma revista de arte, Maria Ruth conseguia ter uma rede de contatos formada, principalmente, por pessoas da alta classe social e política paulistana. O primeiro número da revista foi composto por dez artigos que abordavam a literatura, a bienal de arte de São Paulo e a música, além da primeira publicação, na íntegra, da peça A Morta70 (1937), de Oswald de Andrade. Também é válido destacar a quantidade de anúncios publicitários de empresas que constam na Revista Vértice: Companhia Industrial Química CIL, Casas das Cortinas, VARIG, Forma loja de móveis e objetos de arte, Companhia Universal de 67 TEIXEIRA, Folha da Manhã, 1957, p. 8. MIRANDA, 1957, p. 9. 69 Vértice também foi nome de uma revista portuguesa de cultura e arte fundada em 1942, em Coimbra, Portugal. 70 Segundo Sábato Magaldi, A Morta “realiza a síntese ideológica das peças anteriores [de Oswald de Andrade] é ao mesmo tempo contestação dos valores burgueses e louvação ao socialismo, visto como produto da poesia” (ANDRADE, 1976, p. XIV). Sendo assim, o fato de Ruth publicar na íntegra A Morta, pode ser visto como um embrião de sua postura política que será verificada nas décadas seguintes. 68 Fósforos, Imobiliária e Incorporadora Otto Meinberg S/A, Instituto de Ótica Krigier, Casa Huddersfield S/A, Cerveja Caracu e Açúcar União. Ainda que a ideia de inserir publicidade em revistas não fosse inovadora para a época, Ruth, sendo uma jovem mulher e editora de uma revista desconhecida, conseguia angariar recursos financeiros por meio de sua persistência e tino empresarial que a destacavam no ramo no país. Pode-se também perceber que Maria Ruth, ao se aproximar do grupo musical Ars Nova, abriu espaço para novos contatos com renomados artistas e intelectuais brasileiros da época, abrindo espaço para futuras parcerias em seus projetos artísticos: o artista plástico Willys de Castro foi consultor técnico da Revista Vértice, traduzindo oito poemas de Edward Estlin Cummings; o músico Claudio Petraglia trabalhou na trilha sonora dos espetáculos Missa Leiga (1972) e Revista do Henfil (1978); Alvim Barbosa, juntamente com Nelson Duarte, Rubens de Falco e Ruy Affonso participaram do Teatro Popular Nacional no espetáculo Histórias do Brasil, em 1965, projeto itinerante de um ônibus que circulava em bairros periféricos de São Paulo e Adhemar Pereira de Barros, político paulista, que subvencionou alguns projetos teatrais de Ruth desde a construção do teatro à montagem de espetáculos. Outros nomes que, apesar de não realizarem posteriores trabalhos com Ruth, merecem destaque, por terem significativa contribuição no desenvolvimento da arte brasileira, são os do pintor modernista Alfredo Volpi e o arquiteto, performance e teatrólogo Flávio de Carvalho. Esses exemplos expõem a rede de contatos profissionais que Ruth começava a criar nesse início de carreira, a fim de solidificar sua atuação no contexto paulista que pouco conhecia, principalmente, no que diz respeito à área artística. Posteriormente, como produtora teatral, esse leque de contatos se expandiu, permitindo a consolidação de inúmeros projetos por ela conduzidos e concretizados. 1.3 (Des)constru(ações) de Maria Ruth na década de 1950 Entre 1951 e 1954, período em que permaneceu continuamente em São Paulo, Maria Ruth entrou em contato com o trabalho teatral desenvolvido pelo TBC, que se encontrava sob o signo do sucesso71, além de outras produções teatrais que estavam em voga naquela época, tal como a fundação do Teatro de Arena em 1953. Ela percebeu que a dinâmica social, política e cultural do Brasil favorecia seus projetos profissionais e pessoais. Diante da efervescência que proporcionava trilhar novos caminhos, decidiu, então, partir em busca de uma “grande aventura pela frente – ela mesma!”72. A relação com sua mãe, que vinha desgastada desde que moravam em Portugal, acentuou-se no Brasil, motivando Maria Ruth a trilhar seu próprio caminho. Alguns acontecimentos ocorridos a impulsionaram ainda mais a querer sair de casa. Sobre um desses fatos, Ruth Escobar recordou que, ao retornar para sua casa, encontrou um amigo no ônibus que morava no final da mesma rua. Sua mãe a aguardava na varanda e viu que estava acompanhada. Ao entrar em casa, foi recebida com agressões verbais e físicas “na bizarra desconfiança de que 71 Nesse período o TBC apresentou os seguintes espetáculos. Em 1952: Antígone, Inimigos Íntimos, Diálogo de Surdos, O Mentiroso, Para Onde a Terra Cresce, Relações Internacionais, Vá com Deus, Luta até o Amanhecer; Em 1953: Rio de Janeiro RJ - Inimigos Íntimos, Assim É...(Se Lhe Parece), Divórcio para Três, Na Terra como no Céu , A Desconhecida de Arras, Se Eu Quisesse, Treze à Mesa, Uma Certa Cabana, Uma Mulher em Três Atos, O Pensamento; Em 1954: O Leito Nupcial, Negócios de Estado, Cândida, Assassinato a Domicílio, Leonor de Mendonça, ...E o Noroeste Soprou, Mortos sem Sepultura. TEATRO Brasileiro de Comédia. TEATRO Brasileiro de Comédia. Verbete Enciclopédia Itaú Cultural. [Material sem ano de publicação]. 72 ESCOBAR, 1987, p. 82. perdera a honra do ponto de ônibus até a porta de sua casa”73. À primeira vista, a passagem descrita por Ruth Escobar traz um discurso vitimado e unilateral, no entanto, alguns aspectos devem ser ponderados: esse foi o único motivo que desencadeou a fúria de sua mãe? Maria Ruth não teria dado motivos semelhantes (ou de outra natureza) anteriormente a esse fato? Não há um tom acentuado quando se refere a agressões verbais? Aqui também se deve levar em conta que a passagem pontuada por Ruth Escobar diz respeito à desonra, característica que afronta sua mãe, colocando-a como agente agressor. Como forma de construir uma linearidade e uma lógica interna em sua autobiografia, Ruth Escobar apresenta como resposta às agressões impostas, a realização de um casamento forjado, cuja iniciativa partiu de seu amigo J.74, arquiteto e desenhista na época e seu colega de trabalho. Sobre essa passagem ela recordou: Meus colegas de trabalho, um italiano simpático e J., que tinha começado a trabalhar um mês, perceberam que eu estava esquisita – minha cara era um pergaminho à beira da explosão do choro. Levaram-me para almoçar, chorei, contei tudo o que tinha acontecido na noite anterior e minha vontade de fugir ou, então, matar-me. J., com seu ar desengonçado, sua pronúncia carregada de erres e aquele ar debochado de que está cagando para o mundo, me disse: - Não precisa nada disso. Eu caso com você, só no civil. [...] -Você está falando sério? Você casa comigo? -Clarrro! O que é que eu tenho a perrderr? Pelo menos posso ser útil a alguém75. De acordo com o processo n. 50-Z-0-11951, do Serviço Secreto do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Maria Ruth casou em 09 de outubro de 1953 com o francês Jean Alfred Paul Sanveur [Sauveur]76, passando a assinar o seu nome como Maria Rute dos Santos [Sauveur]. Esse matrimônio pode ser comprovado por meio da publicação no Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOSP) em 30 de setembro de 1953: Faço saber que pretendem se casar e apresentaram os documentos exigidos pelo ns. 1 a 4 do artigo 180 do código civil: - Jean Alfred Paul Sauveur e dona Maria Rute dos santos, solteiros, residentes neste subdistrito [Santa Cecília]: ele nascido em Paris, França aos 7 de outubro de 1922, desenhista, projetista, filho de Albert Victor Sauver e de dona Yvone Camille Sauver; ela nascida em Portugal aos 31 de março de 1935, de prendas domésticas, filha de Maria do Carmo – Se alguém souber de algum impedimento, oponha-o na forma da lei – lavro o presente para ser afixado em cartório e publicado no Diário Oficial de São Paulo, 21 de setembro de 1953. Oficial maior Paulo Frota de Carvalho77. Esse casamento forjado durou um pouco mais de dois anos: 73 ESCOBAR, 1987, p. 41. Ruth Escobar em sua autobiografia preserva a identidade de seu marido, identificando-o somente como J., no entanto, durante o processo de pesquisa dessa tese, descobri que J. correspondia à Jean Alfred Paul Sanveur. Segundo a autora, na época, ele tinha “trinta e três anos, neurótico de guerra, que tinha servido na Resistência e cuja cínica postura diante da humanidade torpe e selvagem abalada pela portuguesinha imigrante”. ESCOBAR, 1987, p. 40. 75 ESCOBAR, 1987, p. 41. 76 Grafia correta do sobrenome. Também consta no DOSP de 04 de outubro de 1961, página 20, uma interpelação de Jean Alfred Paul Sauver contra Maria Rute dos Santos. Não apresenta o motivo. Em 17 de novembro do mesmo ano, no DOSP, na página 60, registrou que “se manifestou a interpelada a fls. 14 e em que houve o parecer favorável da Curadoria Geral, para efeitos de direito - entregue-.se ao interpelante no prazo de 48 horas, ressalvado pedido de certidão pela parte interessada. 77 DOSP, 1953, p. 32. 74 Desquite amigável – Jean Alfred Paul Sauveur [...] - homologo por sentença para que produza seus devidos e legais efeitos, o desquite amigável requerido por Jean Alfred Paul Sauveur e d. Maria Rute Santos Sauveur, ele francês e ela portuguesa, residentes nesta capital. Funcionou no processo o Sr. Curador Terceiro dor Geral que opinou pela sua homologação, apelo "ex-officio" desta decisão para o egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que mando se remetam estes autos a superior instância no prazo e observadas as formalidades legais 78. Em sua autobiografia, ela recorda que “nos casamos em três meses, quando completei dezoito anos”79. Aqui se nota que há uma contradição nos dados apresentados, seja pela memória de Ruth ou pela informação errônea dos agentes do DOPS, pois três meses após sua maioridade resultaria em 31 de junho de 1953, não em outubro, que representaria quase sete meses de diferença. Seu casamento foi realizado em cartório numa cerimônia reservada aos amigos e parentes mais próximos. Ruth recordou que sua mãe “ficou decepcionada [...] por não ter véu, grinalda e marcha nupcial”80. Por esta recordação, percebe-se que sua mãe desejava que sua filha trilhasse as tradições portuguesas pregadas pela Igreja Católica, mas a atitude de Ruth não foi ao encontro desses valores sociais. Sobre essa veia católica que sua mãe tentava lhe incutir, Ruth recordou de suas palavras quando realizou a primeira comunhão na Igreja de Santo Ildefonso, na cidade de Porto: “Confessa-te direito, que vais receber o Deus Nosso Senhor” [...] “Não mastigues a hóstia, que é pecado. E promete a Deus que nunca vais desobedecer à mãezinha, ter maus pensamentos e que vais estudar muito para merecer Jesus”81. Logo em seguida ao casamento, saíram em lua de mel para a cidade de Rio Claro, interior de São Paulo. Ao retornarem, foram morar na Avenida Nove de Julho e, meses depois, Maria Ruth engravidou. A gravidez foi interrompida por vontade de sua mãe, num ato violento contra a vida de quem poderia ser descendente da família Santos. Seu marido que a priori tinha aceitado a gravidez, ainda que tivessem dificuldades financeiras foi cúmplice do plano de sua mãe: “vão botar onde uma criança, vou arranjar uma parteira que faz o serviço”82. A imposição da mãe em realizar o aborto foi recordada por Ruth: Na peça nobre da casa, em cima da mesa, eu estendida feito um porco, minha mãe de um lado e J. do outro me segurando, eu berrando por entre o clorofórmio de anestesia, eu me debatendo para tirar aquele nariz gigante de borracha que me atolava a cara, eu segurando o meu grito e a parteira carniceira cutucando minhas entranhas, minhas tripas, puxando tudo, e eu com vontade de saltar pela janela do terraço, de dor, de nojo, de ânsia, da desgraça desconhecida, porque todas as dores têm o tempo da eternidade – não tenho ideia de quanto tempo durou a sangria, só sei que vomitei metade do fígado de tanta ânsia83. A descrição da cena, ocorrida em 29 de maio de 1954, dimensiona o sofrimento de Maria Ruth nas mãos da parteira, a invasão de seu corpo e a morte de uma vida embrionária. É curioso notar que sua mãe a educava com os princípios da Igreja Católica desde quando moravam em Portugal: o casamento, a família, as virtudes e os deveres da mulher eram recorrentes no dia-a78 DOSP, 1955, p. 34. ESCOBAR, 1987, p. 42. 80 ESCOBAR, 1987, p. 42 81 ESCOBAR, 1987, p. 37. 82 ESCOBAR, 1987, p. 44. 83 ESCOBAR, 1987, p. 44. 79 dia da família. No entanto, ao mesmo tempo em que obedecia as leis de Deus ou, pelo menos, forjava uma fachada de carola, sua mãe também havia ceifado vidas no seu ventre e não seguia os preceitos cristãos ao ter um amante e interferir na família de um homem casado. Na reportagem Nós fizemos aborto publicada na Revista Veja em setembro de 1997, mãe e filha falaram sucintamente a respeito do assunto. A matéria tinha como foco entrevistar personalidades brasileiras que realizaram essa prática. Dentre as entrevistas estavam: Cássia Kiss, Marília Gabriela, Cissa Guimarães, Elba Ramalho, Maria Adelaide Amaral, Arlete Sales, Aracy Balabanian, Tereza Rachel e Zezé Polessa. Marília do Carmo declarou que realizou dois abortos, enquanto Ruth Escobar84 (Maria Ruth) havia feito três partos extemporâneos. Ela também declarou que das suas três filhas, duas abortaram. Numa das ocasiões, ela acompanhou a filha a uma clínica para consumar o fato. Por fim, ela também enfatizou: “que havia declarado publicamente [sua] posição a favor da legalização do aborto”85. A decisão de ser favorável ao aborto se deu quando Ruth Escobar foi uma das idealizadoras e a primeira presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985, durante o governo de José Sarney, quando atuava como feminista e deputada estadual. 1.3.1 Encontros e estratégias Depois disso, Maria Ruth decidiu viajar sozinha sem a companhia de Jean Alfred. Ela pretendia fazer uma aventura ao redor do mundo. Para isso, solicitou ao Consulado de Portugal, em São Paulo, o visto de saída para seu país de naturalização, sendo o passaporte expedido sob o n. 599 em 26 de junho de 1954. Lá encontrou seu padrasto que lhe confidenciou que “quando passou a viver com [sua] mãe, ela quis [te] colocar num orfanato e ele não permitiu” 86. Novamente, observa-se a faceta dúbia de sua mãe que também possuía uma “máscara” obscura, capaz de realizar atitudes contrárias àquelas que apregoava. De Portugal, Maria Ruth decidiu percorrer alguns países da Europa. Sua primeira parada foi em Londres, local onde aconteceu uma história de amor com Yannusz87. Logo em seguida, seguiu para Paris, Itália e retornou à capital da Inglaterra para encontrá-lo. Ruth Escobar lembrou que “quando o trem que a levava ao aeroporto começou a roncar nos trilhos, ela teve a certeza de que nunca mais o veria”88. Ela retornou para o Brasil, contou de sua traição para seu marido e se separou89. Em 1954, chegavam ao Brasil as primeiras notícias90 sobre o início do processo de independência das colônias portuguesas de Goa, Damão e Diu, territórios localizados na Índia. Ao tomar conhecimento desse fato, Maria Ruth decidiu realizar uma longa viagem com o objetivo de fazer a cobertura jornalística para sua revista, visto que a mesma tinha como propósito publicar reportagens a respeito da colônia portuguesa. Neste sentido, pode verificarse que Maria Ruth não se restringiu apenas à realização da publicação da Revista Ala Arriba com os compatriotas portugueses no Brasil, mas ampliou sua margem de atuação ao buscar notícias internacionais sobre Portugal. Outro ponto a ser ressaltado nesta fase de Maria Ruth é 84 Durante a pesquisa não foi possível identificar quando foram os outros partos extemporâneos, nem o nome das filhas que realizaram a mesma prática da mãe e da avó. 85 BARROS; SANTA CRUZ; SANCHES, 1997. 86 ESCOBAR, 1987, p. 51. 87 Na autobiografia de Ruth Escobar não consta seu nome completo. Era polonês e arquiteto. 88 ESCOBAR, 1987, p. 73. 89 No processo 52-Z-0-202 do APESP consta que ela separou-se em 04 de abril de 1958, retomou o nome de solteira e cancelou Carteira Modêlo “19” (Carteira de Identidade). 90 O jornal Folha da Manhã publicou algumas reportagens a respeito desse assunto entre 07 a 20 de agosto de 1954. a “invenção” de uma jornalista, visto que em nenhum momento de sua trajetória consta que tenha frequentado qualquer tipo de curso91 dessa natureza. No entanto, sua capacidade camaleônica lhe permitiu aventurar-se numa profissão desconhecida, aprendendo na prática a ser, pois de “jornalista eu tinha intuição e garra por que não tinha nenhum curso de jornalismo92”, recordou Ruth. A respeito da decisão de viajar até o outro lado do mundo em busca de reportagens inéditas para sua revista, ela recorda que “não sei por qual atalho do meu raciocínio passou o projeto de correr o mundo; mas construí uma história direitinho para convencer os outros a participarem dessa importante decisão”93. Apesar de ela não apresentar o discurso que utilizou para convencer os patrocinadores a financiarem seu projeto, novamente se nota que Maria Ruth utilizou de artifícios interpretativos, visto que sua trajetória, como vendedora junto à Revista das Indústrias proporcionou-lhe uma vivência prática na arte do convencimento. Para angariar recursos financeiros ao custeio da viagem que iniciava em São Paulo, passava pelos Estados Unidos, Havaí, Tóquio, Hong Kong, Filipinas e terminava em Saigon, no Vietnã, Maria Ruth conseguiu convencer os proprietários da Cervejaria Caracu a patrocinar uma parte do seu projeto em troca de anúncios publicitários em sua revista. É importante constatar que esta empresa tinha sua matriz na cidade de Rio Claro, local em que ela e seu marido Jean Alfred passaram a lua de mel. Há um dado interessante e que merece destaque: durante muito tempo no alto do Edifício Martinelli (sede da Revista das Indústrias e local de trabalho de Maria Ruth) ficou exposto um outdoor da empresa Caracu94, que pode ter despertado o insight em Maria Ruth para a solicitação do patrocínio da sua viagem. Após conseguir os recursos financeiros da empresa, que ainda eram insuficientes para pagar todas as despesas da viagem, deixar uma verba para dar continuidade à tiragem de seu projeto editorial de uma publicação mensal, que ficou sob a responsabilidade de seu amigo e secretário A. Barbosa, ela tomou a decisão corajosa de viajar. Sua primeira parada foi em Nova Iorque. Decidiu ir até a sede das Nações Unidas para entrevistar o indiano Ramaswamy Venkataraman que, na época, era um dos membros do Tribunal Administrativo das Nações Unidas. Posteriormente, ele foi presidente da Índia no período de 1987 a 1992 quando Goa, Damão e Diu se encontrava sob posse do governo indiano. Após esse encontro, a entrevista ou matéria jornalista lhe rendeu uma publicação no Jornal de Notícias de Lisboa. No entanto, como não dominava a língua inglesa, a tradução grosseira desse material ocasionou problemas com as embaixadas de Portugal e da Índia, que solicitaram explicações às Nações Unidas. Neste meio tempo, entre o processo de transcrição, tradução e publicação da reportagem, Ruth se encontrava em Tóquio no Japão. Lá, a embaixada portuguesa solicitou sua presença para esclarecimentos sobre a matéria jornalística publicada em Lisboa. Ruth recordou que um funcionário lhe entregou um envelope, solicitando-lhe um pedido de retratação: “Estes assuntos não [são] brincadeira pra menina se meter e muito menos política [que] é uma arma que as mulheres possam esgrimir95. Apesar da represália do funcionário da embaixada portuguesa e a discriminação à sua posição enquanto mulher envolvida com “assuntos masculinos”, o fato é que Ruth cada vez mais se envolvia com a política. A respeito desse assunto, Ruth escreveu em sua autobiografia: 91 A primeira escola voltada para esse assunto foi Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero fundada em 1947, mas somente na década de 1960 se tornou curso superior. 92 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. 93 ESCOBAR, 1987, p. 49. 94 Ver imagem 26 do dossiê de fotos. 95 ESCOBAR, 1987, p. 59. Essa coisa do homem, do homem adulto, era um pedaço do mundo que lhe escapava. Os homens tinham poder como se fossem uma raça superior. Queria saber como era o olhar deles, desses homens do poder. Mulher era tão desprezada em Portugal que o Salazar nem era casado, embora todos dissessem que dormia às escondidas com a velha governanta e até lhe tinha feito uma filha. Pois até para ele, Salazar, ela ia mostrar do que é capaz uma rapariga portuguesa com sangue nas guelras! 96. Como forma de manter um status perante as autoridades da região em virtude da confusão causada pela publicação da reportagem, Ruth decidiu hospedar-se num hotel de primeira classe, estratégia adotada com o objetivo de não parecer uma aventureira qualquer em solo asiático. Nota-se aqui, novamente, uma atitude política de Ruth ao desejar mostrar uma posição ainda não adquirida, mas que ela sabia ser aquele o caminho a seguir. Ruth também decidiu ir às Filipinas para entrevistar o presidente Ramon Magsaysay. No entanto, na visão de Ruth ele “nada disse de interessante [...] apenas os lugares comuns da diplomacia”97. Para ela, a neutralidade das palavras não interessava. Ruth desejava um discurso que provocasse fricção, principalmente se as autoridades se posicionassem a favor de Portugal. Neste sentido, pode perceber-se que a posição adotada por Ruth dizia respeito a um jogo, cujo interesse era o de publicar em jornais portugueses e na Revista Ala Arriba reportagens que colocassem seu país no centro das atenções, caso contrário, não alavancaria a venda da revista, nem conseguiria espaço para publicação nos periódicos diários em Portugal, muito menos a projeção de seu nome. Posteriormente, Ruth se deslocou até a cidade de Karachi, na Índia, local onde diversas autoridades participaram da conferência da Organização do Tratado do Sudeste Asiático (OTASE). Na ocasião, conseguiu entrevistar o secretário de estado norte-americano Foster Dulles e ministros turcos. Nessas primeiras entrevistas98 realizadas por Ruth, destaco o seu senso na criação de oportunidades, bem como a capacidade de se envolver com assuntos/temáticas e agentes políticos tão relevantes numa idade tão jovem. A sua percepção/insights das pessoas que deveriam ser contatadas a tornou, sem dúvida alguma, uma jornalista empreendedora. Na região da Indochina, em Camboja, na cidade de Phnom Penh, Maria Ruth realizou diversas façanhas em prol de sua projeção pessoal, ao mesmo tempo em que esse lugar lhe proporcionou reflexões sobre a sua própria essência. Hospedou-se no único hotel da cidade, onde estava presente o príncipe Norodom Sihanouk, político cambojano que participou ativamente da independência do Camboja99. Conseguiu, na ocasião, uma foto que o próprio príncipe dedicara a Salazar, documento que ela utilizou em outras circunstâncias em benefício próprio. A primeira vez foi no aeroporto da cidade de Phnom Penh: ao seguir destino à Tailândia, Maria Ruth não possuía visto no passaporte. Como forma de resolver o problema, mostrou aos responsáveis a fotografia autografada e, com isso, demonstrou boa relação com as autoridades locais. A segunda foi a entrega dessa fotografia a António Oliveira Salazar, situação em que, novamente, tirou proveito para realizar entrevista inédita com o ditador português. Contudo, a respeito dessa estratégia utilizada por Ruth Escobar, em entrevista ao jornalista Aramis Millarch, ela confessou que “isso que eu chamo de malandragem, picaretagem. Você 96 ESCOBAR, 1987, p. 59-60. ESCOBAR, 1987, p. 62. 98 Durante a pesquisa, não foram localizadas nenhuma dessas entrevistas. 99 No dia 9 de novembro de1953, sob o reinado de Sihanouk, o Camboja ganhou a independência da França. 97 não quer dar uma foto dedicada a Salazar? No fundo era uma arma para conseguir entrevistar Salazar”100. Terminada sua jornada no continente asiático, Maria Ruth decidiu retornar ao Brasil, mas, antes disso fez uma parada em Portugal para realizar mais uma aventura jornalística com o intuito de angariar mais repercussão de sua volta ao mundo. Foi com a fotografia do príncipe de Camboja que nasceu a oportunidade de se aproximar do ditador português. Usando como pretexto a necessidade de entregar em mãos a foto ao ditador português, a jornalista conseguiu um encontro exclusivo com Salazar. Maria Ruth recordou de suas palavras proferidas a Salazar em tom amistoso: “Antes de mais nada quero entregar-lhe uma encomenda do príncipe do Camboja, é o retrato dele autografado, amassou um pouquinho, desculpe, foi uma viagem longa, cheia de aventuras, quase fiquei presa”101. A justificativa dada por Maria Ruth foi determinante para ter acesso a Salazar, colocando-se como intermediária no jogo de relações diplomáticas entre Portugal e Camboja. Isso lhe permitiu proferir palavras simpáticas e atraentes, relacionando aspectos que articulavam ligações entre os países. Ao se defrontar com o ditador, Maria Ruth fez um jogo de relações amigáveis, no qual buscava estabelecer uma mediação entre os chefes de estados, uma proximidade que possibilitou ser um canal para futuras negociações internacionais: “O senhor precisa providenciar relações com o Camboja, é uma maldade os portugueses que correram terras e mares não poderem visitar uma das maravilhas do mundo – o Dr. Salazar precisa ir lá, não imagina que colosso, desafiando os humanos – aqueles templos dos Deuses”102. Neste sentido, infere-se que Maria Ruth realizava um jogo político despreocupado, referendando um regime autoritário, o qual conduzia Portugal sob a constante vigilância e retrocesso na época. Nas despedidas, Salazar indagou-lhe: “Tem alguma coisa que possa fazer pela menina portuguesa?”103, recordou Ruth. Sem titubear, respondeu que “gostaria, se fosse possível, de acompanhar o Presidente da República, Dr. Craveiro Lopes, na viagem a Moçambique, como attachée de presse”. O jogo de relações diplomáticas realizado por Maria Ruth junto ao ditador português surtiu efeito: “dois dias depois, ligava para o gabinete do Dr. Marcelo Caetano e, para seu espanto, sabiam de tudo, já tinham marcado audiência [...] disse-lhe que diante da recomendação do Dr. Salazar, abririam uma exceção [...] receberia em São Paulo sua passagem até Lourenço Marques para se juntar-se à comitiva”104. Antes de retornar a São Paulo, decidiu visitar sua cidade natal, Porto, a fim de “gozar as glórias de sua recente notoriedade como jornalista”105, visto que Maria Ruth havia publicado reportagens nos principais jornais portugueses que circulavam em Lisboa. Com isso ela voltava a sua origem, não mais como alguém que fugiu da vergonha e culpa junto com a mãe. Mas como uma jovem que conquistou projeção social e política, que se destacou ao entrar em contato com dirigentes políticos, entrevistando Salazar. Era uma reviravolta na sua história. Antes de seguir rumo à cidade de Lourenço Marques106, em Moçambique, na África, colônia portuguesa de 1898 a 1975, Maria Ruth retornou ao Brasil e fez uma breve passagem pela capital paulista para ver familiares e amigos, arrumar coisas pessoais e profissionais da Revista Ala Arriba. Ao chegar à cidade moçambicana de Lourenço Marques, Maria Ruth foi 100 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. ESCOBAR, 1987, p.75. 102 ESCOBAR, 1987, p. 75. 103 ESCOBAR, 1987, p. 76. 104 ESCOBAR, 1987, p. 77. 105 ESCOBAR, 1987, p. 77. 106 A cidade recebeu esse nome em homenagem ao explorador português Lourenço Marques e, em 13 de março de 1976, passou a ser chamada de Maputo, em virtude do Rio Maputo. 101 até Quelimane, capital de Zambézia, município que fica cerca de dois mil quilômetros de distância, local onde se encontrava a comitiva do presidente Salazar. Ela se deslocou num pequeno avião monomotor. Ao chegar a Quelimane, Maria Ruth foi convidada a fazer parte do segundo escalão da comitiva que rumou à Ilha de Moçambique. No entanto, essa troca de aeronave foi salvadora, já que o avião do primeiro escalão desapareceu: “Ela [Maria Ruth] entrou em estado de choque ao pensar que poderia ter continuado naquele avião”107. Dias depois o avião foi localizado, mas não foi encontrado nenhum sobrevivente. Indignada com o posicionamento assumido pelo governador de Moçambique, que encobria a notícia sobre o desastre da queda do avião e o desaparecimento dos passageiros para não ofuscar a visita presidencial de Craveiro Lopes, Maria Ruth decidiu tomar providências. Uma das atividades de Craveiro Lopes na viagem presidencial era a inauguração da Praça de Touros Monumental de Lourenço Marques. Para a solenidade de abertura, que contava com a presença do Chefe do Estado, foi organizada uma tourada real para fazer as honrarias dos anfitriões. De acordo com enviado especial do jornal Diário de Lisboa, que acompanhava diariamente a comitiva presidencial, este evento ocorreu em 31 de agosto de 1956108. Nessa oportunidade, ao adentrar a praça onde havia cerca de três mil pessoas, Craveiro Lopes foi surpreendido pela manifestação de Ruth. Ela recordou que “levantou-se e, na sua voz esganiçada, pediu um minuto de silêncio em homenagem aos companheiros mortos estupidamente durante a viagem presidencial”109. No entanto, rapidamente houve reação: “a Praça dos Touros ficou de pé e eu fui rodeada por dois agentes de segurança. Craveiro Lopes se retirou, porque eu havia rompido o protocolo. Fui levada ao palácio e convidada para se colocar na fronteira em vinte e quatro horas”110, afirmou Ruth. Porém, observo que esse ocorrido não foi mencionado nas edições do Diário de Lisboa, tampouco a queda do avião, pois todos os jornais eram “visado pela Comissão de Censura”. Esse fato pode ser considerado decisivo111 e essencial na trajetória de Ruth, visto que foi o primeiro pronunciamento público na qual defendia a “verdade”. Além do mais, sua ação de enfrentamento às autoridades portuguesas pode ser vista como um ato político, seja contra a censura da informação, seja contra a forma de tratamento dado à população de Quelimane, foi o “primeiro episódio de consciência política”112, afirmou Ruth. Surgia a partir daquele momento uma estrategista aliada à posição de enfrentamento aos políticos, à política. Essa situação criada por Ruth também demonstrou sua coragem ao se posicionar a favor da minoria, impondo-se em prol da causa das pessoas desaparecidas. Assim, tal fato pode ser entendido como um pontapé inicial das futuras ações político-sociais e seu engajamento em causas humanitárias. Ao saber do ocorrido, seu amigo Manuel113, um experiente caçador de elefantes, deixou um bilhete no hotel em que estava hospedada, convidando-a a se aventurar numa caçada e depois a deixaria num local seguro para seguir sua viagem rumo ao Cairo. Durante essa incursão na selva moçambicana, Maria Ruth aprendeu “a guiar o jipe, a atirar com uma Mauser, a andar feito bicho e trepar em árvore”114. Presenciou a morte de um elefante e, logo em seguida, 107 ESCOBAR, 1987, p. 79. A VIAGEM, Diário de Lisboa, 31 ago. 1956, p. 3. 109 ESCOBAR, 1987, p. 79. 110 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. 111 Frase estampada no canto inferior direito na capa dos jornais. 112 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. 113 Não consta em sua autobiografia mais informações a respeito de Manuel, nem mesmo o sobrenome. 114 ESCOBAR, 1987, p. 81. 108 partiram rumo ao Cairo, numa viagem de mais de cinco mil quilômetros a um local que a consagraria como uma jovem jornalista. A priori, seu desejo era o de retornar para São Paulo, mas antes decidiu visitar as famosas pirâmides egípcias, comentadas por Manuel, como simples turista, no entanto chegou ao Cairo nas vésperas da Conferência do Conselho de Segurança da ONU, onde seria resolvido o impasse sobre a utilização do Canal de Suez115. O general Gamal Abdel Nasser, presidente do Egito, foi um dos responsáveis por libertar o país do domínio das forças israelenses, francesas e britânicas. Declarou, em 1956, a nacionalização do canal que estava sob o domínio do Egito, criando atritos com a França, Israel, Inglaterra, EUA e a URSS. Ao ver a situação em que se encontravam os cidadãos daquele país, o impulso jornalístico novamente veio à tona e Ruth se perguntou: “será que o povo era consultado se queria alugar seu país e fazer um canal? – depois eram aquelas encrencas e eles é que pagavam o pato, indo para a guerra brincar de soldado e dar tiro”116. Maria Ruth tem um olhar para seu tempo histórico e o questiona. Seu olhar começava a buscar outras respostas para o que via. Ruth começava a aprofundar sua visão crítica do mundo e iniciava uma conscientização política que a dominaria pelas próximas décadas. Não se contentando em ser apenas uma turista que apreciava os monumentos faraônicos, Maria Ruth decidiu exerceu sua veia jornalística, pois o assunto do Canal de Suez era de caráter internacional, havia cerca de quinhentos jornalistas no Cairo para cobrir a reportagem. Ela seria apenas uma desconhecida entre tantos jornalistas, mas “se era interessante ver o homem [Nasser], ia tentar”117, recordou Ruth. Em meio a essa situação, Maria Ruth se deu conta de que poderia conseguir de alguma forma “esse furo de reportagem [e que] podia colocá-la de novo no centro dos acontecimentos em Portugal”118, pois o ocorrido, anteriormente, em Moçambique prejudicou sua imagem e reputação junto às autoridades portuguesas. Como poderia ela realizar uma entrevista exclusiva com o temido Nasser? Quais as vias que poderia percorrer para chegar ao seu objetivo? Os episódios a seguir descrevem um pouco do espírito empreendedor de Maria Ruth nessas viagens. Em menos de vinte e quatro horas de sua chegada ao país, Maria Ruth conseguiu reunir informações sobre a história do Canal de Suez. De posse de informações básicas, percebeu que ela era apenas mais uma entre todos os jornalistas que desejavam se aproximar de Nasser. A partir dessa constatação, ela teve uma ideia audaciosa para conseguir uma entrevista com o ditador. Escreveu uma carta ao general, entregue por um conhecido que trabalhava com um ministro, como ela mesma afirmou “a carta foi muito malandra”119. Maria Ruth recordou em sua autobiografia que: Disse-lhe que era revoltante ver a forma como a imprensa imperialista tratava a questão do Suez que era importante que o Terceiro Mundo e o Brasil tivessem acesso às razões reais que levaram ao fechamento do Canal, que ela era uma jornalista jovem, sem notoriedade, mas cheia de entusiasmo pela causa do povo egípcio e que certamente faria um lindo trabalho se tivesse aquela oportunidade, além do que, seu país, o Brasil, tinha um presidente jovem, moderno e nacionalista como ele, e que esse Presidente, Juscelino Kubitschek, era o Nasser da América Latina etc., etc., etc.120 115 Ver a coletânea de artigos publicados no jornal Diário de Lisboa, em 1956, por RODRIGUES, em 1999. ESCOBAR, 1987, p. 86. 117 ESCOBAR, 1987, p. 86. 118 ESCOBAR, 1987, p. 85. 119 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. 120 ESCOBAR, 1987, p. 86. 116 Ao fazer uso de informações convincentes e adequadas à visão nacionalista do general e, também, dizendo que a “imagem de Nasser aqui [no Brasil] era a de um gangster, mas essa era imagem veiculada pela imprensa americana e que ele teria a oportunidade de mudar essa imagem se uma jornalista sul-americana tivesse ocasião de entrevistá-lo”121. Maria Ruth foi a única jornalista estrangeira a realizar uma entrevista exclusiva com Nasser, com duas horas de duração. Para conseguir o feito, ela se valeu, ainda, de outro argumento: disse que “não venderia as informações a outro jornal”122, no entanto, a jornalista não cumpriu sua promessa: Saí de lá e telefonei para um amigo em Roma, avisando da entrevista. Quando cheguei em Roma, no dia seguinte, estavam toda a imprensa e a televisão à minha espera e eu vendi a matéria para a televisão francesa. Aqui no Brasil, saiu na primeira página do Diário de São Paulo, e além da entrevista, eu trouxe uma mensagem dele para o Juscelino Kubitschek. Essa foi a entrevista que mais me rendeu123. O fato de fazer uma comparação entre Nasser e Juscelino Kubitschek pode ter sido fator decisivo para conseguir seu objetivo, o que demonstrava uma agilidade de pensamento e capacidade de estabelecer diálogos. Ruth compreendia a necessidade do outro, aliada a uma percepção do contexto sociopolítico. Com esse material de alto valor jornalístico, Maria Ruth conseguiu publicação na primeira página do Diário de São Paulo e do Diário de Notícias124 de Lisboa, com bom retorno financeiro. Depois de tantas experiências em diversos países, Maria Ruth decidiu retornar ao Brasil em 1956. Com muitas histórias para contar, aproveitou a oportunidade para conseguir projeção entre a classe jornalística paulista. A principal repercussão, no Brasil, de suas viagens foi a da entrevista cedida ao jornalista Silveira Sampaio, destacado profissional da imprensa na época. Esta entrevista durou “quase uma hora para contar as aventuras na Europa, Ásia e África”125, lembrou Ruth. 1.3.2 Cidade luz: um local de transformação e inspiração Em 1957, iniciou-se um novo ciclo na vida de Maria Ruth. Casou-se com Carlos Henrique Escobar126, poeta, revisor do Diário de São Paulo e militante político de esquerda desde sua adolescência. Foi preso no DOPS pela primeira vez aos 15 anos de idade e, aos 17, escreveu seu primeiro texto para o teatro: Antígone-América, dramaturgia encenada no início da década de 1960 em que Ruth, ainda sem nenhuma experiência mais aprofundada em interpretação, assumiu o papel principal do espetáculo. Logo em seguida, decidiram morar na cidade luz (Paris) com o objetivo: “ele para estudar filosofia e eu para estudar teatro”127. Carlos Henrique Escobar, em solo francês, teve o primeiro contato com as teorias de Foucault e Deleuze por meio de seu professor Maurice Merleau-Ponty. Sem muitos recursos financeiros para morar em Paris, uma pensão localizada na rue Saint-Jacques foi a solução encontrada naquele momento. Foi nessa cidade que Maria Ruth fez sua primeira experiência teatral mais 121 LADEIRA, Jornal do Brasil, 1974. LADEIRA, Jornal do Brasil, 1974. 123 LADEIRA, Jornal do Brasil, 1974. 124 A íntegra dessa reportagem está transcrita no anexo I. 125 Entrevista não localizada durante a pesquisa. ESCOBAR, 1987, p. 91. 126 Carlos Henrique Escobar recebeu o título de Notório Saber pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1986, tornou-se um importante intelectual brasileiro com publicações em diversas áreas do conhecimento: teatro, poesias, filosofia, ciência política, ensaios e na organização e participação em coletâneas. 127 LADEIRA, Jornal do Brasil, 1974. 122 profissional: frequentou o curso de direção no Théâtre Huclette128, ministrado por Pierre Valde em que também se encontrava José Renato129, encenador que realizou a montagem do espetáculo de abertura do Teatro Ruth Escobar. Grávida de oito meses de seu primeiro filho, encenou fragmentos do texto Antígone, de Jean Anouih, na Schola Cantorum. Recebeu menção honrosa pela interpretação. Com dificuldades financeiras, Ruth viu o anúncio de um emprego para vendedora de perfumes que falasse português. Essa vaga de emprego surgiu após a viagem do empresário Max Habermann, que ficou fascinado com a diversidade cultural do Brasil. Ao retornar a Paris, decidiu focar as vendas de perfumes para brasileiros. Contratada para essa função - ela estava grávida - Ruth teve a ideia de transformar a perfumaria numa galeria de arte. Para isso, convidou seu amigo Cyro Del Nero, que estava na Alemanha, para ajudá-la nessa empreitada: “Eu e Cyro Del Nero destruímos a loja de perfumes”, recordou Ruth. A mostra de arte intitulou-se 7 Brésiliens à Paris. Ela expunha cerâmicas, gravuras e artesanatos de artistas brasileiros. Conforme nota publicada no jornal, O Globo: Max Haberman, diretor-presidente de Helena Dale. Depois de sua recente viagem pela América do Sul, entusiasmado com o espírito do povo brasileiro e com a metrópole que mais cresce no mundo, decidiu criar na sua organização em Paris, um departamento de relações públicas para divulgar coisas e gente do Brasil. Esse departamento é dirigido por Ruth Santos Escobar, jornalista brasileira que ora organiza a presente exposição na qual telas de Bandeira, Krajcberg, e Tanaka, gravuras de Chaves e Piza e cerâmica de Elizabeth Nobling, e prepara para novembro a 1ª exposição de artesanato brasileiro em Paris que terá lugar nos salões de Helena Dale130. De acordo com Ruth, “a exposição foi um sucesso”, mas após três meses, “o dono da loja começou a se dar conta de que a galeria ia muito bem, mas os perfumes não. Veio a época de baixa, era inverno. Eles vendem muito no verão para turista americano. Ele falou para mim que eu tinha que ir embora”131. Naquela noite de abertura da exposição, Ruth sentiu as dores do parto. Foi levada para um hospital no subúrbio de Paris. Nascia seu primeiro filho, Christian, em 20 de agosto de 1958. Novamente, Ruth se colocou numa posição diplomática intermediadora entre países, uma “legítima” representante da cultura brasileira, repetindo o que havia feito entre Camboja e Portugal. A diferença é que ela adentrava o campo artístico e começava a buscar espaços para exposição e projeção da arte produzida no Brasil. Devido aos escassos recursos financeiros para viver na França, decidiram mandar para o Brasil, sem nenhum acompanhante, via companhia aérea Panair, o filho recém-nascido, Christian, com apenas quatro meses de idade. Segundo Ruth Escobar, isso foi motivado pela “ameaça do inverno, [nos] demos conta de que continuar em Paris com um bebê era insustentável. Meus cunhados, o irmão de C.H. e a sua mulher se ofereceram para ficar com ele até prepararmos nossa retirada da França”132, recordou Ruth Escobar. A respeito dessa história, seu ex-marido, Carlos Henrique Escobar, em entrevista ao pesquisador, recordou que “o motivo 128 Durante a pesquisa não foi encontrado nenhum material que falasse sobre os cursos frequentados por Ruth Escobar. 129 José Renato Pécora fundou o Teatro de Arena de São Paulo, em 1953, um dos responsáveis pela modernização do teatro brasileiro aos paradigmas europeus e norte-americanos ao longo da década de 1960. Esse diretor estava na França para realizar um estágio como assistente de direção de Jean Villar no Théâtre National Populaire (TNP). 130 “HELENA”, O Globo, 1958. 131 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. 132 ESCOBAR, 1987, p. 103. era econômico [...] ela acertou com a Panair do Brasil que faria uma espécie de propaganda: Olha! Levamos uma criança de lá para cá”133. E, como não poderia deixar de ser, junto à imprensa brasileira, noticiou-se que: Christian Escobar, de quatro meses de idade, viajou sozinho de Paris ao Rio. Veio num DC-7 da Panair aos cuidados da tripulação. Seus pais, o casal Escobar, estão, atualmente naquela cidade, e têm o tempo dividido entre o trabalho e o estudo. Não podiam, assim, dar a Christian a necessária atenção. Enviaram-no, então, aos avós que residem aqui. Christian fez boa viagem. Não chorou, tomou seu leite à hora certa e não deu mais trabalho do que aquêle que, normalmente, dá uma criança de sua idade. Na foto, colhida a bordo do DC-7, Christian é visto quando em plena travessia do Atlântico, fazia a sua primeira refeição matinal. Mas o olhar de Christian é triste 134. Este episódio gerou muitas polêmicas na imprensa brasileira. Ressalto que a nota termina de modo negativo – olhar triste de uma criança. Uma criança de quatro meses não teria essa compreensão. O jornalista julgava o casal e colocava tristeza no olhar do bebê para mostrar ao seu leitor o sentimento de abandono que passava “pelo olhar” da criança. Como se vê, as ideias de Maria Ruth surtiam os devidos efeitos. A sua estadia em Paris durou um ano e nove meses, tempo suficiente para refletir sobre seu passado e projetar seu futuro no Brasil. O contato contínuo com o filósofo Carlos Henrique Escobar proporcionava à Maria Ruth mais aproximação com o pensamento político de esquerda do Brasil,135 pois desde jovem ele era militante de esquerda. O período em que esteve em Paris foi ideal para Maria Ruth pensar sobre si mesma e traçar objetivos que fossem importantes para satisfazer seus desejos. Naquela ocasião, “o que era essencial em mim era fazer teatro”136. Sendo assim, Maria Ruth optou por dedicar sua vida ao teatro e não mais ao jornalismo. Fazer teatro era um anseio que tinha desde menina, mas, para conquistar seus objetivos de encenar peças revolucionárias, conseguir recursos, teve de se transfigurar em Ruth Escobar. Aquela menina frágil, desengonçada que deixou Porto rumo ao Brasil havia se lançado em aventuras nacionais e internacionais. Ela se fizera editora e jornalista com desenvoltura na busca de espaços. Nascia Ruth Escobar, uma mulher destemida que desejava conquistar espaço de credibilidade e visibilidade no mundo teatral. Atriz e produtora, Ruth Escobar foi responsável por encenações memoráveis na cena brasileira, bem como pela criação de um espaço – o Teatro Ruth Escobar – que serviu de palco de espetáculos contundentes e renovadores da cena brasileira, além de sediar e organizar palestras, cursos, seminários que visavam trazer à tona debates relevantes ao amadurecimento da sociedade paulistana sobre o contexto repressor que se encontrava ao longo das décadas de 1960-1970. Atos de coragem, resistência e mobilização política contra as ações repressivas, desencadeadas pela ditadura militar brasileira, foram apenas algumas das ações de Ruth. Mas, tudo isso é assunto para os próximos capítulos, pois a fase de Maria Ruth estava encerrada. Nascia uma mulher – que amada, respeitada ou odiada – ajudou como poucos a construir a renovação da cena brasileira, Ruth Escobar. 133 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. ESCOBAR, 2003, p. 146. 135 Durante o regime da ditadura militar (1964-1985), ele foi preso e torturado, perdendo a audição de um ouvido. Além disso, foi proibido de lecionar e, somente em 1986, durante o governo José Sarney, foi anistiado. Pode-se compreender que o contato de Maria Ruth com Carlos Henrique Escobar, proporcionou uma eclosão, ainda mais intensa no seu posicionamento político. Ele reside na cidade de Aveiro, em Portugal. Em fevereiro de 2013, sua filha Maria Clara Escobar apresentou uma cinebiografia de seu pai intitulada Os dias com ele, produção cinematográfica premiada na 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes. 136 LADEIRA, Jornal do Brasil, 1974. 134 1.4 Dossiê de fotos A Aventureira Imagem 17: Caderneta de notas do 4º ano Fonte: Arquivo do Ministério da Educação de Portugal Imagem 18: Fachada da casa onde Maria Ruth dos Santos viveu durante 16 anos Fonte: Acervo do pesquisador Imagem 19: Área interna da Escola Secundária Carolina Michaëlis Imagem 20: Área interna da Escola Secundária Carolina Michaëlis Fonte: Acervo do pesquisador Fonte: Acervo do pesquisador Imagem 21: Corredor da Escola Secundária Carolina Michaëlis Fonte: Acervo do pesquisador Imagem 22: Área interna da Escola Secundária Carolina Michaëlis Fonte: Acervo do pesquisador Imagem 23: Fachada da Escola Secundária Carolina Michaëlis Fonte: Acervo do pesquisador Imagem 24: Fachada interior da Escola Secundária Carolina Michaëlis Fonte: Acervo do pesquisador CAPITULO II – A NOVATA este segundo capítulo abordo a trajetória dos primeiros137 projetos realizados por Ruth Escobar entre 1959 e 1964. Depois da volta ao mundo, adquirindo conhecimentos e colocando em prática estratégias e táticas na segunda metade dos anos de 1950, Ruth Escobar, “filha” da ditadura de Salazar, em solo brasileiro iniciou um novo ciclo de contornos de situações, principalmente com a ditadura militar brasileira. Ainda que, nesse mesmo período, o Brasil estivesse sob os auspícios da democracia, Ruth Escobar desde as primeiras produções imprimiu seu tom político, com o intuito de fazer do teatro uma ferramenta de conscientização. Para isso, em cinco anos ela produziu o Festival Branco e Preto e os espetáculos Antígone América, Males da Juventude, Mãe Coragem e Almas em Tumulto. Além disso, Ruth Escobar se aventurou em projetos de grandes proporções: a construção de seu próprio teatro, local em que abrigou a maior parte das suas produções e o Teatro Popular Nacional para o qual ela adaptou um ônibus, a fim de apresentar espetáculos na periferia de São Paulo. Para concretizar esses projetos, Ruth teve de enfrentar os primeiros embates com os censores e com a própria classe artística. Apesar de ser um curto espaço de tempo, esses cinco anos foram fundamentais para delinear as características da sua atuação como produtora teatral. Ruth demonstrou sua capacidade de conseguir driblar problemas e situações adversas. O período entre 1959 a 1964 serviu como uma espécie de “ensaio” contra aquilo que mais tarde se tornaria seu principal alvo: o governo militar. Seu teatro inaugurado em 1964 abrigaria produções teatrais de renome nacional e internacional e foi visto pelos militares como foco de subversão pelas atividades que desenvolvia. N 2.1 Embates invisíveis, respostas visíveis A lei da censura paulista começou a encontrar, em 1959, uma oposição mais acirrada da classe artística. Até então, os artistas não adotavam uma postura mais politizada diante das imposições governamentais, mas, com a entrada de Ruth Escobar no meio artístico, outros contornos se desenharam. Ela se colocou em pé de igualdade com os censores e militares, travando uma batalha (in) visível, ora confrontando, ora produzindo eventos e espetáculos que aguçava os espectadores a terem nova reflexão sobre a sociedade em que estavam inseridos. A partir de sua primeira produção teatral, a faceta de embate se tornou um símbolo do enfrentamento pela busca da democracia e de luta contra a censura. 137 É necessário fazer uma correção na investigação da pesquisadora Maria Cristina Costa. Ela afirma em seu livro Teatro e Censura: Vargas e Salazar, na página 46, que “[...] Ruth Escobar, que veio de Portugal para o Brasil aos dezesseis anos, foi quem mais influenciou a cena paulista nos anos 1950. Depois de passagens pela Europa, onde fez diversos cursos, ela se estabeleceu definitivamente em São Paulo [...]”. Como apresentado no capítulo I dessa pesquisa, na década de 1950, Ruth viajava pelo mundo e morou quase dois anos na França, portanto, ela não teria como influenciar o teatro paulista. Além disso, quando morou em Paris, ela frequentou somente um curso de teatro, não vários. Nessa década, Ruth produziu um único evento, o Festival Branco e Preto, em 1959. Além da pouca expressão, o festival não teve muita repercussão na classe artística paulistana. Como forma de corrigir essa informação, esta pesquisa apresentará a partir desse capítulo, dados que destacam as contribuições de Ruth Escobar para a cena teatral paulista e brasileira, nas décadas de 1960 e 1970. Na virada da década de 1950 para 1960, a lei n. 2.034, promulgada em 1924, ainda estava em vigor no Brasil, pela qual era outorgada a função de censores aos servidores públicos lotados na Delegacia de Técnica Policial; isto é, a função do censor também passou a ser policial. Foi em 1959 que Ruth Escobar organizou um primeiro evento artístico no Brasil138, intitulado de Festival Branco e Preto139, o qual detinha como proposta teatralizar textos e poesias de autores nacionais e estrangeiros em forma de esquetes. Esta primeira experiência como produtora teatral pode ser comprovada pelo prontuário n. 4.766 do Departamento de Diversões Públicas do Estado de São Paulo (DDP), órgão responsável pela fiscalização e liberação das peças em São Paulo. Neste documento, Ruth Escobar solicitou a liberação do evento ao DDP. Conforme parecer expedido em 09 de outubro de 1959, não houve nenhum impedimento à realização do festival.140 A estreia do Festival Branco e Preto ocorreu em 12 de outubro de 1959 no Teatro Novos Comediantes (TNC - hoje Teatro Oficina). Posteriormente, o festival também foi apresentado no Teatro Municipal de São Paulo; em 12 de outubro, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro; em 28 de outubro, no Instituto Tecnológico de Aeronáutica de São José dos Campos e, em 19 de novembro e a convite de Santos, no Festival Português141. De acordo com nota publicada no jornal O Estado de São Paulo, Ruth buscava “o mínimo de marcação, com o máximo de expressão. O coro, nos poemas, funcionará como elemento dramático, plástico e psicológico, enquanto um dos intérpretes dirá o poema em tom claro e quase sem inflexão”142. Ainda que Ruth Escobar não tivesse experiência como produtora teatral, nesta primeira produção ela se mostrou articulada com a classe artística paulistana ao estabelecer contatos em outras cidades para a circulação do espetáculo. Essa parceria com os artistas paulistanos se deu em virtude dos contatos estabelecidos, quando Ruth fazia parte da equipe artística do TNC. Nessa oportunidade, colaborou com Hélio Quaresma que dirigia o espetáculo Frankel, escrito 138 Segundo nota publicada no jornal O Globo, nesse mesmo ano Ruth Escobar, juntamente com Haydée Betencourt, organizaram um “curso intensivo e prático para formação de atores no Teatro Novos Comediantes [Hoje sede do Teatro Oficina]. O curso terá duração de 12 semanas”. SELZAN, Zora. O Globo, 05 out. 1959, p. 8. No entanto, o jornal O Estado de São Paulo, de 31 de outubro de 1959, afirmou que Ruth Escobar, juntamente com Haydée Bettencourt, Helio Quaresma, Carlos Esper e outros foram contratados pelo TNC como professores do curso. 139 A organização e escolha do repertório do Festival Preto e Branco foram da própria Ruth Escobar. Ela selecionou renomados escritores e poetas da época - Parte I: Guilherme de Almeida (Samba), Garcia Lorca (Toada de Negros em Cuba, Romance Sonâmbulo), Manuel Bandeira (Estrela da Manhã, Poema tirado duma notícia de jornal), Carlos Drummond de Andrade (Cidadezinha Qualquer, Anedota Búlgara, José), Henriqueta Lisboa (Cabocla d’água), Geraldo Vidigal (Obsessão), Paulo Mendes Campos (Infância), Domingos Carlos da Silva (Lirismo), Jorge Guilen (West Indies ltd), Brecht (Meu irmão era aviador), Mário de Andrade (A Serra do Rola Moça), Edgar Masters (A Colina), Jacques Prevert (Familiar), Yvan Goll (João sem terra), Carlos Henrique Escobar (Poema), Anibal Pires (Fado falado) / Parte II: Shakespeare (A loucura de Lady Macbeth), Adolfo Casais Monteiro (Vem vento, varre), Fernando Pessoa (Quando Vier a Primavera), Armindo Rodrigues (A menina feia), José Gomes Ferreira (Balada duma heroína), Tennessee Willians (Blanche Du Bois), Fernando Pessoa (Ode), José Régio (Cântico Negro), Mário de Sá Carneiro (Fim), Carlos Queirós (Teatro da boneca), Fernando Namora (Antônio é preciso partir), Miguel Torga (Livro das horas), Gregório de Matos Guerra (Poema satírico), Gil Vicente (Auto da Cananeia). No elenco, estavam presentes: Alvim Barbosa, Hilton Viana, Beatriz Barros, Tina Rinaldi, Esther Fellegger, Isaac Bardavid além da própria Ruth Escobar. Processo DDP 4.766.AMS. 140 Destaco que no prontuário consta a solicitação de censura de Ruth Escobar para vinte e sete textos, entre poemas e monólogos. No entanto, conforme programa do espetáculo foram apresentados no Festival Branco e Preto trinta e três obras. Além disso, houve três obras poéticas submetidas à censura que não constam no programa do festival: A derradeira morte do encantado, de Antônio Rodrigues, Liberdade, de Armindo Rodrigues e A tísica, de Antônio Nobre, que foram substituídas por outros textos. 141 TEATRO, O Estado de São Paulo, 31 out. 1959, p. 7. 142 FESTIVAL, O Estado de São Paulo, 07 out. 1959, p. 6. por Antônio Callado143. Ainda no TNC, em 1960, Ruth dirigiu o espetáculo Rotunda, escrito por Alvim Barbosa. A história retrata o envolvimento de César e Eduardo, ambos atores de teatro. Destaco que a censura, nesse texto, cortou somente duas frases: ´E a gente sempre sofre quando ama` e `amor mesmo que amor tenha durado apenas uma noite`144. Nos quatro primeiros anos da década de 1960, como produtora independente, Ruth Escobar criou dois empreendimentos teatrais de vulto: fundou a Cia. Novo Teatro e construiu o seu próprio teatro. Foi nesse curto período que ela realizou as primeiras experimentações de sua atuação mais politizada, bem como colocou em prática ações de enfrentamento à realização de projetos audaciosos para a época. Ruth Escobar tomou contorno explicitamente político: o que antes era realizado nas entrelinhas ou de forma branda, passou a assumir posição no front de suas lutas. A ideia de constituir sua própria companhia serviu como estratégia da produtora para adentrar à classe teatral, pois ela “não podia transferir para o teatro a presença folclórica que havia ocupado entre os jornalistas, editora de Ala Arriba, entrevistando Nasser, ninguém [...] levaria a sério”145, recordou Ruth Escobar. Ela sabia que para fazer parte da classe artística paulistana necessitava criar estratégias de ação para participar mais ativamente do meio teatral. Sendo assim, Ruth convidou o diretor Alberto D’Aversa para fundar a Cia. Novo Teatro. Esse diretor italiano veio ao Brasil em 1957, contratado por Alfredo Mesquita para compor a equipe do TBC; esse renomado encenador italiano realizou uma série de montagens146 teatrais em Roma e em Buenos Aires, sempre com diferentes linguagens e estéticas teatrais. A trajetória artística de D´Aversa pôde ser considerada ponto fundamental para Ruth realizar uma parceria profissional, pois em seu currículo havia direção de espetáculos internacionais e nacionais de sucesso. Presume-se que Ruth, com seu olhar de produtora, vislumbrou no trabalho do encenador a possibilidade de alçar outros voos em sua carreira. No primeiro quadriênio dos anos de 1960, a Cia. Novo Teatro147 produziu e encenou Mãe Coragem, de Bertold Brecht, em 1960; Males da Juventude148, de Ferdinand Bruckner, em 143 A respeito dessa encenação, ver MARTINELLI, 2006. Conforme DDP 4.810, em 02 de janeiro de 1960, foi solicitada a censura do texto. ROTUNDA, Observatório de Comunicação Liberdade de Expressão e Censura, 2013. 145 ESCOBAR, 1987, p.106. 146 Dentre elas: Arlequim Servidor de Dois Amos (Roma/1945), Os Persas (Roma/1946), Os Caprichos de Mariana (Buenos Aires/1946), Ana Christie (Buenos Aires/1946), Mãe Coragem (Buenos Aires/1953), Rua São Luís, 27 8º Andar (São Paulo/1957), Os Interesses Criados (São Paulo/1957), A Bilha Quebrada (Curitiba/1957), A Muito Curiosa História da Virtuosa Matrona de Éfeso (São Paulo/1958), Um Panorama Visto da Ponte (São Paulo/1958), Pedreira das Almas (São Paulo/1958), Vestir os Nus (São Paulo/1958), Rua São Luiz, 27 - 8º Andar (São Paulo/1958), Patate (São Paulo/1959), Quando se Morre de Amor (São Paulo/1959), Romanoff e Julieta (São Paulo/1959), Senhorita Júlia (São Paulo/1959), A Família do Colecionador (Porto Alegre/1959), Mãe Coragem (Porto Alegre/1960), Desabamento do Ramal Norte (São Paulo/1960). ALBERTO D´Aversa. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2015. 147 Além de produções na capital paulista, a Cia Novo Teatro circulou com espetáculos pelo país, conforme nota publicada: “O elenco Novo Teatro embarcará sábado para Porto Alegre, às 10 horas, para temporada de 40 dias que realizará no Teatro São Pedro, a partir de 28 do corrente. O espetáculo de estréia do Novo Teatro na capital gaúcha será “Almas em Tumulto”, de Michael Clayton, em tradução de Alvim Barbosa. No elenco estarão: Lelia Abramo (Maggie), Alvim Barbosa (Cliff), Ivanilde Alves (Anna), Rute Escobar (?), Taley Perez (Eddie), Nina Neri (Edith), e Helio Sousa (John). Nilna Neri e Helio Sousa, que passaram a fazer parte do elenco Novo Teatro, pertenceram anteriormente ao Teatro Novos Comediantes tenha desempenhando papéis em “Frankel” [...] Em seguida à temporada em Porto Alegre, o Novo Teatro realizará espetáculos em Pelotas (seis dias), Caxias (2 dias) e Curitiba (10 dias), retornando a essa capital em fins de dezembro”. BELLA, Folha de São Paulo, 20 out. 1960, p.5. 148 Conforme nota publicada no jornal Folha de São de Paulo, em 02 de agosto de 1961, p.3, este espetáculo foi apresentado na Sede do Tênis Clube Bauru nos dias 2 e 3 de agosto de 1961. 144 1961; em 1962, de autoria de seu marido, Carlos Henrique Escobar, Antígone América. Consta no programa de divulgação do primeiro espetáculo produzido pela Cia. Novo Teatro que as montagens subsequentes seriam: Mandrágora, de Maquiavel, Bodas de Sangue, de Garcia Lorca, Compulsão, de Levin Meyer e O Tempo e os Conways149, de Priestley. Contudo, estes projetos nunca foram executados, nem pela companhia, nem por Ruth Escobar como produtora independente, desvinculada do Novo Teatro. A primeira produção teatral da Cia. Novo Teatro foi a montagem de Mãe Coragem, em 1960, no Grande Auditório do Teatro Cultura Artística. Pontuo que D’Aversa havia dirigido este espetáculo em Buenos Aires, em 1956, com o Teatro Popular Judeu YFT (Yiddish Folks Theater). Visto que D´Aversa possuía conhecimentos a respeito das teorias de Brecht, percebidos na montagem anterior, isto é, a dramaturgia brechtiana detinha um tom político; sendo assim, ele, em comum acordo com Ruth Escobar, decidiram remontar essa obra. Além disso, encenar Brecht no Brasil implicava adotar novos procedimentos no trabalho de ator que, consequentemente, iriam refletir na concepção da cenografia, na iluminação e na indumentária, elementos que renovariam a cena paulistana. Esses pontos podem ser considerados decisivos para que Ruth Escobar produzisse Mãe Coragem. No entanto, cabe destacar outro motivo: tanto o Teatro de Arena quanto o Teatro Oficina, companhias teatrais da época que tinham uma trajetória sólida em São Paulo, somente foram encenar obras de Brecht posteriormente à Mãe Coragem de D’Aversa. Os Fuzis da Mãe Carrar, em 1962 e Galileu Galilei, em 1968, respectivamente. Contudo, Ruth Escobar não foi a primeira a encenar Brecht no Brasil. Consta na historiografia do teatro brasileiro que houve produções anteriores: a primeira montagem de um texto brechtniano, no Brasil, ocorreu em 1945 com Terror e Miséria do III Reich150. Posteriormente, em 1951, a Escola de Arte Dramática (EAD) montou A Exceção e a Regra, e o Teatro Maria Della Costa, em 1958, encenou A Alma Boa de Setsuan. A dramaturgia de Mãe Coragem: uma crônica teatralizada da Guerra dos Trinta 151 Anos foi baseada no confronto histórico ocorrido entre 1618-1648 na Europa Central, no Sacro Império Romano-Germânico. Neste conflito, ocorreram disputas de territórios e dinastias entre protestantes e a igreja católica, no período em que uma grande crise econômica abatia o continente europeu. Segundo Antônio Jackson de Souza Brandão [...] a Guerra dos Trinta Anos, além de ter sido uma guerra religiosa e europeia, foi uma variante político-militar de uma crise geral que se abateu sobre o Velho Continente no século XVII. Constitui-se, dessa maneira, em uma forma extrema rumo à mudança sociopolítica da Alemanha e da Europa em direção à modernidade, mesmo que esse impulso modernizador tenha trazido com ele tamanho horror 152. No texto dramatúrgico, escrito entre 1938/1939, Brecht delimitou o espaço-tempo entre 1624-1636 e o localizou na Suécia, Polônia e Alemanha, principais países envolvidos no conflito. Mãe Coragem conta a história de Anna Fierling, uma comerciante ambulante, vendedora de roupas e bebidas. Ela deu à luz três filhos: Eilif, Sceizerkas e Katrin, todos mortos, ao longo da caminhada, por soldados e por negligência de Anna ao priorizar seu comércio ao De acordo com a nota publicada em 16 de julho de 1960, na Folha de São Paulo, diz que “Rosa Maria Murtinho foi contratada pelo Novo Teatro para desempenhar o papel de “Joan, Hellford” em O Tempo e os Conways, de J. B. Priestley”. BELLA, Folha de São Paulo, 16 jul. 1960, p. 4. 150 De acordo com BADER, 1987, p. 283, com direção de Walter Casamayer e Henrique Bertelli, no Salão de Festas da APISP, em São Paulo. Esse mesmo autor afirmou que o espetáculo A Exceção e a Regra, da EAD, foi apresentado em 1954, ao contrário de Armando Sérgio Silva, que datou a encenação, em 1951. 151 BRANDÃO, 2012, p. 21. 152 BRANDÃO, 2012, p. 21 149 invés de sua prole. Segundo Martin Esslin, “Brecht insistia em que a própria Mãe Coragem era um personagem negativo, um negocista que sacrifica os filhos em favor de seu instinto comercial, incapaz de aprender com a experiência”153. Se a teoria brechtiniana tem como princípio o diálogo com o contexto na qual está inserida, o ponto de encontro dessa discussão pode estar centrado nas relações estabelecidas entre países estrangeiros. Em o Pequeno órganon para o teatro, o dramaturgo alemão, no tópico trinta e cinco, diz que: “necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as ideias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam, mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto)”154. A Mãe Coragem tem como discussão central a movimentação da economia em função da existência de uma guerra, na qual a mãe lança mão dos próprios filhos por priorizar seu comércio; esse mote dialogava com o contexto brasileiro. As relações econômicas estabelecidas pelo governo brasileiro com o comércio norte-americano colocavam a nação à mercê dos mandos e desmandos dos EUA. O país, que estava em fase de crescimento e industrialização, dependia diretamente das imposições norte-americanas para dar melhores condições de vida aos cidadãos brasileiros. No fim de 1950, o Brasil detinha uma relação de dependência dos recursos financeiros dos EUA; “o governo Kubitschek [no início de 1958], aguardava resposta para um pedido de empréstimo externo no valor de 200 milhões de dólares”155. Para isso, o FMI, para autorizar o empréstimo, impôs duras condições: “[a] inflação deveria ficar em 6% ao ano, no máximo; adotar uma taxa única de câmbio, abolir os incentivos aos agricultores e restringir salários”156. Apesar dos esforços realizados por JK, não foi viável cumpri-las, “pois a estabilização pretendida fatalmente comprometeria os planos do governo e retardaria a construção de Brasília”157. Com esse impasse, o presidente decidiu romper relações com o FMI em junho de 1959, sendo amplamente apoiado pela população brasileira. No entanto, os EUA haviam perdido a batalha para a Revolução Cubana em 01 de janeiro de 1959, ação liderada pela dupla Fidel Castro e Che Guevara, com ênfase no antiamericanismo e, consequentemente, no anticapitalismo. Esse fator foi decisivo para que os EUA revissem sua posição em relação às Américas e buscassem parcerias com países da América Latina para combater as ameaças comunistas. No fim de seu governo, o presidente norte-americano Dwight Eisenhower visitou o Brasil, em fevereiro de 1960, e convenceu JK a retomar os laços com o FMI, rompidos em 1959. Pouco depois, em maio de 1960, “o FMI concedeu um vultoso empréstimo ao Brasil”158. Outro ponto a ser destacado nessa relação estadunidense-brasileira, foi o da entrada de uma quantia significativa de capital estrangeiro no país, “entre 1955 e 1963, o valor dos investimentos diretos estrangeiros totalizou US$ 497,7 milhões. A sua maior concentração ocorreu entre 1957 e 1960, com 73,0% do total do período (US$ 363,1 milhões), explicado essencialmente pelo investimento direto no setor automobilístico, no contexto da implantação 153 ESSLIN, 1979, p. 303. BRECHT, 2005, p. 142. 155 ROMPIMENTO, CPDOC/FGV, 2012. 156 ROMPIMENTO, CPDOC/FGV, 2012. 157 ROMPIMENTO, CPDOC/FGV, 2012. 158 ROMPIMENTO, CPDOC/FGV, 2012. 154 desta indústria no Brasil, uma das metas do plano governamental de JK”159, afirmam as pesquisadoras Hildete Melo e Ana Caputo. Visto que os investimentos do governo federal estavam centrados em áreas prioritárias ao crescimento do país, estando o setor cultural em segundo plano, os artistas sentiram o reflexo desse posicionamento. A produtora, no texto de abertura do programa do espetáculo A Mãe Coragem, declarou que: Convictamente conseguimos vencer através de dificuldades e sacrifícios indescritíveis as despesas da montagem. [...] Acreditamos que o governo federal e estadual, nos dará todo o auxílio proporcional a um empreendimento como este – o de fazer teatro de bons textos. Um país sem cultura é um país sem história, um povo sem arte é uma (sic) povo sem esperança. A coragem de Mãe Coragem, custou-nos o que nunca poderia ter custado: além de um milhão e quinhentos mil cruzeiros, muita “cara dura”. Esperamos recuperar os dois. Não conseguindo apoio financeiro junto aos órgãos governamentais para produzir Mãe Coragem, Ruth Escobar teve de angariar verba com as empresas privadas. Com determinação e “cara dura”, ela bateu de porta em porta, solicitando recursos financeiros para concretizar seu projeto teatral. Esta atitude de Ruth Escobar pode ser constatada no programa desse espetáculo que contém a divulgação de vinte e quatro empresas que o apoiaram, destacando-se: Air France, VARIG, Casas Pernambucanas entre outras. Evidentemente, a inserção da logomarca no programa do espetáculo não revela a negociação entre a produtora e as empresas, mas indica a articulação entre a produtora e as empresas. Apesar das dificuldades financeiras enfrentadas por Ruth, o espetáculo foi “montado com todos os recursos exigidos por D’Aversa e com todas as dificuldades causadas por minha inexperiência de empresária, produtora e mulher de teatro”160, recordou a empresária. Esta primeira montagem de Ruth Escobar pode ser considerada o embrião de sua postura política diante da realidade que a cercava e que também afligia a população brasileira. Ao longo de sua trajetória como produtora teatral, ela sempre esteve em sintonia com o momento histórico, principalmente, no confronto das ideias estabelecidas ou ações impositivas que afetavam a sociedade. Ao longo de sua carreira, a produtora construiu um discurso permanente e contínuo de “revolução” social pelo teatro. Neste sentido, pode dizer-se que o seu envolvimento com D’Aversa foi o início de uma trajetória em que teatro e política estariam intrinsicamente conectados. Almas em Tumulto161, texto de Michael Clayton Hutton foi a segunda montagem da Cia. Novo Teatro, em 1960, com direção de Alberto D’Aversa162. Observo que este espetáculo, até o momento, não consta em nenhuma historiografia de Ruth Escobar, seja em sua autobiografia, seja no livro Teatro Ruth Escobar: 20 anos de resistência, de autoria de Rofran Fernandes. Destaco, também, que essa produção não consta em qualquer outra publicação virtual ou 159 CAPUTO, 2009. ESCOBAR, 1987, p. 106, 161 Texto não localizado. Sabe-se que a mesma obra também foi veiculada na Rádio Tupi como rádioteatro, com Hamilton Fernandes e Márcia Real nos papéis principais. [Nota]. Folha de São Paulo, 23 mar. 1961, p. 2. 162 Almas em Tumulto tinha no elenco Lélia Abramo (Maggie), Ivanilde Alves (Anna), Rute Escobar (Flo), Nina Neri (Eddith), Alvim Barbosa (Cliff - também foi tradutor da obra), Helio Souza (John), Telcy Perez (Eddie) e Odavias Petti. Os cenários foram concebidos pelo renomado pintor Aldo Bonadei, artista plástico que idealizou os figurinos de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues e Casamento Suspeitoso, de Ariano Suassuna, ambas encenadas pela Companhia Nídia Lícia - Sérgio Cardoso, em 1958. 160 impressa que traga a listagem dos espetáculos produzidos por Ruth Escobar. Essa constatação é estendida à biografia de D’Aversa, na qual não há nenhuma informação a respeito dessa encenação. No decorrer da pesquisa para esta tese, foram encontradas reportagens em que foi confirmada a presença de Ruth Escobar nessa produção. A montagem estreou entre os meses de setembro e outubro de 1960, no Teatro Cultura Artística em São Paulo. Logo após, foi realizada uma temporada de quarenta dias fora de São Paulo: nas cidades de Porto Alegre, Caxias e Pelotas no Rio Grande do Sul e, em Curitiba, no Paraná. De acordo com o colunista Ivan de Barros Bella, da Folha de São Paulo163, o espetáculo na capital gaúcha164 “obteve grande êxito; porém continua inédita ao público de São Paulo”165. Nessa mesma temporada, em Porto Alegre, a Cia. Novo Teatro também apresentou Mãe Coragem e, segundo o jornalista, Fora da Barra166, obra de autoria do dramaturgo britânico Sutton Vane, da qual não foi possível obter outras informações. Além do Rio Grande do Sul, o espetáculo Almas em Tumulto circulou por outras localidades, conforme nota publicada no jornal Folha de São Paulo: O Novo Teatro que se apresentou recentemente em Santos, a convite da Comissão Municipal de Cultura da cidade praiana, foi convidado a realizar uma temporada de 10 dias em Poços de Caldas. Na cidade mineira será apresentada “Almas em Tumulto”, de Michael C. Hutton sob direção de D’Aversa e outra peça não selecionada pela direção artística do Novo Teatro167. Ainda que se tenham poucas informações sobre o espetáculo Almas em Tumulo, destaco o empenho da produtora Ruth Escobar, principalmente, no que se refere à circulação do trabalho por diferentes estados brasileiros. Com tradução de Roberto Schwarz, a terceira produção teatral da Cia. Novo Teatro foi Males da Juventude168, com estreia em 1961, no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo. Escrita pelo austríaco Ferdinand Bruckner, em 1929, novamente com direção de D’Aversa169. Divido em três atos, o texto Males da Juventude discute temas relacionados às drogas, amores, traições e, especialmente, questões ligadas ao homossexualismo, mais precisamente sobre o lesbianismo e pornografia170. Escrever esse texto no fim da década de 1920, na Áustria, assim como encená-lo nos anos de 1960 no Brasil, tinha como objetivo a inserção desses temas na discussão em suas respectivas sociedades. Considerados temas tabus, que afetavam a moral e os bons costumes, a censura brasileira cortou as cenas que continham envolvimento entre duas mulheres ou que aludissem ao contato físico entre elas. No processo da DDP 5.035, o censor paulista Mário Russomano fez inúmeros estragos no texto, quase inviabilizando a compreensão de certas passagens. 163 BELLA, Folha de São Paulo, 20 out. 1960, p. 5. Dias antes da estreia na capital gaúcha, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma pequena nota colocando que “[...] “Almas em Tumulto”, peça com a qual o Novo Teatro, de São Paulo, inicia, na terça-feira, sua temporada no Teatro São Pedro, de Porto Alegre”. O NOVO, O Estado de São Paulo, 23 out. 1960, p. 13. 165 BELLA, Folha de São Paulo, 31 dez. 1960, p. 4. 166 No AMS existem solicitações de pedido de censura do texto Fora da Barra (Processo DDP 1.273) em 22/11/1944, 04/11/1960, 20/08/1962, 14/09/1962 e 03/08/1966, mas todas as traduções são de Evaristo Ribeiro. Assim como Almas em Tumulto, o espetáculo Fora da Barra não consta na lista de espetáculos realizados por D’Aversa. Todavia, ao longo dessa pesquisa não foi encontrada informações a respeito dessa encenação. 167 BELLA, Folha de São Paulo, 31 dez. 1960, p. 4. 168 No original Krankheit der Jugend que também podem ser traduzidos por Doença de Juventude. 169 Tendo como personagens Marie, Lucy, Freder, Desiree, Petrel, Irene e Alt, que contam a história que se passa numa pensão. Interpretados, respectivamente, por Ivanilde Alves, Gilda Ney, Felipe Wagner, Ruth Escobar, Alvim Barbosa, Assunta Perez e Odavlas Petti. 170 Ver MARCELINO, 2006. 164 Abaixo, reproduzo alguns trechos das falas das personagens que foram censurados integralmente: Desy – Isto é coisa que só nós mulheres sabemos. Marion! Eu te chamo como se você fosse minha irmã Marion. Foram as horas mais felizes: quando a governanta dava boa noite, apagava a luz e ia embora. Eu logo engatinhava para a cama de Marion, e lá ficávamos aconchegadas, nós nos beijávamos, sentíamos o sabor do nosso corpo e sabíamos o que era. Era o calor da vida. [...] Desy – Menina como você, por que também estou apaixonada. Estou apaixonada por você. Marie – Me larga Desy – Somente nós mulheres é que podemos nos ajudar. Marie – Largue. Desy – Eu não vou largar, não largo, só se você prometer. [...] Freder: não na cama, meu anjo. [...] Desy – Se não fosse eu não teria aguentado por tanto tempo. Ele te suga o sangue por debaixo da pele como uma fera. Isto não é mais volúpia, é delírio, dor, é uma loucura bestial. Sã os poucos momentos de nossa vida em que superamos completamente o pobreza da criatura, é quando nosso corpo subsiste apenas como cadáver. [...] Desy – Venha, vou secar tuas lágrimas com beijos. Marie – Sim, beije-me. Desy – Minha pobre pequena. Marie – Ele não me bateu. Beije-me mais. Desy – Agora nós vamos deitar em minha cama bem juntinhas, vamos ficar aquecidas. Marie – Bem juntinhas. Desy – Novamente aquecidas, como na infância. Eu vou contar muitas coisas, Marion. Como pequenas irmãs antes de adormecer. Marie – como duas pequenas irmãs, antes de adormecer, quando a luz já está apagada. Você é minha irmã. Desy – Você é minha. [...] Desy – Durante quanto tempo deve-se experimentar? Ela não serve. Não preciso dormir todas as noites com ela para saber descobrir isto. [...] Desy – Na primeira noite, quanto te carreguei daqui do chão para minha cama, eu sentia verdadeiramente que você era minha. Mas não era eu, era a dor que te fazia assim aberta. Marie – Fique quieta. Desy – Ela tem vergonha de você. Alt não é homem. Alt é uma mulher acidentada, você tirar a roupa na frente dele sem susto. Já na noite seguinte achei que éramos ridículas. Marie – Fique quieta por favor. Desy – Tive muita paciência com você. Com um homem não teria tanta. Marie – Lamento não ter um pomo de adão mais desenvolvido. [...] Desy – Não tenha medo. Existem homens que gostam de duas de uma vez. [...] Desy – Deixe passar. Não vou passar a noite com você outra vez. Marie – Dormimos separadas. Faço minha cama aqui. Desy – Você me entendia. Você me enoja. Marie – Foi você quem quis. Desy – Eu quero coisa desconhecida, os homens mais sujos. Também quero um boxeador. Eu quero a rua. Você acaso está com ciúmes? Marie – Talvez eu esteja com ciúme. Desy – Você que perdeu o juízo. Marie – Talvez eu tenha perdido o juízo. Desy – Marido. Marie – Desy. Selvagem. Desy – Quero a chave. Marie – Não. Desy – Nunca deixei que me roubassem a liberdade. Homem que tranca mulher está comprando cornos. Marie – Ninguém te impede de me por chifres. Eu não imaginava que a pequena ficasse tão zangada. (DESY SAI DO SEU QUARTO. MARIE SENTA ESGOTADA E DEPOIS VAI PARA O QUARTO DE DESY). Desy – (FORA) Deixe-me sozinha. Marie – Não vou te fazer nada. Desy – Devolva minha chave. Marie – (VOLTA COM TRAVESSEIROS E IMPROVISA UMA CAMA) Chamo atenção para a série de marcações no texto (ponto de interrogação, demarcações a caneta), as quais não contêm o carimbo, mas indicam que podem ser futuros cortes. Em despacho de Russomano a José Salles, censor responsável, ele ressaltou que os “cortes eventualmente a serem estabelecidos: pags – 2, 3, 4, 22, 23, 38, 40, 43, 46, 47, 52 e 53 – assinalados a tinta”171. Apesar da quantidade de cortes realizados e de vários apontamentos, o censor optou por uma censura parcial do texto, isto é, permitia à companhia aceitar a autorização para encená-la após a sua inspeção. De acordo com o censor, “após a leitura teórica do texto imediatamente convocamos um pré-ensaio [...] concluindo-se, então, pela liberação do espetáculo, com impropriedade para menores até 18 anos de idade”172. Apesar de o certificado da censura ser liberado para Males da Juventude, Mário Russomano realizou visitas nas apresentações dos espetáculos após a estreia, a fim de conferir se suas observações haviam sido acatadas. No processo de censura, ele registrou que: “Porém, não obstante a Censura competente ter tomada essa necessária providência salutar a higiene mental dos espectadores, verificou este censor, que no decorrer dos primeiros espetáculos, marcações e falas proibidas foram usadas e encenadas, contrariando, assim, o que previamente ficou determinado”173. Mário Russomano considerava que sua função de censor também tinha uma “preocupação médica preventiva” ou até mesmo como “saneador mental” da população. Após advertir a Cia. Novo Teatro pelo não cumprimento do acordado na censura prévia e no ensaio inspecionado, ele enviou um aviso ao censor chefe da DDP, comunicando o ocorrido. Aproveitou a ocasião para anexar um anúncio de jornal174 do espetáculo, que também infringia e/ou constrangia a sociedade paulistana: uma imagem de divulgação em que apareciam duas mulheres se beijando. A produção do espetáculo optou por fazer essa divulgação de Males da Juventude, com o objetivo de provocar uma fricção de pensamentos com a sociedade paulistana. Na imagem, aparecem Ivanilde Alves e Ruth Escobar numa cena do espetáculo em que ambas se beijam. Fazer uso de uma fotografia dessa natureza para divulgar o espetáculo no início dos anos de 1960, por um lado, atraía aqueles que defendiam os direitos humanos e a liberdade de expressão, curiosos e artistas que buscavam uma renovação da cena teatral; por outro, poderia ser 171 Processo DDP 5.035. AMS. Processo DDP 5.035. AMS. 173 Processo DDP 5.035. AMS. 174 Documento anexado no processo DDP 5.035. Não consta a bibliografia completa, mas apenas o anúncio publicado em O Estado de São Paulo. 172 repudiado pela sociedade paulista que estava imersa num discurso censório alinhavado com os princípios religiosos da Igreja Católica, que pregava insistentemente a moral e os bons costumes. A ousadia das atrizes em permitirem a publicação da imagem em prol da causa lésbica175, também, deve ser levada em consideração, visto que poderiam ser alvo de perseguição. O fato de a divulgação ser veiculada em jornal de grande circulação em São Paulo e ter “conteúdo inapropriado” fez o Serviço de Fiscalização e Multa da DDP intimar Henrique Bertelli para prestar esclarecimentos. O empresário do Teatro Maria Della Costa assinou um Termo de Advertência e Compromisso em que assumia a responsabilidade de “não mais exibir propaganda ou anúncios pela imprensa sem que estejam devidamente censurados por esta Divisão de Diversões Públicas”176. Além de enfrentar os órgãos censórios, Ruth Escobar também teve de lidar com as críticas ao espetáculo Males da Juventude. Anexada ao processo de censura do DOPS encontrase uma matéria jornalística, na qual um crítico não identificado fez uma série de apontamentos negativos a respeito do espetáculo: Estreou ontem no Teatro Maria Della Costa a peça de Ferdinand Bruckner “Males da Juventude”. Um espetáculo mau. Um dos piores, mesmo, que temos visto nestes últimos tempos. Foi infeliz a escolha da peça (um elenco que está iniciando não escolhe uma peça perigosa como essa); foi infeliz a direção (era preciso atenuar a parte erótica, a parte delicada da peça, e não acentuá-la). Foi fraca a interpretação. Em primeiro lugar, falta de unidade da pronuncia: a dos atores paulistas, o sotaque carioca pronunciado de Gilda Nery e o sotaque português pronunciadíssimo de Ruth Escobar. Em segundo lugar, faltou homogeneidade na interpretação: Assunta Perez (tem boa voz, boa mascara, personalidade e segurança em cena) e Felipe Wagner, profissional competente que soube inclusive criar um andar, um tipo especial para seu personagem, estão muitos pontos acima de todos os outros. Ivanilde Alves tem boas qualidade, mas se perdeu numa exteriorização demasiada. Seus berros, as crises histéricas de seu personagem não chegaram a comover o público. Gilda Nery, melhor na primeira parte, como a empregadinha tímida. Ruth Escobar fala muito depressa, engole palavras, e exagerou para o romantismo algumas de suas cenas. Alvim Barbosa não tem o tipo para o papel, ficou deslocado, falso, mais falso ainda do que o cabelo oxigenado que lhe arranjaram. Odylas Petti, numa ponta, conseguiu ser sóbrio, e esteve alguns pontos acima dos últimos citados. A direção de Alberto D’Aversa, já dissemos, foi bastante infeliz. Preferiu enfrentar as coisas perigosas da peça e aconteceu que não teve elemento humano capaz de “segurar” as cenas. Resultado: fracasso. Não é possível levar a sério alguma coisa quando ela não é nada bem feita. Acaba descambando para o ridículo. Durante alguns dos momentos mais sérios, mais graves da peça, ouviram-se rizinhos abafados. Outra coisa: escaparam ao encenador pequenas coisas que não poderiam ter escapado a um encenador experiente como D’Aversa: como é que foi deixar “Marie”, depois de limpar o chão com um pano, usá-lo já imundo, para tirar o pó de uma cadeira? Aconteceu que o público riu, e só podia rir, mesmo... Agora uma rápida e última palavra sobre o texto de Bruchner: exposição das desgraças e mazelas e de vícios de uma certa parte da juventude, que, felizmente, é exceção. 175 No Brasil, a passagem dos anos 1960 para a década seguinte é marcada pelo endurecimento da ditadura militar. Um movimento estudantil questionador começava a ganhar visibilidade, mas seria duramente reprimido pelo regime durante aproximadamente duas décadas. Enquanto isso, grupos clandestinos de esquerda combatiam a ditadura. Em meados dos anos 1970, ganha visibilidade o movimento feminista e, na segunda metade da década, surgem as primeiras organizações do movimento negro contemporâneo, como o Movimento Negro Unificado, e do movimento homossexual, como o Somos - Grupo de Afirmação Homossexual, de São Paulo. FACHINNI, Regina. [entre 1990 e 2010]. 176 Processo DDP 5.035. AMS. Meia dúzia de neuróticos, psicopatas, jovens histéricas, que o autor reúne numa pensão e com os quais constrói um drama. Drama que talvez acabe nauseando o público. E como há gosto para tudo, é possível mesmo que exista gente que goste muito da peça de Bruchner.177 Com uma posição severa em relação à encenação Males da Juventude, o crítico centrou sua análise na atuação da expressão vocal dos atores e em pequenos detalhes (o pano). Outro ponto a ser destacado nessa crítica foi o da ausência de uma observação sobre o tom politizado de uma companhia teatral, que buscava dialogar (ou até mesmo incitar uma discussão) sobre esses temas junto à sociedade paulistana. Cabe destacar que o crítico deixou de lado a trama central que envolvia duas mulheres, para dar ênfase à atuação do elenco – que quase sempre não lhe agradava – a fim de chamar a atenção do leitor, por acreditar que realmente o espetáculo era um “fracasso”, ao menos a seu ver. Chamo atenção, principalmente, para o trecho final, no qual as palavras do crítico estão alinhadas com o pensamento dos censores ao afirmar que psicopatas (que pode ser entendido como o elenco da peça) possam fazer de temas não convenientes, um espetáculo. Além disso, o texto também traz um discurso indireto de “higienização mental” ao assegurar que são poucos os jovens que são “perdidos”, sem rumo e que optaram por uma vida bandoleira ou por serem as “ovelhas negras” da família. Assim, também se pode inferir que a crítica foi anexada ao processo do DOPS por entenderem, os censores, que o mesmo reforçava uma posição para revisar o processo após as denúncias do Russomano. Com uma visão oposta a essa crítica, Décio de Almeida Prado afirmou que “não nos lembramos em nossos palcos de peça mais direta e franca do que esta178”. Apesar das poucas palavras registradas pelo crítico, nota-se que há uma diferença de posicionamento em relação ao espetáculo; Prado trouxe à tona uma dimensão mais política do trabalho ao afirmar que a encenação era enfática e pontual, sem rodeios em sua mensagem central. A próxima produção da Cia. Novo Teatro foi Antígone América179, dramaturgia de Carlos Henrique Escobar, marido de Ruth, que estreou em abril de 1962 no Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB). O texto escrito por Sófocles, por volta de 442 a.C., tem como personagem central Antígone, nome cujo significado representa sua função na peça: aquela que se opõe. Carlos Henrique Escobar deu ao texto grego um contexto latino-americano e o concebeu de acordo com uma perspectiva marxista. Segundo o dramaturgo, “Antígone América” é uma versão contemporânea da “Antígone” de Sófocles [...] É preciso notar que Creon nesta reescrição brasileira, possui dois filhos: Hemon (habitual na lenda) e Megaro, chefe de suas tropas, perenemente ausente em tôda a peça. A luta do povo é infatigável e contínua. Antígone, desejando enterrar Polinices, faz sua vontade de todo o povo subelevado. A transposição do texto de Antígone de Sófocles a um conflito político, trouxe inúmeras dificuldades e implicou numa distenção [sic] maior do seu tamanho habitual180. 177 Crítica anexada ao processo DDP 5.035. AMS. Sem referência. Esta declaração está na parte superior da imagem em que aparece as atrizes Ivanilde Alves e Ruth Escobar se beijando. A mesma se encontra numa divulgação do espetáculo. Ver VAMOS ao teatro, O Estado de São Paulo, 01 ago. 1961, p. 42. 179 Em nota publicada no jornal Folha de São de Paulo, de 30 de maio de 1962, p. 2 consta que foi “distribuída com chancela da Editora Decisão, a peça de Carlos Henrique Escobar “Antígone América””. O texto na íntegra pode ser consultado na publicação ESCOBAR, 1962. 180 Artigo para o programa do espetáculo Antígone América, 1960. 178 Escobar pretendia trazer para o debate a agitação social brasileira dos anos de 1962, através de sua peça. E foi neste aspecto que o texto foi duramente criticado. De acordo com a reportagem publicada no Estado de São Paulo, “O defeito fundamental de “Antígone América” é sua previsibilidade [...] Basta substituir Creon por um ditador sul-americano, Tirésias por um sacerdote pronto a servir os interesses das classes conservadoras, a oposição entre a moral e o Estado pela luta de classes, fazer com que Antígone haja lido Engels e o exército de Polynice seja constituído por operários e camponeses – e todo o restante da peça decorre com a inevitabilidade das equações matemáticas”181. O texto de Carlos Henrique Escobar passou, sem maiores problemas, pela censura prévia paulista. De acordo com o processo n. 5.202 da DDP, com o parecer emitido pelo censor responsável Mário Russomano, Antígone América182 teve restrições, conforme outorgou e explicou o diretor responsável pelo órgão J. Pereira: “Houve, na peça “Antígone-América” apenas três cortes: às páginas 8 e 9, de termo chulo, para não dizer sujo e que cumpre à Censura evitar; e à página 31, versos de uma canção evidentemente subversiva, pregadores da revolução vermelha, em total desacordo com o artigo 188, do Capítulo XV (Censura Teatral e Cinematográfica), do Regulamento Policial do Estado de São Paulo”183. No dia seguinte, em 03 de abril, Russomano esteve presente no ensaio geral para a censura de Antígone América, realizado das 23 até às 2h30. Ele afirmou em seu relatório que “mesmo sem qualquer incidente de ordem pessoal ou funcional, cabendo-nos, como sempre acontece nessas ocasiões, ampla confraternização e entendimentos entre Censura e Artistas, resolvendo-se no local todas as pendências sôbre o assunto, geralmente em favor dos Artistas, ocasião em que recebemos desnecessários agradecimentos pela nossa atuação imparcial”184. Nessas ocasiões, era comum os artistas fazerem bajulações aos censores enquanto assistiam ao ensaio específico para a censura. Era uma forma de amenizar a atuação censória, pois enaltecer o censor e, ao mesmo tempo, distraí-lo, eram recursos utilizados pelas companhias na tentativa de amenizar o efeito censório sobre o trabalho. Destaque-se, no parecer emitido por Russomano, a sua postura “fraterna” com a classe artística ao adotar posição imparcial na inspeção censória. Sua declaração evidencia que o peso da lei estava acima de qualquer relação pessoal que pudesse estabelecer com o espetáculo ou com aqueles que trabalhavam na construção da montagem cênica. Sua atuação se dava em torno de cumprir a legislação em vigor para zelar pela moral e bons costumes. Ele (e outros censores) se posicionava como defensor da pátria e considerava a censura como uma função primordial ao bem da sociedade. A visita do censor ao ensaio geral do espetáculo, antes da estreia, estava regulamentada numa lei de 1924, que estabelecia: CAPITULO XVII Dos ensaios Artigo 207. - Os empresarios theatraes deverão communicar á Censura com a antecedencia, no minimo, de 48 horas, o logar dia e hora em que se realisar o eusaio geral da peça submettida á Censura. “ANTÍGONE”, O Estado de São Paulo, 06 abr. 1962, p. 26. Ruth Escobar, em entrevista concedida a Aramis Millarch, recordou que numa das cenas do espetáculo, Abujanra queria armas apontando para o público, “eu consegui três metralhadoras emprestadas na Polícia Militar, mas como era um material muito perigoso, vinha um regimento com quatro guardinhas, traziam as metralhadoras, assistiam ao espetáculo e levavam de volta”. 183 Processo DDP 5.202. AMS. 184 Processo DDP 5.202. AMS. 181 182 § 1.º - Nos ensaios geraes os artistas deverão usar da mesma caracterisação e guarda roupa com que vão se exhihir nos espectaculos publicos, apresentando-se nos mesmos scenarios escolhidos para estes espectaculos. § 2.º - O director de scena, artistas, coristas e demais figurantes são obrigados a cumprir as observações do Censor em tudo quanto se referir á caracterisação, gesticulação, guarda-roupa, marcação e scenarios. § 3.º - Os ensaios geraes deverão ser assistidos pelo funccionario que censurar a peça185. Pela lei, ficava claro que a apresentação deveria ser completa, sem supressões. Além disso, os censores eram orientados a realizar uma análise da marcação e dos gestos dos atores. No entanto, essas características do fazer teatral poderiam ser facilmente dribladas, pois este é um trabalho de domínio do ator, (re) compor a movimentação e gesticulação de sua personagem durante o ato da representação.186 Apesar de o censor não apontar qualquer irregularidade na encenação, o corte nas músicas do segundo ato levaram Antônio Abujamra, diretor do espetáculo, e Ruth Escobar a um intenso embate com a censura, no desejo de reverter os efeitos dos cortes no espetáculo. O jornal Diário da Noite, de 29 de março de 1962187, publicou a matéria Censura cortou música de “Antígone América”. A respeito deste corte, Antônio Abujamra, em entrevista, disse que o “texto e encenação obedecem a uma ideologia comum”188. Isto é, o conjunto da obra de Antígone América possuía um discurso político ideológico que permeava toda a dramaturgia; assim, havia incompreensão por parte dos censores, segundo Abujamra, na forma de avaliar o texto de Carlos Henrique Escobar. Transcrevo na íntegra a canção cortada pela censura: Se as fábricas abandonas é para que amanhã sejam nossas Como a terra é de quem a trabalha e a água de quem tem sede. Esquerda, esquerda, bandeiras vermelhas. Operários, camponeses e soldados e os que nada fazem sinão (sic) aguardar. Entendei, os homens não podem esperar Procurai suas bombas, procurai seus livros Nas praças mais central nos encontraremos Esquerda, esquerda, bandeiras vermelhas. Nossas casas foram queimadas, nossas foices passeiam entre as armas. Ei-los nas montanhas gritando Esquerda, esquerda, bandeiras vermelhas. 185 SÃO PAULO, 1927. Com a Ditadura Militar implantada a partir de 1964, a censura foi se tornando mais especializada. E para melhor entender a arte que deviam censurar começaram a ser capacitados por profissionais da área do teatro na tentativa de cometerem menos erros e conhecerem mais a respeito dessa arte. De acordo com a pesquisadora Miliandre Garcia, a Academia Nacional de Polícia (ANP) organizou o primeiro curso de formação em 1966, ministrado pelo coronel Oswaldo Ferraro de Carvalho, pelo técnico de censura Coriolano de Loyola Cabral Fagundes e pela atriz Sylvia Orthof e, em 1967, por Gustavo Dória, Henrique Oscar e Bárbara Heliodora. Ver: GARCIA, 2008. 187 Destaco que o jornal Diário da Noite obteve a informação da censura, em 29 de março, enquanto que o parecer emitido pelo censor deu-se em 02 de abril. Sendo assim, pode-se inferir algumas possibilidades da antecipação da notícia: vazamento de informação, privilégio de informação à Ruth Escobar ou o registro do DDP foi efetuado dias após a análise do censor. 188 CENSURA, Diário da Noite, 29 mar. 1962. 186 Nossos noivos a nossa maneira de amar e também o nosso trabalho roubado. Não vacilaremos frente aos inimigos Compreenda companheira a luta revolucionária Ouvi-nos e ajudai-nos na frente Esquerda, esquerda, bandeiras vermelhas189. A canção proibida era um convite à revolução comunista no país, convocava os operários, camponeses e soldados a se unirem contra o capitalismo, numa ação orientada à esquerda, sob o símbolo da bandeira vermelha. Para melhor entender esse momento histórico do Brasil, e o porquê da censura tão atuante num momento democrático do país, devemos ter sempre em mente a questão da Guerra Fria que dividiu o mundo em dois grandes blocos, próEstados Unidos ou pró-União Soviética, a favor do capitalismo ou a favor do comunismo respectivamente. E também não se pode esquecer de que Cuba estava sob a proteção e tutela da União Soviética, o que para os Estados Unidos era uma ameaça, pois Cuba é localizada no que os norte-americanos consideram seu “quintal” de dominação, constituído pela América Central e a América Latina. Com a posse de Jânio Quadros à Presidência da República, em 31 de janeiro de 1961, o Brasil se dividiu de modo mais intenso entre os dois lados da esfera política e econômica da época. Em seu curto governo, ele tentou mostrar independência em relação aos EUA e a URSS. E o demonstrou, por exemplo, numa atabalhoada condecoração do Ministro de Cuba, Ernesto (Che) Guevara, quando de sua visita ao Brasil, em agosto de 1961, com a medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul. E quase o golpe de 1964 se antecipa com a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, quando o vice-presidente se encontrava na China comunista em visita oficial. Os militares e diferentes grupos políticos conservadores viam no João Goulart a possibilidade de alinhamento do país com o comunismo. Impossibilitado de retornar ao país, João Goulart ficou na espera das ações que se desencadeavam no país. O presidente da Câmara assumiu de 25 de agosto a 07 de setembro de 1961, a Presidência da República. As forças em luta se enfrentavam. Um grupo bastante representativo da sociedade civil e também dos militares desenvolveu a “Campanha da Legalidade”. Os militares e os grupos conservadores queriam manter o interino no poder, alijarse a João Goulart na presidência, o qual ampliou sua viagem, fazendo uma visita estratégica aos Estados Unidos. Adiado o golpe, hoje o sabemos, o acordo se tornou possível com a mudança do regime político do país. Implantava-se no Brasil o regime parlamentarista. Com isso, João Goulart retornou ao Brasil e assumiu a presidência em 7 de setembro de 1961. Portanto, entre 1961 e 1962 o país viveu sob o parlamentarismo, tendo como Primeiro-Ministro o deputado mineiro Tancredo Neves. O acordo entre as forças políticas, econômicas e militares que possibilitou essa organização do país não significou o fim dos conflitos políticos e das tensões sociais. Após essa brevíssima contextualização histórica, retorno ao espetáculo e ao veto às canções de Antígone América. No embate entre artistas e a censura, desencadeado por Ruth Escobar, encontra-se explícita essa tensão que cercava o país no todo. Na reportagem do Diário da Noite sobre a censura a esse trabalho, Ruth fez a seguinte declaração complementar à fala de Abujamra: “não vemos motivos para que somente a canção tenha sido cortada uma vez que o caráter ideológico é mostrado em todo o texto da peça e não somente na música, como poderia se presumir [...] de maneira nenhuma poderemos modificar a letra da canção. Estamos nas vésperas da estreia, e não existe nenhuma maneira, mesmo se tivéssemos tempo, para que uma 189 Processo DDP 5.202. AMS. nova letra fosse escrita”190. A produtora tentava mostrar a incoerência das ações censórias. Mas, justamente, este é um dos mecanismos de ação castradora da censura sobre as obras artísticas. A censura busca confundir, não ser clara e com isso deixar os artistas sem entender como dialogar ou se encaminhar junto aos órgãos censórios. Mas, Ruth Escobar não era de se deixar abater por negações em esferas inferiores do poder. E isso se expõe na continuação da matéria, onde o jornalista narra as ações que a produtora estava desenvolvendo para conseguir acabar com a censura ao trabalho: Ruth Escobar desde o dia de ontem, quando recebeu a notícia do corte da canção, vem se movimentando, utilizando-se de vários recursos para tentar dos poderes públicos a liberação da música. No dia de hoje deverá encontrar-se com o sr. Virgílio Lopes da Silva, Secretário da Segurança, em companhia de uma comissão de deputados e intelectuais da Capital, ocasião em que Ruth Escobar tentará mostrar àquela autoridade a importância da canção para o sucesso do espetáculo 191. Ruth não mediu esforços na tentativa de reverter a decisão do parecer emitido pelo censor Russomano. Se fosse preciso ir até as autoridades superiores, a produtora, estrategicamente, angariava pessoas renomadas para defendê-la. Neste sentido, percebe-se que Ruth começa a provocar uma tensão entre os propósitos da classe artística, que desejava liberdade de expressão e a imposição das normas censórias, ao levar uma “comitiva” para convencer o Secretário da Segurança Pública do estado de São Paulo. Ruth começava a impulsionar a criação, ainda que incipiente, de grupos reivindicatórios de direitos. Nota-se, também, pelo relato publicado que num curto período de tempo - menos de três anos, desde a primeira experiência como produtora teatral em São Paulo - Ruth Escobar havia conquistado um espaço de visibilidade em alguns setores públicos, principalmente naqueles que destinavam recursos financeiros e os que cesuravam a produção teatral. A produtora começava a ser uma figura visada pela imprensa paulistana por produzir um discurso contundente que levantava questionamentos na classe artística e população em geral. Apesar dos seus esforços, Ruth não conseguiu a liberação da canção para a cena final do espetáculo Antígone América, mas soube como gerar uma zona de turbulência nos censores. De acordo com as palavras do relatório produzido por Russomano, constata-se que após a averiguação do ensaio geral do espetáculo, repórteres do jornal Última Hora interrogam-no a respeito da censura. Ele fez um relatório192 do conflito da imprensa em embate com o trabalho dos censores: [...] a margem de nosso exemplar comportamento funcional (sem falsa modéstia) e que há mais de vinte anos o representamos nunca, embora é costume certa imprensa nos pegar para “sacos de pancada”, portanto, nunca fomos tão maltratados e ameaçados pelos repórteres que ontem tentaram nos coagir moralmente, mais pela injunção do medo, provocando-nos para que “resolvessemos aquela situação”, qual? Nós ignoramos, como ainda ignoramos, qual situação tínhamos com aquela imprensa! Mas, o jornal “ULTIMA HORA” (pois ficamos sabendo ser tal jornal através de um dos elementos presentes) “exigia” certos esclarecimentos sôbre opinião oficial sôbre a peça, queria declarações da Censura presente a todo custo, momento em que, necessitando usar da palavra esclarecemos que por força da própria legislação em que gira a nossa posição funcional, não podíamos prestar qualquer informação a respeito, 190 CENSURA, Diário da Noite, 29 mar. 1962. CENSURA, Diário da Noite, 29 mar. 1962. 192 Neste relatório, Russomano afirmou que anexou a reportagem na qual os censores foram atacados. Porém, a mesma não se encontrava anexada no processo DDP 5.202. AMS. Esclareço também que, apesar do jornal Última Hora ter um base de dados on line, somente está disponível o mês de junho, do ano de 1962. Não localizei a referida matéria jornalística em outro arquivo. 191 reservando eles jornalistas, o direito de recorrer as nossas autoridades superiores, mesmo que, naquele momento, dispuzessemos de maior bôa vontade possível, consequentemente, fomos taxados de “estreitos”, “covardes”, “fujões”, “bitolados” e outros adjetivos que não nos foi possível anotar devido a densa situação provocada pelos mesmos. Aceitamos a ofensa resignado de qualquer outra nossa atitude seriamos então os únicos que realmente acabariam prejudicados. Valeu a ofensa contra quem exerce função pública, valeu a voz da imprensa intencional e maldosa, valeram as prerrogativas absoluta dos jornalistas e fotógrafos contra a Censura, desta Censura cada vez mais empobrecida pelas incompreensões, pelas sucessivas ornações morais tituladas por “grupelhos”, desta Censura vitima porque nasceu antipática a sua própria sorte. Hoje, aproveitamos o encaminhamento dêste, juntamos recorte do jornal “ULTIMA HORA”, que tenta reproduzir o acontecido, mas que, na verdade, foge a realidade, e se houve tentativa de agressão como menciona, que publique uma de tantas fotos tiradas, para que, então, se ajuíze melhor se houve ou não tamanha insensatez! Quizera, Senhor Diretor, não sermos inocentes veículos desses incidentes desagradáveis, de caráter extra oficial, mormente tratando-se de pessoas absolutamente extranhas a tudo e a todos, mas que na nossa terra são “reizinhos” quando fazem uso da imprensa, da sua espetacular força organizada, baluartes para as suas manhas de puro e evidente interêsse pessoal. Se não fosse não poderíamos melhor justificar a atitude do pessoal que representava o jornal “ULTIMA HORA” que ontem abusou do direito que a Constituição Brasileira outorga para cada cidadão e pelas leis especiais que regulam o dever do Estado através de seus legítimos representantes. Nisso entra o valor incontestável de V.Sa percurssor de uma gestão que se tem caracterizado pela flagrante das diretrizes traçadas para o campo do poder censório, onde as regras estatutárias felismente tem norteada os complexos problemas da Censura nos dificies caminhos da legislação aplicada as chamadas “revoluções sociais” e paralelamente a pertinência as mesmas leis que circunscrevem relativamente o campo moral-social-média, infelismente, tudo isso entendido por poucos193. O censor paulista Mario Russomano iniciou seu relato, expondo sua exemplar ficha funcional e, a seguir, denuncia os maus-tratos que os censores vêm sofrendo por certa imprensa do país e por “grupelhos” que não aceitam a ordem e as leis em vigor. Na sua perspectiva, os censores foram coagidos e ameaçados a transgredir em suas normas legais. E conclui meio que engasgado: “Aceitamos a ofensa resignados [...]”. Ele, a seguir, aponta que esse tipo de imprensa, exemplificada, em seu relatório, pela Última Hora, tem todos os espaços garantidos no país, eles são uma “espetacular força organizada”. Ele percebe essas forças como uma ameaça à sociedade brasileira, alinhando-se às forças conservadoras que estão em embate direto com o governo e ações políticas de Jango Goulart. Como disse antes, qualquer fagulha era motivo para iniciar um incêndio. A partir do ocorrido entre imprensa e censores, a DDP publicou uma nota de esclarecimento: A fim de bem informar o público, a diretoria da Divisão de Diversões Públicas esclarece: Não é verdade conforme noticiaram alguns órgãos de imprensa, que esta Divisão, através de sua Secção de Censura, haja impugnado a representação da peça teatral “Antígone América”, a ser encenada no Teatro de Arte Israelita-Brasileiro. 193 Ipsis litteris do processo DDP 5.202. AMS. O sr. Maria Russomano, censor encarregado do exame da peça, fez apenas duas restrições: corte de suas palavras ofensivas ao decoro público e do prólogo, cuja letra, de pregação ideológica, esbarrava nas restrições impostas pela Constituição Federal. O funcionário cumpriu com o seu dever e a diretoria da DDP, como não poderia ser de outra forma, endossou-lhe a decisão. A peça, assim foi liberada com aquelas duas restrições, fixando-lhe a impropriedade para menores de 18 ano. Contudo, a DDP, conforme dispõe o Art. 189, do Regulamento Policial do Estado, recorrei, ex-ofício de sua decisão ao secretário da Segurança Pública. O processo, entretanto, não chegou a ser encaminhado ao titular da pasta, uma vez que, após o ensaio geral, o empresário da companhia, sr. Cesar Giorgi, requereu a modificação da letra impugnada da canção do prologo, aceitando a decisão da censura194. A necessidade de explicação da DDP é resultante da forte ação desencadeada por Ruth Escobar, e a censura teve de se explicar perante a opinião pública. Isso representou certo enfraquecimento dos órgãos censórios. Mas, ao mesmo tempo, ele referendava o trabalho do censor Mario Russomano junto à sociedade paulista, o que significava a manutenção desse instrumento de vigilância da sociedade autoritária. Apesar de, nesse primeiro embate com a censura paulista, Ruth não conseguir alterar a decisão dos censores, sua atitude demonstrou o poder de confronto com as autoridades. Indignada contra o corte da música, a produtora, juntamente com Abujamra colocou, na cena final da peça, um cartaz que descia do urdimento com a mensagem: Letra Censurada. Apesar do elenco estar proibido de cantar a música, produção e direção adotaram outra forma de contornar o problema: entoaram a canção. A resposta da plateia foi intensa: “O público presente a estreia da peça aplaudiu demoradamente a forma de protesto encontrada pelo diretor”195. Um jornalista do jornal O Estado de São Paulo, também, registrou esse momento: “a última cortina foi saudada pelo público com uma verdadeira ovação, mas ficamos sem saber se pela peça, se por seu conteúdo político, ou se em protesto contra o ato da censura mutilando a canção final (o elenco cantou a melodia, enquanto descia brechtianamente uma tabuleta com os dizeres: Letra Censurada”196. Além do embate com a censura, Ruth Escobar teve de enfrentar outros problemas para concretizar o espetáculo Antígone América. Conforme texto de sua autoria, publicado no programa do espetáculo, ela declarou: Fazemos notar aqui o nosso desagrado pela atitude da Comissão Municipal de Cultura que criando problemas a nossa representação no Teatro Municipal quase nos obrigou a estreiar (sic) essa peça na rua, barrando-nos aquela casa de espetáculos sob razões absurdas. Entre outras, a de que o Municipal deve ser unicamente cedido a grandes companhias estrangeiras. Ratificando as palavras de Flávio Rangel diremos que isto só teria razes (sic) de ser em grandes cidades da Europa, possuidoras de centenas de teatros, mas não aqui no Brasil, onde os teatros quase não existem e os que existem se não são destruídos pelos poderes públicos estão proibidos à nossas companhias (permanecendo vazios) por motivos que se suportamos hoje, saberemos escandalizálo amanhã. Agradecemos a gentileza e maturidade cultural da Casa do Povo cedendo-nos o Teatro de Arte Israelista Brasileiro, nêste momento em que o Novo Teatro não mede esfôrços para concluir a construção de sua sede própria: Teatro Gil Vicente, à rua dos Ingleses197. 194 A CENSURA, O Estado de São Paulo, 05 abr. 1962, p. 13. NO BRASIL, Última Hora, 05 abr. 1962. 196 “ANTIGONE”, O Estado de São Paulo, 06 abr. 1962, p. 26. 197 Ruth Escobar, artigo para o programa do espetáculo Antígone América, 1960. 195 Veicular seu discurso por meio do programa do espetáculo foi a maneira encontrada por Ruth Escobar para protestar contra o descaso da Comissão Municipal de Cultura em priorizar o Teatro Municipal para companhias estrangeiras, edifício construído para atender aos anseios da elite paulistana. Neste sentido, diz-se que a produtora reivindicava mais ação do poder municipal na ampliação do número de casas de espetáculos, assim como para realizar sua manutenção e incentivo à produção teatral das companhias paulistanas. Além disso, Ruth Escobar começava a se posicionar, politicamente, em favor da classe artística, atraindo novos olhares para seu trabalho. Observo que a produtora aproveitou a ocasião para divulgar a construção de seu empreendimento: um teatro privado, erguido com recursos não governamentais. Nessa primeira fase como produtora e atriz da Cia. Novo Teatro, apesar das dificuldades encontradas para fazer teatro no início da década de 1960, Ruth Escobar se destacou como empresária; função que era predominantemente dominada pelos homens. Aos poucos, ela conseguiu ampliar seu espaço de atuação junto às autoridades e à classe artística, seja por meio da negociação, da empatia ou do embate. 2.2 O signo do confronto: a contribuição do Teatro Ruth Escobar Paralelamente às produções teatrais Males da Juventude (1961) e Antígone América (1962), Ruth Escobar iniciou um projeto de envergadura ao contexto paulista dos anos de 1960: a construção de seu próprio teatro. A respeito desse primeiro passo, Ruth recordou que: Num final de tarde, descia a Rua dos Ingleses em direção à minha casa, na Rua Santo Antônio, quando vi a tabuleta “Vende-se” ao lado de um mirante, bem onde um terreno despencava até o nível da Rua Treze de Maio. Olhei aquele buraco debaixo de chuva. Debrucei-me sobre a mureta que domina as escadarias em direção à Treze de Maio e à pequena Praça Dom Orione. Meus olhos, já embaçados, turvaram-se ainda mais. Da retina à mente, névoas propagavam-se em ondas de vertigem. Comecei a ver, sem nem mesmo poder olhar, aquelas névoas adquirindo formas indistintas, apenas sugeridas, apossando-se de mim, imprimindose em meu espírito com violência dolorosa e doce a um só tempo198. Para a compra do terreno, Ruth Escobar afirmou que deu um “cheque sem fundos de 500 cruzeiros199, como sinal, e pedi ao dono que esperasse quinze dias para descontá-lo”200, assim teria tempo hábil para conseguir o dinheiro que quitaria a primeira parcela da dívida. Para isso, ela procurou o cônsul português chamado Diamantino, na cidade de Santos para ajudá-la a angariar fundos junto a colônia portuguesa. Durante a conversa, ele disse a Ruth Escobar que havia fama de subversiva junto aos imigrantes portugueses e, por isso, seria difícil que colaborassem. Para convencê-lo, ela justificou que o local se chamaria Teatro Gil Vicente. A estratégia adotada por Ruth Escobar surtiu efeito, o cônsul organizou um jantar no Ellus Club e, com isso, ela conseguiu o dinheiro necessário para pagar o cheque sem fundos. A vontade de construir seu próprio teatro fez com que a produtora procurasse outros empresários 198 ESCOBAR, 1987, p. 108. Em entrevista concedida a Aramis Milarch, Ruth disse que o sinal foi de duzentos cruzeiros. 200 MENDES, Folha de São Paulo, São Paulo. 02 ago. 1981. p. 45. 199 colaboradores, no entanto recebeu insignificantes contribuições. Após sucessivas tentativas, Ruth decidiu recorrer aos banqueiros, mas também recebeu outras negativas: “volte na semana que vem”, “vou consultar a diretoria” ou “agora não é possível”, “volte mais tarde quando a obra estiver adiantada”201 foram algumas das respostas recordadas por Ruth Escobar. Nessas andanças, um banqueiro a aconselhou procurar a Caixa Econômica Federal para obter um empréstimo, a fim de quitar a compra do terreno e tentar um financiamento para dar início à construção do teatro. No entanto, o banco impôs condições para aprovar o crédito “chegar na primeira laje e provar que se poderia construir um prédio naquele local”202, lembrou Ruth. Foi nesse terreno, situado na Rua dos Ingleses, próximo à Avenida Paulista (SP) que Ruth Escobar decidiu construir um teatro, espaço que seria palco de inovações e ações da vanguarda teatral brasileira. Em meio às dívidas contraídas desde a produção de Mãe Coragem e seus filhos, três filhos para criar e produzindo espetáculos com sua Cia, nos primeiros anos da década de 1960, Ruth Escobar decidiu comprar o terreno e enfrentar o desafio de construir seu teatro. Na época, o local escolhido foi motivo para desdenho entre os artistas, como recordou Nydia Licia em entrevista: [...] morríamos de rir porque não era um terreno que ela ganhou [comprou] do Governador Adhemar de Barros, era um barranco. E conversando com o engenheiro um dia ele falou que o que ele pôs de cimento na obra, iria sustentar a construção pelo resto dos séculos. Muitas pessoas não tinham coragem de ir lá, porque não era um teatro cômodo, hoje em dia melhorou. Só existia a sala de baixo e tinha uma escada perigosíssima para descer. E muita gente não gosta da sensação de estar embaixo da terra. O pessoal do teatro brincou, caçoou, mas acabou bem satisfeito. Afinal era mais um teatro203. Apesar de os próprios artistas criarem uma situação embaraçosa em torno do novo empreendimento teatral, Ruth Escobar não esmoreceu diante de tais provocações, provou a todos que naquele local - considerado inadequado - seria possível edificar seu teatro; ela estava decidida a transformá-lo numa tribuna dos artistas para a sociedade. Pode perceber-se que, a atitude de Ruth Escobar em realizar um negócio sem disponibilizar de recursos financeiros imediatos e apostar na construção de um teatro, em condições adversas, demonstra o esforço realizado pela produtora para concretizar seu projeto. Ainda, é possível verificar, nessa atitude, a presença da persona de Ruth Escobar, isto é, o ato de desafiar suas próprias condições financeiras e prová-lo àqueles que não acreditavam em seu trabalho, evidencia a mudança de personalidade e as futuras ações que a produtora realizaria. A repercussão da construção do teatro deu origem a uma série de histórias em torno das obras. Algumas delas foram criadas pela oposição dos próprios artistas ao ver o trabalho de Ruth Escobar ganhar espaço e repercussão. Em entrevista concedida ao pesquisador, o crítico Edélcio Mostaço, que acompanhou boa parte das produções realizadas por Ruth, relatou a respeito dessas histórias: Uma das histórias famosas que circulam é sobre a construção do teatro. Quem me contou foi Plínio Marcos. O edifício fica ao lado de uma escadaria que une a rua de cima com a de baixo, é uma obra em terreno público; segundo Plínio, a Ruth ganhou alguns metros por que a noite ela mandava os pedreiros mudarem o limite da planta dela, porque na mesma época estavam construindo a escadaria e, desse modo, ela foi 201 ESCOBAR, 1987, p.111. LADEIRA, Jornal do Brasil, 1974. 203 LICIA, Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. 202 ganhando mais espaço. O Plínio jurava de pé junto que essa história é verdadeira. Eu, que convivi um tempo com ela, não acho improvável, nem falso204 A presença arrojada de Ruth Escobar no cenário político e na produção cultural contribuiu para a criação de muitas versões sobre suas iniciativas. A construção de um teatro empreendimento de vulto - não poderia ser diferente, pois, de acordo com os depoimentos das testemunhas da época, Ruth Escobar sempre adotava uma postura que era a de não medir esforços na concretização de seus objetivos. No início de 1961, os jornais noticiavam o novo empreendimento teatral na cidade de São Paulo: Na rua do Ingleses [...] do Teatro Gil Vicente, iniciativa do Grupo Novo Teatro, o mesmo que [encenou] a peça “Mãe Coragem”, de Brecht. O terreno adquirido por 2 milhões de cruzeiros possibilitará a nova casa de espetáculos ter uma platéria de 350 espectadores. As obras deverão ser iniciadas nos próximos dias e concluídas em julho do corrente ano. Seu custo: 10 milhoes de cruzeiros. Os 7 pecados capitais do pequeno burguês, trabalho póstumo de Brecht205, será a peça de estreia do Novo Teatro, cujo diretor-artístico [...] é Alberto D’aversa, que durante alguns anos dirigiu o TBC. Ao ato de ontem compareceram o prefeito Ademar de Barros [...], o secretário da Educação, sr. José Miraphio (?), o sr. S. Brandão, representante do comitê de Portugal e diretores e artistas do Novo Teatro206. Vê-se, pela nota publicada, que Ruth Escobar tinha necessidade de iniciar a realização de projetos audaciosos, visto que desejava construir seu próprio teatro em menos de cinco meses207, num terreno sem condições de edificação por causa do declive. Mas as obras somente foram iniciadas em outubro, oito meses após o primeiro anúncio na imprensa208. Apesar de todos os seus esforços em tentar construir um teatro num curto espaço de tempo, o teatro somente ficou pronto em 1964, mais de três anos após o lançamento da pedra fundamental. É necessário destacar a articulação que Ruth Escobar conseguiu realizar nesse início de carreira. De acordo com o jornalista Almir Azevedo do jornal A Noite (RJ) “o prefeito Adhemar de Barros lançou a pedra fundamental do “Novo Teatro”, que é dirigido por Alberto D’Aversa, que foi escolhido para a personalidade teatral do ano pelos “Diários Associados”. O novo teatro, em homenagem ao primeiro grande dramaturgo português, denominar-se-á Gil Vicente”. Isto é, num curto espaço de tempo, Ruth conseguiu estabelecer contatos que seriam essenciais aos seus futuros projetos. Para uma produtora que tinha iniciado seus trabalhos na área cênica em 1959 e, até aquele momento, realizado poucas produções, efetuar essa façanha demonstrava a sua perspicácia como empresária. 204 MOSTAÇO, Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. É necessário fazer uma reparação na nota publicada pelo jornalista: Os sete pecados capitais não é uma obra póstuma do dramaturgo alemão. Esse texto foi escrito em 1933 em parceria com Kurt Weill. Até seu falecimento, em 1956, Brecht escreveu cerca de vinte e seis obras. Dentra elas pode-se citar: Mãe Coragem e seus Filhos (193839/1941), A Boa Alma de Setsuan (1939-42/1943), O Círculo de Giz Caucasiano (1943-45/1948), Antígone (1947/1948) e Trumpetes e Tambores (1955). 206 TEATRO, Folha de São Paulo, 05 fev. 1961. 207 O jornal Folha de São Paulo noticiou novamente a construção da nova casa de espetáculos: “São Paulo será dotado brevemente de mais teatro graças a iniciativa do Novo Teatro, grupo que iniciou suas atividades encenando há pouco “Mãe Coragem” de Bertold Brecht. Trata-se do Teatro Gil Vicente, cuja pedra fundamental foi lançada em terreno da rua dos Ingleses, local em que será levantado o edifício. A nova casa de espetáculos terá 300 lugares e o grupo do Novo Teatro pretende inaugurá-la ainda este ano”. TEATRO, Folha de São Paulo, 26 fev. 1961, p.4. 208 INICIADAS, O Estado de São Paulo, 13 out. 1962, p. 25. 205 Com a intenção de angariar fundos à construção do teatro, no dia 27 de fevereiro de 1961, a Cia. Novo Teatro apresentou o espetáculo Poder sem glória209 na cidade de Santos. Esta apresentação também tinha como objetivo celebrar “o convênio firmado entre o governo português e a Secretaria de Informação, Cultura, Diversão e Turismo, [na qual] ficará o Teatro Gil Vicente franqueado a todos os conjuntos portugueses que se apresentarem em São Paulo com textos de autores portugueses e brasileiros”210. A nota publidada na Folha de São Paulo anunciava a próxima montagem da Cia Novo Teatro, outra obra brechtiana. No entanto, observo que o texto Os sete pecados capitais de Brecht não foi a montagem de estreia da nova casa de espetáculos em São Paulo, tampouco D’Aversa foi o responsável pelo espetáculo. Em março de 1964, Ruth anunciou na mídia que o espetáculo de abertura seria A Capital Federal, de Arthur de Azevedo, sob a direção de Gianni Ratto211. Nessa ocasião, foi divulgado que a inauguração do Teatro Gil Vicente seria em setembro. Todavia, todas essas propostas foram substituídas: o texto escolhido foi A Ópera dos três vinténs212, também de autoria de Brecht, sob a direção de José Renato; e a inauguração ocorreu em dezembro de 1964. Em decorrência das dificuldades em angariar recursos financeiros para edificar o teatro, as obras sofreram atrasos. Apesar das mudanças na escolha do espetáculo de abertura, é perceptível que os espetáculos giravam em torno de um teatro político, objetivando dialogar com a sociedade. Notadamente, outro ponto a ser destacado na nota jornalística, foi a demanda orçamentária para realizar seus projetos que ultrapassaria o valor de 10 milhões de cruzeiros, uma quantia monetária signitifativa. Logo, constata-se que Ruth tinha o desejo de realizar produções de vulto para causar ainda mais impacto junto à imprensa, ao púbico e à classe artística. No entanto, desde o início das obras, Ruth Escobar tinha Gil Vicente como um chamariz de recursos financeiros; na reta final das obras, em 1964, ela decidiu alterar o nome do teatro, passando a denominá-lo Teatro Ruth Escobar. A clara referência à sua própria pessoa demarcou território, demonstrou sua conquista e sua capacidade de concretizar projetos de notabilidade. A respeito dessa mudança, Ruth Escobar confessou que: Já tinha o álibi para o teatro; era Gil Vicente, de quem eu tinha incorporado todos os diabos e até um anjo, o Anjo de Alma. Meu teatro se chamaria Gil Vicente – o maior gênio do teatro da língua portuguesa, só comparável a Shakespeare. Não seria um teatro, mas um exorcismo. Tumba e monumento, mausoléu e palácio, pecado e redenção, amor de perdição213. Percebe-se que, desde o início de sua carreira, a produtora se utilizava de estratégias que burlavam os olhares das outras pessoas para alcançar seus objetivos. Ela não tinha pudor em realizar esse tipo de jogo. Neste caso, o nome do famoso escritor português serviu para promover e reverberar seu empreendimento, junto a diversos setores da sociedade paulista, particularmente, àqueles relacionados à cultura portuguesa. A produtora aproveitou desse trunfo, intencionando angariar verbas para a construção do tão desejado teatro “com apoio da comunidade portuguesa”, afirmou o arquiteto e cenógrafo José Carlos Serroni214. 209 Este espetáculo também não consta na trajetória de Ruth Escobar. Durante a pesquisa não foi localizada mais informações sobre esse trabalho. 210 RECITA, O Estado de São Paulo, 22 fev. 1961, p. 9. 211 T. GIL, O Estado de São Paulo, 22 mar. 1964, p. 20. 212 Ver imagens de 36 a 52 no dossiê de fotos. 213 ESCOBAR, 1987, p.110. 214 SERRONI, 2002, p. 212. Além dos percalços financeiros, a empresária enfrentou problemas burocráticos, “restrição que Ruth Escobar desconhecia ao comprar o imóvel”215, pontuou Rofran Fernandes. A Rua dos Ingleses estava localizada numa zona residencial, a construção de prédios não era permitida. Esta restrição, imposta pela Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP), não foi suficiente para frear os planos da produtora. Para obter resultados favoráveis ao seu interesse, Ruth Escobar teve de entrar em contato com autoridades e vereadores com o intuito de a restrição municipal ser revertida. Para isso, Ruth Escobar fez uso de outra estratégia, como ela própria relatou em entrevista publicada no Jornal do Brasil de 20 de julho de 1974: “Consegui sensibilizar os vereadores, dizendo que estava disposta a arriscar numa casa de espetáculo. Para construir o teatro, eu inventei uma maneira que tem sido usada até para construir estádios de futebol. As pessoas pagavam cadeiras cativas e tinham o direito de, na noite de estreia, ir ao teatro de graça”216. Ainda que não haja mais detalhes sobre os bastidores das negociações, o fato é que ela conseguiu a liberação para a construção do teatro. O projeto tramitou na Câmara Municipal de Vereadores de São Paulo e, em 06 de outubro de 1961, foi outorgada a Lei n. 5.386217 que autorizava a construção do teatro naquele terreno em área residencial. Diversas dificuldades foram encontradas para o início da obra de seu teatro, inclusive, lidar com os desacreditados. Um desses casos foi o governador do estado de São Paulo, Adhemar de Barros. Ele “não acreditava que naquela ribanceira da Rua dos Ingleses até a 13 de Maio pudesse erguer-se um teatro. Ele me acompanhou até as obras e, debruçado sobre o palanque dos pedreiros, sorria maroto, como só ele sabia”218, recordou Ruth Escobar. Entretanto, ela não ficou somente nas palavras. Até aquele momento, as montagens cênicas produzidas por Ruth Escobar - Mãe Coragem (1960), Males da Juventude (1961) e Antígone América (1962) - tinham um tom político definido por ela, através de discursos condizentes com o contexto em que estava vivendo. Essas primeiras produções serviram como uma espécie de ensaio para, futuramente, iniciar uma posição de confronto mais acirrada com o regime militar. Se, nessa fase inicial, Ruth Escobar provocava um frisson nos censores paulistas, construir seu próprio teatro significava a declaração de uma “guerra”. Neste sentido, o ato de erguer o Teatro Ruth Escobar serviu como um posicionamento estratégico para estabelecer uma relação de confronto com o governo militar, que se instalou em 31 de março de 1964, durante a construção do teatro. Ao observar o contexto sociopolítico e compreender os rumos que começavam a pairar no país, Ruth Escobar tornou seu teatro em ponto de apoio e concentração daqueles que não eram a favor do regime militar. Constantes ações foram desenvolvidas naquele espaço: encontros, assembleias, fóruns, debates e, principalmente, apresentação de espetáculos. Tornou-se alvo de vigilância. O Teatro Ruth Escobar era considerado um local de “revolução”. Consequentemente, as ações de vigilância se expandiram para a pessoa de Ruth Escobar, “agente” responsável por inflar e persuadir os cidadãos que por lá passavam. Ela se tornou alvo dos arapongas, censores e militares que a vigiavam constantemente. Havia um estado de alerta em ambas as partes: de um lado, uma produtora que buscava a liberdade de expressão e a democracia do país; de outro, aqueles que faziam a manutenção da “ordem” do Estado. Com a inauguração do Teatro Ruth Escobar, a empresária entrou, definitivamente, no circuito teatral paulistano ao provar que era capaz de concretizar projetos audaciosos, mesmo sendo mulher num universo dominado por homens. O Teatro Ruth Escobar vai ser lembrado, não apenas como um ponto de resistência, mas também como catalisador de ideias. 215 FERNANDES,1985, p. 22. LADEIRA, Jornal do Brasil, 20 jul. 1974. 217 SÃO PAULO, 1961. 218 ESCOBAR, Ruth. Artigo para o programa IV Festival. 216 A respeito do Teatro Ruth Escobar, o crítico Jefferson Del Rios lembrou que: O teatro abriu suas portas para os movimentos contra a censura, pela Anistia e pelas Diretas Já, reuniões memoráveis com a presença de algumas das altas personalidades de vida pública do Brasil. D. Helder Câmara, por exemplo. Em setembro de 1976, houve a suspensão, ou seja, proibição, do 1º Ciclo de Debates sobre a Cultura Brasileira. Foi feito um abaixo assinado ao General Geisel para que se anulasse a interdição. Quem o assinou? Fernando Henrique Cardoso, Ruy Mesquita, Paulo Duarte e outros intelectuais de peso. O ciclo foi liberado. O Teatro era o ponto onde nos reuníamos contra a censura, contra a repressão policial-militar. Resumindo, o Teatro Ruth Escobar foi, sim, um dos pontos de resistência à ditadura, uma das tribunas pelas liberdades públicas, o que termina com o movimento das Diretas Já. É um mérito de Ruth. O local foi ainda local de debates de movimentos feministas e de negros219. Como se vê, a construção do Ruth Escobar não foi um esforço em vão da empresária. O local se tornou um dos principais pontos de resistência contra a ditadura militar, assim como abrigou a criação de movimentos sociais em prol das minorias; foi ponto de encontro de manifestações. Logo, também considerado pelos militares como foco de subversão. 2.3 Teatro Popular Nacional: um projeto itinerante Apesar da construção do teatro somente se concretizar três anos após o idealizado por Ruth Escobar, em virtude das dificuldades de arrecadar dinheiro para pagar funcionários e materiais220, a produtora decidiu colocar em prática um projeto com o objetivo de arrecadar fundos financeiros para finalizá-lo: o Teatro Popular Nacional (TPN). Este projeto seguia os mesmos propósitos da experiência desenvolvida pelo ator e diretor Firmin Gémier, em 1910, na França:221 popularizar a arte teatral por meio da circulação de espetáculos em localidades que não detinham teatros. No Brasil, o Centro Popular de Cultura da UNE, no Rio de Janeiro, em 1962, também concebeu um projeto de teatro itinerante com o objetivo de levar teatro às fábricas, favelas, sindicatos, escolas, associações de bairro, a fim de conscientizar as classes populares sobre a necessidade da transformação social. A respeito desse projeto, a pesquisadora Silvana Garcia afirmou que: 219 DEL RIOS, Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. A produtora afirmou que “comprava os materiais a preço de custo, eu que pagava os operários. Às vezes as pessoas me ajudavam, me dando coisas, cimento, tijolos, e até costumavam brincar comigo, dizendo que eu era o terror do comércio paulista, porque só chegava para pedir” LADEIRA, Jornal do Brasil, 20 jul. 1974. 221 Gémier constatou que havia demanda de público em locais em que não havia salas de teatro. Para isso criou o Teatro Nacional Ambulante (TNA), “com ele, roda as províncias. Transporta não apenas a companhia e a equipe técnica, mas uma sala desmontável de 1.650 lugares. Acolhida calorosa em quase toda a parte. Porém, mais uma vez, a realidade econômica triunfa sobre o idealismo. Seu preço de custo excede em muito os lucros registrados, de maneira que Gémier, em 1913, é obrigado a desistir da iniciativa” (ROUBINE, 2003, p. 129). Gémier dirigiu o TNP até 1933, ano em que o ator e diretor francês faleceu. Somente em 1947 essa lacuna foi preenchida com a criação, na França, do Festival de Avignon por Jean Villar que tinha como objetivo criar novos espaços teatrais, buscar um novo público e proporcionar uma nova estética teatral. Com o sucesso do evento, em 1951, Villar assumiu a direção do Théatre National Populaire (TNP) a convite do Estado, o qual administrou até 1963, firmando-se como “oposição ao teatro privado que deve se curvar a imperativos de rentabilidade a curto prazo” (ROUBINE, 2003, p. 135). Outro aspecto importante para a execução desse projeto, para Villar, foi a tentativa de unificar as diversas camadas sociais que havia em Paris, pois os espectadores das salas parisienses resumiam-se somente à classe burguesa. Observo que nessa última fase do TNP, Ruth morava em Paris, portanto ela teve contato com essa prática teatral. 220 O CPC da UNE mobilizou-se durante dois meses, espalhou grupos na Guanabara, que, através de espetáculos, músicas, livros, debates populares, fazendo espetáculos em caminhões, em escadarias, em favelas, portas de fábricas, na rua, enfim, levou ao povo as teses nacionalistas e democráticas formuladas nos congressos da UNE. As peças, as músicas, eram escritas a cada dia, aproveitando cada fato característico da nossa vida social222. O CPC conseguiu, por meio do teatro e da realização de outros eventos paralelos, alcançar repercussão no público periférico, no entanto o projeto de apresentações teatrais em cima de uma carreta-palco “não chegou a ser muito utilizada por falta de infraestrutura”223. Em outras palavras, pode dizer-se que havia a falta de recursos financeiros para a manutenção dessa estrutura itinerante. Nessa mesma perspectiva, Ruth Escobar decidiu investir num teatro móvel, motivada pela dificuldade de obter recursos financeiros para prosseguir a construção do teatro. Ela recordou que, “no final de 1963, em meio a problemas financeiros para suplementação da obra [do teatro], enfiamo-nos em mais um projeto - a construção um teatro ambulante em cima de um enorme ônibus articulado que arrematei na CMTC”224. Para finalizar a execução do projeto, Ruth Escobar conseguiu um patrocínio mensal da Ultragaz225. A empresária transformou um ônibus em teatro móvel para circular nos bairros periféricos e cidades vizinhas que estavam fora do “centro cultural” de São Paulo, com o objetivo de realizar uma campanha de popularização da arte teatral àqueles que não tinham possibilidade de ir ao teatro; como também por que desejava provocar reflexões. De acordo com Sábato Magaldi e Maria Tereza Vargas havia um “palco de 8m x 5m x 4m de altura, [que levava teatro] por inúmeros bairros”226. Além disso, a adaptação do ônibus feita por Wladimir Pereira Cardoso, continha “sistema de som, luz, camarim, banheirinho e bagageiro com três mil banquinhos de ferro e lona”227, recordou Ruth. Ela também lembrou que antes de toda essa estrutura chegar ao local de apresentação, havia “uma kombi que fazia publicidade em cada bairro”228. O elenco era formado por “uma parte dos atores sem emprego saídos do Arena [que tinham] uma proposta política de fazer teatro para povo”229. Com um conjunto de atores 222 GARCIA, 1990, p. 102. GARCIA, 1990, p. 102. 224 ESCOBAR,1987, p. 120. 225 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. A respeito desse patrocínio, o ator, diretor e dramaturgo Izaías Almada relatou uma conversa ocorrida entre ele e Ruth Escobar quando participou do Seminário Internacional A Censura em Cena, em 2006: "Ruth, como você consegue essas coisas? Se você não quiser dizer, eu respeito". Ela disse: " Essa pequena intimidade passageira com Ruth Escobar, me levou um dia, num café, a perguntar a ela: “Como é que você consegue essas proeza?” No Brasil, seu marido, o Escobar, foi preso no Rio de Janeiro, esteve no DOI-CODI. Ela entrou lá, algo que nem os generais fariam – a não ser o Teixeira Lott, que entrou e atitou num sujeito que torturou o sobrinho dele -, e tirou o marido da prisão. Por isso perguntei: “Ruth, como você consegue essas coisas? Se você não quiser dizer, eu respeito. “Olha, meu querido, eu no Brasil fui amante de Peri Igel". O nome talvez não represente absolutamente nada. Mas ele era o diretor-superintendente, o maior acionista da Supergasbrás, empresa que financiou o DOI-CODI, o maior centro de repressão no Brasil nessa fase da ditadura". ALMADA, 2008, p. 33. Como noticiado por diversos meios de comunicação, a Ultragaz juntamente com outras empresas tiveram uma participação direta no subsídio à ditadura. Porém, é necessário relativizar essa informação proferida por Izaías Almada, visto que Ruth Escobar está impossibilitada de proferir sua versão sobre essa questão pessoal. Pontuo também que não localizei outra fonte de informação que confirmasse o depoimento. 226 MAGALDI: VARGAS, 2000, p. 362. 227 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. 228 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. 229 ESCOBAR, 1987, p. 120. 223 experientes em espetáculos politizados, Ruth Escobar optou por levar essa estética teatral aos bairros, como forma de conscientizar a população sobre a situação que o país estava vivendo. Segundo Sábato Magaldi e Maria Thereza Vargas, este projeto de teatro itinerante percorreu “mais de 50 bairros e mais de 900.000 pessoas assistiram ao TPN”230. O TPN produziu as seguintes montagens: A Pena e a Lei de autoria de Ariano Suassuna; As Desgraças de uma Criança de Martins Pena; A Farsa do Mestre Pathelin, escrito por um anônimo francês medieval e Histórias do Brasil, conjunto de textos poéticos. Esses quatro espetáculos foram os que mais repercutiram junto à imprensa, porque permaneceram mais tempo em cartaz. No entanto, na catalogação realizada por Rofran Fernandes, não consta a produção: O médico volante231, de Moliére. Quanto ao espetáculo infantil O espião no país do pula-pula232, de Ricardo Gouveia, ele apenas fez menção a respeito de uma suposta encenação infantil. Diz ele: “não encontramos nenhum documento sobre este espetáculo [...] sabíamos, vagamente, de uma produção de teatro infantil no TPN”233. Ele também não localizou a ficha técnica dessa peça que aqui deixo registrado: direção de Clovis Bueno. No papel principal estavam Ana Maria Cerqueira Leite e Alvim Barbosa, todavia, se houve outros participantes, os nomes não foram localizados nesse momento. Dirigida por Antônio Abujamra, a encenação A Pena e a Lei234 estreou em 31 de maio de 1964, na Praça da Sé, cujo texto retrata o universo nordestino por meio de personagens da cultura popular. A respeito de sua obra, Suassuna pontuou que: “o presente presépio da hilariedade denomina-se A Pena e a Lei porque nele se verão funcionando algumas leis e castigos que reinventaram para disciplinar os homens. E, como era de se esperar, tudo tem de começar por algumas transgressões da lei, pois quando se traçam normas e sanções, aparece alguém para transgredi-las e desafiá-las”235. Neste sentido, averiguou-se que, ao levar esse espetáculo a um público periférico da cidade de São Paulo, Ruth Escobar queria promover uma mudança no posicionamento político das pessoas. O espetáculo foi apresentado durante quase um mês236 inteiro em bairros da cidade de São Paulo com sucesso de público. Conforme publicação do jornal Diário da Noite: Depois de enorme sucesso alcançado na apresentação inicial realizada domingo na Praça da Sé, o Teatro Popular Nacional voltará, a partir de hoje, a levar teatro gratuito 230 MAGALDI; VARGAS, 2000, p. 362. NOVA, O Estado de São Paulo, 03 jul. 1964, p. 11. 232 PEÇA, O Estado de São Paulo, 18 jul. 1964, p. 15. 233 ROFRAN, 1985, p. 25. 234 Este espetáculo foi apresentado na Casa de Detenção em São Paulo sob patrocínio da Comissão Estadual de Teatro. NOVA, O Estado de São Paulo, 03 jul. 1964, p. 11. 235 SUASSUNA, 2005, p. 12. 236 A programação foi a seguinte no mês de junho de 9064: dia 3, Lapa rua Barão de Jundiai esquina da rua Mercedes; amanhã dia 4, no Moinho Velho, à rua Professor João Machado com a rua Sete Barras; dia 5, na Freguesia do Ó, à praça Nossa Senhora do Ó; dia 6 na Casa Verde, à praça do Centenário; dia 7, em Vila Nova Cachoeirinha, à praça Francisco Alves; dia 9 no Mandaqui, à rua Voluntários da Pátria, junto ao ponto final do ônibus Mandaqui; dia 10, no Tucuruvi, à avenida Guapira, 1272; dia 11, no Carandiru, à avenida Ataliba Leonel, 2282; dia 12, em Vila Maria, à avenida Alberto Byington, 2672; dia 13, na Vila Maria, à praça Nossa Senhora [da] Candelária; dia 14, no Alto do Pari, à praça Padre Bento; dia 16, na Moóca, à Praça Presidente Kennedy; dia 17, no Tatuapé, à praça Pádua Dias; dia 18, em Vila Ré, na sede do Esporte Club 11 Caprichosos; dia 19, em São Miguel, rua Colibri com João Carneio; dia 20, na Penha, entre as ruas Aquilino Vidal e Ângelo Zangi; dia 21, no Tatuapé, à rua João Fernandes; dia 23, na Moóca, à rua Taquari junto ao Instituto de Educação da Moóca; dia 24, em Vila Prudente, à praça Veiga Cabral; dia 25, no Jardim Saúde, a praça Frei Miguel Lanzano; dia 26, na cidade Vargas, na rua Nelson Fernandes com rua dos Jornalistas; dia 27, em Mirandópolis, à praça Santa Rita de Cássia; dia 28, em Moema, à praça Nossa Senhora da Aparecida; dia 30, no Paraíso, à avenida 23 de Maio entre a rua Paraíso e Largo “Guanabara””. PACHECO, Diário da Noite, 3 de junho de 1964, p. 6. 231 ao povo. Com palco volante, adaptado a um “papa-fila” os comandados de Ruth Escobar estarão às 20 horas na Lapa – rua Barão de Jundiai com rua Mercedes – com a peça “A Pena e a Lei” de Ariano Suassuna. O programa que será cumprido pelo primeiro grupo de Teatro Móvel Popular em São Paulo no mês de junho, sempre às 20 horas e com a mesma peça teatral237. A comédia de costumes, As desgraças de uma criança ou O Soldado e o Sacristão, escrita por Martins Pena em 1846 foi a produção subsequente no TPN. Nesse enredo, Martins Pena apresenta com humor as relações amorosas proibidas, mas não deixa de ironizar a postura da Igreja, os padrões comportamentais sociais (a ética), as relações de poder exercidas principalmente pelos soldados. O dramaturgo propõe à sociedade carioca uma mudança de pensamento e posicionamento perante os padrões instituídos, mostrando-lhes a faceta oculta da realidade vivida naquela do país. Sob a direção de Silnei Siqueira, o espetáculo estreou em 17 de agosto de 1964, tendo sua primeira apresentação, também, na Praça da Sé. Com direção de Cláudio Mamberti, a terceira produção teatral do TPN foi o texto A Farsa do Mestre Pathelin (La farce de maître Pathelin), escrita por volta de 1460, cuja autoria é atribuída a Pierre Blanchet ou a Antoine de La Sale (alguns consideram o autor desconhecido). É uma peça que satiriza os costumes franceses do século XV. Todos os personagens são trapaceiros, mentirosos, exceto a autoridade máxima que representa a Lei, a qual fica cega diante dos fatos ao dar razão a Pathelin, que consegue convencer o Juiz que Agnelet de que está com suas faculdades mentais alteradas. Perpassam, nesse texto, questões ligadas principalmente à ética e à busca de justiça. Novamente, percebe-se que Ruth Escobar desejava a circulação de um discurso que tivesse como base o enfrentamento das leis instituídas. Neste caso, a dramaturgia utilizada colocava em xeque a atuação da justiça. Para encenar essa história, o elenco foi composto por Ruthnea de Moraes, José Luiz Rodi e Clóvis Bueno, além do próprio diretor. Em janeiro de 1965, Ruth Escobar anunciou que estrearia, em março, a montagem do texto O tesouro de Pedro Malazarte de autoria de João Bethencourt, com direção de Clóvis Buenos238. No entanto, essa montagem não foi realizada; somente em julho do mesmo ano, o TPN produziu uma nova peça. A encenação Histórias do Brasil239 estreou em 12 de julho de 1965 sob a direção de Ruy Affonso. Concebida em forma de recital, o espetáculo era uma reunião de textos poéticos do próprio diretor. Essa encenação contou com a participação do grupo Jograis de São Paulo. Para esta peça, o TPN teve o patrocínio do Jockey Club de São Paulo, que promoveu a Semana Popular do Teatro240. O elenco estava composto por Alvim Barbosa, Nelson Duarte, Rubens de Falco e Ruy Affonso. Segundo Rofran Fernandes241, na trajetória de Ruth Escobar à frente do TPN, a última encenação produzida por ela no ônibus ambulante, encerrando a circulação de espetáculos em diversos bairros paulistas se deu com Histórias do Brasil. 237 PACHECO, Diário da Noite, 3 de junho de 1964, p. 6. TEXTO, O Estado de São Paulo, 28 jan. 1965, p. 11. 239 Texto não localizado durante a pesquisa. Locais e datas de apresentação do espetáculo: dia 12 de julho - Praça da Sé; dia 16 de julho - bairro da Penha; dia 17 de julho - Vila Carrão; dia 18 de julho - bairro do Pari; dia 23 de julho - Freguesia do Ó e dia 25 de julho no Centro de São Paulo, no cruzamento das Ruas Dom José de Barros com Barão de Itapetininga. FERNANDES, 1985, p. 25. 240 Participaram também os espetáculos Soraia, posto 2, do Teatro Ruth Escobar, Esses fantasmas, do TBC, Bedermann e os incendiários, do Teatro Bela Vista e Depois da Queda, do Teatro Leopoldo Fróes. Ver [Divulgação]. Folha de São Paulo, 13 jul. 1965, p. 6. 241 FERNANDES, 1985, p. 25. 238 Porém, após essa montagem, localizei duas outras produções do TPN, registradas pelo jornal O Estado de São Paulo242. Na primeira, pela reportagem de 15 de outubro de 1965243, afirmando que Ruth Escobar acordou um convênio com a Secretária de Turismo do Estado da Guanabara para apresentar o espetáculo - Os ciúmes de um pedestre ou O Terrível Capitão do Mato - em diversos bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro. No elenco estavam Jaime Barcelos, Ruth Escobar, Alvim Barbosa, Jorge Dória, Elídio Costa e Arabela Bloch. Wladimir Pereira Cardoso era o responsável pelo cenário e figurino; o segundo registro encontrado é datado de 09 de dezembro de 1966244 em que divulgou a (re)estreia do espetáculo A Farsa do Mestre Pathelin, marcada para o dia 18 do mesmo mês. Do elenco da primeira montagem, somente Ruthnéa de Moraes e José Luiz Rodi participaram dessa nova versão, que também foi dirigida por Sérgio Mamberti. Integraram os atores Jacques Lagoa e Otávio Augusto. Apesar de realizar poucas produções teatrais, o TPN teve ampla repercussão junto à sociedade paulistana. De acordo com Ruth, “o caminhão teatro ficou tão conhecidos que as seis da tarde tinha uma multidão para pegar os lugares da frente, as nove da noite tinha dez mil”245. Esse sucesso de público fez com que o candidato à prefeitura de São Paulo, José Vicente Faria Lima (mais conhecido como Faria Lima), firmasse uma parceria com Ruth Escobar; em decorrência do sucesso de público que o projeto teatral ambulante fazia nos bairros paulistanos, o político angariaria mais votos em sua campanha, em 1964. Para isso, após a apresentação do espetáculo, iniciava-se um comício. A respeito disso, Ruth afirmou que “participei da campanha de Faria Lima, três ou quatro comícios. Fazia o espetáculo, em seguida, fazia o comício”246. Apesar de pouco conhecido nos estudos teatrais, o TPN representou um ensaio de produção teatral à popularização da arte, contribuiu para a circulação de informações e o acesso à arte teatral, assim como possibilitou a exploração de uma nova forma de apresentação teatral, afastando-se da tradicional estrutura arquitetônica dos espaços fechados, investigando outras maneiras de interpretação e recursos técnicos. Nas palavras de Ruth Escobar, o TPN “foi uma das experiências mais gratificantes da minha história, essa de dar espetáculos ao ar livre para milhares de pessoas”247. 242 Apesar de todas as averiguações realizadas em arquivos, não foi encontrado nenhum material que comprovasse a efetivação dessas produções, seja críticas teatrais, divulgações ou notas jornalísticas. 243 PEÇA, O Estado de São Paulo, 15 out. 1965, p. 9. 244 O TPN, O Estado de São Paulo, 09 dez. 1966, p. 7. 245 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. 246 ESCOBAR, Entrevista concedida a Aramis Millarch. 247 ESCOBAR, 1987, p. 120. 2.4 Dossiê de fotos A Novata Figura 1 Madre Coraje (1953). Teatro IFT (em idschi). CAPÍTULO III - A PRODUTORA este terceiro capítulo meu foco de atenção se volta à produção teatral de Ruth Escobar empreendida entre 1964 e 1977. Nesse período, a empresária produziu vinte e nove (29) espetáculos entre montagens e remontagens no Brasil e no exterior. Para a discussão aqui proposta, eu dialogo com vinte e dois (22) destes espetáculos, pois os demais são objetos de apontamentos em outros capítulos. Desde a inauguração do Teatro Ruth Escobar, em 1964, a produtora demonstrava seu desejo de produzir espetáculos a partir de uma dramaturgia estrangeira pouco conhecida no Brasil. A ela interessava levar à cena textos politizados, inovações estéticas, produzidas especialmente na Europa e que dialogassem com o contexto brasileiro. Lembro que no recorte temporal aqui analisado, tivemos no Brasil um Golpe Civil-Militar, no qual se viveu o período mais duro da censura e ampla repressão aos direitos individuais e coletivos, nos governos de Arthur da Costa e Silva (1967-1969) e Emilio Garrastazu Médici (1969-1974). Sendo que, o período mais fascista desse regime se deu durante a presidência de Garrastazu Médici. A censura eliminou dos palcos muitos de nossos dramaturgos então conhecidos e inviabilizava novos autores de experimentar sua dramaturgia na cena. Isso também explica as escolhas de Ruth Escobar pela dramaturgia estrangeira, desde que a mesma dialogasse com o contexto brasileiro, seja através de metáfora ou de aproximações pelas pesquisas estéticas. O trabalho que Ruth desenvolveu nesse período esteve vinculado, também, a arrojadas inovações no que diz respeito ao uso do espaço cênico, à construção de uma inovadora cenografia em função das alterações espaciais e pela busca de uma interpretação visceral por parte do corpo atorial. Essas características foram marcas de sua trajetória como produtora teatral, aliada ao embate político pela democratização do país e pela afronta aos censores, a moral e os bons costumes, impostos pelo Regime Militar. Além das concepções estéticas, apresento, na medida do possível, os problemas enfrentados por Ruth Escobar para produzir essas peças teatrais. Censura, militares, classe artística, recursos financeiros foram algumas das dificuldades encontradas pela empresária, mas obstáculos foram feitos para serem superados, ao menos alguns..... N 3.1 Através do riso o desejo de mudança A abertura oficial do Teatro Ruth Escobar aconteceu em 13 de dezembro de 1964 com o espetáculo A Ópera dos Três Vinténs248 de Bertolt Brecht, com músicas de Kurt Weill. A história retrata o universo de Soho, um bairro inglês, no século XIX. Inspirado nos gêneros da comédia musical e opereta, o dramaturgo alemão discute as relações de poder e de explorações que ocorrem entre Mackie Messer e J.J. Peachum. Enquanto o primeiro tirava proveito em assaltos e prostituição, o segundo, mais conhecido como Rei dos Mendigos, dava golpe com sua gangue, fingindo ser mendigos e deficientes. Para ambientar esse cenário, Ruth Escobar contratou o cenógrafo Flávio Império; ele “recorreu às referências da época, colocando em cena, por exemplo, um grande retrato de Churchill com uma metralhadora na mão e o símbolo dos filmes da Metro”249, pontuou Sábato 248 249 Este espetáculo recebeu o Prêmio Governador do Estado (prêmio especial) MAGALDI; VARGAS, 2000, p. 362. Magaldi e Maria Thereza Vargas. Para dirigir esse trabalho, ela chamou o conhecido encenador José Renato. A respeito desse convite, ele recordou que: [...] em fim de1964, a Ruth Escobar me descobriu e me pediu para ir a São Paulo dirigir a peça que iria inaugurar o seu teatro. Ia ser uma bela festa e tal e ela queria uma inauguração monumental com A Ópera dos Três Vinténs, do Brecht. Eu vim a São Paulo e dirigi em dois meses a Ópera. Um espetáculo bonito, importante. A Ruth fez o diabo para ter condições de montar a peça e inaugurar seu teatro. A sala que fica no fundo do teatro, quase subterrânea. Tive alguns problemas porque a Ruth queria fazer o papel da Polly, a mocinha, e dei a ela o papel da Jane Espelunca, que é um papel ótimo também. Para a Polly, a atriz teria que ser quase uma cantora lírica, e não era o caso dela. Convidamos a Lueli Figueiró. Era uma atriz de recursos menores, mas que cantava muito bem. E a partitura musical da peça era muito difícil. A Ruth não gostou muito de fazer a personagem da Jane, mas ela concordou e foi tudo muito bem e o espetáculo foi um grande sucesso 250. Essa produção, pela perspectiva de Ruth Escobar, tinha de ser impecável. Pois ela representava: a inauguração de seu teatro, que deveria ser retumbante; o texto seria encenado pela primeira vez no Brasil; o elenco, muito custoso, era composto por trinta atores, além de oito músicos. Tudo isso foi uma aposta arriscada de Ruth Escobar. Ela tinha de obter lucros para pagar as despesas adquiridas, tanto com a produção do espetáculo, quanto com a construção do prédio. Além disso, ela tinha de impressionar a todos e, para isso, esse espetáculo deveria ser um marco, ser uma porta de entrada à efetivação de futuros projetos. A iniciativa de Ruth Escobar em produzir um espetáculo teatral com requintes de megaprodução repercutiu no Serviço Nacional de Teatro (SNT). No ano de 1964, o SNT, deliberou que somente encenações com mérito artístico de excelência receberiam subvenções governamentais e, dentre os selecionados, estava A Ópera dos três vinténs. Foi destinado o valor de seis milhões de cruzeiros251 à produção do espetáculo. Tanto o investimento governamental, quanto o esforço pessoal de Ruth Escobar foram reconhecidos pela crítica da época. Para o crítico Décio de Almeida Prado, “o espetáculo, em seu conjunto, é dos mais originais e audaciosos já apresentados em São Paulo. Ruth Escobar quis inaugurar o seu teatro com alguma coisa diferente, que marcasse época - e pode dizer-se que o conseguiu”252. Nessa mesma perspectiva, o crítico Sábato Magaldi disse que A Ópera dos Três Vinténs foi “um espetáculo [que], no conjunto, atingiu fortemente a plateia”253. Ruth Escobar investiu alto para iniciar seu empreendimento. Ela não mediu esforços para erguer seus projetos. Além de a peça ficar alguns meses em cartaz em São Paulo, ela também realizou uma temporada no Teatro Leopoldina em Porto Alegre254. A segunda produção de Ruth Escobar, após a construção de seu teatro, foi Soraia Posto 2, de Pedro Bloch que estreou em junho de 1965. Ao contrário da encenação anterior, encenar esse texto em São Paulo não foi algo inédito. Em 1963, no Teatro Glauce Rocha, Gracinha Freire e Jece Valadão fizeram os papéis principais daquela montagem. Na montagem produzida por Ruth Escobar estavam no elenco Milton Ribeiro, Ruthnéia de Moraes, Arabella Block e Tereza Austragésilo. Soraia, Posto 2 é uma comédia em três atos e retrata “aspectos do cotidiano, onde se encontra num mesmo local gente do povo com os eternos problemas de sobrevivência, do amor 250 BASBAUN, 2009, p. 133-134. SNT, O Estado de São Paulo, 27 nov. 1964, p. 13. 252 PRADO, O Estado de São Paulo, 22 dez 1964, p. 14. 253 MAGALDI; VARGAS, 2000, p. 362. 254 Não foi encontrada mais informações sobre a temporada na capital gaúcha. 251 e da superficialidade da vida”255. Visto que a dramaturgia estava centrada no riso, Ruth contratou o humorista Jô Soares – na época ele fazia programa na TV com essa característica – para dirigir a encenação. O cenário do trabalho foi concebido por Wladimir Pereira Cardoso (que também assinou os figurinos); o cenógrafo idealizou um “esqueleto de um edifício de 4 andares, onde não faltam o elevador de carregar cimento e areia, pás e sacos de cal, nem uma marquise para equilibrar a obra”256, pontuou o jornalista Ivan Zanini. Assim como em A Ópera dos três vinténs, a cenografia de Soraia, Posto 2 teve como característica trazer elementos renovadores. Esse aspecto poderá ser percebido ao longo da trajetória de Ruth, visto que no decorrer de suas produções, cada vez mais radicalizou o espaço cênico. Ainda que Ruth tentasse contratar os melhores profissionais para suas produções, Soraia, Posto 2 amargou críticas negativas, principalmente a dramaturgia de Pedro Bloch. Na visão do jornalista Paulo Mendonça, “há que reconhecer [...] no sr. Bloch, um mérito indiscutível: logrou condensar na sua peça praticamente todos os chavões do maus gosto, todos os lugares-comuns do sentimentalismo mais melado, todos os clichês das simplificações sociais e humanas mais elementares”257. Ainda que não tenham sido encontradas outras críticas negativas ou que reforçassem essa colocação, localizou-se um dado curioso que pode ir de encontro a essa colocação. Em uma divulgação em formato de tijolinho, publicada na Folha de São Paulo258, apareceu estampado que 90,3% do público que presenciou o espetáculo, considerou-o ótimo/bom. Todavia, o dado utilizado no anúncio em um jornal de circulação que abrangia boa parte de São Paulo, deve ser relativizado em virtude de uma possível forma marqueteira utilizada pela produção do espetáculo. Essa divulgação se estendeu de forma sistemática até o final da temporada e pode ser compreendida como uma resposta da produtora aos críticos que se posicionaram contra a linguagem mais popular e cômica da dramaturgia e do espetáculo. E dar visibilidade, através de uma pesquisa, da aceitação por parte do público, tirava o foco da relevância do crítico e a colocava no público que prestigiava o trabalho. Esse vai ser um posicionamento constante de Ruth Escobar. Para ela o relevante é o público que paga e mantém o trabalho em cartaz. A parceria entre Jô Soares continuou e Ruth Escobar deu seguimento ao próximo trabalho. Ele dirigiu a terceira produção de Ruth Escobar, que também era uma comédia. Seguindo a linha de pensamento que norteava a produtora, o trabalho realizado pelo encenador a agradou. Jô Soares traduziu e dirigiu O Casamento do Senhor Mississippi (Die Ehe des Herrn Mississippi), uma comédia em dois atos, escrita pelo suíço Friedrich Dürrenmatt em 1952. O Casamento do Senhor Mississippi aborda “um casamento de linha nobre [em que] são feitas ironias e críticas satíricas e mordazes pelos noivos e pelos convidados, amargurando uns e outros”259. Implicitamente, a afronta contra a moral e os bons costumes zelados pela censura estavam no cerne dessa dramaturgia. Essas colocações vão ao encontro do artigo escrito pelo crítico Anatol Rosenfeld para o programa do espetáculo : “O Casamento do Senhor Mississippi” é sem dúvida a mais ousada [dramaturgia]verdadeiro pandemônio cênico, de um cinismo que não respeita nada. O diálogo oscila entre poesia, chavão, grandiloqüencia patética e retórica de feira. A essa mistura propositadamente bombástica, imoderada e inflada até a caricatura corresponde a mixórdia de estilos na sala em que se desenrola a ação – mistura que representa o 255 ZANINI, Folha de São Paulo, 13 jun. 1965, p. 12. ZANINI, Folha de São Paulo, 13 jun. 1965, p. 12. 257 MENDONÇA, Folha de São Paulo, 15 jun. 1965, p. 4. 258 [Divulgação]. Folha de São Paulo, 08 jul. 1965, p. 6. 259 CRÍTICAS, Folha de São Paulo, 08 ago. 1965, p. 12. 256 leilão da cultura européia, cuja desmontagem se reflete, por sua vez, no coquetel do enredo, preparado com fortes doses de crime e teologia (debaixo da mesa), moralismo e devassidão, caridade e luxúria260. Apesar do assunto “atacar” os princípios norteadores propagados pelo regime militar, no processo de censura sob DDP 5729, o espetáculo somente teve restrição quanto à faixa etária - proibida para menores de dezesseis anos. Não consta no texto qualquer tipo de corte ou observações acerca do espetáculo. Liberado pela censura, o espetáculo estreou em 4 de setembro de 1965na Sala Gil Vicente, do Teatro Ruth Escobar. Em 1966, Ruth Escobar produziu três espetáculos quase concomitantemente: uma façanha para a época, visto que essas encenações tinham número expressivo de integrantes e eram muito caras enquanto cenários, figurinos, etc. As Fúrias estreou em março, Júlio César em junho e Os 30 milhões do americano em agosto. Indiscutivelmente, Ruth era uma produtora dinâmica e audaciosa para a década de 1960. O primeiro desafio foi a montagem do drama El Adefesio, do espanhol Rafael Alberti. Traduzido por Walmyr Ayala como As Fúrias261 (fábulas do amor e das velhas), estreou em 21 de março de 1966, com direção de Antônio Abujamra. A trama “trata da história de três velhas que passaram da infância para a velhice, sem nenhuma transição”262, conforme registrou o jornalista d´O Estado de São Paulo. As personagens foram interpretadas por Cleyde Yáconis (Gorgo), Riva Nimitz (Uva) e Ruth Escobar (Aulaga). Além delas, faziam parte da encenação mais doze atores . O elenco superou as expectativas, “o espetáculo foi aplaudido quatro vezes, em cena aberta, recebendo ao final uma ovação”263, segundo o crítico Décio de Almeida Prado. Apesar dessa percepção sobre a reação do público, o crítico expôs sua visão negativa sobre o espetáculo. Ele argumentou que: As Fúrias é exatamente o contrário que acontece: o vocabulário do palco, base de qualquer criação dramática, é que falha. [...] a gratuidade lirica de Rafael Alberti encontrou boa equivalencia no virtuosismo ludico de Antonio Abujanra: marcações propositalmente bizarras (com predileção declarada pelas marchas circulares, como no pátio das prisões) elaborados efeitos de surpresa (uma gragalhada muda, por exemplo). Não nos parece haver em tais exercicíos de imaginação qualquer funiconalidade, no sentido de esclarecimento do texto – mas também não temos certeza se havia alguma alguma coisa a ser esclarecida264. Sábato Magaldi, na mesma visão de Décio de Almeida Prado, diz que: “tanto o texto como a encenação parecem gratuitos, não se comunicando à plateia”265. Em direção contrária aos críticos profissionais, a Folha de São Paulo publicou a visão de Silvia Machado Portella do Centro Acadêmico de Sociologia e Política, onde ela relata que: 260 ROSENFELD, Anatol. Uma comédia apocalíptica. Artigo para o programa do espetáculo O Casamento do Senhor Mississippi 261 Na solicitação feita por Wladimir Pereira à DDP, em 18 de fevereiro de 1966, traz a informação que o espetáculo tinha estreia marcada para 12 de março de 1966, às 21:00 hs. No entanto, no livro organizado por Rofran Fernandes situa a estreia da encenação em 21 de março do mesmo ano, na Sala Gil Vicente. 262 ESTRÉIA, O Estado de São Paulo, 20 mar. 1966, p. 13. 263 PRADO, O Estado de São Paulo, 23 mar. 1966, p. 9. 264 PRADO, O Estado de São Paulo, 23 mar. 1966, p. 9. 265 MAGALDI; VARGAS, 2000, p. 366. “As Fúrias” de Rafael Alberti cai sobre nossas cabeças fazendo com que tracemos desde o início um paralelo sobre a época em que vivemos, causa-nos um impacto pois foge do comum, daquilo que já vem “mastigado” e que seja necessário um mínimo esforço por parte do público no sentido de que este tenha de pensar sobre o que lhe é apresentado. Quanto a direção e representação é, talvez, o que de mais perfeito tenhamos visto, sentimos em cada minuto, que nos está sendo dado o máximo por parte dos atores. Chegamos a conclusão de que é necessário que este espetáculo seja visto por todas as pessoas que realmente se interessam por coisas sérias 266. Como havia feito na divulgação do espetáculo A Ópera dos três vinténs, Ruth Escobar escolheu uma frase para ser publicada nos tijolinhos impressos nos jornais. Para essa encenação, a frase escolhida também estava relacionada com uma ideia que causasse impacto e curiosidade nos leitores: “Talvez você não possa ver um espetáculo igual nos próximos 10 anos”. Numa outra divulgação, Ruth Escobar escolheu trechos das críticas públicas e depoimentos de personalidades. Cito alguns exemplos: “Tudo faz das Fúrias um magnífico espetáculo” (João Apolinário - Última Hora), “Maravilho” (Jardel Filho), “O espetáculo é um impacto” (Yolanda Faria Lima). Todas essas frases foram seguidas por outra, em letras maiúsculas: “Seja você o juíz do novo espetáculo do Teatro Ruth Escobar”267. As Fúrias foi apresentada no Teatro Municipal do Rio de Janeio em 05 de maio de 1966. Enquanto estava sendo apresentada As Fúrias, Ruth também produzia Júlio César. Prevista para estrear em 27 de maio, a encenação foi postergada para o dia 30 do mesmo mês. De acordo com o comunicado enviado à imprensa, “em virtude de um acidente ocorrido com Raul Cortez”268. Estreando na data prevista no Teatro Municipal de São Paulo. O espetáculo foi aplaudido em cena aberta de acordo com a nota publicada na Folha de São Paulo: “a plateia manifestou-se duas vezes em cena aberta: uma para aplaudir Juca de Oliveira, ao final do discurso sobre o corpo de Júlio César, e outra quando do combate final dos guerreiros, onde todos tombam a um só tempo, em perfeita harmonia”269. No entanto, nessa mesma nota jornalística, foi registrada uma autoavaliação da direção do espetáculo e dos atores: “o diretor Antunes Filho e os atores em geral consideram que o espetáculo não atingiu o grau desejado, o que poderá acontecer nas próximas apresentações”270. A primeira encenação fora do Teatro Ruth Escobar, após a sua inauguração, tinha suas razões. Júlio César, de William Shakespeare, foi traduzida pelo governador da Guanabara, Carlos Lacerda271. Visto que a produção estava sob os auspícios de um político renomado, o local escolhido pelo mecenas deveria ser condizente com eventos diplomáticos. O texto trata da conspiração contra o diretor Júlio César. Observo que, em 1964, Carlos Lacerda apoiou o movimento político-militar, mas, em 1965, já demonstrava seu descontentamento com o novo regime. Em 1966, alia-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a antigos adversários políticos, como os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, com o objetivo de fundar a Frente Ampla, movimento de oposição ao Regime Militar. A respeito dessas articulações, o pesquisador Sérgio Lamarão lembrou que “as negociações de Lacerda com Juscelino, cassado em junho de 1964 e exilado em Lisboa, encaminhadas pelo deputado do MDB Renato Archer, avançavam com relativa facilidade, mas com Goulart, desenvolvidas por intermédio do emedebista Armindo Doutel de Andrade, “AS FÚRIAS”, Folha de São Paulo, 01 abr. 1966, p.7. [Divulgação], Folha de São Paulo. 26 mar. 1966, p. 6. 268 JÚLIO César, O Estado de São Paulo, 27 mai. 1966, p. 4. 269 MUNICIPAL, Folha de São Paulo, 01 jun. 1966, p. 5. 270 JÚLIO César, Folha de São Paulo, 01 jun. 1966, p. 5. 271 Guanabara foi um estado do Brasil localizado no Rio de Janeiro entre 1960 a 1975. 266 267 mostravam-se mais difíceis. Cassado pelos militares logo após o golpe, Goulart vivia em Montevidéu”272. Após meses de negociações, ambos ex-presidentes firmaram compromisso com a Frente Ampla. Em 28 de outubro de 1966, Carlos Lacerda assinou um manifesto publicado no jornal carioca Tribuna da Imprensa, em que “defendia eleições livres e diretas, a reforma partidária e institucional, a retomada do desenvolvimento econômico e a adoção de uma política externa soberana”273. Neste sentido, por detrás da produção de Júlio César, havia uma intenção política em manifestar seu posicionamento contrário ao regime militar. Se por um lado, Lacerda estava para a classe artítica associado ao golpe, por outro, para os militares ele era um aliado pouco confiável. Apesar dessa parceria ser um embate contra o governo militar, ela gerou certa desconfiança na classe artística, pelo fato de Ruth Escobar receber subvenção para sua produção. Ainda que o montante destinado à montagem de Júlio César não tenha sido encontrado nessa pesquisa, pode pensar-se que era um valor considerável. Ao total foram mais de setenta profissionais envolvidos: trinta na equipe de produção, além de um elenco com cerca de quarenta atores orquestrados por Antunes Filho. Logo, o repasse de verba para o custo efetivo de toda essa produção deve ter sido um montante vultoso para a época. No entanto, esta encenação gerou “animosidade da classe artística. O fracasso retumbante da encenação, dirigida por Antunes Filho, agrava a tensão entre a empresária e alguns setores artísticos”.274 Chamo atenção, novamente, para a campanha publicitária adotada pela produção do espetáculo. Desta vez, Ruth Escobar utilizou a frase: “Não perca o mais importante espetáculo do teatro brasileiro” juntamente com: “Assista Shakespeare e concora a uma viagem pela Marcopolo275.” A temporada de Júlio César no Teatro Municipal de São Paulo se encerrou em 20 de junho de 1966. Após esses vinte dias de apresentações, o espetáculo circulou em Curitiba, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Mais uma vez, Ruth Escobar procurava levar suas produções para cidades fora do eixo Rio- São Paulo. Mesmo com o fracasso da encenação, Júlio César, meses após, em 03 de agosto de 276 1966 , Ruth Escobar estreava Os Trinta Milhões do Americano. De autoria do francês Eugene Labiche, a comédia foi traduzida e dirigida, novamente , por Jô Soares. Com um elenco menor em relação às duas produções anteriores, apenas oito atores, a encenação foi “uma brincadeira cheia de gags espirituosas”277, pontuou Sábato Magaldi. Para Décio de Almeida Prado, no espetáculo: Há um pouco de tudo na direção inspirada e desigual de Jô Soares: o excelente, o bom, ao lado do fácil e do medíocre. O trabalho dos atores, enquanto teatro, propriamente dito, criação de personagens, ritmo, elaboração de situações, raramente atinge o nivel mais elevado. Porém, as invenções marginais, os achados de encenação, as molecagens farsescas conferem ao espetáculo, no seu todo, um aspecto fantasia e criador que o nosso teatro não costuma ter278. 272 LAMARÃO, CPDOC/FGV, 2012. LAMARÃO, CPDOC/FGV, 2012. 274 ESCOBAR, Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2015. 275 Folha de São Paulo, 12 jun. 1966, p. 8. 276 FERNANDES (1985, p. 40), na ficha técnica do espetáculo, colocou a estreia em 28 de agosto, como uma provável data. No entanto, na Folha de São Paulo, de 03 de agosto de 1966, informou que o espetáculo estreou neste dia. 277 MAGALDI; VARGAS, 2000, p. 366. 278 PRADO, O Estado de São Paulo, 17 ago. 1966, p. 9. 273 Décio de Almeida Prado percebeu as fraquezas e acertos do espetáculo e reconheceu, na parte final da crítica, o que ele teve de mais relevante que foi seu lado fantasioso e criativo, levando o crítico a apontar que isso não se vê com frequência no teatro brasileiro. Sem dúvida, mesmo com alguns deslizes, na perspectiva de Décio, Ruth Escobar conseguia criar espetáculos impressionantes à cena brasileira. Em 1967, Ruth colocou em cartaz duas montagens: O Versátil Mister Sloane e O Estranho Casal, ambas em julho. A encenação Lisístrata começou os ensaios no fim do ano e estreou em janeiro de 1968. Dias antes da estreia de O Versátil Mister Sloane, Ruth Escobar sofreu um atropelamento, ocorrido na rua Brigadeiro Luis Antônio, esquina da Rua dos Ingleses – local onde ficava o Teatro Ruth Escobar. Em decorrência do acidente, “ela precisou ser hospitalizada e sofreu uma operação do queixo”279, registrou a nota jornalística. Este não foi o único incidente; novamente, a estreia teve de ser adiada em virtude de outro acidente. Fúlvio Stefanini “fraturou o joelho”280. Após quase um mês de atraso, finalmente, em 04 de julho de 1967, O Versátil Mister Sloane reestreou a Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar, que havia passado por reformas. Sob a direção de Antônio Ghigonetto, a comédia escrita por Joe Orton com tradução de Gert Meyer aborda a história de “dois irmãos – Kath, uma quarentona e Ed, um homossexual empertigado – disputam a preferência do jovem Sloane [...] O poder de sedução de Sloane atingiria [...] os dois solitários [...] A situação se torna mais complicada quando o velho Kemp, pai de Kath e Ed, identifica Sloane como assassino de seu patrão”281, resumiu Sábato Magaldi. De acordo com o artigo do programa do espetáculo, “[embora] tôdas as peças de Orton, tenham por tema a sociedade elas não são escritas especificamente contra a sociedade; apenas mostram o que se passa dentro dela”282. No entanto, esse mostrar desvela parte daquilo que a sociedade quer esconder, logo a dramaturgia de Orton também se posiciona contra certos princípios norteadores que regem as sociedades movidas pelo moralismo burguês. Neste sentido, ao abordar a questão do homossexualismo por meio da comédia, Orton toca em questões caras a sociedades conservadoras. Consequentemente, Ruth Escobar também adotava a mesma posição: encenar temas que viessem na contramão das regras sociais estabelecidas. Esta pequena ação, em prol de causas minoritárias desembocou, mais à frente, em ações de vulto na trajetória de Ruth. No entanto, esse assunto que provocava arrepios nos censores não teve, em 1966, a mesma censura feroz que ocorreu na encenação de Males da Juventude, levado à cena por Ruth Escobar em 1960, como já relatado no segundo capítulo desta tese. A censura considerou a dramaturgia imprópria para menores de dezoito anos e realizou pequenos cortes no texto. De acordo com o DDP n. 6027, foram eliminadas as expressões “Uma cangaceira”, “eu cago” e “parece uma puta velha, fazendo força pra gozar”283. Apesar de serem sempre poucas as partes cortadas, nenhuma delas dizia respeito à questões homossexuais. Semanas após a estreia de O Versátil Mister Sloane na Sala Gil Vicente do Ruth Escobar, entrou em cartaz O Estranho Casal (The Odd Couple). Escrita pelo norte-americano Neil Simon, com tradução de Millôr Fernandes, o espetáculo estreou em 12 de julho de 1967.284 279 ADIADA, Folha de São Paulo, 07 jun. 1967, p. 5. “SLOANE”, Folha de São Paulo, 27 de jun. 1967, p. 5. 281 MAGALDI, O Estado de São Paulo, 12 ago. 1967, p. 43. 282 Artigo para o programa do espetáculo O Versátil Mister Sloane. 283 O VERSÁTIL MRS SLOANE, Observatório de Comunicação Liberdade de Expressão e Censura, 2013. 284 FERNANDES (1985, p. 42) na ficha técnica do espetáculo, informou que a estreia foi em 20 de julho. No entanto, foi localizada outra data. De acordo com a reportagem ESTRANHO casal. Folha de São Paulo, 12 jul. 1967, p. 5. 280 O texto conta a história de dois amigos incomuns. Felix, após doze anos de casamento, decide separar-se e morar com Oscar num pequeno apartamento. No entanto, a amistosa relação de amizade entre ambos é afetada pelo modo de vida de cada personagem. Enquanto Felix é organizado e neurótico por limpeza, Oscar é desleixado e despreocupado com suas coisas e com o ambiente em que vive. Quando o texto foi submetido à censura, o parecer emitido pelo órgão responsável foi de que o espetáculo era inapropriado para menores de dezoito anos. Além disso, teve algumas palavras que foram cortadas: “Se eu quisesse ser esculhambado, voltava pra minha mulher”, “Se isso é uma esculhambação confesso que é sutil demais para mim”, “Não, a esculhambação vem agora”, “Considere-se esculhambado” e frase inteira “Foi para puta que pariu, eu acho”. O censor ficou muito incomodado com a negatividade do verbo “esculhambar”, devido ao impacto crítico, desmoralizador e repreensivo que compõe o sentido do termo. As palavras e frase cortadas permitiram que a estrutura dramatúrgica se mantivesse sem maiores alterações. Isso se refletiu na crítica paulistana. Para Décio de Almeida Prado, o espetáculo “parece-nos a melhor comédia americana dos últimos anos [...] É uma peça espirituosa que se equilibra com grande habilidade entre o possível e o impossível, entre o verossímil e o incongruente”285. Como fazia em todas as divulgações, Ruth Escobar inseriu uma frase de efeito. Neste caso: “Se você não pode ir a NEW YORK, PARIS OU LONDRES ver a comédia mais fascinante dos últimos anos, você poderá assistir em São Paulo mesmo no Teatro Ruth Escobar”286, foi a frase escolhida para atrair o público. Lisistrata foi a primeira comédia grega produzida por Ruth Escobar, estreando em novembro de 1967 na Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar. Escrita pelo dramaturgo grego Aristófanes, em 411 a.C., conta a história da ação das mulheres das cidades gregas envolvidas na Guerra do Peloponeso – Atenas, Esparta, Beócia, Corinto – que sob o comando da ateniense Lisístrata, decidem instituir uma greve de sexo até que seus maridos parem a guerra. No final, a paz é celebrada. Em grego, Lisístrata significa “a que dissolve/separa exércitos”. Sob essa perspectiva, o texto de Aristófanes além de um libelo à paz, podia ser analisado pela perspectiva da força feminina. Ruth Escobar ao produzir um espetáculo, que dialogava com uma parcela da sociedade que tinha pouca representatividade e pouco poder de decisão, desejava trazer à tona essa questão. A respeito das temáticas e embates que levaram a escolha desse texto, o diretor do espetáculo, o belga Maurice Vaneau, recordou que: “o clima político no Brasil esquentava [e aproveitou] o texto engajado e pacifista do comediógrafo grego sobre o amor e a guerra para um protesto contra a ditadura, focada indiretamente na Grécia, daí a inclusão de uma grande foto da atriz militante Melina Mercouri287 no cenário”288. O discurso de Lisístrata, reforçado por Veneau, ultrapassou as paredes do Ruth Escobar. Ao adentrar o ano de 1968, Lisístrata pôde ser pensada como um espetáculo que teve, indiretamente, efeito relevante junto aos políticos e militares. Zuenir Ventura recordou uma passagem em que esse espetáculo esteve na mente do agente motivador de uma crise na Câmara dos Deputados: 285 PRADO, O Estado de São Paulo, 30 jul. 1967, p. 16. [Divulgação]. Folha de São Paulo,10 jun. 1967, p. 5. 287 Melina Amalia Mercouri (1920-1994), mais conhecida como Melina Mercouri foi atriz, cantora e ativista política grega. Fez parte do Parlamento Helênico e, em 1981, tornou-se a primeira mulher a ser Ministra da Cultura na Grécia. 288 GOUVÊA, 2006, p. 164-165. 286 Um pouco antes do início da primavera paulista de 68, a encenação da peça ajudaria a agravar a situação política do Brasil. A comédia acabaria por ser entre nós a involuntária inspiradora de um desastre histórico. Em tradução de Millôr Fernandes e com Ruth Escobar no papel principal, a montagem de São Paulo fora modernizada pelo diretor Maurice Vaneau com alguns toques da estética hippie e pop, o que dava à obra a atualidade de uma ilustração para o slogan pacifista da moda: "faça amor, não faça guerra". No fim de agosto, de passagem pela capital paulista, o deputado Márcio Moreira Alves resolveu assistir à peça que não lhe despertou mais do que alguns risos, além da evocação da nossa guerra dos Emboabas, um episódio semelhante em que os guerreiros derrotados encontraram as portas de casa fechada. A peça era um espetáculo no qual, segundo um crítico, "os atores se divertiam mais do que o público". De qualquer maneira, na manhã do dia 2 de setembro, a lembrança da história de Lisístrata, mais do que o espetáculo, iria socorrer momentaneamente o tribuno Marcio e ser a sua perdição política. Ele estava na Câmara dos Deputados e acabara de ouvir uma dezena de discursos. Inscrito também para falar, quando chegou sua vez ele não sabia bem o que iria dizer. Embora fosse a hora do "pinga-fogo", aquele começo de sessão parlamentar em que os discursos não duram mais do que cinco minutos e em geral não são ouvidos, Marcito queria fazer um pronunciamento que tivesse um mínimo de originalidade. Não bastava apenas se indignar, como todos, contra a invasão da Universidade de Brasília no dia 29. [...] Ao chegar a sua vez, Marcito se perguntava: "Que é que eu vou dizer?" Já caminhava em direção à tribuna quando lhe veio como inspiração a lembrança da peça. O discurso começou advertindo que estava próximo 7 de Setembro e as "cúpulas militares". Certamente, iriam pedir aos colégios que desfilassem " junto aos algozes dos estudantes". O orador chamava a atenção dos pais de que a presença de seus filhos nesse desfile é um auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas". E perguntava: “Até quando o Exército será o valhacouto de torturadores?” Se não bastasse a expressão de mal gosto vocabular, imprópria a um descendente dos Melo franco, o jovem ainda propunha uma inoportuna greve de sexo, além do boicote do 7 de setembro: Este boicote pode passar também às moças, às namoradas, aquelas que dançam com os cadetes e frequentam os jovens oficiais. Não há registro de que alguma jovem tenha recusado dançar com um cadete ou deixado de frequentar um oficial em função do apelo de Moreira Alves, mesmo porque os jornais do dia seguinte não acharam que valia a pena transcrever o discurso. O próprio autor não desconhecia que aquela peça de oratória não tinha qualquer valor além da provocação. "Do ponto de vista do conteúdo", diria ele mais tarde, "talvez tenha sido o meu pronunciamento menos importante." E do ponto de vista da força, pode-se acrescentar, foi certamente o mais infeliz. A melhor definição do discurso talvez tenha partido do próprio Costa e Silva, ao tomar conhecimento do seu teor: "É uma estudantada desse rapaz," comentou, sem dar importância ao que, mais tarde, ele usaria como pretexto para criar uma crise insolúvel com o Congresso 289. Mas, as consequências foram devastadoras para o país. O discurso do deputado Márcio Moreira Alves era o pretexto que os militares esperavam. Exaltados, eles exigiram a cassação do deputado por ofensa às Forças Armadas brasileiras. Como a Câmara dos Deputados não procedeu conforme o exigido, as Forças Armadas, usando como estopim o referido discurso, implantaram, em 13 de dezembro de 1968, o famigerado Ato Institucional N. 5. Como se vê, direção, produção e dramaturgia formaram uma tríade para discutir problemas relativos ao Brasil e à condição das mulheres. Sobre esse última tema, em entrevista, Ruth Escobar declarou que: “Lisístrata é o símbolo da mulher decidida que busca o bem de 289 VENTURA, 2008, p. 100. todos, utilizando-se um recurso que bem poderia ser aplicado para a solução de outros problemas”290. Lisístrata também pode ser considerada uma grande produção para o contexto paulista de 1967. Somente no elenco havia quarenta e cinco atores. No papel principal do espetáculo, Ruth Escobar, “em desempenho considerado pela crítica o melhor de sua carreira até então”291, recordou Vaneau. A respeito da atuação de Ruth Escobar, Décio de Almeida Prado afirmou que “o papel de Lisístrata, põe em relevo a sua energia, a sua determinação em cena. Poderíamos desejar, talvez, menos uniformidade, maior variedade de tons”292. Apesar desse elogio à atuação de Ruth Escobar, ele terminou sua crítica, destacando de seu ponto de vista as contradições entre o belo texto de Aristófanes e a direção de Vaneau: “Aristófanes merecia para sua estréia no Brasil um grande acontecimento artístico. Infelizmente terá que se contentar, ao que parece, com um sucesso de escândalo”293. Em sua crítica, apresenta dois grandes momentos do espetáculo: a encenação devia provocar “uma grande onda dionisíaca de gargalhada, a redução do obsceno atrás do humor” e “choca-nos como coletividade, forçoso é confessar, este humor direto, sem véus, que em vez de se exprimir por signos abstratos como são as palavras, transmissíveis através dos ouvidos, exibi-se como realidades físicas, encontra-nos pelos olhos, transforma-nos a todos nós, queiramos ou não, em excitados ou contrafeitos “voyers”294 A perspectiva do crítico é sempre de defesa do texto dramático, propondo que a encenação aceite submeter-se a esse elemento central do teatro. E destaca, ainda, que cabe ao diretor, especialmente num texto de Aristófanes, suavizar as partes grosseiras e agressivas desse dramaturgo. É preferível que os espectadores tenham uma “gargalhada dionisíaca” pela fala do texto, do que visualizar cenas grosseiras e sexualizadas. É uma moral cênica que se faz presente em, praticamente, todas as críticas de Décio de Almeida Prado. Ao fechar o ciclo mais cômico que representou as montagens de dezembro de 1964 e início de 1968, Ruth Escobar produziu nove espetáculos teatrais. Esses trabalhos têm alguns elementos em comum, tais como a grande quantidade de atores, cenografia de grande porte, a busca de uma interpretação mais exteriorizada, de um diálogo travado com a realidade que a circundava, montagens quase simultâneas e a viagem para diferentes estados do país, apresentando os trabalhos por ela produzidos. Esse período foi muito intenso para Ruth Escobar enquanto produtora teatral; ressalto que, entre 1964 e 1968, ela chegou a produzir uma média de três espetáculos por ano. Tendo, assim, encenações simultâneas, isto é, o número de profissionais envolvidos em ambos os espetáculos era impressionante. Nesse sentido, pode dizer-se que Ruth proporcionou a dinamização da produção teatral paulista e foi uma das responsáveis por abrir maior espaço de trabalho aos atores. Ela também lutou muito na reivindicação de subsídios governamentais, assim como na obtenção de recursos financeiros na iniciativa privada. Sua atuação, em São Paulo e no Brasil, tornar-se-ia mais tarde uma referência profissional ao desenvolvimento e, principalmente, para o financiamento do teatro. Em linhas gerais, constata-se que esse primeiro período de produções teatrais de Ruth Escobar foi um espécie de balão de ensaio para uma atuação mais politicamente ativa por meio do teatro. Além disso, esse espaço de tempo teve outras características que devem ser pontuadas: a utilização intensa de dramaturgos estrangeiros, encenou apenas um dramaturgo brasileiro, o Pedro Bloch. Essa aposta numa dramaturgia estrangeira pode ser entendida, “LISÍSTRATA”, Folha de São Paulo, 05 jan. 1968, p. 3. GOUVÊA, 2006, p. 164-165. 292 PRADO, O Estado de São Paulo, 21 jan. 1968, p. 19. 293 PRADO, O Estado de São Paulo, 21 jan. 1968, p. 19. 294 PRADO, O Estado de São Paulo, 21 jan. 1968, p. 19. 290 291 também, como forma de contornar os problemas com a censura vigente no país; por isso a busca de textos que pudessem trazer apontamentos à realidade brasileira. Este período de produção teatral pode ser denominado como Fase da Comédia, mas não descompromissada com as questões políticas do país. 3.2 Ruth, 1968: o ano que começou Prestes a completar trinta e três anos, Ruth Escobar, em 1968, ano de intensas transformações históricas no mundo – inclusive no Brasil, ela pode ser considerada uma figura relevante para compreender essas mudanças. Esse complexo conjunto de transformações incluem as rebeliões estudantis em Sorbone e Nanterre na França; a luta armada da América Latina; a Guerra do Vietnã e a contracultura no continente europeu e Estados Unidos. No Brasil, destacou-se a Passeata dos 100 mil, protesto contra a ditadura militar. No âmbito das artes, a encenação de O Rei da Vela, dirigida por José Celso Martinez, tornou-se um marco desencadeador do movimento Tropicalista. A partir dele, surgiu a terceira fase do Cinema Novo que foi inspirada em paisagens tipicamente brasileiras (araras, bananas, índios). Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade foi a obra cinematográfica de destaque. Contudo, Ruth Escobar não passaria desapercebida.... Após os diversos espetáculos cômicos, Ruth iniciou uma fase de montagens de dramaturgos brasileiros: Este ovo é um galo, Roda Viva e a Última Virgem, todas encenadas em 1968. A capacidade empreendedora e incansável de Ruth Escobar pode ser constatada pelo volume de produções realizadas concomitantemente. O programa do espetáculo de Lisístrata anunciava que Este ovo é um galo seria a próxima produção de Ruth Escobar. Escrita em 1959, por Lauro César Muniz, a história se passa em uma cidade do interior de São Paulo em outubro de 1932, após a Revolução de 1930. O contato de Ruth com esse texto se deu na Escola de Arte Dramática (EAD/USP), quando Silney Siqueira o encenou a convite dos alunos da EAD, que prestavam os exames finais. Após assistir à encenação, Ruth Escobar convidou Silney Siqueira para realizar uma produção mais profissional. Dos alunos que faziam parte desse elenco, cinco295 foram contratados para a remontagem. Lauro César Muniz explicou ao jornalista Ivo Zanini da Folha de São Paulo que “todas as peças que escreveu têm um caráter de revelar e criticar aspectos brasileiros”296. O mesmo jornalista registrou que “Ruth Escobar entusiasmou-se com o texto e resolveu encená-lo em seu teatro pela atualidade dos problemas, enfocados com os fatos de hoje, embora o assunto trate de um episódio que já completou 35 anos”297. Novamente, percebe-se que Ruth Escobar possuía uma característica de teatro politizado, no entanto, desta vez, ela começou a encenar textos cujos conteúdos se mostravam mais enfáticos contra a ditadura. Ainda que sejam em momentos históricos diferentes, o dramaturgo aproveitou a oportunidade para tocar no assunto de forma camuflada. De acordo com a atriz Analy Alvarez: Lauro usou de uma pseudoingenuidade pra falar da ditadura que estávamos vivendo e, assim, escapar da censura. A peça termina com um tenente matando o galo para que ele não possa cantar – Pronto! Calou o bico! Ele diz. Faz-se um silêncio total por alguns instantes. Ao longe, ouve-se um galo cantar, depois outro mais perto e depois 295 Umberto Maganani foi o único nome localizado nessa contratação. ZANINI, Folha de São Paulo, 15 fev. 1968, p. 3. 297 ZANINI, Folha de São Paulo, 15 fev. 1968, p. 3. 296 vários cantares de galos num crescendo envolvente. Uma verdadeira sinfonia de galos. A esperança em dias melhores298. Ainda que o dramaturgo tenha utilizado de artifícios para camuflar seu real pensamento, o texto não passou incólume pela censura299. Foram cortadas as seguintes frases: “Onofre rapidamente pega uma em sua mala e entrega a eurico e Augusto que astiam a bandeira”, “Ao fundo alguém segura uma bandeira paulista”, “Protegendo com o corpo, a bandeira da parede”300. Estreada em 15 de fevereiro, Este ovo é um galo fez uma temporada de um pouco mais de dois meses e, esta encenação serviu para Ruth Escobar “testar o terreno”. Enquanto Ruth Escobar apresentava Este ovo é um galo, em São Paulo, no Teatro Princesa Isabel na cidade do Rio de Janeiro, estava em cartaz o musical Roda Viva, escrita por Chico Buarque de Holanda. O texto trata da criação artificial de um ídolo pela televisão que o explora, mas quando deixa de gerar lucros é dispensado. Com direção de José Celso Martinez, o espetáculo teve “casas lotadas, mas fato pitoresco, após as duas primeiras semanas, o público procura lugares nas últimas filas e cadeiras centrais"301, registrou o jornalista Tavares de Miranda. Isso aconteceu em decorrência de uma intervenção junto ao público que era chamado a assinar um manifesto. Além disso, o tom agressivo de algumas partes do texto e, especialmente, do espetáculo, também fazia com que os espectadores se distanciassem. Por outo lado, a encenação aguçou a crítica carioca. Yan Michalski foi enfático em suas colocações ao dizer que Roda Viva “está longe de ser uma obra prima ou sequer uma peça destinada a ficar como um marco de alguma importância na dramaturgia brasileira”302. (Mas ele vai mais longe em sua análise: [...] o resultado é uma realização que, apesar dos seus já mencionados méritos de criação artística é, antes de mais nada, inaceitavelmente infantil e simplista. A atitude intelectual do encenador de Roda-Viva é comparável à atitude de uma criança de três anos que faz xixi no meio de um salão cheio de visitas e ficando espiando com curiosidade a reação refletida no rosto dos pais e dos convidados [...] A única repercussão duradoura que as agressões de Roda-Viva poderão ter sobre certos espectadores consistirá em desestimulá-lo de voltar tão cedo a um teatro 303. Cabe destacar que o crítico fez algumas ressalvas acerca do espetáculo: O espetáculo de José Celso Martinez é em grande parte frustrado, mas é, ao mesmo tempo, fascinante pelo virtuosismo e pela beleza de muitos momentos da sua miseen-scène, e pela inaudita violência da sua concepção. É licito achar que beleza e virtuosismo e violência caíram, parcial ou totalmente, no vazio; mas não me parece lícito condenar o espetáculo como uma coisa desprezível ou insignificante: uma mancada cheio de talento precisa ser tratada e discutida com o respeito que o talento merece – e ninguém pode negar, em sã consciência, que dose de talento presente em Roda-Viva confirma a privilegiada vocação teatral do jovem diretor paulista 304. 298 CRETI, 2010, p. 88. Ver CASADEI, 2008. A autora do artigo fez uma análise da peça quando a mesma passou pela censura em 1959. No entanto, os cortes foram numa quantidade superior à de 1968. 300 ESTE OVO É UM GALO. Observatório de Comunicação Liberdade de Expressão e Censura, 2013. 301 [Nota]. MIRANDA, Folha de São Paulo, 19 fev. 1968, p. 2. 302 MICHALSKI In: PEIXOTO, 2004, p. 111. 303 MICHALSKI In: PEIXOTO, 2004, p. 115. 304 MICHALSKI In: PEIXOTO, 2004, p. 111. 299 Apesar de o texto não possuir qualidades dramatúrgicas desejadas por Michalski e as poucas que tinha fossem “traduzidas” para a cena, de forma tão ineficiente, ele acena que o trabalho do encenador poderia gerar frutos maiores. Nessa perspectiva, Ruth Escobar percebeu o potencial do trabalho desenvolvido por Zé Celso305 em Roda Viva e o convidou para remontar o espetáculo em seu teatro em São Paulo. Ele iniciou um novo processo, agora sob a tutela de Ruth Escobar. Outros contornos seriam desenhados e, ao contrário das afirmações de Michalski, Roda Viva 306se tornou um espetáculo que marcou história, nem tanto pelos valores estéticos mas sim pelos percalços em função das agressões que esse trabalho sofreu, vindas dos partidários do governo militar. Nesse novo processo de montagem, Zé Celso adotou outros procedimentos. Dentre eles, destaco duas mudanças: na produção carioca, as personagens principais eram interpretadas pelos novatos Marieta Severo e Heleno Prestes, enquanto que, na capital paulista, os papéis foram representados pelos veteranos Marília Pera e Rodrigo Santiago; o segundo ponto diz respeito à remodelação do interior do teatro Ruth Escobar. Para a realização do trabalho, o Teatro Ruth Escobar foi remodelado, sendo construída uma passarela até o meio da plateia, que permitia a execução de algumas cenas muito próximas ao público como, por exemplo, o estraçalhamento de um fígado, ato que literalmente fazia respingar sangue nos espectadores. Outros elementos podem ser identificados neste processo de ruptura espacial/cênica durante a temporada paulista: a inserção do coro no meio da plateia, as “macacas de auditório” que transitavam em meio aos espectadores e a disposição das cadeiras que foram colocadas em blocos para formar corredores que serviam às cenas de perseguições ao contrário da encenação carioca em que todas essas cenas foram executadas num pequeno teatro à italiana. O espetáculo estreou em 17 de maio de 1968307, no Teatro Ruth Escobar, na Sala Galpão. Estava prevista uma temporada de vinte e cinco dias. Com uma concepção diferente da primeira montagem, a encenação foi suscintamente descrita pelo jornalista Marco Antônio de Menezes, em virtude do impacto que lhe causou desde sua chegada ao teatro. Transcrevo na íntegra seu texto. A cortina já está aberta quando você chega: enormes rosas à esquerda, enorme garrafa de Coca-Cola à direita, enorme tela de TV no fundo, uma passarela branca avançando até a metade da platéia. (...) A campainha toca três vezes, a platéia faz silêncio, ruídos estranhos saem dos alto-falantes, na tela de TV aparece uma frase: “Estamos à toa na vida”.(...) Entra o coro, com longas túnicas vermelhas e mantilhas pretas. Canta um triste Aleluia, rodeia Benedito. Aparece o Anjo da Guarda (Antônio Pedro), o empresário de TV, com asas negras, cassetete de policial na cintura, maquiagem de palhaço de circo: “Benedito não serve, nós precisamos de um ídolo! Você será Ben Silver!” E o Coro joga para trás as túnicas e mantilhas, é agora um grupo de jovens do iê-iê-iê que canta: “Aleluia, temos feijão na cuia!” (...) O espetáculo não está somente no palco, o Coro invade a platéia, conversa com ela, e o empresário pede um minuto de silêncio em homenagem ao ídolo: cada participante do Coro olha fixamente um espectador (agora todos já entendem porque a bilheteria insistiu em vender ingressos da primeira fila). (...) O minuto termina, Ben Silver é carregado para o palco num grotesco andor feito de long-plays e fotos de cantores, conduzido por grotescas 305 É pertinente pontuar que Zé Celso teve contato com o espetáculo Cemitério de Automóveis, de Victor Garcia, encenação que radicalizou diversos aspectos da estética teatral. Tal proposta cênica ressoou imediatamente na concepção da remontagem de Roda Viva, em São Paulo, tornando-se outra peça teatral de relevância na historiografia do teatro brasileiro. 306 Ver imagens de 53 a 60 no dossiê de fotos. 307 FERNANDES (1985, p. 43) na ficha técnica mencionou a data de 22 de maio, mas estreou no dia 17, conforme publicado na imprensa paulista. RODA, O Estado de São Paulo, 17 mai. 1968, p. 8. caricaturas das “macacas de auditório”, que no fim do primeiro ato o levam embora, deitado sobre uma cruz de madeira, nu, cansado sob o peso do próprio sucesso. (...) Ben Silver, esgotado pelo sucesso, procura o consolo de sua mulher (...) para uma linda cena de amor que é repentinamente interrompida pela câmera (sic) de TV e pelo Capeta (o jornalista desonesto) (...). E juntos, o jornalista e o Ibope, decretam o fim da carreira de Ben Silver: “O ídolo é casado! E além de tudo, é bêbado!” Uma procissão de três matronas antipáticas tenta salvar o ídolo exigindo que ele faça caridade. Mas nada adianta, Ben Silver acabou. Só há uma solução: transformá-lo em Benedito Lampião. Para manter o prestígio ele deve suicidar-se. (...) a platéia sai do teatro evitando sujar os saltos dos sapatos Chanel nos restos do fígado de Benedito Silva que o Coro das fãs devora no final. (...) tudo é caricatura do religioso no espetáculo, que, como atividade religiosa, se desenvolve em todo teatro, palco, galerias, platéia. (O teatro com que sonhava Antonin Artaud). Para criar o ídolo, ele é liturgicamente paramentado, peça por peça de seu ridículo traje prateado. (...) os atores se dirigem agressivamente à platéia, fazem perguntas, pedem assinaturas em manifestos, sacodem e encaram os espectadores (a censura de 14 anos me parece muito pouco severa para o espetáculo). Ben Silver se encontra com a esposa coroado de espinhos, nu, como o Cristo. A tentativa de salvar o ídolo em decadência é encenada como uma procissão, liderada pelo capeta (seria a peça toda uma Missa Negra?) – que satiriza o jornalista marrom - usando como cruz o conhecido “X” de lâmpadas em pregado pelos fotógrafos. E a primeira cena entre Benedito e sua mulher é uma caricatura da Visão de Nossa senhora. (...) Elementos cristãos, aliás, são misturados com rituais pagãos (o fígado de Prometeu, as orgias de Dionísio), até com rituais políticos (a foice-e-martelo no chapéu do nordestino de Benedito Lampião) 308 Para os conservadores, o espetáculo era uma afronta aos bons costumes da família brasileira. A respeito disso, Ruth Escobar recordou que “todos os dias eram telefonemas e cartas anônimas ameaçando de bombas e nossa vigília tensa, permanente, beirando o colapso. A burguesia se sentia ameaçada por um bando de putas e marginais atrevidos e insolentes. Acusava-se o Teatro Ruth Escobar de quartel-general da subversão e da conspiração demolidora das boas tradições paulistana”309. Lembro que o texto foi submetido à censura e liberado sem cortes. De acordo com o certificado emitido pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento Federal de Segurança Pública, em 26 de janeiro de 1968, o espetáculo somente era inapropriado para menos de dezoito anos310. No entanto, contrariando a censura, Zé Celso introduziu na encenação uma série de palavrões. Ele afirmou que “se alguma coisa choca na peça não é o emprego de palavrões que ficam até muito naturais na boca de bêbado”311. A proposta de afronta ao público tinha como objetivo fazer com que a burguesia enfrentasse os problemas do país. No entanto, a encenação começou a provocar polêmicas junto à população e políticos. O resultado desse embate tomou contornos maiores que o esperado, chegou num ápice que até então não havia ocorrido na história do teatro brasileiro: a invasão de um teatro. Em 18 de julho de 1968, a Sala Galpão foi invadida. Essa atitude truculenta repercutiu na imprensa. A Folha de São Paulo registrou que: [...] cerca de vinte elementos armados de cassetetes, soco-inglês sob as luvas, que espancaram os artistas, sobretudo as atrizes, depredaram todo o teatro, desde bancos, refletores, instrumentos e equipamentos elétricos até os camarins, onde as atrizes foram violentamente agredidas e seviciadas. Com a agressão, sofreu fratura na bacia o contra regra José Luís que foi levado ao Pronto-Socorro Iguatemi, além das atrizes 308 MENEZES, Jornal da Tarde, 02 fev. 1968. ESCOBAR, 1987, p. 124. 310 Processo DDP 6.116. AMS. 311 RODA, O Estado de São Paulo, 17 mai. 1968, p. 8. 309 Marília Pera (principal da peça), Jura Otero, assistente de coreografia, Margot Baird, Eudosia Acunã, Walkiria Mamberti e outros atores com escoriações generalizadas, que foram levadas ao Pateo do Colegio para exame do corpo de delito 312. Outros veículos de comunicação deram mais ênfase aos exageros do espetáculo do que ao ato bárbaro impetrado contra o elenco e o teatro. Na imprensa radiofônica, no Jornal da Jovem Pan, o locutor “Oswaldo Sargentelli [...] que vai ao ar todas as manhãs [fez] apelo à sociedade paulista para que seja tomada uma providência no sentido de que jovens não assistam à peça”313. O comentarista Clécio Ribeiro, da TV Record, “leu as declarações dos deputados e também condenou Roda Viva”314. O assunto também foi pauta de discussão na Assembleia Legislativa de São Paulo. O deputado Aurélio de Campos, que havia feito teatro no passado, fez declarações indignadas: “Aquilo que vi e ouvi em Roda Viva não pode ser chamado de arte em nenhuma parte do mundo, nem na selva africana [...]. Aquilo é ofensa, aquilo é despudor, aquilo é destruir a família na sua moral, amolecer uma nação. Quando assisti Roda Viva fiquei envergonhado [...] Aquilo que está lá é um bordel, não um palco”315. O Estado de São Paulo registrou as colocações do deputado Wadih Helu, em que afirmou: “não podemos concordar em que, com o rótulo de arte e de cultura, o teatro hoje em São Paulo e no Brasil se valha do escândalo, da imoralidade, da depravação para enganar aqueles que são levados por uma propaganda mentirosa”316. Parte da imprensa, bem como do Congresso Nacional, exposto nas falas dos deputados, justificava o ataque ao teatro e aos atores pelo excesso ocorrido no espetáculo. Para eles foram os artistas que tinham passado do limite aceitável; portanto, eles eram, em última instância, os únicos responsáveis pelo ocorrido. Essas vozes, que sempre ecoam contra a liberdade de expressão, servem para justificar ações violentas e o maior fechamento de regimes autoritários. Essa parte da imprensa e esses políticos pediam ao regime militar uma ação mais contundente e rígida contra artistas, que desejassem sobrepor-se ao que eles consideravam ideal de uma sociedade justa e sã. Esse clamor contra a arte e contra a liberdade de expressão, acusando-os de irem além do aceitável, é um discurso que se perpetua em sociedades não democráticas ou junto a forças que desejam impedir avanços sociais e individuais numa sociedade. O apelo reacionário vai em breve ser atendido com a implantação do Ato Institucional N. 5 (AI5), em dezembro de 1968, quando o regime cancela todos os direitos individuais e submete o país a um regime absoluto de exceção. Quando da invasão ao Teatro Ruth Escobar, o edifício estava com suas duas salas ocupadas por espetáculos que agrediam a moral conservadora dominante no país. Eram apresentados, nesse Teatro, os espetáculos: Roda Viva e I Feira Paulista de Opinião. Oswaldo Mendes, autor da biografia de Plínio Marcos, comentou que: O Galpão era a sala de cima do Teatro Ruth Escobar, onde estava em cartaz Rodaviva. A feira era apresentada na Sala Gil Vicente, uma arapuca, pois seu acesso no subsolo, por estreitas escadas, não sugeria nem recomendava uma invasão. Mesmo assim, semanas antes a sala foi invadida por policiais e interditada pela Polícia Federal. Na quinta-feira à tarde o elenco de Feira recebeu, por telefone, ameaças de 312 INVADIDO, Folha de São Paulo, 19 jul. 1968. QUEREM, Folha da Tarde, 19 jun. 1968. 314 QUEREM, Folha da Tarde, 19 jun. 1968. 315 QUEREM, Folha da Tarde, 19 jun. 1968. 316 ASSEMBLEIA, O Estado de São Paulo, 21 jun. 1968, p. 7. 313 quebra-quebra. À noite, os terroristas mudaram a mira para o Galpão. Ao final de Roda-viva, quando o público se levantou para sair, eles entraram317. Pela descrição do espaço e da localização das salas juntamente com as ameaças, o alvo dos policiais, a priori, não era a encenação de Zé Celso, mas o espetáculo de Augusto Boal e companheiros. Mas não foi bem isso que aconteceu. Em entrevista a Luis Antônio Giron da Folha de São Paulo, João Marques Flaquer, responsável pela operação, contou detalhes da invasão. A respeito de Roda Viva, ele afirmou que: “A peça era uma droga. Só gente feia. O elenco agredia o público. Um general foi ofendido quando se retirou da peça [...] Mas fazia sucesso e isso nos interessava” 318. O sucesso, certamente, interessava-lhes para mostrar que o país estava sendo desrespeitado pelos artistas, e o público aceitava isso. Os militares iam ao teatro para verificar o que realmente estava acontecendo; é o caso do general que se retirou indignado do espetáculo, e Flaquer comenta a agressão que este general sofreu por parte da plateia ao se retirar dela. Ou seja, ele colocava o dedo na ferida: os militares estavam perdendo espaço para os subversivos. E isso ele deixa claro ao explicitar que o objetivo da invasão: “[...] era realizar uma ação de propaganda para chamar a atenção das autoridades sobre a iminência da luta armada, que visava a instauração de uma ditadura marxista no Brasil”319, recordou. Durante cinco semanas, o Comando de Caça aos Comunista (CCC)320 estudou o espaço do Teatro Ruth Escobar, pois era necessário “garantir a integridade do público. Os atores receberiam apenas um susto”321, pontuou o ex-comandante da operação, João Marques Flaquer. O jornalista registrou que “na noite marcada, 110 homens – 70 civis e 40 militares – estavam preparados. Desses, 20 se postaram fora do teatro, dez na rua dos Ingleses e o restante na rua 13 de Maio [...] Todos armados com cassetetes, revólveres e metralhadoras”322. Flaquer também confessou que “um companheiro quis estuprar uma atriz, mas eu impedi”323 e que, após a operação, reuniu todos os envolvidos para comemorar: “atingimos nossa meta. Não houve feridos graves e fizemos barulho”324. Ainda na entrevista concedida, afirmou que “foi a ação maior do CCC”. Segundo o olhar de quem viveu “o pequeno susto”, transcrevo o relato da atriz Margarida Baird: Chegaram e fizeram assim, “chuuuummm”, destruíram tudo. Tiraram a minha roupa toda, apertaram meus peitos e me jogaram no chão. Eu gritava: — Antônio Pedro! De repente eu pensei: — Não, não vou chamar o Antônio Pedro. Para os caras não perseguirem ele. Você não entende nada, não sabe o que está acontecendo. E não durou muito, foram uns três minutos, mas pareceu uma eternidade. Lembro-me da Marília Pêra em cima de um banco, chorando, porque ela usava um anel do pai dela, que era um talismã. E dizia, completamente atordoada: — Meu anel, o anel do meu pai!. A Jura Otero levou uma cacetada, que provocou lesão pulmonar. O Rodrigo Santiago, quando foi expulso do camarim para descer, tropeçou e machucou o pé, torceu o tornozelo. A Eudósia ficou encostada na parede, paralisada. Fui ajudar ela a trocar de roupa. Quando tirei a sua malha, tinha um pedaço de um cassetete, que era 317 MENDES, 2009, p. 195. GIRON, Folha de São Paulo, 17 jul. 1993, p. 1. 319 GIRON, Folha de São Paulo, 17 jul. 1993, p. 1. 320 Organização direitista anticomunista que durante o regime militar, o grupo reprimia todos aqueles que fossem contrários à posição do governo. 321 GIRON, Folha de São Paulo, 17 jul. 1993, p. 1 322 GIRON, Folha de São Paulo, 17 jul. 1993, p. 1. 323 GIRON, Folha de São Paulo, 17 jul. 1993, p. 1. 324 GIRON, Folha de São Paulo, 17 jul. 1993, p. 1. 318 usado em cena, enfiado na roupa dela! No outro dia, achei a minha calcinha, em pedaços. Achei também um chicote, assim, com duas pontas de metal 325. O depoimento da atriz deixa claro a brutalidade ocorrida no interior do teatro. A operação que deveria ser apenas “susto” transformou-se numa violenta agressão aos atores e ao teatro. A depredação do cenário pode ser considerado um mal menor, as marcas dessa violência ainda estão presentes. As consequências deste ato brutal estão vivas, entranhadas na memória de seus participantes. As diferentes frentes contrárias à Roda Viva, à liberdade de expressão e criatividade artística deveriam ser combatidas. Logo em seguida ao atentado, Ruth Escobar se dirigiu ao DOPS, à 4º Delegacia para registrar queixa, mas sua tentativa foi em vão. Ela não foi recebida pelo delegado. Contudo, a classe artística não deixou esse acontecimento sem as devidas respostas. Em assembleia no local onde ocorreu a invasão, decidiram tomar algumas medidas: solicitar policiamento para todos os teatros, divulgar o ocorrido na imprensa. A ofensiva do CCC não foi suficiente para interromper a temporada do espetáculo. Dias após, mesmo com cenários danificados e alguns atores feridos, o elenco decidiu retornar às apresentações. Mas, meses após, em agosto de 1968, o Teatro Ruth Escobar sofreu novo atentado. A Folha de São Paulo noticiou o ocorrido: Ampolas de gás lacrimogênio foram lançadas ontem, às 20 horas, nas escadarias e nos sanitários da Sala Gil Vicente, do Teatro Ruth Escobar, onde está sendo apresentada a peça “Primeira Feira Paulista de Opinião”. O gás espalhou-se pelo recinto inteiro e a 2ª sessão foi suspensa, enquanto bombeiros abriram portas e quebravam alguns vidros das vidraças para facilitar a circulação ao ar326. Ruth Escobar que era adepta à circulação de espetáculo, levou o musical de Chico Buarque para Porto Alegre. O intuito era sair do foco das ameaças. Pela terceira vez, uma produção de Ruth Escobar sofria atentado. Renato Borghi recordou que, em Porto Alegre, o “CCC sequestrou um ator do elenco ameaçando matá-lo caso os produtores tivessem a ousadia de estrear o espetáculo naquela cidade”327. As vítimas foram os atores Paulo Augusto e Elizabeth Gasper. Ao que consta, Roda Viva fez uma única apresentação na capital gaúcha, em 3 de outubro, no Teatro Leopoldina. Logo após a chegada em Porto Alegre, Ruth Escobar recebeu uma comunicação do chefe do Serviço de Censura. Aloisio de Souza alegou que “[...] a cada apresentação o texto era modificado pelos atores [...] a peça conclama o público burguês a levantar-se contra a ditadura que se implantou no Brasil, objetivando a implantação de um governo popular”328. Com isso, esse espetáculo agredia o governo do país, sendo proibido em todo o território nacional. Não havia mais o que Ruth Escobar pudesse fazer para continuar apresentando o trabalho. A produção foi então encerrada, no entanto com uma trajetória incomum e inigualável de um espetáculo teatral. Apesar de todas situações ocorridas em 1968 com Roda Viva, Ruth Escobar iniciou um novo projeto teatral, a montagem de Cemitério de Automóveis (Le Cimetière des Voitures). No ano anterior, em 1967, quando esteve na França, a produtora teve a oportunidade de assistir à montagem do franco-argentino Victor Garcia. A fusão entre texto, encenador e produtora se tornaria uma verdade explosão cênica. 325 CUNHA; VASQUES, 2014, p. 159-160. NOVO, Folha de São Paulo, 12 ago. 1968, p. 1. 327 SEIXAS, 2008, p. 155. 328 POLÍCIA, Folha de São Paulo, 05 out. 1968, p. 7. 326 No primeiro contato com o diretor, Ruth Escobar recordou que “no Café de Flore [ele] escutou-me sem grande concentração enquanto eu desfiei meu currículo e tentei seduzi-lo com as contradições do “Brasil do milagre”. Depois de mais de uma hora de troca de informações, colocou suas exigências. Queria uma garagem – não servia um teatro – hotel, diária e pagamento em dólares329. Acordo fechado com a garantia de cumprir as promessas, iniciou-se a parceria. A chegada de Victor Garcia a São Paulo, em 9 de julho de 1968, gerou um ambiente de expectativas em torno do trabalho que ele realizaria, situação propositalmente criada por Ruth Escobar. Ela recordou que “a primeira notícia a respeito de Victor Garcia anunciava que o encenador chegava ao Brasil para ‘montar peça erótica’. Mas a encenação merecia destaque por ser tratar de “uma espécie de teatro total”, formado, segundo o próprio diretor, por três palcos simultâneos”330. Todavia, nenhuma dessas proposições foram levadas adiante, mas perpassava por elas. A estratégia adotada pela produtora serviu para atrair a atenção dos jornalistas e da classe artística para seu novo investimento. Além disso, Victor Garcia foi o primeiro encenador estrangeiro que veio diretamente da Europa para trabalhar, exclusivamente, numa produção brasileira. A oportunidade de criar curiosidade e expectativas não foi desperdiçada pela produtora. No Diário de São Paulo, de 21 de setembro de 1968, foi publicado que: “O mais difícil espetáculo até hoje montado no Brasil: Cemitério de Automóveis”331. Posteriormente, durante os ensaios, ela colocou em prática essa mesma estratégia, anunciando que “Um teatro insólito, construído especialmente para um espetáculo revolucionário. Ruth Escobar trouxe de Paris para São Paulo, VICTOR GARCIA, o diretor que colocou em pânico todas concepções do teatro convencional. O maior sucesso da Europa nos últimos 5 anos. Não perca o espetáculo [de] 68”332. Concebido a partir da fusão de quatro textos do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal - Oração, Os Dois Carrascos, Primeira Comunhão e Cemitério de Automóveis - o espetáculo estreou em 11 de outubro de 1968333. Os quatro textos foram escritos após 1962, ano que marcou a criação da nova vertente do Teatro do Absurdo, idealizada por Fernando Arrabal, conhecido como Teatro Pânico. Arquitetada desde as propostas do teórico francês Antonin Artaud, essa nova estética teatral pode ser definida como uma mistura de “confusão, o humor, o terror, o acaso e a euforia”334. Arrabal propõe uma experiência cênica ao espectador, ele quer imergi-lo no espetáculo, com o objetivo de fazer o público refletir sobre o comportamento humano sob nova óptica. Para o crítico Sábato Magaldi, o espetáculo possuía um “desempenho liberto da dicção realista, o desenvolvimento antipsicológico dos conflitos, a violência física e as evoluções acrobáticas punham, diante de nós, um universo inédito, cujos paralelos teóricos parecem irmanar-se ao ritual artaudiano ou mesmo grotowskiano”335. As palavras do crítico apontavam para um trabalho interpretativo que explorava o corpo e voz de forma diferenciada dos métodos stanislavskiano e brechtiano, modelos vigentes na década de 1960 no Brasil. A encenação apontava para um fazer teatral com caminhos diferentes. 329 ESCOBAR, 1987, p. 125. SOUZA, 2003, p. 54. 331 SOUZA, 2003, p. 55. 332 [DIVULGAÇÃO]. Folha de São Paulo, 6 out. 1968, p. 32. 333 FERNANDES (1985, p. 44), na ficha técnica, não precisou o dia, mas colocou que o espetáculo estreou em dezembro de 1968. No entanto, a matéria jornalística CEMITÉRIO, O Estado de São Paulo, 11 out. 1968, p. 7, registrou outra data. 334 ARRABAL, Revista Veja, set. 1968, p.123-124. 335 MAGALDI apud FERNANDES, 1985, p. 78. 330 Ruth Escobar desejava levar a São Paulo uma experiência cênica inovadora, extrapolando, ainda mais, o espaço cênico usado em Roda Viva. Quando Victor Garcia pediu uma garagem para realizar seu espetáculo, a empresária não viu nisso empecilho e sim a possibilidade de ampliar o número de produções renovadoras da cena paulista. Para atender à solicitação do encenador, Ruth Escobar transformou uma antiga garagem num verdadeiro ferro velho de automóveis. A produtora aproveitou para inaugurar mais um novo espaço para espetáculos em São Paulo, o Teatro 13 de Maio.336 Neste local, Victor Garcia conseguiu harmonizar diversos elementos que resultaram numa verdadeira obra plástica. O encenador projetou o cenário como um local de rito, no qual os espectadores estavam imersos naquele ambiente repleto de ferro velho. A cenografia era composta por diversas carcaças de carros que foram suspensas por correntes e colocados acima do público; cadeiras giratórias permitiam aos espectadores acompanharem as cenas, mas cada pessoa com um ângulo diferenciado e, no centro do espaço, havia rampas e passarelas. Ao adentrar no Teatro 13 de Maio – um espaço que que media trezentos metros quadrados com cerca de trezentas poltronas giratórias337 - o espectador percebia que, ao contrário de outros estabelecimentos teatrais, a encenação rompia com o tradicional espaço à italiana. Tudo era exposto: fiação, equipamentos de iluminação e, principalmente, o local que abrigava o espetáculo (as paredes, o reboco, a sujeira). Estes procedimentos colocavam a plateia em contato com um novo registro cênico. Este local, a exemplo do Teatro Ruth Escobar, passou a ser constantemente vigiado. Durante os ensaios de Cemitério de Automóveis, o DEOPS incorporou a seguinte informação no prontuário de Ruth Escobar: A Prefeitura, que controla teatros, já pediu à alta administração, o fechamento do teatro, por numerosas irregularidades e impostos e taxas atrasados. Prevendo isso, a direção do Teatro já está providenciando a reforma de uma garage, denominada “TEATRO 13 DE MAIO”, onde deverão levar a peça “Cemitério de Automóveis”, que está sendo ensaiada. Essa peça, obscena, imoral, pornográfica, ainda não obteve liberação da censura. Dizem êles, entretanto, que a apresentação de qualquer forma, com ou sem consentimento das autoridades338. Antes mesmo de ser feita a inspeção do ensaio para a estreia, já havia um julgamento moral por parte dos agentes, baseado somente na leitura do texto. Além disso, havia uma rede de comunicação interna na administração pública em São Paulo. O DEOPS fazia uma varredura em diversos departamentos, a fim de encontrar motivos para incriminar, podar, coagir os vigiados considerados subversivos. Para pôr fim na discussão se Cemitério de Automóveis era um encenação apta a vir a público ou não, o coronel Aloiso Muhlethaler veio de Brasília para assistir a um ensaio, tendo decidido “liberar o espetáculo, com alguns cortes, depois que 3 censores paulistas haviam dado parecer pela interdição”339, registrou o jornalista. Além de dispender energias com a censura, Ruth Escobar também teve de buscar recursos financeiros para efetivar as ideias de Victor Garcia. Uma tarefa também árdua. A empresária Ruth Escobar investiu quantia significativa de dinheiro para produzir o espetáculo. Ela “gastou quase 200.000 cruzeiros novos: 80.000 com a montagem de O Cemitério de Automóveis e mais de 100.000 com a adaptação, especialmente para a peça, de uma nova sala 336 Durante toda a década de 1970, o Teatro 13 de Maio tornou-se um centro de criação de teatro experimental. Suas atividades foram encerradas em 1979. A trajetória desse empreendimento não será abordada nesta tese. 337 TEATRO, Folha de São Paulo, 08 ago. 1968, p. 3. 338 Processo 52-Z-0-202. APESP. 339 CEMITÉRIO, O Estado de São Paulo, 11 out. 1968, p. 7. de espetáculos”340, afirmou a produtora em entrevista. Como se vê, Ruth Escobar não media esforços para concretizar seus projetos teatrais. Aonde fosse necessário buscar recursos financeiros para sua produção, ela iria. O valor do investimento foi compensador. A repercussão e o prestígio junto ao público e a crítica fortaleceu a parceria entre Victor Garcia e Ruth Escobar. De um lado, um encenadorarquiteto que vislumbrava pôr em prática seus excêntricos projetos espaciais, de outro, uma produtora audaciosa que apostava em concepções renovadoras, oxigenando métodos utilizados pelos artistas brasileiros. Nesse sentido, pode dizer-se que Ruth Escobar via, nessa relação profissional, a possibilidade de ampliar sua reputação como agente cultural que extrapolou os limites da produção teatral paulista. Em entrevista concedida à crítica Ilka Marinho Zanotto, em 17 de março de 1974, Victor Garcia falou a respeito das diferenças entre as montagens realizadas na França e no Brasil e quais foram os motivos do sucesso da montagem de Cemitério de Automóveis em São Paulo: Em São Paulo foi muito melhor com a produção de Ruth Escobar, porque tive liberdade para procurar, encontrar e construir um espaço cênico. Em Paris foi muito difícil, somente se fazia teatro à italiana, isto é, com nítida divisão entre palco e plateia, e não se podia tocar nisto. Fui a primeira pessoa a levantar as cadeiras de um teatro que parecia um bonbonnière de veludo vermelho – (“a organização teatral me dá náuseas; materiais demais se impõem; lugares demais habitados por fantasmas e por ancestrais mortos, lugares demais sufocados pelos veludos vermelhos, como se não existisse nenhum outro material, nenhuma outra cor para simbolizar o universo teatral”). Modifiquei todo o sistema, introduzi este dispositivo mais ou menos semelhante ao que se viu aqui. (N.R.: aqui havia um palco cercado de cadeiras giratórias distribuídas por todo canto que permitiam aos espectadores acompanhar a ação dramática que se desenvolvia por toda parte: pelo teto, pelas paredes e pelo meio do teatro). Foi enorme a dificuldade no Théàtre des Arts porque tive que suprimir todo o primeiro andar para colocar as cadeiras em cima, devido ao rigor que há quanto às leis municipais, que datam de 1700, impossíveis de alterarem-se um milímetro. Este cenário inusitado e o tratamento dinâmico dado ao texto causaram um impacto enorme: foi o sucesso da temporada quanto ao público... a crítica foi mais cautelosa. Foi então que Ruth Escobar me encontrou – eu estava muito escondido depois de terminar a montagem do espetáculo – e pensei que seu convite para vir ao Brasil poderia ser uma grande aventura. Por isso vim341. Aproveitando a condição de autonomia cedida por Ruth Escobar para concretizar seu projeto teatral, de acordo com seus princípios estéticos, Victor Garcia não poupou esforços na realização de uma radical transformação espacial. Era a oportunidade de o encenador pôr em prática suas ideias teatrais quanto à inovação cênica, principalmente, em relação à tríade espaço-ator-público. Ainda que o cenógrafo Wladimir Pereira Cardoso não tenha feito parte da equipe desse espetáculo, ele contou que: [...] eles tiveram de inventar um tipo de palco que rompe com todos os modelos conhecidos. As cenas se desenvolvem numa plataforma central, à qual os atores chegam por uma rampa, e também numa passarela elevada que contorna toda a sala, junto às paredes. A representação, portanto, envolve o público por todos os lados e em vários planos simultâneos. Sobre a passarela circulará até uma motocicleta, o que obrigou o cenógrafo a usar materiais resistentes e caros342. 340 ARRABAL, Revista Veja, set. 1968, p.123-124. ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 14 mar. 1974. 342 ARRABAL, Revista Veja, set. 1968, p. 123-124. 341 A produção teatral brasileira, até a década de 1960, utilizou como principal tipo de espaço local o palco à italiana, e o espectador, tradicionalmente, ocupava o lugar de simples observador do espetáculo. No Brasil, a ruptura com a rigidez do palco italiano aconteceu de forma branda, com a inserção paulatina de novos elementos cênicos que transformaram a relação com o público. No caso de Cemitério de Automóveis, além da estrutura cenográfica concebida por Victor Garcia que rompia com modelos tradicionais, ela dissipava o olhar dos espectadores nas cenas que ocorriam, simultaneamente, em diferentes pontos do cenário. No fim de 1968, após duas encenações impactantes, Ruth Escobar decidiu montar sua quarta produção. Como se vê, naquele ano, a produtora atingiu um grau de profissionalismo e de ousadia que deixava estupefata uma parte da classe artística. Para encerrar o ano, Ruth Escobar adentrou ao universo de Nelson Rodrigues. Ela produziu A Última Virgem, cujo nome original era Os sete gatinhos. A mudança do nome do espetáculo foi motivada pelo fato de que as pessoas “pensavam que era uma peça infantil. Foi o próprio Nelson quem sugeriu o novo título”, recordou o diretor da encenação, Jô Soares.343 Neste texto, o dramaturgo aborda sobre a família Noronha que, aparentemente, tem uma vida normal, mas ela esconde segredos. Para garantir a boa educação e castidade de Silene, as outras quatro irmãs se prostituem. Contudo, ela se revela. Descobre que não é tão pura como se imaginava. A última virgem estreou dia 29 de dezembro de 1968 na Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar. Contudo, ao contrário das outras encenações, um “público razoável [compareceu] no Galpão”344. A falta de comparecimento de espectadores pode ser reflexo do famigerado AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, que criou no primeiro momento um clima de torpor e medo. O regime apertava o cerco a tudo que fosse considerado subversivo, contrário aos ditames do Regime Militar A peça também não agradou os críticos. Para Paulo Mendonça: [...] apesar dos aplausos em cena aberta e das inevitáveis exclamações de “genial!” ouvidas na récita dedica à “classe” – não fosse a direção inteligente e funcional de Jô Soares e ótimo desempenho de boa parte do elenco, sobretudo Rutinéa de Moares, Jofre Soares e Raquel Martins. Ao trabalho de Jô, eu faria a única restrição de tender talvez por imposição da cenografia, a esparramar demais as cenas num espaço cheio de pontos de visibilidade mortos, prejudicando ora um lado, ora, outro, da platéia. No mais o encenador conseguiu um rendimento muito acima do que o texto em si justifica. Rutinéa Joffre e Raquel Martins conferem a suas personagens coerência e uma densidade em total desproporção com o grotesco, primário e piegas da peça. Bendita desproporção!345. Marco Antônio de Menezes colocou que: Jô Soares dirigiu a peça com o mau cenário de Wladimir Pereira Cardoso procurando tirar o máximo de um elenco escolhido na base do tipo físico e do tipo de interpretação. Poucos atores conseguem fugir do que já faziam antes. As melhores presenças em cena são de Jofre Soares, Raquel Martins e Dirce Migliaccio. Os outros atores estão quase sempre a um passo da caricatura, Ruthinéa de Moraes consegue, entretanto, alguns bons momentos; quando se esquece de sua ótima Neusa Sueli em 343 JÔ SOARES. Entrevista concedida a Dirceu Alves Jr. NELSON, Folha de São Paulo, 15 jan. 1969, p. 23. 345 MENDONÇA, Folha de São Paulo, 10 fev. 1969, p. 19. 344 “Navalha na Carne”. Poderíamos ter visto uma tragédia brasileira. Mas “A Última Virgem” consegue apenas esboçar-se, ser a promessa de uma grande peça346. Com base nas opiniões dos críticos, constata-se que A última virgem não conseguiu alcançar uma posição de destaque, tampouco Ruth Escobar conseguiu encerrar seu ano com “chave de ouro”. Apesar disso, a produtora tinha em seu currículo espetáculos que marcaram história. Sua atuação primorosa diante de seus projetos teatrais demonstrou que 1968, para Ruth Escobar, tornou-se ainda mais estimulante. No entanto, após todas as situações ocorridas (mas também provocadas) por Ruth Escobar ao longo do ano, o regime militar nos bastidores começou a fechar o cerco em torno da empresária. Dias após o decreto do AI-5, em 17 de dezembro de 1968, Aloysio Muhlethaler de Souza – Chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas (o mesmo que veio pessoalmente assistir aos ensaios de Cemitério de Automóveis) encaminhou um ofício347 a José Brêtas Cupertino, Diretor do Departamento de Polícia Federal, solicitando que Ruth Escobar fosse enquadrada nas punições do AI-5. O argumento foi embasado num ofício de 18 de outubro que registrava a movimentação de Ruth Escobar: Consta que [Ruth Escobar] vem apresentando tendências esquerdistas. Em fins de março ou princípios de abril do corrente ano, a referida atriz compareceu expontaneamente a um programa de televisão do Canal 5, sob a direção do jornalista Munyr Fulho (Kalil Filho) onde fez pronunciamentos desairosos referentes à morte do estudante Edson ocorrido / na Guanabara, descorrendo, em seguida, sôbre a passeata que os estudantes dessa capital iam fazer em sinal de protesto e pesar; tomou parte na referida passeata, como elemento de prôa, intitulando-se representante das classes teatrais; no dia 30 de março último, por volta da meia noite, promoveu, cedeu seu teatro e participou de um reunião estudantil, liderada por JOSÉ DIRCEU (hoje condenado pela 2ª Auditoria Militar, incurso nas penas da Lei de Segurança Nacional) da qual tomaram parte elementos de esquerda da União Brasileira de Escritores e de Artistas Plásticos, com a finalidade de planejarem, nos mínimos detalhes, a passeata acima mencionada. Nessa reunião também compareceram alguns deputados e vereadores do Estado de São Paulo348. Todavia, ela não se calou e não conseguiram freá-la. Ruth prosseguiu. 3.3 Romeu e Julieta: os monstros do balcão O ano de 1969 começou para Ruth Escobar a todo vapor: Cemitério de Automóveis continuava em cartaz no Teatro 13 de Maio, no entanto, com o término das apresentações de Roda Viva e da I Feira Paulista de Opinião no Ruth Escobar, seu teatro ficou “órfão” de espetáculos produzidos por ela. Por isso, ela continuou com a mesma linha de pensamento iniciada com Victor Garcia: contratou outro encenador estrangeiro para dirigir sua nova produção. Nesse caso, o francês Jerome Savary foi o escolhido. A empresária, a priori, conhecia o trabalho do encenador. Savary recordou que “Ruth Escobar, depois de ver meu último espetáculo “Le grand magic circus e sus animales tristes” (sangue, animais, acróbatas, música selvagem, tudo isso em contacto direto com o espetacdor), foi louca bastante para me fazer vir 346 MENEZES, Jornal da Tarde, 16 jan. 1969. OFÍCIO 581/68 - SCDP. AN. 348 OFÍCIO 405/68 - SCDP. AN. 347 dirigir êste espetáculo”349. Obviamente, a “loucura” de Ruth Escobar estava conectada com uma posição política aliada à renovação da cena teatral. Savary, ao que tudo indica, desconhecia esse lado da produtora. Todavia, o encenador conheceria sua atuação como empresária teatral na prática. Savary foi contratado para dirigir Os Monstros, happening de autoria de Denoy de Oliveira. O mote principal da discussão do texto do dramaturgo seria a dominação das multinacionais estrangeiras no Brasil. O objetivo era o de “mostrar os conflitos que opõem um grupo a outro e fazem com que um deles tenha a primazia em tudo” 350. Destaco que, pela primeira vez, Ruth Escobar produziu um espetáculo, cujo texto era um roteiro, isto é, o procedimento adotado pelo encenador junto aos atores era da criação coletiva. Ruth ousava trilhar caminhos desconhecidos, mas na sua visão de produtora havia a possibilidade de alçar sucesso, além de contribuir à concepção de uma nova cena. Mas, nessa encenação, Ruth Escobar, foi mais além. Como havia feito, anteriormente, a empresária investiu na (re) formulação de um novo espaço teatral. A Sala Galpão de seu teatro foi reestruturada. A parceria de Savary com o cenógrafo Wladimir Pereira Cardoso resultou numa reforma do espaço em que “tiraram-se as antigas poltronas e em seu lugar foram instalados bancos, num total de 350 lugares. Êsses bancos envolvem um estrado central, lugar privilegiado da ação, mas os atôres estarão por tôda parte, em várias alturas, lugares ligados os vários palcos por escadas e passarelas”351. Vê-se que o grau de arrojo e audácia a cada produção teatral de Ruth Escobar era maior. A cada nova encenação, a produtora queria ultrapassar os limites dos padrões estabelecidos em todos os aspectos que compõem o fazer teatral. No entanto, a radicalização do espaço cênico ainda estaria por vir. A respeito da dramaturgia, o ator Raul Cortez lembrou de Fantocha, personagem que ele interpretava e a sua relação com o tema central: “eu fazia uma bicha reles, [...] sem importância nenhuma, que virava uma bicha fantástica após ser mordida pelo Drácula – era uma bicha vampira. Mas isso aí, na verdade, é a história das multinacionais que estavam entrando no Brasil na época”352. Como se vê, o tom extrativista da crítica do espetáculo estava camuflado em um personagem homossexual. Se de um lado havia a ocultação, de outro uma clara demonstração aos bons costumes. Nessa lógica, os outros monstros (Jupira, Mumia, Frankentein, Poranga, Mostra de barba negra (e outro de barba loira), Sacy, Bundo, Mula sem cabeça, Grossus Porrada, Dráculo e Marifasa) também tinham como pano de fundo essa mesma noção. No entanto, a ênfase dada às questões sexuais foi alvo da censura. Para obter autorização com a finalidade de apresentar o espetáculo, o coronel Aloisio Mulethaler – o mesmo que solicitou o enquadramento de Ruth Escobar na LSN – veio novamente vistoriar o trabalho de Ruth Escobar depois dos cortes realizados no texto. Apesar da oposição à Ruth Escobar, o Chefe da Censura autorizou que a encenação fosse a público. No entanto, impôs condições. A mais visível pode ser visualizada nas divulgações do espetáculo em que deveria constar uma advertência: “Pornográfico (Lei 5536 de 21-11-68) Artigo 1, parágrafo 7”353. Todavia, essa mensagem também podia ser considerada “positiva”, visto que despertava mais curiosidade no público. Raul Cortez também lembrou desse acontecimento. Ele disse que “nós tínhamos que trabalhar com uma placa na bilheteria, dizendo que a peça era considerada pornográfica [...] Naquela época, tinha a Marcha da Família Cristã, o movimento de estudantes, aquela coisa toda 349 SAVARY, Jerome. Artigo para o programa de Os Monstros, 1969. OS MONSTROS, Revista Veja, 05 mar. 1969, p. 67. 351 MONSTROS, O Estado de São Paulo, 28 mar. 1969, p. 11. 352 LICIA, 2007, p. 41. 353 VAMOS, Folha de São Paulo, 27 mar. 1969, p. 30. 350 [...] as pessoas fugiam disso, e a Ruth Escobar teve um prejuízo muito grande” 354. Em decorrência dessa determinação, Ruth Escobar não recebeu subvenção da Comissão Estadual de Teatro: “enquanto a censura conservar a observação, advertindo o público de que o espetáculo é pornográfico”355. Apesar dos contratempos ocorridos em decorrência da censura, Os Monstros estreou em 28 de março de 1969, novamente, a crítica não gostou do resultado apresentado. Para Paulo Mendonça, O espetáculo pretende ser deliberamente inorgânico, instititvo. Na verdade, êle é caótico e incerto. Pretende ser belo e ousado plasticamente. Na verdade é sobretudo rebuscado, com uma maciça procura de efeitos exteriores, não dos mais difíceis. O conjunto, por certo, não deixa de ter a sua força. Desde que se entra no teatro, a cenografia de Wladimir Pereira Cardoso logo impressiona, embora seus postulados técnicos possam ser discutidos [...] E durante a representação há momentos em que o clima fantasmagórico pretendido adquire uma certa densidade. Mas não se vai muito longe. E o que fica de experiência é quase nada: alguns instantâneos de quadros isolados, de claros-escuros e de côres. O resto é muita agitação e pouca substância 356. Ainda que o espetáculo tenha alcançado repercussão negativa junto à crítica paulistana, o fato é que Ruth Escobar pôde colocar em prática uma série de procedimentos inovadores para a cena teatral paulistana: a criação coletiva, a reestruturação do espaço cênico e a interpretação podem ser considerados elementos que sofreram modificação. Além disso, como todas as encenações anteriores, os aspectos políticos que discutiam a realidade brasileira estavam imbricados no trabalho. Enquanto Ruth Escobar iniciava os ensaios de Os Monstros, a imprensa jornalística divulgava que Michael Bogdonov seria o próximo encenador a ser contratado pela empresária para dirigir um texto shakespeariano. No entanto, essa parceria somente se efetuou em 1971. Enquanto isso ela começou a ensaiar Romeu e Julieta, de Shakespeare, traduzida e dirigida por Jô Soares357; espetáculo que estreou em 17 de setembro de 1969 na Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar. Romeu e Julieta conta a história de dois jovens apaixonados que são impedidos de cultivar esse amor, porque suas famílias são inimigas. Ele Montecchio, ela Capuletos. O elenco era composto de cinquenta atores/atrizes e a equipe técnica do espetáculo contava com treze profissionais. A produção não poupou esforços para conceber Romeu e Julieta. Além da quantidade de atores, a cenografia358 de Cyro del Nero foi um destaque à parte. No palco ele criou uma estrutura que remetia ao estilo elisabetano359. O público ficava em cima do palco. Ruth estava numa fase em que a cenografia e o espaço teatral deviam ter uma relevância fundamental na concepção do espetáculo. Iniciada com Roda Viva, a ideia de transformação da arquitetura da cena ganhou contornos grandiloquentes. Enquanto encenava Romeu e Julieta, Ruth Escobar implodia parte do seu teatro para começar a erguer a estrutura metálica que abrigaria a sua nova produção: O Balcão, de Jean Genet, com direção de Victor Garcia. Escrito em 1956, O Balcão evidencia a condenação dos Homens na sociedade em que estão inseridos, por meio das relações de poder a que os cidadãos são/estão submetidos, diariamente, pelas instituições. Genet coloca em destaque as personagens representantes das instituições (políticas, militares e religiosas) que reprimiam a liberdade de expressão das 354 LICIA, 2007, p.41 GALPÃO, Diário da Noite, 28 abr. 1969, p. 8. 356 MENDONÇA, Revista Veja, 09 abr. 1969, p. 5. 357 Durante o processo de pesquisa não foram localizados muitos materiais a respeito dessa encenação. 358 Ver imagens 61 no dossiê de fotos. 359 Ver imagem 61 do dossiê de fotos. 355 pessoas. Para isso, o dramaturgo concebeu a ação das personagens num bordel de luxo, no qual os personagens simulam os respectivos representantes dessas instituições. Para ele “estamos todos condenados a uma reclusão solitária no interior de nossa própria pele”360. Neste sentido, a visão de Genet do Homem na sociedade estava condenada à obediência de regras fabricadas para igualar os cidadãos. Suas obras eram uma tentativa de combater essa prática repressora da sociedade. Temendo que a revolução do lado de fora do bordel invadisse o estabelecimento, Madame Irma insinua, durante o desenrolar da encenação, que os verdadeiros detentores do poder fossem “assassinados” e, a partir dessa falsa persuasão, decide promover um “desfile” das falsas autoridades que estão em seu bordel para enganar a população. Passado o desfile, o Chefe da Polícia, responsável por colocar ordem à Revolução, também deseja ser representado e se fecha no Salão Funerário, outro local de aparências. Ao final, Madame Irma apaga as luzes para recomeçar tudo novamente, “é preciso voltar para casa onde tudo, não duvidem, será ainda mais falso que aqui”361. Com uma dramaturgia que provocava/dialogava com o contexto brasileiro do fim da década de 1960, Victor Garcia alcançou o ápice de sua carreira com esse espetáculo. A proximidade entre o diretor e o dramaturgo, com o pensamento do teórico francês Antonin Artaud, resultou em procedimentos cênicos renovadores para o Teatro Brasileiro. A respeito dessa combinação, o crítico Anatol Rosenfeld observou que: A afinidade entre Garcia e Genet certamente decorre, em certa medida, do fato de ambos, por influência direta ou não, estarem próximos de Antonin Artaud, parecendo traduzir-lhe idéias, visões e intenções fundamentais. Todos os três são expoentes de um teatro irracional “pré-lógico”, selvagem, “primitivo”, anárquico, sadomasoquista, “cruel”, destinado a, segundo as palavras de Artaud, purificar os espectadores de seus impulsos destrutivos362. Victor Garcia explorou dimensões que vão além da simples adaptação espetacular, concebeu um inédito projeto arquitetônico nunca visto em nenhuma parte do mundo: um teatro em forma de cilindro363. Para concretizar a ideia, o encenador contou com a fundamental contribuição empreendedora de Ruth Escobar que aceitou derrubar, literalmente, parte de seu teatro (plateia e balcão) a fim de construir uma estrutura de ferro de vinte metros de altura para a encenação d’O Balcão. Durante a execução do projeto arquitetônico arrojado em formato cilíndrico, Ruth Escobar, “durante cinco meses [viveu] o inferno das dificuldades. [Vendeu] tudo que pudesse ser considerado excedente. A casa ficou reduzida ao indispensável”364, recordou a produtora. O ato de vender os próprios bens, a fim de gerar recursos financeiros para a produção d’O Balcão apontou alto investimento. Vladimir Pereira Cardoso recordou que foi necessário uma equipe 360 GENET; CASTRO; GONÇALVES, 1976, p. VIII. GENET; CASTRO; GONÇALVES, 1976, p. VIII. 362 ROSENFELD, 1993, p. 174. 363 Suponho que Victor Garcia inspirou-se na escultura Monumento à Terceira Internacional do russo Wladimir Tatlin para conceber o projeto arquitetônico d’O Balcão. No contexto da Rússia construtivista, sua obra “captura o dinamismo da utopia tecnológica vista sob o prisma do comunismo; a energia pura é expressa como linhas de força que também estabelecem novas relações de tempo e espaço. A obra também evoca uma nova estrutura social, pois os construtivistas acreditavam que o poder da arte seria literalmente capaz de reformar a sociedade. Essa extraordinária torre que gira em três velocidades foi concebida numa escala monumental, completada com os escritórios do Partido Comunista”. JANSON, H. W.; JANSON, Anthony F. apud CONSTRUTIVISMO [entre 1990 e 2010]. 364 ESCOBAR, 1987, p. 134. 361 de “dezoito pessoas e eu [Wladimir], trabalhamos durante 5 meses, 20hs por dia, para realizar o cenário d’O Balcão. Todos dormíamos no Teatro Ruth Escobar, distribuídos até pelo teto, e instalados com um fogão, para que uma cozinheira, que chegava às 7 horas da manhã, fizesse lá mesmo a comida”365. Somente a estrutura cenográfica “custou 250.000 cruzeiros novos”366, afirmou Ruth. Esse valor ainda não contabilizava operários, elenco e a equipe técnica que totalizava cerca de cinquenta pessoas. De acordo com Rofran Fernandes, para amenizar os gastos, Ruth conseguiu “as sobras da construção da Praça Roosevelt, dadas por Rossi Engenharia”367. Esses restos serviram para construir parte do cenário d’O Balcão, o qual necessitou de, aproximadamente, oitenta e seis toneladas de ferro. Ao todo foram necessários nove meses de intensa produção para conceber o espetáculo O Balcão, um verdadeiro período de gestação. Durante a produção, uma triste notícia se abateu na classe artística paulistana. No dia 14 de junho de 1969 faleceu a atriz e empresária Cacilda Becker de derrame cerebral. Ela era considerada por Ruth como sua melhor amiga e, n´O Balcão, Cacilda interpretaria Madame Irma. Essa tragédia foi uma grande perda para Ruth Escobar, “durante os trinta e oito dias da despedida de Cacilda, Victor Garcia ficou abandonado a si mesmo, trabalhando com seu assistente. Só começamos os ensaios em julho”368, comentou a empresária. Sob o comando de Wladimir Pereira Cardoso, a equipe desenvolveu um espaço teatral inigualável, os espectadores ficavam sentados em arquibancadas em forma de espiral. Em determinados locais, havia a movimentação dessa estrutura para que outras partes da cenografia adentrassem à cena. No primeiro ato, havia uma plataforma circular transparente que preenchia todo o espaço interno da estrutura cilíndrica que se deslocava em sentido horizontal, parando em diversos níveis. Esta plataforma translúcida possibilitava aos espectadores que estavam sentados abaixo da estrutura, a visualização da ação das personagens na parte superior. Isso era possível, porque a iluminação era projetada de baixo para cima, facilitando a observação das cenas. No segundo ato, esse cenário era substituído por duas gaiolas-elevadores que traziam uma atriz em cada uma e, também, deslocavam-se no sentido vertical no interior dessa estrutura cilíndrica. No terceiro e último ato descia uma rampa metálica em formato de espiral que servia ao desfile realizado pela Madame Irma. Após a construção de toda essa arquitetura teatral, na fase final dos ensaios do espetáculo ocorreram dois episódios na equipe que desenvolvia O Balcão, mas que não interferiram na qualidade da encenação. O primeiro fato aconteceu com o diretor Victor Garcia, ele não “suportou as dificuldade financeiras e os sacrifícios de toda ordem, e comunicou a Ruth Escobar que retornaria à França”369, lembrou Ruth. Em meio a esse dilema, a produtora pediu ajuda ao crítico Sábato Magaldi para convencê-lo a concluir o projeto. Ele comentou que: “Procurei-o e ponderei que ele não poderia, a uma semana da estreia, abdicar do esforço hercúleo de tanto tempo e de uma realização prestes a tomar-se, por certo, a mais importante de sua vida artística. Ofereci-me como mediador, para dirimir eventuais conflitos, e Victor pareceu pacificado, aceitando ir até o fim370.” O segundo fato envolveu o seu marido e cenógrafo d’O Balcão. Ruth Escobar afirmou que: [...] em meados de outubro, fui procurada pelo Grego, mestre encarregado da construção do cenário. Disse que, se o cenógrafo continuasse no teatro, jamais 365 CARDOSO, Revista Veja, 19 dez. 1969. O BALCÃO, Revista Veja, 03 dez. 1969, p. 59 367 FERNANDES, 1985, p. 86. 368 ESCOBAR, 1987, p. 135. 369 MAGALDI, 2003, p. 266. 370 MAGALDI, 2003, p. 266. 366 abriríamos, porque, segundo ele, W. [Wladimir] impedia a parafernália de máquinas de funcionar. Parecia uma acusação exótica e absurda, mas verificamos que era real. Reuni-me com Victor Garcia e os assistentes. O sentimento nos dizia: é cruel. Os prazos nos urgiam: é necessário. Querendo-não querendo, decidimos. W. foi afastado e praticamente proibido de entrar no teatro. Em quarenta e cinco dias conseguimos pôr o cenário a funcionar.371 Apesar dos problemas enfrentados para finalizar o trabalho cenográfico e os ensaios, O Balcão estreou em 29 de dezembro de 1969, com um elenco de quarenta pessoas e tendo mais de três horas de duração. Os esforços de todos foi recompensado, público e crítica teatral elogiaram a magnitude do espetáculo. Para o crítico Yan Michalski: “O Balcão é o primeiro espetáculo brasileiro que constituiu, segundo tudo leva a crer, uma inovação radical de âmbito mundial372 na concepção do espaço cênico”373. Quanto ao público, “no segundo dia de espetáculo, com duas sessões, os ingressos se esgotaram tão logo a bilheteria se abriu”374, recordou Rofran Fernandes. Com o sucesso de público e crítica, a temporada do espetáculo durou exatamente um ano, sete meses e dezenove dias, encerrando-se em 16 de agosto de 1971. Nessa obra teatral, “Ruth Escobar nunca chegou a uma conclusão de quanto gastou na produção/manutenção do espetáculo”375, afirmou Rofran. Segundo Ruth, “durante dois anos fiquei pagando dívidas, porque o cenário, ao permitir apenas duzentos e oitenta lugares, amortizou lentamente os custos da produção”376. Após a temporada do espetáculo, toda aquela estrutura de ferro e cimento foi destruída. Esta atitude consagrou o trabalho de toda a equipe, pois “seria impossível me superar nos meus delírios faraônicos de produção”377, afirmou Ruth. Inebriada com o sucesso, a produtora não se fez de rogada e tentou realizar a mesma produção em Nova Iorque, em parceria com o diretor John Papi, mas a complexa logística para executar a construção de um teatro vertical não permitiu que o projeto fosse concretizado. Ruth Escobar foi responsável por executar uma obra teatral que colaborou de forma decisiva à renovação da cena teatral brasileira. A audaciosa iniciativa da produtora, em derrubar seu próprio teatro para construir uma estrutura vertical que abrigasse o espetáculo, tornou-se um marco na revolução espacial e interpretativa. O pensamento de Michalski retratou a importância d’O Balcão para o Teatro Brasileiro; ele colocou que: [...] é quase espantoso pensar que em tão pouco tempo o teatro brasileiro tenha percorrido um tão longo caminho de renovação, a ponto de permitir hoje em dia a produção de um espetáculo cuja forma seria autenticamente revolucionária em qualquer lugar do mundo. O surgimento de um tal espetáculo seria bastante normal num país que tivesse uma tradição de pesquisa experimental, mas não num país como o nosso, onde esse tipo de experimentação existe há pouco mais de três anos 378. As palavras do crítico evidenciam a importância da presença da produtora teatral Ruth Escobar no contexto da década de 1960 como uma liderança decisiva à renovação da cena teatral. Desde a produção do Festival Preto e Branco, a construção do seu teatro, passando pelas 371 ESCOBAR, 1987, p. 135. Único espetáculo brasileiro a fazer parte do livro que reúne importantes experiências que revolucionaram o teatro. Ver BABLET, 1975. [Grifo do crítico] 373 MICHALSKI In: PEIXOTO, 2004, p.151. 374 FERNANDES, 1985, p. 89. 375 FERNANDES, 1985, p. 92. 376 ESCOBAR, 1987, p. 135. 377 ESCOBAR, 1987, p. 134. 378 MICHALSKI In: PEIXOTO, 2004, p. 151. 372 produções espetaculares, Ruth Escobar sempre teve como objetivo colocar o Teatro Brasileiro em sintonia com a vanguarda internacional e, com isso, encontrar seu espaço de reconhecimento. A presença da empresária Ruth Escobar na década de 1960 proporcionou a produtores, grupos e artistas outra dinâmica no fazer teatral. Sua posição política, perante as atitudes governamentais ou ditatoriais da época foi exemplo de luta pelo teatro. A produtora buscou, através do intercâmbio, experiências cênicas que oxigenassem os grupos brasileiros. O que impressiona em Ruth Escobar foi sua capacidade de transformar os obstáculos em resultados efetivos, seja através da produção de espetáculos arrojados que afrontavam as autoridades, seja pela necessidade de estabelecer novos contatos com grupos e encenadores do exterior. 3.4 Um nova década – difícil ditadura e a riqueza dos embates Aqueles que tiveram a oportunidade de viver na década de 1970 devem lembrar-se que, no âmbito da música, os festivais eram a sensação do momento; na literatura, o decreto-lei 1.077379 instituiu a censura de periódicos e livros, o que acarretou cerca de trezentos e cinquenta títulos proibidos para a venda. Dentre eles estavam: História Militar do Brasil de Nelson Werneck Sodré, Minha Luta de Adolf Hitler, Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, ambos de Henry Miller, Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca, O Livro Vermelho do General Mao Tsé-Tung entre tantas outras publicações. Por outro lado, havia livros que faziam parte da geração desbundada:380 A Contracultura de Theodore Roszak, Eros e Civilização de Herbert Marcuse, Woodstock Nation de Abbie Hoffman, etc. Na música, Raul Seixas, Rita Lee, 14 Bis, Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso despontavam como principais cantores e compositores. No âmbito do teatro, destacou-se no Rio de Janeiro, o espetáculo Trate-me Leão do Asdrúbal Trouxe o Trombone, a remontagem de Cemitério de Automóveis, Grupo Opinião com o sucesso de Hoje É Dia de Rock, de José Vicente. Em São Paulo, em virtude dos recursos provenientes da Comissão Estadual de Teatro (CET), os grupos conseguiam realizar uma quantidade de espetáculos superior às produções cariocas, destacando-se o trabalho do Pessoal do Vítor, Pod Minoga e do Teatro do Ornitorrinco. Arena e Oficina entraram em crise: Augusto Boal foi preso e torturado, partiu logo após sua liberdade para o exílio, assim como José Celso Martinez. A década de 1970, de acordo com Elio Gaspari, Heloisa Buarque de Holanda e Zuenir Ventura ficou marcada pela: [...] quantidade suplantando a qualidade, o desaparecimento da temática polêmica e da controvérsia na cultura, a evasão dos nossos melhores cérebros, o êxodo de artistas, 379 BRASIL, 1970. “Desbunde” é uma gíria, inventada no Brasil durante os anos 60, para designar quem abandonava a luta. Ela foi evoluindo e passou a designar não só quem tivesse abandonado a resistência ao regime militar, mas toda figura interessada em contracultura a ponto de viver seus ideais. Foi inventada pela esquerda, mas seu emprego foi muito além de círculos trotskistas ou marxistas. Passados tantos anos desde a invenção desta gíria, ela já ganhou o domínio público e basta dizer “desbundado” para vir à mente a imagem de alguém com cabelos longos e roupas coloridas fazendo o símbolo da paz com a mão e segurando uma flor com a outra. AMORIM, 2007. 380 o expurgo nas universidades, a queda de venda dos jornais, livros e revistas, a mediocrização da televisão, a emergência de falsos valores estéticos, a hegemonia de uma cultura de massa buscando apenas o consumo fácil381. Mesmo com a situação difícil em que se encontrava o país, Ruth Escobar não diminuiu o ritmo de produções: remontou o espetáculo Cemitério de Automóveis (1970) no Rio de Janeiro e encabeçou novos projetos: Os Dois Cavaleiros de Verona (1971), Missa Leiga, A Massagem, A Viagem (1972) e Autos Sacramentais e Capoeira da Bahia (1974), Torre de Babel (1977), Revista do Henfil (1978), Caixa de Cimento e Fábrica de Chocolate (1979). Além disso, Ruth organizou dois festivais internacionais de teatro (1974 e 1976) e levou, consecutivamente, entre 1972 a 1973, um espetáculo por ano a Portugal382 e, quando possível, realizou circulação na Europa e na África de seus trabalhos. Enquanto O Balcão continuava em cartaz no Ruth Escobar, desde dezembro de 1969 a empresária iniciou, em 1971, a montagem Os dois cavalheiros de Verona, de Shakespeare. A obra do dramaturgo inglês apresenta as aventuras de dois jovens da cidade de Verona que seguem para Milão. Um viaja à procura da fortuna, o outro, parte relutante, deixando a namorada. Em Milão, encontra o companheiro com uma bela jovem e esquecendo o amor antigo passa a cortejá-la, tentando afastar o amigo e um rico pretendente da cidade. Para dirigir este espetáculo, Ruth Escobar contratou Michael Bogdanov, nome que anunciou em 1969 para montar uma obra shakespeariana (neste ano ele dirigiu Os Dois Cavalheiros de Verona, em Londres), porém essa parceria somente se concretizou em 1971. Além de o encenador ter experiência com essa montagem, Ruth Escobar tinha outra razão para contratá-lo: Bogdanov era pupilo de Peter Brook. Isto é, o encenador era uma via de acesso ao encenador inglês que estava na lista de profissionais com quem Ruth desejava trabalhar. Porém, Ruth Escobar também já havia conseguido se tornar um nome conhecido entre artistas na Europa, fator que foi decisivo para que Bogdanov aceitasse o convite. Ele afirmou que: Aceitei o convite para encenar Os Dois Cavalheiros de Verona no Teatro Ruth Escobar, antes de tudo, pela curiosidade de trabalhar em outra língua, em outra cultura. É um desafio, é um empresa estimulante comunicar Shakespeare para uma platéia brasileira. Depois, é muito boa a reputação do teatro de São Paulo na Europa, por causa das visitas de Victor Garcia, Jérome Savary e Genet, sem contar do êxito de O Balcão. Sabemos que o teatro aqui não tem mêdo de experimentar. Escolhi essa comédia porque só disponho de 5 semanas e meia de ensaios e ela é pequena, exigindo elenco reduzido383. O fato de a empresária ter em seu currículo produções teatrais com encenadores renomados, dava-lhe mais credibilidade e repercussão fora do Brasil. Aliada a essa estratégia, Ruth apostava em encenações contundentes, assim como arriscava em novos modos do fazer teatral. No entanto, ressalto que, ao contrário do que afirmou o encenador, o espetáculo reuniu vinte e quatro atores e mais de quinze profissionais da equipe técnica de produção. Logo, não se pode dizer que seja um elenco reduzido, tampouco pequeno. Porém, o pouco tempo que o diretor esteve junto ao elenco foi decisivo na montagem de Os dois cavalheiros de Verona. Para 381 GASPARI; HOLLANDA; VENTURA, 2000, p. 58. Algumas dessas produções teatrais não serão abordadas nesse subitem. Foram agrupados em outros capítulos para dialogar com outros motes. Há um capítulo exclusivo sobre a organização dos festivais. 383 PARA Bogdanov, O Estado de São Paulo, 26 mar. 1971, p. 10. 382 esta encenação, Bogdanov atualizou a obra shakespeariana ao contexto de 1971. Ele afirmou que “em termos de relações humanas, a peça não mostra um homem tradicional, mas um homem de agora, aqui, em São Paulo”384. Além disso, as músicas d´Os Mutantes foram escolhidas para compor a trilha sonora do espetáculo. O resultado da inserção de elementos contemporâneos num texto clássico, somado à direção instantânea de Bogdanov provocou, novamente, críticas ao trabalho da produtora Ruth Escobar, conforme pode ser constatado nas palavras do crítico Jefferson Del Rios: 1) O espetáculo “Os Dois Cavalheiros de Verona” [...] é um engodo, um desrespeito ao público e aos que fazem teatro a sério no Brasil. Quem acompanha regularmente as atividades dos amadores sabe que nos festivais anuais surgem melhores criações. Fujam desse esbulho. 2) O texto de Shakespeare mas é chato, tão chato quanto de um autor menor. É uma das primeiras peças do dramaturgo e não há nada de estranho no fato de o futuro gênio incorrer numa comediazinha rala de amor. 3) A montagem é assinada pelo inglês Michael Bognadov, assistente do famoso diretor Peter Brook. Isto tudo não significa nada. Ele chegou aqui (provavelmente após uma lida em “Shakespeare: Nosso Contemporâneo, de Jan Kott) e, a toque de caixa, costurou as cenas. Sem saber português, sem noção desde o início, de que teatro disporia, etc..., acendeu a bomba e foi tomar chá com torradas no País de Gales. Seu trabalho é tão superficial que anula um elenco de nomes respeitáveis. Na sessão para a crítica, o cachorrinho “Siri, que participa da estória, chamou mais atenção. Reconhece-se um ator/personagem apenas em Sérgio Mamberti. O pior é que a culpa não é da maioria dos interpretes que, evidentemente, não passaram pelo que se entende como direção. 4) Cenografia, figurinos e música não acrescentaram nada ao espetáculo, ou atrapalham, como é o caso do cinza chumbo e do preto do cenário, que matam de vez a possibilidade de um mínimo de clima no ambiente. A propalada piscina que haveria no palco é um ridículo tanque de água. 5) A montagem foi anunciada com estardalhaço, a chegada de Bogdanov um “suspense”, os planos mirabolantes. O teatro brasileiro parecia prestes a viver um momento histórico. O que se viu foi aventurismo empresarial que merece a condenação do público e do próprio teatro. 6) Finalizando: o jornal Le Monde, de 6/5/71 traz um comentário de Colette Godar sobre as apresentações dos grupos brasileiros no Festival de Nancy (pag. 19). Referindo-se aos espetáculos “O Evangelho Segundo Belzebu” e “Teatro Jornal”, a articulista conclui, significativamente: “Teatro mais representativo do Brasil do que os faustosos espetáculos montados por prestigiosos diretores importados da Europa”. Como diria Shakespeare: o resto é silêncio 385. Nunca na trajetória de Ruth Escobar houve uma crítica teatral tão feroz como esta escrita por Del Rios. Ainda que, sinteticamente, o crítico perpassou em diversos pontos da construção de um espetáculo: o texto, a interpretação, a direção e, em todos eles, suas observações foram contundentes. Palavras como engodo, ridículo, chato dimensionam a visão que o crítico teve do espetáculo. Em suma: reprovável. A estreia de Os dois cavalheiros de Verona aconteceu no Auditório da Fundação Getúlio Vargas, teatro que abria suas portas ao público paulistano em 07 de maio de 1971. Após estrear, o espetáculo teve problemas que se relacionavam com a subvenção financeira da Comissão Estadual de Teatro (CET). Naquele momento, a CET reformulava a sua forma de subvencionar os espetáculos teatrais. De acordo com a nota publicada n´O Estado de São Paulo, “empresários 384 385 PEÇA, O Estado de São Paulo, 07 mai. 1971, p. 8. DEL RIOS, Folha de São Paulo, 18 mai. 1971, p. 23. e atores de diversas companhias não concordaram com o critério adotado pela CET de submeter os espetáculos à apreciação crítica, após a estréia, só então decidindo se êles receberiam ou não o subsídio”386. Ao contrário das produções anteriores, Ruth somente apresentou o pedido de subvenção após a estreia, procedimento considerado errado pelo órgão que acabara de mudar as regras para apoiar o teatro paulista. Em relação ao espetáculo produzido por Ruth Escobar, a CET emitiu o seguinte parecer: Com referência a montagem de “Os 2 Cavalheiros de Verona”, a Comissão decidiu: a) manter a denegação de verba ao pedido inicial; b) apreciar o requerimento da empresa produtora para adaptação do espetáculo e sua remontagem em nova sala de espetáculos destinados a público juvenil; c) conceder auxilio para apresentação de 15 espetáculos a preços populares, exclusivamente no sentido de defender os legítimos interesses dos atores e outros profissionais que integram o elenco e que poderiam vir a ser prejudicados pela não concessão do auxílio 387. Ainda que meteórica, essa produção não deixou de estar envolvida com problemas que Ruth Escobar teve de encarar. Além disso, o fato de a empresária contratar um encenador que havia montado o mesmo espetáculo anteriormente, assim como, reduzir o tempo de montagem e de produção significaria, pensava a produtora, quase sucesso garantido. Neste caso, Ruth queria uma fórmula pronta ou quem sabe um passe de mágica. Não deu certo! Após encerrar a longa e premida temporada d’O Balcão, Ruth Escobar iniciou uma nova produção teatral. Nos planos dela, o próximo espetáculo seria Ascenção e Queda da Cidade de Mahagonny (Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny), escrita por Brecht no final da década de 1920. No entanto, Ademar Guerra não aceitou o convite para dirigir o texto. Ele recordou os motivos dessa negativa: [...] Ruth Escobar me procurou para eu dirigir Mahagonny, de Bertolt Brecht, uma peça que eu adorava e sempre esteve nos meus planos e que mais tarde dirigi com Renato Borghi e Ester Góes. Mas não achava que aquele era o momento de Mahagonny, até porque se tratava de uma produção difícil, cara, e a Ruth estava até o pescoço com as dívidas de O balcão, o espetáculo do Victor García. Eu a convenci de que ela não teria condições de encarar uma produção como a de Mahagonny. Quando apresentei a idéia (tínhamos então só a idéia de Missa leiga), a Ruth comprou a barra. Agora faltava o texto, do qual só sabíamos a estrutura, que seria a da missa católica388. Escrita por Chico de Assis e dirigida por Ademar Guerra, a estrutura dramatúrgica passava por todas as partes da liturgia da missa católica. O autor transformou a história de Jesus Cristo na de um homem comum, que deve decidir se deseja ou não passar pelo suplício da crucificação. Concebido a partir de episódios bíblicos, em forma de ritos, o texto aborda as angústias e amarguras do ser humano, “uma forma de apelo à consciência do homem como senhor do seu próprio destino [...] um chamado à nação, usando uma forma de entendimento familiar aos brasileiros, que é a missa”389, pontuou Oswaldo Mendes. Antes mesmo de iniciar a temporada do espetáculo, Missa Leiga esteve envolvida em polêmicas, principalmente, em torno do local escolhido para encená-la. A produtora desejava continuar a exploração e a adaptação de espaços físicos em função do espetáculo e da 386 ESPETÁCULO, O Estado de São Paulo, 21 mai. 1971, p. 7. MONTAGEM, O Estado de São Paulo, 27 mai. 1972, p. 12. 388 MENDES, 1997, p. 81. 389 MENDES, 1997, p. 87. 387 dramaturgia. Para essa encenação, Ruth Escobar escolheu a Igreja da Consolação, espaço que serviria de contraponto ao texto. No entanto, a utilização desse espaço foi alvo de críticas dos conservadores que não admitiam torná-lo palco de uma encenação que negava a própria trindade católica, explícita no próprio nome do espetáculo. Na concepção de Rofran Fernandes, Missa Leiga começou a ser alvo de ataques depois da publicação de dois artigos no Jornal da Tarde nos dias 22 de novembro de 1971 e 13 de janeiro de 1972. Ele disse que foi a partir deles que se “estruturou um movimento de bloqueio à idéia, liderado por Lenildo Tabosa Pessoa”390. Porém, como Ruth Escobar era alvo constante da ditadura, a vigilância se iniciou antes dessa data. Uma série de documentos confidenciais e sigilosos foram produzidos pelos órgãos fiscalizadores. Em 12 de novembro de 1971, a Delegacia Regional de São Paulo transmitiu um comunicado à DPF a respeito de Missa Leiga. Produzido a partir da reportagem Espetáculos na Igreja e o Centro de Cultura, publicada no jornal Diário da Noite em 11 de novembro, o relatório391 destacou os principais pontos da notícia: 1) que foi realizado um coquetel dentro da Igreja da Consolação com Ruth Escobar, padre Olavo Pezzoti, Adhemar Guerra e Claudio Petraglia; 2) que a peça foi escrita por Chico de Assis com direção de Adhemar Guerra, o mesmo que dirigiu Hair e Marat Sade; 3) que seguiria a mesma concepção realizada em outros países; 4) que provocaria antagonismo entre o Governo Revolucionário e a Igreja; 7) que solicitaram suspensão da exibição da entrevista concedida por Ruth Escobar a TV Cultura para que a mesma fosse analisada. O relatório continha uma série de informações que diziam respeito a Ruth Escobar e pessoas próximas. Visto que durante a ditadura militar a relação entre arte e governo era tensa, essa mesma lógica também deveria servir a seus aliados, nesse caso, a Igreja Católica. Para os militares, Missa Leiga poderia representar o início de “racha” junto a seus aliados. De acordo com Rofran Fernandes, o jornalista Lenildo Tabosa, conservador assumido e defensor da corrente progressista da Igreja Católica, publicou no Jornal da Tarde, em 22 de novembro, um texto que combatia e atacava a produção do espetáculo de Ruth Escobar. Reproduzo na íntegra esse texto: “CRISTO ENTRA EM CENA (Autodestruição) A ‘mudança’ é hoje o denominador comum sob o qual se unem os partidários de correntes aparentemente antagônicas: o liberal e o marxista/ortodoxo, o idealista e o inocente útil, todos se sentem à vontade, acobertados pela legenda da ‘mudança’. Lógico, para o homem de esquerda, isto é natural e proveitoso. Para ele tudo é sujeito a mudanças, tudo é contestável. As normas morais são relativas e mutáveis. Por isso, seus alvos preferidos são as instituições mais duradouras, o Estado, a Igreja e a Família. - A IGREJA, pelos seus dogmas, sua organização hierárquica, sua disciplina. - A FAMILIA como base de todas as continuidades, o elo de tudo que perdura de geração em geração. E qual a melhor forma, senão a única eficiente de sua destruição? Sem dúvida será a que vem de dentro, de maneira subliminar, subreptícia, mascarada. - AUTODESTRUIÇÃO - foi a expressão cabal empregada pelo PAPA PAULO VI para se referir àqueles que, dentro da Igreja, atentam contra a doutrina e ignoram normas e práticas corruptoras ou negadoras da fé católica. 390 391 FERNANDES, 1985, p. 99. Processo BR.AN.BSB.NS.AGR.151-SU. AN. E que outra classificação, que não autodestruição se pode dar à iniciativa do Padre OLAVO PEZZOTI, aliado a RUTH ESCOBAR, que juntos pretendem levar na Igreja da Consolação o espetáculo herético intitulado ‘MISSA LEIGA’. Nossa repulsa, já não se refere à peça em si, que se subversiva, está na alçada da Secretaria da Segurança verificar e prevenir. Já não se atém a RUTH ESCOBAR - a ativista comunista, a quem coube a iniciativa e foi a estimuladora do teatro do palavrão, a arrecadadora de fundos para a agitação. Nossa repulsa se prende ao local, premeditado minuciosamente escolhido - a nave da Igreja da Consolação. A única Igreja do País que tem suas portas abertas dia e noite, e onde existe um plantão espiritual noturno, socorrendo os aflitos, sejam moços, cabeludos, blusas de couro e calças desbotadas ou pobres mulheres de vestimenta igualmente significativa. Ora, se o objetivo é despojar a Igreja de modificações sofridas no passado, tudo para liberá-la de deformação imposta pela teologia católica tradicional, se devemos estudar a verdadeira Igreja de Cristo, como existiam nos inícios, voltemos à Bíblia e reflitamos como Mateus, Cap. 21: E, entrando ele em Jerusalém, toda a vida de se alvoroçou, dizendo: Quem é este? E a multidão dizia: Este é Jesus, o Profeta de Nazaré da Galiléia. E entrou Jesus no templo de Deus, e expulsou todos os que vendiam e compravam no templo, e derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas. E disse-lhe: Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração - mas vós a tendes convertido em covil de ladrões.' Ruth Escobar que vá vender suas pombas além mar. NÃO PERMITIMOS QUE OS MERCENÁRIOS VERMELHOS RETORNEM ASSIM AO TEMPLO DO SENHOR. IGREJA E FAM1LIA”392. O manifesto escrito por Lenildo Pessoa atacou diretamente a figura de Ruth Escobar e a todos aqueles que permitiram que Missa Leiga – cujo nome era considerado herético para ele – fosse apresentada dentro da Igreja da Consolação. Ele defendia a integridade absoluta da tríade da Estado, Igreja e Família, sendo que as mesmas não podiam ser alvo de comunistas desejosos por desestruturar essas instituições. Percebe-se, também, que o jornalista tinha conhecimento da trajetória polêmica de Ruth Escobar ao pontuar sobre produções teatrais, anteriormente produzidas, que usavam palavrões – uma afronta à moral! Isto é, para ele era inadmissível um lugar abrigar alguém que adotava um posicionamento contrário aos princípios religiosos. Apesar de Ruth Escobar conseguir autorização do padre Olavo Pezzoti, do arcebispo Paulo Evaristo Arns e de Dom Lucas Moreira Neves, porta-voz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada em 1960, por Plínio Correia de Oliveira, espécie de organização paramilitar de direita que defendia o conservadorismo católico, declarou “guerra ao espetáculo”. Para isso, TFP ameaçou o espetáculo com bombas e agressão ao atores - repetindo o que havia acontecido com Roda Viva, em 1968. Segundo Oswaldo Mendes, desde o início do projeto “sabíamos que o espetáculo enfrentaria resistência dos setores mais tradicionais e conservadores da Igreja”393. Outro relatório394 foi produzido a respeito de Missa Leiga. Datado de 29 de dezembro de 1971, foram feitos os seguintes apontamentos: 1) que Missa Leiga estava liberada pela censura; 2) que matinha contato com o Cel. Otávio Costa – Assessor de Relações Públicas da Presidência da República – o qual apoiava a vinda do Gen. Garastazu Médici na estreia: 3) que 392 FERNANDES,1985, p. 99-100. MENDES, 1997, p. 85. 394 Processo BR.AN.BSB.NS.AGR.COF.151.53 393 Ruth teria recebido quinhentos mil cruzeiros do Clero para montagem do espetáculo e que um funcionário tinha visto o cheque; 4) que a empresária planejava encenar Missa Leiga em Nova Iorque. Ainda que haja documentos que comprovem todos essas observações, o fato é que Ruth Escobar, naquele momento, estava em negociação com Joseph Papa para a montagem d´O Balcão aos EUA, não de Missa Leiga. As informações inseridas nos relatórios produzidos pelos órgãos de vigilância possuem erros e contradições que induzem e reforçam o “esquerdismo” da produtora. Ao perceber que as críticas religiosas aumentavam significativamente, Oswaldo Mendes que, além de ator de Missa Leiga também era jornalista, saiu em defesa do espetáculo. Ele publicou uma resposta na Revista Palco + Platéia n. 13, de 1972, com o seguinte texto: De repente, o teatro volta a ser vítima da viseira da intolerância, olhando atônito tanta incompreensão, tanta gratuidade nas críticas que recebe. Afinal, isso também não é novidade. São muitos mil anos que o teatro sofre os tipos mais variados de pressão. Como olho clínico da sociedade, as pessoas por ele atingidas, quando não conseguem a sua complacência e sua ‘morte-em-vida’, tentam tapar-lhe a boca, interromper-lhe o passo. Mas são coisas que o teatro suporta há muito tempo, para agora querer morrer por isso. Os episódios que cercaram a estréia do Missa Leiga; anunciada para a Igreja da Consolação dão novo testemunho da agressão e da violência que vitimam o teatro. Não foi suficiente que pessoas altamente credenciadas, da hierarquia católica e do laicato, assistissem a Missa Leiga e se rendessem extasiadas diante do espetáculo, aplaudido tanto por sua mensagem humana necessária quanto pela concepção visual de seu diretor. As viseiras da intolerância já estavam colocadas antes, e não tiveram a humildade de reconhecer o quanto é honesto e limpo o trabalho de toda a equipe do Missa Leiga. E a atitude se manteve contra a apresentação do espetáculo na Igreja da Consolação. Sem se falar nas ameaças de violência, em nome de uma, essa sim, muito discutível pretensão de salvaguardar a fé e a religião, que parecem até um sentimento privativo. O público, entretanto, será a única testemunha das intenções limpas do Missa Leiga. Muita gente vai se emocionar com o espetáculo. Muitos chegarão às lágrimas. A esperança é que cada lágrima diante do espetáculo seja uma bordoada na intolerância, no obscurantismo daqueles que defendem princípios muito mais pessoais que coletivos e cristãos. E diante disso tudo, o teatro continua tomando sua vereda, escolhendo seus atalhos, sem parar nunca, até que chegue o dia em que lhe permitam percorrer livre uma estrada um pouco mais larga e favorável 395. Todavia, o jornalista não deixou de tecer comentários a respeito de Lenildo Pessoa que, na sua visão, tinha mais motivos particulares do que coletivos e que o mesmo não os representavam. Como uma profecia, Missa Leiga arrebatou muitas pessoas no Brasil e em Portugal. Ruth Escobar adiou do dia 12 para 18 de janeiro a estreia de Missa Leiga. No entanto, ao que tudo indica, o adiamento foi motivado em decorrência de um comunicado do Secretário de Segurança Pública Sérvulo Mota Lima, enviado ao arcebispo metropolitano de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, um dia antes da estreia. O ofício reforçava que: A realização dêsse ato poderá ser tumultuada também por elementos subversivos, interessados em criar animosidade entre o Govêrno e o Clero, obrigando a interferência da Polícia num Templo, o que seria feito muito a contra-gôsto nosso. Nessa oportunidade, lembro a Vossa Eminência que a responsabilidade da realização não nos cabe, entretanto, a repressão à qualquer perturbação da ordem será feita com rigor que se fizer necessário. Considerando esta previsão e as suas possíveis e naturais consequências, essa Secretaria solicita ao Reverendíssimo Arcebispo Metropolitano de São Paulo, que 395 Revista Palco + Platéia n. 13, de 1972 apud FERNANDES, 1985, p. 100. suspenda a realização dêsse ato teatral dentro do aludido Templo, a fim de que a ordem pública não seja violada396. Contudo, cabe destacar que antes de permitir que Missa Leiga fosse encenada na Igreja da Consolação, o texto do espetáculo foi apreciado por Dom Lucas Moreira, a pedido de Dom Paulo. Em decorrência das divergências que a encenação provocava junto à Igreja e aos militares, Dom Lucas concedeu uma entrevista ao semanário arquidiocesano O São Paulo em que afirmou que a dramaturgia de Chico de Assis era “de grande densidade religiosa [assim como] literalmente belo e teatralmente funcional [por isso] pensei que não haveria mal em que fôsse encenado no interior de uma igreja” 397. Porém, Dom Lucas sabia que a leitura do texto era somente a primeira parte da avaliação. Ele se defendeu, dizendo que “não pude emitir nenhum julgamento sôbre a mise-en-scène. Esta seria uma nova apreciação que só poderia fazer no momento dos ensaios e que deve ser feita porque ela é extremamente importante num espetáculo e pode ser decisiva”398. Noutro informe considerado confidencial e urgente, produzido pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo em 18 de janeiro de 1972, afirmava que a estreia de Missa Leiga seria impreterivelmente no dia 21, na Igreja da Consolação e que algumas autoridades haviam sido convidadas. O relatório também registrou que, “por intermédio da DR/SP, manteve contato com a senhora Ruth Escobar [...] fazendo-lhe ver as conseqüências negativas da encenação no local por ela escolhido”. Esse entendimento logrou êxito, passando a peça a ser apresentada no antigo galpão da Fábrica de Chocolates Lacta, na Vila Mariana, evitando-se, com isso, os prováveis distúrbios.399 Ainda que remota a possibilidade de um órgão censório convencer Ruth Escobar a mudar de posição, o fato é que ela decidiu trocar o espaço de apresentação. Por outro lado, estava em jogo a integridade dos atores e suas relações com Dom Paulo Evaristo Arns e isto, na visão de Ruth Escobar, era fundamental. Porém, a experiente produtora soube tirar proveito de maneira inteligente com a mudança de local. Aproveitou que a fábrica estava localizada na divisa entre dois bairros para “brincar” nos anúncios. Na divulgação, ela utilizou a frase: Missa Leiga, agora no Paraíso400. Neste caso, Paraíso é o nome de um bairro paulista, mas o subtexto também dizia que saíra do “inferno” para o “Paraíso”; que acabara os problemas em torno da encenação. No entanto, outras problemáticas vieram. Depois do embate travado entre os jornalistas e TFP, Ruth Escobar e seu grupo decidiram ocupar um novo espaço. A produtora alugou uma antiga fábrica de chocolates da Lacta.401 O jornalista da Gazeta de Santo Amaro definiu o local como “uma espécie de catacumba, muito semelhante àquelas onde os cristãos iam rezar as suas missas, para escapar dos romanos”402. Nessa mesma linha de pensamento, Edélcio Mostaço também afirmou que a antiga fábrica estava em “condições um tanto quanto precárias, porque o local era improvisado, mas com toda a dignidade”403. Todavia, essas condições precárias das instalações do local de apresentação não afetou o espetáculo. 396 Processo BR.AN.BSB.NS.AGR.151-SU. AN. Processo BR.AN.BSB.NS.AGR.151-SU. AN. 398 Processo BR.AN.BSB.NS.AGR.151-SU. AN. 399 Processo BR.AN.BSB.NS.AGR.151-SU. AN. 400 [DIVULGAÇÃO]. O Estado de São Paulo, 29 fev.1972, p. 58. 401 Depois da apresentação nessa antiga fábrica, o espetáculo foi para o Teatro Leopoldo Fróes e, posteriormente, para o Teatro Ruth Escobar. 402 A “MISSA. Gazeta de Santo Amaro, 04 fev. 1972, p. 3. 403 MOSTAÇO, Edélcio. Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. 397 Finalmente, depois dos embates, em 28 de janeiro de 1972, Missa Leiga estreava. Na noite de abertura, “o público interrompeu o espetáculo cinco vezes, com palmas e gritos de entusiasmo”404, registrou o jornalista da Gazeta de Santo Amaro. A vibração do espetáculo ocorreu devido à realização de um jogo cênico entre palco e plateia. Um dos motivos dessa vibração diz respeito à utilização de um recurso simples, mas eficiente para mobilizar os espectadores. Em uma das cenas, o diretor Adhemar Guerra concebeu uma cena em que os atores iam até a plateia com gravadores para coletar depoimentos, declarações e, inclusive, denúncias sobre a repressão da ditadura militar no Brasil. O ator Sérgio Britto recordou que: [...] era uma peça que reproduzia um ritual de missa católica, mas a gente aproveitava a cada momento do ritual para cutucar um assunto político. Na hora do sermão eu devia improvisar o que estava acontecendo no dia... aquele dia, no Brasil, naquela hora do espetáculo, o que estava acontecendo com cada ator, eu devia sentir todo mundo e... o público... alguém gritava alguma coisa no meio da platéia: - “O meu filho está preso! Não sei onde ele está! Meu marido morreu, foi assassinado!” 405 Pode dizer-se que a encenação ao suscitar o sentimento de indignação propunha, de certo modo, um ato catártico. O contexto de (re)pressão que o Brasil enfrentava no pós-AI5 era o principal motivo para que o público experimentasse a possibilidade de denunciar as agruras vividas no país e experimentar sua liberdade de expressão. Para Oswaldo Mendes “entre as cenas relevantes estão o sacrifício de Abraão, o julgamento de um jovem Templário e o Apocalipse. As preces rituais são adaptadas para um sentido de súplica pela redenção social [...] A comunhão, simbolizada por beijos, é oferecida aos espectadores por meio de um grupo de crianças que vai ao encontro da platéia”406, recordou. Passado pouco mais de um mês da estreia, Missa Leiga sofreu outro “golpe” referente ao local de apresentação: a prefeitura de São Paulo pediu o fechamento do estabelecimento onde o espetáculo se apresentava. Esta decisão partiu do coordenador das Administrações Regionais, Celso Hahne, que se baseou no relatório produzido por um engenheiro especializado em segurança. Diversos problemas foram apontados. No laudo, alegava-se que “1 - O teatro não tem forro, está com instalações elétricas comprometidas, mostrando “sinais de incêndio contido há tempos”; 2 - a estrutura que suporta as cadeiras está sobre uma armação “mal e porcamente feita”; 3 - a sala de espera é “precaríssima” e os sanitários são em número insuficiente”407. Para solucionar o problema, a prefeitura de São Paulo cedeu o Teatro Leopoldo Froes para as apresentações de Missa Leiga. Enquanto isso no Teatro Ruth Escobar continuava em cartaz A Massagem na Sala Galpão e, na Sala Gil Vicente, começava a montagem de A Viagem, outra mega produção de Ruth Escobar. Após a estreia, Missa Leiga desencadeou outra problemática junto à imprensa, uma crítica de Clóvis Garcia foi recusada pelo jornal O Estado de São Paulo. Como forma de protesto, a mesma foi publicada na Revista Palco + Plateia: A direção de Ademar Guerra deu ao texto a grandeza e a força exigidas pelo tema. Com sua reconhecida habilidade na condução de massas de atores, os trinta intérpretes se agrupam, se separam, participam ou assistem, numa precisão e eficiência de grande impacto, obtendo a adesão do público. O contraponto das expressões e inflexões, quase sempre em oposição às palavras, dá um poderoso efeito dramático [...] o talento A “MISSA”. Gazeta de Santo Amaro, 04 fev. 1972, p. 3. BRITO, 2000. 406 MISSA Leiga. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2015. 407 TEATRO, O Estado de São Paulo, 12 abr. 1972, p. 8. 404 405 de Ademar Guerra conseguiu a criação de um dos grandes momentos cênicos de nosso teatro.408 Na trajetória de Ruth Escobar, Missa Leiga foi mais uma produção de sucesso, não somente pela exuberância da cena, mas por tudo aquilo que envolveu a produção. Novamente, a empresária mostrava que por meio do teatro era possível fazer uma “revolução”, seja no uso de uma dramaturgia que afrontava os padrões estabelecidos, seja pela reestruturação de espaços, características que podem ser reconhecidas em produções anteriores e que foram levadas a cabo por Ruth. Por fim, cabe fazer uma pequena ressalva. Após alguns anos, Ruth Escobar não havia esquecido a perda da “batalha” referente à Igreja da Consolação, provocada por manifestantes esquerdistas católicos e militares. Ela os surpreendeu com uma ideia implacável. Ademar Guerra recordou: Não sei se Nelsinho sabe, mas o seu batizado na Igreja da Consolação foi uma vingança da Ruth contra aqueles que proibiram a gente de fazer a Missa leiga lá dentro. Ela marcou o batizado, anunciou aos quatro ventos e levou o elenco inteiro do espetáculo, vestido com as roupas de cena e cantando as músicas do Cláudio Petraglia. Quem disse que ela não faria a Missa leiga na Igreja da Consolação? Seus inimigos devem ter espumado de ódio. Dessa coragem da Ruth eu gostava409. Por essa, Lenildo, militares e seus companheiros não esperavam.... Após quase um mês da estreia de Missa Leiga em 26 de fevereiro de 1972, estreava na Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar o espetáculo A Massagem, com direção de Emílio Di Biasi. Com um elenco composto somente por dois personagens, esta peça pode ser considerada uma das menores produções na trajetória de Ruth Escobar. Escrita por Mauro Rassi, o texto trata de um roteirista de cinema norte-americano (interpretado por Stênio Garcia), que é contratado por um massagista brasileiro (personagem de Nuno Leal Maia) na tentativa de solucionar sua solidão. Apesar de aparentemente ser um tema de pouca importância à censura, o drama com conflito existencial foi alvo da censura. A respeito dessa polêmica, O Estado de São Paulo publicou que “o texto só foi liberado pela censura federal depois de terem sido feitos vários cortes, inclusive uma cena inteira”410. A respeito dos cortes, a jornalista Moli Ferreira, do Correio da Manhã, disse que “a peça foi muito simplificada em suas propostas, que visavam denunciar uma série de problemas do submundo nova-iorquino e acabou reduzida a um caso de homossexualismo”411. Ainda que não se tenha maiores informações a respeito dos cortes, o fato é que os censores marcaram presença no ensaio em 08 de fevereiro de 1972, conforme Hilton Viana412. A respeito da encenação, o crítico Fausto Fusser foi enfático ao afirmar que considerou o espetáculo desagradável413. Fusser também disse que a produção queria instalar um circuito de sistema fechado de TV no interior e construir uma réplica da estátua da liberdade. A primeira como forma de fazer alusão ao sistema de vigilância, a segunda como marketing de divulgação do espetáculo. Porém, ambas as ações não foram colocadas em prática, registrou Fusser. O 408 MISSA Leiga. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2015. MENDES, 1997, p. 145. 410 ESTRÉIA, O Estado de São Paulo, 26 fev. 1972, p. 7. 411 FERREIRA, Correio da Manhã, 25 abr. 1972, p. 14. 412 VIANA, Diário da Noite, 10 fev. 1972, p. 23. 413 FUSER, Folha de São Paulo, 11 mar.1972, p. 4. 409 crítico também mencionou que, entre os atos, alguns espectadores eram convidados a subir no palco para serem massageados. Ainda em 1972, Ruth Escobar produziu A Viagem414 baseado na obra de Os Lusíadas, de Luís de Camões, adaptado por Carlos Queiroz Telles415 e dirigido por Celso Nunes. Este espetáculo “foi uma forma inteligente de o Teatro Ruth Escobar participar das comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil”416, afirmou Rofran Fernandes. Escrita por volta de 1556, a epopeia portuguesa tem como ação central a descoberta do caminho marítimo até a Índia por Vasco da Gama. Dividida em dez cantos e quatro partes (viagem, história de Portugal, poeta e mitologia), os personagens se deparam com vários tipos de episódios: líricos, simbólicos, históricos e mitológicos ao longo da viagem. Ainda que a obra literária fosse datada e tivesse características específicas, o dramaturgo Carlos Queiroz Telles adaptou o poema em conformidade com o panorama sociopolítico que Brasil e Portugal enfrentavam: a ditadura militar. De acordo com Marco Antônio Guerra, a adaptação de Telles “é uma dura crítica à prepotência, ao poder, à usurpação e exploração de um império colonial decadente e tão agonizante quanto o regime que teimava em manter viva a idéia estacionária de que tudo estava na mais perfeita ordem e de exercer tal poder era mais do que natural”417. Aproveitando a estrutura vertical deixada pelo espetáculo d’O Balcão, Hélio Eichbauer, cenógrafo responsável pela reestruturação espacial, juntamente com Carlos Queiroz Telles, elaboraram um audacioso projeto de ambientação cênica que colocava o espectador em três dimensões: “no porão está localizada a partida das naus, recriando uma Lisboa habitada por jograis e saltimbancos medievais misturados às figuras renascentistas do cortejo de Vasco da Gama. Nos espaços intermediários surgem o Velho do Restelo, os episódios do Cabo da Boa Esperança, Melinde, Mombaça, Calecut, enquanto em trapézios altíssimos aparecem os deuses e deusas do Olimpo”.418 O projeto cenográfico foi fundamental ao desenvolvimento do espetáculo, pois possibilitou criar uma dinâmica de movimentação de oitenta e seis atores no interior do espaço (o maior elenco em toda carreira de Ruth Escobar enquanto produtora). As rampas permitiam o acesso a outros níveis do palco, roldanas desciam com atores, mastros e redes baixavam do urdimento. Além disso, havia dois ‘palcos’ suspensos por cabos de aço. Toda essa estrutura cenográfica contava ainda com nove músicos e vinte e seis na equipe técnica. A grandiosidade d´A Viagem pode ser percebida pelos números. A crítica de Ilka Marinho Zanotto publicada no Brasil e, também, na revista novaiorquina The Drama Review, sintetizou a beleza d´Os Lusíadas: 414 Ao longo de toda a trajetória de Ruth Escobar, ela produziu três versões d´Os Lusíadas. A primeira foi dirigida por Celso Nunes, em 1972; Iacov Hillel assinou a direção da segunda montagem, em 2001 e, no mesmo ano, Márcio Aurélio dirigiu a terceira versão. Estes dois últimos espetáculos chamavam-se Os Lusíadas. Estas encenações foram objeto de pesquisa de SILVA, 2013. 415 O dramaturgo dividiu-se o texto em cinco ciclos: 1°) Da Proposição à Partida das Naus - aborda os primórdios da história de Portugal, os preparativos da partida, as imprecações do Velho do Rao-telo, enfim a passagem da Idade Média para a Renascença. 2°) De Lisboa a Melinde - aborda os perigos da viagem, o Concílio dos Deuses, a chegada a Moçambique, Mombaça e finalmente Melinde. Desponta então a expansão colonial portuguesa. 3°) Estada em Melinde - aborda as narrações de Vasco Da Gama sobre vários episódios da história lusitana, tais como as batalhas de Aljubarrota e Ourique. 4°) De Melinde até a partida da Índia - aborda a chegada à Calecute e a Corte de Samorim. 5°) Ilha dos Amores e Máquina do Mundo - aborda a volta a Lisboa e o reencontro com o Velho do Restelo. GUERRA, 1993, p. 171-172. 416 FERNANDES, 1985, p. 109. 417 GUERRA, 1993, p. 172. 418 A VIAGEM. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2015. O elogio máximo que se pode fazer ao espetáculo é dizer que ele consegue transpor de modo admirável a maior concepção literária da língua portuguesa, sem traí-la; a partir de uma visão crítica contemporânea, que resulta de uma leitura aguçadíssima do próprio texto camoniano, ele recria o complexo universo renascentista através da interação em proporções áureas do texto, interpretações, cores, luzes, espaços cênicos, sons e ritmos; elementos que confluem para a síntese harmônica de um movimento extraordinariamente amplo e majestoso que perpassa o todo e a tudo envolve como uma grande sinfonia419. Incluído na programação oficial da visita do Presidente do Conselho de Ministros de Portugal,420 o espetáculo A Viagem realizou, em 06 de setembro, à noite, a apresentação do primeiro ato às autoridades portuguesas e brasileiras, em especial aos ditadores Emilio Garrastazu Médici (Brasil) e o Marcelo Caetano (Portugal). O presidente português Caetano ficou impressionado com o espetáculo produzido por Ruth Escobar, foi um “momento de genialidade teatral”421. Como mencionado anteriormente, A Viagem também tinha como objetivo refletir sobre os contextos ditatórias. A respeito da relação entre o espetáculo e Portugal, o diretor do espetáculo, Celso Nunes, recordou que: “desde que sucedera ao ditador Salazar, Caetano herdara uma guerra generalizada, guerra em quase todas as áreas coloniais: um conflito sem sentido nem perspectivas que consumia o orçamento do Estado e condicionava a vida toda do país [...]Portanto, em 1972, quando A Viagem estreou, a guerra colonial ainda era uma pedra no sapato do presidente português”422. Neste sentido, observa-se que Ruth não tinha limites na luta contra a(s) ditadura(s), ela queria, por meio do teatro, criar contrapontos para provocar reflexões. Pontuo que, naquele ano, Ruth levou Missa Leiga a Portugal. A Viagem veio a público duas semanas após essa apresentação particular, em 23 de setembro, permanecendo em cartaz até 11 de fevereiro de 1973. Ruth Escobar conseguia, novamente, imprimir sua marca na realização de mais uma mega produção de sucesso. Após 1974, quando coproduziu e circulou pela Europa com o espetáculo Capoeiras da Bahia, somente em 1977 Ruth Escobar voltou a produzir um novo projeto teatral. No ano de 1975, a empresária não fez qualquer tipo de produção teatral, mas em 1976 organizou o II Festival Internacional de Teatro. Sua retomada às montagens teatrais ocorreu com Torre de Babel, com a qual Ruth Escobar encarou o desafio de retornar aos palcos para interpretar Latídia; de autoria de Fernando Arrabal (Oye Patria mi aflicción, no original) e direção de Luiz Carlos Ripper. O espetáculo estreou em 1º de maio de 1977 na Sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar, após uma série de cancelamentos nos dias 12, 18, 25, 27 e 29 de abril. Novamente, Ruth Escobar apostou na produção de um texto europeu que tinha a “virtude de apresentar o universo muito próximo do nosso, oferecendo-os uma imagem cruel e grotesca da realidade”423, pontuou o crítico Sábato Magaldi. No momento sociopolítico que o Brasil vivia, no fim de 1970, o processo de abertura política, o desmoronamento de um castelo em ruínas era uma metáfora que satirizava a queda do sistema governamental - luta travada por Ruth Escobar durante todo o regime militar e que estava prestes a acontecer. Para encenar a história de uma Espanha combalida pelos interesses políticos, Ruth Escobar, novamente, envolveu-se numa arrojada produção cênica. Seguindo o mesmo pensamento estético d’O Balcão e A Viagem, a produtora apostou mais uma vez na 419 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 26 set. 1972, p. 12. Ver ALMEIDA, 2008. 421 FERNANDES, 1985, p. 109. 422 ROCHA, 2008, p. 124. 423 MAGALDI apud FERNANDES, 1985, p. 121. 420 radicalização do espaço cênico. O majestoso castelo da encenação foi construído dentro do Teatro Ruth Escobar. Luis Carlos Ripper – que também foi responsável pela cenografia - soube explorar as dimensões do local que vão do “porão aos urdimentos [e o] valor simbólico das combinações”424, destacou Sábato Magaldi. O crítico também falou a respeito do impacto visual da cenografia que prendia os espectadores por meio da “magia ritualística do palco, instrumento de provocação de seus motivos secretos, logo [o espectador] sentirá que está vivendo uma experiência importante e reveladora”. Porém, a crítica paulistana foi além. A jornalista Telma Martino disse que “Ruth Escobar conseguiu com Torre de Babel o sonho de qualquer produtor. Conseguiu um espetáculo à prova de críticas”425. Sábato Magaldi colocou que “mais uma vez, Ruth Escobar dá ao nosso teatro, com arrojo e generosidade, uma dimensão internacional”426. Além de uma produção esmerada, a atuação de Ruth Escobar surpreendeu a todos. Sábato Magaldi escreveu que Ruth viveu “Latídia com absoluto domínio e lúcido entendimento de personagem. As inflexões estão corretas e ela se espraia pelo palco sem hesitar num gesto ou numa atitude, sempre soberana como duquesa. A paixão ilumina o seu desempenho, dando-lhes autenticidade e grandeza”427. No entanto, a trajetória de Ruth no teatro brasileiro como atriz foi ofuscada pela sua atuação como empresária, pois ficou “mais evidente a dependência que o teatro daqui tem de Ruth Escobar mostrar qualquer coisa que não seja o habitual da vizinhança” 428, afirmou o crítico Telmo Martino. O resultado obtido em Torre de Babel foi alcançado a duras custas. Para produzir esse espetáculo, ela teve de: “hipotecar uma casa na Rua Angatuba por 3 milhões de cruzeiros. Os custos da montagem já chegaram, segundo ela, a 950 mil cruzeiros. Nestes próximos anos, ela terá que restituir esta quantia à Caixa Econômica, acrescida de 1,6 milhões de cruzeiros que correspondem aos juros”429. Mesmo com as dificuldades para produzir o espetáculo, “escolhi uma peça para estrelar, trouxe Arrabal para ajudar a coroar-me, realizar-me como atriz, tive críticas excelentes”430, lembrou Ruth Escobar. Por fim, lembro que no início das apresentações desse espetáculo, a produtora colocou em cena, um burro chamado de Ernesto431, nome que aludia ao ditador Ernesto Geisel. Ainda que este fato tenha sido breve, o governo militar considerou uma afronta, sendo aconselhada a trocar o nome. Assim o fez, mas Ruth não perdeu a oportunidade para criar, mais uma vez, um celeuma com a ditadura. Além do arrojo como produtora ambiciosa e audaz, agente capaz de direcionar esforços e articulações na realização de projetos, Ruth Escobar não temeu o investimento em projetos que arriscavam no terreno da linguagem cênica. Por isso, ao tratar de sua trajetória, é preciso relacioná-la às mudanças estéticas. Neste sentido, as novas tensões no uso do espaço cênico se destacam, sendo que a aventura de Ruth Escobar com O Balcão significou uma ruptura significativa ao Teatro Brasileiro. 424 MAGALDI apud FERNANDES, 1985, p. 121. MAGALDI apud FERNANDES, 1985, p. 121. 426 MAGALDI apud FERNANDES, 1985, p. 121. 427 MAGALDI, Jornal da Tarde, 09. mai. 1977. 428 MARTINO, Jornal da Tarde, 11 mai. 1977. 429 RUTH ESCOBAR, acervo CEDOC/FUNARTE s/e, s/d 430 ESCOBAR, 2003, p. 18. 431 Na ficha técnica do espetáculo consta que Jegue Cristina e Viola, interpretavam o papel do Asno Marciano. 425 3.5 Dossiê de fotos A Produtora CAPÍTULO IV – A REBELADA o quarto capítulo desta tese, abordo a participação de Ruth Escobar em alguns eventos ocorridos em seu teatro. Dentre os mais conhecidos, destaco a 1ª Feira Paulista de Opinião em 1968. Concebido por dramaturgos paulistas, o projeto tinha como objetivo discutir a realidade da cidade de São Paulo, assim como temas relacionados ao regime militar. O evento foi rodeado por dificuldades ocasionadas pela censura. Dez anos após, Ruth Escobar remontou o projeto com o nome de Feira Brasileira de Opinião. Novamente, a encenação foi alvo de repressão. Seu teatro também foi ponto de encontro à realização de outros tipos de eventos, dentre eles o I Encontro de Grupos Homossexuais Organizados, causa considerada minoritária por muitos mas, novamente, Ruth Escobar se interessou por um assunto que estava à margem da discussão da sociedade paulista. Seu teatro também foi ponto de encontro contra a vinda do ditador argentino Jorge Videla, que fez uma visita oficial ao Brasil. Até foi palco de protestos e manifestações. Todavia, a presença de Ruth Escobar também foi registrada em outros locais fora da cidade de São Paulo. Sua notoriedade diante de causas humanitárias, assim como a repercussão por ser produtora teatral de suas “revolucionárias” encenações, levou-a à atuação em outros espaços. Ruth Escobar também deu especial atenção aos presos comuns, uma faceta pouco conhecida. As primeiras experiências sobre apresentações teatrais dentro de um presídio ocorreram no início dos anos de 1960. No Brasil, o ápice de seu interesse em produzir teatro em penitenciária se deu nos anos de 1980, quando encenou dentro de um presídio na cidade de São Paulo. Seu “ato transformador” teve consequências tumultuadas. Ainda que de forma passageira, em Portugal, Ruth também fez uma breve ação junto à população carcerária. A saga da “rebeldia” de Ruth continua. N 4.1 Guerrilha teatral432 O Teatro Ruth Escobar não foi somente um local de apresentação e criação de espetáculos, de embates e protestos contra a ditadura militar, foi também, em especial, um local de encontro e de resistência da classe artística para enfrentar as ações repressivas e censórias do governo militar brasileiro. Além disso, esse espaço serviu para Ruth Escobar realizar encontros com diversos segmentos minoritários, como os de homossexuais e feministas. Por outro lado, os eventos realizados no Ruth Escobar podem ser considerados, ainda, como uma estratégia da empresária para angariar pessoas e aliados que compartilhavam os mesmos ideais de luta. Nos anos seguintes à inauguração do Teatro Ruth Escobar (1964), o local se constituiu num espaço à realização de produções teatrais, para apresentações de grupos amadores e profissionais de teatro e dança, além de abrigar exposições de artes plásticas. Mesmo que Ruth Escobar tivesse iniciado, profissionalmente, suas atividades teatrais em seu próprio teatro, ela não ficou alheia às discussões a respeito da censura. Para isso, ela fez do Ruth Escobar um local 432 O nome desse subitem é uma homenagem a Augusto Boal. Este autor em sua autobiografia denominou o capítulo 20, no qual narra os acontecimentos envolvendo a 1a Feira Paulista de Opinião, de: “A guerrinha teatral – cenários contra fusis”. BOAL, 2000, p. 255-260. de encontro para reflexão da situação repressiva no âmbito artístico e, consequentemente, no Brasil. O embate com a censura, que havia começado em 1960 com o espetáculo A Mãe, do qual foi protagonista, estendeu-se por toda sua trajetória artística. A primeira manifestação contra a censura que Ruth Escobar sediou, em 09 de julho de 1965, reuniu “personalidades do teatro paulista, produtores artístico-culturais e dirigentes de entidades estudantis [que] se reuniram no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, para discutir a questão da censura prévia e planejar estratégias de articulação nacional”, afirmou a pesquisadora Miliandre Garcia. Em 11 de fevereiro de 1968433, o Teatro Ruth Escobar sediou a primeira manifestação da classe artística, no intuito de unir forças com artistas cariocas. Após receber um telefonema do ator Valmor Chagas, informando-a sobre as primeiras movimentações da classe teatral, no Rio de Janeiro, contra os cortes que a Censura da Polícia Federal promoveu no texto Um bonde chamado desejo, Ruth Escobar assumiu a responsabilidade de convocar uma reunião com a classe artística paulistana. O encontro ocorreu na Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar. Para conduzir os debates foram convidados pela produtora: Gianfrancesco Guarnieri, Paulo Goulart, Altair Lima e Juca de Oliveira Procópio. Também estiveram presentes, na reunião, os atores cariocas Plínio Marcos e Nydia Lícia. Na ocasião, eles fizeram relatos da situação do ocorrido aos artistas cariocas. [...] ao protestar contra os cortes no texto “Um Bonde Chamado Desejo”, que deveria apresentar em Brasília, a atriz Maria Fernanda foi suspensa de suas atividades durante 30 dias pelo chefe da censura da Polícia Federal. Embora a suspensão tenha sido revogada, a classe teatral do Rio decidiu fechar seus teatros e concentrar-se nas escadarias do Teatro Municipal, na av. Rio Branco, enquanto uma comissão de artistas e intelectuais, formada por nomes de expressão como Oscar Niemeyer, Chico Buarque de Holanda, Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade, se dirige ao ministro da justiça levando as seguintes reivindicações dos artistas: cessão das provocações da Censura contra os profissionais de teatro; revogação das últimas portarias que impuseram cortes no texto “Um Bonde Chamado Desejo” e proibiram a encenação de “Senhora da Boca do Lixo”, em todo o Brasil434. Numa decisão inédita, o juiz João Augusto Didier concedeu a liminar impetrada pelo advogado de Maria Fernanda, Laerte Vieira, que suspendeu a portaria expedida pelo censor federal Souza Leão. Em depoimento ao jornal, Última Hora, Tônia Carrero e Glauber Rocha compartilharam da mesma opinião acerca da censura no país: “[o povo] brasileiro não reage mais publicamente contra o terrorismo cultural vigente no País”435. Após os esclarecimentos e debates junto aos artistas paulistas, Plínio Marcos sugeriu que a mesma ação ocorrida no Rio de Janeiro fosse realizada em São Paulo, o que foi aceito por todos os presentes. Os artistas deliberaram pela constituição de comissões que deveriam procurar emissoras de TVs, rádios e jornais para denunciar a situação. Enquanto isso, a maior parte dos artistas ficaria, até a meia-noite, em concentração na frente do Teatro Municipal de São Paulo. Além disso, o Teatro Ruth Escobar, Teatro Oficina, Teatro da Aliança Francesa, Teatro Arena e Teatro Cacilda Becker cancelariam suas apresentações436 e divulgações na mídia impressa, substituindo-as pelo anúncio: “Greve de Teatro, contra a Censura, pela Cultura”. As 433 Após a apresentação do espetáculo Lisístrata, no Ruth Escobar, a produtora promoveu um debate sobre Problemas da comunicação em especial sobre os signos visuais em teatro. 434 TEATROS, Folha de São Paulo, 12 fev. 1968, p. 4. 435 JUSTIÇA, Última Hora, 12 fev. 1968, p. 7. 436 Os espetáculos cancelados foram: Lisístrata, no Teatro Ruth Escobar, Deus lhe pague (CTB), O homem do princípio ao fim (Teatro Bela Vista), Navalha na Carne (Teatro Oficina), O olho azul da falecida (Teatro Cacilda Becker), Sergio Ricardo na Praça do Povo (Teatro Arena), Dois na Gangorra (Teatro Aliança Francesa) e O milagre de Anne Sullivan (SESI). propostas formuladas pelos artistas paulistanos no Teatro Ruth Escobar não ficaram somente nas palavras, todas as ações foram efetivadas em prol do teatro, para o teatro437. Outro importante evento realizado nas dependências do Teatro Ruth Escobar foi a 1a Feira Paulista de Opinião, do qual nasceu de uma proposta apresentada pelo dramaturgo Lauro Cesar Muniz ao diretor José Celso Martinez Correia em 1967. Ele propunha uma ação conjunta de vários dramaturgos e diferentes artistas refletindo sobre o momento político brasileiro. O espetáculo tinha por nome Os sete pecados capitalistas. No fim de 1967, Muniz e Zé Celso se reuniram com “Plínio Marcos, Bráulio Pedroso, Jorge Andrade, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal” 438, declarou Lauro Cesar Muniz. Boal que se identificou de imediato com o projeto, comprometendo-se a assumir a tarefa com o Teatro de Arena de São Paulo. Boal descreveu esse momento da seguinte maneira: “A idéia veio de Lauro César. Por que não espetáculo mural, Feira paulista de opinião? Guarnieri, Jorge Andrade, Plínio Marcos, Bráulio Pedroso e eu aceitamos, com a mesma alegria. Compositores: Caetano, Gil, Edu, Ari Toledo, Sérgio Toledo, Sérgio Ricardo disseram sim. Artistas Plásticos”439. Os autores tinham por mote a questão: O que pensa você do Brasil de hoje? Boal apresentou, na sua autobiografia, a seguinte questão colocada aos autores: “O que você pensa da arte de esquerda?” E complementa: “O que você pensa? A resposta teria quer ser uma obra de arte”440. No programa do espetáculo, Boal escreveu um longo artigo intitulado O que pensa você da arte de esquerda?441, em que teoriza sobre as diferenças e as tendências de esquerda naquele momento e concluiu convocando a união de todos, independentemente de pensamento político ou orientação estética: Os caminhos da esquerda revelaram-se becos diante do maniqueísmo governamental. Já nada vale autoflagelar-se realisticamente, exortar platéias ausentes ou vestir-se de arco-íris e cantar chiquita bacana e outras bananas. Necessário, agora, é dizer a verdade como é. E como dizê-la? E mais: como sabê-la? Nenhum de nós, como artista, reúne condições de, sozinho, interpretar nosso movimento social. Conseguimos fotografar nossa realidade, conseguimos premonitoriamente vislumbrar seu futuro, mas não conseguimos surpreendê-la no seu movimento. [...] É necessário pesquisar nossa realidade segundo ângulos e perspectivas diversas: aí estará seu movimento. Nós, dramaturgos, compositores, poetas, caricaturistas, fotógrafos, devemos ser simultaneamente testemunhas e parte integrante dessa realidade. Seremos testemunhas na medida em que observamos a realidade e parte integrante na medida em que formos observados. Esta é a idéia da 1ª Feira Paulista de Opinião442 A junção de todos os textos resultou na 1a Feira Paulista de Opinião, um espetáculo em dois atos443, que refletia sobre os problemas sociais enfrentados pelos brasileiros. Os artistas 437 Ver BENEVIDES; NETO, Folha de São Paulo, 13 fev. 1968. MUNIZ, Entrevista concedida a Eduardo Campo Lima, Brasil de Fato, 12 fev. 2014. 439 BOAL, 2000, p. 255. 440 BOAL, 2000, p. 255-256. 441 GABINETE, CCSP, 2008. 442 PRIMEIRA In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2015. 443 Sobre os textos que compunham o espetáculo, Augusto Boal comenta: “Lauro escreveu [O Líder] a história de pescador preso por alfabetizado; único em sua praia que sabia ler, subversivo: ler, pra que? Andrade [A Receita], sobre doença no campo e falta de medicina; Guarnieri [Animália], sobre os meios de comunicação e seu poder deletério; Plínio [Verde que te Quero Verde], sobre coronéis vestidos de gorilas censurando sua peça, defecando e limpando-se com páginas censuradas; Bráulio [O Senhor Doutor], parábola sobre a parte podre da burguesia; a mim, diretor, coube encerrar o evento com uma collage de textos sobre Guevara, Cortázar e Neruda [A Lua Muito Pequena e A Caminhada Perigosa]” BOAL, 2000, p. 256. O 1º ato do espetáculo é composto pelas obras Tema, 438 plásticos também foram convidados a fazer parte do projeto e, como não poderia deixar de ser de outro modo, as obras estavam ligadas ao mote central da discussão. Boal fez uma descrição sobre o trabalho dos artistas plásticos no evento da Feira: Artistas plásticos invadiram o Ruth Escobar, semeando belas obras, da rua até os camarins. Um deles fez escultura chamada O milagre brasileiro, chavão publicitário da ditadura: o espectador entrava em um tunel verde-amarelo, sentava-se em cadeira de rodas que deslizava, no escuro, até o final do túnel, onde as rodas tocavam um interruptor que iluminava a imagem cafona de N. Sra. da Aparecida. O espectador se levantava, saía a pé: milagre no final do túnel! Jô Soares pintou um quadro inspirado em célebre anúncio de xarope pra tosse, onde um homem enlouquecido dizia: ‘Largue-me! Deixe-me Gritar!”444. Sobre a problemática relação entre arte e censura, disse Boal: “Se exagero havia, era nossa existência, criando: como pode trabalhar um artista em ditadura, se o artista é aquele que, livre, cria o novo, e a ditadura aquela que, fazendo calar, preserva o velho? Arte e ditadura são incompatíveis. Essas duas palavras se odeiam!”445. E foi o embate com a censura que desencadeou outro movimento envolvendo esse espetáculo, pois “a peça é submetida à Censura, praxe no período, mas não recebe posição até o dia da estréia”446. Os artistas447 resolveram então fazer um ensaio geral aberto; ao receberem o resultado da censura, Boal observou que a peça era constituída de “80 páginas. Voltou com 65 páginas cortadas e o carimbo de LIBERADA nas restantes 15. Liberada com 65 páginas proibidas. Senso de humor macabro”448. Na noite de estreia, os artistas em Assembleia449, junto com a classe artística paulistana, deliberaram sobre o que fazer, quais providências tomariam com relação aos cortes realizados pela censura? Boal faz uma linda descrição, que convém reproduzir na íntegra sobre a luta desencadeada pelos artistas reunidos no Teatro Ruth Escobar naquela noite. No dia da estréia proibida, surgiu o movimento artístico de solidariedade mais belo que já existiu. Artistas em São Paulo decretaram greve geral nos teatros da cidade e foram se juntar a nós. Nunca houve, no país, tamanha concentração de artistas por centímetro quadrado: poetas, radialistas, escritores, intelectuais, cinema, teatro e TV, plásticos, músicos, bailarinos, gente de circo e de opera, jornalistas, profissionais e amadores, professores e alunos, não faltou ninguém. Vieram até os tímidos. Cacilda Backer, no palco, com a artística multidão atrás, em nome da dignidade dos artistas brasileiros, assumiu a responsabilidade pela Desobediência Civil que estávamos proclamando. A Feira seria representada sem alvará, desrespeitando a de Edu Lobo, Enquanto o Seu Lobo Não Vem, de Caetano Veloso, O Líder, de Lauro César Muniz, O Sr. Doutor, de Bráulio Pedroso, ME.E.U.U. Brasil Brasileiro, de Ary Toledo e Animália, de Gianfrancesco Guarnieri. No 2º ato estão Espiral, de Sérgio Ricardo, A Receita, de Jorge Andrade, Verde Que Te Quero Verde, de Plínio Marcos, Miserere, de Gilberto Gil, A Lua Muito Pequena e A Caminhada Perigosa, de Augusto Boal. PRIMEIRA In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2004. 444 BOAL, 2000, p. 256. 445 BOAL, 2000, p. 257. 446 PRIMEIRA In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2015. 447 Ficha técnica de 1a Feira Paulista de Opinião: Direção Augusto Boal. Cenografia: Marcos Weinstock. Direção musical: Carlos Castilho. Elenco: Antônio Fagundes, Aracy Balabanian, Martha Overbeck, Cecília Thumim Boal, Edson Soler, Ana Mauri, Luiz Carlos Arutin, Myriam Muniz, Paco Sanchez, Renato Consorte, Rolando Boldrin, Zanoni Ferrite, Luiz Serra e Umberto Magnani. Figurino: Marcos Weinstock. Trilha Sonora: Ary Toledo, Caetano Veloso, Edu Lobo, Gilberto Gil e Sérgio Ricardo. Produção: Ruth Simis - Teatro de Arena (São Paulo, SP). PRIMEIRA In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2004. 448 BOAL, 2000, p. 256. 449 Ver imagem 62 do dossiê de fotos. Censura, que não seria mais reconhecida por nenhum artista daquele dia em diante 450. Como disse Boal: “A classe teatral aboliu a Censura!!! Estrondosa ovação: vitória da arte contra a mediocridade! Vitória da liberdade de expressão. Democracia!”451. Os quatro dias seguintes foram de embates com o regime e a censura. A polícia, é claro, não permitiu a estreia. O Teatro foi cercado pela polícia. O elenco foi ao Teatro Maria Della Costa, onde a atriz Fernanda Montenegro, conforme relato de Augusto Boal, “com sua solidária autorização, invadimos seu espetáculo, revelamos o que estava acontecendo e, como prova de Desobediência, cantamos canções proibidas”452. Apesar dessa primeira tentativa de burlar os agentes do regime, ter alcançado êxito, no dia seguinte, na plateia estava o censor federal José Sales que pontuou em seu relatório “[...] os cortes não foram respeitados”453. De posse dessas informações, o general Silvio Correa de Andrade, delegado regional do Departamento de Polícia Federal, resolveu suspender a apresentação do espetáculo no Teatro Ruth Escobar e aplicar uma multa de vinte cruzeiros novos. Documento lido pelos artistas, nos teatros, durante os três dias de embate com o regime e a censura no Brasil: A representação na íntegra de Primeira Feira Paulista de Opinião é um ato de rebeldia e de desobediência civil. Trata-se de um protesto definitivo dos homens de teatro contra a censura de Brasília, que fez 71 cortes nas seis peças. Não aceitamos mais a Censura centralizada, que tolhe nossas ações e impede nosso trabalho. Conclamamos o povo a defender a Liberdade de expressão artística, e queremos que sejam de imediato postas em prática as nossas determinações do Grupo de Trabalho nomeado pelo ministro Gama e Silva para rever a Legislação da Censura. Não aceitando mais o adiamento governamental, arcaremos com a responsabilidade desse ato, que é legítimo e honroso. O espetáculo vai começar 454. Após as manifestações de resistência dos artistas, a luta pela liberdade de expressão, finalmente, conseguia um fôlego em meio à repressão militar: No terceiro dia: todos os teatros de São Paulo cercados, soldados e marinheiros. Nós e espectadores motorizados seguimos para Santo André, Teatro de Alumínio: representamos o texto integral. Jornais publicaram nossa coragem na primeira página: GUERRILHA TEATRAL! No plano legal entramos com um pedido de habeas corpus. No quarto dia, os teatros de Santo André estavam cercados. No Ruth [Teatro Ruth Escobar], uma hora antes da hora, nosso advogado veio eufórico gritando que a peça tinha sido provisoriamente liberada pelo juiz! Vitória! Esse juiz foi, meses mais tarde, preso: fazia parte de uma organização guerrilheira… e ninguém sabia. A partir daí, fizemos o texto integral e acrescentamos o que bem nos pareceu – censura derrotada, humilhada455 . 450 BOAL, 2000, p. 257. BOAL, 2000, p. 257. 452 BOAL, 2000, p. 257. 453 GEN SILVIO, Folha de São Paulo, 11 jun. 1982, p. 6. 454 PEÇAS, O Estado de São Paulo, 08 jun. 1968, p. 7. 455 BOAL, 2000, p. 257. 451 Em 12 de junho de 1968, o juiz Américo Lourenço Masset Lacombe fez um despacho com o seguinte teor: Processe-se com liminar, a fim de que seja permitida a continuação do espetáculo, de acôrdo com o certificado do S.C.D.P. n. 201/68, levando-se em consideração fatores intransponíveis e as impossibilidades materiais, pois não se pode conceber que os diretores individuais sejam prejudicados pela irresponsabilidade e malícia da administração que violou exageradamente o prazo de manifestação que lhe é dado pelo art. 45 do decreto n 20.493. Requisitem-se as informações456. Nesse mesmo dia, Ruth Escobar apresentou a Feira e realizou, em seu teatro, uma assembleia, a fim de que a classe elaborasse algumas diretrizes para lidar com a censura. A assembleia deliberou por elaborar boletins diários e uma “desobediência civil”457. Além disso, Walmor Chagas propôs a devolução do Prêmio Saci. A mesa da assembleia, coordenada por Boal, não pôde acatar essa última proposta, pois “não poderia determinar a devolução e sim propô-la a classe pois o troféu constitui propriedade particular de cada um”458. A proposta de devolução do Prêmio Saci teve por base um editorial publicado em 11 de junho, n´O Estado de São Paulo, e escrito por Décio de Almeida Prado em que defendia a censura: Há peças, no gênero, de insuportável mau gosto, e como mau gosto é deseducativo, só por isso se justificaria a intervenção da Censura. Mas não é esse o pior aspecto de tais espetáculos teatrais. Mais censuráveis são os seus objetivos, ou seja, levar ao paroxismo os anormais que se comprazem com cenas de doentio amoralismo sexual. Não compreendemos como possa haver artistas realmente dignos deste nome, que, dotados de faculdades, de sensibilidade, de psicologias normais e, portanto, equilibradas, não trepidem em defender a livre representação, perante públicos irrestritos, de obras de baixa categoria. Não compreendemos, sobretudo, que certos autores tenham a desfaçatez de defender não só como obras de arte, mas também como obras de pensamento, o que muitas vezes não passa de mera catalogação pornográfica. Como é inegável a influência do teatro não só na educação artística do povo, mas também no aprimoramento dos seus costumes deve-se concluir igualmente que o mau teatro exerce função negativa, e demolidora, mesmo em ambos os domínios. Assim, tanto quanto é desejável o estímulo, pelos poderes públicos, das atividades teatrais dignas desse nome, é indispensável que os mesmos poderes públicos não hesitem na adoção de medidas contra os que, movidos por torpes intenções, por aí vivem a deturpar e a envilecer a nobre arte. Daí, os aplausos de daqui dirigimos ao deputado Aurélio Campos, que pela atitude que a respeito assumiu, com o discursos proferido da tribuna parlamentar. Tão oportuna e justa nos apareceu essa oração, que esperamos outras se profiram com o mesmo fim, para que se firme, neste terreno, a posição da Assembléia Legislativa do Estado, sensibilizando por uma questão de tanta importância as autoridades públicas e contribuindo para que artistas e autores, refletindo melhor sôbre o que deles todos desejam e esperam, formem entre os que se esforçam pelo alevantamento do nível da arte cênica em nossa terra 459. A fala de Décio de Almeida Prado solicitava a intervenção da censura no espetáculo, I Feira Paulista de Opinião, tendo por base a fronteira entre a pornografia e a má qualidade dos textos que o compunham. Em seu escrito, ele ressalta a importância do discurso proferido pelo deputado Aurélio Campos na Assembleia Legislativa de SP contra o espetáculo, e Décio de Almeida Prado convocava os demais deputados a se manifestarem contra ações que 456 JUSTIÇA, O Estado de São Paulo, 13 jun. 1968, p. 12. JUSTIÇA, O Estado de São Paulo, 13 jun. 1968, p. 12. 458 JUSTIÇA, O Estado de São Paulo, 13 jun. 1968, p. 12. 459 A CENSURA, O Estado de São Paulo, 11 jun. 1968, p. 3. 457 prejudicassem a força educativa do teatro. Quando o que é chamado de mau gosto pode ser objeto de repressão, cria-se espaço para elaborar uma censura com bases subjetivas no que venha a ser “mau gosto”. Isso escapava à perspectiva do crítico paulista. E nem à defesa realizada por Luiz Izrael Ferbrot, em 2000, de que: “Decio não era a favor da censura, nem tampouco quando o autor usasse ou abusasse do palavrão”460 permite esse tipo de conduta. E foi em rebate à proposta censória de Décio de Almeida Prado que Walmor Chagas propôs a devolução do Prêmio Saci, que tinha sido criado pelo crítico em homenagem àqueles que se destacaram na área teatral. Em 20 de junho, cerca de trinta atores e atrizes do Rio de Janeiro e São Paulo estiveram em frente à sede d´O Estado de São Paulo para devolver o “Saci”. Naquela ocasião, foram lidos dois manifestos. Num deles constava: “o editorial, servindo-se de espetáculos particulares, denegriu a nossa luta, confundindo a opinião pública, fazendo-a crer que esta classe de artistas luta tão somente pela liberdade de um linguajar violento ou de atitudes atentatoriais à moral e à segurança do país”461. A devolução dos troféus ecoou nas estruturas internas do jornal, e Décio de Almeida Prado pediu demissão de sua função sem fazer qualquer defesa. Apenas retirou-se. Através de uma autorização judicial, a 1a Feira Paulista de Opinião pôde, enfim, estrear no Teatro Ruth Escobar na sala Gil Vicente a 12 de julho de 1968. E os seus promotores, para afrontar ainda mais os censores na divulgação do evento, fizeram constar a frase: “A censura proibiu. A justiça liberou!”. Sendo que, na sala de cima, apresentava-se o espetáculo Roda Viva, de Chico Buarque, com direção de Zé Celso que também teve sérios problemas com a censura, conforme já exposto nos capítulos anteriores. A Feira “ficou em cartaz por alguns meses, passando por cidades do interior de São Paulo, como Piracicaba, e se encerrando com uma temporada no Rio de Janeiro – onde uma granada desativada foi lançada no palco. Arte e política caminhavam lado a lado, poucos meses antes do AI-5”462, recordou Rolando Boldrin. A vitória não foi assimilada pelo regime. “Foi quando começaram as agressões físicas, raptos, invasões”463, afirmou Boal. Como forma de revidar esta vitória, em 11 de agosto aconteceu outro atentado464 no Teatro Ruth Escobar. Terroristas deixaram no banheiro da Sala Gil Vicente três ampolas de gás lacrimogêneo. O fato ocorrido impulsionou os artistas a promoverem outra frente de atuação: a reivindicação de segurança nos teatros. As ameaças de grupos da direita, como o do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), começavam a se concretizar: “O Zé Lica, que fazia a iluminação, foi pego na porta do teatro. Bateram nele e o devolveram somente depois de três dias”, recordou Umberto Magnani”.465 4.2 Nova Feira dez anos depois Paralelamente às discussões sobre a anistia, Ruth organizou outro evento que também a colocava em choque com a censura, acirrando ainda mais sua posição diante da ditadura militar. Passados dez anos da realização da 1ª Feira Paulista de Opinião organizado pelo Teatro de Arena, Ruth Escobar decidiu realizar um projeto com proposta semelhante. E no Teatro Ruth Escobar estreou a Feira Brasileira de Opinião, que também foi chamada por Ruth de Hoje, 460 FEBROT, 2000, p. 75-79. ATORES, Folha de São Paulo, 21 jun. 1968, p. 5. 462 BOLDRIN, Entrevista concedida a Eduardo Campo Lima, Brasil de Fato, 12 fev. 2014. 463 BOAL, 2000, p. 257. 464 Havia ocorrido anteriormente atentado ao espetáculo Roda Viva, onde paramilitares invadiram o Teatro após o termino do espetáculo e quebram cenários, objetos de cena, bateram nos atores. 465 MAGNANI, Entrevista concedida a Eduardo Campo Lima, Brasil de Fato, 12 fev. 2014. 461 aqui, o brasileiro. Gianfrascesco Guarnieiri, um dos autores convidados, explicou os motivos que levaram a produtora a adotar um segundo nome para o projeto: “na verdade nós estamos abordando temas que atingem o brasileiro hoje, e tentamos deixar de falar do que foi e do que era, para falar do agora. Vamos tentar devolver a memória ao Brasil, enquanto outros fazem campanhas de amnésia”466. Em 1978, conforme havia sido em 1968, a empresária convidou onze467 renomados dramaturgos brasileiros para escrever textos468 de um ato, para refletir sobre o contexto paulista e brasileiro por meio de uma dramaturgia social. A respeito desse projeto, Lauro César Muniz declarou que: [...] estamos vivendo um momento histórico, com toda a sociedade exigindo a volta de um regime democrático. O teatro faz parte também da luta de 35 mil operários que querem melhores condições de trabalho, dos estudantes, enfim, do Brasil inteiro. Tenho certeza que esta não será mais uma peça para a temporada de 78. É a união de uma única cabeça e 22 mãos469. No entanto, depois de contratada toda a equipe técnica e elenco para concretizar o projeto, a produtora no início do mês de junho470 recebeu um telefonema da Polícia Federal, informando que a Feira Brasileira de Opinião estava proibida pelos órgãos censórios. Os textos de Guarnieri, Lauro César Muniz e Márcio de Souza foram vetados totalmente, enquanto os de Maria Adelaide Amaral e Carlos Queiroz Telles tiveram a liberação total. Os demais sofreram vetos parciais. Como era comum acontecer, Ruth Escobar saiu em defesa de seu projeto: 466 GUARNIERI, Entrevista concedida a Sérgio Pinto de Almeida. Folha de São Paulo, 21 mai. 1978, p. 69. Os textos podem ser encontrados em Escobar, 1978. 468 Carlos Queiroz Telles escreveu Última Instância a partir de um fato verídico ocorrido em Santos: o linchamento de um homem; Túnel de Dias Gomes, retratou o caos de um engarrafamento; Guarnieri em Janelas Abertas escreveu sobre um perseguido político e anistia; João das Neves decidiu rememorar o golpe militar em O Quintal468, local onde se encontra uma família que tenta compreender o que está acontecendo naquele dia; em A Zebra, Jorge Andrade retratou o poder de manipulação do Estado da população por meio da loteria; Lauro César Muniz em O Mito concebeu uma história a respeito de um corpo nu de um escritor que serve de argumento para refletir sobre a realidade brasileira; Sobrevividos falou sobre um grupo eclético de pessoas (um hippie, uma atriz, um diretor de pornochanchada, um ativista de 1968 e uma cocota) que compartilham suas experiências e são convidados a produzir um comercial para o governo, convite que faz revelarem outros posicionamentos; Márcio de Souza retratou a imposição de valores numa tribo indígena em Contatos Amazônicos de Terceiro Grau; O Engano, de Carlos Henrique Escobar abordou uma temática sobre o período ditatorial em que um rapaz é denunciado por um professor universitário aos órgãos de segurança, mas há equívoco na prisão; baseada em uma notícia veiculada no Jornal Movimento, Maria Adelaide Amaral, em Cemitério sem Cruzes, trouxe à discussão a morte de trabalhadores na construção civil em que as famílias não são indenizadas; por fim, Chico de Assis intitulou seu texto de Aqui e Agora, uma dramaturgia que foi construída a partir dos outros textos tendo um repórter que fazia um intermezzo entre as encenações. 469 NO MESMO, Folha de São Paulo, 21 mai. 1968, p. 69. 470 A título de curiosidade, ao mesmo tempo em que Ruth Escobar enfrentava a negativa da censura, acontecia em seu teatro dois eventos: em 12 de junho foi realizado o debate A Universidade e a Conjuntura com a participação de Antônio Cândido de Mello e Souza, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o exministro da educação e primeiro reitor da Universidade de Brasília, Darci Ribeiro, o prof. Maurício Rocha e Silva, da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e o jornalista Perseu Abramo, editor de Educação da “Folha” UNIVERSIDADE, Folha de São Paulo, 11 mai. 1978, p. 34. No mesmo dia em que recebeu a notícia do veto da Feira Brasileira de Opinião, em 13 de junho de 1978, o Teatro Ruth Escobar sediou o debate Participação dos Empresários e dos Trabalhadores na Vida e na Renda Nacional promovido pela Associação dos Professores da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas coordenado pelo professor Eduardo M. Suplicy. No evento compareceram mais de oitocentas pessoas SEM DEMOCRACIA, Folha de São Paulo, 15 jun. 1978, p. 25. Este último evento repercutiu mais na imprensa jornalística. Ver a reportagem: OS PROFESSORES, Folha de São Paulo, 17 jun. 1978, p. 14. 467 Nós queríamos mostrar o que se faz em teatro atualmente no Brasil. Dizem que não há produção, nós provamos o contrário. O que está acontece é a interferência da censura, existem vários autores que permanecem inéditos por que são proibidos. Quando falamos disso a Censura diz que não é bem assim, que não proibiram nenhuma peça neste ano, também pudera, só existem textos estrangeiros sendo encenados. Os produtores não chegam nem a pedir a liberação de obras nacionais. Todos estes autores têm apoio de associações internacionais, e somente não apelam para elas porque querem resolver o problema aqui em casa. Com essa proibição estão censurando não apenas estes dez autores, mas toda a dramaturgia nacional 471. Ruth novamente trouxe à tona a discussão da interferência da censura na dramaturgia brasileira e suas consequências à produção teatral paulista e, logicamente, para o Brasil. De acordo com Ruth Escobar, os órgãos censórios até aquele momento (junho de 1978) alegavam não ter aplicado nenhum veto aos textos teatrais, no entanto, o relatório anual472 da Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP) demonstra que os quarenta e cinco técnicos de censura examinaram duas mil seiscentos e quarenta e oito peças de teatro, sendo setenta e nove não liberadas. Ainda que noventa e sete por cento dos textos teatrais analisados tivessem sido liberados, o fato é que a censura ainda estava inviabilizando a liberdade de criação. No dia seguinte, Flávio Rangel saiu em defesa da Feira Brasileira de Opinião, publicando um texto na Folha de São Paulo intitulado Sem Opinião: No momento em que a censura proíbe uma peça como essa, aumenta a taxa de burrice e intolerância de nosso País. Impede que dez dramaturgos, cidadãos legais e agem às claras, possam contribuir com seu quinhão para a discussão da problemática nacional. A maioria deles, há muitos anos tem composto grande painel da dramaturgia brasileira: são conhecidos internacionalmente, suas peças se apresentaram em vários países do mundo. Têm grande prestígio. Como é que o governo pretende que seu povo acredite em seus propósitos liberalizantes, se toma uma atitude tão obscurantista como essa? O fosso que separa intelectuais do governo só pode aumentar. Outra coisa irritante é a forma imperial, absolutista, pela qual se noticia uma proibição desse jaez. É pelo telefone. Como se os censores tivessem vergonha de assumir a responsabilidade e assinar o próprio nome no papelucho proibitório. Agora, os jornalistas todos vão noticiar o assunto, os autores impetrarão mandato de segurança, as peças serão publicadas em livro, e terão grande êxito de livraria473. A censura consegue retirar o teatro da página de artes, e colocar a cultura no noticiário policial. Dá uma dimensão muito maior a fatos que têm seu espaço delimitado e seu tempo fixado. Teatro não derruba governo. Chega de besteira 474. 471 ESCOBAR, Entrevista à reportagem Censura veta Feira Brasileira de Opinião, Folha de São Paulo, 13 jun. 1978, p. 21. Ainda que na visão de Ruth Escobar o teatro paulistano não estivesse, em 1978, produzido significativos espetáculos de dramaturgos brasileiros, destaco que diversas encenações de autores nacionais estavam em cartaz. Dentre elas O poeta da vila e seus amores, de Plínio Marcos; Tiradentes, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri; Quem diria Greta Garbo acabou no Irajá, de Fernando Melo; Se, de Sérgio Jockyman; O Evangelho segundo Belzebu, de César Vieira; Os Saltimbancos, de Chico Buarque; Chico Total, de Chico Anísio e outros. Para o crítico Yan Michalski, em O Teatro sob Pressão, alguns espetáculos mereceram destaque em 1978, em São Paulo: Macunaíma, de Antunes Filho; Revista do Henfil, de Ademar Guerra; O grande amor de nossas vidas, de Consuelo de Castro; e O triste fim de Policarpo Quaresma, de Buza Ferraz. 472 Relatório anual – NI/DCDP – 1978, redigido pelo assistente da DCDP, Humberto Ruy de Azevedo Simões. Brasília, 8 jan. 1979. DCDP/AG/RA/CX1/3. 473 Em 04 de dezembro de 1978, Ruth Escobar lançou em seu teatro o livro Feira Brasileira de Opinião: a feira proibida pela Editora Global. 474 RANGEL, Folha de São Paulo, 14 jun. 1978, p. 40. Ainda que o governo brasileiro sinalizasse uma abertura à democracia desde 1974, a intervenção da censura se manteve constante e presente no país. Neste sentido, o texto de Flávio Rangel expõe a situação que os artistas ainda estavam enfrentando na produção de trabalhos cênicos que colaborassem para a discussão de assuntos importantes em prol de uma sociedade mais justa e conscientizada. Se, por um lado a dramaturgia dos autores brasileiros era vetada por possuir argumentos contestatórios contra o regime militar ou por abordar temáticas que não se enquadravam dentro da moral e dos bons costumes proposto pelos militares, por outro, o fato de haver a censura de textos, filmes, jornais, livros ou quaisquer outros veículos de comunicação/diversão pública, evidenciava os mandos e desmandos do governo. Os governantes consideravam as diversões públicas como impulsionadoras de manifestações e subversivos. Além disso, o ato da censura que, a priori era silencioso, ganhava contornos mais contundentes e barulhentos. Ao que tudo indica, essa ação/reação era um jogo de forças que retroalimentava ambas as partes. Ainda que a Feira Brasileira de Opinião não tenha sido concretizada conforme Ruth Escobar a idealizara, outras obras dela foram expostas ao público por ter recebido apoio do Centro de Estudos de Escolas de Artes Dramáticas (CEEDAD). Realizado no início de 1979, o 2º Ciclo de Leituras Dramáticas da EAD475 objetivava angariar fundos para a realização do 1º Congresso de Alunos de Artes Dramáticas. A princípio, a programação previa a leitura dos três textos proibidos - O Mito, A Zebra e O Quintal - da Feira Brasileira de Opinião. Mas, ao contrário da primeira edição, os alunos não conseguiram apoio da direção à realização do evento nas dependências da EAD (Escola de Arte Dramática da USP). No 1º Ciclo de Leituras, ocorrido em 1977, realizaram-se as leituras dramáticas de: A Semente, censurada em 1961 e, Barrela, proibida em todo o território nacional em 1968. Sendo assim, a inserção de peças censuradas não foi empecilho para permitir a concretização do evento, pois essas dramaturgias censuradas estavam deslocadas do contexto de 1978. Além disso, pode levar-se em consideração que as peças O Mito, A Zebra e O Quintal haviam sido censuradas, recentemente, e tiveram ampla repercussão na mídia. Para viabilizar o evento, os alunos solicitaram ajuda a Ruth Escobar que, para solucionar o problema, cedeu seu teatro para tal, parcialmente. O 2º Ciclo de Leitura aconteceu com alterações em sua programação: em 15 de janeiro foram lidos os textos O Quintal e Última Instância; no dia 19 foi a vez de Sobrevividos e Contatos Amazônicos de Terceiro Grau. Para finalizar o projeto, foram apresentadas as obras A Zebra e, novamente, O Quintal, na Casa da Universitária, em 07 de fevereiro. Ainda que os textos não tenham sido encenados, mas somente lidos ao público paulistano, também representou um ato contestatório que contou com a participação de Ruth Escobar. 475 O 1º Ciclo de Leituras da EAD teve início em 20 de dezembro de 1977 no bloco C da EAD com o texto Caixa de Cimento de Carlos Henrique Escobar na qual teve a participação de Ruth Escobar. No dia 09 de janeiro de 1978 houve a leitura do texto Trivial Simples, de Nelson Xavier. Em 16 de janeiro foi a vez de Barrela. EM DEBATE a peça, Folha de São Paulo, 05 jan. 1978, p. 40. De autoria de Gianfrancesco Guarnieri o texto A Semente foi lido em 30 de janeiro. GUARNIERI, Folha de São Paulo, 30 jan. 1978, p. 25. Roda Viva, de Chico Buarque encerrou o evento em 27 de fevereiro com a participação do Secretário de Cultura Sábato Magaldi. CICLO, Folha de São Paulo, 27 fev. 1978, p. 21. 4.3 A brutalidade do regime tira Ruth Escobar da depressão ou A vigilância continua O ano de 1975 foi o mais atípico na trajetória da produtora, já que houve uma completa ausência de produções teatrais, de engajamento na luta contra a censura, contra o regime militar e, até mesmo, na realização de eventos no Teatro Ruth Escobar. Naquele ano, o Brasil se encontrava desestabilizado economicamente, a crise do petróleo e a recessão mundial afetaram diretamente o país, provocando altos índices de rejeição ao governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). Para combater a insatisfação popular, o governo criou o Programa Nacional do Álcool (Proálcool), com o objetivo de incentivar a produção e substituir a gasolina, proporcionando à população, redução do custo de vida. No âmbito cultural, a estreia da peça Gota d'Água, de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes, no Rio de Janeiro e, no cinema, O Amuleto de Ogum, de Nélson Pereira dos Santos, tornaramse importantes produções culturais. Quanto aos acontecimentos internacionais, a independência da Angola de Portugal foi o destaque do ano. Para Ruth Escobar, o ano de 1975 representou um momento de reflexão de sua vida e de sua carreira. Ela declarou que: [...] entrei numa crise violenta e fui parar no hospital. De repente, perdi o estimulo da minha paixão, entrei num estado de tédio porque via as pessoas a minha volta sem conseguir reagir a nada. Eu mesma me sentia impotente. E se há uma coisa que eu não suporto é a impotência. O que me tirou da cama foi a morte de Vladimir [em 25 de outubro de 1975]. A raiva, que é uma forma de paixão e de amor, foi que me levantou476. O assassinato pelo regime do jornalista Vladimir Herzog tirou Ruth Escobar daquele estado de impotência, dando lugar à antiga combatente do regime; Ruth declarou durante o enterro de Herzog:477 “Até quando nós vamos continuar enterrando os nossos mortos em silêncio?”478. Essa frase ficou marcada em muitas pessoas presentes no sepultamento e, a partir desse acontecimento, a produtora decidiu retomar o enfrentamento à ditadura militar, à censura, canalizando suas energias para organizar o Festival Internacional de Teatro de 1976, decidindose, também, pela militância em prol da anistia e do feminismo. Apesar de sua ausência, seu teatro continuou ocupado com uma programação intensa de apresentações teatrais e musicais durante todo o ano de 1975. E foi nesse ano que a advogada Terezinha Zerbini iniciou a sua luta pela Anistia, com a organização do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), tendo como lema: Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, por todos aqueles que haviam sofrido sanções do governo. Mais tarde, Ruth Escobar se engajou nessa frente de luta, tornando-se uma legítima representante da causa. Aos poucos, Ruth Escobar retomou suas atividades junto à classe artística. No início de 1976, sua primeira ação foi, novamente, contra o silêncio que a censura impunha às companhias de teatro. Ela liderou uma pequena comitiva com Raul Cortez, Elis Regina, César Camargo Mariano e Jairo de Andrade contra o veto da peça Mockinpott, de Peter Weiss, produzida pelo 476 ESCOBAR, Entrevista concedida a Oswaldo Mendes, Folha de São Paulo, 02 ago. 1981. p. 45. Sob a suspeita de ter ligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), Wladimir Herzog (1937-1975) foi convocado por agentes do exército para prestar esclarecimentos no Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI). No dia seguinte, seu corpo foi encontrado enforcado com um cinto. Na época existiu a versão de suicido, mas as testemunhas Jorge Benigno Jathay Duque Estrada e Leandro Konder afirmam que Herzog foi torturado até a morte. Hoje o Estado já reconheceu que Wladimir Herzog foi assassinado no DOI/CODI. 478 ESCOBAR, Ruth. Brasileiros e Brasileiras: biografias para a TV: Em nome do pai, da coragem e da coragem: Ruth Escobar. Depoimento. 477 Grupo de Teatro de Arena de Porto Alegre. A indignação da classe artística estava centrada no fato de que o espetáculo tinha sido liberado pela censura até 1980. Além disso, o grupo havia realizado temporadas de circulação nas cidades de Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e, inclusive, em Brasília; quando iam se apresentar em São Paulo, o espetáculo foi proibido. A censura alegava ter recebido cartas que manifestavam posição contrária à liberação da censura. Outros motivos também impulsionaram a reivindicação da suspensão da proibição do espetáculo Mockinpoint: o recebimento do prêmio de melhor espetáculo pela Associação Carioca dos Críticos Teatrais e a subvenção do Ministério da Educação (órgão do governo federal), que possibilitava a produção de circular pelo país. No dia seguinte, em 10 de fevereiro de 1976, a Folha de São Paulo informou que após o pedido da comitiva de revisão do processo, o diretor da censura Rogério Nunes e o diretor geral do Departamento de Polícia Federal (DPF), o coronel Moacyr Coelho, comunicaram a liberação da peça. Além de realizar o II Festival Internacional de Teatro em 1976479, a produtora também criou o 1º Ciclo de Debates - Panorama da Cultura Brasileira480 de 04 de outubro a 13 de dezembro de 1976. Cada debate possuía um tema central relacionado ao contexto brasileiro, isto é, esses encontros proporcionavam aos artistas, intelectuais, profissionais e à sociedade paulistana, a discussão da situação das diferentes áreas de atuação. Programado para iniciar suas atividades em 27 de setembro, Ruth Escobar foi informada horas antes, por um telefonema, que o ciclo de debates fora proibido pela censura, como noticiou a Folha de São Paulo em 29 de setembro: “na manhã de domingo Ruth Escobar recebeu um telefonema do coronel Felix, da Polícia Federal de São Paulo, ‘dizendo que o coronel Coelho, diretor da Polícia Federal, em Brasília, havia recebido instruções do ministro da Justiça, Armando Falcão, para suspender o debate”. Como forma de resposta, a empresária comunicou à imprensa e enviou um documento assinado também por Ruy Mesquita, Fernando Lemos, Perseu Abramo, Audálio Dantas, Paulo Duarte e Fernando Henrique Cardoso, solicitando a anulação da proibição do evento. No dia seguinte, noticiava-se a liberação e a readequação de datas do Ciclo de Debates. Na abertura do evento, Ruth Escobar aproveitou a ocasião para pronunciar: “Está tudo proibido, menos cruzar os braços”481. Dentre os debates que mais provocaram discussões, esteve o que contou com a participação dos escritores Antônio Callado e Nélida Piñon e dos críticos Leo Gilson Ribeiro e Antonio Houassis, para refletir sobre o tema Literatura Brasileira Hoje: Possibilidades e Obstáculos. A imprensa também noticiou que o “debate, só terminou quase ao amanhecer”. Outro debate acalorado contou com a presença de Ruy Mesquita, diretor do Jornal da Tarde, que participou do tema Imprensa Hoje. Com a participação de cerca de duas mil pessoas, os participantes indagaram-no, principalmente, sobre a censura e a imprensa. Esses dois encontros dão a dimensão da quantidade de pessoas que prestigiaram a programação, assim como 479 Segundo nota publicada pelo jornalista Zózimo Barrozo do Amaral, em julho de 1976, Ruth Escobar aguardava liberação da censura para montar o musical Lírio Negro escrito pelo dramaturgo Antônio Pedro e composição musical de John Neshing. AMARAL, Jornal do Brasil, 26 jul. 1976, p.3. No entanto, no decorrer da pesquisa, não foi encontrado mais informações acerca dessa produção. 480 O Ciclo de Debates teve a seguinte programação: Literatura Brasileira Hoje: Possibilidades e Obstáculos (04 out.), Imprensa Hoje (11 out.), Indústria Cultural (18 out.), Esporte e Cultura (25 out.), Consumidor e Propaganda (08 nov.), Humor e Quadrinhos Brasileiros (16 nov.), Teatro: seus Problemas e Perspectivas (22 nov.), Política Cultural (29 nov.), TV: Cultura e Controle (30 nov.); Cinema: Produção Nacional num Mercado Ocupado (06 dez.), Artes Plásticas: uma Situação de Dependência (13 dez.). DEBATES, Folha de São Paulo, 24 set. 1976, p. 27. 481 BEUTTENMULLER, Jornal do Brasil, 06 out. 1976. possibilitou a constatação de que havia necessidade de debater assuntos que sufocavam a sociedade brasileira. Ao promover uma sistemática de discussões sobre a cultura brasileira, Ruth Escobar colaborou com o enriquecimento das reflexões sobre os problemas nos diversos segmentos culturais. Aliás, o Teatro Ruth Escobar se tornava um dos poucos lugares em São Paulo em que havia debates com assuntos condizentes ao contexto brasileiro. Também em sintonia com o que acontecia no teatro mundial, a empresária trouxe à capital paulista o encenador chileno Enrique Buenaventura para ministrar um curso sobre criação coletiva. Buenaventura fundou o Teatro Experimental de Cali, em 1955, e o Taller de Teatro em 1975. Conhecido por produzir um teatro popular, de criação coletiva, focado na crítica social e embasado em Bertolt Brecht, o diretor detinha uma linha de pensamento alinhada às propostas que Ruth Escobar fez ao longo dos anos como produtora. É possível dizer, ainda, que a vinda de Buenaventura foi a forma de a empresária fomentar, ainda mais, a produção de espetáculos que tivessem como princípio colocar em cena os problemas sociais, pelos quais o país passava naquele momento e estreitar os laços com a América Latina também. Para mostrar força e tentar diminuir os seus impulsos contestatórios, com frequência, Ruth Escobar se deparava com a presença de policiais em seu Teatro ou recebia “convites” para marcar presença às delegacias. Em 07 de dezembro de 1977, Ruth Escobar foi interrogada durante três horas e meia pelo delegado João Batista Xavier no DPF, em virtude de um inquérito aberto a pedido do governador Paulo Egídio Martins, de São Paulo, ao Ministro da Justiça Amando Falcão. Ele alegava o envolvimento de Ruth com o movimento estudantil, ocorrido em 15 de junho de 1977 na Rua 25 de março, quando ela foi detida juntamente com mais nove artistas. Sobre esse fato ela respondeu que: “ir a manifestação dos estudantes não fora uma decisão pessoal dela, mas uma atitude da categoria, decidida em assembleia”482. Na ocasião também foi interrogada sobre o fato de alguns estudantes estarem realizando panfletagem em frente ao seu Teatro. Ela respondeu: “eu não poderia saber o que se passa na rua e, além disso, [alugo] dois de [meus] teatros ao governo do Estado, que cede as salas a algumas companhias teatrais”483. Ainda, segundo a nota publicada, Ruth Escobar foi induzida a dizer, após a leitura de diversos documentos, quais deles haviam sido lidos em seu teatro. Ao final do depoimento, a empresária declarou à imprensa que foi tratada “com cortesia e polidez” pelos policiais da DPF. Ruth Escobar, cada vez mais, ganhava projeção no Brasil. De 08 a 13 de agosto de 484 1978, ela participou do II Encontro Estadual de Teatro, promovido pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e como não poderia deixar de ser, a sua presença foi alvo de vigilância do DOPS. Segundo o relatório desse órgão: “a epigrafada teceu severas críticas ao sistema capitalista, ao Governo Brasileiro, à Polícia Federal e ao Ministro da Justiça, a liberação de verbas, â regulamentação da profissão de ator. A censura, o Decreto Presidencial 485 482 RUTH, Folha de São Paulo, 07 dez. 1977, p. 8. RUTH, Folha de São Paulo, 07 dez. 1977, p. 8. 484 Ainda no ano de 1978, conforme informe n. 0262 produzido pelo CISA (RJ) em 04 out. 1978 DOI/II EX no processo 50-D-26-5860: “Segundo informe recebido do Consulado Geral do Brasil no Porto, a imprensa portuense dos dias 07 e 08/set/78, teria divulgado a libertação, seguida de expulsão, de Antônio de Sá Leal, Secretário-Geral do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, de ideologia trotskista. O noticiário transcreve declarações do detido, no sentido de não haver sofrido qualquer coação por porta da Polícia Brasileira, que lhe teria prestado “um tratamento correto, respeitoso e amável”. Engloba também gratas referências à Embaixadas de Portugal no Brasil, ao Consulado Geral em São Paulo e à atriz Ruth Escobar, pelo trabalho que tiveram em favor de sua libertação. 485 Ruth refere-se ao Art 1º - São de interesse da segurança nacional, dentre as atividades essenciais em que a greve é proibida pela Constituição, as relativas a serviços de água e esgoto, energia elétrica, petróleo, gás e outros combustíveis, bancos, transportes, comunicações, carga e descarga, hospitais, ambulatórios, maternidades, 483 recentemente baixado, versando proibição de greve nos serviços públicos, foram os tópicos abordados e duramente critacados (sic) nas duas oportunidades”486. Ruth Escobar aproveitou a oportunidade para criticar assuntos relativos ao Governo Federal, que vinha adotando medidas de austeridade social, as quais refletiam em todos os segmentos da sociedade civil. Nesse período, o estado do Rio Grande do Sul era governado por Sinval Guazzeli, do partido ARENA, que apoiava a ditadura militar no Brasil. Contudo, a Assembleia Legislativa do RS tinha, em sua maioria, deputados estaduais do MDB, partido de oposição. Foi nessa conjuntura política do estado gaúcho que Ruth Escobar, novamente, disse palavras contra o sistema político vigente no país. Em entrevista ao jornal Correio do Povo, Ruth Escobar falou a respeito da censura: O que ocorre não é um menor impedimento do teatro, nós é que estamos caminhando, avançando, chegando aos momentos de confronto: “Gota d´Água”, “O Último Carro”, a liberação destas peças foi um avanço à frente. O Seminário de Dramaturgia que fizemos, durante três meses, 13 peças proibidas, apenas das notas que recebemos da Censura, foi um passo a frente, simplesmente porque a legislação não previa esta reação e podemos então vive-la, cria-la. Não sei se fui a primeira pessoa a fazer tudo isso, mas a forma ostensiva pela qual fizemos, com ampla cobertura da imprensa, foi algo fundamental. E quanto mais avançarmos, uma coisa tem que ficar claro: vai haver rachas e temos que estar conscientes e preparados para enfrenta-las487. Caso Ruth não tenha sido a primeira mulher a estar à frente do combate à censura, certamente sua colaboração foi fundamental nessa luta. Seus embates ao longo de sua trajetória incentivaram artistas de outras áreas artísticas, angariando mais adeptos para, juntos, lutarem em prol de uma arte liberta das amarras da censura. Na ocasião, além da censura, Ruth comentou a respeito de outro tema que envolvia a classe teatral. Ela abordou sobre a regulamentação488 do trabalho de ator: Esta lei está na mesa deles desde o Governo Castelo Branco, e é o mesmo projeto que nós recusamos, anos atrás. Agora houve uma dormida dos sindicatos. O que acho ruim é que tudo foi feito sem consultas amplas aos profissionais e na base dos conchavos. Por que não encaminhar a lei através dos legítimos representantes do Povo, que são os senadores e deputados? Por que o Ministro do Trabalho? [...] Ela [a lei] será extremamente perigosa e propiciará uma censura maior sobre o ator. Foi muita ingenuidade acharem que o Governo ajudaria àquela classe que justamente, no decorrer de todo o processo político nacional, tem sido de maior oposição ao que está ai. Inclusive há um artigo, o 24, que diz que a criação do ator é livre, desde que obedeça ao texto. O que é isso? Nós somos mais livres sem a regulamentação 489. Ainda que as palavras proferidas por Ruth Escobar não tenham se tornado realidade, o fato é que ela, naquele momento, estava defendendo os atores de futuros cerceamentos que poderiam ser ainda mais radicais. Ela tinha muito claro que a relação entre as diversões públicas, nesse caso o teatro e a ditadura militar era motivo de atritos acirrados. Essa Lei, dizia Ruth Escobar, era uma forma de impor limites nas diversões públicas no país. Ela chamou atenção para o artigo vinte e quatro: “É livre a criação interpretativa do Artista farmácias e drogarias, bem assim as de indústrias definidas por decreto do Presidente da República. Ver BRASIL, 1978a. 486 Processo BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1470. AN. Neste mesmo processo encontra-se na íntegra o pronunciamento de Ruth Escobar. 487 ESCOBAR, Entrevista concedida a Antonio Hohlfeldt. Correio do Povo, 09. set. 1978. 488 BRASIL,1978. 489 ESCOBAR, Entrevista concedida a Antonio Hohlfeldt. Correio do Povo, 09. set. 1978. e do Técnico em Espetáculos de Diversões, respeitado o texto da obra”490. Visto que as obras dramatúrgicas sofriam processo de censura, a lei promulgada reforçava o ato censório das obras dramatúrgicas. Na visão de Ruth Escobar, esse artigo colocava o trabalho interpretativo do ator refém do texto, isto é, os atores não poderiam ser inseridos cacos? ou improvisações no texto após a análise do mesmo pelos técnicos da censura, ficando os atores sujeitos a punições e sanções que poderiam vir em decorrência do não cumprimento da obra teatral censurada. A respeito desse artigo, a produtora faz uma afirmação contundente: “vai chegar a um ponto em que vão caçar o ator e impedi-lo de trabalhar, mais nada491”. Seu posicionamento a respeito dos órgãos governamentais que geriam a censura no Brasil era tema recorrente de Ruth Escobar, seja em suas entrevistas, espetáculos e até mesmo em pronunciamentos que fazia, abertos ao público. No II Encontro Estadual de Teatro em Porto Alegre, Ruth Escobar, novamente, mostrou seu descontentamento com a produção teatral brasileira e afirmou aos presentes que era necessário um teatro de resistência contra aqueles que detinham o poder de manipulação. Segundo o relatório do DOPS, Ruth teria pronunciado no evento: [...] que pode nascer um novo teatro “não para entreter”, mas para inquietar, que satirize os exploradores, que mostre ou insinue uma solução, que expresse o que o povo sente e, ainda que, “o grande” poder hoje em dia são os meios de comunicações, jornais, rádio, televisão, com os quais você hoje faz “revoluções sem armas”. Afirma que “a tarefa do teatro hoje é de resistência” e “que devemos estar preparados para a mudança que fatalmente chegará”. Que todos os atos de rebeldia devem ser feitos de forma ostensiva com ampla cobertura da imprensa. [...] A nominada, que fez uma rápida palestra, denunciou uma série de problemas que cotidianamente enfrenta o teatro ou, mais especificamente, enfrentam os artistas em geral, citando, como principais deles, a censura que com sua "ação castradora" engavetou mais de 500 (quinhentas) peças teatrais, além da falta de auxílios governamentais para levar o teatro ao povo a preços populares, a falta de casas de espetáculos e pouco incentivo para o surgimento de outras e o cerceamento da liberdade de expressão492. O autor do relatório procurou transcrever a fala na íntegra, mas não analisou e nem julgou o que dizia Ruth Escobar. Ele transcreveu seu pronunciamento para os seus superiores. A eles era cabido julgar e elaborar ações contra essa “subversiva”. O discurso de Ruth deveria soar estranho ao policial, pois ela combatia o governo, taxando-o de opressivo e ditatorial. Mas, ao mesmo tempo, ela reivindicava apoio ao teatro desse mesmo governo que a censurava. A respeito desse assunto, ela disse que: Minha posição sempre foi clara nesta questão. Eu nunca tive pudor de pedir verbas ao governo, porque o governo é apenas administrador de dinheiro público que é nosso. É claro que eles do governo não pensam assim. Sempre tratei de concorrer as suplementações de verbas, porque é direito que tenho como companhia organizada. Mas já me disseram que a Polícia Federal andou distribuindo circular interna proibindo liberação de verbas para mim no âmbito municipal, estadual e federal 493. Ruth Escobar, por lidar em diferentes esferas do poder, estar envolvida em movimentos reivindicatórios como o da Anistia, bem como atuar como artista de teatro seja como produtora, 490 ESCOBAR, Entrevista concedida a Antonio Hohlfeldt. Correio do Povo, 09. set. 1978. ESCOBAR, Entrevista concedida a Antonio Hohlfeldt. Correio do Povo, 09. set. 1978. 492 Processo BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1470. AN. 493 RUTH, Correio do Povo, 09 set. 1979. 491 atriz ou empresária, conseguia ter uma visão mais clara das ações que envolviam a classe artística e o governo. Na declaração acima, ela deixa claro que solicitar verbas ao governo não significava estar de acordo com sua ideologia ou ações repressivas. Argumentava, então, com muita lucidez que era dinheiro público e que não podia ser repassado apenas aos “amigos” do sistema. Mas, também conseguiu perceber que o governo podava os anseios da classe e da população em geral, em decorrência da gestação do dinheiro público, isto é, os recursos financeiros eram uma das formas que o governo tinha para controlar a produção teatral. Composto por reportagens jornalísticas e relatórios de agentes do DOPS, o processo494 foi encaminhado ao Ministério da Justiça. Após serem analisadas as informações, o assessor do gabinete José Carlos Silva de Meira Matos concluiu que “não há nela [em Ruth Escobar] [algo] que possa motivar uma manifestação do Ministério uma vez que as reclamações sobre a Censura Federal foram as de sempre, não havendo nenhuma ofensa a qualquer autoridade mas apenas críticas teóricas. Somos assim pelo arquivamento”495. A conclusão do assessor José Carlos Silva de Meira Matos é interessante. Ele observou que os vigilantes não levantaram nada de novo sobre a pessoa e as ações de Ruth Escobar. As falas dela no evento no Rio Grande do Sul eram reproduções de antigos discursos, realizados por ela em diferentes locais do país. Mas, o relevante é percebermos a rede de controle estabelecida pelo regime. Eles conseguiam estar presentes em diferentes momentos e locais, desde que a pessoa sob a vigilância estivesse nesse evento. Ruth Escobar, certamente, sabia de sua condição de pessoa sob o controle do sistema. E explorava o limite dessa corda que tencionava a cada movimento seu. Mas, também tinha ciência de que quanto mais exposta ao público mais chances teria de ficar em segurança. Era um jogo muito arriscado, a tensão poderia romper esse precário equilíbrio e resultar numa situação sem retorno; como foi o caso de muitos brasileiros. Contudo, Ruth conseguiu, com muito desgaste emocional e físico, manter-se em atuação na luta contra o regime e a censura no Brasil e no exterior. Os anos de ditadura militar, no Brasil, foram bastante difíceis para todos os que tentavam conseguir respirar e ter seus direitos de cidadão respeitados. Mas, é impressionante a agilidade com que Ruth Escobar conseguia lidar com os contextos repressivos. Ela sempre, após as ações policialescas, seja contra sua pessoa ou contra o seu Teatro, fazia com que esse assunto chegasse até a imprensa. Ela procurava manter-se viva através de sua exposição na mídia, principalmente, na impressa. 4.4 Década de 1980: menos espetáculos, mais política Ao longo da década de 1980, Ruth Escobar reduziu significativamente a produção de espetáculos496 em virtude de sua dedicação a novos desafios. Nesta década, a política e o feminismo foram seu foco de atuação497. Ainda que esses dois polos estivessem presentes, desde que iniciou sua carreira profissional no teatro no fim dos anos de 1950, essas duas frentes se tornaram mais visíveis a partir da década de 1980. No entanto, outras frentes foram abarcadas por Ruth Escobar em sua luta. Ela passou a atuar junto às “minorias”. Grupos sociais marginalizados como a prostituição, presos comuns e a situação degradante das cadeias 494 Processo BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1470. AN. Processo BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1470. AN. 496 Ruth produziu o espetáculo Irmã Maria Ignácio Explica Tudo, em 1982 e, em 1989, Relações Perigosas. Esses espetáculos não serão abordados nesta tese. 497 Mote abordado no sétimo capítulo desta pesquisa. 495 brasileiras foram lutas abarcadas por ela. Nesse sentido, Ruth Escobar continuava defendendo os direitos humanos dos excluídos. Tornava-se cada vez mais assídua às causas dos menos favorecidos. Apesar das poucas encenações nessa década, seu teatro ainda continuava sendo ponto de encontro às reivindicações sociais, assim como continuava sendo alvo de vigilância. Em decorrência da decisão de trilhar outros caminhos, no primeiro semestre de 1980, o Teatro Ruth Escobar passou a ser um local ainda mais movimentado, principalmente, com a realização de eventos políticos e sociais. Conforme registrou a Folha de São Paulo, em 14 de janeiro de 1980, o teatro498 sediou um debate com “entidades religiosas, feministas de classe, culturais e de defesa dos direitos humanos, interessadas em uma solução para o problema das prostitutas perseguidas pela polícia de São Paulo [que] pretendem solicitar uma audiência ao secretário da Segurança Pública, para exigir que tenham fim as perseguições ilegais de mulheres”499. Além dessas atividades, Ruth Escobar não ficou alheia às discussões de gênero consideradas minoritárias, nesse caso, os homossexuais e travestis. Notadamente, ela não delimitava fronteiras para intercambiar pensamentos que colaborassem na defesa de práticas sociais que vinham na contramão de sua postura. Acolher, defender foram palavras visivelmente postas em prática em sua trajetória. Em 06 de abril de 1980, seu teatro sediou o encerramento do I Encontro Brasileiro de Homossexuais (EBHO) com um debate aberto ao público. Nos dias 04 e 05 que antecederam o evento, no Teatro do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da USP, ocorreu o I Encontro de Grupos Homossexuais Organizados (EGHO) com militantes homossexuais. De acordo com a pesquisadora Eliane Marques Zanatta: O I EGHO contou com a participação de aproximadamente 200 pessoas, entre militantes ligados aos grupos existentes e observadores convidados, além de militantes das cidades de Belo Horizonte, Vitória, Goiânia e Curitiba. Foram discutidos os temas "A questão lésbica", "O machismo entre homossexuais", "Papéis sexuais", "Michês" e "O travesti e a repressão"500. Nesses dois primeiros dias nas dependências da USP, as discussões ficaram restritas aos grupos convidados e, no terceiro dia, aconteceu um ato público no Teatro Ruth Escobar com a presença de mais de mil pessoas, de acordo com a nota501 publicada pela Folha de São Paulo. 498 Em 19 de maio de 1980, sediou um debate do Movimento Contra a Nova Capital sobre o projeto apresentado por governador Paulo Maluf que pretendia construir uma nova capital do Estado. De acordo com o relatório do DOPS “a tônica das colocações girou, quanto no dos aspectos negativos da mudança da Nova Capital, quanto ao aspecto sócio-econômico, afirmando que não será com a transferência do polo administrativo que resolveremos o problema da capital, mas sim com a criação de polos econômicos, industriais, com infra-estrutura, que permita empregos e condições de vida melhor, para que a migração não gire somente em torno do maior complexo industrial da América do Sul”. Estavam presentes: Professor Martiniano, Deputado Marco Aurélia, Deputada Irma Pasoni, Deputado Armando Pinheiro, Deputado Robson Marinho, Deputado José Yunes (representando o Senador Franco Montoro), estando ainda presentes, o Senador Fernando Henrique Cardoso e o Dr. João Batista, este representando a Comissão de Justiça e Paz. Processo 50-Z-32-4474. APESP. Neste processo, existe um Telex destinado ao SICP/II-EXERCITO/SNI/IV/COMAR/COM NAVAL informando sobre a reunião no Teatro Ruth Escobar. Ver também DEBATE, Folha de São Paulo, 21 mai. 1980, p. 11. No mesmo ano, em 13 de março de 1980, o secretário geral do Partido Comunista Brasileiro, Luiz Carlos Prestes, fez uma fala sobre reforma partidária no Teatro Ruth Escobar. Ver PRESTES, Folha de São Paulo, 17 mar. 1980, p. 4. 499 ENTIDADES, Folha de São Paulo, 16 jan. 1980, p. 9. Ver também CUNHA, Folha de São Paulo, 11 mai. 1980, p. 40. 500 ZANATTA, 1996/1997. 501 HOMOSSEXUAIS, Folha de São Paulo, 07 abr. 1980, p. 7. Chamo atenção ao evento ocorrido pela primeira vez no Brasil, exclusivamente dedicados aos homossexuais, mas “quando sabiam que era uma reunião de homossexuais, as pessoas se negavam a emprestar ou alugar teatros ou auditórios”502, afirmou um dos organizadores em entrevista. No entanto, Ruth Escobar não teve dúvidas em abrir as portas de seu teatro, pois percebeu o ineditismo da proposta, acatou o ato público de encerramento em suas dependências. Apesar das divergências entre os movimentos homossexuais brasileiros, o fato é que este encontro realizado no Teatro Ruth Escobar foi decisivo para traçar metas e objetivos em prol de uma causa comum. Acerca dessa fase, James Green pontuou que: A primeira controvérsia dentro do movimento homossexual brasileiro começava a se delinear. Os discursos já tinham sido apresentados. Dentro de um ano, questões táticas sobre alinhamento com outros movimentos sociais ou manutenção da autonomia política e organizacional iria rachar o Somos, então o maior grupo de direitos homossexuais no país, deixando outras organizações espalhadas pelo país desanimadas e sem direção. Poucos dos que participaram do debate poderiam prever, entretanto, a rápida explosão do movimento homossexual na arena política brasileira. Em pouco mais de um ano, cerca de mil lésbicas e gays lotavam o teatro Ruth Escobar, no centro de São Paulo, para a cerimônia de encerramento do Primeiro Encontro Nacional de Grupos Homossexuais Organizados503 . Ruth Escobar foi além da simples participação pela causa dos homossexuais. Consta no relatório de 07 de junho de 1980, redigido pelos investigadores Marcelino F. Camargo e José Rubens Santamaria, designados a realizar uma diligência policial na Praça Júlio Mesquita, a presença da produtora numa passeata de “meretrizes” e “travestis” para a legalização de suas situações perante à sociedade paulista. Além dela, também estava presente a imprensa (TV Globo, Canal 5, TV Bandeirantes e o jornal Folha de São Paulo). O relatório foi concluído com a afirmação de que “não houve perturbação da ordem bem como faixas afixadas ou pessôas exibindo cartazes. Não notamos tampouco a presença de pessoas ligadas à política” 504. Seu engajamento representou não somente uma posição pessoal, mas um ato político que contrariava os princípios da enfraquecida ditadura militar no início dos anos de 1980. O Teatro Ruth Escobar também foi ponto de encontro para discutir problemas relativos aos países da América Latina e de outros países, principalmente, os que estavam sob a égide de regimes militares. Em 14 de agosto de 1980505, o Teatro Ruth Escobar sediou uma reunião de grupos feministas506 para organizar um protesto contra a vinda do general Jorge Videla (presidente-ditador da Argentina de 1976 a 1981) a São Paulo. Videla foi responsável pelo golpe miliar na Argentina, em 1976, permanecendo na presidência até 1981. Seu governo ficou marcado como sendo um dos mais massacrantes. Em 1977, Rodolfo Walsh escreveu que “o ano 1976 foi um divisor de águas na história argentina. A ditadura instaurada pelo golpe militar daquele ano viria a se tornar o regime mais macabro e atroz de todos os que já dominaram o 502 HOMOSSEXUAIS, Folha de São Paulo, 07 abr. 1980, p. 7. GREEN, 2000, p. 271-295. 504 Processo 50-Z-129-22103. APESP. 505 Processo 20C-44-12088 e 20C-44-12087. APESP. 506 A reunião teve início às 13.30h e foi presidida por Ruth Escobar e pela professora Silvia Pimentel (Prof.ª de Direito da PUC e membro da reitoria da Universidade Católica) representando a Frente de Mulheres e o PMDBSP. Contou, ainda, com a presença de outras entidades tais como: Grupo de Ação Lésbico Feminista, Grupo Feminino do Jornal do Trabalho, CBA, Grupo dos Familiares dos Desaparecidos, PDS, Revista Nova (Repórter), Grupo Feminino do PT, C.A. XXII de Agosto da Fac. Direito da PUC, Independentes, Grupo Feminino de Convergência Socialista e outros grupos 503 país. “15.000 desaparecidos, 10.000 presos, 4.000 mortos, milhares de desterrados, são as cifras nuas desse terror”507. Descontente com a opressão que viviam os argentinos, Ruth Escobar organizou protestos para combater as alianças ditatoriais que se faziam na América do Sul. No Brasil, Videla passou por Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, cidades que também realizaram protestos contra sua presença. Visto que, na capital paulista, o Teatro Ruth Escobar era o ponto de encontro para promover ações de protestos e concentrar militantes dessa causa, o DOPS se fez presente nas reuniões que antecederam à chegada do ditador argentino. De acordo com o relatório, Ruth Escobar comprometeu-se a ir em teatro, rádios, televisão e jornais e vender as braçadeiras e entregar os panfletos [...] Pediu a colaboração das entidades para trouxessem panos pretos a fim de confeccionar faixas e braçadeiras. Pimentel requisitou ajuda do C.A. XXII de Agosto para avisar os outros Centros Acadêmicos das Universidades da realização da passeata. Que ela havia pensado em fazer isso, porém seu papel de membro da reitoria a impossibilitava 508. Essa organização resultou numa passeata ocorrida em 22 de agosto de 1980. Neste dia, Ruth afirmou à Folha de São Paulo que “o ato público será comunicado hoje ao diretor do Deops, delegado Romeu Tuma, através de ofício”. Por esse ato, percebe-se que Ruth Escobar mesmo sabendo da vigilância a sua pessoa, não deixou de cumprir com as regras estabelecidas pelo DOPS. Anexado ao processo do DOPS, há um comunicado com papel timbrado do Teatro Ruth Escobar, enviado um dia antes do protesto: Convocamos as mulheres de S. Paulo à participar da manifestação pacífica de solidariedade às mães argentinas da Praça de Maio, motivada pela presença, no Brasil, do General Videla. As mulheres brasileiras não podem deixar de dar seu irrestrito apoio a essas mulheres que se reuniram espontaneamente para exigir das autoridades de seu país o esclarecimento dos inúmeros casos de desaparecimentos lá ocorridos que chegam a quase 26.000. Quando a repressão também se abate sobre elas cujo único crime é chorar os seus mortos, em mais uma violação dos direitos humanos mais elementares, nos associamos às numerosas Entidades Internacionais que as indicaram para prêmio Nobel da Paz. Solicita-se, aqueles que puderem fazê-lo, que compareçam de negro com lenço branco na cabeça exatamente como as Mães da Praça de Maio. LOCAL: ESCADARIAS DO TEATRO MUNICIPAL DIA:22.08.80 HORA: 16:00 MÃES CHORAM SEUS MORTOS E DESAPARECIDOS VÍTIMAS DAS DITADURAS MILITARES! PREMIO NOBEL DA PAZ ÀS MÃES DA PRAÇA DE MAIO! SOLIDARIEDADE DAS MULHERES CONTRA A CUMPLICIDADE DAS DITADURAS! FORA VIDELA!509 Ruth Escobar aproveitou a oportunidade para denunciar as barbáries cometidas por uma ditadura. Isto é, as mesmas atrocidades investidas por Videla, também teriam ocorrido no Brasil, no entanto, pouco se falou sobre isso. Nesse sentido, Ruth conciliou esse protesto para 507 WALSH apud PÉREZ, El País, 03 dez. 2014. Processo 20C-44-12088 e 20C-44-12087. APESP. 509 Processo 20C-44-12088 e 20C-44-12087. APESP. 508 que mães de desaparecidos, que até então não tinham se manifestado por medo de represálias, pudessem colaborar nesse movimento, dar volume e mostrar o lado oculto de um regime militar. O trabalho de Ruth Escobar e de Silvia Pimentel resultou numa passeata que congregou diversas entidades. Eles percorreram do Teatro Municipal até o Largo São Francisco numa “manifestação pacífica e de solidariedade às mães argentinas da Praça de Mayo”510. Essa passeata foi registrada pela imprensa argentina: “Mulheres com roupas pretas e panos brancos desfilaram em silêncio e leram um manifesto que afirma que a visita “do ditador argentino Jorge Rafael Videla é uma demonstração de enorme abismo que separa o povo brasileiro de seu governo””511. Na mesma reportagem, Ruth afirmou que: “Argentina é um país amigo, os ditadores não são. O povo argentino será mito bem-vindo caso queriam vir aqui”512. A reportagem também pontuou que o DOPS não permitiria “ofensas ao presidente de país amigo [e que] qualquer estrangeiro que participe nesses atos, será expulso do país, e que os brasileiros serão julgados pela Lei de Segurança do Estado”513. 4.5 Cela[s] e palco[s] Dentre as várias áreas de atuação de que Ruth Escobar, o sistema carcerário também recebeu especial atenção de sua parte. Ela acreditava que os presos, por meio da arte teatral, poderiam realizar um trabalho de qualidade e que o mesmo lhes serviria como ferramenta de conscientização. As incursões de Ruth Escobar no mundo carcerário começaram em 1964. O Teatro Popular Nacional (TNP) se apresentou no pátio da Casa de Detenção, em São Paulo, com o espetáculo As desgraças de uma criança. Em 1972, Missa Leiga foi apresentada no Presídio Tiradentes, também em São Paulo e, no presídio da cidade do Porto em Portugal514. Revista do Henfil, em 1978, foi levada no presídio Lemos Brito, na Bahia e no de Itamaracá, no Ceará. Em São Paulo, apresentou-se durante dez dias na Casa de Detenção. Nos anos de 1980, Ruth Escobar retomou suas atividades nos presídios de São Paulo e fez uma série de intervenções teatrais na Penitenciária do Carandiru. A atuação de Ruth Escobar no interior do presídio começou nos moldes aplicados anteriormente, somente com apresentações avulsas. Em 1980, o Serviço Nacional do Teatro (SNT) criou um programa de intercâmbio com grupos europeus para realizar apresentações em algumas cidades brasileiras, principalmente em São Paulo, Recife, Brasília e Rio de Janeiro. Dois grupos portugueses, o Teatro Experimental de Cascais (TEC) 515 e A Barraca foram selecionados para apresentar espetáculos no Brasil, 510 ATO, Folha de São Paulo, 22 ago. 1980, p. 6. No original: “Mujeres com ropas negras y pañuelos blancos desfilarán em silencio y leerán um documento que afirma que la visita “del dictador argentino Jorge Rafael Videla es uma demonstración más del enorme abismo que separa al Pueblo brasileño de su gobierno”. MANIFESTACIÓN, El día, 22 ago. 1980. 512 No original: “Argentina es um país amigo los dictatores no lo son. El Pueblo argentino sería muy bien bienvenido em caso que viniera aqui” MANIFESTACIÓN, El día, 22 ago. 1980. 513 No original: “ofensas al presidente de un país amigo [e que] cualquer extranejero que participe em esos actos, será expulsado del país, y que los brasilenõs serán juzgados por la Ley de Seguridad del Estado”. MANIFESTACIÓN, El día, 22 ago. 1980. 514 A passagem do espetáculo Missa Leiga no presídio em Portugal será abordada no capítulo oito dessa pesquisa. 515 O Teatro Experimental de Cascais (TEC) apresentou seis espetáculos durante o mês de junho de 1980: Auto da Índia e Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, Don Quixote de Cervantes adaptado por Yves Jamiaque, Fuenteovejuna de Lope de Vega, A maluquinha de Arroios de André Brun, Ivone, princesa de Borgonha de Witold Gombrowicz, Oração e Os dois verdugos de Arrabal. Entre junho e julho do mesmo ano, A Barraca encenou 511 além do Centre d´Étude et de Diffusion des Techniques Actives des Expressions, fundado e dirigido por Augusto Boal. Os dois grupos se exibiram no Teatro Ruth Escobar e foram convidados por ela para realizar apresentações no projeto que desenvolvia com os presos do Carandiru, desde maio de 1980. O TEC expôs A maluquinha de Arroios, em 18 de junho e, A Barraca a encenação Preto no Branco, em 02 de julho de 1980. A respeito dessas apresentações, Ruth concluiu que: “as consequências foram positivas e muito alegres: a grande maioria daquela população nunca tinha ido ao teatro [...] depois de cada apresentação dos grupos profissionais, os presos discutiam entre eles os inúmeros temas relacionados àquele cotidiano”516. Para desenvolver esse projeto junto aos presos do Carandiru, Ruth Escobar constituiu uma equipe para trabalhar numa montagem com os detentos; equipe formada por Roberto Lage, Andrea Leão Gonçalves, Jean Pierre Garfunkel, David Lindenbaum, Luiz Carlos Laborda e Ameir de Paula Barbosa, responsáveis pela elaboração de um espetáculo com os presos do Carandiru. Além deles, Ruth também se cercou de outros profissionais: o psiquiatra Helio Stern e a assistente social Maria Lucia Gaspar. Ao longo dos meses, os ensaios transcorreram normalmente. Construído em conjunto com os presos, o texto do espetáculo Aqui há ordem e progresso refletia o cotidiano da prisão, bem como situações pessoais dos detentos. No total, foram elaborados setes esquetes, que deveriam compor esse espetáculo: A audiência, O reincidente, Concorrente, Monólogo, B.B.B.517, C.O.D.P.H.U518 e Ordem e Progresso. O projeto concebido por Ruth Escobar não estaria longe de polêmicas. Com data marcada para estrear, em 12 de outubro de 1980, a produtora, dias antes, foi comunicada pelo Secretário de Justiça de São Paulo, José Carlos Ferreira de Oliveira, que a encenação estava proibida, pois a considerava “de baixo nível”519 e por ser “perniciosa à reabilitação dos presos”520. Ao saber desta proibição do secretário, Ruth declarou que “nenhum deles assistiu a um ensaio geral e todos basearam suas opiniões apenas na leitura dos textos521”. Obviamente, ela não deixaria essa situação sem lutar por aquilo em que acreditava após cinco meses de elaboração e ensaios com os detentos. Numa primeira reunião para tentar resolver o problema censório, o Secretário da Justiça exigiu que fossem retiradas “as referências a personalidades como o senador Jarbas Passarinho e os delegados Rubens Liberatori e Wilson Richetti, entre outros”522. Porém, a censura foi ainda maior. Aos 22 de outubro de 1980, em reunião com outras autoridades, decidiram que os quadros: Concorrente e BBB – Bola, Buchicho e B... fossem vetados integralmente523. Ruth recuou para prosseguir. Após uma série de negociações, em 30 de outubro, a peça Aqui há ordem e progresso foi exibida no auditório da penitenciária. Em cena, cerca de quarenta atores expuseram o espetáculo para quatrocentos presidiários e diversos familiares e convidados. Ruth recordou quatro peças: É menino ou menina (colagem de textos de Gil Vicente), Zé do telhado e D. João 6º de Helder Costa e Preto no Branco, de Dario Fo. 516 ESCOBAR, 1982, p. 14. 517 Bola, Buchicho e Bunda é o título da esquete. 518 Conselho Ornamental de Defesa da Pessoa Humana. 519 PEÇA, O Estado de São Paulo, 14 out. 1980, p. 17. 520 SECRETÁRIO, Folha de São Paulo, 11 out. p. 9. 521 DIREÇÃO, Folha de São Paulo, 09 out. 1980, p. 17. 522 SECRETÁRIO, Folha de São Paulo, 11 out. p. 9. 523 O texto O Concorrente fala de um delegado que, para eliminar seu concorrente na venda do tráfico, contrata um bandido para mata-lo. E tem outra cena em que trata de uma mulher que ao visitar seu marido na cadeia, contalhe que engravidou de outro homem. Ao invés de se aborrecer, ele grita aleluia, como um louco. B.B.B. trata do homossexualismo dentro da cadeia. que as apresentações foram uma “catarse total, pois nos 90 minutos do espetáculo a platéia se identificava a cada segundo”524. Foi o que sentiu o deputado estadual Almor Pazzianotto Pinto do PMDB. Dias após assistir ao trabalho dos detentos, em 07 de novembro de 1980, o político discursou na Assembleia Legislativa de São Paulo, homenageando o projeto de Ruth Escobar: Sr. Presidente, Srs. Deputados, desejo hoje, desta tribuna, talvez reiterando pronunciamentos anteriores de outros ilustres parlamentares, prestar homenagem a uma personalidade paulista, e mais que isto, uma personalidade Brasileira de enorme envergadura moral e intelectual, de grande coragem cívica, de grande estrutura política que é a atriz Ruth Escobar. (Muito bem!) Esta homenagem, Srs. Deputados, presto em função de uma longa e enumerada série de realizações de Ruth Escobar, que ao meu ver estão coroadas por uma iniciativa que tomou mais recentemente, e que me tocou de maneira profunda. Ruth Escobar, com uma equipe de auxiliares, igualmente valorosos e competentes, foi a penitenciária do Estado, venceu inúmeras dificuldades burocráticas produzidas pela incompreensão de autoridades estaduais e conseguiu, reunindo número expressivo de presidiários, organizar uma representação teatral, a qual tive a honra de assistir na última segunda-feira. Uma representação que, num curto espaço de tempo, durante alguns minutos, põe a nu toda a degradação que caracteriza o sistema penitenciário Brasileiro. Ruth Escobar, naquele instante, atingiu as culminâncias do sublime; ela, seus auxiliares e os detentos, que transmitiram a mensagem de tal conteúdo humano, que conseguiram produzir um documento autêntico e vivo dos erros que caracterizam esta nossa pseudo-política de recuperação do criminoso, do delinqüente. Não me envergonho de dizer aos Srs. que me senti profundamente deprimido naquele instante, e até mesmo envergonhado diante do muito pouco, ou do nada, que temos feito em benefício da justiça e em favor daqueles homens, muitos deles mal entrados na maturidade, e que mesmo com os erros que cometeram, não poderiam ficar submetidas a penas tão ociosas, tão desumanas, tão medievais como essas, que o sistema carcerário Brasileiro conseguiu imaginar, preservar e consegue defender.[...] (Muito bem!) (Palmas). 525 Para o crítico Jefferson Del Rios, o espetáculo Aqui Há Ordem e Progresso teve “momentos convincentes de representação e engenhosidade na concepção dos cenários e figurinos. É teatro apesar das limitações naturais. Não tem sentido analisar em detalhes as qualidades artísticas do empreendimento que, evidentemente, não segue padrões estéticos convencionais. O que interessa é constatar a alegria dos envolvidos no processo” 526. Da mesma opinião, o crítico Sábato Magaldi escreveu no Jornal da Tarde: Há uma reflexão serena e bem-humorada sobre a vida do presidiário, levando-o, certamente, a conscientizar-se e a conscientizar a sociedade a propósito do confinamento que lhe é imposto. A dramatização dos conflitos atenua as tensões e facilita um diálogo com as autoridades [...] Na área propriamente artística, vê-se como os depoimentos sinceros, mesmo carentes do aprendizado técnico específico, tem o poder de sensibilizar a platéia. Algumas cenas provocam real emoção, porque a linguagem simples e despojada fala ao espectador. O testemunho verdadeiro, nascido de uma necessidade profunda, encontra um ouvido mais receptivo do que para muitos empreendimentos teatrais 527. Ainda que não houvesse um arrojo técnico interpretativo, a simplicidade suplantou as grandes produções realizadas por Ruth Escobar até aquele momento. Composto por biombos, 524 ESCOBAR, 1982, p. 15. DOSP, 21 nov. 1980, p. 99. 526 DEL RIOS, 2010, p. 191. 527 MAGALDI apud FERNANDES, 1985, p. 160. 525 mesas, cadeiras e um varal com camisas penduradas ao longo do palco, o cenário foi concebido de acordo com as condições encontradas no local da apresentação. Naquele local sombrio, havia esperança. Mais do que a simplicidade interpretativa, o cenário também refletia essa condição. Ao longo do mês de novembro de 1980, Aqui há ordem e progresso foi apresentada para todos os presidiários do Carandiru; na época, havia cerca de mil e duzentos detentos. Nessas apresentações, deputados, juízes, autoridades penitenciárias, jornalistas e críticos estiveram presentes para prestigiar o trabalho de Ruth Escobar junto aos detentos. Em 30 de novembro fizeram a última apresentação. Ruth avaliou o projeto: Os espetáculos para os familiares dos detentos também foram experiências sensacionais. Muitas destas pessoas, por sua condição econômica, nunca tinham ido a um teatro e quando tiveram a oportunidade de verem seus filhos, esposos, sobrinhos ou pais no palco representando, uma nova sensação tomou conta destas famílias, algumas das quais, pela primeira vez na vida, deixaram de ter vergonha em ver seus familiares presos. Pela primeira vez, em muitos anos, alguns destes detentos foram aceitos novamente pela família528. Apesar da curta temporada desse espetáculo, o sucesso de crítica e a repercussão positiva do projeto impulsionaram Ruth Escobar a construir um novo espetáculo. O desejo dos detentos era o de que a nova encenação fizesse parte dos festejos de fim de ano. Para isso, alguns deles conversaram com o diretor do presídio, a fim de solicitar autorização para que, no dia 21 de dezembro de 1980, houvesse uma programação diferenciada. Com as devidas autorizações, iniciaram-se os ensaios e a organização desse dia festivo. Apesar do pouco tempo de preparação para a construção do novo espetáculo, Ruth Escobar e sua equipe aceitaram o desafio. O elenco se manteve quase inalterado, algumas modificações se fizeram necessárias, devido à transferência de detentos para outras unidades prisionais. Visto que havia pouco tempo para construir a encenação, Ruth optou por texto pronto. O texto escolhido foi o Auto do Burrinho de Belém, de Chico de Assis. Para dirigi-la, Ruth convidou Luiz Carlos Laborda e Emílio de Biase. Conforme acertado com a direção do presídio, naquele domingo, dia 21 de dezembro os detentos “ganharam o Natal como não tinham há muitos anos. Das 8 da manhã às 4 da tarde, com mães, esposas e crianças; um show percorreu todos os pátios e mais de 60 voluntários [...] visitaram presos que não tinham famílias. E foi um domingo de alegria, afeto e confraternização” registrou a Folha de São Paulo529. Durante o dia, os detentos puderam desfrutar da visita dos familiares; mas a noite foi reservada à estreia de Auto do burrinho de Belém, ao qual somente os detentos puderam assistir. A estreia oficial ocorreu no dia seguinte, em 22 de dezembro de 1980. Sessão aberta a convidados e familiares. Apesar do sucesso do espetáculo anterior junto à imprensa, desta vez os críticos não compareceram na estreia. Infelizmente, não foi uma decisão acertada. Um dia após a estreia, o Carandiru foi palco de um motim. Outros contornos estavam sendo desenhados. Para o diretor da Penitenciária, Irineu Bruno Vizoto, o motim foi provocado por três razões: “o termino antecipado de um jogo de futebol, por causa da chuva e porque a guarda do presídio levou a bola; o descontentamento dos presidiários que não foram incluídos na lista dos que passaram o Natal com suas famílias, “o que não acredito”; e a revolta insuflada pelo grupo teatral Ruth Escobar, segundo declarações de um preso”530. 528 Relatório do Teatro Ruth Escobar In: FERNANDES, 1985, p. 163. DETENTOS, Folha de São Paulo, 30 dez. 1980, p. 13. 530 REBELIÃO, O Estado de São Paulo, 27 dez. 1980, p. 13. 529 Quando interrogada por um jornalista, Ruth Escobar rebateu as acusações: “O que fazemos ali dentro é um trabalho de teatro e claro que procuramos também conscientizar os presos de seus direitos e deveres. Agora, dizer que eu sou a culpada é uma leviandade” 531. Na mesma reportagem, Ruth esclareceu que “o grande massacre na Penitenciária aconteceu sextafeira (um dia após o motim) quando cerca de 600 policiais da Tropa de Choque da Polícia Militar entraram e bateram em todo mundo”532. Após o incidente, em 28 de dezembro, Ruth Escobar visitou o presídio, sendo seguida pelos agentes do DOPS como era de se esperar. Conforme relatou o capitão da Polícia Militar do DEOPS, do Centro de Comando da Polícia Militar (CECOPOM), Israel Nunes Rodrigues: “a atriz Ruth Escobar esteve hoje as 10h00min na penitenciária do estado et concitou os familiares dos presos a se reunirem a as 17h00min no Teatro Ruth Escobar vg sito aa rua dos ingleses na bela vista pt”533. A informação do relatório rapidamente foi repassada a outros agentes. Às 11h25, o Delegado Chefe do DOPS, Roberto Tuma, repassou as informações ao Sistema Nacional de Informações (SNI) II Exército, IV Comando Aéreo Regional (COMAR) e Departamento de Polícia Federal (DPF). No mesmo dia, o delegado de plantão Roberto Fernandes designou o policial Paulo S. Quagliato para observar a reunião com os familiares dos presos no Teatro Ruth Escobar. Com cerca de setenta pessoas presentes na reunião (quase todas eram mães), Ruth argumentou que: - Que, a rebelião ocorrida, no dia de Natal, foi motivada, ou melhor, provocada pelos guardas da Penitenciária, os quais constantemente agridem e torturam presos. -Que, foram funcionários da Penitenciária que também colocaram fogo nos colchões, e, em virtude de estarem espancando alguns presos, os que se encontravam em suas celas começaram a gritar para que parassem, quando então deu início à rebelião, forçados pelos funcionários. -Que, o sistema carcerário não oferece condições aos presos, pois ao invés de reeducálos, eles saem da prisão mais violentos e perigosos, em virtude das torturas e espancamentos sofridos. -Que, ela tem provas de todas as arbitrariedades que ocorreram e que tinha ainda fotos, filmes e gravações, comprovando tudo. -Que, todas as noites, após o incidente, entra a Tropa de Choque e dá “PORRADA EM TODOS OS PRESOS”. 534 A respeito dessas declarações, dias após a reunião no Teatro Ruth Escobar, o jornal Folha de São Paulo publicou o depoimento de um preso em liberdade condicional que confirmou a denúncia de Ruth Escobar. Ele afirmou que eram “corriqueiros os espancamentos dos presos, pelo pessoal do Serviço de Vigilância Especial (conhecido dentro da prisão como “choque”. O preso também asseverou que “mataram a socos e pontapés um preso conhecido como Valdemar Maluco, que havia morto um guarda a golpes de estilete”535. Com o inquérito instaurado para apurar as causas, iniciou-se um jogo de acusações. O diretor da Penitenciária afirmou “é certo que alguns guardas e detentos afirmaram que o grupo de teatro insuflou os presos contra os policiais, mas não temos nada além disso”536. 531 ATRIZ, Folha de São Paulo, 28 dez. 1980, p. 15. ATRIZ, Folha de São Paulo, 28 dez. 1980, p. 15. 533 Processo 20-C-44-15190 / 20-C-44-15189 / 20-C-44-15188. As siglas são correspondentes à pontuação do texto: pt (ponto), vg (vírgula), aa (crase) et (e). 534 Processo 50-Z-129-22639 e 50-Z-129-22638. APESP. 535 DENÚNCIAS, Folha de São Paulo, 31 dez. 1980, p. 9. 536 PENITENCIÁRIA, Folha de São Paulo, 04 jan. 1981, p. 16. 532 Nesse encontro com os familiares537, houve a formação um Comitê de Defesa dos Direitos Humanos do Preso Comum. Conforme relatório do DOPS, esse comitê foi formado por “grupos de três mulheres e se dirigirão às rádios e também à T.V., onde irão pedir a todas as mães de presos que se encontram na Penitenciária do Estado, que se dirigidas à Secretaria da Justiça, no Páteo Colégio, com a presença do Cardeal Dom Paulo, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil para exigir a liberação imediata de visita aos presos e a relação dos presos espancados que se encontram espancados”538. Após alguns dias, as visitas foram liberadas. No entanto, em meio à zona de turbulência, Ruth Escobar prosseguiu com o projeto. Além de fazer teatro com os detentos, ela registrou todo o processo em vídeo-tape539 no período em que estiveram no Carandiru. O intuito da produtora era o de fazer um documentário educativo com o material captado. Segundo ela: O nosso objetivo agora é transformar todo este material gravado em video tape, num filme educativo, que pela força de imagens e depoimentos, poderiam modificar o pensamento de milhares de pessoas que não tem acesso a nenhuma informação sobre presídios. Esse filme, em si, já se constitui numa semente visual e educativa, a ser exibido em favelas, unidades de menores abandonados, para familiares de presos, juristas, advogados, estudantes de direito, em Faculdades de Psicologia, Sociologia e Comunicações, na Câmara doa Deputados e Senado, e principalmente fomentar a criação de vários comitês em todo o país, “Em Defesa dos Direitos Humanos do Preso Comum”. Durante os seis meses, gravamos mais de cinco horas de fitas com depoimentos de vários presos sobre suas vidas, as atividades teatrais de um grupo de 70 presos, laboratórios e workshops musicais e artísticos, depoimentos das famílias em dias de visitas, análises de psiquiatras, sociólogos e autoridades que lidam juridicamente com problemas carcerários. Além disso, gravamos o próprio espaço físico da Penitenciária (cozinha, celas, pátios), atividades nas hortas, oficinas e hospital540. Ainda que a ideia inicial de Ruth Escobar tivesse como objetivo a produção de um documentário de caráter educativo, no qual fosse demonstrado o processo de desenvolvimento de um trabalho artístico com a população carcerária, pôde constatar-se que, por detrás dessa iniciativa, havia um propósito de denunciar a situação desses presos. A proposta documentária de Ruth Escobar continha uma reflexão sobre a realidade escondida nos intramuros do presídio. Além disso, no início dos anos de 1980, o assunto sobre os direitos humanos, destinado aos detentos comuns, era pouco discutido pela sociedade brasileira. Para concretizar esse projeto de documentário, em 26 de janeiro de 1981, Ruth Escobar encaminhou um pedido ao presidente Secretário de Cultura do Ministério da Educação e Cultura, Aloisio Magalhães, solicitando recursos financeiros no valor de quatrocentos e cinquenta mil cruzeiros, para finalizar a edição das imagens no formato de dezesseis milímetros 537 Processo 20-C-44-15190 / 20-C-44-15189 / 20-C-44-15188. APESP. Processo 50-Z-129-22639 e 50-Z-129-22638. APESP. 539 De acordo com Ruth Escobar, “desde o seu início, a experiência com video tape atendia a duas expectativas: 1º) gravar material que poderia ser estudado mais demoradamente para que pudéssemos fazer uma avaliação real e exata do comportamento do preso (e as expectativas de cada um na instituição conforme faixa etária). A partir deste ponto, depois de processadas as informações, devolvemos essas informações para o próprio preso e, juntos, trabalhamos com o novo comportamento. 2º) modificação, através de centenas de respostas que foram fornecidas pela população carcerária, todo um sistema penitenciário viciado e punido, um dos principais geradores de violência (uma escola de violência) da sociedade e, que fazia do indivíduo que saísse de lá, uma pessoa totalmente dissonante da realidade que o cercava e sem nenhuma perspectiva profissional ou social”. Processo AC/ACE/13557/81. AN. 540 Processo AC/ACE/13557/81. AN. 538 com duração de sessenta minutos, do documentário O presídio541. Ruth Escobar também incluiu, no valor solicitado, a circulação/exibição do trabalho pela América Latina. Ela acreditava que “por causa principalmente da inércia informativa que ocupa o país, que a partir das dezenas de exibições deste filme, possamos fazer com que as autoridades competentes e a opinião pública em geral participem diretamente desta problemática”542. Além de acreditar no poder transformador da arte, seja pelo teatro ou pelo cinema, Ruth Escobar produzia arte para levar discussões que possibilitassem reflexões contributivas às condições sociais e humanas. Ela não fazia distinções de classe social; dos políticos às favelas, Ruth desejava proporcionar uma mudança pela conscientização. Além dessa iniciativa de circulação, ela afirmou que “recentemente firmamos um contrato com a TV Globo, que exibirá em breve, em rede nacional, um documentário sobre presídios que terá muitas cenas gravadas por nós com o material recolhido na Penitenciária do Estado de São Paulo”543. No entanto, apesar de todos os argumentos apresentados, o Ministério de Educação e Cultura (MEC) negou os recursos “tendo em visto as repercussões negativas que poderiam advir de tal atendimento”544. 541 O documentário intitulou-se Os artistas condenados. Direção de David Lindenbaum. Não localizado durante a pesquisa. 542 Processo AC/ACE/13557/81. AN. 543 Processo AC/ACE/13557/81. AN. 544 Processo AC/ACE/13557/81. AN. 4.6 Dossiê de fotos A Rebelada CAPITULO V – A ORGANIZADORA este capítulo apresento as dificuldades que Ruth Escobar enfrentou como produtora teatral para organizar três festivais de teatro, na cidade de São Paulo na década de 1970/1980. Para a empresária, os festivais tinham como objetivo o intercâmbio de experiências com os grupos internacionais, além é claro, de ser uma forma de protesto contra o regime militar com a presença de grupos teatrais, que tinham em seu repertório encenações de cunho político. Essa característica pode ser vista em forma de uma curva ascendente, tanto no número de companhias convidadas, quanto no acirramento do embate. Realizados em 1974, 1976 e 1981, os FITs contaram com a presença de importantes grupos teatrais e encenadores do Brasil e do mundo. Na primeira edição, Ruth Escobar convidou três grupos internacionais, mas o destaque foi a vinda do diretor polonês Jerzy Grotowski pela primeira vez no Brasil. Na segunda edição, a produtora trouxe quatorze grupos de diferentes países e, a terceira edição teve dezoito, além de uma programação paralela composta por intervenções, shows musicais e ciclos de cinema. A decisão de Ruth Escobar de realizar os festivais também estava relacionada ao fato de que, naquele período, a produção teatral nacional vivia um período de debilidade, eram escassas as encenações que transgrediam as tradicionais formas de fazer teatro em virtude da ditadura militar. Para realizar estes eventos, a empresária passou por uma série de problemas, desde a escassez de recursos financeiros à repressão da censura do regime militar, passando pela contestação da classe artística. Mas, outra vez, ela colocou em prática suas estratégias para contornar situações. N 5.1 Da produção a crise do I FIT Em março de 1974, assumiu a Presidência da República o quarto general do regime militar iniciado em 1964, Ernesto Geisel, pelo quinquênio de 1974 a 1979, em substituição ao general Emílio Garrastazu Médici. Ao assumir a presidência, Geisel iniciou a abertura política, um processo de transição rumo à democracia, que ficou conhecido como a redemocratização lenta, gradual e segura. Em seu governo conviveu com a primeira grande crise do petróleo, a criação do Proálcool – Programa Nacional do Álcool, a construção de Itaipu, recessão mundial, luta pela Anistia aos perseguidos políticos, etc. Mesmo pertencendo à linha mais branda das forças armadas, Geisel não dispensou o uso do famigerado Ato Institucional n. 5 (AI5). E em abril de 1977, colocou o Congresso Nacional em recesso para impor ao país uma nova legislação eleitoral, que criou o “senador biônico”, indicado pela Presidência da República; ampliou o mandato presidencial para seis anos, entre outros itens autoritários. No âmbito do teatro, destacavam-se, em 1974, as produções cariocas Histórias de Lenços e Ventos de Ilo Krugli; Viva o Coração Encarnado de Luís Marinho, dirigida por Luís Mendonça; Reveillon, escrita por Flávio Márcio com direção de Aderbal Freire-Filho e AntiNelson Rodrigues sob a direção de Paulo César Pereio; em São Paulo, Bonitinha, mas ordinária de Antunes Filho e Orquestra de Senhoritas, dirigida por Luís Sérgio Person. Naquele ano, São Paulo recebeu um forte impulso teatral. Ruth Escobar decidiu organizar o I Festival de Outono,545 projeto que buscava ser um intercâmbio artístico, “criado para comemorar os dez anos do Ruth Escobar”546, observou José Serroni. A ideia de Ruth Escobar era a de promover o I Festival Internacional de Artes Cênicas (FIAC), objetivando a dinamização da produção teatral brasileira, a partir do contato com experiências cênicas internacionais de vanguarda. O ambiente em São Paulo era de pouca criatividade cênica. A forte repressão militar (do governo Médici), a falta de liberdade de expressão e a ausência de artistas e intelectuais, que estavam exilados podem ser considerados alguns dos pontos cruciais para esta queda produtiva. Neste sentido, pode dizer-se que a presença da produtora Ruth Escobar foi fator decisivo para impulsionar novos processos criativos, provocar reflexões e intercambiar ideias que pudessem renovar as concepções teatrais. Na época, a produtora declarou que a presença de grupos internacionais tirava “o teatro desse marasmo. Na medida em que as coisas ficam limitadas de uma forma, é preciso tentar outras. E é exatamente o que eu estou fazendo”.547 Isto é, se de um lado o teatro brasileiro estava limitado pela ação censória, por outro, era necessário criar outras estratégias para oxigenar a estética teatral brasileira. Como realizadora dos festivais, Ruth Escobar se via como uma agente da renovação da cena, mediante a criação de novos vínculos com o velho continente. Ruth Escobar desejava trazer ao Brasil produções teatrais do mundo para colocar a cidade de São Paulo no circuito dos Festivais Internacionais de Teatro.548 Ruth Escobar inaugurou, no Brasil, a realização de festivais internacionais com a presença de grupos estrangeiros, possibilitando o contato dos grupos profissionais e amadores com inovações nos procedimentos cênicos, intercambiando experiências de vanguarda com artistas de outros países. Ao assumir a função de curadora de seu festival, a escolha dos espetáculos também era feita com base em características presentes em suas produções teatrais: espetáculos politizados que enfrentavam regimes autoritários em seus países, bem como a vinda de grupos que utilizassem novos processos criativos. O intuito de Ruth Escobar era o de provocar um diálogo estético-político. Na primeira edição do Festival Internacional de Teatro (FIT), observa-se que o evento não ocorreu de forma sequenciada e condensada, mas com apresentações esparsas, ocorridas ao longo do ano de 1974. Sendo assim, não pode ser caracterizado como um festival no sentido que é empregado tradicionalmente. Ao usar a nomenclatura festival, Ruth Escobar apropriouse de uma estratégia de divulgação que ampliava a repercussão das apresentações isoladas como a de sua produção. Trazer espetáculos à cidade paulista demandava um árduo trabalho, seja na organização, seja na busca recursos financeiros. Uma das primeiras ações de Ruth Escobar para executar o FIT foi registrada em 24 de janeiro de 1974, quando a produtora se deslocou até Brasília para conseguir, junto ao Ministério das Relações Exteriores, o visto de entrada do diretor polonês Jerzy Grotowski. Nos planos de Ruth Escobar, a realização do I FIT estava prevista para entre os meses de março a junho, no entanto, devido a dificuldades na obtenção de recursos financeiros, necessitou de postergação. Como sempre fazia, a produtora buscou apoio junto à Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP), mas por um erro administrativo o valor a ser repassado ao FIT não foi contabilizado no pagamento em 1974. Ruth Escobar, mesmo assim, levou à frente o festival com os recursos 545 Depois, Ruth Escobar o intitulou de I Festival Internacional de Artes Cênicas (FIAC) e, em seguida, Festival Internacional de Teatro (FIT). 546 SERRONI, 2002, p. 212. 547 ESCOBAR, Ruth. Entrevista concedida a reportagem ESSA “LOUCA”, Diário do Comércio e Indústria, 18 jul. 1974. 548 Pode-se citar: Festival de Caracas (Venezuela) e Nancy (França). de que dispunha e com a promessa de que a Prefeitura encontraria mecanismos para liberar os recursos prometidos. Após a realização do FIT549 e sem conseguir receber os recursos financeiros do município, Ruth Escobar estava endividada. A PMSP encontrou uma fórmula estranha para quitar essa dívida. Com o apoio de pessoas vinculadas à área teatral do município, Ilka Marinho Zanotto, Mariângela Alves de Lima e Clóvis Garcia, foi projetada uma Pesquisa Cultural, com o objetivo de “levantar tendências artísticas e culturais dos grupos populacionais, segundo faixas etárias e assim identificar, in loco, o tipo de motivação artística de cada área da cidade”550. Por meio desse mecanismo, a PMSP pôde realizar o pagamento de duzentos e quarenta mil cruzeiros para Ruth Escobar, quitando a dívida do município com o I FIT. Em entrevista concedida ao pesquisador, Clóvis Garcia relatou que “pagamos [a] ela por um X para receber a verba. Não sei onde está esta pesquisa que era sobre o público de teatro. Foi feita a entrevista na porta do teatro, tipo um levantamento [...] Eu estive com esta pesquisa em mãos”551. Mas, a classe teatral se revoltou com a pesquisa encabeçada por Ruth. Artistas alegavam favorecimento à empresária, pois a prefeitura havia destinado boa parte do orçamento municipal da cultura para um estranho projeto de pesquisa e isso soou como “fictício, existindo apenas para justificar a entrega de verba”552, registrou ´O Estado de São Paulo. Outro fator que levou a classe artística paulistana a desconfiar do recebimento dos recursos privilegiados, dizia respeito à composição da equipe de Ruth Escobar. Para alguns artistas: [..] a qualificação das duas assistentes da empresária para essas funções é, pelo menos, discutível. Norma Greco desempenha, atualmente, o cargo de gerente e de encarregada da publicidade de Ruth Escobar. Myrian Cristofani é, da mesma forma, auxiliar de Ruth Escobar na administração de suas atividades empresariais. Nenhuma delas, segundo os críticos, apresenta condições para uma “assessoria cultural” de forma prevista pelo contrato553. Apesar da desconfiança de uma parte da classe artística, de outro lado havia intelectuais, críticos e artistas554 que defenderam a produtora das acusações. Fruto de uma ação conjunta, a classe artística enviou uma carta à imprensa paulistana com o seguinte conteúdo: Independentemente dos esclarecimentos que deverão vir ser prestados sobre a forma e o conteúdo da referida contratação, ressaltamos e reiteramos o alto valor artístico e cultural do I Festival Internacional de Teatro, promovido pela iniciativa de Ruth Escobar, com a colaboração das autoridades municipais de São Paulo; relembramos as relevantes atividades artísticas promovidas pela referida empresária através de inúmeras e sucessivas montagens do maior gabarito tais como “Cemitério de Automóveis”, “O Balcão”, “Missa Leiga” e “A Viagem”, entre outras; e não concordamos com os ataques de ordem pessoal que vêm sendo realizados sistematicamente contra nossa companheira de profissão 555. 549 Lembro que durante a realização do I FIT, Ruth Escobar ainda organizou a produção de dois espetáculos: Capoeiras da Bahia, encenação destinada a excursionar pela Europa, Ásia e África, dirigida por Gilda Grillo e, Autos Sacramentais, para participar do 8º Festival das Artes do Irã. 550 RUTH, O Estado de São Paulo, 11 mai. 1974, p. 19. 551 GARCIA, Entrevista concedia a Eder Sumariva Rodrigues. 552 A DISTRIBUIÇÃO, O Estado de São Paulo, 15 mai. 1974. 553 RUTH, O Estado de São Paulo, 11 mai. 1974, p. 19. 554 Como Antunes Filho, Antonio Abujamra, Carlos Queiroz Telles, Sergio Mamberti, Etty Fraser, Antonio Ghigoneto, Ruthneia de Moraes, Maria Isabel de Lisandra, Beatriz de Macedo, Raul Cortez, Darcy Ribeiro, João Apolinário, Francisco Martins, Hearth Smile, Osvaldo Loureiro e Cecília Rabelo 555 APOIO, Folha de São Paulo, 16 mai. 1974, p. 6. A respeito dessa pesquisa cultural e do que ela encobria, Ruth Escobar fez o seguinte desabafo em sua autobiografia, de 1985: O I Festival Internacional de Teatro se encerrava com um déficit bastante vultoso, que seria coberto, parcialmente, por verba prometida pelo então prefeito Miguel Colassuono, a qual, por um lapso administrativo, não fora empenhada na hora legal. Assim, a verba do Festival deveria ser paga usando-se um expediente qualquer, pois as contas eram prementes. Desta forma, eu e duas secretárias minhas fomos contratadas para um serviço que era pago com ‘generosidade excessiva’, porém, para cobrir as despesas do Festival. Como era uma compensação que não estava explícita no contrato, nem poderia estar, criou-se uma grande celeuma na imprensa. E, claro que eu não ia sair a público denunciando os aspectos formais que a administração municipal encontrava para me ajudar, financeiramente, na realização do evento556. Apesar das dificuldades financeiras, na primeira edição do FIT, Ruth Escobar trouxe ao Brasil três grupos internacionais para apresentar quatro encenações. O primeiro espetáculo foi Yerma, uma obra de caráter trágico, escrita em 1934 por Federico Garcia Lorca, ambientada na cidade espanhola Andalucia. O título do texto é o nome da personagem central que busca diversas formas para engravidar, mas descobre que a causa não é sua infertilidade, mas o desinteresse de seu marido que não deseja ter filhos. A partir dessa descoberta, o ódio e furor são despertados: a heroína assassina seu marido com as próprias mãos. Sob a direção de Victor Garcia, Yerma foi apresentada no Teatro Municipal de São Paulo, de 12 a 19 de março de 1974; apesar do tradicional palco à italiana, a peça ganhou uma nova abordagem espacial. O diretor “redirecionou a geografia da cena ao montar a tragédia espanhola dentro e fora de uma gigantesca lona, movida por polias e ganchos de guindaste”557, registrou o crítico Alberto Guzik. Victor Garcia utilizou sua formação de arquiteto na invenção de um complexo aparato cenográfico para ambientar a encenação, na qual “a plasticidade [foi] a tônica do espetáculo, presente na flexibilidade ondulante da lona que recobre o palco”558, afirmou a crítica Ilka Zanotto. Victor Garcia e seu elenco, formado por Nuria Espert (Yerma), José Luis Pellicena (Juan), Maria Esperança Navarro (velha pagã) e Juliet Serrano (Maria), trouxeram ao público paulistano uma experiência enriquecedora, principalmente nas interfaces proporcionadas entre as artes visuais e o teatro. Os diversos temas que permearam a encenação trouxeram a tona um discurso implícito da produtora Ruth Escobar em plena ditadura: a metáfora da justiça com as próprias mãos, o desinteresse do cidadão pela política. Por meio dessa forma metafórica e poética de Yerma, Ruth encontrou um caminho para confrontar o regime militar, assim como fazer com que o público percebesse nas entrelinhas seu discurso. A respeito disso, a crítica de Ilka Marinho Zanotto escreveu: Fossem todos os homens livres em todos os quadrantes do globo, e permaneceria a atualidade de “Yerma” em toda sua beleza e urgência? Era a pergunta que fazia a mim mesma na noite mágica do Municipal em que Garcia Lorca e Victor Garcia marcaram um encontro em São Paulo. E a resposta, que se fazia cada vez mais segura, era sim! À medida que o espetáculo avança difícil sem concessões, com o rigor cartesiano de um encenador que vimos praticamente revelar-se ao mundo em nossa 556 ESCOBAR apud FERNANDES, 1985, p. 194. GUZIK, 1994 p. 32. 558 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 14 mar. 1974, p. 22. 557 terra com O Balcão e que então voltava amadurecido e consagrado pela crítica universal559. Em abril, a produtora trouxe ao Brasil para integrar a programação do FIT, a encenação Life and Times of Joseph Stalin, do encenador Bob Wilson. A apresentação estava prevista para o dia 31 de março, mas foi adiada para 09 abril de 1974. O motivo da transferência foi a suspeita dos censores federais560, em relação ao título da peça que continha o nome de Joseph Stalin, líder do Partido Comunista Soviético e mandatário da URSS entre 1922-1953. Por esse motivo, era preciso que: [...] o próprio governo dos Estados Unidos tranquilizasse os militares brasileiros, assegurando que Bob Wilson não era um perigoso terrorista internacional, para que o espetáculo pudesse ser apresentado”561 [...] os fardados governantes desconfiaram de um plano revolucionário mirabolante, em que a montagem de “Joseph Stalin” pela equipe de Wilson seria o ponto de partida, a senha para uma contrarrevolução que teria como objetivo aniquilar o Estado constituído a partir, justamente, do golpe de estado de 1964562. Para contornar a situação, o espetáculo teve seu título alterado para Life and Times of Dave Clark. No entanto, a mudança do “nome do espetáculo era tão irrelevante para seu conteúdo, que Bob Wilson não viu o menor problema em trocar o real e terrível Joseph Stalin pelo irreal e inefável David Clark”563, afirmou Guzik. Isto por que, a concepção de teatro produzida pelo encenador estava pautada na fusão entre as linguagens e não na história de Joseph Stalin. A respeito desse episódio, o crítico Sábato Magaldi comentou que “lamentáveis malentendidos por pouco impediram o público brasileiro de tomar conhecimento de uma obra que acaba de ser vista em Nova York [...] Na representação integral [do espetáculo] estavam praticamente todas as personalidades do nosso teatro, ávidas de encontrar um artista maior”564. Resolvidos os problemas junto aos órgãos brasileiros, o espetáculo de Bob Wilson foi apresentado no Teatro Municipal de São Paulo no dia 09 de abril (atos 1, 2 e 3); no dia 10 (atos 3 e 5); dia 11 (atos 2, 4 e 6) e, no dia 13 de abril, a obra na íntegra por doze horas ininterruptas. Parte do elenco era composta pela equipe que trabalhava com ele na Byrd Hoffman Foundantion em Nova Iorque, e mais de cem atores/atrizes brasileiros convidados e/ou contratados no Brasil. Dentre as participantes desse elenco, esteve Patrícia Escobar, filha de Ruth Escobar. Observo que além desse impasse, Ruth Escobar também enfrentou resistência da PMSP em ceder o Teatro Municipal para as apresentações do espetáculo. De acordo com a nota publicada na Folha de São Paulo, “a empresária recorreu da decisão, conseguindo agora utilizar o teatro. Deverá pagar uma taxa de 3 por cento sobre a renda bruta, com um mínimo não inferior a 5 salários mínimos, de acordo com o que estipula o decreto n. 10.363-73”565. O público em geral, assim como a classe artística, compareceu maciçamente no espetáculo de Bob Wilson, porém, nem todos aguentavam assistir à obra na íntegra. Embora, como afirmou Magaldi, “os espectadores que permaneceram até depois de uma hora da 559 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 14 mar. 1974, p. 22. Localizei um documento datado de abril de 1974 em que as autoridades brasileiras comunicaram a Secretaria de Estado de Washington que os problemas do espetáculo tinham sido resolvidos. Esta informação pode ser consultada no National Archives and Records Administration. 561 GUZIK, 1994 p. 33. 562 GUZIK, 1994 p. 32. 563 GUZIK, 1994 p. 32. 564 MAGALDI apud FERNANDES, 1985, p. 191. 565 RUTH, Folha de São Paulo, 09 abr. 1974, p. 34. 560 madrugada, quando se encerrou o espetáculo, aplaudiram delirantemente Bob Wilson e seu elenco”566. Noutra crítica teatral, a respeito do trabalho de Bob Wilson, o crítico afirmou que, “quem julgava o teatro uma linguagem gasta, pouco afeita para exprimir a complexidade do nosso tempo, deve ter sentido de que ele é capaz”567. Em The Life and Times of David Clark, Bob Wilson realizou uma confluência de linguagens que proporcionou ao público um espetáculo inusitado por suas formas cênicas, mas também colocou em discussão a própria tessitura do teatro moderno 568. Posteriormente à passagem do encenador por São Paulo, Guzik assinalou que em “todos os espetáculos de pesquisa encenados nos anos seguintes derivavam, de uma ou de outra forma, da matriz wilsoniana. Mas, possivelmente, o mais preciso legado deixado por Robert Wilson em nossa terra tomou forma nas mãos de Antunes Filho”569. Neste sentido, pode dizer-se que Ruth Escobar ao produzir suas encenações e trazer ao Brasil referências internacionais, tornou-se uma fonte irradiadora de novas concepções cênicas que serviram de modelo a grupos brasileiros570. O terceiro grupo selecionado por Ruth Escobar foi o A. Comuna - Teatro de Pesquisa, de Portugal. Companhia fundada durante o regime militar de Antônio Salazar, cuja produção teatral portuguesa também sofria com as ações da censura. Visto que a própria Ruth Escobar tinha sido subsidiada pela Fundação Calouste Gulkenkian (FCG) 571, em 1973, a produtora solicitou um auxílio deslocamento no valor de 500.00 (quinhentos mil escudos). No pedido, ela alegava que o A. Comuna participaria das “comemorações do 10º aniversário das atividades da Sala Gil Vicente”572. Apesar da FCG ter conhecimento técnico e artístico tanto de Ruth Escobar quanto do A. Comuna, o conselho “deliberou que o assunto aguarde melhor oportunidade de para ser novamente apreciado, à luz do Orçamento do Serviço para 1974”573. Logo na primeira reunião do ano, em fevereiro, novamente a solicitação da empresária estava na pauta de reunião da FCG. Com o intuito de não perder os recursos financeiros, Ruth Escobar solicitou intervenção do Embaixador Marcello Mathias que, naquela oportunidade se fez presente junto aos outros conselheiros para justificar a aplicação dos recursos financeiros à empresária. E, 566 [Divulgação]. Folha de São Paulo, 14 abr. 1974, p. 22. Esclareço que na época, Sábato Magaldi era crítico do Jornal da Tarde. Nesse jornal, ele publicou uma crítica no dia 11 abril na qual não foi localizada durante a pesquisa. Alguns trechos foram utilizados na divulgação do espetáculo, nesse caso, na Folha de São Paulo. 567 MAGALDI apud FERNANDES, 1985, p. 190. 568 O pesquisador alemão Hans-Thies Lehmann destaca o trabalho de Bob Wilson como um dos pioneiros do teatro pós-dramático, pois “suas cenas não pretendem ser interpretadas ou entendidas de maneira racional; antes despertam associações, uma produtividade própria no “campo magnético” existente entre o palco e os espectadores. LEHMANN, 2007, p. 110. 569 GUZIK, 1994, p. 33. 570 Pode-se constatar que, Macunaíma, produzido por Antunes Filho em 1978, trouxe alguns elementos que remetiam à estética de Bob Wilson: a lentidão de cenas no fundo do palco, a concepção da encenação através de um ‘teatro de imagem’ e a longa duração do espetáculo. A respeito dessa aproximação entre os dois encenadores, o crítico Sábato Magaldi complementou a colocação de Guzik, dizendo que: “será lícito dizer que, se o autor de The Life and Times of Dave Clark tende a um formalismo estetizante (embora de beleza invulgar), Antunes se mostra sempre a serviço de uma indiscutível racionalidade. Há um dado funcional em evidência em todos os deslocamentos realizados”. Como se fosse um bom sonho, os personagens do livro mágico viram gente. E dão uma festa incrível no palco”. Jornal da Tarde, São Paulo, 29 set. 1978, p. 21. Em 1984, Sábato Magaldi reforçou a semelhança, escrevendo que “Antunes bombardeia o espectador com uma plasticidade inédita em nosso teatro, apenas equiparável ao que nos mostrou, há dez anos, Bob Wilson, no inesquecível The Life and Times of Dave Clark”. MAGALDI, Jornal da Tarde, 04 mai. 1984, p. 15. 571 Esse assunto será abordado no oitavo capítulo 572 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. 573 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG novamente, a estratégia traçada por Ruth Escobar foi eficiente, ainda que tenha conseguido somente a metade do valor da primeira solicitação. Adaptadas de dois textos do escritor Gil Vicente574, as encenações, A Ceia e Para Onde Is?, de 15 de julho a 03 de agosto de 1974, foram apresentadas na Sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar. A crítica Mariângela Alves de Lima destacou que: Para o teatro brasileiro, a presença dos atores portugueses tem um significado maior do que a fruição de dois bons espetáculos. Trabalham em grupo, com uma proposta que se afirma em um espetáculo bem realizado. São atores que, sem anular-se no espetáculo, fazem um trabalho extraordinariamente coeso. Cada ator ocupa uma função precisa e importante dentro do espetáculo, e o resultado depende de um esquema rápido e seguro de propostas e respostas entre os atores 575. Importante lembrar que Ruth Escobar queria reconstruir a imagem distorcida, que fora ensejada pelos artistas brasileiros sobre o teatro português. Magaldi confirmou essa distorção ao dizer que: “tínhamos uma falsa imagem do teatro português, sufocado por cinco décadas de salazarismo. Com a interdição da quase totalidade dos autores representativos do país, supúnhamos que se encontrasse estancada a criatividade”576. Para finalizar a programação do I FIT, Ruth Escobar trouxe pela primeira vez ao Brasil o diretor polonês Jerzy Grotowski577, encenador que era conhecido pela classe artística desde 1971, quando a Editora Civilização Brasileira traduziu para o português Em busca de um teatro pobre578. No dia 04 de julho de 1974, o encenador desembarcou em São Paulo, afirmando: “minha viagem a São Paulo prende-se a interesse puramente comercial. Vim para escolher local para a apresentação de Apocalypsis...”579. Intitulado de Special Project, a realização estava marcada para fevereiro de 1975. Porém, ao analisar os acontecimentos e repercussões dessa visita, é preciso dizer que sua presença não se restringiu a uma visita estritamente técnica, já que Grotowski realizou pequenas palestras para um número reduzido de participantes, concedeu entrevistas aos jornalistas e conversou com os integrantes da classe teatral. O diretor polonês também proferiu uma conferência580 na cidade do Rio de Janeiro, em 08 de julho de 1974, no Teatro Nacional de Comédia (TNC), na qual abordou a relação entre teatro, sociedade 574 Auto da Alma (1508) que conta a história de uma Alma levada pelo Anjo Custódio à Igreja sendo tentada a pecar pelo Diabo. Ao chegar na estalajadeira – representação da Igreja – a Alma descansa e o antagonista morre. Dentro da instituição sagrada, aparece quatro grandes teólogos: São Tomás, Jerônimo, Ambrósio e Agostinho; e Auto da Barca do Inferno (1517), a dramaturgia aborda a justiça final da Igreja Católica. Um fidalgo, um onzeneiro, um parvo, um sapateiro, um frade, uma alcoviteira, um judeu, um juiz, um procurador, um enforcado e quatro cavaleiros atravessam um rio numa barca, que poderá se direcionar para o Céu ou o Inferno. Os mortos ficam diante do Diabo e do Anjo, na qual farão o julgamento, todos são condenados ao Inferno, Parvo é absolvido e os Cavaleiros não são julgados, pois lutaram e morreram defendendo o cristianismo. 575 LIMA, O Estado de São Paulo, 02 ago. 1974, 576 MAGALDI apud FERNANDES, 1985, p. 191. 577 O diretor polonês Jerzy Grotowski, em meados dos anos 1960, mudou-se com sua companhia para a cidade polonesa Wroclaw para fundar o Teatr Laboratorium (Teatro Laboratório). Nesse local, Grotowski criou seus principais espetáculos: O Príncipe Constante (1967) e Apocalypsis Cum Figuris (1969), produções que ficaram conhecidas mundialmente por abandonar as convenções tradiconais do teatro e proporcionar novos caminhos para a pesquisa teatral. Para Grotowski, o ator é o principal elo de ligação entre a palco e plateia, a utilização de elementos que compõem a cena foram reduzidos ao indispensável. A partir dessas experiências teatrais, nas quais excluiu o artificialismo da cena para valorizar o trabalho do ator, suas ideias ficaram conhecidas como “teatro pobre”, não no sentido literal da expressão, mas na exclusão de elementos que dissimulavam a interpretação do ator. 578 Ver MICHALSY, Yan. Jornal do Brasil, 11 set. 1971. 579 TRIGUEIRINHO apud FERNANDES, 1985, p. 193. 580 GROTOWSKI, 1974. e cultura e os diferentes contextos em que essa tríplice aliança estava inserida, resultando, em cada situação, uma nova acepção. A presença de Grotowski, no Brasil, aguçou o empreendedorismo de Ruth Escobar. A ida do encenador polonês, ao Rio de Janeiro, tinha como objetivo “conseguir uma subvenção do Poder Público para que possa trazer ao Brasil seu espetáculo, o texto-colagem “Apocalypsis cum Figuris””581, registrou a Folha da Tarde. Ruth Escobar visualizou a possibilidade de angariar mais recursos financeiros junto ao Serviço Nacional de Teatro (SNT)582, no entanto essa tentativa não surtiu efeito, pois o encenador não realizou apresentação de sua encenação no Brasil. Ainda que breve sua estada em São Paulo e no Rio de Janeiro, a figura desse encenador significou a possibilidade um amadurecimento sobre a aplicação de suas propostas à cena brasileira, pois havia uma distorção sobre o método de trabalho de Grotowski. A respeito dessa distorção, o jornalista Ronaldo Brandão escreveu: Até mesmo [Grotowski] confessa que as ressonâncias em torno de suas experiências acabaram conduzindo a exageros e equívocos em todo mundo. Um deles foi o apelo direto ao público – ou um diálogo que os atores tentam travar com o espectador, como ocorreu no “Doutor Fausto”, que transcorria em volta de uma mesa à qual sentava a plateia. Esse sistema, porém logo, começou a estimular na assistência aquilo que era mais condenável no elenco – uma exibição narcisista583. No Brasil, Grotowski apenas explanou, teoricamente, sobre seu método de trabalho, não realizando nenhuma experiência prática com os artistas brasileiros. É notável que a atitude de Ruth Escobar, ao trazer o encenador pela primeira vez ao Brasil, num momento de auge de sua carreira, demonstra como ela estava em sintonia com as propostas cênicas internacionais. Sua atitude se torna ainda mais relevante se levarmos em consideração que, somente em 1996, no Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 a 16 de outubro, organizado pelo SESC (SP), Grotowski voltou ao Brasil. Indiscutivelmente, a posição adotada por Ruth Escobar na realização de intercâmbios com experiências de vanguarda, foi significativa ao desenvolvimento da cena brasileira. Mesmo em condições financeiras adversas, a produtora não esmoreceu diante dos problemas surgidos, pois ela sabia que sua atitude seria importante para o desenvolvimento e renovação da cena nacional, assim como foram suas produções teatrais anteriores. 5.2 Os primeiros obstáculos do II FIT Para realizar o II FIT em 1976, Ruth Escobar buscou recursos financeiros junto às instituições públicas. O Ministério da Educação disponibilizou seiscentos e quarenta e dois mil cruzeiros, a Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo584 cedeu um pouco mais de trezentos e treze mil cruzeiros. Além desses patrocínios, a produtora também conseguiu recursos provenientes da Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, no valor de seiscentos e trinta e oito mil cruzeiros, bem como refeições com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). No entanto, os valores captados juntos aos apoiadores para produzir o II FIT foram insuficientes, pois o evento custava cerca de um milhão e 581 RUTE, Folha da Tarde, 05 jul. 1974. Ver imagens de 72 a 75 no dossiê de fotos. 583 BRANDÃO, Revista Veja, p. 118, 10 jul. 1974. 584 DOSP, 23 abr. 1976. 582 setecentos mil cruzeiros. A respeito dos recursos financeiros recebidos, Ruth Escobar declarou que “esperava mais colaboradores aqui no Brasil”585. No II FIT, Ruth Escobar enfrentou o mesmo problema ocorrido na primeira edição em 1974: a pressão de uma parte da classe artística quando o assunto era a subvenção de verba pública. Eles alegavam que: “não teriam as verbas teatrais deste ano sido integralmente canalizadas para o FIT?”586, registrou o jornalista. Na mesma reportagem, a produtora rebateu dizendo que “esta é pergunta que os secretários de cultura devem responder. Como o festival é um acontecimento especial, suponho que as verbas também sejam especiais”587. Além de enfrentar pressão por parte de artistas, Ruth Escobar teve forte resistência da censura do governo de Ernesto Geisel e do Ministro da Justiça Armando Falcão, os quais não assinaram a liberação para a realização do II FIT. A produtora relatou que: O II Festival Internacional de Teatro estava todo acertado... no papel. Até testemunhei, quando em Caracas, a presença do Dr. José Madeira, da Censura paulista, assistindo aos mesmos espetáculos que eu, com vistas às liberações no Brasil. Quando subitamente, de volta a São Paulo, fui surpreendida com a notícia, dada por minha representante na Venezuela, que as companhias escolhidas, que cumpriam suas programações no Festival da Venezuela, não estavam conseguindo os vistos para embarcar para o Brasil. Imediatamente comuniquei o Itamaraty e veio a confirmação que o II Festival não iria acontecer, pois o Ministro da Justiça, Armando Falcão, não assinara a sua liberação588. No entanto, a empresária decidiu não aceitar pacificamente o cancelamento do festival, pois toda a estrutura organizacional estava pronta: passagens aéreas compradas, teatros e hotéis reservados e toda a equipe técnica e administrativa trabalhando. A preocupação da empresária com o veto ao FIT estava ligada ao fato de “um prejuízo incalculável e uma falência moral internacional para o Teatro Ruth Escobar”589, lembrou Rofran Fernandes. Ao decidir enfrentar a repressão política, Ruth Escobar arriscou sua reputação, ao mesmo tempo em que sua decisão, se ocorrida como planejada, ampliaria ainda mais seu prestígio. A respeito desse embate, ela recordou que: Resolvi jogar alto. Nas semanas seguintes, Geisel se deslocaria em visita oficial à Inglaterra. Mandei uma secretária para Caracas. Começamos a montar uma rede de manifestações em frente de todas as embaixadas do Brasil no exterior. É claro que o SNI [Serviço Nacional de Informação] acompanhava, atento meus telefonemas e a estratégia a ser detonada, até onde eu fazia as revelações por telefone. Pedi a Sábato Magaldi que avisasse o prefeito, o governador e o SNI de que, se não houvesse acordo, eu pediria aos elencos dos países que não necessitavam de vistos para descerem em Congonhas numa semana. Eram mais de cento e cinquenta pessoas de dez países. Estava disposta a pôr fogo no circo, mesmo porque o presidente iniciaria sua viagem dentro de nove dias. Alguns amigos do teatro inglês - avisei - já estavam fazendo estoque de ovos para receber a comitiva presidencial. Até o começo da noite selamos um acordo. Eles liberavam o festival, desde que o mesmo fosse adiado para estrear depois da volta de Geisel de Londres. Meu atrevimento no confronto, apesar dos riscos financeiros impossíveis, havia-os balançado pelo perigo do escândalo internacional que envolvia vários países. Abri o 585 ESCOBAR, Entrevista concedida a Eduardo Guerrero, Viver,13 mai. 1976. ESCOBAR, Entrevista concedida a Renato de Moraes, Folha de São Paulo, 22 mai. 1976. 587 ESCOBAR, Ruth. Entrevista concedida a Renato de Moraes. Folha de São Paulo, 22 mai. 1976, p. 23. 588 ESCOBAR apud FERNANDES, 1985, p. 196. 589 FERNANDES, 1985, p. 196. 586 festival um dia após a chegada do general Geisel de sua visita à rainha Elizabeth, incólume das cestas de ovos armazenados590. A intermediação realizada pelos representantes do governo paulista resultou num veto parcial de algumas atividades do II FIT. Depois de diversas negociações, o governo enviou uma carta à produtora, impondo algumas exigências que foram elaboradas pelo Ministro Golbery do Couto e Silva e pelo Presidente Geisel: “O Festival poderia acontecer SE... 1. os seminários591 programados fossem cancelados; 2. adiado até a volta do Presidente Geisel da visita à Inglaterra592; 3. cancelada a apresentação do Japão, considerado, pelas informações de posse do governo, como um grupo “mais explosivo do que para o teatral”593. Apesar de Geisel iniciar um processo de abertura política no seu governo, o país continuava vivendo sob forte imposição ditatorial. Ainda que Ruth Escobar soubesse acionar mecanismos para converter situações desfavoráveis a seu favor, ela também sabia o momento de recuar. Suspendeu todos os seminários, cancelou o espetáculo A and B, My Colligate/Dai-Shikko (3º parte) do artista japonês Hamada Zenya e adiou a abertura do festival. Apesar de toda sua coragem de enfrentar o autoritarismo militar, Ruth não podia arriscar todo o trabalho feito por ela e sua equipe, tampouco sua reputação junto aos artistas brasileiros. Além disso, o fato de Ruth Escobar satisfazer as exigências do ditador brasileiro pôde ser considerado estratégico, pois ela estava inconformada com a ausência de criatividade. A repressão, a cesura se tornavam cada vez mais rígidas. Para isso, na escolha dos grupos, a produtora teve a “preocupação de trazer várias opções pra dar uma chacoalhada nesse marasmo em que vivemos. E o pessoal do teatro tem de ver que não pode mais falar por conta da censura. Porque, por conta dela [estamos] chegando a uma incompetência criativa”594, afirmou Ruth Escobar. Apesar da proibição da vinda do grupo japonês ao Brasil, Ruth contemplou outros grupos de teatro que tinham trabalhos que envolviam a luta contra a ditadura. Para Ruth Escobar, a ideia de executar o II FIT também servia para “que os artistas brasileiros [pudessem] escolher lucidamente os seus próprios caminhos na direção da saída do marasmo que tem caracterizado ultimamente a sua atividade”595. Os espetáculos escolhidos por ela representavam uma combinação entre a inovação dos procedimentos cênicos, associados a um discurso político implícito. Na abertura do festival, Ruth discursou dizendo que “é claro que a realização do [FIT] não vai trazer respostas ou soluções à nossa crise cultural. Ele só vai possibilitar o diálogo e o conhecimento na riqueza e na variedade de outras tendências e formas teatrais e talvez ampliar a leitura do reflexo de outras realidades”596. Pontuo que, naquele momento da história do teatro brasileiro, os: Teatro de Arena, o Oficina estavam fechados; José Celso Martínez entre 1974 a 1979 ficou exilado em Portugal e, na mesma condição, Augusto Boal, preso e torturado em 1971 decidiu deixar o país, passando pela Argentina e Portugal. Ele retornou, definitivamente ao Brasil somente em 1986. Nesse sentido, Ruth Escobar tinha como 590 ESCOBAR, 2003, p. 178-179. “O Teatro Independente na Espanha” por: Alberto Boadella; “O Teatro Na África” por: Robert Serumaga; “Dramaturgia Na América Latina” por: Isaac Chacron; “Brecht Na América Latina” por: Athaulpa Del Cioppo; “O Teatro Japonês” por: Akira Wakabayashi; “Elementos para a compreensão da situação teatral na Itália nos últimos 30 anos - 1946/1976” por Roberto Toni; “A Dilatação Do Teatro” e “A participação teatral e a comunicação de base” por Giuliano Scabia. II FIT. (Programa). São Paulo, 1974. 592 Geisel visitou a rainha Elizabeth de 04 a 07 de maio de 1976. 593 ESCOBAR apud FERNANDES, 1985, p. 196. 594 ESCOBAR, Entrevista concedida a Hella Schwartzkopff, Aqui, 06 set. 1976 apud FERNANDES, 1985, p.195. 595 ESCOBAR, Ruth. Entrevista concedida a Renato de Moraes. Folha de São Paulo, 22 mai. 1976, p. 23. 596 TRÊS OPÇÕES, Folha de São Paulo, 11 mai. 1976, p. 1. 591 “missão” (re) assumir um “papel de vanguarda na batalha pela formação duma consciência nacional popular no nosso país”597. Com a intenção de oferecer um panorama da diversidade do II FIT, apresento a seguir, suscintamente, os espetáculos selecionados, destacando as principais características de cada encenação a partir das críticas teatrais da época. 5.3 A diversidade da programação: estética e política da América Latina à outros países598 Na programação do II FIT, Ruth Escobar convidou principalmente grupos, cujas características tivessem conexão com a renovação da estética teatral conectada aos argumentos políticos. Para isso, escolheu espetáculos que dialogassem com o contexto brasileiro, assim como encenações que proporcionassem aos artistas a visualização de novas práticas cênicas. Adaptada da música de Milton Nascimento, Maria Maria599 conta a história do Brasil pela perspectiva de uma “preta velha de 80 anos, evocando simultaneamente o passado e a situação de sua raça e dando-nos, sobretudo, o retrato de uma vida, com valores universais de experiência”600, comentou o jornalista Lineu Dias. De acordo com os críticos da época, o espetáculo não teve o devido comprometimento sociopolítico com a situação periférica dos negros, houve um tratamento superficial “na maior parte do tempo, [era uma] mera ilustração da música”601, afirmou Carlos Alberto Caetano. Para Magaldi, a encenação não ultrapassou a obviedade: “Fernando Brandt [...] não desenvolveu os elementos cotidianos da vida amarga de uma negra que trabalhou em sua casa, nem alcançou a força exemplar de um símbolo de escravidão. O roteiro permanece fragmentário e indeciso, com bons momentos isolados, mas sem uma grandeza global”602. Apesar dos apontamentos da crítica sobre o espetáculo, este “obteve um irrestrito sucesso por parte do público que foi assisti-lo e que preencheu quase todos os lugares do Teatro Municipal em sua apresentação”603. Isso se deu, porque o espetáculo tinha como ponto forte a música de Milton Nascimento, cantor que na época fazia grande sucesso na MPB. Fundado na cidade de Barcelona em 1961, por Albert Boadella, El Jograls apresentou o espetáculo Allias Serralonga, que abordava a história do bandoleiro Joan Sala, lavrador catalão, nascido em 1594 e morto sob a tortura em 1634. O grupo optou por encenar pela perspectiva das pessoas que viviam naquela época que era “dominada por um duque opressor, onde a fome e a peste reinavam e o único caminho aberto aos humildes era o do banditismo, reprimido pela força legal”604, registrou o crítico Fausto Fuser. Todo o espetáculo foi concebido em andaimes, 597 TRÊS OPÇÕES, Folha de São Paulo, 11 mai. 1976, p. 1. Durante a pesquisa não foram localizados materiais de dois grupos de teatro que fizeram parte da programação, apenas algumas informações foram localizadas: Companhia Llorca-Prevand, da França cumpriu a seguinte programação: TUCA - Dias 1º e 2 de junho de 1976 Les Milles et Une Nuits de Cyrano de Bergerac; Teatro Aliança Francesa - Dias 3 e 4 de junho de 1976 Maitre et Serviteur & Voltaire's Follies; Teatro Aliança Francesa - Dias 5 e 6 de junho de 1976 Tête d'Or; Grupo de Teatro da Cidade apresentou o espetáculo Mumu – A Vaca Metafísica, com direção de Marcílio Moraes, na Sala Gil Vicente nos dias 18 e 19 de maio de 1976. No elenco estavam Tânia Alves, Antônio Petrin, Sônia Guedes e Carlos Augusto Strazer. O texto foi vencedor do Concurso de Dramaturgia do SNT, em 1974. 599 O texto na íntegra pode ser consultado em BRANT, 2005. 600 DIAS, O Estado de São Paulo, 11 mai. 1976. 601 CAETANO, Última Hora, 11 mai. 1976. 602 MAGALDI, Jornal da Tarde, s/d, 1976. 603 TRÊS OPÇÕES, Folha de São Paulo, 11 mai. 1976, p. 1. 604 FUSER, Folha de São Paulo, 31 mai. 1976, p. 17. 598 estrutura metálica que permitia aos atores demonstrarem habilidades interpretativas e desenvoltura corporal. O espetáculo se apresentou no Teatro Municipal de São Paulo, no período de 18 a 25 de maio de 1976605. O sucesso de público fez com que as apresentações se prolongassem até o dia 03 de junho,606 mas ainda havia grande demanda de público para assistir ao espetáculo espanhol; ficou decidida, novamente, a ampliação do número de apresentações. Nessa nova temporada, o espetáculo não foi autorizado a continuar no Teatro Municipal. A solução encontrada foi a de transferi-lo para o Ginásio do SESC - Teatro Pixinguinha para que fosse exposta a terceira e última temporada, no período de 4 a 13 de junho, exceto no dia 8. Ao que tudo indica a negativa do pedido para continuar no Teatro Municipal estava ligada ao fato de que o grupo provocou certa desordem num local destinado à elite paulistana. Em entrevista, a crítica Ilka Marinho Zanotto declarou que: “[Ruth Escobar] levou [o espetáculo Allias Seralonga] para dentro do Teatro Municipal, [mas] que depois se arrependeram de dar para ela. Eles viraram as cadeiras de veludo, se penduravam nas cortinas. O pessoal da prefeitura enlouqueceu”607. Apesar do tumulto provocado pelo grupo no Teatro Municipal, as críticas da época apontavam para a brilhante execução do espetáculo dirigido por Boadella. Clóvis Garcia colocou que: “Poucas vezes assistimos um espetáculo tão completo, tão coeso e ao mesmo tempo tão rico de inspirações608. Guzik afirmou que: Os atores, dotados de habilidade, agilidade e talento, formam eixo e alma, eixo [do] trabalho [...] Basta-lhe uma sala espaçosa e a intensidade de intérpretes capazes. O Municipal retumba e treme com a criatividade em plantão da encenação catalã [...] numa sucessão dinâmica, vigorosa, de cenas que desnudam a crueza da realidade com as facas aguçadas do humor, do deboche609. E sobre o público, Fuser destacou que: “Os atores da comunidade teatral catalã conquistam os espectadores no primeiro minuto, mantendo-os permanentemente sob o fascínio de sua precisão, agilidade, de sua expressividade. Aqueles jovens irradiam a força técnica esplendidamente trabalhada e a força ainda maior no amor com que cantam aquela balada”610. Como se constata pelas críticas teatrais, o espetáculo do grupo catalão se impôs pela sua força criativa, pela entrega total dos atores, firmados num excepcional treinamento físico, pelo dinamismo ininterrupto das cenas, pela integração de todos os valores e pela pesquisa teatral. Inouk, o Homem, trabalho do grupo islandês Inouk, composto por cinco jovens diretores/atores, trouxe ao II FIT uma peça, cujo enredo mostrava o deslocamento da cultura de uma aldeia de esquimós que, aos poucos, começa a ser modificada de acordo com a inserção de elementos característicos à cultura ocidental (arma branca, lenços, enlatados e bebidas engarrafadas) e começam a confeccionar suas “próprias vestimentas e instrumentos de caça para a mecanização de uma linha de montagem”611. Para construir esse espetáculo, em 1973, os jovens realizaram uma pesquisa de campo no leste da Groelândia, onde vivenciaram o cotidiano dos esquimós. A encenação apresentada no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA), foi a mais “compreensível e assimilável”612, pontuou Magaldi. A respeito da comunicabilidade entre o grupo islandês e o público brasileiro, Alípio R. Marcelino também destacou que: “Não 605 Não houve apresentação no dia 21 de maio. Não houve apresentações nos dias 27 de maio e 1º de junho. 607 ZANOTTO, Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. 608 GARCIA, O Estado de São Paulo, 21 maio 1976, p. 9. 609 GUZIK, Última Hora, 20 mai. 1976. 610 FUSER, Folha de São Paulo, 31 mai. 1976, p. 17. 611 II FIT. (Programa). São Paulo, 1974. 612 MAGALDI, Jornal da Tarde, 30 mai. 1976. 606 obstante a barreira linguística, os cinco intérpretes islandeses transmitem à plateia [...] mediante técnica da apresentação teatral, como o sibilar do vento, nevasca, o transporte por trenó puxado por cães, a viagem de barco, enfim, os diversos conflitos existenciais enfrentados pelos nativos da aldeia esquimó613. O grupo persa Kargahe Nemayeshi-City Players, fundado em 1971, em parceria com o Centro Internacional de Pesquisa Teatral de Peter Brook, na França, realizou o primeiro espetáculo experimental intitulado Orghast, uma adaptação de Calígula, do escritor e filósofo Albert Camus. Dirigida por Arby Ovasian, o mote central dessa dramaturgia aborda “a trajetória de um homem que, diante da morte da amada (a irmã), descobre o efêmero de todas as coisas e a profunda solidão. Num mundo vazio e absurdo, quem sabe o exercício da divindade compensaria a marca do irremediável desamparo [...] Calígula vive o simulacro do poder absoluto até o apaziguamento da morte”614, registrou Magaldi. O crítico também enfatizou que para apresentar Calígula na Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar, foi necessário modificar o espaço, “biombos isolaram as arquibancadas e o público, espalhado na quase totalidade pelo chão, envolveu os atores numa espécie de arena”615. Apresentado de 08 a 12 de maio de 1976, Calígula foi um dos grandes destaques do II FIT, alcançou sucesso de público e repercussão entre críticos. De acordo com a crítica Ilka Zanotto, “os iranianos nos oferecem um espetáculo belíssimo, cuja exatidão e segurança nascem das coordenadas profundamente enraizadas na pesquisa de uma realidade e de uma expressão próprias, que lhes orientaram a criatividade sem limites”616. A exploração de elementos da cultura iraniana no espetáculo pode ser identificada no próprio âmago de Calígula, na composição das imagens plásticas realizadas pelo grupo. Fuser colocou que “não podemos dizer que é muito agradável assistir ao grupo persa sem compreender palavra alguma, mas é inegável que o seu espetáculo enquanto puro jogo cênico é irrepreensível”617. Guzik também compartilhou dessa opinião. Para ele, “o diretor encontrou uma linguagem gestual tão enérgica e magnética que o poder do visual compensa prodigamente a indigência do áudio” 618. A repercussão de Calígula em São Paulo foi tão surpreendente que motivou o SNT a convidá-los a realizar uma apresentação fora do festival, no dia 17 de maio de 1976, no Teatro Cacilda Becker no Rio de Janeiro. O II FIT também contou com a presença do Centro de Pesquisa Teatral Ouroboros, de Firenze. Fundada pelo arquiteto Pier’Alli, em 1968, os espetáculos produzidos pela companhia possuiam uma linha de trabalho embasada nos princípios619 da filosofia ouroboros620. O grupo 613 MARCELINO, O São Paulo, 22 a 28 mai. 1976. MAGALDI, Jornal da Tarde, 11 (?) mai. 1976. 615 MAGALDI, Jornal da Tarde, 11 (?) mai. 1976. 616 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 11 mai. 1976. 617 FUSER, Folha de São Paulo, 12 mai. 1976, p. 29. 618 GUZIK, Última Hora, 15/16 mai. 1976. 619 De acordo com o artigo do programa do II FIT seriam: 1) A busca de uma linha de continudade através de recente revolução teatral e da cultura teatral européia; 2) O abandono da linguagem verbal como sistema codificado de comunicação pela busca de uma ‘palavra como som e gesto’; 3 ) O espaço cênico como lugar físico no qual se supera a diferença entre coisa animada e coisa inanimada, enquanto o objeto supera a funcionalidade típica da cenografia e estabelece uma unidade com o homem/ator; 4) A autonomia literária do texto teatral, que mantém sua validade absoluta no âmbito da comunicação escrita e a liberdade absoluta do criador teatral ao confrontar o próprio texto. II FIT. (Programa). São Paulo, 1974. 620 O Dicionário de Símbolos (CIRLOT, 1984, p. 435), traz várias definições para designar ouroboros: no sentido geral, simboliza o tempo e a continuidade da vida. E. Neuman diz que o símbolo primordial da criação do mundo é a serpente que morde a sua própria cauda, ato que significa a auto-fecundação. Etimologicamente, a raiz da palavra ouroboros está em linguagem copta “ouro” que significa “rei” e, em hebreu, “ob” significa “serpente”. 614 italiano apresentou, no período de 24 a 28 de maio de 1976, o espetáculo A Morte da Geometria na Sala Gil Vicente. Baseado no poema de Giuliano Scabia, a dramaturgia falava de: Uma barca (o corpo) entrando na caverna dos alfabetos, onde estão depositados os homens/ idiomas, começa uma misteriosa viagem, que desde o sendeiro dos mortos onde a barca (o corpo) pode passar somente com sua proa (o rosto) deixando tudo de si, conduz até ao jardim dos cantos, onde a proa (o rosto), que emerge da estreita passagem, flutua num mundo de luz. Mas a viagem prossegue e também o rosto é abandonado num paraíso de mitos, para chegar logo aos ventos cósmicos, o universal, onde a barca/homem, reduzida a essência viajante, recorre à consciência de sua própria unidade com o todo. Daqui se obtém a visão de todos os idiomas humanos: sobre esta cidade petrificada, morta, mas viva nas bordas, passa uma pequena barca verde com um guerrilheiro dentro, um corpo que navega sobre o cosmos mental e consegue atravessá-lo621. Com o objetivo de facilitar a relação entre espectador e um espetáculo que não possuía sequência lógica na dramaturgia, foi distribuído ao “público uma longa e minuciosa explicação mimeografada. Que não explicava nada”622, pontuou Fuser. A Morte da Geometria causou controvérsias na crítica brasileira, pois dois críticos analisaram a encenação de pontos de vista muito distintos. Guzik colocou que: “Antes que os afoitos teçam imensas elucubrações penelopianas, o programa informa que ‘as coisas não são criadas como significados absolutos, mas sim como significados aleatórios, completamente disponíveis ao processo mental do espectador [...]: ‘cada um que entenda como quiser’”623. No entanto, Fuser teve uma outra percepção: A “Morte da Geometria” apresenta-se erroneamente como teatro quando na realidade localiza-se no domínio amplo da arte plástica contemporânea. Não vemos nessa afirmativa, demérito algum aos maravilhosos artistas de Firenze. Ainda mais quando percebemos que apenas grandes artistas do teatro poderiam ter criado uma obra de arte plástica de semelhante envergadura. O teatro com seu palco, sua plateia e até seus espectadores apenas contribuíram para o perfeito desenvolvimento da ideia visual, resolvida excelentemente nesse domínio. Não enquanto teatro. Pretender existir ai, é pretender demais. No teatro, os homens querem encontrar seu reflexo, não importa a qualidade do espelho nem da imagem. “A Morte da Geometria” não preenche os requisitos mínimos para ser teatro, embora dependa de suas condições físicas para existir enquanto arte...visual. E muito boa 624. Enquanto Guzik analisou o espetáculo com enfoque na teatralidade proporcionada pela encenação, que não obedecia à linearidade dramatúrgica, provocando no espectador diversas interpretações dos signos/símbolos utilizados na encenação, Fuser observou questões referentes ao aspecto visual que compunha todo o complexo aparato técnico necessário à encenação, tornando-se, em sua concepção, uma obra plástica. Pode dizer-se que Guzik considerava o espetáculo do grupo Ouroboros uma obra aberta, despida de qualquer pré-julgamento estético. Da Itália também veio a Companhia G. Belli, fundada em 1970 por Magda Mercatali e Antonio Salines para apresentar o espetáculo Pranzo di Famiglia. Escrito por Roberto Lerici em 1966, o texto venceu o XXI Prêmio Itália de 1969, transformou-se em versão radiofônica na Rádio e TV Italiana (RAI), mas somente em 1973, em parceria com Tinto Brass, 625 ganhou 621 II FIT. (Programa). São Paulo, 1974. FUSER, Folha de São Paulo, 30 mai. 1976, p. 57. 623 GUZIK apud FERNANDES, 1985, p. 211. 624 FUSER, Folha de São Paulo, 30 mai. 1976, p. 57. 625 Seu verdadeiro nome é Giovanni Brass. Importante cineasta italiano, Tinto Brass trabalhou durante dois anos na Cinémathèque de Paris. Iniciou sua carreira em 1963, arrebatando crítica e público com sua primeira produção 622 a versão teatral. O texto de Lerici retrata a história de uma família que se reúne durante o almoço de noivado para festejar o matrimônio. Numa mesa farta de comida, a principal ação das personagens era a de realizar um jogo de erotismo, sátiras e poder entre os familiares: [...] pai (industrial do ramo de canhões), ocupado em um monólogo interminável de conselhos administrativos; o tio coronel que se alonga em fluentes discussões de falsas batalhas; a mãe perversa, prepotente, preocupada em seduzir o futuro genro e o cunhado; a filha lasciva e chata; o noivo intelectual em ascensão social; e o filho tortuosamente frustrado. Assim, enquanto a orgia do poder avança paralela à orgia sexual, acaba por decidir, com os mesmos convidados, a destruição do chefe da família626. Durante o almoço, apesar da abundância de comida, em nenhum momento as personagens faziam suas refeições, apenas “apresentam suas vidas, seus ideais, suas frustrações individuais”627, lembrou Fuser. Apesar do explícito individualismo das personagens ao demonstrarem, em monólogos, suas psicologias doentias, os integrantes da família tramam o assassinato do pai, pois a figura paterna começa a apresentar indícios de fraqueza, não se comportando mais como o imponente industrial e chefe de família. Fuser disse que os atores “não apenas representam, mas emprestam às suas já magnificamente estruturadas personagens, o impulso vibratório intenso e contínuo”628, referindo-se à atuação de Magda Mercatali e Antonio Salines, os quais interpretaram as personagens da mãe e do pai. Para o II FIT, Ruth Escobar também trouxe um representante da África: a Cia. Abafumi Company (Theatre Limited). Fundada por Robert Serumaga, em 1968, na Uganda, a companhia tinha como objetivo fortalecer a cultura local e combater a influência dos modelos teatrais europeus. O grupo africano encenou a história do guerreiro Renga Moi629 que, durante o rito de purificação de um recém-nascido, a aldeia foi invadida e ele fica diante de um dilema: combater para salvar sua aldeia ou obedecer às exigências do ritual de purificação que o proíbe de derramar sangue. Apresentado no Teatro Municipal de São Paulo de 10 a 16 de maio de 1976630, o espetáculo africano teve avaliações positivas. Para Magaldi, “o público brasileiro viu, pela primeira vez, o teatro total africano, fundindo texto, música e dança”631. O crítico Lineu Dias disse que foi “o mais elaborado de todos os espetáculos africanos que passaram por aqui, e nele vemos uma África que reivindica os seus valores de civilização, mas complexamente consciente do mundo que a cerca”632. Na programação do II FIT, Ruth Escobar também contemplou espetáculos da América 633 Latina , bem como, outro tipo de proposta cênica: os espetáculos solos - produção espetacular pouco explorada no Brasil até aquele momento. O Teatro Comedia Marplatense, fundado em 1961 pelo militante político argentino Gregório Nachman, tinha como característica a montagem de obras de autores nacionais de seu fílmica Chi lavora è perduto. Em 1964, grava La mia Signora, com Silvana Mangano e Alberto Sordi e, no mesmo ano, Il disco volante e um documentário político Ça ira - Il fiume della rivolta. Seus filmes têm o erotismo como característica principal. 626 SABATTINI apud FERNANDES, 1985, p. 212. 627 FUSER, Folha de São Paulo, 20 mai. 1976, p. 37. 628 FUSER, Folha de São Paulo, 20 mai. 1976, p. 37. 629 Renga Moi, cuja tradução significa “Renga” = vermelho e/ou bravo e “Moi” = guerreiro (guerreiro vermelho ou guerreiro bravo) 630 Exceto no dia 15. 631 MAGALDI, Jornal da Tarde, 12 mai. 1976. 632 DIAS, O Estado de São Paulo, 16 mai. 1976, p. 9. 633 Nacha Guevara também foi outra representante da América Latina, mas este espetáculo foi tratado no capítulo a respeito do feminismo. país. O grupo argentino apresentou o espetáculo Samka-Cancha, no Teatro Galpão de 16 a 19 de maio634 de 1976. Sob autoria de Jorge Acha e Raúl Garcia, o texto aborda a destruição da cultura quechua pelos espanhóis quando invadiram a América e dominaram boa parte desse território. Para enfatizar a relação de poder exercida pelos espanhóis, Nachman ambientou o texto numa “prisão conhecida pelo nome de “Samka-Cancha” aos pés do vulcão Pichincha [província do Equador], e que foi construída por Huayna Capac635 para castigar certos delitos, especialmente os por traição”636, registrou o jornalista. Sobre o trabalho argentino, a crítica Mariângela Alves de Lima comentou: “os atores, concentrados na sua fala, não se dirigem diretamente para a platéia. Atuam com intimismo, como se estivessem protegidos pela muralha dos seus companheiros de trabalho [...] nesse tipo de trabalho, a transposição de fronteiras culturais só pode acontecer através de uma relação mais humanizado entre ator e o público”637. Fundado em setembro de 1967, o Nuevo Grupo, da Venezuela detinha como linha de trabalho a valorização e a difusão do trabalho de dramaturgos, atores e diretores de seu país. La Revolución, escrito em 1971 por Isaac Chocrón, abordava a transformação do ser humano a partir de uma discussão filosófica entre um travesti decadente (Gabriel), interpretado por Rafael Briceño e seu empresário (Eloy), representado por José Ignácio Cabrujas. Eles “falam de seus sofrimentos e frustrações como se fossem fatos antigos, distorcidos pela memória e pelas emoções”638, disse a crítica Mariângela Alves de Lima. Porém, em sua visão, as proposições dramáticas colocadas em cena não tinham verossimilhança: “fica difícil acreditar que se referem a uma realidade duramente vivida e que precisa de uma transformação urgente”639. Fuser também escreveu a respeito da escritura dramatúrgica que “não [apresentava] conflito dramático [...] parece que o autor da peça esgotou seu arsenal e comicidade nos vinte primeiros minutos e botou a advertência na boca de Eloy como autocrítica”640. Magaldi também concordou com a visão de Fuser e Lima. Ele disse que “teorias, postulados, sistemas filosóficos não funcionam em cena, a menos que apareçam filtrados por uma convincente ficção [...] o autor não soube justificar a passagem para o sério [...] O artifício intelectualista tira da peça a capacidade de convencer como obra de arte”641. O francês Yves Lebreton também marcou presença no II FIT com o espetáculo Hein... Ou As Aventuras do Sr. Balão. Lebreton fundou em 1976, o Théàtre de L’arbre que trazia como linha de trabalho os ensinamentos adquiridos na L'école d'Etienne Decroux, que se pautava no uso do corpo como expressão teatral. Utilizando apenas um carrinho de bebê, uma cadeira, uma raquete, um guarda-chuva, um balde e uma mala, o ator francês criou situações que encantaram o público, “como um mágico que revive as coisas, dando-lhes uma infinidade de novos significados, cada gesto, cada movimento é responsável pela força e significado, onde a distância ator-espectador é cancelado em favor de uma união dizer a própria vida”642, registrou a crítica francesa. Para a crítica Mariângela Alves de Lima, “a proposta de Yves Lebreton faz 634 Um mês após a participação do II FIT, em 19 de junho de 1976, Gregório Nachmann foi sequestrado, possivelmente pelos militares do regime militar argentino, em 24 de março do mesmo ano. 635 Imperador inca. Sua principal conquista foi o recrutamento de um grande exército para conquistar Quitu-Cara na região de Quito, atual capital do Equador. 636 O FESTIVAL, Jornal da Tarde, 15 mai. 1976. 637 LIMA, O Estado de São Paulo, 19 mai. 1976, p. 9. 638 LIMA, O Estado de São Paulo, 15 mai. 1976, p. 9. 639 LIMA, O Estado de São Paulo, 15 mai. 1976, p. 9. 640 FUSER, Folha de São Paulo, 16 mai. 1976, p. 72. 641 MAGALDI, O Estado de São Paulo, 15 mai. 1976. 642 No original “Yves Lebreton, tel un magicien, réanime les choses, les transforme en leur donnant une multitude de sens nouveaux. Le public pénètre avec lui dans un monde où chaque geste, chaque mouvement est chargé de force et de signification, où la distance acteur-spectateur est annulée au profit d'une union nous communiquant la vie même”. SCHWARTZKOPFF, Aqui, 06 set. 1976. pensar que o simples poder de superar o imediato das coisas, e inventar uma ação nova, é ainda uma das qualidades mais mobilizadoras da criação artística”643. Com uma gama de recursos físicos, incomuns e bem-humorados, Lebreton foi uma das surpresas do festival. Da Índia veio a dança indiana de Astad Deboo, que se apresentou nos dias 21, 22 e 23 de maio no Teatro Galpão, com o espetáculo Experimental Indian Dances. Deboo ficou conhecido, em seu país, por ser um artista frequentador dos melhores festivais de dança e teatro do mundo e por receber ilustres convites para se apresentar na Corte Real do Príncipe Akhito e da Princesa Michiko do Japão, da Rainha Sirikit da Tailândia, do Governador de Jacarta – Indonésia e do Prefeito de Los Angeles. No Brasil, a crítica também reconheceu o trabalho realizado pelo indiano: “Astad Deboo provou-nos que a melhor maneira de participar do seu espetáculo ainda é a posição admirativa”644. Mesmo com diversos problemas, cerca de cinquenta mil espectadores estiveram presentes, durante um mês de intensa programação teatral em São Paulo, composta por quatorze grupos com dezesseis espetáculos vindos de doze nacionalidades diferentes. Esses são os números ao final do II FIT produzido por Ruth Escobar em meados da década de 1970, período considerado pela produtora, de estagnação do desenvolvimento teatral nacional. Inconformada com essa situação, a empresária decidiu promover os festivais em plena ditadura militar e enfrentar todos os perigos e problemas que poderiam acontecer e, aconteceram. Ao organizar uma programação diversificada, Ruth Escobar proporcionou um novo olhar dos grupos e artistas sobre o processo de construção espetacular. Assim, ao final do II FIT, artistas e críticos realizaram uma avaliação sobre o evento promovido por Ruth Escobar. Para a atriz Etty Fraser, o festival foi “uma aula de interpretação”; Célia Helena afirmou: “gostei de todos [os espetáculos]. Cada um é um lugar, um meio, uma civilização. Não dá para comparar”645. Sábato Magaldi, crítico e Secretário de Cultura, avaliou o festival como representante da Prefeitura São Paulo. Ele disse que: A Secretaria deu uma ajuda de Cr$ 313 mil, o que permitiu que nas récitas populares os ingressos, inicialmente orçados em Cr$ 100,00, foram vendidos a Cr$ 20,00. Numa segunda fase, a Secretaria também deixou de cobrar aluguel pelo teatro Municipal. Em troca, Ruth baixou os preços - fora das récitas populares - de Cr$ 100,00 para Cr$ 70,00 (poltronas) e ofereceu quatro espetáculos inteiramente gratuitos (Islândia, Irã, Espanha e França). Desse ponto de vista - diz o secretário - o Festival foi altamente produtivo e o balanço do ponto de vista oficial, o melhor possível646. A política adotada pela secretaria de cultura foi fator decisivo para que houvesse redução dos valores dos ingressos, consequentemente, facilitou o acesso de uma parte da população inviabilizada de ir ao teatro, resultando no sucesso de público do Festival. Porém, houve quem se posicionasse contra a realização do evento. O dramaturgo Plínio Marcos alegou que não podia “concordar com um festival que tem até financiamento do governo - o mesmo governo que mantêm engavetadas cerca de 450 peças de autores nacionais, inclusive as premiadas pelo Serviço Nacional de Teatro”647. Num tom mais ácido, o dramaturgo alfinetou Ruth Escobar, dizendo que “evidentemente que por demagogia e autopromoção as pessoas ficam dizendo que 643 LIMA, O Estado de São Paulo, 16 mai. 1976, p. 32. DIAS, O Estado de São Paulo, 23 mai. 1976. 645 WALLY, Jornal da Tarde, 09 jun. 1976, p. 16. 646 WALLY, Jornal da Tarde, 09 jun. 1976, p. 16. 647 WALLY, Jornal da Tarde, 09 jun. 1976, p. 16. 644 trouxeram esse teatro para a gente aprender. A gente não sabe o que pode aprender com a arte de negociar”648. Apesar de algumas posições contrárias à realização do II FIT, o intercâmbio entre diversas culturas e modos de fazer teatro enriqueceu e ampliou as possibilidades de concepção cênica do teatro paulista que, consequentemente, irradiou ao restante do país. O festival foi um ato de resistência e de bravura da empresária e, sem dúvida, um impulso para abrir outros caminhos, tanto para a renovação teatral brasileira, quanto aos futuros projetos de Ruth Escobar. Por fim, observo que II FIT foi um ato de resistência à ditadura militar. Wladimir Soares, a respeito desse assunto destacou que “o Festival mostrou que a censura pode perfeitamente ser burlada pela inteligência. Não foi essa a lição da Espanha?649. 5.4 O tom da abertura do III FIT - 1981 Enquanto a ditadura militar iniciava um processo de declínio no início dos anos de 1980, movimento populares, em ascensão, começavam uma série de reivindicações em prol dos direitos de alguns sindicatos organizados: greve dos professores da rede pública, bancários, jornalistas e metalúrgicos, mobilizações que também lutavam pelo término do regime militar. Da ação dos metalúrgicos de São Bernardo se originou o Partido dos Trabalhadores (PT), em 10 fevereiro de 1980. Nesse início dos anos de 1980, os grupos teatrais retomavam à encenação de textos censurados pelo Governo Federal, a exemplo de Rasga Coração de Oduvaldo Vianna Filho, vencedor do Concurso de Dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro (SNT) em 1974, encenada somente cinco anos após sua idealização em 1979. A censura também liberou Calabar, escrita por Rui Guerra e Chico Buarque e Abajur Lilás e Barrela, de Plínio Marcos, ambas proibidas em 1975. Esta última foi encenada pela primeira vez em 1980 por Walderez de Barros. Para Michalski650, os anos de 1980 foram um “período de transição, no qual o teatro vem buscando, por enquanto sem êxito, os caminhos nos quais ele possa utilmente se engajar, e que sejam compatíveis com o novo panorama da vida nacional”. Nesse contexto, em 1981, Ruth Escobar realizou em São Paulo, no período de 1º a 16 de agosto, o III FIT. Nesta edição, Ruth Escobar trouxe espetáculos de treze países, além de realizar uma intensa programação paralela com shows, danças e mostra de cinema. Ao contrário do I e II FIT, a produtora decidiu estender a programação do festival para outros estados651. Toda essa programação tinha como eixo norteador a reivindicação pelas liberdades. Diferente das aberturas das edições anteriores, Ruth Escobar organizou um desfile com todos os artistas e grupos participantes que estavam presentes na cidade de São Paulo. O local escolhido, para o início da passeata, foi o vão do Museu de Arte de São Paulo (MASP); daquele local, partiram até o Teatro Ruth Escobar. O desfile que a priori deveria ser um bloco carnavalesco ao som da bateria da Escola de Samba Unidos do Tucuruvi, com a finalidade de 648 WALLY, Jornal da Tarde, 09 jun. 1976, p. 16. WALLY, Jornal da Tarde, 09 jun. 1976, p. 16. 650 Para Michalski (1985, p. 84), apenas algumas produções ocorridas nesse início de década são destaques: Patética, de João Chaves (SP, 1980); A Serpente de Nélson Rodrigues; Os órfãos de Jânio, Mansamente e a Cabaré Valentim, do Pessoal do Cabaré (RJ/ 1980); O Poleiro dos Anjos, de Buza Ferraz; As Sete Luas de Barro, de Vital Santos; Milagre na Cela de Jorge Andrade e O Beijo da Mulher Aranha, de Manuel Puig (RJ/ 1981). 651 O espetáculo africano Ogbanje: Nascido para Morrer da Cia. Performing Arts Troupe e a encenação norteamericana Prelude to Death in Venice da Cia. Mabou Mines para o Teatro Glauce Roche no Rio de Janeiro e, a Cia. Plan K apresentou Quarenteine, em Curitiba, no Teatro Guairinha. 649 proporcionar um encontro dos artistas e população para divulgar o festival se transformou numa manifestação contra a posição arbitrária do governo brasileiro, o qual impediu a entrada de alguns grupos internacionais ao festival. A mistura de culturas, línguas e etnias, reunidas num mesmo evento, agradou a todos os participantes; eles “se esbaldaram cantando e tocando os instrumentos típicos”652 declarou um jornalista. Na mesma ocasião, outros manifestantes se uniram àquela multidão para protestar contra a posição política adotada por outros países da América latina: [...] viam-se faixas com os dizeres “Por um Uruguai livre”, “Pelas liberdades democráticas no Cone Sul”, “Contra a intervenção na América Latina” e inúmeros cartazes contra a instalação de usina nucleares. Entre os presentes, o comentário mais freqüente tinha a delegação cubana como tema: ninguém entendia porque o governo brasileiro negou o visto de entrada para os representantes de Cuba, apesar do abaixoassinado com cerca de 400 assinaturas, enviado ao presidente Figueiredo e solicitando sua intervenção653. O desfile de abertura contou com a presença dos grupos de diversas partes do mundo; além de ser uma grande festa para celebrar o teatro, acabou servindo como ato político, agregando manifestantes com outros propósitos “da reivindicação de liberdade para os povos do Cone Sul até apelos pela preservação da ecologia e contra a construção de centrais nucleares”654 e também em prol da liberdade nos países que ainda estavam sob o julgo de regimes militares. Ruth Escobar comandou aquele carnaval politizado com “megafone em punho ou na garupa de uma moto”655. Com cerca de trezentos e cinquenta integrantes, o desfile contou com a presença do grupo brasileiro Tá na Rua, o Balé Popular do Recife, o reisado do Abaçai e o Grupo Revolucena de Angra dos Reis. Depois de realizado o cortejo político, no Teatro Municipal, sob o comando de Chico Buarque e Marieta Severo, aproximadamente mil pessoas cantaram o hino revolucionário da Nicarágua em prol da liberdade do governo sandinista. O cantor nicaraguense Luíz Enrique Mejía Godoy e o grupo Mancontal também participaram da festa de abertura: [...] transformando [a abertura do festival] numa espécie de happening políticoideológico, onde não faltaram punhos cerrados estendidos ao ar, discursos pela unidade latino-americana, palavras de ordem e um momento de poesia, com a entrada em cena de Atahualpa Del Cioppo, um dos diretores do grupo uruguaio El Galpon exilado no México desde 1976.656 No palco, estenderam-se duas faixas de cunho político, uma em solidariedade à Nicarágua, que acabara de perder em um desastre de avião o general Omar Efraín Torrijos Herrera, personagem central pela descolonização do país e, a outra, com o seguinte dizer: “O III Festival Internacional de Teatro homenageia a solidariedade dos povos”. A solenidade de abertura representou, claramente, que o festival organizado por Ruth Escobar simbolizava um ato político no início dos anos de 1980. Como em todo evento de grande porte, diversos problemas surgiram do início ao fim no processo de produção. Em algumas ocasiões, Ruth Escobar utilizava sua credibilidade junto aos órgãos competentes, a fim de solucionar os problemas enfrentados pela equipe de produção do 652 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. MUITA POLÍTICA, Folha de São Paulo, 02 ago. 1981, p. 6. 654 MICHALSKI, Jornal do Brasil, 09 ago. 1981. 655 A VITÓRIA, Revista Veja, p. 110-111, ago. 1981. 656 ALMEIDA, O Estado de São Paulo, 09 ago. 1981, p. 46. 653 festival, pois “manha e ginga, efetivamente não faltam a Ruth Escobar, que em Brasília, quando os contatos com as autoridades para os preparativos do festival pareciam empacar, não vacilava em soltar piadinhas políticas ou tiradas fortes sobre e na frente do ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Mattos, ou do senador Jarbas Passarinho, Presidente do Congresso” 657. O evento foi boicotado por diversas frentes. Além de uma oposição interna, países da América Latina, que também estavam sob a ditadura e eram aliados do Brasil, dificultaram e até mesmo impediram grupos de teatro de ir ao evento. Durante o transcorrer do festival, no dia 10 de agosto de 1981, o evento divulgou os motivos que levaram o grupo boliviano Diabladas de Oruro a cancelar a sua ida a São Paulo: Devido ao golpe de Estado ocorrido na Bolívia na última semana, foi cancelada a vinda do Grupo Diabladas de Oruro, que se exibiria na Praça da Sé, quinta-feira a tarde. Em telefonema sexta-feira a noite, à direção do III Festival Internacional de Teatro, o responsável pela Fraternidad Artística y Cultural La Diablada informava que o avião da Presidência da República da Bolívia conseguido por Ruth Escobar foi cancelado sine die658. Outro país latino-americano que teve sua participação cancelada foi o representante da Venezuela. De acordo com Ruth Escobar, o grupo “não veio porque na última hora o governo venezuelano, que havia prometido um avião da Força Aérea para trazê-los, exigiu 45 mil dólares para abastecer o avião”659. Sem condições financeiras de pagar o deslocamento do grupo El Cobre, Ruth Escobar além de alterar a programação do III FIT, teve um “prejuízo de 400 mil cruzeiros com o cenário da encenação Fin de Round, montado no [Teatro] municipal”660. O grupo cubano Cabildo Teatral de Santiago que representaria o país, trazendo o teatro de vanguarda que se produzia na ilha, não recebeu autorização do Itamaraty para entrar no Brasil. Num momento em que o Brasil adentrava à abertura política, Ruth Escobar publicou nota, dizendo “somos da opinião [...] que tal atitude vai contra o direito fundamental dos povos de ir e vir, direito esse que precisa ser reavaliado, principalmente no momento em que o presidente Figueiredo pregava a abertura política para o País 661. Como forma de protestar contras as arbitrariedades do governo, a produtora incitou o público e os artistas na abertura do evento: “Na chegada ao teatro, Ruth Escobar, megafone em punho, discursou das escadarias, saudando “revolucionariamente” os participantes do festival, e denunciando a ausência de Cuba por causa da negativa do Itamaraty em conceder vistos de entrada aos componentes do Grupo Cabildo Teatral de Santiago”662. A respeito desse fato, o crítico Clóvis Garcia escreveu: “Cuba, não poderá participar, por mais uma manisfestação de burrice e mediocridade, temperadas pela paranóiaesquizofrênia, características de nossa política cultural oficial”663. O governo brasileiro também proibiu a entrada do grupo francês Magic Circus, alegando que a companhia “foi embargada pela Censura, sob alegação de problemas administrativos”664, escreveu Yan Michalski. Além da intervenção das autoridades brasileiras à entrada de alguns grupos de outros países, houve também problemas de comunicação entre o Itamaraty e a embaixada brasileira na Venezuela. 657 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. Expressão em latim que significa indeterminadamente, por tempo indeterminado, sem data. HOJE, DUAS, Jornal da Tarde, 11 ago. 1981. 659 A BUROCRACIA, Jornal da Tarde, 07 ago. 1981. 660 A BUROCRACIA, Jornal da Tarde, 07 ago. 1981. 661 ALMEIDA, O Estado de São Paulo, 09 ago. 1981, p. 46. 662 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 663 GARCIA, O Estado de São Paulo, 05 ago. 1981. 664 MICHALSKI, Jornal do Brasil, 09 ago. 1981. 658 A Cia. Abafume Company, da Uganda, ficou presa no Aeroporto do Galeão (RJ) por mais de quinze horas por falta de visto de entrada no país. Ruth Escobar alegou que “entreguei ao Itamaraty, que enviou os vistos para a embaixada brasileira em Caracas, e eles [as autoridades] não avisaram aos nigerianos”665. Após explicar toda a situação, a produtora conseguiu visto de turistas para o elenco nigeriano, no entanto, conforme legislação brasileira, essa autorização proíbia a cobrança de ingressos da apresentação do espetáculo. Em entrevista, Ruth Escobar declarou que o grupo ia “se apresentar de graça e nós temos um prezuizo de 1,5 milhão de cruzeiros. Se não conseguirmos o dinheiro, vou acionar a Pan Am, porque ela não poderia permitir que eles embarcassem sem vistos”666. Além da impossibilidade de cobrar ingresso, no caso dos espetáculos do grupo da Nigéria, a empresária conseguiu angariar apenas um quarto dos recursos que seria necessário para organizar o festival. Nesta terceira edição, Ruth obteve apoio da Secretaria Estadual e Municipal de Cultura de São Paulo e do Governo do Estado do Paraná, mas arrecadou valores inferiores ao esperado para cobrir as despesas do festival, como afirmou a produtora: Recebi apenas 15 milhões de cruzeiros e este festival custou 50 milhões. A Secretaria Municipal de Cultura me deu 4 milhões, a Estadual comprou a gravação de 10 espetáculos por 6 milhões e do Governo do Paraná recebi mais 5 milhões. O Rio não me deu um tostão para o Festival. Estou levando as peças no Rio de graça sem ganhar um tostão do governo carioca667 Ainda que os valores estivessem aquém do ideal, Ruth Escobar afirmou que “teria sido cinco vezes mais, se não fosse minha capacidade de conseguir coisas de graça”668. Além do mais, para contornar o problema financeiro, ela vendeu espaço publicitário no programa do festival. Com essa estratégia, arrecadou mais “3 milhões de cruzeiros”669. A produtora também arranjou apoio do empresário paulista Henry Maksoud, que disponibilizou “o parque gráfico do Grupo Visão para rodar o programa oficial”670. A empresária também recebeu apoio do Presidente do Panamá, Omar Torrijos, que cedeu o avião pessoal para trazer os grupos da América Latina. Além dessa ajuda internacional, Ruth Escobar conseguiu outras colaborações: As TVs Bandeirantes e Globo fizeram de graça todas as chamadas para o Festival. Do Sesc, Ruth conseguiu todos os almoços para as delegações convidadas de graça. O Hotel Maksoud hospedou alguns artistas. O Danúbio, onde ficaram as outras delegações, fez preços especiais, assim como os hotéis de Curitiba. No Rio, o Serviço Nacional de Teatro colaborou com hospedagem e alimentação. A Prefeitura de São Paulo cedeu dois ônibus durante todo o Festival para transportar os artistas (“o que significa perto de um milhão e meio de cruzeiros”); e a Transbrasil colaborou com parte das passagens de São Paulo para Curitiba 671. Essas atitudes demonstram a capacidade de Ruth trabalhar quase sem planejamento estrutural e, mesmo assim, elaborar planos num curto espaço de tempo para contornar situações adversas. Ao realizar o primeiro balanço do III FIT, Ruth Escobar reclamou que as verbas arrecadadas eram “magras de mais quando se sabe que o festival teatral de Caracas, de dimensões aproximadas, é de inteira responsabilidade do governo da Venezuela, contanto além 665 A BUROCRACIA, Jornal da Tarde, 07 ago. 1981. A BUROCRACIA, Jornal da Tarde, 07 ago. 1981. 667 A BUROCRACIA, Jornal da Tarde, 07 ago. 1981. 668 A VITÓRIA, Revista Veja, p. 110-111, ago. 1981. 669 A VITÓRIA, Revista Veja, p. 110-111, ago. 1981. 670 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 671 MAGALDI, Jornal da Tarde, 22 ago. 1981. 666 de todas as facilidades oficiais, com uma verba de 1 milhão de dólares”672. A empresária tinha clara consciência de que a dimensão do projeto de um festival internacional deveria implicar uma ação política de estado. Apesar das dificuldades burocráticas e financeiras encontradas para organizar a terceira edição, Ruth Escobar contornou os problemas que surgiam durante o evento, criando uma ação cultural que dinamizou a arte teatral na cidade de São Paulo. Nesse sentido, a repercussão do evento junto à classe artística e público durante duas semanas “foi um período em que o público paulista teve a oportunidade de ver obras de outros países, ampliar seus horizontes artísticos, debater outras visões e outras culturas”673, afirmou Clóvis Garcia. A seguir, apresento os espetáculos e grupos que compuseram a programação do III FIT. 5.5 Dos grupos de resistência aos regimes militares às inovações estéticas Com a incipiente abertura política no início dos anos 1980, Ruth Escobar ao perceber que o país se encaminhava rumo à democratização, aproveitou a oportunidade para convidar grupos teatrais, principalmente, dos países da América Latina, que também estavam sob a ditadura militar, para participar do III FIT. A decisão de trazer espetáculos politizados estava conectada ao fato de que “o Brasil enxergava uma luzinha no fim do túnel, o mesmo poderia acontecer com os outros países ibero-americanos, onda as ditaduras militares começavam a demonstrar idênticos sinais de exaustão”674, pontuou Mariângela Alves de Lima. Para isso, Ruth convidou representativos grupos teatrais de resistência à ditadura de vários países. O grupo El Galpón desenvolve atividades teatrais de 1949 até os dias de hoje, no Uruguai. Em 1976, o regime militar uruguaio ordenou o fechamento do El Galpón e confiscou todos os bens. Para fugir da repressão, o grupo se asilou no México, local onde continuaram suas atividades teatrais até 1984, quando foram anistiados e decidiram regressar ao Uruguai. Pluto675 foi o primeiro espetáculo apresentado no III FIT. Escrito por Mario Benedetti, baseado na obra de igual nome de Aristófanes, o mote central do texto é a denúncia sobre as misérias humanas e divinas. Destaco que esse autor teve diversas obras proibidas pelas autoridades uruguaias por ter uma posição política que atacava diretamente o governo militar e, por esse motivo, ele teve de se refugiar no Peru e, posteriormente, em Cuba. Também de autoria de Benedetti, Pedro y El Capitán, dirigido por Atahualpa dell Cioppo, foi o segundo espetáculo apresentado pelo grupo uruguaio. A encenação mostrava a relação entre opressor e oprimido como forma de denunciar as arbitrariedades do regime militar, além de realizar uma reflexão sobre os mecanismos de opressão que os governantes usavam para manter a centralização do poder. César Campodónico definiu o espetáculo “como uma sátira ao obscurantismo dos ditadores, particularmente os uruguaios. Não bastasse a proibição de livros de Francisco Espindola, Enrique Amorin, Mario Benedetti, Eduardo Galeano, Garcia Marquez e outros autores, foi também vetada, no Uruguai, a difusão de sete tangos de Carlos Gardel, sem qualquer conteúdo político”676. Esse texto foi interpretado pelos atores Rubem 672 A VITÓRIA, Revista Veja, p. 110-111, ago. 1981. GARCIA, O Estado de São Paulo, 16 ago. 1981, p. 38. 674 LIMA, 1994, p. 39. 675 Durante a pesquisa, não foi localizada críticas teatrais dessa encenação. 676 GONÇALVES FILHO, Folha de São Paulo, 06 ago. 1981, p. 3. 673 Yañes (capitão) e Humboldt Ribeiro (Pedro), cujo desempenho artístico foi elogiado pelo crítico Edélcio Mostaço. Ele disse que “sem dúvida [o elenco foi] um trunfo decisivo nas mãos do diretor para sua composição do espetáculo”677. Nessa mesma linha de pensamento, o terceiro e último espetáculo do El Galpón foi Prohibido Gardel, de autoria do argentino Pedro Orgambide678, que abordava sobre a proibição do governo uruguaio de serem executados alguns tangos do músico Carlos Gardel. Para passar a mensagem que desejava, Campodónico concebeu um espetáculo “grotesco [e] pirandelliano”679. Do Panamá, Ruth convidou a Junta Teatral Victorino para apresentar La Madriguera (O Esconderijo) de autoria do colombiano Jairo Aníbal Niño. Fundado em 1976, por Oscar Poveda, Romy Lombardo, John Ryan e Roberto King, o grupo tinha como objetivo “fazer um teatro com raízes sociais e latino-americanas”680. Para isso, o grupo encenava textos de dramaturgos da América Latina que abordavam inquietações e problemas sociopolíticos, pois “como latinoamericanos, estamos empenhados na luta pela unidade do continente, e assim buscamos realizar um teatro contra o imperialismo, do fascismo e de todos os vícios sociais. Em suma, aos escolhermos peças de autores nacionais e estrangeiros queremos enforcar os problemas da América Latina” 681, colocaram os atores do grupo. La Madriguera aborda o golpe de Estado na Colômbia, quando o general presidente e seu secretário particular se abrigam em um sótão secreto para fugir da rebelião revolucionária que ocorria na rua. O enredo se desenrola por meio das recordações, delírios e sonhos megalomaníacos que ambos recordam enquanto estão escondidos no sótão. Na avaliação da crítica paulistana, o trabalho não foi bom. Para Edélcio Mostaço, a encenação “carece de qualquer exercício de criatividade”682 e para Ilka Marinho Zanotto, o espetáculo teve um desempenho aquém do esperado por “pautar-se por um realismo velho”683. Do continente europeu vieram os espetáculos Bão e Serena Guerrilha do grupo português A. Comuna684. Concebido em 1975, Bão era um espetáculo de cunho infanto-juvenil a partir da mímica e da expressão corporal. Interpretado pelos atores João Motta (Bão) e Melin Teixeira (patrão), a encenação conta “a história de um pobre jovem operário explorado por um patrão que procura por todos os meios reprimir a sua liberdade e a sua consciência. Mas a semente plantada por Bão há de dar o fruto da coragem e o rapaz encontra a força necessária para se revoltar contra a escravidão”685. Bão tem como pano de fundo o acontecimento que marcou o fim do regime ditatorial em Portugal, em 25 de abril de 1974, conhecido como a Revolução dos Cravos. O espetáculo foi concebido por “uma série de fotografias, flagrantes da vida portuguesa após a Revolução, que são atirados ao público para que se reflita sobre eles”686 definiu o ator Carlos Paulo. A respeito desse espetáculo, o crítico Clóvis Garcia colocou que a encenação impressionou “pelo visual, pela versatilidade dos atores, capazes de em alguns minutos mudar inteiramente sua 677 MOSTAÇO, Jornal da Tarde, 08 ago. 1981, p. 14. Este escritor também ficou exilado no México no período de 1974 a 1983 679 A BUROCRACIA, Jornal da Tarde, 07 ago. 1981. 680 MARTINS, O Estado de São Paulo, 04 de ago. 1981, p. 23. 681 MARTINS, O Estado de São Paulo, 04 de ago. 1981, p. 23. 682 MOSTAÇO, Jornal da Tarde, 08 ago. 1981, p. 14. 683 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 09 ago. 1981, p. 46. 684 Assim como havia feito em 1974, em 27 de abril de 1981, Ruth Escobar solicitou à FCG recursos financeiros para participação do A. Comuna no III FIT. Porém, nos arquivos da instituição não há nenhuma documentação que comprove a ajuda financeira ou não. 685 III FIT. (Programa). São Paulo, 1981. 686 GONÇALVES FILHO, Folha de São Paulo, 06 ago. 1981. 678 composição cênica, pelo poético de alguns momentos” 687. Ele ainda ressaltou que “João Motta como ator, surpreende com a criação inesperada de momentos cômicos [...] tornam o espetáculo uma agradável encenação para qualquer idade”688. Nos dias 03 e 04 de agosto, na Sala Galpão, o Grupo Nicaraguense de Teatro apresentou Ustedes Tienen la Palabra (Vocês têm a palavra). Segundo o diretor do espetáculo, Pedro Quirós, “a peça pretende chegar até as classes mais baixas da população nicaraguense, com o fim de desmascarar as forças opressoras”689. Apesar do mote político, que interessava a Ruth Escobar, a crítica Ilka Zanotto escreveu que o espetáculo “conquista de imediato pela juventude e alegria do elenco muito jovem. Mas o entusiasmo do primeiro instante logo se evapora ente as marcações canhestras, a insegurança interpretativa, os hiatos rítmicos e, sobretudo, pelo esquematismo maniqueísta que reduz a luta de um povo a um combate tipo bandido e mocinho690. De todos os grupos que estiveram presentes no III FIT, dois não conviveram sob o regime ditatorial: o norte-americano Mabou Mines, o belga Plan k. Porém, pontuo que os EUA teve participação direta no Golpe Militar de 1964, no Brasil. Além deles, La Cuadra, em 1976, presenciou o fim do Franquismo, sistema político que vigorava desde 1939, na Espanha. Mabou Mines foi fundado em meados da década de 1960, em Paris, pelos jovens artistas norte-americanos JoAnne Akalaits, Lee Breuer, Ruth Maleczech, Philip Glass e David Warrilow. O grupo tinha como desafio desenvolver uma linguagem teatral a partir da fusão da literatura, música e artes visuais. Deste grupo, a produtora Ruth Escobar trouxe o espetáculo A Prelude to Death in Venice (Prelúdio para Morte em Veneza), apresentado no Auditório do Maksoud Plaza Hotel. O espetáculo dirigido por Lee Breur colocou em cena um boneco de um metro de altura chamado John, manipulado pelo ator William Raymond. Breur concebeu um espetáculo que abordava o modo de vida, poder e a cultura de massa. No palco havia apenas dois telefones públicos, que serviam para John telefonar, incessantemente, às pessoas que pudessem escutar suas angústias: uma psicanalista, um amigo, sua mãe e sua namorada. Expondo suas frustrações, neuroses, inquietações e a dificuldade de se relacionar com o mundo, o boneco retratava aquilo no que o homem havia se tornado, um ser apático, sem contato com a realidade em torno. O grupo belga Plan K, fundado em 1973, em Bruxelas, por Frédéric Flamand, Baba e Arthur Spilliaert trouxe ao palco da Sala Galpão, a encenação Quarentaine. O elenco era formado por Daniel Beenson, Carlos da Ponte e Bruno Garny e o violinista Michael Galasso (músico que trabalhou com Bob Wilson no espetáculo The Life and Times of Dave Clarck presente no I FIT). Para conceber o espetáculo, Flamand se inspirou no universo criado pelo pintor holandês Jeroen van Aeken, cujo pseudônimo foi Hieronymus Bosch, mais conhecido como Jeroen Bosch. O artista tinha como característica pintar irreverentes cenas que retratavam o pecado, a tentação, a loucura e criaturas imaginárias. Suas pinturas não tinham a intenção de serem lógicas, buscava pintar o não convencionalismo, expressando os problemas sociopolíticos da população. Segundo o diretor Flamand, “Minha primeira influência [...] veio através do universo caótico de Bosch, mas, como não desejávamos nos fixar em parâmetros, 687 GARCIA, O Estado de São Paulo, 12 ago. 1981, p. 18. GARCIA, O Estado de São Paulo, 12 ago. 1981, p. 18. 689 No original “esta pieza pretende llegar hasta las clases más bajas de la población nicaragüense, con el fin de desenmascarar las fuerzas opressoras”. REIVINDICACIÓN, El País, 14 ago. 1981. 690 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 09 ago. 1981, p. 50. 688 partimos para a criação de um espetáculo polivalente [...] Não há, portanto, texto ou personagens na peça e tampouco uma história linear691. Com a ausência de um texto que servisse de eixo norteador do espetáculo, Flamand concebeu esse trabalho a partir da exploração da imagem visual como forma de estabelecer uma comunicação com a plateia, princípio que regia o trabalho do grupo desde sua fundação. O cenário era composto por diversos objetos cênicos, como sacos plásticos cheios de ar, sucatas de metal, caixões plásticos, copos quebrados e blocos de luzes neon, totalizando cerca de duas toneladas de material. De acordo com o jornalista Antonio Gonçalves Filho, “como todo festival que se preza, o 3º FIT de Ruth Escobar não poderia prescindir de sua pièce de scandale. Desta vez, a atriz e empresária atribuiu, ao grupo belga Plan K, tal missão e – atenção, vanguardistas e “vanguardeiros” – essa deverá ser cumprida à risca pelo elenco de Quarenteine”692. Apesar de toda a excitação do jornalista ao considerar o grupo Plan K como o mais significativo representante da vanguarda internacional, Magaldi declarou que “não há, de fato, no espetáculo, nada que já não seja conhecido, de outra forma”693. Outro grupo que direcionou o trabalho teatral para questões políticas por meio da ausência das palavras foi o grupo espanhol La Cuadra. Fundado no final de 1971 por Salvador Távora, a tônica do grupo era a exploração do corpo e suas possibilidades expressivas como forma de comunicação universal. Para Távora, o importante é que o espetáculo “seja comum a todos os sentimentos sem que seja necessária a palavra para expressá-la”694. Andalucia Amarga foi o espetáculo escolhido por Ruth Escobar no repertório do grupo espanhol. A peça aborda a exploração das terras pelos latifundiários e a falta de incentivo do governo espanhol. Com isso, fez com que os cidadãos andaluzes migrassem para outras regiões em busca de melhores condições de vida. O jornalista Paulo Sérgio Scarpa escreveu que Andalucia Amarga foi “um relato cruel e apaixonante sobre este povo, preso a, uma terra repartida entre grandes proprietários rurais, filhos do franquismo”695. Para a crítica Mariângela Alves de Lima, o espetáculo produzia “a sensação de beleza trágica e a consequente emoção que esse espetáculo aviva, tem, certamente, raízes na capacidade de indignar-se que os artistas revelam”696. O continente africano também teve seu representante no III FIT. Vindo da Nigéria, Performing Arts Troupe trouxe ao Brasil o espetáculo Ogbanje: Nascido para Morrer. O espetáculo retratava um mito nigeriano, sobre o qual algumas crianças nascem para morrer e retornam a nascer para morrer novamente; acreditavam que havia um espírito maligno que atormentava as famílias e, para não haver apropriação da alma das crianças, os pais deveriam fazer cerimônias/ritos para a proteção dos filhos. Foi a partir desse mito local que Performing Arts Troupe elaborou a encenação: Durante uma dança tribal sob a luz do luar, Ogbanje cai em transe para brincar com um espírito dos mortos com quem ela está espiritualmente comprometida. As tentativas de seus pais e companheiros da tribo para resgatá-la não dão certo, e resolve-se então pedir a ajuda de um Babalawo (um feiticeiro). Com os espetaculares presentes oferecidos pelos pais, Ogbanje é persuadida a revelar a localização de seu símbolo de vinculação, que é então rompido. A dança teatral termina com o casamento de Ogbanje com o Emir (o chefe local)697. 691 GONÇALVES FILHO, Folha de São Paulo, 12 ago. 1981, p. 3. GONÇALVES FILHO, Folha de São Paulo, 12 ago. 1981, p. 3. 693 MAGALDI, Jornal da Tarde, 14 ago. 1981, p. 17. 694 LA CUADRA, Jornal da Tarde, 08 ago. 1981. 695 SCARPA, Folha de São Paulo, 09 ago. 1981, p. 11. 696 LIMA, O Estado de São Paulo, 06 ago. 1981, p. 32. 697 III FIT. (Programa). São Paulo, 1981. 692 A encenação tinha uma composição rítmica composta por uma orquestra de percussão que, segundo o crítico Clóvis Garcia, provocava uma “empatia para o nosso público que cresce pela extraordinária vitalidade dos dançarinos e músicos, capazes de manter [a atenção do público], durante quase duas horas, um ritmo intenso [do espetáculo]”698. No entanto, essa mesma opinião não foi compartilhada pelo crítico Edélcio Mostaço: “o público brasileiro não compreenderá em todas as suas nuances e simbolizações de Ogbanje, uma dança dramática estruturada a partir de mitos tradicionais nigerianos e que utiliza uma suíte coreográfica ritmos e danças das várias nações que compõem o país”699. 5.6 Programação paralela No III FIT Ruth Escobar organizou uma programação paralela, composta de diversas atividades artísticas para atender a necessidade de abranger uma quantidade maior de espectadores. É válido pontuar que, em decorrência da proibição da entrada de alguns grupos de teatro no Brasil pelo governo militar, alguns convites foram feitos às pressas, sendo assim, alguns grupos que participaram do III FIT não constavam da programação oficial700. Sem um nome apropriado para o espetáculo, Amir Haddad e o grupo Tá Na Rua apresentaram uma “discussão sempre apaixonada sobre repressão sexual, exploração de trabalho”701. Apresentada no Marco Zero – Praça da Sé de São Paulo, no dia 08 de agosto de 1981, a encenação do grupo fez uma legítima manifestação popular ao integrar o público. Neste local, o Tá Na Rua enfrentou problemas com a Empresa Municipal de Urbanização (EMURB). O espetáculo não tinha autorização para ser apresentado, no entanto, o coletivo contornou os problemas. Durante duas horas, “o grupo atuou sem falar, por causa do representante do Emurb, que desconhecia a autorização da Prefeitura para aquela apresentação. Só ao meio dia o emurbeiro liberou o espaço para o Tá Na Rua, que então começou o trabalho previsto”702. Utilizando a rua como pretexto para a irreverente apresentação do espetáculo, o Tá Na Rua transformou o local numa grande festa, com a participação de “engravatados, senhoras tímidas, crianças, mendigos, camelôs, loucos de variados graus, sonhadores, solitários”703. A cultura popular nordestina também marcou presença no III FIT. Criado em 02 de maio de 1977 por Ariano Suassuna, o Balé Popular do Recife tinha por objetivo preservar a cultura popular regional, principalmente as danças e os folguedos. Produzido em 1979, Prosopopéia: um auto de guerreiro, era um espetáculo que recriava o universo dos bonecos de mamulengos e de outras manifestações folclóricas do nordeste. Para o crítico Macksen Luiz, O grupo de Recife oferece uma informação nova, acrescenta ao público a vitalidade de formas culturais de raiz [...] O público se deixa conquistar pela força dessa arte popular, que chega até ele sem mediações que mistificam. O caráter popular se expressa em cada passo de dança, nas brincadeiras e molecagens do velo pastoril e na representação mambembe de pequenas cenas. E o público capta os sinais dessa linguagem, remetendo-os às suas lembranças nacionais básicas. É essa força que 698 GARCIA, O Estado de São Paulo, 15 ago. 1981, p. 16. MOSTAÇO, Jornal da Tarde, 15 ago. 1981, p. 14. 700 Outra atração extra do III FIT foi o espetáculo Aquarius, do Grupo de Dança Lolita, da França, apresentado no Teatro Galpão no dia 11 de agosto de 1981. 701 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 702 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 703 DEL RIOS, Folha de São Paulo, 08 ago. 1981, p. 3. 699 perpassa cada um dos quadros desse espetáculo que agarra o público, monopolizando a sua atenção e, fato raro, fazendo-o rir e aplaudir durante a encenação 704. Ruth Escobar também contemplou, na programação do III FIT, outras linguagens teatrais. Criado em 1971, por Marcos Caetano Ribas e Rachel Ribas, o grupo Contadores de Histórias apresentou Mansamente, espetáculo de teatro de bonecos para adultos na sala Haydée Santamaria.705 Dividido em três cenas, o espetáculo não utilizava a palavra nas três histórias que os manipuladores apresentavam: a doença e a morte do casal de camponeses Seu João e Dona Rosa, a travessura de um menino indígena e a descoberta da sexualidade de um casal de índios. Ilka Marinho Zanotto disse que “os espectadores [...] se veem mergulhados em um círculo mágico e transportados a um nível mais profundo de percepção que lhes permite intuir a dimensão mítica do que se passa em cena”706. No Teatro Pixinguinha, em uma única sessão em 14 de agosto de 1981, o grupo de dança carioca Olorum Baba Min (Pai do Universo ou Deus, Meu Pai), fundado em 1974, por artistas negros em parceria com Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (SINBA)707, apresentou a Procissão dos Miseráveis. Inspirado no poema Tem gente com fome de Solano Trindade, a diretora Isaura de Assis queria “revelar o que há por detrás dessa pseudo-democracia racial em que vivemos”708. O canto, a música e a dramatização foram linguagens exploradas para demonstrar às estruturas de poder, à qual a raça negra está submetida com o objetivo de denunciar “a exploração e a marginalização do homem pobre do terceiro mundo, cristalizadas na figura do negro que é submetido à condição de subempregado, favelado e menor abandonado, em processo que se agrava com a marginalização social e política e o menosprezo pelos valores étnicos e culturais trazidos pelos nossos ancestrais africanos709. O grupo Romançal de Antônio Nóbrega, fundado em 1977, apresentou, nos dias 10 e 11 agosto na Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar, o espetáculo A Arte da Cantoria, no qual mostrava as diferentes figuras da cultura popular nordestina. Inspirado na figura de Mateus, “um palhaço do bumba-meu-boi, que canta e faz malabarismo”710, Nóbrega realizou um espetáculo solo conduzido pelo ritmo musical da região nordeste, em que fundiu música e teatro, características presentes nos espetáculos desenvolvidos pelo intérprete. Fundado em 1971, o grupo curitibano Prisma apresentou o espetáculo No Seio Desta Mãe Gentil, criação coletiva que abordava a vida de um travesti, “patrimônio” da cidade por fazer parte da rotina dos habitantes de Curitiba. Ambientada num cabaré, a encenação realizou uma única apresentação no festival, em 12 de agosto, na Sala Galpão. Nesse cabaré, o elenco, composto somente por homens, revezava-se entre os papéis masculinos e femininos, satirizando a sociedade. Além da programação teatral, Ruth Escobar, no III FIT, diversificou as atividades culturais ao público, promovendo ciclos de cinemas, shows musicais e intervenções cênicas. Falta de público, censura e proibição foram alguns dos problemas que ocorreram nesta 704 III FIT. (Programa). São Paulo, 1981. A nova sala de apresentação foi inaugurada durante o III FIT em homenagem à Haydée Santamaria Cuadrado (1922-1980), guerrilheira e política cubana. Fundadora do Partido Unido da Revolução Socialista de Cuba e, posteriormente, do Partido Comunista de Cuba. 706 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, ago. 1981, p. 27. 707 O SINBA foi a primeira entidade criada no Rio de Janeiro dos anos de 1970. Um de seus objetivos era o “combate às tendências elitistas do Movimento Negro no Brasil que ainda não compreendeu que o problema do negro no Brasil é o problema da maioria dos negros brasileiros”. MONTEIRO apud BAPTISTA, 2002, p. 47. 708 GONÇALVES FILHO, Folha de São Paulo, 13 ago. 1981, p. 3. 709 III FIT. (Programa). São Paulo, 1981. 710 GONÇALVES FILHO, Folha de São Paulo, 13 ago. 1981, p. 3. 705 programação do III FIT. Com esses imprevistos e buscando recursos financeiros durante o Festival, Ruth Escobar não conseguiu realizar todas as atividades com a devida qualidade. Os grupos de intervenção que deveriam ser uma atração à parte por apresentarem um trabalho artístico diferenciado, distintos da programação teatral, não atenderam aos anseios dos críticos que avaliaram o III FIT a convite da Revista Teatro:711 “os grupos de intervenção perderam uma ótima oportunidade de colocar em xeque a estrutura festivalesca”712. Alguns grupos não conseguiram realizar seu trabalho por obterem a devida autorização da Prefeitura de São Paulo, como foi o caso do grupo 3NOS3 que, “após requerer (e obter) nada menos que 100 metros de plástico vermelho, acabou não realizando sua performance: a Prefeitura não autorizou o uso do Parque Ibirapuera. Quer dizer, intervenção que precisa de memorando do Reynaldão”713. Esse acontecimento gerou uma indagação: “Diante da proibição da Prefeitura por que não realizar a intervenção em outro local, de surpresa?”714. Pontuo que o grupo de artistas 3NOS3 era conhecido por deixar “a marca da transgressão, da ilegalidade e da manifestação de pensamentos e práticas marginais aos processos oficiais”715. A questão do espaço adequado às apresentações das intervenções foi problema recorrente para os grupos; aconteceu com Viajou Sem Passaporte que, fizeram a primeira intervenção no Maksoud, mas não gostaram do local, e assim “[...] eles resolveram não fazer mais nada, apesar do contrato. Simplesmente compareciam no local acertado, permanecendo imóveis”716. O grupo circulava com uma “cabine de lona, que no início se deslocava imperceptivelmente, até que algumas pessoas eram “convidadas” a conhecê-la por dentro”717. O saguão do Teatro Municipal também serviu de local para a performance, A Poesia do Silêncio de Denise Stoklos, que “recusou-se a fazer algo diferente do espetáculo que vinha levando há alguns meses e acabou não se adaptando ao novo espaço determinado pelo festival o saguão do Municipal onde a distribuição do público era completamente outra”. No mesmo local, o ator Paulo Yutaka apresentou Bom Dia Cara, intervenção que tratava sobre sua experiência na Europa. No mesmo local, o dançarino Ismael fez a apresentação de Rito do Corpo em Lua, ele “conseguiu produzir um rito para a ocasião, aproveitando a chance de exibir sua técnica de bailarino através da utilização correta do espaço disponível”718. O espetáculo abordava sobre os mitos e deuses africanos, com o objetivo de “elevar a cultura negra à categoria de arte universal para que não mais seja vista como algo dividido e menor”719. Após o imprevisto ocorrido com Tá Na Rua, na Praça da Sé com a EMURB, o grupo Recrearte de Carlos Takaoka e Solange Camargo apresentou, em 09 de agosto neste mesmo local, uma intervenção em clima festivo; o público transeunte era convidado a participar da dança coral, isto é, uma coreografia improvisada que explora características pessoais dos participantes. Estimulando a confraternização entre as pessoas, Recrearte proporcionou aos participantes, através dessa intervenção, quebrar a rotina do corpo. Utilizando, também, a rua como local de apresentação, o Teatro da Associação Beneficente dos Economiários Federais (TABEF), conhecido como Teatro da Caixa Econômica Federal, expôs uma intervenção ligada 711 Participaram da Mesa Redonda: Zeca Capellini, Mauro Meíches, Rô Vieira de Moraes, Marina Sales, Antonio Ozório, Rubens Brito, Jair Leal Piantino, Edélcio Mostaço, Bereca Raulino, Lucia Pereira, Luis Roberto Galizia, Douglas Salgado, Marcos Aidar, Lica Neaime, Beth Correa, Cida Moreira e Maria Cezarino. 712 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 713 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 714 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 715 RAMIRO, MAC, 2010? 716 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 717 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 718 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 719 III FIT. (Programa). São Paulo, 1981. ao universo das histórias populares, levando personagens da tradição popular paulista. Fundado em 1979, o grupo se dedicou a pesquisar histórias da cultura popular com objetivos artísticos e educativos. As apresentações dos grupos de intervenção ocorreram em diversas partes da cidade paulista. Essa diluição, por um lado, não colaborou efetivamente na coesão do festival, mas por outro, a descentralização do evento proporcionou o alcance de um número maior de público, possibilitando o acesso à arte teatral. O coordenador das intervenções, Roberto Galizia, admitiu que “talvez tenha sido ingenuidade nossa imaginar que eles entrariam no esquema do festival sem perder a força”720. No entanto, essas apresentações abriram espaço aos artistas que se dedicavam a essa linguagem artística, tendência que despontou no Brasil a partir de meados da década de 1980. Nesse sentido, Ruth Escobar ao convidar espetáculos que interferiam diretamente na dinâmica da cidade, utilizando elementos extracotidianos para estabelecer a comunicação com os transeuntes, pode ser considerada uma inovadora quanto à inserção de múltiplas formas de fazer teatro em um festival de teatro. Ruth Escobar também organizou outra atividade artística voltada ao cinema, na qual contemplou quatro temáticas: no Museu da Imagem e do Som (MIS), aconteceu o Ciclo LatinoAmericano; no Teatro Ruth Escobar, o Ciclo Americano Independente; no MASP, o Ciclo O Teatro no Cinema721 e, no Teatro Anchieta, Seminários de Cinema. Para Rubens Ewald Filho, os “problemas censuriais, falta de organização, desinteresse do público, nada disso tira a importância da iniciativa de Ruth Escobar em fazer mostras de cinema”722. Por mais que houvesse dificuldades em promover essa programação paralela, destaco que o fato de Ruth Escobar abrir espaço a outras linguagens artísticas, revela um pensamento incentivador e estimulador a tudo que se refere ao desenvolvimento cultural dos paulistanos. A música723 também fez parte da programação paralela do III FIT. Luis Enrique Mejia Godoy, acompanhado pelo grupo nicaraguense Mancotal, apresentou nos dias 8 e 9 agosto no Teatro Pixinguinha, mambos, boleros e salsas, um espetáculo que “ao final, fez quase toda a plateia [...] dançar como uma grande festa. Uma festa que não faltaram discursos e muita 720 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. Cicio Latino-Americano de Cinema - Cuba: Ustedes Tienen Ia Palabra - Direção: Manuel Octavio Gómes (1974), Giron – Direção: Manuel Herrera (1972); EI Hombre de Maisinicu - De Manuel Perez (1973), EI Otro Francisco - de Sérgio Giral (1975), Sin Parelé - Direção Humberto Solás; Nicarágua: Mujeres en Armas – Direção: Victoria Schultz; El Salvador: EI Pueblo Vencerá, EI Salvador: Another Vietnam? de Glen Silver - Tetê Vasconcelos, Deborah Shaffer - Tom Sigel Pam Yates; Panamá: Belice Vencerá - Direção de Pedro Rivera, Canto a la Patria que ahora nace. Direção de Pedro Rivera; Chile: El Recurso del Método e La Viuda de Montiel Direção de Miguel Littin; Brasil: Abrigo Nuclear - Direção de Roberto Pires - Roteiro de Orlando Senna e Roberto Pires - Pré-estreia nacional; Ciclo Teatro no Cinema: Molière (5 horas de duração) e 1789 de Ariane Mnouchkine, O Balcão, Woycek - Direção Giancarlo Cobelli; Filme sobre o Festival de Nancy; First Run Features (I Amostra de Filmes Americanos Independentes): Northern Lights - de J. Hanson/ A New Front Films Release, The War at Home - de B. Brown e G. Silber/ A New Front Films Release, The Wobblies - de Stewart Bird e Deborah Shaffer, Joe and Maxi - de Maxi Cohen e Joel Gold, The Dozens - de Cristina Dall e Randall Conrad, The Wizard of Waukesha - de Caterine Orentreich e Susan Brockman, Different Drummer: Elvin Jones - de Edward Gray, Rosie the Riveter - de Connie Field, Love it Like a Fool - de Susan Wengraf, Impostors - de Mark Rappaport - The Dark end of the street - de Jan Egleson; Seminários de Cinema: com a presença de Pastor Vega (Cuba), Pedro Rivera (Panamá) e João Batista Andrade (Brasil). Com a proibição da exibição dos filmes cubanos, a programação teve que ser alterada apressadamente com os acervos do Clube Cinema da Bahia e Instituto Goethe. III FIT. (Programa). São Paulo, 1981. Acervo do pesquisador. 722 EDWALD FILHO, O Estado de São Paulo, 16 ago. 1981, p. 38. 723 Consta na programação do III FIT os cantores cubanos Pablo Milanes Arias que ficou conhecido por manter uma posição crítica pelos erros cometidos na Revolução Cubana (1959) e Silvio Rodrigues Dominguez, contemporâneo de Milanes, fez parte da Nova Trota Cubana e também foi expoente contra o movimento revolucionário cubano. Durante a pesquisa não foi encontrada nenhuma reportagem referente as apresentações. 721 música”724. Mejia Godoy, compositor e intérprete da Nicarágua, participou ativamente na Frente Sandinista da Libertação Nacional, por isso suas “canções foram majoritariamente de denúncia e de protesto [...] seus temas lembram essa luta e cantam os logros da revolução assim como o cotidiano [...] do povo da Nicarágua”725. Atahualpa Yupanqui, cantor e compositor argentino, fez duas apresentações do show musical Uma Legenda, no Teatro Municipal, “suficiente para fazer o público, em pé, ao final do show, exigisse por duas vezes a sua volta”726. Fundado em 1º de janeiro de 1965, após a primeira ocupação militar da Palestina por Israel, o Conjunto Folclórico Popular Palestino se apresentou no Teatro Cultura Artística, nos dias 15 e 16 de agosto. Composto por cerca de cinquenta integrantes entre dançarinos, músicos e cantores. No palco, as danças folclóricas palestinas foram acompanhadas por instrumentos típicos: derbake (percussão), daf (espécie de pandeiro) e Kanun (instrumento de 73 cordas), simbolizando “a luta de um povo pela sua autodeterminação e a justeza de sua causa”727. 5.7 Da abertura ao encerramento. Novas perspectivas. A programação paralela do III FIT, apesar de conter uma gama de atividades culturais diferenciadas, diversos problemas com os espaços para as apresentações das intervenções, intervenção da censura e a falta de público, pela iniciativa de Ruth Escobar, buscou um diálogo com grupos de vanguarda internacional, a fim de gerar novas tendências teatrais no Brasil. O evento proporcionou à cidade de São Paulo a vivência de duas semanas de programação teatral diversificada. A mistura de culturas de diversos países, o encontro de encenadores, atores, atrizes, equipes técnicas e estéticas, num único evento, possibilitou o intercâmbio de informações, trouxe novos olhares ao fazer teatral. A realização do festival fez artistas de outros estados brasileiros dialogarem e conhecerem outras formas teatrais, pois “ela sabe que o festival atingiu seus objetivos, ao promover a troca cultural entre os diversos participantes e proporcionando ao público o contato com formas variadas de expressão teatral”728. No entanto, apesar dessa conquista, os jornalistas d´O Estado de São Paulo afirmaram que nesta edição Ruth Escobar teve um “prejuízo calculado em cerca de dois milhões de cruzeiros” 729. A exemplo das edições anteriores, de alguma maneira essa situação seria revertida, pois “o que mais lhe interessava [era] prestígio e credibilidade para seus novos empreendimentos”730, afirmaram os jornalistas. Neste sentido, os números de espectadores presentes em alguns espetáculos do III FIT expressam a adesão do público no evento que, consequentemente, projetou a imagem de Ruth Escobar: [...] 15 mil pessoas assistiram ao Festival. O cantor Ataualpa Yupanqui lidera os índices de bilheteria, com 2.273 espectadores; em seguida vem “Andalucia Amarga”, com 2.100; “A Prelude to Death in Venice”, tom 2.053; Luis Mejia Godoy, com 2.000; os três espetáculos de EI Galpon, com 1.720; Grupo Folclórico Palestino, com 1.500; “Eu quero Dizer Algo”, com 1.300; “No Natal a Gente Vem Te Buscar”, com 1.000; “Três Marias e uma Rosa”, com 1.300; e “Serena Guerrilha”, com 1.500 731. 724 MEJIA GODOY, O Estado de São Paulo, 16 ago. 1981, p. 38. III FIT. (Programa). São Paulo, 1981. 726 ATAHUALPA, O Estado de São Paulo, 16 ago. 1981. 727 A MILENAR, O Estado de São Paulo, 14 ago. 1981, p. 18. 728 ALMEIDA; IELO; MENGOZZI, O Estado de São Paulo, 16 ago. 1981, p. 38. 729 ALMEIDA; IELO; MENGOZZI, O Estado de São Paulo, 16 ago. 1981, p. 38. 730 ALMEIDA; IELO; MENGOZZI, O Estado de São Paulo, 16 ago. 1981, p. 38. 731 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 725 Ressalto que os dados acima não contabilizam os espectadores presentes em outros espetáculos como Quarenteine, Diabladas de Oruro, De como Santiago Apóstolo Pôs os Pães na Terra, Ustedes Tienen la Palavra, Ogbanje: Nascido para Morrer, La Madriguera e Bão, assim como não foi somada a quantidade de público presente nas intervenções e nos espetáculos de rua. A programação do festival foi conquistando um público cada vez maior, as realizações chegaram na última semana a lotações esgotadas. Para Clóvis Garcia, “o interesse despertado se refletirá no nosso movimento teatral, como consequência da movimentação de espectadores que tiveram renovado seu interesse pelo teatro”732. O interesse do público pelos espetáculos foi tão grande que alguns grupos internacionais estenderam a estadia no Brasil, a saber: Plan K, Cipe Lincovsky na Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar e La Cuadra de Sevilha no Teatro Bandeirante em São Paulo. Posteriormente, esses mesmos grupos integraram a programação cultural da cidade do Rio de Janeiro, juntamente com A. Comuna e o Conjunto Folclórico Popular Palestino. Por outro lado, alguns jornalistas e profissionais que acompanharam a programação do III FIT declararam que o evento não estava em sintonia com a vanguarda teatral internacional. Os avaliadores disseram que “sobre o III Festival, o mínimo que se pode dizer no tocante a propostas estéticas, é que ele foi muito comportado. Nada de vanguarda ou soluções revolucionárias que mexessem com a cabeça do público e das pessoas ligadas ao teatro”733. Ruth Escobar rebateu, dizendo que: “convidei a Alemanha, o Freis Theater, de Munique, boicotado na Alemanha mesmo, porque o texto que trariam era de um autor da Alemanha Oriental. Trouxe La Cuadra, da Espanha, por que acho um dos mais importantes grupos de teatro”734. Outros grupos constavam na listagem de convidados da produtora, como Bob Wilson, Tadeuz Kantor (Cricot 2), e Ariane Mnouchkine (Theatre du Soleil)735 que “não veio por problemas pessoais”736, afirmou a produtora. Independentemente dos motivos que justificaram a ausência desses encenadores no III FIT, ela tinha plena consciência do caminho que devia tomar para colaborar com os artistas brasileiros. Ruth Escobar tinha uma percepção aguçada na busca das experiências teatrais mais significativas no âmbito internacional. Apesar da avaliação desfavorável dos convidados da Revista de Teatro, em relação à programação concebida por Ruth Escobar, para o crítico Yan Michalski, a encenação norte-americana Quarenteine, foi “para o teatro brasileiro, tão pobre hoje em dia em propostas formais inovadoras [...] um exemplo de como se pode descobrir um caminho expressivo inédito com recursos relativamente reduzidos”737. Ainda que o festival tenha enfrentado uma série de problemas, refletindo diretamente na programação do evento, isso não tirou o mérito de Ruth Escobar, pois a capacidade de realizar uma intensa programação teatral, durante quinze dias em condições adversas diz muito a respeito de seu empreendedorismo. Para Ilka Marinho Zanotto “a importância maior do festival advenha do clima fervilhante de confraternização e do poder de agitar ideias e opiniões, fatos que respondem positivamente pela sua dinâmica empresarial”738. Por fim, o ato de organizar três festivais internacionais significou correr riscos, fazer escolhas e trilhar caminhos que exigiram de Ruth Escobar, coragem para enfrentar críticas e a 732 GARCIA, O Estado de São Paulo, 16 ago. 1981 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5, 1981. 734 MAGALDI, Jornal da Tarde, 22 ago. 1981. 735 No programa oficial do III FIT constava a presença da diretora francesa. 736 MAGALDI, Jornal da Tarde, 22 ago. 1981. 737 MICHALSKI, Jornal do Brasil, 09 ago. 1981. 738 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 16 ago. 1981, p. 38. 733 falta de financiamento. Sua postura perante o Teatro Brasileiro foi, indiscutivelmente, a de colaboração ao enriquecimento profissional e estético dos artistas e grupos teatrais brasileiros, pois para ela, o “teatro tem possibilidade de abrir novas correntes de expressão urgente no contexto do mundo contemporâneo”739. De acordo com Mariângela Alves de Lima, “o Brasil já aproveitava a fresta para mudar de rumo e enveredar pela investigação estética”740. 739 740 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 16 ago. 1981, p. 38. LIMA, 1994, p. 40. 5.8 Dossiê de fotos A Organizadora Amir Haddad e o grupo Tá Na Rua Programa do III FIT CAPÍTULO VI – A RESISTENTE N o fim da década de 1970, Ruth Escobar iniciou uma fase de defesa dos direitos humanos aliada à pratica da liberdade de expressão. Estes dois temas são foco de reflexão desse capítulo. Para isso, ela participou na luta pela anistia de presos políticos, sendo mais que uma militante, foi representante de comitês em eventos internacionais, proferiu palestras acerca do cerceamento da liberdade de pensamento, negociou liberdades com autoridades. Ruth Escobar gerou passeatas, protestos, eventos e, em todos eles, foi vigiada. Em meio às discussões que eram feitas sobre os direitos humanos no Brasil, Ruth aproveitou a oportunidade, montando espetáculos teatrais para dialogar e alertar a população a respeito desse assunto: Revista do Henfil (1978) abordou a anistia de forma direta, sem metáforas. Em cena, palavras proibidas. Fábrica de Chocolate (1979) revelou os bastidores das torturas praticadas durante a ditadura militar brasileira e, no mesmo ano, Caixa de Cimento mostrou o poder de repressão do governo em voga. Essa “trilogia” de encenações tinha como objetivo corroborar na discussão e na reflexão à criação da Lei da Anistia, assim como na defesa dos interesses democráticos que se avizinhavam no Brasil. Ruth foi uma defensora de causas humanitárias, principalmente quando o assunto se relacionava ao cerceamento dos direitos humanos, no qual a ditadura insistia pôr em prática durante o regime militar. Por outro lado, como abordado nos capítulos anteriores, Ruth se obstinava a criar mecanismos de resistências em prol de uma democracia em que a autonomia e o livre arbítrio tivessem o papel principal. 6.1 A participação na luta pela anistia Um importante movimento de luta em prol da Anistia, aos perseguidos políticos741 pelo regime militar brasileiro, começou a estruturar-se no início de 1975, tendo à frente Terezinha Zerbine. Ela foi, segundo Cassiano Gedoz a “criadora e primeira presidente do Movimento Feminista pela Anistia” 742 (MFPA). Coube às mulheres o papel de iniciadoras do movimento que reivindicou anistia às vítimas da repressão. Para avançar rumo à efetivação dessa proposta, foi preciso a adesão de inúmeros outros segmentos da sociedade, como os familiares, amigos e advogados dos presos e exilados, cientistas743, intelectuais, artistas e políticos. Tal como colocou Gedoz: […] “o Movimento Feminino pela Anistia conseguiu de fato articular-se nacionalmente apenas quando a própria luta pela anistia articulava-se nesse mesmo âmbito com De acordo com Roberto Ribeiro Martins, houve no Brasil três “ondas” punitivas: entre 1964 a 1965, com o Decreto AI-1 e AI-2 que “cassou” 2.985 brasileiros; entre 1966-1967, ocorreu a segunda e atingiu 305 cidadãos com o AI-3 e AI-4: e por fim, 1.583 pessoas tiveram seu direitos cerceados entre 1968-1977, com o AI-5. MARTINS, 1978, p. 119-127. 742 GEDOZ, 2012, p. 130. 743 Cientistas e intelectuais lançam, em 1976, um manifesto por liberdades democráticas exigindo Anistia, durante a realização da 28ª Reunião da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), em Brasília. Goffredo da Silva Telles leu o manifesto “Carta aos Brasileiros” num ato público diante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, em 1977. Esse manifesto foi traduzido para vários idiomas. 741 a participação dos Comitês Brasileiros pela Anistia, e amplos apoios do MDB, da Igreja Católica, da OAB, ABI, entre outros”744. A campanha pela “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” foi coordenada por um grupo formado por intelectuais, artistas, jornalistas, políticos progressistas, religiosos de vários credos, sindicalistas e estudantes, no final dos anos de 1970, denominado Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). Este foi o primeiro movimento nacional unificado e progressista contra a ditadura militar. Para colaborar com essa causa, no fim de 1977, Ruth Escobar foi procurada por um grupo de familiares de presos políticos e exilados, a fim de organizar um núcleo a favor da anistia denominado de Movimento das Mulheres Artistas pelos Direitos Humanos. Em meados de 1978745 ao ser entrevistada por um jornalista do Jornal do Brasil sobre os motivos que a levaram ao engajamento nessa causa, ela respondeu: “Senti também a necessidade de atuar em nível nacional. E hoje participo da seção paulista do CBA [Comitês Brasileiros de Anistia]. Acredito que a luta pela anistia deve ser iniciada pelos mais imediatos, como melhorar as condições carcerárias em todos os níveis e encontrar uma forma de fornecer passaportes a todos os Brasileiros exilados”746. Ruth Escobar que, até então, tinha uma atuação mais presente na cidade de São Paulo, passou a explorar outros terrenos de embate, principalmente no que dizia respeito à luta dos direitos humanos. Um dos fatores que pode ter levado Ruth Escobar a aceitar o convite, diz respeito a sua preocupação com os presos; observo que em 1972, em Lisboa, ela levou o espetáculo Missa Leiga na penitenciária desta cidade portuguesa. Neste mesmo ano, Ruth Escobar teve uma extensa agenda de participação em eventos em prol da anistia, agregando-se com outros manifestantes nas ruas e atuando na negociação com políticos nacionais e internacionais. Nessa luta, Ruth Escobar colocou à disposição seu teatro para a realização de reuniões, atos e protestos em prol da anistia no país. Foi em seu teatro, em 20 de março de 1978, que houve a aprovação em assembleia da criação do movimento nacional. Uma semana após, no dia 27, no mesmo local, aconteceu um ato público com o objetivo de criar um Movimento Nacional de Anistia com a articulação de diferentes entidades e pessoas. Nesse mesmo dia, Ruth Escobar “chegara de viagem do exterior naquela data e que durante a mesma estivera em contato com a totalidade dos Movimentos Internacionais pela Anistia, solicitando-lhes que trabalhassem em apoio ao Movimento Brasileiro pela Anistia”747, conforme consta no relatório do SNI. Também no Ruth Escobar, de acordo com um relatório do DOPS748, em 10 de abril de 1978, políticos, estudantes e familiares de presos políticos estavam presentes para realizar uma assembleia, com o intuito de formar uma entidade referente à “Anistia Geral aos Presos 744 GEDOZ, 2012, p. 140. De acordo com Helena Greco, “a data do surgimento dos CBAs pode ser estabelecida em fevereiro de 1978. O Comitê Brasileiro de Anistia do Rio de Janeiro, lançado oficialmente em 1 de fevereiro de 1978, foi o primeirão a ser criado, seguido de perto pelo Comitê Goiano de Anistia e Comitê Brasileiro de Anistia-BA (abril/1978); em maio vieram São Paulo, Londrina e Rio Grande do Norte; em junho foi a vez de Santos, São Carlos e Brasília. A partir da daí, o processo se precipita: na 1ª Reunião Conjunta dos Movimentos de Anistia do Brasil (Brasília, 5 e 6/agosto/1978) se apresentam 14 entidades e 11 estados: os CBAs do RJ, SP, DF, BA, MS, Feira de Santana-BA, GO, RS (Comissão Provisória), a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos /Núcleo Anistia e os MFPAs de SP, BA, PE, MG, RJ. No Encontro Nacional de Movimentos pela Anistia de Salvador (7 a 9/setembro/1978) além dos mesmos, comparecerem o Comitê Norteriograndense de Anistia, o Comitê Londrinense pela Anistia e Direitos Humanos/Seção CBA, o Movimento Matogrossosense pela Anistia e Direitos Humanos e os MFPAs de oito estados (SP, BA, MG, CE, PB, RS, SE e PE). GRECO, 2003, p. 88. 746 ANISTIA, Jornal do Brasil, 04 jul. 1978, p.4. 747 Processo ACE 114085.78. AN. 748 Processo 21Z -14-4581. APESP. 745 Políticos”. Complementando essa informação, consta noutro informe749, uma relação de entidades que se fizeram presente nessa reunião.750 O relatório do DOPS também registrou os cuidados tomados por Ruth Escobar para evitar que agentes “infiltrados” estivessem presentes na reunião: “na entrada da sala do teatro, a própria Ruth Escobar, solicitou documentos das pessoas não conhecidas como se costuma dizer entre eles, ‘os que não são da família’, em vista disso algumas pessoas foram barradas na porta, note-se que ela foi assessorada por alguns elementos que ficaram postados a seu lado”. Relendo esses documentos, fica-se impressionado com a agilidade e facilidade dos órgãos repressores em arregimentar pessoas para esse trabalho e como elas passavam despercebidas pela classe artística. Quem eram essas pessoas que os demais acolhiam como se “fossem da família”? Seriam colegas de profissão? Pessoas de bastidores? Enfim, tinha de ser alguém que os demais não pudessem imaginá-lo fazendo esse papel. Tanto que o relatório aponta que algumas pessoas foram barradas por Ruth Escobar e, talvez, pessoas que não tinham nenhuma ligação com esses órgãos. Enquanto isso, o infiltrado conseguiu estar presente na assembleia, elaborando um relatório detalhado do evento. Assumir a posição fiscalizadora na porta de entrada indicava que Ruth Escobar também vigiava os funcionários, que tinham o dever de comunicar às autoridades superiores sobre seus próximos passos, principalmente num assunto que atacava diretamente o regime militar brasileiro. Às portas fechadas, cerca de trezentas pessoas estavam presentes para discutir a formação de uma entidade, com o objetivo de apoiar àqueles que foram punidos pelo Estado. Dentre as primeiras propostas apresentadas pela mesa debatedora, coordenada por Ruth Escobar, destacou-se a escolha do nome da entidade; duas sugestões foram debatidas: Comitê Nacional de Anistia ou Movimento Brasileiro pela Anistia Geral e Irrestrita aos Presos Políticos, além da proposta da realização de uma manifestação pública para 18 de abril. Por ser um assunto polêmico e de interesse de várias pessoas, setores e categorias, provocou certo tumulto e, naquele momento, não chegaram a nenhum consenso sobre as propostas apresentadas. Assim, sem definição do nome da entidade, deliberou-se pela realização da manifestação em 12 de maio, sugestão que gerou vaias, mas a maioria não se opôs. Mas, de acordo com o relato policialesco751 “foi aprovado pelos Assembleistas que não haveria ato público, pois todos afirmaram que a data prevista dia 18-04-79, estaria muito próximo, e a Comissão Provisória de Luta pela Anistia ainda não teria estrutura suficiente para essa manifestação, e que a próxima reunião ficaria acertada para o dia 24-04-78 no mesmo local”. As discussões eram muitas, as dificuldades maiores ainda, mas, mesmo com divergências nos encaminhamentos, o movimento pró-anistia ganhou corpo e começou uma marcha que se tornaria irreversível. Com o seu envolvimento no movimento pela anistia, Ruth Escobar passou a ser alvo de vigilância constante dos órgãos fiscalizadores que a viam como importante articuladora dessa luta. No dia 24, a equipe do DOPS marcou novamente presença no Teatro Ruth Escobar. A reunião começou às 20h15 havendo cerca de sessenta pessoas. O agente registrou que o encontro visava ao objetivo “a formação da coordenação geral, e da comissão executiva do Movimento de Anistia” 752, mas, devido ao baixo quórum não foi possível eleger nenhuma das duas coordenações. Nesse encontro também foi lida a carta de 749 Processo 50Z-0-14-393. APESP. Tiveram representantes de: Comissão de Mães, Jornal Nós, Jornal Brasil Mulher, Jornal Versus, Sindicato dos Metalúrgicos, Sindicato SABESP, Sindicato dos Professores, Sindicato dos Bancários, DCE/USP, DCE/PUC, Psicologia/USP, Médicos residentes da Santa Casa, Médicos, curso de direito, arquitetura e urbanismos de Santos, Centro de Desenvolvimento da Mulher, Supletivo Equipe, Diretório XV de agosto, Comunidade de Cubatão, Padres da Zona Sul de São Paulo e vários grupos de teatro totalizando cerca de trezentas pessoas. 751 Processo 50Z-0-14-393. APESP. 752 Processo 50Z-0-14.405. APESP. 750 protesto escrita pelos presos de Itamaracá, além da elaboração de outra carta aberta à população e à imprensa em prol dos condenados pelo Estado. Em 13 de abril de 1978 foi produzido um relatório753 confidencial e secreto, contendo como assunto principal Atividades Subversivas: orientações da Amnesty International – Ruth Escobar. Este documento foi produzido a partir da cópia de uma carta (ou interceptada) de autoria de Gerald Thomas Sievers754 (na época, o encenador fazia parte do secretariado geral da Amnesty Internacional) que foi enviada a Paulo Cavalcanti Valente, em 23 de março de 1978. Abaixo transcrevo o trecho da correspondência em que Ruth Escobar foi citada: Temos tido muitas discussões ultimamente relativas ao movimento pro-anistia no Brasil, que cresce dia a dia. Ontem tivemos a visita de Ruth Escobar, atriz e produtora luso-brasileira e sem dúvida uma líder desse movimento, e os resultados de nossas conversas não poderiam ter sido mais positivos. Em julho, acontecerá no Brasil a 'semana da anistia' com participações estrangeiras e certamente com o nosso apoio e presença. Como diz a Ruth, e como se diz no Brasil, desta vez 'ou vai ou racha'. Como deve ser de seu conhecimento, presidente Carter estará em seu país na próxima semana e manterá uma esclarecedora conversa com Dom Paulo Evaristo Arns. Aliás, Ruth Escobar também tomará parte desse encontro, e se me permite uma sugestão, agora, mais do que nunca, é o momento de se enviar telegramas ou depoimentos ao governo americano, especialmente nas semanas que seguem a visita ao Brasil. O consenso no mundo sobre o Brasil já esta superior ao que já fôra com a visita do príncipe Charles e a de Geisel a Alemanha Ocidental, a imagem do milagre econômico' se concretizou. É importante nesse momento insistir no outro lado da questão, antes que ela se torne de vêz obsoleta nos olhos internacionais 755 (grifos do original). A carta é um excelente documento que nos desvela os movimentos contra a ditadura brasileira e a luta pela anistia no país. Mas, para este trabalho interessa destacar o papel de Ruth Escobar, apontada como uma líder nessa luta conforme o mesmo documento. Tais palavras são frisadas no relatório policial-confidencial concluindo ser Ruth Escobar “uma figura importante para a consecução dos objetivos da Amnesty” e que ela servia de “ligação entre os organismos internacionais, famílias de exilados e os advogados destes”. Para fundamentar sua posição, o responsável utilizou de informações anteriores que constavam num prontuário de trinta e sete páginas756 sobre a produtora, no qual fez questão de ressaltar o comportamento pernicioso da mencionada alienígena:757 que a mesma iniciara sua atividade no Brasil, quando ainda com visto temporário, fundando uma revista intitulada PICARETAGEM; que obtivera a primeira permanência no Brasil condicionada a apresentação, dentro do prazo de 60 dias, do atestado de antecedentes criminais, o que deixou de apresentar; 753 Processo BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1325. AN. Gerald Thomas, encenador brasileiro. 755 Carta anexada ao processo BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1325. AN. 756 No decorrer da pesquisa não foi encontrado esse longo prontuário, somente históricos curtos e repetitivos. 757 Existem motivos históricos para a utilização dessa palavra nos relatórios do DOPS. Segundo o pesquisador Celso Castro: “A percepção de um ‘perigo comunista’ no Brasil passou por um processo de crescente ‘concretização’, até atingir seu clímax com a Revolta de 1935. Assim, após a Revolução Russa de 1917, tiveram lugar no país a criação do Partido Comunista do Brasil (depois Partido Comunista Brasileiro – PCB) em 1922; a conversão do líder "tenentista" Luís Carlos Prestes ao comunismo, em maio de 1930, e sua ida para a União Soviética, no ano seguinte; e o surgimento, em março de 1935, da Aliança Nacional Libertadora, dominada pelos comunistas. Se em 1917 o comunismo no Brasil era visto ainda como um perigo remoto, "alienígena" e "exótico", aos poucos ele foi se tornando muito próximo. CASTRO, 2012. 754 que pediu e obteve, por mais de uma vez, 2as vias de Carteiras Modelo 19; que por suas atividades subversivas o DPF, em janeiro de 1969, solicitara o seu enquadramento no AI-5; que a nominada e outros elementos foram presos em fevereiro de 1969 (segundo publicação do jornal "A RESISTÊNCIA"); que, usando o codinome de "CRISTINA", trabalhou para a organização APML [Ação Popular Marxista-Leninista]; que é (ou foi) filiada ã "RESISTÊNCIA ARMADA NACIONAL – RAN”;758 que mantinha ligações com o "MOVIMENTO NACIONALISTA REVOLUCIONÁRIO-MNR"; que em 20/03/58 foi notificada a deixar o País; que tem entrado e saído do País inúmeras vezes, pairando dúvidas sobre o seu RG para obtenção de nova Cêdula (Sic)de Identidade Modelo 19, em 17/01/67; que não foi encontrado em sua documentação registro de Deferimento de Permanência no Brasil, constando apenas em despacho, datado de 07/12/61, com assinatura ilegível da autoridade, mencionando despacho ministerial (MJ); que a 15/06/77 foi, juntamente com outros, detida pelo DEOPS/SSP/SP; que, a 02/04/68, foi ouvida em AUTO DE QUALIFICAÇÃO E DE INTERROGATÓRIO, na sede da então Delegacia Regional do DPF em São Paulo; que prestou declarações, em 06/01/77, na Coordenação Regional Policial da SR/DPF/SP; que em 1968 tivera curso um processo de expulsão da ádvena (sic) em apreço, sem que produzisse os devidos efeitos por que a expulsanda tem filhos brasileiros; que, em 06/12/77, depôs no Inquérito Policial nº 10033/DOPS/SR/DPF/SP, instaurado para apurar atividades subversivas, no meio estudantil, na PUC/SP e nos Atos Públicos de cunho esquerdista, ocorridos na capital daquele Estado, no 2º semestre de 1977, ficando apurado que a depoente tem se válido da condição de profissional do teatro, para afrontar as autoridades constituídas, repudiando o regime do governo em vigor; que a citada atriz participou, ativamente, de movimentos tidos como subversivos, tais como passeatas, festivais internacionais etc, assim como subscreveu manifestos, sendo uma das signatárias do memorial de escritores, jornalistas, professores, cineastas, músicos e artistas, endereçado ao Senhor Ministro da Justiça; que dia 10/06/77, antes do início do espetáculo "TORRE DE BABEL", a artista surgiu no palco para pedir ao público que assinasse dois manifestos: o primeiro solicitando a revogação da Portaria 427, do Ministro da Justiça, pertinente a Censura de livros e publicações estrangeiras destinados a circulação no Brasil; o segundo, a ser enviado ao Presidente da República, solicitando a demissão do Ministro da Justiça, sob alegação do mesmo estar contra a cultura; que a atriz-empresária "procura demonstrar junto ao meio teatral, que é sempre recebida pelos Ministros GOLBERY e NEY BRAGA". que solicitou não só ao Ministro Golbery do Couto e Silva, como, ainda, ao Coronel Moacyr Coelho que autorizassem a liberação, na medida do possível, de algumas peças do ator Plínio Marcos759. Os pontos destacados pelo responsável do relatório trazem informações importantes a respeito da trajetória de Ruth Escobar e de como ela era vista pelos órgãos fiscalizadores. No entanto, apesar dos apontamentos constarem num documento oficial do Ministério da Justiça, 758 Em 20 de agosto Ruth Escobar foi chamada pela DPF para prestar esclarecimentos sobre sua suposta ligação com a Resistência Armada Nacional (RAN) do qual seu ex-marido Carlos Henrique Escobar também tinha sido acusado de participação (Ruth Escobar depõe na Polícia Federal, Folha de São Paulo, 21 de agosto de 1978, p. 4). Segundo a atriz “havia sobre a mesa um histórico que abrange, inclusive, minhas propriedades” “Disse a verdade: nem sabia da existência dessa organização”. POLÍCIA, Jornal do Brasil, 22 ago. 1978, p. 8. 759 Processo BR.NA.RIO.TT.0.MCP.PRO.1325. AN. deve-se relativizar as aferições inseridas nos documentos, visto que os mesmos também serviam de base para endossar a vigilância e, consequentemente, a punição. Como por exemplo, no decorrer dessa pesquisa, não foi encontrada nenhuma ligação de Ruth Escobar com a Resistência Armada Nacional (RAN) ou com o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e tampouco com a Ação Popular Marxista-Leninista (APML), movimentos de guerrilha contra a ditadura militar brasileira. No entanto, o diálogo entre a empresária e os integrantes ou até mesmo com as lideranças dessas frentes de esquerda, pode ter ocorrido, o que levou os agentes do DOPS associar seu nome a estes movimentos. Também não foi localizado durante a pesquisa, se ela tinha tido a pretensão de criar uma revista chamada Picaretagem. Em maio de 1978, Ruth Escobar iniciou a luta em prol da causa dos presos políticos Carlos Alberto Soares e Rholine Sonde Cavalanti760, condenados à prisão perpétua na penitenciária Barreto Campello, no Ceará. Para provocar maior comoção nacional, em virtude do isolamento total em que se encontravam há mais de dois anos, ambos se juntaram a uma causa comum que estava ocorrendo desde 17 de abril, nos presídios da Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco: uma greve de fome. De acordo com Roberto Ribeiro Martins, essa ação era “um dos instrumentos de luta dos presos políticos por melhores condições carcerárias”761. Para tentar ajudar nessa batalha, o Movimento Feminino pela Anistia começou a realizar ações a favor dos direitos humanos dos presos, visto que as autoridades pernambucanas haviam prometido, três vezes, solucionar a situação e não a cumpriram.762 Como forma de amenizar a situação dos presos políticos, Neide de Azevedo Lima representante do Movimento Nacional pela Anistia, Helena Greco do Movimento da Anistia em Minas Gerais, Abigail Paranhos, representante do Comitê Brasileiro da Anistia e Ruth Escobar, presidente da União Nacional pela Anistia, marcaram uma reunião com o governador de Pernambuco José Francisco de Moura Cavalcanti para interceder em prol dos condenados. Dentre os diversos argumentos utilizados pelas representantes em prol da anistia, Ruth Escobar disse-lhe: “é em seu Estado, no momento onde os direitos humanos estão sendo desrespeitados”, registrou o correspondente do Jornal do Brasil. O governador deu-lhes uma posição contrária à esperada: “aguardo a decisão da Justiça, sou apenas um cumpridor da lei. Não sou juiz nem executor da lei. Eu não tenho interesse em prejudicar ninguém, mas não discuto se a lei é boa ou ruim. Sou muito firme nas minhas decisões e nesse caso não posso fazer absolutamente nada, pois isso não é da minha alçada763. Insatisfeitas com o resultado da reunião com o governador pernambucano, elas enviaram uma carta à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), solicitando solução desse caso. Ruth, juntamente com Helena Grecco e Neide Azevedo Lima, reuniram-se com o juiz-auditor José Bolivar Regis, solicitando explicações por que nenhuma atitude havia sido tomada. Disselhes, o juiz-auditor, que “estava esperando o relatório [da] Superintendência do Sistema Penitenciário sobre as condições carcerárias de Itamaracá”764. Para que fosse realizado o despacho de uma nova medida, era preciso que os presos suspendessem imediatamente a greve de fome. Sobre a situação de Carlos Alberto e Rholine, o juiz ainda disse que se ambos parassem com o protesto, ele concederia “aos condenados à prisão perpétua um contato com seus companheiros durante cinco dias na semana [...] o que não significa a quebra do isolamento”, afirmou. 760 Ver A DISCORDIA. Folha de São Paulo, 01 mai. 78, p. 7. MARTINS, 1978, p. 136. 762 PRESOS, Folha de São Paulo, 05 mai. 1978, p. 8. 763 GOVERNADOR, Jornal do Brasil, 03 mai. 1978, p. 16. 764 GOVERNADOR, Jornal do Brasil, 03 mai. 1978, p. 16. 761 As promessas não foram cumpridas pelas autoridades, o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) organizou, no pátio interno da Faculdade de Direito da USP no Largo São Francisco, uma manifestação com o objetivo de lutar pela anistia no Brasil. Foram reunidas cerca de três mil pessoas que ergueram e afixaram faixas com os dizeres: “Pela anistia ampla e irrestrita”, “Abaixo a ditadura”765. Durante o ato público pela anistia, compuseram a mesa Ruth Escobar, representando o Movimento de Mulheres Artistas pelos Direitos Humanos, o advogado Luiz Eduardo Greenalgh, do Movimento Unidade e Participação dos Advogados e um membro da diretoria da União Estadual dos Estudantes. Greenalgh, em seu discurso disse que a manifestação tinha de “fazer ver às autoridades que vários setores representativos da sociedade Brasileira permanecem vigilantes em relação à situação carcerária dos presos políticos e exigir a efetiva quebra do isolamento a que estão submetidos”766. O advogado estava se referindo a Carlos Alberto Soares e Rholine Sonde Cavalanti, os quais permaneciam presos na Penitenciária Professor Barreto Campelo, em Itamaracá, no Recife. Ruth Escobar também se manifestou a respeito deles dizendo que “as medidas de pressão psíquica a que foram submetidos eram extensivas também aos seus familiares, na forma de toda sorte de humilhação na hora em que era feita a revista [...] Houve casos de familiares que foram ameaçados de prisão porque ousaram protestar contra algumas imposições feitas pela guarda do revistamento”767. O Jornal do Brasil registrou que Ruth, após ler um histórico de ambos os presos políticos disse: Rholine não teve advogado particular em nenhuma fase do julgamento e que em vários processos contra Carlos Alberto não havia, nos autos, depoimentos seus narrando os fatos de que era acusado. Disse ainda que os presos eram proibidos de ler jornais e revistas como Veja, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Movimento e que os únicos permitidos eram o Diário de Pernambuco e Jornal do Comércio, cujas matérias impróprias eram recortadas.768 Após negociação com as autoridades e diversas promessas, Ruth anunciou diante de sua plateia: “Cumpre, entretanto, ficarmos vigilantes na adoção das medidas anunciadas. Promessas já não adiantam. Fiscalizaremos o cumprimento das medidas e prometemos em nome do Comitê Brasileiro pela Anistia em São Paulo, não esmorecer na luta pela anistia e nos direitos dos presos políticos”769. Como forma de dar maior volume à discussão a respeito da anistia770 no Brasil, Ruth Escobar no II Ciclo de Debates sobre Conjuntura Nacional771, realizado em seu teatro, em 22 de maio de 1978772, colocou como temática: Direitos Humanos e a Transição para a 765 ATOS, Folha de São Paulo, 11 mai. 1978, p. 12. ATOS, Folha de São Paulo, 11 mai. 1978, p. 12. 767 ATOS, Folha de São Paulo, 11 mai. 1978, p. 12. 768 GREVE, Jornal do Brasil, 11 mai. 1978, p. 17. 769 GREVE, Jornal do Brasil, 11 mai. 1978, p. 17. 770 No processo 50Z-130-5187 do APESP, existe um histórico sobre a anistia e diretos humanos entre o período de 1892 a 1978. 771 Dia 29/05 serão discutidas “As Opções Políticas dos Empresários” com a participação do ex-ministro Severo Gomes, do professor Fernando Henrique Cardoso, Eduardo Suplicy, do ministro Mário Henrique Simonsem. BEVILLACQUA, Folha de São Paulo, 22 mai. 1978, p. 4. Ruth também convidou os empresários Kurt Mirow e Roberto Konder Bornhausen 772 Consta no relatório da Divisão de Informações que no Teatro Ruth Escobar houve a distribuição do panfleto Direitos Humanos e Evangelização, livreto Violência Contra os Humildes, venda do jornal O Refletor – órgão do Sindicato dos Artísticas (sic) e Técnicos em Espetáculos de Diversões Públicas de São Paulo. Estavam angariando fundos para formar uma caravana com destino à Brasília a fim de tratar de assuntos de interesse da classe e a venda da revista Apesar de Tudo – órgão da UNE. 766 Democracia.773 Novamente, os fiscais do DOPS estavam no Teatro Ruth Escobar para observar a movimentação do que estava ocorrendo no interior daquele local, principalmente as declarações proferidas pelos convidados e as futuras ações que poderiam desencadear desse evento. Neste encontro, Bicudo declarou que “com o advento do AI-5 originou-se toda sorte de arbitrariedades; que o habeas-corpus que é um direito de todo o cidadão deixou de ser aplicado; que a Polícia tornou-se assassina e citou o Esquadrão da Morte; que manifestações pacíficas são violentamente rechaçadas. Disse, por fim, que são taxados como subversivos elementos que lutam pela Democracia”774. Ainda que registrado sucintamente, o depoimento de Bicudo no relatório traz um posicionamento convicto e contrário ao governo militar e suas decisões arbitrárias. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Bevillacaqua também afirmou que: O AI-5 é um ato que fere os princípios contidos naquela Carta; que valendo-se deste Ato, as autoridades comentem toda sorte de injustiças, citando como exemplo o caso do Capitão Sergio, do Parasar [Esquadrão Aeroterrestre de Salvamento da Força Aérea] que foi injustamente punido por ter recusado a cumprir ordens assassinas que deveria ser levada a cabo por sua unidade a qual tem por finalidade única se prestar a serviços humanitários. Disse que se o Capitão aceitasse a ordem emanada de uma autoridade insana, haveria um grande derramamento de sangue e com consequência desastrosas para a Revolução que alijou de altos postos elementos comunistas. Por fim disse que as autoridades tem um medo injustificável do comunismo e que não é preciso recorrer ao assassinato para se salvanguardar-se (sic); que seria bem mais barato e seguro legalizar o PCB, o que naturalmente teria um estatuto, e seria então bem melhor controlado pelas autoridades; que o comunismo na clandestinidade é bem mais perigoso doque (sic) na legalidade775. O caso do Capitão Sérgio, exposto na fala de Bevillacqua, diz respeito a um plano mirabolante, elaborado pelo brigadeiro João Paulo Burnier e não executado pelo Capitão. O intento previa a execução de cerca de cem mil pessoas, por meio da explosão de um gasômetro e da represa do Ribeirão das Lajes, no Rio de Janeiro, em 1968. Todo esse planejamento tinha por objetivo atribuir a “responsabilidade pelos atentados [...] aos comunistas. Para quem - como os radicais de direita - buscava um pretexto para dar início à caça às bruxas, nada mais diabolicamente perfeito”776, lembrou o escritor Zuenir Ventura. O caso também ficou conhecido como “Atentado ao Gasômetro” e sua execução não foi até o fim, porque “um militar, sem motivação ideológica ou partido político, impediu a sua execução: o capitão paraquedista Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, que, 20 anos depois, ainda sofre as 773 Neste debate estavam presentes o general Peri Bevillacqua e o ex-procurador da Justiça Helio Bicudo ambos com uma trajetória de embate junto à ditadura militar, e Jorge Gregori, na época, presidente da Comissão de Justiça e Paz e defensor dos direitos humanos desde a década de 1950. Bevillacqua fez parte do Superior Tribunal Militar (STM) e, depois do AI-5, em virtude de declarações que contrariavam os militares, principalmente sobre a necessidade da anistia, foi expulso do STM. Em 1978, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, declarou que para a redemocratização do Brasil, se fazia necessário tomar três medidas: “a revogação dos decretos conhecidos como Pacote de Abril, a revogação do AI-5 e a anistia política”. Posteriormente, filou-se ao MDB. Bicudo, em 1971, como procurador da justiça do Estado de São Paulo, denunciou e combateu o Esquadrão da Morte. Segundo Cassiano Ricardo Martines Bovo, esse era um “grupo de policiais civis (delegados, investigadores etc.) que inicialmente tinham o objetivo de vingar a morte de policiais mortos. Geralmente para cada policial morto dez marginais eram executados, na maior parte dos casos com sinais de tortura” 773. No entanto, ao longo da investigação, Bicudo percebeu que este grupo estava “acobertado por autoridades policiais, militares e governamentais em âmbito federal e estadual” afirmou Bovo. 774 Processo 50Z-0-14.411. APESP. 775 Processo 50Z-0-14.411. APESP. 776 VENTURA, 2008, p. 125. consequências de seu ato heroico”, pontuou Ventura777. Ainda no debate ocorrido no Teatro Ruth Escobar, um jornalista da Folha de São Paulo registrou outra declaração de Bevillaqua a respeito do golpe militar: A Revolução de 64 não existe mais. Ela foi totalmente desvirtuada. O que foi feito no movimento de 31 de março de 1964 não chamo de revolução porque não propriamente uma revolução. Não foi também uma contra-revolução porque não chegou a desencadear outra. Então foi uma anti-revolução. Nesse debate, o general também defendeu a anistia aos presos políticos e reivindicando o retorno ao Estado de Direito778. Em 31 de julho779 de 1978, o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) realizou, no Plenário da Câmara Municipal de São Paulo, uma vigília cívica contra a invasão da redação do jornal Versus e a prisão de seis pessoas em Brasília, também em virtude de atentados do jornal Em Tempo780, de Curitiba e Belo Horizonte. De acordo com a nota publicada na Folha de São Paulo, na mesma data da vigília, “o CBA pretende reivindicar a imediata liberação dos presos políticos de Brasília, que completam nove dias em regime de incomunicabilidade”781. Na ocasião estavam presentes Raul Cortez, Eva Vilma, Paulo César Pereio, Lélia Abramo, Ricardo Bandeira e Ruth Escobar, porta-voz da leitura de uma carta escrita por Henfil, dirigida ao Senador Nelson Carneiro, juiz de direito da 5ª Vara de Família da cidade: O Sr. Ato Cinco e a Sra. Nação Brasileira, ambos Brasileiros, casados. Ele residente na Praça dos Três Poderes, Distrito Federal e ela prendas domésticas, residente no Continente Americano, Latitude Sul, vem requerer a Vossa Excelência que se digne deferir seu divorcio litigioso por incompatibilidade de gênio. Observadas as formalidades legais e nos termos que se seguem: 1º - Os suplicantes são casados ha nove anos pelo regime de exceção de bens conforme certidão inconstitucional anexa; 2º - O casal possue 110 milhões de filho, de / acordo com as certidões de nascimento anexadas a este instrumento; 3º - Os filhos do casal ficarão sob a guarda da mãe, não podendo o pai nunca mais visita-los quando lhe aprouver, nem nos fins de semana e jamais nas férias escolares; 4º - A suplicante abre mao do seu direito de pensão alimentícia por dispor de meios próprios e suficientes, digo, por dispor de meios próprios de subsistência como proprietária de milhões de quilometros quadrados; 5º - Para manutenção do pai a mae e seus filhos concordam em fornecer-lhe uma pensão alimentícia de oito senadores, cem deputados e trinta e cinco vereadores anuais; 6º - A suplicante continuara usando seu nome de solteira, Nação Brasileira; 7º - Os suplicantes possuem dois bens em comum e que são uma divida externa de 30 bilhões de dólares e o deputado Zezinho Bonifácio que será leiloado em hasta pública (sic) e / como nenhum interessado apareça sera entregue a tutela do Sr. Idi Amin Ada, pai espiritual do referido Zezinho; 8º - Homologado o presente pedido de divórcio, os suplicantes requerem que seja determinada a expedição do ofício para averbação do mesmo no registro civil, bem como fornecimento de certidão em duas vias. Pede deferimento do Iapoque ao Chui. 777 VENTURA, 2008, p. 125. “A REVOLUÇÃO, Folha de São Paulo, 23 mai. 1978, p. 5. 779 Em 11 de julho de 1978 (Folha de São Paulo, p.23), o Teatro Ruth Escobar foi cedido a plataforma de oposição à diretoria do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Purificação e Distribuição de Água CETESB E SABESP para a luta de direitos trabalhistas: abono de 20% nos salários e direito de greve. 780 A respeito desses dois jornais, ver LOPES, 2007. 781 VIGÍLIA, Folha de São Paulo, 31 jul. 1978, p.5. 778 15 de julho de 1.977 Pelo Sr. Ato Cinco assinam em cruz e pela Nação Brasileira, Henfil782. Conhecido por sua produção de histórias em quadrinhos e charges com personagens que representavam seu posicionamento político contra a ditadura militar, o texto de Henfil retrata, em seu bojo, em tom satírico e debochado, a situação em que se encontravam os cidadãos brasileiros: abandonados por um governo que não sabia gerir seu próprio país. Henfil deixa, claramente expressa o que é a incompatibilidade de se viver em um país onde o AI-5 assume a responsabilidade de colocar “ordem e progresso” e “sustentar” a nação. Ao utilizar a família como metáfora para manifestar seu pensamento político, o cartunista, nesse breve texto, retratou o descontentamento de muitas pessoas que estavam fartas desse “casamento” e reivindicavam divórcio para começar um novo “ciclo de vida”. Em 28 de agosto de 1978, o Teatro Ruth Escobar foi local de encontro para novo protesto contra os atentados sofridos pelo jornal Em Tempo. Nesse protesto, a ABI publicou uma nota dizendo que “a resposta para esses atentados não deve se limitar as ações jurídicas em curso. Torna-se (sic) necessário que toda a população se uma em uma resposta à violência do terror”783. Na mesma da página do jornal Folha de São Paulo, outra nota chama atenção às novas ameaças ao jornal Em Tempo: “Ou Em Tempo acaba ou nós acabamos com o Em Tempo. E você vai junto. CCC – Ala dos 233” A carta foi recebida pelos jornalistas Reinoldo Atem e Paulo de Sá Brito784. Após diversas manifestações, atos públicos e protestos, em 05 de novembro de 1978, aconteceram, no Teatro Ruth Escobar, o I Congresso Nacional pela Anistia785. Para convidar entidades e sociedade civil foi enviada uma carta convocatória786 em que eram estabelecidas duas categorias787 e seus respectivos grupos de trabalho, juntamente, com a Carta de Salvador788, elaborada com as diretrizes das discussões do evento. Além da estratégia de comunicação adotada pelo CBA, que resultou na presença de mil pessoas789, fica evidente que havia uma necessidade da sociedade brasileira em debater o assunto. Dentre as pessoas registradas pelo DOPS790, estavam presentes autoridades nacionais 782 Processo 50-Z-0-14720. APESP. EM SÃO PAULO, Folha de São Paulo, 25 ago. 1978, p. 7. 784 “EM TEMPO”, Folha de São Paulo, 25 ago. 1978, p. 7. 785 A abertura do evento aconteceu no Teatro da Universidade Católica (TUCA). No evento foi apresentada uma listagem de mortos e desaparecidos pós 1964. Ainda que incompleta, a quantidade de nomes que apareceram na relação é significativa: 60 banidos, 197 mortos e/ou desaparecidos. A listagem pode ser consultada no processo 50Z-130-5184. APESP. 786 Processo 50Z-130-5214. APESP. 787 A) Os atingidos: 1) Aposentados e seus familiares; 2) Cassados e seus familiares; 3) Familiares de banidos e exilados; 4) Familiares de desaparecidos e mortos; 5) Familiares de presos políticos e ex-presos políticos; 6) Instituições Científicas e Universidades; B) Profissionais: 1) Advogados; 2) Arquitetos; 3) Artistas; 4) Bancários; 5) Estudantes; 6) Jornalistas; 7) Médicos; 8) Mulheres; 9) Operários; 10) Parlamentares; 11) Professores; 12) Setores da Igreja. Processo 50Z-130-5214. APESP. 788 A carta na íntegra pode ser consultada no processo 50Z-130-5213. APESP. 789 UM MANIFESTO, Folha de São Paulo, 06 nov. 1978, p. 5. 790 Processos 50-Z-130-5219, 50-Z-130-5218 e 50-Z-130-5217. APESP. Luiz Eduardo Grenhauld, que presidiu os trabalhos, Lélia Abramo, Ruth Escobar, Margarida Alves Fernandes, Cláudio Abramo, Mario Schemberg, Mário Pedrosa, Pedro Tadei da Associação dos Arquitetos de São Paulo, Ubiraci Dantas de Oliveira representante dos grevistas que não concordaram com o acordo, Caio Prado, Sergio Buarque de Holanda, José Roberto Manesco, Marcelo Barbiere, Manoel Moraes do Estado do Pará. Ainda deve-se mencionar a presença dos representantes dos italianos Lélio Basso e Carlo Fracazani e dos franceses Louis Joinet (juiz francês), Etiene Bloch (primeiro juiz de apelação de penas do Tribunal Superior de Versalhes e presidente do Comitê de Solidariedade França-Brasil, André Jacques (representante do Comitê Francês da Liga pelos Direitos dos Povos), Bernard Weber. 783 e internacionais. Dentre elas, o representante da Comissão Jurista de Genebra Paul Gully Hart, declarou que o Congresso Brasileiro pela Anistia “é uma consequência da luta clandestina e o ponto de partida para uma luta que agora passa a se desenvolver à luz do dia”791. O evento teve a participação de importantes entidades nacionais e internacionais, possibilitando a troca de informações e experiências em seus respectivos contextos, além de liberar àqueles, cujos familiares sofreram com a anistia e ex-presos políticos, de expressarem suas opiniões e compartilharem suas dores. De acordo com o relatório “toda a equipe de representantes estrangeiros, tiveram atuação muito ativa dentro e fora do Congresso pela Anistia, todos estão comprometidos em divulgar na Europa, uma campanha contra o governo brasileiro, o ponto básico da campanha será críticas à Lei de Segurança Nacional792” Como de praxe, durante o congresso foram lidas moções de diversas entidades contra o governo militar, que persistia em infringir os direitos humanos e, no final do congresso, foi lido um Manifesto à Nação e um Resumo das Resoluções do Congresso Nacional pela Anistia. De acordo com as informações contidas no relatório “entre as moções lidas a que mais foi aplaudida foi o Resumo das Resoluções do CNA, feita pelo operário Ubiraci Dantas de Oliveira, também, muito aplaudido o metalúrgico Clóvis de Moura (Foi um verdadeiro delírio os aplausos, em pé, em demonstração fanática)”. Após a realização do 1º Congresso pela Anistia, no início de dezembro de 1978, Ruth Escobar continuou sua luta pela anistia e, juntamente com Pompeu de Souza, enviaram um ofício ao Ministro da Justiça e das Relações Exteriores como representantes do Movimento Feminino pela Anistia e o Comitê Brasileiro pela Anistia “pedindo interferência do governo em favor de brasileiros que se encontrem presos no Uruguai e na Argentina”793. No mesmo ofício, ambos ainda solicitaram a intervenção do governo federal no episódio do sequestro de Lilian Celiberti Casarieigo e Universindo Diaz, em Porto Alegre. Em nota enviada à imprensa, o Ministro da Justiça Armando Falcão não deu explicações sobre o fato ocorrido na cidade gaúcha, dizendo que não se pronunciaria a respeito do caso. Logo após o evento na capital mineira, a empresária viajou para Portugal, Itália, Holanda, Inglaterra e França para encontrar líderes políticos que também reivindicavam a anistia para presos políticos, assim como alinhavar a presença do Brasil na Conferência Internacional de Anistia em Roma. A presença de Ruth nessa conferência foi registrada pelo jornal L´Unitá, em junho de 1979: “Particular emoção provocou a homenagem que a estudiosa brasileira de teatro, Ruth Escobar, prestou à memória de Lelio Basso e, na sala completa de participantes, um minuto de silêncio na qual foi prestado homenagem às vítimas da ditadura. Avisou a todos os presentes a dureza da tarefa que ainda aguarda aqueles que lutam por um Brasil livre e democrático794. O debate sobre a anistia no Brasil era urgente, por isso, no início de 1979795, Ruth Escobar, novamente, marcou presença na segunda reunião em Belém do Pará, da Comissão 791 ADVOGADO, Jornal do Brasil, 03 nov. 1978, p. 4. Processo 50Z-130-5216. APESP. 793 APELO, Folha de São Paulo, 05 dez. 1978, p. 6. 794 No original: Particolare emozione há provocato l'omaggio che la studiosa brasiliana di teatro, Ruth Escobar, ha rivolto alla memoria di Lelio Basso e, nella sala colma di partecipanti, il minuto di silenzio con il quale è stato reso omaggio alle vittime della dittatura ha fatto avvertire a tutti i presenti la durezza del compito che ancora attende chi si batte per un Brasile libero e democratico. CRESCE, L´Unita, 29 giugno 1979, p.14. 795 Nos primeiros dias de 1979, Ruth fez uma participação especial no show de Elis Regina, juntamente com Rita Lee, João Bosco, Adoniram Barbosa e o conjunto de Cesar Camargo Mariano, nos dias 1º e 2º de janeiro de 1979, e que foi transmitido pela emissora de TV Rede Bandeirantes. Em 20 de fevereiro, o SNT divulgou a lista dos vencedores do Troféu Mambembe de 1978 sendo Ruth Escobar escolhida como melhor produtora/empresária por Revista do Henfil. Em 18 de abril de 1979, Ruth Escobar, Henfil, Chico Buarque e Edgar da Matta Machado foram 792 Executiva Nacional dos Comitês Brasileiros pela Anistia796, para organizar o II Congresso Nacional pela Anistia a ser realizado em novembro de 1979. Com a participação de representantes da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, além de integrantes do Movimento Feminino pela Anistia de Mato Grosso e Minas Gerais, este encontro deliberou por: “realizar uma caravana rumo à Brasília para entregar ao Congresso Nacional a Carta de Belém que exigia a anistia ampla, geral e irrestrita. Outra decisão foi a solicitação de que o dia 18 de abril797 fosse transformado no Dia Nacional pela Anistia e a criação da Jornada Nacional pela Amazônia”798. Aproveitando a viagem ao nordeste do país, Ruth Escobar tentou visitar os presos políticos em Recife, mas foi impedida pelo juiz-auditor Antônio da Silveira Rosa. De acordo com o depoimento de Ruth ao Jornal do Brasil, ele “a tratou grosseiramente [...] e devo acrescentar que o Dr. Rosa é, certamente, um misógino”. O jornalista averiguou o acontecido e confirmou que a representante do CBA, Ruth Escobar, realmente tinha sido mal recebida pela autoridade: “não recebo ninguém da Comissão de Justiça e Paz, Anistia, nada disso. Na minha seara, só recebo bem os réus, seus advogados e parentes”799. Em 13 de agosto de 1979, o teatro Ruth Escobar sediou um encontro com os ex-presos políticos para um ato político, solicitando a libertação dos outros companheiros por meio da ampliação do projeto de lei que tramitava no Congresso Nacional. Esta manifestação ocorreu em virtude de uma greve de fome dos presos Aldo Arantes, Aton Fon Filho, Carlos Alberto Soares, Manoel Cyrillo de Oliveira Netto e Francisco Gomes da Silva que estavam no Presídio Barro Branco. Além desses cinco, a presidiária Elza Monerat, com 66 anos, que estava no Presídio de Tremembé também aderiu à causa. De acordo com notícia da Folha e São Paulo: “[...] o ato ocorrido no estabelecimento de Ruth Escobar tinha como objetivo “libertação imediata dos presos políticos brasileiros, a revogação da Lei de Segurança Nacional e toda a legislação de repressão política, o livre retorno de todos os exilados e a reintegração “sem qualquer” de todos os servidores públicos civis e militares que foram demitidos, excluídos afastados ou aposentados por atos de exceção”800. Depois de muita luta e negociações entre Movimentos Sociais, Partidos Políticos, Congresso Nacional e o regime militar, em 28 de agosto de 1979 801, o Presidente João Figueiredo sancionou a Lei 6.683 0 - Lei da Anistia. Mesmo depois da regulamentação da Lei, no fim de 1979, Ruth Escobar participou da I Conferência Internacional sobre o exílio e a solidariedade na América Latina, em Caracas, na Venezuela, de 20 a 27 de outubro de 1979. O evento tinha como objetivo instalar a Liga Internacional dos Povos pela América Latina. Novos envolvimentos de Ruth Escobar em mais uma luta. agraciados com medalhas pelo Núcleo Mineiro do Comitê Brasileiro pela Anistia pela atuação em prol da causa. ANISTIA, Jornal do Brasil, 15 mar. 1979, p. 17. 796 Foram realizadas nove reuniões desde o final de 1978 até a realização do II CNA, em novembro de 1979: Belo Horizonte (18 e 19 nov. 1978), Belém do Pará (27 e 28 jan. 1979), Brasília (3 e 4 mar. 1979), Campo Grande (5 e 6 mai 1979), Salvador (29 e 30 mai. 1979), Brasília (22 ago. 1979), Belo Horizonte (8 e 9 set. 1979) e São Paulo (6 e 7 out. 1979) (Greco, 2003, p. 103). Ao longo dessa pesquisa foi constatada a presença de Ruth Escobar em duas dessas reuniões. 797 Segundo nota publicada no Jornal do Brasil: “A empresária e atriz Ruth Escobar tem planos ambiciosos para seu o seu projeto de mobilizar a consciência brasileira em torno da anistia. Pretende promover em julho, em São Paulo, uma semana de debates sobre a anistia e direitos humanos. Para dar repercussão internacional ao projeto, convidou para participar dos debates, além do presidente da Anistia Internacional, nada mais nada menos que Melina Mercouri, Jane Fonda e Joan Baez, três nomes de grande appeal comprometidos com a bandeira que Ruth Escobar pretende desfraldar”. VOZES da anistia, Jornal do Brasil, 26 abr. 1978, p. 3. 798 ENCONTRO, Folha de São Paulo, 30 jan. 1979, p. 6. 799 ATRIZ, Jornal do Brasil, 31 jan. 1979, p. 8. 800 ATOS, Folha de São Paulo, 14 ago. 1979, p. 4. 801 A respeito dos bastidores para a aprovação da Lei da Anistia, ver FICO, 2011. Ainda que não consigamos, por meio desta pesquisa, captar todos os ângulos, detalhes e intentos, é possível perceber que Ruth Escobar teve um papel vital na luta pela anistia no Brasil. Sua atuação e de suas companheiras foi fundamental na defesa dos interesses da sociedade civil, principalmente daqueles perseguidos e condenados pelo Estado por “subverter” as leis vigentes. Ainda que Ruth soubesse dos riscos que corria, sendo alvo da vigilância constante do DOPS, ela cedeu o espaço para que fosse um local de protestos. Nele, os manifestantes, intelectuais, artistas sabiam que havia uma defensora em prol da liberdade, podendo contar com ela na luta, pois havia construído uma trajetória de embates e, consequentemente, de admiração e confiança. A busca pela liberdade e pelos direitos humanos, princípios da luta de Ruth, desde o início de sua trajetória, motivaram-na, ainda mais, nesse fim da década de 1970. A defesa por um país livre do regime ditatorial seguia. 6.2 A fé na aventura coletiva: Revista do Henfil Em 30 de dezembro de 1978, Ruth Escobar concedeu uma entrevista ao crítico Jefferson Del Rios, na qual fez uma breve avaliação da produção teatral paulista. Ela disse que “o teatro brasileiro foi superado pelos acontecimentos políticos e não responde, no momento, às profundas aspirações e movimentos da sociedade [...] o espetáculo espontâneo e público da oposição e dos movimentos reivindicatórios de massa foram mais audaciosos do que as realizações dos artistas de teatro”802. A partir dessa colocação, Del Rios reafirmou o pensamento de Ruth ao pontuar que “parte do teatro continuou, ao longo do ano que termina, sofrendo a presença de uma certa mentalidade empresarial voltada exclusivamente para o aspecto comercial do empreendimento, sem nenhum vínculo cultural ou político com o palco”803. O crítico ressaltou as poucas produções teatrais que se destacaram naquele ano em São Paulo, dentre elas a Revista do Henfil, Macunaíma dirigida por Antunes Filho, o espetáculo Murro em Ponta de Faca804 de Augusto Boal, a encenação carioca Policarpo Quaresma e os trabalhos desenvolvidos na periferia pelo União e Olho Vivo. Também destacou Maria Adelaide Amaral e Consuelo de Castro como autoras revelação. Com a crescente demanda de pessoas que frequentavam seu teatro para discutir a anistia no Brasil, Ruth Escobar percebeu que a sociedade paulista e, consequentemente, brasileira, estava sufocada pelas arbitrariedades e sanções do governo militar desde 1964. Se o momento era propício para exigir das autoridades políticas a anistia ampla, geral e irrestrita, sob as mais diversas formas (protestos, vigílias, charges, atos públicos, reportagens e outras), era também hora de o teatro entrar em cena nessa luta. As encenações apontadas por Del Rios demonstravam que a classe artística se aprontava para novos enfrentamentos com a censura e com o regime militar. Não entrando no mérito dos demais espetáculos, detalho o espetáculo Revista do Henfil, que Ruth Escobar levou à cena enquanto produtora e atriz em 1978. A partir dos desenhos em quadrinhos e charges de Henrique de Souza Filho, mais conhecido como Henfil, Fauzi Arap idealizou o que chamou de Revista Relativa, projeto apresentado a Ruth Escobar para que ela fizesse a produção, mas na condição que ele assumisse a direção da encenação. Até então, na história do teatro brasileiro nenhuma companhia teatral805 havia feito adaptação de HQs na realização de um espetáculo teatral. Percebendo as 802 ESCOBAR, Entrevista concedida a Jefferson Del Rios, Folha de São Paulo, 30 dez. 1978, p. 25. DEL RIOS, Jefferson. Folha de São Paulo, 30 dez. 1978, p. 25. 804 Esse texto também aborda sobre o exílio de brasileiros no exterior. 805 Beth Lopes, em 1988, fundou a Companhia de Teatro em Quadrinhos. 803 potencialidades cênicas e inovadoras do projeto, Ruth Escobar o colocou em prática com Arap. No entanto, os rumos dessa parceria tomaram contornos difíceis. Os desentendimentos se estabeleceram. O estilo de direção de Arap não se adaptou à intensa rotina de trabalho da produtora, “ela gosta de transar 30, 40 coisas ao mesmo tempo e ao tentar assumir o seu estilo de trabalho percebi que estava me violentando”, declarou o diretor806. Além da direção, Fauzi Arap também era responsável por conceber o roteiro do espetáculo. Com sua saída, Ruth Escobar e Henfil decidiram convidar o editor-chefe do jornal Última Hora, Oswaldo Mendes, para (re) escrever o roteiro e Ademar Guerra para dirigir o espetáculo. Por outro lado, a saída de Arap807 no meio do processo da encenação, propiciou uma guinada radical na concepção do espetáculo, a começar pelo nome, que passou a ser Revista do Henfil808. Ruth Escobar afirmou que: “acho que afinal saímos ganhando com a troca. O roteiro de Fauzi era muito europeu, muito sofisticado, e o atual é bem mais aberto e popular”809. Como sempre, Ruth Escobar buscava produzir espetáculos politizados que criassem uma zona de turbulência entre a cena e o espectador, aspecto que naquele momento era de suma importância para ela, ser inserido no projeto teatral. As personagens em quadrinhos criadas por Henfil possuiam personalidades distintas, como observou a pesquisadora Maria da Conceição Francisca Pires: “Uma ave magrinha, mas muito combativa, chamada Graúna; um bode intelectual, Francisco Orelana, que gostava de devorar livros; um “cangaceiro-macholutador”, porém dado a gestos carinhosos, de nome Zeferino”810. Ruth e a nova equipe optaram por montar um espetáculo desprovido de metáforas, com o objetivo de criticar a situação política que o país enfrentava, “onde é para se dizer ditadura, está dito DITADURA” e não “um certo regime de força de uma certa república”811. No final de 1978 já era possível colocar em cena um teatro que expusesse de forma direta sobre os problemas do país. A censura, embora existente, estava menos agressiva. Mesmo assim, era preciso destemor para subir no palco e falar, abertamente, nos temas mais pungentes do país. Em entrevista ao jornal Cidade de Santos, o ator Paulo Cesar Pereio relatou que o espetáculo “inaugura uma nova fase do teatro brasileiro. E, para mim é gratificante fazer o [personagem] Bode Orelana nessa montagem, porque não é sempre que se tem oportunidade de trabalhar numa peça, onde se pode dizer as coisas diretamente”812. Para Flávio Marinho, o diretor Ademar Guerra a partir das personagens Zeferina, Graúna e Bode Orelana criadas por Henfil, que tinham como habitat a caatinga brasileira, conseguiu captar “a brasilidade da proposta, imprimindo muita malícia e bom ritmo ao espetáculo. Tanto a sátira política, quanto a crítica social são realizadas de forma direta, objetiva e bem-humorada, regadas de um deboche tipicamente brasileiro”813. No programa do espetáculo, Ruth Escobar falou a respeito da posição política adotada na encenação: Aqui estamos de novo, para provar que estamos vivos, atentos, dispostos a resgatar o nosso espaço, para fazer o nosso teatro, um teatro novo, brasileiro, atual. [....] 806 GAGNO, Revista Veja, 13 set. 1978, p. 80. Arap afirmou que “fui eu que dei a ideia de montar um espetáculo com as personagens de Henfil à Ruth Escobar” GAGNO, Revista Veja, n. 523, 13 set. 1978, p. 80. 808 Ver imagens de 84 a 91 no dossiê de imagens. 809 GAGNO, Revista Veja, n. 523, 13 set. 1978, p. 80. 810 PIRES, 2008. 811 “REVISTA”, s/e.17 out. 1978. 812 SÓ HOJE, Cidade de Santos, 14. nov. 1978. 813 MARINHO, Última Hora, 21/22 out. 1978. 807 Um teatro não só para entreter, mas para inquietar, que satirize aos exploradores, que mostre ou insinue uma solução, que expresse o que o povo sente. Eu encontrei ao longo desses meses novos companheiros de luta, que me fizeram ter de novo esperança, e quero falar especialmente de todos os meus companheiros do Comitê Brasileiro de Anistia, que me trouxeram de volta a fé na aventura coletiva. (Destaque desse autor). Nossa identidade está na ação e na luta “Somos o que fazemos e, sobretudo o que fazemos para mudar aquilo que somos”. O destino do teatro será o destino do povo. E como acredito no sábio Brecht que disse: Mas se conhece alguém a quem a violência trouxe sorte? A verdade pode ser mortal e a mentira eterna? Aonde viste a injustiça perdurar sem ser destruída? O que me leva a crer que teatro e povo sairão vencedores?814 A inquietação de Ruth Escobar, nessa fase em que estava envolvida com a anistia, constituiu fator determinante para a execução de um espetáculo em que a dramaturgia não tivesse metáforas ou rodeios para dizer. A situação em que o país se encontrava era inadmissível para Ruth Escobar. Ela queria transformar, ainda que de forma pontual, ela lutava. A Revista do Henfil estreou em 1º de setembro de 1978, na Sala Galpão, Teatro Ruth Escobar, São Paulo. E teve grande sucesso de público e de crítica, servindo como frente de resistência da Anistia. Com a bandeira da Anistia, a produtora realizou apresentações em algumas cidades em que havia núcleo do CBA815. Sobre a junção do espetáculo com a anistia, Ruth colocou: “abrir caminho para o movimento de anistia [...] acho essa luta importantíssima e necessária agora, já que a palavra anistia, que antes não podia ser ao menos mencionada, é atualmente legitimada”816. Além de passar por diversos estados brasileiros, de norte ao sul do país, Ruth Escobar também fez questão de apresentar o espetáculo em diversos presídios 817 como forma de homenagear e conscientizar os presos políticos do que estava ocorrendo do lado de fora dos muros. Ela também fez questão de levar os espetáculos à população menos favorecida, principalmente, nas favelas. A circulação nacional do espetáculo somente foi possível em virtude de subvenção818 do Banco do Brasil, no valor de quinhentos mil cruzeiros (Cr$500 mil). Novamente, Ruth Escobar conseguia angariar verbas de um órgão público, ao mesmo tempo em que atacava diretamente o governo. Cabe destacar que em julho de 1977, Moacir Coelho, Diretor do DPF encaminhou um ofício ao Ministro da Justiça Armando Falcão, no qual relatou a utilização de verbas públicas 814 ESCOBAR, Ruth. Revista do Henfil. (Programa). São Paulo, 1978. Apresentações pelo Brasil: Região Sul: Porto Alegre - 4 a 15 de abril de 1979, Teatro Leopoldina. Caxias do Sul - 16 de abril de 1979, Teatro do Recreio da Juventude. Blumenau - 17 e 18 de abril de 1979, Teatro Carlos Gomes. Florianópolis - 19 de abril de 1979, Teatro Álvaro de Carvalho. Curitiba - 20 a 22 de abril de 1979, Teatro do SESI. Região Norte/Nordeste: Salvador - 24 a 29 de abril de 1979, Teatro Castro Alves. Com um espetáculo na Penitenciária Lemos de Brito, à tarde do dia 27 de abril de 1979. Recife – 1º a 6 de maio de 1979, Teatro Santa Isabel. NATAL - 8 e 9 de maio de 1979, Teatro Alberto Maranhão. Campina Grande - 10 de maio de 1979, Teatro Municipal Severino Cabral. Com o patrocínio do Comitê Brasileiro pela Anistia e da Associação dos Docentes da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa - 11 e 12 de maio de 1979, Cine Tambaú. Interior de São Paulo: Santos - Teatro Coliseu, no dia 14 de novembro de 1978. Campinas - Temporada de 6 a 11 de março de 1979. Bauru - Bauru Tênis Clube, 14 e 15 de março de 1979. São Jose do Rio Preto - Teatro Municipal, 16 de março de 1979. Araraquara - Teatro Municipal, 17 de março de 1979. São Bernardo do Campo - Sindicato dos Metalúrgicos, 2 de junho. FERNANDES, 1985, p. 131e133. 816 SÓ HOJE, Cidade de Santos, 14. nov. 1978. 817 O espetáculo realizou apresentações na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), Penitenciária Barreto Campelo em Itamaracá, no Pernambuco e na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador. 818 Esta informação consta no processo AC.ACE.115735.78. AN. 815 cedidas a Ruth Escobar para a realização do II Festival Internacional de Teatro, em 1976; destacando parcelas cedidas pelo SNT para financiar suas produções. Ele termina, dizendo que “tenho para mim, Senhor Ministro, que se deva fazer gestões junto a quem de direito a fim de evitar que as instituições governamentais continuam concedendo verbas a pessoas que, tendo nas mãos recurso oficiais, se voltam contra os que atendem financeiramente, talvez até mesmo utilizando para esse fim o próprio dinheiro público”819. Os conselhos do Diretor da PF não foram acatados por seus superiores. E Ruth continuou a receber recursos de órgãos públicos e continuou a utilizá-los em trabalhos cênicos que enfrentavam o governo militar. Ruth Escobar enfrentou alguns problemas durante a circulação do espetáculo pelo país. A seguir, destaco três incidentes envolvendo o trabalho e as ações repressivas. Na cidade de Santos, em 14 de novembro de 1978, às vésperas das eleições estaduais, atores do elenco foram presos, conforme relatório820 de 20 de novembro de 1978, emitido pela Agência de São Paulo (ASP). No dia 14 p. passado, estávamos de Plantão no 1º Distrito Policial, quando, por volta de 21h45m tivemos notícia que “quatro rapazes haviam sido detidos na Pça. José Bonifácio, por determinação do [...] Juiz de Direito do Juízo Eleitoral, por estarem distribuindo planfetos (sic) que infringiam a Legislação Eleitoral” [...] por volta de 00h20m, adentrou o recinto do 1ª Distrito, uma senhora, e no saguão observamos que se encontrava [...] cerca de sessenta, em sua maioria jovens. Quando referida senhora adentrou o recinto próximo a nossa mesa de trabalho, estávamos ao telefone, e dada a insistência da mesma, que queria falar com o Delegado de plantão, solicitamos-lhe que aguardasse, pois, estavamos ocupados. Em seguida passamos a atendê-la, ocasião em que se apresentou como RUTH ESCOBAR, E “QUE QUERIA SABER ONDE ESTAVAM OS DETIDOS”. [...] Dada a situação, imediatamente telefonamos a V. Sª. relatando fielmente o que se passava e, já nessa ocasião, a Sra. Ruth e um Sr. que a [a]companhava, que se identificou como EDUARDO MATARAZZO SUPLICY, candidato a Deputado, solicitava que lhe fosse permitido "visitar os detidos", solicitação que transmitimos a V. Sª. [...] Logo em seguida recebemos comunicação telefônica de V. Sª., bem como do Sr. Seccional, que nos orientaram para que fosse autorizada a visita solicitada, desde que não acompanhada da Imprensa. E, assim foi feito. Na sala onde se encontravam os detidos, a Sra. Ruth Escobar, passou a conversar com os mesmos, informando-lhes que o “Juiz comprometera-se a soltá-los pela manhã”. Nessa ocasião, comentou que “fora uma medida pouco inteligente, efetuar prisões ilegais no dia de Eleições"[...] já o investigador Sr. Barbosa, tomara salutar providencia de determinar a Sra. Ruth que se retirasse, no que foi prontamente atendido, terminando a Sra. Escobar por diz “Muito Obrigada” Momento após, éramos novamente solicitados, para que fosse autorizado, o envio de uns "sanduíches aos rapazes", no que concordamos, desde que as pessoas que estavam no saguão, se retirasses imediatamente e, para colaborar nessa medida (na retirada das pessoas) levamos a Sra. Escobar à padaria Cinderela, próxima deste Distrito, onde a mesma efetuou a compra de quatro sanduíches e um litro de leite, e escreveu no pacote “com carinho da Ruth” [...] ficamos sabendo tratar-se de atores da Peça “Revista do Henfil” e populares que se encontravam no Teatro Coliseu, e teriam tomado conhecimento das detenções por comunicação da Sra. Ruth Escobar. Ao se despedirem, a Sra. Ruth e o Sr. Suplicy, agradeceram a atenção que lhes foi dispensada [...] Cumpre ainda, esclarecer que de início a atriz protestara porque “as prisões teriam sido efetuadas no interior no Teatro Coliseu, e que sua peça estava devidamente autorizada pela Repartição competente”. É o relatório. 819 820 Ofício n. 326/77 – DCDP. AN. Processo AC.ACE.115735.78. AN. O relato descrito por Aroldo Dutra Júnior retratou o empenho de Ruth Escobar em defender seu trabalho e sua equipe, bem como a sua capacidade de arregimentar pessoas que lutassem pela mesma causa. Ela conseguiu, em pouco tempo, cerca de sessenta manifestantes que a acompanharam até a delegacia para reivindicar a libertação dos atores presos. No entanto, cabe aqui destacar que não foram localizados os nomes dos atores detidos, nem se de fato eles estavam fazendo campanha em prol de algum político naquele momento. Porto Alegre foi a primeira cidade da região sul a receber a Revista do Henfil e, novamente, ocorreu a prisão de quatro membros do espetáculo. Segundo o jornal gaúcho, Zero Hora, de 14 de abril de 1979, “José Roberto Harbs (iluminador), Domingos Fuschini (ator e cenógrafo), Antônio Dantas (cenógrafo) e Juan Carlos Uviedo (cenógrafo) [...] foram presos ás 3h da madrugada de quinta-feira pela viatura 1128 da Brigada Militar, sob suspeita de serem assaltantes”821. Após a abordagem dos policias, os detidos foram encaminhados ao DOPS. No interior do veículo do elenco foi encontrado o livro Inventário de Cicatrizes, folhetos de divulgação do espetáculo e do CBA. Chamo atenção para essa publicação, cujo autor é Alex Polari de Alverga, militante guerrilheiro condenado a oitenta anos de prisão por se opor ao regime militar, o qual ficou preso de 1971 a 1980. Em 1978, o Teatro Ruth Escobar e o CBA editaram e publicaram822 os poemas de Alex Polari de Alverga, que retravavam sua vida de guerrilheiro e de prisioneiro. O fato de Ruth Escobar produzir um livro de um preso político demonstra o quão ela estava envolvida com a causa, enfrentando as autoridades militares não só na militância com a anistia e com o teatro, mas também na literatura. Neste sentido, pode-se aferir que, nesse final da década de 1970, Ruth Escobar ampliou as frentes reivindicatórias. Em Brasília, os fatos ocorridos com o espetáculo Revista do Henfil foram os mais tensos da circulação nacional. Como forma de afronta, o MDB convidou o espetáculo para realizar apresentações no Teatro da Escola-Parque de 20 a 25 de março de 1979, justamente no mesmo período em que ocorreu a posse de João Figueiredo, isto é, mais um militar assumiria a presidência da República. Contudo, Ruth foi impedida de realizar a temporada: uma sala estava ocupada por um grupo local, e a outra por possuir “problemas técnicos no Teatro”823, conforme registrado no relatório. A diretora do Grupo Grutta tentou resolver o problema, cedendo a sala para o espetáculo de Ruth, mas o presidente da Fundação Cultural não permitiu, afirmando que “não pode quebrar uma sistemática e permitir que um grupo ceda a sala para outro não previsto”824. Nessa ocasião, Ruth Escobar aproveitou para acionar a imprensa, a fim de provocar uma “ampla repercussão do fato, procurando dar a entender que se tratava de um novo tipo de censura”825. Ruth apenas chamava a atenção para a continuação de repressões censórias. Para tentar abafar o caso e contornar essa situação embaraçosa, provocada por Ruth Escobar, a “solução” encontrada foi um jogo de favores, consistindo em subvencionar a circulação nacional do espetáculo pelo Banco do Brasil. Além disso, em 24 de março, a produtora recebeu mais trezentos e cinquenta mil cruzeiros da FUNARTE para apresentar o espetáculo Revista do Henfil em presídios e favelas de São Paulo. Essa passagem demonstra que Ruth Escobar sabia transformar a ocasião em oportunidade de negócio e nova ação política. 821 Reportagem transcrita em FERNANDES, 1985, p. 132. O lançamento do livro ocorreu em 06 de novembro de 1978 na sede da ABI. A publicação ficou a venda nas principais livrarias de São Paulo e Rio de Janeiro cuja renda foi convertida para o CBA. 823 Processo AC.ACE.1823.79. AN. 824 BRASÍLIA, Jornal do Brasil, 21 mar. 1979, p. 8. 825 BRASÍLIA, Jornal do Brasil, 21 mar. 1979, p. 8. 822 Apesar de alegarem problemas técnicos no teatro, o jornalista José Carlos Bardawil escreveu a reportagem Henfil pode, mas em Brasília não para a Revista Isto É de 28 de março, captando a mensagem nos bastidores da política: As informações que se podem recolher, nos bastidores governamentais, indicam que a iniciativa do veto coube ao segundo escalão do governo – justamente aquele que administra a capital. Para esses ciosos administradores, Brasília deve ser vista como uma espécie de santuário do regime – que não admite entrada de inimigos ou mesmo de críticas bem humoradas como a de Henfil826. Ainda que todas as instâncias governamentais alegassem que não havia uma posição política atrás da não apresentação do espetáculo em Brasília, Henfil considerou o episódio “uma vitória política pois eles estão se desmascarando, depois de tanto falarem em abertura”827. Mas o desejo de apresentar o espetáculo no centro do poder ainda estava latente em Ruth Escobar. Após a circulação pelo país, a Revista do Henfil fez uma curta temporada, de 5 a 10 de junho de 1979, no Teatro Nacional de Brasília, mas a tensão em torno da apresentação se tornou ainda mais tumultuada. No dia 05 de junho, folhetos ofendendo o elenco e Ruth Escobar apareceram em torno do teatro; e, nas proximidades, foram espalhados pregos para furar os pneus. No dia seguinte, o espetáculo começou com atraso devido às bombas828 de efeito moral encontradas na plateia e que foram desativadas pelo DOPS; dia 07 de junho, a Polícia Federal achou uma bomba com três dinamites no interior do teatro – o espetáculo terminou numa praça vizinha; dia 08 de junho, Ruth Escobar foi ao gabinete do Ministro da Justiça, Petrônio Portela, pedir providências e, no mesmo dia, o policiamento no teatro foi reforçado nas 24 horas. Nessa ocasião, ela disse ao Ministro que “se alguma coisa acontecer, a responsabilidade será das autoridades competentes”829. Neste dia, o espetáculo foi apresentado normalmente e, por fim, no dia 10 de junho, Ruth Escobar recebeu ameaças no hotel em que estava hospedada. A passagem por Brasília fechou o ciclo de apresentações de Revista do Henfil. Ao longo de mais de um ano de intensa programação de apresentações pelo Brasil, o espetáculo cumpriu missões voltadas aos direito humanos, principalmente, em relação à anistia no Brasil, levando aos palcos procedimentos ao adaptar HQs e, também, pela ousadia de enfrentar os militares brasileiros com um discurso franco e direto, sem meias palavras. O DOPS, um mês antes de o Presidente da República sancionar a Lei da Anistia, produziu um relatório830 intitulado “Comitê Brasileiro de Anistia e Projeto de Anistia do Poder Executivo” que, ao longo de treze páginas, expôs um histórico da criação de comitês e movimentos que envolviam a anistia no Brasil, principalmente entre de 1977 e 1978. Redigido em 29 de julho de 1979, o documento citou Ruth Escobar, remetendo-a ao seu envolvimento com órgãos internacionais que também lutavam pela anistia: Ruth Escobar, veio orientada pela Esquerda Internacional, a criar no Brasil um CBA, que perseguissem os objetivos das congêneres em outros países, exercendo crescente pressão sobre o governo para forçá-lo a conceder ‘aberturas políticas’, como primeira ‘deixa’ para entrarem em cena, seguindo-se após, intensa mobilização, utilizando-se 826 BARDAWIL apud FERNANDES, 185, p. 136. HENFIL, Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, 23 mar. 1979, p. 7. 828 De acordo com o Jornal do Brasil, no dia anterior, foram encontradas duas granadas. A reportagem também informou que “apesar da insistência dos agentes da polícia junto ao público para o esvaziamento do teatro, para que pudesse ser feita a perícia no local onde foram encontradas as duas granadas, grande número de pessoas insistiram em permanecer na platéia, na esperança que o espetáculo fosse apresentado”. GRANADAS, Jornal do Brasil, 07 jun. 1979, p. 8 829 PORTELA, Folha de São Paulo, 09 jun. 1979, p. 6. 830 Processo 50Z-0-15381 Fundo DEOPS/SP. APESP. 827 de todos os artifícios possíveis, explorando todos os inesgotáveis temas que pudessem abalar a opinião pública, tentando sempre colocar em ‘xeque’ a autoridade do regime, e inevitavelmente, o primeiro passo a ser dado seria a libertação de todos os ‘presos políticos’, a Anistia para os banidos e exilados, a devolução dos direitos dos cassados, e da liberdade para, retornando ao país poderem atuar – como sempre o fizeram em outras épocas – mas agora sob a legalidade, abertamente, sem os temores da clandestinidade831. Ainda que os agentes do DOPS tivessem certa tendência a inserir informações tendenciosas nos relatórios, o trecho acima retratou de forma sucinta a trajetória de Ruth Escobar em prol da anistia: ela utilizou de todas as formas possíveis para pressionar o governo militar. Contudo, ao contrário do que consta no relatório, Ruth não foi orientada por órgãos internacionais. O seu engajamento na luta pela anistia nasceu de sua própria vontade, motivada pelo contexto de violação dos direitos humanos, com que diversos cidadãos brasileiros estavam sofrendo pelas ações antidemocráticas dos militares. Ela foi uma voz importante em um momento delicado da história brasileira. Ruth fez coro junto a “intelectuais, artistas, jornalistas, políticos progressistas, religiosos de vários credos sindicalistas e estudantes, [que] no final dos anos 1970”832, deram corpo ao Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). Foi o movimento nacional unificado e progressista contra a ditadura militar. De 1977 até a assinatura da Lei n. 6683 (Lei da Anistia) foi preciso muita luta, e Ruth Escobar atuou em muitas frentes, e o teatro, tanto o edifício teatral Ruth Escobar quanto sua prática cênica, foi colocada a serviço da luta pelo fim do regime de exceção no Brasil. 6.3 O poder repressivo na Caixa de Cimento Após a montagem da Revista do Henfil, Ruth Escobar833 decidiu montar Caixa de Cimento de autoria do seu ex-marido, Carlos Henrique Escobar, texto que havia sido premiado em segundo lugar pelo Serviço Nacional de Teatro, mas proibido pela censura em 1977. Ainda que sua temática não tenha relação direta com a anistia, o fato é que esse texto trata de situações em que o direito humano foi cerceado pelos militares. A história do espetáculo, Caixa de Cimento, passa-se num país imaginário. Delinquentes, marginais e contestadores (também entendidos como subversivos) são castigados pelas autoridades com a amputação de alguma parte do corpo para servir de exemplo aos demais. O texto tinha uma “nítida semelhança entre a obra de Escobar e Mãe Coragem, uma das obras-primas de Bertold Brecht [...] possivelmente, lhe ocorreu que o tema brechtiano serviria para uma tentativa de ficção dramático-crítica por vias indiretas, pois, afinal, corria o ano de 1977 e a censura não permitia nada muito explícito”834, afirmou o crítico Jefferson Del Rios. Composto por trinta e três cenas, a Mãe e seus quatros filhos (S., P., J. e R.). Ao longo do texto, aparecem os personagens que representam o Estado: Civil, Militar, Oficial, Guarda e Soldado. Doutro lado, a minoria que sofreu as consequências das atrocidades do governo: 831 Processo 50Z-0-15381. APESP. MOVIMENTO, 2009. 833 Oswaldo Mendes publicou uma pequena nota no jornal Folha de São Paulo dizendo que “uma violenta queda durante os ensaios quase impede Ruth Escobar de estrear o seu novo espetáculo “Caixa de Cimento”, esta semana. Mesmo movimentando-se com certa dificuldade, Ruth Escobar está em cena desde quinta-feira, na peça de Carlos Henrique Escobar”. ACIDENTE, Folha de São Paulo, 16 set. 1979, p. 15. 834 DEL RIOS, 2010, p. 42. 832 Mulher de pescoço quebrado, Homem de uma perna só, Mulher sem orelhas, Homem sem dois braços, Velho, Homem (1, 2 e 3), Senhora, Velho, Velha, Travesti, além do coro. Como pontuou o jornalista Telmo Martino, a peça trata de “denúncias contra abuso de autoridade’, ‘violência oficial, e tudo o mais que uma Ruth Escobar de boa memória nunca se esquece de incluir para conscientizar os espectadores”835. Apesar de escolher um texto que continuava a reflexão, acerca das barbáries cometidas pelo Estado contra a população brasileira e o cerceamento dos direitos humanos, os caminhos estéticos escolhidos à construção de Caixa de Cimento não surtiram o resultado desejado por Ruth Escobar. Para dirigir Caixa de Cimento, Ruth Escobar contratou o diretor argentino Juan Uviedo que trabalhava com o grupo La Mamma, em Nova Iorque. Como nos espetáculos anteriores, essa encenação estava rodeada de promessas: mais uma produção de vulto da produtora, trazer a público um texto premiado, mas vetado pela censura e encenado por um diretor estrangeiro. Tudo isso gerou expectativas entre a classe artística, jornalistas e sociedade em geral. No elenco estava Ruth Escobar, Assunta Perez, João José Pompeu, Rafael de Carvalho e Anna Leite. Prevista para estrear, propositalmente, em 7 de setembro de 1979, Caixa de Cimento veio a público somente no dia 12, na Sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar. Chamo atenção para a divulgação do espetáculo. Ruth Escobar fez questão de inserir frases que suscitassem aos leitores do jornal curiosidades sobre a encenação, assim como despertar um sentimento de luta para a transformação da situação repressiva do Brasil. A pátria também é nossa, Os que se movem em ordem sobrevivem e Soldados e trabalhadores não pagam, foram as frases inseridas nos tijolinhos na divulgação de sua nova produção. Essas frases também representavam uma afronta ao regime militar ao tentar angariar mais adeptos à luta pela democracia. Apesar da “força” de todos esses elementos, o resultado do trabalho ficou aquém do esperado. Para o jornalista Cláudio Pucci: “É difícil comentar o espetáculo e o desempenho, quando os maiores erros começam no próprio texto que pode ser poético mas muito pouco teatral. A ‘Caixa’ está vazia e é difícil achar ou sentir que o que acontece no palco tem alguma coisa a ver com a gente”836. Esse distanciamento entre cena e plateia também foi pontuado pelo crítico Jefferson Del Rios: Uviedo brincou com panos coloridos, turbantes, gestos acrobáticos, um tapete voador brilhante e inconsciente em que não falta nem mesmo o velhíssimo e insuportável lugar-comum de arrumar uma cena de Cristo para um ator magro e de cabelos longos. O problema é que o espetáculo resulta extremamente confuso, uma festinha hippiemilitante que anula o texto e acaba cansando o público 837. Nos anos de 1970, o movimento hippie era uma tendência que estava na moda. Tinha como característica a vida em comunidades, roupas despojadas e coloridas, o amor livre era apregoado como também o uso de drogas; as pessoas do movimento hippie eram contrários a todos os tipos de guerras, massificações e autoritarismos. Para combater isso, era utilizada a filosofia de “paz e o amor” como forma de luta, pois não se enquadravam dentro das normas estabelecidas pelo Estado, nem pela sociedade. Foi nesse sentido que Uivedo concebeu Caixa de Cimento, no entanto, essa estética não era adequada ao texto escrito por Escobar. Ainda que não detalhada, a descrição dos adereços utilizados no espetáculo, por Uviedo, dá a dimensão de como os mesmos foram empregados na encenação. Por mais que o texto tivesse deficiências, como as apontadas pelo crítico acima, certamente, o lugar comum não serviu para problematizar os efeitos das ações truculentas daqueles que comandavam o país. 835 MARTINO, Jornal da República, 10 set. 1979, p. 15. PUCCI, Folha de São Paulo, 24 set. 1979, p. 26. 837 DEL RIOS, 2010, p. 44. 836 Além disso, Uviedo não captou a proposta do texto em virtude de possuir uma veia artística mais próxima a Broodway, não estabelecendo, assim, uma leitura da dramaturgia com o contexto brasileiro. Deixou-o mais próximo da cultura hippie, ao invés de uma discussão social e um afrontamento ao regime militar. Ainda que remota a possibilidade, pode pensar-se que Uviedo, ao adaptar o texto de Escobar e colocá-lo num tom de paz e amor, tenha associado a encenação ao processo da abertura política que o Brasil enfrentava, pois era tempo de rever posições autoritárias. O país estava se encaminhando para a “liberdade democrática”, longe das amarras militares. Ainda que se desconheçam os reais motivos que levaram Ruth Escobar a escolher Uivedo para estar à frente desse projeto, o fato é que a produtora permitiu que esse espetáculo viesse a público dessa forma, sem um “tratamento” estético e político mais acentuado como apresentado na Revista do Henfil. No entanto, a repercussão negativa de Caixa de Cimento junto à crítica e ao público foi tão evidente que Ruth Escobar tomou a decisão de encerrar a temporada do espetáculo: Antes que mais alguém pudesse confirmar os equívocos da “Caixa de Cimento”, Ruth Escobar tomou uma sábia decisão, que a livra de maiores prejuízos: tirou a peça de cartaz ontem mesmo, 17 dias depois de uma muito esperada e badalada estréia. Crítica e gente da classe, de modo geral, poupou o texto de maiores críticas e pouco falou do elenco, porque não havia mesmo nada a ser dito, já que os erros do espetáculo eram muito maiores que o empenho e a sinceridade dos atores. “Fritou-se” o argentino Uviedo, diretor, e ponto. Agora é esperar a próxima montagem, que faz parte de um projeto de teatro de repertório que deve continuar merecendo curiosidade e atenção 838. Ao longo dos anos de produção teatral de Ruth Escobar, a encenação Caixa de Cimento foi a que menos tempo ficou em cartaz, não atendendo, também, aos seus propósitos políticos de enfrentamento à ditadura. 6.4 Fábrica de Chocolate: os subterrâneos da tortura Na trajetória de Ruth Escobar, a aprovação da Lei da Anistia foi um marco importante; a partir dela (ou impulsionado por), Ruth deu início à produção de espetáculos que abordavam o cerceamento dos direitos políticos, como também, ao desvelamento de ações dos “bastidores” das agressões do governo militar ao público. Nessa perspectiva, além de Revista do Henfil e de Caixa de Cimento, a empresária trouxe à tona um espetáculo que demonstrava os subterrâneos da ação da tortura produzida pela ditadura militar brasileira. Ela produziu Fábrica de Chocolate, de autoria de Mário Prata. Montar mais um espetáculo, cuja “natureza” contestatória e difamatória era continuar a luta pela democracia e pela conquista de mais direitos. Fábrica de Chocolate (ou Fábrica de Chocolates Bem-Me-Quer) foi vencedor do segundo lugar do concurso de dramaturgia promovido pelo SNT, em 1979. Concebido a partir do assassinato do jornalista Wladimir Herzog, em 24 de outubro de 1975, Prata retratou a tortura e a violência dos militares contra aqueles considerados subversivos ao regime, ocorridas nos porões da ditadura. Sob a suspeita de ter ligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), Herzog foi convocado por agentes do exército para prestar esclarecimentos no Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI). No dia seguinte, seu corpo foi encontrado enforcado com um cinto. Na época houve a versão de 838 MAIS, Folha de São Paulo, 01 out. 1979, p. 26. suicídio, mas as testemunhas839 Jorge Benigno Jathay Duque Estrada e Leandro Konder afirmaram que ele foi torturado até a morte. Durante o velório de Wladimir Herzog, Prata teceu os primeiros pensamentos sobre um novo texto teatral. Ele começou a se questionar “tudo havia sido tão bem-feito, o suicídio, a perícia técnica, o laudo médico. Na hora, uma peça começou a nascer. Fotografia seria seu nome, mas ele desistiu, porque era doloroso demais escrever naquele momento”840. Essa ideia foi concretizada quatro anos após a morte de Herzog. Ruth não teve dúvidas em investir nessa produção teatral. Além de ser texto premiado, o mesmo estava alinhavado com as práticas teatrais que combatiam e denunciavam todo e qualquer tipo de violência contra o cidadão. Sob a direção de Ruy Guerra, as seis personagens841 concebidas por Prata possuem um tom denunciativo que expõe as ações dos torturadores. A fala de Piedade, interpretada por Ruth Escobar explicitava isso: PIEDADE – Doutor, Herrera. HERRERA – É um prazer doutor. DOUTOR – O prazer é meu. Sente-se, fique à vontade. HERRERA – (Indicando a poltrona) Faça o favor. DOUTOR – Obrigado. (Senta-se). O doutor está vivamente interessado nos instrumentos da estante. Piedade chega-se a ele DOUTOR – O que é isso? PIEDADE – Isso é um torniquete. Como um capacete de motoqueiro. A gente ajusta na cabeça do prisioneiro – é ajustável está vendo – e através desse mecanismo simples de rosca e parafuso, a gente vai apertando. DOUTOR – Não deixa de ser sofisticado (olhando tudo). Palmatória, chicotes, cassetetes, estiletes, velas, cigarros – vagabundos, é claro – navalhas, soco inglês... Mas, afinal, por que estou tendo a honra de entrar em contato com tudo isso? Eu, modesto industrial? PIEDADE – Modesto? Em primeiro lugar, porque o senhor colabora com o nosso departamento. Merece saber como é empregada a sua contribuição anual. DOUTOR – Ora, Piedade, você sabe que não é por esse motivo que eu estou aqui dentro. E isso aqui? Ácido? HERRERA (solícito) – Isso é um simples amoníaco. Colocado no nariz do interrogado dá a sensação de sufocamento, vai queimando as vias respiratórias, entende? Perigosíssimo: mal usado pode levar o sujeito à loucura. DOUTOR (pegando outro vidrinho e cheira) – Éter? HERRERA – Exatamente. Isso é para introduzir no ânus. Dizem, os que já experimentaram, que se tem a sensação de que alguém está te enfiando um charuto aceso. Mais simples do que isso é o (pegando) pentatol sódico. O popular soro da verdade. DOUTOR (curtindo em cima) – Beleza... Beleza Piedade. O que foi que meu operário andou contando para vocês que me obrigou a vir até aqui para ter essa aula de repressão ao vivo? PIEDADE – Aula? Em matéria de aparato o senhor não viu nem o Mobral. A sua vinda aqui, por outro lado, não é coisa de rotina para nós. Mas, até mesmo o chefe gosta de trazer alguns colegas seus para, inclusive, assistir algumas sessões extraordinárias. 839 Em 25 de fevereiro de 2014, o ex-policial Manoel Aurélio Lopes, foi o segundo agente a admitir a Comissão Nacional da Verdade que houve tortura no DOPS/SP. O primeiro foi o coronel Walter Jacarandá. COSTA, O Globo, 25 fev. 2014. 840 O TEATRO, Jornal do Brasil, 12 abr. 1980. 841 Herrera (interpretado por Rolando Boldrin e Francisco Milani, Baseado (João José Pompeo), Piedade (Ruth Escobar e Malu Passim), Rosemary (José Dumont), Patrão/Doutor (Mauro de Almeida) e Dodói (Luiz Carlos Laborda) [...] PIEDADE – (Quase professoral, bastante didática, tom de advogado). Doutor, para fazer falar um cidadão comum, honesto – que cometeu um pequeno deslize – basta um tom de voz mais firme, um grito ou até mesmo uma boa duma careta. Já o marginal exige um pouco mais de energia, porque o senhor sabe que ele tem consciência que infringiu a lei, de uma maneira ou de outra, está sabendo que vai ser punido. Mas o subversivo é sempre mais difícil. Ele não aceita a nossa autoridade, e então, a gente precisa demonstrar – logo de cara – que a gente possui meios de coagi-lo eficazmente. Nós somos, às vezes, obrigados a pressionar demais, deixando passar o momento de ruptura da resistência do delinquente, que passa a reconhecer a nossa autoridade, mas, como a odeia, não fala. Outros erros, às vezes, cometemos, como o envolvimento emocional do interrogador. Ele passa, nesse caso, a pressionar por ódio e não mais para obter informações. E a informação tem que ser tirada na hora, na base do aqui e agora, porque daqui a algum tempo poderia ser tarde demais. E, para ganhar tempo, vale qualquer coisa842. Fábrica de Chocolate revelou sem medo os procedimentos usados pelos torturadores. As cenas transcritas acima mostram, ainda que parcialmente, alguns aparatos técnicos utilizados como agressão física e psicológica843. De acordo com o projeto Brasil: Nunca Mais, a ditadura militar brasileira não fazia distinção de cor, raça, sexo e, inclusive, idade. As agressões eram feitas em mulheres (abrangia também as grávidas) e crianças. Para expor a estrutura de violência que estava atrás do regime militar, Guerra utilizou os porões da Sala Gil Vicente, do Teatro Ruth Escobar. Esse local se adequava à proposta dramatúrgica de Prata, pois as ações das personagens continham um psicológico frio e violento. Para auxiliar na construção das personagens, o diretor teve ajuda do psiquiatra Edson Engels. Suscintamente, ele traçou o perfil de alguns personagens: A Piedade, por exemplo, ex-agente da Pide portuguesa, a mais inteligente de todos e a mais culta, tinha uma especialização: a de resolver os problemas como o que propôs Mario Prata, transformando um crime político em acidente de trabalho. Ela mesma não trabalha diretamente com a tortura, mas age em posto de comando e orientação, mostrando-se fria de sentimentos e muito objetiva. O Herrera, por sua vez, tem uma dose significativa de agressividade, portador de inteligência média e com grau de cultura também nessa proporção [...] Dodói [...] perdeu o contato com a realidade. E fixou tanto a agressividade, que só consegue satisfação na agressão. Trata-se do que se revelou deteriorado pela dinâmica da prática da tortura844. Colocar em cena personagens com características tão verossímeis resultou numa ampla aceitação do público e da crítica. Guerra colocou os espectadores “diante da repressão em ação. Para não calar diante de crimes políticos recentes, que podem recomeçar a qualquer instante”845, afirmou Fernando Peixoto. Para a crítica Mariângela Alves de Lima, a produção de Fábrica de Chocolate “começa a recuperar a função que lhe foi interditada: a de contar para os espectadores os fatos mais urgentes e terríveis da nossa história presente [...] é, sem dúvida, a mais nítida, a mais profunda e é provavelmente o passo mais largo em direção a um teatro renovado, a um 842 PRATA, 1979, p. 40-42. De acordo com a pesquisa realizada pelo projeto Brasil: Nunca Mais existe mais de centena de modos de tortura. Dentre eles: o pau de arara, choque elétrico, a “pimentinha” e os dobradores da tensão, o “afogamento”, a “cadeira do dragão” de SP e do Rio, a “geladeira” além da utilização de insetos, animais e produtos químicos entre tantas outras formas. As descrições desses procedimentos podem ser consultados no capítulo dois de BRASIL NUNCA MAIS, 2011. 844 A EXPLICAÇÃO, Jornal do Brasil, 12 abr. 1980. 845 PEIXOTO, Movimento, 17 a 23 dez. 1979. 843 teatro que cumpre até o limite máximo toda a sua potencialidade”846. A estreia correu em 07 de dezembro de 1979 e, posteriormente, a produtora fez questão de excursionar por algumas cidades, principalmente nas paulistas e outras que haviam sido espaços de forte repressão militar; assim, ela levou o espetáculo a Osasco, Guarulhos, Campinas e Santos, Rio de Janeiro e Brasília. Revista do Henfil, Caixa de Cimento e Fábrica de Chocolate afrontaram àqueles que detinham o poder no Brasil. Ruth Escobar trouxe à tona a discussão e desvelou os procedimentos cruéis adotados pela ditadura e auxiliou, com seu trabalho teatral, a luta pelos direitos dos presos políticos, em prol da Anistia aos perseguidos pelo regime militar. Essa tríade de espetáculos teve como característica a denúncia das barbáries dos governos militares, de forma direta, sem a necessidade de metáforas. 846 LIMA, O Estado de São Paulo, 12 dez. 1979. 6.5 Dossiê de fotos A Resistente CAPÍTULO VII – A FEMINISTA esse capítulo viso mapear a contribuição de Ruth Escobar na luta pela ampliação e reconhecimento do papel da mulher na sociedade. Ela utilizou de todos os meios disponíveis para conquistar mais espaço em meio a uma sociedade, cuja mentalidade era (e é) considerada machista. No campo artístico, a sua trajetória como atriz, geralmente, em personagens que afrontavam as ordens sociais vigentes durante o regime militar, deve ser considerada como uma linha de atuação feminista de Ruth Escobar. Esses papéis tinham como característica uma atuação politizada que a dramaturgia lhe proporcionava. Apesar dessa linha de atuação não ser abordada nesse momento, considero que a carreira de atriz tenha contribuído, significativamente, para que as mulheres se posicionassem, publicamente, contra a ditadura em cena. Destaca-se, no âmbito artístico, a organização dos festivais internacionais de 1976 e 1981. Ruth convidou espetáculos teatrais que abordavam temas sobre mulheres, assim como ela fez questão de convidar diretoras que estavam à frente de grupos teatrais de países da América Latina, os quais também estavam sob a égide de ditaduras militares. A partir dessa experiência, organizou um festival de artes em que as produções artísticas eram exclusivamente de mulheres; em 1982. No âmbito político, Ruth Escobar, quando deputada estadual em São Paulo apresentou propostas sobre o aborto, tema de interesse das feministas. Todavia, o projeto de lei gerou discussões, mas não foi aprovado. Além disso, Ruth foi responsável pela criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). N 7.1 O movimento feminista e os antecedentes feministas na história de Ruth Na teoria do gênero, o movimento feminista está dividido em duas grandes fases: a primeira onda, que compreende o período da segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, na qual mulheres norte-americanas e europeias lutaram pelo direito ao voto, ao trabalho e aos direitos civis; noutro momento, na década de 1960 a segunda onda, que tinha como objetivo principal o rompimento da dominação masculina, o fim da discriminação e a luta pela igualdade. De acordo com as pesquisadoras Martha Giudice Narvaz e Sílvia Helena Kolle: A primeira geração (ou primeira onda do feminismo) representa o surgimento do movimento feminista, que nasceu como movimento liberal de luta das mulheres pela igualdade de direitos civis, políticos e educativos, direitos que eram reservados apenas aos homens. O movimento sufragista (que se estruturou na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos e na Espanha) teve fundamental importância nessa fase de surgimento do feminismo. O objetivo do movimento feminista, nessa época, era a luta contra a discriminação das mulheres e pela garantia de direitos, inclusive do direito ao voto. Inscreve-se nesta primeira fase a denúncia da opressão à mulher imposta pelo patriarcado. A segunda fase do feminismo (segunda geração ou segunda onda) ressurge nas décadas de 1960 e 1970, em especial nos Estados Unidos e na França. As feministas americanas enfatizavam a denúncia da opressão masculina e a busca da igualdade, enquanto as francesas postulavam a necessidade de serem valorizadas as diferenças entre homens e mulheres, dando visibilidade, principalmente, à especificidade da experiência feminina, geralmente negligenciada847. Algumas pesquisas apontam que, no Brasil, a segunda onda despontou no início dos anos de 1970, em São Paulo e no Rio de Janeiro, com grupos de estudos autônomos considerados como fundadores do nosso movimento feminista. Esses pequenos núcleos de estudos nasceram pela “necessidade de se romper o isolamento em que vive a maior parte das mulheres nas sociedades ocidentais, nuclearizadas em suas tarefas domésticas, em suas experiências individuais vividas solitariamente”848, pontuaram os pesquisadores Alves & Pitanguy. Noutra vertente, investigadores afirmam que o ressurgimento do movimento feminista no Brasil se deu em 1975, tendo como referência a instituição do Ano Internacional da Mulher (1975) e a criação da Década da Mulher (1976-1985), ambos promovidos pela ONU (Organização das Nações Unidas). Independentemente do ponto de partida que impulsionou a formação de um movimento de mulheres, houve um pensamento em comum entre essas organizações: a luta pelos direitos humanos e respeito à mulher! Na luta pela reivindicação de reconhecimento e igualdade das mulheres na sociedade brasileira, a pesquisadora Mariza Corrêa colocou que cabe “lembrar a atriz portuguesa radicada no Brasil, Ruth Escobar, por exemplo, que transformou seu teatro num importante local de discussão sobre a situação da mulher –, professoras universitárias, estudantes, sindicalistas, ativistas vindas de movimentos populares, jornalistas, etc849. ? Antes de Ruth Escobar ingressar no movimento feminista, a produtora realizou uma série de viagens pelo mundo, o que lhe permitiu contatos com diversas culturas, nas quais o tratamento e a representatividade das mulheres detinham características e regras específicas. Sua passagem por Saigon, no Vietnã e em Angkor, no Camboja, na década de 1950, foi marcante. Ela recordou em sua autobiografia850 como as mulheres eram tratadas e as ordens estabelecidas em seus respectivos contextos. A primeira memória escrita por Ruth Escobar contém a respeito de sua passagem por Saigon, cidade ao sul do Vietnã, em 1954: Fome, prostituição, inflação, agricultura destruída, aldeias arrasadas, tribos dizimadas a pretexto de combater os comunistas. Pela primeira vez ela ouviu falar de Ho Chi Minh, o herói da independência. Mas não via a guerra de que tanto falavam. E assim, quando a aconselharam a ir embora, ela, petulante, retrucou: “Imagine! Sou conhecida no meu país, seria um escândalo, logo me resgatariam!” Pierre, seu colega francês, deu uma gargalhada: -Cem mulheres não valem um único testículo! Lugar de mulher é em casa! 851. No período em que Ruth Escobar estava nessa região, iniciavam-se as primeiras tentativas de negociação de paz, após a luta dos vietnamitas contra o imperialismo francês (que acabou sendo derrotado) no período entre 1946 a 1954. A paz foi selada em 1954, em Genebra (suíça). Nessa reunião, também ficou acordado que Camboja, Laos e Vietnã também seriam independentes. Além disso, ficou acertada a divisão do Vietnã em duas partes: Norte (socialista), governada por Ho Chin Minh e Sul (capitalista) por Ngo Dinh-Diem. 847 NARVAZ, 2006, p. 649. ALVES; PITANGUY, 1982, p. 66-67. 849 CORRÊA, 2001, p. 15. 850 Cabe reforçar que o livro Maria Ruth (1985) foi escrito num período em que Ruth Escobar era política e feminista engajada. Por isso, suas memórias não representam a fidelidade de sua percepção daquele momento que vivenciou em outros países, mas foram permeadas pelo seu conhecimento presente no ato da escrita. 851 ESCOBAR, 1987, p. 64. 848 Apesar de o conflito ter cessado quando Ruth estava no Vietnã, ela encontrou uma cidade devastada, e as marcas dos destroços eram visíveis por toda cidade. Era tempo de reconstruir. Ainda que as condições de vida fossem ruins aos cidadãos vietnamitas, para as mulheres que possuíam uma posição inferior nessa estrutura social eram péssimas, independente de ser vital o seu trabalho na reconstrução da cidade. Ela também recordou das leis que lá imperavam sobre as mulheres: Caminhavam sempre três passos atrás do marido. Um homem podia ter quantas mulheres e concubinas quisesse, mas a adúltera era condenada a ter a cabeça raspada e posta a ferros, ou a ser esmagada debaixo de patas de elefantes; uma viúva era fiel à memória do marido para todo o sempre e, se fosse surpreendida em atitude suspeita, era decapitada. Agora, um marido, vietnamita podia livrar-se da mulher, só por ela ser tagarela.852 Ruth Escobar também visitou a cidade de Angkor, no Camboja, onde conheceu o ritual de passagem realizado no século XII em que “as meninas de famílias ricas, entre os sete e os nove anos, e as de famílias pobres aos onze anos, eram defloradas por um monge budista ou taoista. Todos os anos havia um dia para a defloração nacional, no mês que corresponde à quarta lua chinesa”853, recordou a empresária. Certamente Ruth conheceu outras situações em que mulheres eram tratadas como “produto” sub-humano, mas o fato de inserir tais passagens de sua viagem em sua autobiografia indica que foram marcantes em sua trajetória. Ainda que, de outras formas, a história das mulheres brasileiras também foi permeada por diversos tipos de condicionamentos sociais que não lhe permitiam exercer cidadania: o voto, o trabalho, o sexo, as decisões, as representações, etc. Nessa perspectiva, Ruth fez questão de escrever em sua autobiografia um capítulo intitulado Cintos e Sussurros, no qual trouxe à tona um momento íntimo de sua vida. Num ato de coragem, ela escreveu: Não sentia sequer o dilema e me resolvia pela autodestruição, imobilizando minha consciência, minha energia vital, assumindo na plenitude a fêmea medieval. Na manhã seguinte nos deparávamos com a solução objetiva do cumprimento do pacto. Certamente ele não pretendia me colocar um cinto medieval de couro e ferro. Nós dois, cúmplices, organizamos o artefato. O cinto seria adaptado em todas as minhas calcinhas, com cadeado, cuja chave ele carregava no pescoço. É claro que as minhas calcinhas não eram biquínis pornográficos, mas calcinhas de filha de Maria indo até a cintura. A partir daquele dia eu, pessoalmente, improvisei em todas elas várias aberturas caseadas, quatro na frente e quatro atrás, por onde o cinto atravessava rente à cintura. Consumava-se, mansa e pacífica, minha entrega ao seu canibalismo metafísico. “Se exige esta prova de amor, é porque me ama”, pensava eu, orgulhosa da minha devoção. Me ultrajei, neguei a liberdade de ser eu, neguei a liberdade física de urinar e evacuar, a não ser quando meu amo e senhor estivesse presente. Eu tinha que levantar, tomar banho e pôr meu certificado de propriedade antes do senhor sair de casa. O resultado desse exibicionismo amoroso foram uma tremenda colite intestinal e uma prisão de ventre crônica, à força do controle forçado das necessidades naturais. No teatro, eu me trocava escondida da camareira ou dos olhares de qualquer companheira, para não ser surpreendida com o meu pequeno amuleto do amor. Não consigo mais lembrar quantos meses carreguei essa doença. Por quê? Por quê? - me pergunto hoje. O homem possui, a mulher se entrega. 852 853 ESCOBAR, 1987, p. 65. ESCOBAR, 1987, p. 70. Ele me sussurrava no ato: “vou-te possuir”, e eu me matava no fanatismo da entrega. Desejo e morte. Como não ser escrava de quem me dava tanto prazer, interdito ao comum dos mortais? Quantas mulheres cúmplices de tantas mortes, de tantos silêncios, de tanta omissão? E, no entanto, essa mulher submissa, quando fora das quatro paredes do quarto, era uma fera, era eu, sua infra-estrutura artística, a garantia de que ele, o senhor, pudesse sonhar, criar seus cenários faraônicos, acumular prêmios todos os anos, e, assim, comprovar seu talento de gênio criador e macho dominador 854. A passagem descrita, acima, ocorrida em 1967, é de quando Ruth Escobar esteve casada com Wladimir Pereira Cardoso, cenógrafo que a acompanhava desde a montagem de A Ópera dos Três Vinténs, em 1964. Para compreender o trecho citado, faz-se necessário, ainda que brevemente, retroceder a 1962, a fim de esclarecer como Ruth Escobar chegou a essa situação. Wladimir e Ruth decidiram passar um final de semana na cidade de Diamantina, em Minas Gerais. Na volta para casa, Ruth assumiu a direção do carro que acabou resultando num acidente. Enquanto Ruth recebia os primeiros cuidados no hospital, Wladimir, ao saber que era necessário interná-la, preencheu a ficha de cadastro de atendimento, colocando-a como esposa. No período em que esteve no hospital, ele prestou todos os auxílios necessários para que Ruth Escobar tivesse um atendimento adequado. Sobre esse período, ela recordou: “depois de uma semana, tive alta. W855. foi de uma dedicação e de uma generosidade cativantes. Cuidou de mim, providenciou tudo o que era necessário, pagou a conta do hospital (pela primeira vez na minha vida alguém assumia o comando), me levou para casa. Crescia uma relação forte na qual eu vesti o padrão de esposa856. A cumplicidade e seu envolvimento amoroso ao longo dos anos com Wladimir fez com que Ruth chegasse ao ponto de se submeter ao desejo mais insano de seu marido: colocar um cinto de castidade, em 1967. Chama atenção que ao longo dos cinco anos que esteve junto a Wladimir, Ruth teve uma atuação destacada enquanto produtora em São Paulo: enfrentou a censura, construiu seu próprio teatro, concebeu projetos cênicos politizados (Mãe Coragem, A Ópera dos Três Vinténs e outros) e, além disso, vivenciou o golpe militar em 1964. Nesse sentido, pode dizer-se que havia duas condutas diferentes: a primeira dizia respeito a uma faceta politizada de embate com a censura e com a ditadura, assumindo a posição de uma mulher vanguardista no teatro, por outro lado, havia também uma Ruth que carregava os princípios norteadores da Igreja Católica, pelos quais as mulheres deveriam ser submissas aos homens, devendo assumir a função de donas de casa. A castidade a Wladimir terminou em 1967, quando ela decidiu revelar seu segredo a sua amiga Cacilda Becker, “que com seu jeito de rainha, revestida de autoridade e plena de afeto, fez-me ver a exótica anomalia de tal subordinação. Obrigou-me a jurar que chegaria em casa e jogaria no lixo não só o cadeado mas todas as calcinhas perfuradas”857, escreveu Ruth. Com os conselhos de sua amiga, ela percebeu que ao reprimir sua liberdade em prol da satisfação de seu marido, dando-lhe plenos poderes de decisão sobre seu corpo, estava ultrapassando a linha da sensatez no amor nutrido por Wladimir. Após esse episódio, a relação entre ambos começou a ficar mais conflituosa, chegando ao ponto de o cenógrafo atrasar, propositalmente, a construção do cenário de O Balcão, em 1969. Para terminar a montagem do espetáculo, Ruth Escobar decidiu afastá-lo e, logo em seguida, terminar o relacionamento. 854 ESCOBAR, 1987, p. 122. Em sua autobiografia, Ruth identifica seus ex-maridos somente pelas letras iniciais do nome. 856 ESCOBAR, 1987, p. 119. 857 ESCOBAR, 1987, p. 123. 855 Ao falar de um tempo traumático de sua vida, mesmo que realizado/acontecido com sua aprovação, Ruth Escobar se expunha e também servia de exemplo. Ao explicar o que fez em “nome do amor”, ela possibilitava às mulheres um questionamento de si mesmas e sobre o que permitir/aceitar em nome do suposto “amor”. Ao denunciar sua passividade, aceitando o ato violento contra sua pessoa, Ruth se engajava na luta pela liberdade de antigas e medievais amarras que seguram as mulheres e que, muitas vezes, as impediam/impedem de denunciar seus “parceiros”. 7.2 O engajamento no feminismo As passagens vividas ou presenciadas por Ruth Escobar deram-lhe impulso para entrar na luta dos direitos das mulheres em meados dos anos de1970. Como ela mesmo afirmou, as pessoas “assistiram ao meu progressivo envolvimento com o movimento de libertação feminina, em paralelo à luta pelo fim da ditadura”858. Mas o primeiro contato de Ruth Escobar com um grupo feminista ocorreu em Portugal, durante a temporada de Cemitério de Automóveis, na cidade de Cascais, em 1973. No elenco do espetáculo estavam atrizes e, também, as feministas Gilda Grillo e Norma Bengel. Nessa oportunidade, essas atrizes procuraram as autoras do livro, Novas Cartas Portuguesas, escrito por Maria Tereza Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa. Em entrevista ao pesquisador, Horta relatou que [...] elas pertenciam a um grupo de feministas ligado a Simone de Beauvoir [...] Na altura em que começou o processo do fascismo as Novas Cartas Portuguesas. Quando vimos que isso era muito perigoso, que íamos para tribunal, resolvemos mandar o livro para escritoras francesas Simone de Beauvoir e Christiane Rochefort que eram mulheres importantes na literatura e no feminismo. Sabíamos que havia muitas brasileiras nesse grupo. Um amigo de Maria Isabel se arriscou a levar um livro, pois ele sabia que se fosse apanhado, seria preso. Eles leva os três livros e as três cartas. Nós propomos que as escritoras entregassem os livros as latino-americanas, as brasileiras, para elas fazerem a tradução imediatamente para verem que aquilo não era um panfleto, era literatura. Era uma obra literária.859 Conhecido como Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris, era “formado por mulheres de diferentes países da América Latina, uma parte delas exiladas, que realizou suas primeiras reuniões a partir do ano de 1972. Esse núcleo feminista promoveu grupos de reflexão (ou autoconsciência), debates, projeções de filmes e, entre janeiro de 1974 e o segundo trimestre de 1976, publicou o boletim bilíngue (português e espanhol) Nosotras, totalizando 17 exemplares”860, afirmou a pesquisadora Maira Abreu. Pertencia a este grupo, Gilda Grillo e Norma Bengel as quais tiveram contato com a obra das Novas Cartas Portuguesas. A partir desse encontro entre as militantes feministas, Ruth Escobar conheceu um pouco sobre a luta das feministas portuguesas, pois elas, as autoras das Novas Cartas Portuguesas, “vinham a Cascais quase todas as noites – assistiram ao Cemitério de Automóveis – e, depois do espetáculo, íamos cear”861, recordou a produtora. A empatia entre elas foi além da amizade, resultou em luta pelas mulheres. Mesmo depois dessa temporada, Ruth decidiu continuar em Portugal, ela “queria saber a história de todas elas, todas iguais a mim, de todas as Marias858 ESCOBAR, 1987, p. 151. HORTA, Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. 860 ABREU, 2013. 861 ESCOBAR, 1987, p. 144. 859 meninas de Portugal, da França, da América e da África”862. A imersão de Ruth junto às feministas portuguesas resultou numa fase de autoconhecimento e reflexão. Leu, pela primeira vez, O segundo sexo, de Simone de Beauvoir e participou da leitura das Novas Cartas Portuguesas no Palais Chaillot, em 1973. Apesar desse contato com o movimento feminista, no ano seguinte, em 1974, Ruth não prosseguiu nessa luta, ela se dedicou à produção do I Festival Internacional de Teatro e à montagem de Autos Sacramentais e Capoeiras da Bahia. Ainda que, em 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) criasse o Ano Internacional da Mulher e a Década de Mulher, Ruth não levou adiante a luta em prol das mulheres. Naquele ano, a empresária não realizou nenhuma produção teatral, ele representou um momento de reflexão de sua vida e sua carreira, conforme abordado no capítulo quatro. Sua efetiva participação no feminismo se deu em 1976, quando para comemorar o Dia Internacional da Mulher, os jornalistas da Folha de São Paulo Irede Cardoso, Nelson Merlin e Licinio Azevedo convidaram Maria Inês Castilho, representando o grupo Nós Mulheres, Marlene Crespo, Maria Amélia de Almeida Teles do Brasil Mulher juntamente com Nilce Trajan, Silvia Pimentel e Ruth Escobar, a fim de debater o papel da mulher no Brasil. Questões sobre a desvalorização do papel da mulher na sociedade, o aumento do desemprego em virtude de elas quererem ingressar no mercado de trabalho e o aborto foram temas debatidos no encontro. No mesmo ano, Ruth Escobar apoiou financeiramente a publicação da primeira edição do jornal Nós Mulheres, periódico que tinha como característica representar a parcela “invisível” da sociedade. De acordo com a pesquisadora Maria Lygia Quartim de Moraes: A maior parte dos artigos de Nós Mulheres versava sobre política e condições de vida – reflexões sobre relações afetivas e sexualidade não eram habituais. Neste sentido, não se distingue muito de outros órgãos da imprensa de oposição voltados para a mulher, como o Brasil-Mulher, surgido um pouco antes como órgão porta-voz do Movimento Feminino pela Anistia. Sua marca diferencial residia na explícita definição feminista, em oposição a outros grupos que preferiam se apresentar como “femininos”. Em suas páginas, o grupo Nós Mulheres defendia um programa de transformações que incluíam a liberalização do aborto e o divórcio. O jornal circulava, essencialmente, entre as feministas das várias partes do país e do exterior e as lideranças dos movimentos comunitários. Desta maneira, exerceu uma influência que superava de longe suas magras edições, servindo de instrumento de formação e organização das mulheres em torno de uma visão feminista marxista 863. Ao mesmo tempo em que ingressava, paulatinamente, para colaborar com a luta da representatividade das mulheres na sociedade, Ruth Escobar, como produtora teatral, estava organizando o II Festival Internacional de Teatro (FIT) que ocorreria em maio de 1976. Nessa ocasião aproveitou a oportunidade para abrir espaço a um espetáculo dirigido por uma mulher que também lutava contra uma ditadura militar, no caso o espetáculo argentino Nacha de Noche, solo interpretado por Nacha Guevara. Atriz, cantora e dançarina, Nacha Guevara teve vários embates com a ditadura militar864 que se instalou na Argentina em 24 de março de 1966, resultando no seu exílio em 1975. Nacha 862 ESCOBAR, 1987, p. 146. MORAES, 1996, p. 10. 864 A Ditadura Argentina, ou a Revolução Argentina, foi o regime que se impôs a pós a derrubada do presidente civil Arturo III, por um golpe militar, em 28 de junho de 1966. Esse período de ditadura militar terminaria em 1973, quando da volta do peronismo ao poder. Não confundir esse período com a outra ditadura militar imposta 863 se autoexiliou quando um grupo de extrema direita, em 1975, jogou uma bomba durante um ensaio geral de seu espetáculo Las Mil y una Nachas.865 Somam-se a este trágico acontecimento, as ameaças de morte que começou a receber da organização terrorista de direita Triple A; ela deliberou pelo exílio em 1975. Primeiro foi para o Peru e depois ao México. Nacha Guevara veio, ao Brasil, acompanhada de seu marido, o pianista e arranjador Alberto Fávero, para apresentar o espetáculo Nacha de Noche. Conhecida como “Diva das Américas” cantou e recitou poemas e canções de poetas que lutaram contra regimes autoritários ou em defesa dos oprimidos nesses regimes.866 A respeito de Nacha Guevara, o crítico Alberto Guzik disse que “a moça argentina tem a sabedoria de beber em todas as fontes, catar a inspiração flutuando no vento e transformar tudo com as feitiçarias e os encantamentos de sua inteligência. Ela é o exemplo do mais puro dos teatros”867. Foi com esse repertório eclético e politizado que Nacha de Noche conquistou o público paulistano. A escolha de Ruth Escobar para encerrar o II FIT, em 11 de junho de 1976, no Teatro Municipal de São Paulo não poderia ter sido melhor. Com o sucesso de público e de crítica, a temporada do espetáculo foi estendida até o dia 17 de julho. Nacha Guevara somava-se às mulheres que combatiam as ditaduras, tendo como armas o seu fazer artístico. 7.3 O direito de fala a todas as mulheres no III FIT Apesar da iniciativa de Ruth Escobar em colaborar a favor da luta pelos direitos das mulheres por meio de espetáculos teatrais em seu festival, a produtora se envolveu com essa ideia somente em 1981, quando decidiu retomar a organização de festivais. Apesar das causas dessa longa pausa não serem conhecidas, o fato é que Ruth, nesse intervalo de seis anos, não deixou de produzir teatro: Revista do Henfil (1978), Fábrica de Chocolate e Caixa de Cimento (1979)868. Ocorrido de 1 a 16 de agosto de 1981, o III FIT assumiu dimensões superiores aos dois eventos anteriores. Para essa edição, Ruth trouxe dezoito grupos teatrais, além de uma programação paralela composta por intervenções, shows musicais e ciclos de cinema869. Ruth Escobar selecionou grupos teatrais da América Latina que tinham em sua dramaturgia uma reflexão sobre a luta de igualdade de direitos às mulheres, na qual era reivindicado mais espaço ao povo argentino a partir do golpe militar de 24 de março de 1976, que tinha como objetivo o extermínio da esquerda marxista e da esquerda peronista. Esta última ditadura argentina teve fim em 10 de dezembro de 1983. ZARANKIN; NIRO, 2010. 865 Ver COMPAÑÍA [entre 1990 e 2010]. 866 Tais como: Mário Benedetti, poeta, escritor e ensaísta uruguaio com participação ativa na vida política do Uruguai. Com o golpe militar no Uruguai, a 27 de junho de 1973, partiu para o exílio, e “durante mais de dez anos, Mario Benedetti, viveu em Cuba, Peru e Espanha como consequência da repressão”. O poeta francês Boris Paul Vian, ligado ao movimento estético surrealista e adepto do anarquismo. O norte-americano Tom Lehrer, pianista e humorista, “foi um crítico implacável da direita e dos conservadores norte-americanos, facto expresso em canções como Send the Marines! (Mande os Marines!), em que classifica as tropas de elite das forças armadas americanas como o instrumento de diplomacia preferido dos Estados Unidos” (TOM, [entre 1990 e 2010]. José Martí, político, pensador, jornalista, poeta cubano, criador do Partido Revolucionário Cubano (PRC) e organizador da Guerra de 1985 que lutou pela independência de Cuba que estava sob a tutela espanhola. Nacha utilizou poemas também de escritores não envolvidos com movimentos políticos, tais como Pablo Milanês, José Agustín Goytisolo e Sheldon Harnick. 867 GUZIK apud FERNANDES, 1985, p. 199. 868 Estes espetáculos foram abordados no capítulo seis desta pesquisa. 869 O III FIT, assim como as edições anteriores do evento, foram abordados no quinto capítulo desta tese. político e liberdade de expressão. Ela trouxe encenações que traziam à tona a forma de como as mulheres eram tratadas pelos homens latino-americanos. Cabe destacar que muitos dos países das produções latino-americanas que subiram aos palcos paulistanos para o III FIT estavam sob uma ditadura militar870. No que diz respeito ao contexto dessa época, convém lembrar que na década de 1980, a ditadura militar no Brasil, sob a presidência do general João Batista Figueiredo, demonstrava sinais de esgotamento, mas não de fechamento do ciclo militar871. O clima era tenso e as diferentes tendências entre civis e militares se dividiam entre o processo de “abertura” ou a manutenção do regime ditatorial. Seu governo, como observa Boris Fausto, “combinou dois traços que muita gente considerava de convivência impossível: a ampliação da abertura e o aprofundamento da crise econômica”872. No primeiro ano de seu governo, em agosto de 1979, Figueiredo “tirou das mãos da oposição uma de suas principais bandeiras: a luta pela anistia”873. Com isso ele conseguiu a aprovação pelo congresso da Lei da Anistia, que impedia revanches e avaliações contra as ações desencadeadas pelo exército no período da ditadura militar. Mas, como era Lei, ela permitiu o retorno ao país dos inúmeros exilados políticos, além de proteger torturadores envolvidos com o longo período da ditadura brasileira. Em 1981874, o ano em que Ruth Escobar promoveu o III FIT foi permeado por reações da “linha dura” já que não havia concordância com o processo de abertura do regime. No primeiro semestre desse mesmo ano, terroristas da direita: [...] explodiram bombas em todo o país. O atentado mais grave não se concretizou: na noite de 31 de abril de 1981, uma bomba explodiu no colo de um sargento, dentro de um carro, no estacionamento do Riocentro (RJ), onde se desenrolava um show comemorativo ao Dia do Trabalho. O caso foi investigado por militares de forma parcial e os envolvidos isentados de culpa. Como os torturadores dos anos 70, os terroristas da direita ficaram impunes 875. Em agosto de 1981, o pedido de demissão do chefe da Casa Civil, a eminência parda dos governos militares, general Golbery de Couto e Silva “teve certamente a ver com a 870 Golpes militares na América Latina na segunda metade do século XX, todos encaminhados como parte da política dos Estados Unidos (EUA) para impedir a expansão da esfera de influência da União Soviética (URSS) na América Latina: Brasil (1964-1985), Chile (1973-1990), Uruguai (1973-1985), Argentina (1976-1983). Além da ditadura do Paraguai (1954-1989). 871 Sobre essa questão, Daniel Aarão Reis apresentou um ponto de vista que amplia a reflexão acerca do encerramento do ciclo ditatorial no Brasil: “Na historiografia corrente, há um senso comum: a ditadura no Brasil acabou em 1985, com a posse do primeiro presidente civil, José Sarney. A idéia subjacente é que a ditadura foi apenas militar, o que os fatos, decididamente, não evidenciam. Desde a sua gênese, passando pelos vários governos, pela análise dos seus promotores e beneficiários, a ditadura nunca foi obra apenas das casernas. Assim, o referido senso comum é muito mais obra de memória do que resultado da pesquisa histórica” REIS, 2014, p. 103. 872 FAUSTO, 1999, p. 501. 873 FAUSTO, 1999, p. 504. 874 Destaco que no início dos anos de 1980, a emissora Rede Globo de televisão veiculou o seriado Malu Mulher, dirigido por Daniel Filho, no qual enfocava a temática feminista. As histórias mostram as dificuldades da mulher brasileira, madura e divorciada, a se posicionar na sociedade, na família e em uma relação homem-mulher. Malu sofre diante das dificuldades de uma vida nova. Separada do marido, ela passa por diversas tentativas frustradas na busca de um emprego com o qual pudesse manter a casa e a filha: faz pesquisas, traduções, vende roupas, escreve contos e chega até a cantar em boates. Além disso, ela tem que aprender a conviver com a culpa de deixar a filha sozinha para poder trabalhar. MALU In: Teledramaturgia, 2010. 875 BUENO, 2003. p. 383. manipulação do inquérito”876. Foi nesse contexto conturbado, no início da década de 1980, que a empresária realizou o III FIT com enfoque em obras explícitas contra as ditaduras latinoamericanas. Na programação do III FIT, é possível mapear as linhas de atuação que Ruth Escobar queria trilhar no evento. Dentre elas, é fatível pontuar que ela convidou espetáculos que se encaixavam em grupos de resistência, encenações que inovavam a estética teatral, além de espaço para mulheres diretoras, assim como espetáculos em que a temática abordada estivesse relacionada à causa das mulheres. Dentre as encenações brasileiras que foram expostas no III FIT, somente um espetáculo se debruçou sobre essa temática. Escrita pelo dramaturgo Naum Alves de Souza (também diretor do espetáculo) No natal a gente vem te buscar tem como foco os “valores passados de geração a geração [em] que todos [os personagens] são obrigados a cumprir mecanicamente uma obediência cega que produz um sufocante condicionamento e a impossibilidade de uma vida feliz”877. Apesar de o argumento estar centrado em questões referentes a tradições familiares, o texto também pode ser compreendido pelo viés do pensamento feminista, visto que a dramaturgia era “centrada na história de uma solteirona, sua vida quando criança, adolescente, adulta e o seu relacionamento com os outros integrantes da família”878. Durante o III FIT, o espetáculo realizou três apresentações na Sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar: duas sessões no dia 10 de agosto às 21h e 24h e uma sessão no dia seguinte às 21h. Para essas apresentações, os ingressos custavam trezentos cruzeiros - preço único para todos os espectadores. Sendo as últimas apresentações da produção carioca, conquistou críticos e o público paulista. A montagem carioca contava com a participação de Marieta Severo, Mário Borges, Rodrigo Santiago e Analu Prestes. No Rio de Janeiro, o espetáculo foi “sucesso de bilheteria e, desde sua estreia, em outubro, foi visto por mais de 40 mil pessoas, tendo terminado sua temporada no Rio (Teatro João Caetano) com 1800 pessoas na platéia”879, pontuou o jornalista Gonçalves Moreira. A personagem principal do texto ficou a cargo de Marieta Severo. Ela era ponto de apoio dos dilemas enfrentados por seus familiares. Numa acepção feminista, a necessidade de reivindicar reconhecimento e prestígio no seio familiar, assim como na sociedade por ser uma mulher que também assumia o papel do homem. Isso se evidenciou em virtude de que as personagens masculinas não praticavam nenhuma relação de poder, não possuíam voz e nem espaço, pois a solteirona tinha a tarefa de liderar. Para reforçar a necessidade de haver um chefe familiar, as personagens de Rodrigo Santiago e Mário Borges serviam como antagonistas, para enfatizar que a mulher poderia [e devia] assumir esse posto de chefia. A respeito do elenco, a crítica Ilka Marinho Zanotto destacou o desempenho dos atores: A “solteirona”, vivida por Marieta Severo com espantosa fidelidade a um tipo minuciosamente construído, já se inscreve na galeria de personagens de nossa dramaturgia como um dos mais patéticos e comoventes. O “primo-irmão de criação” tem em Rodrigo Santiago um interprete a altura de sua figura quase heroica na solidez e na coragem que não lhe bastaram, todavia, para escapar a um destino absurdo – o mesmo de tantas vítimas dos anos de repressão. Analu Prestes interpreta personagens diversos com tal força que acreditamos tratar-se de atrizes diferentes. E Mário Borges é uma esplêndida revelação para nós, paulistas, um ator completo 880. 876 FAUSTO, 1999, p. 505. NO NATAL In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2015. 878 MOREIRA; GONÇALVES, Jornal da Tarde, 10 ago. 1981. 879 MOREIRA; GONÇALVES, Jornal da Tarde, 10 ago. 1981. 880 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 13 ago. 1981. 877 Naum Alves de Souza conseguiu captar, através da observação do ambiente familiar de sua própria vivência e de seu entorno, tipos sociais que compunham os núcleos familiares, enfatizando, principalmente, o papel da solteirona. Para o crítico Yan Michalski “o autor tem uma qualidade rara na dramaturgia brasileira: a do 'understatement', da capacidade de dizer explicitamente pouco para insinuar muito”881. Pode aferir-se que o dramaturgo convergiu suas ideias em torno de um assunto que pouco ocupava os tablados do palco no início da década de 1980, ao destacar que uma mulher solteira não seguia os preceitos das ordens sociais, era mal vista pela maioria da sociedade brasileira, onde o matrimônio era uma formalidade social. Naum aponta para a necessidade de romper esse ciclo. O dramaturgo defende que a solteirona também tem o direito de abdicar da maternidade, assim como de interromper o ciclo das gerações. 7.4 A relação de Ruth Escobar com as temáticas feministas da América-Latina Outro grupo que trouxe o tema feminista em forma de espetáculo foi o chileno Taller de Investigacion Teatral (TIT), o qual foi fundado em 1976 com base num sistema cooperativado que não recebia subsídios governamentais. Com autoria de David Benavente e direção de Raul Osorio, Tres Marias y Una Rosa (1979) mostrou “quatro mulheres que unificam suas tragédias familiares, superam seus individualismos em um trabalho conjunto, uma tela gigante com um tema alegórico sobre o Juízo Final, porém, à moda chilena”882. A ditadura militar chilena (1973-1990), sob o comando de Augusto Pinochet ficou marcada como sendo uma das mais violentas da América Latina, por haver um número883 expressivo de mortos e exilados, além da violação dos direitos humanos. As mulheres nesse contexto, também, foram alvo de ataques do ditador chileno. Alinhado à Igreja Católica, Pinochet proibiu por meio de lei, a realização do aborto, no entanto agressões sexuais e psicológicas contra mulheres (inclusive grávidas) eram recorrentes nos porões da ditadura militar chilena. De acordo com o informe da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura [...] das cerca de três mil mulheres que depuseram, a grande maioria declarou ter sofrido alguma agressão sexual. Mais de 300 reconheceram ter sido vítimas de violência sexual nas mãos dos agentes do Estado durante a ditadura. De acordo com a Comissão os números podem ser maiores, pois muitas mulheres se negam a admitir as agressões884. Foi nesse contexto sociopolítico, de medo e terror às mulheres, que o espetáculo Tres Marias y Una Rosa serviu de alento na luta pelos direitos humanos no Chile. Ao colocar em cena a realidade das condições em que viviam as famílias chilenas, pela perspectiva do trabalho das mulheres, o diretor do grupo convocava a plateia a refletir sobre essa situação, ao mesmo tempo em que criava um ato contestatório contra o governo ditatorial. Essa posição politizada, 881 MICHALSKI In: PEIXOTO, 2004, p. 359-360. GONÇALVEZ FILHO, Folha de São Paulo, 06 ago. 1981. 883 Em 2011, a Comissão de Valech entregou um novo relatório sobre “o total de vítimas oficiais entre executados, desaparecidos e torturados durante os 17 anos que durou a ditadura de Pinochet (1973-1990) subiu para 40.280, apesar de entre os grupos de vítimas se estimar que a cifra possa superar os 100.000”. A comissão recebeu esse nome em homenagem ao Bispo Sergio Valesch, importante representante da luta dos Direitos Humanos durante o período ditatorial de Pinochet. Foi criada em 2003 com o objetivo de investigar a violação dos DH. Também conhecida como Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura. DITADURA, O Globo, 18 ago. 2011. 884 A DITADURA, Causa Operária, 2013. 882 inserida na encenação foi motivo para que jornalistas chilenos dessem enfoque a essa audácia e colocassem que a encenação “veio constituir um novo motivo de inquietude no que se refere aos ataques ao governo militar, perpetrados de atividades artísticas [...] esta obra é de boa qualidade. De todas as exibidas até o momento, é a de maior temática política com alusões claras e diretas”885. Esse embate direto com a ditadura chilena por meio do teatro foi relevante para Ruth Escobar selecionar esse grupo para participar do III FIT. A metodologia de trabalho adotada pelo grupo para construir o espetáculo Tres Marias y Una Rosa886 foi pautado na vivência diárias das atrizes durante um ano com as mulheres artesãs que viviam na periferia de Santiago. Esse comércio das tecelãs foi instituído, na década de 1970, como uma alternativa financeira para que as mulheres conseguissem sustentar suas famílias, devido à elevada taxa de desemprego no Chile e à repressão policial/militar. Em virtude dessas dificuldades enfrentadas pelas famílias chilenas, os maridos partiram para o exterior em busca de emprego. E coube às mulheres sustentar suas famílias; assim surgiu um trabalho alternativo, a tecelagem, para levantar recursos financeiros e manter a família. Nesta comunidade, as integrantes do grupo TIT puderam observar as relações estabelecidas entre as moradoras, o modo como trabalhavam para sustentar suas famílias com o trabalho artesanal e as características culturais do local. O objetivo da observação e convivência era não falsear a representação cênica a respeito do modo de vida dessas mulheres tecelãs. Essa imersão resultou num trabalho interpretativo desenvolvido pelo grupo que se destacou na imprensa chilena: "o mais surpreendente ao público na noite de estreia foi o realismo com que as atrizes encarnam as humildes artesãs. Alcançaram resultado depois de vários meses de trabalho da população Lo Hermida, onde conheceram quatro mulheres, que elas se encarregam de reviver”.887 A imprensa brasileira também destacou a vericidade da encenação que levou “às últimas consequências a realidade das personagens e de seu estilo pessoal”888. Chegar a esse resultado somente foi possível porque “o TIT vai transformando o material observado em material teatral, sobre o qual é criada posteriormente a obra dramática, a direção e a interpretação”889. Maria Escudero, diretora do grupo equatoriano Saltamontes que trouxe o espetáculo Pedro Manso (1979) foi mais uma presença feminina durante o III FIT. Escudero foi atriz, cantora, diretora, professora de teatro, pertenceu e ajudou a fundar o Departamento de Teatro da Universidade Nacional de Córdoba (Argentina), mas em 1969 foi expulsa da faculdade. Fundou, na década de 1970, o grupo Libre Teatro Livre, composto por alunos e ex-alunos e por “dedicados diretores do teatro de Córdoba”890. Em 1999, Maria Escudero “foi homenageada no Festival del Libre Teatro Libre de Córdoba que para tal ocasião incluiu a principal temática do encontro ‘O TLT, Maria Escudero e a crição coletiva hoje”. A Universidade Nacional de O jornalista alega que “ha venido a constituir um nuovo motivo de inquietud en lo que se refiere a ataques al gobierno militar, perpetrados de actividades artísticas [...] esta obra es de buena calidad. De todas las exhibidas a la fecha, es de la mayor temática política y com alusiones claras y directas””. ARTE, Hoy, 26 set. 886 O espetáculo Tres Marias y Una Rosa ficou em cartaz durante quatorze meses no Chile e foi assistido por mais de cinquenta e cinco mil espectadores. Com o sucesso de público e crítica, o grupo chileno realizou uma turnê internacional, passando pelos Estados Unidos, Canadá, Venezuela, Inglaterra e França. 887 “lo que más sorpriendó al público al noche del estreno fue el realismo con que las actrizes encarnam las humildes artesanas. Lograram resultado luego de vários meses de trabajo em la población. Lo Hermida, donde conoceram cuatro mujeres, que ellas se encargan de revivir”. PODER, La Tercera, 02. ago. 1979, p. 56. 888 MAGALDI, Jornal da Tarde, 08 ago. 1981, p. 14. 889 III FIT. (Programa). São Paulo, 1981. 890 ZABALA, 2008. 885 Córdoba, que trinta anos atrás havia expulsado a professora de teatro, pediu desculpas e lhe outorgou o doutorado Honoris Causa891. Com o golpe militar na Argentina, em de 24 de março de 1976, Escudero decidiu exilarse no Equador, local em que “continua com sua proposta, funda o Saltamontes, trabalha com mulheres por seus direitos; em um empenho persistente para transmitir e fazer que se descubram humanas, sensíveis e fortes para enfrentar a violência, entre outras vicitusitudes”892. Tanto com o Libre Teatro Libre, quanto com o grupo Saltamontes, Escudero sempre teve como princípio de trabalho a criação coletiva à construção de espetáculos comprometidos socialmente, abordando temas políticos e a problemática da violência familiar. Apesar da decisão de deixar seu país, em virtude do Golpe de Estado, Escudero enfrentou a segunda fase893 (1975-1979) da ditadura militar equatoriana em que “as elites militares depõem [Guilhermo] Lara e colocam um triunvirato – Alfredo Poveda (Marinha), Guilhermo Durán (Exército) e Luís Leoro (Aeronáutica) –, [...] que se volta para a modernização do sistema político para adequá-lo à emergente classe média e às novas realidades econômicas e políticas do país”894. A partir de suas vivências nesses contextos de repressão, Escudero concebe Pedro Manso, espetáculo que conta a história de um jovem casal que, apesar de a mulher ser autoritária, o poder de dominação do marido era superior, em decorrência de ter matado um galo na noite de núpcias, ação que demonstrava a virilidade do homem. A temática central serviu para discutir o machismo e o autoritarismo disseminado na população latino-americana, principalmente, em consequência dos golpes de Estado. Para refletir sobre essa questão, Escudero não impunha qualquer solução ao problema em questão, mas interrogava as espectadoras de sua postura perante à sociedade e seus parceiros, como ressaltou o crítico Sábato Magaldi: “os interpretes falam de fato a língua do povo e não cogitam de impor às camadas populares uma visão particular do que seria melhor para elas. A singeleza da apresentação se transmuda, como que por encanto, em delicioso prazer estético”895. A simplicidade da encenação também se encontrava no cenário de Pedro Manso, que era composto somente por um banco, “a parcimônia de recursos utilizados e o resultando excelente devem fazer muitos artistas de teatro daqui pensarem, antes de justificar a má qualidade de seu trabalho por causa da ‘falta de verbas”896. A respeito da concepção cenográfica e do espetáculo, o crítico Clóvis Garcia colocou: “o espetáculo é despojado de qualquer elemento desnecessário, com apenas acessórios cênicos e figurinos modestos. Mas o elenco [...] consegue, dentro de uma linha interpretativa quase ingênua, lembrar as comedinhas de nossos circos, realizar um trabalho teatral denso de poesia, comunicação e teatralidade popular”897. Utilizando-se de recursos cenográficos simples, empregando uma linguagem compreensível ao De acordo com a reportagem Maria Escudero, da Fundacíon Mandrágora, “En 1999 fue homenajeada en el Festival del Libre Teatro Libre de Córdoba que para tal ocasión incluyó la principal temática del encuentro: “EL TLT, María Escudero y la Creación Colectiva Hoy”. La Universidad Nacional de Córdoba, que treinta años antes la había expulsado de la cátedra de teatro, le pidió disculpas y le otorgó el doctorado Honoris Causa”. Acesso em: 23 mar. 2013. TORAL, 2015. 892 A reportagem também diz que quando Escudero “Llega a Ecuador y continúa con su propuesta, funda Saltamontes, trabaja con las mujeres por sus derechos; en un empeño persistente por transmitirles y hacer que se descubran humanas, sensibles y fuertes para enfrentar la violencia, entre otras vicisitudes”. 893 A primeira fase deu-se entre 1972 a 1976, sob o comando do general Guilhermo Rodríguez Lara. 894 PETRY, 2008, p. 3. 895 MAGALDI, 07 ago. 1981. 896 FI-LO, Revista Teatro, jul/ago. n.5 de 1981. 897 GARCIA, O Estado de São Paulo, 07 ago. 1981, p.21. 891 público, tal como apontam os críticos, Pedro Manso proporcionou um espetáculo envolvente que discutiu a presença da mulher na sociedade. Para o encerramento do III FIT, Ruth Escobar repetiu a mesma ideia do festival anterior, realizado em 1976. Ela convidou uma artista polêmica que também enfrentou um governo ditatorial na América Latina, a argentina Cipe Lincovski, militante política que desafiou as autoridades argentinas ao realizar espetáculos politizados, que contradiziam a máquina repressiva do Estado argentino e, consequentemente, viu-se obrigada a solicitar asilo político à Espanha. A Sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar, em 13 de agosto de 1981, foi transformada num cabaré para receber o espetáculo Yo Quiero Decir Algo (Eu Quero Dizer Algo) onde a atriz recitou, em forma de colagem, textos de Bertolt Brecht, Anton Tchecov, Oliverio Girondo, Pablo Neruda e Thiago de Mello. Dirigido pela própria Lincovski, o espetáculo tinha no elenco os músicos Edgardo Snuecoul (piano e órgão), Pablo Greco (bandoneón) e Estevan Morgado (guitarra). Percebe-se que Cipe, como forma de provocar uma tensão entre sua atuação política em forma arte com estados autoritários, intitulou seu espetáculo com um nome indicativo de que a artista tinha a necessidade de expor sua opinião, seja contra a imposição das rígidas regras que os militares impuseram à Argentina ou a outros países da América Latina e, até mesmo, sobre outros temas pertinentes à exposição da opinião pública. Além disso, o formato da encenação possibilitava a Cipe adequar a dramaturgia, de acordo com as condições sociais e situações políticas dos locais onde o espetáculo se apresentava. Ainda que a situação de ditadura militar fosse similar em ambos os países, cada um possuía suas particularidades, por isso, ela poderia optar pela adequação do espetáculo conforme a realidade local. A respeito dessa colocação, a crítica Ilka Marinho Zanotto afirmou que o monólogo tinha “permanentes referências – irônicas ou agressivas – aos temas políticos da atualidade, sobretudo nacional”898. Destaco que dois quartos (2/4) dos espetáculos que trataram da temática feminista foram dirigidos por mulheres, função geralmente ocupada por diretores/encenadores em seus respectivos contextos. Assim como Ruth Escobar, Maria Escudeiro e Cipe Lincovski foram militantes em seus países na luta contra a ditadura militar, utilizando o teatro como forma de protesto e denúncia dos atos ditatoriais. Há ainda de se dizer que na programação do III FIT consta a presença de outras mulheres artistas: a dança coral de Solange Camargo, o espetáculo solo A poesia do silêncio de Denise Stoklos e Isaura de Assis que assinou a direção de Procissão dos miseráveis. Com o fim de proporcionar mais espaço a essas mulheres que tinham uma trajetória significativa surtiu tanto efeito junto ao público e a crítica que, a partir da realização desse festival Ruth Escobar foi impulsionada a promover um evento, exclusivamente, para mulheres, o I Festival Nacional das Mulheres nas Artes, em 1982. Obviamente, deve levar-se em conta outro dado: durante a campanha política em que concorreu à deputada estadual em São Paulo, teve em sua plataforma política a reivindicação pelos direitos das mulheres. Isto é, ela impulsionou sua campanha eleitoral aliada à realização do festival para mulheres. Em 1985, tornou-se a primeira presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). 898 ZANOTTO, O Estado de São Paulo, 15 ago. 1981 p. 16. 7.5 Festival Nacional das Mulheres nas Artes, em 1982. Em julho de 1982, os jornais paulistas veicularam a notícia da realização do 1º Festival Nacional das Mulheres nas Artes, realizado pelo Teatro Ruth Escobar em parceria com a Revista Nova da Editora Abril, no período de 03 a 12 setembro. A ideia era a de promover um evento que aglomerasse num único evento diversas áreas artísticas e que fossem produzidas, exclusivamente, por mulheres, como forma de dar visibilidade e ser um espaço de reivindicação do reconhecimento do trabalho feminino. Para Ruth Escobar “este não é um festival feminista, é um festival de mulheres nas artes”899. Durante oitos dias o evento contou com uma quantidade expressiva de atividades900 artísticas, ministradas ou apresentadas por mulheres, em cerca de dezoito espaços culturais espalhadas por São Paulo: oficinas de teatro, defesa pessoal, apresentação de espetáculos teatrais, dança, músicas e performances, exibição de filmes de longas e curtas metragens, palestras, debates, conferências, exposições de livros e artes plásticas, bem como recitais de poesias compuseram a intensa programação desse Festival. Não obstante as polêmicas em torno de Ruth Escobar, antes de iniciar a programação oficial do 1º Festival Nacional das Mulheres nas Artes, o evento foi alvo de discriminação por parte da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). No encerramento do evento estava previsto um jogo amistoso no Estádio do Morumbi entre os times de futebol feminino de São Paulo e Rio de Janeiro. A respeito desse assunto deve salientar-se que o decreto-lei 3.199, de 14 de abril de 1941, instituía no artigo 54º que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos (CND) baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”901. Outorgado durante o Estado Novo, as correntes conservadoras desse período não aceitavam mulheres em práticas esportivas. Esse decreto durou trinta e oito anos até ser extinto em 1979. Apesar de a lei não ter mais validade no território brasileiro em 1982, a CBF dificultou a permissão do acesso ao Estádio do Morumbi, mas acabou cedendo à pressão para realizar a partida de futebol feminino no dia 12 de setembro. O show de abertura contou com a participação das atrizes Marília Pera e Ítala Nandi, do maestro Júlio Medaglia, com participação de Clementina de Jesus, Mercedes Sosa, As Frenéticas, Marina, Ivone Lara, Zezé Mota, Joana, Vanja Orico, Célia e Nana Caymmi, no pátio da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP). Em plena campanha eleitoral para deputada estadual, Ruth Escobar fez questão de realizar a abertura do evento diante de um espaço político em que a representatividade das mulheres era minoria902. Este ato pode ser compreendido como uma ação de mão dupla: ao mesmo tempo em que protestava (ainda que 899 TAIAR, Folha de São Paulo, 02 set. 1982, p. 20. A partir das informações que constavam no jornal Folha de São Paulo montei uma tabela com a programação do evento, exceto dia 06 de setembro, que não foi localizado. Ver anexo II. 901 BRASIL, 1941. 902 Nas eleições de 1982, dos oitenta e quatro candidatos eleitos, somente duas mulheres foram escolhidas: Ruth Escobar (PMDB) com 48.049 votos e Crolinda Costa Silveira Sampaio (PTB) que recebeu 41.250 votos. No entanto, na eleição anterior, em 1976, Irma Passoni (MDB) foi a única a ocupar o cargo de deputada federal em São Paulo. Foi eleita com 30.438 votos. PORTAL, Fundação SEADE, 2015. De acordo com Aline Giselle Pizatto, “a primeira mulher que chegou ao Senado Federal conseguiu fazê-lo apenas em 1979, quase cem anos depois de proclamada a República e quase 50 depois da mulher ter conquistado o direito o voto. Mesmo assim, Eunice Michilles não foi eleita pelo voto direto. Assumiu a vaga pela ARENA do estado do Amazonas por ser suplente do Senador João Bosco, que teve morte súbita. As primeiras Senadoras eleitas pelo voto foram Marluce Pinto, pelo PMDB de Roraima, e Júnia Marise, pelo PDT de Minas Gerais, ambas assumindo o mandato em 1991. PIZATTO, 2005, p. 09. 900 sutilmente) pela busca de uma ampliação da representatividade das mulheres na ALESP, ela realizava campanha em prol de sua candidatura. Na área musical, destacou-se a realização do Festival Feminino da Canção que tinha “por objetivo divulgar a criação das compositoras a nível nacional dentro do repertório de música brasileira, com vistas a despertar e aprofundar o interesse pelos valores da criação musical feminina de nosso país”903. A ideia de organizar um festival em que cantoras fossem a atração principal teve uma alta demanda, alcançou o total de quinhentas inscrições, mas somente trinta e seis foram selecionadas pela comissão.904 Outro fato acirrou os ânimos durante o festival. Ítala Nandi que havia participado da abertura do evento, também tinha sido convidada por Ruth Escobar para proferir a conferência A mulher e o teatro, em 12 de setembro. No entanto, retirou-se do festival por perceber que o mesmo não estava de acordo com aquilo em que acreditava. Para justificar sua saída, enviou um texto ao jornal Folha de São Paulo falando de suas razões: Inaugurou nessa terra de Santa Cruz o 1 Festival Nacional das Mulheres nas artes. Eu participaria com meu filme “IN VINO VERITAS 905” e em verdade me retirei assim que senti no ar o cheiro do ranço colonialista que insuspirável feriu todos meus sentidos. Muitos salamaques para o mostruário estrangeiro promover as projeções de status das “feministas nacionais”. Os tapetes corporais estendidos pelo chão para as moças de fora passar e as mulheres artistas da terra de Yemanjá ficarem na eterna infra-estrutura. Como num ambiente de exibicionismo, sem conteúdo real, falar em temas como os que me são mais caros e são a razão impulsionadora de meus desejos – liberar qualquer ser da objetivação, da incomunicabilidade que vem de cima de visões de mundo sem qualquer qualitatividade, e principalmente alertar para o uso de um ser pelo outro – a busca da autonomia – como discutir questões de criação em clima de quantidade? De olhos que se curvam à idéias de fora pra dentro? O eterno crer no importar de idéias – há 60 anos atrás revolucionou-se esse país com a exportação de nossa poética, mas houve uma lavagem cerebral e isso foi esquecido e se tornou até antinacional. Retirei todos os meus trabalhos desse vampiresco encontro [...] certamente haverá de surgir um espaço para a mulher brasileira procriar publicamente suas idéias – e fazer aquele intercâmbio prazeroso, novo....906 A posição de Ítala Nandi repercutiu na imprensa paulista. A jornalista Anésia Pacheco Chaves disse que a atriz “chama o Festival de colonialista. Vejamos: num país econômica, política, e culturalmente colonizado, a luta não se apresenta em termos de negação da situação”907. A socióloga Maria Quartim de Moraes afirmou: “Que pena Ítala Nandi, que você tenha perdido tudo isso. Você caiu na armadilha do estreitismo que pretende criticar 908. Ao 903 FESTIVAL, Folha de São Paulo, 22 jul. 1982, p. 35. Após uma semana de eliminatórias, no último dia do evento, as cantoras finalistas subiram ao palco do Teatro São Pedro para apresentarem suas canções: Marta Arantangy (Sonho de Prazer), Irinéia Maria e Sueli Correia (Meias Partes – 1º lugar), Rosa Passos e Fernando de Oliveira (Demasiado Blue – 2º lugar), Áurea Regina e Chico Chaves (Marés), Luli e Lucina (Viola de Prata – menção honrosa), Priscila Barrak e Ermel (Infância), Joésia Ramos (Amor de Fogo e Água), Mônica Dantas e Denise Chagas (Frestas), Sandra Pêra e Ruban (Barriga Vazia – 3º lugar), Tereza Tinoco e Rosa Maria Guerrera (Pássaro) e Flávia de Queiros Lima (Mariana). 905 A exibição deste filme não foi localizada na programação do festival, no entanto como não foi encontrada as atividades artísticas do dia 06 de setembro na Folha de São Paulo, data que supostamente exibiria a obra cinematográfica. 906 NANDI, Folha de São Paulo, 07 set. 1982, p. 22. 907 CHAVES, Folha de São Paulo, 08 set. 1982, p. 22. 908 MORAES, Folha de São Paulo, 10 set. 1982, p. 32. 904 contrário do que afirmou Ítala Nandi, Ruth Escobar procurou inserir uma quantidade expressiva de obras artísticas realizadas por mulheres, como forma de oportunizar e demonstrar que havia um contingente de trabalhos artísticos pouco valorizados. No entanto, Ítala Nandi não percebeu essa ideia de Ruth Escobar, preferiu optar por abandonar a causa em prol da qualidade. Apesar de haver desistência da atriz paulista, houve, antes mesmo de iniciar o festival, uma adesão de outras artistas brasileiras que quiseram participar do evento para colaborar com a discussão da necessidade de haver mais espaço para as mulheres na sociedade. Dentre as brasileiras, Tônia Carrero declarou que “aceitei participar do Festival – mesmo tumultuando minha vida e a do elenco – porque acho que temos que colaborar com uma iniciativa que diz respeito à mulher. O convite de Ruth Escobar me deixou feliz [...]”909. Em seu espetáculo A Volta por Cima ela vivia duas mulheres diferentes “a primeira desiludida, vivendo uma crise existencial. É uma Tônia envelhecida, que reflete fisicamente o seu drama. Já a outra, apaixonada por um rapaz mais jovem, dá a volta por cima e surge no palco rejuvenescida e brilhante”910. As cantoras Ângela Ro Ro e Zizi Possi também queriam espaço para mostrar seus trabalhos, no entanto “elas deveriam se apresentar em um show marcado para o mesmo dia, o que é impraticável devido ao estado em que se encontra a amizade das duas. Ruth terá que escolher, e no momento está mais inclinada por Ângela”, constou na nota publicada no jornal Folha de São Paulo911. Os exemplos citados são apenas alguns da adesão de mulheres artistas ao festival, já que a quantidade de inscrições superou as expectativas. Apesar dos percalços ocorridos durante o evento (e não teria como deixar de ter), Ruth Escobar conseguiu dar visibilidade ao trabalho artístico feminino. Não somente mulheres brasileiras tiveram espaço no evento, Ruth Escobar também fez questão de trazer artistas de renome internacional. De Portugal vieram as escritoras Natália Correa e Maria Isabel Barreno, porque “as portuguesas, por exemplo, viveram durante décadas num regime patriarcal, machista, clerical e de repente houve uma explosão, as mulheres estão no Parlamento. É importante que elas venham aqui contar como isso aconteceu” 912, declarou Ruth Escobar. O festival também contou com a presença da artista plástica francesa Bette Kalache e de Ellen Stewart, mentora do Teatro Experimental La Mamma, de Nova Iorque. Após o festival, Ruth Escobar fez uma avaliação sobre o evento: “a nível da luta da mulher, conseguimos recuperar três décadas. Não só na arte mas pelas discussões teóricas e intercâmbio de informações que houve entre as mais diferentes tendências internacionais e as representantes de grupos de mulheres que vieram de todo o País”913. Ainda que as palavras da produtora sejam um pouco exageradas ao se referir sobre a “recuperação” da participação das mulheres nas artes, a realização do 1º Festival Nacional de Mulheres nas Artes foi um passo importante para que se pudesse valorizar o trabalho do sexo feminino em todas as áreas de atuação. Para Natália Correa: O Festival não se limitou a exibir trabalhos das mulheres, ele preencheu-se de um significado que transborda o mero projeto feminista. Foi uma proposta da feminização da cultura, através de valores da imaginação, da sensibilidade, do afeto, do sonho e da intuição. E isso parece-me importante porque todos, homens e mulheres devemos trabalhar para contrabalancear o abuso e o reacionarismo do discurso ainda cartesiano. Foi a busca, da essência do feminino, sem estar dominada pelos conceitos históricos 909 CARRERO, Entrevista concedia a Isa Cambará. Folha de São Paulo, 05 set. 1982, p. 1. TÔNIA, Folha de São Paulo, 06 set. 1982, p. 8. 911 MULHERES ouriçadas, Folha de São Paulo, 26 ago. 1982, p. 35. 912 TAIAR, Folha de São Paulo, 02 set. 1982, p. 20. 913 ESCOBAR, Entrevista concedida a Catarina Arimatéia. Folha de São Paulo, 13 set. 1982, p. 23. 910 feministas que tiveram sua época mas, pela dinâmica da sociedade, terão de ser ultrapassados”914. Para realizar esse festival, Ruth Escobar “sabia que não iria obter ajuda dos órgãos públicos, por se tratar de um ano eleitoral. Então procurei o Roberto Civita, que aceitou a proposta”915, declarou. Estrategicamente, ela aliou a realização do evento para corroborar com sua campanha política por uma vaga de deputada estadual, dando-lhe mais visibilidade junto ao seu eleitorado. A respeito disso, declarou que “as pessoas vão votar em mim pelo que eu faço, não pelo que digo. Eu me afastei temporariamente dos comícios, aos quais voltarei assim que terminar o festival, mas estou realizando um trabalho que deve trazer bons resultados para a discussão do problema da mulher”916. Notavelmente, Ruth Escobar transformou o festival num comício, não nos moldes tradicionalmente concebidos na época: palanque, microfone e multidão, mas pelo viés artístico. Ela percebeu que havia um nicho de atuação que estava à margem da sociedade, no qual poderia interver e lutar na reivindicação de direitos. Nessa empreitada de conseguir um cargo público, tendo como “bandeira” a causa feminista, Ruth Escobar não estava sozinha. Contava com a participação de Ida Maria e Silvia Pimentel, que concorriam à Câmara Municipal917 de São Paulo e à Câmara Federal, respectivamente. A “trinca feminista” pemedebista fez uma “campanha [...] belíssima e de forte conteúdo e significado democrático, no final do período de autoritarismo militar [...] ao ressaltar a relevância de luta contra a discriminação da mulher e a busca da igualdade de direitos entre homens e mulheres, enriqueceu de forma emblemática, essa histórica campanha de 1982”918, afirmou Silvia Pimentel. Por fim, pontuo que neste ano, foi criado o Conselho Estadual da Condição Feminina919, durante o governo de André Franco Montoro, “cumprindo o compromisso expresso em sua Plataforma de Campanha ao Governo do Estado de São Paulo”920. A proposta foi elaborada pelo Departamento Feminino do PMDB, composto por várias feministas, dentre elas algumas candidatas. Este órgão que Ruth Escobar ajudou a criar foi um importante aliado em sua trajetória como Deputada Estadual. 7.7 O envolvimento de Ruth Escobar com as políticas para as mulheres Durante seu primeiro mandato como deputada estadual, mais precisamente em julho de 1984, Ruth Escobar lançou o Ruthilante: um jornal da deputada estadual Ruth Escobar, com o objetivo de divulgar o trabalho que vinha desenvolvendo dentro da Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP). Para trabalhar nesse projeto editorial921, Ruth Escobar compôs um conselho editorial misto, formado por: Schuma Schumaher, Zuleika Alambert, Inah Machado, Antônio Flávio Lisboa, Mauricio Paiva e Pedro D´Alessio. 914 CORREA, Natália. Entrevista concedida a Catarina Arimatéia. Folha de São Paulo, 13 set. 1982, p. 23. TAIAR, Folha de São Paulo, 02 set. 1982, p. 20. 916 TAIAR, Folha de São Paulo, 02 set. 1982, p. 20. 917 Nessa mesma eleição, Irede Cardoso também se candidatou à Câmara Municipal pelo PT tendo como propostas políticas públicas para as mulheres. 918 PIMENTEL, Silvia. Entrevista concedida a Yumi Garcia do Santos, 2006, p. 416. 919 Colaboraram para a criação do Conselho Estadual da Condição Feminina: Beth Bello, Yara Prado, Zuleika Alambert, Eva Blay, Sílvia Pimentel, Ruth Escobar, Ida Maria, Florizza Verucci e Maria Malta Campos. 920 PIMENTEL, Silvia. Entrevista concedida a Yumi Garcia do Santos, 2006, p. 416. 921 Participavam também: Edição e redação: Maria Angélica e Vera Rangel. Jornalista responsável: Maria Angélica Gonçalves Lemos. Arte: Dalton Sala Júnior. Administração: Maria Aparecida Schumaher. 915 A primeira edição922 (ano 1 n. 0) estampou as matérias relativas a Diretas Já, o Código Civil, a Legislação sobre a cultura e uma reportagem especial sobre a autonomia do movimento feminista. Nesta pequena publicação, composta por oito páginas, Ruth Escobar escreveu um texto intitulado Ser mulher e parlamentar. Ainda que seja longo, é importante reproduzi-lo na íntegra para compreender seu pensamento: Tenho a nítida compreensão da importância de uma participação mais ativa por parte dos artistas, intelectuais e das mulheres em especial, ao Parlamento. Acredito que essa participação cria possibilidades de combate às discriminações em relação às mulheres em particular, e ao povo em geral. Ao mesmo tempo, abre canais para uma possível democratização da cultura, uma das bandeiras levantadas em minha campanha eleitoral. É que estando dentro das estruturas de poder, tendo em vista que fora delas minha combatividade esteve sempre à mostra. Lancei minha candidatura como deputada estadual pelo PMDB tendo recebido o apoio de mulheres de diferentes segmentos sociais e de setores representativos da cultura brasileira. Já se passaram alguns meses, as vezes me parece uma eternidade, desde a pretenciosa afirmação feita por mim à algumas companheiras: “não vou me transformar em homem honorário”. O que eu afirmava, o que eu queria dizer que no meio desse colégio interno masculino que é a Assembleia (82 deputados para 2 deputadas) eu não iria abrir mão do meu “ser” feminino na forma de atuar e de me comunicar. Estou falando do meu desejo de atuar concretamente, de não deter-me seja qual for a batalha. Ter presente as consequências de qualquer ação significa ter de mover-me com extrema cautela, desconfiar de qualquer aparente conquista, mesmo diante das conquistas mais óbvias. Não perder de vista nunca, no sistema cultural no qual eu me desloco, que tipo de linguagem será mais eficaz para a efetiva compreensão das nossas plataformas de lutas. Entretanto ser mulher destrói as vezes canais diretos de entretenimento e participação igual. Consciente que minha atuação implicará na eficácia da comunicação do que nós mulheres entendemos para a transformação da sociedade, tive de aprofundar “técnicas de sobrevivência” para não ser excluída do “Poder Institucional”. Quer dizer, fazer me entender nesse universo masculino da política, entendendo a linguagem dessa terra de homens, sem no entanto absorver sua ideologia e assim continuar sendo uma mulher, sem que isso afete a qualidade de minha qualificação enquanto parlamentar. Difícil, doloroso, ambíguo tentar o tempo todo delimitar o campo de contaminação para não me transformar num “homem honorário”. A política em nosso país sempre foi um negócio de homens. Na tribuna, nós mulheres, somos vistas como figuras estranhas ou aves raras. E nossas palavras para muitos tem pouco sentido. Na verdade tanta coisa ainda está para ser feita para que possamos aparecer diante de cada Estado e de toda a Nação como força real, marcante, plena de criatividade no que concerne à transformação da condição de vida da mulher e como reforço acentuado de nossa luta libertadora. No que me diz respeito, continuarei lutando para corrigir velhas injustiças, por uma participação das mulheres nas listas de candidatos apresentados pelos partidos políticos às futuras eleições, proporcionais ao seu peso eleitoral. Pela nomeação de um número maior de mulheres aos variados postos executivos, pela eleição de novas mulheres de diferentes instâncias partidárias e para as direções das organizações clássicas e democráticas em geral, em todos os níveis. O desafio é grande e a batalha é árdua, porém, acredito na nossa vitalidade e na nossa capacidade de estilhaçar velhas fórmulas de poder, sem que tenhamos de nos transformar em “homens honorários”. Não vamos arredar os pés! 923 922 923 Durante a pesquisa foi localizado somente um único exemplar. ESCOBAR, 1984, p. 2. Consciente de seu papel no interior da ALESP, sendo única mulher no meio de tantos homens, Ruth Escobar assumiu o compromisso junto ao seu eleitorado, que a elegeu (principalmente mulheres) de que esse cargo público seria dignamente ocupado por sua pessoa. Ainda que as dificuldades encontradas diante dessa situação dominada pelos homens, Ruth Escobar ao longo de oitos anos de mandato924 discursou quarenta e três vezes na ALESP, sendo que doze deles tinham relação com a temática feminina925. Um importante movimento civil sacudiu o Brasil entre 1983 e 1984; era o momento das “Diretas Já”, que reivindicava eleições diretas para Presidente da República. Esse movimento ganhou mais corpo após o encaminhamento ao Congresso Nacional, pelo Deputado Federal Dante de Oliveira (PMDB-MT), do Projeto de Emenda Constitucional N. 5, que propunha eleições diretas. Ocorreram intensas mobilizações político-populares, para sensibilizar o Congresso Nacional e os Militares de que era tempo de mudanças no regime brasileiro. Em São Paulo, Ruth reuniu artistas em seu teatro para participar do comício monstro na Praça da Sé, nos dias 23 e 25 de janeiro de 1984. No primeiro dia, juntamente com a deputada federal Bete Mendes (PT) e outras militantes, realizaram um ato público na Praça da Sé em que convocaram toda a população, principalmente, as mulheres a participarem daquele, no mesmo local. Na oportunidade, foi distribuída uma carta convocatória que afirmava: “defender, hoje, as eleições diretas, significa lutar pela efetiva participação de homens e mulheres nas decisões que dizem respeito aos brasileiros... nós mulheres repudiamos a política econômica e social imposta ao nosso País, que massacra a maioria dos brasileiros... por isto gritamos Basta!. Basta de carestia...companheiras mulheres, participem dessa luta”926. Em meio ao comício, surgiu um grito de guerra para adensar a união de todos em torno dessa luta comum: “1, 2, 3, 4, 5 mil, 924 De acordo com o livro de assentos da ALESP, Ruth Escobar solicitou as seguintes dispensas de sua função como deputada estadual: 30 de maio a 03 de junho de 1983 para participar do Festival of Brazil, em Londres; Encontro Internacional A mulher, a comunicação e o Desenvolvimento na América Latina no período de 13 a 17 de junho, em Roma; de 06 a 11 de abril de 1983, pediu licença para participar de palestras na Associação Acadêmica de Coimbra sobre o tema A mulher e a sociedade e também para ser ouvinte observadora para representar o partido no Congresso Internacional Socialista; em 01 de fevereiro de 1984 solicitou licença para assuntos particulares a serem resolvidos na França; Fez viagem à Venezuela e Nova Iorque a partir de 27 de fevereiro (não consta data de retorno); Participou da Conferência da Fundação de Relações Internacionais, em Lisboa, de 27 de junho a 08 de julho de 1984; Solicitou licença para ausentar-se no país de 27 a 30 de novembro de 1984 (não consta o país); de 23 de janeiro a 05 de fevereiro de 1985 solicitou licença para participar da comitiva do presidente eleito Tancredo Neves; de 30 de abril a 06 de maio de 1985 foi a Tunísia a fim de participar do Congresso Internacional (não consta nome do evento); participou de 07 a 30 de julho de 1985 para ir a Nairobi para participar como delegada oficial brasileira de uma convenção (não consta nome); por interesse particular, licenciou-se por cento e vinte dias a partir de 10 de setembro de 1985; solicitou trinta dias por interesse particular a partir de 08 de janeiro de 1986; solicitou mais trinta dias a partir de 07 de fevereiro para assuntos particulares; para assuntos particulares licenciou-se no período de 10 de setembro de 1985 a 17 de fevereiro de 1986; licenciouse de 08 a 17 de março de 1986 para assistir a posse de Mário Soares, em Lisboa; por convite do presidente da república, no período de 03 a 10 de março, fez parte da comitiva de uma viagem a Portugal e Cabo Verde; de 30 de junho a 08 de julho de 1986 para participar de comitiva que foi a Paris para assinar um acordo Brasil-França. 925 1) Solidariza-se com a “Jornada Nacional pelo Aborto (06/10/83); 2) Considerações sobre o Dia das Mães (01/06/83); 3) Fala sobre a criação do Conselho da Condição Feminina (19/05/84); 4) Solidariza-se com o movimento de mães da assemblei sobre o problema da creche da casa (19/05/84); 5) Relembra a morte da sra. Margarida Alves, líder sindical da zona rural da Paraíba (24/08/84); 6) Repudia a sentença proferida pelo Tribunal de Justiça de Brasília impedindo uma hanseniana de recorrer ao aborto (07/06/84); 7) Considerações sobre a delegacia da mulher (31/03/87); 8) Critica o deputado Waidh Helu por tentar ridicularizar a prefeita eleita Luiza Erundina; 9) Denuncia discriminação contra o trabalho da mulher devido a ampliação da licença-maternidade (15/09/88) ; 10) Considerações sobre o direito da mulher (22/03/88); 11) Discute o PL 156/87 (atendimento médico no caso de aborto) (22/03/88); 12) Manifesta solidariedade a prefeita Luiza Erundina 926 MULHERES, Folha de São Paulo, 24 jan. 1984, p. 5. queremos eleger o presidente do Brasil”927. No dia do comício, o repórter Miguel de Almeida registrou os principais momentos na concentração feita no Teatro Ruth Escobar antes da partida ao comício: “Dentro do teatro, cenas várias. As camisetas com inscrições pelas diretas para presidente eram distribuídas a todos”928. Logo em seguida, no dia 27 de janeiro, Ruth Escobar marcou presença no comício às pró-diretas em Olinda (PE), manifestação que reuniu cerca de trinta mil pessoas929. Também esteve presente em Curitiba (PR), reunindo cerca de cinquenta mil930 pessoas. Como forma de impedir as manifestações comandadas por Ruth Escobar, em fevereiro de 1984, o ministro do Exército Valter Pires encaminhou uma requisição ao ministro da Justiça Abi Ackel, solicitando que Ruth Escobar e Millôr Fernandes fossem enquadrados nos artigos 23 (incitar a subversão de ordem pública e social) e 26 (caluniar ou difamar o presidente da República) da Lei de Segurança Nacional (LSN). Ela, em decorrência de ofensas proferidas ao presidente Figueiredo, durante um comício na cidade de Icem no interior do Estado de São Paulo, em 1982. Ele, por publicar um artigo na Revista Isto É e ter ofendido o general Newton Cruz. No comício, Ruth declarou publicamente que ex-presidentes militares pós-movimento de 1964 eram “ladrões de casaca disfarçados de generais que estão roubando nosso país”931. Observo que dias depois, em 02 de março, o Teatro Ruth Escobar sofreu um ataque de vandalismo. Foram quebradas três portas, duas de vidro e uma de acesso ao bar. Sem titubear, Ruth prestou queixa à polícia. Nessa empreitada, as companheiras feministas de Ruth Escobar também se pronunciaram contra sua condenação. Não obstante, as mulheres militantes saíram à luta em defesa de Ruth Escobar, assim como parte da classe teatral paulistana. Cinco entidades ligadas ao teatro divulgaram um documento, repudiando o enquadramento de ambos os artistas. No documento assinado pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado de São Paulo, Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais de São Paulo (APETESP), Associação Paulista de Teatro para a Infância e Juventude Cooperativa Paulista de Teatro e Associação Nacional dos Produtores de Artes Cênicas afirmava que essa atitude “aprofunda a sua conduta de intimidação da classe artística, com o evidente propósito de afastá-la da luta que une o País em prol das eleições diretas”932. No dia 15 de março de 1984, Ruth prestou depoimento na Polícia Federal para esclarecer a respeito das palavras pronunciadas contra o governo. Durante o depoimento, ela ouviu a gravação feita e entregue por Davi Ângelo (PDS), prefeito da cidade. De acordo com o jornalista que acompanhou Ruth Escobar nessa ocasião, ela afirmou que “Polícia Federal deveria se preocupar em apurar coisas graves que estão correndo no País e não perder tempo com “essa babaquice””933. Contudo, a denúncia não surtiu efeito. O juiz Roberto Menna Barreto rejeitou o caso, alegando que a conduta934 de Ruth Escobar “não encontra ressonâncias 927 MULHERES, Folha de São Paulo, 24 jan. 1984, p. 5. ALMEIDA, Folha de São Paulo, 26 jan. 1984, p. 27. Dentre os presentes estavam os atores Irene Ravache, Raul Cortez, Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Renato Borghi, os escritores Ligia Fagundes Teles, Ricardo Ramos e Fábio Lucas e os músicos Gilberto Gil e Alceu Valença. 929 A favor desse novo passo democrático, também estavam presentes o prefeito da cidade José Arnaldo, o deputado Miguel Arraes (PMDB-PE), a atriz Bruna Lombardi, o ex-líder camponês Francisco Julião (PDT), os presidentes regionais do PDT, do PT e do PMDB; os governadores Tancredo Neves (MG) e Franco Montoro (SP); os presidentes nacionais do PDT, PT, e PMDB, Doutel de Andrade, Luís Inácio Lula da Silva e Ulisses Guimarães. 930 BRICKMANN, Folha de São Paulo, 13 jan. 1984, p. 6. 931 SENTENÇA, Folha de São Paulo, 12 jun. 1987, p. 7. 932 ENTIDADES, Folha de São Paulo, 21 fev. 1984, p. 7. 933 RUTH ESCOBAR, Folha de São Paulo, 16 mar. 1984, p. 6. 934 Na mesma denúncia estavam envolvidos o deputado Aloísio Nunes Ferreira Filho e o comerciante Décio Eduardo Pereira. 928 jurídicas”935. No entanto, em junho do mesmo ano, o Supremo Tribunal Militar aceitou a denúncia para que ela fosse processada. Em entrevista, declarou que se fosse “condenada por ofensas às Forças Armadas [...] o governo terá que abrir milhares de processos contra o povo brasileiro. Só falei naquele discurso o que o povo fala normalmente nas ruas”936. Apesar do argumento contundente, em 17 de abril de 1986, foi realizado o julgamento937 de Ruth Escobar. Ela ouviu em silêncio a sentença: foi condenada a seis meses de detenção com suspensão condicional da pena por dois anos. Nessa oportunidade, Ruth declarou aos jornalistas que “as Forças Armadas são machistas e patriarcais”938. Logo em seguida, o CNDM publicou um manifesto939 em defesa de Ruth: Nós mulheres, reunidas nos diversos Conselhos da Condição Feminina, vimos a público manifestar nosso mais enérgico repudio e profunda preocupação com a condenação da deputada Ruth Escobar, presidente de honra do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), pela 2ª Auditoria Militar de São Paulo, no dia 17 de abril último. Neste momento em que a sociedade brasileira, através de partidos políticos, movimentos sociais, associações de classe e sindicatos, se mobiliza para garantir e aprofundar a construção de um Estado realmente democrático, causa espanto e preocupação a condenação pela Lei de Segurança Nacional de uma parlamentar no exercício de seu mandato. Em 1982, durante o grande movimento civil de resistência ao arbítrio e de luta pela restauração dos direitos plenos de cidadania, Ruth Escobar, como tantos outros, subiu aos palanques e denunciou o autoritarismo e corrupção. O momento é de cuidar de abolir estas práticas de nossa vida pública. Não de condenar quem as denunciou. Nós mulheres, que estivemos sempre presentes na luta pelo estabelecimento da democracia do país, estamos mais uma vez reunidas neste manifesto, através do qual expressamos o nosso apoio e carinho à companheira Ruth Escobar e nosso repúdio à uma condenação que fere o processo democrático do país940. As diversas entidades com quem Ruth Escobar tinha contato formaram uma “rede de proteção” para defendê-la. Este processo que vinha se arrastando desde 1982, somente foi resolvido em junho de 1987, quando ela e outros acusados, que foram enquadrados na LSN, foram absolvidos das acusações941. Apesar de Ruth Escobar ter sido condenada a reclusão, pontuo que ela não cumpriu essa sentença, principalmente por que ela tinha imunidade parlamentar. No Recife, em 05 de abril, cerca de oitenta mil pessoas942 participaram do comício a favor das Diretas Já; nessa oportunidade, Ruth Escobar esteve presente, fazendo um discurso, juntamente com outros políticos e artistas. Outros comícios também podem ser citados: cinquenta mil pessoas em Capão da Canoa (RS) e vinte e cinco mil em Caruaru (PE). A respeito das manifestações pró Diretas Já, em todas as partes do país a deputada Ruth Escobar rebateu 935 JUIZ, Folha de São Paulo, 04 mai. 1984, p. 7. STM, Folha de São Paulo, 28 jun. 1984, p. 9. 937 Ver imagens de 106 a 114 no dossiê de fotos. 938 DEPUTADA, O Estado de São Paulo, 25 abr. 1986, p. 2. 939 Em 21 de setembro de 1986, diversos artistas e intelectuais, também publicaram outro manifesto em prol de Ruth Escobar. Ver ATO, Folha de São Paulo, 21 set. 1986, p. 10. 940 CONTRA, Folha de São Paulo, 08 mai. 1986, p. 4. 941 De acordo com a nota publicada em 30 de junho de 1987, entre 1983 a 1987, o Supremo Tribunal Militar somente havia punido uma pessoa e quinze tinham sido absolvidas. GOVERNO, Folha de São Paulo, 30 jun. 1987, p. 5. 942 Ver LEITÃO, Folha de São Paulo, 06 abr. 1984, p. 4. 936 os comentários de Ibrahim Abi-Ackel, Ministro da Justiça do governo de Figueiredo: “o que leva o povo às praças não são os artistas, como disse o ministro Abi Ackel. É a fome, a inflação, a corrupção. Precisamos acabar com essas rameiras, prostitutas que venderam o corpo e a alma da Nação, filhas de uma indireta”943. No dia 17 de abril de 1984, Ruth Escobar preparou uma caravana944 rumo a Brasília para apoiar a proposta de Dante de Oliveira, que entraria em votação no dia 25 de abril de 1984. Para isso, organizou um grupo de mulheres de diversas áreas de atuação para compor uma comitiva, a fim de para angariar votos a favor da proposta945. Somente da cidade de São Paulo partiram vinte ônibus com cerca de oitocentas mulheres para apoiar a campanha. No artigo As mulheres pelas diretas, Marta Suplicy escreveu algumas palavras a respeito da presença das militantes em Brasília: Então não valeu tanto esforço, de tantas mulheres? [...]Acho que valeu. Valeu, pois nos permitiu ter uma ideia da falta de compreensão desses senhores diante da politização da mulher e dos anseios da nação onde mais de vinte mil pessoas já se manifestaram pacificamente nas ruas a favor das diretas-já. A primeira conversa foi com o líder do governo na Câmara, deputado Marchezan. Entramos no seu gabinete, Ruth Escobar, Maitê Proênça e eu, sem pedir licença. Ficou bravo, aquilo era uma invasão, não víamos que ele estava em reunião com os líderes do PDS de todos os Estados? Vimos, sim. E convidamos todos para a conversa com o nosso grupo que era forma por umas trinta mulheres de expressão 946. No dia seguinte, em 18 de abril, a caravana retornou à cidade paulista. Alguns depoimentos foram registrados pela equipe do Ruthilante: Em 1964, a mulher brasileira foi manipulada como objeto para marchar na cidade por uma idéia reacionária (marcha com Deus pela Família e pela Liberdade). Vinte anos depois ela é sujeito, marchando até Brasília por iniciativa própria tentando recuperar a palavra Liberdade. Escrevi minha primeira peça sobre essa primeira marcha e, para ver esse processo de mudança da consciência da mulher brasileira, valeu a pena ter vivido esses 20 anos de repressão (Leilah Assunção. Dramaturga). Foi muito boa a caravana de mulheres à Brasília, porque foi a melhor manifestação que houve. As mulheres falaram a verdade. Precisamos das diretas já. Precisamos mudar tudo o que está aí. Falaram sobre a carestia, sobre o governo que não quer que as mulheres tenham filhos. Fizemos amizades com muitas brasileiras, conhecemos uma mulher garimpeira que deu uma pedra de cristal para ser representada lá em Brasília, já que ela não ia. Valeu mesmo a pena (Núcleo de Mulheres da Figueira Grande). Me orgulho muito de ter ido a essa passeata. A mulher cresce e só se realiza quando casa, mas eu me senti realizada indo nessa passeata (Deosdete – dona de casa – Grupo de Mulheres do Butantã). Eu que era velha. Hoje, na luta, me tornei jovem de novo (Ada – dona de casa – Campinas). 943 KOTSCHO, Folha de São Paulo, 20 fev. 1984, p. 5. Ver imagens de 96 a 99 no dossiê de fotos. 945 Dentre elas, Eva Blay, secretária da Condição Feminina do Estado de São Paulo, as atrizes Lucélia Santos e Maitê Proença, as escritoras Lígia Fagundes Teles, Helena Silveira, Martha Suplicy, Marina Colasanti e Leilah Assunção, a publicitária Clarice Herzog foram as convidadas por Ruth Escobar para participarem do Movimento das Mulheres pelas Diretas Já. 946 SUPLICY, Folha de São Paulo, 19 abr. 1984, p. 31. 944 Eu nunca tinha viajado sozinha para tão longe. Eu resolvi ir e foi muito bom. Tive que me virar sozinha em Brasília quando minhas amigas adoeceram. Foi bom também para minha família, porque eles não estavam acostumados a assistir TV. Mas como eu estava na caravana de Brasília, eles assistem todos os dias e estão por dentro da campanha pelas direta (Deucir – Pajem de uma creche da Prefeitura de SP). Não dá para acreditar nesse luxo todo, nesse mundo de grana, nesse espaço todo. Vou convidar esse povo para ver minha casa na favela. Eu não vou ficar com vergonha. Eles é que vão ficar. Estou satisfeita de participar dessa caravana. Agora meu protesto será mais forte, mais alto (Maria do Carmo – Metalúrgica de São Bernardo do Campo)947. Os relatos dimensionam o desejo de participação das mulheres em um momento histórico da nação brasileira. Queriam que suas vozes fossem ouvidas. Além disso, esta caravana representava mais do que ato pró-anistia, demonstrava que o sexo feminino tinha força suficiente para fazer a diferença, seja pela luta de uma dona de casa seja por uma artista renomada. O fato de estarem presentes em número expressivo, unidas num único grito, impulsionava a sociedade brasileira para que começasse a valorização do papel do sexo feminino, principalmente nas questões que diziam respeito à política do país. Nesse sentido, a “invasão” de mulheres vinda de todas as partes do Brasil num espaço predominantemente masculino, também significou uma reivindicação de maior representatividade em cargos políticos, assim como proporcionou àqueles que estavam no comando a percepção de que a organização feminina ganhava força. Infelizmente, no dia 25 de abril de 1984, este desejo chegava ao fim, a Câmara dos Deputados rejeitou a emenda. Por se tratar de uma emenda constitucional, fazia-se necessário o voto de 320 deputados da Casa, o resultado foi 298 deputados a favor, 65 contra, três abstiveram-se e 113 não compareceram. necessário o voto de 320 deputados da Casa, o resultado foi 298 deputados a favor, 65 contra, três abstiveramse e 113 não compareceram948. Ruth Escobar continuou a luta pelo direito das mulheres. Dentre as mais significativas conquistas de Ruth na segunda metade da década de 1980, destaco a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) em 1985, durante o governo de José Sarney. Graças ao jogo político interno feito por Ruth Escobar, juntamente com outras mulheres políticas, elas conseguiram aprovar no Congresso Nacional a proposta de criar um órgão específico que cuidasse dos interesses das mulheres brasileiras. Para isso, Ruth também teve de atuar em outros bastidores. Ela afirmou: “Tomei muito chazinho com esposa de deputado. E dizia: se seu marido não apoiar as causas das mulheres, pare de transar com ele!”949. Toda essa articulação surtiu efeito. Em 29 de agosto de 1985, o presidente do Brasil sancionou a lei950 que criou o CNDM. Além disso, elas conseguiram incluir, na lei, o Fundo Especial dos Direitos da Mulher em que os créditos serviriam à manutenção das atividades realizadas pelo CNDM. No decreto assinado por José Sarney, ele destinou seis bilhões de cruzeiros951 (quase 1 milhão de dólares) às despesas de instalação e funcionamento, um montante superior a outros órgãos federais. Como não poderia deixar de ser, em decorrência da liderança exercida nessa empreitada, Ruth Escobar assumiu a presidência do CNDM, mas um grupo de mulheres sugeriu que Rosie 947 PARA MUITAS, Ruthilante, jul. 1984, p. 5. MARINHO, 2010. 949 GREENHALG; VICARIA, Revista Época, 10 abr. 2010. 950 BRASIL, 1985. 951 BRASIL, 1985. 948 Marie Muraro ocupasse o cargo do Conselho. Cabe registrar que ele foi criado como uma espécie de apêndice do Ministério da Justiça, em virtude de a deputada “por razões legais associadas à sua nacionalidade não poderia exercer o título de Ministra”952. No entanto, a posse de Ruth Escobar como presidente do CNDM esteve envolvida a uma polêmica: caso aceitasse o cargo, perderia o mandato como deputada estadual de acordo com a Constituição. Mesmo sabendo dos riscos, Ruth Escobar avisou que não ia se “acovardar diante dos que se apegam à Constituição para promover uma perseguição as mulheres”953. Conforme a reportagem Ruth toma posse hoje no Conselho ela se licenciou do mandato sem receber qualquer tipo de remuneração. Ruth também enfatizou que “se for preciso, enfrento processos na Justiça para defender o que considera legal e legítimo”954. A reportagem registrou que José Sarney e o ministro José Hugo Castelo Branco (Gabinete Civil) levaram um parecer do jurista Celso Bastos, alegando que “a missão da deputada é cultural, o que lhe permite, desde que afastada da Assembléia, exercer a presidência do Conselho”.955 Indagada por Sarney se estava ciente dos riscos que estava correndo, Ruth respondeu enfaticamente que sim. Ao contrário de sua posição, as deputadas Cristina Tavares (PMDB-PE), Irondi Pugliesi (PMDB-PR), Leila de Abreu (PMDB-PE), a suplente Lúcia Arruda (PT-RJ) e a Senadora Eunice Michillis (PFL-AM) decidiram declinar dos convites aos cargos no Conselho. No seu discurso de posse, ela enfatizou a importância de todos estados brasileiros seguirem o exemplo de São Paulo: criar Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher956. Em uma entrevista realizada no final de agosto de 1985, Ruth Escobar delineou algumas perspectivas do CNDM: “o Conselho será um órgão mais dinâmico do que um Ministério da Mulher poderia ser. Ele vai abrir novos espaços, novos canais ... vai criar novos grupos no âmbito dos vários ministérios que nos permitirá influenciar a política de forma mais ampla, de forma mais eficaz”957. Nessa mesma ocasião, ela afirmou que "sem essa base de poder, o Ministério seria ineficaz ... como na Venezuela, onde um ministério sobre o status da mulher foi criado em meados dos anos 70 e dissolvido menos de um ano depois"958. Na visão de Ruth Escobar, ainda que o CNDM não tivesse o status de ministério, o Conselho teria uma atuação mais eficaz, em virtude da criação de rede de informação e da defesa dos direitos das mulheres nos estados brasileiros. No entanto, passados quase três décadas da criação, o CNDM deu poucos passos significativos: transformou-se em Secretária de Políticas para as Mulheres (2003) e criou a Lei Maria da Penha (2006). Em novembro de 1985, o CNDM lançou uma campanha em prol da participação mais ativa das mulheres na reformulação da Constituinte, assim como defendeu a inserção dos direitos femininos na Constituição. De acordo com o Jornal do Brasil959, a campanha tinha como objetivo arrecadar dez milhões de assinaturas para fortalecer a proposta. Neste mesmo mês, o ministro Alberto Hoffman propôs ao Tribunal de Contas da União (TCU) que solicitasse 952 História ratificada pela própria Ruth Escobar em setembro de 2002 na Tenda das Sábias, convocada em Brasília pela SEDIM para discutir o futuro da Secretaria. MONTANÕ; PITANGUY; LOBO, 2003, p. 10. 953 RUTH, Folha de São Paulo, 10 set. 1985, p. 4. 954 RUTH, Folha de São Paulo, 10 set. 1985, p. 4. 955 RUTH, Folha de São Paulo, 10 set. 1985, p. 4. 956 SÃO PAULO, 1985. 957 No original: “the Council will be a more dynamic organ than a Women´s Ministry could possibly be. it will open new spaces, new channels... it will create new groups within the various ministries wich will enable us to influence policy more broadly, more effectively”. ALVAREZ, 1990. p. 221-222. 958 No original: “without such a power base, the Ministry would ineffective... like in Venezuela, where a Ministry on the Status of Women was created in the mid70s and dissolved less than a year later”. ALVAREZ, 1990. p. 221222. 959 CONSELHO, Jornal do Brasil, 07 nov. 1985. explicações da deputada Ruth Escobar, a respeito do pagamento de diárias em hotéis da capital paulista. De acordo com as matérias veiculadas pelo jornal Correio Brasiliense e O Estado de São Paulo, o CNDM estaria gastando cerca de dezoito milhões de cruzeiros, por mês, para hospedar a própria deputada e funcionários do Conselho. O início de 1986960 começou difícil para Ruth Escobar. Primeiro que, em janeiro, ela ameaçou sair do PMDB, por causa dos dirigentes estarem “coniventes com a corrupção”961, afirmou a deputada. Para ela “projetos pessoais de diversos políticos do partido têm prevalecido sobre os interesses do PMDB”962. Essas acusações e outras divergências surgidas fizeram com que essa relação estremecesse a aliança. Ainda em janeiro, Ruth Escobar foi denunciada pelo Deputado Amaral Neto (PDS) por utilizar cerca de trezentos milhões de cruzeiros em autopromoção. Ela rebateu, dizendo que: “Houve licitação para este trabalho e cinco agências se habilitaram. A Mauro Salles ganhou e tudo está no ‘Diário Oficial’. Como sei que os homens estão de olho em nós mulheres, tomo o cuidado de não cometer deslizes”,963 afirmou a deputada. Endossando acusações, Ana Maria Mendonça, suplente de um deputado, “propôs a Justiça Federal de Brasilia [uma] medida cautelar exigindo a exibição de documentos sobre a aplicação de recursos da União no CNDM”. Ela afirmou em entrevista que: “A Ruth tem que explicar as viagens e mordomias que implantou no Conselho”964. Em decorrência dessa série de acusações, a deputada foi afastada de suas funções por José Sarney. Antes de efetivar o desligamento de Ruth em 06 de fevereiro, ela foi convidada por Sarney para tomar um café no Palácio da Alvorada965. Na ocasião, pediu-lhe para permanecer no cargo do CNDM por mais trinta dias. Aceitou a proposta. Assim sendo, envolta em acusações, Ruth Escobar deixou a presidência do Conselho exatamente trinta dias após o pedido de Sarney. Em 07 de março de 1986, o Presidente da República assinou a desvinculação de Ruth da presidência do CNDM. Apesar desses impasses políticos, ela solicitou que a socióloga Jaqueline Pitanguy a substituísse; o pedido foi atendido pelo Presidente. Pontuo que, as últimas ações à frente do CNDM ocorreram em 05 e 07 de março. Ruth organizou um evento no Teatro do Macksoud Plaza Hotel, intitulado A imagem da mulher nos meios de comunicação966 e, no último dia de seu mandato, o CNDM juntamente com o Conselho da Condição Feminina organizou na ALESP o Alerta Mulher para a Constituinte, encontro que serviu para consolidar a luta pela representatividade delas naquele momento tão importante à democracia brasileira967. Apesar do afastamento do CNDM, no mesmo ano, Ruth assumiu o cargo de representante do Committee on the Elimination of Discrimination against Women – CEDAW (Comitê de Eliminação da Discriminação contra a Mulher), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), criado em 1979, com o objetivo de promover a igualdade entre homens e mulheres. O Brasil passou a ser signatário em 1981, ratificando-o em 1984. No primeiro ano de sua coordenação (1987-1990), ela organizou a I Jornada do Comitê das Nações Unidas para Eliminação da Discriminação contra a Mulher. De 30 de agosto a 03 de setembro de 1987, vinte e três integrantes do CEDAW, ao lado de outras deputadas e militantes feministas foram 960 A título de curiosidade, neste ano, na ALESP, Ruth presidiu a Comissão de Estudos sobre os Direitos de Reprodução Humana. Em janeiro de 86 Ruth foi convidada pela editora Guanabara para escrever o livro Eu sou uma mulher, no entanto, nunca foi publicado. 961 RUTH AMEAÇA, Folha de São Paulo, 21 jan. 1986, p. 4. 962 RUTH AMEAÇA, Folha de São Paulo, 21 jan. 1986, p. 4. 963 PUBLICITÁRIO, Folha de São Paulo, 23 jan. 1986, p. 6. 964 EM MARÇO, Folha de São Paulo, 5 fev. 1986, p.5. 965 CAFÉ, Folha de São Paulo, 07 fev. 1986, p.2. 966 No dia 5 de março, as 15:30 ocorreu a palestra A imagem da mulher na imprensa. 967 A respeito da contribuição as mulheres a partir da Constituição de 1988, ver: RODRIGUES; CORTÊS, 2006. iniciados os debates na cidade de São Paulo para a elaboração de um documento a ser entregue ao Presidente da República, em Brasília. As mais de quinhentas participantes debateram a respeito de trabalho, direitos, cultura, creches, saúde, imagem e política968. De acordo com a deputada Ruth Escobar: “a estratégia é pressionar os constituintes para que sejam aprovadas propostas avançadas em relação à mulher”969. O ano de 1987 terminou tumultuado para Ruth Escobar. Em setembro, após longo período de discussão no interior de seu partido, o diretório do PMDB decidiu expulsá-la por ter apoiado a candidatura de Antônio Ermínio nas eleições para governador de São Paulo, em 1986. Dos quarenta e cinco membros que avaliaram o caso da deputada, apenas seis votos foram a favor970. Inclusive, as duas únicas deputadas presentes no julgamento também votaram a favor da sua expulsão: Guiomar Namo de Melo e Ida Maria. Vale lembrar que Ida foi uma aliada de Ruth Escobar em sua campanha política em 1982, no entanto, ao decorrer dos anos, algo mudou. 7.7 A questão do aborto A questão do aborto, além de ter sido parte da vida de Ruth Escobar, de suas filhas e de sua mãe (mencionado no capítulo I), também foi um assunto abordado durante os períodos em que atuou como deputada estadual em São Paulo. Além disso, o aborto foi tema de discussão de diversos eventos realizados em seu teatro enquanto presidia o CNDM. No entanto cabe situar Ruth Escobar e a posição das feministas na década de 1970, pois dentro do movimento havia opiniões contrárias. De acordo com a pesquisadora Lucila Scavone, Em meados da década de 1970, o feminismo brasileiro já tinha uma posição política sobre o aborto fundamentada no princípio do direito individual. Ao contornar demandas abertas pelo direito ao aborto, as feministas costumavam substituí-las por fórmulas gerais, tais como "direito de decidir pelo número de filhos desejados", "direito de conhecer e decidir sobre seu próprio corpo", entre outras. Sempre é bom lembrar que a negociação também era feita entre as próprias feministas, pois havia aquelas que, ligadas aos partidos de esquerda ortodoxos, não aceitavam enfatizar a questão do aborto971. Ruth seguia a linha de pensamento que defendia a prática do aborto. Para isso, utilizou os recursos políticos que tinha a sua disposição para, na assembleia paulista, tentar a aprovação dos projetos de lei apresentados por ela. A sua primeira proposta exposta na ALESP é datada em 09 de março de 1985, durante seu primeiro mandato. Ruth não foi pioneira nessa proposta dentro da assembleia paulista. Em 1976, o deputado Emilio Justo apresentou o projeto de lei n.0130972 para que as mulheres tivessem assistência em métodos anticonceptivos, incluindo o abordo. Todavia, a proposta recebeu veto total. 968 Existe uma publicação informativa que aborda o debate de todos esses temas. ESCOBAR, Ruth (Coord.). Diário da Jornada, 1987. 969 ONU DEBATE, Folha de São Paulo, 30 ago. 1987, p. 19. 970 Votaram contra a expulsão de Ruth Escobar do PMDB: Aluísio Nunes Teixeira, Waldir Trigo, Nélson Fabiano, Sérgio Santos, Carlos Figueiredo e José Roberto Teixeira. PMDB-SP, Folha de São Paulo, 22 set. 1987, p. 4. 971 SCAVONE, 2008, p. 676. 972 Projeto de Lei n. 0130/76 tinha como objetivo prestar assistência à mulher, para fins anti-conceptivos, mediante solicitação da interessada, quando houver motivo justo, no entanto, foi vetado pelos deputados da ALESP. Nessa mesma perspectiva, quase dez anos depois, Ruth Escobar apresentou o projeto de lei n. 0086, tendo como objetivo a obrigatoriedade do atendimento médico dos serviços públicos de saúde nos casos de aborto no Estado de São Paulo. Ao contrário das estratégias citadas acima, ela utilizou de outros argumentos para justificar sua proposição: O atendimento médico nos casos de aborto previstos em lei já e um direito adquirido pela mulher brasileira. Assim sendo, a rede de saúde do Estado apenas cumprirá a lei ao atender a mulher que a procura para interromper uma gravidez indesejada. Nos casos de estupro, ou seja, uma gravidez gerada pelo ódio e a violência contra o seu corpo e não por um ato consciente de amor; na situação de risco de vida da mãe ou por terem os médicos constatado a existência de um feto lesado, mal conformado e com perspectiva de se transformar num ser humano deformado e indefeso, a mulher tem o direito de interromper essa gravidez indesejada. Por sua vez, em seu artigo 136, no capítulo que trata da Saúde Pública e da Assistência Social, a Constituição do Estado de São Paulo determina que o “Estado, por todos os meios ao seu alcance e em cooperação com outros órgãos da União, de outros estados, dos municípios e internacionais, e com as atividades necessárias para promover, preservar e recuperar a saúde da população”. No entanto apesar do direito à pratica de aborto, já citado, e do dever constitucional do Estado, a rede de saúde pública atende àquelas que a procuram de maneira precária e muito deficiente, principalmente as mulheres pertencentes as classes não privilegiadas Assim grande parte das mulheres do nosso Estado, vítimas de gravidez de alto risco, muitas adolescentes vítimas de estupro – caso corriqueiro em nossos dias, infelizmente - ou portadoras de feto lesado, confrontam grandes dificuldades em seus esforços para interromper uma gravidez indesejada ou porque não contam com serviço público capaz de fazê-lo devidamente por ignorância da lei, por preconceitos generalizados, pura negligencia ou por mero desconhecimento da mulher com relação aos seus direitos e o modo de exercê-los. Por esses motivos, nada mais justo que nós, legisladores, busquemos garantir, através deste projeto, o cumprimento da lei e o exercício dos direitos da mulher em determinados serviços públicos973. Apesar de os argumentos estarem fundamentados em fatos que ocorriam [e ocorrem] com as mulheres paulistanas e, consequentemente, brasileiras, sua proposta foi arquivada em 03 de abril de 1987. O motivo mais palpável para o arquivamento de sua proposta diz respeito ao término do mandato, em 1986. Todavia, neste último ano como deputada estadual, aproveitou a ocasião para adensar ainda mais a campanha em prol do aborto. Para isso, ela associou o assunto à discussão que estava ocorrendo naquele momento: a reformulação da constituição brasileira. A respeito desses dois assuntos, ela escreveu o artigo O Aborto na Constituinte em que defendeu sua posição de que esse assunto deveria ser amplamente debatido pela sociedade, destacando que dentro do movimento feminista havia uma parte das mulheres que não defendia a inclusão do aborto na constituição, visto que o mesmo estava contido no Código Penal. A respeito dessa posição, Ruth as contrariou dizendo que: Primeiro, os debates da Constituinte têm dado ocasião para o questionamento de inúmeros problemas da sociedade brasileira, que não serão necessariamente incluídos no texto da Constituição, mas cujo exame fornece subsídios para a formulação dos princípios gerais que ai permanecerão. Qualquer alteração posterior das leis ordinárias, inclusive do Código Penal, dependerá das bases assentadas pela 973 DOSP, 09 mar. 1985, p. 28. Constituição e é, portanto, fundamental assegurar desde já que não seja obstruída a autonomia das decisões individuais a respeito do próprio corpo. Segundo: a mobilização pela Constituinte pode propiciar a ampliação do nível de conscientização política, o que dependerá, evidentemente, do conteúdo das campanhas eleitorais. Embora o panorama geral seja reconhecidamente desanimador na maioria dos Estados, a omissão de temas novos e complexos em nada contribuirá para a sua melhoria. Terceiro: nada garante que a questão do aborto não seja "promovida" à matéria constitucional, porém, exatamente ao contrário do que desejaríamos, pela sua proibição absoluta. Articula-se hoje, a nível mundial, uma direita ativa e militante que tem elegido as questões da liberdade reprodutiva e da liberação das mulheres como seus alvos imediatos. No Brasil, já tem ocorrido várias manifestações explícitas de intenção de proibição total do aborto na própria Constituição. O que é matéria constitucional ou não, depende muito da vontade política manifestada nas eleições. Se a direita se articula e a esquerda e as feministas se omitem, não será de surpreender se viermos a enfrentar situações mais penosas ainda que as atuais. A política de avestruz nunca foi a mais eficaz974. Nas palavras de Ruth, aqueles que desejavam mudanças não podiam se omitir das discussões que tratavam de temas delicados. Para ela, todo e qualquer assunto deveria ser debatido com o intuito de promover a conscientização política da população. Assim como fez em suas produções teatrais, em que discutia a situação da realidade brasileira diante do regime militar. Aliás, esse aspecto pode ser destacado na trajetória de Ruth Escobar: enfrentar os problemas de frente, sem medo. Ela estava ciente de que sua proposta poderia não ser aceita, mas queria provocar questionamentos, conscientizar a população, tornando-a mais atuante politicamente. Todavia, sua atitude de propor um projeto, cujo tema era delicado, também, alcançava outros deputados estaduais paulistas e comissões. Era necessário discutir. Desse ponto de vista, percebe-se que essa proposta de Ruth ecoava em diversos setores, tanto na sociedade civil quanto na política. Por outro lado, essa fricção de argumentos e pensamentos prós e contras a impulsionava. Ela desejava se reeleger deputada estadual. Para isso, teve de se ausentar de seu cargo para iniciar sua campanha. Com isso, seu projeto de lei foi arquivado em 03 de abril de 1987. Reeleita, no mesmo mês em que o projeto teve seu arquivamento decretado, ela reapresentou a mesma proposta, sem alterações. Após receber o veto de todas as comissões em que tramitou, em 18 de março de 1988, foi publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo o parecer final: [...] o Senhor Governador, ao vetar a propositura, alega que o projeto, tal como concebido, traz flagrante vício de inconstitucionalidade, além de revelar-se inconveniente ao interesse público. [...] Além do mais, os órgãos e unidades que exercem atividades relacionadas à saúde pública não estão capacitados para prestar assistência médica nos casos de interrupção de gravidez, porque não estão aparelhados para esse fim. Assim, a medida, além de impor ao Executivo a prática de ato de administração, acarretaria, se concretizada, a subseqüente obrigação de aparelhar adequadamente tais serviços, o que implicaria, sem dúvida, em aumento de despesa pública, verificandose infringência do inciso II do artigo 22 da Carta Paulista 975. 974 975 ESCOBAR, Folha de São Paulo, 08 set. 1986. DOSP, 04 dez. 1987, p. 96. Em suma, os argumentos apresentados pelas comissões avaliadoras teve como critério a utilização de recursos financeiros que seriam despendidos com o aparelhamento das unidades de saúde, isto é, as preocupações com o estado da saúde, apontadas por Ruth Escobar em seu projeto, não foram levadas em consideração. Por outro lado, apesar da luta da deputada em tornar essa prática mais humanizada, havia fortes correntes contrárias à aprovação. Nesse período em que seu projeto foi vetado, Ruth se encontrava em Nova Iorque, participando de uma discussão contra a discriminação da mulher. Ao retornar à ALESP e saber do veto do governador e das comissões, fez um longo discurso na sessão do dia 08 de março de 1988. De início, seu pronunciamento se referiu ao trabalho nos EUA: Nobre Deputada Guiomar de Mello976, quero me solidarizar com as palavras de V. Exca e dizer que as companheiras mulheres estão felizes em ver que o Dia Internacional da Mulher está presente nessas mulheres de classes menos privilegiadas. Temos aqui, hoje, representantes da Associação de Defesa das Mulheres de Guarujá; da Associação de Mulheres da Cidade de Anston de Carapicuíba; do Clube das Mães do Triângulo de Ouro de São Paulo; da Presidência da Associação de Moradores Simpatizantes do Parque Bristol e adjacências e da Legião da Boa Vontade, LBV. Algumas dessas companheiras vieram para participar da discussão do projeto de nossa autoria que especifica a utilização da rede pública estadual para os casos em que o aborto é previsto em lei. Quero dizer a companheira Guiomar de Mello que essa luta que as mulheres encamparam no Brasil é igual a das mulheres do Norte, Sul, Europa, África e Ásia. Acabei de chegar de uma reunião das Nações Unidas, do comitê do qual faço parte, constituído por 23 mulheres “experts” internacionais onde se vigia a aplicação da convenção das Nações Unidas que luta pelos direitos da mulher, pelo restabelecimento dos direitos da mulher. Esta luta é internacional esta homenagem que se presta à mulher hoje se dá em todos os lugares do mundo, em todas as Assembléias. Esta luta continua. Quero dizer também, de certa maneira entristecida, que o Brasil tendo aprovado a Convenção das Nações Unidas, em 1981 e ratificada pelo Congresso em 84 se encontra extremamente atrasado no cumprimento dessa convenção em relação a muitos países da América Latina. Nessa reunião em Nova Iorque das Nações Unidas recebemos relatórios de 15 países como Austrália, Nova Zelândia, Japão, entre outros com programas absolutamente avançados e modernos para restituir à mulher o lugar que lhe cabe por direito nessa sociedade. Não quero mais tomar o tempo, cara companheira, já que teremos a oportunidade de falar sobre isso mais tarde, mas desejo me solidarizar não só com a companheira Guiomar de Mello, como todas as mulheres. Eu sei como foi longa essa trajetória para chegar até aqui. Aproveito a oportunidade também para agradecer ao companheiro Deputado Edinho Araújo, pois sei que talvez atrás desse paternalismo há um sentimento real, feminino, da composição feminino-masculino que cada um de nós carregamos dentro se si, inconscientemente, essa vontade de nos ajudar e de se ajudar a assumir essa igualdade, que é natural e que foi natural oito mil anos antes de Cristo, quando as mulheres eram rainhas e até deusas. Muito obrigada977. Como disse Ruth Escobar em seu pronunciamento, ela teria oportunidade naquela mesma sessão ordinária de discutir o veto de seu projeto. E assim se fez: [...] o veto do Governador me parece um ato medieval, partindo de um homem que foi eleito por um partido que lutou pelas conquistas dos homens e das mulheres, por um partido que tanto manipulou as mulheres, colocando-as nos palanques dizendo que 976 A Deputada Guiomar de Mello fez um longo discurso em defesa do projeto de lei apresentado por Ruth Escobar que tinha como proposta obrigatoriedade dos órgãos da administração direta ou autárquicas do Estado que exerça atividades relacionadas a saúde pública de atender os casos de abono já previstos na legislação federal 977 DOSP, 22 mar. 1988, p. 46. lutava por direitos iguais. Esse mesmo Governador [...] não só afirmou sua posição diante da postura das mulheres do PMDB em relação à descriminalização do aborto, como disse que era necessário estabelecer procedimentos e canais onde o aborto já era previsto em lei. Isso ele disse num programa de televisão quando era vice-governador. [...] Não apresentamos um projeto para librar o aborto. Hoje um grupo de companheiras da Legião da Boa Vontade me procurou dizendo: viemos aqui apoiar a senhora mas nós somos contra o aborto. Eu disse. Eu também. Que mulher não é contra? O aborto é um terrível drama, não é um crime. No Brasil são feitos cinco milhões de abortos por ano. Por que? Por que as mulheres querem abortar? Não. É porque não existe uma política nacional de saúde, nem mecanismos que deem à mulher brasileira, a adolescente, a possibilidade de planejar quantos filhos quer ter, não tem postos de saúde, não tem educação sexual. Então, em cima dessa enorme ignorância e dessa falta de vontade política dos órgãos responsáveis a mulher é obrigada a recorrer ao aborto como última instância. Já fiz vários abortos. Tenho cinco filhos, três netos e estou esperando mais dois netos. É uma situação extremamente dramática para qualquer mulher. Nenhuma mulher é a favor do aborto, mas sou sim, a favor da descriminalização e da despenalização do aborto. [...] O veto do Governador não é só um instrumento contra as mulheres de São Paulo, mas uma mancha contra as bandeiras que o PMDB carregou nas ruas, que as mulheres do PMDB carregaram nas rua, e fere frontalmente uma convenção internacional. Após seu pronunciamento, o deputado Aloysio Nunes Ferreira do PMDB se pronunciou para defender sua posição.978 O embate entre os deputados não resultou numa mudança do veto 978 Discussão na ALESP acerca do veto do governador ao Projeto de Lei n.156 apresentado por Ruth Escobar: ALOYSIO NUNES FERREIRA: Quero dizer, de início, que não tomo posição contrária ao veto, neste momento, assim como foi contrária minha posição quando pela primeira o Plenário dessa Casa se manifestou sobre o projeto, movido por razão de interesse partidário [...] O projeto da nobre Deputada Ruth Escobar, por ser excessivamente abrangente, acaba por criar – se for interpretado ao pé da letra – situações absurdas, como por exemplo a obrigatoriedade, por parte do Instituto de Oncologia, de atender um caso de aborto legal. Vamos deixar de lado também essa interpretação amplíssima, que de qualquer maneira seria autorizada pela letra da lei para nos atermos nos órgãos do Estado que diretamente têm contato com as pessoas que demandava o serviço de saúde do Estado. Aí coloco a seguinte questão: será que os Centros de Saúde, que constituem oi pelo menos deveriam, constituir, a porta de entrada de todo o sistema integrado de saúde devem ser vocacionados para a prática de aborto [...] Não seria mais conveniente que a prática de aborto, nesses casos, fosse circunscrita à instituições de natureza hospitalar, especialmente, as dotadas de serviço ginecológico? [...] Considero [...] que o aborto não é um ato médico corriqueiro [...] No caso da mulher estuprada, por exemplo, para que possa fazer aborto, ela se defronta com algumas dificuldade de ordem legal, definidas na legislação federal, como por exemplo a dificuldade de provar que foi estuprada e que sua gravidez decorre daquele estupro. Ela se defronta com o receio do médico em intervir, com o temor que na verdade aquele aborto pretendido não seja efetivamente um aborto legal. [...] Durante o aborto pode ocorrer uma parada cardíaca, em alguns casos um anestesia geral, se faz necessária; no aborto pode ocorrer uma hemorragia; no aborto, como consequência da curetagem, pode ocorrer a perfuração do útero, e então surge o riso de uma peritonite ou de uma septicemia, que pode levar a mulher à morte. O aborto feito em condições inadequadas pode gerar problemas insanáveis no aparelho reprodutor da mulher. Portanto tudo recomenda que o aborto seja praticado, não nos Centro de Saúde, não na porta de entrada, mas nas instituições hospitalares, nos hospitais universitários, no Hospital das Clínicas ou nos hospitais conveniados com a rede pública do Estado. RUTH ESCOBAR- PMDB: Disse como por exemplo que talvez não seria um posto de saúde que deveria fazer o aborto, porque envolve riscos. Tudo isto é correto, só que nós vivemos num regime de arbítrio durante 20 anos quando um país passa polos problemas que estamos passando, num período de transição, e muitas pessoas são sacrificadas, às vezes temos que encontrar soluções rápidas, embora temporárias [...] Acredito que no bojo deste projeto, não estejam reunidas as condições ideais, mas ao dizer “todos os órgãos da República e estaduais” não estou querendo que haja um caos e que o Hospital do Câncer passa a fazer aborto ou coisa semelhante. Certamente que, ao regulamentar este projeto, o Governador deveria dizer quais os hospitais que poderiam prestar este atendimento. Discordo também quando V. Exa. Diz que o aborto é uma coisa complicada. Não é. Todos sabem que neste país são feitos 5 milhões de abortos por ano. Acontece que certamente não teríamos o mesmo número de abortos nem para alguns casos de estupro, nem para alguns casos especiais. Então cada morte que possa ocorrer, qualquer coisas que afete gravemente a saúde de uma mulher, de uma criança, de uma adolescente, tudo isso está na consciência de cada um de nós. Esta lei constitui apenas numa medida temporária que depois se adequaria ás condições ideais. Se formos esperar pelas condições ideais, até que o processo democrático se consolide grande parte da população vai continuar sofrendo. Quer me parecer que o nobre Deputado adota uma posição formal e extremamente absurda. ALOYSIO NUNES FERRERIA – PMDB: Nobre deputada, não é uma posição formal, é uma posição que parte do conhecimento da realidade do que seja o Centro de Saúde deste Estado. O Centro de Saúde do Estado de São Paulo, que talvez seja um dos melhores do Brasil, tem uma capacidade resolutiva extremamente reduzida. Foi durante muito tempo apenas um lugar onde as crianças iam tomar vacina e, mais carde, as mães iam receber pacotinhos de leitar em pó. Hoje o Centro de Saúde tem atribuições mais amplas, alguns programas estão sendo levados pelo Centro de Saúde: programa da saúda da mulher, programa da saúde da criança. O Centro de Saúde começa a desenvolver algumas práticas de atendimento ambulatorial, como no caso de doentes crônicos, de alguém que seja portador de uma hipertensão ou diabete. [...] Nestas condições [...] o atendimento no caso de aborto por esses Centros de Saúde que estão aí, parece-me uma medida que aumenta o risco inerente à prática desses abortos. [...] Por isso, considero que o projeto de V. Exca. É inadequado para atingir a finalidade com que V. Exa. se preocupa e todos nós nos preocupamos. [...] Acho que temos que tomar medidas urgentes para atender estes casos de aborto legal, independentemente da luta também urgente, necessária, para descriminalizar o aborto e integrar a concepção dentro de uma política de atendimento global à saúde da mulher. ERCI AYALA – PMDB: Realmente esse projeto tem muita importância para as mulheres [...] Sou porta-voz dessas mulheres que pensam num caminho onde realmente pudéssemos fazer com que essa ideia levantada pela nobre Deputada Ruth Escobar não ficasse perdida [...] porque é de suma importância para as mulheres [...] Mas o que me parece fundamental, é o desejo dessas mulheres que representam uma parcela da população, que direitos já conseguidos não tenham um fim trágico, um fim que acabe numa discussão, numa tentativa outra se não realmente na conquista da mulher JOSÉ DIRCEU – PT: Faço essas referências978 para fundamentar as razões do meu apoio ao projeto da nobre Deputada Ruth Escobar. Quero lembrar que falo baseado na opinião de companheiras da Comissão de Mulheres do PT e, em opinião manifestada por escrito, da Vereadora Ivani Bianchini, de Rio Claro, hoje sem partido e ativa militante, no PMDB, dos direitos da mulher. [...] Quero lembrar [...] que a estrutura de saúde estabelecida no Estado de São Paulo, prevê ao Posto de Saúde não só o papel de entrada no sistema do atendimento a nível primário, mas principalmente os da triagem e classificação. [...] Agora deve obrigatoriamente ao Posto de Saúde encaminhar a paciente para os hospitais da rede hospitalar que atendem – no caso – a prática do aborto. [...] Não podemos afirmar em são consciência, porque estaríamos fazendo sofismas, que este projeto acarreta despesas e, portanto, é inconstitucional, pois, estaríamos, afirmando também que não obrigatoriedade na rede pública do Estado, de atender todo cidadão que o busca com necessidade de atendimento [...] não vejo porque isto estaria acrescentando despesas se é obrigação e dever do Estado atender, na sua rede pública, todo cidadão que necessita desta rede. ALOYSIO NUNES FERREIRA – PMDB: V. Exca. reconhece que os Centros de Saúde do Estado já tem a competência normal de realizar as triagens dos casos que chegam até eles. O caso do aborto, chamado necessário, é obvio, pois trata-se de uma mulher com risco iminente de vida: não há outra maneira de se salvar a vida a ser praticando o aborto. O médico é o juiz da oportunidade de realizar e é responsável penalmente, inclusive se não tomar as providências necessárias para atender aquela circunstância. [...] Essa lei, se for aprovada, ou será inócua, porque repete disposições constantes, seja na Constituição do Estado, ou reforça direito assegurado pela legislação federal ou, então, se for tomada ao pé da letra, ela pode levar extamente a um resultado inverso do que pretende a nobre Deputada Ruth Escobar, na medida em que ela tornaria obrigatória a prática de aborto pelo próprio Centro de Saúde, que como todos sabemos, não está aparelhado para isso. E no meu entender, sequer deve ser aparelho para isso. O Centro de Sáude, dentro de um sistema unificado de saúde, dentro de um sistema hierarquizado de saúde, tem outra vocação, e não a prática de um ato médico relativamente complexo como é o aborto. JOSÉ DIRCEU – PT: Na verdade, os Centros de Saúde desenvolveram-se bastante [...] É preciso, então, definir [...] o papel dos Centros de Saúde, porque o próprio governo avançou, como bem V. Exca. Reconheceu aqui, na questão das atribuições do posto de saúde. ALOYSIO NUNES FERREIRA – PMDB: E existe já [...] desde o tempo em que era Secretário de Saúde o Dr. Adib Jamene, um programa de assistência integral à saúde da mulher. JOSÉ DIRCEU – PT: Exatamente por isso [...] acredito que poderíamos também resolver o problema legal. ou numa reavaliação do projeto de lei proposto por Ruth Escobar. No entanto, a partir da discussão entre os deputados estaduais paulistas pode aferir-se que os argumentos utilizados por Aloysio Nunes Ferreira estavam calcados em alguns aspectos. Primeiramente, alegou que a forma escrita da proposta apresentada inviabilizou o avanço nas discussões junto a outros deputados, pois abrangia a todos os estabelecimentos da rede pública de saúde. Associado a isso, alegou que não havia condições estruturais dos postos de saúde para atender a demanda e, consequentemente, acarretaria uma despesa maior ao Estado. Além disso, o deputado utilizou de outro argumento. Colocou os médicos numa posição em que poderia ferir a ética profissional e conduzir a uma série de problemas. Apesar de Ruth Escobar tentar contornar a situação, ao afirmar que haveria locais especializados para atendimento às mulheres que necessitassem deste tipo de atendimento, pouco surtiu efeito. Com o intuito de adensar a discussão, José Dirceu utilizou de outros argumentos para tentar convencer Aloysio e os outros deputados de que o veto ao projeto era uma perda à sociedade. Ainda que o Projeto de Lei não tenha sido aprovado, Ruth Escobar conseguiu que a discussão, acerca do aborto, ecoasse na Assembleia Legislativa de São Paulo e na sociedade. Sua luta pela causa feminista dizia respeito ainda a outro argumento formulado por Ruth Escobar. Em Costumes e vigências relativas à mulher na política e na sociedade, de sua própria autoria, ela defendeu a ideia de que, dentro da lógica capitalista, as mulheres eram responsáveis por uma quantia significativa no mercado de consumo e assim não podiam estar restritas ao “cargo” de donas de casa, mas deveriam ocupar outras posições que subvertessem essa lógica. RUTH ESCOBAR – PMDB: O Secretário Pinotti deve saber que o órgão de saúde está apto a fazer esse serviço. E, se não está [...] certamente deve encontrar os mecanismos mais adequados para que as mulheres pudessem ser socorridas a partir do momento em que o governador regulamentasse a lei. JOSÉ DIRCEU – PT: não quero trilhar o caminho do veto público ao projeto de lei [...] quero fazer a discussão do ponto de vista legal e da capacidade da rede médica e não consigo me convencer de votar a favor veto e contra o projeto. A cada dia, a cada sessão que nós discutimos, que eu ouço as razões das partes vou me convencendo cada vez mais da necessidade imperiosa da legalidade e da viabilidade técnica do projeto da nobre deputada Ruth Escobar. Creio que toda a discussão que houve no Conselho da Condição Feminina [...] na Secretaria a Saúde, toda a política de centralização que vem sendo seguida [...] as resoluções do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, da Conferencia Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, a legislação vigente, nos leva a posição de votar a favor desse projeto e que o governador o regulamente. No limite eu me pergunto: por que o governador assessorado pela Secretaria da Saúde, pelos técnico do setor, pela banca do PMDB não apenas vetou a expressão “os” e não propôs um acordo, porque o que cada dia mais me impressiona, nobre deputado Aloysio Nunes Ferreira, é que nós não temos canais para negociar projetos como esse com os partidos políticos e o Executivo, através da bancada do PMDB. ALOYSIO NUNES FERREIRA - PMDB: Quero dizer [...] que uma regulamentação, um decreto que regulamenta uma lei não pode ficar no âmbito de direitos que de assegure, aquém do que a lei estabelece. Na regulamentação o Governador não poderia restringir o âmbito de direitos subjetivos assegurados pelo Artigo 1º do projeto. O problema é realmente administrativo e de regulamentação. V. Exca fala de canais de instrução para que possamos conversar seriamente, trazer soluções para os problemas, como o do projeto da Deputada Ruth Escobar, então V. Exca. vai na direção do meu pronunciamento. RUTH ESCOBAR - PMDB: V. Exca. falou sobre viabilidades definidas. Esse é um ponto muito importante para a bancada do PMDB. O nobre Deputado Luiz Carlos Santos, relator da Comissão de Justiça, no seu primeiro relatório, declarou que o projeto é constitucional e num segundo relatório que é inconstitucional [...] mas quero lhe dizer que num projeto dessa importância, o veto do governador é um assunto sério, como também os deputados que se colocaram a favor do veto significa não só a morte como a invalidez para as mulheres que são prejudicadas por esse veto. Seu acesso às profissões e ocupações é cuidadosamente delimitado para que esta função essencial não seja subvertida. Não é preciso dizer que, além dos mecanismos sociais, a estrutura familiar reforça e garante esse padrão, através do predomínio exclusivo do macho nas relações de poder domésticas. O marido é uma espécie de capataz, zelando no interior do lar, para que o sistema se mantenha. E se mantém, por mais que as mulheres chorem, “intra muros”, as dores das bordoadas. Quando uma mulher consegue furar esse bloqueio, entram em ação os meios de coerção social, que vão da simples chacota ao boicote puro e simples. A coerção social comandada pelos homens, mas, sem dúvida, e nisto o sistema demonstra sua capacidade hegemônica, se utiliza precisamente das outras mulheres “bem comportadas” para estigmatizar aquela que ousou divergir. Os juízos sociais prevalecentes sobre a mulher têm sido exaustivamente demonstrados e explicados979. A trajetória de Ruth Escobar junto à causa feminista foi marcada por uma luta incessante em prol dos direitos, do reconhecimento e, acima de tudo, contra a censura social. Tanto do ponto de vista político enquanto deputada estadual, quanto como militante, ela buscou formas para que a desigualdade entre os sexos fosse diminuída, no entanto o pensamento machista e a predominância de uma “ordem social” eram obstáculos difíceis de serem superados. Junto com outras mulheres, Ruth Escobar buscou propiciar às brasileiras um outro status social, mas correntes contrárias vigentes impediam que houvesse maior espaço de atuação delas na sociedade. 979 ESCOBAR In: OLIVEIRA (Org.), 1987, p. 160. 7.8 Dossiê de fotos A Feminista CAPITULO VIII – A RESSURGIDA ste oitavo capítulo é resultado da investigação durante nove meses em diversos arquivos de Portugal, no qual me debruço sobre a relação entre as produções teatrais de Ruth Escobar e seu país de nascença. Após vinte e um anos no Brasil, Ruth decidiu regressar às terras lusitanas de forma contundente. Ela queria demonstrar a todos aqueles que subestimaram sua força e inteligência, que havia vencido e se tornado uma produtora teatral renomada. Para tanto, Ruth Escobar levou três espetáculos consecutivos a Portugal: Missa Leiga (1972), Cemitério de Automóveis (1973) e Autos Sacramentais (1974). Quando Ruth Escobar levou os dois primeiros espetáculos, acima citados, os quais foram criados sob a ditadura militar brasileira, Portugal ainda vivia sob a mais longa ditadura europeia. Relembro que o governo ditatorial de Oliveira Salazar se desenvolveu de 1932 até 1968, quando foi sucedido, com a intenção de continuidade, por Marcelo Caetano (1968-1974). Portanto, os espetáculos Missa Leiga e Cemitério de Automóveis foram levados a Portugal durante um governo de ditadura, mas convém ressaltar que esse governo já apresentava um profundo desgaste junto à sociedade portuguesa, principalmente em função da guerra colonialista na África para impedir a independência das suas colônias Angola e Moçambique. O último espetáculo, Autos Sacramentais, foi apresentado em Portugal noutro momento político, após a Revolução dos Cravos que, em 25 de abril de 1974, derrubou o regime ditatorial instalado em Portugal desde 1932, e Marcelo Caetano, no ano seguinte, exilou-se no Brasil, respaldado pelo regime militar brasileiro.980 Assim como no Brasil, os órgãos de censura e de vigilância atuavam de forma imperativa sob as diversões públicas portuguesas. Para conseguir pôr em prática todos esses projetos teatrais, Ruth Escobar articulou uma série de contatos, driblou censores e conseguiu subsídios financeiros para concretizar essas produções em Portugal. Desejosa de que suas produções fizessem história, ela fez questão que Missa Leiga percorresse algumas cidades portuguesas, além da África. Ergueu um espaço cênico para apresentar Cemitério de Automóveis – única montagem realizada fora do Teatro Ruth Escobar após sua inauguração. E Em Autos Sacramentais, colocou em cena um elenco totalmente nu. Como uma Fênix, Ruth ressurgia. E 8.1 Lembra-se de mim? Sou a Maria Ruth981 Ao longo de séculos, a prática da censura esteve presente na vida cotidiana dos cidadãos portugueses, principalmente na imprensa. Os pesquisadores Luís Humberto Marcos e Rui Assis Ferreira afirmaram que “no seu conjunto, foram quase 450 anos (437) de censura em cerca de 500 anos de imprensa em Portugal. Ou seja, quase 90% do tempo de produção intelectual portuguesa, entre a aplicação da arte de Gutenberg e 1974, foi marcado pelo policiamento dos censores’’982. Apesar de estes estudiosos centrarem a pesquisa em obras impressas, a censura também atingia às diversões públicas, tornando-as alvo de fiscalização. 980 TELO, 2007, p. 247-285. Título da reportagem publicada na cidade de Porto, em Portugal. BRANCO, Rui. Lembra-se de mim? sou a Maria Ruth. Jornal de Notícias, 09 mar. 2012, p. 48. 982 MARCOS; FERREIRA, 1999, p. 11. 981 Tanto no Brasil quanto em Portugal, em suas ditaduras do século XX, a organização censória funcionava de modo similar: os proponentes deveriam pagar taxas administrativas para submeter um texto teatral à avaliação dos censores, que emitiam um parecer com análise da comissão. A análise poderia recomendar: reprovar, aprovar com cortes ou aprovar, integralmente, a obra dramatúrgica. Caso houvesse aprovação, o produtor agendava uma data para que os censores realizassem rapidamente a análise do espetáculo, para verificar a adequação de figurinos, cenários e, obviamente, caso tivesse cortes, se os mesmos haviam sido cumpridos. Além desses aspectos formais/estruturais do espetáculo, devia-se também incluir nessa análise censora o trabalho dos atores: os seus gestos, as expressões, as posições que poderiam, na visão dos censores, provocar atentado à moral e aos bons costumes. Apesar do aparelho repressor, em Portugal, verifica-se a criação de um número significativo de grupos teatrais a partir de 1960, que desejavam renovar a cena teatral portuguesa.983 Num panorama geral, pode dizer-se que Portugal possuía uma quantidade significativa de companhias teatrais em funcionamento nas décadas de 1950 e 1960, que desejavam experimentar novas formas estéticas, mas foram sufocadas pela mão de ferro do regime de Salazar. Ainda que o país tenha uma posição geográfica estratégica no mapa mundi, que permite manter contato com os países vizinhos e com isso absorver tendências e novas formas de pensar o teatro, os artistas se tornaram reféns da censura, principalmente, pela recusa da comissão em aceitar a dramaturgia estrangeira. Bertolt Brecht era inaceitável em solo português. Em virtude disso, a geração de artistas portugueses da década de 1950 e 1960 não tiveram êxito na renovação da cena teatral, mas os dramaturgos ocuparam mais espaço, como afirmou Fernando Mendonça: O decênio de 1960 é o de maior florescimento teatral, teatro escrito, entenda-se. Uma plêiade de jovens escritores aventura-se decididamente a este meio de comunicação e produz (e está produzindo) um quantitativo surpreendente de peças que, se nem sempre apresentam um elevado nível dramático (ou épico), até porque são, de maneira geral, autores muito jovens, têm, contudo, o mérito de manter viva a literatura dramática em Portugal984. Ainda que a quantidade de dramaturgos e, consequentemente, de textos teatrais escritos tenham sido expressivos para a época, o teatro português não apresentou qualquer modificação significativa e continuou a produzir um teatro conforme as leis o permitiam. A dramaturgia portuguesa pouco avançou e, ainda que tivesse proposto qualquer modificação mais consistente, o “lápis azul” era a ferramenta utilizada para interceptar a ideia renovadora. Em Portugal, na década de 1970, a Comissão de Exame e Classificação de Espetáculos (CECE) se reunia, semanalmente, na Secretaria de Estado da Informação e Turismo para a análise de obras teatrais e cinematográficas. Geralmente, essas reuniões tinham a seguinte estrutura: num primeiro momento havia a distribuição dos textos teatrais aos censores, troca de impressões sobre as obras dramatúrgicas analisadas e discussão de recursos; depois, passavase à análise censória do setor de cinema. Além da significativa contribuição dada por Ruth Escobar ao teatro brasileiro, através de uma série de produções teatrais que proporcionaram novas dinâmicas no nosso fazer teatral, 983 Dentre esses grupos destacam-se: Teatro Moderno de Lisboa (TML, 1961), Teatro Estúdio de Lisboa (TEL, 1964), Teatro do Instituto Superior Técnico (IST, 1964), Grupo 4 (1967), Teatro Experimental de Cascais (TEC, 1965). Além disso, outras companhias fundadas na década anterior ainda continuavam em atividade: Teatro Experimental do Porto (TEP, 1952), Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC, 1956), Cênico de Direito (Teatro da Associação Acadêmica da Faculdade de Direito, 1954). 984 MENDONÇA, 1971, p.16. ela também quebrou cânones cênicos pré-estabelecidos. Ruth Escobar voltou a Portugal décadas depois para demonstrar a seus conterrâneos que havia se tornado numa renomada produtora. Para isso, levou três espetáculos teatrais que provocaram grande polêmica de crítica e, de aceitação pelo público. Ruth Escobar também fez parte da lista de artistas e intelectuais que transitaram entre Brasil e Portugal, no entanto, no âmbito teatral, a produtora teve um papel relevante nas novas proposições da cena portuguesa985 ao retornar a sua terra natal. Em Portugal, o nome de Ruth Escobar começou a se tornar conhecido “através do O Balcão de Victor Garcia”986, afirmou o diretor teatral Carlos Avilez. Soma-se a essa repercussão, o fato “de há anos [...], rara era a temporada em que não se anunciava a vinda a Lisboa da portuguesa-brasileira Ruth Escobar”987, ressaltou o jornalista Fernando Midões. Ainda que as produções anteriores de Ruth Escobar no Brasil tenham sido pouco conhecidas em Portugal, somente a partir de Missa Leiga, em dezembro de 1972, foi que a classe artística portuguesa teve a dimensão de sua trajetória e de suas produções no teatro brasileiro. Outro fator que colaborou para que o nome de Ruth tivesse repercussão, antes de sua presença em terras lusitanas, é devido ao diretor franco-argentino Victor Garcia que, em novembro do mesmo ano, dirigiu As Criadas, de Jean Genet, a convite do Teatro Experimental de Cascais. Ruth Escobar, como já colocado na abertura desse capítulo, levou a Portugal três espetáculos: Missa Leiga, no final de 1972 e início de 1973; Cemitério de Automóveis, em 1973, e Autos Sacramentais, em 1974. Ainda que a primeira encenação estivesse planejada para se apresentar somente na cidade de Lisboa, Ruth Escobar conseguiu expandir a temporada às cidades de Coimbra, Porto, Braga e ainda Luanda, em Angola. Com Cemitério de Automóveis, Ruth ficou limitada, pois o espetáculo foi liberado pela censura, exclusivamente, ao município de Cascais, próximo a Lisboa; a última produção, Autos Sacramentais, teve apresentações somente na capital portuguesa. Destaco que Portugal foi o país fora do Brasil que recebeu a maior quantidade de espetáculos produzidos por Ruth, totalizando quatro988 produções cênicas. Observo que os dois primeiros espetáculos foram encenados no período ditatorial do sucessor de Salazar, ou seja, na gestão de Marcelo Caetano e, com isso, Ruth teve de se submeter aos rigores de leis repressoras que se mantiveram intactas no governo de Marcelo Caetano. Consequentemente, a atuação e os procedimentos da censura continuaram os mesmos, as marcas se fizeram presentes até a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974. Como forma de driblar a censura portuguesa, para que pudesse aprovar seus espetáculos junto à CECE, Ruth Escobar firmou uma parceria com Vasco Morgado, um dos grandes empresários teatrais de Portugal. Este empresário “deteve o monopólio dos principais teatros de Lisboa e do Porto e produziu muito do teatro que então se fazia” 989, afirmaram as pesquisadoras Maria João Brilhante e Maria Helena Werneck. Ao deter o domínio dos teatros das principais cidades de Portugal, Vasco Morgado também foi responsável por estabelecer um padrão teatral do que deveria ser apresentado ao público português990. 985 Esse pensamento não será desenvolvido neste capítulo, a discussão acerca desse objeto é ampla e necessita aprofundamento, assunto que pode facilmente tornar-se outra tese de doutorado ou tornar-se campo de trabalho de futuro pós-doutorado. 986 AVILEZ, Entrevista concedia a Eder Sumariva Rodrigues. 987 MIDÕES, Revista Semanal de Espetáculos, 1972. 988 Ruth Escobar também levou para Portugal, em 2001 a encenação Os Lusíadas. Esse espetáculo não está incluído na análise dessa pesquisa, pois está fora do recorte temporal estabelecido para esta tese. 989 BRILHANTE; WERNECK, 2012, p. 79. 990 Ainda que essa colocação seja incipiente e necessite de uma análise mais densa e de investigadores que se debrucem sobre a questão, pode-se pensar que sua atuação como o produtor teatral ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970, tenha corroborado para uma possível estagnação da estética teatral portuguesa (ou não). Obviamente, se deve levar em consideração outras razões: a censura moral e o fechamento do país aos autores estrangeiros. Antes de adentrar as reflexões acerca de Missa Leiga, realizo uma breve passagem a respeito da primeira tentativa de Ruth Escobar e seu desejo de apresentar o espetáculo Versátil Mr. Sloane em Portugal, encenação produzida em 1967991, no Brasil. Em 22 de maio de 1972, o empresário teatral Vasco Morgado apresentou a solicitação para a avaliação do texto, sendo que o nome de Ruth Escobar apareceu como tradutora da obra dramatúrgica. No dia seguinte, na reunião992 do CECE, o texto foi entregue a Mafalda Vaz Pinto, Monsenhor Moreira das Neves e a Alberto Machado, censores portugueses responsáveis pelos pareceres. Esse trio de avaliadores foram incisivos em seus pareceres: A peça ultrapassa o mínimo dos limites que devem presidir a estrutura moral e social de um povo. [...] Reprovo esta peça, sem hipótese de rever a minha posição. Aspectos relativos a inconvenientes onde não vejo sequer a possibilidade de cortes. [...] Peça sem tese, com situações que podem oferecer graves inconvenientes de ordem moral. De aprovar para o grupo D até o ensaio, com cortes assinalados nas págs 37, 42 e 61 ou talvez reprovar993. Ainda que um dos censores possibilitasse uma pequena brecha para refletir sobre a aprovação do texto, dois deles foram categóricos ao afirmar que a peça não deveria ser apresentada em solo português. Quase um mês depois, em reunião de 15 de junho de 1972994, os censores emitiram o parecer final de reprovação. No dia seguinte, Manuel Henriques da Silva enviou uma notificação a Vasco Morgado sobre a decisão da comissão de avaliação, ressaltando que o texto não podia ser representado na região continental de Portugal e nem nas ilhas. Ainda que houvesse chance de entrar com recurso contra a decisão dos censores, nem Vasco Morgado, nem Ruth Escobar solicitaram revisão. Passado mais de seis meses do parecer final, Ruth Escobar se encontrava em Portugal juntamente com sua companhia para apresentar Missa Leiga. Nesse período, em 10 de janeiro de 1974, ela encaminhou a Caetano Carvalho - Diretor Geral da Cultura Popular e Espetáculo (DGCE) - um pedido para realizar dez apresentações do espetáculo O Versátil Mr. Sloane, exclusivamente, em Cascais. A proposta foi aceita. Em 20 de fevereiro de 1973, a produtora recebeu autorização de apresentação, enquadrando-a no grupo D, mas ficou condicionada ao crivo final dos censores no ensaio geral. Embora autorizada a apresentar o espetáculo, Ruth Escobar não executou esse projeto. No entanto, essa primeira tramitação burocrática possibilitou a Ruth a compreensão dos mecanismos para burlar a censura portuguesa. Ela substituiu O Versátil Mr. Sloane por Cemitério de Automóveis. No entanto, outra saga se iniciava. 8.2 O espetáculo, a crítica, a censura de Missa Leiga Em 03 de abril de 1972, o empresário teatral Vasco Morgado submeteu o texto Missa Leiga, de autoria de Chico de Assis, à apreciação da CECE como sendo sua futura produção 991 Esta encenação foi abordada no capítulo III desta pesquisa. Conforme ata n. 20/72, em 23 de maio de 1972. TT. 993 O texto se encontra no Arquivo do Museu Nacional de Teatro, no entanto, em virtude das más condições de conservação dos documentos e do tipo de papel utilizado, as páginas envelhecidas não permitem mais a leitura do mesmo. 994 Processo PT/TT/SNI/DGE/livro 30. Ata 23/1972. TT. 992 teatral em Lisboa. O trâmite do processo iniciou na semana seguinte, em 11 de abril995 de 1972, quando a solicitação entrou na pauta da reunião dos avaliadores. Na distribuição dos textos para análise, Missa Leiga ficou sob responsabilidade dos censores Mafalda Vaz Pinto, Beckert da Assunção e Monsenhor Moreira das Neves para emitirem os pareceres sobre a obra. No processo censório, este último avaliador declarou que o texto, “espécie de auto litúrgico, que pode ter interesse se à representação não faltar com dignidade. De aprovar para o grupo C com os cortes assinalados nas págs. 14, 15 e 16”996. Outro censor997 afirmou que “é uma boa peça, bem escrita e com muito impacto. Como leigo que sou aprovo-a para o grupo D e, para este grupo por temer más interpretações por parte dos mais jovens. No entanto há uma parte assinalada por mim – a da Inquisição – que me oferecerem certas dúvidas. Gostaria [que fossem] esclarecidas por um não leigo”998 (Grifo do original). Apesar de existir divergências quanto à classificação do espetáculo, a comissão enquadrou a encenação no grupo D até a data de inspeção do ensaio geral, conforme comunicado emitido ao “produtor teatral”, em 19 de maio de 1972. Também chamo atenção ao fato de o próprio censor admitir incompetência para analisar uma parte da obra dramatúrgica, isto é, para o Estado não importava se os membros do CEC possuíam ou não conhecimentos das linguagens artísticas para os quais foram designados; o mais importante era defender e resguardar os interesses do governo. Num dos textos999 censurados, encontrado durante a pesquisa, é mostrada claramente a posição defensiva, assumida quando o assunto se tratava de Igreja e Estado. Abaixo, coloco a página censurada e transcrevo as falas proibidas: p.12 CORIFEU: Vamos montar a bancada da Santa Inquisição que no ano de 1314 prendeu e julgou os monges da Ordem do Templário que lutaram nas cruzadas que tentaram libertar a Terra Santa. Os atores vão montando uma mesa e dois escabelos. [...] p.13 DOMI MOR: Esta inquisição abre o processo de Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana contra os monges da Ordem do Templo. In Nomine Cristhe vos acusamos de heresia, tratos com o demônio, negação de Christo e sodomia. [...] p.14 PROMO: [...] e no anus. É ponto que seus corpos neste momento estavam nus. [...] p.15 INQUI: É certo que nesta prova o Grande Mestre tinha que ser beijado? JOVEM: É certo INQUI: É certo que os beijos eram dados nos corpos nuns?(sic) JOVEM: Sim... é certo INQUI: Em que parte do corpo estes beijos eram dados? JOVEM: Um entre os ombros e outro na base dos rins. INQUI: E o outro? JOVEM: Não havia outro, havia uma ordem. INQUI: Que ordem era essa? Processo PT/TT/SNI/DSGE/Livro 30 – Ata n. 14/72. TT. Processo 9398. MNT. 997 Não foi possível identificar o nome do censor pela assinatura no documento. 998 Processo 9398. MNT. 999 A análise do texto era feita por três censores, portanto, cada um tinha uma visão a respeito da dramaturgia e realizam cortes diferentes. Porém, durante a pesquisa foi encontrado apenas um texto cesurado, mas o mesmo não corresponde ao censor Monsenhor Moreira das Neves na qual indicou cortes nas páginas 14, 15 e 16, mas a outro membro do CECE que também fez severos cortes. 995 996 JOVEM: O Grande Mestre dizia... GRÃO MES.: Beija meu anus. JOVEM (grita): Prefiro morrer a ter que fazer isto. PROMO: Está provada a sodomia. JOVEM: Não, era uma prova. Só que os que se negavam eram aceites. Os estatutos da Ordem eram contrários a sodomia. INQUI: E os iniciados que obedeciam a ordem e beijavam? [...] p. 16 JOVEM: Não eram aceites. PROMO: Mas não se pode negar que havia o beijo! GRÃO MEST.: Como existiriam as lutas pela Terra Santa. [...] p. 26 CORIFEU: Quando abriu o terceiro, ouvi a terceira criatura vivente dizendo: Imbuídos da responsabilidade de “proteger” a população dos atentados à moral e aos bons costumes, os censores também tinham a obrigação de resguardar a reputação da Igreja Católica. Os trechos acima censurados permitem visualizar, ainda que parcialmente, a dimensão dos atos censórios dos avaliadores portugueses quanto aos aspectos mencionados. As passagens dramatúrgicas de alusão ao ato sexual e a negação da instituição evidenciam a preocupação dos censores em seguir uma linha de pensamento que “resguardasse” a sociedade daquilo que poderia causar danos. No dia 10 de dezembro1000, Beckert da Assunção, Azevedo Moreira e Alberto Machado se deslocaram até o Teatro São Luiz para realizar a fiscalização do espetáculo Missa Leiga. De acordo com o relatório, as indumentárias estavam apropriadas para irem a público. Quanto ao cenário não houve apontamento; no entanto, nas observações gerais da encenação, escreveram: “se os gravadores constituírem problema terão de ser retirados”1001. Salientaram também que “este facto foi comunicado pessoalmente à Ruth Escobar”1002. No dia seguinte, emitiram o parecer final relacionado ao enquadramento do espetáculo, ficando no grupo C, para maiores de 14 anos. Quanto aos cortes apontados no texto na censura prévia, não constam anotações ou ressalvas. Escrita por Chico de Assis e dirigida por Ademar Guerra, a estrutura dramatúrgica passava por todas as partes da liturgia de uma missa católica, na qual transformava a história do sacrifício de Jesus Cristo num homem comum que devia decidir se desejava ou não passar pelo suplício da crucificação para “salvar” seu povo. Concebido a partir de episódios bíblicos, em forma de ritos do Antigo e Novo Testamento, Ademar Guerra transformou palavras em cenas impactantes, além de envolver o público por meio das canções entoadas pelos atores em forma de preces rituais. Algumas das personagens que compunham Missa Leiga não possuíam nomes próprios, eram indefinidos: ator um, dois, três, quatro, A, B, C e D, coro 1 e 2. Essa estrutura permitia maior dinâmica na encenação, independia do gênero e da quantidade de atores nas cenas em conjunto. Dentre os nomes definidos constavam: Pilatos um e dois, Corifeu, João, Domi Mor, Grão Mestre, promo, jovem templário, inquisidor e Cristo. 1000 Em Lisboa, Missa Leiga se apresentou na cadeia central do município em 24 de dezembro de 1972, as 19:30 horas. 1001 Processo 9398. MNT. Os gravadores, a que se refere o relatório censório, eram utilizados para que o público gravasse seu posicionamento sobre sua vida e a sociedade em que vivia. Esse mecanismo não era visto com muito bons olhos pelos censores, pois podia permitir um descontrole sobre o espetáculo e manifestações contrárias ao regime por parte de espectadores. 1002 Processo 9398. MNT. Saliento que a composição do elenco da produção brasileira diferiu da portuguesa. Enquanto em São Paulo havia vinte e nove atores em cena, em Portugal esse número foi reduzido para vinte e seis, sendo que apenas treze atores1003 da encenação paulista estiveram no espetáculo nas cidades portuguesas. Foi com essa mistura de atores novatos e experientes que Ruth Escobar levou Missa Leiga a Portugal. O espetáculo foi descrito na visão do jornalista Fernando Midões: Talvez me digam que em “Missa Leiga” existem fórmulas – mesmo receitas – todavia “Missa Leiga” usa-as com o pleno domínio de quem sabe (encenador e actores)... e não é apenas isso. Talvez me digam que, por vezes, se nos deparam quebras de ritmo e que o texto de Chico de Assis tem uma linha irregular de alturas caindo frequentemente num equilíbrio instável entre a pureza e a quase demagogia... mas o resultado final em palco e a comunicação logram limar essas deficiências. Talvez...talvez isto e aquilo...e, apesar de tudo, um ESPETÁCULO...numa terra, como a nossa, onde vemos com frequência, textos fabulosos não se tornarem espetáculos! [...] Uma equipa que funciona. Um adestramento inegável em que elementos de uma gramática nova não surgem como “vedetas e fim do espetáculo” mas como auxiliares como ceitos antigos. E, sobretudo: comunicação, agarrar, dispor da audiência. Julgo que o facto de vermos tantos e tantos actores, todos muito jovens, sem um gesto errado, sem uma dificuldade de respiração, de excelente ouvido, sem “máscaras mudas”... e – aqui um sublinhado muito forte – cantando de forma tão admirável (quantas vezes terei escrito que, no lugar cénico, ou se canta como estes brasileiros ou será melhor não fazer?). A música de Cláudio Petraglia é o ponto maior de “Missa Leiga”... e se tudo quanto compõe este cartaz (11 meses de permanência em S. Paulo) se alçasse ao mesmo plano, estaríamos perante algo de verdadeiramente incomum. Acerca da direção de Ademar Guerra (e direcção geral de Ruth Escobar) já demos a entender que é seguríssima, fluente, bastas vezes inspirada. Bons os figurinos de Joel de Carvalho, cujo cenário se mostrou quase anódino (não estaria previsto que fosse um altar?). [...] O público da estreia, a tender para o muito snobe, aplaudiu com calor [...] 1004 Na visão de Midões, ainda que o espetáculo tivesse alguns apontamentos a serem resolvidos, principalmente na dramaturgia e no ritmo do espetáculo, o fato é que o espetáculo possuía uma empatia ímpar com o público. A comunicação estabelecida entre cena e plateia se dava tanto pelas músicas, quanto pela interpretação dos atores que era fundamental para englobar os espectadores na encenação. Como se vê, toda a concepção de Missa Leiga foi cuidadosamente pensada nessa característica: inserir o público nesse ato ritualístico. Midões também destacou o trabalho do elenco; para ele, os atores estavam coesos e afinados com a proposta da encenação de Ademar Guerra, responsável por essa unidade. Ainda que o jornalista tenha utilizado, de modo exagerado, as palavras ‘nenhum gesto errado’, para definir a encenação, como sendo “perfeita” o fato é que Missa Leiga tinha improvisação de cenas. 1003 João Baptista, Walter Cruz, Cristina Pereira, Júlio César, João Carlos Vicci, Alice Gonçalves, Luiz Damasceno, Sônia Loureiro, Sergio Roperto, Everaldo Fernandes, Antonio Reche, Paulo Calvoso e Neide Duque (também assumia a função de produção). Foram integrados ao elenco: Sonia Guedes, Bruna Fernandes, Osmar di Pieri, José Carlos Alcântara, Lizette Negreiros, Cleibi Dias, Glaucia Freire, Cleytson Feitosa, Emilio Bozzo, Edson Rabelo, Ariston Augusto, Marcio Ferreira e Milton Levy. A equipe ainda foi composta por cinco músicos e figurantes, elevando o número para mais de trinta integrantes em sua companhia. Os nomes desses figurantes não foram localizados. Eram crianças que distribuíam beijos ao público. 1004 MIDÕES, Revista Semanal de Rádio & Televisão, 1972, p. 38. Assim como no Brasil, as músicas compostas por Cláudio Petraglia também foi um dos pontos destacados na imprensa e na classe artística. As mais de dez canções presentes na encenação (Salmo da Paz, Canto do Kyrie, Canto da Glória, Canto da Aleluia, Cantos de João Batista, Canto da Entrega, Canto do Lavabo, Canto do Sanctus, Canto da Comunhão, Salmo de Preparação), tornaram-se elementos essenciais na concepção geral do espetáculo por contagiar o público, que resultou ao final da apresentação, conforme Midões, em aplausos calorosos. Ao contrário do jornalista Midões, o crítico teatral Carlos Porto (pseudônimo de José Carlos da Silva Castro - um dos fundadores da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro) do Diário de Lisboa, teve uma posição mais rígida: [...] A maior força de “Missa Leiga”: o seu antropomorfismo; a maior fraqueza: a sua ineficácia. Posto perante (com) o público de S. Luís, ou de qualquer outro sítio semelhante este espetáculo que quer ser, ao mesmo tempo, um libelo e um apelo é como a chuva a bater numa vidraça hermèticamente (sic) fechada: não entra. Perante um outro público, seria maior sua eficácia? Embora possivelmente compreendido de outra maneira, suponho que continuaria a ser humanamente ineficaz ou, se se (sic) preferir socialmente inútil. Não quero com isto classificar o espetáculo de reacionário porque seria uma afirmação tão sem sentido como dizer que é progressista. “Missa Leiga” coloca-se a outro nível, por assim dizer, metodológico. Espectáculo que pretende contestar a sociedade em que vivemos e os seus modernos ou antigos cavaleiros de apocalipse – a guerra, a fome, a solidão, a poluição, a ameaça nuclear – “Missa Leiga” realiza-se numa forma não constestatária. O Tempo (entidade histórica) refugiou-se num espaço neutro que, aparentemente, anulas as suas potencialidades militantes, o Tempo (seria melhor dizer: o Teatro?). [...] Podemos considerar que “Missa Leiga” se situa em dois planos: o do ofício, como discurso de (boas) intenções; o do teatro que expressa esse discurso, o catapulta. Ora, o espectáculo sobre sempre (sic) que deixa o ofício pelo teatro. Seria, aliás, curioso pôr em confronto o facto de a missa (prática ritual muito mais fechada) beneficiar, talvez, em ser mais missa e menos teatro. Porque, para além de tudo, há o espectáculo. Isto é, há uma companhia de actores interpretando um tempo de acordo com determinada concepção cénica. Embora grande parte do texto se tenha perdido (sobretudo, o cantado), pelo que ouvi não me pareceu tão intenso, tão “iluminado” e criador como seria de desejar; embora a música tivesse alguns momentos excelentes nem sempre fugiu ao vulgar, ao repetitivo. Estas restrições não me impendem de considerar “Missa Leiga” como um espectáculo com aspectos muito positivos desde o ponto de partida da elementaridade e pobreza dos cenários e do guarda-roupa (os actores despem seus figurinos e apagam nos rostos as marcas de pintura que os transfiguravam para assim nos aparecerem na sua verdade primeira) até à distribuição dos papéis e à marcação. É certo que a encenação não evitou os efeitos demagógicos (refiro-me especialmente aos seguintes pontos: convite aos espectadores para se identificarem com Cristo; beijo das crianças aos espectadores; recolha gravada de depoimentos; leitura de uma carta enviada por uma espectadora brasileira), mesmo tendo em conta que esses efeitos procuram a participação do público que, parece-me, não resultou. De louvor, em contrapartida, a simplicidade dos processos utilizados (exemplo: cena do julgamento simultâneo dos dois Cristos); a participação coral dos actores; a marcação que trás frequentemente os intérpretes à platéia, procurando, deste modo, eliminar os inconvenientes de um espaço inadequado para um espetáculo desse tipo (sobretudo no que se refere ao balcão e a galeria). Algumas partes cantadas atingem momentos fulgurantes (e a música ganha quase sempre que foge ao pop e adquire ressonâncias locais): o Kyrie Eleison tem uma força pasmosa, o julgamento dos templários (autocontestação do cristianismo); e aquela em que os actores se desm (sic) do seu papel de participantes de um ritual para assumirem o de actores cómicos de uma função que começou por ser sagrada, instante em que o espectáculo se suspende para ser uma outra realidade – a do teatro como imagem do homem do Mundo. Não resultou a cena fundamental da leitura da Bíblia em contraste com a leitura de recortes de jornais por não chegar à maior parte do público. “Missa Leiga” é um espectáculo ambíguo, talvez contraditório. Tem, contudo, a coragem de assumir de rosto descoberto essa ambiguidade e essa contradição. A imagem que dele guardo mais fundamental é a da cena final: dois actores abraçam-se enquanto os outros cantam pelo palco e na plateia um canto de amor e esperança. Todos se aproximam e todos se unem no mesmo abraço de amor e unidade. Depois, num movimento muito simples e terrivelmente eficaz, soltam-se e ficam, em duas filas, voltados para o público sempre cantando. Esta cena constitui uma síntese de clareza e capacidade técnica revelada pela encenação e pelos intérpretes. Se o intérprete negro do oficiante é o que tem uma participação mais importante, é sobretudo de sublinhar o carácter coletivo do trabalhos dos actores. E neles a sua capacidade de expressão corporal (mais que vocal), de comunicação. Espectáculo para ser lido tanto no que contém como naquilo que não está lá, aí reside afinal outra das duas fraquezas e das suas forças. Também nele interessa mais o espírito (a sua potencialidade crítica) do que a letra (a sua visibilidade) 1005. Quanto ao público, o Diário de Lisboa registrou algumas opiniões: O espetáculo não poderia ter outro nome. Esta é, de verdade, a missa dos leigos, a missa do povo. Quero agradecer aos seus autores (e actores) por me lembrarem uma série de coisas das quais, por comodismo, me havia esquecido. Sim, o amor é a salvação do mundo. (José Baptista Pereira, 28 anos, estudante). A Missa Leiga, antes de mais nada, é um ato aos sectarismos. Ali, o que interessa, é a verdade. É o Homem. (Lúcia Helena Teixeira, 31 anos, advogada). Não tenho vergonha de dizer que chorei. O espetáculo é emocionante. Durante o tempo inteiro o homem e o futuro da humanidade é questionado. Como sou um homem, senti-me preocupado. O despojamento dos cenários e das vestes é significativo (Pedro Pinheiro de Almeida, 32 anos, empregado de escritório 1006. Logo após as apresentações em Lisboa, Ruth Escobar excursionou com o espetáculo por algumas cidades portuguesas. O primeiro município a receber Missa Leiga foi Coimbra, nos dias 17 e 18 de janeiro de 1973, no Teatro Gil Vicente da Universidade de Coimbra. Em seguida, a empresária levou sua companhia para se apresentar em Porto, considerada uma das maiores cidades do norte do país. Ao público portuense, Missa Leiga esteve em cartaz no período de 22 a 28 de fevereiro de1973, no Teatro Rivoli, no entanto, o sucesso de público fez a empresária postergar a presença da encenação na cidade, permanecendo até 03 de março. Dias antes da estreia, o Jornal de Notícias – principal periódico que circulava na cidade – anunciava Missa Leiga: O facto de “Missa Leiga” ser apresentada ao público do Porto merece, sem qualquer dúvida, o melhor acolhimento. “Missa Leiga” é uma admirável proposição sobre nós próprios e que conta com elementos fundamentais de elevado valor como sejam a música de Cláudio Petraglia, os cenários e figurinos de Joel de Carvalho e a iluminação de Rofran Fernandes1007. 1005 PORTO, Diário de Lisboa, 14 dez. 1972, p. 8. O POVO, Diário de Lisboa, 14 dez. 1972. 1007 “MISSA LEIGA”, Jornal de Notícias, 18 fev. 1973, p. 31. 1006 “Missa leiga” é um belo exemplo do teatro do nosso tempo, uma palavra de esperança para nós, um grito de alerta perante o silêncio que grassa no seio da Humanidade dividida [...] “Missa Leiga” um espetáculo que, incondicionalmente, merece ser analisando conscienciosamente. Não é, adverte-se um espectáculo só para crentes – mas para todos os homens que ainda acreditam no Homem 1008. Ainda em Porto, no anfiteatro do Liceu Antônio Nobre, no dia 23 de fevereiro de 1973, Ruth Escobar proferiu uma palestra sobre o Teatro Brasileiro e Missa Leiga. No dia 24 do mesmo mês, o Teatro Experimental do Porto na sede do Grupo dos Modestos, promoveu um colóquio com a presença do elenco para discutir as diversas interpretações acerca do espetáculo. A respeito desse encontro, o Jornal de Notícias registrou que “o clima que envolveu o diálogo entre os actores e o público, pelo calor de certas réplicas pela acuidade de certas perguntas. De facto, o público que esteve na sede do Grupo dos Modestos não foi, de modo algum, um conjunto de assistentes amorfos sentados em desconfortáveis cadeiras e acomodando-se às palavras-intenções dos actores brasileiros”1009. Consta nesse período em que Ruth Escobar permaneceu no Porto que, assim como em Lisboa, ela levou Missa Leiga para apresentação na capela da Colônia Penal de Santa Cruz do Bispo, a penitenciária do município. Durante a apresentação, o jornalista registrou um desabafo de um dos detentos abordado durante o espetáculo, na cena em que os atores coletavam depoimentos que são gravados: Não tenho nada que dizer; Tudo está muito bem; Gostei muito deste espectáculo. Só se falar da minha condenação, desgracei-me com as más companhias, apanhei três anos, o meu companheiro está pior que eu, apanhou doze anos e está na Penitenciária. Estou a gostar de ver. Estou muito contente convosco, muito obrigado por esta “Missa Leiga”. Falar para quê?. Gostei muito disto, gostei do espectáculo, quero que perdoe os meus pecados, ó meu Pai do Céu” 1010. Apesar da observação feita no processo censório quanto à utilização dos gravadores, que poderiam constituir algum problema (não no sentido no andamento da encenação, mas que esse equipamento poderia gerar certa oportunidade para a população atacar o governo), vê-se que a cena concebida surtiu efeito. Ainda que a quantidade de depoimentos existentes dessa coleta realizada durante o espetáculo seja pouca, repara-se que a proposta de Ademar Guerra também surtiu efeito em Portugal. O depoimento do detento revelou detalhes dos comportamentos de seus companheiros, assim como trouxe à tona questões pessoais. A última cidade a ser visitada pela companhia de Ruth Escobar, em Portugal, aconteceu na cidade de Braga, no dia 05 de março de 19731011, no Theatro Circo de Braga, com duas sessões, umas às 16 horas e outra às 21h45, encerrando a passagem de Missa Leiga em Portugal. 8.3 Os recursos financeiros para Missa Leiga Ao mesmo tempo em que tramitava a análise da censura, Ruth Escobar iniciou a busca por verbas para subsidiar as suas produções em Portugal. Para isso, enviou solicitação a José “MISSA LEIGA”, Jornal de Notícias, 20 fev. 1973, p. 19. VIGOROSO, Jornal de Notícias, 25 fev. 1973, p .6. 1010 CRUZ, O Comércio do Porto, 02 mar. 1973, p. 2. 1011 A apresentação em Braga estava prevista para o dia 04 de março, mas devido a prorrogação da temporada em Porto, o espetáculo foi apresentado no dia seguinte ao previsto. 1008 1009 Azeredo Perdigão, presidente do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), instituição que apoiava o setor artístico português, assim como era adepta a trazer produções artísticas de outros países1012. Além disso, Ruth aproveitava as entrevistas concedidas à imprensa lisboeta para veicular pedidos de subvenção às autoridades portuguesas. Quando Ruth Escobar decidiu solicitar recursos financeiros para Missa Leiga, ela sabia de antemão que a FCG tinha uma trajetória significativa de apoio e desenvolvimento das artes em Portugal. No entanto, há um outro dado nessa relação entre Ruth e a instituição. A FCG foi criada em 1956, após a morte do armênio Calouste Sarkis Gulbenkian, em 1953. Ele deixou registrado em seu testamento o desejo da criação dessa instituição que tinha (e tem) como fim o desenvolvimento de ações caritativas, artísticas, educativas e científicas. Criada sob o decreto-lei n. 40.6901013, durante o governo do ditador António Oliveira Salazar, que concedeu à FCG personalidade jurídica e estatuto próprio, isto é, ela adquiriu autonomia de suas atividades em relação ao Estado. Quanto aos recursos financeiros para manutenção e desenvolvimento das atividades, cabe pontuar que a FCG, desde sua criação, nunca recebeu qualquer repasse de verba pública. Ela possui recursos próprios, provenientes da Partex Oil and Gas Group Companies1014. Com autonomia financeira e isenta de qualquer intervenção da ditadura portuguesa, a FCG assumiu uma posição singular nesse contexto repressivo. Ainda que os artistas estivessem sob a batuta das leis ditatórias que sufocavam a criação teatral, a FCG realizava ações que permitiam oxigenar a estética cênica portuguesa. Para isso, artistas de outros países eram convidados a realizar apresentações e debates nas dependências da instituição. Além disso, a FCG teve papel decisivo no fomento das companhias teatrais de Portugal. Receber convite da instituição ou estar subvencionada por ela significava que havia proteção da obra teatral. Por conseguir leis próprias, a FCG ficou conhecida, na época, como o Estado dentro do Estado1015. A respeito dessa posição, os pesquisadores António Nóvoa e Jorge Ramos do Ó afirmaram que “a circunstância de delinear o seu programa a partir do mapa de objectivos e necessidades traçado pelo Estado autoritário não impediu a Fundação Calouste Gulbenkian de reivindicar explicitamente, e desde os primeiros anos da sua existência, uma posição de grande autonomia e independência”1016. 1012 Com uma política de incentivo à arte teatral por meio de subsídios, a FCG foi uma das responsáveis pelo surgimento de companhias teatrais. Conforme a pesquisadora Maria Helena Serôdio (2013, p. 16) foi a partir dessa parceria com uma entidade privada que surgiu: “[...] nos anos sessenta que surgiram vários projectos de companhias “experimentais”, como, entre outros, o Teatro Moderno de Lisboa (1961), o Teatro Estúdio de Lisboa (1964), ou o Teatro Experimental de Cascais (1965), antecedidos, porém, de outras aventura, como o Teatro Estúdio Salitre (1946), a (primeira) Casa da Comédia (1946) ou o Teatro Experimental do Porto (1953); como os anos setenta foram atravessados a meio pelas alterações radicais trazidas pela Revolução de Abril, mas, em termos de teatro, tiveram alguns dos seus traços posteriores antecipados em muito do teatro universitário, teatro de amadores e teatro de companhias “independentes”, como os Bonecreiros [1971], a Comuna [1971] ou o Teatro da Cornucópia; [1973] como foi nos anos a oitenta que se multiplicaram os projectos de festivais –nacionais e internacionais”. 1013 PORTUGAL, 1956. 1014 Consta no site da Companhia que: “A Fundação Calouste Gulbenkian é uma instituição privada portuguesa de utilidade pública. Os seus fins estatutários estão no campo das artes, caridade, educação e ciência. Criada pelas premissas estabelecidas numa cláusula do testamento de Calouste Sarkis Gulbenkian, os estatutos da Fundação foram aprovados em 1956. Os seus principais ativos eram a coleção de arte de Calouste Gulbenkian e os seus interesses internacionais no petróleo, principalmente a participação de 5% na Iraq Petroleum Company […] A Fundação detém 100% da Partex Oil and Gas Group Companies”. GULBENKIAN, 2015. 1015 Os pesquisadores António Nóvoa e Jorge Ramos do Ó, em Fundação Calouste Gulbenkian – 50 anos – Educação, intitularam uma parte do livro como Um Estado ao lado do Estado. No entanto, não estou de acordo com essa colocação, visto que “os Estados” não são paralelos, mas um “Estado” foi inserido noutro. 1016 NÓVOA; RAMOS In: BARRETO, 2007. Apesar de Ruth possuir uma trajetória de produções teatrais no Brasil, ela era uma desconhecida em Portugal. Ciente dessa condição de anonimato e para contornar essa situação, ela utilizou de uma estratégia que adotava com a imprensa brasileira. Fez declarações que tiveram repercussão junto à classe artística e aos empresários. Ela afirmou à jornalista Lurdes Féria que, “Eu (juntamente com Victor Garcia), Joseph Pap, Luca Ronconi e Joe do Open Theatre fazemos o melhor do teatro mundo”1017. A declaração de Ruth, logo surtiu efeito. A própria repórter, colocou que: À primeira vista esta afirmação denota um certo cabonitismo e um autoconvencimento exacerbado. Mas só para quem não conhece Ruth Escobar. Ela é assim: uma mulher em ebulição – decidida, voluntariosa, esperta, vaidosa. E também: um animal do teatro que transpira talento por todos os poros. Talvez não seja tanto assim como ela diz, mas é, sem dúvida, Ruth Escobar quem faz o melhor teatro do Brasil” 1018. Além de sair desse anonimato, unida a seus pares ela sabia que a ditadura portuguesa seria um empecilho para produzir espetáculos, cuja estética teatral quebrava os cânones e discutia temas caros aos militares e à Igreja Católica. Nesse sentido, a aproximação de Ruth Escobar com a FCG pode ser compreendida como uma estratégia de proteção que lhe possibilitava transitar com mais tranquilidade. Mais que esse resguardo próprio, havia a preocupação com o elenco brasileiro que poderia sofrer atentados e ameaças por parte daqueles que defendiam o regime. A parceria com a FCG assegurava que a produção de Ruth Escobar poderia receber ainda que, parcialmente, recursos financeiros a sua produção teatral. O começo dessa aproximação foi registrado em meados de 1972. A princípio, Ruth queria levar três espetáculos para realizar apresentações consecutivas no mês de outubro de 1972. Na correspondência, ela escreveu: Venho muito respeitosamente pedir a Vossa Excelência que se digne patrocinar esta deslocação facilitando ainda os altos encargos que assumo, atribuindo-me um subsídio no valor correspondente a 50% das viagens por avião, referentes a 36 elementos que desloco nesta digressão. Atrevo-me ainda a pedir, no caso de ser possível, que os três primeiros espetáculos, com o espetáculo de ante-estreia (Missa Leiga), se realizem no Grande Auditório da Fundação, o que representaria para mim grande estímulo e o melhor acolhimento que eu poderia ter em Portugal1019. Ainda que a produtora recebesse o apoio financeiro solicitado à FCG, Ruth teria de angariar a outra metade, além de todas as despesas de produções que envolviam o deslocamento da companhia: hospedagem, alimentação para todos os integrantes, despesas administrativas para locação de espaço e encargos a serem pagos. De acordo com o informe 364/1972, as estimativas de despesas levantadas pela FCG custariam cerca de 405.630$00 escudos (quatrocentos e cinco mil seiscentos e trinta escudos), um montante significativo para a instituição pagar. Chamo atenção que na correspondência enviada à FCG, Ruth solicitava que a encenação fosse apresentada nas dependências da instituição. Isso pode ser compreendido como um indício sobre o resguardo do espetáculo. A figura de Ruth Escobar ainda era desconhecida entre os empresários e artistas portugueses, por isso a FCG lhe encaminhou uma correspondência, solicitando esclarecimentos sobre sua trajetória artística e mais informações a respeito de Missa Leiga. 1017 FÉRIA,1972, p. 5. FÉRIA,1972, p. 5. 1019 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. 1018 Em resposta a Carlos Wallenstein, em 28 de julho de 1972, Ruth respondeu: Exmo Sr. CARLOS WALLENSTEIN Fundação Calosute Gulbenkian LISBOA Exmo Sr. Em resposta à Carta de V. Excia. Cumpre-nos informar o que segue: 1) Relação dos principais espetáculos montados por nossa Companhia em nosso teatro desde 1.964. “Mãe Coragem” – Brecht; “Opera dos Três Vinténs” –Brecht; “Lisístrata” – Aristófanes; “Júlio César” – Shakespeare; “Romeu e Julieta” – Shakespeare; “Dois Cavaleiros de Verona” – Shakespeare; “o casamento do Sr. Mississipi” – Durrenmatt; “os sete gatinhos” Nelson Rodrigues; “Antigone América” – Carlos Henrique Escobar; “as fúrias” – Rafael Alberti; “Soraia posto 2” – Pedro Bloch; “a pena e a lei” – Ariano Suassuna; “os monstros” – Denoy de Oliveira (dirigido por Jerome Svary contratado especialmente em Paris); “cemitério de automóveis” de Arrabal (13 prêmios, incluindo: Prêmio Molière, Prêmio Governador do Estado e Associação Paulista de Críticos Teatrais); “O Balcão” – Jean Genet (33 prêmios, incluindo: Prêmio Roquete Pinto e Ruth Escobar como personalidade teatral do ano). 2) Atualmente em cartaz com “MISSA LEIGA” de Chico de Assis, o maior sucesso de São Paulo, de crítica e público. Em montagem com estréia marcada para o próximo dia 3 de setembro, “A VIAGEM” (adaptação de Os Luzíadas de Camões), feita por Carlos Queiroz Telles com direção de Celso Nunes, diretor premiado com vários trabalhos entre os quais: “O Interrogatório” de Peter Weiss; cenários e figurinos de Helio Eichbauer, cenógrafo mais premiado no Brasil e músicas de Paulo Herculano. Além disso mantemos em constante repertório, duas companhias com espetáculos infantis e juvenis, os quais são recomendados pelo Conselho Estadual de Cultura, Secretaria da Educação e pela Associação dos Professôres do Estado de São Paulo, fazendo desta maneira espetáculo especiais para as escolas. Atualmente em cartaz “ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA” de Cecília Meirelles e “AUTO DA COMPADECIDA1020” de Ariano Suassuna. 3) Com relação a nossa temporada em Lisboa, só ficou decidida a apresentação de “Missa Leiga”, já liberada, em outubro próximo pois até o presente momento não conseguimos um pronunciamento favorável da Censura, sobre “O Cemitério de Automóveis”. Através de S. Excia o Embaixador de Portugal no Brasil José Manuel Fragoso, tivemos a confirmação do Teatro São Luiz em Lisboa, para a apresentação de “MISSA LEIGA”. 4) “MISSA LEIGA” é de autoria de Chico de Assis e foi dirigida por Ademar Guerra, um dos melhores diretores do teatro brasileiro; Premiado em 1967 e 1968 com o “Sacy”, “Governador do Estado” e “Coruja de Ouro” do Instituto Nacional de Cinema da Guanabara. Joel de Carvalho um dos mais conhecidos cenógrafos brasileiros é responsável pela cenografia e figurinos. Premiado em 1970 com o “Molière” e “Prêmio Estadual de Teatro” na Guanabara como melhor cenógrafo do ano. 5) O elenco constituído por 30 atôres, orquestra e contando com a participação de 6 crianças é encabeçado pelo ator Armando Bogus, premiado como melhor ator em 1964 com o “Molière” e “Padre Ventura”1021. 1020 1021 Direção de João Cândido DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. O que chama a atenção na resposta de Ruth Escobar, ao afirmar que mantinha parceria em paralelo com produções espetaculares de uma companhia teatral, que tinha como objetivo atingir o público infanto-juvenil é uma faceta até então desconhecida da produtora e não registrada em sua trajetória artística. No entanto, como afirmou o ator Márcio Otávio Saes Ferreira, que atuou em O Romanceiro da Inconfidência, sob a direção de Rofran Fernandes e, em Missa Leiga, o espetáculo estava “sob a custódia de Ruth Escobar”1022. Visto que essas produções não foram do Teatro Ruth Escobar, constata-se que a produtora mantinha uma relação somente de financiadora de espetáculos. Após recebimento das respostas, o conselho da FCG novamente retomou ao assunto para discutir sobre o pedido de subsídio de Ruth Escobar. Nessa reunião, além das respostas da produtora, um integrante da comissão ficou responsável pela coleta de outras informações a respeito de Ruth Escobar. Nos apontamentos de 10 de outubro de 1972, ele relatou que: Ruth Escobar é portuguesa e fixou-se no Brasil, onde tem desenvolvido uma actividade a vários títulos meritória no campo do teatro, dando lugar, nos últimos anos, a um movimento de renovação e apresentando alguns melhores espectáculos que se fizeram no Brasil, durante um período que o teatro brasileiro obteve nível excepcional e um favor público correspondente ao interesse, à vivacidade e à oportunidade da sua acção. Para conseguir não se poupou a todo género de esforços, fazendo ir da Europa colaboradores, contratando os melhores artistas, descobrindo e criando artistas novos, fazendo grandes investimentos. Por exemplo, para poder produzir o espetáculo “O Balcão” de Genêt, na encenação de Victor Garcia, destruiu interiormente um teatro, o mesmo em que há dias estreou “A Viagem” peça extraída de “Os Lusíadas”. Ruth Escobar é extremamente empreendedora e, para criar o movimento mantém, usa da influência de que dispõe nos meios governamentais 1023. O fato de investigar Ruth Escobar demonstrava que seu nome e seus projetos teatrais pouco ressoavam em Portugal. A fidedignidade do teor das informações coletadas trouxe à tona referências da mulher que provocou uma ebulição no teatro brasileiro. De onde quer que as informações tenham sido recolhidas, a força que a motivava para produzir teatro foi característica ressaltada. Não importava os obstáculos. A audácia de estabelecer parcerias com encenadores renomados, a montagem de espetáculos que marcaram época e a busca de recursos financeiros para suas produções foram características que se destacaram em sua trajetória. Apesar dos percalços de sua caminhada e das estratégias desenvolvidas para realizar seus projetos, sua atitude deixou significativas marcas no teatro brasileiro. Logo, a mesma concepção poderia ser aplicada ao contexto português. Além da investigação sobre a produtora, o informante também trouxe informações a respeito de Missa Leiga: Vi “Missa Leiga”. O espetáculo levanta problemas morais de interesse actual, colocando-se numa comunidade que se confronta com os desregramentos vigentes de nosso mundo. Uma religiosidade ingênua cria, ao longo do espectáculo, crescente emoção, expressa pelo criterioso jogo cênico e pela música, composta expressamente, a qual se tem no espectáculo participação importante. O título “Missa Leiga” vem de a obra seguir o esquema da Missa católica, aplicada às nossas actuais angústias. Como afirma o autor “é uma oração pelo destino do mundo e da humanidade”. 1022 1023 DUMARESQ, 2015. DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. Sem ser um espetáculo excepcional, “Missa Leiga” apresenta diversos motivos que o tornam interessante. Sobretudo a participação que obtém da parte do público que, através do que vê, identifica a sua posição neste mundo, na qual, provavelmente, não tem frequentes ocasiões de pensar. As reacções, no dia em que assisti ao espectáculo, foram de franca adesão e entusiasmo. Considero portanto, de interesse e a vários títulos estimulantes a apresentação da Companhia de Ruth Escobar entre nós1024. Pelos apontamentos, constata-se que a pessoa encarregada de averiguar as questões referentes à produtora e ao espetáculo era alguém que transitava por São Paulo. O fato de ter assistido o espetáculo indica precisamente essa informação, visto que Missa Leiga não foi apresentado fora do estado paulista antes de viajar para Portugal. Sendo um dos pontos altos da peça, ele se referiu às cenas cantadas pelos espectadores (as músicas estavam impressas no programa), à coleta de depoimentos, ao convite dos atores para ouvir e responder a palavra de Deus e quando algumas crianças vão ao público beijá-los. Visto que a estrutura dramatúrgica foi pensada a partir de uma missa, a participação da plateia era fundamental. Ainda que a ditadura militar estivesse vigente e retroalimentando a censura portuguesa, é pertinente lembrar o papel da FCG. Apesar desse contexto repressor, a instituição tinha autonomia para trazer um espetáculo que começasse a friccionar com as autoridades militares. Demonstrou com isso ser, ainda que incipiente, um ponto de resistência por meio da arte. Nessa mesma forma de promover uma arte politizada, no ano seguinte, Cemitério de Automóveis também recebeu incentivos financeiros da FCG. No dossiê de Ruth Escobar, na FCG, foi relatado o problema ocasionado no intercâmbio entre Brasil e Portugal, em virtude de sua companhia desejar apresentar seu espetáculo em solo português. A parceria se dava entre o governo português e o SNT, na qual estava acordado que, anualmente, cada país enviaria um espetáculo indicado pelo seu respectivo órgão competente, sendo o país onde residia a companhia que arcaria com as passagens aéreas, enquanto o anfitrião custearia e disponibilizaria os custos da locação do espaço de apresentação, juntamente com as questões técnicas que a envolvessem. A companhia selecionada ficaria com a responsabilidade de pagar os demais custos que abrangessem a produção (hospedagem, alimentação e publicidade). Neste intercâmbio cultural, em 1972, o Serviço Nacional de Teatro pretendia enviar a Portugal a Companhia do Teatro Princesa Isabel com os espetáculos Por Mares Nunca Dantes Navegados e Remissão dos Pecados, para realizar apresentações em dezembro de 1972 nas cidades de Lisboa e Porto. Do lado lusitano, o Director Geral dos Espectáculos desejava que o Grupo 4 apresentasse no Brasil, em abril de 1973. No entanto, havia ressalvas quanto à escolha dessa companhia para colocar em linha de frente desse intercâmbio: “o Grupo 4 tem os seus méritos; mas não tem aquela força necessária para vencer as relutâncias com que os brasileiros olham as coisas portuguesas” 1025. Em decorrência das negociações iniciadas por Ruth Escobar para suas apresentações em Portugal, o intercâmbio sofreu modificações. De acordo com Caetano de Carvalho da DGCE, em ofício encaminhado ao Director do Serviço de Belas Artes da FCG, ele afirmou que nem o SNT e nem as autoridades portuguesas tinham conhecimento da vinda da produtora a Portugal: 1024 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. Nos apontamentos realizados na reunião foram elencadas outras dificuldades para execução desse intercâmbio: 1) Falta de um acerto dos critérios de censura nos dois países, a qual impedirá o Brasil de apresentar em Portugal o melhor que faz e impedirá Portugal de criar espectáculos que interessem o Brasil. 2) A distribuição dos encargos acima indicada condena as companhias portuguesas a suportarem despesas de hospedagem que são cerca de 3 vezes maiores no Brasil do que em Portugal; 3) O facto de as companhias serem designadas pelos organismos oficiais compromete a hipótese de as receitas dos espetáculos pesarem nas realidades financeiras do intercâmbio. 1025 Entretanto o facto foi conhecido pelo Director do Serviço Nacional de Teatro do Brasil, que me telefonou há dias confessando a sua estranheza pela vinda ao nosso país da companhia de Ruth Escobar exactamente na data em que actuaria a outra companhia brasileira indicada oficialmente por ele, e que ainda mais estranhava terem-lhe dito que ela viria com apoio oficial do lado português. Nestes termos, parecia-lhe melhor suspender a vinda da companhia oficialmente indicada e marcar a sua actuação entre nós para outra data1026. No mesmo documento, Caetano de Carvalho confirmou que Missa Leiga tinha sido aprovada pela CECE, sendo que ele presenciou em São Paulo a encenação, a qual “nos deixou a melhor impressão”. Ele terminou o ofício, salientando que as outras peças (Cemitério de Automóveis e O Versátil Mr. Sloane) não foram aprovadas. Mesmo sem resposta da FCG, se iria ou não financiar parte da produção de Missa Leiga, Ruth Escobar decidiu levar a Portugal o espetáculo. Em 12 de dezembro, a encenação estreou no Teatro São Luiz1027, encerrando sua temporada no dia 31 de dezembro de 1972. Após duas semanas de apresentações, Ruth Escobar recebeu uma resposta definitiva da FCG. Conforme apontamentos de Carlos Wallenstein, diretor do Departamento de Arte do Serviço de Belas Artes, a instituição concedeu um subsídio no valor de 195.000$00 escudos (cento e noventa e cinco mil escudos)1028 na rubrica Teatro-Intercâmbio, para custear 50% dos custos dos lugares destinados a estudantes. Visto que o espetáculo estava em cartaz há quinze dias, a FCG colocou como condição que a temporada deveria ser prolongada no Teatro Maria de Matos, a ser iniciada em 04 de janeiro de 1973. Após a temporada, Ruth Escobar encaminhou uma carta ao presidente Artur Nobre de Gusmão da FCG em 23 de janeiro de 1973, anexando borderôs correspondentes aos espetáculos realizados de 9 a 21 de janeiro1029, equivalente à importância de 48.640$00 (quarenta e oito mil seiscentos e quarenta escudos) a serem pagos pela Fundação. Logo em seguida, em 19 de fevereiro, a produtora encaminhou uma nova correspondência1030 com novos borderôs1031 dos espetáculos apresentados entre 6 a 18 de fevereiro de 1973, no Teatro São Luiz, a fim de receber os subsídios destinados a facilitar a entrada de jovens e estudantes. No entanto, a FCG compreendeu que: Considerando que a peça em causa obteve com o subsídio que V. Exª. lhe atribuiu o primeiro auxílio concreto que a Companhia recebeu pela sua deslocação a Portugal; que a Fundação, através dos Serviços de Educação e do Ultramar, prestou auxílio à mesma Companhia e, por último, que a exploração do espetáculo foi economicamente 1026 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. Exceto dias 20 e 21 de dezembro em que o espetáculo foi apresentado no Teatro Maria Matos. 1028 Consta no DOSSIÊ Ruth Escobar da FCG autorização de subsídio expedido em 29 de dezembro de 1972 pelo presidente da instituição. 1029 Chamo atenção ao fato para os dias 17 e 18 de janeiro de 1973, em que Ruth Escobar levou sua companhia para apresentações na cidade de Coimbra. No entanto, de acordo com a veiculação de propaganda no Diário de Lisboa de 16 de janeiro, dizia que no dia (17) seria dia de descanso. No dia seguinte, a propaganda reforçava que não haveria espetáculo, mas no dia 18 de janeiro a sessão das 21:45 estava confirmada no Teatro Maria Matos, em Lisboa. No entanto, o Diário de Lisboa em 18 de janeiro, veiculou propaganda da apresentação em Coimbra, no mesmo horário. Em 19 de janeiro, a informação que neste dia seria de descanso da companhia, apareceu novamente. Portanto há um choque de datas e informações em que deve ser levado em consideração que houve erro de publicação por parte do Diário de Lisboa. 1030 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. 1031 Os borderôs não estavam no dossiê Ruth Escobar, da FCG, por isso a ausência de valores. 1027 compensadora, propomos que o reforço do subsídio que agora nos é solicitado, não seja concedido1032. Além de todos os auxílios à produção de Missa Leiga, esta decisão também foi tomada em virtude de a produtora ter recebido outra ajuda financeira em 10 de janeiro, para custear cinquenta por cento do valor dos ingressos vendidos aos estudantes nas apresentações ocorridas na cidade de Coimbra, nos dias 17 e 18 de janeiro, no Teatro Gil Vicente. Ruth recebeu da FCG o montante de 45.940$00 (quarenta e cinco novecentos e quarenta escudos). O parecer também pontuou a respeito do faturamento do espetáculo, em virtude do sucesso de público. Conforme os borderôs1033, Missa Leiga, em Coimbra, recebeu cerca de mil espectadores por dia. As repercussões das apresentações anteriores, em Lisboa, geraram um ambiente de curiosidade, tanto do público em geral, artistas locais e estudantes universitários. Apesar de a bilheteria ter gerado um valor considerável para a época, em apenas três apresentações, deve levar-se em consideração a quantidade de integrantes de Missa Leiga que girava em torno de trinta e seis pessoas, por isso o lucro dessa arrecadação não deve ser atribuído exclusivamente a Ruth Escobar, mas compreender que a busca incessante de recursos financeiros junto aos diversos órgãos correspondia ao favorecimento, a sua companhia, de pagamentos salariais justos, assim como a possibilidade de manutenção do grupo fora do país. Em 23 de janeiro de 1973, Ruth enviou ofício a FCG juntamente com os borderôs para dar início aos trâmites de pagamento do valor correspondente às apresentações na cidade de Coimbra. Pagamento este efetuado em 06 de fevereiro. No mesmo dia em que realizou a cobrança do acordo, Ruth Escobar encaminhou nova solicitação de subsídio ao presidente da fundação, um pedido simples e direto sem mencionar o valor que desejava pleitear junto à instituição para o deslocamento de sua companhia quando da apresentação de Missa Leiga na cidade de Luanda, capital de Angola, na África. Continuando sua saga, Ruth Escobar se dirigiu com sua companhia à cidade do Porto. Ainda que nos documentos do arquivo da FCG não conste acordo para subsidiar às apresentações nessa cidade, Ruth Escobar fez questão de inserir nos anúncios publicitários o desconto destinado aos estudantes. Ressalto também que não há nenhuma carta de solicitação de cobrança por parte de Ruth Escobar referente a essas apresentações. Para que pudesse angariar outros recursos financeiros, ela firmou parceria com a rede de supermercado Pão de Açúcar. A empresa realizou uma campanha em que, nas compras igual ou superior a quinhentos escudos, o cliente ganharia um ingresso para assistir ao espetáculo. Além disso, ela também fez acordo com a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, os sócios dos Sindicatos Nacionais, Casas do Povo, Centros de Alegria no Trabalho e Centros de Recreio Popular para um desconto de 50% no valor dos ingressos. Essas parcerias, juntamente com a divulgação em meios de comunicação fizeram de Missa Leiga um sucesso de público. O Teatro Rivoli chegou a receber numa única sessão mais de mil e trezentos espectadores. A descoberta de um dossiê de borderôs de todas as apresentações realizadas no Teatro Rivoli, revela informações desconhecidas até o momento. A quantidade de público, a movimentação financeira e as despesas dessa temporada fornecem dados que permitem a análise e a constatação de que Missa Leiga teve adesão de público. Além do que, o fluxo de caixa da contabilidade do teatro fez um retrato financeiro dessa temporada. Os números demonstram que os valores arrecadados foram significativos para a época. Apesar de Ruth Escobar ter um montante líquido superior a mais de quatrocentos mil escudos, as despesas com 1032 1033 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. Ver anexo III. o grupo composto por mais de trinta e seis integrantes são consideradas proporcionais ao arrecado1034. Para a auxiliar na decisão se atenderia ou não o pedido de subvenção para apresentar Missa Leiga na África, o presidente da FCG solicitou a Carlos Wallenstein, responsável pelos Serviços de Belas-Artes um parecer a respeito do pedido da empresária, no qual afirmou que “V. EX.ª viu o espetáculo que se coloca, de facto num excelente ponto de comunicação dramática. Sem ser uma obra-prima, não há que recursar-lhe o mérito artístico suficiente para justificar os auxílios que da Fundação recebeu e aqueles que sejam indispensáveis para a execução do projecto que agora nos é apresentado”1035. Em 28 de fevereiro de 1973, na pauta da reunião do conselho da FCG, estava o pedido de Ruth Escobar. No entanto, a solicitação do valor que a produtora estava pleiteando não fornecia detalhes a que se destinavam os recursos. Para sanar as dúvidas, telefonaram à produtora, a qual afirmou que “uma ajuda significativa fosse a que cobrisse as passagens dos 39 elementos da Companhia, incluindo músicos, estimando o seu valor em cerca de Esc. 350.000$00”1036. Após considerações, decidiram “propor [...] à Companhia Ruth Escobar um subsídio de Esc. 200.000$00 (duzentos mil escudos), que suportará mais da metade do encargo para cuja cobertura foi a Fundação solicitada”1037. Visto que a apresentação estava programada para uma cidade que fazia parte das colônias portuguesas (ultramar), a verba destinada a essa ação cultural foi debitada do Serviço para a Cooperação com os Novos Estados Africanos da rubrica artes. Todavia, o repasse da verba somente foi efetuado em 17 de abril após as apresentações. Em Luanda, Ruth Escobar realizou uma temporada no período de 09 a 25 de março de 1973, no Teatro Avenida, espaço cedido pelo governador-geral do país. 8.4 A trajetória de Cemitério de Automóveis - censura Assim como em Missa Leiga, Vasco Morgado também foi o proponente de Cemitério de Automóveis para a censura do texto. Na solicitação de 25 de maio de 19721038, novamente o nome de Ruth Escobar apareceu como tradutora do texto de Arrabal. Porém, essa informação não procede, visto que Victor Garcia foi o responsável pela adaptação. Na reunião do CECE, a análise do texto ficou a cargo de Mafalda de Castro, Beckert da Assunção e Alberto Machado, os mesmos que reprovaram O Versátil Mr. Sloane. Após apreciação dos censores, todos os três foram unânimes no parecer: Reprovo a peça e em meu entender não tem a mínima hipótese de vir a ser aprovada. [...] É uma peça com certo interesse e sim certamente resultaria em uma (boa incursão?), no entanto, é manifestamente uma diatriche contra o catolicismo e a moral em geral. Poder-se-iam fazer cortes o seu (...), porém, perde o sentido da peça. Portanto reprovo. [...] Acho a peça demasiadamente escândalo 1039. 1034 Ver anexo II. As tabelas detalham os números alcançados nessa temporada de doze apresentações em dez dias. DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. 1036 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. 1037 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. 1038 Para esse exame foi pago cento e cinquenta escudos. Estava incluso nessa taxa a exploração, construção e adaptação de recintos de espetáculos ou divertimentos públicos. 1039 Processo 9492. MNT. 1035 Sem rodeios, os avaliadores se mostraram incisivos na apreciação da dramaturgia do espetáculo: reprovada. Ainda que um deles admitisse, minimamente, a qualidade do texto, não hesitou em censurá-lo por completo. No texto analisado por um dos censores, encontram-se grandes partes censuradas, assim como aparece algumas pequenas marcas (xis e sublinhados) e anotações inelegíveis. Composto por quatro páginas, A primeira comunhão1040 foi praticamente todo censurado. Abaixo transcrevo alguns trechos que foram sumariamente cortados. Dentre eles, cito: p. 6 e 7 DILA – Você sabe como ele é ciumento. EMANU – Ele não nos verá. E se por acaso nos surpreender, nós diremos que estamos brincando de “bandido e mocinho”. DILA – Mas você, Emanu, não tem que tocar no pistão no baile? EMANU – Mas será por uns poucos minutos só. (PAUSA) Ou é você que não me quer. DILA – Sim... eu quero... Ele... EMANU – Eu sei. Você não me quer por que você sabe que eu não tenho experiência. DILA – Isso não tem importância. Eu tenho muita. EMANU – Então Dila, nós nos compensaremos. DILA – Está bem, vamos. (DILA E EMANU VÃO PARA DEBAIXO DO CARRO “A”, MILOS SAI DO CARRO “A” (VAI AO CENTRO DO PALCO)). MILOS – Olha o que Dila está fazendo. (RI) Cuidado para que não te vejam, olha por detrás das cortinas (MILOS NO CARRO 2) Olhem, olhem (RI). Escondidos atrás das cortinas, vocês podem ver tudo perfeitamente (RISOS DO HOMEM DO CARRO 2, E DO CASAL DO CARRO 3) VOZ MULHER – (Carro 3) Que divertido! Há muitos anos que eu não via nada de tão engraçado. LASCA – Um, dois, um dois... um pouco mais de esfôrço, um pouco mais. Você está quase batendo o récorde. Um, dois, um dois (LASCA E TIOSIDO SAEM. MILOS JUNTO AOS CARROS 4 E 5) MILOS – Olhem, olhem (RI) Olhem como minha mulher é divertida. (AUMENTAM AS RISADAS. APARECEM LUNETAS ATRAVÉS DAS CORTINAS DOS CARROS. SUBTO, TODOS SE CALAM E SE ESCONDEM, DILA E EMANU SAEM DE BAIXO DO CARRO). EMANU – (ENVERGONHADO) Perdoe-me Dila... A verdade é que meus amigos nunca me disseram nada, e eu reconheço que tenho experiência. Mas é que eu queria estar com você. DILA – Porque todas as noites você me conta as mentiras? EMANU – Não me critique, Dila. DILA – Você não precisa se desculpar. Você sabe que eu sempre eu o aceito. EMANU – É que eu faço assim, à toa, sem saber porque. Mas eu lhe prometo que nunca mais eu a enganarei. DILA – Mas todas as noites você me promete a mesma coisa. EMANU – Desta vez, eu juro que me corrigirei. p.8 EMANU - [...] Somente uma vaca e um burro que estavam numa mangedoura (sic) se compadeceram dela. Eu nasci na manjedoura e fui aquecido pela respiração do burro e da vaca. Minha mãe disse que a vaca, de tão contente por que eu ter nascido, fazia “muuu” e que o burro relinchava, mexendo as orelhas. p.9 1040 Lembro que Cemitério de Automóveis é composto por quatro textos: A primeira comunhão, Os dois carrascos, A oração e outro com título homônimo ao nome do espetáculo. DILA – [...] Ou vocês estão me dando o espelho e o pente? p.10 TIOSIDO – (DESPERTANDO) Meu amor. LASCA – Não sejas sentimental como sempre. TIOSIDO – Meu amor, beije-me, eu te necessito LASCA1041 – (SEM CASO) Você já se recuperou? Já passou o desmaio? TIOSIDO – Sim, minha vida, agora eu tenho a você. (PROCURA BEIJA-LA. ELA O REPELE). LASCA – Aqui não, já lhe disse mil vezes que eu não quero que você se comporte assim em público. TIOSIDO – Só um beijo. Se você não me der um beijo não poderei me recuperar totalmente. LASCA – Está bem. Só um. (BEIJAM-SE) Será que ninguém nos viu? TIOSIDO – Não, Lasca. LASCA – Eu acho que ouvi ruídos suspeitos. TIOSIDO – Que imaginação que você tem, minha vida (BEIJAM-SE NOVAMENTE, ENQUANTO ANTONIO E TOPE ATRAVESSAM ASSUSTADOS A CENA). LASCA – Ah, Tiosido, como você é. TIOSIDO – Você sempre vai me querer para sempre? LASCA – Sim, Tiosido. Você sabe muito bem. TIOSIDO – Até que eu morra? LASCA – Você não pode morrer. TIOSIDO – Nem você tão pouco, Lasca. Viveremos sempre juntos. LASCA – Você me quer como no primeiro dia? TIOSIDO – Sim. LASCA – Igualzinho no primeiro dia? TIOSIDO – Não, muito mais ainda. (BEIJAM-SE, UMA VOZ: “MAIS OUTRA VEZ?” APITOS E CORRERIAS). LASCA* – (PREOCUPADA) Vamos, você tem que treinar. TIOSIDO* – Por hoje já foi o suficiente. LASCA* – Suficiente? Você acha que foi suficiente? TIOSIDO* – Um dia é um dia. LASCA* – Não é só uma desculpa? Você sabe que tem que treinar todos os dias. Interromper um dia é entrar no caminho da perfeição. TIOSIDO – Amanhã eu treinarei mais tempo (PAUSA) (TERNO) Para hoje eu estou pensando numa coisa muito melhor. LASCA – (HORRORIZADA) Não, ISS não, de maneira nenhuma. Você ficará muito debilitado. Assim você não poderá bater recorde. TIOSIDO – Só uma vezinha. LASCA – Nem uma nem meia vez. TIOSIDO – Lasca... quando eu estou com você... LASCA – Eu já te disse que não. E além do mais, não há nenhum lugar onde a gente possa ficar. TIOSIDO – Nós podemos entrar dentro de um destes carros. LASCA - Você seria capaz de me levar para um lugar desses? É assim que você me ama? TIOSIDO – Mas é só uma vez. Ninguém vai perceber. LASCA – Algum conhecido pode me ver, imagine se vão contar ao meu... TIOSIDO – Ninguém nos verá, já é muito tarde. LASCA – E não vão querer que eu também preencha a ficha? Nunca se sabe por onde andam estas fichas. Em que mão vão parar! TIOSIDO – Somente eu preencherei a minha. A sua não é necessária. LASCA – E depois? Você não vai se comportar como um bruto? TIOSIDO – Não, Lasca. Eu vou fazer com cuidado. 1041 Frases não censuradas. Foram inseridas para melhor compreensão. As mesmas serão marcadas com um asterisco (*). LASCA – Será que você vai continuar me querendo ou vai fazer como todos os outros? TIOSIDO – Lasca, eu não sou como os outros. Vamos. (TIOSIDO BATE NA PORTA DO CARRO “A”. VOZ DE MILOS: “Sim, sim, já vou, chega de bater. Não sou nenhum surdo.” AO FUNDO OUVE-SE A VOZ DE DILA) p. 15 TIOSIDO – Como nós vamos saber qual dos dois é Emanu? TOPE – É muito simples, eu beijarei um dos dois. Aquele que eu beijar será Emanu. p. 21 EMANU – Vamos fazer uma coisa. Se os guardas me prenderem, todas as manhãs, vocês comerão amêndoas em minha memória. TOPE – Pensaremos que, em cada amêndoa, está você inteiro. Está bem? DILA – Vão dizer que nós somos antropófagos. (TODOS COMEM, BEINANDO EMANU. POR CADA AMÊNDOA. O BÊBE DO CARRO 3 CHORA) VOZ MULHER – (CARRO 3) – Quem vai dar a teta ao anjinho? DILA – Eu comeria um quilo. (ENTRAM LASCA E TIOSIDO. TOPE BEIJA, OSTENSIVAMENTE EMANU) LASCA* – (PARA EMANU) Você que é Emanu? EMANU* – Sim... sou eu. LASCA* – (VIOLENTO) Teje (sic) preso. (DILA FOGE PARA DENTRO DO CARRO “A”. LASCA TENTA POR ALGEMAS EM EMANU). TOPE – O meu dinheiro. Eu quero o meu dinheiro. Vocês prometeram que me pagariam. E que o caguetou fui eu. Agora vocês tem que me dar o dinheiro. As partes aqui apresentadas reportam-se principalmente às cenas em que o tom sexual está mais acentuado: o pistão aludindo ao órgão genital masculino, o planejamento para uma prática sexual incomum. Como sempre, os censores se portavam a serviço da sociedade portuguesa, uma espécie de higienizador da saúde mental dos espectadores para não ferir a moral e aos bons costumes. Com uma decisão unânime entre os avaliadores, no dia 16 de junho de 19721042 foi enviada uma correspondência a Vasco Morgado, informando que os membros do CECE reprovaram o texto Cemitério de Automóveis, sendo que não poderia ser representado em qualquer parte do país nem nas ilhas. Como havia conseguido a liberação de O Versátil Mr. Sloane para a região de Cascais, Ruth Escobar colocou em prática essa estratégia para tentar liberar a encenação. Num tom cordial, ela encaminhou o pedido a Caetano de Carvalho da DGCE, para que fosse concedida autorização para apresentar o espetáculo exclusivamente no Teatro Experimental de Cascais. No documento, como forma de convencê-lo, escreveu que Cemitério de Automóveis “alcançou no Brasil dezesseis prêmios e é fundamental que o público português estando aqui a minha companhia tenha oportunidade de vê-lo. Nada poderá estreitar mais as relações luso-brasileiras [...] admitindo a hipótese de estabelecermos diálogo sobre uma possível adaptação ao público e interesses portugueses”1043. Apesar de utilizar dos argumentos referentes às parcerias estabelecidas entre Brasil e Portugal, aludindo às diversas esferas (econômica, cultural) e às distinções recebidas pela produção do espetáculo, a alegação mais contundente diz respeito aos ajustes e adequações da dramaturgia ao contexto. Visto que a produtora abriu mão da integralidade do texto, somada ao pedido de encenar fora de Lisboa, Ruth conseguiu inverter a situação. Com isto, dias após, 1042 1043 Neste mesmo dia também ocorreu a reprovação do texto O Versátil Mr Sloane. DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. Cemitério de Automóveis foi aprovada1044 somente para Cascais. A respeito disso, Ruth recordou que “fazer este espetáculo em Portugal de 1973 era utopia. A peça foi proibida e só liberada para Cascais, reduto da burguesia decadente e reis aposentados onde o povo perigoso e o lumpenproletariado não seriam atingidos”1045. Embora autorizada a encenar Cemitério de Automóveis, o espetáculo somente teria aprovação final após inspeção do ensaio. Data de 13 de julho de 1973 o pedido de Ruth ao diretor dos serviços de espetáculos para apreciar a encenação no dia 17, às 21h30 No entanto, conforme usualmente fazia, a produtora alterou a data para o dia 18, no mesmo horário, sendo que a data da estreia do espetáculo estava marcada para o dia 19 de julho. Apesar de ela tentar essa estratégia de forçar a vinda dos censores na véspera do início da temporada por algum motivo desconhecido, teve de adiar algumas vezes. Somente em 27 de julho de 1973, o espetáculo veio a público. No entanto, no dia 24 de julho, os censores emitiram um parecer sobre o ensaio, no qual Ruth Escobar deveria realizar uma série de alterações no espetáculo. Dentre as indicações da comissão estavam: a) A figura de Emanu só pode permanecer identificada com a figura de Cristo desde que representada com toda a dignidade e dentro da verdade histórica Nestes termos, terá de ser eliminada completamente a ligação amorosa com Dila. Admite-se, em alternativa, que a figura de Emanu seja apresentada na sua humanidade desde que não possa ser identificada com Cristo. Para esse efeito haveria que eliminar as passagens indicadas1046 nas pág. 8, 15 e 21 e o cantar do galo. b) A figura de “Lasca” ou passa a ser representada por uma actriz ou, no caso de continuar a ser representada por um actor, observar-se os cortes indicados nas páginas 10 e 11. c) Será eliminada completamente toda a cena em que se sugere a relação sexual com a rapariga morta. d) A protagonista da peça “Iniciação à vida” não deverá envergar trajo que se assemelhe a um trajo eclesiástico nem prostrar-se no solo em atitude semelhante à da ordenação sacerdotal. e) Todas as actrizes que aparecem de tronco nu devem cobrir os seios. f) Deverá ser eliminada a presença de Cristo na peça “Iniciação à vida” g) Deverão ser cortadas as frases da peça “Iniciação à vida” nas págs. 2 e 3 (referências ao sexo do homem). h) Deverá ficar a cena final de Cristo Cruxificado tal como foi apresentada no último ensaio1047. Como estratégia, Ruth Escobar acatou as sugestões elencadas para dar prosseguimento à temporada do espetáculo. Visto que os censores não estavam presentes, diariamente, nas apresentações, ela fez um “jogo de gato e rato”1048, afirmou em entrevista Maria Tereza Horta. Essa afirmação se deve ao fato de que “Normal Benguell ficava nua da cintura para cima. Isso em Portugal era inadmissível. Dois dias depois a censura estava lá. Ou ela deixa de se despir ou a peça é proibida. Ela deixou de se despir. De vez em quando ela [se despia]. Então eles não 1044 Consta essa informação na primeira folha do texto enviado para análise do CECE. A palavra reprovada encontra-se riscada. Sob ela foi escrita aprovada só para Cascais. 1045 ESCOBAR, 1987, p. 41. 1046 Existe um anexo no processo que indica o corte de algumas frases, tais como: 1) A família é sagrada; 2) Serás uma boa cristã; 3) a p. 21 “pensaremos que em cada amêndoa está você inteiro; Está bem?, Vão dizer que nós somos antropófagos”. 1047 Processo 9492. MNT. 1048 HORTA, Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. sabiam quando isso acontecia ou não. Eles ficaram três ou quatro dias nas apresentações. Quando eles iam embora, [se despia],” recordou a entrevistada. Outro ponto a ser destacado nos apontamentos realizados pelos censores refere-se ao item B, que pontua sobre a personagem Lasca, a qual deveria ser interpretada por um homem ou uma mulher. No entanto, a observação feita pela comissão fiscalizadora pode ser compreendida como binarismo de gênero em sua acepção mais arcaica (o macho e a fêmea). Obviamente, não importava para os censores a discussão a respeito da sexualidade de um travesti, mas zelavam pela tradicional concepção de família, uma posição conservadora que atendia aos anseios do Estado português. Colocar em cena uma personagem feminina era seguir as normas sociais e censórias vigentes, por outro lado, um homem interpretar Lasca, significava estar de acordo com a posição censória, submetendo-se às regras deles. Nessa mesma perspectiva, na qual envolvia a prática do sexo, a cena que abordava sobre a necrofilia, indiscutivelmente, feria todos os princípios morais dos portugueses, assim como qualquer contravenção à Igreja. Sobre esse fato devo chamar atenção para uma particularidade. Geralmente, nos estudos sobre a censura havia a presença dos censores nos ensaios gerais, com o objetivo de aferir se os cortes foram obedecidos pelas companhias e, obviamente, a verificação da concepção geral do espetáculo. Todavia, o fato de os censores realizarem este tipo de apontamento indica censura a posteriori, pois o redirecionamento da personagem para ser homem ou mulher modificava a estrutura dramatúrgica, ainda que não tenha tido um corte no texto. Os censores só perceberam o real sentido da cena ao assistir ao ensaio, daí a sua justificativa para novo corte, nova censura. Ainda sobre as percepções acerca do ensaio geral de Cemitério de Automóveis, consta no processo um parecer escrito à mão: Depois de assistir ao ensaio geral de “Cemitério de Automóveis”, de Arrabal, formulei as seguintes conclusões: O ensaio tal como nos foi apresentado merece sérios reparos tais como: alteração na ordem da apresentação nas “falas” dos actores e introdução de outras, entre elas a de dois “palavrões” inapropriáveis, que no texto não existem como a própria empresária confessou; grandes deficiências de [...] não é nada disto foi [...] conjutente (?) para a tomada de projeção no final do ensaio que vem hesitar foi a de ‘reprovação’. O que a isso me levou sem dúvida a interpretação de toda a sequencia do espectáculo e do que êle pretende transmitir. O [...] tal como as ideias, os valores que formam a sociedade e as tradições, quando novos percorrem todas as [...], levam ao homem pelos seus caminhos. Mas assim como o automóvel cança(sic), envelhece e se reduz a latas que já fazem vindo ao desmantelarem-se [...] caiem na mesma ruína e o mundo de hoje tenta libertar-se dos chamados preconceitos e renovar-se [...] sob os destroços de ferrovelhos, tendo o valor projetivo a uma civilização moral e cristã... O espetáculo é (...), desagradável, estridente e demolidor. Vivemos em dúvida numa época em que muito se renova no campo da arte; muito se transforma no seio da sociedade; e muito se transfigura no campo da fé, mas nunca se poderá chamar arte com propriedade um espectáculo como êste. É chocante pelas atitudes dos actores em cêna, pela indumentária ou melhor pela falta de indumentária da maioria dos actores e pelo arrojo de num ambiente demolidor como êsse serem reproduzidas por mímica e por falas, algumas passagens da vida de Jesus. Pretende-se através de toda a representação destruir Cristo e a rebelião, fazendo em certa altura unir-se o sarcástico aleluia numa nova era, que justifique todos os valores projetivas do passado pelo nudismo e pelo materialismo (...) subordinação o homem de hoje a animalidade do sexo, [...] liberando-lo de todas as massas da rebelião1049. 1049 Parecer escrito a mão em 23 de julho de 1973. As diversas lacunas existentes nesse parecer é resultando da inelegibilidade das palavras. Ainda que os censores tivessem má reputação junto à classe artística portuguesa, as palavras deles, a respeito do espetáculo, não fogem àquilo que o espetáculo foi: demolidor, estridente e desagradável. Porém, esses adjetivos podem (e devem) ser interpretados por outra perspectiva: demolir as velhas formas tradicionais portuguesas de fazer teatro para ecoar novas propostas cênicas, desagradando às autoridades censórias perpetrados pela ditadura Marcelista. Seguidor das propostas ditatoriais que firmavam as concepções da moral e dos bons costumes, o censor reafirmou esses princípios em seu parecer. Cemitério de Automóveis feria gravemente as normas do Estado português. Apesar da ciência da constante renovação das artes na sociedade, para ele era inadmissível um espetáculo ultrapassar os limites do aceitável quando o assunto se referia à junção entre fé e arte. O nu, a dúvida da fé, o sexo descomprometido, a subversão da história bíblica foram cenas e recursos teatrais que estavam na contramão do aceitável. O cenário, os figurinos, as interpretações, tudo estava em desacordo com os ideais censórios, logo não era arte. Na sua visão, o espetáculo descomprometia os portugueses na busca de uma sociedade cada vez mais cristã. Além disso, colocou-se na posição de dramaturgo do espetáculo ao afirmar que partes do texto deveriam ser novamente suprimidas, outras substituídas. Em outras palavras, ele “assumia” a coautoria. Porém, destaco que a relação entre a censura portuguesa e Ruth Escobar deve ser compreendida por uma perspectiva estratégica da produtora. Conforme declarou Carlos Avilez, em entrevista, “ela sabia se movimentar muito bem. Ela sabia com quem devia contactar. Ela foi uma grande produtora. Ela conseguia que a censura a facilitasse. Porque ela era o fenômeno Ruth Escobar. Ela conseguiu milagres com a censura. Ela entrava e resolvia. Ela era um vulcão”1050. Para apresentar Cemitério de Automóveis1051, Ruth Escobar construiu uma estrutura metálica, situada entre o cruzamento da Av. Frederico Ulrich com a Av. da República, na cidade de Cascais, município vizinho a Lisboa. O jornalista Carlos Benigno Cruz registrou que a empresária aproveitou “as paredes da antiga arrecadação, foi só levantar uma estrutura metálica e construir o espaço cénico que uma vulgar sala de espectaculos não poderia conter”1052. Ao aproveitar um estabelecimento abandonado, que tinha como destino abrigar barcos e apetrechos de pesca, Ruth Escobar demonstrou novamente seu poder de saber converter locais ociosos em espaços cênicos, proposta realizada em São Paulo ao se apropriar de uma garagem para apresentar Cemitério de Automóveis. Para fazer jus ao trabalho do elenco1053 e de toda a equipe de produção envolvida nesse projeto, Ruth Escobar teve uma ideia inusitada para promover Cemitério de Automóveis: espetacularizar a queima das carcaças que foram usadas no cenário o espetáculo. Esse acontecimento foi registrado pelo jornalista Carlos Benigno Cruz: A cena passa-se num terreno descampado de Cascais. Meia dúzia de operário, em volta de um velho automóvel “Dodge Lancer”, regam-no com gasolina e preparam-se para um estranho “ritual” de fogo. Um deles acende, discretamente, um fósforo e, em breve, as chamas elevam-se no ar, consumindo rapidamente os assentos já esburacados e o que resta do que foi um belo painel de instrumentos. Estalam os vidros 1050 AVILEZ, Entrevista concedia a Eder Sumariva Rodrigues. Ver imagens de 117 a 134 no dossiê de fotos. 1052 CRUZ, Revista Semanal de Rádio & Televisão, 14 jul. 1973, p. 5. 1053 Nesse novo espaço teatral arquitetado para o espetáculo, a produtora contratou como atores: Aristela Leão, Carlos Strasser, Claudio Mamberti, Isaías Almada, João Carlos Vicci, Luís Serra, Neide Duque, Renato Dobal (único ator da montagem paulista), Seme Lufti, Teresa Maia, Fernando Ventura e José Manoel Outerello. Norma Benguel também fez parte do elenco, mas entrava em cena para substituir os papeis interpretados por Ruth Escobar, quando a produtora tinha que viajar para tratar de assuntos profissionais em outros países, principalmente, no Brasil. 1051 com o calor crescente e a tinta que cobre a chapa do velho carro já ferve, deixando, pouco a pouco, à vista a “lata” brilhante. Ao lado, outras carcaças estão prontas para o sacrifício. Entre outros, reparamos aqui num “Taunus”, ali num “Simca”, acolá num “DKW”, todos comprados num sucateiro de Sacavém, à razão de mil escudos por unidade, para servirem de adereço num espectáculo teatral que, por certo, vai constituir acontecimento nesse Verão paupérrimo em actividade teatral1054. A ideia de Ruth pode ser compreendida como uma ação de marketing1055 na divulgação do espetáculo, ela “sabia que [a queima dos automóveis] causava frisson”1056, recordou Maria Tereza Horta. Nessa mesma linha de raciocínio, Carlos Avilez também afirmou que “tudo isso era publicidade”1057. Ação inusitada em Portugal. Até então, nenhuma companhia tinha se atrevido a apresentar um espetáculo com uma cenografia tão incomum, muito menos fugir das formas tradicionais de divulgar a encenação. Ruth sabia que isto servia de chamariz de público. Essa estratégia resultou naquilo que Ruth desejava: casa lotada e repercussão. O barulho em tempos de silêncio ecoava rapidamente. Incomum também era a concepção cenográfica de Victor Garcia e Nestor Arzadun ao contexto português. Tão inusitada que Carlos Porto fez questão de registrá-la em sua crítica: Ruth Escobar fez construir quase à saída de Cascais, em frente a um pinhal, uma espécie de hangar, com uma das aberturas coberta por uma lona. Do lado esquerdo, para quem entra, há duas galerias sobrepostas para o público; da parede de entrada, outras duas; e uma outra do lado direito; no solo pintado de negro, um praticável, espaço cénico ligado à outra parede – que parece intencionalmente arruinada, com grandes buracos nos tijolos; uma passerelle envolve todo o espaço, estabelecendo uma outra ligação com o espaço cénico principal. Em frente a este e ladeando-o cadeiras giratórias para o público. Na parede que fica face à entrada e, portanto, por detrás do referido praticável, mais de uma dezena de carros amontoados uns sobre os outros, cobrindo quase a totalidade essa parede. Carros semidestruídos e tosca mas uniformemente repintados. Há vários cadeados que descem do tecto e dois carros, igualmente fora de uso, que serão empurrados na devida altura, para aquela espécie de palco. Nalgumas cenas, actores usarão motos que participam desde festival de quinquilharia. Não foi evidentemente por acaso que Arrabal colocou a sua pessoalíssima versão da Paixão de Cristo neste cenário; não foi por acaso que Garcia ampliou até a hipertrofia, dando-lhe um carácter barroco, esse cenário, e não só a ele, à utilização dos carros, através da marcação, ao uso de ruídos violentíssimos, extraídos pelos actores do próprio material utilizado, ao guarda-roupa1058. A descrição do espaço cênico realizada pelo crítico proporciona visualizar a dimensão do cenário de Cemitério de Automóveis. Os materiais usados eram “anormais” e impactantes aos olhos do público português que, costumeiramente, viam encenações em moldes tradicionais desprovidos de engenhosidades. O ar “contaminado” pela ferrugem, as carcaças dependuradas, 1054 CRUZ, Revista Semanal de Rádio & Televisão, 14 jul. 1973, p. 5. Observo um detalhe colocado na divulgação dos espetáculos. Abaixo do nome do espetáculo havia uma frase de efeito que enaltecia sua produção: Dentre elas destaco frases publicadas em 01 de setembro, no Diário de Lisboa: “O melhor espetáculo que vi em toda minha vida” (por Arrabal), “Estamos em face de uma das mais ricas realizações artísticas e culturais do teatro brasileiro” (Estado de São Paulo), “Um espetáculo deliberadamente violento e fantástico” (jornal O Século), “Indispensável ser visto mesmo que seja necessário ir a pé até Cascais” (Diário de Lisboa). As frases escolhidas para serem veiculadas no jornal apontam para um enaltecimento de Cemitério de Automóveis. 1056 HORTA, Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. 1057 AVILEZ, Entrevista concedia a Eder Sumariva Rodrigues. 1058 PORTO, Diário de Lisboa, 03 ago. 1973, p.4. 1055 os equipamentos de iluminação expostos dentro de uma estrutura metálica construída para abrigar o espetáculo, tudo isso proporcionava aos espectadores um estranhamento, pois era uma cenografia antinaturalista que extrapolava os limites convencionais. Inegavelmente, Portugal estava diante de uma revolucionária encenação. O ineditismo conjugado às estratégias de Ruth na produção e divulgação de Cemitério de Automóveis foi certeiro: o público compareceu em massa para prestigiar o trabalho da produtora luso-brasileira. Como já era usual, a imprensa portuguesa estava presente no acontecimento que marcou a temporada teatral. A jornalista Loures Féria registrou o primeiro dia da apresentação do espetáculo: Na estreia do espetáculo sentia-se a confusão do público arrumando nas cadeiras giratórias da plateia e galerias. A semiobscuridade impedia a visão dos rostos, mas detectava-se uma certa paralisia de expressões. No final, houve quem aplaudisse com “bravos”, quem permanecesse estático e que batesse com os pés no chão. Ainda bem que o espetáculo de Victor Garcia suscita controvérsia. Se toda a gente tivesse de acordado seria monótono. Por outro lado, isso demonstraria a ineficácia de “Cemitério de Automóveis”. O público era heterogêneo pela disparidade ideológica e cultural das pessoas. Em certos sectores, criticava-se abertamente a “má interpretação dos atores”; noutros, atacava-se o “conformismo místico” de Victor Garcia (ou Arrabal). Até havia um jovem que gritava contra os “contestadores”, num arrebatamento de paixão: “Isto é bom demais para vocês!”. [...] Victor Garcia! Victor Garcia! Chamavam espectadores entusiasmados. Depois de muita insistência, ele acaba por vir ao estrado, onde os actores dirigidos por Ruth Escobar recolhiam os aplausos, a pateada, o silêncio. Victor Garcia agradeceu de cabeça baixa, como que perdido na imensidão do diapositivo cénico que seu talento criou. Sem opinar a respeito do espetáculo, a jornalista mostrou um outro lado pouco abordado na crítica teatral dessa época: os detalhes da reação da plateia. Ao registrar as manifestações de “fora da cena”, ela nos desvela as repercussões ocorridas com o espetáculo, as contrariedades e alguns detalhes do local de apresentação. Além disso, a repórter pontuou outro detalhe: a concepção da construção do local onde o público prestigiava o espetáculo era com cadeiras giratórias, a mesma ideia que tinha sido aplicada na encenação em São Paulo. Ela registrou, também, que os espectadores estavam desconfortáveis naquelas poltronas, pois estavam acostumados aos tradicionais assentos almofadados. Isto é, ao mesmo tempo em que havia certo deslumbramento com o local de apresentação, também havia estranhamento por parte do público. A jornalista também registrou as contrariedades que o espetáculo provocou na plateia. De um lado aqueles que acreditavam ser a encenação a representação de um ato de resistência, uma afronta à censura e à ditadura; de outro, os mais céticos, preocupados com questões mais formais do espetáculo que incomodava, mexia com o público. Dentre o público que esteve presente, não poderia faltar a presença dos críticos teatrais. A respeito do espetáculo, Carlos Porto escreveu: Os vários textos de Arrabal, pelo menos nesta tradução, não contém a força que o espetáculo exprime, e os intérpretes, possivelmente fatigados, pareceram-me aquém das possibilidades propostas tanto pelo texto como pela montagem que, aliás, dificulta enormemente seu trabalho. Más condições acústicas, deficiente sonorização impediram também que os intérpretes conseguissem transmitir o texto como seria de desejar. Os esforços físicos exigidos pela encenação prejudicaram alguns deles que me pareceram, nesta primeira visão, aquém do que se deveria pedir. Incluindo Ruth Escobar a quem couberam os papéis femininos desta colagem, aos quais só de vez em quando conseguiu transmitir os horrores e as alucinações – as fulgurações tremendas – que os marcam. De salientar o papel da música que se integra na ambiência sonora criada. E ainda a inventiva de alguns figurinos. A primeira peça Oração – pareceu-me a menos conseguida, observando-se uma deficiente preparação ritualística, aqui indispensável1059. No seu entendimento, a estrutura que abrigava a encenação não possuía condições acústicas adequadas, o que impediu melhor compreensão do texto e, consequentemente, do espetáculo. Aliado a isso, a projeção vocal foi afetada em virtude do desgaste físico que Victor Garcia exigia do elenco. De certo, nessas primeiras apresentações os atores não estavam completamente preparados para estrear. A pronúncia do texto soava ofegante. Nem mesmo Ruth Escobar escapou dos apontamentos de sua crítica. Para ele, Ruth ficou aquém do esperado. Apesar de Ruth Escobar ter realizado adaptação de espaços à encenação d´O Balcão implodiu parte de seu próprio teatro para criar uma estrutura cilíndrica de vinte metros, transformando uma garagem em sala de espetáculo - a produtora não havia construído uma estrutura similar à que montou em Portugal. Embora o local de apresentação não fosse o mais adequado, Cemitério de Automóveis marcou a historiografia do teatro de Portugal, ele cindiu padrões. 8.5 Financiamento para a demolição cênica Para solicitar novamente recursos financeiros à FCG, Ruth Escobar tinha como argumento o fato de que Cemitério de Automóveis tinha sido considerado pela crítica paulista e carioca uma das encenações mais marcantes da história do teatro brasileiro, angariando dezessete prêmios em São Paulo e treze no Rio de Janeiro. Com base nisso, em 29 de maio de 19731060, Ruth enviou ao presidente da FCG uma solicitação de apoio para essa produção no valor de Esc. 500.000,00 (quinhentos mil escudos), alegando também que “a montagem deste espetáculo em Portugal, resulta num risco financeiro considerável, devido as exigências especiais de um espaço cênico, que não pode ser exibido num teatro convencional. Para tanto, já estamos construindo um Galpão Industrial em Cascais, no quarteirão da Avenida Frederico Ulrich com a Avenida da República” 1061. Juntamente com a solicitação, ela anexou uma estimativa de custos da produção: 1059 PORTO, Diário de Lisboa, 18 ago. 1973. DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. 1061 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. 1060 Construção de estrutura metálica e cobertura nas medidas de 30 x 14 x 340.000,00 8 de altura Montagem do cenário (material e mão de obra) 120.000,00 Adaptação mecânica dos automóveis 50.000,00 Transporte dos atores e técnicos 276.000,00 Execução dos figurinos e materiais 60.000,00 Estadia dos atores e técnicos até a estreia 75.000,00 Salário do diretor Victor Garcia, estadia e passagens 100,000.00 Instalação de luz, som, camarins, sanitários e assentos para o público 200.000,00 Salário até a estreia 120.000,00 Lançamento publicitário 60.000,00 Total estimativo 1.401.000,00 ATENÇÃO: Neste orçamento não está incluída a manutenção do espetáculo em Cascais, que calculamos em Esc. 240.000,00 mensais. Ainda que a lista apresentada à FCG não tenha sido completamente detalhada por Ruth Escobar, pode notar-se que todos os custos que envolviam a produção de Cemitério de Automóveis estavam embutidos nos itens, visto que os valores de cada artigo são elevados e até mesmo superfaturados. Num único exemplo localizado para assentar essa proposição, o jornalista Carlos Benigno da Cruz, na reportagem Teatro de vanguarda em Cascais, afirmou que “todos [os automóveis foram] comprados num sucateiro em Sacavém, à razão de mil escudos por unidade”1062. Em sua reportagem, ele conseguiu identificar quatro modelos de carros durante a queima dos veículos, entretanto na encenação foram utilizadas sete carcaças1063, no mínimo. Logo, o valor de cento de mil escudos solicitados no item montagem de cenário foi superior aos preços praticados na época em Portugal. Com o intuito de apoiar novamente a produção de Ruth Escobar, Carlos Wallenstein emitiu um parecer com a seguinte posição: A apresentação de “Cemitério de Automóveis” em Portugal constitui um acontecimento interessante, pois resolve as estruturas do espectáculo tradicional de teatro, é uma obra que logra grande aliciamento junto ao público, manifesta uma invulgar qualidade e pode catalizar, pelo seu nível e pelas suas características, um público que, por diversos motivos, não tem aderido aos espetáculos teatrais; Além disto, não podemos deixar de notar a importância, já esboçada em “Missa Leiga”, de que se reveste para a nossa sociedade centenária um espectáculo que vem repleto de vitalidade e de força primitiva, ao qual os intérpretes se entregam incondicionalmente – coisa admirável que nós, devido às nossas pesadas e antigas estruturas, dificilmente conseguimos. [...] Por todos esses motivos, reconhecemos o mérito da iniciativa que Ruth Escobar deseja levar a efeito e preconizamos que a Fundação atribua o subsídio solicitado. Por mais que o montante solicitado à FCG tenha sido de quase um milhão e meio de escudos - um valor considerável na época - Wallenstein considerava o investimento em Cemitério de Automóveis um recurso financeiro bem aplicado pela instituição. Apesar da opinião de Wallenstein, o Conselho de Administração formado por José de Azeredo Perdigão 1062 CRUZ, Revista Semanal de Rádio & Televisão, 14 jul., 1973, p. 5. Constatei esse número a partir de uma foto do espetáculo inserida em uma reportagem. Ver imagem 133 no dossiê de fotos desse capítulo. 1063 (presidente), Ferrer Correia, Marcello Mathias (embaixador), Sá Machado e K. L. Essayan, em reunião realizada em 14 de agosto de 1973, decidiram que: O Conselho de Administração, tendo em atenção o apreço e a simpatia que o Teatro Português deve às iniciativas da empresária e actriz Ruth Escobar, ao seu dinamismo e competência profissional, deliberou conceder-lhe, em conformidade com uma solicitação apresentada pela mesma artista à Fundação, em 29 de Maio último, um subsídio de Esc. 300.000,00 (trezentos mil escudos), a fim de a auxiliar na construção de um pavilhão destinado a dar um série de espetáculos em Cascais, sendo o encargo suportado, metade pelas disponibilidades do Orçamento do Serviço Internacional e metade da “Reserva sob a administração directa do Presidente” 1064. Em virtude da passagem da produção de Missa Leiga ter sido um sucesso de público, bem como de inovação teatral à classe artística portuguesa, Ruth deixou uma impressão profissional junto à FCG. Apesar disso, a fundação repassou um subsídio bem menor ao solicitado por Ruth Escobar. A FCG priorizou a construção da estrutura metálica para abrigar o espetáculo. Chamo atenção que este item foi mencionado por Wallenstein em seu parecer, ao afirmar que resolveria as estruturas convencionalmente utilizadas pelas companhias portuguesas. A FCG quando destinou recursos financeiros, objetivava canalizar propostas, cujas encenações ultrapassassem as barreiras do palco à italiana. Caberia a Ruth Escobar a responsabilidade de executar essa ação inovadora. A aposta estava lançada. Os resultados eram esperados. De fato, apesar de conseguir menos de 1/4 da verba pleiteada junto à FCG, a empresária teve de readequar orçamentos e buscar novas formas de custear a produção. Para isso, durante as apresentações de Cemitério de Automóveis, Ruth Escobar encaminhou outro pedido de subsídio à FCG. Na solicitação, ela pedia o valor de duzentos mil escudos, verba destinada a cobrir o desconto de cinquenta por cento aos estudantes. No documento, datado de 29 de agosto de 1973, ela alegou que: O interesse demonstrado pelo público estudantil tem sido enorme e esta companhia, dado o alto custo do espetáculo não pode ainda facilitar o custo dos bilhetes. Solicitamos a atenção de V. Excia, no sentido de que esta companhia seja informada de sua decisão, pois o término de nossa temporada está previsto para o dia 15 de setembro e dependendo da decisão de V. Excia, poderíamos estender nossa temporada a fim de atender o público estudantil com o desconto de 50%.1065 Ao que tudo indica a tentativa de angariar mais recursos financeiros não surtiu efeito. Primeiramente, porque não consta no arquivo da instituição nenhum documento que comprove resposta a Ruth Escobar. Por outro lado, há um dado que reforça a negativa da instituição: a última divulgação do espetáculo no Diário de Lisboa está datada de 08 de setembro de 1973. Porém, Cemitério de Automóveis não teve a temporada estendida, mas o tempo que permaneceu em cartaz foi suficiente para marcar a memória de muitos espectadores e artistas portugueses, bem como a história do teatro de Portugal, sendo importante marco contra a ditadura. 1064 1065 DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. DOSSIÊ Ruth Escobar. FCG. 8.6 A saga de Autos Sacramentais ou O ciclo se fecha Ao contrário das produções anteriores, Autos Sacramentais esteve em Portugal pela via acidental, mais do que proposital. Aliás, o próprio espetáculo tem um percurso sinuoso e insólito desde a sua montagem até a apresentação. O sucesso das montagens teatrais brasileiras de Ruth Escobar ecoou no continente asiático. A empresária foi convidada para encerrar o 8° Festival das Artes do Irã. Para isso, ela convidou Victor Garcia para apresentar o espetáculo Yerma, no II Festival Internacional de Teatro, em 19741066. Nessa oportunidade, ela propôs ao encenador a montagem de uma nova encenação a ser apresentada exclusivamente no Irã. A parceria conhecida do público paulistano pelas ousadas produções d’O Balcão e Cemitério de Automóveis prometia seguir a mesma linha estética, arrojo cenográfico e interpretativo. O encenador apostou na colagem de textos do dramaturgo espanhol Calderon de La Barca; traduzidos por Carlos Queiroz Telles, eles foram divididos em duas partes: Criação do mundo, Criação do Homem e Casamento da alma e do corpo; e, na segunda O Sonho, O grande teatro do mundo e O mistério dos mistérios1067. Intitulado de Autos Sacramentais,1068 nome/termo que definia as peças religiosas, representadas na Espanha e Portugal no apogeu do Século de Ouro, que retratavam temas a respeito da criação, do pecado e da redenção. Tal como as produções anteriores, o encenador também concebeu um projeto cenográfico ousado, construindo uma inédita máquina-diafragma. O ator Sérgio Brito a descreveu: Dia 3 de agosto: vamos à Folha de São Paulo, onde a máquina-cenário está sendo construída. É praticamente o diafragma de uma máquina fotográfica. Essa máquina diafragma tem movimentos constantes: as pazinhas, que abrem e fecham o diafragma, abrem e fecham nossa máquina-diafragma-cenário. Victor nos imagina pulando de pá em pá, acompanhando o ritmo do movimento desse diafragma. A máquina começava bastante inclinada e, no final do espetáculo, quando o Homem corre para seu destino eterno, a máquina devia ficar completamente na vertical, aberta, diafragma aberto para o Homem na sua busca de Deus1069. Nessa máquina-cenário os atores podiam atuar em diferentes níveis de altura e realizar movimentos de acordo com o ritmo da máquina. Além disso, Victor Garcia propôs ao elenco o nu como forma estética, para criar mais impacto no público. Pesando quase duas toneladas e meia e um elenco de mais de vinte integrantes, o custo da produção de Autos Sacramentais “eram muito superiores aos cachês que seriam pagos pelos organizadores dos festivais, porém contava-se com as expectativas de novos contratos a partir da repercussão que o grupo alcançasse nas exibições programadas”1070 afirmou a produtora. Apesar do alto investimento, 1066 Neste mesmo ano, Ruth Escobar produziu o espetáculo Capoeiras da Bahia com ajuda de Emília Biancardi Ferreira, do Centro Étnico da Bahia, em co-produção com Ninon Karlweis, realizando excursão à Ásia, Europa e Ásia no período de 20 maio a 27 de outubro de 1974. 1067 Processo 230432. MNT. 1068 Do latim actus, ato, ação e sacramentum, sacramento, mistério). Peças religiosas alegóricas representadas na Espanha ou em Portugal por ocasião de Corpus Christi e que tratam de problemas morais e teológicos (o sacramento da eucaristia). O espetáculo era apresentado sobre carroças, e mesclava farsas e danças à história santa e atraía o público popular. Elas se mantiveram durante toda a Idade Média, conheceram seu apogeu no Século de Ouro, até sua proibição, em 1765. Tiveram grande influência sobre dramaturgos portugueses (Gil Vicente) ou espanhóis (Lope de Vega, Tirso de Molina, Calderon etc.) PAVIS, 1999, p. 31. 1069 BRITO, 1996, p. 164. 1070 ESCOBAR apud SOUZA, 2003, p. 152 Ruth Escobar apostava na repercussão do sucesso do espetáculo assinado por Victor Garcia, com o fim de reverter dificuldades financeiras encontradas. Sendo experiente produtora, Ruth Escobar fez questão de que toda a equipe e material chegasse, antecipadamente, no Irã. Mas isso não foi possível. O elenco e equipe técnica chegaram em 06 de agosto de 1974, enquanto o cenário somente apareceu no dia 18. Isso aconteceu em decorrência de um extravio da carga no aeroporto de Roma, o qual a destinou ao Japão. A perda de tempo dos ensaios e dos testes da máquina-cenário deixou o elenco apreensivo, pois as apresentações estavam marcadas para o período de 21 a 23 de agosto. Apesar de a máquina ter sido testada no Brasil, ao chegar no solo iraniano não funcionou. Um dos motivos pelo não funcionamento foi o da divisão da máquina em duas partes para ser transportada, além de todos os percalços ocorridos no extravio. Ainda que Victor Garcia e equipe realizassem diversas tentativas de fazê-la funcionar, tudo foi em vão. Além dos problemas enfrentados com o atraso do cenário, o espetáculo sofreu censura do governo iraniano: o nu estava proibido. A respeito desse episódio, Ruth recordou que recebeu um “aviso do Ministério da Cultura de que, com os personagens nus, não haveria espetáculo”1071. A proibição, certamente, deu-se em virtude das tradições culturais do país que via o nu em público como algo herege e que feria os princípios morais. Victor Garcia e Ruth Escobar tentaram contornar a situação para não cancelar a apresentação do espetáculo. Sendo assim, optaram pôr em cena os atores com macacões brancos que utilizavam nos ensaios. Apesar dessa decisão, Ruth recordou que houve resistência do encenador em aderir a essa proposta, ele “não conseguia imaginar um texto, ou os atores se movendo, sem que a máquina, onipotente, estivesse presente, avassaladora, sujeitando as pessoas como se fossem corpos estranhos”1072. Nas escadarias do Palácio de Dário, em Persépolis, local sagrado para os iranianos, pela primeira vez um grupo brasileiro apresentou um espetáculo teatral. Todavia, a reestruturação da encenação não obteve boa aceitação pela imprensa local. O resultado foi decepcionante1073, conforme publicou o jornal The Teharn Jounal,1074 de Teerã, em 24 de agosto de 1974: 1071 ESCOBAR, 1987, p. 149 ESCOBAR, 1987, p. 150 1073 O desastre da apresentação de Autos Sacramentais no Irã e as desistências de alguns integrantes repercutiu na imprensa brasileira. Em 10 de novembro de 1974, o Diário do Comércio e Indústria abordou o assunto com Célia Helena: [...] Célia Helena começa por desmentir todos os boatos a respeito de maus tratos e dificuldades financeiras passados pelo grupo na Europa e Irã. Nada disso aconteceu. A gente é obrigada a dizer que, se o espetáculo fracassou, nossa viagem, sob o ponto de vista turístico, foi maravilhosa. É engraçado dizer isso, mas é verdade. Nada nos faltou, nem financeiramente nem afetivamente. O grupo reunido foi o melhor possível e todas as alegrias e dificuldades foram fraternalmente divididas, inclusive com a própria Ruth. Lá fora acabou esse negócio de produtora e elenco. Éramos todos um só grupo. Rofran Fernandes (185, p. 181) citou um documento em que o elenco de Autos Sacramentais redigiu para esclarecer os fatos gerados na imprensa: “Nós, elementos do elenco dos Autos Sacramentais de Calderón de La Barca, queremos vir a público dizer: 1) Que viajamos todos com passagens de ida e volta. 2) Tivemos em Shiraz hospedagem e alimentação por conta da produção, como o combinado. Essa hospedagem e essa alimentação sempre foram de boa qualidade. 3) Tivemos em Paris hotéis a nossa disposição ou uma quantidade em dinheiro, para escolher o que quiséssemos. A alimentação conforme o combinado, corre por nossa conta. 4) Que, enfim, não há problemas entre produção e elenco e nem queixas do passado e do presente. Assinam Sérgio Britto, Leina Krespi, Carlos Augusto Strazzer, Jura Otero, José Fernandes, Célia Helena, Pedro Veras, Maria Rita, Paulo César Paraná. 1074 No original: In one of the worst fiascos the Iran Festival of Arts has ever suffered, Argentinian director Victor Garcia was stripped bare last night, but not in the way he wanted. ‘Autosacramentales’, billed as the festival's top event, fell apart in total disaster when the decor Garcia had flown in failed to work. The temperamental director is known for his elaborate sets. This year, a version of Genesis, written by Calderón de la Barca, was supposed to have taken part in a huge apparatus built like the diaphragm of a camera. Actors would have performed on the seven wings which open and close. Unfortunately, the machine was damaged in transit, and engineers could not 1072 Em um dos piores fiascos do Festival de Artes do Irã que sofreu o diretor argentino Victor Garcia foi despedido, mas não da maneira como ele queria. Autosacramentais, considerado evento máximo do festival, se desfez em um desastre total quando o cenário de Garcia decidiu não funcionar. O diretor temperamental é conhecido por suas elaboradas montagens. Este ano, uma versão de Gênesis, escrito por Calderón de la Barca, era para pegar parte de um imenso aparato construído como o diafragma de uma câmera. Atores deveriam atuar nas sete asas no qual abrem e fecham. Infelizmente, a máquina foi danificada durante o deslocamento, e os engenheiros não conseguiram fazer isso operar em tempo para o festival. Sem isso, a arte de Garcia estava despida. Ele apenas tinha os atores para trabalhar e o lugar de Persépolis como cenário, e ele não conseguiu criar uma peça de teatro. Além disso, queria nudez dos atores - e ele não foi permitido ter. Com estas duas marcas - máquinas e nudez - a saída do jogo, Garcia rejeitou a responsabilidade, por isso anunciou que ele não estava mais no festival. E não foi uma maravilha, “Autosacramentais” foi um fiasco. Garcia ainda não compareceu para a discussão da imprensa na próxima manhã, e deixou sua produtora Sra. Escobar segurando as pontas. Ela não quis comentar sobre as ideias artísticas ou resultados da peça, mas preso ao diretor, que ela trouxe ao Brasil há seis anos atrás. Tenho plena confiança na genialidade do Sr. Garcia. Ela disse: eu continuarei feliz em trabalhar com ele no futuro. Quando aceitamos em exibir a peça ontem à noite, corremos o risco, mas eu amo correr riscos. Apesar de Ruth Escobar defender Victor Garcia nessa ocasião, pontuo que a partir daquele momento não houve mais parcerias com o encenador, nem convites. Porém, esses acontecimentos deixaram de impulsionar [ainda mais] a carreira e representatividade de Ruth Escobar no exterior, principalmente num país que não tinha relações, mas também por deixar má impressão de um espetáculo convidado pela organização no encerramento do festival. Como forma de tentar remediar essa situação, em 1976, ela convidou o grupo persa Kargahe Nemayeshi-City Players para apresentar o espetáculo Calígula no II FIT1075. Na expectativa de reparar o cenário, a empresária o enviou para o Atelier dês Ouvriers Reunis, na França, no entanto “constatou-se que os reparos custariam mais do que Ruth Escobar estava em condições de pagar”, lembrou Rofran Fernandes1076. Em meio a tantas complicações, a alternativa seria desfazer o elenco e encerrar a produção brasileira com um legítimo fracasso, mas uma esperança surgia. Luca Ronconi, diretor da Bienal de Veneza, convenceu Ruth Escobar, Victor Garcia e o elenco a apresentarem o espetáculo sem o cenário. Embora o convite ter sido feito pelo próprio organizador do evento, a encenação teve de passar por obstáculos em solo italiano. Em decorrência das notícias que se espalhavam pela cidade de que o espetáculo tinha nu em cena, “começou a falar-se na possibilidade de manifestações de fascistas que iriam até ao extremo de atacarem os actores em cena”1077 recordou Ruth Escobar. Para evitar qualquer tipo make it operative in time for the festival. Without that, the art of Garcia was stripped naked. He had only the actors to work with and the site of Persepolis as a setting, and he failed to create a piece of theater. In addition, the nakedness wanted - that of his actors - he was not allowed to have. With this two trademarks - machines and nudity - removed from the play, Garcia rejected responsibility for it and announced he was no longer in the festival. And it was no wonder; “Autosacramentales” was a disgrace even for an amateur director. Garcia didn't even show up for the press conference discussion meeting the next morning, and left bis producer, Miss Escobar holding the bag. She would not comment on the artistic ideas or results of the play, but stuck up for the director she brought to Brazil six years ago. ‘I have full confidence in the genius of Mr. Garcia’, she said, and will gladly continue to work with him in the future. When we accepted to put on the play last night we took a risk, but I love taking risks’. FERNANDES,1985, p. 179. 1075 Assunto abordado no capítulo quinto 1076 FERNANDES, 1985, p. 180. 1077 ESCOBAR, Entrevista concedida a Carvalho Ramos. de problema, a pedido do Presidente da Itália, a peça necessitou de prévia autorização do Tribunal de Justiça de Veneza. No entanto, para surpresa de muitos, a comissão italiana “considerou a nudez de uma pureza total, nada tendo de obsceno”1078. Após a devida autorização, Autos Sacramentais subia ao palco do Teatro La Feniche, nos dias 29 e 30 de outubro1079 de 1974. Diferentemente da apresentação no Irã, o espetáculo teve ampla aceitação. A respeito disso, Rofran Fernandes afirmou que “o delírio do público, em Veneza, veio coroar um dos mais difíceis itinerários já percorridos por uma companhia teatral em busca de novos mercados para sua arte”1080. Sobre a repercussão do espetáculo, Carlos Porto transcreveu parte da crítica italiana no Diário de Lisboa: Arthur Lazzari intitulou seu artigo publicado no “Unitá” – “Casta nudez do amanhecer do mundo”. E escreve: (Os actores) “estão completamente nus. Isto da nudez da representação era o “punctun dolens” para os nossos moralizadores. Nada de mais casta do que estes corpos nus (nas luzes quase ocultas do Fenice) que representam o amanhecer do mundo, o nada e o caos, a criação das coisas e do homem” (...) o corpo nu do homem e da mulher são o único elemento de primordial pureza” (da história saca que Garcia conta). Diz o “Avanti!”: “excepcional sucesso na estreia dos “Autos Sacramentais” (...) os magistrados consideraram que o espetáculo não é obsceno e como tal tinha todo o direito de ser representado”. No “Corriere dela Sera” Maurizio Porro escreve: “Calorosos aplausos para a companhia brasileira”1081. Após as apresentações na Itália, Ruth Escobar conseguiu levar o espetáculo a Lisboa. Contudo, em virtude dos problemas causados no Irã, alguns atores decidiram não acompanhar o grupo na aventura de transitar pela Europa1082, pois a circulação em outros países não estava, a priori, agendada. Ainda que Portugal não estivesse mais sob o poder ditatorial de Marcello Caetano e que todas as comissões de classificação de espetáculos tivessem sido extintas1083, mesmo assim, as encenações deveriam solicitar licença de representação à DGCE. Embora não houvesse mais a avaliação do texto nem inspeção do ensaio geral, produtores e companhias tinham de enviar uma solicitação, informando a classificação etária bem como uma síntese do espetáculo. Neste sentido, pode dizer-se que as companhias passaram a ser próprias censoras de seus espetáculos, pois eram obrigadas a informar a idade mínima para qual o espetáculo era dirigido. 1078 AUTOS, Folha de São Paulo, 20. nov. 1974, p. 3. Conforme o jornal L`Unita no dia 29 houve apresentação às 21:30 e, no dia 30, às 16 e às 21:30. AUTOSSACRAMENTALES L`Unita, 29 out. 1974, p.7. 1080 FERNANDES, 1985, p. 180. 1081 PORTO, Diário de Lisboa, 13 nov. 1974, p. 8. 1082 Em Portugal, de acordo com o processo 23 0432 do MNT o elenco foi composto de quinze integrantes: Seme Lufti (Ar, Pecado, Rico e Caim), Maria Rita (Fogo e Vida), Sérgio Britto (Poder, Pai), Antônio Pitanga (Razão e Mundo), Walter Cruz (Pobre, Pão) Alice Gonçalves (Sonho, Alma e Amor), José Fernandes (Abel, Vontade e Água), Jura Otero (Terra e Beleza), Leina Krespi (Sabedoria e Morte), Carlos Augusto Strazzer (Corpo), Paulo Cesar Britto (Memória, Vinho), Selma Egrei (Graça), Gésio Amadeu (Rei), Pedro Veras (Lavrador), Paulo César Paraná (Discreção). Porém, consta na ficha técnica apresentada por Rofran Fernandes (1985, p. 54) o nome de mais seis atores: Dionísio de Azevedo, Célia Helena, Cláudia de Castro, Neide Duque, Beatriz de Macedo, Vera Manhães. Todos presentes nas apresentações no Irã. 1083 O Decreto-Lei n.º 199/74, de 14 de maio de 1974, estabeleceu que: “Extingue as Comissões de Exame e Classificação dos Espectáculos, de Recurso e de Literatura e Espectáculos para Menores - Determina que, enquanto não for promulgado o novo regime legal de classificação etária dos espectáculos, possam ser criadas e regulamentadas, por despacho do Ministro respectivo, comissões ad hoc para esse fim - Exonera, com efeitos a partir de 25 de Abril de 1974, os membros das referidas comissões”. PORTUGAL, 1974. 1079 Seguindo as novas leis que regiam as apresentações teatrais, em 13 de novembro de 1974, Ruth Escobar encaminhou a solicitação, indicando ‘não aconselhável a menores de 13 anos’1084. No dia seguinte, a licença1085 foi emitida para que Autos Sacramentais1086 pudesse realizar apresentações em todo o território português. Com a devida autorização, o Teatro São Luís abriu as portas à encenação, em 15 de novembro de 1974, numa sessão exclusiva às Forças Armadas portuguesas. Contudo, apesar da repercussão do espetáculo em Veneza, em Lisboa a recepção da crítica portuguesa, mais precisamente de Urbano Rodrigues Tavares, foi mais feroz. A respeito do espetáculo, escreveu: Um texto muito belo, por vezes assassinado pela má declamação da maioria dos actores. Um espectáculo de choque, que merece ser visto, mas que fica sempre, ou quase sempre, aquém do que nos prometem o talento, a originalidade e a força das realizações a que Vítor Garcia nos tem habituado. Uma ideia esplendida, mas praticamente desperdiçada: a da nudez integral nas cenas da criação do Mundo, da criação do Homem, em todos os autos. [...] Destruir um texto é aceitável. Torná-lo morno, não. [...] Porém, tão mal, tão apagadamente, os actores, de um modo geral o dizem, que permanentemente o atraiçoam. [...] Aqui, o pior é que a nudez não chega a ser nudez, na medida em que os movimentos não têm amiúde nem ritmo nem lustro. [...] Muitas das réplicas perdem-se por má articulação dos actores, deficiente colocação da voz, além da incapacidade para certas inflexões emocionais 1087. A passagem de Victor Garcia por Lisboa, em 1973, com Cemitério de Automóveis deixou, na classe artística portuguesa, o desejo de presenciar outras produções cênicas do encenador, porém, na visão do crítico, o espetáculo ficou aquém do esperado. Para ele, a encenação careceu de qualidade técnica, interferindo diretamente na qualidade da encenação. Entretanto, apesar de a crítica ter uma posição austera, “não se conseguia um bilhete para entrar”1088, afirmou Carlos Avilez, pois pela primeira vez o público português via um elenco totalmente nu em cena. Pontuo que, após a deposição do governo militar em 25 de abril, as companhias portuguesas iniciaram uma fase de “recuperação do tempo perdido”, isto é, houve uma onda de montagens de espetáculos que foram censurados. Era uma forma de comemorar a liberdade. Neste sentido, permito-me dizer que o espetáculo Autos Sacramentais corroborou (novamente) com a cena teatral portuguesa ao colocar um elenco inteiro nu. Prestes a terminar a temporada1089, Ruth Escobar conseguiu que os produtores da Round House, uma famosa casa teatral inglesa ficassem interessados pelo espetáculo Autos 1084 Processo 9768. MNT. Observo que apesar de passado mais de seis meses da Revolução dos Cravos, o documento que autorizava a apresentação dos espetáculos continuava o mesmo. No entanto, as partes ‘pela Comissão de Exame e Classificação dos Espetáculos’, ‘GRUPO B’, ‘Não é permitida a assistência de menores de 10 anos’ encontravam-se censurada, estavam datilografadas com vários xises. 1086 Ver imagem 135 no dossiê de imagens. 1087 RODRIGUES, 2012, p. 101-103. 1088 AVILEZ, Entrevista concedia a Eder Sumariva Rodrigues. 1089 Ao contrário de Missa Leiga e Cemitério de Automóveis, Ruth Escobar decidiu não se aventurar em outras cidades de Portugal talvez em virtude da falta de subsídios. Com exceção da estreia na qual contou com ajuda do Ministério da Comunicação Social juntamente com a Comissão Dinamizadora Central, em que a produtora conseguiu algum aporte financeiro, nenhuma outra fonte de subvenção foi localizada. Inclusive no arquivo da FCG 1085 Sacramentais o qual cumpriu a temporada de 18 de dezembro de 1974 a 04 de janeiro de 1975 naquele recinto. Novamente, pela primeira vez, um grupo brasileiro apresentou um espetáculo em português. Assim, foi em solo inglês que a produção Autos Sacramentais encerrou sua história, única encenação na trajetória de Ruth Escobar, a qual o público brasileiro não teve a oportunidade de desfrutar. Como se vê, as estratégias de produção foram audaciosas. Burlar a censura, negociar com fascistas, enfrentar as leis, buscar recursos financeiros, transitar em Portugal foram somente algumas das ações efetivadas por ela. Com uma dose de coragem misturada à aptidão de empresária, Ruth Escobar imprimiu sua personalidade diante dos obstáculos para os superar. Inscreveu seu nome na história do teatro português. Apesar de as mulheres portuguesas na década de 1970 serem diminuídas e terem menos valor na sociedade, Ruth Escobar conseguiu demonstrar outra faceta daquelas, consideradas sexo frágil. Para Carlos Avilez, “a principal contribuição foi demonstrar o que era ser produtora. Ela foi a libertação da mulher no teatro”1090. Ruth como produtora e mulher de teatro, possibilitou uma abertura da posição feminina na sociedade. Para Maria Tereza Horta, feminista na época pertencente a Novas Cartas Portuguesas, a principal “contribuição de Ruth para nós foi ver como era ser uma mulher determinada. Era melhor ser uma Ruth do que uma desgraçada”1091. A entrevistada vai mais além. Ela afirmou que “Ruth era uma afronta. Era uma espécie de bandeira”1092. A presença de Ruth não intimidava somente alguns artistas e produtores, em virtude de concretizar seu projeto teatral e por conseguir aquilo que seria de direito deles, mas também uma parte das mulheres que tinham como premissa a ocupação de seu “devido lugar” na sociedade. Horta lembrou que “para as próprias mulheres portuguesas a presença da Ruth teve repercussão negativa. Achavam-na maluca, desavergonhada, porque ela era realmente a força da natureza”. Para combater o pensamento encrustado de “As mulheres não podem fazer isso”, as respostas das feministas tinham Ruth Escobar como referência: “Podem sim! Veja a Ruth”1093. E, assim, viram-na como produtora, mulher e mãe que acreditava num teatro transformador, mas também que sua postura e atitude contribuiriam para uma nova ordem social. Nesse ciclo de três anos consecutivos, Ruth Escobar ressurgia em Portugal como uma importante produtora teatral depois de anos no Brasil. Retornar a sua terra natal significou para Ruth um momento que deveria ficar marcado. E ficou.... não consta qualquer solicitação de verbas para o espetáculo. A respeito desse assunto, Rofran Fernandes (1985, p. 182) afirmou que a circulação no exterior foi “financeiramente, um desastre, [e] que o Teatro Ruth Escobar teria de se recuperar”. 1090 AVILEZ, Entrevista concedia a Eder Sumariva Rodrigues. 1091 HORTA, Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. 1092 HORTA, Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. 1093 HORTA, Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. 8.7 Dossiê de fotos A Ressurgida CONSIDERO[AÇÕES] Com esta tese creio ter contribuído para o preenchimento de lacunas em nossa historiografia teatral. Tenho plena consciência de que essa narrativa não responde a todas as possíveis indagações que surgiram ao longo da pesquisa, tanto é que, em seguida, aponto inúmeros focos que ainda precisam de novos olhares e de outros pesquisadores. Mas, o estudo dos diferentes caminhos trilhados por Ruth Escobar enquanto atriz, produtora, empresária, feminista, deputada e agente cultural, tornaram possível uma leitura dos acontecimentos e da sociedade na qual ela estava inserida. E isso permite, principalmente, compreender as transformações ocorridas no teatro paulista e as suas reverberações no teatro praticado no Brasil, tendo como consequência, o alinhamento do teatro brasileiro às vanguardas cênicas e políticas do século XX. Para encerrar essa seção da tese, ao contrário do que costumeiramente se faz nesse item final - condensar em poucas páginas tudo aquilo que foi pesquisado – elaboro possíveis desdobramentos que podem ser desenvolvidos futuramente. Essa postura está pautada no fato de que considero essa pesquisa um celeiro de ideias, na qual cada capítulo pode ser ampliado e aprofundado. Conforme exposto nesse trabalho, Ruth Escobar foi uma figura incansável diante das diferentes frentes de luta pela anistia e pelas mulheres, por meio de suas produções teatrais no Brasil e no exterior, por isso é possível desenvolver uma série de investigações a partir de sua atuação. Primeiramente, quero pontuar que o acervo pessoal de Ruth Escobar, o qual tive o privilégio de consultar uma única vez em 2009 por curto espaço de tempo, pode revelar outras informações a respeito dessa personagem. Aspectos contábeis, detalhes das produções, fotos, telegramas, correspondências estão arquivados em sua casa, aguardando decisão judicie. Naquele ano em que tive acesso ao arquivo, todos os documentos estavam guardados numa casa abandonada, em situação precária de acondicionamento dos materiais. Após polêmica nos jornais, todos os materiais foram removidos para a casa onde Ruth mora. Ainda que brevemente relembrarei o acesso a esses documentos. Ao entrar naquela casa abandonada, deparei-me com um arquivo contendo cerca de trezentas caixas com diversos documentos: críticas teatrais, programas, constituição de sua empresa, entre outros. Em meio a todo o material foi inevitável a pergunta: como olhar, ler e selecionar todos aqueles documentos em tão pouco tempo? Essa situação se dava em virtude da pouca disponibilidade que o responsável pelo acervo tinha estabelecido para a pesquisa naquele espaço. Ao iniciar a retirada das caixas empoeiradas, numa pequena parte da estante encontrei uma encadernação que me deixou intrigado. Por alguns minutos, analisei o emaranhado de letras e números, chegando à conclusão de que aquelas siglas correspondiam à identificação das caixas1094 que estavam classificadas de acordo com uma codificação. Essa descoberta facilitou o trabalho, já que em vez de verificar todo o acervo, reduziu significativamente a quantidade de caixas a serem analisadas. Ao mesmo tempo em que selecionava o material, eu 1094 AJ= Recortes de Artigos de Jornais, AP= Atividade Parlamentar, AV= Avulsos, BC= Books e Catálogos de Eventos e Companhias do Brasil e Estrangeiras, CC= Congresso de Cultura # 1990, CD= Seminário “Cultura e Desenvolvimento”, CM= Cultura e Meio Ambiente, CN= Conselho Nacional dos Direitos da Mulher [CNDM], CP= Campanhas Políticas # 1986-1990 [José Serra], CW= Comittee on the Elimination of Discrimination Against Women [CEDA W], F= 1° ao 6° FIAC, FIAC =Festival Internacional de Artes Cênicas, HA= Hameed Ali, JE= IV Jornada Latino Americana de Educação - SP # 6-9/7/87, LC= Seminário Internacional de Legislação Cultural, MA= Festival Nacional das Mulheres nas Artes, MF= Movimento Feminino do PMDB, MH= “Mulherio” [jornal], MP= Seminário Nacional Mulher e Política, MR= O livro “Maria Ruth”, OQ= Dossiê Orestes Quércia, PA=Produções Artísticas de RE, RE= Ruth Escobar, RT= “Ruthilante” [jornal], TRE=Teatro Ruth Escobar. conversava com o secretário de Ruth Escobar. Ele contou-me que a organização da documentação do arquivo foi realizada por uma estagiária de biblioteconomia contratada, em 1996, por Ruth Escobar, sendo que fora finalizada em 1998. Todos os documentos coletados pela produtora ao longo de sua trajetória, desde críticas teatrais, programas de peças de teatros, manuscritos e tudo o que dizia respeito à vida pessoal e profissional de Ruth Escobar estavam naquelas caixas. Como se vê, há uma vasta documentação a ser analisada que, certamente, contribuirá para entender ainda mais o pensamento e as atitudes de Ruth Escobar na produção teatral no Brasil e, talvez, mudar algumas opiniões expressas nesta tese. Destaquei nessa investigação que Ruth Escobar, ao escolher um texto para levar à cena tinha por foco o diálogo que pudesse ser estabelecido com o contexto brasileiro, principalmente, voltado às questões ligadas à ditadura militar. Faz-se necessário aprofundar mais densamente a relação entre a dramaturgia escolhida e o contexto sociopolítico que o país vivia em cada momento, analisando-a e a comparando com outras encenações da época. Destaco que Ruth Escobar, ao produzir o I Festival Nacional das Artes para Mulheres, em 1982, foi pioneira nessa forma de pensar o teatro produzido por mulheres. Ao contrário do que muitos pensam o Projeto Madalena, que também tem a mesma sistemática concebida por Ruth – agrupar trabalhos artísticos produzidos por mulheres em sua rede de festivais em todo o mundo - teve sua primeira edição somente em 1986. Neste sentido, percebe-se que Ruth Escobar tinha proposições e projetos que estavam à frente do seu tempo. Há ainda de se estudar o Teatro 13 de Maio, segundo espaço teatral administrado por Ruth Escobar e as produções teatrais que por lá passaram. Lembro que o espetáculo de abertura dessa casa teatral foi Cemitério de Automóveis, no entanto, após a temporada dessa encenação que marcou época, as atividades do teatro 13 de Maio não foram encerradas; continuaram ainda por um tempo, abrigando montagens teatrais que merecem serem pesquisadas para compreender como a empresária administrava os dois espaços, se a programação desse espaço teatral era semelhante ou não ao que era realizada no Teatro Ruth Escobar. Nessa mesma linha de pensamento, é válido também refletir sobre os espetáculos teatrais e musicais que preenchiam o Teatro Ruth Escobar quando não era ocupado por produções próprias. Ao conceder/alugar seu teatro havia alguma espécie de linha de pensamento que conduzia essa programação paralela, principalmente aspectos políticos? Após não conseguir se reeleger para deputada federal em 1990, Ruth Escobar retornou à produção teatral. Afastada por quase uma década dos palcos, ao completar trinta anos do Teatro Ruth Escobar em 1994, a empresária realizou o 4º Festival Internacional de Artes Cênicas (FIAC) com trinta e uma encenações. Destacou-se a presença dos grupos Aboriginal Islander Dance Theatre (Austrália), Bread and Puppet (Estados Unidos), Cricot 2 (Polônia), além de serem repetidas algumas companhias que marcaram presença nas edições anteriores: La Cuadra de Sevilha (Espanha) Grupo Corpo (Minas Gerais) e Yves Lebreton (Itália); com o mesmo número de espetáculos, em 1995, realizou-se o 5º FIAC. Na programação estavam o grupo japonês Dumb Type, o russo Lev Dodine e o francês Michell Picolli; com dezoito peças teatrais, em 1996, na sexta edição destacou-se o grupo chinês Dong Gong Xi Gong, a Tropue Thang Long de Hanoi do Vietnã, e do encenador Gerald Thomas e a Companhia de Ópera Seca; dois anos após, em 1998, Ruth Escobar realizou o 8º FIAC com ênfase em espetáculos orientais, principalmente encenações provenientes da Índia e, a última edição, em 1999, o teatro cigano vindo de dez países foi o destaque. Como se vê, nesses dois últimos festivais, Ruth entrou numa fase mais mística. Sobre esses FIACs1095, é preciso compreender como a empresária se adaptou 1095 Em 1995, realizado no período de 10 a 28 de outubro; em 1996, 17 de agosto a 08 de setembro; em 1998, 15 de julho a 10 de agosto; em 1999, 27 de outubro a 08 de novembro. Mesmo com a retomada dos festivais em plena democracia, durante Ruth Escobar não deixou de expor suas ideias contra a forma que o governo vinha à nova forma de governo do país, visto que ela não tinha mais um objetivo específico contra quem lutar, nesse caso, a ditadura militar. Refletir sobre quais objetivos a levaram continuar na produção dos festivais e os modos de produção na democracia ainda está por ser desvelado. Como fica evidente, o teatro, a dança, a música e as artes cênicas em geral sempre foi alvo de Ruth Escobar, com o objetivo de desenvolver, intercambiar, experimentar novas estéticas teatrais. Lembro que a política cultural do país havia se transformado, fator que pode ter sido decisivo na retomada ao teatro nos anos de 1990 por Ruth Escobar. A “segunda fase” da realização dos festivais internacionais de teatro entre 1994 a 1997 e 1999, ocorreu em parceria com o Serviço Social do Comércio (SESC). Logo, pode-se inicialmente constatar que houve um enfraquecimento vital de Ruth Escobar na recém-democracia instaurada no Brasil. Por outro lado, demonstrou que ela ainda continuava a aplicar suas estratégias para conceber seus projetos. Destaco que no início dos anos de 1990, em 12 de abril, o presidente Fernando Collor de Mello transformou o Ministério da Cultura (MINC) em Secretaria da Cultura, diretamente vinculada ao seu gabinete, mudança que afetou todas as áreas artísticas no país. Com isso todos os órgãos envolvidos em atividades culturais no Brasil foram desestruturados, gerando, também, um vácuo no financiamento das atividades artísticas do país. Ainda a respeito dos festivais, seria interessante pensar mecanismos para elaborar uma pesquisa que apontasse às interseções entre as produções dos festivais e as práticas teatrais brasileiras antes e após aqueles. Um exemplo relevante dessa manifestação posteriori à realização do I FIT - mencionada nessa pesquisa -, foi a partir da vinda de Bob Wilson, em 1974, que resultou, segundo Antunes Filho, em novos procedimentos aplicados em Macunaíma. Além das produções que marcaram época no Brasil e em Portugal, há de se debruçar também sobre a passagem de Missa Leiga pela África. Se no Brasil e em Portugal a presença dos espetáculos de Ruth Escobar marcaram gerações de atores, diretores, cenógrafos, dramaturgos entre outros, em Luanda, também ficou marcas na classe artística? Ainda que as proporções de tempo sejam diferentes (no Brasil, Ruth produziu por décadas; em Portugal, três anos consecutivos e, em Angola, apresentou um espetáculo por apenas algumas semanas) esta característica seria determinante para “contaminar” e transformar concepções cênicas? Outra pesquisa que precisa ser desenvolvida a partir das produções de Ruth Escobar é sobre a recuperação do processo de criação em cada encenação: quais exercícios eram aplicados pelos diretores estrangeiros? Quais as técnicas? Como eram os ensaios? Pontuo que, até o momento, não há nenhuma pesquisa que faça referência a esses aspectos, principalmente nas encenações que antecederam a década de 19901096. Nesse caso, faz-se urgente voltar o olhar e refletir sobre as práticas cênicas das montagens espetaculares de Ruth Escobar. administrando a área cultural no país: “Desde 1994, quando retomei a realização do Festival de Artes Cênicas, tenho colecionado umas tantas perplexidades. A perplexidade, por exemplo, de constatar que num país como o nosso, tão rico em talentos cênicos - são tantos e tão formidáveis os nossos atores, bailarinos, artistas de circo, encenadores, dramaturgos, cenógrafos, figurinistas e técnicos de teatro, todos exercendo com tanto amor o nosso ofício! -, não tenhamos sido capazes, até hoje, de erguer uma Companhia Nacional Estável de Repertório. A perplexidade de ainda observar tanta reserva e parcimônia por parte da iniciativa privada quando se trata de financiar o nosso teatro, essa forma de arte tão provocativa quanto eloqüente, tão questionadora quanto democrática, e tão reflexiva quanto popular. E a perplexidade, também, de saber que não há, no mundo todo, um festival que tenha a importância do Festival de Artes Cênicas e que seja concebido, organizado e viabilizado como o nosso o é: na incerteza, na luta, na transitoriedade e na insegurança” (ESCOBAR In: programa do VI FIT). 1096 Após essa década, vê-se uma maior preocupação dos grupos em registrarem e publicarem as formas de construção espetacular. Além disso, a pedagogia desenvolvida por diversos grupos brasileiros já foi alvo de pesquisa, a saber: Oi Nóis Aqui Traveiz, Giramundo Teatro de Bonecos, Vertigem, entre outros. Quase todos os projetos cenográficos e suas concepções, utilizadas nas produções de Ruth Escobar ainda estão por serem estudadas. Nesse caso, enfatizo que uma pesquisa acerca dos objetos e dos elementos visuais que, por diversas vezes foram colocados propositalmente para afrontar o regime militar, até agora não recebeu a devida atenção. Além desse recorte mais preciso, de forma geral, as cenografias das encenações de Ruth Escobar são uma proposta de pesquisa que merece atenção especial, visto que a empresária ousava a produção de um teatro que rompesse com os paradigmas vigentes na época. Ruth Escobar ao longo de oito anos de sua atividade como deputada estadual1097 em São Paulo tentou ser a representante da classe artística e promover a cultura, no entanto, viver o outro lado da moeda e manter uma postura combatente para defender interesses artísticos, não logrou resultados significativos. Suas estratégias de ação se dissolviam em meio aos discursos e alianças políticas. A atitude de Ruth Escobar de abandonar as atividades teatrais para seguir a carreira política,1098 também pode ser considerada um ato estratégico, pois com a abertura política no Brasil era possível, pelo menos assim ela pensou no começo, mudar a realidade brasileira através da ação política, fazendo adentrar, nela, a arte teatral. Cabe aqui sugerir, a posteriores pesquisadores, a investigação dos projetos de leis apresentados por Ruth Escobar à Assembleia Legislativa Estadual do Estado de São Paulo, com o intuito de realizar uma análise dessa documentação e verificar as ideias que vigoraram ou foram recusadas durante seu mandato. Nesse caso, faz-se necessário levantar toda a documentação. Além dessas possibilidades de pesquisa, destaca-se que os estudos sobre a ditadura militar no Brasil crescem consideravelmente nos últimos anos; diversas ações vêm sendo desenvolvidas em prol da memória e dos direitos humanos: a atuação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) desde novembro de 2011 e, consequentemente a criação de comitês, fóruns e grupos por todo o país. Destaco a criação da Comissão Estadual da Verdade em São Paulo e no Rio de Janeiro, pois foi o foco de atuação do regime militar. Ambos os estados possuem centros de memória às vítimas; lançamentos de filmes que colocam em xeque importantes questões sobre a ditadura militar no Brasil: O dia que durou 21 anos (2012) e Dossiê Jango (2013); o projeto itinerante Cinema pela Verdade; e, principalmente, a abertura de arquivos: Brasil Nunca Mais e o projeto Memória Política e Resistência do Arquivo Público do Estado de São Paulo em que disponibiliza o acervo físico e, em parte, digitalmente, os materiais produzidos pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP) entre 1924 e 1983. Destaca-se também que, em virtude da atuação da CNV, a família de Vladimir Herzog recebeu, em 2013, a nova certidão de obtido após análise mais detalhada dos fatos ocorridos nas dependências do DOPS/SP. Ainda que a participação de Ruth Escobar não tenha sido decisiva nos exemplos citados acima, o fato é que sua luta foi também importante para que atualmente possamos viver numa 1097 A respeito dessa fase, Ruth Escobar declarou que: Durante oito anos, a partir de 1982, pensei representar o Público no teatro parlamentar. De palavras de ordem, fazer projeto de lei. De cenários, fazer realidades. Mas constato que nesse mundo tão concreto de decisões cruciais, que leiloam quem devem viver e quem deve morrer, tudo se passo no imaginário. O drama real se faz discurso, contagem de votos. A maquiagem é feita dentro da pele, na carne, no sangue e na alma. A epiderme se faz disfarce e a máscara se torna interior... Mas que, que me esgotara no teatro porque não acreditava em mim, não iria, agora, desacreditar da política porque ela me descarnou. Errei no meu jogo de antíteses. É a arte que representa o público, enquanto a pequena política se esgota na representação para o público. Não é possível o mútuo transplante. O teatro é teatro, a política é política (ESCOBAR In: artigo para o programa do IV FIT, 1994). 1098 No ano de 1982, o eleitorado do estado de São Paulo totalizava 13.144.018 votantes, dentro do universo de 58.616.588 eleitores a nível nacional. Nesse ano Maria Ruth dos Santos foi eleita com 48.049 votos. Já em 1986, São Paulo possuía 15.920.473 eleitores (o Brasil possuía 69.166.810), e ela obteve 61.124 votos nessa eleição (dados fornecidos via e-mail pelo Tribunal Superior Eleitoral). democracia nesse país. Mais que isso, Ruth e suas companheiras deixaram outras feridas abertas: a anistia; assunto em vigor em diversas partes do mundo. Em ambos os casos, vê-se a necessidade da existência de muitas Ruths mundo afora. Todas as questões levantadas podem ser pesquisadas em diferentes perspectivas, utilizando a metodologia da história oral ou um olhar sociológico, aspectos políticos, análise do discurso, afinal, Ruth Escobar está aberta a diferentes olhares e, com ela a sociedade brasileira do período em questão, como também a atividade teatral. Pesquisar sobre Ruth Escobar despertou-me quantidade significativa de questões que merecem ser estudadas; a quem interessar, agarre esta oportunidade com determinação, pois estudar a trajetória de Ruth Escobar é aventurar-se com ela, é enfrentar dificuldades, percorrer caminhos sinuosos, mas em compensação, o prazer de desfrutar e conhecer os meandros, sua forma de pensar e agir, é fascinante. Ao mesmo tempo em que a desvelava me revelava..... Que a procurava me perdia me reencontrava… quando pensava que havia chegado ao fim, era apenas o começo! Ainda que, momentaneamente, encerra-se o ciclo, guardam-se as palavras, resguardome para prosseguir. Pausa. Ruth Escobar, seu nome era um grito de guerra. A luta continua. REFERÊNCIAS Livros, periódicos e materiais digitais A LIÇÃO de Salazar. [Cartaz on line]. Disponível em: <http://ditaduras.no.sapo.pt/portugal/portugal_licao_dpf.htm>. Acesso em: 23 jan. 2015. A VIAGEM. Verbete Enciclopédia Itaú Cultural. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2015. Disponível em: < http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_Teatro/comum/verbete_imp.cfm?c d_verbete=469&imp=N> Acesso em: 25 jan. 2015. Verbete. ABREU, Maira. Nosotras: feminismo latino-americano em Paris. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 2, mai./ago. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2013000200007&script=sci_arttext> Acesso em: 04 dez. 2014. ACERVO Fotográfico do Arquivo Histórico de São Paulo. [Foto], Disponível em: <http://www.arquiamigos.org.br/foto/index2.php>. Acesso em: 23 jan. 2015. ALBERTO D´Aversa. 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DOSP, 21 nov. 1980. Assembleia Legislativa, São Paulo, SP. DOSP, 04 dez. 1987. Assembleia Legislativa, São Paulo, SP. FUNDOS DOCUMENTAIS Fundação Calouste Gulbenkian DOSSIÊ Ruth Escobar. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Processo 20-C-44-12087. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 20-C-44-12088. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 20-C-44-15188. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 20-C-44-15189. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 20-C-44-15190. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 21-Z -14-4581. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-D-26-5860. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-0-11951. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-0-14.405. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-0-14.411. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-0-14-393. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-0-14720. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-0-15381. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-129-22103. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-129-22638. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-129-22639. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-130-2814. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-130-5021. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-130-5184. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-130-5187. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-130-5213. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-130-5214. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-130-5216. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-130-5217. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-130-5218. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-130-5219. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 50-Z-32-4474. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Processo 52-Z-0-202. Fundo DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo, SP. Arquivo Museu Nacional do Teatro de Portugal. Processo 9398. Arquivo Museu Nacional do Teatro de Portugal, Lisboa. Processo 9492. Arquivo Museu Nacional do Teatro de Portugal, Lisboa. Processo 9768. Arquivo Museu Nacional do Teatro de Portugal, Lisboa. Processo 230432. Arquivo Museu Nacional do Teatro de Portugal, Lisboa. Arquivo Nacional Ofício 326/77 - DCDP. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Ofício 405/68 - SCDP. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Ofício 581/68 - SCDP. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo AC.ACE. 13557.81. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo AC.ACE.115735.78. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo AC.ACE.1823.79. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo ACE.114085.78. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo ACE.80323.74. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo BN.AN.BSB.NS.AGR.COF.151.07. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo BR.AN.BSB.IE.018.002. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo BR.AN.BSB.NS.AGR.151-SU. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo BR.AN.BSB.NS.AGR.151-SU. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo BR.AN.BSB.NS.AGR.COF.151.53. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Processo BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1325. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, RJ. Processo BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1470. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, RJ. Relatório anual – NI/DCDP – 1978, redigido pelo assistente da DCDP, Humberto Ruy de Azevedo Simões. Brasília, 8 jan. 1979. DCDP/AG/RA/CX1/3. Arquivo Nacional, Brasília, DF. Arquivo Miroel Silveira (USP) Processo DDP 5.035. Males da Juventude. Arquivo Miroel Silveira, São Paulo, SP. Processo DDP 5.202. Antígone América. Arquivo Miroel Silveira, São Paulo, SP. Processo DDP 6.116. Roda Viva. Arquivo Miroel Silveira, São Paulo, SP. Processo DDP 4.766. Festival Branco e Preto. Arquivo Miroel Silveira, São Paulo, SP. Processo DDP 1.273. Fora da Barra. Arquivo Miroel Silveira, São Paulo, SP. Arquivo Nacional Torre do Tombo de Portugal Processo PT/TT/SNI/DGE/Livro 30. Ata 23/1972. Processo PT/TT/SNI/DSGE/Livro 30. Ministério da Educação de Portugal Ministério da Educação de Portugal. Secretaria Geral. LCM, CX. 43 e 49, respectivamente. ENTREVISTAS AVILEZ, Carlos. Entrevista concedia a Eder Sumariva Rodrigues. Lisboa, 27 mai. 2014. Entrevista. BOLDRIN, Rolando. Entrevista concedida a Eduardo Campo Lima, Coletivos artísticos reeditam Feira Paulista de Opinião, Brasil de Fato Brasil de Fato, 12 fev. 2014. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/27432>. Acesso em: 21 jun. 2014. CARRERO, Tônia. Entrevista concedia a Isa Cambará. “Passei meus vinte anos sofrendo com a visão da velhice”. Folha de São Paulo, 05 set. 1982, p. 1. CORREA, Natália. Entrevista concedida a Catarina Arimatéia. Chega ao fim a festa feminina, sem explosões. Folha de São Paulo, 13 set. 1982, p. 23. DEL RIOS, Jefferson. Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. São Paulo, out. 2009. Entrevista. ESCOBAR, Carlos Henrique. Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. Aveiro, Portugal, 31 mai. 2014. Entrevista. ESCOBAR, Entrevista concedida a Antonio Hohlfeldt. Ruth Escobar: “O povo só vai ao teatro quando trabalha na sua construção”. Correio do Povo, 09. set. 1978. ESCOBAR, Ruth Escobar. Entrevista concedida a Aramis Millarch. Disponível em: <http://www.millarch.org/audio/ruth-escobar>. Acesso em: 05 jan. 2015. ESCOBAR, Ruth Escobar. Entrevista concedida a Eduardo Guerrero. Ruth Escobar e os carnês da cultura. Viver, São Paulo, 13 mai. 1976. ESCOBAR, Ruth. Entrevista a reportagem Censura veta Feira Brasileira de Opinião, Folha de São Paulo, 13 jun. 1978, p. 21 ESCOBAR, Ruth. Entrevista concedida a Carvalho Ramos. Revista Platéia, n. 722, 03 dez. 1974, ESCOBAR, Ruth. Entrevista concedida a Jefferson Del Rios. Otimismo e dúvida, a angústia teatral. Folha de São Paulo, 30 dez. 1978, p. 25. ESCOBAR, Ruth. Entrevista concedida a Oswaldo Mendes. Rute Escobar, uma mulher possuída pelo desafio. Folha de São Paulo, São Paulo. 02 ago. 1981. p. 45. ESCOBAR, Ruth. Entrevista concedida a Renato de Moraes. Um ator que eliminou as palavras. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 mai. 1976. ESCOBAR, Ruth. Entrevista concedida a reportagem ESSA “LOUCA”, Diário do Comércio e Indústria, 18 jul. 1974. GARCIA, Clóvis. Entrevista concedia a Eder Sumariva Rodrigues. São Paulo, mai. 2009. Entrevista. GUARNIERI, Gianfrancesco. Entrevista concedida a Sérgio Pinto de Almeida. Folha de São Paulo, 21 mai. 1978, p. 69. HENFIL, Entrevista concedida ao Jornal do Brasil, 23 mar. 1979, p. 7. HORTA, Maria Tereza. Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. Lisboa, 28 mai. 2014. Entrevista. JÔ SOARES. Entrevista concedida a Dirceu Alves Jr. Isto É Gente, 1999/2002. MAGNANI, Umberto. Entrevista concedida a Eduardo Campo Lima, Coletivos artísticos reeditam Feira Paulista de Opinião, Brasil de Fato Brasil de Fato, 12 fev. 2014. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/27432>. Acesso em: 21 jun. 2014. MOSTAÇO, Edélcio. Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. Florianópolis, out. 2009. Entrevista MUNIZ, Lauro César. Entrevista concedida a Eduardo Campo Lima, Coletivos artísticos reeditam Feira Paulista de Opinião, Brasil de Fato Brasil de Fato, 12 fev. 2014. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/27432>. Acesso em: 21 jun. 2014. NYDIA, Licia. Entrevista concedida a Eder Sumariva Rodrigues. São Paulo, em 2009. PIMENTEL, Silvia. Entrevista concedida a Yumi Garcia do Santos. A implementação dos órgãos governamentais de gênero no Brasil e o papel do movimento feminista: o caso do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, Cadernos Pagu (27), julho-dezembro de 2006, p. 416. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332006000200015>. Acesso em 01 fev. 2015 ZANOTTO, Ilka Marinho. Entrevista concedia a Eder Sumariva Rodrigues. São Paulo, nov. 2009. Entrevista. PROGRAMAS DE ESPETÁCULO ANTÍGONE América. (Programa). São Paulo, 1962. ESCOBAR, Ruth. (Programa IV Festival). São Paulo, 1994. ESCOBAR, Ruth. Revista do Henfil. (Programa). São Paulo, 1978. II FIT. (Programa). São Paulo, 1974. III FIT. (Programa). São Paulo, 1981. LIMA, Mariângela. III Festival Internacional de Teatro (1981): resistência e mudança. In: artigo para o programa do IV FIT, 1994. O VERSÁTIL Mister Sloane. (Programa). São Paulo, 1967. ROSENFELD, Anatol. Uma comédia apocalíptica. O Casamento do Senhor Mississippi (Programa). São Paulo, 196 SAVARY, Jerome. Os Monstros. (Programa). São Paulo, 1969. ANEXO I: Entrevista realizada por Ruth Santos com o General Gamal Abdel Nasser, presidente do Egito, em 19561099. O que me trouxe novamente ao Cairo – onde é evidente o ambiente de alarme que oprime um pouco a vida da cidade – não foi, com certeza, o desejo de ver as pirâmides. Aos que me convidavam a vê-las declarei preferir uma visita ao secretário particular do sr. Nasser. Isso deu ensejo a que durante algum tempo fosse seguida por todos os lados, o que permitiu aos colegas britânicos tentarem sugerir ao meu espirito a ideia de que à minha volta tudo funcionava nos moldes da Gestapo. Mas eles eram, efectivamente, suspeitos ao formularem tais afirmações. O certo é que depois de cinco dias de correrias por vários escritórios para preencher sucessivas folhas de papel, o facto de eu vir do Brasil (o país que pode comprar muito algodão ao Egipto) levou até junto a Nasser. A entrevista foi marcada uma quarta-feira à noite, fixando-se encontro prévio, num hotel no centro da cidade, com dois sujeitos cuja existência desconhecia. Descrição antecipada ou consulta a uma fotografia anulou todas as hesitações: mal cheguei, dirigiram-se a mim e meteram-me num carro que me conduziu à Presidência da República. Eram 7 da tarde. As 7.20 chegou Nasser, sem escolta, acompanhado apenas por dois automóveis. Dez minutos depois fui introduzida no seu gabinete. Na minha frente estava o presidente da República, vestindo com sobriedade e gosto, com o ar sadio e quase repousado duma criatura sem problemas ou que ri sem esforço. Comecei por falar-lhe de coisas banais, sem levar a superficialidade até a linha da moda. Foi esta a primeira pergunta: -Já alguma vez entrou nas Pirâmides? -Não, nunca lá entrei. Ainda há tempos comentava com o marechal Tito que nunca conhecemos de perto os aspectos que marcam o nosso país no exterior e que nos trazem grande parte dos turistas. - O dr. Fowz (ministro dos Negócios Estrangeiros do Egipto) levará novas propostas ao Conselho de Segurança no próximo dia 6? -Não exactamente... Insistiremos nas nossas reivindicações. -Aceitará a decisão tomada pelo Conselho de Segurança, qualquer que ela seja? - Sim. Depois Nasser refletiu sobre o tom categórico e acrescentou: - Esperamos que ela não afecte a soberania egípcia. - E se o Conselho de Segurança chegar a uma decisão que seja objecto do veto russo, ainda assim a aceitará? -Desde que haja um veto, não haverá decisão. -E se a decisão do Conselho incluir liberdade da passagem para todos os navios, abriria também o canal para os navios de Israel? - O tratado de 1888 estabelece que o Egipto pode tomar todas as precauções necessárias à sua defesa. Por enquanto estamos em guerra com Israel. A menos que houvesse um acordo -Se o bloco ocidental não tivesse recusado a ajuda financeira para fazer a barragem de Assuão ter-se-ia dado a nacionalização do canal tão repentinamente? Diz-se mesmo que a nacionalização do canal foi um acto de represália a essa súbita recusa. Fonte: Ruth Santos. Aceitará a decisão do Conselho de Segurança? SIM – declara Nasser. Diário de Notícias, Lisboa, 07 out. 1956, p. 1 e 4. 1099 -Não. A nacionalização do canal estava prevista para 1956. Há dois anos que a planeávamos. Foi até melhor que as coisas se proporcionassem desta maneira. Se vivemos 5.000 anos sem a barragem, poderemos ainda viver mais 5 ou 10: e a nacionalização do canal trará, futuramente, a possibilidade da construção da barragem. E Nasser continuou: -Há muito tempo os países imperialistas orientam uma propaganda nefasta ao Egipto, fazendo crer ao mundo que nós não estaríamos em condições de ordem técnica e econômica para conduzir os nossos próprios negócios, nomeadamente os do canal. Desta maneira a Companhia Suez preparava-se para quando findasse o contrato, arrogar os direitos de renoválo, na pseudoconvicção de que seriamos incapazes de conduzir navios através do Suez. Como vê, o canal continua aberto e estamos em condições de satisfazer todas as exigências. - Que pensa em fazer, se os Estados Unidos tomarem medidas de represália com o algodão? - Eles não podem fazer muito contra nós. Só produzimos cinco por cento do algodão mundial e qualquer represália tomada nesse sentido poderia afectar todos os países que o produzem. Talvez a há cinco anos atrás, quando todo nosso mercado se resumia a Inglaterra, a ideia pudesse tomar forma e assustar-nos. Mas hoje exportamos algodão para oitenta países diferentes e, além do mais, o algodão egípcio é o melhor do Mundo. -Teme as medidas que as potencias ocidentais possam tomar em consequência da nacionalização? - Não. Entre nós e o Irão existe uma grande diferença: é que a nossa economia não se baseia nos lucros do canal. Que eles boicotem ou que dêem a volta ao Cabo, pouco nos afetará. Nasser que tem todos os pormenores habilmente estudados, esqueceu talvez de um detalhe. Se sua força reside no Egipto, reside também em grande maioria na Liga Árabe. O ministro francês, na sua ida para Nova Iorque, parou alguns dias em Caracas para entrar em negociações sobre a compra do petróleo. Afinal de contas, ir busca-lo à América ou dar a Volta ao Cabo resultam distancias idênticas. Quaisquer produtos que naveguem no canal não encontrarão mercados na Europa: ninguém ousaria romper a amizade da Liga Atlântica. E a quem a Arábia Saudita vai vender todo o petróleo? Resignar-se-ão todos os países das imediações a ver a sua economia enterrada no canal? Ainda durante uma hora, Nasser falou-me do sistema de cooperativismo, que, de futuro, orientará os destinos do país. E acrescentou: - A economia do nosso país baseia-se na agricultura. Há oito milhões de lavradores no Egipto. Estamos agora a planejar a união geral das cooperativas, de modo a dar-lhes toda a assistência econômica e técnica possível. E insistiu: -Temos um caso bem recente da aplicação directa do nosso regime a um proprietário possuidor de 30.000 hectares de terra f