Paulo Pontes:
A Arte das Coisas Sabidas
Paulo Vieira
Trabalho apresentado à Escola
de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Mestre,
sob a orientação do
Prof. Dr. Sábato Antônio Magaldi
São Paulo
1989
Este trabalho só foi possível graças a algumas ajudas valiosas, às quais expressamos nossos
agradecimentos:
À Capes, através do programa PICD, que concedeu-nos uma bolsa de estudo com a qual pudemos adquirir, em diversas hemerotecas e jornais, o material indispensável à nossa pesquisa.
A Carmelinda Guimarães, que cedeu-nos uma cópia de Medeia, de Vianinha.
A Paulo Dourado, da UFBA, que localizou e enviou-nos cópia do texto Check-up.
A Débora, pela infinita simpatia.
A Jussara, por tudo que acrescentou e por tudo que lhe subtraí nos longos meses de nossa solidão.
Ao Prof. Dr. Sábato Antônio Magaldi, por quem tivemos a felicidade de ser orientado, sempre
gentil e compreensivo, o nosso mais sincero agradecimento.
Finalmente, ao Prof. Dr. Décio de Almeida Prado e o Prof. Dr. Fausto Fuser, que concedeu-nos
a honra da arguição e aprovação deste trabalho.
Conteúdo
Apresentação ............................................................................................................................................. 4
PRIMEIRA PARTE ................................................................................................................................. 7
RODÍZIO OU O EXERCÍCIO DA PALAVRA .................................................................................... 7
1. Cena Aberta....................................................................................................................................... 8
2. Rodízio ............................................................................................................................................. 12
3. A Palavra que Gera ........................................................................................................................ 21
4. O Encontro com Vianinha.............................................................................................................. 22
5. O Fio da História............................................................................................................................. 23
6. Uma outra republiqueta sul-americana ........................................................................................ 26
7. As Intenções do Opinião ................................................................................................................. 32
8. A volta ao lar ................................................................................................................................... 34
SEGUNDA PARTE ................................................................................................................................ 37
PARAÍ-BÊ-A-BÁ OU A LEITURA DE UM DESTINO .................................................................... 37
1. Por que um espetáculo sobre a Paraíba? ...................................................................................... 39
2. O Texto............................................................................................................................................. 41
3. O Palco da Crise .............................................................................................................................. 49
4. A crise no Palco ............................................................................................................................... 52
5. A volta ao Rio .................................................................................................................................. 58
TERCEIRA PARTE ............................................................................................................................... 60
A TELEVISÃO OU A MASSA COMO MEIO.................................................................................... 60
1. Bibi - Série Especial ........................................................................................................................ 66
QUARTA PARTE................................................................................................................................... 95
TEATRO OU AS COISAS SABIDAS .................................................................................................. 95
1. Teatro ............................................................................................................................................... 96
2. Um Edifício Chamado 200 ............................................................................................................. 97
3. Check-up ........................................................................................................................................ 110
4. Dr. Fausto da Silva........................................................................................................................ 121
5. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo ........................................................................... 130
6. Gota D'água ................................................................................................................................... 138
O Desfecho da Festa ...................................................................................................................... 173
Cronologia ..................................................................................................................................... 177
Bibliografia .................................................................................................................................... 182
Apresentação
Paulo Pontes foi um homem que teve, em relação à arte, um ponto de vista socialmente
utilitário. A arte para ele (o teatro em particular), antes de ser veículo de fruição estética, era um
meio de transmitir conhecimento, discutir problemas comuns de um povo, de uma região, de
um grupo.
Mas esse caráter talvez pedagógico da arte não era, de maneira alguma, exclusividade de
Paulo Pontes. Ao contrário, pertencia à sua geração cujo talento para a política foi inegável.
Foi a sua geração que criou os CPCs e, através dos quais, um teatro rápido de agitação e
propaganda; foi a sua geração que aprendeu a inscrever no palco a reflexão como ponto determinante do espetáculo. O palco, com ela, perde a aura de um lugar onde o espetáculo é plenitude, e ganha o status de fomentador de uma consciência esquerdizante, politicamente engajada
num projeto nacional e popular, onde, partindo-se de uma idéia de povo e sua cultura, tenta-se
repensar um país e sua história.
Foi sua geração que viu a vitória das forças conservadoras em 1964, num momento que
parecia - ao menos para eles - que o país caminhava para um salto qualitativo em termos sociais; foi ela que arcou com o ônus da derrota das forças populares; que viu os seus projetos ruírem como cartas de um jogo trapaceado; foi ela que enfrentou as forças repressivas, e desesperou-se nos anos duros do regime autoritário.
Foi sua geração, enfim, que tentou entender nosso país.
Mas, para entender é preciso raciocinar. Daí porque a cena cede lugar à razão. Daí porque grupos como o Arena, como o Opinião, formularem projetos onde o palco repensaria a história política brasileira.
Teatro ou pedagogia? Espetáculo ou sociologia? A cena, como lugar das coisas sabidas,
ou como escura aventura sobre o insólito? Sobre uma ou outra coisa construiu-se a cena brasileira nos anos difíceis da repressão.
A formação profissional de Paulo Pontes era de comunicador. Dominava a linguagem da
comunicação de massa e, por isso, entendia que o público gosta do que conhece.
Paulo Pontes não concordava com um espetáculo cujo resultado fosse um mergulho no
imaginário, nas neuroses ou fantasias do artista. O seu objetivo, como se fora um pedagogo, era
instruir; o seu resultado, como se fora cientista, era esclarecer; o seu meio, para isso, era falar
sobre as coisas sabidas pelo público, e transformá-las em espetáculo.
Um dia ele disse que é preciso ver a história como continuidade. E porque ele tinha entendimento da história como resultante dos conflitos sociais, entendeu que o melhor espetáculo,
é o espetáculo; que o melhor teatro é o que atrai público; que o melhor público é o que está no
teatro. Política e estética misturavam-se em seu pensamento: com uma, ele apoiava o seu racionalismo; com outra, pensava o teatro pelo gosto do público. As coisas sabidas, mas retrabalhadas de modo que o saldo fosse positivo, para o teatro e para o público.
Somar, era esse o seu desejo; nunca perder a perspectiva, era essa a sua visão. E nos
momentos que o artista de teatro cedeu ao desespero e, impotente contra o regime institucionalizado, passou a agredir ao público - embalado por uma vaga idéia de vanguarda - foi a sua voz,
entre outras, que se fez ouvir: teatro não pode prescindir de público. Apontou caminhos e cumpriu os caminhos que apontou.
Falar de Paulo Pontes é uma maneira de falar de uma geração e de seu modo peculiar de
pensar o teatro brasileiro; é falar de um tempo ainda tão próximo, mas que parece tão distante; é
fazer um esforço para, como sempre lutou Paulo Pontes, não se perder a perspectiva da história.
O desenvolvimento deste trabalho parte de dois planos fundamentais: o primeiro, a biografia de
Paulo Pontes; o segundo, a história como pano de fundo, delineando um cenário onde a pessoa
de Paulo Pontes se postar em destaque. No cruzamento da biografia com a história, encontraremos a obra de Paulo Pontes, e aí nos deteremos, objetivando extrair dela todas as informações
que digam respeito a ele e a seu pensamento sobre a história, a estética e o momento político
em que o país vivia, revelando assim, a unidade de sua obra, como também somando num
mesmo universo de significações, estética e ideologia, como resultante da história.
Dois Pontos a ressaltar: nos prefácios que Paulo Pontes escrevia apresentando a base teórica de cada obra, está contido o seu pensamento. Todos os prefácios acompanham o estudo
que fizemos dos seus textos para teatro. São partes importantes para a compreensão da obra e
do problema geral em que cada uma está situada.
Segundo: uma parte dos textos que apresentaremos não está editada ou é de difícil acesso. Por isso, para que se possa usufruir melhor a obra de Paulo Pontes, resolvemos transcrever
cada texto citado, inclusive para pôr ao critério do leitor textos que nunca foram reunidos em
estudo.
Por fim, Paulo Pontes escreveu muito em companhia de outras pessoas. Por isso, para
que a essência de seu pensamento não se perdesse, limitamo-nos a apresentar apenas as obras
que escreveu individualmente, ou em companhia de uma única pessoa, em teatro e televisão.
PRIMEIRA PARTE
RODÍZIO OU O EXERCÍCIO DA PALAVRA
"Onde começa a história de um povo?
Em que túmulos, em que tumultos está ela oculta? O
que está exposto à luz do sol, o que é subterrâneo?
Qual a verdade dos textos didáticos? Qual o valor da
cultura acadêmica, universitária, oficial? Qual a história mal contada, perdida, obscurecida? Quem faz a
história?"
Marcos Faerman
1. Cena Aberta
"Meus amigos, boa noite. O negócio é o seguinte..."
Conta o professor Elpídio Navarro que foi assim que começou a carreira teatral do garoto Vicente de Paula de Holanda Pontes, num dia qualquer do ano de 1956. Naquele ano, o Teatro do Estudante da Paraíba estreara a peça Beata Maria do Egito, de Raquel de Queiroz e, como era de praxe na estréia, alguém, quer do elenco, quer convidado, deveria fazer um discurso
de apresentação do espetáculo para a platéia. Naquele dia, o velho teatro Santa Roza, em João
Pessoa, estava lotado. Nas coxias o elenco discutia quem, dentre eles, deveria fazer o discurso
de apresentação. O certo é que, tímidos, ninguém se dispunha. Foi quando apareceu o garoto
magricela insistindo para que fosse ele, não outro, o orador. O professor Elpídio Navarro, na
época diretor do Teatro do Estudante da Paraíba, diz que aquele rapazinho oferecido, vivia bisbilhotando em volta do grupo teatral e era considerado um chato, metediço ou, como se diz na
Paraíba, intrometido. Vê-se que o garoto não era bem visto. Foi quando, por pura sacanagem
juvenil, resolveram, um pouco também para livrar-se daquele chato de galocha, metê-lo no fogo: já que ele insistia tanto, concederam ao magricela a graça de apresentar ao público o espetáculo que ora estreava. O moço, decidido, atravessou a coxia e, no palco, fez a sua oração. O que
o pessoal do Teatro do Estudante da Paraíba não esperava era que, dez minutos depois, a platéia
aplaudisse o garoto desajeitado com tão grande entusiasmo que, eles próprios, antes desconfiados, fizessem fila nas coxias para abraçar aquele fenômeno de magreza e intromissão.
Aquele fenômeno de magreza intromissão foi também um fenômeno de capacidade de
resistência, física e cultural de alguém que, nascido literalmente pobre, soube enfrentar os desafios de uma vida interioranamente medíocre e transformar a falta de perspectiva num projeto de
vida. Não é à toa que ele, Paulo Pontes, considerava que um povo como o nosso, que faz da
miséria samba, seria um grande povo, se pudesse dispor de um pouco de feijão no fundo do
prato. Paulo Pontes, com o pouco que tinha, soube semear em seu espírito o fruto de uma cultura sólida, plena de um saber que ele captou no meio da gente humilde: o entender a vida como
um eterno exercício de sobrevivência. Sem metafísica. Concreta. Dura como a realidade de alguém que não dispõe de outra coisa a não ser a sua capacidade de trabalho para sobreviver. Difícil como a tarefa que se impôs de instruir-se sem poder contar com ninguém.
Paulo Pontes, ao mesmo tempo em que lia a vida nos papos, nas rodas de calçadas, nas
ruas, na poética determinista da gente humilde, lia também o outro lado, o que estava escrito
nos livros guardados na biblioteca pública de João Pessoa, aquele mundo mágico e distante,
mágico e transcendente, como é o mundo contido nas linhas de um livro.
Paulo Pontes, desde pequeno, era chegado à leitura do que lhe caísse nas mãos. Talvez o
corpo mignon, a saúde pequena, os pés tortos de sua infância, não o ajudassem suficiente quando garoto, que até gostaria de provar a destreza com a bola, a resistência de um corpo são que
corre. Então, restavam-lhe os livros, a leitura, o refúgio de quem é incapaz de enfrentar, no
músculo, o desafio da existência.
João Pontes, seu pai, no livro que escreveu biografando a vida de Paulo Pontes, disse
que Paulo, quando criança, era um garoto triste, introvertido, um tanto desligado do mundo e,
às vezes, até esquecido; mas, quando adolescente, passou a ser extrovertido, comunicativo, adquiriu inclusive uma enorme capacidade de relacionamento social1. Isto parece absolutamente
verdadeiro, se comparado com o depoimento de pessoas que conviveram com Paulo Pontes
quando adolescente e quando adulto.
Estas pequenas coisas parecem não significar quando se trata de estudar um autor. Mas a
obra de um homem é como o seu caráter, que se constrói pela acumulação dos acidentes de percurso. Os detalhes se somam num conjunto e vão determinar o perfil do autor e o de sua obra.
Paulo Pontes, em criança, era tímido. Sobre os pés tortos via o mundo pela moldura de uma
janela, e o quadro que via era a paisagem da pobreza sobre a Serra da Borborema, no interior da
Paraíba, na cidade de Campina Grande, onde nascera, no dia 8 de novembro de 1940. Filho de
João Pontes Barbosa, soldado da então Força Policial da Paraíba, e de Laís Carvalho de Holanda, enfermeira. Por força de necessidade, no ano de 1941/2, a família transferiu-se para a cidade
de Mamanguape, na Paraíba e, posteriormente, foi morar em João Pessoa onde Paulo Pontes
cresceu e descobriu o mundo. O mundo real, vivido nas ruas da capital, e o mundo virtual, vivido sobre as tábuas do palco do Santa Roza. Antes, a família morara um tempo na cidade de Rio
Tinto, próxima a Mamanguape, onde o pai conseguira emprego para si e sua mulher, no hospital da única fábrica existente no lugar. João Pontes como enfermeiro, desempenhando serviço
externo. Dona Laís, na sala de partos2.
1
2
PONTES, João. Eu e Meu Filho Paulo Pontes. Rio de Janeiro: Livraria Eu e Você, 1982, P. 47
Idem, ibidem, p. 43.
Paulo Pontes já residindo em João Pessoa, ainda pequeno, sofrera a primeira intervenção
cirúrgica de sua vida. Nos pés. O médico, Dr. Napoleão Laureano, pelo que conta seu pai, em
vista da pobreza da família, deixou de cobrar os honorários referentes à operação. Paulo Pontes
estava livre dos pés tortos, embora com um pequeno defeito no caminhar3.
Jório Machado, professor da Universidade Federal da Paraíba, foi amigo de copo e mesa
de Paulo Pontes. Jório era também proprietário do semanário de oposição na Paraíba, o jornal O
Momento. Quando Paulo Pontes morreu, Jório dedicou um número especial do seu jornal à
memória do amigo desaparecido. No artigo que escreveu para esse número, ele conta como
Paulo virou notícia de jornal aos onze anos de idade. Segundo ele, Paulo, já desde os nove anos,
leitor de "grossos volumes" na Biblioteca do Estado, encontrou num jornal que apanhou entre
papéis velhos na rua da Areia, a notícia da campanha levantada pelo Dr. Napoleão Laureano
contra o câncer, sendo ele próprio, Dr. Napoleão Laureano, vítima da doença, e como tal, conclamava o povo para um combate sistemático ao câncer. Paulo Pontes, ao ler a notícia, comovido pela luta de um homem condenado e que o livrou dos pés tortos, tomou do lápis e papel e
escreveu uma carta ao Diário Carioca exortando a população para que integrasse a cruzada contra a doença empreendida pelo médico paraibano4. Mas João Pontes diz que a idéia da carta
partiu dele, João Pontes5, que, naquele ano, por conta da sua profissão, servia no Rio de Janeiro,
enquanto a família permanecia em João Pessoa. Chamado às pressas à Paraíba por motivo de
doença de seu outro filho, tivera a idéia de agradecer, publicamente, ao Dr. Napoleão Laureano,
incentivando o filho a escrever a carta que seria publicada no jornal carioca, onde a entregou. A
carta teria sido publicada juntamente com duas fotos de Paulo Pontes, antes e depois da operação. João Pontes diz que a carta começava com a seguinte frase: "Dizem que sou uma criança
inteligente..."
No ano de 1956, antes ou depois da proeza na estréia da peça Beata Maria do Egito, não
importa, João Pontes teria matriculado Paulo no Colégio Diocesano de Patos, sertão da Paraíba,
na 3a série ginasial, em regime de internato, juntamente com Ipojuca, seu irmão. Eles não qui-
3
Idem, ibidem, p. 50.
4
MACHADO, Jório. "Da rua da Areia a ribalta do Rio". João Pessoa: O Momento, 31.12.76.
5
Op. cit. p. 53.
seram ficar. Em João Pessoa, Paulo estudou como interno no Instituto Alice Azevedo, no grupo
Thomaz Mindelo e no Colégio Solon de Lucena6.
Jório Machado afirma que Paulo, ainda garoto e dono de um raciocínio ágil e de uma
argumentação brilhante, circulava entre os grupos teatrais da época, onde ia impondo a sua presença e a paixão pelo teatro. Foi, segundo Jório, sem saber precisar a data, depois de 1956 que
Paulo Pontes fez o seu único papel como ator, numa peça de Hermilo Borba Filho, Apenas
Uma Cadeira Vazia7.
Mas o debate cultural na província, sobretudo para quem tem ambições mais ousadas,
logo se esgota. Jório diz que Paulo, por volta dos vinte anos (1960), era dono de inegável maturidade intelectual, e, por causa disso, adotava um certo ceticismo com relação aos fatos e à vida
numa cidade pequena. João Pontes diz que em 1959, separado da família e morando em Natal,
onde era 1º Sargento do 16ø Regimento de Infantaria, recebeu a visita de Paulo Pontes, que lhe
pedia ajuda para morar no Rio de Janeiro. Conta João Pontes que com enxoval modesto e pouco
dinheiro, Paulo embarcou quase à meia-noite no Aeroporto Parnamirim, num avião da FAB, em
direção ao Rio de Janeiro. Mas, continua, num dia de 1962, Paulo apareceu em sua casa, vindo
do Rio, dizendo que a sua situação não era a desejada, e que pretendia voltar ao Rio, "em futuro
próximo"8.
A vida de um homem se constrói também por mitos.
O espaço que sobra entre os mitos, os fatos e a memória, para a história, é um espaço de
ficção, onde a arte atua refazendo o tempo perdido. Depois daquela noite de estréia da peça
montada pelo Teatro do Estudante, em que Paulo Pontes, garoto de 16 anos de idade, ganhou a
admiração dos atores, sobra um espaço que se segue, e que, por falta de suficiente informação
só poderia ser preenchido pela ficção. Não é o caso. Mas, seguindo os passos cronológicos de
Paulo Pontes, em busca dos seus sinais, como um caçador decifrando as marcas da trilha, vamos dar um salto de seis anos na sua história e encontrá-lo em 1962, trabalhando na Rádio Tabajara da Paraíba, onde fazia locução, escrevia e apresentava um programa que obtinha grande
audiência no horário do meio-dia.
6
PONTES, João. Op. cit. p. 66.
7
MACHADO, Jório. Op. cit.
8
PONTES, João. Op. cit. p. 69.
2. Rodízio
Era este o nome do programa que Paulo Pontes escrevia e apresentava.
Mary Ventura dedicou a Paulo Pontes, depois de sua morte, uma página no Jornal do
Brasil, em que reproduzia trechos de entrevistas de Paulo. A certa altura do artigo, Mary abre
aspas em seu texto e cita a fala de Paulo sobre o programa Rodízio: "Era uma comediazinha de
costumes que ia ao ar de segunda a sábado ao meio-dia. As personagens ficaram conhecidas na
cidade inteira. Falavam sobre o custo de vida, o preço dos remédios, problema de educação dos
filhos. Eu colocava tudo isso no ar, brincando..."9.
Porém, mais completo do que o texto acima, é o do jornal Última Hora cuja página dedicada a Paulo Pontes trazia o título geral de "Cai o Pano". No artigo "Paulinho, por Paulo Pontes", o Última Hora reproduziu artigo de Paulo Pontes, onde ele não só se referia ao seu programa Rodízio, como ainda falava da influência que recebera, quer dos radialistas que admirava, quer dos autores que amava, deixando transparecer uma eclética influência de autores, a
descoberta das possibilidades do texto, a mecânica da linguagem narrativa: "A minha formação
profissional é muito esquisita. A minha escola de teatro foi o rádio. Eu via aqueles programas
que se faziam aqui no Rio, numa época muito criadora do rádio brasileiro, a ponto de terem
inventado programas de humorismo que eu não conheço em lugar algum do mundo. Haroldo
Barbosa, Max Nunes, Sérgio Porto, Chico Anísio, Antônio Maria. Eu ouvia essa gente toda.
Havia personagens brasileiras, a favela, o subúrbio, o Nordeste, o caipira, o interior de Minas, e
com uma agilidade narrativa encantadora. Eu era vidrado nesse troço e comecei a reproduzir a
experiência dessa gente com o pessoal lá na Paraíba. Ao mesmo tempo eu lia muito Shakespeare, Bernard Shaw, Ibsen, Tchecov, e me lembro que essa leitura e meu trabalho em rádio tinham
como centro um amor muito grande pelo jogo narrativo. Eu lia Shakespeare dando berro a cada
descoberta narrativa"10.
9
VENTURA, Mary. "Paulo Pontes, as coisas sabidas e não conquistadas". Jornal do Brasil, 28 de dezembro de
1976.
10
"PAULINHO, por Paulo Pontes". Rio de Janeiro: Jornal Última Hora, 28 de dezembro de 1976.
O Brasil é um país de muitos países, já foi dito isso tantas vezes. E hoje, cada vez mais,
a despeito do grande avanço tecnológico que representou a televisão nas comunicações, o Brasil
tornou-se um país de dois países: o do sudeste, rico (apesar dos pesares) e gerador de imagens,
e o restante do país, pobre (sobretudo norte e nordeste) e receptor da imagem gerada no sudeste.
A televisão, e aqui não vai nenhum preconceito a priori, destruiu a imagem que o Brasil poderia
ter de si, e fez das areias de Ipanema o espelho onde o "outro" país busca em vão a sua imagem.
Em 1962, ainda não era assim. O rádio permitia, como sempre permitiu, que uma emissora numa cidade produzisse programas para aquela cidade. As rádios locais chegavam muitas vezes
ao ponto de produzirem suas rádio-novelas, como foi o caso da Rádio Tabajara da Paraíba, em
João Pessoa que, na década de cinquenta, formou uma significativa geração de atores que, por
muitos anos, tocou para a frente a arte de fazer teatro.
Praticamente, sem outro meio de comunicação para inibi-lo na concorrência, o rádio viveu no Brasil a sua época de ouro, naquela década. Os cantores do rádio, na Rádio Nacional,
mobilizavam multidões de fãs para os programas de auditório. E num país como o nosso, onde
o analfabetismo é menos do que uma fatalidade histórica e muito mais um projeto político das
classes dominantes, um país que por isso mesmo pouco podia (e pode) ler jornais, num país
assim, o rádio acabava por ser o grande veículo de comunicação de massas, mais do que a televisão, ainda no seu início, mais do que a imprensa escrita, por conta do óbvio analfabetismo.
Walter Benjamin, no artigo "Observações básicas sobre uma radio-peça", afirma que antes do aparecimento do rádio, quase não se conheciam os meios de divulgação que fossem propriamente populares ou correspondessem a finalidades de educação popular11. Nem mesmo o
teatro, que deve somar um número razoável de pessoas num mesmo espaço, nem mesmo o cinema, já tão popular em 1932, ano em que Walter Benjamin escreveu o seu artigo, conseguiam
concorrer em popularidade com o rádio, uma engenhoca que, na sala da sua casa, girava-se o
botão e ele o punha em contacto direto com o mundo. O rádio veio para revolucionar a comunicação, e, consequentemente, intermediar o saber popularizando o conhecimento. É Walter Benjamin quem diz: "Existia o livro, existia a palestra, existia o periódico: todos, no entanto, eram
formas de comunicação que não se distinguiam em nada daquelas, através das quais a pesquisa
científica transmitia seus progressos para os especialistas. A popularização se realizava, portanto, dentro das mesmas formas que a apresentação científica, e por isso estava privada de originalidade metodológica. Bastava-lhe revestir o conteúdo de certas áreas do saber de uma forma
11
BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 85.
mais ou menos atraente, talvez também procurar elementos de motivação na experiência cotidiana, no bom-senso das pessoas: porém, o saber que ela oferecia era sempre de segunda mão. A
popularização era uma técnica subordinada, o que ficou comprovado pela sua avaliação pública"12.
O rádio, portanto, abriu caminho para a popularização do conhecimento. Mas a divulgação do saber tinha as suas leis próprias, diferentes em tudo das leis de transmissão de conhecimento científico ou acadêmico. Era preciso descobrir essas leis de popularização do rádio, muito mais abrangentes, mas também muito mais intensas, segundo Walter Benjamin. Isso exigia a
reorganização do material comunicativo, do ponto de vista da popularidade, j que a popularidade, no caso do rádio, orienta o saber em direção ao público, mas também orienta o público
em direção ao saber.
Para Walter Benjamin, o rádio, antes de ser um instrumento de comunicação de massa, é
instrumento de divulgação do conhecimento humano. Sua função seria, antes de mais nada,
educativa.
Paulo Pontes, ainda muito jovem, tinha descoberto o poder comunicativo do rádio, e
como homem essencialmente comunicante que era, ouvia o rádio e ouvia os seus ídolos, buscando apreender a especificidade de sua linguagem. Era no rádio, como posteriormente seria no
teatro e na televisão, um autodidata.
Então, qual é a linguagem do rádio? A resposta a esta pergunta pode trazer elementos
que melhor esclareçam o poder comunicativo do rádio e a linguagem que Paulo Pontes aprendeu a desenvolver no início da sua vida profissional.
É preciso saber que o rádio busca o que há de mais humanamente comum entre as pessoas. O fator determinante para a comunicação através do rádio é, em primeiro lugar, a necessidade das massas. Mas, apesar disso, nada autoriza a pensar-se que o rádio seja instrumento de
comunicação coletiva, a exemplo do cinema que transmite a mesma imagem para todas as pessoas que o assistem. O material comunicativo do rádio se compõe de som (ruído), de músicas e
de palavras. Os ruídos provocados pela sonoplastia, no caso das radio-peças, têm o objetivo de
fazer o ouvinte imaginar a imagem que ele não vê. Nesse sentido, o rádio apela para a capacidade de imaginação do ouvinte, estabelecendo com ele uma comunicação direta e individual.
Mas a força maior da comunicação através do rádio é a palavra, que vai direto ao entendimento do homem que escuta a voz do locutor do outro lado, que lado?, o lado de lá. "A pala12
Idem, ibidem, p. 85.
vra é, em si, a expressão mais imediata e primária do espírito em sua esfera consciente. É a ponte entre o espiritual e o material, entre o sujeito do conhecimento, "eu", e o mundo que o circunda. Guiada pela vontade, é o estágio criativo prévio, que leva a força da imaginação para as
formas materiais de expressão". Quem escreveu isto foi Richard Kolb, na Alemanha, no ano de
1931, no artigo intitulado "O desenvolvimento da peça radiofônica artística a partir da essência
do rádio"13. E mais: "A palavra - assim como o ruído - só pode evocar a representação da realidade se esta for bem conhecida pelo ouvinte por tê-la visto antes. Por isso, a comicidade causada pela situação exclui-se a si mesma, pois consiste, em geral, numa situação externa surpreendente, isto é, inesperada, que quase sempre vai de encontro ao desenrolar normal da ação"14.
Paulo Pontes conheceu o rádio em seu melhor momento no Brasil, e ouvia com admiração os programas de humor que se fazia. Ouvia e, curioso, tentava apreender o mecanismo dessa linguagem. Esse tipo de linguagem, segundo Richard Kolb, é, sobretudo, a palavra que, saída
de uma caixa receptora, adquire um poder de convencimento tamanho, a ponto de, como aconteceu em 1938, Orson Welles parar, e mais do que isso, pôr em pânico a cidade de Nova York
com a radiofonização de A Guerra dos Mundos, de H. G. Welles. Palavra e convencimento.
Palavra e realidade. Palavra e comédia. A palavra palavra é um dos fundamentos b sicos do
comportamento artístico de Paulo Pontes, sobretudo nos fins dos anos 60, quando ele, juntamente com Vianinha, combatendo a vanguarda de 68 e a sua estética agressiva, faz a defesa da
palavra, a palavra como antídoto contra o desespero pelo fechamento de um regime político já
em si duro.
E não deveria ser difícil para Paulo Pontes, garoto ainda, a julgar-se pelo episódio com o
grupo de Teatro do Estudante, deixar-se encantar pelo rádio e pela possibilidade de, nele, usar a
sua linguagem, a palavra.
Aceitando a versão de seu pai, João Pontes15, Paulo Pontes, em 1959, teria ido morar no
Rio de Janeiro. Em 1962 estava de volta à Paraíba. É outra vez Jório Machado16 quem diz que
13
Apud George Bernard Sperber. Introdução à peça radiofônica. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária,
1980, p. 114.
14
Idem, ibidem, p. 115.
15
PONTES, João. Op. cit. p. 67.
16
MACHADO, Jório. Op. cit.
em 1962 a Rádio Tabajara da Paraíba era dirigida por um grupo de intelectuais e, por causa
disso, faziam-se programas de alto nível cultural e artístico. Paulo Pontes, então com 22 anos,
voltando do Rio de Janeiro, onde ouviu e curtiu os seus ídolos no rádio, fora convidado para
participar da equipe de criação da Rádio Tabajara onde, como já foi dito, criou Rodízio, o programa que monopolizou de segunda a sábado o horário do meio-dia.
Como era esse programa? Restou um texto que alguém, em João Pessoa, fez a gentileza
de ceder-nos. Um texto, quando se trata de rádio, não significa muita coisa porque, nesse caso,
é para ser ouvido. Mas esse é muito curioso, não apenas por fornecer dados biográficos pelo
próprio Paulo Pontes, como também por antecipar (em termos) a linguagem teatral que ele mais
tarde desenvolverá.
Em Rodízio é possível perceber um texto inteligente, embora nos pareça imaturo ainda,
o que não é de estranhar-se num autor iniciante, apesar de já prenunciar grande talento para esse
tipo de escrita, rápida e engraçada. Aqui, Paulo Pontes mistura piadas autobiográficas, histórias
populares, o seu ponto de vista em relação ao rádio, ao jornalismo artesanal da província e, ainda, a sua preocupação com os movimentos sociais.
O texto não tem o que se poderia chamar de "espinha dorsal", ou seja, a evolução, encadeada, de uma idéia, de uma personagem. A sua semelhança é de um sketch, onde piada lembra
piada que se conta para os amigos em roda de bar. A abertura do texto é uma variação em torno
da palavra graça:
"LOCUTOR - Os autores mais célebres do mundo têm utilizado a s tira para fazer graça com os
outros, de uma maneira que se pode considerar gratuita. Instituições sérias já foram derrubadas
por obra e... graça... de talentos voltados exclusivamente para a pândega. Sendo eu uma vocação irrecuperável para a gracinha (não podendo conter, numa oportunidade como esta a
des...graça dessa minha irresponsabilidade), dei um tom meio galhofeiro a este programa, para
que Rodízio não fique uma série sem graça. Como seria leviano e temerário fazer graça com os
outros nessa audição, faço graça comigo mesmo. Devo advertir, ainda, que esse programa apesar do conteúdo sério, foi escrito... de graça. E se eu estou trabalhando aqui sem ganhar dinheiro, é graças a minha amizade com o produtor do Rodízio. Minha graça: Paulo Pontes.
TÉCNICA - TRANSIÇÃO.
SPEAK - Como o programa é de graça, o autor se achou com o direito de fazer autobiografia"17.
A partir daí, o texto desenvolve-se baseado num trocadilho popular, uma daquelas jóias
da filosofia de bodega, tão comum de ouvir-se nos botequins, nas esquinas, nos papos do dia-adia, verdadeiros axiomas etílicos, a exemplo de "A vida começa aos quarenta", ou "O mundo é
dos vivos".
A partir da primeira frase ("A vida começa aos quarenta"), Paulo Pontes desenvolve o
seu texto "autobiogr fico". Entre trocadilhos, elastecendo a idéia da frase popular, chega à conclusão de que, se a vida começa aos quarenta, então, para ele, faltavam dezoito anos para começar a viver...
"LOCUTOR - E isso se eu acertar na bolsa de valores, for eleito a qualquer coisa, arranjar emprego no Banco do..., herdar uma grande propriedade ou, em última hipótese, conseguir um emprego de Oficial de Gabinete. Pra começar, serve".
Um texto que joga com a ideologia subserviente da classe média, com frases de efeito
tornadas verdades dogmáticas, que mal disfarçam o seu conteúdo conservador e, subrepticiamente, incrustam no espírito do homem comum a ilusão, tornada certeza, de que "tempo é dinheiro", de que "o trabalho engrandece o homem", de que "Deus ajuda a quem trabalha", enfim,
uma coleção de anexins da qual é rica a prosódia popular e, em nível superestrutural, não passam de sofismas que legitimam, em idéia, a preservação do status quo da classe dominante18.
Desenvolvendo o seu texto por entre esse emaranhado de frases de efeito, Paulo Pontes
vai brincando com essas frases, conduzindo o ouvinte a pensar que, se a vida começa aos quarenta, então não vai começar nunca, porque as oportunidades estão fechadas e, por isso mesmo,
dificilmente alguém poderia "vencer na vida". Todavia, não deixa de ser uma reflexão de um
jovem de 22 anos, buscando o seu espaço profissional. Mas, um anexim leva a outro, assim
como um papo leva a outro:
17
RODÍZIO. Texto em apostila. Arquivo do autor. Como não se trata de texto editado, não daremos referência de
página ao fazermos as citações.
18
Paulo Pontes sempre teve grande admiração pelas comédias de costumes. Vale lembrar, sem querer vincular
diretamente uma coisa a outra, que Artur Azevedo tem uma peça, Amor por Anexins, em que a personagem,
Isaías, tem como mania falar por frases feitas.
"LOCUTOR - Mas os habitantes sabidos deste planeta - os que constroem alegre e sensualmente a sua vitalidade, o seu bem-estar, às custas da desgraça do próximo - fundaram outra
escola filosófica das mais atuantes nos dias de hoje, que só aparentemente contraria a primeira:
VOZ - (JOVEM) O mundo é dos vivos...
VOZ 2 - (GAIATO) E dos muitos vivos!"
De piada em piada, Paulo Pontes vai introduzindo, no texto, a sua visão material do
mundo, o mundo concreto, as suas vicissitudes, e a vida material, orgânica, com seus carbonos,
seus carboidratos, cedendo lugar ao que seria metafísico, espiritual, numa leitura abstrata da
vida. Nesse ponto, vamos encontrar outro elemento que Paulo Pontes desenvolver , mais tarde,
em suas melhores peças, mais maduro, como homem e como escritor, o tema da subsistência,
em obras como Para-í-bê-a-bá ou Um Edifício Chamado 200.
"LOCUTOR - Certo. É a voz do além. Esta é a voz de qualquer um dos milhões que não estão
englobados nas duas correntes filosóficas mencionadas. Quer ver uma coisa? Eu vou explicar
melhor. â doutor, o que significa viver?
DOUTOR - Nosso organismo é uma m quina. Como tal, necessita de combustível para funcionar. Os combustíveis do nosso organismo são os alimentos: vitaminas, proteínas, sais minerais,
que podem ser encontrados no leite, ovos, carne e verdura...
LOCUTOR - Chega. O senhor, seu advogado. Para o senhor, o que é que significa viver?
ADVOGADO – É pertencer a uma sociedade cujas leis garantam igual padrão de dignidade
humana a todos os seus membros.
LOCUTOR - Dra. Assistente Social, o que é que a senhora entende por viver?
ASSISTENTE - No meu entender, é todo mundo ter uma casa, com privadinha, água encanada
e os filhinhos na escola...
LOCUTOR - Basta. Depois dessas três afirmativas - a do médico, a do advogado e a da assistente social - quando nós quisermos saber em que ramo trabalha um operário, por exemplo,
deveremos fazer a seguinte pergunta:
VOZ - Escuta, velho, você morre de quê?"
Já tinha a base do artista engajado que ele era. Mas o texto segue com piadas curtas, que
levam de um assunto a outro com a tranquilidade de quem conversa uma conversa à-toa. E como esse é um texto "autobiográfico", Paulo Pontes, curiosamente, conta a sua participação co-
mo ator na peça de Hermilo Borba Filho, confirmando o que Jório Machado dissera no tópico
anterior:
"LOCUTOR - /.../ Cheio de gram tica - talvez o único sintoma do bom car ter da minha personalidade - tentei o teatro. A minha estréia no palco foi na peça Apenas uma cadeira vazia, de
Hermilo Borba Filho. Eu fazia uma ponta, anunciando a morte de duas velhinhas que moravam
ao lado. Era esta a minha fala. Entrava no palco e largava:
VOZ - As duas velhinha do lado acabam de morrer. Foram encontradas, as duas, mortas, na
cadeira.
LOCUTOR - No dia da encenação, entrei no palco. Teatro cheio. Larguei:
VOZ - As duas cadeirinhas do lado acabaram de morrer. Foram encontradas, coitadinhas, tão
bonitinhas, as duas sentadas em cima das velhinhas.
TÉCNICA - TRANSIÇÃO.
LOCUTOR - Não precisa ser pitonisa para perceber que estava encerrada a minha carreira de
ator".
A partir daí, o texto segue contando a sua "autobiografia", quando, para finalizar, Paulo
Pontes conta duas historinhas, muito conhecidas do imaginário popular e que acabam como
sempre, nas fábulas populares, deixando para o público a título de reflexão ou exemplo, a sua
moral: a primeira é a história da formiguinha que carrega uma folha de abacate pela estrada,
versus um burro que carrega uma carga d'água no lombo. Na discussão sobre o trabalho realizado pelo burro e pela formiga, sobra a constatação de que o trabalho da formiga é para si, para
sua alimentação. Moral da história: o que cansa não é o peso, é a burrice. A outra história é a de
um homem desempregado que busca trabalho no circo. Incapaz de fazer qualquer coisa, o homem não é aceito. No dia seguinte, adoece o leão, e o dono do circo corre em busca do homem
desempregado. Veste-lhe uma roupa de leão, prende-o na jaula, e quando o desempregado fantasiado de leão vê à sua frente o outro leão, fica desesperado e põe-se a gritar. Ao que o outro
leão lhe diz, baixinho, para ele calar a boca, senão os dois perderiam o emprego. Ao que reza a
moral da história: com fome todo homem vira fera.
Paulo Pontes, então, encerra o seu texto:
"LOCUTOR - Aos ouvintes deste programa que, porventura sejam dotados de bom nível intelectual, eu peço desculpas por não ter radiofonizado uma tragédia de Shakespeare. Como sou
contra o rádio para a literatura, procurei fazer literatura para o rádio. Se foi "para" ou "sub" literatura, eu não sei..."
Eis a mensagem final:
"LOCUTOR - Ofereço este programa, principalmente as duas histórias, aos camponeses da
Paraíba que, enfim, despertam".
Ele referia-se às ligas camponesas que já se organizavam no Nordeste.
Não sobraram muitos exemplares dos textos escritos para o rádio. Aliás, temos a impressão de que esse é o único, a não ser que outros existam nas mãos de particulares, o que é
sempre possível. Mas, para a intenção do nosso trabalho, o texto que temos já nos serve, e muito.
Serve porque nos permite perceber elementos em germinação que, posteriormente, marcarão a personalidade artística de Paulo Pontes.
Primeiro elemento: o exercício da palavra. O rádio, vimos atrás, tem na palavra a sua
linguagem básica. O teatro engajado de Paulo Pontes também. Quando Paulo Pontes, posteriormente, passa a defender a volta da palavra ao palco, ele estar defendendo, mesmo que misturado a um projeto político, o seu projeto estético, a sua linguagem que o rádio lhe ensinou a
pronunciar.
Segundo elemento: a construção do texto. Sem personagem psicologicamente definido,
sem trama ou trauma que envolva conflitos, mas com episódios curtos e anedóticos. Este aspecto formal seria o mesmo que o Grupo Opinião iria desenvolver logo depois em alguns dos seus
espetáculos.
Terceiro elemento: a fome como tema de sua obra para teatro.
3. A Palavra que Gera
Mas não é só no radio que Paulo Pontes vai fazer o seu exercício da palavra. O uso comunicativo da palavra como sentido gerador de idéias e de opiniões, em Paulo Pontes, tem outra raiz. Esta vinda do Recife, na forma do Movimento de Cultura Popular e, ainda, no Método
Paulo Freire de Alfabetização.
Em Recife, no ano de 1962, o Movimento de Cultura Popular j estava implantado com
apoio do governador Miguel Arraes. Era um movimento amplo, ousado, que buscava arrancar o
homem nordestino da sua mais profunda ignorância e dar-lhe, mesmo que de pincelada, um
certo verniz de civilização, uma educação básica para uma vida um pouco mais consciente e
saudável. Havia todo um trabalho voltado para a noção de higiene, saúde, educação básica. O
professor Paulo Freire começou a testar o seu Método de Alfabetização em uma casa que o
MCP conseguiu na periferia do Recife. E em que consistia esse método revolucionário de alfabetização de adultos? Sem descer a detalhes, é preciso dizer que o Método buscava no alfabetizando, em seu imaginário ou no imaginário de sua comunidade, a palavra geradora. Ou seja,
as palavras que estavam intimamente ligadas ao trabalho do alfabetizando, ao seu mundo, ao
modo de compreender o mundo, a sua linguagem para explicar o mundo. A partir daí, o trabalho do alfabetizador seria o de estimular a geração de idéias no sentido de que essas idéias pudessem interferir no mundo do alfabetizando, pelas suas próprias mãos, e pudessem, então,
conscientizá-lo da possibilidade concreta de interferir no mundo, modificando-o. Em outras
palavras, o educador não levava ao povo o seu discurso pronto e assimilado, mas procurava no
povo a construção do seu próprio discurso.
Paulo Pontes, por volta de 1962, trabalhava na CEPLAR (Campanha de Educação Popular), em João Pessoa, onde, segundo Marcus Vinicius, músico e amigo de Paulo Pontes desde
aquele tempo, ele era um dos líderes. A CEPLAR era em João Pessoa uma reprodução do MCP
de Pernambuco. A CEPLAR, inclusive, a exemplo do MCP, era apoiada pelo governador Pedro
Gondim, e tinha os mesmos objetivos básicos do MCP. Marcus Vinícius (em entrevista que nos
foi concedida) relembrando a CEPLAR, ressaltou a disponibilidade, a entrega dos jovens artistas aos trabalhos, a qualquer dia, a qualquer hora; era só subir no primeiro caminhão à disposição e dirigir-se à primeira comunidade camponesa ou periférica que fosse preciso.
Paulo Pontes, locutor da Rádio Tabajara da Paraíba, era um jovem ativo, participante,
engajado em todo aquele frenesi que parecia anunciar a aurora de um novo tempo.
Feita a primeira experiência do Método de Alfabetização do professor Paulo Freire, em
Recife, partiram, então, para experiências mais amplas em Angicos e Mossoró, no Rio Grande
do Norte, e em João Pessoa com o pessoal da CEPLAR.
A partir desse momento, Paulo Pontes pode somar ao seu trabalho em rádio, um outro,
mesmo que de passagem, em educação popular. Ele pode apreender agora duas linguagens: a do
rádio, que organizava de modo que o seu discurso pudesse ser comunicativo, e a linguagem de
uma nova educação que era, por sua vez, pensada de modo a que o outro fosse o comunicador.
E em tudo estava a preocupação com a palavra gerativa, que de alguma forma, ao ser enunciada, pudesse intervir na práxis do mundo e fosse um instrumento que contribuísse para modificar
a face desse mesmo mundo.
4. O Encontro com Vianinha
Em 1962, a UNE volante chegava a João Pessoa. E com ela o ator e j dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha.
Em João Pessoa, Vianinha pôde ouvir uma locução do programa Rodízio.
Entusiasmado com a qualidade do programa, Vianinha procurou conhecer pessoalmente
Paulo Pontes. Foi encontrá-lo em uma cama de hospital. Conversaram longamente, e dessa
conversa teria nascido o convite para que Paulo Pontes fosse viver no Rio, onde vivia e trabalhava Vianinha.
No final do mês de março do ano de 1964, Paulo Pontes desembarcou no Rio de Janeiro.
No Rio, foi surpreendido, como todo mundo, com a notícia de que o Presidente João
Goulart fora deposto.
Surpreendido pelo golpe na incipiente democracia brasileira, na esperança de tantos jovens de fazer um país dinâmico à sua imagem, Paulo Pontes, mesmo que quisesse, não poderia
voltar para a Paraíba. Estava no Rio e aí ficaria. Tinha 24 anos e seria testemunha ocular de um
dos mais brilhantes períodos que o teatro brasileiro viveria. Se no curto espaço que conheceu de
democracia relativa, pôde exercitar no rádio e na CEPLAR a linguagem da palavra, esta palavra, a partir da nova conjuntura política imposta ao país, assumiria paulatinamente um outro
discurso, o da resistência, do comprometimento moral do homem com a liberdade, o discurso
abundante e lógico de um homem que chega a usar a palavra como veículo de educação, mesmo que seja a educação incerta em um tempo ruim, um discurso que vai ressaltar a necessidade
teimosa da sobrevivência por cima de pau, por cima de pedra. A palavra pela pedra.
5. O Fio da História
O período que vai de 1960 até 1964 foi de muito conflito para a sociedade brasileira.
Primeiro, político, gerando uma espécie de atordoamento da sociedade diante da renúncia de
Jânio Quadros, sete meses após ter sido eleito com um número expressivo, para a época, de seis
milhões de votos.
Segundo, econômico, gerado pela necessidade de um país tão grande crescer à altura de
suas potencialidades, desenvolvendo a sua economia, a sua indústria, os seus bens de consumo
para uma crescente classe média (nesse sentido, o governo Juscelino Kubitschek teria dado os
primeiros passos, com a implantação da indústria automobilística).
Terceiro, social, gerado pela crescente pressão da mão-de-obra desqualificada que abandonava o campo, de onde era expulsa, para a cidade, onde seria subempregada, além dos problemas de sempre - desemprego, baixos sal rios, corrupção em todos os escalões da administração pública, partidos políticos inoperantes, tudo isso temperado com a conspiração nos quartéis
para a derrubada do Presidente João Goulart, identificado pelas forças repressivas, senão como
agente, ao menos como simpatizante do comunismo internacional.
Para as forças reacionárias que sempre governaram o país, qualquer postura que não
fosse canhestramente retrógrada, seria imediatamente identificada como comunista. Era o que
diziam do Vice-Presidente João Goulart quando da renúncia do Presidente Jânio Quadros em 25
da agosto de 1961. Para delícia das forças reacionárias, João Goulart encontrava-se na China,
em visita oficial, quando Jânio Quadros (não se sabe se movido pelo seu temperamento esquizóide ou se pelas misteriosas "forças ocultas" que levaram Getúlio Vargas ao suicídio em 1954)
renunciou.
Da China, Jango articulava a sua volta ao país. Os militares não o queriam como Presidente. O Congresso se rebelou contra os militares e exigiu o cumprimento da norma constitucional. Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, preparou-se para enfrentar o conflito com as
forças armadas e, surpreendentemente, recebeu o apoio do III Exército sediado em Porto Alegre. Estava estabelecido o conflito. Os políticos, como de costume, negociaram com os militares a vigência da ordem constitucional e a aceitação, por conseguinte, de João Goulart como
Presidente da República, desde que a forma de governo fosse a parlamentarista. Venceram os
políticos. João Goulart assumiu. Mas estava evidenciada a falência do sistema políticoadministrativo. João Goulart governa, mas não tem como realizar as reformas básicas que a
sociedade necessitava. O tempo do seu governo foi marcado pelas lutas no campo, pelas greves
nas cidades, pelas passeatas organizadas pela igreja, pela insubordinação dos marinheiros à hierarquia militar, pela irreverência e ousadia dos estudantes organizados em torno de sua entidade
nacional.
Ao lado disso, uma determinada vanguarda intelectual também se aliava a um tempo inquieto como aquele. No cinema, Glauber Rocha, a partir da experiência da nouvelle vague, sobretudo influenciado pela linguagem de Godard, lançava a pedra fundamental do que seria um
cinema pobre, embora moderno - a Estética da Fome, onde se propunha que cinema seria uma
câmara na mão e uma idéia na cabeça. Na música, a Bossa-Nova dava o tom da bossa. Na poesia, o grupo Noigrandres (desde a década anterior) desancava o verso e instituía a forma plástica
e concreta. No teatro, inaugurou-se a era dos grandes grupos que vieram na cola do TBC. Primeiro, o Arena e sua estética engajada; depois, o Oficina e sua busca de uma estética existenci-
al, após o contacto com Sartre (esses nasceram na década anterior). Isso sem esquecer os CPCs
que proliferaram dentro da União Nacional dos Estudantes, onde se fazia de tudo um pouco:
teatro, cinema, poesia, sempre a partir do que eles consideravam cultura popular. Além das diversas companhias de teatro que se formaram com atores oriundos do TBC (embora estas não
oferecessem nada de inovador, no que diz respeito à linguagem teatral).
Foi um período da história muito rico em inquietações de toda ordem. A impressão que
dá, lendo os depoimentos, é de que, para os artistas engajados, vivia-se como o amanhecer de
uma nova história no país. As tarefas que eles se impunham e realizavam, hoje, com a perspectiva da história, dão a sensação de um trabalho monstruoso, onde uma enorme quantidade de
energia, de força, de juventude, somadas a uma generosa - e generalizada - utopia, aliavam-se
no desejo de projetar um país que, como eles, era também jovem e que podia ser generoso com
os seus habitantes. Para isso, seria preciso que o homem ajudasse a natureza, ajudando a si, oferecendo ao outro infortunado um pouco da sua cultura, um tanto do seu conhecimento.
Talvez por aí se possa compreender, sem desconsiderar a causa político-ideológica, a luta que se travou até março de 1964 em prol de uma sociedade moderna, e dessa maneira, mais
humana. Não se pode também alienar a crítica dos erros cometidos. Mas erros, no calor da luta,
são comuns. Além do mais, e isto parece a constatação do óbvio, constrói-se a história com os
instrumentos disponíveis no seu momento. E eles foram, afinal, usados.
O teatro engajado praticado pelo CPC foi um dos instrumentos usados pelos artistas presentes nessa história. E a trajetória de Paulo Pontes está, por semelhança, paralela à história do
CPC.
6. Uma outra republiqueta sul-americana
Quando Vianinha chegou à Paraíba em 1962, encontrou Paulo Pontes numa cama de
hospital. Nessa ocasião, Vianinha convidou-o para juntar-se a eles no Rio, no trabalho do CPC,
uma vez que as suas idéias sobre arte, sobre política, tanto se pareciam.
Viajando com a UNE-volante, Vianinha continuou seu caminho. Paulo Pontes, no seu
trabalho em rádio e na CEPLAR
Tanto o CPC quanto a CEPLAR são originários do MCP do Recife, que se pretendia
"uma universidade popular, onde o saber seria construído a partir de um intercâmbio dinâmico
entre forças complementares: intelectuais, estudantes e povo"19. É certo que se diga que Vianinha foi um dos que idealizou o CPC. Mas deve-se dizer que a experiência do CPC já existia
alguns anos antes no Recife20. Todos, no fundo, tinham o mesmo objetivo e trilhavam caminhos
mais ou menos parecidos. Fora assim com outros grupos, que assumiram outros nomes, mas
que tinham a mesma finalidade político-cultural, como o Movimento de Educação de Base MEB - organizado por um setor menos ortodoxo da Igreja Católica; assim também fora com a
campanha De pé no chão também se aprende a ler, realizada pela prefeitura de Natal. Todos
esses organismos, quer tivessem o apoio dos governos menos conservadores dos Estados, de
um setor mais politizado da Igreja Católica ou da União Nacional dos Estudantes, todos, sem
exceção, misturavam educadores, estudantes e profissionais de diversas áreas com o objetivo
comum de alfabetizar, politizar e comunicar ao povo a sua cultura, buscando transmitir ao outro
a sua visão do mundo, ao outro que era analfabeto, que era maioria, ao outro que era sem dúvida o mais oprimido numa sociedade estreita, num país que trata a massa assalariada como se
fosse menos do que escrava, como se fosse apenas mercadoria.
Enquanto os militares se organizavam e conspiravam, apoiados por uma parcela expressiva da sociedade civil, os artistas que fazem parte dessa história lutavam a sua luta, crentes que
19
20
MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR - MEMORIAL. Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife, p. 29.
"Antes de 64, havia um movimento aqui no Rio de Janeiro e no Brasil inteiro, que começou em Pernambuco,
aliás no governo Arraes". Augusto Boal, Ciclo de Palestras Sobre Teatro Brasileiro. Rio de Janeiro, INACEN (Ibac),
p. 8.
contavam com o apoio da população para os seus projetos cheios de uma utopia que não tinha
correspondência alguma com a realidade que o país vivia. E a realidade é que a massa, ao contrário do que pensavam, não é revolucionária. A revolução também exige uma cultura revolucionária. E esta só a tem quem dispõe de tempo para adquiri-la. Não é o caso do povo.
Carlos Estevam Martins, primeiro presidente do CPC, disse que o maior problema que
enfrentavam, não era montar espetáculos que levariam à massa (isto eles faziam com imensa
facilidade). O problema era encontrar "estruturas de conexão entre o grosso da população e os
grupos culturais politizados que queriam sair fora dos circuitos elitistas"21. O problema que
enfrentavam era entrar em contacto com o povo, encontrar qual a linguagem do povo. Carlos
Estevam Martins cita um exemplo da tentativa de encontro entre o intelectual e o povo: "Uma
vez, fomos com a carreta para o Largo do Machado, estávamos fazendo um espetáculo em um
dos lados da praça, enquanto que no outro havia um sanfoneiro e um sujeito tocando pandeiro.
Apesar de todo nosso equipamento de som e luz, o sanfoneiro e o pandeirista juntavam mais
gente do que nós"22. Como compreender que um pandeiro atraísse a atenção do povo mais do
que um carro teatralmente aparelhado? O que é mais teatral, o que resulta melhor na comunicação artística com o povo? O som tímido do pandeiro ou o som potente dos amplificadores? Este, talvez, fosse um problema para a estética. Mas o teatro do CPC não estava interessado em
estética. O seu interesse era a política e de como, usando a arte como álibi, fazê-la instrumento
da transformação política que se desejava.
Enquanto não se adquiria a consciência da arte como mediadora entre mundos opostos23,
o CPC tocava o barco à sua maneira, com os artistas escrevendo peças de teatro em cima de
uma notícia de jornal, por exemplo; apresentando o espetáculo na primeira favela, na primeira
esquina, no primeiro sindicato que aparecesse. Acreditavam que o povo estaria ao lado deles, e
eles, por sua vez, ao lado do povo em marcha para a revolução que viria. Não tinham consciência da gravidade do momento que viviam e da dimensão da tragédia que estaria por acontecer
ao país. Carlos Alberto de Oliveira (Caó), que fora Vice-Presidente da UNE no biênio 1962/63,
afirmou que tinham eles muitas ilusões quanto à sua própria força política naquele momento de
21
MARTINS, Carlos Estevam. "História do CPC". S. Paulo, Arte em Revista, nº 3, p. 78.
22
Idem, ibidem, p. 78.
23
Ferreira Gullar afirmou que Vianinha (só para citar um expoente) compreendera (na fase Opinião) que o melhor teatro político tinha que ser, ao mesmo tempo, o melhor teatro. - Apud Sérgio Kraselis. S. Paulo, revista
Problemas nº 9, p. 18.
radicalidade: "imaginávamos que tínhamos muito mais força do que realmente dispúnhamos
/.../ À medida que não soubemos estabelecer uma aliança firme e sólida com os liberais, nós
permitimos que as forças da direita assustassem os liberais e eles passassem para a direita”24.
Então, ele conta o que ouvira de Vianinha, um dia, passados os idos de março de 64: "Eu, no
CPC, falava de operários, escrevia sobre os sentimentos, as aspirações e valores dos operários e
na realidade eu não conheci o operário"25.
Eis, então, o núcleo do problema, o que talvez tenha impedido que os artistas engajados
na luta política avançassem na descoberta da linguagem que intermediasse o universo do intelectual e do operário. Ferreira Gullar, solicitado a fazer a sua avaliação, falou do problema que
impediu o encontro do artista engajado com o seu objeto de trabalho: o fato de serem eles, do
CPC, artistas, estudantes e intelectuais jovens26. A juventude, então, teria sido a pedra no meio
do caminho.
Paulo Pontes, na Paraíba, realizava o seu trabalho de agitador político na CEPLAR. Um
dia, ele teria ido com uma equipe de reportagem da rádio Tabajara fazer cobertura da morte de
um camponês, num desses intermináveis conflitos de terra. Quando chegou ao lugar, um vilarejo próximo à capital, não conseguiu resistir à sua indignação, subiu numa pedra próxima ao
corpo do camponês morto, e discursou ao povo, a favor dos camponeses na luta pela terra, pela
reforma agrária.
No outro lado do país, na história que vai continuar a de Paulo Pontes, o CPC mantinha
o seu ritmo de trabalho, agora construindo um teatro dentro do prédio da UNE, na praia do Flamengo, 132.
Nos bastidores do poder, o golpe se armava. Carlos Lacerda no antigo Estado da Guanabara, juntamente com Magalhães Pinto, no Estado de Minas Gerais, eram os governadores
que mais apoio davam à conspiração militar que dia-a-dia se tornava mais aberta.
A classe média saía em multidão para rezar na rua, pedindo a Deus que salvasse a Pátria. As esquerdas, concentradas nos partidos, os intelectuais e estudantes no CPC, acreditavam
que a vitória da democracia estaria próxima, que uma vez unido, o povo jamais seria vencido.
24
Apud Fátima Saadi. Rio de Janeiro, revista Ensaio nº 3, p. 38.
25
Idem, ibidem, p. 37.
26
Apud Dejair Cardoso. Rio de Janeiro, revista Ensaio nº 3, p. 45.
Segundo Deocélia Vianna, mãe do Vianinha, a inauguração do teatro da UNE estava
marcada para o final do mês de março de 1964. A festividade de inauguração duraria um mês,
com uma programação variada que iria desde a Noite do Samba, organizada por Sérgio Cabral,
passando pela Noite da Nova Música Brasileira, organizada por Carlos Lyra e Sérgio Ricardo,
até a exibição de uma peça do próprio Vianinha, Os Azeredos mais os Benevides27.
A única coisa que não estava programada era o golpe.
Na madrugada do dia 31 de março, as tropas de Minas saem dos quartéis e marcham em
direção ao Rio de Janeiro. Naquela madrugada o prédio da UNE foi metralhado. Nesse momento, começou a morrer o sonho de construir-se um país livre. O depoimento do sociólogo Luís
Werneck Vianna, transpira o clima que se viveu, de medo, de impotência, ante as armas que
atiravam numa fortaleza que, afinal, era de sonhos: "/.../ Mas, certamente, depois da meia-noite
foi que a UNE começou a ser metralhada. A UNE cheia. Houve um momento de pânico. Mas,
pânico duro, porque nesse momento as pessoas viram inclusive que a UNE estava desprotegida,
que nós estávamos despreparados para reagir. Ninguém tinha arma. Algo que a gente vinha
acreditando há muito tempo, isto é, a capacidade de avanço e resistência das forças democráticas e populares, não era verdadeira. O que fazia com que esse pânico ainda se alastrasse mais.
Era como se você estivesse diante do desconhecido, do imponderável, do que você não compreende. A partir desse metralhamento, a UNE esvaziou-se bastante e, madrugada alta, já o dia
amanhecendo, Vianna, eu, Armando Costa e algumas pessoas, saímos /.../ Pelo telefone (ao
sogro, comandante da 3ª. Zona Aérea), pela primeira vez, tive uma confirmação de que o que se
passava ali não era coisa comum ao nosso cotidiano, quando o meu sogro me disse que só poderia mandar três pessoas para guardar a UNE e que a situação estava muito complicada, que
estavam já sem controle da situação"28. O sogro em questão fazia parte do dispositivo militar de
Jango.
No dia seguinte, 1º de abril, a UNE foi invadida e incendiada. É o mesmo Luís Werneck
Vianna quem continua o seu depoimento: "/.../ Começou o quebra-quebra, o incêndio. As pessoas que estavam lá dentro não estavam preparadas nem para uma reação romântica de barricadas, nem para morrer lá dentro. Isso não havia. E realmente não fazia o menor sentido imolar
dez pessoas por uma coisa que, do ponto de vista nacional, estava absolutamente perdida. Isso
mostrava o despreparo de todos nós e de como não havia condições de termos um enfrentamen27
VIANNA, Deocélia. Companheiros de Viagem. S. Paulo: Brasiliense, 1984, p. 165.
28
Apud Deocélia Vianna. Op. cit. p. 167.
to com o país. Não tínhamos uma proposta efetiva para o país dos anos 60. Isso ficou muito
claro"29.
Mas o pior não fora o fato de descobrirem, na última hora, a sua impotência diante do
poder das armas. O pior, talvez, foi descobrir que o povo aplaudia o golpe, que a cidade do Rio
de Janeiro virara uma festa; fora perceber que o golpe assumira o papel de "Redentora" no imaginário popular. O golpe, afinal, viria para livrar o povo da ameaça cruel dos comunistas, os que
bebiam o sangue das criancinhas. Passemos a palavra outra vez ao sociólogo Luís Werneck
Vianna: "/.../ Chego à UNE (no dia seguinte, 1º de abril). Já muito pouca gente. A UNE vaiada
pelas pessoas do prédio ao lado. As pessoas jogavam coisas, vaiavam. E todo esse sentimento
nosso ainda se complicava porque fomos percebendo que havia clima de festa, como se a cidade tivesse sido libertada de um domínio, uma coisa assim que fez com que a nossa impotência,
a nossa sensação de não compreensão das coisas ainda fosse agravada pelo isolamento político
e moral, que nós víamos que estávamos levantando"30.
Só para completar esta imagem de desolação, vamos pedir o reforço do ator Carlos Vereza, ex-membro do CPC: "Aos poucos foram chegando carros e mais carros em frente a UNE
com rapazes da então classe média da época, bronzeados, comendo cachorro-quente com cocacola e dizendo que os comunistas haviam sido derrotados, que o Jango já havia fugido /.../ E
nós não sabíamos, ainda, que o movimento militar já era naquele momento vitorioso"31.
Não houve resistência ao golpe. Em todo o país, o que aconteceu foi a entrega do poder
aos militares, o alívio do povo que via nas idéias esquerdizantes um martírio. O grande erro das
esquerdas, parece-nos, fora o de acreditar que o povo está sempre ao lado da liberdade, da justiça e da verdade, como se esses termos não remetessem a conceitos extremamente subjetivos,
longe da compreensão do homem comum.
O fato estava consumado. O projeto esquerdizante, naquele momento, derrubado. Restava, então, a saída estratégica. Carlos Vereza: "Saímos pelos fundos da UNE, e uma imagem
muito forte ficou na minha cabeça. Nós saímos pelo quintal, que era ladeado por dois prédios e
dos dois lados pessoas gritavam. Enquanto um deles dizia: foge que eu quero ver, comunista;
do outro lado diziam: não foge não, menino, nós estamos do lado de vocês /.../ E nós, enquanto
29
Idem, ibidem, p. 166.
30
Idem, ibidem, p. 170.
31
Apud Deocélia Vianna. Op. cit. p. 171.
víamos o prédio ser tomado, pulamos o muro dos fundos e saímos numa tinturaria. Pegamos um
t xi, que deu a volta pelo Aterro, e em lágrimas, vimos o nosso prédio pegando fogo - eu, Vianinha, João das Neves e acho que Milani - e um verdadeiro piquenique da classe bem alimentada, dos jovens rapazes da classe média que comemoravam entre urras o incêndio do CPC e da
UNE"32.
Hélio Silva, no livro O Poder Militar, diz que o movimento de 64 marcou o fim do papel
tradicional dos militares na política e o aparecimento de novos padrões. Até então, os militares
limitavam-se a derrubar presidentes, mas não ousavam assumir o poder, por não confiarem em
sua própria capacidade política. Tinham até aí o papel de poder moderador. Diz-se que a morte
de Getúlio Vargas retardou por dez anos o golpe dado em 64. Hélio Silva cita uma palestra do
general Castelo Branco em 19 de setembro de 1955, na Escola Superior de Guerra, quando ele
aconselhou que não se aceitasse a tese do golpe de Estado como salvação política para o país
(devido à incapacidade das instituições políticas para resolver os problemas da Nação). Naquela
ocasião, dizia o general: "As forças armadas não podem, se são fiéis à sua tradição, fazer do
Brasil uma outra republiqueta sul-americana. Se nós adotarmos esse regime, entraremos nele
pela força, haveremos de mantê-lo pela força e sairemos dele pela força"33.
No dia 1º de abril de 1964, o general Castelo Branco assumia o poder apoiado pelas forças militares. O Brasil, assim, continuava a ser uma simples republiqueta sul-americana.
32
Idem, ibidem.
33
SILVA, Hélio. O Poder Militar. Porto alegre: L&PM, 1984, p. 29.
7. As Intenções do Opinião
João das Neves, um dos protagonistas da história do grupo Opinião e, posteriormente, o
herdeiro da firma, é quem vai revelar o dia e o que levou Paulo Pontes para o Rio de Janeiro.
Segundo ele, teria sido no dia 31 de março, ou primeiro de abril de 1964. E o motivo? Afirma
João das Neves: o CPC estava realizando mais uma discussão a respeito de suas atividades, e
Paulo Pontes teria ido ao encontro como representante da Paraíba34.
Paulo Pontes teria chegado no Rio de Janeiro no dia em que as forças repressivas teriam
posto em ruínas o teatro da UNE.
Atordoados pelos fatos que julgavam jamais pudessem acontecer, os integrantes do
CPC, num primeiro momento, trataram de observar que mudanças significativas ocorriam no
cotidiano do país.
João das Neves afirma que Paulo Pontes, para sobreviver, teria conseguido emprego
numa assessoria de Roberto Campos. Não diz que tipo de assessoria seria esta35.
Mas daquela discussão que os ex-membros do CPC realizavam, numa tentativa de compreender o momento em que viviam, começava a nascer o grupo Opinião. Armando Costa, juntamente com Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, escrevia o show de onde sairia o nome do
grupo.
O show Opinião estreou no dia 11 de dezembro de 1964, no teatro do Super-Shopping
Center da rua Siqueira Campos, em Copacabana. Era uma realização conjunta do grupo Opinião e do Teatro de Arena de São Paulo, com a direção de Augusto Boal. Na verdade, o Teatro de
Arena emprestava a firma para que o Opinião pudesse, naquele momento, existir.
O grande problema que se colocava para aqueles artistas era o de como continuar desenvolvendo o seu trabalho. Expulsos do CPC, marginalizados no processo político, não lhes
restava outra saída senão reconsiderar suas críticas ao teatro empresarial. Concluíram que agora
34
DAS NEVES, João. "A retomada de um caminho". In Paulo Pontes - a arte da resistência. S. Paulo: Versus, p. 18.
35
Idem, ibidem.
tanto fazia falar à classe média quanto ao operariado, uma vez que o regime ditatorial fazia-os
todos, sem exceção, seus inimigos políticos.
Paulo Pontes, em entrevista à Associação Pró-Teatro Tijuca, falou desse período: "Era
necessário abrir-se uma frente ampla contra a onda de autoritarismo que existia". E mais adiante, na mesma entrevista: "O Opinião precisava encontrar uma brecha de atuação. E descobriu.
Achou, à medida que viu e formulou uma política, onde entendia que a marginalização do processo político tinha-se estendido a quase todos os setores da sociedade brasileira. E ao mesmo
tempo teve muita habilidade para procurar seus próprios aliados na sociedade brasileira e na
categoria teatral, sem sectarizar ninguém"36.
Mas não mudou só a clientela do teatro. Mudou também a sua estética. Agora, não se
tratava de fazer proselitismo político. Mas uma outra preocupação se apresentava, a de que o
teatro deveria ter um certo acabamento estético, algo que o aproximasse mais de uma linguagem artística e lhe desse a feição de uma obra de arte, diferentemente do que se fazia antes,
onde teatro mais parecia tribuna de denúncia ou cartilha de consciência política. Vianinha, em
um dos seus muitos momentos de reflexão, disse numa entrevista em 1967: "Não é fácil passar
de panfletário a artista. Desde 1960 venho escrevendo, são 7 anos de tentativa. Dentro disso
tem cinco anos de sectarismo irascível dentro do CPC e da UNE"37.
João Das Neves, falando sobre as principais idéias desenvolvidas pelo Opinião, disse:
"Houve uma maior preocupação, em primeiro lugar, por um entendimento mais aprofundado da
cultura popular espontânea. Absorver, entendendo suas formas não apenas estratificadoras, mas
também o que há de revolucionário nessa forma de cultura. Portanto, uma valorização a nível
de cultura. Em segundo lugar, uma preocupação muito maior com o acabamento artístico do
espetáculo. Quer dizer, o espetáculo já não seria mais pretexto para veicular idéias políticas, ao
contrário, seria um fundamento em si. E as idéias políticas seriam tanto mais eficazmente veiculadas quanto mais artisticamente se realizasse o espetáculo. Em relação ao documento do CPC,
representa um giro de 180 graus. E o caminho do Opinião é pautado por essas diretrizes"38.
36
In Paulo Pontes - a arte da resistência. Op. cit. p. 39.
37
Apud Carmelinda Guimarães. Um Ato de Resistência. S. Paulo: MGM Ed. Associados, 1984, p. 62.
38
In "Grupo Opinião: A Trajetória de uma Rebeldia". Entrevista a Sérgio Kraselis. Revista Problemas nº 9. S. Paulo,
Ed. Novos Rumos, p. 56.
Só assim se pode compreender melhor um show que misturava três tendências radicalmente diferentes da música popular brasileira: Nara Leão, ligada à Bossa Nova, trazia para o
show algo semelhante ao gosto da classe média do Rio de Janeiro, com os seus temas românticos, a sua voz educada e uma certa boemia bem comportada. Zé Keti era a voz do morro, enquanto João do Vale completava o quadro, emprestando a sua voz áspera de retirante nordestino, os seus temas rurais, a poética dolorosa de uma gente semi-escravizada pela estrutura fundiária. Eram estes os três componentes que, misturados e montados, formaram a primeira versão
do show Opinião. Pouco depois da sua estréia, Nara Leão afasta-se, e em seu lugar, aparece
Maria Betânia, que a substitui com estrondoso sucesso.
"A música popular - dizia o texto de apresentação – é tanto mais expressiva quanto mais
tem uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social; quando mantém vivas as tradições de unidade e integração nacionais. A música popular não pode ver o público como simples consumidor de música; ele é fonte
e razão de música"39.
As intenções do Opinião, em suma, eram de continuar, em outro nível, agora mais abrangente, mais aprofundado, as discussões sobre cultura popular, como forma de criar-se uma
adequada identidade dos oprimidos contra os seus recém instalados opressores.
8. A volta ao lar
Em 1967, o Opinião sofre um racha de onde saem Paulo Pontes, Vianinha e Armando
Costa. Segundo João das Neves40, os problemas acumulavam-se geometricamente, até não ser
mais possível concentrar tanta gente em um espaço tão pequeno. Esses problemas, no fundo,
resumiam-se a um: a folha de pagamento do grupo. Além dos líderes fundadores do Opinião,
haviam os técnicos para a manutenção do teatro, os atores e as estrelas que eram contratadas
39
PONTES, Paulo & outros. Opinião. Rio de Janeiro: Edições do Val, 1965.
40
Entrevista exclusiva a nós concedida em 09.01.86.
para as produções ambiciosas. João das Neves revelou que em alguns momentos a folha de pagamentos chegava a ter quarenta nomes.
No período entre sua criação em 64 e o racha sofrido em 67, o Opinião, como toda vida
inteligente do país, enfrentava a ação da Censura Federal, que com a sua imprevisibilidade ditatorial gerava instabilidade no interior dos grupos teatrais, desorganizando as produções, desorientando as buscas tem ticas, as pesquisas formais, uma vez que nada garantia a vida do espetáculo, nem em sua fase de ensaio, nem durante as apresentações. O poder da Censura tirava um
espetáculo de cartaz por qualquer motivo, ou por motivo nenhum.
Apesar disso, esse curto período do golpe à sua institucionalização em 68, foi uma fase
de grande inquietação para o teatro brasileiro, que teve no Arena, Oficina e Opinião, a expressão mais vigorosa desse período. Esses três grupos foram responsáveis por espetáculos antológicos, onde a criatividade, a força de vontade de realizar o seu trabalho e a recusa sistemática
em concordar com um regime embrutecedor, somavam-se para um saldo estético qualitativo, a
cada passo aprofundando a sua diferença com o regime que, em consequência, também fechava
o cerco. O teatro, naquele momento que os partidos políticos dissolvidos reduziam-se a duas
siglas criadas pela ditadura, em que alguns idealistas procuraram, na clandestinidade, lançar as
bases de uma guerrilha que pudesse desestabilizar o regime, o teatro transformou-se num dos
poucos canais que aglutinavam os insatisfeitos, sobretudo os estudantes.
No espaço do teatro eram realizados debates, palestras, cursos ou simplesmente concentrações políticas animadas por uma massa estudantil crescente cada vez mais. Luiz Carlos Maciel relatou uma dessas reuniões, logo após a morte do estudante Edson Luís no restaurante Calabouço, em 1968: "Logo na primeira assembléia, realizada a partir de meia-noite do dia que o
estudante Edson Luís foi morto, no Teatro Opinião, o pau quebrou. Os participantes dividiamse, a grosso modo, em três grupos principais: o pessoal do Partidão, que era muito organizado;
os chamados "representativos", artistas e intelectuais de renome, sem compromissos ideológicos, contrários aos métodos do governo; finalmente, os porra-loucas ou meninos de Marcuse,
como os outros os chamavam, isto é, a esquerda jovem e independente que, disposta a levar a
imaginação ao poder, ficava sempre tumultuando tudo, com suas idéias e propostas desvairadas"41.
Em outros teatros também se realizavam reuniões que eram embaladas pelo mesmo calor e revolta contra o regime. Luiz Carlos Maciel fala da vocação política da sua geração, que
41
MACIEL, Luiz Carlos. Anos 60. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 83.
atuou fortemente na década de 60. Segundo ele, o impulso para a rebelião tinha na política apenas um canal externo. E o canal interno, qual seria? - o inconformismo existencial42.
João das Neves43 informou que, apesar do trabalho diário e constante, o grupo Opinião,
num determinado momento, já não conseguia se pagar. Outro problema era a concentração,
como ele disse, de muitas "cabeças pensantes" num mesmo espaço, que, por mais que fizessem,
não conseguiam dar vazão a tudo o que queriam fazer, além da censura e dos conflitos internos
do grupo, somados à crescente tensão social e até mesmo, quem sabe, não ao inconformismo
nos termos empregados por Luiz Carlos Maciel, mas ao desencontro de pessoas que liam a vida
pela cartilha da razão, da racionalidade (num tempo que a racionalidade perdia espaço para as
emoções explosivas), resultou, nesse imbróglio de coisas conflitantes, a necessidade de alguns
membros do grupo parar um pouco, repensar o caminho do seu trabalho.
Paulo Pontes volta para a Paraíba. Três anos em contato íntimo com o grupo Opinião,
cuja formação era essencialmente teatral, participando de todas as montagens, ou como co-autor
dos textos, ou como produtor, divulgador ou qualquer coisa que fosse necessário fazer, lhe deu
uma visão do palco e da possibilidade de trabalho nele, que o marcou para sempre. Ao sair do
Opinião, em 1967, estava completa a sua formação profissional. Era, enfim, um homem de teatro.
42
Idem, ibidem, p. 8.
43
Entrevista citada.
SEGUNDA PARTE
PARAÍ-BÊ-A-BÁ OU A LEITURA DE UM DESTINO
“Construía por cima da morte uma ponte de palavras,
como se a formulação nítida e lúcida do futuro pudesse iludir o abismo. Deixá-lo para trás”.
Antônio Callado
Os motivos que o levaram a voltar para a Paraíba nunca foram suficientemente esclarecidos. Talvez uma certa nostalgia. Marcus Vinícius, num texto escrito para a Folha de São Paulo, deixa uma pista sobre o sentimentalismo de Paulo: “Era um paraibano nostálgico de pessoas
e de lugares /.../ Ele tinha especial predileção por bares da barra pesada, principalmente por um,
o Tabajara, onde certamente encontrava algumas das figuras populares da cidade. Então, ficava
sabendo dos últimos “causos”, das últimas histórias e das últimas anedotas sobre aquelas figuras”44.
Voltando para a Paraíba, Paulo Pontes retornou ao berço de sua profissão, o rádio. É Bibi Ferreira quem fala: “Depois de sua saída do grupo Opinião em 1967, Paulinho voltou ao
Nordeste. Começou a fazer uma série de trabalhos no rádio lá na Paraíba. Era um trabalho simples, didático, que aproveitava muito do que ele tinha aprendido nos anos passados no Rio. Scripts de programas cômicos”45.
O importante era que a experiência acumulada no Opinião o fazia enxergar a possibilidade de se expressar através do teatro, mesmo que fosse numa cidade como João Pessoa, que
tinha (e tem) um público muito limitado, por uma série de razões que Paulo Pontes passou a
compreender muito bem. Inclusive razões de mercado.
E o teatro, todos sabem, não pode prescindir do público. Paulo Pontes compreendeu esse problema no seu tempo de Opinião, e entendeu que é possível também, em cidade de porte
menor, a existência de um público razoável. O problema, para ser solucionado, precisava ser
encarado de frente: “E falava-nos da grande necessidade de fazermos um teatro baseado, antes
de tudo, na realidade que se conhecia. Surgiu, então, não se sabe quem deu a idéia, a possibilidade de fazermos um espetáculo sobre aquilo que mais conhecíamos, o tema que estava mais ao
alcance da nossa mão: a realidade do lugar onde vivíamos. Foi daí que surgiu Paraí-bê-a-bá /.../
Paulo arregaçou as mangas, assumindo plenamente as precárias condições de trabalho vigentes
no ambiente teatral da província. Convocou uma equipe de escritores, poetas e músicos e, com
eles, roteirizou e escreveu o espetáculo. Com sua extraordinária vocação de liderança e seu no44
VINICIUS, Marcus. “O Amigo Paulo Pontes”. Folha de S. Paulo, 30 de janeiro de 1977.
45
FERREIRA, Bibi. “Ontem eu vi uma estrela cair do céu”. In Paulo Pontes - A Arte da Resistência. Op. cit. p. 13.
tável senso de observação do real, realizou um trabalho que constituiu verdadeiro marco no
teatro nordestino. E dizia: eu aposto com vocês que o público daqui não vem ao teatro porque o
teatro não está falando de coisas que ele conhece ou pelas quais se interessa. Se a gente numa
peça falar do Ponto de Cem Réis46, tenho certeza de que esse teatro vai lotar”.
Continua o depoimento: “E lotou. Paraí-bê-a-bá foi a única produção teatral da Paraíba
que conseguiu ficar em cartaz durante toda uma temporada - e sempre mantendo cheia a platéia
do velho Teatro Santa Roza”47.
Além do sucesso de público que foi Paraí-bê-a-bá serviu para Paulo Pontes como um
primeiro e decisivo teste de sua dramaturgia, do amadurecimento das coisas aprendidas nos
seus anos com o Opinião.
1. Por que um espetáculo sobre a Paraíba?
É este o título do prefácio que acompanha a edição do texto Paraí-bê-a-bá48. Nesse prefácio, Paulo Pontes demonstra a sua completa maturidade como pensador da cultura, inclusive
emitindo uma frase que é a expressão mais acabada de tudo que ele fez até aí e, sobretudo, de
tudo o que ele faria a partir de então. Diz a frase: “O teatro ter de sujar-se da realidade do seu
público, para tê-lo atento, para fazê-lo gostar e necessitar de teatro” (p. VII). Se tivéssemos de
eleger uma frase que traduzisse em poucas palavras o homem Paulo Pontes e a sua práxis de
intervenção no mundo, esta seria a mais clara, a mais contundente, a mais sincera. E é a frasenúcleo de um texto cujas intenções são cristalinas e não pretende esclarecer sobre a peça que se
vai ler ou assistir; antes, o motivo de sua existência é dimensionar o conflito entre arte e público, entre artista e receptor: as razões da interferência na sua comunicação.
46
Tradicional praça no centro de João Pessoa.
47
VINÍCIUS, Marcus. Op. cit.
48
PONTES, Paulo. Paraí-bê-a-bá . João Pessoa, 1968. Sem editora. Arquivo do autor. Daqui para a frente todas as
citações desse texto terão apenas a indicação de página.
E são duas as razões; ou como quer Paulo Pontes, são dois os impasses nesta comunicação.
O primeiro impasse: o público não vai ao teatro. E ele se pergunta: “Como fazer com
que um público pouco acostumado a ver teatro, um público cuja vontade e necessidade de emocionar-se é inteiramente consumida pela cultura glamourosa e de ótimo nível de acabamento
industrial dos grandes veículos de comunicação de massas, como fazer com que esse público se
sinta atraído pelo espetáculo teatral?” (p. V).
Lançada a questão, Paulo Pontes aponta imediatamente o segundo impasse: “Como realizar um espetáculo de teatro cujo nível seja capaz de interessar ao público, num Estado onde
não há escolas de arte dramática, não se editam livros de teatro, onde não há técnicos etc?” (p.
V).
Posto o problema em termos especificamente regionais, Paulo Pontes, logo a seguir, o
amplia com o intuito de torná-lo nacional. Ou seja: os impasses por ele detectados em João Pessoa, estão muito além dela, são problemas estruturais do país, problemas de política cultural, ou
até, brincando com as palavras, de cultura política: “Na verdade, a cultura e, particularmente o
teatro, do ponto de vista do interesse social, enfrenta problemas, hoje no Brasil, que só podem
ser resolvidos pela ação governamental. Nenhum governo, no entanto, poder investir na qualidade da cultura antes de investir na sua extensão; nós somos um país metade analfabeto. A
composição de Poder que tiver interesse político em investir maciçamente na cultura, ao atacar
os seus problemas básicos, está ajudando a solucionar os problemas específicos de cada atividade cultural” (p. VI).
A partir da constatação de que o problema da cultura é muito mais abrangente, ele volta
a polarizar a discussão especificamente no teatro feito na província e de como pode esse teatro
oferecer uma resposta adequada ao problema de sua subsistência num lugar de poucos recursos.
É quando, no prefácio, ele oferece a resposta que é o fundamento do impasse inicialmente proposto: “Como fazer o público ter interesse pelo espetáculo teatral? Consultando o público; se o
homem para quem o nosso teatro se destina é paraibano, façamos do homem paraibano o espetáculo” (p. VI).
E justifica: “O que resulta de uma peça de Garcia Lorca montada por um grupo despreparado é sempre um espetáculo incompleto, no qual as intenções não chegam à platéia, as personagens não adquirem contornos nem força. Aí o público - que é o dado fundamental da questão, que não fruiu o espetáculo, entre outras razões porque as relações da peça não lhe foram
mostradas com clareza, passa a confundir cultura com chatice, teatro passa a ser linguagem de
gente muito culta, música vira soporífero. E, temeroso de ofender a cultura, o homem médio
atribui à sua ignorância o diálogo dos surdos que travou com o teatro. E foge das casas de espetáculo” (p. VII).
Ou ainda: “O teatro da província que tiver a consciência de que a capacidade perceptiva
do seu público é pouco exercitada /.../ ter de ir buscar na consciência coletiva da comunidade
para a qual representa os motivos, os elementos de sua dramaturgia” (p. VII).
Mas é preciso esclarecer que para Paulo Pontes não se trata de desprezar Lorca ou
Molière (os autores tomados como exemplo no prefácio). O que importa mesmo é que, qualquer que seja o texto, qualquer que seja o autor, seja bem dito, e estabeleça comunicação com o
público, uma vez que, segundo ele, ao público ninguém engana.
Então, qual seria a solução para o impasse criado por um teatro que, do ponto de vista
técnico está defasado e cujo público está culturalmente despreparado? Paulo Pontes diz: “Se o
que eu sei - e posso - fazer é contar bem uma piada, então que eu conte a piada, e o público, em
resposta, vai gostar da piada, e do teatro” (p. VIII).
Paulo Pontes se dá ao trabalho de esclarecer que essa postura não pode ser tomada como
um critério para a criação artística, uma vez que, segundo ele, qualquer artista tem o direito e o
dever de tentar uma formulação cada vez mais complexa, cada vez mais rica e profunda de sua
obra. Ele então considera que, do ponto de vista estético, corre um risco calculado. Mas avisa
que faz assim porque respeita demais o público, e porque estabeleceu também, como centro de
sua atividade, a comunicação com ele, e não o exercício da expressão pura. Avisa ainda que
quem fizer como ele estar duplamente certo, porque “só é verdadeiramente expressivo, nos
diversos níveis em que se dá a criação artística, o que comunica” (p. VIII).
2. O Texto
A primeira coisa a chamar a atenção em Paraí-bê-bá é a inexistência de individualidade
para as personagens. Ou por outra: elas não têm psicologia que as caracterize. As dezenas de
personagens que intervêm nas cenas possuem uma existência meramente nuclear: aparecem,
compõem a cena e desaparecem. Os coros e cantores, segundo Anatol Rosenfeld49, são um dos
49
ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. S. Paulo: Perspectiva, 1985, p. 159.
recursos mais importantes de distanciamento pelo teatro épico brechtiano. Estes mesmos recursos foram largamente utilizados nas montagens do grupo Opinião. Paraí-bê-a-bá mantém a
mesma linha de teatro cantado. Há um Coro que conduz à narrativa e empresta do seu elenco os
atores que assumirão papéis nas pequenas cenas que vão compondo o corpo do texto. Nesse
sentido as personagens não têm nomes que as identifiquem. São grafadas meramente por “Ator” e seguem um número que as diferencia: “Ator 1”, “Ator 2”, “Ator 3”, e por aí em diante.
As poucas personagens que possuem nomes são tiradas de outros textos. Paraí-bê-a-bá é uma
colagem. E o principal texto colado é A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Por isso, aparecem personagens com nome como “Dagoberto”, “Soledade”, “Xenane”, que são personagens
do romance.
Mas esta mistura de textos, ao invés de comprometer o corpo da peça, envolve-a em um
organismo novo que é capaz, inclusive, de redimensionar a obra colada, de arrancá-la de um
contexto geral de um romance sobre a seca, por exemplo (no caso de A Bagaceira), para particularizá-la em outro contexto (a investigação antropológica do homem paraibano), sem que a
obra do outro autor perca a sua característica. Com isto Paulo Pontes consegue, quando menos,
o efeito de, atomizando cada cena, ressaltar com mais nitidez o perfil do homem paraibano que
ele se propõe a desvendar. E o consegue até com certa dialética quando, na soma das diferenças
apresentadas, há, subjetivamente, não um homem, uma personagem, mas o caráter de um povo
e a sua cultura específica.
Para chegar a esse resultado, Paulo Pontes lançou mão do que as ciências humanas pode
oferecer-lhe, tudo o que pudesse lançar luzes sobre o tema e clarificá-lo, a ponto de torná-lo
límpido, sem subterfúgios, sem dubiedades, sem dúvidas. Para isso fez constar em seu texto um
pouco de cada coisa, a saber:
2.1 História
Abertura da peça. Há em cena um Coro que canta o tema que costura a peça. Entra um
play-back que fala da posição geográfica do Estado da Paraíba, para, em seguida, completar
com uma informação histórica:
“PLAY-BACK - /.../ Sua conquista, fundamental para a expansão do território brasileiro ao
norte, deu-se em 1585, depois de quase oitenta anos de luta penosa, no decurso do qual cinco
expedições bem armadas foram praticamente arrasadas pelo gentio. O índio da Paraíba nunca
sofreu cativeiro. Misturou-se com o branco e, dessa fusão, saiu o homem paraibano, cabeça
chata, cabra macho que pegou do bacamarte e ajudou a expulsar os holandeses, o caboclo sorumbático da roça, curvado ao cabo da enxada” (p. 1).
Ou, então, esse trecho do discurso de posse do Presidente João Pessoa, quando governador do Estado, em 1928:
“ATOR 1 - O cangaceiro é o produto da falta de justiça e da nossa viciada educação política,
feita em gerações sucessivas. Façamos, portanto, a sua reeducação, persistindo na sua perseguição sem preferência, mas também sem crueldade” (p. 43).
E foi espalhando ao longo do texto referências históricas que são bem concretas para o
público a que ele visava.
2.2 Economia
Posto, na abertura da peça, os dados históricos que fundamentam a identidade do público com o texto, Paulo Pontes imediatamente introduziu um novo dado, o econômico, onde o
espectador ser informado sobre a geração de riquezas no Estado:
“ATOR 1 - A Paraíba produz e exporta algodão em pluma, fibras de sisal, bucha de sisal, cana
de açúcar.
ATOR 2 - A Paraíba produz e exporta milho, farinha de mandioca, óleo de baleia.
ATOR 3 - A Paraíba produz e exporta óleo bruto de caroço de algodão, óleo alimentício de algodão e cimento.
ATOR 4 - A Paraíba produz e exporta batatinha, abacaxi, semente de mamona e açúcar.
ATOR 5 - A Paraíba produz e exporta fava, feijão, peles e couros em bruto e preparadas” (p. 2).
E segue ainda uma lista de produtos que a Paraíba produz e exporta. Esses dados, aparentemente soltos dentro do texto são retomados para discussão posteriormente:
“ATOR - Em 1935, o algodão, um dos principais produtos da Paraíba, custava /.../50. Em 1967
foi vendido a NCr$ 1,80.
ATOR 2 - Em 1950, o sisal, outro grande produto da Paraíba, custava NCr$ 3,60. Em 1967 foi
vendido a NCr$ 0,23.
ATOR 1 - Os compradores industrializados lançam-se, atualmente, à fabricação de fibra sintética, que substituirá, gradativamente, o sisal da Paraíba no mercado.
ATOR 3 - A economia paraibana se baseia na produção agrícola para exportação. Por isso é
uma economia permanentemente sujeita às oscilações do mercado externo. Como os produtos
agrícolas têm caído de preço, a Paraíba tem vendido cada vez mais para alcançar a mesma renda real. Por outro lado, voltada para o comprador externo, a agricultura especializa-se em alguns produtos que monopolizam as melhores terras e os escassos recursos financeiros e humanos disponíveis. As pequenas propriedades e as terras semi-áridas são as que ficam para a
produção de alimentos” (p. 24).
O texto acima, a fala específica do Ator 3, é um trecho do relatório do então Secretário
de Agricultura, José Joffily.
Paraí-bê-a-bá é um texto sem situação dramática definida. Nesse sentido, lembra Rodízio, sendo que no caso de Paraí-bê-a-bá há um texto seguro, de um autor maduro que, no engendramento de uma obra sem ação dramática, à maneira de uma peça ideal para teatro, os temas básicos que interessam a Paulo Pontes discutir, são introduzidos logo no início, diluído
dentro de outros assuntos para voltarem à luz em outro plano, em outro nível de percepção da
platéia.
A ação imediatamente após o discurso de José Joffily é uma sequência de cenas curtas,
ágeis e engraçadas, capaz de desfazer a sensação de este ser um texto pesado pelo seu didatismo:
“ATOR 1 - Como e seu nome?
50
Há uma lacuna no texto original.
ATOR 2 - Zé Gonçalves, seu criado.
ATOR 1 - Paraibano?
ATOR 2 - Paraibano.
ATOR 1 - O que é que o senhor faz na vida?
ATOR 2 - Sou plantador de algodão.
ATOR 1 - O que é que o senhor acha do desenvolvimento?
ATOR 2 - Acho que do jeito que as coisas estão, a gente tem de correr um bocado para ficar no
lugar onde está” (p. 25).
E ainda se seguem outras cenas curtas como esta que compõe uma espécie de mosaico
cuja figura de fundo é mais cruel do que a miséria: é a incapacidade, o desânimo, a falta de
perspectiva para combater uma situação sem aparente solução. Nesse sentido, há uma cena antológica sobre um homem que resolve morrer:
“ATOR - Boa noite, está aqui um que perdeu as esperanças de melhorar. Pensando muito na
minha vida, eu descobri que passo o tempo todo pra poder ficar em pé e continuar trabalhando.
COMEÇA A ARRUMAR A REDE NO CHÇO. Trabalho, recebo dinheiro, compro todo de
comida, pra poder trabalhar no outro dia. Nunca fico rico, não tenho mulher, não danço, não
bebo, não viajo, não nada. Tudo o que eu faço é pra continuar em pé. Aí, eu cheguei à conclusão: vou morrer. SENTA-SE EM CIMA DA REDE. Me deito aqui nesta rede, me estiro, começo a dormir e não acordo mais nunca. Em vez de ficar a vida toda em pé, eu fico deitado a eternidade. Os senhores que ficam, boa noite, obrigado pela atenção dispensada e sigam meu exemplo” (p. 28 e ss).
O homem deita-se na rede para morrer. Chega um grupo de pessoas, observa o homem
deitado, examina se está vivo, se está morto, quando o homem se pronuncia; aí, então, dá-se um
diálogo onde os outros vão querer tirá-lo daquela situação:
“ATOR - Eu conto e vocês me deixam sossegado?
OS TRÊS - Deixamos.
ATOR - Eu não aguento mais trabalhar para comer. Trabalho, como, trabalho. Durmo, trabalho
e como. De tardezinha me d uma tristeza!
DOIS - Homem, deixe de trabalhar...
ATOR - Aí eu não como.
TRÒS - Então, deixe de comer.
ATOR - Aí eu não trabalho.
DOIS - Então, nem trabalhe nem coma.
ATOR - Foi o que resolvi fazer”.
Segue o diálogo sobre aquela situação sem saída, quando alguém resolve tirar o homem
do sol. Pegam a rede, levam-na para a sombra, quando alguém se lembra:
“UM - Olhe aqui, eu tenho umas três cuias de arroz, lá em casa. A gente podia oferecer a ele,
dava para passar umas duas semanas sem trabalhar. Aí ele pensava na vida.
ATOR - DENTRO DA REDE. O arroz é com casca ou sem casca?
UM - Ainda tá com a casca.
ATOR - Então leva o enterro”.
Esta falta de perspectiva tem a sua raiz num problema anterior, o fundiário. E é neste
ponto que conflui o terceiro aspecto, digamos, “científico”, do texto.
2.3 Sociologia
É onde se vai encontrar explicação para tanto desalento. Uma vez expulso da sua terra
pela seca ou pelo latifúndio, o retirante erra de lugar em lugar, e ainda enfrentando, sem o saber, uma organização social cujo objetivo é alienar o homem por inteiro, não só apropriando-se
de sua terra, como também do seu corpo, ou, como diria um marxista, de sua força de trabalho
e, por consequência, da riqueza que o seu trabalho possa gerar. Para trazer o foco da explanação
para esse ponto, Paulo Pontes lançou mão de um famoso romance:
“ATOR - José Américo de Almeida, A Bagaceira. Durante as secas, os retirantes afluem, como
ondas humanas, para o brejo, estabelecendo o conflito entre a mão-de-obra local e a que chega
disposta a trabalhar por um prato de comida.
CAPATAZ - ESCOLHENDO; Você, você, você. EXAMINA OS DENTES, MEDE O TAMANHO. Você, não... você... levanta o rosto. ENTRA DE REPENTE DOGOBERTO.
DAGOBERTO - O que é isto, Manuel Broca? Quem mandou ocupar retirante? O que eu disse
está dito. VAI SE RETIRANDO. Mande esse pessoal embora.
SOLEDADE - A UM CANTO, TÍMIDA. Se o senhor pudesse me arranjar um copo d'água... eu
estou morrendo de sede...
DAGOBERTO - PÁRA, VOLTA-SE, FITA A MOÇA. UM TEMPO. EXAMINA-A. Broca,
manda dar água a essa gente. A SOLEDADE. Estes dois homens que estão com você são seus
irmãos? SOLEDADE BAIXA A CABEÇA. O PAI RESPONDE ENVERGONHADO.
PAI - Não senhor. Mas são como se fosse.
DAGOBERTO - VOLTA-SE. FITA A MOÇA. UM TEMPO. VAI EM SUA DIREÇÃO.
Quem é esse homem?
SOLEDADE - Meu pai.
DAGOBERTO - Bom, depois da água não quero ver mais ninguém aqui. AO SAIR CHAMA O
FEITOR. Broca, arranche a moça com os dois” (p. 9 e ss.).
A cena continua, mas para não a tornar muito extensa, vamos cortá-la para o trecho em
que Dagoberto expulsa um morador de nome Xenane de suas terras, para abrigar a família de
Soledade, que acabara de chegar ao engenho:
“XENANE - Patrão, eu não me sujeito. O patrão sabe que eu não enjeito parada, sou burro de
carga. Mas nascer pra estrebaria eu não nasci.
DAGOBERTO - Pois por ali, cabra safado. Você não nasceu para estrebaria, que é de cavalo de
sela, você nasceu pra cangalha.
XENANE - A gente bota um quinquingu, quando é agora o patrão sem mais nem menos... Patrão, e a minha roça atrás do rancho, e a rebolada de cana?
DAGOBERTO - O que está na terra é da terra. Vá embora.
PAUSA.
XENANE - Patrão, mande as ordens. Dá licença que eu leve os troços”.
Ao final da cena volta à personagem Ator e a conclui com a sentença de Paulo Pontes:
“ATOR - Esta cena se reproduz nos círculos mortais das secas: o retirante faz o marginal do
brejo e este se transforma, por sua vez, em marginal das cidades”.
É a visão do ciclo macabro da fome.
2.4 O Épico
O gênero épico, pelo que dele nos fala Anatol Rosenfeld, é a base estética de Paraí-bêa-bá: “Segundo a concepção marxista, o ser humano deve ser concebido como o conjunto de
todas as relações sociais e diante disso a forma épica é, segundo Brecht, a única capaz de apreender aqueles processos que constituem para o dramaturgo a matéria para uma ampla concepção do mundo. O homem concreto só pode ser compreendido com base nos processos dentro e
através dos quais existe. E esses, particularmente no mundo atual, não se deixam meter nas
formas clássicas”51.
O fim principal do teatro épico, em sua formulação brechtiana, é a revelação de que as
desgraças humanas não são eternas e sim históricas. Esta revelação é o móvel que também incentiva Paulo Pontes, particularmente no texto em questão, a debruçar-se sobre o tema da imobilidade e dele extrair, usando como recursos textos já existentes, um painel sobre o homem
tragicamente abandonado à sua própria sorte, vitimado por uma prática social imobilista. Mas
Paulo Pontes cortou e costurou o tema até descobrir o que dentro do tecido cultural forma aquela sociedade:
“ATOR 4 - Ninguém tolera a verdade. Quem disser a verdade eles chamam de louco. Mas na
Paraíba não tem louco. Pra ser louco na Paraíba é preciso ter muito juízo” (p. 48).
Em Paraí-bê-a-bá, Paulo Pontes buscou desvendar uma entidade subjetiva chamada
“homem paraibano”. Mas para alcançar o nervo mais sensível desse homem, ele procurou-o não
em sua subjetividade, mas nas relações sociais que o homem paraibano for capaz de engendrar,
por bem ou por mal:
51
ROSENFELD, Anatol. Op. cit. p. 147.
“ATOR - Mas, apesar de todas as adversidades mostradas até agora, o paraibano resiste. A desconfiança, a mordacidade, uma generosa capacidade de auto-ironizar-se, o humor violento, são
armas que a realidade brutal alojou em seu espírito”. (p. 48).
Paulo Pontes, como um detetive, debruçou-se sobre o objeto de sua matéria, e o fez ganhar a dimensão de um problema conflituoso.
Paraí-bê-a-bá estreou no dia 29 de janeiro de 1968, no Teatro Nacional de Comédia,
Rio de Janeiro. Apresentou-se pela primeira vez na Paraíba no dia 16 de fevereiro daquele ano,
no Teatro Santa Roza. O grupo reponsável pela apresentação trazia o nome de Teatro de Arena
da Paraíba.
3. O Palco da Crise
O historiador José Joffily, em artigo publicado no jornal Diário de Pernambuco, relembrando Paulo Pontes, disse que no período entre 1967 e 1968 o mundo viveu dias agitados:
“Nos Estados Unidos eram assassinados Luther King e Robert Kennedy. Rebentava no Oriente
Médio a Guerra dos Seis Dias. Enquanto em Portugal começava nova etapa de luta pela recuperação da democracia, em nosso país eram estranguladas as liberdades democráticas com o AI-5
silenciando as lideranças que tinham escapado da fogueira de 64”52.
O ano de 1968 foi de profundas inquietações no mundo, tanto no bloco Leste quanto no
Oeste, tanto no Hemisfério Norte quanto no Sul. O que aconteceu em 1968, passados tantos
anos, faz parte da especulação da história: Revolta? Revolução? Reforma? São palavras que
pertencem ao espólio com que a história busca justificar um fato tão complexo, um fenômeno
de inquietação internacional que, quase simultaneamente, explodiu em países os mais variados
e cujas histórias são as mais dessemelhantes. Todo o mundo de repente fora agitado por uma
onda de protesto. As barricadas, na sua já gloriosa luta contra o Leviatã do Estado, voltaram às
52
JOFFILY, José. “Paulo Pontes, 10 anos depois”. Diário de Pernambuco, 13 de fevereiro de 1987.
ruas de Paris, armadas por uma multidão de jovens estudantes que exigiam a devolução ao cidadão de um bem que não se sabe com certeza se algum dia existiu: liberdade.
Toda a inquietação do mundo; todo o repúdio contra o poder que erige a morte como
culto num tempo pulsante de vida; todas as injustiças sociais postas a nu por uma horda de jovens que, quase num átimo, perceberam que era a sua força e a sua juventude que o Estado exigia para poder perpetuar a morte; a contradição interna dos regimes Capitalistas e Comunistas
que não conseguiam fazer da felicidade (uma idéia utópica) um valor social possível de ser
conquistado com o trabalho e com a justiça; as idéias de pensadores como Marcuse, Marx,
Freud, Sartre, além de Reich; os exemplos de líderes como Mao Tsé Tung e Che Guevara, morto na Bolívia; as ditaduras. Todas essas coisas somavam-se no espírito dos jovens naquele ano
de 1968, criando ao mesmo tempo a resposta impulsiva da revolta e as teorias que se traduziam
em palavras de ordem: é proibido proibir: frase inscrita nos muros de Paris.
No Brasil (desde abril de 1964), a repressão ia estabelecendo um espaço de liberdade
cada vez menor. As inquietações dos estudantes marchavam para as ruas, e nas ruas se transformavam em pedras e coquetéis molotovs sobre a polícia.
O General Castelo Branco esperava que após noventa dias do direito governamental de
cassar mandatos e suspender políticos, depois da vitória de abril, viesse uma pacificação relativa. Mas o que aconteceu foi diferente, e vieram as medidas restritivas: Ato Institucional nº 2, a
extinção dos partidos políticos, recesso no Congresso, eleições indiretas para Presidente, VicePresidente e Governadores de Estados, a Lei de Segurança Nacional, a Lei de Imprensa, a compressão salarial, a proibição de greves, a intervenção nos sindicatos etc. Todo um elenco de
medidas que caracterizava a ditadura que, por fim, se institucionalizaria em 13 de dezembro de
1968, com o Ato Institucional de número 5 e Ato Complementar de número 38. Por eles, o
Congresso Nacional fora posto em recesso por tempo indeterminado e ficava assegurado ao
Presidente a possibilidade de sanções políticas, independente de qualquer controle judiciário. E
o que motivou o governo militar a tomar essas medidas? Aparentemente o discurso do deputado
carioca Márcio Moreira Alves, no qual protestava contra a invasão da Universidade de Brasília,
por tropas do Exército e da Polícia, na manhã do dia 29 de agosto. Dizia o deputado: “Quando
pararão as tropas de metralhar nas ruas o povo? Quando uma bota, arrebentando uma porta de
laboratório, deixar de ser a proposta de reforma universitária do Governo? Quando teremos,
como pais, ao ver nossos filhos saírem para a escola, à certeza de que eles não voltarão carregados em uma padiola, esbordoados ou metralhados? Quando poderemos ter confiança naqueles
que devem executar e cumprir as leis? Quando não será a polícia um bando de facínoras?
Quando não será o Exército um valhacouto de torturadores? Quando se dará o Governo Federal
a um mínimo de cumprimento do dever, como é para o bem da República e para a tranquilidade
do povo brasileiro?”53. A linha dura do Exército reclamava punições contra o deputado. Mas, na
verdade, o discurso candente e emocionado do deputado Márcio Moreira Alves estava mergulhado na mais pura realidade, na mais monótona rotina de tensão e medo que acompanhou a
vida do país naqueles meses.
Esse ano - 1968 - marcou a crise onde se evidenciava a falência do Estado e de todas as
teorias salvacionistas. As velhas regras de comportamento não importavam mais e, como consequência, diante da recusa do mundo (ou das forças políticas permanecerem obstinadas em seu
medo de mudanças), a juventude procurou uma nova forma de libertar o imaginário: as viagens.
Em gotas de ácido ou pelas estradas; com os cabelos longos e desalinhados como estatuto de
uma nova tribo; seu corpo como dádiva primeira e última da liberdade, altar de todos os prazeres e fonte de todos os desejos, a juventude encontrou no psicodelismo a forma alternativa com
a qual se poderia lutar contra as ditaduras políticas, contra o acomodamento burguês às regras
do jogo social, e contra também o american way of life, o sistema de vida americano. Contra a
caretice, somente éter na mente. Acreditavam nas flores vencendo canhões.
Claro que esse comportamento psicodélico não era regra geral na juventude. No Brasil,
por exemplo, existiam dois tipos de jovens: o hippie, tido como alienado, e o engajado na luta
política. A propósito, vem-nos à lembrança a peça do Vianinha, Rasga Coração, cujo painel da
vida brasileira mostra, no fim de tudo, aqueles dois jovens em pólos opostos.
A Linguagem artística, de comum acordo com as mudanças de comportamento, também
passou a exprimir-se de uma forma pouco racional, onde a experiência estética adquiriu valor
em si, e não mais uma forma programática de intervir no mundo. Não foi à toa que Caetano
Veloso fora pesadamente vaiado quando cantava, refletindo os anseios da rebeldia de 1968, “É
proibido proibir”, pelo público de Geraldo Vandré, aquele de “Pra não dizer que não falei das
flores”.
A postura sintonizada com a rebeldia pertencia à arte de vanguarda. A sintonizada com a
resistência pertencia aos já conhecidos artistas engajados.
Entre um e outro grupo pairava, na sociedade e no campo da arte, profunda crise de valores.
53
Apud Hélio Silva, op. cit. p. 437.
4. A crise no Palco
M. Berthold afirma que o lema do teatro em crise não é nenhuma invenção do século
54
XX . O teatro carrega consigo todos os anseios dos homens e das sociedades. O teatro é a arte
da permanência da crise. E como tal, como nenhuma outra arte, é capaz de refletir com clareza
a crise que as sociedades atravessam.
No ano de 1968, em que Paulo Pontes escrevera e montara Paraí-bê-a-bá, o teatro brasileiro refletiu profundamente a crise que então a sociedade atravessava. A crise vivida pelo teatro era, sobretudo, de linguagem. O problema era encontrar a linguagem adequada ao público, a
que viria em resposta à angústia do público naqueles anos difíceis.
Citando Ionesco, Berthold deduz que a nossa época perdeu a consciência profunda do
seu destino55. Esse fenômeno moderno, em termos formais, tratando-se de linguagem especificamente teatral, traduz-se em textos cuja organização é profundamente hermética, chegando
mesmo a constituir-se como uma espécie de código para iniciados. Muitas vezes esses textos,
refletindo as conquistas do teatro do Absurdo, são uma soma de referências culturais as mais
diversas do que exatamente texto previamente organizado para o palco. A esse tipo de texto,
hermético, muitas vezes até incompreensível, dá-se o nome de “vanguarda”. O curioso, atualmente, é que as “vanguardas” perderam seu papel histórico, esvaziaram-se de conteúdo e passaram a repetir fórmulas já consagradas de outras vanguardas. O nosso tempo perdeu a noção do
novo e, consequentemente, do revolucionário.
Mas se chegamos a uma crise, especificamente em termos de linguagem teatral, a raiz
desse problema, para nós, no Brasil, já se delineava desde meados da década de 60, quando
parte do teatro eliminou do palco a palavra e instituiu a agressão como a linguagem capaz de
atingir o público como uma bofetada. Aliás, “Dar uma, duas, três, muitas bofetadas” é o título
do artigo de Tite de Lemos (um dos encenadores do chamado Teatro Agressivo), na Revista
Civilização Brasileira, de julho de 1968, na qual consta um famoso artigo de Vianinha, “Um
54
BERTHOLD, M. Historia social del teatro/2: Madrid, Guadarrama, 1974, p. 281.
55
Op. cit. p. 283.
pouco de pessedismo não faz mal a ninguém”, onde ele analisa a posição do teatro brasileiro
naquele momento, a postura dos dois “setores” - como ele bem frisa: o “engajado” e o “desengajado”, ou simplesmente “esteticista”, que é o teatro que vê com ceticismo a participação concreta na vida social e política do país: “Os desacertos e a descontinuidade estéticos - diz Vianinha - parecem-lhe produto de uma posição a priori, de uma parcialidade, de uma posição doutrinária, estranha à arte. Prefere pesquisar e trabalhar no sentido de cada vez mais dominar os
segredos da fluidez estética, sem se preocupar com o mundo significativo que elaboram”56.
Vianinha, como todo o teatro engajado, estava profundamente preocupado em elaborar
uma linguagem que falasse com clareza ao público.
Anatol Rosenfeld, analisando a posição das vanguardas naquele momento, publicou um
artigo intitulado “Teatro Agressivo”, em que, procurando entender os motivos estéticos da agressividade, disse: “Quando a tensão entre as metas e a realidade, entre a verdade e a retórica,
entre a necessidade de transformação e a manutenção do status quo, entre a urgência de ação e o
conformismo geral torna-se demasiado dolorosa, é inevitável a “ira recalcada” e a violência das
manifestações artísticas”57.
Comentando o artigo de Vianinha, Fernando Peixoto disse que aquele foi “um instante
marcado por certa radicalização do pensamento e projeto e/ou por um anárquico e desenfreado
espírito de negação, de auto-destruição”. E completou: “Parte do teatro acompanha a radicalização do único público que lhe permanecia razoavelmente fiel: estudantes secundários e principalmente universitários. As manifestações e lutas de protesto estão nas ruas, a violência da repressão faz vítimas. Alguns encenadores não aceitam a aparente passividade do espetáculo enquanto ato de contemplação: a impaciência e o impulso de revolta atingem a própria linguagem
cênica”58.
Nesse debate, entra Paulo Pontes, naturalmente que ao lado da corrente “engajada”, para
fazer a defesa da palavra, da racionalidade contra o desespero, enfim, a defesa do bom-senso
como arma de luta contra uma situação agravantemente opressiva.
56
VIANNA FILHO, Oduvaldo. “Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém”. In Vianinha. S. Paulo, Brasiliense,
1983, p. 120.
57
ROSENFELD, Anatol. “Teatro Agressivo”. In revista Teatro Paulista. S. Paulo, 1967, sem editora, sem página.
58
PEIXOTO, Fernando. “Nota XIV”. In Vianinha, op. cit. p. 128.
Analisando esse problema, Anatol Rosenfeld reconheceu que a agressividade precisava
de uma tradução estética adequada para cumprir o seu fim, caso contrário, seria inócua: “A violência pode certamente funcionar - e tem funcionado - no caso de peças e encenações excelentes ou ao menos interessantes /.../ Mas fazer da violência o princípio supremo, afigura-se contraditório e irracional. Contraditório porque uma violência que se esgota na “porrada” simbólica
e que /.../ tendo de limitar-se ao lançamento de palavrões e gestos explosivos, é em si mesma,
como princípio abstrato, perfeitamente inócua. Contraditório ainda porque a violência em si,
transformada em princípio básico, acaba sendo mais um clichê confortável que cria hábitos e
cuja força agressiva esgota-se rapidamente”59.
O Brasil - como de resto, o mundo - vivia momentos de extremada violência. Os estudantes, a sociedade civil, enfrentavam com pedras e slogans a força dos urutus. A revolta provocada por uma ditadura que sufocava os anseios e as reivindicações populares, acrescentava a
agressividade no espírito de um tempo já perturbado por tantas radicalizações repentinas e espontâneas. A força da ditadura é capaz de provocar o medo, o sentimento de impotência, mas,
ao mesmo tempo, não é capaz de destruir certo sentimento utópico de liberdade e, juntamente
com esse sentimento, a reação contra as forças que o oprimem. O ser humano precisa ter a ilusão da liberdade. A ditadura destrói esta ilusão. Então, só resta lutar contra a ditadura.
Paulo Pontes era daqueles que pensava que essa luta necessitava de clareza. Daí por que
fazia a defesa da palavra. É preciso entender que ele nunca fora contra a forma das vanguardas
que, até mesmo por tradição, subverte a linguagem já assimilada por outra a ser (ou não) assimilável. Algumas vezes ele próprio se considerava vanguarda.
A luta contra o chamado “teatro agressivo”, em nome da “defesa da palavra”, muitas
vezes se confundiu como se fora contra as vanguardas, mesmo porque o “teatro agressivo” proclamava-se de vanguarda, assim como o “engajado” também se proclamasse. Esse foi um período em que a palavra “vanguarda” esteve em moda. E essa vanguarda tanto podia ser “estética”
(como se dizia das “vanguardas”), como ser “política” (como se dizia da turma da “palavra”).
Tudo era uma questão de interpretação.
João das Neves, num artigo relembrando Paulo Pontes, marcou datas precisas em que
ocorreram a luta “contra” versus “pela palavra”: “Quando a cultura brasileira nada pode dizer,
59
ROSENFELD, Anatol. Op. cit.
ela voltou-se contra si mesma, contra o ato de dizer. Entre 68 e 76, no teatro brasileiro, há um
brutal combate à palavra”60.
Tânia Brandão, num artigo publicado pela revista Ensaio, já tinha uma visão bastante
negativa do valor da palavra no palco: “Gerada a partir desta base histórica, a “estética da palavra” eclodiu após a grande crise teatral iniciada em 1968, marcada pela necessidade institucional de erigir um sistema oficial de teatro. A essência da crise é o desejo de estabilização do trabalho artístico, consolidação mínima das conquistas de linguagem efetuadas a partir dos anos
cinquenta. Crise cultural em que o sistema teatral brasileiro revelou-se incapaz para sustentar o
aprofundamento de suas questões específicas. É o momento da “diluição”, em que desaparecem
os grandes grupos, surgem às montagens por ator, e não se compreende mais (ou não se deseja
mais) qualquer questionamento do palco. Iniciou-se uma luta declarada contra a inquietude não importa definir-se o que, neste quadro de caricatura, “inquietude” significa. A cena em que
a palavra predomina é um objeto de eleição cômodo. Pensava-se que aí estaria mesmo a possibilidade de construir um Teatro do Brasil”61.
Esse texto da Tânia Brandão colocava o teatro diante de pelo menos três problemas:
Primeiro: consolidação mínima das conquistas de linguagem efetuadas a partir dos anos cinquenta.
Segundo: não se compreendia mais (ou não se desejava mais) qualquer questionamento
do palco.
Terceiro: a cena em que a palavra predomina é um objeto de eleição c”modo.
Não é bem assim. A conquista de linguagem efetuada a partir dos anos cinquenta já estava absolutamente concretizada pela própria história. Ninguém pode negar a importância que
grupos como Arena, Oficina e Opinião, além dos CPCs e sem esquecer o TBC (e é possível
juntá-los todos aqui, porque todos, de diferentes modos, à sua maneira, contribuíram profundamente com a consolidação da cena nacional), e outros tantos grupos menores que a história mal
registra, tiveram fundamental papel na construção da cena, da escritura do texto e numa interpretação muito própria. Em 1968, as linguagens adquiridas na década anterior e ao longo da
década de 60, já estavam perfeitamente estabilizadas, e a luta travada dentro do teatro com a sua
linguagem não passava naquele momento pela consolidação de coisa nenhuma, mas sim, e isto
60
DAS NEVES, João. “A retomada de um caminho”. In Paulo Pontes - a arte da resistência. Op. cit. p. 20.
61
BRANDÃO, Tânia. “A estética da palavra”. Ensaio - Teatro nº 5. Rio de Janeiro, Achiamé, p. 17.
é o que nos parece importante, pela permanência da cena aberta. A luta era pela existência do
teatro e contra a sua destruição, contra a sua morte, uma vez que estava o teatro totalmente cercado pela ditadura e pela pressão econômica, que, aliás (não mencionada por Tânia Brandão),
foi o que conseguiu destruir a experiência do Arena, do Oficina e do Opinião, os três grupos
mais importantes da década de 60. Para só ficarmos em alguns poucos exemplos, vale a pena
lembrar que Augusto Boal, líder do Arena, teve que se exilar do país, depois de preso e torturado; José Celso Martínez Correa, líder do Oficina, teve que se exilar do país e o Opinião, entre
outros problemas, não suportou a pressão econômica e houve, então, uma ruptura no seu elenco, inclusive com o exílio de Ferreira Gullar. São apenas alguns poucos exemplos da pressão
com a qual o regime ditatorial fechava o cerco contra o teatro. A luta travada era pela sobrevivência do artista no seu lugar de trabalho: o palco. E, para isso, era preciso estabelecer alianças.
A luta pela “palavra” significava solidariedade com o público pelo momento difícil que todos
atravessavam, e não seria agredindo o público que se conseguiria a necessária solidariedade,
mesmo porque, um espectador agredido é um espectador a menos no teatro. É sabido também
que o “Teatro Agressivo”, o teatro supostamente influenciado pelas vanguardas internacionais,
era agressivo com o público, e não com as forças opressivas da sociedade. Era lutando contra
um comportamento que dividia o teatro, afastava o público e enfraquecia a resistência contra a
opressão, que Paulo Pontes e tantos outros se debatiam.
Foi pensando nisso que ele falou a Márcia Guimarães: “A nossa história parece que se
dá aos saltos. Parece que a gente não tem memória. É difícil a gente ver em desenvolvimento,
por exemplo, a história do teatro brasileiro. E por quê? Porque em consequência dessa dependência cultural, aparecem sempre fenômenos de fora, exógenos, que perturbam, que fincam
uma cunha, que seccionam um momento do outro. E o processo nunca se faz, nunca se completa. Então, são raros os momentos que a gente tinha realmente condição de ver um século de
vida brasileira /.../ É preciso aprender a perceber em cada instante da história, aquilo que ela
tem de permanente. Aprender a ver o passado de uma forma histórica. Aprender a tirar do passado aquilo que ele pode dar. Aprender a fazer com que o passado se contente no presente. A
história não é um constante nascer do nada. É desenvolvimento. É acrescentar alguma coisa ao
que já foi feito. É assim que o processo se desenrola e se enriquece. Se você estiver permanentemente derrubando o passado e inventando o novo, você não está fazendo história. Está fazendo um jogo de quebra-cabeças. Então, porque não tivemos direito à nossa história, de repente,
não tivemos meio de evitar que o nosso teatro se desligasse de seu povo”62.
62
GUIMARÃES, Márcia. “Em vez do banquete, a “Gota D'água”. In jornal Última Hora. Rio de Janeiro, 28.11.76.
Os outros dois pontos problemáticos destacados do texto de Tânia Brandão pecam também pelo excesso da afirmação. Recorremos outra vez a Paulo Pontes para conflituar com o
segundo ponto: “Porque o que não é possível é continuarmos como estávamos há um ano: ou o
teatro meramente comercial, o vaudeville importado ou o teatro bem intencionado, combativo,
mas esteticista, formalista, transplantando para cá, erroneamente, o vanguardismo americano ou
europeu, que não tem nada a ver com nossa vanguarda. A vanguarda de um país subdesenvolvido tem que sair das consultas às necessidades mais profundas da sua sociedade”63.
Finalmente, o terceiro ponto. Outra vez recorremos a Paulo Pontes, num texto muito interessante em que o autor apresenta o seu material de trabalho, o aparentemente “cômodo” que
vai à cena, como quer Tânia Brandão: “Tudo o que eu escrevo é muito simples. O material que
eu uso é de lixo, é a rua, é o material pobre. Agora, o que é sofisticado é a elaboração do conteúdo. Demoro meses e meses nessa elaboração, tomando conhecimento da complexidade do
fenômeno. Mas só trabalho com a temática da maioria. A dramaturgia confessional das personagens de exceção não me interessa. Acho que o teatro não é a arte da perplexidade. O teatro é
a arte das coisas sabidas”64.
63
Apud Sérgio Fonta, “O teatro não vai ao povo nem o povo ao teatro”. in Livro de Cabeceira do Homem/1. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 81.
64
“PAULINHO, por Paulo Pontes”. Rio de Janeiro, jornal Última Hora, 28 de dezembro de 1976.
5. A volta ao Rio
O “teatro agressivo”, por trás de sua formulação teórica, manifestava certo desejo quase
religioso de catarse, de uma grande purgação coletiva, como percebeu Anatol Rosenfeld65. Paulo Pontes e a turma da “palavra”, por outro lado, propunham outra coisa: certa aliança com a
classe média (que muitas vezes chamaram de simplesmente “povo”); e que o teatro não perdesse a perspectiva histórica do país; o não desespero; a não dissolução do poder de luta.
Não cremos que esta postura fosse melhor ou pior do que a outra: eram os problemas
postos à mesa no momento: ou se exercitava uma agressividade primal ou um convencimento
racional. A primeira postura, profundamente mergulhada em um determinado esquema de vanguarda, desmanteladora de mitos, escatológica, em algum ponto beirando o misticismo. A segunda, herdeira da racionalidade do realismo, ou, como quer Tânia Brandão, do materialismo
dialético. Só não é verdade que operando a palavra no nível do saber, esta segunda corrente
empobreceria qualquer poesia, como afirmou Tânia Brandão.
O que nos parece importante assinalar é que, para aquela geração de artistas formados
dentro do CPC - ou de movimentos semelhantes - continuava a prevalecer à arte como princípio
didático. Não é por acaso que Boal, ao estruturar o seu método, o chame precisamente de Teatro do Oprimido, título tirado do livro em que Paulo Freire demonstra o funcionamento do seu
método de alfabetização, Pedagogia do Oprimido.
Nem é preciso dizer que Paulo Pontes também via a arte com o mesmo propósito.
Paraí-bê-a-bá foi a sua primeira peça, a rigor, sendo que ele um ano antes se desligara do grupo
Opinião.
Bibi Ferreira conta que em 1968, depois da estréia de Paraí-bê-a-bá, Nadia Maria, voltando de uma viagem pelo Nordeste, conversou com Almeida Castro, então diretor artístico da
TV Tupi, sobre “um rapaz muito novo que tinha feito alguns trabalhos no Opinião do Rio e
estava trabalhando numa rádio em João Pessoa. Fazendo uma programação muito inteligente.
Almeida Castro decidiu conhecer esse “fenômeno” que havia trocado o Rio pelo Nordeste. Via65
ROSENFELD, Anatol. Op. cit.
jou até João Pessoa. Ouviu um programa ao vivo realizado pelo rapaz. No dia seguinte, trazia
Paulo ao Rio, para a equipe de criação da TV Tupi”66.
Paulo Pontes, então, apontou outros nomes de pessoas com as quais trabalhara no Opinião, e que poderiam, juntamente com ele, dinamizar a equipe de criação da Tupi: Vianinha e
Armando Costa.
66
FERREIRA, Bibi. “Ontem eu vi uma estrela cair do céu...” in Paulo Pontes - a arte da resistência. Op. cit.
TERCEIRA PARTE
A TELEVISÃO OU A MASSA COMO MEIO
“O mais importante que eu aprendi com ele foi
exatamente lutar. E uma luta difícil contra o comodismo”.
Chico Buarque
“Quem pretende visitar Itamaracá (Pernambuco) deve incluir em seu roteiro turístico,
para meditar alguns minutos, antes ou depois de atravessar a ponte que une o continente à ilha
onde se encontra o Forte Nassau, uma rápida parada num estranho santuário. Está localizado
num ponto de fácil acesso; no centro da pequena vila de poucas ruas. Um santuário que, aliás,
existe, sob diferentes aspectos, em inúmeras vilas e pequenas cidades do interior do Nordeste
brasileiro. É constituído por uma estaca, tendo em cima uma pequena caixa, cor-de-rosa no caso, fechada com um cadeado. Nesta vila em frente à ilha de Itamaracá, região histórica marcada
pela invasão dos holandeses, o novo invasor está escondido dentro da caixa: à noite todos os
moradores vem para a praça trazendo cadeiras ou sentando no chão, o cadeado é aberto e dentro
está um aparelho de televisão”67.
Fernando Peixoto não foi o primeiro e nem provavelmente ser o último a lamentar que
a televisão, com o seu olho mágico, enfeitice a consciência rural do país e sub-repticiamente vá
decalcando a velha cultura tradicional uma outra que lhe é estranha; ao velho pensamento patriarcal - um outro que lhe é diferente. Sem dúvida esse fenômeno existe. Cacá Diegues, há alguns
anos atrás, realizou Bye Bye Brasil, um filme que aponta para as “espinhas de peixe” (as antenas dos aparelhos de televisão) e as identifica como inimigas da cultura popular, quando mostra
uma companhia de artistas mambembes que cada vez mais busca as pequenas vilas do interior
brasileiro, lugares onde as antenas não estejam presentes, e não constituam, portanto, o impedimento para que seu espetáculo se realize.
A televisão muda o comportamento. Muda também o pensamento. Molda uma outra
cultura; revela outro universo; amplia a visão do mundo; acrescenta novos valores; ao mesmo
tempo que pode tudo aumentar, pode também reduzir: mudar o comportamento sem mudar o
pensamento; moldar outra cultura sem revelar outro universo; ampliar a visão do mundo sem
acrescentar novos valores. A televisão é apenas um instrumento, e, assim sendo, a sua eficiência
para melhor ou pior só depende dos interesses em jogo. Não é a besta eletrônica do Apocalipse,
como às vezes aparenta, diante dos depoimentos dos que querem “salvar” (embora não se duvide das boas vontades) a cultura popular. Não é também um anjo de candura, inocente e desinte67
PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaços. S. Paulo: Hucitec, 1980, p. 91.
ressado. É um instrumento e, como tal, submetido às leis de mercado, às ideologias e, no Brasil
em particular, ao controle do Estado que a transformou numa espécie de sesmaria moderna,
transformando-a em “latifúndios”.
A televisão é uma realidade presente na vida cotidiana de milhões de pessoas. Ou como
já o notou Umberto Eco, a televisão é um serviço68. E como serviço, presumivelmente à população, o seu problema primordial não é o que ela exibe, mas - disse Vianinha - o que ela deixa
de exibir: “A revista TV Guide (americana, com tiragem de 6 milhões de exemplares) fez uma
análise da programação mundial de televisões. Chegou à conclusão de que, praticamente em
todo o mundo, no chamado horário nobre, predomina a produção americana, as séries para TV:
a mentalidade do policial, de um perseguindo o outro. A revista notava, porém, com indulgente
estranheza que, num país da América do Sul, a televisão não seguia essas normas mundiais.
Era o Brasil. No Brasil, das 6 da tarde até 10 e meia da noite - uma faixa bem mais extensiva do
que o “horário nobre” - só existe produção de autor nacional, só produção nacional. The novels,
como eles dizem. Ser que este simples fato não justifica a participação de um homem de cultura na TV brasileira, ou o preconceito exige mais justificativas? Nada tenho contra o que é exibido na TV. O problema da TV não é o que ela exibe, mas o que ela deixa de exibir. Esse problema foge à alçada decisória da própria TV. A emissão fatual da grande realidade é uma constante de todos os meios de comunicação. No plano da informação, portanto, a televisão não é
criadora - é extensiva, é democratizadora, difusora de valores vigentes socialmente e também
difusora de valores espirituais conquistados pela humanidade ao longo de sua grande aventura
espiritual”69.
No momento que fala da televisão como democratizadora dos valores conquistados pela
humanidade, Vianinha toca num ponto que é também muito caro a Umberto Eco, quando estudou o assunto da cultura de massa, da qual a televisão é um braço. Ele considera que a nossa
época é de alargamento da área cultural, onde se realiza, a nível mais amplo, a circulação de
uma arte e de uma cultura popular70, com o que concorda Paulo Pontes. Ele mantém-se sempre
obstinado em encontrar a linguagem adequada para falar à massa: “Televisão é por natureza um
veículo democrático. Interessa a milhões de pessoas, pode ser ligada por qualquer um. O grande
68
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. S. Paulo: Perspectiva, 1987, p. 335.
69
Apud Carmelinda Guimarães. Op. cit. p. 97.
70
ECO, Umberto. Op. cit. p. 9.
tema da TV é aquele que diz respeito à maioria da população /.../ O autor não pode escolher um
tema que só interessa a uma minoria, como também não pode usar, para a maioria, uma linguagem de minoria. Seria destruir a própria natureza da televisão: democrática, ampla, social, feita
para milhões. Isso não quer dizer que haja qualquer contradição entre qualidade e TV. Existe
contradição entre linguagem aristocrática e TV”71.
Mas se o fator positivo da televisão é alargar o domínio da informação e da cultura para
uma ampla camada da população, existe, por outro lado, o fator negativo de, num país como o
nosso, dotado de uma diversidade cultural acentuada, receber a imagem de apenas um lado,
uma região, menos do que isso, duas cidades de um país, conforme já frisamos anteriormente72.
A televisão, a princípio, é um veículo democrático de difusão da informação e cultura, mas não
num país como o nosso, cujos canais de televisão são concessões do governo, atendendo a interesses de grandes grupos econômicos que disputam, agressivamente, todo o território nacional.
A televisão brasileira não expressa a imagem do Brasil, mas sim de dois centros produtores, até
mesmo quando põe no ar programas que buscam retratar a vida ou a cultura interiorana, por
exemplo, ou de outras regiões do país. Frequentemente, o interior é apenas cenário, e a fala do
apresentador (ou dos atores), macaqueamento da fala regional, transformando em ridículo o que
é específico de uma cultura, ou de uma região.
Nesse sentido, tem razão Fernando Peixoto quando afirma: “A televisão produzida no
sul, invade o norte, levando imagens que, pouco a pouco, passam a determinar o comportamento e os valores sociais e éticos de populações desprotegidas. O vídeo mata os valores regionais e
a cultura popular, ao mesmo tempo em que entrega a esta população, um mundo de sonho e
fantasia, mentira e ilusão. As perspectivas da vida em pequenas cidades e vilas do interior de
Pernambuco ou da Paraíba não são radicalmente alteradas. Padrões morais e condicionamentos
coletivos são fundamentalmente modificados. Em certo nível existe uma modernização dos
costumes que pode ter uma dose de elementos positivos. Mas o preço pago é bastante alto. Atualmente, folhetos de cordel analisam fatos mostrados pela televisão. E muitos heróis populares
71
Apud Alex Santos, “Paulo Pontes: viver da máquina de escrever eu sempre vivi”. In jornal O Norte. João Pessoa,
25 de janeiro de 1977.
72
Ver tópico Rodízio.
do sertão do Nordeste passam a ser substituídos pelos “ídolos” fabricados nos estúdios de São
Paulo e Rio”73.
A cultura é fruto da existência da sociedade. E como tal também se submete a modificações, cujos resultados podem ser positivos ou negativos. Não se pode esquecer de que a televisão existe e exerce enorme poder sobre o comportamento dos grupos sociais. De uma certa
forma, lamentar que o comportamento, a cultura, a visão de mundo de determinada comunidade
esteja sendo modificada pela imagem projetada na telinha, significa um certo conservadorismo,
algo assim como lamentar a morte de velhas civilizações com as suas culturas, seus exotismos
aos olhos de hoje.
Qualquer cultura que nos seja estranha é vista com certo exotismo. Passamos a vê-la
com os olhos do estrangeiro que pensa descobrir naquilo que lhe é diferente uma aura perdida.
Não foi à toa que Fernando Peixoto descobriu naquele lugar um “santuário” ameaçado pelo
invasor eletrônico. Mas a televisão, assim como a cultura de massa (que ao vulgarizar a fruição
do produto cultural possibilitou o acesso dos bens de cultura a um maior número de pessoas), é
conquista definitiva dos nossos tempos. É inútil lamentar. Melhor é compreender que a cultura,
assim como as pessoas, assim como as civilizações, morrem e são substituídas por outras. É a
vida. É a fome de Cronos, o Tempo, devorando os seus filhos. É a dialética da natureza. É a
aventura humana: “Talvez a TV nos esteja levando unicamente para uma nova civilização da
visão, como a que viveram os homens da Idade Média diante dos portais das catedrais. Talvez
passemos a impregnar, gradativamente, os novos estímulos visuais de funções simbólicas, e nos
encaminhemos para a estabilização de uma linguagem ideográfica”, conforme Umberto Eco,
prenunciando o surgimento de um novo tempo74.
Mas nada disso resolve o problema daquela vila em Itamaracá, Pernambuco. O problema daquela vila é político. E é anterior à instalação da caixa cor-de-rosa no centro da praça.
Aquela vila, talvez, precisasse de uma emissora sua, assim como outras vilas possuem os seus
jornais e as suas emissoras de rádio. Mas parece que ao poder interessa mostrar a vida como
uma vitrine, onde a felicidade está quase ao alcance da mão, do outro lado da redoma de vidro.
E como uma vitrine, a felicidade desejada não se conquista, se compra. Do outro lado da vitrine
h a vida pseudamente glamourosa dos artistas e as suas roupas impecáveis, seus carros do ano,
73
PEIXOTO, Fernando. Op. cit. p. 91.
74
ECO, Umberto. Op. cit. p. 353.
seus dramas sentimentais, e uma grande cidade aconchegante. A televisão, já alertava Umberto
Eco, tem a capacidade de tornar-se um instrumento eficaz de pacificação e controle social, garantindo a conservação da ordem estabelecida75. Tem ainda o poder sugestivo de uma hipnose,
como ele próprio demonstrou, a propósito de uma pesquisa realizada na cidade de Chicago76.
O homem daquela vila, hipnotizado pela felicidade estampada no vídeo, emigra para a
cidade grande. Vai compor a imensa mão-de-obra reserva necessária ao capitalismo, à manutenção dos baixos salários. O seu problema, com certeza, não é a perda de uma cultura aurática
(aos olhos de quem é estrangeiro).
O problema é outro. E já que os grupos econômicos são poderosos, e o governo (e todas
as forças sociais que o apóiam) é o governo desses grupos, fica difícil quebrar o monopólio das
concessões de canais de TV. Mas sempre é possível trabalhar a sua linguagem no interesse contrário ao dos grupos dominantes. Vianinha depõe: “Como linguagem técnica ou artística, a televisão não é boa nem má. Depende do uso que se faz dela. A serviço de interesses econômicos e
políticos de uma cultura emancipada, é contestatória. A televisão torna-se, como acontece diariamente, um tóxico incontrolável que atua diretamente no cérebro do espectador, moldando
consciências e entravando o raciocínio criativo, impedindo a reflexão crítica, promovendo com
violência e agressividade um tipo de massificação que resulta útil e necessário à dominação
cultural e outras dominações. Mas nada existe sem contradições internas. Produzida por homens, a televisão existe em função do que os homens pensam e da postura que estes assumem
diante do trabalho que realizam. Depende portanto do nível de astúcia de alguns, capazes de
encontrar brechas numa parede aparentemente intransponível”77.
Umberto Eco, por outros caminhos, chegou à mesma conclusão: “Por trás de toda direção da linguagem por imagens, sempre esteve uma elite de estrategos da cultura, educados pelo
símbolo escrito e pela noção abstrata. Uma civilização democrática só se salvar se fizer da linguagem da imagem uma provocação à reflexão crítica, não um convite à hipnose”78.
75
Op. cit. p. 346.
76
Op. cit. p. 345.
77
VIANNA FILHO, Oduvaldo. Vianinha. Op. cit. p. 157.
78
ECO, Umberto. Op. cit. p. 353.
1. Bibi - Série Especial
Era o nome do programa com o qual Paulo Pontes estreou na TV Tupi, no ano de 1968.
Foi o início de sua fase verdadeiramente criativa, e que o acompanhou até os momentos finais
de sua existência. A televisão estimulava-o enormemente. Escrever para um público grande era
sua ambição desde muito no teatro. No programa, ainda no tempo da Rádio Tabajara, conseguia
obter a maior audiência para o horário; com a peça Paraí-bê-a-bá, conseguiu provar, como era
o seu propósito no prefácio ao texto, que o público para teatro existia em qualquer lugar, em
qualquer cidade, e que todo o problema era de linguagem.
Agora, na TV Tupi, outra vez ao lado de Vianinha, teria condições de continuar as suas
pesquisas de uma linguagem popular, a que atrairia multidões para dentro do teatro, como de
fato acabaria acontecendo. E essa linguagem tão criteriosamente procurada, tão persistentemente perseguida, não tinha, na verdade, segredo algum: era a linguagem da rua, e ele nunca se cansou de repetir o caminho que atrairia o público: “Se você não representa a tem tica da multidão,
você representa uma tem tica abstrata, e aí você não tem a cara do público, as tendências do
público reveladas para pesquisar em torno delas. Quando o teatro brasileiro era das massas,
apesar de termos uma dramaturgia pobre, tínhamos comediantes populares aos montes, de extraordinária qualidade. Por quê? Porque representavam para a multidão que respondia com seu
aplauso, seu silêncio, seu riso, sua emoção, sua cara e sua temática /.../ Se você tira essa humanidade variada, complexa e buliçosa do artista, tira a sua fonte de pesquisa. Então, vai pesquisar
em torno do quê? De coisas abstratas. Vamos fazer laboratórios sofisticados, burilados, requintados e cada vez menos eficazes, porque não há base social”79.
Impressionou-o muito quando uma comédia como A Gaiola das Loucas, de Jean Poiret,
conseguiu levar um público de trezentas mil pessoas ao teatro. Ele não gostava da peça, mas
não deixou de observar que um público enorme telefonou, fez reserva, saiu de casa, enfrentou
79
SANTOS, Alex. Op. cit.
trânsito e fila para assistir a um espetáculo teatral. Era um fenômeno que não podia passar em
branco. Era preciso estudar o comportamento daquele público, a sua motivação para assistir a
um espetáculo teatral. E com tenaz persistência, consegui-o, sendo sempre fiel a si mesmo, ao
seu pensamento, ao seu ponto de vista, à sua consciência sobre o que é teatro e sobre a matéria
que o alimenta.
Adotava, para a televisão, o mesmo critério que tinha para o teatro. Certa vez, ele declarou como são suas personagens: “Nunca criei um tipo abstrato. Nunca usei apenas os recursos
da minha imaginação para as personagens. Todos os tipos quase sempre eu vi, conversei com
eles, conhecendo bem a todos. Das características da personagem na vida real é que seleciono
as características que vão fazer o tipo”80.
Com a observação dos tipos reais, do homem comum da rua, Paulo Pontes compunha a
galeria das suas personagens, que ia ao ar pelas antenas da TV Tupi. Junto com Vianinha, conseguiu realizar alguns belos momentos para o programa Bibi - Série Especial. São obras que se
caracterizam pela ação compacta, pelo denso conflito, pela tensão que se instala desde a primeira sequência.
Os temas giram em torno do medo e da injustiça, bem de acordo com a época em que
foram escritos. No resultado final de cada trabalho está contido um indisfarçável humanismo,
uma certa solidariedade com a dor que era de todos. São como depoimentos sobre o terror e a
miséria da ditadura, sob o ponto de vista do homem comum, o que vive o terror e a miséria sem
se dar conta de que a sua causa está instalada no poder de plantão.
Carmelinda Guimarães, no livro sobre Vianinha, apresentou a relação das peças que eles
criaram juntos naquele período81. Daquela relação selecionamos alguns textos, o suficiente para
ter-se um painel mais amplo sobre a visão de Paulo Pontes nessa fase de sua vida. Carmelinda
cometeu um pequeno engano quando disse que as obras foram ao ar pela TV Globo. As obras
foram apresentadas pela TV Tupi82.
80
Idem, ibidem.
81
GUIMARÃES, Carmelinda. Op. cit. p. 96.
82
Todos os textos citados são encontráveis na Biblioteca do INACEN - CENACEN (hoje Funarte) - Rio de Janeiro,
em forma de apostilas. Analisaremos cada obra como texto (esquecendo o seu fim como obra televisiva). Como
não são textos editados, não faremos referência de página.
1.1 - Sem Saída
Sem saída é a situação proposta pelo texto. É o seu tema. Personagens pobres postos diante da vontade implacável de um homem que, mais do que um simples homem, é uma verdadeira instituição informal, dedicada ao contrabando, ao comércio de drogas, à exploração do
jogo do bicho, enfim, todo tipo de contravenção possível. Esse homem controla uma área da
cidade. E dentro dessa área, não permite que outros marginais trabalhem sem lhe pagar o imposto devido pelo direito de trabalhar ali. Ele é o senhor absoluto daquele lugar. A sua vontade
é lei.
Logo na abertura do texto o problema (a vontade imperial de Nelsinho) está proposto,
através de uma personagem satélite que aparece para compor a imagem: a rubrica diz que Raimundão (a personagem satélite) está preso numa cadeira, seguro por três homens. Entra Nelsinho, e com ele uma mulher (ainda não identificada), mas também segura por um homem. A
rubrica caracteriza Nelsinho, reforçando a imagem do chefão absoluto: impecavelmente vestido
de branco, óculos escuros, anéis, muito colar de umbanda - ou quimbanda. Raimundão, naquela
situação, e antes de Nelsinho aparecer, tenta se impor:
“RAIMUNDÃO - Me deixa ir embora... Estão pensando o quê... Me larga... Também tenho
amigo importante, hein? Não é só o Nelsinho, não! Vocês vão se dar mal comigo... Não tenho
medo do Nelsinho, não...”
Entra Nelsinho, e Raimundão, diz a rubrica, fica um tempo em silêncio, e depois, quando fala, está muito mais afável:
“NELSINHO - (DEPOIS DE TEMPO) Fico feliz de saber que você não tem medo de mim...
Muito calor. Não está muito calor?
RAIMUNDヌO - Está... Está, sim...
NELSINHO - Toma um copo de cerveja. (RAIMUNDÃO BEBE UM GOLE) Bebe tudo, Raimundão. Estou te oferecendo. (RAIMUNDÃO BEBE. NELSINHO ENCHE OUTRO COPO).
RAIMUNDÃO - Não, Nelsinho, quero ir embora...
NELSINHO - Bebe mais, Raimundão. (NELSINHO ENCHE OUTRO COPO) Vamos de novo
que o calor está demais.”
Assim Raimundão vai bebendo sucessivos copos de cerveja, até não suportar mais. Ainda assim, Nelsinho obriga-o a beber um último copo.
Esta sequencia inicial tem uma dupla finalidade: apresentar Nelsinho e a sua vontade
implacável, como também o seu poder sobre a área. Raimundão foi levado à sua presença porque cobrou aluguel em barraco de favela, coisa que só Nelsinho se permite fazer. Nelsinho poderia, se quisesse, matá-lo. Mas como aquele era o dia de Omulu, seu protetor, ele o perdoaria
desta vez. Para reforçar o poder de vida e morte de Nelsinho, em outra sequência mais adiante,
aparece uma outra personagem satélite, de nome Sujeito:
“NELSINHO - Então, você vende os “pacáu” e queria ficar com o dinheiro só pra você.
SUJEITO – É freguesia minha que eu arrumei sozinho.
NELSINHO - Essa zona é minha. Pra tudo. Quem te arranja proteção pra vender erva sou eu.
Quem arranja advogado sou eu. Já é mais de meia-noite. Não é mais dia de Santo Lázaro, meu
protetor. Pode matar ele.”
Apresentada a personagem e a sua vontade poderosa, na continuidade da sequência do
Raimundão (alternada por cortes que mostram a mãe de Terezinha em casa, preocupada com a
demora da filha, detida em casa de Nelsinho), é posto em foco o conflito representado pela fragilidade de uma moça diante do desejo do bandido:
“NELSINHO - Eu escolhi você Terezinha. Já te disse. Você é a menina mais bonita que tem
por essa zona. Vou casar com você. Olha seu vestido de casamento... Enxoval... Olha essa toalha felpuda. Tudo pra você. Essa casa é tua! Quero ter um filho teu. Pra quando eu morrer continuar a ser dono da zona inteira.
TEREZINHA - Não quero, não quero, sou noiva, eu...
NELSINHO - Não quer? Não quer essa riqueza toda? Prefere continuar vivendo em barraco?
Olha aí. Tenho dois ventiladores. Colchão de mola. Jóia. O banheiro tem bidê. Olha lá!
TEREZINHA - Não quero. Me deixa em paz, por favor.
NELSINHO - Juro, não vai ter nenhuma outra mulher dentro dessa casa. Só você, Terezinha.
TEREZINHA - Me trouxeram à força aqui, quero ir embora (TENTA SAIR. NELSINHO A
SEGURA FORTE).
NELSINHO - Não entendo. Não entendo uma mulher se recusar querer ser rainha! Com abajur
de cetim! Pensa Terezinha, mas pensa depressa. Quero me casar no mês que vem no dia de São
Bento. Quero a resposta daqui a dois dias, nessa mesma hora. Te espero sozinho aqui na nossa
casa daqui dois dias.
TEREZINHA - Se eu disser que não quero?...
NELSINHO - Nem me fale assim, Terezinha. Foi meu pai de santo que disse que você é a mulher da minha vida. Já avisei os amigos. Nem pense em dizer que não, Terezinha, se você quer
sossego pra você... E pra sua família...”
Diante da vontade de Nelsinho, não há saída para essa personagem. O conflito consiste
em Terezinha não aceitar a sua imposição. Mas ela sabe que não há outro jeito de solucionar o
problema. E mesmo sem querer, vai cedendo, consciente de que não há saída. Conta para a mãe
o que houve, mas não conta para o pai. Desfaz o noivado, para proteger a integridade do noivo.
A mãe, Amália, enxerga uma única possibilidade de evitar o casamento indesejável: dirige-se
ao posto policial:
“POLÍCIA - Não posso fazer nada com o Nelsinho, dona. Querer casar com sua filha não é
crime.
AMÁLIA - O senhor não diga pra ninguém, por favor.
POLÍCIA - Digo não. Não gosto de me meter também com coisas do Nelsinho Bicheiro.
AMÁLIA - Vocês não podem prender esse sujeito? Ele é contraventor. Todo mundo sabe.
POLÍCIA – É difícil pegar prova, dona. Bem que eu queria. Ele já pegou um irmão meu. Matou.
AMÁLIA - E vocês não podem pegar ele?
POLÍCIA - Ele tem muita costa quente, dona. Muita amizade. Muita trança.”
Então, está justificado o poder de Nelsinho. Há influências externas, poderosas, que o
mantém. Mas isso só agrava o quadro do conflito posto. Não há saída, não há solução.
Na sequência seguinte a do posto policial, Nelsinho está distribuindo dinheiro junto à
população, como se fosse um verdadeiro ponto de assistência social. Ele, o contraventor que
explora a área também protege os habitantes do lugar, atendendo-os em suas necessidades. Esta
é a sua outra base de apoio. O bandido que protege a favela é protegido por ela.
Há todo o tempo dentro da ação uma personagem muda: o avô de Terezinha. Se esta esconde do pai o conflito colocado por Nelsinho, quando fala com a mãe não se preocupa de es-
condê-lo do avô figura enigmática, calada, que testemunha tudo o que acontece com a neta. O
avô se dirige à casa do bicheiro e pede duzentos contos. Nelsinho percebe que o avô não fala.
Lê o bilhete que o velho lhe apresenta.
Enquanto isso, Terezinha, percebendo que a situação não tem saída, resolve ceder para
salvar a família. Sua mãe resiste. Mas ela sabe que não há outra solução.
O avô, de posse do dinheiro dado pelo bicheiro, compra um revólver, volta à casa do
bandido. Nelsinho está se perfumando, preparando-se para sair com Terezinha. O avô toca a
campainha. Nelsinho vai atender. O velho descarrega no bicheiro o revólver que comprara com
o dinheiro que ele lhe dera, julgando que seria para compra de remédios.
O velho avô, no seu mutismo, também percebeu que a situação era sem saída.
O texto é curto, como todos os outros dessa série. Mas tem uma sequência de corte e
montagem da ação muito ágil, muito rápida, definindo em pouco tempo personagens, situação e
conflito, e no caso deste, cumprindo, ironicamente, uma situação que o título já diz sem saída.
1.2 - O Justiceiro
Esta é uma história de Western no sertão da Paraíba. Narrada em tom épico, mostra uma
situação em que pessoas alugam o seu sangue-frio para matar.
A sensação criada, desde o início, é de que aquele profissional só existia antigamente,
num tempo muito remoto. Tanto assim que o clima criado pelos autores, mais lembra velhos
filmes de cowboy com seus indefectíveis bandidos e mocinhos do que propriamente uma cidadezinha do interior.
Logo no início, uma voz vai pondo o espectador dentro da situação que ser proposta.
Ao contrário de Sem Saída, este texto não apresenta imediatamente os pólos de conflito, mesmo
porque aqui não há conflito algum, não entre personagens. O que acontece neste texto é uma
expectativa gerada pela presença do Justiceiro na cidade. Expectativa que se avoluma a medida
que as diversas personagens vão se definindo. Em contraposição ao movimento das demais personagens, o Justiceiro passa todo o tempo impassível, imobilizado, concentrado na sua função
de justiceiro. Mas é exatamente esta posição de repouso, do ponto de vista dramatúrgico, em
que ele se encontra, que gera, não o conflito de objetivos ou idéias, mas o medo entre as diversas personagens que pensam que o Justiceiro está ali para matá-las. Esse medo é o eixo da ação.
Na abertura da peça, a câmera abre sobre o interior de um pequeno hotel de uma pequena cidade. É um bar, com mesas e balcão velho. Há pessoas no lugar. Entra um homem correndo, fala com o dono do estabelecimento, e este se assusta. O homem fala com outras pessoas
que estão no local. Todos se assustam. Esse homem, que entra correndo no bar, ser a personagem encarregada de juntar os vários pontos do texto, diversas personagens a quem ele, correndo
como sempre, noticia o que está acontecendo na cidade. A câmera mostra a entrada do Justiceiro no bar, acompanhado por uma mulher vestida de preto e um menino, filho da mulher. Ao
entrar no bar, clima de Western: todos param, imóveis. A mulher de preto dirige-se ao balcão,
preenche ficha de entrada no hotel. Sai. O Justiceiro senta e pede, não um uisque, mas um café.
Enquanto se desenvolve essa sequência muda, uma voz faz a narração da cena, pondo o telespectador diante do clima de medo vivido pelas personagens no bar, e, consequentemente, diante
do clima da peça, já devidamente ambientada.
“VOZ - Antigamente, no sertão, no imenso interior brasileiro, muito mais do que hoje - existia
o matador profissional. A inexistência de juízes suficientes nos grandes confins do país fazia
com que as questões de honra, de terra, de vingança, fossem resolvidas com a contratação de
um matador. Entre eles houve um que matava por dinheiro, mas só aceitava o trabalho se o motivo fosse justo. Criou fama também porque nunca pode ser preso, pois sempre matava em legítima defesa, provocando os adversários, esgotando seus nervos, até fazê-los tomar a iniciativa
de dar o primeiro tiro. Cada vez que ele chegava numa cidade, todas as pessoas com a consciência culpada, sentiam-se ameaçadas. Esta é uma das suas inúmeras estórias. Seu nome: Estrela. Seu apelido entre o povo: O Justiceiro.”
Numa sequência de cortes rápidos, depois da introdução do problema feita por essa voz
épica, o homem que anunciou a chegada do Justiceiro à cidade, continua o seu ofício da contar
a m novidade. Avisa ao dono do banco que, naturalmente, se assusta e se pergunta o que ser
feito dele, Banqueiro. Depois, ao Coronel, que se põe a perguntar se foi atrás dele, Coronel, que
o Justiceiro veio. Mas o tom mais tenso e patético é o de um homem (identificado como Nervoso) que considera que o Justiceiro veio procurá-lo, a mando do ex-marido de sua mulher. De
arma em punho, o homem relata a sua desconfiança à mulher, que lhe diz que o seu marido,
sovina como é, não gastaria uma bala num pobre coitado como o Nervoso. Ele fica ainda mais
nervoso, quando na contra-regra ouvem-se passos e uma voz que anuncia, simplesmente, que o
jantar está pronto.
Outro corte na sequência e a cena é conduzida para dentro do bar, onde o Justiceiro está
imóvel e um jovem Doutor conversa com um velho, justamente a propósito do Justiceiro. Esta
sequência compõe definitivamente o perfil do Justiceiro, sem que a personagem até então tenha
pronunciado uma única palavra:
“VELHO - Não tem um pobre que vá perder o sono porque Estrela está na cidade, doutor. A
última vez que cruzei com Estrela foi em 16, no Remígio83. Ele tinha a mesma fama que tem
hoje: caboclo sofreu injustiça, era só botar dinheiro na mão dele que ele vingava.
DOUTOR - Você quer dizer que ele nunca matou gente limpa, gente honrada?
VELHO - Nunca. Não tem perigo. Pra Estrela aceitar serviço você tem que provar muito bem
provado a safadeza que lhe fizeram... E ele fica daquele jeito, parado, bolindo com os nervos de
todo mundo. Até que o desgraçado que ele veio procurar não aguenta mais e vem enfrentar ele.
Aí ele mata em legítima defesa.”
Tudo está dito. Não há mais surpresas. O Justiceiro vai ficar naquela posição até que o
culpado venha procurá-lo. A expectativa que se cria é de que apareça o culpado.
Além disso, porém, o coronel, a exemplo da mãe de Terezinha em Sem Saída, busca a
autoridade policial. Em vão. O policial em Sem Saída não tem condições de enfrentar o bicheiro porque há uma rede de corrupção que o apóia. Mas aqui não é o caso. O Justiceiro não se
envolve com corrupção e, principalmente, não mata qualquer um, mata justamente os corruptos.
“CORONEL - Se quer continuar sendo delegado daqui, bote esse homem fora da cidade já.
DELEGADO - Estrela?
CORONEL - Faz doze horas que esse homem implantou o terror na cidade. Moça de família
não pode sair de casa... Não tem um cidadão decente que se sinta tranquilo.
DELEGADO - Coronel... Ele está sentado lá no hotel... Não ameaçou ninguém... Pela lei...
CORONEL - Que lei, Delegado? Aquilo é matador profissional.
DELEGADO - Ninguém nunca conseguiu provar. Só matou até hoje em legítima defesa...
CORONEL - Porque ele sempre arranja uma artimanha, provoca, humilha... Aí mata em “legítima defesa”... Põe ele fora da cidade ou eu ponho você fora dessa delegacia.”
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Cidade do interior da Paraíba.
O Delegado tem, portanto, medo. O Justiceiro, ao contrário de Nelsinho, se impõe pelo
seu caráter.
Mas os autores conduzem a narrativa para outro ponto, em um corte rápido: a mulher de
preto, ninando o garoto, seu filho, conta-lhe uma história pouco infantil, uma verdadeira história de horror, que é o ponto central do texto, o núcleo da narrativa que coloca todas as outras
personagens sob suspeição, sobretudo quando se sabe que, dentre eles, alguém matou o seu
marido. Esta é justamente a história que a mulher conta ao filho, enquanto o garoto adormece:
“MULHER DE PRETO - Aí São Pedro perguntou: “O senhor aí, morreu de quê?” Teu pai respondeu: “Onde eu estava, São Pedro, o ar era pouco, comida ruim, frio de manhã à noite numa
cela pequena, me deu uma pneumonia, eu morri”... Que lugar era esse? A cadeia. São Pedro:
“Por que o senhor foi pra cadeia?” Aí, teu pai respondeu: “Não sei, São Pedro, pode mandar
seus anjos investigar. Eu tinha minha mulher, minha terra, só vivia pro meu trabalho. De repente, eu estava num tribunal e cinco desconhecidos juraram pela Bíblia que eu tinha matado
um homem”. Aí, São Pedro falou pra teu pai: “Acredito na sua história. Você vai ficar aqui no
céu e o teu filho lá na terra vai ficar contente de saber que você está aqui no céu...”
Nervoso é a personagem que, junto com a mulher, dá o toque de comicidade em v rios
cortes da narrativa. Nervoso quer, embora ainda não tenha coragem de cometer o gesto suicida,
desafiar o Justiceiro, tirar a limpo a diferença, já que ele considera que é a si que o Justiceiro
espera. O Coronel e o Banqueiro querem expulsar o Justiceiro do lugar, temendo que fosse a
algum deles que o assassino espera. Num outro corte o Coronel e o Banqueiro se acusam mutuamente de corrupção. Até que o jovem Doutor apresenta-se diante do Justiceiro, acompanhado
de sua namorada, para pedir-lhe que deixe a cidade. Ao mesmo tempo o Coronel, o Banqueiro e
um número de capangas apresentam-se diante do Justiceiro. Ele concorda em deixar a cidade,
mas antes, quer conversar com a namorada do Doutor. A sós, bate na moça, rasga-lhe o vestido
e foge. Corte.
Enfim, Estrela, o Justiceiro, dirige-se com a Mulher de Preto para a casa do Juiz. Era este o culpado e que não tinha aparecido ainda na história, mas, por sua vez, já esperava o Justiceiro em casa. O Justiceiro provoca o juiz, mostrando-lhe pedaços de roupa de sua filha, a namorada do Doutor. O Juiz, que sabia que ia morrer, esperava ao menos que o crime fosse iniciativa do Justiceiro, para que ele pudesse ser preso. Diante da provocação do Justiceiro, perde a
calma, tenta matá-lo com a sua espingarda. O Justiceiro atira primeiro, só que para o alto. O
velho Juiz morre do coração. O Justiceiro cumpriu sua função.
1.3 - Um Homem Chamado 320
Talvez exista um ponto na psique humana em que lucidez e loucura se misturem. Este é
um problema para a psicologia. O problema para a arte é encontrar o ponto em que a loucura,
como negação da lucidez, derrame luz sobre a lucidez negada.
320 é o nome de um homem reduzido a qualquer coisa. Um homem que atende pelo
número que lhe deram, não tem individualidade. Está condenado ao denominador comum dos
mortos em vida: os lugares para onde são mandados os p rias, os criminosos ou os indesejados
sem crime.
O quadro é ainda mais sombrio quando um homem chamado 320 vem, não de um lugar
qualquer, mas de um manicômio judiciário.
Eis tudo o que é possível saber sobre ele.
Qual o seu crime? Não se sabe. Por que enlouqueceu? Não se sabe. Um homem que se
chama 320 não possui identidade, portanto, não pode ter história.
Este parece ser o problema a priori desse texto. Como sempre, por economia de ação, a
situação é posta logo na abertura. A rubrica diz que um garoto brinca com um carrinho, enquanto come doce de leite na lata. Um rádio está ligado e o locutor avisa que a polícia está interditando toda a área do Alto da Boa Vista e Barra da Tijuca, para tentar localizar alguns evadidos
do manicômio judiciário. Um corte é dado, e a avó do garoto aparece na mercearia fazendo suas
compras. Outro corte. 320 surge no apartamento do garoto, pedindo um copo d'água. A avó
volta para casa. Encontra a porta fechada. O garoto denuncia a presença do homem estranho. A
avó retorna à mercearia. Lá, já se encontra a polícia. A babá do garoto, adoecida, dorme. A avó
liga. Ela atende. Diz para a avó não se preocupar. Seu pai também terminara num manicômio
judiciário. Enquanto isso 320 e o garoto brincam na sala. O garoto não esconde o medo daquele
estranho invasor. 320, como se fora um menino, simplesmente brinca com o carrinho de bombeiro do outro. Fragmento de diálogo entre eles:
“GAROTO - Você não vai andar no meu carro?
320 - Espera, puxa, estou tomando água.
GAROTO - Você toma muita água.
320 - Eu quero ver se nunca mais tenho sede.
GAROTO - Ah, isso é besteira...
320 - Olha, menino, não fale assim de mim. Não lhe dei essa liberdade de falar assim de mim.
Estou fazendo uma visita. Faça o favor de respeitar as visitas. Teu pai não te ensinou isso, não?
GAROTO - Ensinou.
320 - Então?
GAROTO - Estou com medo de você...
320 - Medo de mim? Você tem medo de mim? Eu vim te fazer uma visita... Eu sou amigo...
Sou bom, sabe? Lá no meu emprego, tudo que mandavam fazer eu fazia... A Sandra caçoava de
mim... Eu não ligava...”
Ou então este outro:
“320 - Está com medo de mim?
GAROTO - Estou...
320 - Toma... Toma teu automóvel...
GAROTO - Minha avó vai trazer gente pra te pegar...
320 - Eu sou teu amigo... Você me deu água... Eu sou teu amigo... Porque é que você tem medo
de mim?... Eu sou teu amigo... Te protejo... É só pedir minha ajuda. (TIRA DO BOLSO UM
BONECO DE FANTOCHE. PÕE AS MÃOS DENTRO. FAZ O BONECO SE MEXER) Olha
aí... Esse boneco é pra você (FAZ A VOZ DO BONECO) Rubinho, por que você tem medo
dele? Ele é amigo... Ele é amigo de todo mundo... Pode caçoar dele... Todo mundo caçoa dele...”
320 é um louco manso. Mas é um louco que tem profunda consciência de sua diferença.
Não gosta que caçoem dele. Estabelece de fato uma simpatia com Rubinho, e abre a exceção
para que o menino ria dele, com o objetivo de afugentar o seu medo, de afastar a distância entre
eles.
É quando entra a empregada, babá do garoto. Ele tenta correr para ela. 320 o segura. Em
alguns momentos a sensação é de que alguma coisa grave vai acontecer. Nada acontece. O louco é verdadeiramente manso. A babá sabe lidar com ele e ganha a sua confiança. 320 percebe
que a multidão l embaixo era sinal de sua captura próxima. A babá lhe diz que não; a multidão
procura-a, porque ela teria roubado remédio na farmácia. A polícia invade o apartamento.
“320 - Calma... Calma, meu pessoal... Vocês vieram buscar a Sandra, não é?... Mas olha... Não
vão levar, não... Ela roubou o remédio da farmácia porque estava doente... Isso não é crime...
Pode confiar em mim... No que eu estou dizendo... Não levem a Sandra não, que...”
A babá empurra-o. Ele cai nos braços de dois policiais que o prendem em uma camisa
de força:
“320 - Sandra... Por quê, Sandra? Eu estava protegendo você... Por que você fez isso comigo...
Por que?
BABÁ - Desculpe, 320... Desculpe, meu amigo... Eu...
320 - Você é malvada, dona Sandra... A senhora é malvada...”
Quem é Sandra? A babá? Não. Alguém que caçoava dele, no seu trabalho. Mais do que
isso não é possível se conhecer dessa personagem meio bobo, meio bandido, meio infantil. Mas
ao mesmo tempo profundamente humana em sua impotência. A ponto de fazer de um fantoche
a representação de si e se caçoar, para afastar o temor do garoto de quem ele já se dizia amigo.
Ou, então, de esquecer que era ele o perseguido e, diante da polícia, fazer-se de escudo para
proteger a babá que ele julgava procurada.
A lucidez e a sociedade são os lugares dos fortes. o manicômio, reduto dos fracos, dos
que foram reprovados no teste de força que a vida em sociedade impõe. É a regra do jogo. Para
320, que não soube impor-se, restava o degredo.
A rubrica do texto diz que a babá, depois que o atirou para os policiais, desconsolada
com a traição, chora.
1.4 - A Ferro e Fogo
Eneida é uma cantora de muito sucesso. Dolores é uma mulher simples, do interior de
Minas, que resolve repentinamente bater à porta de uma estrela. Esta é a situação inicial.
A segunda situação: Eneida é prepotente. A mulher simples é humilde. Eneida abre-lhe
a porta a contragosto. Tem uma gravação a fazer na TV. Tem pressa. Mas ao mesmo tempo não
consegue resistir ao assédio de uma fã. A mulher entra. Ato contínuo aponta para Eneida um
revólver.
Exercício proposto pela mulher: Eneida dispõe de cinco minutos para lembrar-se de um
mal muito grande que fez. Cinco minutos. Caso não se lembre, ela a mataria.
“ENEIDA - /.../ É por causa da Oriana?... A senhora é fã da Oriana? Queriam fazer um contrato
com ela na televisão e eu fui contra. /.../ É por causa do Maestro Serpa? Ele passou um tempo
enorme fazendo os arranjos pro meu disco... Depois eu fiz o disco com o Eliseu. Mas isso foi
conveniência da gravadora... Eu também gosto mais do Eliseu... Está bem... Fui eu que mudei
de idéia... O Eliseu é mais moderno...”
E segue por aí chutando uma coisa ou outra: o garçom do restaurante, despedido por sua
causa, o contra-regra do teatro que ela despediu. Não era nada daquilo.
A mulher que lhe aponta o revólver conta os minutos que faltam. Eneida não consegue
lembrar-se e vai perdendo o equilíbrio. Da postura prepotente inicial, Eneida, colocada diante
de um problema sem solução aparente, vai-se afundando em angústia, desequilibrando-se psicologicamente e, consequentemente, entrando num transe de desequilíbrio mental. Mas a mulher
que lhe aponta o revólver não a quer sem razão:
“DOLORES - Vou ajudar. É uma música que você gravou de muito sucesso.
ENEIDA - Sei, sei. O Bobi tinha prometido a música pra Cíntia gravar, mas a música era muito
boa e eu gravei... Eu não podia dar essa música pra Cíntia... A gente vive de sucesso e é tão
difícil descobrir um... A senhora é mãe da Cíntia?”
Não. A mulher era mãe de um garoto que sonhava viver de sua música. Viajou para o
Rio de Janeiro, bateu na porta de Eneida, procurou, insistiu, esperou, ficou sem dinheiro, deixou a música gravada num cassete, se desiludiu, voltou para Minas, e um dia, comprando o
último disco de Eneida, de quem era fã, escutou a sua música, mas o crédito no disco era de
outro:
“DOLORES - Ouviu a música dele sem parar umas duas semanas. Eu dizia: “Vai lá falar com a
mulher, Nozinho. Vai pra lá, vai no jornal, põe a boca no mundo”. Mas ele era muito assim.
Muito quieto. Triste. A solidão daquela cidade deixa as pessoas com derrota na alma... Ele era
desequilibrado, não é assim que se diz?... Subiu o rio... Andando, andando... Lá em cima, foi
pra margem e deu um tiro na cabeça.”
Mas, antes de fazer a revelação do problema por ela proposto, Dolores (que forçou Eneida a revelar sua carreira feita de oportunismos) resolve que vai cumprir o que prometera:
matar Eneida se ao final de cinco minutos ela não adivinhasse a razão de sua atitude. Este é o
ponto máximo de desmontagem da soberba anterior que Eneida demonstrava. Mas a mulher
puxa o gatilho e, afinal, o revólver está descarregado.
O motivo que levou Dolores a propor aquele problema para Eneida: ela queria que Eneida sofresse em cinco minutos a dor que o seu filho sofrera em duas semanas antes de matarse.
Eneida, arrependida, corre atrás da mulher que se vai sem querer ouvir a sua desculpa e
a sua promessa de reparar o dano. Em cinco minutos uma postura feita de máscaras vai ao chão.
E o que diz a canção do garoto?
“A ferro e fogo
você vai pagar
cada pedaço de mim
que você me fez roubar.”
1.5 - Balanço parcial: uma justiça moral
Parece-nos que entre os textos vistos até agora há como ponto em comum, um certo sentimento de justiça que cobre a existência das personagens. Não a justiça legal, jurídica. Mas
uma outra que não cabe em um código de leis. Algo como uma justiça “moral”, se isso é possível.
Olhando com cuidado, vamos ver que não existem nesses textos forças sociais em conflito, à exceção de Sem Saída, assim mesmo bastante atenuadas pelo fato de o conflito se con-
centrar entre a força de um homem e o direito de uma mulher, que não pode ser exercido. Nesse
caso, o velho avô, mudo, toma para si a tarefa de exercitar a justiça “moral”, que se traduz pela
defesa do mais fraco. A figura do Justiceiro, no texto O Justiceiro, enigmática como o velho
avô (ele passa grande parte do texto calado), também exerce a defesa do grupo oprimido. Nos
dois casos esta justiça “moral” se repara pela morte. Mas em Um Homem Chamado 320, como
também em A Ferro e Fogo, não é a morte, mas o reconhecimento do dano causado que provoca a reparação. Esta reparação é passiva em Um Homem Chamado 320, no momento em que a
babá do garoto, pela indicação da rubrica, chora por ter traído a confiança ingênua do louco,
atirando-o de encontro à polícia, depois que ela o fizera crer que a polícia viera para prendê-la.
Em A Ferro e Fogo, a mãe do garoto que se matara, teria todas as condições de exercitar, à maneira de O Justiceiro, a sua vingança. Mas tudo que ela queria era que Eneida sentisse, durante
cinco minutos, a angústia do momento que a vida se fecha e a morte está por um fio, ou pelo
simples gesto de apertar-se o gatilho de um revólver. O fato de não ter concluído a ameaça feita
no começo do texto, faz com que Eneida comova-se e queira reparar o seu comportamento que
levara um simples garoto, possivelmente talentoso, alma fraca, à morte. Mas o que Eneida não
sabia era que os cinco minutos em que a sua estudada postura de estrela veio ao chão, todo o
seu pavor diante da morte iminente já estava previsto nos versos que ela roubara do garoto. Ao
não concretizar o gesto de matar a cantora, a mãe do garoto instalou em seu espírito a culpa.
O limite em que as personagens exercem a sua justiça “moral” permeia o fato social, mas não
chega a ser por ele determinado. As situações expostas por Paulo Pontes e Vianinha, mais parecem flashes da vida real sob o intuito de ressaltar a dignidade necessária ao exercício da existência.
1.6 - De Repente, uma Visita
No texto De Repente, uma Visita vamos encontrar o mesmo problema de justiça “moral”: um homem invade a casa de uma mulher para vingar-se do fato de sua mulher tê-lo abandonado. O homem chama-se Rúbis. A mulher, Milena. Ele, mecânico. Ela, milionária, que
comprara um anel no valor de cinquenta milhões (não importa no caso a moeda).
Milena vai dar um jantar para os amigos com o propósito de apresentar o seu anel.
Quando Rúbis invade a casa. Então, expõe os motivos que o fez tomar o gesto violento:
“MILENA - Diz logo o que você quer e vai embora!
RÚBIS - Digo o que quero e quando quero...
MILENA - Me solta...
RÚBIS - Me solta devia dizer eu. Você nunca me largou! Todo dia no jornal, provocando, rindo, não é? Vim aqui acabar com você, mulher, sou um ladrão, sou assassino, mato! Sou de matar gente!”
Para, em seguida, completar:
“RÚBIS - Chama a polícia, chama bombeiro, chama assistência... Não me importa... Minha
mulher foi embora... Me largou... Deixou nosso barraco no morro do Quinto... Não importa
mais nada...”
Depois ele exige que ela lhe entregue o anel caríssimo. De posse do anel, ele desenvolve
a exposição do seu gesto:
“RÚBIS - Cinquenta milhões... Foi por causa dele que a minha nega Carmosa me largou... Ela
olhava o jornal e dizia sempre - “Essa mulher, Milena Monteiro, que vive, Rúbis! Ela é que tem
as coisas que faz a gente ter sabor de viver...” - Aí me saiu a notícia de você comprando o anel
por cinquenta milhões, ela não falava noutra coisa... Tinha um sujeito que faz tempo oferecia
até capa de pele pra ela. O sujeito é casado e oferecia o mundo e fundo pra minha Carmosa... Aí
ela leu a notícia do anel... Não adiantou eu roubar, levar ela pra comprar vestido em Copacabana... Ela foi embora com o sujeito que é casado.”
Mais adiante Rúbis vai completar o raciocínio, fechando a sua exposição:
“RÚBIS - /.../ Ela te adorava muito... Ela me largou por tua causa, porque você é feliz, entende?
Porque você ri nas fotografias.”
A partir daí, ele obriga Milena a fazer todos os trabalhos que sua mulher fazia, como se
fosse um gesto de reeducação social a que ele submetia à milionária, para que ela sentisse em
sua pele a dureza do trabalho que a sua esposa era obrigada a suportar, e de como também a
exposição de sua riqueza humilhava-o e enchia de fantasias a cabeça da ex-mulher.
Milena, então, é obrigada a carregar água, lavar roupa de joelhos, depois fazer comida,
isso tudo enquanto espera que cheguem os seus convidados para o jantar. No final, quando o
primeiro convidado, desconfiado, chama a polícia, Rúbis explica para Milena, como se fora um
professor aplicando a lição:
“RÚBIS - E agora, o pior de tudo isso, é se acostumar com essa vida, entende? Minha mulher
não se acostumou... Me largou...”
Milena entendeu, sim. Quando chega a polícia, ela nega que Rúbis seja ladrão. Desfaz o
jantar marcado para os amigos, mesmo porque estava toda transtornada. Despede o amigo e o
policial, e dirige-se ao mordomo:
“MILENA - Rafael, por favor, v até a cozinha. Acalme Ivete. E sirva o jantar.
MORDOMO - Só a senhora vai jantar?
MILENA - Não. Somos dois. Eu e o senhor do morro do Quinto.
MORDOMO - Pois não, madame.
MILENA - Não quer sentar, senhor Rúbis.
RéBIS - Obrigado, dona.
MILENA - Obrigada você, Rúbis.”
Rúbis, assim como a mãe do garoto em A Ferro e Fogo, teria condições de realizar a sua vingança. Mas não o fez. Ele, assim como a mãe do garoto, preferiu submeter à personagem oponente a uma forte humilhação que geraria, no final, o seu gesto de correção “moral”. Embora,
no caso de Milena, ela não tenha culpa da mulher de Rúbis tê-lo abandonado. A sua culpa não é
individual, é de classe.
1.7 - A Testemunha
Célia um dia sofrera um acidente e ficou muda. Célia, da janela de sua casa, presencia
um crime. É a única testemunha. Os jornais anunciam em manchetes que há uma testemunha do
crime cometido contra o jornalista Nélson.
O marido de Célia, Magalhães, não quer que ela testemunhe. É perigoso. Célia escreve
dizendo que quer testemunhar: conhecera, desde pequena, o jornalista assassinado. O marido
concorda, elogiando a coragem de sua mulher.
Já existe um suspeito do crime: Paulo Mãozinha, rei da Baixada, e que perdera uma mão
num tiroteio entre marginais, em 1958.
O marido sente medo de deixar Célia sozinha. Mas precisa sair. É médico e tem duas
operações marcadas no hospital. Antes, avisa que ir passar no Distrito Policial e pedir para um
soldado montar guarda em sua casa, até a sua volta. Sai.
Entra um homem vestido de policial. Muito gentil, pede para que Célia examine algumas fotografias, a fim de identificar o criminoso. Célia se recusa. Só o faria diante de testemunhas. O policial insiste. Toca o telefone. É o marido dizendo que só agora teria chegado ao Distrito, que ela ficasse tranquila, um policial já iria para lá. Célia tenta comunicar-se batendo com
um lápis no fone. Célia volta para a sala. Aponta para o policial o homem que ele lhe mostra,
entre outras fotos. O policial tem um couro preto envolvendo o seu punho. Célia compreende
tudo: aquele é Paulo Mãozinha, rei da Baixada, que mandara matar o jornalista por causa de
umas reportagens que ele fizera.
Célia corre para o quarto. Tranca a porta. Liga para a polícia. Só consegue bater com o
lápis no fone. Paulo Mãozinha força a porta. Célia com muito esforço consegue encostar à porta
um pesado móvel. Paulo Mãozinha aos poucos força a abertura da porta. Célia está desesperada. Do lado de fora, o policial que veio a mando, bate à porta. Célia está acuada em sua angústia muda. Paulo Mãozinha consegue abrir a porta do quarto onde Célia se refugiara. Célia grita.
O policial ouve o grito de Célia, e força a porta. Célia tenta enfrentar Paulo Mãozinha, atraca-se
com ele numa luta corporal. O policial ouve os gritos de Célia, tira o revólver, atira na fechadura, entra na casa, vai ao quarto, vê Célia numa luta impotente contra Paulo Mãozinha. O policial, com a coronha do seu revólver, acerta na cabeça do bandido, que cai desfalecido. Célia corre
ao telefone, liga para o hospital, chama o marido. Célia, no desespero de sua luta, perde o trauma da fala. Conta ao marido o que acabara de acontecer.
1.8 - A Vida Por Um Fio
Ana Maura é paralítica. É noite. Está sozinha em casa. Liga para o escritório tentando
falar com o marido. D linha cruzada. Ela entra, sem querer, neste diálogo:
“HOMEM 1 - (FALA BAIXO, DEVAGAR, SOMBRIO) Alô?...
ANA MAURA - (UM POUCO SURPRESA) Alô... Dr. Walter está?...
HOMEM 1 - (CONTINUA COMO SE NADA TIVESSE ACONTECIDO) Alô... (MAIS ALTO) Alô?...
HOMEM 2 - (VOZ BONITA, CIVILIZADA) Alô.
HOMEM 1 - Sou eu, pode falar.
ANA MAURA - Alô... Alô... Quem está falando? Qual é o número aí?
HOMEM 1 - (CONTINUA. NÃO OUVIU NADA) Olha. O desenlace é hoje. O desenlace é
hoje.
HOMEM 2 - Entendido.
HOMEM 1 - Onde está você?
HOMEM 2 - Não estou longe do lugar. Num telefone público...
HOMEM 1 - Você tem o endereço... Vai haver movimento maior... Hoje tem ensaio da escola
de samba... Onze e quinze... Vai haver muita gente... Espero num carro naquele ponto as 11 e
20... Lembra do ponto a três quarteirões...
HOMEM 2 - Perfeito.
HOMEM 1 - Vai haver muito barulho para o caso de haver gritos... Mas é melhor não haver
gritos, não é colega?
HOMEM 2 - Tenho um estilete. Aço fino. É muito rápido.
HOMEM 1 - Não esqueça de apanhar as jóias. Todas as jóias que você encontrar por perto. O
nosso cliente quer que tudo fique parecendo que foi um roubo.”
Ana Maura descobre que se está planejando um assassinato. Liga para a telefonista, para
tenta interceptar a ligação. Não é possível. Liga para a polícia. Ela tem como dado para resolver
o problema somente a hora e o lugar onde dever ocorrer o crime: próximo a alguma escola de
samba. Tenta convencer a polícia a interceptar a ligação. É impossível. Insiste que vasculhem
as áreas próximas às escolas de samba. Impossível também. Existem mais de cem escolas de
samba que pediram permissão para ensaiar naquela noite, quando estão há uma semana do início do carnaval, isso sem contar os inúmeros blocos etc.
Ana Maura tenta esquecer. Não consegue. Tenta falar com o marido. Não consegue. Liga o rádio: toca sucessos do carnaval e anuncia um desfile de escolas de samba na Av. Vieira
Souto, onde mora Ana Maura.
Ana Maura é uma mulher carente. Casada há vinte anos e paralítica há dez, vive na casa
que herdou da família, em Ipanema. O marido tem problemas financeiros na sua indústria e
quer vender a casa para cobrir os déficits de caixa. Vender a casa e um asilo de menores. Ana
Maura não concorda. Mas naquela noite, pressionada pelo marido, resolve vender a casa, não o
asilo, obra de sua mãe. Liga para o marido insistentemente naquela noite. Inclusive para dizer
do crime que se planeja.
Tenta dormir. Não consegue. Encontra o Registro de Identidade do marido. Ligar para
uma amiga, para pedir que o marido dela, homem influente, tente junto à polícia evitar que o
crime aconteça. A mulher diz-lhe que o marido viajou, e ela própria teria viajado, se não tivesse
esquecido sua Identidade em casa.
Um rapaz que trabalha no escritório do marido de Ana Maura liga para ela, dizendo que
o Dr. Walter viajou a negócios para São Paulo, não ir dormir em casa naquela noite.
Ana Maura se angustia com a sua impotência por não poderá evitar o crime. Já está quase na hora marcada. Uma escola de samba começa a entrar na Vieira Souto. Ana Maura, que
não sabia do desfile, liga o rádio para confirmar esse desfile em sua rua. Confirmou. Ela pensa
no marido que viajou para São Paulo. Mas como, se ele esqueceu a sua Identidade em casa, e a
sua amiga lhe dissera que sem a identidade não se pode viajar.
Ana Maura começa a desconfiar que ela é a vítima marcada para morrer naquela noite.
Tenta falar com a polícia. Está ocupada a linha. Liga para a empresa telefônica. Fala com a telefonista. Pede que a moça entre em contacto com a polícia. Está ocupada a linha. Ela desliga.
Toca o telefone. É o marido. Dr. Walter pede que ela saia correndo dali. Ela é paralítica. Ele
está arrependido. Está na hora marcada para o sacrifício. Ela lhe diz que já tinha concordado
em vender a casa. Ele insiste para que ela corra. A escola de samba entra na avenida. Um homem surge na casa. Ela grita. O fone fica pendurado. O homem pega o fone e ouve o marido
insistindo: “Ana... Ana... Levanta... Ana... Levanta...” O homem muito cortês responde: “Ligação errada, cavalheiro. Desculpe”.
Esse texto, como também A Testemunha, apresenta uma situação de suspense que se
mantém com uma intensidade em crescendo, embora Célia tenha uma trajetória mais simples,
mesmo porque pode resistir ao agressor, quando foi necessário; Ana Maura, mesmo que quisesse, não poderia.
Mas na morte de Ana Maura há qualquer coisa de ironicamente trágico: ao querer evitar
o crime, ela foi sendo conduzida cada vez mais para dentro do crime que gostaria de evitar.
Todas as evidências levavam a concluir-se que não havia solução para ela. A sua vida, como diz
o título, estava por um fio: pelo fio do telefone, sua única forma de se comunicar com o mundo
e de evitar sua morte, como também, metaforicamente, no fio de um novelo que ela acabaria
por tecer, ao desvendar.
1.9 - Uma Noite de Terror
Dois homens invadem uma casa, onde estão uma estenografa e um senhor idoso. Ele dita uma carta. O senhor idoso, ao perceber a presença dos bandidos, corre para pegar o seu revólver. O bandido moço, Juventude, derruba o senhor idoso, que bate com a cabeça em algum
lugar quando cai, e morre. O outro bandido, Miguelão, quer matar a estenografa, única testemunha daquele crime.
Juventude se opõe. Tem dezessete anos e não quer outro crime, apesar de sua vida bandida. Miguelão insiste. Brigam. Juventude leva a melhor. Miguelão consente em esperar algum
tempo, para que Juventude reveja sua posição. Na briga, Miguelão perdeu seu talão de cheque.
A estenografa, Edite, o recolhe. Um pouco antes da briga dos dois bandidos, eles falam sobre a
possilibidade de fuga, para evitar a morte da moça.
Miguelão sai. Vai montar guarda na parte de cima da casa. A estenografa conversa com
Juventude. Ela tem irmão na polícia e sabe o mecanismo da malandragem: como os bandidos
lançam mão de garotos como Juventude; como os envolvem em crimes; como passam a explorá-los depois de iniciados. Juventude não acredita: Miguelão é o seu amigo. Pelo menos é isso o
que Miguelão lhe diz.
Noite alta. Edite está presa numa cadeira. No sofá Juventude dorme. Miguelão entra sorrateiro. Esfaqueia Juventude. Mas não era Juventude. Edite o avisara de que Miguelão iria eliminá-lo. Juventude previne-se. Arma uma arapuca para Miguelão. Ele cai. Os dois brigam outra
vez. Juventude mata-o. Depois solta Edite e aceita o conselho dela: o de entregar-se à polícia,
cumprir alguns anos de pena e, depois, livre, arranjar uma profissão. Edite prometera depor a
seu favor.
1.10 - Balanço Parcial: Em Favor da Esperança
Apesar do título, Uma Noite de Terror não causa tanto terror quanto A Vida Por Um Fio
ou A Testemunha. As três têm o mesmo núcleo tem tico: uma mulher presa em uma casa, enfrentando a sanha dos marginais. Pode-se incluir também De Repente, Uma Visita entre este
núcleo temático. Como intenção, Uma Noite de Terror aproxima-se bastante das duas primeiras
peças. Como resultante moral, está mais próxima da última, pela conversão do bandido ao final.
Milena, em De Repente, Uma Visita, também se deixa converter pelo marginal inofensivo Rúbis.
Essa mudança de comportamento das personagens ao final das peças, parece mensagem
cifrada dos autores para o momento: é possível haver mudança (no comportamento humano, na
sociedade), apesar de tudo.
Esse salto qualitativo (em sentido positivo) das personagens, faz-nos pensar que, por
volta de 1971, quando esses textos foram escritos, o medo e o negror da vida no Brasil sufocado
pela ditadura fosse desesperador. Nos faz pensar que Paulo Pontes e Vianinha procuravam incentivar a esperança de que as coisas podem mudar. O que não devia ser fácil de imaginar-se,
naquele momento, quando a ditadura, em tudo vitoriosa, dava início à campanha do “Brasil:
ame-o ou deixe-o”; em que as oposições estavam totalmente silenciadas, pela morte, pelo medo,
pelo exílio ou pela censura. E a luta armada agonizava: sem apoio popular, não poderia ir longe.
Era preciso ter esperança em alguma coisa. Pelo menos, quando não resta mais nada, isto ainda
pode servir como capital para manter-se o ânimo. Não foi em vão que Paulo Pontes por essa
época escreveu um show, montado com Paulo Gracindo e Clara Nunes cujo título não poderia
ser mais revelador: Brasileiro, Profissão Esperança.
Essa esperança da qual o brasileiro faz profissão de fé, parece-nos que Paulo Pontes e
Vianinha apresentavam-na pela televisão para todo o Brasil, do modo como era possível transmiti-la. A mudança de comportamento das personagens, do ponto de vista dramatúrgico parece
sem sentido. Paulo Pontes e Vianinha, muitas vezes, sacrificaram o encadeamento formalmente
lógico, em função de algo que lhes parecia maior, a qual os seus textos, os seus trabalhos, deveria servir. A arte posta a serviço da vida. Ou pelo menos da esperança. Apesar da arte.
1.11 - Por Favor, Moça, não morra
Helena resolve morrer. Liga o gás e telefona para Mariano, animador de um programa
de televisão, de quem ela é fã. Liga para dizer que vai morrer. Mariano percebe a sinceridade da
moça. Pede para ela, por favor, não morrer. A moça está decidida. O tempo é curto. Mariano
pede ajuda à polícia, através dos seus assistentes. Vai conversando com ela, procurando saber o
motivo do gesto. O marido deixou-a, ela se sente só, foi demitida do emprego. A vida lhe mostrou a face da inutilidade. Nada lhe interessa mais. A morte é o caminho. Mariano força a moça
a falar. Aos poucos, descobre seu nome, sua profissão, seu endereço. A polícia acompanha toda
a conversação dos dois. Descobertos os dados básicos de sua identidade, a polícia entra em ação: localiza o apartamento, arromba a porta e salva a moça da morte no instante final.
Como resolução, este texto assemelha-se com ATestemunha, com a polícia invadindo o
apartamento e salvando a moça.
2. Balanço Geral: Violência e Mistério
No Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande, realizado entre os dias 7 de abril e 26 de
maio de 1975, no Rio de Janeiro, Paulo Pontes falava da televisão brasileira e fazia a avaliação
crítica do que acontecia com a TV naquele momento: “A televisão brasileira é, atualmente, um
veículo quase fundamentalmente projetado para falar com a chamada classe média compradora
/.../ Ela, à medida que se foi implantando industrialmente, que foi desenhando diante de si a sua
fisionomia, se justapôs àquela classe que tinha condições de consumir os produtos que anunciava a tal ponto que a programação da TV Globo, por exemplo, é de um bom gosto, de um timtim-tim, de um rosinha, de um empacotadinho, de um bonitinho, e de tudo gravadinho, tudo
assexuadozinho, tudo muito asséptico, é aquela coisa tão de bom gostinho, que eu já não reconheço na televisão brasileira um veículo de comunicação de massa”84.
84
PONTES, Paulo. Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Rio de Janeiro: Inúbia, 1976, p. 132.
Ao lado da mudança qualitativa em processo, percebida por Paulo Pontes, existia, como
elemento de complicação, a censura, que impedia a veiculação de uma imagem diferente da vitrine em que então se transformava a televisão brasileira. Walter Avancini, no mesmo debate,
explicou o que a censura não permitia que se levasse ao ar: “O código é explícito: não se pode
colocar conflito de gerações, não pode colocar pais e filhos conflitando, não se pode colocar
nenhuma menção de adversário, não se pode colocar nenhum descontentamento social, não se
pode colocar nenhum conflito religioso, nenhum conflito racial. A verdade é que há uma série
de limitações impostas por esse código de censura, que nos impossibilita um exercício maior
dentro do veículo”85.
É possível que em tão pouco tempo, isto é, do início de 1968 (quando Paulo Pontes começou a escrever para a televisão), até 1975 (quando aconteceram os debates sobre cultura brasileira no teatro Casa Grande), a TV tenha mudado radicalmente, a ponto de diminuir o trabalho
que gente como Paulo Pontes e Vianinha desenvolvia tão bem.
Mas enquanto isso não aconteceu, a televisão brasileira viveu dias de conquista de uma
linguagem tão bela quanto dramática, como a que vimos em fragmentos nos textos apresentados. E no caso dos nossos autores, profundamente inserida no contexto da cultura de massa que,
afinal, é por excelência o fenômeno cultural do nosso século.
2.1 - A Violência
A violência é o tema comum de todas as obras vistas. É o ponto de tensão a partir da
qual se desenvolve a história. Ela pode ser anterior ao início da ação, mas está sempre presente
de alguma forma.
No primeiro volume do seu estudo sobre a cultura de massa, cujo subtítulo é O Espírito
do Tempo - Neurose, Edgar Morin fala da violência que está presente em grande parte da produção cultural de massa. Uma violência organizada em grupos, junto aos vagabundos, ladrões e
85
AVANCINI, Walter. Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Op. cit. p. 128.
gangsters que habitam o mundo da noite e, pela sua própria condição de outsiders, transgridem
o mundo do homem civilizado, isto é, o homem regulamentado, burocratizado, que obedece aos
agentes, aos editais de interdição e não ousa matar ou roubar como os bandidos que obedecem à
sua própria violência. Aquele mundo da transgressão é o que exerce fascínio sobre o homem
comum. Por isso se faz tão presente no imaginário do nosso tempo. Além disso, diz Edgar Morin, “a gang exerce uma fascinação particular, porque responde a estruturas afetivas elementares
do espírito humano: baseia-se na participação comunitária do grupo, na solidariedade coletiva,
na fidelidade pessoal, na agressividade em relação a tudo que é estrangeiro, na vindita, para a
realização dos instintos predadores e depredadores”86.
A gang, ou pelo menos o crime organizado, está presente nas obras vistas, desde a primeira, Sem Saída, ou A Testemunha, A Vida Por Um Fio, Uma Noite de Terror.
Em Sem Saída, o crime está organizado na figura do seu líder, Nelsinho, o bicheiro.
Em A Testemunha é o bandido Paulo Mãozinha, rei da Baixada, quem lidera a contravenção.
Em Uma Noite de Terror é o Miguelão. A estrutura do crime organizado é revelada pela
estenografa Edite.
A Vida Por Um Fio já não apresenta nenhum líder de gang, mas, em compensação, mostra como homens fazem da morte a sua mercadoria, ao apresentar dois assassinos profissionais
cuja técnica de matar, pelo que comentam ao telefone, é impecável.
Nesse sentido, A Vida Por Um Fio tem alguma semelhança com o texto O Justiceiro. A
diferença está em O Justiceiro apresentar outro tipo de assassino, mas não do tipo qualquer, e
sim uma espécie de herói, cheio de bom-mocismo e de senso de justiça que transcende a lei
ordinária. Não esquecer que Estrela, o Justiceiro, não é um pistoleiro que mata na surpresa da
tocaia, sem chance para o adversário. Ele provoca o adversário. Lembrar também que o Juiz, o
oponente a qual o Justiceiro deveria matar, morreu não de bala, mas de susto, uma morte espetacularmente épica. Também este tipo de outsider está prevista no código da cultura de massas
que os nossos autores manejavam tão bem. Sobre essa personagem, fala Edgar Morin: “O herói
do Western é o Zorro, o justiceiro que age contra uma falsa lei corrupta, e prepara a verdadeira
lei, ou o xerife que, soberano, instaura, de revólver em punho, a lei que assegurar a liberdade.
Essa ambiguidade opera uma verdadeira síntese entre o tema da lei e o tema da liberdade aventurosa. Ela resolve existencialmente o grande conflito entre o homem e o interdito, o indivíduo
86
MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX/1. Rio de Janeiro, Forense-Universitária: 1987, p. 112.
e a lei, aberto desde o Prometeu de Ésquilo e a Antígona de Sófocles. A isso se acrescenta o
tema do herói fundador - Rômulo moderno - que opera a passagem do caos à ordem. A riqueza
mitológica em estado nascente do Western explica sua ressonância universal”87.
Charles J. Rolo, no ensaio “A Metafísica do Assassínio para Milhões”, tratando de assunto semelhante ao de Edgar Morin, diz, num determinado momento, que, talvez, a mais profunda frustração do nosso tempo “seja exatamente a sensação de que o indivíduo encontra-se
reduzido à impotência num mundo em que o princípio da organização em larga escala impregnou irremediavelmente os assuntos humanos, legítimos ou ilegítimos”88. No caso da cultura de
massa, interessam muito os assuntos ilegítimos. E para resolvê-los, já que o homem comum
para isto é impotente, somente o herói, o homem estranho, o justiceiro.
Edgar Morin, ao concluir o capítulo que trata da violência no nosso tempo, o tempo da
neurose, diz que a cultura de massa, embora nos entorpeça, nos embriague com barulhos e fúrias, não nos cura de nossas fúrias fundamentais. E o que são essas fúrias? - Mistérios.
2.2 - Mistérios
Eis outro pólo em que assentam os textos ora analisados. Violência e mistério, temperados de modo a criar expectativas.
Em O Justiceiro, o mistério é a própria figura do Justiceiro, quase todo o tempo calado.
O que se sabe sobre ele é dito pelas outras personagens. Cria-se uma certa curiosidade sobre
como vai agir aquela personagem tão calada. E quando ela age é exatamente conforme o que se
dizia. A curiosidade seguinte, então, é saber quem ele vai matar: o Banqueiro, a cômica personagem de nome Nervoso, o Coronel. Nenhum deles. O homem marcado para morrer era o Juiz,
que até então não constava da história.
Em, Eneida, ameaçada por um revólver, é posta diante de uma charada. Rememora tudo
o que pode em tão pouco A Ferro e Fogo tempo. Quando, por fim, esclarecida, deseja reabilitar-se. Mas não percebe que a música que roubou já anunciava a sua humilhação.
87
MORIN, Edgar. Op. cit., p. 112.
88
Apud Bernard Rosemberg e David Manning White. A Cultura de Massa. São Paulo, Cultrix: 1973, p. 201.
Em Um Homem Chamado 320, o mistério permanece na figura do louco que chega e sai
sem se revelar, mas deixando dados impossíveis de resolver, tais como: quem é Sandra (alguém
de importância em sua ação anterior ou simplesmente um nome de referência para configurar a
sua confusão mental)? Quem é ele, o louco? A expectativa gira em torno da violência que se
insinua, mas não acontece.
Em A Testemunha, o clima é dado inicialmente pelo marido de Célia, quando confessa o
seu temor de deixá-la só, sabendo que ela é a única testemunha do crime ocorrido em frente ao
seu apartamento. Depois, a entrada do mandante do crime, Paulo Mãozinha, disfarçado de policial, gera o mistério que só se desfaz quando ela puxa a capa que esconde o braço manietado do
bandido.
Em A Vida Por Um Fio, o mistério é a própria trama da obra. Ana Maura, paralítica,
tentando evitar um crime que depois descobre ser contra ela.
Em Uma Noite de Terror não há propriamente mistério, porém, o fato da ação desenrolar-se à noite, numa rua deserta, numa casa invadida por dois bandidos, já cria um clima algo
semelhante.
De modo direto, o mistério só é parte intrínseca da ação em A Vida Por Um Fio. Em A
Testemunha, ele faz parte da ação até o momento em que Célia descobre a identidade do pseudo-policial. Com exceção de Um Homem Chamado 320, cujo anonimato deixa algo a desejar da
personagem, além do fato de sabê-lo louco, e de A Ferro e Fogo, os demais textos têm como
suporte de mistérios elementos extrínsecos ao texto, não necessariamente ligados ao seu tema.
Eis os elementos:
O silêncio da noite: A Testemunha, A Vida Por Um Fio e Uma Noite de Terror.
A vida solitária, ou a solidão de um apartamento: A Testemunha, A Vida Por Um Fio, e
até mesmo Uma Noite de Terror, embora Edite, a princípio, não estivesse só, mas trabalhando
com o seu patrão, o clima indicado é o da mais completa solidão.
A solidão é tema de outro texto: Por Favor, Moça, Não Morra. Não há propriamente
mistério, mas um quebra-cabeça para desvendar-se, à feição de uma novela policial, em que os
dados do quebra-cabeça conduzem à novela policial: a solução visa evitar a morte por suicídio.
O mistério compõe um forte elemento para prender a atenção do telespectador (ou do leitor),
nesses textos. De alguma forma, está presente na maioria deles.
Pensando a linguagem da televisão e os padrões da cultura de massa, T. W. Adorno
chega ao ponto em que o mistério torna-se um álibi da linguagem televisiva: “Todo espectador
de programa de mistério da televisão sabe exatamente, com absoluta certeza, como é que ele vai
acabar. A tensão se mantém apenas superficialmente e já não é provável que exerça um efeito
sério. Pelo contrário, o espectador sente que está pisando chão firme durante o tempo todo. Esse
anseio de “sentir-se em chão firme” - que reflete uma necessidade infantil de proteção, muito
mais do que o seu desejo de um frêmito de emoção - é satisfeito. Só ironicamente se preserva o
elemento da excitação”89.
Charles J. Rolo diz que a história de mistério é um jogo cheio de suspense em que o espectador não pode perder. Se o espectador imagina a resposta, sente-se diabolicamente inteligente, e se não a imagina, encontrar a satisfação de uma agradável surpresa90. E se T. W. Adorno considera que há alguma “necessidade de proteção familiar” no fato de mistérios em histórias gerarem tensão superficial no espectador, a conclusão de Charles J. Rolo, em contraposição, é surpreendente: a solução para o mistério do fascínio das histórias de mistério ter de aplicar-se a todos os tipos em todos os tempos. Ter de ser alguma coisa muito fundamental para
explicar uma atração que se tem mostrado tão persistente, tão vigorosa e tão difundida: “Essa
alguma coisa, cremos nós, tem escassa relação com a concatenação das pistas ou acúmulo de
cadáveres, e profunda relação com o maior de todos os temas de ficção - a explicação do destino do homem. Segundo nossa hipótese, a história de mistério, na essência, é uma história metafísica de sucesso”91.
Muniz Sodré revela os mecanismos da comunicação de massa: quanto menor é a taxa
matem tica de informação de uma mensagem, maior a sua capacidade de comunicação: “Quanto mais o signos da mensagem (os elementos culturais de um programa de televisão, por exemplo) forem familiares ao público, por já constarem de seu repertório, maior ser o grau de comunicação”92.
Muniz Sodré fala-nos de teoria da comunicação: os signos da mensagem são decifráveis
segundo o repertório de quem os recebe. No caso dos textos que vimos mapeando até aqui, os
signos básicos são a violência e o mistério, alternados ou compostos no mesmo texto. A decifração pode-se dar em vários níveis: sociológico, político, psicológico, como insinua T. W. Adorno, ou metafísico, como o quer Charles J. Rolo.
89
ADORNO, T. W. “A Televisão e os Padrões da Cultura de Massa”. Apud Bernard Rosemberg. Op. cit. p. 548.
90
Apud Bernard Rosemberg. Op. cit. p. 197.
91
Idem, ibidem, p. 198.
92
SODRÉ, Muniz. A Comunicação do Grotesco. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 63.
3. Uma Última Palavra
Para Paulo Pontes, o trabalho na televisão foi profundamente estimulante. Alguns desses
textos se constituíram em motivos para outros textos maiores que ele faria posteriormente para
o teatro. Texto como Sem Saída, com a vida ambientada no morro, já traz em idéia a raiz do que
será o Gota D'água. A Ferro e Fogo e Por Favor, Moça, Não Morra, a nosso ver, juntos, são o
gérmen do Dr. Fausto da Silva. Um Homem Chamado 320 apresenta, pela figura do louco, a
profunda simpatia de Paulo Pontes (no caso, também Vianinha) pelos desvalidos, como a personagem Eugênio, na peça Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que ele escrever em
companhia de Alfredo Zemma, como também O Homem de la Mancha, de Dale Wasserman,
que ele traduziu e produziu em 1972.
Ainda uma última palavra: Paulo Pontes ganhou, em 1969, o primeiro prêmio do Festival Internacional de Cultura de Tóquio com um programa de alfabetização de adultos pela TV
Tupi. Setenta países concorreram ao Festival.
QUARTA PARTE
TEATRO OU AS COISAS SABIDAS
“L'ultime heros tragigue est tout simplemente se
peuple brelisien”.
Richard Roux
“Triste, o povo brasileiro não é, por mais desgraçado
que seja”.
Chico Buarque
1. Teatro
Enquanto desenvolvia seu trabalho na televisão, Paulo Pontes, paralelamente, escrevia
para teatro. A postura de homem de teatro, de pensador da cultura, de estudioso do fenômeno
teatral e sua história, a defesa intransigente do teatro e do autor nacional, a sua luta contra a
censura, já o apontavam como um dos líderes da classe teatral, aquele que muitas vezes era
chamado para discutir os seus problemas.
Era intensa sua atividade profissional no início da década de 70. Ao lado da constante
atividade, e para atormentá-lo, agravavam-se os problemas de saúde que, aliás, sempre fora o
seu ponto fraco.
Bem sucedido na televisão e no show business, faltava, contudo, a Paulo Pontes firmarse em outra área do seu interesse: o teatro. Até então tinha conseguido experimentar o valor de
suas teorias aplicadas ao teatro, embora dominasse a linguagem e defendesse os seguintes pressupostos:
Primeiro: existe um grande público para o teatro.
Segundo: esse público carece ser conquistado.
Terceiro: para isso, o teatro precisa falar uma linguagem de fácil compreensão.
Quarto: essa linguagem tem, necessariamente, de estar adequada ao momento histórico
que o país vivia.
Quinto: finalmente, ligada à tradição do teatro brasileiro, ou seja, à comédia de costumes, ou de sua tendência em lidar com o conhecido.
A montagem de Paraí-bê-a-bá serviu como ensaio para formulação de sua teoria, ou de
seus princípios básicos. Acontece que aquela peça fora montada em 1968 e na Paraíba. Paulo
Pontes vivia no Rio de Janeiro, e era aí que se encontrava, consideravelmente, o grande público
que ele ambicionava para o teatro e, em particular, para o seu teatro.
A oportunidade aconteceu quando Milton Morais foi procurá-lo para encomendar uma
peça. Milton Morais, depois de uma marcante atuação em Pedro Mico, de Antônio Callado,
estava há algum tempo parado. Mas tinha idéia sobre um texto que gostaria de ver escrito, um
tema muito em moda o qual pensava apresentar. Foi a Paulo Pontes e aí nasceu Um Edifício
Chamado 200.
2. Um Edifício Chamado 200
Paulo Pontes contou como erigiu o texto: “Quando Milton me procurou eu estava doente, em véspera de ser operado e só aceitei fazer uma peça para ele por causa da sua insistência.
Ele tinha até bolado uma personagem e eu comecei a escrever, sobretudo porque acreditava
nele como ator”93.
Acreditava em Milton como ator, mas via também na sua proposta a possibilidade de
pôr em prática, finalmente, as suas idéias a respeito de teatro: “Hoje, no Brasil, nós, artistas, somos seres maravilhosos, com uma compreensão e uma visão do mundo cheias de belezas, distantes, muito distantes, de um público engravatado, fedorento, careta e burro. Por isso é que eu
acho que a comédia de costumes, por ser próxima deste público, conseguindo fazer da experiência do artista e do público um discurso claro, passou a ser vanguarda neste momento”94.
O ponto de partida para a criação de Um Edifício Chamado 200 era o mesmo do seu
programa de rádio, o mesmo do Paraí-bê-a-bá , o mesmo de Bibi - Série Especial, enfim, o
mesmo de sempre: a busca exaustiva de uma linguagem clara, direta, mas sem abrir mão da
qualidade, em primeiro lugar e, em segundo, sem esquecer a reflexão como ponto de apoio à
percepção da vida, do cotidiano. O seu, era o teatro das coisas sabidas, e não tinha outra pretensão. Mas as coisas sabidas como ponto de luz na consciência, e como tal, instrumento crítico
para um corte dialético na apreensão da realidade: “parece que vivemos em uma sociedade, ou
em um país, em que as coisas sabidas já foram levadas à prática, e já são dominadas porque
partimos então para sondar o desconhecido. Eu acho que a posição política do homem de teatro,
de arte, de cultura é, ao contrário, esfregar as coisas sabidas na cara do mundo para que a sociedade as conquiste na prática. E a gente tem uma porção de coisas sabidas mas não postas em
prática para revelar, para fazer disso o conteúdo permanente do nosso produto cultural. Assim,
nós conseguimos fazer com que a nossa arte tenha uma identificação preliminar, que passa a ser
a experiência comum do artista e do povo. Mas, por incrível que pareça, não é isto que tem acontecido”95.
93
Paulo Pontes, apud Helena Christina, “A Comédia Redescoberta”, in Jornal do Brasil, 19 de setembro de 1972.
94
Paulo Pontes, apud Helena Christina. Op. cit.
95
Paulo Pontes, Idem, ibidem.
2.1 - O Texto96
A ação acontece num apartamento de solteiro, modestamente mobiliado. Dentro dele
mora Alfredo Gamela (ou Gamelão) e a sua companheira de nome Karla.
Ouve-se o famoso hino de Miguel Gustavo para a seleção brasileira de futebol na copa
de 1970. Acompanha em BG a voz de um locutor transmitindo um jogo em que Gamelão aparece como goleador da seleção tri-campeã do mundo. É só um sonho.
Alfredo Gamela está desempregado. Vive do sonho de ganhar na loteria: essa é a sua
paixão. E também o seu trabalho. A fé posta no jogo, para Alfredo Gamela, é o capital com o
qual ele defende a vida, é o investimento no futuro, antes de qualquer coisa, inquestionável: ele
vai acertar na Loteria Esportiva.
Karla, a companheira de Gamelão, também está desempregada. Mas, ao contrário do
companheiro, tenta conseguir emprego. Os dois não têm dinheiro para nada. Por isso, apesar do
desejo de Karla de arranjar emprego, os dois vivem trancados num apartamento, abandonados a
mais completa lassidão, numa vida cuja monotonia cria barreira de difícil transposição: Alfredo
Gamela sonha com a Loteria e Karla, diante da impossibilidade de mudar o quadro, aceita o
sonho do companheiro, embora dele não participe.
Para mudar essa situação, entra Ana, namorada do Gamelão.
Karla e Ana se conheciam pelo que Alfredo Gamela falava de uma para a outra. Uma
julgava que a outra fosse milionária. Alfredo Gamela mentia para as duas. Mas, diferentemente
do que diz o velho ditado popular, onde não comem dois não comem três. Por isso, com a
mesma indiferença com que vivem Karla e Gamelão recebem Ana em casa, ela que tinha acabado de chegar de sua cidade e que vinha pedir abrigo no apartamento de Gamelão.
Esta é a situação inicial. O desenvolvimento é muito simples: Ana tem cinquenta contos.
Os outros dois não têm nada. Ela é aceita na casa e Gamelão ainda festeja o aparecimento inesperado daquele dinheiro, o seu “capital de giro” para o negócio de jogar na Loteria.
Surge outra personagem. Uma voz que se identifica como Byh2 Barra 29.530 e que vinha de outra galáxia muito distante. Gamelão imediatamente o batiza de Bororó. Esta personagem só aparece em off, uma voz que dá a Gamelão o jogo do próximo fim de semana da Loteria
96
Texto em apostila. Arquivo do autor. Não daremos referência de página.
Esportiva. É com a introdução desta personagem off que Paulo Pontes conduz o espectador/leitor ao núcleo do seu texto:
“VOZ - Bem, ouça: nós da minha galáxia estamos já muito tempo examinando a terra. Sabemos
que é um planeta confuso, sem paz. Nossas esperanças estavam voltadas para a América Latina,
principalmente o Brasil. Sabemos que vocês são um povo bem e que, quando chegasse sua vez,
vocês consertariam a terra. Ultimamente, um fato vem perturbando a vida do homem brasileiro.
Ele tornou-se, de repente, ambicioso, desconfiado. O fato: a Loteria Esportiva... Um jogo primário, qualquer criança do meu planeta faria os treze ponto com um cálculo simples...
GAMELÃO - Leva o papo, Bororó, tou sentindo...
VOZ - E esse jogo tão primário está desviando as energias de um povo...
GAMELÃO - Segue...
VOZ - Calma, Alfredo: eu tenho uma missão a cumprir. Examinar o que se passa na mente de
um ganhador da Loteria Esportiva. Quero registrar cada uma de suas emoções. Descobrir o motivo de tanta ambição...
GAMELÃO - Falou e disse. Eu estou solidário com a sua missão. Vamos marcar juntos aqui o
teste 59. A gente racha...
VOZ - Um momento, Alfredo, calma. Você vai acertar na Loteria Esportiva. Eu o escolhi. Acertarei os treze pontos para você e em troca...
GAMELÃO - Dou tudo, absolutamente tudo. Construo uma igreja, passo a me chamar Sebastiana amanhã, o que Bororó quiser...
VOZ - Só quero que você comporte-se tal qual um ganhador da Loteria. Fique descontraído.
Jogue pra fora todas as suas emoções. Eu o estarei examinando.
GAMELÃO - Bororó, você caiu do céu. Venha cá, meu anjinho, diga lá o jogo número um,
Fluminense e Botafogo.”
Assim a Voz vai preenchendo todo o cartão de Alfredo Gamela. Não há surpresa alguma
ao saber-se posteriormente que Gamelão ganhou sozinho na Loteria Esportiva. Ganhou mas não
levou: as duas mulheres, para quem Alfredo Gamela, preenchido o cartão, pede que o registrem,
não jogaram. Prevenidas, elas preferiram comprar comida com o pouco dinheiro trazido por
Ana, do que acreditar nas sandices de Gamelão.
A personagem misteriosa é clara na sua proposição: quer estudar o comportamento de
um ganhador da Loteria. No fundo é o que Paulo Pontes se propõe a fazer nesse texto.
Lançado o problema, vem a resolução: Gamelão, desiludido porque perdeu com a mesma facilidade com que ganhou o jogo, pronuncia o discurso que é a resposta do problema lançado pela Voz. Só que ela vai muito além do registro de emoções de quem ganha na Loteria. A
resposta é o lampejo de consciência que toma conta de Gamelão, ao saber-se vencedor e perdedor. É a consciência de uma vida massacrante que Gamelão recusa ao não querer trabalhar e é,
finalmente, o motivo pelo qual ele faz de sua vida um sonho atrás de Loteria, uma mentira, ao
invés de enfrentar a realidade dos fatos:
“GAMELÃO - Calma, fique aí... Ouve. Ouve. Fica aí quietinha que ta falando um cara que
manja da vida. Escuta. Falando sério. Vocês já deram uma panorâmica da vida que tá aí fora?
Nego acorda 5 da manhã, com medo de abrir os olhos. Veste um ataúde de tergal, passa no pescoço uma forca de seda, engole o pão que o Diabo amassou com margarina, fecha a porta de
sua gaiola, salta na rua com medo na cara e um bando de dívidas na pasta 007. Caminha desviando das minas, das trincheiras e das barricadas armadas pela guerra do trânsito. Encaixa o seu
cansaço no rabo de uma fila, aloja seu nariz debaixo do sovaco da multidão dentro do ônibus.
Transporta sua agonia até o 14º andar, onde está colocado o ponto. Bate um cartão que registra
a partir de que hora ele começou a morrer naquele dia. Larga pro lado seus sonhos, sua vontade,
sua pessoa, e vira um azougue que sobe, desce, senta, levanta, vai prum lado, vai pro outro,
corre, pára, conta, vira-se e mexe e baixa a cabeça. Engole um filé frito no suor e na intolerância. Fecha de novo o cadeado de sua cela e recolhe seu sangue, os nervos, sua energia, enfeixa
tudo com arame farpado e joga dentro de um fogo de papel de faturas, projetos que irão queimar mais energias, mais sonhos, mais vontades. Depois abre a cela da prisão, o ponto registra,
cadastra, e prova pra quem duvidar que você, naquele dia, morreu a quantidade prevista pelos
códigos e regulamentos que governam a vida dos homens. Recolhe o que sobrou de humano no
teu corpo e entra no cinema, onde lhe vão oferecer numa tela uma fatia de vida cor-de-rosa,
amarela, azul, que eles recolheram não sei onde, mas que vai reconciliar o nego de novo com o
sonho, de novo com a vontade, de novo com o dia seguinte, de novo com a escravidão. E eu
sabendo disso tudo, vou perder meus dezenove bilhões? Vou não. Não vou de jeito nenhum...”
Claro está que a longa fala de Gamelão é no final da peça, quando ele cai no vazio de
sua existência, que seria remediada pelo prêmio da Loteria.
2.2 - Um texto de auto-referência
Um Edifício Chamado 200 é um texto rápido e pleno de auto-referências a dois textos
anteriores: o do seu programa de rádio, Rodízio e o Paraí-bê-a-bá .
Vejamos como ele vai projetando suas experiências anteriores nesta peça:
2.2.1 - Rodízio
A idéia de abertura do Rodízio tinha como base a máxima popular que diz que a vida
começa aos quarenta anos. Isso, diz Paulo Pontes, “se acertar na bolsa de valores, for eleito a
qualquer coisa, arranjar financiamento no Banco do...97
É curioso que esta mesma idéia v aparecer outra vez no texto presente: em uma das cenas iniciais da peça, Gamelão e Karla discutem. O autor expõe a situação das duas personagens.
Karla tem contacto para arranjar emprego. Gamelão, notório rebelde contra o trabalho, lhe aconselha a desistir do emprego, que ela fosse ler, já que queria fazer alguma coisa:
“KARLA - Você não leu tanto?, de que adiantou? Tá aí duro, não tem nem pro café.
GAMELÃO - Quem, eu? Minha filha, eu sou um dos poucos caras do Brasil que ganhou a vida
aos trinta e oito anos. O imbecil olha, não me vê com dinheiro na mão e pensa: é um pobre coitado. Ele não sabe que tudo o que eu ganhei em todos esses anos transformei em ações. Vai ver
quanto que eu tenho de ações no Banco do Brasil, na Brahma... na... Rio Doce... Vai. Eu não
sou trouxa para ficar aí botando dinheiro fora. Resultado: sou um homem tranquilo.”
Não é. Gamelão, assim como a personagem de Rodízio, nutre a esperança de ter seus
problemas financeiros resolvidos até os quarenta anos. E como deixa claro a personagem de
Rodízio, as perspectivas do homem comum estão fechadas. Não há oportunidade possível dentro do sistema político-econômico, do modo como ele está organizado. A personagem de Rodízio dizia-se esperançosa, ainda tinha 22 anos, faltando-lhe 18 para “vencer na vida”, ou por ou97
Vide Rodízio.
tra: para não viver a vida de rotineira mediocridade que Gamelão descreve no seu delírio, por
não levar o prêmio da Loteria. A personagem de Rodízio ainda tinha esperança de que o jogo na
bolsa de valores poderia redimi-la da vida massacrante do homem comum. Gamelão tem 38
anos e expressa a mesma idéia. Só que, no caso, sua fé está posta na Loteria Esportiva.
A postura irônica e malandra de Gamelão, nessa primeira fala, cede lugar à desolação,
quando ele toma consciência de que não levar o prêmio, já nas últimas cenas da peça:
“GAMELÃO - O professor Malba Tahan... é um cobra em matemática, física, ciências naturais.
Também um grande poeta e prosador... Mas isso não importa. Outro dia ele falou numa entrevista, eu li... Ele falou que a Loteria Esportiva são quatrocentos e oitenta mil combinações. Pela
lei das probabilidades o cara precisa de cem anos para ganhar, jogando um duplo. Três triplos,
pelas minhas contas, precisa de uns setenta anos. Agora, eu vou ter saco para passar setenta
anos jogando? Não tenho. Tou com trinta e oito, mais setenta são cento e oito. Quer dizer,
quando eu ganhar de novo já tou pra lá de brocha e o que é que adianta?”
No já citado apoteótico discurso final de Gamelão, há uma frase que diz: “Bate um cartão que registra a partir de que hora ele começou a morrer naquele dia”. Esta frase aponta uma
idéia que também está presente no texto Rodízio. É quando a personagem Locutor entrevista
diversos profissionais que devem responder à pergunta “o que significa viver?”. E todas as respostas levam à conclusão de que o significado mais primário do viver é o se alimentar, morar,
trabalhar, estudar e pertencer, por fim, a uma sociedade que garanta igual padrão de dignidade
para todos os seus membros. Ao que o Locutor conclui que quando se quiser saber em que ramo trabalha um operário deve-se fazer a seguinte pergunta: “Escuta, velho, você morre de
quê?”.
Nos dois textos estão presentes a idéia de que os estímulos consumistas como fator de
felicidade jamais serão sentidos pela grande maioria do país. Esta idéia fundamentará Gota
D'água. Paulo Pontes vai descobrindo a contradição básica do capitalismo nacional: o princípio
do sistema é o estímulo ao consumo. A contradição é negar a possibilidade de consumo à maioria da população.
2.2.2 - Paraí-bê-a-bá
Por ser-lhe negado o consumo, uma imensa população vive às voltas com o fantasma da
fome. Para os operários sem qualificação, os trabalhadores da indústria civil, os que recebem
sal rio mínimo, os camponeses não proprietários, a fome é uma realidade presente na vida de
todo dia. Está na cara de todo mundo, está estampada nas ruas, nas figuras desoladas que vagueiam pelas cidades. É só olhar.
Um dos temas do Paraí-bê-a-bá é justamente a fome, apresentada em diversos quadros,
de diversas maneiras. Em Um Edifício... ela é consequência natural da recusa de Gamelão em
participar do mercado de trabalho. Gamelão tem a consciência de que viver não é só comer.
Mas a fome é condição primeira de sua vida, embora ele, repleto de auto-ironia, faça pouco de
sua presença constante. Na abertura da peça, Gamelão e Karla estão dormindo. Gamelão sonha
ser o goleador da seleção tri-campeã. Acerta alguns chutes na sua companheira:
“KARLA - Fica aí curtindo que tá jogando com Pelé e na hora do gol quem paga é minha bunda...
GAMELÃO - Jogando com Pelé... Que besteira é essa? Você acha que sou menino para ficar
sonhando com bobagem. Menina, eu já lhe avisei que o organismo humano tem que digerir o
que come antes de dormir. É só ler Dr. Fritz Khan - O Bom Metabolismo - página 843. Enche a
barriga antes de dormir, fica sonhando e depois vem dizer que sou eu que estou com pesadelo.
KARLA - Gamelão, deixa de ser cínico. Você sabe que eu não comi nada.
GAMELÃO - Não comeu porque não tinha comida. Se tivesse, comeria feito uma louca.
(KARLA SE LEVANTA, VAI A UM ESPELHO E COMEÇA A SE OLHAR, DESEMBARAÇA OS CABELOS. GAMELÃO FICA SENTADO NA CAMA).
KARLA - E pra que serve comida?
GAMELÃO - Pra nada. Que sentido tem comer? Nenhum. A única coisa que me faz lembrar
que o homem é animal é comida. Os comunistas vivem dizendo que o problema da humanidade
é a fome... Eu sou contra. A humanidade está morrendo de comida. Os maiores inimigos do
homem são esses caras que vivem dando injeção aos frangos...”
A partir daí segue uma deliciosa discussão sobre os pratos que os dois gostam, ou gostariam, de comer.
A fome não é só um quadro de profunda injustiça social. É também um tema constante
em comédia, desde a velha Commedia dell'Arte. O tema da fome, como impulso ao riso, repetese através da história. Está presente tanto em Goldoni quanto em Chaplin, para tomarmos exemplos extremos. Em Arlequim Servidos de Dois Amos, de Goldoni, Arlequim consegue um
jeito de trabalhar para dois patrões simultaneamente. Com isso ele poderia comer em dobro. A
fome é um dado importante na composição do histrionismo de Arlequim. Por outro lado, na
personagem do vagabundo de Chaplin, a fome é um elemento que ajuda a compor a tristeza da
personagem. E nem por ser triste, a personagem deixa de ser cômica.
Paulo Pontes somou o tema da fome como tradição da comédia à tradição da comédia de
costumes no Brasil, temperando-a com uma pitada de investigação sobre a condição do homem
brasileiro. Eis a receita básica desse texto.
Mas há uma outra cena em Um Edifício... que é citação de uma cena já apresentada no
Paraí-bê-a-bá98: é a do homem que, cansado de trabalhar para comer, e cansado de comer para
trabalhar, resolve estender a rede no chão e morrer.
A citação dessa cena em Um Edifício... acontece logo depois que Gamelão toma conhecimento de que as mulheres não fizeram o jogo milionário:
“GAMELÃO - /.../ Eu confesso, não suporto mais tanta realidade (TEMPO. APANHA O
LENÇOL). Eu vou morrer (FORRA O LENÇOL NO CHÃO). A partir deste instante eu me
considero um homem morto (DEITA-SE NO PALCO). Deito aqui e não acordo numa mais (SE
BENZE. OLHA PRO ALTO). Que Deus me perdoe (ESTICA, CRUZA OS BRAÇOS. TEMPO LONGO. ELAS SE APROXIMAM LENTAMENTE. KARLA PÕE SEU OUVIDO NO
CORAÇÃO DE GAMELA. FAZ UM GESTO POSITIVO COM OS DEDOS PARA ANINHA).
KARLA - Coitadinho...
ANA - Não morra, Gamela...
KARLA - Gamelão... Você foi o melhor homem que eu conheci em minha vida... Você não
existe, meu Gamela... Olhe... Gamela, você é bom paca... Você tem um corpo tão lindo... Uma
cara... Sei lá, você tem o coração bom... É bom de cama, Gamela. É ou não é, Aninha?...
ANA - É...
98
Vide Paraí-bê-a-bá
KARLA - Como é que você pode dar uma de morrer, meu Gamela. Escuta uma coisa. Fui eu a
culpada... Eu que não deixei Aninha jogar tudo... Foi uma besteira da minha parte, tá certo, mas
veja o seguinte: você fica o tempo todo a sonhar. Sonhar é bacana, Gamela... Eu gosto das coisas que você sonha... Não é te pixando não... Eu gosto... Tá aqui minha bunda, pra você ganhar
a copa... Mas olhe... Tem uma hora que sonhar é ruim, Gamela. A gente estava há quase dois
dias sem comer direito... Ana apareceu... A gente tinha que escolher entre comer e sonhar... Tá
ouvindo, Gamela? Falei certo? Hein?...
ANA - Perdoe a gente, Gamela...
KARLA - (UM TEMPO. MUDA O TOM). Deixa de charme, homem. Morrer porra nenhuma.
Levanta, vamos, levanta, Gamela, dá a volta por cima, cara... Olhe aqui, quer desabafar? Dá
uma surra na gente, não é Aninha...
ANA - Isso, boa idéia, a gente merece... (APANHA O CINTO) Tá, Gamela, bate na gente, bate,
a gente merece... Bate... (GAMELA LEVANTA O OLHO. UM TEMPO. MOSTRA O CARTÃO).
GAMELÃO - Pela última vez... é mentira?
KARLA - Não, homem. Mete na cabeça...
GAMELÃO - Então segue o enterro...”
2.3 - A Opinião da Crítica
O sucesso de Um Edifício Chamado 200 mobilizou a opinião pública carioca, a ponto de
ser mudado o número do prédio mais famoso de Copacabana, justamente o de número 200 da
rua Barata Ribeiro99.
Quando Um Edifício... estreou, os teatros e as casas de espetáculos no Rio estavam totalmente ocupadas por shows. O teatro declamado, como dizia Paulo Pontes, encontrava-se
quase falido. O autor brasileiro praticamente desaparecera.
99
O título da peça era Barata Ribeiro 200. Paulo Pontes foi obrigado pela censura a mudar o título.
Vianinha, refletindo sobre a dificuldade de exercer a profissão, disse: “A profissão de
autor teatral não existe. O próprio teatro brasileiro é marginal. Ora, dentro do teatro, o autor é
ainda mais marginal. É o marginal do marginalismo”100.
Guarnieri ilustrou bem a impossibilidade de se viver de teatro, quando escreveu Um
Grito Parado no Ar, texto que conta a história de um grupo que, enquanto ensaia uma peça, vê
os seus instrumentos de trabalho sendo confiscados.
Refletindo sobre o mesmo assunto, disse Paulo Pontes: “O teatro de autor brasileiro não
existia, e essa peça (Um Edifício...) recuperou o teatro declamado. No outro dia estava tudo
quanto é dramaturgo tirando texto da gaveta”101.
Paulo Pontes tinha certeza de que havia alguma possibilidade de contornar-se o policiamento estético, ideológico e econômico que a ditadura exercia sobre o teatro. Vianinha, tentando equacionar o mesmo problema, teria dito: “Ainda que eu passe anos buscando o que pode
ser dito, escrito, não pretendo parar. É uma decisão, um compromisso que assumi responsavelmente. Ainda é possível falar de alguns problemas contemporâneos /.../ Ainda existem possibilidades de se batalhar contra a opressão e contra a injustiça. Agora, é claro que fica cada vez
mais difícil. Pode ser que um dia não seja mais possível e aí eu não sei que posição vou tomar.
Mas escrever para a gaveta ou outro lugar qualquer, isso eu sei que não farei”102.
Para conseguir encontrar a solução para o problema, Vianinha buscava os temas mais
próximos ao gosto popular. Paulo Pontes também. Daí porque preferia os temas ligados à vida
de todo dia, ou, como preferia dizer, à multidão: “A temática tem que ser extraída da vida das
pessoas - e ela desapareceu do teatro brasileiro. De tal forma que, de repente, quando você se
propunha a tratar um tema da multidão, isso já parecia vulgar. Ora, um tema não é vulgar só por
interessar à maioria. Pode tornar-se vulgar se servir para mistificação desses problemas”103.
Pensando assim, Paulo Pontes escolheu a comédia de costumes como o estilo que marcaria Um Edifício Chamado 200. Tinha certeza de que a sua pesquisa de linguagem para equa100
VIANNA FILHO, Oduvaldo. “Defesa da Cultura Brasileira”. Publicação sob o patrocínio da Empresa Bonfiglioli,
julho de 1983, p. 20. Plínio Marcos, por volta do ano de 73, passara a dizer, dentro do mesmo espírito de protesto, que era um “autor morto”.
101
PONTES, Paulo. Defesa da Cultura Brasileira. Op. cit. p. 22.
102
Apud Carmelinda Guimarães. Op. cit. p. 64.
103
PONTES, Paulo. Idem, ibidem.
cionar o momento difícil do teatro, no começo dos anos 70, encontraria resposta do público:
“Eu escolhi esta linguagem de comunicação com o público, tenho as condições básicas para me
comunicar com ele, graças ao que aprendi em rádio, em televisão e em teatro mesmo. Pode ser
que haja alguém que torça o nariz, ache que eu estou sendo servil ao gosto do público, mas eu
tenho muita certeza das razões que fazem do meu tipo de experiência teatral uma experiência
importante, inquestionável e, sobretudo, digna”104.
E não se enganara. O sucesso de público e crítica apontava como correto o raciocínio de
Paulo para aquele momento. Yan Michalski, por exemplo, após a morte de Paulo Pontes, comentou: “Como autor ele explodiu em Um Edifício Chamado 200, e acho que foi uma abertura
muito significativa, pois levantou o nível da comédia de costumes carioca, aprofundou o seu
alcance. É curioso que em tão pouco tempo e em tão pouco texto ele tenha conseguido inserir
tantas informações sobre as personagens, a sua vida, as suas aspirações. A peça durava uma
hora. Eu tenho uma vaga lembrança de que na época, a peça, apesar de eu ter gostado muito,
deixava-me com apetite, ela acabava muito bruscamente: e que o próprio Paulo reconheceu esta
deficiência, tanto assim que desenvolveu mais a parte final da peça”105.
Marco Aurélio Borba e Osvaldo Mendes, em introdução a uma matéria publicada na revista Manchete, observaram entusiasmados: “Nem o cinema, nem o rádio, nem a televisão (com
suas novelas), conseguiram apagar as luzes da ribalta. O Espetáculo teatral continua empolgando as platéias culturais das grandes cidades. No Rio e em São Paulo, três peças - Tango, Um
Edifício Chamado 200 e A Capital Federal, batem recordes de bilheteria”106.
Claro que os autores da matéria desviavam o foco da crise no teatro. Ao invés de centralizá-la na política de destruição das oposições, implantada pelo regime militar, eles a conduziram para o campo das linguagens da televisão, rádio e cinema, em oposição à linguagem teatral.
Esse erro durou muito tempo, sempre quando se tratou de questionar a crise teatral no Brasil
dos anos 70/80. Mas o entusiasmo dos autores da matéria vale para dar uma idéia de como a
peça fora bem recebida pelo público. Tanto que na sua re-estréia carioca, já com o texto melhorado, Paulo Pontes conseguiu uma das maiores bilheterias do momento, coisa que ele vinha
buscando há muito tempo, pacientemente estudando os dados do problema que enfrentavam
104
Apud Helena Christina. Op. cit.
105
MICHALSKI, Yan. “Os mitos de Quixote e Medeia”. In Paulo Pontes - a arte da resistência. Op. cit. p. 22.
106
Apud Paulo Melo. “Um artista chamado Paulo Pontes”. In Jornal da Paraíba. João Pessoa, 2 de julho de 1972.
(que era a conquista de um público amplo), inclusive, por uma questão de sobrevivência, lutando pela manutenção do autor brasileiro em cartaz. Era tão grande esse problema que Plínio
Marcos, um dos dramaturgos mais censurados do Brasil, alardeava (em relação à TV) que Rintin-tin (um cão pastor de um seriado de televisão americana) trabalhava muito mais no Brasil do
que ele, Plínio Marcos.
Manter em cartaz o autor nacional, como queriam Paulo Pontes e Vianinha, era um dos
pontos fundamentais na luta contra a ditadura. Isso por uma razão bem simples: quem melhor
do que o homem brasileiro para conhecer a sua própria realidade? - Por isso, os órgãos censórios eram duros com os autores brasileiros. Produzir a montagem de uma peça era um risco que
se corria de ver perdido o capital empatado. Isso porque a censura poderia impedir a estréia da
peça, ou mesmo retirá-la de cartaz, se lhe conviesse, em plena temporada, sem maiores explicações. Ou mesmo, impedir o espetáculo em outra cidade, já que o serviço de vigilância era mantido por cidade, sendo que a liberação dada numa cidade não valia para outra. Isso dificultava
enormemente as tournées da companhias ou dos grupos.
Policiado como era o autor nacional foi desinteressando ao empresário teatral. Não eram
poucos os problemas enfrentados pelo dramaturgo brasileiro.
Primeiro: encontrar um tema adequado.
Segundo: escrevê-lo de forma que pudesse ser aprovado pelo gosto policial.
Terceiro: conseguir comunicação com o público, já que o teatro brasileiro, durante a ditadura, viveu um longo período de metáforas, de imagens cifradas, de códigos de comunicação
parcos e específicos, pela impossibilidade de fazer de um modo que não fosse dizendo fingindo
que não dizia.
Um Edifício Chamado 200 não foge à regra. O texto fora escrito para três atores, limite
de segurança num eventual prejuízo de produção. Esse prejuízo não aconteceu, e a peça ainda
conseguiu levantar o entusiasmo da crítica: “Num momento que o teatro brasileiro - através de
v rias correntes - busca novos caminhos para sua afirmação, é com grande júbilo que observamos a experiência montada no Teatro Senac, na Guanabara, com direção de José Renato e interpretação de Milton Morais, Tânia Scher e Vera Bhrahim. O texto de Paulo Pontes é excelente
sob todos os aspectos, e pode-se até afirmar que h muito tempo não surgia nada semelhante no
gênero... Dificilmente um texto remontado (como é o caso de Um Edifício...) consegue lotar
todas as noites uma casa. No caso presente, chega a haver fila de esperançosos, como na ponteaérea, à espera de uma desistência”107.
107
Mário Augusto Barreiro, apud Paulo Melo. Op. cit.
Ao mesmo tempo que a peça estava sendo re-lançada no Rio, em São Paulo preparavase a sua estréia, com Juca de Oliveira no papel de Alfredo Gamela.
Gilberto Gumscitz, no jornal O Globo, também era entusiasta do texto: “Além da acuidade para criticar tipos e costumes, na linha de Millôr, Silveira Sampaio, Gláucio Gil e João
Bethencourt, Paulo Pontes parece ter guardado de sua experiência no Opinião, o dom de enveredar, com clareza e inteligência, pelos amargos caminhos da crítica social. Com dialogação
fluente e artesanato seguro, construiu uma comédia de grande apelo popular”108.
Um Edifício Chamado 200 valeu a Paulo Pontes o prêmio de Autor Revelação em São
Paulo, no ano seguinte à sua montagem, 1972.
2.4 - A Palavra de Paulo Pontes
No texto de apresentação da peça, Paulo Pontes não deixaria de tocar na situação de opressão que vive o homem comum. Seu ponto de vista, evidentemente, é contrário ao de Alfredo Gamela; ele é o álibi de Paulo Pontes para mostrar a inocuidade de um regime político que
cria a instituição da Loteria, a m quina de fazer ilusão; e de como o homem oprimido, sem
perspectiva, empata nessa m quina a pouca renda de que dispõe; e de como o homem condicionado a não pensar sobre a situação do ponto de vista das relações sociais, da correlação política,
se deixa enganar pela mentira oficializada. Eis o que Paulo Pontes escreveu para a apresentação
da peça: “O capitalismo plenamente desenvolvido esfrega abundância na cara do cidadão e,
com isso, faz do sonho uma mercadoria com a aparência de acessível: no subdesenvolvimento,
a distância enorme entre o que se aspira e a realidade faz do sonho uma miragem quase desvairada. Por isso, sonhar, no subdesenvolvimento, não é apenas uma necessidade, é quase o estado
natural do ser humano. Por causa disso, a visão tecnocrática que procura conciliar a pobreza do
subdesenvolvimento com o modelo gerado pelo máximo grau de desenvolvimento da economia
108
Apud Paulo Melo, op. cit.
capitalista, descobriu uma maneira infernal de institucionalização do sonho: a Loteria Esportiva”109.
Esse é o par grafo básico do seu texto, onde ele expõe o quadro geral do qual parte o seu
pensamento para equacioná-lo através de uma personagem padrão. Na segunda parte, ele concentra em Alfredo Gamela a perspectiva geral do homem que aposta na Loteria: “Como milhões de pessoas que têm de seu apenas a capacidade de trabalhar, Alfredo Gamela joga na Loteria Esportiva. Com uma diferença. Milhões trabalham e jogam. Gamela, apenas joga. E se ele
ganhar? Todos os sonhos de Gamela serão realizados. E sua experiência de ganhador - ser entrevistado na rádio, na TV, primeira página dos jornais - estimular ainda mais o sonho de milhões de pessoas que, por enquanto, são donos, apenas, de seu próprio corpo, dotado da capacidade de trabalhar”.
Por fim, Paulo Pontes não consegue esconder a sua simpatia de autor pela personagem,
mesmo que não concorde com as posições assumidas por ela. Num jogo pirandelliano, Paulo
Pontes aceita que Alfredo Gamela seja um tipo independente de sua vontade: “Enquanto escrevia a peça, fui tomado de uma tal simpatia por Alfredo Gamela, que, apesar das falhas do seu
caráter, torci muito pra ele ganhar na Loteria Esportiva. O público, com sua extraordinária capacidade de ficar do lado certo, também vai torcer, espero”.
3. Check-up
Em 1972, depois do sucesso de Um Edifíco Chamado 200, Paulo Pontes escreveu
Check-up, que estreou no mesmo ano, com a direção de Cécil Thiré, tendo Ziembinski como
ator principal.
Esse, aliás, é um texto escrito sob encomenda para Ziembinski: “Ele me deu até o número de personagens que a peça deveria ter, por causa de suas limitadas possibilidades financeiras”110.
109
PONTES, Paulo. “Um Edifício Chamado 200”. In Arte em Revista/6. São Paulo, Kairós, p. 58. As demais citações serão da mesma fonte.
110
PONTES, Paulo. “Autor não pode viver só de teatro”. Rio de Janeiro, Última Hora, 17 de fevereiro de 1973.
Paulo, como sempre de saúde frágil, estava para ser outra vez internado quando Ziembinski o procurou, pedindo um texto. Conta Bibi Ferreira: “Veio uma fase boa. Paulo foi operado e descobriu que não tinha nada no pulmão. Recuperou-se. Baseado na sua experiência no
hospital, nos 42 dias que passamos lá dentro, no hospital da Lagoa, no Rio, ele escreveu uma
peça chamada Chek-up”111.
Paulo Pontes disse que a peça discute “talvez os problemas mais candentes que afetam a
vida do brasileiro hoje”112, embora não diga quais problemas seriam esses.
A linha geral do texto é muito simples: um ator que é internado em um hospital para tratar de uma úlcera no duodeno. O tempo passa. A operação nunca é realizada por causa de uma
suspeita de tuberculose; enquanto isso, o ator incomoda a rígida norma hospitalar com os seus
conceitos racionalistas, sua ironia, sua capacidade de perceber as contradições entre a instituição e o seu fim.
Paulo Pontes, para a imprensa, não disse quais são os problemas candentes que afetam a
vida do brasileiro, mas, analisando o seu texto, conhecendo sua história e, particularmente, a
história que o país vivia, é possível perceber que Check-up é uma peça escrita contra a censura.
A história da luta travada entre os artistas de teatro e a censura, está fartamente documentada
pelos trabalhos de Yan Michalski, de Tânia Pacheco e, em perspectiva histórica, por Sônia Salomão Khéde113.
Paulo Pontes, em 1976, disse a Sérgio Gomes, que o teatro, premido pela censura, fora
obrigado a buscar nova sintaxe do espetáculo, de forma que pudesse continuar falando, mas em
uma linguagem que não fosse detectada pela censura114.
Em 1975, falando a Sérgio Fonta, ele apontou qual o problema que trás para o teatro a
tal sintaxe que engana a censura: “Impede que vá para os palcos aquilo que o teatro tem de van-
111
FERREIRA, Bibi. Op. cit. p. 14.
112
Apud Helena Christina. Op. cit.
113
MICHALSKI, Yan. O Palco Amordaçado. Rio de Janeiro: Avenir, 1979 & O Teatro Sob Pressão. Rio de Janeiro,
Zahar, 1985.
PACHECO, Tânia & outros. Anos 70 - Teatro. Rio de Janeiro, 1980
KHÉDE, Sônia Salomão. Censores de Pincenê e Gravata. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.
114
GOMES, Sérgio. “Paulo Pontes, a Gota D'água contra a maré”, in Folha de S. Paulo, 21 de dezembro de 1976.
tajoso sobre a dramaturgia estrangeira, que são a personagem e o problema brasileiro. Na medida em que os temas que mais interessam, que estão mais ligados à vida de todo o mundo, na
medida em que as personagens mais reconhecíveis pela consciência pública não estão podendo
ser escritos, fica empobrecida a capacidade de diálogo do autor brasileiro com o seu público”115.
Eis, então, o grande problema que a censura lançava na dramaturgia brasileira: era preciso escrever em linguagem cifrada. Acontece que linguagem não compreensível pelo censor
também não é compreensível pelo público, mesmo porque de teatro os censores (treinados pelo
então Serviço Nacional de Teatro - hoje Funarte) entendiam o suficiente.
Check-up é um texto cuja linguagem precisou de signos obscuros para alcançar o público: Zambor, a personagem central, a todo momento, por qualquer motivo, é impedido de fazer o
que deseja. E o que deseja é muito simples, lógico, racional. Mas há sempre uma ordem superior, um regulamento qualquer do hospital que o impede.
Mas aí uma pergunta se impõe: quem é Zambor? - um ator, ou por outra, um homem capaz de construir em si os signos de uma cultura, e de torná-la viva como a expressão de um povo. Por esse motivo Zambor vive de citar trechos de peças a propósito de qualquer coisa. Zambor, a personagem, é a representação imagética do setor cultural de uma sociedade.
Check-up é uma volta metafórica, um jogo onde o tema - censura - está presente e ausente ao mesmo tempo. Foi assim que Gilberto Tumscitz percebeu a peça, quando de sua estréia
no dia 6 de setembro de 1972: “Num primeiro nível, a peça coloca o conflito de um homem
inteligente - habituado a raciocinar, a tomar decisões, a optar pelo que lhe parece certo - com
uma instituição cheia de contradições - o hospital, reflexo de uma sociedade despreparada /.../
Num nível profundo, para os espectadores sensíveis, a fraqueza do próprio Zambor, fera acuada, seu medo da morte em contraste com seu pavor à vida. Tudo nos é servido na mais perfeita
carpintaria de teatro realista, de que Pontes só escapa uma vez, por alguns minutos do segundo
ato, para compor uma cena belíssima em que Zambor, a partir de uma discussão com o médico,
se interroga e nos interroga sobre a própria essência do teatro”116.
No clima policial que se vivia, nada podia ser dito claramente, nem pelo autor nem pela
crítica. Quem escrevia era obrigado a falar alusivamente sobre assunto que fosse passível de
censura. E tudo o era. Os trabalhos de Tânia Pacheco e de Yan Michalski estão repletos de ca115
FONTA, Sérgio. Op. cit. p. 77.
116
TUMSCITZ, Gilberto. “O voo mais alto de Paulo Pontes”. Rio de janeiro, O Globo, 7 de setembro de 1972.
sos ridículos de censura, mas, para exemplificar, sem sair de Paulo Pontes, o sem-limite despótico da censura, é bastante lembrar um caso contado por Paulo Pontes numa conferência dada
em Fortaleza: dizia Paulo que no show que escreveu para Elizete Cardoso havia uma rubrica no
texto: “Canhão Móvel”. Ou seja: em algum momento um potente refletor móvel deveria criar
um círculo de luz em torno da cantora. Diz Paulo que a censura percebeu a periculosidade da
indicação e, simplesmente, cortou a rubrica, que é a parte do texto não falada117.
Paulo Pontes não se conformava com a existência da censura. Eis o que ele disse a Sérgio Fonta, a propósito da criação do Conselho Superior de Censura, em 1975: “No momento
que há o impasse e diz-se que vai ser criada uma instância superior de censura, eu, como pessoa
ligada diretamente ao problema, não posso dizer que estou a favor do Governo. Se disser que
estou, ele faz o Conselho que quiser e depois diz que foi o que nós quisemos. Digo sempre: em
relação à censura tenho uma posição de princípio. Acho que a obra de arte, de pagamento, não
deve receber nenhum tipo de censura. Está aí a história da cultura para demonstrar que a censura sempre foi maléfica. Não me importa se o propósito do Governo é melhorar ou atenuar o
problema criando um Conselho Superior. O que me importa é que quanto à censura eu sou contra e faria uma besteira crassa se dissesse que estou a favor, pois não está em mim criar um
Conselho de Censura. Como não sou eu que vou fazer, não posso avalizar, na qualidade de pessoa prejudicada, uma proposta sobre a qual não tenho controle. Sou contra a criação de qualquer instância de censura, seja feita por policial ou por intelectual, não me interessa”118.
Sônia Salomão Khéde, examinando o problema da censura, fala de sua ilegalidade como
norma jurídica, já que na operação jurídica a proibição fundamenta-se na lei que, por sua vez,
está ligada a um sistema penal. A lei, enquanto interdição, prevê o crime e pune depois do crime ocorrido. No caso da lei de censura, o procedimento é diferente, porque ela se constitui, ao
mesmo tempo, na proibição e punição, impedindo que ocorra o “crime” previsto119.
Paulo Pontes lutou como foi possível contra a censura. Uma das formas que encontrou
foi a de escrever sobre ela, já que era de escrever que ele vivia. Check-up é a sua contribuição,
embora alusiva, ao problema. É como se fosse a radiografia de um tempo doente, um tempo
sem liberdade.
117
Jornal O Povo, “Paulo Pontes e o novo movimento teatral do Rio”. Fortaleza, 11 de junho de 1976.
118
FONTA, Sérgio. Op. cit. p. 79.
119
KHÉDE, Sônia Salomão. Op. cit. p. 27.
Em relação à peça, a sua estrutura, Paulo acreditava que ela suportava o que era discutido: “É bem armada como narrativa e os golpes teatrais que são apresentados a cada instante
fazem com que o público esteja permanentemente atento. Por isso é que apesar de - vou usar
uma expressão que não gosto - mais séria, o público sai do Check-up com a mesma simpatia
que sai do 200”120.
3.1 - Um Manifesto Pela Razão
É o que é o texto de apresentação da peça, escrito por Paulo Pontes121.
Primeiramente, ele situa o problema em algo estranho ao texto: o subdesenvolvimento.
Da mesma forma que, aliás, ele fará em Dr. Fausto da Silva. Colocar em prática a concentração
de renda, diz Paulo, “tem um custo social muito caro. É necessário que o centro de poder exerça
um controle cada vez maior sobre os canais de expressão do organismo social”. Além de exercer o controle sobre os canais de expressão, é necessário que se criem complicadas teorizações
para justificar a mágica da concentração de renda. Segundo Paulo, esse arcabouço teórico é um
verdadeiro labirinto cheio de armadilhas conceituais, porque é muito difícil explicar aos não
beneficiários da concentração de renda que esperem, que um dia o seu dia há de chegar. Eis o
quadro geral em que Paulo Pontes situa o seu pensamento.
Em seguida, ele particulariza o problema, sob a ótica de como se pode enfrentar o irracionalismo subdesenvolvimentista: pela lente da razão: “Colocar um instrumento racional de
conhecimento diante da pobreza planejada, da calculada transferência da renda da maioria para
as mãos da minoria, é simplesmente pôr em confronto a razão e o irracionalismo. Nesse confronto, o irracionalismo tem armas poderosas: é pedante, autoritário, intransigente, livre-atirador e, se o apertarem muito, inescrupuloso. A razão é apenas racional. Sua única arma é o
120
121
Apud Helena Christina, op. cit.
PONTES, Paulo. “Check-up”. In Arte em Revista/6. São Paulo, Kairós, p. 56. Todas as citações do prefácio são
dessa mesma fonte.
movimento incessante e permanente da experiência social: seu único alimento é o fenômeno
novo que a experiência social revela a cada momento de sua trajetória; sua única certeza: a dúvida; seu alimento: o real; sua estrada: a História”.
Determinado o ponto de conflito entre a irracionalidade do subdesenvolvimento planejado e a razão como arma de confronto, Paulo Pontes transfere a discussão para a personagem
central, Zambor, concentrando nela todo o problema anteriormente proposto. Para Paulo, Zambor é o homem de infatigável apetite pela razão. “A luta dentro do hospital - diz Paulo - modifica Zambor diante do público. A trajetória de Zambor, como personagem, dá conteúdo ao seu
racionalismo. Zambor entra no “hospital” com sua inteligência extraordinariamente bem preparada, do ponto de vista metodológico, para pensar o mundo; ele articula com muita desenvoltura as categorias de organização do pensamento. Mas, suas categorias de pensamento não deixam de ser esquemas, ele as usa de maneira especulativa, ele reduz a realidade aos seus métodos. No entanto, sua luta dentro do “hospital” lhe ensina a primeiro conhecer, concretamente, os
fen“menos da realidade e, só depois, aplicar sua monumental capacidade de apreender e ordenar o significado de cada um deles. As lutas do “hospital” dão concretude à lógica infernal de
Zambor. Ele deixa de ser um especulador formalista e passa a ser um homem que influía nos
acontecimentos a sua volta. Zambor aprende a respeitar a realidade e, por isso, aprende a modificá-la”.
Paulo Pontes faz sua personagem descobrir que na luta contra a irracionalidade, Zambor
tem um aliado (que está presente simbolicamente na figura de dois enfermeiros): o povo:
“Zambor descobre que entre as mais legítimas aspirações do homem e a realidade, ainda existe
um pequeno escondido nexo: o povo (a que ponto chegamos: chamar o povo de pequeno e escondido). Zambor ainda se salva da loucura. A arma que ele descobre é desesperadoramente
frágil. Mas disso eu tenho certeza, é preferível um povo derrotado a nenhum povo. Ao povo
derrotado, restam as cinzas da malandragem. Ele renascer delas”.
3.2 - O Texto122
Abertura da peça. Zambor está descontraído, tirando a calça, cantando. Há barulho fora
do quarto. Zambor fecha a porta. Entra Vilma, a enfermeira:
“VILMA - Quem fechou a porta?
ZAMBOR - (PROTEGENDO A NUDEZ) - Opa... O que é isso?...
VILMA - Quem mandou o senhor fechar esta porta?
ZAMBOR - Devia ter batido, minha santa... Dá uma viradinha.
VILMA - pode vestir a calça. Foi o senhor quem fechou a porta?
ZAMBOR - Faz muito barulho.
VILMA - Mas não pode. Tem que ficar aberta...(ESCANCARANDO A PORTA) - Bem aberta... Pra todo mundo ver que está aberta.
ZAMBOR - E por que é que tem de ficar aberta?”
Esta é a primeira pergunta sem resposta que Zambor faz. O conflito entre ele e as normas do hospital já se estabelece desde o início. A resposta da enfermeira: “Isso não interessa”,
motiva um longo questionamento entre Zambor e Vilma. Até que apareça Sílvia, a Enfermeirachefe que, cansada de discutir com Zambor, termina por permitir que ele deixe a porta fechada.
Mas, se pode permanecer com a porta fechada, não pode usar na parede do quarto fotografia de
casal nu. É que Zambor, tentando ambientar melhor o quarto onde ficaria hospedado, resolveu
pôr na parede o retrato de um casal sem roupa. Sílvia, que também é freira, não admite que o
retrato do casal esteja ao lado do retrato de Jesus crucificado. Zambor, do mesmo modo que
antes fizera com a porta, questiona o que é mais saudável para o paciente: o Cristo crucificado
ou a imagem de um casal saudável.
Assim ele conduz toda a peça. Questiona, por exemplo, a proibição de fumar seus cigarros, a proibição de visita a partir das 22 horas, sempre em pontos espalhados no texto, de tal
122
Texto em apostila. Arquivo do autor. Não daremos referência de página.
forma que cada questão surge após o esgotamento da anterior. A peça é curta exatamente para
que Zambor não possa perder-se em sua argumentação, e para que, também, o seu constante
questionamento não canse a platéia, pelo seu racionalismo, e por ser o único vetor da ação.
As personagens dividem-se em dois grupos: o Médico e Sílvia, a Enfermeira-chefe, de
um lado; de outro, Vilma, enfermeira, e um ajudante de enfermagem de nome Meu Filho. Zambor, postado entre os dois grupos, conquista, com a sua irreverência, o grupo composto por
Vilma e Meu filho. Este chegando, inclusive, no fim da peça, a roubar, com a anuência de Vilma, um remédio que não constava em sua papeleta. Mas se Zambor consegue conquistar o grupo mais frágil de personagens, não conquista, por sua vez, o grupo mais forte.
Esse grupo de personagens frágeis seria, como já dito, a representação do povo. Eis o
que Vilma diz para Zambor, no momento que eles se reencontram, após o incidente da porta
fechada:
“VILMA - A gente tem que cumprir ordens. A Enfermeira-chefe diz: doente, a gente dá o pé e
ele quer a mão... O hospital não pode... Se for dando regalias daqui a pouco todo mundo quer
tudo...”
ZAMBOR - Ahnnn. Quer dizer que você está com raiva de mim?
VILMA - Agora... O senhor vê: eles dão ordens... a gente cumpre. De repente não é mais. Irmã
Sílvia veio falar com o senhor, terminou deixando a porta fechada. Eu não sabia que o senhor
era importante. Pra mim... era tudo igual... (TIRA O TERMÔMETRO) - No fim quem paga é o
pequeno.”
3.3 - Uso renovado de truque antigo
Volta à cena a velha piada do Paraí-bê-a-bá, a do homem que se recusa a comer. Eis o
diálogo entre o Médico e Zambor:
“MÉDICO - Se alimenta bem?
ZAMBOR - Eu detesto comida.
MÉDICO - Não gosta de comer?
ZAMBOR - Por que o espanto?
MÉDICO - Sem comer o senhor morre.
ZAMBOR - Comendo morro também.
MÉDICO - Aí é outro problema.
ZAMBOR - Nada disso. Existem dois tipos de fome hoje, doutor. A constitucional e a institucional. A constitucional é a do sujeito que passa fome porque não tem o que comer. A Institucional é a do sujeito que passa fome exatamente porque come.”
Paulo Pontes usa a antiga anedota para reforçar o peso do regulamento contra a vontade
humana. Eis a continuidade do diálogo acima transcrito:
“MÉDICO - (RI) - O senhor tinha que ser de teatro mesmo...
ZAMBOR - Isso é problema meu.
MÉDICO - Aqui vai ter que comer.
ZAMBOR - E se eu não quiser?
MÉDICO - É do regulamento.”
Todas as proibições constam do regulamento. Isso fornece a Paulo Pontes o gancho necessário para ele voltar com o tema que lhe é mais caro, do ponto de vista filosófico: raciocinar
sobre o que é o homem, o homem e a vida, o homem e os regulamentos que proíbem a vida, em
mais um desenvolvimento do tema já contido em Rodízio.
“ZAMBOR - Não pode, não pode, não pode, não pode... Posso! Posso o que eu quiser Dr. Estranguilove... (PARA A PLATÉIA) - Vocês sabem o que é um homem? O que é que vocês conhecem de um homem? Nada mais do que aprenderam de anatomia nas suas faculdades. Um
homem é muito mais do que a sua anatomia. Você vai abrir o cadáver de todos os homens que
já nasceram, examinar cada membrana, e não vai descobrir o que é um homem. Me mostre aí na
sua anatomia onde fica o nervo do ódio. Não, não... Eu sei que você vai mostrar um pedaço da
parte antero-posterior do cérebro que gera e transmite o ódio pras vísceras. Mas essa chuva de
articulações, que vai do córtex às vísceras é feita com a corda de que não sei que violino que só
o homem é que tem; e se você experimentar reconstruir uma réplica desse instrumento... Se
quiser, vamos valer... Ele não vai sentir ódio nenhum. Assim era muito fácil... Você pega um
homem... esse troço que extrai de si um mistério a cada segundo, só para no minuto seguinte
sentir o prazer de uma nova revelação... E diz pra ele: “Não pode”... Não pode nada. Não pisa
na grama, não cuspa no chão, não faça pipi nas calças, não faça má criação, não cruze esta porta, não diga palavrão... Por que, Doutor?... Pra dizer que o homem não pode, vai ter que rebolar
muito. O homem pode. “Há muitas coisas maravilhosas na natureza, mas a maior delas é o homem...” Sófocles. Quer saber mais do que Sófocles, Doutor de Merda? E agora? O homem pode. Eu afirmo que pode...”
A parte final do discurso, que trata do mistério da natureza humana, por sua vez, serve
de gancho para um novo discurso pronunciado pela personagem central, agora trazendo a estética para o centro do problema. O discurso de Zambor adquire enorme variedade e profundidade, que termina por transcender o sentido primário da estética como instrumento capaz de medir
as condições e os efeitos da criação artística; o texto caminha, portanto, em direção à poesia
como sublimação do belo no homem; e dentro desse espectro conceitual, busca no campo da
poesia, a poesia teatral, a palavra posta em ação, capaz de gerar diversidade de emoções e sentimento:
“ZAMBOR - Essa ferida e essa mancha que você achou no pulmão não prova nada... Tudo o
que o conhecimento médico produziu para mostrar que era possível conhecer e organizar a sociedade humana... é um prédio velho, enorme; as paredes cheias de livros, Doutor, insistindo
que a vocação do homem é o domínio do seu destino... Eu saí de uma cidade onde mostravam a
evolução orgânica dos seres vivos, e via nas ruas pernas sepultadas, olhos vazados, castrados,
seres mutilados. Mas, Doutor, estava lá escrito na universidade que era possível racionalizar a
humanidade... Doutor, sabe que eu estou trabalhando até hoje para descobrir isso?... Minha vida
inteira, Doutor, eu joguei para descobrir outra alternativa. De lá pra cá, não houve idéia nova,
um lampejo que desse luz ao caminho do homem neste mundo que eu não tenha me entregado
com a alma e com esse corpo que o senhor diz que está apodrecendo... (PAUSA) - No teatro foi
difícil fazer um ator dizer esta frase: “A vitória da razão é a vitória dos homens racionais”.
(TEMPO) - Mas eu não parei de acender o refletor em cima de uma voz para ela gritar num
palco que a aventura humana tem sentido... Doutor, eu tinha um eletricista chamado Elias... O
senhor não sabe como é que ilumina o teatro. A gente numera os refletores e joga eles em cima
do palco conforme o movimento dos atores. Eu gritava: Elias, dá o dezoito, pra aquela hora que
Woyzeck olhar pro horizonte... Joga o vinte em cima de mim pro velho Ifraim dizer que não vai
rastejar... Dá toda luz nos mendigos de Górki... Quando O'Neill mostrar que o ser humano tem
coragem de até cheirar sua podridão, você baixa a luz, Elias... Não, Elias, essa não. A luz da
Velha Senhora é aquela da gelatina barro-escuro... Dá um close na cara do Papa, quando ele
forçar Galileu a abjurar... Olha, Elias, e presta atenção na minha silhueta. Quando eu for terminando a frase você entra em resistência, assim: “apaga-te, débil facho. A vida não é mais do que
um sombra passageira, um pobre ator pavoneando-se e excitando-se uma hora sobre o palco, e
que depois se deixa de ouvir...” Vai escurecendo e apaga, Elias. Apaga porque isso era o que
dizia Macbeth, que confundiu o seu destino com o da humanidade. Agora, dê toda a luz, até a
da platéia, pra fala de Fortinbrás no final do Hamlet. (PAUSA. GEMENDO) - Meus nervos não
suportam mais...”
Zambor termina por morrer. O interessante é que se trata de um artista com veleidades
intelectuais. Apesar de todo o seu racionalismo, do seu ceticismo, ele afirma que a vida tem
sentido, que tem sentido a aventura humana, mesmo que o homem sofra restrição de sua liberdade, tem sentido viver e lutar. O mesmo conceito de crença na aventura humana será emitido
pelo casal de velhinhos na peça Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que Paulo Pontes escreveria em companhia de Alfredo Zemma.
Mesmo considerando que o texto tenha sido escrito sob encomenda para Ziembinski, e
que de alguma forma o nome Zambor da personagem central lembre o nome de Ziembinski,
Zimba123, como era chamado, não é possível esquecer que Check-up é a obra de um homem que
conhecia a rotina dos hospitais e, por isso, tivesse o pressentimento de que a vida é tênue, que a
vida do modo que era, sem liberdade, é um vazio, um fio estendido sobre o abismo.
Check-up, em 1972, ganhou o prêmio Governador do Estado da Guanabara.
123
O professor Dr. Fausto Fuser, durante a apresentação deste nosso trabalho à banca arguidora do Mestrado
em Artes, na ECA-USP, em 1989, disse-nos que não seria o nome “Zimba” a inspiração para o nome “Zambor” da
personagem de Paulo Pontes, mas não explicou de onde teria vindo à inspiração do nome. O professor Fausto
Fuser escreveu um capítulo numa revista editada pela Edusp, no qual ele falou sobre os artistas poloneses que
migraram para o Brasil durante a ocupação nazista. Entre eles, Boguslaw Samborski, ator famoso na Polônia,
amigo de Ziembinski, porém colaboracionista: teria trabalhado num filme nazista, Heimker (Volta ao Lar). A consequência do filme na vida do ator foi a sua posterior fuga da Polônia, até que chegou ao Brasil usando o nome
de Gottlieb Sambor.
Vide FUSER, Fausto. “A Turma da Polônia na Revonação Teatral Brasileira”. Revista Diálogos Sobre Teatro. São
Paulo: Edusp, 1992, p. 57 e ss.
4. Dr. Fausto da Silva
Esta peça estreou em outubro de 1972, no Rio de Janeiro, sob a direção de Flávio Rangel.
Como diz o próprio nome, trata-se de reelaboração do velho tema medieval já trabalhado, entre outros, por Marlowe, na Inglaterra, e por Goethe, na Alemanha.
Fausto é o tema do homem ambicioso. Em sua origem, a personagem é capaz de vender
a alma ao Demônio, para obter os prazeres mundanos e o domínio das ciências.
Atualizando o tema, Paulo Pontes fez o seu ambicionar o aumento do Ibope, fundamental para ele, Fausto da Silva, apresentador de um programa de televisão que recebe seu nome. É
a primeira obra que Paulo Pontes adapta de um tema antigo.
Fausto, o da Silva: seu sobrenome o associa a uma figura popular, alienando-o de sua
aura diabólica inatingível, transfigurando-o em algo (ou alguém) mais presente, humano, um
tipo comum.
Mas não um tipo qualquer: um apresentador de programa de televisão. Portanto, alguém
especializado em comunicação de massa. Alguém capaz de manter alto o índice de Ibope no
horário nobre.
Alguém que, como o próprio Paulo Pontes, conhecia profundamente os segredos, os
“macetes” da linguagem telecomunicativa. Paulo Pontes refletia mais uma vez sobre o fenômeno da televisão. Em Dr. Fausto da Silva, criou um texto cuja ação é condensada em movimentos diferentes, que concorrem para um mesmo fim, sinestesicamente articulada por um autor já
pleno em seu domínio da linguagem teatral. Seu Fausto é, a seu modo, a exemplo do velho
Fausto de Marlowe ou Goethe, um texto filosófico.
Como de hábito, Paulo Pontes teoriza sobre o problema que o motivou a escrever, no
texto de apresentação da peça. É muito curioso o modo como Paulo encontrou na personagem
Fausto (da Silva) o artifício que exemplificaria a miséria do homem comum. Paulo Pontes escreveu: “O subdesenvolvimento é um lençol curto: se cobre os pés, descobre a cabeça; se cobre
a cabeça, os pés ficam de fora. Subdesenvolvimento é sinônimo de escassez: não há o bastante
para todos. Isso coloca o país subdesenvolvido diante de duas alternativas: ou todos comem
pouco, ou uma parte come tudo e a outra fica lambendo os beiços. O modo de produção capitalista opta pela segunda alternativa para gerir a pobreza do subdesenvolvimento - e tem lançado
mão de um impressionante repertório de fórmulas para conseguir a façanha. A última, uma má-
gica diabólica, consiste em concentrar a renda nas mãos de uma parte da população para que
esta leve ao paroxismo o consumo de bens duráveis e mantenha em expansão o processo produtivo. É uma necessidade desse modelo importar uma tecnologia cada vez mais sofisticada porque ele tem de colocar no mercado uma diversidade cada vez maior de produtos; e estimular os
beneficiários da concentração de renda a não parar de consumir. A regra é criar novas necessidades de consumo na única faixa que consome. A propaganda é o grande instrumento de criação de hábitos de consumo - ela estimula o furor aquisitivo (nos 20% da população que adquiriram poder de compra), sem o que esse sistema perde sua capacidade de expansão”124.
O que tem a ver o subdesenvolvimento com o tema de Fausto ou mesmo com a peça Dr.
Fausto da Silva? Paulo Pontes vai explicar os meandros do seu raciocínio logo adiante. Antes, é
preciso lembrar que no ano de 1972 o país estava mergulhado em plena ditadura Médici, e o
Ministro Delfim Netto manipulava os dados da economia, auxiliado pelo silêncio imposto à
imprensa, com o objetivo de apresentar à classe média o “milagre econômico”, que viria redimi-la e presenteá-la, finalmente, pelo apoio dado ao golpe de 64. Com o “milagre” operado na
economia, a classe média poderia consumir cigarros de filtro cada vez mais sofisticados, televisão a cores, e com um pouco de esforço, um fusquinha.
Paulo Pontes estava atento para o engodo que se denominava “milagre”, como convém a
um país católico. Por isso, o seu Dr. Fausto da Silva, uma peça que, lançando mão de um tema
antigo, apresenta a situação de um homem (ou de uma classe social) que pactuou com o inimigo
para garantir status quo.
Vejamos, enfim, o que tem a ver, na concepção de Paulo Pontes, o Dr. Fausto da Silva
com o tema do subdesenvolvimento: “É uma comédia que se passa na televisão, mas a televisão, o instrumento mais eficaz de mudança de hábitos de consumo, é, para mim, nesta peça,
apenas o ambiente através do qual se tenta revelar como uma sociedade planejada para entregar
o produto do trabalho social às mãos de uma minoria pode deformar o que há de mais legitimamente humano nas pessoas. Isso porque não apenas os inteiramente marginalizados desse
sistema aqui exposto estão pagando caro. O processo é tão seletivo que os que estão disputando
uma vaga no clube tem um preço humano muito grande a pagar. “Vender a alma” é a metáfora
precisa para explicar o dano causado ao homem bem sucedido pela diabólica aventura de conseguir status de minoria privilegiada num país subdesenvolvido. O meio mais contundente que
eu encontrei para exemplificar os danos humanos, éticos e sociais que esse sortilégio desenvol124
PONTES, Paulo. “Algumas palavras sobre Fausto da Silva”. Prefácio e texto editados In Revista de Teatro. Rio
de Janeiro, SBAT, maio de 1975, p. 54. Todas as citações referentes à peça serão dessa mesma fonte.
vimentista vem causando no car ter do homem brasileiro, foi criar uma personagem que é levada a hipotecar as últimas fibras de humanidade que tem dentro de si para continuar sendo um
homem bem sucedido, num país de pobres miseráveis” (p. 54).
Vendendo a alma ao Demônio, Fausto, no poema de Goethe, é condenado às penas infernais, do mesmo modo que, no Brasil, vendendo sua capacidade de produção, a classe média
se vê, ao final do dito “milagre”, mais empobrecida; do mesmo modo que o Dr. Fausto da Silva,
ao se vender aos índices do Ibope, vê-se fracassado, ridicularizado.
O ridículo de Fausto da Silva, a personagem, começa pelo próprio título que ela se dá:
“Doutor”. Na disputa pela conquista de status, qualquer pobre coitado que ascendeu socialmente um pouquinho, recebe o título de “doutor”, indistintamente: de advogado de porta de cadeia a
delegado de polícia: de médico residente a engenheiro ou deputado, o título precede o nome
como se fora marca de sua “superioridade” hierárquica. O título, aliás, é socialmente aceitável
como registro de ascensão. Por isso, Fausto da Silva chamar-se Doutor. Por isso também o sobrenome popular da Silva acrescentado ao nome Fausto: o tema do homem que se vende, somado ao drama de uma classe que se deixa vender, resulta numa trama de profunda ironia.
Mas em Paulo Pontes a ironia é antes compaixão. Assim foi com Alfredo Gamela (Um
Edifício Chamado 200), é assim com o Dr. Fausto da Silva: “É inevitável que sua alma escorregue do seu corpo na subida. Dr. Fausto está nos escritórios, nas fábricas, nas cátedras, nos púlpitos. Foi por isso que, compreendendo que Dr. Fausto são milhares de homens que não podem,
sozinhos, quebrar uma regra do jogo que os desumaniza, não procurei tratá-lo como réu. Ele é
agente e vítima. A miséria material é o preço que se exige da imensa maioria posta à margem; a
miséria moral é o preço que a minoria é obrigada a pagar” (p. 55).
4.1 - O Texto
O Ibope representa para o Dr. Fausto da Silva a mesma coisa que a sede de conhecimento e prazer para o Fausto antigo: a sua ambição maior, o fim de sua existência. Se para o Fausto
clássico, conhecimento e prazer o elevariam acima da existência medíocre dos homens comuns,
pelo fato de colocá-lo a par do mecanismo da existência, para o Dr. Fausto da Silva, que não
sofre de angústia metafísica, o alto índice de Ibope o elevaria também acima da existência dos
homens comuns, pelo fato de revelá-lo um homem que domina, com mestria, um veículo de
comunicação da maior importância. Ser bem sucedido como apresentador de um programa de
televisão, sabe-o muito bem o Dr. Fausto da Silva, significa dinheiro, significa poder: e sua
ambição última não é outra.
No livro que trata do tema fáustico, Haroldo de Campos afirma que a perspectiva da
humanidade, para o Fausto de Goethe, coincide com o da burguesia capitalista125.
Se na época de Goethe o pensamento burguês se estruturava, e se o seu Fausto espelhava toda a contradição refletida na modernidade burguesa, na época de Paulo Pontes, e num país
vilipendiado pela corrupção, o seu Dr. Fausto da Silva refletia um velho lema que é apanágio
de todos os corruptos: levar vantagem em tudo. E para isso, ele não mede esforços: se para reconquistar os índices de audiência perdidos fosse necessário apresentar a sua própria mãe morrendo, ele não hesitaria em levá-la à frente das câmeras e apresentá-la moribunda.
A imagem do Dr. Fausto da Silva é degradante na mesma proporção (embora inversos
de natureza) que é grandiosa a imagem do velho Fausto. Se Fausto é um filósofo hedonista, o
Dr. Fausto da Silva é um canalha fundamental.
A canastrice da personagem Dr. Fausto da Silva é o básico da peça. A sua luta para conseguir maior índice de audiência é o problema proposto pelo texto, que se desenvolve em três
distintos movimentos sinestésicos:
4.1.1 - Primeiro movimento
Flash-back em que Thiago, produtor de televisão, na abertura da peça, numa espécie de
conferência para um público imaginário, relembra a humanidade variada que habita as salas e
os corredores de uma emissora de televisão. Antes de contar a história do Dr. Fausto da Silva,
Thiago resolve contar alguns acontecimentos engraçados e comuns dentro de uma emissora.
Aqui a conferência em que Thiago se apresenta ao público resvala para uma sequência de sketches humorísticos, cantados, no mesmo estilo de Paraí-bê-a-bá: as situações curtas resultando
em uma piada. Ao final desta sequência entra o flash-back propriamente dito:
125
CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 120.
“THIAGO - A história que eu quero lhes contar é a trajetória do tipo mais fantástico que eu
conheci nos meus dezesseis anos de profissão. Eu não me sinto muito bem contando essa história, mas vamos lá. Esse cara que eu falo fez uma sacanagem comigo que eu nem sei como ainda
pronuncio o nome dele. Há oito anos eu produzi um programa dele em São Paulo. Estava casado de pouco, meu filho tinha um ano por aí. Eu estava vivendo uma fase difícil, minha casa
virou um inferno, uns colunistas de fofoca começaram a noticiar que minha mulher tava saindo
com um cantor. Eu briguei com ela, queria dar tiro, essas coisas. Um dia, na hora do programa
entrar no ar, minha úlcera tava quase estourando, tive uma crise de vômito, a entrada do programa atrasou uns sete minutos. No outro dia, quando veio o Ibope, o primeiro quadro do programa foi muito baixo por causa do atraso - e esse cara, mesmo sabendo que minha úlcera estava estourando (e estourou, depois eu tive que operar), foi pra direção e pediu minha cabeça. Ele
era a maior audiência da estação - me botaram pra fora e ainda alegaram justa causa. Sacanagem como esta ele fez com muita gente. Pois bem. É a história desse cara que eu quero contar
aos senhores esta noite. Apesar do ódio que sinto por ele, não posso deixar de dizer que foi o
mais fascinante personagem que eu conheci na televisão. Vamos começar a história dele como
começam os shows da TV. Minhas senhoras e meus senhores, eu lhes apresento o Dr. Fausto da
Silva” (p. 59).
4.1.2 - Segundo movimento
É a continuidade natural do primeiro movimento. Ao contar a história do Dr. Fausto da
Silva, e anunciá-lo como se fora um show de TV, Thiago faz aparecer o Dr. Fausto da Silva
cumprimentando o público com o habitual: “Boa noite, senhoras e senhores”. Dr. Fausto da
Silva, então, fala ao público sobre as atrações do seu programa para aquela noite, inclusive o
que seria o pior ou melhor momento de sua carreira, conforme ele havia prometido na semana
anterior: ele iria, diante das câmeras, arrancar um pedaço de si.
Esse segundo movimento é um compacto de ação do programa, e acompanha toda a trajetória da peça. As atrações anunciadas vão entrando em cena gradativamente no tempo do programa, ao passo que as cenas que compõem o terceiro movimento da peça vão elastecendo o
tempo compacto do programa, dando a idéia de que o público não está assistindo a um, mas a
vários programas do Dr. Fausto da Silva.
4.1.3 - Terceiro movimento
É onde se localiza o conflito da peça. Esse movimento ainda possui dois outros submovimentos:
Primeiro: as cenas de Thiago junto ao Diretor, quando este o convida a recuperar os índices de Ibope do programa.
Segundo: as cenas da mãe do Dr. Fausto da Silva, nas quais a Velha aparece doente numa cama de hospital.
Paulo Pontes conduz todos os movimentos da peça convergindo para uma mesma ação.
Assim, ao final, a auto-imolação que o Dr. Fausto anuncia no início do programa (e de vez em
quando volta a anunciar) como a grande atração da noite, acaba por ser não a sua imolação, mas
o espetáculo de sua mãe morrendo com o programa no ar. Esta morte, por sua vez, foi o que
Thiago, ao ser convidado pelo Diretor para mudar os índices do Ibope, tramou, com o objetivo
de vingar-se da traição do Dr. Fausto da Silva.
Assim, Paulo Pontes consegue somar tempos diferentes de diferentes ações para o mesmo ponto comum ao final da peça. Por exemplo: se o tempo do segundo movimento é compacto (a apresentação do programa), o tempo do terceiro movimento é extenso: os vários contactos
do Diretor com Thiago, propondo-lhe assumir a produção do programa, Thiago recusando, aceitando, e criando a idéia de destruir o apresentador Fausto da Silva. Estes dois movimentos se
intercalam em várias cenas espalhadas ao longo da peça. Sendo que o segundo e o terceiro movimentos estão contidos no primeiro, que é a história do Dr. Fausto da Silva, contada por Thiago. A peça termina no terceiro movimento, quando Fausto da Silva apresenta sua mãe moribunda diante das câmeras. Ao final do terceiro movimento, já morta a mãe de Fausto, Paulo
Pontes faz o texto retornar ao primeiro movimento, desta vez com Thiago apresentando o seu
programa Thiago de Almeida, naquela noite entrevistando o ex-animador de TV Dr. Fausto da
Silva. E do mesmo modo que Fausto da Silva anunciava a grande atração da noite, prometida
desde a semana anterior, Thiago de Almeida anuncia a sua grande atração da noite, divulgada
desde a semana anterior: a entrevista com o Dr. Fausto da Silva.
4.2 - A frase-chave que desvenda a trama
Numa determinada sequência do terceiro movimento, o Diretor está tentando convencer
Thiago a aceitar o desafio de mudar o programa. Thiago recusa-se. Todo mundo sabe o que
houve entre ele e o Dr. Fausto da Silva, seu declarado inimigo. Não seria ele quem iria salvar o
programa. É quando o Diretor, em meio a sua argumentação, enuncia a frase que vai cair como
imagem definitiva na trama que Thiago armar posteriormente com o objetivo de destruir Fausto da Silva:
“DIRETOR - Estou há vinte anos nisso, rapaz, já comecei diretor de estação. Público gosta disso126, mas tem de ter a temperatura dele na mão. Essa linha de programa corre o risco de virar
poço sem fundo. É como viciado em cocaína - o cara precisa cada vez de uma dose maior pra
obter o mesmo efeito da dose anterior. Chega o limite que ou você recua ou toma a dose definitiva e não tem mais quem levante. O descrédito na imagem de Dr. Fausto está assim. Ainda dá
tempo de recuar. Mais uma dose...” (p. 64).
O Diretor, sem o querer, pronunciou a sentença de morte do Dr. Fausto da Silva. Pouco
antes dessa fala, ele disse a Thiago que a mãe de Fausto da Silva está hospitalizada com câncer,
quase morrendo, e o hospital pede que o apresentador seja avisado. A dose definitiva... É esta a
frase que Thiago toma para tramar a destruição de Fausto da Silva. E também, vai se saber depois, a mudança de orientação da emissora.
Thiago não é só um produtor de televisão. É também um intelectual que pensa sobre o
problema da televisão. E o problema, sabe Thiago, não é o que ela exibe, mas o que ela deixa
de exibir, como já dissera Vianinha sobre a televisão.
No momento que Thiago resolve pôr a mãe de Fausto para morrer em frente às câmeras,
entrega ao Diretor um artigo que sairia publicado no dia seguinte, supostamente escrito por um
conhecido crítico de televisão. O Diretor não aceita a idéia, a princípio, para depois perceber
que é uma boa idéia, embora arriscada, para aumentar o índice de Ibope. Na discussão com o
Diretor, Thiago termina por fazer um longo monólogo teorizando sobre a televisão, no qual a
126
Do sensacionalismo do Dr. Fausto da Silva.
idéia da dose definitiva de cocaína está presente como uma enorme ambiguidade: seu objetivo é
destruir o Dr. Fausto, mas seu discurso é no sentido de acabar na televisão programas como o
do Dr. Fausto da Silva, que iludem o senso da realidade, distorcendo assim o que ele (e também
Paulo Pontes) imagina que seja a linguagem televisiva.
“THIAGO - /.../ Do jeito que as coisas estão agora, só tem duas alternativas: ou uma porrada de
corte bem montadinho, que não dá nem tempo do nego pensar, ou um microfone parado pra
quem quiser apelar. Qual das duas alternativas é a melhor? Não pra mim, mas do teu ponto de
vista, qual das duas é a melhor? A situação que chegou a sua estação - pique de sete às 9:45 responde! Agora, quer saber porque só restam essas duas alternativas?
DIRETOR - Ai, meu saco. Não me vem com essa teoria imbecil, Thiago.
THIAGO - Dr. Celso, sua estação precisa de um pouco de teoria. Televisão é uma telinha pequena, com pouca definição visual. Está numa sala, o sujeito assiste em casa, com gente entrando e saindo. Ele liga, desliga, toca o telefone, a antena treme, borra a imagem. Então, Dr. Celso,
pro nego sentar o rabo e ficar vendo aquela telinha, é preciso que ela lhe mostre um troço muito
direto. Uma paulada forte, um negócio que lhe chame a atenção, ou porque diz respeito à sua
vida ou porque é um acontecimento fora do comum. Mas tem que ser mostrado de maneira direta, porque o veículo é pobre visualmente, não resiste a muita elaboração. Qual foi o produtor
que bolou a Copa do Mundo, a Guerra do Vietnam, a ida do homem à Lua, ou o desabamento
do viaduto? Nenhum. Mas por que esses acontecimentos deram índices tão altos de audiência?
Porque a única coisa que difere a televisão dos outros veículos é que ela é capaz de mostrar
imagens e sons de um acontecimento na hora em que ele está acontecendo. Televisão é só isso.
E isso é maravilhoso. A definição visual é baixa, a antena treme, o escambau! Mas dê um acontecimento real a uma câmera de televisão e ela fará o que nenhum outro veículo pode fazer127
/.../ Tire a realidade da televisão, a realidade crua e nua /.../ e restar apenas naquela telinha pequena dois equívocos. As duas alternativas que eu acabei de lhe mostrar /.../ Na falta de problemas reais, a televisão forja problemas e discussões com a aparência de reais. O Dr. Fausto
não entende, mas ele tem uma profunda intuição da verdadeira natureza da televisão. Na falta
de um debate sobre um problema real, ele produz uma briga em torno de uma besteira. Aquela
briga, aquela troca de insultos que os trouxas estão pensando em casa que é pra valer, é uma
127
O conceito que Paulo Pontes desenvolveu através da personagem com certeza valia para o seu tempo. Porém, a tecnologia demonstra que a televisão suporta algo mais do que simplesmente uma câmera aberta sobre
um acontecimento real.
tentativa de dar aparência natural a um acontecimento manufaturado num estúdio! Mas o Dr.
Fausto não sabe que não basta a briga - é preciso que a briga tenha um motivo verdadeiro.
Quem mente em televisão é trouxa! Se queres audiência, não mentirás! Porque ninguém ilude o
olho de uma câmera. Ele é frio. E porque a briga é falsa, sem conteúdo, o Dr. Fausto precisa
toda semana de uma briga mais escandalosa para conseguir o mesmo efeito da briga anterior. É
preciso uma dose cada vez maior de cocaína pra conseguir o efeito da dose anterior...” (p. 73).
Em meio ao discurso, Thiago emite a mesma frase já dita pelo Diretor. E se o Diretor
com essa frase consegue mudar o ponto de vista de Thiago, no sentido dele aceitar fazer a produção do programa, Thiago, por sua vez, consegue com que o Diretor aceite a idéia sensacionalista de pôr a mãe de Fausto da Silva para morrer em frente às câmeras.
Com isso, Thiago vinga-se de Fausto da Silva cuja canalhice torna-se patética no momento que a mãe está morrendo e a direção da emissora recebendo telefonemas de protesto, o
Diretor mandando Thiago tirar o programa do ar, e Thiago prolongando no ar o ridículo de
Fausto da Silva entrevistando uma velhinha feliz, porque, naqueles últimos instantes de vida,
pode ver pela última vez o seu filho.
Fausto da Silva foi traído pela própria ambição. Quando se sabe fora do ar, quando percebe a jogada para destruí-lo, já é tarde. Ele, então, impotente, desvaira:
“FAUSTO - /.../ E vocês amanhã vão dizer que tiraram o meu programa do ar por quê? Quero
ver ter peito. Pensa bem, Celso, como é que vai justificar tirar o meu programa do ar com minha mãe morrendo. Vai dizer que eu estava apelando? Experimenta, safadão. Eu vou lavar a
roupa suja desta merda. Vão acreditar em mim porque, eu não sei se você sabe, eu sou o Dr.
Fausto da Silva. Cadê tua pesquisa que botou a estação pra trabalhar pra classe C? “Teu programa tá muito alto, Fausto, precisamos falar pra classe C”. Estou falando pra classe C, urubu.
Estou vendendo as minhas tripas, os meus nervos, o meu sono, a minha alma pra classe C. Estou vendendo a minha alma em troca de audiência para a tua estação porque você me disse que
ela precisava faturar /.../ Eu ganhei de vocês todos. Vão ver amanhã a minha audiência. Vão ver
amanhã se a mãe do palhaço morta não estourou. Computa aí, vê se eu não ganhei em tudo
quanto é classe. Vão ver se não tinha de mendigo a grã-fino esperando um canalha arrancar um
pedaço de sua própria carne. Vê minha audiência amanhã, Thiago de merda. Thiago do bom
gosto equivocado. Parasita da falta de escrúpulos alheia, quanto é que você ganhou para acabar
de vender a minha alma ao Diabo? Eu ganhei muito dinheiro, mas a alma era minha. E eu ganhei de você porque eu vendi a minha alma e você vende a dos outros...” (p. 77).
Fausto da Silva tinha razão: o seu índice foi o mais alto naquele dia. Thiago também. No
dia seguinte, o programa de Fausto da Silva, que tinha caído para sete, começou com vinte e foi
subindo para setenta e um pontos no índice do Ibope. Em compensação, Fausto da Silva perdeu
a credibilidade, e teve que deixar a televisão. A dose de cocaína aplicada foi maior do que podia
o seu caráter suportar.
4.3 - Uma peça sem estilo
Flávio Rangel, o diretor da montagem, escreveu no texto de apresentação, que não saberia como classificá-la nos “escaninhos” das escolas literárias (p. 55), já que o texto tanto apresenta elementos típicos da comédia de costumes, quanto de drama existencial; tanto de elementos de realismo, quanto de teatro do absurdo. Como forma, disse Flávio Rangel, também é ambiciosa e nova, “pois mistura desde elementos da comédia musical até a tentativa de uma catarse, através do verdadeiro strip-tease psiquiátrico que seu protagonista realiza ao final” (p. 55).
Dr. Fausto da Silva pode ser uma mistura de vários estilos, sem dúvida. Mas é, antes de mais
nada, um texto resultante da maturidade de um autor que caminhou lento e seguro para o domínio da linguagem teatral.
5. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
Texto escrito em 1973 em parceria com o argentino Alfredo Zemma, e somente montado em 1980 sob a direção de Reinaldo Santiago, no então Centro de Teatro da Unicamp, hoje
Departamento de Artes Cênicas.
Este é um texto de várias referências, tais como:
Primeiro: Qorpo-Santo, pelo absurdo da situação apresentada (embora a narrativa de
Paulo e Alfredo Zemma seja completamente linear, coisa que não acontece com Qorpo-Santo);
e também pelo nome das personagens centrais, o casal Eugênio e Eugênia (que lembra alguns
casais de Qorpo-Santo como, por exemplo, Mateus e Mateusa, da peça do mesmo nome, ou
Lindo e Linda, da peça Eu sou vida; eu não sou morte).
Segundo: Joracy Camargo, pela peça Deus lhe pague, em que a personagem central, o
Mendigo, é uma espécie de filósofo condestável do sistema sócio-político cujo trabalho consiste
em oferecer à sociedade a redução da sua culpa pela autocomiseração transformada em óbolo,
que, evidentemente, o enriquece. Na peça de Paulo e Alfredo Zemma, também há a personagem
de nome Mendigo, inquilino do casal Eugênio e Eugênia cuja trajetória é semelhante à da personagem de Joracy Camargo. A diferença está no modo como as duas personagens encaram a
sociedade: a de Joracy Camargo compreende o mecanismo de exploração e o condena, embora
dele se utilize como vingança; a de Paulo e Alfredo é mais uma mantenedora dos mecanismos
de exploração, com plena consciência do seu papel.
Terceiro: Bertolt Brecht, na peça O círculo de giz caucasiano, nas cenas finais em que o
juiz, emitindo sentenças estapafúrdias, julga sobre o direito de guarda da criança, ali s, cena
essa que é por sua vez citação de Cervantes, quando Sancho Pança (no segundo livro do Dom
Quixote), tornado juiz, julga correto por sentenças absurdas. Nas cenas finais da peça de Paulo
Pontes e Alfredo Zemma, surge uma personagem de nome Homem (cujo papel é julgar a guarda do filho do casal Eugênia e Eugênio) e, mantendo a tradição das sentenças sem nexo, embora
com resultado final diferente, julgue a favor do Mendigo, subvertendo a tradição cômica da
personagem Juiz, que - como se costuma dizer de Deus - julga certo por linhas tortas. Em Cervantes, como em Brecht, o Juiz projeta o direito humano que transgride a letra da lei. Em Paulo
Pontes e Alfredo Zemma, a lei é o direito e, diante dela, o homem não é nada, refletindo o instante em que a ditadura tinha estabelecido a sua lei e o seu direito.
Por fim, a quarta referência: o próprio texto de Paulo Pontes, Um Edifício Chamado
200. A situação do casal Eugênio e Eugênia é idêntica à do casal Alfredo Gamela e Karla: presos dentro de um apartamento, sem emprego, sem perspectiva, Eugênio e Eugênia sonham com
a vida que viveram, sem forças para transformar a vida em que vivem, enquanto os credores
levam do apartamento tudo o que lhes é caro: a coleção completa dos discos de Caruso, os choros de Ernesto Nazareth, além dos móveis, do piano, tudo. Só lhes restando o filho completamente paralítico e mudo, dentro de uma cesta.
5.1 - O texto128
Eugênio e Eugênia vivem para aquele filho, projeção concreta dos seus fracassos enquanto artistas: ele, violinista; ela, cantora; conheceram momentos de glória, mas agora são
obrigados a alugar um quarto da casa para o Mendigo, única fonte de renda que lhes resta. Enquanto o casal vive na mais triste penúria, o Mendigo, ao contrário, prospera em sua profissão:
para isso tem todo um arsenal de disfarces que o transforma na mais lamentável criatura: cego,
aleijado ou outro trapo qualquer, ele tem sempre o disfarce certo para o lugar e a ocasião corretos.
Quando os credores levam os objetos do casal, levam também os objetos do Mendigo. É
o quanto basta para que ele, num explosão de fúria, exija a devolução do que lhe foi apreendido.
Como?
“MENDIGO - Você não pode exigir nada! Aqui, agora, só quem exige sou eu. E vou começar a
exigir tudo o que eu quiser... Já... Neste momentinho... (PROCURA NOS SEUS BOLSOS) - eu
tenho lápis e papel... Ah, estão aqui... (COLOCA O PAPEL SOBRE A CAMA DO VELHO. A
VELHA AGARRA A CAIXA ONDE ESTÁ O FILHO. O MENDIGO AGARRA O VELHO
PELO COLARINHO, E O OBRIGA A SENTAR NA CAMA E APANHAR O LÁPIS PARA
ESCREVER. Agarra o lápis... Escreve...
EUGÊNIO - Está bem, escrevo... Mas, antes, me solta, senão eu não posso escrever (O MENDIGO O SOLTA).
MENDIGO - Escreva... Nós, Eugênio Cavalcanti de Albuquerque e Eugênia Cavalcanti de Albuquerque /.../ em plena liberdade e consciência de nossos atos, firmamos o presente contrato:
primeiro, cedemos nosso inválido filho a nosso inquilino, para ser explorado comercialmente
durante cinco anos...
EUGÊNIO - Quatro...
MENDIGO - /.../ Quatro e meio e fim de papo /.../ Para cujo efeito lhe outorgamos a posse do
supracitado inválido. Segundo: da referida exploração comercial, nosso inquilino perceberá a
128
PONTES, Paulo. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. In A arte da resistência. Op. cit. Todas as citações referentes ao texto serão da mesma fonte.
quantia de quarenta por cento da renda bruta, nós, os cedentes, quarenta por cento, e os vinte
por cento restante serão gastos em despesas de manutenção” (p. 60).
Há muito o Mendigo vinha alertando o casal para aquele filho inválido, uma fonte de
renda sem comparação. O casal relutava em alugá-lo para o negócio da mendicância. Agora, a
falência civil é completa e não há como pagar o prejuízo tomado pelo Mendigo quando da apreensão dos móveis e objetos do casal, cujo desejo é o de curar o filho inválido:
“EUGÊNIO - Vou lhe dar uma grande notícia, filho. Estávamos só esperando a ocasião para lhe
dizer: um médico nos deu quase certeza de que nosso filho pode ficar bom - vai poder falar, ouvir, lhe conseguirá dois braços, dois lindos braços, resistentes, do melhor material que existir;
lhe conseguir também duas pernas bem bonitas... bola com Pelé, atira, gollll!... Meu filho vai
ser quase normal, vai poder se mexer quase igual a gente mesmo, quer dizer, como qualquer um
de nós...” (p. 56).
Mas não se conta o número de pediatras, ortopedistas e outros médicos que se procurou.
Não há jeito. O filho inválido tornou-se, entre o casal e o Mendigo, o ponto de conflito. Inválido é só um modo de dizer: para o casal, há a esperança da sua recuperação; para o Mendigo, há
ali uma fonte de renda.
E tem razão o Mendigo: no segundo movimento da peça, após firmarem o contrato de
exploração comercial da criança, os móveis e objetos que tinham sido confiscados pela justiça,
voltam para a casa dos velhos artistas. Agora, eles já têm dinheiro. Agora, podem cuidar da
operação do garoto.
Acontece que o tempo que resta de exploração ainda é longo. O terceiro movimento da
peça é o desaparecimento do menino do ponto onde ele é habitualmente colocado. O Mendigo,
como de costume, tem acesso de fúria. Eugênio aproveita a notícia que o Mendigo lhe traz, e
pede que ele deixe a casa. Ao fim do quadro, o Mendigo descobre que Eugênio tinha raptado o
garoto, marcado operação e, óbvio, desrespeitado o contrato firmado entre eles.
O movimento seguinte é o julgamento. O juiz apresenta os caminhos tortuosos do seu
pensamento, num longo discurso pleno de nonsense, onde se cita desde Charles Darwin até o
Corcunda de Notre Dame; desde Incitatus, o famoso cavalo-senador de Calígula, até o Tio Patinhas, numa busca falsamente erudita de encontrar a solução para o caso da criança. O discurso
do juiz lembra os enormes discursos que a máscara do Dottore da Commedia dell'Arte costumava fazer. O Dottore, assim como o juiz de Paulo Pontes e Alfredo Zemma, por qualquer mo-
tivo era capaz de pronunciar um longo e absurdo discurso, com a empáfia de quem está emitindo a sentença definitiva sobre qualquer assunto:
“HOMEM - /.../ E visto que: o denunciante reclama a posse do objeto de nossa discussão, e os
denunciados a negam, alegando tratar-se de seu filho, o cerne da questão está em definir-se,
claramente, se a propriedade em causa é, de fato, um ser humano. Se for ser humano, em gozo
de todas as prerrogativas consagradas ao ser humano pelo Direito Ocidental, entre elas a de não
ser propriedade de ninguém, a questão se definir em favor dos supostos pais. Mutatis mutandis,
se, em lugar de ser humano, for uma simples coisa, a questão se definir em favor do denunciante, uma vez que a posse, por contrato, de uma coisa equivale à sua propriedade. Ora muito bem,
não encontrando nos autos nada que provasse que estamos em face de um ser humano, fui procurar ajuda nos clássicos do direito e da literatura especializada. Mesmo com esforço, não pude
classificá-lo em nenhuma das categorias que definem a pessoa: humana, jurídica, moral, psicológica, gramatical, teological, física etc. Meu esforço era pra encontrar uma fórmula que nos
permitisse concluir que o fenômeno em causa é capaz de alguma modalidade de obrigação e
exercer alguma forma de direito. Foi em vão. A dificuldade, meus senhores, estava em que só
se pode ser uma pessoa de direito se se é uma pessoa de fato. Era necessário primeiro descobrir
se nós estamos diante de uma pessoa humana, do ponto de vista biológico. Saímos então do
terreno do direito. Mas a Justiça não vive de fórmulas jurídicas. Era necessário procurar agasalho conceitual em todos os setores da cultura humanista, mesmo os mais subjetivos. Recordei a
obra de Darwin... E não descobri em nenhuma fase da evolução da espécie uma que, de longe,
se aproximasse das características do fenômeno em causa. Repassei, em minha memória, o admirável estudo de Cousin sobre a humanidade do Corcunda de Notre Dame, e não encontrei
nada que me valesse por que - ora, senhores - o Corcunda de Notre Dame era apenas corcunda,
mas trabalhava tocando aquele sinão de igreja, tinha braços, pernas e - pasmem, senhores - era
um apaixonado, cheio de intensos sentimentos. O meu esforço investigatório me levou até ao
decreto através do qual Calígula deu status político, portanto jurídico, ao seu cavalo Incitatus.
Mas, ora senhores, diferentemente do fenômeno em causa, Incitatus não sofria por falta de
membros; ao contrário, tinha as quatro patas regulamentares, quatro magníficas patas. Não satisfeito, saí do terreno dos fatos tangíveis e percorri o reino da fantasia. É sabido que Walt Disney deu status humano aos bichos. Me lembrei de todos os heróis de Disney que eu tanto li em
minha infância - o esperto Pernalonga, o enfezado Popeye, o avarento Patinhas e tantos outros mas não encontrei nenhum bichinho que, nem de leve, se assemelhasse com o fenômeno em
causa. Senhores, a nossa Justiça atribui capacidade de direito, mesmo às pessoas que não têm
capacidade de fato. Mas não é capaz de transformar em pessoa de direito quem não é de fato.
Graças a isso é que o Jockey Clube pode ter cavalos, o fazendeiro pode ter bois e a madame
pode ter cachorros. Ora muito bem, considerando o que foi dito; considerando que estamos diante de um dos mistérios da natureza, de um indecifrável desígnio do Criador, resolvo que: para
salvaguardar a ordem das coisas, o que é planta continue a ser planta, coisa, coisa, gente, gente...” (p. 77).
Talvez o aproveitamento da retórica caudalosa do Dottore como recurso cômico não tenha sido consciente por parte de Paulo Pontes. Por isso, não a enumeramos como a quinta referência encontrável neste texto, como fizemos páginas atrás. Sem desconsiderar que Paulo Poderia conhecer essa particularidade da máscara do Dottore, parece-nos que o texto do juiz, antes
de qualquer referência erudita sobre comédia, em Paulo Pontes, foi gerado, principalmente, pela
sua vivência e observação do gosto popular pela prosódia abundante - mesmo que eivada de
nonsense. Em 1976, em entrevista a Márcia Guimarães, ele disse: “O povo brasileiro tem muito
apreço pela destreza verbal. Eu sou um homem vindo das classes populares, e eu sei o que significa um júri na Paraíba, onde eu nasci. A praça se enchia de gente. Ficavam horas ouvindo os
advogados falar”129.
Não seria talvez pelo apreço popular à destreza verbal que a máscara do Dottore fizesse
tanto sucesso? Se a resposta correta for sim, Paulo Pontes ter provado mais uma vez o seu agudo senso de observação da alma popular.
5.2 - A arte do povo em oposição à arte de consumo
Por conhecer a alma popular, por acreditar que só as coisas sabidas pelo povo podem viabilizar algum esboço de resistência estética contra a massificação do gosto, do consumismo
desvairado que a indústria cultural incentiva - fazendo velho o que ontem era novo - Paulo Pontes imagina a situação inicial da peça: uma cantora lírica e um violonista falidos. E por que es129
GUIMARÃES, Márcia. Op. cit.
tão falidos? Porque a sua arte não interessa mais ao mercado; porque, para substituí-los, a indústria cultural cria e destrói a cada dia novos ídolos, novos mitos, novos gostos.
Para subverter essa situação, Eugênio tem uma idéia:
“EUGÊNIO - Depois... Nós ainda temos muito o que fazer, sabe, minha velha? Eu não parei de
pensar. Tive uma idéia que eu acho que não tem erro... Muita coisa mudou no mundo, não tem
dúvida, mas a sensibilidade das pessoas é uma coisa permanente. Esses ruídos eletrônicos não
são a música desta época, são a falta de música desta época. Todo mundo virou um puxa-puxa,
ninguém tem a tranquilidade pra viver sua gentileza, sua doçura, pra chorar suas dores... Aí,
pimba! - os fazedores de novidades bolaram o barulho, porque no barulho fica tudo igual, tudo
atordoado... Eugênia, eles não querem que ninguém pense. Neste século estamos feito bicicleta,
quem parar, cai. Mas eu bolei, Eugênia... Não é mais a grande sinfonia: pra colher aquele botãozinho embutido na sensibilidade das pessoas nós vamos camerizar a música de toda gente...
Canta alguma coisa, Eugênia, qualquer coisa simples que você canta quando está fazendo uma
sopa...
EUGÊNIA - Como?
EUGÊNIO - Qualquer coisa.
EUGÊNIA - Uma música... (CANTA) Un bell di vedremo...
EUGÊNIO - Não, Madame Butterfly, não... Uma coisa que você canta espanando os móveis.
EUGÊNIA - (CANTANDO) - Ai, iê, iê...
EUGÊNIO - Isso... Espera... (APANHA O VIOLINO) - Não diz a letra, só cantarola... (COM O
VIOLINO ELE FAZ UM CONTRAPONTO CAMERÍSTICO, ENQUANTO ELA CANTAROLA. OS DOIS SE ABRAÇAM AO FINAL) - É isso, minha velha, é isso. Nós vamos camerizar as músicas que saem da alma do povo...” (p. 63).
Este é o trecho central da peça, o que importa a Paulo Pontes discutir: a situação da música popular, que, julgava ele, caminhava para a uniformização rítmica determinada pelas gravadoras, o que implica, como consequência, na uniformização do gosto, na industrialização da
sensibilidade estética, como se o gosto pudesse sair de uma mesma linha de produção, como se
fora um carro, um liquidificador.
Por causa disso importa para os autores que as personagens centrais sejam dois músicos
eruditos desempregados. Mas não só: para completar o quadro de penúria, são velhos e abandonados, velhos e infortunados, já que até o filho se torna um peso em suas vidas.
Mas os dois velhos são profundos conhecedores de música. Isso pode salvá-los da miséria. Sabem que podem oferecer música outra vez, que contorne a insensibilidade de um tempo
sem poesia, sem imaginário, já que o que sai de uma linha de produção não pode exprimir em
profundidade a sensibilidade, a beleza, o pensamento de um povo.
A conclusão desta cena central, e fundamental no texto, beira o patético, numa exacerbação de sensibilidade do casal, como se a cena quisesse preencher, como o seu pranto fácil, a
insensibilidade que os autores pré-determinam no mundo:
“EUGÊNIO - Você chorou com minha idéia, minha velha. É isso, eu sabia... A gentileza, a delicadeza, a sensibilidade são coisas permanentes... Você sentiu Eugênia, eu estou certo... A natureza humana é tecida com fios muito delicados...” (p. 64).
5.3 - Acreditando na aventura humana
Eugênio, o que foi vítima de um tempo insensível à sua música, o que ficou na miséria,
o que teve um filho paralítico, e por isso tudo não pode evitar ou fugir dos mecanismos de exploração econômica engendrados pelo capitalismo, é, contudo, uma personagem positiva, por
acreditar que alguma coisa no homem há de resistir. Os “fios muito delicados” da natureza humana, julga ele, são mais fortes que a opressão, que a injustiça, que a letra morta da lei. Eugênio acredita que a aventura humana tem sentido. É isso o que ele tenta dizer ao juiz, no movimento final do texto, quando do julgamento sobre o direito de exploração comercial do garoto:
“EUGÊNIO - Meritíssimo Juiz: nós somos pessoas pacíficas, honestas, respeitadoras da lei.
Nossa vida é um culto permanente às melhores aspirações do ser humano, seu sentimento, suas
manifestações de humanidade, espírito criador e capacidade associativa. Temos vivido momentos dolorosos, mas conhecemos, também, momentos de glória, de verdadeiro triunfo. Se bem
que, a cada instante, forças anti-sociais tenham tentado sabotar o que existe de melhor na natureza do homem, nós continuamos achando que a aventura humana tem sentido. Por isso quero, ao iniciar a minha exposição, indicar que ser discutido aqui, antes de tudo, um princípio...
(p. 74).
O juiz, claro, representante das forças anti-sociais que criaram as leis contra as quais
Eugênio e Eugênia se debatem, não é capaz de compreender a grandeza de princípios evocada
pelo velho artista. Por isso, ao final do julgamento, também final da peça, é ao Mendigo que é
dado o direito de explorar comercialmente a criança, contra a vontade dos pais de operá-la, recuperá-la, como ser humano, para a vida.
6. Gota D'água
“É a Medeia que o Vianinha escreveu. É a mesma coisa”.
Quem disse isso foi uma vizinha de Deocélia Vianna, mãe de Vianinha, em seu livro de
memórias130, a propósito da peça Gota D'água, de Paulo Pontes e Chico Buarque.
O próprio Chico Buarque, respondendo à pergunta de Sábato Magaldi sobre a dívida
que eles tinham em relação à concepção de Vianinha, confessou-se surpreso quando viu na TV
a Medeia. Segundo Chico, a dívida era maior do que ele imaginava.
Deocélia afirma que quando Vianinha embarcou para Houston, a fim de se tratar do
câncer que o matou, Paulo Pontes o teria levado em seu carro até o aeroporto. Deocélia não diz
quem, mas afirma que testemunhas no carro ouviram Vianinha falar da peça que queria escrever, um musical, baseado na Medeia que fizera sucesso na televisão131.
Chico Buarque, em entrevista a Lisa Oliveira-Joué, disse que a idéia de Vianinha era,
em parceria com Paulo Pontes, escrever Medeia para o teatro132.
Deocélia, em seu livro, apresenta Paulo Pontes como usurpador da obra de Vianinha133.
130
VIANNA, Deocélia. Op. cit. p. 218.
131
Idem, ibidem, p. 217.
132
OLIVEIRA-JOUÉ, Lisa. “Entrevista com Chico Buarque de Hollanda sobre Gota D'água”. Sem referência bibliográfica.
133
Idem, ibidem, p. 217 e ss.
6.1 - O problema da criação
É evidente: Gota D'água é inspirada na Medeia de Vianinha. Mas isso não diminui o seu
valor. Mesmo porque Medeia de Vianinha é inspirada na Medeia de Eurípides. Isso em nada
diminui o valor da obra de Vianinha. Ao contrário. Vianinha diz no seu texto: “Atualização da
tragédia de Medeia, da Mitologia Grega”134.
Vianinha sabia (embora Deocélia não parecesse saber) que um tema, profundo ou não,
não se esgota numa obra. Nem mesmo num único autor. Goethe, ao escrever o seu Fausto, não
esgotou o tema. Mesmo porque, antes de Goethe, Marlowe, na Inglaterra, escreveu Fausto, cuja
fonte de inspiração deita raízes na Idade Média. Shakespeare, exemplo clássico, não tem uma
única obra cuja idéia original tenha sido sua.
Um tema não pertence a um homem. A obra, sim. Repetir um tema não significa plágio.
É preciso saber que um tema tem o seu próprio desenvolvimento básico, a sua estrutura, a sua
concepção do mundo enfocado. Várias obras sobre um tema dialetizam o problema que ele traz
consigo.
Um tema é um instigamento. A obra a sua resposta. O tema do amor desvairado, do amor total, sequioso, ensandecido, do amor que só enxerga para sua satisfação o ser amado, do
amor tão grande, tão absoluto, tão completo quanto incapaz de viver sem o seu objeto, a ponto
de, à falta do ser amado, se transformar eloquentemente em seu contrário; transformar-se em
ódio desvairado, total, sequioso, ensandecido, absoluto, a ponto de, sofrendo por querê-lo vivo,
não pode deixar de sofrer por querê-lo morto; o tema do amor assim é com certeza mais antigo
do que Eurípides. Mas a sua Medeia tratou-o com perfeição.
Vianinha, reescrevendo Medeia, não perdeu de vista o seu ponto central: o amor tão cego que é incapaz de distinguir, quando rompe o seu equilibrio, o amado do odiado. Mas da peça
de Eurípides, Vianinha atentou para um ponto e o atualizou: nela, Jasão deixa a casa de Medeia
pela casa de Creonte, o rei. Em Vianinha, Jasão deixa a casa de Medeia pela de Creonte, o capitalista.
134
VIANNA FILHO, Oduvaldo. Medeia. Texto em apostila. Arquivo do Jornal A Tribuna, de Santos, gentilmente
cedido por Carmelinda Guimarães.
Paulo Pontes manteve a base do tema: a loucura que domina Joana, ao ser abandonada.
Mas Paulo atenta para um ponto no texto de Vianinha e o aprofunda: a traição de Jasão serve de
gancho para que apresente um painel sobre a luta de classes.
Uma obra está profundamente baseada em outra, embora sejam diferentes.
Dizer que o texto de Paulo Pontes e Chico Buarque é a mesma coisa da obra de Vianinha é tão falso quanto dizer que a peça de Vianinha é igual à de Eurípides. O tema é o mesmo;
o tratamento é diferente.
Em arte, diz uma frase popular, nada se cria, tudo se copia.
6.2 - O resgate da dívida
Paulo Pontes, no programa da peça135, agradecendo aos que os ajudaram a construir o
espetáculo, depois de citar alguns nomes, arremata: “E especialmente a Oduvaldo Vianna Filho
que, ao adaptar Medeia para a TV, nos forneceu a indicação de que na densa trama de Eurípides
estavam contidos os elementos da tragédia que queríamos revelar”.
Deocélia perguntou a sua vizinha se no programa tinha o nome de Vianinha. Ao que a
vizinha respondeu: “Nem no programa, nem nos cartazes”136. A vizinha não lera o programa.
Nem Deocélia.
Sábato Magaldi perguntou a Chico Buarque: “Eu gostaria de saber qual a dívida a essa
concepção (a do Vianinha) e onde é que a Gota D'água se afasta dela?”137
Como fora dito, Chico Buarque acredita que a dívida é maior do que ele poderia imaginar, mas não respondeu à segunda parte da pergunta, que trata do afastamento da obra deles em
relação à do Vianinha.
135
PONTES, Paulo. “O depoimento dos autores”. In programa da peça. Rio de Janeiro, 8 de dezembro de 1975.
Esse texto é o prefácio à obra editada, sem o título acima.
136
Idem, ibidem, p. 218.
137
MAGALDI, Sábato. “Entrevista Chico Buarque”. Inédita. Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1985.
Um pouco antes, Chico disse ao próprio Sábato: “Nós lemos a Medeia de Eurípides,
discutimos bastante o texto e traçamos o roteiro. Foi feito o roteiro de algumas poucas páginas
com a adaptação para teatro. A partir daí, separamo-nos. O Paulo Pontes ia escrevendo e mandando, paulatinamente, o material para mim. mandava, assim, de 5 a 10 páginas, eram lotes que
chegavam. Eu pegava o texto dele cru e transformava em versos. A idéia de se fazer em versos
o texto da peça era dele também. Eu, muito disciplinadamente, fazia em versos com a métrica,
ajeitando a métrica, a rima, tudo certinho e devolvia tudo para ele”138.
Chico dá a dica de por onde se pode analisar as obras: somando a Vianinha e Paulo o
autor antigo, Eurípides.
6.3 - Uma leitura comparativa
Para realizarmos essa leitura, precisamos, previamente, estabelecer uma regra: o texto
do Vianinha ser acompanhado da primeira à última sequência, seguido pelos textos de Eurípides, Paulo Pontes e Chico139, sempre nessa ordem, para que possamos manter a noção da ação
das peças, e assim, ao final, estabelecermos o que há de igual entre os textos, e o que há de diferente.
138
139
Apud Sábato Magaldi, op. cit.
Trabalhamos com as seguintes edições:
EURÍPIDES. Medeia. Trad. portuguesa de Cabral do Nascimento. Lisboa, Editorial Inquérito, sem data.
PONTES, Paulo. Gota D'agua. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
VIANNA FILHO, Oduvaldo. Op. cit.
6.3.1 - Medeias, ou o tema da separação dos amantes
A) Em Vianinha, na primeira fala do texto, diz Medeia:
“MEDEIA - Me traiu, homem. Me traiu, Jasão.. Punhalada, punhal no escuro, não é?... Tem
volta... Tem... Retorno... ódio. Quero meu ódio todo... Vem mais, meu ódio...” (Prólogo).
Esta fala, além de toda a movimentação do conjunto residencial popular, mostra a diferença entre a vida de todo dia, de todo mundo e, em particular, o abandono de uma mulher que,
em sua fala, embora curta, já expõe o problema com o qual irá lidar.
Em Eurípides, a personagem Aia relata brevemente o passado de Medeia, e o que lhe
acontece no presente:
“AIA - Jasão traiu os filhos e minha ama para entrar num tálamo real: desposa a filha de Creonte, que cinge a coroa do país /.../ Deprimida, sem se alimentar, abandona o corpo às dores; consome dias inteiros em pranto desde que conheceu a perfídia do marido; já não alça a vista nem
desprende do chão o olhar; parece uma rocha ou uma onda do mar quando ouve as consolações
dos amigos /.../ É uma alma violenta, não suporta afrontas” (p. 14).
Em Paulo Pontes e Chico, Corina, a vizinha, comenta com as outras o estado em que Joana se encontra:
“CORINA - Pois ela está como o diabo quer/ Comadre Joana já saiu ilesa/ de muito inferno,
muita tempestade/ Precisa mais que uma calamidade/ pra derrubar aquela fortaleza/ Mas deste
vez... acho que não aguenta,/ pois geme e treme e trinca a dentadura/ E, descomposta, chora e
se esconjura/ E num soluço desses se arrebenta/ Não dorme, não come, não fala certo,/ só tem
de esperto o olhar que encara a gente/ e pelo jeito dela olhar de frente,/ quando explodir, não
quero estar por perto” (p. 4).
Os autores, logo na abertura, apresentam a personagem num ponto alto de conflito.
B) Em Vianinha, Medeia pede para Dolores, a vizinha, cuidar dos seus filhos, enquanto
ela arma a vingança:
“MEDEIA - Quando não se tem mais esperança é que nunca se deve desanimar /.../ Fica com os
meus filhos. Volto já.
DOLORES - Não enfrente Creonte. Não enfrente a vida /.../ Egeu, homem, vem me ajudar a
trazer os filhos de Medeia pra cá. Vem carregar eles. Vão ficar aqui essa noite. Eu fico lá com
Medeia” (Primeira Parte).
Em Eurípides, para dialogar com a Aia, na segunda cena da peça, surge o Preceptor.
Medeia nesse caso não pede que alguém tome conta dos seus filhos. O Preceptor já existe para
isso.
Em Paulo Pontes e Chico, Joana pede a mesma coisa para Corina:
“JOANA - Não quero consolo nem vaselina/ Eu quero ajuda mesmo, tá falado?/
CORINA - O que é?...
JOANA - Haja o que houver, você jura/ que você e Egeu ficam com os pequenos?/.../ Eu tenho
braço pra ser operária/ e tenho peito pra ser marafona/ Mas os filhos, onde é que vão ficar?/.../
Por enquanto eu preciso que você/ mais Egeu tomem conta das crianças” (p. 86).
C) Em Vianinha, Medeia, no cemitério, faz despacho. Coloca alguidar com a comida,
d lias, velas, abre uma garrafa de cachaça e retira o pano que cobre uma imagem de Exu. Esta
cena recebe corte simultâneo com outra em que Creusa, a noiva de Jasão, está experimentando
o seu vestido de noiva:
“MEDEIA - Recebe meu despacho, Omulu. Para todo o povo da encruza, espírito das trevas.
Exu Ganga /.../ Vim lhe pedir ódio. Vim lhe pedir vingança. Quero vingança, seu Ganga! Vingança é o único alento do oprimido, sua única esperança /.../ Quero ser o vento da desgraça,
quero a fúria de um desastre, a surpresa de uma bala no escuro. Quero a morte dela, Ganga.
Quero meu Jasão vivo para sofrer” (Primeira Parte).
No corte que divide essa sequência, Creusa, como resultado da mandinga, sente uma
forte dor, e cai desmaiada.
Em Eurípides, Medeia é uma feiticeira, senhora das magias e dos sortilégios. Mas não
prepara, antes do desfecho trágico, nenhuma m gica para destruir Jasão ou a filha de Creonte.
Em Paulo Pontes e Chico, Joana comporta-se igual a Medeia de Vianinha:
“JOANA - O pai e a filha vão colher a tempestade/ A ira dos centauros e de pomba-gira/ levar
seus corpos a crepitar na pira/ e suas almas a vagar na eternidade/ Os dois vão pagar o resgate
dos meus ais/ Para tanto invoco o testemunho de Deus,/ a justiça de Têmis e a benção dos céus,/
os cavalos de São Jorge e seus marechais,/ Hécate, feiticeira das encruzilhadas,/ padroeira da
magia, deusa-demônia,/ falange de Ogum, sintagmas da Macedônia,/ suas duzentas e cinquenta
e seis espadas,/ mago negro das trevas, flecha incendiária,/ Lambrego, Canheta, Tinhoso, Nunca-Visto,/ fazei desta fiel serva de Jesus Cristo/ de todas as criaturas a mais sanguinaria/.../ Eu
quero sua vida passada a limpo,/ Creonte. Conta co'a Virgem e o Padre Eterno,/ todos os santos,
anjos do céu e do inferno,/ eu conto com todos os orixás do Olimpo!/ Saravá” (p. 90).
Logo em seguida, como em Vianinha, Alma, a noiva de Jasão, passa mal, quase desmaia.
D) Em Vianinha, depois da sequência da mandinga, Medeia volta para casa. Lá encontra
Dolores. Medeia pergunta pelos filhos. Estão em casa de Dolores. Elas se falam rapidamente.
Medeia garante que nada de mal fará aos filhos. E vai buscar as crianças.
Em Eurípides, Medeia não sofre do problema de onde deixar os filhos, enquanto sai para
vingar a sua dor. Então esse dado, no texto original, também não existe.
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, Mestre Egeu, temendo um gesto desesperado de Joana, resolve devolver os filhos para ela, como forma de chamá-la outra vez para a realidade:
“EGEU - Joana, pode contar sempre comigo/ pro que precisar. Sabe que afilhado/ meu não passa fome. Não tem perigo/ Mas o lugar dos guris é aqui/
JOANA - Mas, mestre, eu não posso ficar cuidando.../
EGEU - Eles não vão se desligar de ti/ Enquanto você tá lá se ajeitando/ Corina vem, dá banho,
faz comida,/ com prazer, mas você, onde estiver,/ na máquina, na fábrica, na vida,/ lembre que
eles tão em casa, mulher,/ precisando de você para viver” (p. 99).
E) Em Vianinha, Creonte alertado pela sua mulher que o mal-estar de Creusa era demanda de Medeia, resolve expulsá-la de Guadalupe, a vila da qual é proprietário, e onde Me-
deia tem casa que, aliás, não paga há oito meses (exatamente o tempo que Jasão desapareceu da
sua vida). Creonte, então, tem um argumento legal para expulsá-la. Mas ele é o chefão. Não
precisa de argumento. Basta a sua vontade. Medeia reage. Creonte confessa ter medo dela. Medeia, então, para ganhar tempo, pede mais um dia. Creonte concede:
“MEDEIA - Eu sei que a presença da pessoa traída incomoda muito os traidores. Mas, fora eu
ter sida traída, que crime cometi?
CREONTE - Ainda nenhum, mulher, fora as promessas!
MEDEIA - Mas o que é que eu fiz, homem?
CREONTE - Medo. Me d medo. Quem gosta de sentir medo? O inimigo sibilando por perto?
/.../
MEDEIA - Por favor, Creonte... por favor... então, pelo menos me dá mais um dia... não posso
ir agora, às duas da manhã, sem destino...
CREONTE - Você quer tempo para fazer uma maldade.
MEDEIA - Casa tua filha, homem, ela é linda, é jovem, é eleita. Casa tua filha, derrama tua
festa, teu chope, soa os taróis... me deixa com a minha raiva, não é permitido ter?... Me dá um
dia só. Você tem medo de um dia, de mim, mulher? /.../
CREONTE - /.../ Um dia só, Medeia, nem um minuto mais. Um dia” (Segunda Parte).
Em Eurípides, o movimento da cena é exatamente o mesmo: Creonte quer expulsá-la,
confessa ter medo dela, e Medeia pede mais um dia:
“CREONTE - É a ti que eu falo Medeia de olhar soturno, que te irritas contra teu marido. Troca
este país pelo desterro, leva contigo os teus dois filhos, e sem demora! Eu é que farei executar a
ordem e não voltarei ao palácio antes de te haver lançado fora das fronteiras do país.
MEDEIA - Ai de mim! Estou aniquilada! Infeliz! Estou perdida! Os meus inimigos desfraldam
todas as velas e já não tenho porto seguro onde me abrigue da maldição. Entretanto, far-te-ei
uma pergunta, Creonte, apesar da minha desgraça: por que motivo me expulsas, Creonte?
CREONTE - Tenho medo de ti... por que ocultá-lo? /.../
MEDEIA - Só um dia! Deixa-me ficar apenas o dia de hoje para acabar de resolver quanto ao
lugar do nosso exílio e reunir os recursos para os meus filhos, uma vez que o pai não considerou a forma de lhos proporcionar. Piedade para eles! Tu também tens filhos, és pai: é natural
que sejas benevolente. Pois não é de mim que me inquieto, nem do meu desterro, mas choro a
sua sorte e o seu infortúnio.
CREONTE - A minha vontade não será, de certo, a de um tirano, mas a benevolência tem-me
sido funesta. Bem vejo, mulher, que mesmo hoje cometo um erro: no entanto, obter s esse favor. Previno-te, porém, de que se amanhã a tocha dos deuses te tornar a ver, a ti e a teus filhos,
dentro destas fronteiras, tu, Medeia, morrerás. Disse, e não terei mentido. E agora, se hás-de
ficar, fica, mas um dia, um dia só: não poderás realizar nenhum dos malefícios que temo” (p. 24
e ss).
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, a cena é idêntica:
“JOANA - Onde é que eu vou morar?/
CREONTE - Sei lá... Onde quiser. Mas sai da minha frente/
JOANA - Creonte... Por que um homem onipotente/ assim, poderoso assim, precisa jogar/ toda
a sua força em cima duma mulher/ sozinha... por quê?...
CREONTE - Você quer saber?...
JOANA - Por/ quê?
CREONTE - Por medo...
JOANA - Medo de mim?...
CREONTE - Medo de você/ sim, porque você pode investir a qualquer hora. Tá calibrada de
ódio, a arma na mão/ E a vida te botou em posição de tiro/ Só falta a vítima, mais nada. /.../
JOANA - Não! Pelo menos/ me dê um dia... Um dia só, que é para eu saber/ pra onde é que eu
posso ir...
CREONTE - Não dá...
JOANA - Não vou/ poder sair sem destino com dois filhos pequenos/ Eu ia embora mesmo.
Não quero ficar/ nesta desgraça de lugar. Só quero um dia/ pra me orientar, se não não dá...
CREONTE - Eu não devia/ nem ouvir...
JOANA - Um dia...
CREONTE - Não devia levar/ em consideração, porque tenho certeza/ de estar fazendo besteira
quando te atendo...” (p. 149 e ss).
F) Em Vianinha, Egeu é motorista de táxi, e tem medo de Creonte. Por isso mesmo pede
que Medeia não o enfrente:
“EGEU - Não tenha tanta coragem, Medeia. Não enfrente Creonte. Ele é rei aqui. Para os que
sofrem muito, coragem demasiada é muito perigoso” (Segunda Parte).
Em Eurípides, Egeu é rei de Atenas, e está de passagem por Corinto, onde reina Creonte. Medeia lhe pede asilo:
“MEDEIA - Ah, peço-te encarecidamente. Faço-me tua suplicante. Piedade, tem dó do meu
infortúnio! Não deixes que me expulsem! Acolhe-me no teu país, na tua casa, no teu lar. /.../
EGEU - Por muitas razões estou disposto, mulher, a outogar-te essa mercê /.../ Eis então as minhas decisões: vem para o meu país, tratarei de te oferecer hospitalidade, como é meu dever”
(p. 44).
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, Mestre Egeu é técnico em rádio e mentor ideológico
da comunidade em que vive. Por isso, diferentemente do Egeu de Vianinha e de Eurípides, ele
incentiva Joana a lutar, se é esse o seu empenho. Mas não a lutar só:
“EGEU - Então, pra você se fortalecer,/ não desperdice esse seu ódio ao vento,/ use esse mesmo
ódio como alimento,/ mastigue, engula, saboreie ele,/ se arraste, morda a língua, arranhe a pele,/
e chore, e reze, e role pelo chão,/ faça das suas tripas, coração,/ do seu coração, um corpo fechado/ onde seu ódio fique represado,/ engrossando, acumulando energia/ Até que num determinado dia,/ junto co'o ódio dos seus aliados,/ todos os ódios serão derramados/ ao mesmo
tempo em cima do inimigo/ Numa luta dessas, conte comigo/ Mas inda não d pra brigar agora,/
é bobagem brigar justo na hora/ que o inimigo quer. Sozinha, fraca,/ assim é dar murro em ponta de faca” (p. 112).
G) Em Vianinha, o primeiro encontro de Medeia e Jasão. Ela reclama que o sustentou e
por ele abandonou a casa de seu pai:
“MEDEIA - Eu não pensei nos meus filhos? Você pensou? Pensou em mim? Deixei minha casa
execrada por meu pai, meu irmão, toda a minha gente! Te dei dois filhos! E você não fez legal
nossa união e eu aceitei, cega de confiança, porque íamos esperar melhores dias, e trabalhei por
você, e ouvi teus desânimos, tua vacilação. Você perdeu emprego. Ganhava misérias por aí tocando violão /.../ paguei pra você comprar o direito de gravar um primeiro disco que só nós
ouvíamos e mais ninguém! Se você não tivesse filhos, Jasão, podia ir embora e eu nem me incomodava, porque um homem que não é capaz de manter na fortuna um amor que o sustentou
na desgraça, é um fraco, e não merece missa. Mas você tem filhos e esqueceu disso. Logo que a
fortuna sorriu um pouco e agora vai ganhar uma casa de Creonte, as influências de Creonte!
Um fraco merece desprezo, mas um desamado merece castigo, sim!” (Segunda Parte).
Eis as queixas de Medeia, de Eurípides:
“MEDEIA - Mas ser pelo princípio que vou começar. Salvei-te, como sabem todos os gregos
que embarcaram contigo no Argo. Tinham-te mandado submeter ao jugo os touros fogosos e
semear os sulcos da morte. Ora o dragão que envolvia o Velo de Ouro nas suas mil roscas tortuosas e o guardava sem nunca adormecer, eu o matei e alcei para ti o facho da vitória. Eu
mesma traí o meu pai e a minha casa e vim contigo à cidade do Pélio, em Iolco, mais apressada
que prudente. Fiz sucumbir Pélias da morte mais cruel, pelas mãos das próprias filhas, e desembaracei-te de qualquer temor. Eis os serviços que te prestei, ao mais celerado de todos os
homens. Depois atraiçoaste-me, tomaste posso de novo leito, tu que geraras filhos! Se não fora
isso, ainda terias desculpa de cobiçar novo tálamo. Mas que é feito dos teus juramentos? Saberei algum dia qual o teu pensamento?” (p. 32).
Eis, em Paulo Pontes e Chico Buarque, o lamento de Joana:
“JOANA - Pois bem, você/ vai escutar as contas que eu vou lhe fazer:/ te conheci moleque,
frouxo, perna bamba,/ barba rala, calça larga, bolso sem fundo/ Não sabia nada de mulher nem
de samba/ e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo/ As marcas do homem, uma a uma,
Jasão,/ tu tirou todas de mim. O primeiro prato,/ o primeiro aplauso, a primeira inspiração,/ a
primeira gravata, o primeiro sapato/ de duas cores, lembra?/ O primeiro cigarro, a primeira bebedeira, o primeiro filho,/ o primeiro violão, o primeiro sarro,/.../ Fabriquei energia que não era
tua/ pra iluminar uma estrada que eu te apontei/ E foi assim, enfim, que eu vi nascer do nada/
uma alma ansiosa, faminta, buliçosa,/ uma alma de homem. /.../ Assim que bateu o primeiro péde-vento,/ assim que despontou um segundo horizonte,/ lá se foi meu homem-orgulho, minha
obra/ completa, lá se foi pro acervo de Creonte...” (p. 76).
Joana de Paulo Pontes e Chico Buarque, a exemplo das outras Medeias, fez grandes sacrifícios para viver o seu amor. No caso de Joana, entre outras coisas, largou o velho marido
que lhe dava todos os confortos, inclusive um Simca Chambord.
H) Em Vianinha, Medeia vê Jasão abraçar os seus filhos, ao final do primeiro encontro.
É nesse instante que ela descobre a forma mais cruel de vingar-se:
MEDEIA - (VOZ) - Você gosta dos seus filhos, não, Jasão? É capaz de abandoná-los, mas gosta deles, não é? eles te admiram. Te dão a impressão de que você se interessa pelos outros. Meu
Deus! Então é esta a vingança? É isso que tenho de fazer? É isso! São vocês! É com vocês que
a dor dele ser insuportável. Teus filhos, Jasão! Vou acabar com o pouco que você pôs no mundo!” (Segunda Parte).
Em Eurípides, a sua vingança não se concretiza nos filhos, mas depende deles para que
ela se realize. Medeia, porém, é capaz de um brevíssimo momento de hesitação, em relação ao
sacrifício das crianças:
“MEDEIA - Ai! Por que voltai para mim o olhar, filhos meus? Por que me endereçais esse último sorriso? Infortúnio! Que fazer? Falta-me a coragem, mulheres, quando vejo o olhar brilhante dos meus filhos. Não, não poderia. Adeus, antigos projetos. Levarei as crianças para longe do país. Que necessidade haver para lhes torturar o pai com a sua própria desgraça, de redobrar as minhas desditas? Não, não, eu não. Adeus, meus projetos. Mas quê? Ofereço-me ao escárnio deixando os meus inimigos impunes? Vamos, audácia! Ah, que covardia entregar o coração a tais fraquezas! Reentrai no palácio, filhos” (p. 59).
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, Jasão, na terceira vez que se encontra com Joana,
brinca com os filhos. Joana, na mesma situação de Medeia, de Vianinha, percebe que Jasão,
apesar de tudo, gosta dos filhos, e assim encontra, do mesmo modo, o ponto onde machucar
profundamente Jasão:
“JOANA - Você/ gosta/ deles, né Jasão? E eles te admiram/ né, Jasão? Porque eles nunca te
viram/ como eu vejo. Deixou eles na bosta/ mas gosta. Eles te dão a sensação/ que você se interessa por alguém/.../ Mas contra todas as vinganças/ seriam vãs, seu corpo está fechado/ Você
só tem, pra se apunhalado/ duas metades de alma: essas crianças” (p. 156 e ss).
I) Encontrado o ponto fatal que acarretaria a desgraça de Jasão, Medeia, municiada de
todo o seu rancor, procura Jasão, finge estar derrotada, querer a paz.
Em Vianinha:
“MEDEIA - Vim aqui para dizer que quero que você seja feliz, Jasão.
JASÃO - Eu sabia, Medeia, minha amiga, eu sabia que um dia ia ouvir isso da sua boca... um
grande amor não pode terminar em rancor, não é? Senão, não foi um grande amor...” (Terceira
Parte).
Em Eurípides:
“MEDEIA - Jasão, rogo-te me perdoes o que eu disse. Desculpa os meus arrebatamentos que
muitas vezes trocamos. Eu própria discuti comigo e me censurei” (p. 51).
Em Paulo Pontes e Chico Buarque não é no segundo encontro dos dois que Joana se finge derrotada. É no terceiro, diferentemente das outras Medeias:
“JOANA - Nada, Jasão,/ quer dizer... eu queria te pedir/ perdão...
JASÃO - Quê?...
JOANA - Vem, menino, pode vir/ tranquilo...
JASÃO - Não entendi... essa não.../
JOANA - Sente aqui comigo, fique à vontade/ deixe eu ver seus olhos, Jasão, sorria,/ como se
fosse uma fotografia/ pra eu levar comigo e matar saudade...” (p. 153).
J) Jasão desarma-se em relação a ela, ao perigo que ela representa para a sua felicidade.
Medeia arma o desfecho trágico.
Em Vianinha:
“MEDEIA - /.../ Eu vou até fazer uns doces, os meninos mais tarde vão na festa, levam os doces
de presente para Creonte, para tua mulher...
JASÃO - Não, Medeia, acho que não fica bem meus filhos irem...
MEDEIA - São crianças, Jasão. Crianças não incomodam ninguém. Todos gostam de crianças.
Elas não sabem reclamar às injustiças. Vai ser o meu gesto de paz para Creonte. Ele vai entender” (Terceira Parte).
Em Eurípides, embora não sejam doces os presentes, terão o mesmo poder envenenador:
“MEDEIA - /.../ Mandar-lhe-ei os presentes mais belos que houver atualmente no mundo: um
pequeno véu fino e um diadema de ouro cinzelado. Os pequenos leva-los-ão. /.../
JASÃO - Por que é, insensata, que te despojas assim? Crês que no paço real há falta de véus e
de ouro? Guarda-os, não lhos dês. Se minha mulher faz algum caso de mim, há-de preferir-me
às riquezas, disso estou bem convencido.
MEDEIA - Não fales dessa forma! Os presentes, diz-se, fazem até os deuses dobrarem-se, e o
ouro é mais poderoso que todas as palavras dos mortais” (p. 55 e ss).
Em Paulo Pontes e Chico Buarque:
“JOANA - Pode deixar que eu sei/ o que eu estou fazendo, Jasão. Eu/ visto os meninos direito,
preparo/ uma lembrancinha, Jasão. Agora, se as crianças lhe fazem vergonha...
JASÇO - Ora,/ Joana, que é isso? Eu posso dar amparo/ aos dois... Creonte ajuda. Vou falar/
com alma também, tudo bem, mas não/ precisa mandar eles lá...
JOANA - Jasão,/ é importante pra mim. Eu vou mandar/ as crianças sim, porque meu destino/
depende disso” (p. 158).
L) Medeia convence Jasão. A tragédia se aproxima.
Em Vianinha, a morte por envenenamento é descrita pela câmera, basicamente. Ela
mostra a festa de casamento, o povo na quadra, a bateria da escola de samba tocando. Jasão
com os filhos, a noiva. Passa um cachorro. A menina dá um doce para ele. Jasão vê. Depois ele
entrega os dois filhos para Dolores levá-los de volta para casa. Creusa, a noiva, come os doces
que Medeia lhe mandou. Jasão vê o cachorro morrendo. Compreende tudo. Grita e mal consegue se fazer ouvir. É tarde. Creusa morre. Creonte fica inválido, como consequência do poderoso veneno com o qual Medeia preparou os seus doces.
Em Eurípides, a tragédia é relatada a Medeia pelo Mensageiro. A descrição que ele faz
da morte de Creonte e sua filha é terrível. Primeiro ele conta a repulsa aos filhos de Medeia pela
noiva de Jasão. Depois, o encanto da noiva ao receber os presentes, a sua felicidade ao experimentá-los, para logo depois cair em agonia:
“MENSAGEIRO - Logo, porém se produz um espetáculo medonho: muda de cor, dobra-se em
duas, recua; os membros tremem; mal tem tempo de se deixar cair no trono para não se estatelar
no chão /.../ (uma criada) Imediatamente lhe observa uma espuma branca que lhe acode à boca,
lhe vê revirarem-se as pupilas e o sangue abandonar o corpo /.../ Um duplo flagelo a torturava: a
coroa de ouro na cabeça expelia uma prodigiosa torrente de fogo devorador, e os véus levíssimos, presente dos enteados, mordiam a carne branca da infeliz /.../ (Creonte abraçado à filha no
chão) Ao finalizar os seus lamentos e soluços, quer endireitar o corpo alquebrado, mas este adere, como a hera nos ramos do loureiro, aos finos véus, e é uma luta terrível. Tenta levantar um
joelho e não pode. Se puxa com força, a carne separa-se dos ossos. Finalmente renuncia e dá a
alma, pobre homem, pois o mal é mais forte do que ele. Jazem mortos, a filha e o velho pai,
lado a lado” (p. 62 e ss).
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, a tragédia não é a morte de Creonte e sua filha:
“CREONTE - O que é isso? Espera/ um pouco. São seus meninos, Jasão?/
JASÃO - São...
ALMA - Trouxeram um presente, olha aqui.../
CREONTE - Que é isso... Quem mandou isso aí?/
FILHO 1 - Mamãe...
CREONTE - De jeito nenhum... Não, não, não.../ Me leva essa porcaria. Não quero/ conversa
com aquela mulher. Vai.../ Vamos embora, vamos indo...” (p. 163).
E expulsa as crianças, com os seus doces, da festa.
M) Nas Medeias, mortos Creonte e sua filha, Medeia completa a sua vingança contra Jasão, matando também os filhos.
Em Vianinha, antes do infanticídio, ela tem um minuto de hesitação, contemplando as
crianças brincando no campo, para logo em seguida retomar o seu propósito destruidor:
“MEDEIA - Vamos, Medeia. É preciso ir até o fim. Você sabe. Você já se perdeu. Não pode
mais valer para seus filhos. Vamos até o fim. Jasão tem que se retorcer por estar vivo. Você vai
querer estar morto, a cada segundo, Jasão. Hein? Que futuro espera estas crianças, Jasão? Um
orfanato pobre, engolindo humilhação, comiseração? Se ficarem comigo, a desproteção, a delinquência rondando, a raiva de serem desprotegidos... não. Eles não vão pagar pelo crime de
serem abandonados, pelo desinteresse. Não, não ficarão adultos para sofrer. Venham cá, meus
filhos. Venham cá. Venham” (Quinta Parte).
Em Eurípides, Medeia não envenena os filhos, mas os degola:
“MEDEIA - Amigas, está decidido o meu ato: o mais depressa possível matarei os meus filhos
e fugirei para longe deste país, a fim de não expor, com demoras, as crianças a perecerem por
mãos hostis. É absolutamente necessário que eles morram. E, sendo assim, eu é que os devo
matar, eu que os lancei a este mundo. Vamos, pois, coração, arma-te de força! Para que tardar?
Quem recua diante destas ações tremendas mas imprescindíveis? Vai, calamitosa mão, tomar o
gládio e aproxima-te dos limites de uma existência acerba. Não sejas covarde. Não hei-de lembrar-me deles, que tanto adoro e dei à luz. Vamos! Por agora, ao menos, esquece os filhos. Depois, geme. Porque, se os matas, eram-te no entanto queridos; quanto a mim, serei uma mulher
infortunada” (p. 65).
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, Joana mata os filhos como último recurso de vingança. Mata, e mata-se, já que para ela não havia mais perspectiva. O seu temperamento impulsivo não a deixaria viva para arquitetar outra vingança, que não fosse a mais radical. Antes do
genocídio, Joana fala de um outro lugar em tudo diferente do mundo em que vive. No outro
mundo tudo seria paz, harmonia, gentilezas. Cai em si. Dá um bolinho envenenado para cada
criança:
“JOANA - A Creonte, à filha, a Jasão e companhia/ vou deixar esse presente de casamento/ Eu
transfiro pra vocês a nossa agonia/ porque, meu Pai, eu compreendi que o sofrimento/ de conviver com a tragédia todo dia/ é pior que a morte por envenenamento” (p. 167).
N) Consumada a vingança, resta à fuga.
Em Vianinha, a fuga é previamente combinada com Egeu, que a espera com o seu táxi,
enquanto Jasão, a polícia, os amigos, os vizinhos, a procuram temendo que ela justamente matasse os filhos. Medeia entra no carro de Egeu, no momento que os corpos das crianças foram
localizados:
“MEDEIA - Não aguento mais, Egeu, não aguento. Não vou suportar tudo o que fiz. Fui longe
demais. Sou um ser humano - a vingança realizada deixa mais vazia a vida, porque os obstáculos continuam em todas as esquinas... a vingança só é suportável se é dividida... Egeu, vou me
matar também... mas por favor, por favor, atira meu corpo no mar, esconde meu corpo... que
eles nunca me achem... que eles pensem que eu fiquei sem castigo...” (Quinta Parte).
Em Eurípides, diferente de Vianinha, Medeia não se mata, mas foge num carro alado
puxado por dragões.
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, Egeu e Corina carregam o corpo de Medeia e os filhos para dentro da festa de casamento.
Em suma: as cenas da Medeia de Vianinha repetem, passo a passo, a Medeia original de
Eurípides. As cenas da Gota D'água repetem, passo a passo, as outras Medeias.
6.3.2 - Gota D'água, ou o tema da tragédia brasileira
Em Gota D'água - A Trajetória de um Mito, Maria do Carmo Peixoto Pandolfo orientou
uma equipe de pesquisadores, que se debruçou sobre os problemas implícitos no mito de Medeia, desde os tempos antigos. Lá está a pista de onde nasceu a Medeia de Vianinha: “Na década de 60 os jornais cariocas noticiam e mobilizam a opinião pública em torno de um crime passional em que uma amante abandonada - “a fera da Penha” - sequestra e mata com requintes de
perversidade, Tânia, de 5 anos, filha predileta de seu amásio. O episódio acaba por despertar a
atenção de Oduvaldo Vianna Filho que vê aí, uma presença viva do mito de Medeia”140.
Paulo Pontes e Chico Buarque também encontraram na realidade do povo brasileiro a
matéria-prima com que construir a sua obra: “A nossa tragédia é uma tragédia do Dia e da Luta
Democrática. Não se pode imaginar quantas mulheres matam os filhos na Luta Democrática.
Posso falar porque nós lemos muito a Luta quando estávamos escrevendo a peça. Existem de
cinco a seis tragédias gregas por dia nesse país. O crime faz parte da mitologia do povo brasileiro”141.
140
PEIXOTO PANDOLFO, Maria do Carmo. Gota D'água - A Trajetória de um Mito. Rio de Janeiro: Inacen, p. 145
e ss.
141
GUIMARÃES, Márcia. Op. cit.
Mas não foi para contar uma história de crime que Paulo Pontes convidou Chico Buarque. Sua pretensão era falar sobre a luta de classes no Brasil. Falar sobre como a classe dominante coopta os melhores quadros das classes populares, e como os utiliza para a manutenção
de controle social. Perguntados se a discussão proposta em Gota D’água obteve resposta na
medida esperada, Paulo Pontes afirmou que não, que, do seu ponto de vista, o problema da habitação popular, na peça, é de segunda importância: “O que existe de substantivo é uma visão
do que é o poder. Gota D'água está discutindo que é impossível tomar-se o poder à força sem o
respaldo dessa sociedade que aí está. E o que se passou na sociedade civil nesses últimos tempos, avalizou a permanência no poder de determinadas forças políticas. Há um mecanismo na
sociedade civil, que põe e tira do poder. É isto que existe de substantivo em Gota D'água. E a
resposta disso não veio”142.
Essa amostra de como o poder exerce o seu domínio, em Gota D'água, constitui a segunda ação da peça, e corre paralela à ação da vingança desesperada de Medeia/Joana que vimos atrás.
Há em Gota D'água dois grupos de personagens: o masculino e o feminino. Os dois
grupos compõem o que seria na tragédia grega o coro. O discurso de Joana, como Medeia, a
amante abandonada, faz-se em Gota D'água através do grupo feminino. É esse grupo que se
preocupa com as dores amorosas de Joana, a sua reação desesperada ante a atitude de Jasão.
Enquanto o discurso político, o conteúdo ideológico que constitui a segunda ação, está posto no
grupo masculino. São eles que avalizam ideologicamente o comportamento de Jasão. São eles
que conduzem, inclusive, a passagem do discurso amoroso, problema de Joana, para o preço
extorsivo que pagam pelas casas em que moram, problema de todos. São eles que fazem o contraponto entre o tema eterno, o amor, e o tema em permanência: a necessidade de sobreviver a
qualquer custo.
Para fundir os dois grupos e fazê-los coincidir numa mesma grande ação, Paulo Pontes e
Chico Buarque atribuíram a Egeu o papel de pivô entre os dois grupos. Egeu põe-se todo o
tempo entre os grupos feminino e masculino. Compartilha a dor de Joana e a ajuda. Divide com
os homens o sentimento de injustiça diante dos preços abusivos, das prestações reajustadas, do
plano de pagamento das casas próprias que nunca termina, e, igualmente, ajuda-os.
142
GUIMARÃES, Márcia. Ibidem.
Egeu é o mentor intelectual e do conflito ideológico, na Vila do Meio-dia. Ele, juntamente com Corina e Joana, carregam a dignidade do oprimido, formando o núcleo central de
personagens que estabelecem o conflito com o outro núcleo: Creonte, Jasão e Alma.
Entre esses dois núcleos de conflito se posta uma única e quase despercebida personagem: Boca Pequena. O nome não poderia ser mais revelador da ação que essa personagem realiza: ela é o dedo-duro, a que delata para Creonte o que acontece na Vila do Meio-dia. Por ela,
Creonte fica sabendo do perigo que representa Egeu para o seu domínio. E como verdadeiro
dedo-duro, sabe ser anódino, a ponto de nem ser levada a sério pelos grupos masculino e feminino, nem tão pouco pelo núcleo de Egeu, que equaciona a luta ideológica.
Visto por esse prisma, Gota D'água é mais do que a tragédia amorosa de Medeia. É isso.
Mas é também um retrato do Brasil resultante da ditadura. Por exemplo: Joana, com a sua ação
suicida, pode ser lida como a imagem da guerrilha que buscou tomar o poder sem o apoio expressivo da sociedade. Egeu, o intelectual de esquerda que não conseguiu sublevar as massas na
medida necessária. Jasão, o homem que veio do povo, e que conhece do povo cada gesto, vende
seu saber em troca de status quo diferenciado no quadro social dominado por Creonte, o déspota. Assim como a classe média em relação à ditadura.
Eis, então, passo a passo, a segunda ação contida em Gota D'água, que a diferencia das
outras Medeias:
A) Xulé, logo após a cena de abertura em que as mulheres falam do estado em que Joana se encontra, aparece na oficina de Mestre Egeu, que sente alguma diferença de ânimo no
amigo. Egeu pergunta-lhe se brigou com a mulher, ao que Xulé responde:
“XULÉ - Falhei de novo a prestação da casa.../ Mas, pela minha contabilidade,/ pagando ou
não, a gente sempre atrasa/ Veja: o preço do cafofo era três/ Três milhas já paguei, quer que
comprove?/ Olha os recibos: cem contos por mês/ E agora inda me faltam pagar nove/ Com
nove fora, juros, dividendo,/ mais correção, taxa e ziriguidum/ se eu pago os nove que inda estou devendo,/ vou acabar devendo oitenta e um.../ Que matem tica filha-da-puta/
EGEU - Todo mundo está igual a você/
XULÉ - Não d á É todo mês a mesma luta/ Tem que falar pro homem resolver/ baixar um pouco essa mensalidade/ senão vou morar debaixo da ponte/ Não é fácil, mestre Egeu...
EGEU - É verdade/
XULÉ - Alguém tem que falar com seu Creonte/ A gente vive nessa divisão/ Se subtrai, se multiplica, soma,/ no fim, ou come ou paga a prestação/ O que posso fazer, mestre Egeu?” (p. 8).
Introduzindo, quase simultaneamente às mulheres, o segundo tema da peça.
B) Em seguida, para reforçar o problema e fixar a imagem de líder de Egeu, surge Amorim na oficina de Egeu, onde já estava Xulé:
“AMORIM - Xulé, meu tio/ Dé, Zazueira, Pipa, Amaro, Cacetão,/ Esmeraldino,/ Getúlio, Cazuza, Fio,/ ninguém mais paga. Nem São Cosme e Damião/ Por que é que eu vou pagar sem
ter? Não pago não/
EGEU - É fogo...
AMORIM - Mas ser que eu vou ter que perder/ os dois anos que já paguei de prestação?/ O
corno velho do Creonte vai saber/ que não pago e me bota na rua.../
EGEU - Então/ me escuta...
AMORIM - Mestre Egeu, você pode dizer/ o que pensa, já que é dono de teto e chão/ Dono do
seu nariz, não tem nada a perder/ Tem a oficina e tudo o que está dentro dela/ Então fala correto, justo, dá conselhos/ Mas eu devo tijolo, cal, porta e janela/ acho que não sou dono nem dos
meus pentelhos/
EGEU - Você tem razão...
AMORIM - Mestre Egeu, por caridade/ me responda...” (p. 13).
C) Egeu assume a condição de líder. Oferece, teoricamente, a solução do problema:
“EGEU - Pois eu vou te dizer: se só você não paga/ você é um marginal, definitivamente/ Mas
imagine só se, um dia, de repente/ ninguém pagar a casa, o apartamento, a vaga/ Como é que
fica a coisa? Fica diferente/ Fica provado que é demais a prestação/ Então o seu Creonte não
tem solução/ Ou fica quieto ou manda embora toda a gente/ Cachorro, papagaio, velho, viúva,
filha.../ Creonte vai dizer que é tudo vagabundo?/ E vai escorraçar, sozinho, todo mundo?/ Pra
isso precisava ter outra virilha/ Não é?...
AMORIM - Tem boa lógica...
EGEU - Falei?...
AMORIM - Sei não” (p. 16).
D) Boca Pequena, o dedo-duro, vai passando em frente à oficina. Mestre Egeu o chama:
“EGEU - Já pagou a casa esta vez?...
BOCA - Já separei/ porque é sagrado. Como santo em procissão/ Não precisa pedir pra fazer o
que sei/ que é meu dever...
EGEU - Pelo contrário: pague não/
BOCA - Que que é isso, mestre, eu sou madeira de lei/
EGEU - Pois ouça, Boca, não pague nem um tostão/ Se ninguém paga, é que não tem de onde
tirar/ Se você paga, vai tirar toda a razão/ de quem tem todas as razões pra não pagar/
BOCA - Que merda, mestre...
EGEU - Merda sim ou merda não?” (p. 18).
E) Boca Pequena logo se encarrega de sentir a aceitação da proposta entre os moradores
da Vila:
“BOCA - Espere aí, tenho uma boa: mestre Egeu,/ quando estive na oficina, me perguntou:/ a
prestação da casa, Boca, já pagou?/ Eu disse: é claro. E sabe o que ele rebateu?/ Que a prestação é uma cobrança exagerada.../
CACETÃO - Que nova...
BOCA - E quem paga a casa é um bom calhorda!/
XULÉ - A gente já discutiu o caso e concorda -/ menos Galego, que o gringo não é de nada -/
que mestre Egeu está por dentro da questão” (p. 22).
F) Enquanto Egeu arma a sublevação, numa longa cena intercalada com as vizinhas,
constituindo-se as duas no prólogo da peça, Jasão, numa outra sequência do prólogo (que antecede a primeira entrada de Joana em cena, na p. 41), conversa com Alma, sua noiva. Creonte
entra em cena, e numa longa fala para Jasão, apresenta a sua cadeira, símbolo do poder:
“CREONTE - /.../ Você já parou pra pensar direito/ o que é uma cadeira? A cadeira faz/ o homem. A cadeira molda o sujeito/ pela bunda, desde o banco escolar/ até a cátedra do magistério/
Existe algum mistério no sentar/ que o homem, mesmo rindo, fica sério/ Você já viu um palhaço sentado?/ Pois o banqueiro senta a vida inteira,/ o congressista senta no senado/ e a autoridade fala de cadeira/.../ Pois bem, esta cadeira é a minha vida/ Veio do meu pai, foi por mim honrada/ e eu só passo pra bunda merecida/ Que é que você acha?...
JASÃO - Eu não acho nada,/ quer dizer, nunca pensei... realmente.../ Pra mim... cadeira era só
pra sentar...
CREONTE - Então senta...” (p. 32).
G) Depois de experimentar a cadeira do poder, e depois de receber uma lição de como
se deve exercê-lo (num misto de maquiavélico e populista), Jasão recebe a sua primeira missão,
seu teste para um dia ocupar a cadeira que ora pertence a Creonte:
“CREONTE - /.../ Aquele mestre Egeu.../ Já que vamos dividir este assento,/ um trabalhinho já
apareceu/ pra você demonstrar o seu talento/ Aquele Egeu, parece até que é seu/ compadre...
/.../ Você gosta muito desse sujeito?/
JASÃO - Mas claro...
CREONTE - /.../ Escute um momento/ Egeu, faz muito tempo que eu conheço/ e está fazendo
muito movimento/ contra mim. Você acha que eu mereço?/ Está mandando o povo sonegar/ as
prestações da casa. E eu fico quieto?/ Acha que é certo esse povo ficar/ me enganando debaixo
do meu teto?/ Acha certo morar e não pagar?/ Diga, rapaz, acha que está correto?” (p. 36 e ss).
H) Outro problema de Creonte é Joana, que também não paga a prestação há algum
tempo. Mas esse não é, em relação a ela, o problema principal:
“CREONTE - /.../ Já que a gente cutucou/ a ferida, deixa sangrar de vez/ Tua... essa mulher que
você viveu/ junto e que não paga a casa faz seis/ meses... essa mulher... não sei... bem, eu/ sei
que ela é mãe dos teus filhos... Talvez/ seja até mesmo um exagero meu/ Mas tem coisas que
não é bom brincar/.../ Minha filha não vai casar tranquila/ co'essa mulher tomando ela de ponta/
Enfim... Vou mandá-la embora da Vila” (p. 39).
I) Jasão vai falar com Egeu:
“JASÃO - O caso é que tão falando/ por aí que um bocado de gente/ de uns tempos pra cá tá se
juntando/ e combinando pra de repente/ ninguém mais pagar a prestação/ da casa própria... Não
por aperto,/ de caso pensado: pago não!.../
EGEU - É?... Assim é fogo.../.../
JASÃO - Tem mais, mestre Egeu, foram contar/ pro seu Creonte que era você/ quem botava
farofa no prato/ da turma.../.../
EGEU - Quer saber o que eu/ acho? Sem rodeio e sem mistério?/ Esse emprego não serve pr'ocê/
JASÃO - Qual emprego?
EGEU - Virou inocente?” (p. 49 e ss).
Egeu aproveita para lembrar a Jasão sobre o trabalho, a dificuldade, que os amigos dele,
Jasão, sofrem para pagar uma dívida que nunca é amortecida. Jasão irrita-se: “Por que comprou?” É a pergunta que faz para o mestre Egeu. Vencido pelos argumentos de Egeu, Jasão tenta se justificar:
“JASÃO - /.../ Olha, mestre, no fundo,/ eu sou mais útil daquele lado/ Lá dentro eu posso representar/ quem estiver mais encalacrado,/ posso interceder, facilitar.../.../
EGEU - Ah, Jasão, você não vai poder/ se equilibrar no alto desse muro...” (p. 55).
Jasão, derrotado em sua missão, tenta ao menos a cumplicidade de amigo:
“JASÃO - Você, mestre Egeu, é meu amigo/ Por isso eu peço, de coração,/ me ajude, colabore
comigo.../
EGEU - Vai visitar teus filhos, Jasão.../
JASÃO - Promete que não fala mais nada/ de não pagar as casas, aquilo/ tudo, hein? Controla a
rapaziada?/ Fala, meu mestre... Posso ir tranquilo?/
EGEU - Por que fizeram isso contigo?/ Creonte te desse um bofetão/ na cara, desse o pior castigo,/ mas não te entregasse essa missão...” (p. 57).
Jasão vai embora e Egeu, só, pensa em Jasão (“madeira boa/ pra arder na lareira dos
contentes”), no que ele representa para os seus, e de como os melhores entre os oprimidos são
cooptados (“pagam seu peso em ouro”). Egeu termina por emitir uma reflexão dialética sobre a
história:
“EGEU - Mas, Jasão, a festa é traiçoeira,/ é um alçapão. Todo mundo sabe/ que não há mal que
nunca se acabe/ nem festa que dure a vida inteira” (p. 59).
J) Jasão vai visitar os antigos amigos, no bar. Xulé aproveita para falar das prestações:
“XULÉ - A gente ia mesmo te procurar,/ não é, Amorim? Falo?... Pra dizer/ que as prestações...
Ninguém tá mais podendo/ pagar. Você veja, já tou devendo...” (p. 63).
É interrompido por Boca Pequena, que não o deixa continuar a reclamação.
L) Creonte discute com Jasão, a propósito de um certo trem atrasado; fala sobre o que é o brasileiro, a sua incapacidade (segundo Creonte) de sacrificar-se pelo bem coletivo:
“CREONTE - /.../ Na segunda guerra,/ só russo, morreram vinte milhões/ Americano, pra ganhar mais terra,/ foi dois séculos capando os culhões/ de índio. japonês gritava “Viva/ o Imperador”, entrava no avião/ pra matar e morrer de fronte altiva/ Na Inglaterra, uma pobre criatura/
de oito anos, há dois séculos atrás/ já trabalhava na manufatura/ o dia inteiro, até não poder
mais,/ quatorze, quinze horas.../.../ Mas o brasileiro não quer cooperar/ com nada, é anárquico, é
negligente/ E uma nação não pode prosperar/ enquanto um povo fica impaciente/ só porque
uma merda de trem atrasa /.../ Vou lhe dizer o que é o brasileiro/ alma marginal, fora-da-lei,/ à
beira-mar deitado, biscateiro,/ malandro incurável, folgado paca/ vê uma placa assim: “não cuspa no chão,/ brasileiro pega e cospe na placa/ Isso é que é brasileiro, seu Jasão...”
Mas Jasão sabe que essa é uma visão falsa do ser brasileiro. Sabe que essa é a visão que
a classe dominante vende do povo, inclusive para perpetuar as formas de dominação político/econômica. E ele que veio do povo, oferece a visão real:
“JASÃO - Não, ele não é isso, seu Creonte/ O que tem aí de pedra e cimento,/ estrada de asfalto, automóvel, ponte,/ viaduto, prédio de apartamento,/ foi ele quem fez, ficando co'a sobra/ E
enquanto fazia, estava calado,/ paciente. Agora, quando ele cobra/ é porque já está mais do que
esfolado/ de tanto esperar o trem que não vem...” (p. 95 e ss).
E depois, Jasão ainda lhe aponta o caminho necessário para continuar a dominar e, inclusive, eliminar Egeu, deixá-lo falando sozinho:
“JASÃO - Do povo eu conheço cada expressão,/ cada rosto, cara e osso, o sangue, o couro.../
Sei quando diz sim, sei quando diz não,/ eu sei o seu forte, eu sei o seu fraco,/ sei a elasticidade
do seu saco/ Eu sei quando cala ou quando grita/ E o que ele comeu na sua marmita,/ eu sei
pelo bafo do seu sovaco/.../ permita-me então discordar de novo,/ que o senhor não sabe nada
de povo,/ seu coração até aqui de mágoa/ E povo não é o que o senhor diz, não/ Ceda um pouco, qualquer desatenção,/ faça não, pode ser a gota d'água.
CREONTE - Muito bem. É com esse capital,/ seu Jasão, que você quer ser meu sócio?
JASÃO - Não fique pensando que o povo é nada,/ carneiro, boiada, débil mental,/.../ Não. Tem
que produzir uma esperança/.../ Chegou a hora de regar um pouco/ Ele já não lhe deu tanto? Em
ações, prédios, garagens, carros, caminhões,/ até usinas, negócios de louco.../ Pois então? Precisa saber dosar os limites exatos da energia/ Porque sem amanhã, sem alegria,/ um dia a pimenteira vai secar/ Em vez de defrontar Egeu no peito,/ baixe os lucros um pouco e vá com jeito/.../
Com os seus ganhos, o senhor é que tem/ que separar uma parte e fazer/ melhorias/.../ Encha a
fachada de pastilhas/ que eles já acham bom. /.../ Ao terminar,/ reúna com todos, sem exceção/
e diga: ninguém tem mais prestação atrasada. /.../ Está com medo de mestre Egeu? /.../ Egeu vai
ficar falando sozinho/ enquanto o povo está jogando bola! /.../ O senhor vai tomando/ essas
providências que reacende a chama. Vai ver que o trabalho rende/ mais, daí eles ganham confiança,/ alimentam uma nova esperança,/ o moral se eleva, a tensão relaxa.../ Aí é que o senhor
aumenta a taxa/ Com as melhorias eles vão ter/ energia bastante pra mais dez anos. /.../ Agora,
se quiser ver, por acaso,/ quem ganhou nesta simples transação/ é só contar. Eles lhe dão dez
anos,/ o senhor dá um só pelos meus planos.../ Fica com nove, a parte do leão” (p. 102 e ss).
Creonte, sozinho, reconhece que Jasão está certo:
“CREONTE - Você veja como é o mundo/ Me aparece esse vagabundo/ cantando sambinha,
jeitoso,/ falando macio, sestroso/ E eu cá pensando: hum, é sambista?/ Não passa dum bom vigarista/ Um oportunista, arrivista,/ isto é, um fresco metido a artista,/ sem perspectiva, sem visão/.../ Mas não é que esse disfarçado/ sabe onde tem o seu nariz?” (p. 107).
M) No outro núcleo do conflito, Egeu, ao falar com Joana, soma à sua dor a dos outros
moradores da Vila:
“EGEU - A gente só avança quando é mais forte/ do que o nosso inimigo. A sua sorte é ligada à
sorte de todo mundo/ na Vila. /.../ Então, cada passo tem que ser dado/ por todos. Se você avançar só,/ Creonte te esmaga sem dor nem dó/ Compreendeu, comadre Joana?” (p. 111).
N) Joana, que começara pela primeira ação (a amante abandonada), projeta a sua trajetória para a segunda ação (o conflito ideológico), reunindo em si todo o peso das tramas quando
se cruzam. A partir desse momento, ela é, por excelência, o conflito: da amante abandonada, da
trabalhadora explorada. E a sua forma de reação aos dois conflitos somados em si, é violenta, é
de afrontamento, para o que der e vier. Eis o momento em que ela, para Jasão, apresenta a confluência da segunda ação:
“JOANA - Otário,/ Creonte é ladrão...
JASÃO - Ele é proprietário.../
JOANA - É proprietário seu...
JASÃO - Está co'a lei.../
JOANA - Vou sair e perder o que paguei?/
JASÃO - Você á atrasada...
JOANA - Eu sei, Jasão/ Estou e nunca mais pago um tostão/ O preço que constava na escritura/
eu já paguei” (p. 121).
Na mesma cena, Jasão explica a Joana o motivo de sua separação. Joana, em resposta,
soma o seu abandono ao dos outros, mostrando-se, mais uma vez, um ponto de intercessão entre as ações. O resultado disso ela transfere para Jasão, como uma maldição, uma premonição
do que acontecer com o samba dele, resultado de dupla traição: com ela e com o povo:
“JOANA - Só que essa ansiedade que você diz/ não é coisa minha, não, é do infeliz/ do teu povo, ele sim, que vive aos trancos,/ pendurado nas quinas dos barrancos/ Seu povo é que é urgente, força cega,/ coração aos pulos, ele carrega/ um vulcão amarrado pelo umbigo/ Ele então
não tem tempo, nem amigo,/ nem futuro /.../ tem u'a coisa que você vai perder,/ é a ligação que
você tem com sua/ gente, o cheiro dela, o cheiro da rua,/ você pode dar banquetes, Jasão,/ mas
samba é que você não faz mais não,/ não faz e aí é que você se atocha/ porque vai tentar e sai
samba brocha,/ samba escroto, essa é a minha maldição/ “Gota D'água”, nunca mais, seu Jasão”
(p. 126 e ss).
O) Quando as ações já correm unidas, a trama da peça caminha para a sua resolução.
Nesse momento Egeu consegue juntar os moradores da Vila em torno dos objetivos que ele se
propõe: ajudar Joana e ao mesmo tempo unir o povo contra o déspota:
“EGEU - /.../ A fúria e a indignação/ pertencem a Joana. Sua mazela/ é sua. A dor é dela. O
homem dela,/ seu destino, seu futuro, seu chão,/ seu lar e os filhos dela. Acabou. Chora/ em
nome dela quem é amigo dela/ Amigo de Jasão que acenda vela/ em nome dele. Tá entendido?
Agora,/ não pode mais deixar acontecer/ é que o locador, com base legal/ num contrato assim
anti-social,/ venha botar pra fora essa mulher /.../ E já que todo mundo quer falar/ com Creonte
sobre essa prestação/ que nunca acaba, por que não, então/ ir logo duma vez pra matar os dois
assuntos? /.../ Bem, proponho que, sem agitação, a gente vá lá, com comedimento,/ com toda a
calma... /.../ Falar das correções e dizer claramente/ que dona Joana é como se fosse a gente.../
Ninguém vai tirar ela do lugar,/ não. Quem tá de acordo levanta a mão” (p. 31 e ss).
P) O povo da Vila, liderado por Egeu, vai ao confronto com Creonte. Porém, não esperavam que Creonte os recebesse, perdoasse as dívidas, anunciasse melhorias no conjunto habitacional (tudo como lhe dissera Jasão), e ainda os convidasse para trabalhar na festa de casamento de Jasão e Alma. Com essa manobra, Creonte desmobiliza a revolta, desmantela a liderança de Egeu:
“EGEU - Então, Joana, o que Creonte fez/ me pegou de surpresa. Não sei/ como ele, tão ranzinza, esta vez/ soube ceder. Nunca imaginei/ que o velho fosse capaz de abrir/ mão de alguma
coisa pra conter/ a insatisfação. Agora é agir/ com paciência. /.../ com essa manobra ele nos
deixa/ falando sozinhos para o vento,/ dá a impressão que toda a minha queixa/ é queixa de velho rabugento” (p. 139 e ss).
Q) Ao final, Creonte vence. Jasão vence. Na festa de casamento, Creonte faz Jasão sentar na cadeira do seu poder. É a resultante da tragédia brasileira:
“CREONTE - Atenção, pessoal, vou falar rapidamente/ Jasão... vem cá... Meus caros amigos,
agora,/ aproveitando a ocasião e aqui na frente de todo mundo, quero anunciar que de ora/ em
diante a casa tem novo dono. A cadeira/ que foi de meu pai e foi minha vai passar/ pra quem
tem condições, e que é de minha inteira/ confiança, para poder continuar a minha obra” (p.
168).
6.4 - A gota que falta
A segunda ação, e a mais importante no desenvolvimento do tema de Medeia, Paulo
Pontes foi encontrar na Medeia de Vianinha. Acontece que em Vianinha nenhuma das variantes
do tema atualizado é determinante no desenrolar da ação. Ao contrário, são elementos postos
para melhor definição do ambiente onde se desenrola a ação, ou, quando não, para reforçar uma
característica da personagem.
Paulo Pontes apoiou-se nessas idéias caracterizadoras de ambiente ou personagem e as
desenvolveu na segunda ação de sua peça. Ei-las:
A) Em Vianinha, Medeia está ambientada num conjunto residencial pobre, de nome
Guadalupe.
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, Gota D'água está ambientada num conjunto residencial igualmente pobre, de nome Vila do Meio-dia.
B) Em Vianinha, Jasão é sambista, e o seu samba faz sucesso no rádio. O fato de ele ser
sambista não pesa no conjunto da obra. É apenas uma idéia para caracterizar a personagem, darlhe uma profissão, alguma atividade econômica. O seu samba é citado duas vezes: a primeira na
rubrica de abertura do texto. A segunda, por Medeia. O nome do samba de Jasão: Água do Rio
(de Noel Rosa e Anescar do Salgueiro).
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, ser sambista é a condição básica do sucesso de Jasão. Mais do quer uma condição básica, é a chave do texto, o seu enigma contido tanto na primeira quanto na segunda ação. É a imagem poética que revela o limite da insensatez levada ao
extremo, a gota que falta para o transbordamento das paixões gerando a tragédia, a convulsão, o
caos tanto social (na segunda ação) quanto humano (na primeira ação). Jasão, enquanto poeta, é
uma espécie de filósofo popular, capaz de entender e condensar em poucas imagens a diversidade da existência, o conflito humano e a opressão social.
C) Em Vianinha, o samba de Jasão foi roubado da mãe de Medeia. Eram versos que sua
mãe cantava143. Esse fato, em Vianinha, é apenas um dado lançado para caracterizar o mau caráter de Jasão.
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, Gota D'água nasce da força do povo, da sua capacidade de suportar a injustiça até o limite de sua elástica paciência, momento que poder tomar
nas mãos o rumo da história. Nasce também do amor de Joana, infindável, transbordante, pleno,
repleto de desejos, capaz de a cada dia se fazer maior para se dar ao amante. Joana e o povo
estão, sintagmaticamente, no mesmo plano. Gota D'água, a canção, prenuncia a tragédia. A falha de Jasão foi querer ascender sozinho, trair a sua origem, a sua gente, não prestar atenção aos
seus próprios versos.
D) Em Vianinha, Medeia não paga o apartamento há oito meses. O mesmo tempo em
que Jasão sumiu de sua vida, quando saiu para cantar em clubes e nunca mais voltou. O tempo
de oito meses da dívida reforça o tempo de abandono de Medeia. Não chega a constituir-se problema social, embora Creonte use esse dado para justificar a expulsão de Medeia. Mas oito meses é apenas o tempo em que Medeia parou de viver, esperando a volta de Jasão.
Em Paulo Pontes e Chico Buarque, Joana não paga o apartamento há cinco meses. Não
paga porque não pode. Assim como os outros moradores não pagam porque não podem. Aqui o
tempo da dívida constitui-se num problema social, que, por sua vez, fornece a Egeu a ferramenta para fomentar a luta de classes.
6.5 - Alguns breves comentários
Sábato Magaldi registrou a sua primeira impressão da peça: “Qual o segredo da excepcional comunicação de Gota D'água, numa platéia que se assemelha a um suadouro? Provavelmente, a façanha de terem os autores escritos uma “tragédia da vida brasileira”. A solidarie143
51. A título de lembrança: na peça Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que Paulo Pontes escreveu
em companhia da Alfredo Zemma, a personagem Eugênio encontra a solução para o destino do casal camerizando as músicas que Eugênia cantava em casa. Na verdade, toda essa discussão sobre plágio parece-nos sem muito
sentido, uma vez que trabalhando juntos há anos e professando os mesmos princípios culturais e ideológicos, a
obra e o pensamento de um autor certamente influenciou a obra e o pensamento do outro.
dade com a oprimida Joana-Medeia, contra a opressão de Creonte, símbolo do poder, e do fraco
Jasão, que o serve. A introdução do mecanismo social numa trama que, sem descurar o ímpeto
de sentimento desencadeado, não se esgota nele. O achado poético de tantos versos e tantos
diálogos. Essas virtudes sobrepujam os defeitos e levam o público a explodir, no final, numa
das mais calorosas ovações já registradas nos palcos brasileiros”144.
Sobre o grande comparecimento do público e a recepção à peça, Chico Buarque comentou: “As pessoas vinham porque viam que era uma peça que dizia respeito à sua realidade. Já
era sensível que elas começavam a se desiludir com o “milagre” brasileiro. Talvez dois anos
antes a problemática da peça fosse considerada absurda, porque se vivia a era do pleno “milagre”. Mas em 75, por exemplo, estourou o problema da casa própria. Aliás, a peça trata um
pouco disso e não de maneira aleatória, pois procuramos informar-nos junto a advogados e a
organização de mutuários. Quisemos falar de pessoas dos extratos mais baixos da sociedade
que embarcaram no “milagre” e confiaram, por exemplo, no sonho da casa própria”145.
Macksen Luiz soma em seu depoimento as idéias contidas no de Sábato e Chico ao
mesmo tempo: “Em forma de versos, integrando as melodias uma verdadeira procura da linguagem musical. Gota D'água alcança uma comunicação popular insuspeitada. As personagens
falam poeticamente, muitas vezes, mas nunca se tornam eruditas ou falsamente impostadas. São
reais, e respondem como seres humanos brasileiros identificados com o seu meio. O texto seria
populista? Certamente que não, já que procura ampliar a análise do meramente impressionista
para levá-la a um plano quase sociológico. Gota D'água não é apenas mais uma peça sobre esta
classe, mas um mergulho até as raízes profundas de suas contradições, angústias e aspirações”146.
Em outro texto, Sábato Magaldi voltou a falar sobre a peça: “Atualizadas as linhas gerais da tragédia grega pelas regras da verossimilhança moderna, com um sentido de crítica à
realidade brasileira, Gota D'água impõe-se principalmente pela beleza da linguagem teatral.
Desse ponto de vista, a peça inova o estilo de Paulo Pontes e anuncia uma dramaturgia mais
exigente”147.
144
MAGALDI, Sábato. Apud Jornal Correio Brasiliense. Brasília, 29 de dezembro de 1976.
145
OLIVEIRA-JOUÉ, Lisa. Op. cit. p. 154.
146
LUIZ, Macksen. “Gota D'água não é só uma música do Chico”. Isto é, 29 de junho de 1977, p. 44.
147
MAGALDI, Sábato. “Paulo Pontes”. Jornal da Tarde. São Paulo, 28 de dezembro de 1976.
Sábato Magaldi, sempre atento ao que acontece no cenário teatral brasileiro, sentia o salto evolutivo que Paulo Pontes realizava a cada nova obra. Talvez Gota D'água fosse a anunciação de uma dramaturgia mais exigente. Mas o tempo de vida de Paulo Pontes não esperou para
ver.
6.6 - Uma reflexão sobre a sociedade brasileira
“Eu tenho inquietações interiores para exprimir. Eu sou, como todo homem da classe
média de 36 anos, no Brasil, um sujeito que tem suas neuroses, suas encucações. E elas fervilham na minha cabeça. Não me custa nada sentar na m quina e escrevê-las, tentar botar pra fora
e vomitá-las. Mas voluntariamente Chico e eu resolvemos abrir mão desse capital subjetivo que
são as nossas dores, e tratar de um tema objetivo, da multidão, como uma tentativa de quebrar
essa separação que havia entre o teatro que estávamos fazendo, e as amplas camadas populares”148. Foi assim que Paulo Pontes colocou-se diante do público em relação à sua obra.
Mas ainda não satisfeito com a obra, Paulo Pontes, como de hábito, escreve o prefácio,
cujo objetivo é conduzir previamente o fruidor a sua intenção primeira.
O prefácio de Paulo Pontes à Gota D'água constitui-se numa das mais lúcidas reflexões
sobre a sociedade brasileira, sendo ainda hoje de grande validade, não só porque condensa em
poucas e claras linhas o conflito vivido pela sociedade durante as décadas de 60 e 70, mas também reflete, com notável precisão, o desenvolvimento, nos anos 80, do quadro social criado
pelo regime ditatorial149.
São três os pontos básicos do seu raciocínio:
148
PONTES, Paulo. “O último artigo”. Última Hora, Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1976.
149
Vide nota 139. Todas as citações serão da mesma fonte.
6.6.1 - A ascensão da classe média
Diz o texto: “A brutal concentração da riqueza elevou, ao paroxismo, a capacidade de
consumo de bens duráveis de uma parte da população, enquanto a maioria ficou no ora-veja.
Forçar a acumulação de capital através da drenagem de renda das classes subalternas não é novidade nenhuma /.../ No futuro, quando se puder medir o nível de desgaste a que foram submetidas as classes subalternas, nós vamos descobrir que a revolução industrial inglesa foi um movimento filantrópico, comparado com o que se fez para acumular o capital do milagre” (p. xi).
Esse é o quadro geral no qual se fundamenta a sua reflexão. O desenvolvimento dele
surge agora: “É indiscutível que o autoritarismo foi condição necessária à implantação de um
modelo de organização social tão radicalmente antipopular. A autoridade rigidamente centralizada permitiu que se pusesse em prática o elenco de medidas (política salarial, monetária, tributária etc.) que modernizaram, à feição capitalista, uma parte da sociedade brasileira, enquanto
se intensificava o processo de empobrecimento da parte maior” (p. xii).
Com base na concentração de riqueza e no autoritarismo como forma de consolidar essa
concentração, emerge a classe média como beneficiária menor do sistema: “No movimento que
redundou num avanço tão grande dos interesses das classes dominantes sobre os das classes
subalternas, as camadas médias têm desempenhado um papel fundamental. Elas, ao lado do
autoritarismo, e de forma mais profunda, têm legitimado o milagre. Seria ingênuo, a partir daí,
fazer qualquer julgamento moral da classe média brasileira. Se a raiz do problema fosse moral,
viver não dava trabalho nenhum. A verdade é que o capitalismo caboclo atribuiu uma função,
no tecido produtivo, aos setores mais qualificados das camadas médias. Não apenas como compradores, beneficiários do desvario consumista, mas, sobretudo, como agentes da atividade econômica” (p. xii).
A partir dessa constatação, Paulo Pontes concluiu que o capitalismo, então, passou a atribuir função mais dinâmica aos segmentos médios da sociedade. Mas, antes de receberem essa
atribuição, havia (num outro ponto de seu raciocínio) uma certa tradição de rebeldia nos setores
intelectualizados da pequena burguesia: estavam presos, assim como a sua classe, a uma estrutura social rígida, quase imóvel, dando vez para que a intelectualidade nascida na camada média
vivesse a sua rebeldia traduzida em ironia, deboche, boemia, fascínio pela utopia e “um certo
orgulho da própria marginalidade”. De todo modo o inconformismo, “e a disponibilidade ideológica de setores da pequena burguesia forma em muitos momentos de nossa história, instru-
mentos de expressão das necessidades das classes subalternas” (p. xiv). Havia, então, entre o
povo e a intelectualidade pequeno-burguesa, um canal de expressão, de comunicação.
Paulo Pontes acreditava que o movimento de ascensão das camadas médias, somado ao
processo altamente seletivo que o capitalismo impõe, provocou o afastamento da comunicação
que havia entre intelectuais e povo: “As classes dominantes produziram o corte que seccionou a
base dos segmentos superiores da hierarquia social. Isoladas, às classes subalternas restou a
marginalidade abafada, contida, sem saída. Individualmente, ou em grupo, um homem capaz,
ou uma elite das camadas inferiores pode ascender e entrar na ciranda. Como classe, estão reduzidas à indigência política” (p. xiv).
Gota D'água, segundo Paulo Pontes, é “uma reflexão sobre esse movimento que se operou no interior da sociedade, encurralando as classes subalternas. É uma reflexão insuficiente,
simplificadora, ainda perplexa, não tão substantiva quanto necessário, pois o quadro é muito
complexo e só agora emerge das sombras do processo social para se constituir no traço dominante do perfil da vida brasileira atual” (p. xv).
6.6.2 - O povo como identidade nacional
“A partir da década de 50 - disse Paulo Pontes - um contingente cada vez maior da intelectualidade foi percebendo que a classe média de um país como o nosso - colonizado, desviado
do controle sobre seu próprio destino - vive dilacerada, sem identidade, não se reconhece no
que produz, no que faz e no que diz. Ela só tem uma chance de sair da perplexidade quando se
descobre ligada à vida concreta do povo, quando faz das aspirações do povo um projeto que dê
sentido à sua vida. Isso porque o povo, mesmo expropriado de seus instrumentos de afirmação,
ocupa o centro da realidade - tem aspirações, passado, tem história, tem experiência, concretude, tem sentido. É, por conseguinte, a única fonte de identidade nacional” (p. xvi).
A interrupção do diálogo entre o povo e intelectualidade foi provocada a partir de 1964,
por duas forças convergentes: o autoritarismo e a modernização do processo produtivo, que
passou então a dar um caráter imediato, industrial, à produção de cultura. “Agora que a experiência de todos esses anos já nos permite uma avaliação, fica cada vez mais claro que nós temos
que tentar, de todas as maneiras, a reaproximação com nossa única fonte de concretude, de
substância e até de originalidade: o povo brasileiro. /.../ É preciso, de todas as maneiras, tentar
fazer voltar o nosso povo ao nosso palco. Do jeito que estiver ao alcance de cada criador: com o
show, a comédia de costumes, a revista, com a dramaturgia mais ambiciosa, como se puder” (p.
xvii).
6.6.3 - A necessidade da palavra
Como resultado de tudo o que foi dito, houve, na cultura e, em particular no teatro brasileiro, a perda da palavra. Paulo Pontes remete seu raciocínio para as experiências teatrais produzidas no início da década de 70, cuja característica principal é a ascendência de estímulos sonoros e visuais sobre a palavra: “Ao lado de todas as pressões amesquinhadoras, que tornaram
impossível a encenação do discurso dramático claro sobre a realidade brasileira, uma fobia pela
razão ia tomando conta de nossa criação teatral. Era improvável que se tratasse de um crise da
razão, num país como este, com tudo por ser feito, e estruturado de forma tão irracional que a
lógica mais estreitamente cartesiana tem eficácia como instrumento de percepção” (p. xviii) Eis, então, o que de verdade aconteceu, segundo Paulo Pontes: “As transformações foram se
acumulando no interior da sociedade sem que a cultura, posta à margem, se desse conta. Até um
ponto em que o processo social ficou muito mais complexo do que a cultura era capaz de entender e formular. E este passou a ser o centro da crise da cultura brasileira: criou-se um abismo
entre a complexidade da vida brasileira e a capacidade de sua elite política e intelectual de pensá-la” (p. xviii).
Paulo Pontes considerava que a “estreiteza dos limites impostos à criação cultural”, ou
por outra, a ação da censura, foi a grande responsável pela crise que se abateu sobre o teatro
brasileiro, mas, mesmo assim, “nós nos iludimos se não reconhecemos que, a partir de determinado momento, houve incapacidade real de pensar nossa realidade” (p. xviii).
De todo modo, Paulo Pontes diz que já no ano de 1975, esse quadro de incapacidade de
pensar a realidade estava mudando, sobretudo em outras áreas, com o surgimento de coisas novas e estimulantes, tais como o jornalismo político, os ciclos de debate do teatro Casa Grande e,
inclusive, a tese de doutoramento. Mas isso só não bastava: “Não foi a razão quem fracassou no
nosso caso; quem fracassou foi nossa racionalidade estreita. Agora é preciso reinstrumentalizála. A linguagem, instrumento do pensamento organizado, tem que ser enriquecida, desdobrada,
aprofundada, alçada ao nível que lhe permita captar e revelar a complexidade de nossa situação
atual. A palavra, portanto, tem que ser trazida de volta, tem que voltar a ser nossa aliada” (p.
xix).
O Desfecho da Festa
“Quem tem um sonho não dança”
Cazuza
A necessidade de recuperar a palavra objetivava melhor racionalizar o ser nacional, lançar luz sobre quem somos nós, os brasileiros. Só assim seria possível determinarmos o nosso
destino.
Por isso, a sua constante preocupação com os problemas da cultura: “A visão unilateral
do popular ou do nacional (confusão que tem sido feita por muita gente que escreve sobre arte e
cultura popular) leva, inevitavelmente, a uma posição estreita, por mais sincera que seja. Há
cultura nacional e popular na luta do Pe.Ventura, do ator Vasques, em Martins Penna, na comédia dos anos trinta, em Humberto Mauro, no estilo de representar de Jaime Costa, de Oscarito,
em tantos filmes do Cinema Novo, na antológica música carnavalesca dos anos 30-40, na dramaturgia do Arena, no Glauber, em Zé Celso, em Chico Buarque, em Caetano, em Paulinho da
Viola etc.”150.
Era preciso quebrar o conceito de elite, de uma cultura fechada, aurática, dominada por
uns poucos, praticada por uns tantos, refugiada em recintos pequenos, afastados, distantes da
sensibilidade inquieta do grande público: “Nós escrevemos e representamos, hoje, sem referência concreta diante de nós. Encerrado em boutique de Zona Sul, fazendo teatro para o mesmo
público, sempre, e um público altamente homogeneizado, nossa pesquisa vai ficando cada vez
mais abstrata. Se você tem um público diversificado, com responsabilidades sociais, um público
150
PONTES, Paulo. “O último artigo”. Op. cit.
que tem interesses e quer lutar por eles, e representa para ele num teatro grande, você passa a
ter uma referência concreta em torno da qual realiza sua pesquisa. Esse público dá, ao mesmo
tempo, concretude e racionalidade à sua pesquisa, à sua experiência. Esse é um público que
pode popularizar a narrativa teatral e, ao mesmo tempo, dar concretude e racionalidade (porque
esse público é a própria realidade) ao repertório do teatro brasileiro. O fato é que está provado
que há, em todas as camadas, muito mais gente interessada em ver teatro do que o teatro que
nós fazemos é capaz de atingir. Então só resta uma saída: ajustar a nossa capacidade criadora à
sensibilidade desse grande público. Fora disso, é ficar na boutique, recebendo todo dia aquela
meia dúzia de pessoas, numa sala pequena, que coagula a sensibilidade do público. Público
grande e diverso numa sala de espetáculo ampla - isso dar ao teatro brasileiro mais concretude,
mais substância social, mais ajustamentos aos grandes temas da vida brasileira, dar ao teatro
brasileiro, sobretudo, mais teatralidade”151.
Fernando Peixoto, em artigo publicado no jornal Correio das Artes, disse que, até aquela
data, Gota D'água tinha realizada mais de 300 apresentações, recebendo um público de cerca de
250 mil espectadores: “Uma cifra espantosa, que fascinava Paulo porque era a prova, na prática,
de tudo que ele defendia com paixão e confiança: existe um público imenso para o teatro desde
que este abandone o subjetivismo e o elitismo, aproximando-se da construção de uma cultura
nacional-popular. Toda sua obra como escritor e toda sua incansável participação como intelectual consciente de suas responsabilidades, fiel a seus compromissos, combativo e corajoso, coerente e lúcido, generoso e inflexível, foi esta procura”152.
Mesmo doente, como sempre, Paulo Pontes não descansava, e nos últimos meses que
lhe restavam de vida, debruçou-se sobre teses de sociologia e política, direcionando o seu trabalho para análises, estruturação de seminários e debates: “Sua preocupação era estudar a defasagem entre o pensamento crítico do intelectual progressista brasileiro e uma realidade que se
transformou, mas que ele, sentindo-se impotente e alimentando esta impotência, insiste em querer estudar a partir dos mesmos valores, dos mesmos conceitos, não revisado. Uma proposta
crítica que tentaria fazer uma sondagem em profundidade em problemas vividos cotidianamente
por todos. Inclusive por ele”153.
151
PONTES, Paulo. “Artigo Inédito”. Jornal do Brasil, 29 de dezembro de 1976.
152
PEIXOTO, Fernando. Artigo depois transcrito para o livro Teatro em Pedaços. Op. cit. p. 288.
153
Idem, ibidem.
Paulo queria, entre outras coisas, dar continuidade ao ciclo de debates que se realizara
no teatro Casa Grande. Desta vez, pelos planos, o novo ciclo se chamaria Projeto Popular de
Cultura e teria como base quatro peças que fariam um aprofundamento epistemológico do Brasil. Das quatro peças, uma se chamaria Luna Bar - que seria escrita pelo próprio Paulo Pontes -,
pretendendo analisar o comportamento da classe média. A outra seria escrita por Antonio Callado, dessa vez enfocando o trabalho no campo. Haveria ainda espetáculos sobre o trabalhador
urbano, por Fernando Peixoto e Guarnieri e, finalmente, um trabalho que focasse a marginalidade - provavelmente por Chico Buarque. Com Chico Buarque, ainda existia um outro plano:
escrever uma peça que se chamaria O dia em que Frank Sinatra veio ao Brasil.
Mas nada disso foi possível. Não houve tempo suficiente. Fernando Peixoto relata os
instantes finais de sua vida: “Nos últimos dias, sobretudo nas últimas horas, foi a luta de um
cérebro vigoroso contra um corpo já esquelético que se destruía por dentro. Paulo falava sem
parar, palavras desencontradas, mas evidência de uma dilacerante batalha na ânsia de viver contra uma morte que se aproximava inevitável. Pouco antes de falecer, às 11:50 hs. do dia 27, teve
um dramático instante de lucidez: chamou o médico, disse que ia morrer e queria ser salvo. Mas
já era o fim”154.
Era o dia 27 de dezembro de 1976.
Sábato Magaldi relata: “A morte não foi uma surpresa para os amigos mais chegados.
Todos já a esperavam desde os últimos 15 dias, com o agravamento de seu estado de saúde. O
paraibano Paulo Pontes morreu no Hospital Samaritano, no Rio, onde estava internado desde
setembro. E foi sepultado esta manhã, segundo sua vontade expressa, no Cemitério São Francisco Xavier (do Caju), ao lado do seu amigo e também teatrólogo Oduvaldo Vianna Filho,
morto há dois anos e também de câncer, como Pontes”155.
No dia 28 de dezembro, dia do sepultamento de Paulo Pontes, foi lido um texto em sua
homenagem, em cena aberta, por todos os espetáculos encenados no Rio: “Nós somos artistas
de teatro, e ao longo do tempo temos nos acostumado a representar diante de quaisquer condições. Mas hoje é um dia particularmente triste para nós e para todo o teatro brasileiro; porque é
o dia que marca o sepultamento de um dos mais expressivos nomes de nossa arte. Paulo Pontes
/.../ era, além de um dramaturgo talentoso, uma das pessoas que melhor pensaram o fenômeno
cultural brasileiro. Sua influência se espalhou por todos nós, já que exercia uma liderança natural, graças à sua poderosa inteligência e rara lucidez /.../ Paulinho amava o teatro e amava o
154
Idem, ibidem, p. 287.
155
MAGALDI, Sábato. “Paulo Pontes”. Op. cit
povo, que sonhou livre e no exercício de suas potencialidades. Lutou pela liberdade de expressão, por uma cultura nacional e popular, pela regulamentação de nossa profissão, e foi incansável em todas essas atividades /.../ Também lutou para que os teatros permanecessem abertos,
acima de quaisquer pressões ou dificuldades; e por isso não cancelaremos o espetáculo desta
noite”156.
Tarso de Castro, depois de relatar seus últimos encontros com Paulo Pontes, inclusive
no hospital, onde, internado, Paulo não sabia se devia fazer a operação que resultou inútil, Tarso confessa: “Não tenho muito a dizer em público sobre Paulo Pontes. Nós, entretanto, perdemos um cara preocupado na criação, na liberdade, no homem. E a censura perdeu um cliente”157.
Comovida, Tânia Pacheco se faz perguntas irrespondíveis, mesmo pela metafísica, sobre
o sentido que envolve a existência humana: “O que é que mata um homem? O que é que enterra
um homem? Decididamente, não é o automático gesto dos coveiros vedando com cimentos as
gretas das lápides brancas. Um homem pode ser aparentemente vencido pelo câncer. Pode desaparecer da nossa visão, encerrado numa caixa. Mas um homem é maior do que isso. E permanece. Em tudo o que criou, em tudo o que defendeu, na memória dos amigos, no remorso dos
inimigos. Um homem, mesmo calado, fala. Mesmo amordaçado, fala. Mesmo morto e enterrado, fala”158.
Paulo Pontes, nos últimos instantes de sua vida, sentiu a proximidade do fim e queria ser
salvo. Tinha trinta e seis anos, vividos de esperança, como brasileiro que era - como no título
do seu show. E foi com a esperança que lutou. Uma esperança racional, lógica, uma arquitetura
de idéias que projetava um destino justo para um país como o nosso. Por isso lutou. E lutou
contra a morte que sempre o perseguiu de perto. Mas não conseguiu evitar que, mais cedo do
que esperava, as mãos do abismo envolvessem a sua existência num aperto fraterno.
156
Carta sem assinatura, lida nos teatros do Rio. Jornal do Brasil, 29 de dezembro de 1976.
157
CASTRO, Tarso de. “Algumas coisas de Paulo Pontes”. Folha de São Paulo, 28 de dezembro de 1976.
158
PACHECO, Tânia. “Paulo Pontes e Gota D'água”. O Globo. Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1976.
Cronologia
1940 - Nasce Vicente de Paulo de Holanda Pontes, no dia 8 de novembro, na maternidade do
Hospital Pedro I, em Campina Grande, Pb. Filho de João Pontes Barbosa e Laís Carvalho de
Holanda.
1949 - Morando em João Pessoa, já frequentava a Biblioteca Pública do Estado, onde lia os
seus primeiros livros.
1951 - Escreve uma carta ao Diário Carioca, do Rio de Janeiro, onde faz um apelo para que
todos os brasileiros se integrassem na Cruzada de Combate ao Câncer, empreendida pelo médico paraibano Napoleão Laureano, vítima da doença. Napoleão Laureano o havia operado anos
antes de um defeito nos pés.
1956 - A sua primeira participação no teatro foi como orador, na estréia da peça A Beata Maria
do Egipto, de Raquel de Queiroz, pelo Teatro do Estudante da Paraíba.
1958 - Primeira viagem ao Rio num avião da FAB. A passagem fora conseguida por seu pai.
1959 - Começa a trabalhar na Rádio Tabajara da Paraíba, em João Pessoa.
1961 - Conflitos de terra provocam morte de camponeses em Mari, Pb. Paulo Pontes e Wladimir de Carvalho vão fazer a cobertura jornalística. Paulo, em cima de um caixote, põe-se a discursar na praça de Mari.
1962 - Recebe o prêmio de jornalismo em parceria com Jório Machado, por uma reportagem
sobre Campina Grande, Campina dos 7 instrumentos. O concurso era patrocinado pela Varig e
organizado pelo jornal Correio da Paraíba.
- Cria, escreve e apresenta o programa Rodízio, na Rádio Tabajara da Paraíba. O programa monopolizava diariamente o horário do meio-dia. Suas histórias e personagens começavam a ser
comentadas na cidade.
- Assume o cargo de Diretor Artístico da Rádio Tabajara.
- Hospitalizado para uma operação no pulmão, recebe a visita de Oduvaldo Vianna Filho, Vianinha, que excursionava pelo Nordeste apresentando espetáculos pelo Centro Popular de Cultura.
1963 - Trabalha na Campanha de Educação Popular, CEPLAR, organismo criado pelo governo
Pedro Gondim, a exemplo do Movimento de Cultura Popular, criado no Recife pelo governo
Miguel Arraes. Esses organismos tinham como meta promover a educação, a alfabetização popular. O MCP do Recife tinha entre seus membros o professor Paulo Freyre, criador de um revolucionário método de alfabetização de adultos. O MCP foi a fonte de onde nasceu o CPC e
todos os movimentos semelhantes.
1964 - Março: Na condição de participante da CEPLAR, viaja ao Rio de Janeiro para participar
de reunião no CPC.
- 1º de abril: O golpe militar derruba o Presidente João Goulart. Paulo Pontes se sente impedido
de voltar para a Paraíba.
- Dezembro: Juntamente com Vianinha, Armando Costa, Ferreira Gullar, Tereza Aragão, Pichin
Plá, Denoy de Oliveira e João das Neves, cria o grupo Opinião. A estréia acontece com o show
Opinião, escrito por Paulo Pontes, Vianinha e Armando Costa.
1967 - Cisão no grupo Opinião, provocando a saída de Paulo Pontes, Vianinha e Armando Costa.
- Paulo Pontes volta para a Paraíba. Cria o Teatro de Arena da Paraíba.
- Escreve Paraí-bê-a-bá.
1968 - Janeiro, 29: Paraí-bê-a-bá estréia no Rio de Janeiro, no Teatro Nacional de Comédia,
representando a Paraíba no IV Festival Nacional de Teatro do Estudante.
- Fevereiro, 16: Paraí-bê-a-bá estréia em João Pessoa, no Teatro Santa Roza, com Ednaldo do
Egypto à frente do elenco. Direção de Elpídio Navarro e Rubens Teixeira.
- Através de Nádia Maria, recebe convite de Almeida Castro para compor a equipe de criação
da TV Tupi. Paulo Pontes indicou Vianinha e Armando Costa para juntos formarem a nova
equipe.
- Na TV Tupi cria o programa Bibi - Série Especial. Juntamente com Vianinha, escreve os textos do programa.
1969 - Escreve e estréia o show Brasileiro, Profissão Esperança, inspirado na vida, nos textos e
na música de Antonio Maria e Dolores Duran. O show é dirigido por Bibi Ferreira, com quem
Paulo Pontes se casa.
1971 - Escreve Um Edifício Chamado 200. O título dessa peça era inicialmente Barata Ribeiro
200, mas por pressão dos moradores do condomínio - e da censura federal - Paulo mudou o
título.
1972 - Recebe o prêmio de “Autor Revelação” em São Paulo, pelo texto Um Edifício Chamado
200.
- Escreve Check-up.
- Escreve Dr. Fausto da Silva.
- Agosto, 15: juntamente com Flávio Rangel, traduz O Homem de la Mancha, de Dale Wasserman, que estréia no Teatro Municipal de Santo André, São Paulo, com a direção de Flávio Ran-
gel. As letras originais são de Joe Darion, músicas de Mitch Leigh. Na versão brasileira as letras são de Chico Buarque e Ruy Guerra, e a direção musical de Murilo Alvarenga. Paulo Autran e Bibi Ferreira faziam os papéis centrais.
1973 - Prêmio “Governador do Estado da Guanabara” pela peça Check-up.
- Escreve com Alfredo Zemma a peça Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
1974 - Julho, 16: Morre no Rio de Janeiro Oduvaldo Vianna Filho. Paulo Pontes escreveu na
ocasião: “Só consigo vislumbrar, num relance, a idéia de que, diante de tanta coisa que ele ainda tinha por fazer, teria sido preferível, para mim que conheci tão bem todas as suas ilimitadas
possibilidades, que, em 1974, o pulmão doente, em vez do dele, ainda fosse o meu” (programa
da peça Rasga Coração, de Vianinha. Rio de Janeiro, 1980).
1975 - Escreve o show Opinião 75.
- Dezembro: Estréia Gota D'água, escrito em parceria com Chico Buarque. Com Bibi Ferreira,
Oswaldo Loureiro, Luiz Linhares, Roberto Bonfim nos papéis principais. Direção musical de
Dory Caymmi e direção geral de Gianni Ratto.
1976 - Fevereiro: Participa do I Festival de Arte de Areia, Paraíba, onde ministra curso sobre
dramaturgia brasileira.
- Dezembro, 27: Morre no Rio de Janeiro, no Hospital Samaritano, às 11:30 hs., vítima de câncer no estômago.
- Dezembro, 28: Enterrado no Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, às 9:00 hs., na quadra
55. Na noite do seu sepultamento foi lida em cena aberta, em todos os teatros do Rio, uma carta
de condolências da classe teatral.
- 1977 - Fevereiro, 8: No Teatro Carlos Gomes, Rio, a classe teatral se reúne para uma homenagem a Paulo Pontes, apresentando trechos de suas peças, shows e artigos. O ator Ednaldo do
Egypto apresenta um trecho de Paraí-bê-a-bá.
1981 - A Associação Carioca de Empresários Teatrais, a ACET, cria o “Prêmio Paulo Pontes”,
para homenagear os melhores profissionais do ramo, em todas as categorias da atividade teatral.
Bibliografia
I - Bibliografia Específica
1 - Obras de Paulo Pontes para rádio, teatro e televisão
- Rodízio. Texto em apostila. Arquivo do autor.
- Paraí-bê-a-bá. João Pessoa, sem editora, sem data. Arquivo do autor.
- Check-up. Texto em apostila. Arquivo da UFBa, Salvador.
- Dr. Fausto da Silva. Rio de Janeiro, revista da SBAT, nº 405, maio/junho de 1975.
- C/ ZEMMA, Alfredo. Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. São Paulo: Versus,
1977.
- C/ BUARQUE, Chico. Gota D'água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
- C/ VIANNA FILHO, Oduvaldo. Sem Saída, O Justiceiro, Um Homem Chamado 320, De Repente, Uma visita, A Testemunha, A Vida Por um Fio, Uma Noite de Terror, Por Favor, Moça,
não Morra, É Preciso Salvar Neusinha Também. Rio de Janeiro: Biblioteca do Inacen (Ibac).
2 - Artigos e Prefácios de Paulo Pontes:
- “O autor brasileiro no teatro”. São Paulo: Versus, 1977.
- “O autor não pode viver só de teatro”. Rio de Janeiro: Jornal Última Hora, 17 de janeiro de
1973.
- “Inédito”. Artigo inédito. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 29 de dezembro de 1975.
- “Viva Vianna”. Programa da peça Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho. Rio de Janeiro,
1980.
- C/ VIANNA FILHO, Oduvaldo & COSTA, Armando. “As intenções do Opinião”. Rio de
Janeiro: Edições do Val, 1965.
- “Por que um espetáculo sobre a Paraíba?” João Pessoa, sem editora, sem data, arquivo do autor.
- “Um Edifício Chamado 200”. São Paulo: Arte em Revista nº 6, Kairós, 1981.
- “Check-up”. São Paulo: Arte em Revista nº 6, Kairós, 1981.
- “Algumas palavras sobre Fausto da Silva”. Rio de Janeiro: Revista da SBAT, nº 405, maio/junho de 1975.
- “O depoimento dos autores”. Programa da peça Gota D'água. Depois prefácio à edição da obra. Rio de Janeiro, 8 de dezembro de 1975.
3 - Entrevistas de Paulo Pontes:
- “O teatro não vai ao povo nem o povo vai ao teatro”, a Sérgio Fonta. Livro de Cabeceira do
Homem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
- “A última entrevista”. Rio de Janeiro: Última Hora, 25 de dezembro de 1976.
- “O teatro em busca da distensão”, c/ Flávio Rangel & outros. Revista Visão, 9 de junho de
1975.
- “O prenúncio da resistência”. Santos, jornal ATribuna, 24 de dezembro, ano não esclarecido.
- “Tromba d'água”, c/ Bibi Ferreira & outros. Rio de Janeiro: jornal Pasquim, data não esclarecida.
- “Entrevista Inédita”. São Paulo: Versus, 1977.
4 - Textos de referência para Paulo Pontes escrever algumas de suas obras:
- EURIPÍDES. Medeia. Trad. Cabral de Nascimento. Lisboa: Inquérito, sem data.
- GOETHE. Fausto. Trad. Jenny Klabin Segall. São Paulo: Editora da USP, 1981.
- VIANNA FILHO, Oduvaldo. Medeia. Texto em apostila. Santos, arquivo do jornal A Tribuna.
5 - Artigos sobre Paulo Pontes:
- BRAGA, Gilberto. “Papo com Paulo Pontes”. Rio de Janeiro: O Globo, 8 de maio de 1975.
- CARVALHO, Vladimir. “Documentário de Paulo Pontes”. João Pessoa: Correio das Artes, 23
de janeiro de 1977.
- CASTRO, Tarso de. “Algumas coisas de Paulo Pontes”. Folha de S. Paulo, 28 de dezembro de
1976.
- CHRISTINA, Helena. “A comédia redescoberta”. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 19 de setembro de 1972.
- CORREIA NETO, Alarico. “Paulo Pontes queria ver o povo no palco”. Recife, Diário de Pernambuco, 4 de janeiro de 1977.
- FABIANO, Ruy. “Paulo Pontes - A gota d'água que há de virar torrente”. Rio de Janeiro, Luta
Democrática, 30 de dezembro de 1976.
- FARIAS LIMA, Rodrigo. “Um exemplo a perpetuar”. Rio de Janeiro, Boletim da ACET, 10
de fevereiro de 1981.
- GOMES, Sérgio. “Paulo Pontes - Gota d'água contra a maré”. Folha de S. Paulo, 21 de dezembro de 1976.
- GUIMARÃES, Márcia. “Em vez do banquete, a gota d'água”. Rio de Janeiro, Última Hora, 28
de novembro de 1976.
- GUZIK, Alberto. “Morte triste e temporã”. Rio de Janeiro, Última Hora, 8 de janeiro de 1977.
- JOFFILY, José. “Paulo Pontes, 10 anos depois”. Recife, Diário de Pernambuco, 13 de fevereiro de 1987.
- LEVI, Clóvis. “Vamos todos ao Carlos Gomes homenagear Paulo Pontes”. Rio de Janeiro, O
Globo, 7 de fevereiro de 1977.
- LUIZ, Macksen. “Paulo Pontes”. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 9 de fevereiro de 1977.
- MACHADO, Jório & outros. “Paulo Pontes: a escalada do sucesso”. João Pessoa, jornal O
Momento, 31 de dezembro de 1976.
- MAGALDI, Sábato. “Paulo Pontes”. O Estado de S. Paulo, 28 de dezembro de 1976.
- MELO, Paulo. “Um artista chamado Paulo Pontes”. João Pessoa, Correio da Paraíba, 2 de
junho de 1972.
- MELO, Paulo. “O Patrono Paulo Pontes”. Areia, Programa do Festival de Verão, 30 de janeiro de 1977.
- MENDES, Oswaldo. “A difícil arte da resistência”. Rio de Janeiro, éltima Hora, 2 de março
de 1977.
- MICHALSKI, Yan. “Empresários criam o prêmio Paulo Pontes”. Rio de Janeiro, Jornal do
Brasil, 18 de junho de 1984.
- PACHECO, Tânia. “Paulo Pontes e Gota D'água”. Rio de Janeiro, O Globo, 29 de dezembro
de 1976.
- PACHECO, Tânia. “Vamos respirar a noite de Paulo Pontes”. Rio de Janeiro, O Globo, 9 de
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6 - Artigos não assinados sobre Paulo Pontes:
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- “Paulo Pontes”. João Pessoa, Correio da Paraíba, 7 de janeiro de 1977.
- “Ficou um vazio na cultura nacional sem Paulo Pontes”. Belo Horizonte, Jornal de Minas, 31
de dezembro de 1976.
- “Paulo Pontes e o movimento teatral do Rio”. Fortaleza, O Povo, 11 de junho de 1976.
7 - Diversos:
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Paulo Pontes, A Arte das Coisas Sabidas