UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
Curso de pós-graduação lato sensu
em Supervisão Escolar
LITERATURA INFANTO-JUVENIL:
UMA (RE)LEITURA DOS CLÁSSICOS.
FORMAÇÃO HUMANÍSTICA E ALFABETIZAÇÃO
Por
Ceres Fingola da Silva Valle
Monografia
trabalho
apresentada
final
Especialização
Escolar.
Rio de Janeiro
Junho de 2003
do
em
Curso
como
de
Supervisão
Aos meus pais, Paulo e
Flávia, a quem devo tudo
que sei;
A Carlos Eduardo, meu
marido,
pelo
apoio
e
incentivo;
Á minha irmã, Lívia, pelo
exemplo de garra e força de
vontade;
À
sobrinha
e
afilhada,
Marina, por ensinar-me todos
os dias que a vida vale a
pena;
Ao meu amigo, André, pelo
companheirismo na trilha da
educação.
“As palavras me antecedem e
ultrapassam,
elas me tentam e me
modificam, e se não tomo cuidado será
tarde demais: as coisas serão ditas sem
eu as ter dito. Ou pelo menos não era
apenas isso. Meu enleio vem de que um
tapete é feito de tantos fios que não posso
me resignar a seguir um fio só; meu
enredamento vem de que uma história é
feita de
muitas histórias. E nem todas
posso contar.”
(Clarice Lispector)
SINOPSE:
Considerações sobre a implantação da
Literatura
no
I
Ciclo
com
o
propósito
da
humanística,
formação
de
Fundamental,
formação
leitores, e alfabetização.
SUMÁRIO
1 – INTRODUÇÃO
2 – HISTÓRIA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL
2.1 - Século XVI: o Renascimento
2.2 – Arte e Literatura culta e popular no século XVI
2.3 – Século XVII: absolutismo e classicismo
2.3.1 – O momento cultural
2.4 – Século XVIII: o Pré-Romantismo
2.5 – A infância e o século XVIII ( a pedagogia de Jacques Rosseau)
do
Ensino
2.6 – Século XIX: Romantismo e Realismo (a descoberta da criança)
2.7 – O Brasil de entre-séculos: do final do império de D. Pedro II às vésperas do
Modernismo (1861/1919)
2.8 – Brasil – século XX
2.8.1 – Monteiro Lobato, um marco
2.8.2 - Criatividade e literatura infantil nos anos 70/80
2.8.3 - A ilustração
2.8.4 - A poesia
2.8.5 - As tendências da literatura infantil atual
3 – A CONFORMIDADE TEXTUAL -Adaptação e trivialização
4 – ESTRATÉGIAS PARA APLICAÇÃO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL
4.1 - O Simbolismo Linguístico
4.2 - A Transição Entre a Escrita Icônica e a Simbólica
4.3 - Consciência Metalingüística
4.3.1 – Desenho, Palavra e Letra
4.3.2 – Palavra e Nome
4.3.3 - Consciência Fonêmica
4.4 – leitura de histórias
4.5 – a linguagem integral
5 – FORMAS DE IMPLANTAÇÃO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL NO
1º CICLO
5.1 – Função do professor: a interferência crítica
5.2 – Escalonamento e Penetrabilidade
6 – CONCLUSÃO
7 – BIBLIOGRAFIA
1 – INTRODUÇÃO
Nos moldes do ensino atual, principalmente no ensino público, a Literatura não
compõe o currículo do ensino fundamental, somente sendo apresentado ao aluno a
partir do ensino médio, ou seja, nos três últimos anos escolares do ensino fundamental.
Consideramos que o ensino de Literatura no ensino médio não é sobre a
Literatura, entendendo como estudo dos textos, relação com outras áreas do saber
humano (interdisciplinaridade) e relação com outros textos da época atual e de outras
épocas (intertextualidade), e sim sobre historiografia da Literatura, restringindo-se
somente ao estudo dos Estilos de Época, autores, datas, momento histórico etc. Dessa
forma a Literatura em si fica em segundo plano.
Entendemos que Literatura é mais do que isso: é a arte da palavra, o pleno
desenvolvimento do senso de estética, do senso crítico, do domínio da língua, da
imaginação e criatividade. Essas habilidades têm de ser desenvolvidas nas séries
iniciais, a partir da alfabetização, como forma de termos indivíduos aptos a integrarem a
sociedade, como elementos ativos, conscientes e comprometidos com os grupos
sociais de que fazem parte.
O ponto de partida para se chegar a esse objetivo é a introdução da Literatura
Infanto-Juvenil nos currículos escolares. A partir da (re)leitura dos clássicos e das
teorias lingüísticas, fundamentaremos nossa proposta, provando a viabilidade desse
trabalho.
A inserção da Literatura Infanto-Juvenil nos primeiros anos do ensino
fundamental, Literatura destinada às crianças, revela sua essencialidade em seu valor
maior: o de se inventar/construir como espaço de prazer que se quer, ao mesmo tempo,
espaço de conhecimento subliminar.
Esta função prazer/conhecer é o que transforma o livro infantil em um objeto
novo. É um ser-de-linguagem que se constrói como espaço de convergência de
multilinguagens: narrativas, fotografia, cerâmica etc. Linha de “criação complexa” que
visa dar forma a concretude a novas maneiras de ver e construir o real, e por isso, se
empenha em provocar nos leitores o “olhar da descoberta” que a paisagem
caledoscópica do mundo atual exige, para que se possa interagir com ela.
Esse objeto novo, o livro, oferece matéria extremamente rica para formar ou
transformar as mentes, dinamizar as potencialidades do educando. É necessário lembrar
que o poder mágico da mente será o elemento-chave para a exploração dinâmica ( e não
mecânica) do poder da tecnologia, que comandará as relações eu-mundo neste terceiro
milênio.
Essa é uma nova perspectiva no ensino da Literatura direcionada à criança, onde
há uma retomada do livro, principalmente dos clássicos da Literatura Universal,
devidamente adaptados às faixas etárias a que se destinam, já que a partir dos anos 5060, com a industrialização em maior escala dos inventos audiovisuais e a crescente
expansão desses recursos, houve uma alteração do relacionamento do homem com o
mundo e seus semelhantes. A televisão chega para inaugurar oficialmente a civilização
da imagem, do som, da fragmentação e da velocidade, na qual a palavra, como valor,
passa para o plano secundário, embora ela continue a ser a base de tudo (sem texto,
sem pensamento verbalizado, nada existe...). Alguns prevêem o fim do livro, que seria
substituído por gravações ou videoteipes, onde as novas gerações se afastam cada vez
mais da leitura literária e da capacidade de expressão verbal fluente – são as chamadas
“gerações sem palavras”.
Como forma de reverter esse quadro, a Literatura Infanto-Juvenil, através dos
clássicos, como forma de continuidade cultural, teria as seguintes palavras de ordem:
criatividade, consciência da linguagem e consciência crítica. Palavras que emanam de
uma nova concepção de mundo: o homem entendido como “ser histórico e criador de
cultura”, onde a infância seria o estágio inicial e fundamental para a formação desse
novo homem; a palavra como nomeador do real; o saber ou o conhecimento entendidos
como “prática da
liberdade” (Paulo Freire) e, conseqüentemente, a valorização do
espírito questionador, lúdico, irreverente e, sobretudo, bem humorado (que desafia as
certezas e os paradigmas de comportamento, defendidos pela tradição).
A matéria-prima da Literatura é a palavra, e essa descoberta da palavra pela
criança é perfeitamente viável através da Literatura Infanto-Juvenil. Lembremos que a
propósito que em nosso século houve uma verdadeira revolução na conceituação da
palavra: de elemento representativo (mimético) da realidade por ela nomeada, passa a
ser definida como elemento criador do real. Nos rastros da Lingüística, Antropologia,
Fenomenologia, Semiótica etc, descobriu-se que a palavra é fundadora (e não mero
rótulo de algo criado), que a palavra é o que torna existente o real, como disse Lacan:
“só existe o que for nomeado”. Ou Heidegger: “a palavra é a morada do ser”.
A nova Literatura Infanto-Juvenil, aplicada nas séries iniciais do ensino
fundamental, defenderá de maneira lúdica e simples os “paradigmas emergentes” que
surgiram na literatura de vanguarda, desde o início do século XX, em desafio aos
“paradigmas tradicionais” (já hoje em franca deterioração). É essa a grande importância
da Literatura Infanto-Juvenil na educação. Fazer uma urgente mudança de mentalidade,
através da (re) leitura dos clássicos, que um dia transformará a atual desordem em uma
nova ordem. E essa mudança será, sem dúvida, através da escola, e através da
verdadeira descoberta da Literatura.
Entendemos que quando falamos em clássicos (D.Quixote, Os Lusíadas,
Odisséia, Robinson Crusoé, El Cid etc) para crianças, necessariamente será preciso usar
um código lingüístico, narrativo, ideológico etc, acessível à compreensão do pequeno
leitor. Há algumas editoras que já fazem essa adaptação destinada ao 2º ciclo do ensino
fundamental, o que poderia ser feito perfeitamente para o 1º ciclo.
É necessário que sejamos conscientes de que uma das mais fecundas fontes
para a formação dos pequenos leitores é a imaginação – espaço ideal da Literatura. É
pelo imaginário que o EU pode conquistar o verdadeiro conhecimento de si mesmo e do
mundo em que lhe cumpre viver. Apenas a razão, a lógica já não são suficientes.
2 – HISTÓRIA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL
2.1 - SÉCULO XVI: O RENASCIMENTO
O Renascimento foi o amplo e complexo movimento cultural que se propagou na
Europa Ocidental a partir do momento em que as novas nações já estavam praticamente
constituídas. Por volta do século XV e XVI, impo-se um novo viver, preparado durante a
lenta transformação do mundo, que se processou na Idade Média. Transformação de
limites, de horizontes, de idéias, de costumes... que foram sendo provocados por
invenções e descobertas: o progresso da arte de navegação abre os mares para as
grandes travessias, para o comércio com terras longínquas e descobertas de novas
terras; a invenção da pólvora transforma a arte da guerra e precipita a decadência da
cavalaria; o desenvolvimento das riquezas e do espírito de progresso provoca novos
empreendimentos... Aos grandes descobrimentos de portugueses e espanhóis, segue-se
o imenso esforço de colonização. Os limites do mundo se ampliam desmesuradamente.
Imensos recursos drenados para a Europa modificam toda a política e a economia que
antes tinham o Mediterrâneo como eixo. O surgimento do dinheiro transforma o antigo
sistema de comércio por troca em operações de compra e venda.
A riqueza cresce, as mudanças se multiplicam, uma prosperidade desconhecida
até então favorece as iniciativas mais ousadas. Ao mesmo tempo se expande o
mercantilismo: os bancos. As grandes companhias instauram o capitalismo. Por uma
soberania crescente, a Europa domina o mundo. Politicamente mais evoluída, ela
procura também sua estabilidade: a individualização crescente das diversas nações
exige um crescente esforço de equilíbrio.
A mudança do espírito parece mais sensível ainda.
A vulgarização do papel ( a partir da 2ª metade do século XIV), a descoberta da
gravura (século XIV), a invenção da imprensa (1ª metade do século XV) modificaram
profundamente as condições da vida cultural e intelectual. Melhor armado, o
pensamento se abre, vigorosamente lúcido, ao mesmo tempo crítico e criativo, e seu
esforço se exerce em três áreas essenciais: nas ciências (Copérnico, Kepler, Galileu
renovam a concepção do universo); na religião desenvolve-se o vasto movimento
religioso desencadeado pela Reforma (Lutero, 1483-1546), e enfrentado pela ContraReforma católica (Concílio de Trento – 1545/1562; Inquisição...), provocando profundas
transformações morais e materiais em todo o mundo ocidental; e, no domínio
intelectual/artístico,
um
retorno
à
Antiguidade
Clássica
greco-romana,
agora
compreendida por um novo ângulo, - o do espiritualismo cristão, provoca uma essencial
renovação da Filosofia, da Literatura e da Arte em geral.
Nessa breve síntese, temos o mais vivo do Renascimento, - o fundo empenho de
ressuscitar a Antiguidade, na forma de um mundo em plena
reformulação; a alta
autoridade que fortalece, disciplina e orienta, desde as raízes, os esforços tumultuados
do espírito moderno, abrindo também caminho para uma nova Educação.
Mas, sem dúvida, o ponto alto das
transformações renascentistas está na
invenção da imprensa. Sem muito risco de erro, podemos dizer que o aparecimento da
Bíblia de Gutenberg, em 1456, foi o acontecimento universal de maior importância no
amanhecer do Renascimento. E, isso, não exatamente pelo alto e perene valor desse
monumento bíblico, “o Livro dos Livros”, mas sim pela invenção do livro, que essa
publicação marca historicamente.
Tendo-se
em
vista
as
imensuráveis
conseqüências
dessa
invenção,
compreendemos melhor a afirmação do historiador francês: “...com ela o Mundo entrou
no infinito e o Homem se fez eterno”1. Claro está que um “infinito” e uma “eternidade” à
dimensão do humano... A verdade, porém, é que, registrando ou perpetuando vivências
de todos os tempos, idades ou eras, o livro, a palavra escrita, permite ao Homem tornarse contemporâneo de todas as épocas: conviver com o passado mais remoto e antecipar
o futuro, ao participar, vivencialmente, da longa caminhada da Humanidade pela
História.
Indiscutivelmente, foi devido a esse natural impulso do Homem em procurar
prender em algo concreto suas experiências essenciais, mas fugazes (como as
realizadas pela Palavra, pelo Verbo), que puderam chegar até nós os vestígios das mais
antigas manifestações do espírito humano, que formam o húmus primordial das atuais
criações como, por exemplo, os clássicos da Literatura Universal.
É óbvio que hoje, Era da Eletrônica, em matéria de registro das “manifestações
fugazes” da vida, o livro tem inúmeros e mais potentes competidores, - como os
audiovisuais. Mas, que tenha a sua especificidade, - a de tornar visível a linguagem e
permitir o encontro íntimo e profundo ou o corpo-a-corpo fecundo de um Eu com sua
realidade e com a experiência do Outro... nenhum.
É, pois, o Livro uma das presenças mais significativas no processo cultural que
tem início no Renascimento e prossegue até hoje... Coincidindo com o seu
aparecimento,
estabelecem-se
as
bases
de
um
mundo
novo,
progressista,
empreendedor, idealista, que valoriza o Homem em seu poder de Criatividade e sua força
de Trabalho como as molas propulsoras da vida civilizada. Um mundo eu cresce
desmesuradamente, em conquistas e problemas, e que através de várias metamorfoses
chega aos nossos tempo, transformando no mundo tradicional contra o qual o século
XX vai-se voltar, para tentar uma nova transformação, - a que ainda está em curso...
2.2 – ARTE E LITERATURA CULTA E POPULAR NO SÉCULO XVI
Do foco gerador que foi a Itália de “quattrocento”, surge o Renascimento
europeu (primeira fase da Era Clássica): período em que se difundem em todos os
setores da sociedade, as novas formas de Vida e de Arte condicionadas pela nova
imagem-de-Homem-e-de-Mundo que, lentamente, começaram a se forjar nos últimos
séculos medievais, dentro do Movimento Humanista. Portanto, na base do amplo
movimento renovador que foi o Renascimento, está o Humanismo: o novo
Conhecimento do Homem, construído pelo pensamento cristão, ao descobrir no acervo
cultural, deixado pela Antiguidade greco-romana, a idéia da “personalidade liberal”.
É esse homem liberal, “renascido” depois de mil anos de espera, que vai
construir a Renascença artística e literária, a partido dos “modelos” deixados pelos
antigos gregos e romanos. Nasce uma Arte idealista, bela e harmoniosa, uma Literatura
culta e aristocrática, alicerçada em pressupostos filosóficos e estéticos bem definidos.
Uma Arte e uma Literatura que, por sua vez, com o passar dos séculos, se transformarão
em “modelo clássico” para o mundo ocidental.
1
La Bible de l’Humanité, 1864
Entretanto, na área da literatura popular (que aqui nos interessa mais de perto),
esse impulso renovador não penetra de imediato. Fenômeno, aliás, bastante natural,
quando lembramos que as camadas mais populares são as que mais conservadores e
mais resistentes a qualquer sugestão de mudança. Durante todo o século XVI continuam
a circular, oralmente ou em manuscritos, a literatura surgida na Idade Média, em novas
variantes ou simples imitações.
Portanto, enquanto ao nível da literatura culta surgem as grandes obras
renascentistas de um Boccaccio, um Camões, um Bernardim Ribeiro, um Rabelais, um
Garcilaso de la Veja, um Ronsard... ao nível da literatura popularizante registram-se
apenas quatro obras que, apesar de conter matéria semelhante à das narrativas
medievais, apresentam nítida superioridade estilística e lingüística, quando comparadas
com a anterior. Trata-se das coletâneas feitas pelos italianos Caravaggio, Basile, Croce e
pelo português Trancoso, - coletâneas onde se encontram narrativas de origem oriental
e relatos “exemplares” comuns no fim da Idade Média, muitos dos quais vão fazer parte
do acervo da Literatura Infantil que começa a aparecer do século XVII em diante.
(Obviamente, deixamos de mencionar o grande nome do século XVI, ligado ao popular,
que é Gil Vicente, porque o teatro representa um outro problema a ser analisado...).
2.3 – SÉCULO XVII: ABSOLUTISMO E CLASSICISMO
É na França, na segunda metade do século XVII, durante a monarquia absoluta
de Luís XIV, o “Rei Sol”, que se manifesta abertamente a preocupação com uma
literatura para crianças ou jovens. As Fábulas (1668) de La Fontaine; os Contos da Mãe
Gansa (1691/1697) de Charles Perrault; os Contos de Fadas (8 volumes – 1696/1699) de
Mme. D’Aulnoy e Telêmaco (1699) de Fénelon são os livros pioneiros do mundo literário
infantil, tal como hoje o conhecemos.
É essa uma literatura que resulta da valorização da Fantasia e da Imaginação e
que se constrói a partir de textos da Antiguidade Clássica ou de narrativas que viviam
oralmente entre o povo. Tal
“tradição”, popularizante ou erudita, redescoberta ou
recriada por escritores cultos, contrasta vivamente com a alta literatura clássica
produzida nesse momento: o teatro de um Corneille ou de um Racine, um Malherbe; a
oratória de um Bossuet; a teorização poética de um Boileau...
Entretanto, vista dentro do panorama geral das idéias e correntes que
caracterizam o século XVII, tal literatura torna-se perfeitamente justificada. Conhecendose esse panorama e como nasceu essa “literatura infantil”, descobre-se a seriedade e os
altos objetivos que nortearam a construção de cada um de seus títulos. Não há nada,
nessa produção, que seja gratuito ou tenha surgido como puro entretenimento sem
importância, como muitos vêem a Literatura Infantil em geral.
2.3.1 – O MOMENTO CULTURAL
Depois da turbulência política e o desequilíbrio que se seguiram à eclosão do
Renascimento e à anarquia das guerras civis, a França, mais cedo do que qualquer outra
nação, tenta reencontrar o equilíbrio. O século XVII francês (cujo modelo se impõe ao
mundo civilizado de então) se caracteriza, acima de tudo, por um enorme esforço para
estabelecer uma ordem racional, não só no pensamento, como na Sociedade, nos
costumes e na Vida em geral.
Lembremos que essa “ordem racional” tinha como alicerce o princípio
humanista, de que era através da Razão que o homem podia conhecer a Verdade, a
Beleza e o Bem. Ora, sendo essa Razão um poder inato para o conhecimento, que busca
a experiência concreta para desenvolver de maneira ampla suas possibilidades inatas, é
de se compreender a força dos dois fatores que marcam a arte clássica: a ênfase na
grandeza do Homem (= dono da Razão que lhe possibilitava o Conhecimento) e
obediência ao modelo dos antigos (= os que haviam realizado em alto grau de perfeição
as experiências humanas dignas de serem imitadas).
Em 1637, o Discurso do Método de Descartes (dando total apoio à Razão inata)
ilustra bem essa tendência filosófica. De acordo com esse ideal dominante, instaura-se
na primeira metade do século, em toda sua plenitude, o racionalismo na literatura, desde
sempre se defrontando com duas grandes forças opostas: as do preciosismo e as do
realismo libertino, - correntes de pensamento responsáveis pelas diferenças de temas ou
problemas que marcam a produção literária da era clássica.
Na primeira metade do século, essas duas tendências se manifestaram na
produção de uma prosa narrativa caudalosa, exuberante, fantasista, que, em tudo,
contrastava com a alta disciplina que presidia aos dois gêneros “nobres” da época: o
teatro e a poesia. Pode-se dizer que o “romance precioso” e o “romance realista
libertino” representam o avesso da alta literatura poética e teatral que acabou por
caracterizar as tendências ortodoxas do Classicismo... Neles, nenhum “espírito de
ordem”, nenhuma “objetividade”, nenhum “racionalismo” organizador... mas, pelo
contrário, o excessivo, o tumultuado, o inverossímil, a fantasia mais exuberante. O
“romance libertino”, de intenções filosóficas, tende à crítica cínica da vida cotidiana na
corte, mas uma crítica entremeada de mil incidentes romanescos e personagens
mitológicas. Muito mais difusão teve o “romance precioso” (cuja obra de maior
repercussão foi Astrée d d’Urfé, publicada a 1ª parte em 1607 e a última em 1627).
Se levarmos em conta a influência que ele exerceu posteriormente sobre vários
escritores, pode-se dizer que foi, sem dúvida, o maior sucesso literário da França no
século XVII. Herdeiro das novelas de cavalaria medievais e do romance pastoril
renascentista (=Arcádia de Sannazzaro – 1502; Diana de Montemayor – 1582; e Galatea
de Cervantes – 1585), o “romance precioso” desenvolve-se através das aventuras
fantástico-maravilhosas de cavaleiros andantes ou cortesãos, ninfas, pastoras, pastores
ou seres imaginários... e assim leva à exageração ou à deformação o idealismo básico
do pensamento clássico; e também contraria o racionalismo e equilíbrio buscados pela
estética clássica, que nesse momento se regulamentava definitivamente.
A verdade é que, sendo herdeiro das idéias humanistas do século XVI, o século
XVII (em suas décadas iniciais) vai prolongar o ideal de vida heróica e romanesca, típico
do Renascimento. Um ideal de grandeza humana que se fundamenta, entre os franceses,
sobre uma espécie de estoicismo cristão (representado pelos heróis de Corneille, cujas
paixões são dominadas pela razão, mas não humilhadas...).
Em meados do século, porém, vai-se dar uma mudança sensível nesse ideal
“cavaleiresco, galante e orgulhoso”. O teatro de Molière e as fábulas de La Fontaine
mostram claramente que já não se crê mais no estoicismo como ideal de comportamento.
Um certo epicurismo infiltra-se na seriedade clássica. A grandeza intrínseca do homem
parece ser posta em dúvida. La Fontaine e Molière, embora não se mostrem pessimistas
com relação ao homem, deixam bem claro que não se deve contar demasiado com suas
forças, nem pedir-lhe demasiado... pois seria ingênuo acreditar que ele é naturalmente
bom e que sua razão inata o inclina à Verdade e ao Bem.
“A razão do mais forte é sempre a melhor.” É o que constata La Fontaine. O ideal
muda: em lugar de sonhar com heroísmos, o homem deve buscar uma sabedoria
modesta. Inclusive, a legitimidade do magistério dos Antigos começa a ser posta em
questão. Até que em 27 de janeiro de 1687 um poema de Charles Perrault, “O Século de
Luís, o Grande”, é lido em sessão extraordinária na Academia Francesa e desencadeia a
“Querela dos Antigos e dos Modernos”. Esta traz à tona as discordâncias internas do
pensamento e da estética clássica e se prolonga por todo século XVIII, auxiliando
decisivamente a fermentação das novas idéias que eclodiram na Era Romântica.
Índice claro dessas “discordâncias” é o fato de que, exatamente no apogeu do
racionalismo clássico (entre 1659 e 1680 mais ou menos), surgem as “obras clássicas”
da Literatura Infantil, hoje espalhadas por todo o mundo civilizado, e que valorizam
basicamente a fantasia, o imaginário, o maravilhoso... exatamente o contrário da atitude
racionalista preconizada no momento.
2.4 – SÉCULO XVIII: O PRÉ-ROMANTISMO
Se o foco gerador do Renascimento literário foi a Itália; o do equilíbrio clássico,
no século XVII, foi a França; agora, no século XVIII, é na Inglaterra (do mercantilismo
imperialista, da Revolução Agrária e Revolução Industrial) que surge o novo gênero que
desse momento em diante vai superar todos os demais. Trata-se do romance, - a forma
de ficção narrativa que se torna a expressão literária ideal da Sociedade burguesa que
então se consolida.
Entretanto, antes de aparecerem os primeiros modelos do romance moderno (tal
como Richardson o vai criar com Pámela e Clarissa), surgem duas obras de ficção que,
pela originalidade de sua invenção e enraizamento na Vida Real, foram, desde o primeiro
momento, um sucesso absoluto entre os leitores e até hoje correm mundo entre as
demais obras-primas da literatura universal. Referimo-nos ao Robinson Crusoé (1719) de
Daniel Defoe e às Viagens de Gulliver (1726) de Jonathan Swift. Ambas publicadas na
Inglaterra das primeiras décadas do século XVIII, quando se dava a grande
transformação do mundo clássico, aristrocrático (baseado nos privilégios e hierarquias
de sangue, nobreza e poder herdados ou conquistados pela guerra), para o mundo
romântico, burguês (baseado nas relações de interesse criadas pelo individualismo,
dinheiro, trabalho, produção, mercantilismo, industrialização, produção, progresso... que
procuraram substituir as guerras por Tratados , Contratos ou Alianças de Paz, mas...)
Mais uma vez se comprova o mistério ou a arbitrariedade que regem o destino
dos livros: ambos os títulos, originalmente escritos para adultos e alimentados por um
espírito crítico, senão cruel e cético, pelo menos descrente do gênero humano,
transformaram-se, com o tempo e as “adaptações” , em duas das mais importantes
obras da Literatura Infanto-Juvenil de todo o mundo.
2.5 – A INFÂNCIA E O SÉCULO XVIII ( A Pedagogia de Jacques Rosseau)
Para além do que representa como preparação para o advento do Romantismo,
que se aproximava, o século XVIII teve também o mérito de abrir caminho para o
reconhecimento da criança (ou da infância) como um ser com características próprias e
de cuja educação dependeria, no futuro, a personalidade ou o caráter do adulto.
Embora nosso objetivo aqui não seja a análise das tendências pedagógicas da
época, o fato de a criação literária para crianças estar tão intimamente ligada às
diretrizes educacionais leva-nos a registrar o que então ocorria nessa área.
Século que assistiu não só à expansão do Iluminismo, do Racionalismo e das
idéias do Enciclopedismo (Montesquieu, D’Almabert, Voltaire, Diderot...), mas também às
conquistas científicas e tecnológicas que mudavam a feição do mundo conhecido, é
natural que tivesse se empenhado igualmente nos debates sobre a necessidade de uma
nova pedagogia. Mas como é natural, as novas idéias educacionais, até o início do
século XIX, permaneceram limitadas aos estudos e discussões, entre filósofos,
psicólogos, pedagogos e escritores empenhados nas inovações.
Pela extensão da influência que exerceram, destacamos três tendências: a
doutrina empirista do inglês John Locke (1632-1704), - pela qual a origem do
conhecimento é a experiência; o racionalismo cientificista e revolucionário do
Enciclopedismo, - alertando para a importância da preparação técnica para os novos
ofícios que surgiam, gerados pela máquina, que começava a invadir os sistemas de
produção; e finalmente a doutrina naturalista de J. J. Rousseau ( 1712/1778), fundamentada em idéias religiosas e que, prescindindo do pecado original, afirmava a
bondade natural do homem, corrompido pelos males da civilização.
Essas
três
tendências
nascentes
explicam
a
natureza
das
inovações
pedagógicas que marcaram a Escola Nova, a partir do século XIX, articulada por
diferentes discípulos de Rousseau, como Pestalozzi, Herbart, Froebel, Decroly,
Motessori, Claparède, Dewey... Inovações que têm sua pedra-de-toque na experiência
concreta ou no convívio direto dos alunos com o fenômeno a ser conhecido. Daí a
vulgarização (que chega até nosso século) da educação pelas coisas, considerada
superior à educação pelas palavras (típico da pedagogia clássica, essencialmente
retórica).
Das três tendências acima mencionadas, a de Rousseau foi inegavelmente a de
influência mais ampla. O livro-chave de suas idéias reformadoras na educação foi Emílio
ou Da Educação (1726), escrito após longos anos de reflexão e que, apesar de
condenado e queimado pelo Tribunal da Justiça, em Paris (11 de junho de 1762), foi dos
livros de maior repercussão em sua época e períodos posteriores.
Apesar de alguns defeitos de base (como a ênfase dada à educação do corpo e
dos sentidos, em detrimento da educação e da inteligência, que só viria depois de 12
anos), a maior parte de seus princípios ainda são plenamente aceitos: a exigência de
atividades práticas; a observação direta dos objetos de estudo; a adequação do ensino
às faculdades da criança; o ensino ativo; a formação moral pelo exemplo e não pela
punição etc. Entre as noções mais discutíveis de seu método natural, está a proibição
dos livros às crianças, na primeira educação (até os 12 anos). Inclusive, proíbe as
fábulas, como perniciosas à formação moral das crianças. Diz ele, no Livro IV de Emílio:
Ensinamos as fábulas de La Fontaine a todas as
crianças, e não há uma só que as compreenda. E se as
entendessem, seria pior ainda, porque a moral ali está
tão misturada e desproporcionada à sua idade que
levaria mais facilmente ao vício do que à virtude. Direis
que aí está um paradoxo. Seja, mas vejamos se não são
verdades.
Digo que uma criança não compreende as fábulas
que lhe ensinamos, porque qualquer esforço que
façamos para torná-las simples, o ensinamento que
queremos tirar delas, leva a idéias que ela não pode
apanhar, e que a própria forma de poesia, tornando-as
mais fáceis de guardar de memória, torna-as também
mais difíceis de conceber, de sorte que compramos o
divertimento à custa da clareza. (...) Pergunto ainda se é
a crianças de seis anos que será necessário ensinar que
os homens elogiam e mentem para proveito próprio. (...)
Acompanhai crianças que tenham estudado as fábulas e
vereis que, quando as forem aplicar, farão em geral o
contrário daquilo que foi a intenção do autor, e que, em
lugar de se guardarem do defeito que precisa ser
evitado, inclinam-se a apreciar mais o vício com o qual
se tira partido dos outros.
Enumera ainda uma série de fábulas, onde ressalta exatamente o contrário da
moral visada por La Fontaine. (Seria o caso de tentarmos com nossas crianças, hoje,
verificar até que ponto entendem a crítica presente nessas fábulas que continuam sendo
oferecidas como leituras “infantis”.)
Quanto à educação feminina, Rousseau dá voz ao Sistema Patriarcal que
herdamos. Lno Livro V de Emílio, está:
Toda educação das mulheres deve ser relativa aos
homens. Agradá-los, ser-lhes úteis, se fazerem amar e
honrar por eles, educar os jovens, cuidar dos grandes,
aconselhá-los, consolá-los, torna-lhes a vida agradável e
doce: eis os deveres das mulheres em todos os tempos, e
o que devemos ensinar-lhes desde a infância.
Em Sophie, Rousseau cria o modelo de mulher que uma educação natural levaria
a formar o casal feliz, com Émile.
Obviamente, esse princípio de base, assimilado pelo Romantismo e perpetuado
pelos costumes e pela pedagogia até o nosso século, explica a atitude que as meninas
assumem nas estórias e também a imagem que a literatura tradicional (e muita literatura
atual...) oferece às mulheres, como um modelo a ser imitado. Substituir essa imagem por
outra mais condizente com os novos tempo e as novas conquistas está sendo o árduo
trabalho
de
todos
conscientizadas...).
os
espíritos
criadores
de
nossos
dias
(e
das
mulheres
2.6 – SÉCULO XIX: romantismo e realismo (a descoberta da criança)
Período decisivo para a consolidação da Sociedade liberal/burguesa, o século
XIX representa o apogeu da Era Romântica, quando se dá a confluência/amálgama dos
valores herdados da aristocrática Era Clássica e dos novos valores que o Individualismo
romântico/plebeu vinha, lentamente, forjando, desde há muito.
A partir do Romantismo (1ª fase da Era Romântica), vemos que em todas as
nações européias e americanas, com maior ou menor ênfase, cresce rapidamente o
número de autores e de grandes obras que marcam a gênese e evolução da Literatura,
das Idéias e dos Valores que, hoje, conhecemos como Tradição.
Conhecido literariamente como o século de ouro do romance e da novela, o XIX é
marcado pela convergência de diferentes tendências e correntes literárias, que mesclam
o culto e o popular. É dessa mescla que surge a forma romance, - o gênero narrativo que
se queria um espelho da sociedade e que se torna a forma mais importante de
entretenimento para o grande público da época (e que nosso século herdaria, para logo
em seguida tentar destruir ou transformar).
Toda uma evolução mental, econômica e social, atuando desde a base, alterava o
conhecimento-de-mundo, no plano de Idéias; transformava a Vida no plano do cotidiano
ou da práxis e, evidentemente, criava uma nova representação-de-mundo, no plano da
Literatura (ou das Artes em geral).
Dentro desse processo renovador, a criança é descoberta como um ser que
precisava de cuidados específicos para sua formação humanística, cívica, espiritual,
ética e intelectual. E os novos conceitos de Vida, Educação e Cultura abrem caminho
para os novos e ainda tateantes procedimentos na área pedagógica e na literária. Podese dizer que é nesse momento que a criança entra como um valor a ser levado em
consideração no processo social e no contexto humano.
Mas, como é natural em todo fenômeno de transformação cultural, essa
descoberta da infância não se fez de chofre. A criança começa por ser encarada como
um adulto em miniatura, cujo período infantil deveria ser encurtado o mais depressa
possível para que ela pudesse superá-lo e alcançar o estado adulto, ideal. A descoberta
da qualidade específica do ser criança ou do ser adolescente (como estados biológicos
e psicológicos e valiosos, no desenvolvimento do ser) será feita em nosso século XX. O
idealismo romântico, entretanto, criou o mito da infância (como o da idade de ouro do
ser humano) e o da adolescência (como o da pureza e sensibilidade instintivas, que o
mundo adulto corromperia ou decepcionaria).
Nos rastros dessa descoberta da criança, surge também a preocupação com a
literatura que lhe servia para a leitura, isto é, para sua informação sobre os mais
diferentes conhecimentos e para a formação de sua mente e personalidade (segundo os
objetivos pedagógicos do momento).
2.7 – O BRASIL DE ENTRE-SÉCULOS: do Final do Império de D. Pedro II às Vésperas do
Modernismo (1861/1919)
Foi durante a primeira metade do século XIX que o Brasil iniciou sua caminhada
para o progresso econômico, independência política e conquista da cultura que o
colocaria entre as nações civilizadas do Ocidente. Caminhada aberta pela mudança da
corte portuguesa para cá, em 1808, e pelas medidas oficiais tomadas imediatamente por
D. João VI, no sentido de preparar a colônia brasileira para ser a nova sede do reino de
Portugal. Praticamente tudo estava por fazer e tudo foi sendo feito em tempo realmente
curto; acelerando-se mais, a partir de 1822, quando o Príncipe Dom Pedro, reagindo às
decisões da nova Constituição Portuguesa (que pretendia fazer o Brasil voltar à antiga
situação de colônia), proclama a Independência e se torna o Imperador do Brasil, com o
título de D. Pedro I.
No setor o Ensino, como nos demais setores, a carência era total. O Brasil
enfrentava ainda as conseqüências da supressão do ensino jesuíta, sem que outro
sistema viesse substituí-lo, apesar de algumas tentativas isoladas, em diferentes pontos
do país. Entre as primeiras medidas oficiais, tomadas por D. João VI, estava a criação de
Academias, Cursos, Escolas etc., visando atender, com urgência, à formação de
profissionais competentes em todos os setores da Sociedade. Mas, evidentemente, na
prática os resultados não podiam ser muito auspiciosos. Estudo e Cultura são
aquisições que demandam tempo.
Sabe-se, porém, que a educação era dos problemas que mais preocupavam os
mentores de nosso desenvolvimento. Tão logo foi fundado o Império do Brasil, tem
início uma fase de debates, projetos, reformas do ensino primário, secundário e
superior, tendo por objetivo a estruturação de uma educação nacional, orientada pelas
diretrizes “iluministas”. Desde a Carta Constitucional de 11 de dezembro de 1823 (que
declara dever do Estado “a instrução primária a todos os cidadãos e que em colégios e
em universidades se ensinassem as ciências, as belas-letras e as artes”), até a última
“Fala do Trono”, em 3 de maio de 1889 (na qual D. Pedro II solicitou a “criação de um
ministério de instrução, destinado aos negócios, a criação de escolas técnicas
adaptadas às condições e conveniências locais, duas Universidades” etc.), muitos
projetos puderam ser concretizados, mas grande parte frustrou-se.
Foi no entre-séculos (quando as grandes transformações da sociedade brasileira
se processavam) que o sistema escolar nacional passa por reformas de real alcance e
incorpora em sua areal também a produção literária para crianças e jovens.
Simultaneamente ao aumento de traduções e adaptações de livros literários para
o público infanto-juvenil, começa a se firmar, no Brasil, a consciência de que uma
literatura própria, que valorizasse o nacional, se fazia urgente para a criança e para a
juventude brasileiras. (Tal como vinha sendo feito na área da literatura “adulta” e nos
demais setores do pensamento culto.)
Essa experiência literária vai-se dar, inicialmente, no âmbito do ensino escolar. A
época era de transformações aceleradas. Emergia uma nova classe, - a classe média,
que se auto-afirma, principalmente através das profissões liberais. Um novo valor
começa a ser dado à inteligência, ao Saber.
Analisadas em conjunto, as obras pioneiras (sejam adaptações, traduções ou
originais) revelam facilmente a natureza da formação ou educação recebida pelos
brasileiros desde meados do século XIX. Uma educação orientada para a consolidação
dos valores do Sistema Herdado (= mescla de feudalismo, aristocratismo, escravagismo,
liberalismo e positivismo). Os pilares desse sistema educativo seriam:
1 – Nacionalismo: preocupação com a língua portuguesa falada no Brasil; preocupação
de incentivar nos novos entusiasmo e dedicação pela pátria; o culto das origens e o
amor pela terra (com ênfase na vida rural e, conseqüentemente, idealização da vida do
campo, em oposição à vida urbana).
2 – Intelectualismo: valorização do estudo e do livro, como meios essenciais de
realização social – meios que permitiriam a ascensão econômica através do Saber.
3 – Tradicionalismo cultural: valorização dos grandes autores e das grandes obras
literárias do passado, como modelos da cultura a ser assimilada e imitada.
4 – Moralismo e religiosidade: exigência absoluta de retidão de caráter, honestidade,
solidariedade, fraternidade, pureza de corpo e alma, dentro dos preceitos cristão.
São esses valores que encontramos na obra dos precursores e que, em certa
medida, persistem latentes na criação literária posterior.
2.8 – BRASIL – SÉCULO XX
2.8.1 – Monteiro Lobato, um Marco
A Monteiro Lobato coube a fortuna de ser, na área da Literatura Infantil e Juvenil,
o divisor de águas que separa o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. Fazendo a herança
do passado imergir no presente, Lobato encontrou o caminho criador que a Literatura
Infantil estava necessitando. Rompe, pela raiz, com as convenções estereotipadas e abre
as portas para as novas idéias e formas que o nosso século exigia.
Entretanto, essa criação não se fez de chofre. Foi resultado de um longo
processo de maturação. Quando A Menina do Narizinho Arrebitado foi publicado, em
1920, Monteiro Lobato estava com 38 anos de idade. Desde adolescente começara a lidar
com as letras, escrevendo crônicas e artigos para a imprensa do interior e da capital
paulista. Leitor voraz, preocupava-se igualmente com a renovação da Literatura
Brasileira, no sentido de seu encontro com o autêntico da realidade brasílica e com a
linguagem brasileira, liberta do magistério lusitano. Nos contos naturalistas de Urupês,
com que Lobato estréia literariamente, está patente essa busca do nacional, tanto na
linguagem quanto na matéria que lhe serve de tema.
2.8.2 - Criatividade e Literatura Infantil nos anos 70/80
A explosão de criatividade que, na década de 60, se dá na área da Música
Popular Brasileira, em meados dos anos 70 vai-se dar com a Literatura Infantil/Juvenil (e
também com o Teatro Infantil). Esse valor repercute além-fronteiras. Foram inúmeras as
distinções concedidas no Exterior a essa nossa produção (seja através de prêmios ou
de traduções). E em 1983, o Prêmio Internacional Hans Christian Andersen (espécie de
Nobel da Literatura Infantil) foi concedido ao Brasil, pelo conjunto da obra de Lygia
Bojunga Nunes.
Entre os nomes que vêm dos anos 50-60 e prosseguem produzindo uma obra
“sintonizada” com as novas forças, lembramos: Antonieta Dias de Moraes, Camila C.
César, Lúcia Amaral, Lúcia Machado de Almeida, Maria Dinorah, Maria Heloisa Penteado,
Odette de Barros Mott, Orígenes Lessa, Stella Carr e Stella Leonardos.
A par de inúmeros “continuadores” que seguem nas trilhas batidas, surgiram
dezenas de escritores e escritoras, obedecendo a uma nova palavra de ordem:
experimentalismo com a linguagem, com a estruturação narrativa e com o visualismo do
texto;
substituição
da
literatura
confiante/segura
por
uma
literatura
inquieta/questionadora, que põe em causa as relações convencionais existentes entre a
criança e o mundo em que ela vive, questionando também os valores sobre os quais
nossa Sociedade está assentada.
As novas forças estimulam os criadores a preparar as novas gerações para a
estruturação/construção de um novo mundo; e não para a consolidação de um Sistema
já estruturado em suas bases (como aconteceu no século XIX, ao difundir através da
Literatura Infantil/Juvenil os valores do Romantismo/Realismo...).
Entre os muitos que, entre nós, tiveram sua criatividade e consciência crítica
comprovadas por uma produção inovadora, registramos:
Nos anos 70: Ana Maria Machado, André Carvalho, Ary Quintella, Bartolomeu
Campos Queirós, Carlos Marigny, Dirceu Quintanilha, Domingos Pellegrini, Edson
Gabriel Garcia, Edy Lima, Euclides Marques de Andrade, Everaldo Moreira Veras, Eliane
Ganem, Elias José, Fernanda Lopes de Almeida, Ganymedes José, Giselda Laporta
Nicolelis, Henry Correa de Araújo, Haroldo Bruno, Ignácio de Loyola Brandão, Joel
Rufino dos Santos, João Carlos Marinho, Leny Werneck, Lurdes Gonçalves, Lúcia P.
Sampaio Góes, Lúcia Aizim, Luiz Paiva de Castro, Lúcia Minners, Lygia Bojunga Nunes,
Margarida Ottoni, Marta Azevedo Pannunzio, Moacir C. Lopes, Rachel de Queiroz, Ruth
Rocha, Sérgio Caparelli, Teresa Noronha, Vivina de Assis Viana, Ziraldo, Wander Piroli,
Werner Zotz...
Nos anos 80: Alina Perlman, Amaury Braga da Silva, Anna Flora, Assis Brasil,
Antônio Hohlfeldt, Carlos Moraes, Ciça Fittipaldi, Elza Cezar Sallut, Flávia Muniz, Josué
Guimarães, Jandira Mansu, Jorge Miguel Marinho, Libério Neves, Lourenço Diaféria, Lino
Albergaria, Luiz Galdino, Luís Puntel, Luís Camargo, Márcia Kupstas, Marina Colasanti,
Mirna Pinsky, Paula Saldanha, Pedro Bandeira, Ricardo Azevedo, Ricardo da Cunha
Lima, Santuza Abras P. Coelho, Roniwalter Jatobá, Tatiana Belinky, Telma Guimarães,
Terezinha Alvarenga...
2.8.3 - A Ilustração
Destaque-se
nessa
senda
inovadora
a
excelente
produção
dos
novos
ilustradores empenhados em criar, através da imagem, uma linguagem narrativa
autônoma. Destacamos: Ângela Lago, Ana Raquel, Alice Góes, Ciça Fittipaldi, Eliardo e
Mary França, Gê Orthof, Gian Calvi, Gerson Conforto, Helena Alexandrino, Luís
Camargo, Naomi Koruba, Patrícia Gwinner, Tato Orthof, Tenê, Ziraldo...
2.8.4 - A Poesia
Área essencialmente importante da criação literária para crianças e jovens, a
Poesia vem ganhando cada vez mais espaço em nosso mercado editorial e, o que é mais
importante, na preferência dos pequenos leitores. Entre os nomes mais significativos de
poetas estão: Antônio Barreto, Bartolomeu C. Queirós, Carlos Nejar, Elza Beatriz, Elias
José, Guiomar, José Paulo Paes, Marina Colasanti, Marcus Accioly, Mário Quintana,
Pedro Bandeira, Renata Pallottini, Roseana Murray, Sinval Medina, Sylvia Orthof.
Em todos esses setores de criação literária e também na área didática (onde a
literatura deve circular, pois é onde poderá abranger o maior público...), a palavra de
ordem, hoje, é a criatividade. Há todo um mundo para ser transformado, e os novos
precisam ser preparados para essa tarefa.
2.8.5 - As Tendências da Literatura Infantil Atual
Analisando a natureza dessa literatura mais recente, conclui-se que hoje não há
um ideal absoluto de Literatura Infantil (nem de nenhuma outra espécie literária). Será
“ideal” aquela que corresponder a uma necessidade profunda do tipo de leitor a que ela
se destina, em consonância com a época que ele está vivendo... Vista em conjunto, a
atual produção de Literatura destinada a crianças e jovens, entre nós, apresenta três
tendências mais evidentes: a realista, a fantasista e a híbrida. O eu talvez seja novo em
qualquer delas é a busca de sua identidade cultural, em que o Brasil contemporâneo
está empenhado.
1 – A Literatura Realista pretende expressar o Real, tal qual é percebido ou conhecido
pelo senso comum, e visa um (ou mais) dos objetivos seguintes:
1.1 – Testemunhar o mundo cotidiano, concreto, familiar e atual, que o jovem
leitor pode reconhecer prontamente, pois é nele que vive. (São livros que
registram a vida infantil ou juvenil, no cotidiano, com as travessuras ou os vários
problemas gerados pela necessidade de adaptação da criança ou do jovem ao
mundo adulto. Entra nessa linha a literatura “participante” de intenções
políticas.)
1.2 – Informar sobre costumes, hábitos ou tradições populares da diferentes
regiões do Brasil. (Livros que se destinam principalmente aos jovens leitores dos
grandes urbanos, no sentido de conscientizá-los para que o que é realmente o
Brasil em seu todo, e quais são seus problemas humanos e sociais mais
agudos.)
1.3 – Apelar para a curiosidade e a argúcia do leitor, explorando enigmas ou
aparentes mistérios de certos acontecimentos que rompem a rotina cotidiana
(como nos romances policiais).
1.4 – Preparar psicologicamente os pequenos leitores para enfrentarem sem
ilusões, mais tarde ou mais cedo, as dores e sofrimentos da vida. (São livros que
escolhem como problemática temas de sempre, - como a morte; ou tema mais
recentes e não menos dolorosos, - como a separação dos casais e o problema
dos filhos divididos; o problema dos tóxicos; as injustiças sociais; o racismo; as
crianças abandonadas; a marginalização da mulher; etc. É via de regra, uma
literatura pessimista que se fecha para a vida plena. Claro sinal destes tempos de
violência e desequilíbrios, invadindo todos os recantos da vida humana...
2 - A Literatura Fantasista apresenta o mundo maravilhoso, criado pela Imaginação, e
que existe fora dos limites do Real e do Senso Comum.
Nesse universo literário, prevalece o lúdico ou o jogo sobre as demais
experiência reais. As soluções estilísticas escolhidas pelos escritores têm sido as mais
diversas: a que opta por personagens-animais (dando continuidade aos princípios da
fábula...); a que se utiliza das descobertas da ciência para criar seus enredos (como a
ficção científica); a que transcorre no âmbito do maravilhoso do “Era uma vez...” (onde o
espaço e o tempo normais não existem e onde o inverossímil torna-se verossímil); a que
utiliza a Imaginação como símbolo ou intuição de Metafísico; etc.
Os que optam pela forma fantasita dão prioridade à ficção sobre o real. Sentemse mais atraídos pelo desconhecido do que pelo já conhecido; dão mais valor ao que
podia ser ou acontecer do que àquilo que é ou que acontece realmente. Sentem-se
compelidos, sem dúvida, a revelar o Trans-Real, o extraordinário ou o inexplicável pela
lógica comum; ou ainda o insuspeitado que está ou pode estar oculto por detrás da
aparência íntegra e comum do Real, vulgarmente conhecido.
3 – A Literatura Híbrida parte do Real e nele introduz o Imaginário ou a Fantasia,
anulando os limites entre um e outro. É, talvez, a mais fecunda das diretrizes inovadoras.
Os universos por ela criados se inserem na linha do Realismo Mágico, tão em voga na
Literatura Contemporânea. Comumente, seu espaço básico é o próprio cotidiano, bem
familiar às crianças, onde de repente entra, de maneira natural, o estranho, o mágico, o
insólito... É a linha inaugurada entre nós por Monteiro Lobato e que os novos escritores
enriqueceram com descobertas inesperadas.
Nessa linha inscreve-se uma corrente nova, bastante importante: a que
redescobre as nossas origens brasílicas ou a essencialidade e a magia da literatura
mítica ou folclórica, filtrada por uma visão culta e criadora.
3 – A CONFORMIDADE TEXTUAL -Adaptação e trivialização
Além
das
adaptações
diretas
de
textos
clássicos
estrangeiros
que
tradicionalmente agradam ao público infanto-juvenil brasileiro, outras existem que,
indiretamente, apropriam-se deles e repetem, de maneira trivializada, aspectos temáticos
e recursos retóricos numa aproximação apenas tangencial e quase acidental das
matrizes literárias.
É o que sugerem os textos analisados, quando contrapostos a obras como
Robisnon Crusoé (Daniel Defoe, 1719) e Dom Quixote de La Mancha (Miguel de
Cervantes, 1605-1615), por exemplo. E talvez seja também no diálogo intertextual que se
possam buscar outras fontes para iluminar as sensíveis limitações de literatura trivial
infanto-juvenil em seu “funcionamento conforme” sem nos esquecer de que “as
distorções constitutivas da literariedade de um texto continuam perceptíveis mesmo que
os sistemas normativos tenham mudado.”
Apesar de citarmos apenas dois clássicos, é possível encontrar muitos outros,
todos eles importantes instrumentos para o desenvolvimento deste trabalho, com sua
dupla função. Odisséia, Os Lusíadas, El Cid, dentre outros são perfeitamente aplicáveis
a nossa proposta, desde que previamente planejada e elaborada. As salas de leitura,
juntamente com as salas de aulas são o campo ideal para este desenvolvimento.
4 – ESTRATÉGIAS PARA APLICAÇÃO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL
4.1 - O SIMBOLISMO LINGUÍSTICO2
Primeira Noção de Signo
Para que uma língua cumpra os seus fins, é necessário que os membros de uma
comunidade, que compartilham as mesmas experiências coletivas, se coloquem
previamente de acordo quanto ao sentido que vão atribuir às partes da corrente sonora
que emitem e ouvem. Em outras palavras, é preciso que concordem em atribuir a
determinados conjuntos fônicos, produzidos em certas situações, o poder de traduzir
um determinado elemento da sua experiência histórica. Esse contrato social funda o
convencionalismo do signo.
Generalizando o alcance de suas experiências, os falantes de cada língua
associam, assim, de modo arbitrário, por uma relação puramente simbólica, um
conteúdo (= sentido) e uma expressão. A condição de inteligibilidade para a
comunicação lingüística é dada pela correspondência de escolhas efetuadas no plano
da expressão a outras escolhas efetuadas no plano do conteúdo. Ao falar ou ouvir a
palavra “casa” /’kaza/, por exemplo, compreendemos que essa seqüência de sons,
diferente de qualquer outra seqüência, refere-se a um significado “espaço construído
2
Por simbolização entenderemos, com Benveniste (1966a. 26a), “a faculdade de representar o real por
um “signo” e de compreender o “signo” como representante do real, de estabelecer, portanto, uma relação
de “significação” entre alguma coisa e alguma outra coisa. (...) A faculdade simbolizante permite, com
efeito, a formação do conceito como algo distinto do objeto concreto.”
pelo homem para lhe servir de habitação” diferente de qualquer outro significado. Se
isso ocorrer, o conjunto de sons /’kaza/ transforma-se em signo lingüístico.
O signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma
imagem acústica3. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão
(empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de
nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegarmos a chamá-la “material”, é
somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito,
geralmente mas abstrato.
O caráter psíquico de nossas imagens acústicas aparece claramente quando
observamos nossa própria linguagem. Sem movermos os lábios nem a língua, podemos
falar conosco ou recitar mentalmente um poema. E porque as palavras da língua são
para nós imagens acústicas, cumpre evitar falar dos “fonemas” de que se compõem.
Esse termo, que implica uma idéia de ação vocal, não pode convir senão à palavra
falada, à realização da imagem interior no discurso. Com falar de sons e de sílabas de
uma palavra, evita-se o mal-entendido, desde que nos recordemos tratar-se de imagem
acústica.
O signo lingüístico é, pois, uma entidade psíquica de duas faces, que pode ser
representada pela figura:
CONCEITO
____________________
IMAGEM ACÚSTICA
Esses dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro. Quer
busquemos o sentido da palavra latina “arbor”, ou a palavra com que o latim designa o
conceito “árvore”, está claro que somente as vinculações consagradas pela língua nos
parecem conformes à realidade, e abandonamos toda e qualquer outra se possa
imaginar.
3
“ÁRVORE”
____________________
____________________
ARBOR
ARBOR
O termo de imagem acústica parecerá, talvez muito estreito, pois, ao lado da representação dos sons de
uma palavra, existe também a de sua articulação, a imagem muscular do ato fonatório. Para F. de
Saussure, porém, a língua é essencialmente um depósito, uma coisa recebida de fora. A imagem acústica
é, por excelência, a representação natural da palavra enquanto fato de língua virtual, fora de toda
realização pela fala. O aspecto motor pode, então, ficar subentendido ou, em todo caso, não ocupar mais
que um lugar subordinado em relação à imagem acústica.
Esta definição suscita uma importante questão de terminologia. Chamamos
signo a combinação do conceito e da imagem acústica: mas, no uso corrente, esse
termo designa geralmente a imagem acústica apenas, por exemplo uma palavra (arbor
etc.). Esquece-se que se chamamos a arbor signo, é somente porque exprime o conceito
“árvore”, de tal maneira que a idéia da parte sensorial implica a do total.
A ambigüidade desapareceria se designássemos as três noções aqui presentes
por nomes que se relacionem entre si, ao mesmo tempo que se opõem. Propomo-nos a
conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica
respectivamente por significado e significante; estes dois temos têm a vantagem de
assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total de que fazem parte.
Quanto a signo, se nos contentarmos com ele, é porque não sabemos por que substituílo, visto não nos sugerir a língua usual nenhum outro.
Signos Não-Linguísticos: O Símbolo
Os Símbolos são objetos materiais que representam noções abstratas: um
pedaço de fazenda preta para significar o luto, uma cruz para significar o Cristianismo,
são símbolos.
A representação do símbolo é sempre deficiente ou inadequada parcialmente em
relação ao conjunto das noções simbolizadas, porque o símbolo é uma parte do todo
que é o conteúdo abstrato com o qual se relaciona. Assim, o conceito de justiça é muito
mais amplo do que o conteúdo abrangido pela balança, que recorda apenas um dos
atributos da justiça, a igualdade; e o conjunto de noções ligadas ao Cristianismo
desborda, de muito, o primeiro significado da cruz, que recorda, apenas, o momento
supremo dessa doutrina religiosa.
Desse modo, a relação entre o símbolo e o conteúdo simbolizado é pelo menos
parcialmente motivada: a figura de uma caveira com duas tíbias cruzadas para
representar a morte, o desenho de um coração traspassado por uma flecha para
simbolizar o amor etc., mostram que há, entre símbolo e conteúdo simbolizado, uma
série de traços comuns.
São características do símbolo:
(a) a polissemia4: a cor branca representa a luz, a paz, a inocência, enquanto que a
cor negra simboliza as trevas, a morte, a dor, a ignorância etc.;
(b) a sinonímia: o sentido paz pode ser simbolizado por uma pomba branca, por um
ramo de oliveira, pela figura da mulher etc; também a figura de Eros, um coração
4
Essa polissemia repousa na variabilidade dos contextos de ocorrência do símbolo: assim, a figura de
uma mulher pode representar, conforme o contexto, a vida, a fecundidade, a paz etc.
traspassado por uma flecha, uma rosa vermelha, simbolizam, todos, um único
sentido, o amor.
Sinais Não-Sígnicos: O Ícone ou Imagem
A noção de Ícone foi introduzida na Semiologia por Peirce e, posteriormente, por
Morris. Quando vemos uma fotografia de nosso amigo João, reconhecemos nela uma
representação de João; um mapa de nossa cidade representa a nossa cidade. Há, em
tais casos, uma certa similitude visual entre o significante e o significado.
As fotografias, cópias, impressões digitais etc., possuem a particularidade de
incluir uma relação necessária entre a parte que expressa, formalmente, o conteúdo (=
significante) e o conteúdo expressado (= significado). Por esse lado, os ícones se
aproximam bastante da natureza dos índices (motivação necessária. Ex: uma nuvem
carregada indicando chuva), mas não confundem com estes porque a fonte produtora
dos ícones é a mente humana, ao passo que, no caso dos índices, a fonte produtora do
sinal é um elemento da natureza, uma força não-cultural. Por outro lado, sendo
necessária a relação entre o significante e o significado do ícone, não se dá, nele,
nenhum tipo de semiose, pois inexiste aí a convenção, produto da intencionalidade
comunicativa dos homens. Essas são as razões pelas quais consideram-se que os
ícones não são signos, são pura e simplesmente imagens.
Como quer que seja, as línguas naturais possuem, pelo menos um estrato de
elementos icônicos, representados pelas onomatopéias. Nas onomatopéias, os
significantes imitam o significado: tique-taque são sons que significam sons produzidos
pelo relógio. Mas é necessário reconhecer, aqui, para lá do fato de que as línguas podem
valer-se de imagens, que, no caso das onomatopéias, existe uma relação pelo menos
parcialmente arbitrária (não necessária), entre o significante e o significado. Por isso a
representação do seu sentido é sempre cultural, convencional: em português, por
exemplo, parece-nos que um corpo ao bater na água, faz tchibum!, mas para os falantes
do inglês esse mesmo sentido é dado por splash!
O esquema abaixo representa esquematicamente o simbolismo lingüístico:
Imagens
(ícones)
Naturais
(índices)
SIGNOS
Artificiais
Lingüísticos
(signos verbais)
Não-linguísticos
Símbolos
Outros signos
(apitos,
tabuletas,
fórmulas etc)
4.2 - A TRANSIÇÃO ENTRE A ESCRITA ICÔNICA E A SIMBÓLICA
Luria procura investigar como se dá a transição entre a fase pictórica e a fase
simbólica abstrata e descobre que isso se dá pela necessidade funcional de a criança
representar palavras e sentenças que não se sujeitam a uma representação pictográfica.
Nesse momento a criança aprende que pode representar simbolicamente, e na
iconicamente, qualquer coisa. Ela apenas ainda não sabe como isto pode ser feito.
Podemos relacionar essa interpretação de Luria à de Ferreiro e Teberosky (1979),
Ferreiro (1990a, 1991a) sobre o primeiro nível de aquisição da escrita, em que tendo
realizado a distinção entre o modo icônico e o não-icônico de representação, a criança
constrói a hipótese do nome, um princípio organizacional que a ajuda a resolver o
problema do relacionamento entre desenho e escrita. Mediante a hipótese do nome a
criança passa a conceber as letras como objetos substitutos – série de letras ordenadas
que constituem totalidades – (e não elementos que servem para constituir totalidades).
Essas totalidades constituídas é que vão representar propriedades dos objetos que o
desenho é incapaz de representar: seu nome.
Investigando essa transição da fase pictórica para a simbólica, Luria encontra
diferentes comportamentos entre seus sujeitos. Um deles, de seis anos, representa as
sentenças com um único símbolo, havendo repetição do mesmo símbolo para várias
sentenças. Os símbolos usados são letras do alfabeto. Outra criança, de nove anos, usa
a mesma letra para todas as sentenças. Um terceiro sujeito usa também apenas uma
letra para cada sentença, mas a letra correspondente à letra inicial da sentença. Já uma
outra criança, de oito anos e meio, representa cada sentença com cruzes, que parecem
representar palavras ou constituintes da sentença. Podemos dizer que três dos sujeitos
de Luria apresentam o tipo da escrita unigráfica da correspondência entre escrita e som,
embora não apresente variedade de quantidade. O quarto sujeito já parece usar uma
escrita com controle de quantidade.
Segundo Temple et al. (1982), discriminar e produzir escrita são duas
capacidades independentes, prestando-se, portanto, a trabalhos empíricos distintos.
Assumindo essa independência, Lavine conduz um experimento para verificar o que a
criança na idade pré-escolar identifica como escrita. Seus sujeitos rejeitaram os
seguintes estímulos como objetos de leitura: a) desenho, b) manifestação gráfica que
não apresentava linearidade, c) manifestação gráfica que não mostrava variedade de
repertórios, d) manifestação gráfica que não apresentava multiplicidade de elementos.
Um grande número de pesquisas, endereçadas a diferentes perguntas, com
metodologias e teorias diversas, têm surgido nas últimas duas décadas. Essas
pesquisas abrangem desde os aspectos mecânicos da escrita até a composição de
textos. Alguns pesquisadores da escrita emergente têm focalizado os aspectos externos
da escrita ao convencional em histórias ou composições. Outros têm estudado as
conceitualizações subjacentes às formas externas das produções infantis. Entre esses
últimos, destacam-se Clay (1975) e Ferreiro (1982, 1986).
Para Clay (1975), a aceitação pela criança de algo, como escrita, é regida pelos
seguintes princípios: a) o princípio da não-pictorialidade, b) o princípio da linearidade
(as grafias devem estar horizontalmente dispostas), c) o princípio da variedade (a escrita
deve consistir de diferentes tipos de grafias) e d) o princípio da multiplicidade (a escrita
deve consistir de mais de um elementos).
Embora o trabalho de Clay não tenha objetivado ser um relatório de pesquisa,
suas inferências sobre a compreensão das crianças e sobre suas formas de escrita –
rabiscos, desenhos, seqüências de letras -
impulsionaram inúmeras pesquisas
posteriores.
As investigações de Ferreiro, bem divulgadas no Brasil, concentram-se na
psicogênese dos sistemas de interpretação construídos pela criança para compreender
a representação alfabética da escrita. Os principais objetivos de suas pesquisas têm-se
voltado à compreensão da evolução dos sistemas de idéias que a criança constrói sobre
a natureza do objeto social que é o sistema de escrita. Com esse intuito tem estudado o
desempenho das crianças em atividades de produção e interpretação com vistas à
construção de uma teoria sobre sua competência cognitiva, numa abordagem
construtivista de sua evolução.
Para analisar as produções escritas infantis, Ferreiro não se limita às marcas
escritas produzidas, mas inclui as intenções da criança, seus comentários, suas
modificações introduzidas durante a escrita e suas interpretações. Em um de seus
artigos (1990a), ela sumaria em três os cincos níveis desenvolvimentalmente ordenados
das conceitualizações infantis, já apresentado em 1979, em seu trabalho com Teberosky:
Nível 1: Duas aquisições marcam esse primeiro nível: 1) distinguir entre o modo
icônico e o não-icônico de representação gráfica e 2) considerar seqüências de letras
como objetos substitutos. Buscando critérios para distinguir desenho de escrita, a
criança descobre que a diferença situa-se na organização das linhas: no desenho, as
linhas se organizam para seguir o contorno do objeto; na escrita, a organização das
linhas não se relaciona com a organização das partes do objeto: as formas gráficas são
lineares e arbitrárias. Além disso, a escrita passa a ser considerada como um sistema de
representação, ou seja, as letras passam a substituir algo.
Realizada a distinção entre formas icônicas e não-icônicas, a criança vai precisar
descobrir o modo como o desenho e escrita se relacionam, uma vez que o
relacionamento entre o desenho e texto está presente não só em livros como também na
escrita ambiental. Esse novo problema é resolvido mediante o seguinte princípio
organizacional: as letras são usadas para representar uma propriedade dos objetos do
mundo que o desenho é incapaz de representar seus nomes. Uma vez que as letras
representam os nomes dos objetos é necessário examinar de que modo elas se
organizam para representá-los adequadamente. Assim começam a procurar condições
para que uma forma escrita seja interpretável.
A partir de então os problemas com que se depara organizam-se em duas
dimensões – quantitativa e qualitativa. A consideração pela quantidade vai dar lugar à
construção de um princípio interno, denominado por Ferreiro de “princípio da
quantidade mínima”, segundo o qual para se ter uma palavra escrita uma letra não é
suficiente; seriam necessárias no mínimo duas ou três e, no máximo, seis ou sete.
Entretanto, além da dimensão quantitativa é necessário à criança também
considerar a qualitativa, que consiste na exigência de letras diferentes para uma forma
escrita. Com esses dois princípios organizacionais, regulando a construção de seu
conhecimento, a criança já pode decidir se uma seqüência de letras constitui ou não
uma representação escrita de uma palavra. Embora não seja ainda capaz de descobrir,
em seqüências de letras, como se representam as diferenças no significado.
Nível 2: Uma das principais conquistas deste nível é o controle progressivo das
variações quantitativas e qualitativas o que vai levar a modos de diferenciação entre
formas escritas. A criança começa a procurar, nessas formas, diferenças objetivas que
justifiquem diferentes interpretações. Trabalhando com o símbolo lingüístico como uma
totalidade (som e significado como uma entidade única), tenta descobrir as razões para
as variações na quantidade de letras.
Buscando o significado e/ou referente do nome que quer escrever às vezes
relaciona a variação na quantidade de letras a variações de aspectos quantificáveis do
objeto referido; outras vezes, utiliza a variação qualitativa, ou ainda, as duas dimensões
simultaneamente,
o
que
implica
um
grande
esforço
de
coordenação.
Essas
diferenciações, contudo não se dão em formas isoladas: a diferenciação de uma
determinada forma escrita é determinada pelo contexto das outras formas escritas. Os
princípios da quantidade mínima e da variação qualitativa interna continuam a regular a
construção de uma representação escrita, mas agora em comparações inter-relacionais,
que surge em substituição ao sistema anterior de variação intra-relacional.
Todos esses esforços empreendidos pela criança para criar diferenciações
gráficas a fim de representar diferentes palavras precedem qualquer conhecimento do
relacionamento entre o padrão sonoro da palavra e a sua representação escrita.
Nível 3: Este nível, cujo acesso é preparado através da informação que a criança
recebe do ambiente e, sobretudo, através da informação de seu próprio nome,
corresponde à fonetização da representação escrita. As crianças falantes do espanhol
constroem três hipóteses diferenciadas durante este período: silábica, silábicaalfabética e alfabética.
A primeira hipótese, também documentada no português representa uma
importante conquista porque permite à criança encontrar uma solução satisfatória para
os problemas defrontados no nível anterior. Durante o subnível silábico, a criança
começa a procurar letras similares para representar sons similares escrita alfabéticos
tem que focalizar o padrão sonoro da palavra. Do ponto de vista cognitivo, para Ferreiro,
a hipótese silábica representa a primeira tentativa de lidar com o relacionamento entre o
todo (uma seqüência escrita) e as partes (letras). As partes ordenadas da palavra falada
– suas sílabas – são postas em correspondência um-a-um com as partes ordenadas da
palavra escrita – suas letras.
Entretanto essa hipótese silábica vai ser continuamente invalidada pela escrita
ambiental e pelas produções de adultos, o que vai levar a criança a tentar uma nova
hipótese – a silábico-alfabética, uma solução instável que ai dar lugar a um novo
processo construtivo – a hipótese alfabética.
Outros pesquisadores, em vários países têm colaborado com Ferreiro,
utilizando-se de suas técnicas de investigação, basicamente a entrevista clínica
Piagetiana, elaborando suas idéias e introduzindo-as na prática pedagógica.
No Brasil, alguns pesquisadores estudaram o fenômeno da emergência do
letramento. Citaremos aqui três estudos empíricos: a) o de Moreira (1987), que procura
investigar as concepções da criança pré-escolar quanto a funções da escrita, mais
especificamente a relação entre portador de texto e sua função; b) o de Contini Jr.
(1985), cujo objetivo foi determinar como crianças pré-escolares concebem o nosso
sistema de escrita; c) o de Rego (1982), que acompanha, em um estudo longitudinal, a
construção e a descoberta da língua escrita por uma criança através de processos de
socialização que promovem essa aprendizagem. Desses três estudos, relataremos o de
Contini Jr. e alguns dos achados de Rego, referentes ao percurso de uma criança na
construção da base alfabética do sistema de escrita, deixando os aspectos funcionais
deste estudo e o de Moreira para o próximo item, relacionados aos processos de
socialização em torno da escrita.
Contini Jr. (1985), pautando-se inicialmente no trabalho de Ferreiro e
colaboradores, objetiva, em sua pesquisa, encontrar os padrões evolutivos da
concepção da escrita pela criança, limitando-se à fase pré-escolar. Seu trabalho parte da
hipótese de que as etapas de evolução não são discretas, podendo os sujeitos
apresentar concepções e padrões de comportamento variável. Sua pesquisa foi
realizada em uma escola de classe média, que apresentava vários níveis de pré:
maternal, jardim, pré I e pré II, distribuídas segundo idades. O pesquisador fez uma
brincadeira de “ditado” de palavras substantivas, levando em conta, na seleção, dois
critérios: familiaridade visual ou familiaridade auditiva.
As categorias da produção infantil foram levantadas a partir de sua pesquisa
piloto e consistiram das seguintes:
a) grafismo primitivo: rabiscos sem nenhuma relação, nem visual nem auditiva,
com a palavra ditada;
b) grafismo primitivo com linearidade, com controle de direção e de quantidade
c) escrita pictográfica;
d) escrita ideográfica ou unigráfica, em que um único símbolo ou letra é usado para
representar a palavra toda, como nos ideogramas chineses;
e) escrita silábica, em que cada grafia representa uma sílaba.
O autor nota ainda que muitas crianças revelam um comportamento nitidamente
silábico com dissílabas, mas algumas apresentam dificuldades de atribuir três grafias a
trissílabos. Na leitura dessas palavras, essas crianças mostraram que segmentaram a
primeira sílaba, lendo o resto como um bloco, o que indica ser a sílaba inicial
perceptualmente mais saliente para a criança. Um dado interessantes nessa pesquisa é
o comportamento da criança na fase pictográfica, ao escrever a palavra trabalho. O
produto da escrita parece mais um desenho abstrato do que um símbolo convencional
próximo da letra. O autor conclui que as escritas muitas vezes se superpõem e acredita
que o tipo de escrita produzido pode ser condicionado pela dificuldade da tarefa como,
por exemplo, a escrita de palavra visual e auditivamente desconhecida como bolita ou
ainda palavras trissilábicas. Contini Jr. verifica ainda que quando a criança está na fase
silábica mais adiantada, ela já começa a evidenciar sua consciência da estrutura
canônica da sílaba em português, ou seja, CV (consoante + vogal).
Rego (1985) analisa dados longitudinais de uma criança, Fabiana, no período
compreendido entre 4 e 7 anos. Sua análise abrange tanto aspectos funcionais,
interacionais de sua aquisição da escrita, como também a natureza da escrita por ela
produzida, em seus aspectos gráficos e textuais. Dentre estes últimos, examina a
emergência da escritura de seu próprio nome, e as suas tentativas de tomá-lo como
referência para a escritura de outros nomes.
Rego verifica que nas primeiras tentativas de Fabiana escrever seu nome, não o
diferencia dos outros, apresentando, contudo, a orientação horizontal. No que Rego
chama de Escrita 2, Fabiana apresenta uma seqüência de letras de imprensa maiúsculas,
a partir da qual ela faz permutas e transformações para construir o nome de outras
pessoas, animais. Na fase da escrita 3, Fabiana brinca de fazer sua soletração silábica
corresponder a seqüências de letras que ela alinha com peças de um abecedário ou com
lápis
e
papel.
Nesta
brincadeira,
ela
suprime
ou
acrescenta
letras
para
à
correspondência, atingindo a fase da escrita silábica, que, segundo a autora, chega
quando a criança supera a fase do realismo nominal, caracterizada pela não distinção
entre significante e significado. O nome próprio estabiliza-se em FABO e, em seguida,
ela evolui para o que Ferreiro e colaboradores chamam de escrita de transição entre o
silábico e alfabético, passando a ser grafado FABINA, recebendo mais letras do que o
número de sílabas. Quando Fabiana aprende em casa a escrever palavras como uva, ovo
e vovó, e lhe é ensinado a isolar v, ela passa a fazer o mesmo com outras consoantes. É
nesse instante que Fabiana passa a receber a educação formal da escola.
Essas tentativas de compreender o significado de cada uma das letras que
compõem o nome próprio e os problemas enfrentados pela criança, ao tentar coordenar
os aspectos quantitativos e qualitativos da escrita, também foram mostrados por
Ferreiro (1986) ao analisar alguns dos aspectos constitutivos da alfabetização de duas
crianças. Teberosky (1989:34), endossando as idéias de Ferreiro (1982) afirma ser o
nome próprio “uma escrita na interpretação estável, que não depende das vicissitudes
do contexto (...) e facilita uma informação sobre a ordem não aleatória dentro do
conjunto de letras”. Por sua estabilidade como modelo, seu valor de verdade, sua
funcionalidade nos intercâmbios sociais e o seu papel facilitador “na passagem de um
símbolo qualquer para um objeto qualquer em direção à atribuição de um símbolo
determinado para indivíduos singulares e concretos”, Teberosky propõe o nome próprio
como ponto de partida para iniciação da leitura.
Em um estudo sobre a emergência da escrita, Landsman (1990), constata em
crianças israelenses, operando com o sistema alfabético hebraico, as mesmas tentativas
de utilização das letras do nome próprio para a produção de diferentes representações
escritas. Cita ela o caso de uma criança que, usando apenas as letras de seu nome, é
capaz de produzir variações entre palavras, introduzindo diferenças objetivas na
ordenação e na quantidade de letras.
4.3 - Consciência Metalingüística
No processo de construção da linguagem escrita, a criança, além de usar a
linguagem para compreender e produzir idéias, aprende a refletir sobre a linguagem
como objeto. A linguagem vai-se tornando alvo de pensamento e manipulação. A
capacidade de refletir sobre a linguagem é conhecida como consciência metalingüística
e se dá em vários níveis: consciência fonêmica (fonológica), consciência da palavra,
consciência da forma, consciência pragmática. Enquanto as duas primeiras se referem à
consciência da subunidades da língua, as últimas referem-se à habilidade de refletir
sobre o significado e a aceitabilidade de unidades maiores da língua (sintagmas,
sentenças, textos).
4.3.1 – Desenho, Palavra e Letra
Góes e Martlew (1983) realizaram um experimento, objetivando verificar a
capacidade metalingüística da criança relativamente aos itens desenho, palavra e letra.
Em lugar de pedir para a criança verbalizar suas reações quanto a diferentes formas
gráficas, elas simplesmente pediram para separar em palavra e outra coisa os cartões
onde estavam grafados os estímulos. A conclusão das autoras é de que a criança
confunde os conceitos de palavra e desenho, de um lado, e de palavra e letra, de outro,
mas nunca os de desenho e letra. As autoras concluem que, embora as crianças usem
esses termos metalingüísticos, sua aplicação é indiferenciada. É importante ressaltar,
contudo, que há uma diferença significativa entre confundir palavra e desenho de um
lado, e palavra e letra de outro. A criança que faz o primeiro tipo de confusão não
distingue significante de significado, enquanto a que faz o segundo tipo de confusão já
separa esses dois componentes do signo.
4.3.2 – Palavra e Nome
Ferreiro e Vernon tentam examinar as conceitualizações de crianças referentes à
distinção palavra e nome. Investigando sujeitos de 4 e 5 anos, encontram que, para um
grande número de sujeitos, a escrita é o “critério distintivo para diferenciar nome de
outras expressões metalingüísticas”. Segundo elas, as crianças, ao se expressarem
sobre o termo palavra, distanciam-se dos conceitos de adultos, restringindo
excessivamente o campo de referências (letras, mas não série de letras) ou ampliando
demasiadamente este campo (situações interlocutivas ou enunciação, fazer uma
promessa); entretanto, demonstram alcançar um consenso em “referir
“nome”
a
cadeias gráficas que reúnem condições de interpretabilidade”. Para quase todas as
crianças, “o nome é uma série de letras que “diz”... como se chama”. Apresentaremos
um dos exemplos, citados pelas autoras, que bem ilustram essa questão:
Antônio Carlos (12ª)
(Diante da sentença agrandi do muro é grandi)
Como sabe que a 1ª é grade e a 2ª é grande.
Sei pelo nome.
Como se faz para saber pelo nome.
Pensa nas palavras e aí sabe.
Para Antônio Carlos, nome parece ser a palavra escrita com significado. A
oposição que ele estabelece entre palavra e nome pode ser interpretada como : nome e
o que está escrito; palavra é algo da oralidade. Para saber-se o que está escrito, pensase no significado daquilo que se conhece (a palavra contextualizada) e “aí sabe”.
O relacionamento entre linguagem oral e escrita é um dos aspectos críticos na
alfabetização emergente. E um dos elementos importantes nas duas modalidades é o
conceito de palavra, construto particularmente difícil de definir. Roberts (1992) conduz
um estudo longitudinal com crianças da pré-escola à 2ª série, com o propósito de
investigar, em três momentos do ano escolar, a evolução de vários aspectos do conceito
de palavra e de definir os papéis do desenvolvimento cognitivo e da instrução em leitura
na emergência deste conceito.
Roberts usa em seu estudo os termos conhecimento tácito e conhecimento
explícito da língua para referir-se aos tipos de conhecimentos sobre palavra. O primeiro
refere-se ao conhecimento intuitivo, inconsciente que o usuário da língua possui das
regras e convenções que subjazem à estrutura da língua. O segundo conhecimento diz
respeito à capacidade de refletir deliberadamente sobre unidades lingüísticas,
focalizando a atenção consciente sobre a própria língua. A autora, baseando-se numa
síntese de pesquisas sobre a evolução desse conhecimento, hipotetiza que o
desenvolvimento do conceito de palavra se dá ao longo de um contínuo: conhecimento
tácito da palavra na linguagem falada, conhecimento tácito da palavra na linguagem
escrita, conhecimento explícito da palavra na linguagem escrita e conhecimento
explícito da palavra na linguagem falada. Hipotetiza também que crianças em diferentes
estágios do desenvolvimento cognitivo teriam diferentes desempenhos, tendo aquelas,
em nível de operações concretas, um desempenho melhor do que as outras aquém
deste nível.
Para testar essas hipóteses, diferentes tarefas foram usadas: 1) identificação da
unidade palavra, que consistia em apresentar à criança 12 palavras e sintagmas para
que ela dissesse se era ou não palavra; 2) ditado de frase, em que a criança escrevia
uma frase ditada e depois a lia, apontando para cada palavra. O conhecimento tácito da
palavra era verificado pela concordância ou não em relação às palavras na tarefa 1 e
pelos espaços entre palavras na tarefa 2. O conhecimento explícito era medido pelas
explicações fornecidas pela criança para as suas respostas.
A autora concluiu que os conhecimentos tácitos da palavra na linguagem falada
e
na
linguagem
escrita
se
desenvolveram
concomitantemente.
Entretanto,
o
conhecimento explícito da palavra na linguagem escrita precede o conhecimento
explícito na linguagem falada. O conceito tácito de palavra, requerido para uma
comunicação efetiva, dá lugar ao conceito explícito de palavra, mediante a interação
com a linguagem escrita e o desenvolvimento cognitivo. Esses dois fatores é que
permitem o desenvolvimento do conhecimento das características relacionais da palavra
como uma unidade do sistema da língua: o nível
operacional do desenvolvimento
cognitivo, quando comparado à quantidade de instrução em leitura, apresentou
correlação mais alta com o conceito de palavra. Esses resultados levam a autora a
concluir que o pensamento abstrato, relacional, possibilita à criança mover sua atenção
de características concretas para características relacionais abstratas, e assim passar a
refletir sobre atributos definicionais do conceito abstrato de palavra.
4.3.3 - Consciência Fonêmica
Embora no processo de aquisição da linguagem escrita, a criança reflita sobre
formas, registros, usos, gêneros, a consciência fonêmica tem ocupado um lugar
especial nas pesquisas relativas à aquisição da linguagem escrita. Na área do letramento
emergente, essa questão não tem sido destacada, conquanto consideremos necessário
fazer algumas considerações face aos problemas teóricos por ela colocados.
Há conceitualizações diversas sobre a relação entre consciência fonêmica e
aquisição convencional da leitura e escrita. Uma delas, refletida nos estudos de Bradley
& Bryant (1983), vê a consciência fonêmica como precursora causal da alfabetização
convencional: a habilidade de segmentar palavras em seus constituintes fônicos seria
um pré-requisito para esta alfabetização. Uma outra conceitualização vê a consciência
fonêmica como conseqüência do ler e escrever: a habilidade de detectar fonemas em
uma palavra é influenciada pelo conhecimento ortográfico. Uma terceira propõe um
modelo interativo, de causação recíproca, que estipula não ser a consciência fonêmica
precursora nem conseqüência, pressupondo que certas habilidades de consciência
fonêmica seriam básicas a certas habilidades de leitura e escrita, e que outras
habilidades de leitura e escrita, por sua vez, estimulariam determinadas outras
habilidades relacionadas à consciência fonêmica.
Tentando verificar a validade dos testes de consciência fonêmica através de
análise fatorial, Yopp (1988) encontrou resultados que revelaram dois fatores
relacionados, subjacentes à consciência fonêmica: consciência de fonemas simples
(habilidade de segmentar, combinar e isolar um som) e consciência de fonemas
compostos (habilidade de isolar um som em uma palavra e compará-lo a um outro som
já isolado em outra palavra). Enquanto a consciência de fonemas simples pareça seu um
pré-requisito necessário à leitura ainda não convencional, chamada por Sulzby (1989) de
leitura aspectual, tanto esta como a leitura convencional e a escrita não-convencional
aumentariam o conhecimento ortográfico que, por sua vez, faria avançar a consciência
de fonemas compostos.
Dois tipos de consciência fonêmica são também propostos por Morais: a
consciência Holística, que inclui a capacidade de julgar conscientemente propriedades
supra-segmentais de enunciados, necessária e talvez suficiente para o desempenho de
tarefas de classificação baseadas na similaridade geral; a consciência analítica, que
inclui a capacidade de isolar as partes constitutivas de um enunciado. O sujeito pode
conscientemente isolar e representar diferentes unidades hierarquicamente encaixadas:
palavras, morfemas, sílabas, rima, segmentos fonéticos e fonêmicos. Quanto mais
encaixada a unidade na hierarquia lingüística, maior o esforço analítico para isolá-la.
Segundo ele, o isolamento consciente de traços fonéticos requer o maior esforço
analítico, o que parece mostrar um percurso na direção da percepção de unidades cada
vez menores da fala. Para Marcel (1983), este percurso ocorre não só por dificuldades de
segmentação de unidades mais encaixadas, como também devido a diferentes valores
funcionais da unidade: quanto mais encaixada, menor o seu valor funcional.
4.4 – LEITURA DE HISTÓRIAS
Estudos correlacionais sobre a leitura de histórias para crianças já mostraram,
na década de 70, relações positivas entre a experiência de ouvir histórias lidas e
desenvolvimento do vocabulário, desenvolvimento lingüístico, motivação para leitura,
sucesso na aprendizagem escolar da leitura.
Nos anos mais recentes, de acordo com Sulzby & Teale (1991), a pesquisa nessa
área evoluiu por vários motivos: sua metodologia tornou-se descritiva, passando a
analisar o que ocorria durante a atividade; em vez de uma leitura realizada de um para
um (típica da interação em ambiente familiar), passou-se a considerar a leitura realizada
em grupo, na sala de aula; em vez de focalizar apenas a interação entre adulto e criança
durante a leitura, passou-se considerar também as tentativas de leitura independente
pela criança a fim de inferir os conceitos que estavam sendo internalizados e usados em
situações de leitura; por último, evoluiu no sentido de que a metodologia descritiva e os
estudos experimentais passaram a ser usados de um modo complementar, em que os
primeiros serviram de base para planejar intervenções e examinar os efeitos dessas
intervenções sobre a prática de leitura de histórias e sobre o desenvolvimento da
criança. Como resultado dessa evolução, pode-se melhor compreender as variáveis
interferentes nas correlações entre leitura de histórias e desenvolvimento da linguagem
escrita.
Cinco principais conclusões das pesquisas sobre leitura de histórias são
apontadas por Sulzby & Teale (1991):
(1) A leitura de histórias é uma atividade interativa socialmente criada. Em outras
palavras, nas situações investigadas, a leitura oral pelo adulto não se limitava à
reprodução do texto, mas era complementada pela interação entre criança(s) e
adulto, numa negociação cooperativa de significados através de meios verbais e
não-verbais. A visão da leitura de histórias como uma interação social permite
compreender a leitura como um ato de construção, para o qual contribuem a
linguagem e a interação social com o texto.
(2) A leitura de histórias com crianças muito pequenas é uma atividade tipicamente
de rotina. O achado de que as práticas de leitura de livros de história se
caracterizam por rotinas ajuda a explicar a contribuição da leitura para o
desenvolvimento do letramento, pois criando contextos altamente predizíveis
em ciclos de diálogo, a rotina permite à criança, ao deparar-se com
determinados contextos semelhantes. Através das interações habituais,
rotineiras, a criança desenvolve expectativas sobre os tipos de linguagem que
encontraria em livros específicos e em livros em geral. Essas expectativas
ajudam-na a participar de modo independente em tarefas que estariam acima de
sua capacidade individual, guiando e confirmando suas alternativas de
decodificar.
(3) Os padrões da leitura de histórias mudam à proporção que as crianças crescem
em idade, conhecimento e experiência. Dentre vários estudos que observam os
padrões de interação entre adulto e criança(s),
Sulzby & Teale (1987)
documentaram mudanças ocorridas à proporção que a criança crescia. Padrões
altamente interativos, observados nas leituras para crianças de um ano, cediam
lugar, gradualmente, a outros menos interativos, que ocorriam somente depois
de lidas grandes fatias do texto; estes, por sua vez, diminuíam até limitarem-se a
apenas ocorrer após a leitura do texto inteiro, quando as crianças de seu estudo
tinham alcançado 3 anos.
Para ajudar a compreender essas mudanças, o conceito de “andaime”
(scaffolding) nos parece útil: a ajuda inicial do adulto diminui à proporção que a criança
se desenvolve até tornar-se independente, passando a reproduzir textos inteiros e a
iniciar mais do que o adulto os turnos relacionados à discussão do que está sendo lido.
Mudanças nos padrões de leitura também sofrem a interferência do gênero. As
pesquisas mostram que livros de gravuras acompanhadas de rótulos, como livros de
alfabeto, cores, animais, provocavam uma leitura dialógica, concentrada em itens,
elaboração de itens, eventos, elaboração de eventos, enquanto que os de histórias
priorizavam a leitura monológica e se concentravam nos motivos ou causas dos
eventos.
(4)
A leitura de livros ainda não convencional realizada por crianças pequenas
surge a partir de leituras interativas e provoca avanço no desenvolvimento da
leitura e da escrita. Crianças expostas à leitura repetida dos mesmos livros,
“lendo”
esses
livros
espontaneamente
apresentam
uma
evolução
na
conhecimento das características da linguagem escrita.
Sulzby (1985) encontrou, em crianças de 2 a 6 anos, lendo os seus livros
favoritos, a produção de uma fala que caracterizou como um ato de leitura, pois era
prosódica, sintática e topicamente diferenciada da conversa da criança que circundava o
evento de leitura. A autora descreveu essas tentativas de leitura, através de um esquema
de classificação constituído por categorias de leitura emergente, que mostrava o
desenvolvimento da compreensão das distinções entre fala e escrita. Enquanto
nenhuma criança de 2 anos considerava o texto como fonte de leitura, as de 5 anos e a
maioria das de 6 anos tratavam o texto como a fonte da história e algumas liam
convencionalmente. Numa análise longitudinal, foi observada uma mudança de
comportamentos mais primitivos para outros mais evoluídos: a) estratégias de rotular e
comentar sobre itens de gravuras; b) produção de recontos orais sobre as gravuras em
ordem; c) criação de histórias como a prosódia e o registro da linguagem escrita; d) uso
do texto de um modo pré-convencional para ler a história; e) leitura convencional da
história. Esses achados mostram que a “leitura” independente de livros desempenha um
importante papel na ontogênese da leitura e escrita, pois oferece à criança
oportunidades de praticar aquilo que foi experienciado em eventos interativos de leitura
com adultos. Essas “leituras” constituem o acesso primário à leitura convencional, o
que levanta questões para os que advogam textos simplificados para crianças
pequenas.
(5) As variações nos padrões de leitura de história de livros afetam de modo
diferenciado o desenvolvimento da criança. Pesquisas diversas evidenciam a
importância da mediação do adulto na leitura para crianças, argumentando não
ser a simples presença ou ausência de leitura o fator determinante para a
aquisição de leitura e escrita. Em um estudo conduzido com as mães de classe
baixa e mães de classe alta, afirmamos que certos modos de leitura têm efeitos
mais positivos sobre o desenvolvimento do vocabulário e rendimentos escolar
do que outros. Examinando a aquisição de vocabulário, no contexto da leitura
conjunta de livros de gravuras, encontra-se estilos diferentes de interação entre
as mães das duas classes socioeconômicas, sendo o estilo de perguntar à
criança e em seguida fornecer-lhe feedback, adotado por mães da classe alta,
aquele associado positivamente com o desenvolvimento de vocabulário
produtivo.
Outros estudos têm apontado diferentes estilos de leitura de um mesmo livro por
diferentes professores e indicado os diferentes efeitos provocados. O modo pelo qual o
adulto faz a mediação em resposta às reações e iniciações da criança parece assim ser
um fato crucial na leitura de livros de história para crianças: a elaboração pelo adulto de
perguntas abertas, os comentários sobre funções e atributos, a expansão das
contribuições da criança, a diminuição de perguntas que possam ser respondidas
apenas com um gesto ou uma palavra são aspectos que contribuem para o
desenvolvimento lingüístico-cognitivo da criança.
Sulzby (1985) aponta dez níveis de leitura emergente de livros de história que
precedem a leitura convencional. Esses níveis, posteriormente agrupados em cinco
categorias amplas são melhor indicados para a avaliação das tentativas de leitura de
histórias de livros que já foram lidos. Abaixo mostramos uma versão simplificada do seu
“Esquema de Classificação para a Leitura Emergente de Livros de História Favoritos”,
em que as categorias são acompanhadas de uma breve explanação.
Categoria 1: A criança presta atenção às gravuras e não compõe uma história. (A
criança “lê”, olhando os desenhos, as ilustrações; sua fala
reporta-se apenas às gravuras que está vendo: ela não compõe
uma história seguindo as páginas.)
Categoria 2: A criança presta atenção às gravuras e compõe histórias orais. (“Lê”
olhando os desenhos; sua fala compõe uma história ao longo das
páginas e suas palavras e entonação ora assemelham-se às de
alguém que conta uma história apoiando-se nas gravuras, ora
parecem uma conversa sobre as gravuras; o ouvinte necessita ver
as gravuras para compreender a história da criança.)
Categoria 3: A criança presta atenção aos desenhos, e mistura leitura e narração
da história. (“Lê” olhando as gravuras; sua fala flutua entre a
narração de uma história, com a entonação oral, e a leitura, com
entonação de leitura.)
Categoria 4: A criança presta atenção às gravuras, compondo histórias escritas.
(“Lê” olhando as gravuras; sua fala soa como se estivesse lendo,
tanto pelas formas lingüísticas como pela entonação; o ouvinte
não necessita olhar as gravuras para compreender a história da
criança; se fechar os olhos é capaz de pensar que ela está lendo.)
Categoria 5: A criança presta atenção às palavras escritas. (Há quatro
subcategorias de prestar atenção ao texto. A última corresponde
à leitura real. Nas outras, a criança explora a escrita utilizando
estratégias que vão da recusa a ler ao uso de alguns aspectos das
palavras escritas.)
A leitura de histórias pela criança assim como a leitura oral feita para ela por
alguém é uma das mais efetivas vias de internalização da linguagem escrita nas séries
iniciais. Essa asserção parece ser corroborada não só pelas pesquisas examinadas por
Sulzby & Teale (1991) como também por um amplo leque de trabalhos revistos por
Fitzgerald (1989), que tentam verificar o relacionamento entre conhecimento da estrutura
da história e leitura. Dentre as conclusões dessas pesquisas, Fitzgerald aponta o uso
desse conhecimento para guiar expectativas sobre a organização de histórias e seus
efeitos sobre compreensão, rememoração e produção de histórias, além dos efeitos
significativos sobre conhecimento de relações causais e desenvolvimento da habilidade
de inferir e integrar informações.
O conhecimento da estrutura da história foi investigado por Moreira (1992). Seu
corpus constou de produções escritas por 83 crianças de 1ª e 3ª séries de uma escola
pública e outra particular. Para a análise dos textos – Chapeuzinho Vermelho – utilizou
as categorias da gramática de Mandler (1987), segundo a qual uma história é constituída
de um Cenário e um ou mais Episódios. Cada Episódio tem um Início (um evento que
inicia a Reação Complexa), uma Reação Complexa constituída por uma Ração Simples
(resposta cognitiva ou emocional) e um Objetivo (um estado que o personagem quer
atingir), um Curso do Objetivo (goal path), formado por uma Tentativa (plano ou ação
intencional) e um Resultado (conseqüência da Tentativa) e um Final (uma reação).
Tentando verificar as categorias de aquisição precoce e tardia na aquisição de
um esquema de história e os efeitos da escolaridade sobre essa aquisição, é possível
constatar que certos episódios são mais memoráveis do que outros: o encontro do lobo
com a avó, o de Chapeuzinho como o lobo e o do caçador com o lobo foram mais
lembrados do que os episódios iniciais. Isso parece ter-se dado porque os últimos
episódios envolvem conflito interpessoal, informações centrais para a cadeia de eventos
causais da história e maior dinamismo de ação. No interior de cada episódio, os eventos
iniciais e os resultados foram as categorias mais utilizadas; as menos presentes,
reações, objetivos e tentativas, que envolvem, respectivamente, respostas cognitivas ou
emocionais, estados a atingir e planos intencionais, categorias, portanto, de elaboração
mais complexa.
Quanto aos efeitos da escolaridade, constatou-se uma diferença insignificante
entre séries. A diferença entre classes sociais foi, em todas as categorias, excetuandose a referente a objetivo, mais de duas vezes maior do que entre séries escolares. Em
outras palavras, não é o tempo de escolaridade da criança, tampouco sua idade que
parece interferir no conhecimento da estrutura da história, mas sim a experiência com
leitura e audiência de histórias. As diferenças encontradas não dizem respeito apenas à
reconstituição das categorias constitutivas dos episódios, mas também à da estrutura
da história como um todo.
Ao ouvir e produzir histórias a criança vai construindo o seu conhecimento da
linguagem escrita, que não se limita ao conhecimento das marcas gráficas a produzir ou
a interpretar, mas envolve gênero, estrutura textual, funções, formas e recursos
lingüísticos. Ouvindo histórias, a criança aprende pela experiência a satisfação que uma
história provoca; aprende a estrutura da história, passando a ter considerações pela
unidade e seqüência do texto; aprende associações convencionais que dirigem as
nossas expectativas ao ouvir histórias: o papel esperado de um lobo, de um leão, de
uma raposa, de um príncipe; aprende convenções lingüísticas de histórias, como os
delimitadores iniciais e finais, e. g., era uma vez... e viveram felizes para sempre, e
estruturas lingüísticas mais elaboradas, típicas da linguagem literária. Aprende, pela
experiência, o som de um texto escrito lido em voz alta: “De que outra forma poderia ela
(a criança) vir a ouvir uma voz interior ditando-lhe a história que ela quer produzir?”.
4.5 – A LINGUAGEM INTEGRAL
Considerando essas variadas contribuições sobre processos de leitura,
estratégias, atividades, não poderíamos deixar de lado uma proposta recente,
fundamentada em Piaget e Vygostsky: a linguagem integral ou “linguagem integrada”
(whole language). Julgando ser a pesquisa experimental redutora da linguagem, por
equiparar-se, na abordagem lingüística, ao ensino tradicional, entendemos que a
linguagem só pode ser investigada em sua totalidade, o que é mais do que a soma de
suas partes. Defendemos que a linguagem, o pensamento e o conhecimento se
desenvolvem holisticamente e se apóiam mutuamente, e que o processo da linguagem
tem que ser visto integrado no processo de aprendizagem.
Segundo a abordagem funcionalista, as crianças aprende a linguagem oral
“quando dela necessitam para expressar-se, e entendem o que os outros dizem sempre
que estão com pessoas que utilizam a linguagem com sentido e com um propósito
determinado”. A linguagem oral e a escrita compartilham as mesmas características
básicas, um das quais é o seu desenvolvimento espontâneo. Essa proposta da
linguagem integral, relacionada em vários aspectos à teoria do desenvolvimento de
Piaget, sugere que a criança aprende a linguagem oral e escrita, acomodando e
assimilando as informações externas, e que seu desenvolvimento cognitivo depende de
sua ação sobre o mundo. A atividade é essencial, pois é através dela que a criança
experiência o mundo e constrói o conhecimento. Os processos em jogo na apreensão da
escrita seriam comparáveis àqueles da recepção da linguagem oral. Se o leitor está
interessado no que lê, ele se coloca questões e antecipa o que vai encontrar da mesma
forma que o locutor antecipa o que vai dizer o interlocutor.
Ao experienciar a linguagem escrita, a criança desenvolve estratégias para dar
sentido ao texto, pois espera sempre que o texto faça sentido, usa seu conhecimento
prévio para compreendê-lo e tem uma atitude de assumir riscos em relação ao texto.
A leitura é uma busca de significação orientada pela experiência lingüística
anterior do leitor. Nessa busca, o reconhecimento de palavras é um efeito secundário da
compreensão. A aprendizagem da linguagem orienta-se do todo para antes das letras e
as histórias são lidas antes das frases. Quando o contexto escolar inverte essa ordem
natural, a aprendizagem da linguagem torna-se difícil. Existem alguns fatores que
contribuem para essa dificuldade. Na escola, a linguagem é artificial, fragmentada, não
tem sentido, é aborrecida, pertence a outros, é irrelevante para o aluno, é
descontextualizada, não tem valor social, não tem qualquer propósito verificável, é
imposta por outros e é inacessível ao aluno, a quem se nega o poder de utilizá-la.
Essas caracterizações retratam fielmente o que ainda, freqüentemente, se passa
na alfabetização tradicional. Adota-se uma perspectiva ascendente da aprendizagem,
avançando-se de unidades menores para maiores e assim dividindo-se a linguagem
natural em fragmentos mínimos e abstratos; considera-se a linguagem por si mesma em
vez de considerar-se aprender a linguagem como “aprender a significar”, desprezandose o fato de que a linguagem existe porque os seres humanos são capazes de criar
sistemas simbólicos e porque são seres sociais; planejam-se seqüências artificiais e
arbitrárias de comportamentos e habilidades, o que transforma a experiência escolar em
“labirintos pelos quais as crianças devem passar”; propõem-se exercícios aborrecidos e
irrelevantes, cujo conteúdo não tem relação com o que as crianças são, pensam e fazem,
e menospreza-se o seu conhecimento acerca da linguagem, da escrita e da leitura.
5 – FORMAS DE IMPLANTAÇÃO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL NO
1º CICLO
Com base no exposto acima, verificamos que é perfeitamente possível
implantar a literatura nas séries iniciais (1º ciclo), aproveitando a dupla função:
formação do homem crítico, ativo, participativo, e alfabetização. A grande
pergunta é: como realizar esse trabalho?
5.1 – Função do professor: a interferência crítica
Se a escola ainda é o espaço por excelência de contato com o material
impresso e com a literatura em particular, em que pesem as condicionantes
decorrentes da trivialização
da literatura infanto-juvenil produzida para
e
utilizada no ambiente escolar brasileiro hoje, parece-nos que o imobilismo do
professor é mais um fator que se acrescenta ao conjunto dos funcionamentos
conforme. Entre esses profissionais, percebem-se atitudes frente ao trabalho
com a leitura que vão desde a “neutralidade conformista” até a “cumplicidade
revolucionária”, decorrendo daí equívocos em relação às possibilidades de
mudança.
Em primeiro lugar, pensamos que é necessário desmistificar certos
clichês que caracterizam a trivialização da prática docente, principalmente a
partir das duas últimas décadas. Um deles diz respeito à atuação política do
professor, a qual não se esgota em lutas corporativistas. A prática pedagógica
(objetivos, conteúdos, metodologias, estratégias e avaliação) não é neutra, mas
envolve opções políticas menos ou mais conscientes, das quais, por sua vez,
apenas o discurso não consegue dar conta. É preciso pensar no presente
histórico de professores e alunos como possíveis de serem conhecidos e
tomados como ponto de partida para a feitura da escola, da leitura e da
literatura que queremos, para darmos e propiciarmos avanços qualitativos.
Em decorrência disso, ressalta-se o óbvio: pode-se aprende a ler e
pode-se formar o gosto. E mais: a passagem da quantidade para a qualidade
de leitura (e vice-versa) não se dá num passe de mágica, mas pressupõe um
processo de aprendizagem. Com a escola, em que pesem as restrições a sua
incompetência
competente,
concorrem
todos
os
outros
estímulos
ou
desestímulos com os quais convivem professores e alunos nas horas restantes
do dia, e, entre eles, as péssimas condições de trabalho, e a impossibilidade,
para muitos alunos, de terminarem os estudos e trem tempo para a quantidade
de leituras.
Parece-nos que a saída mais coerente para o professor poder ser
buscada numa “práxis” compartilhada que lhe ofereça segurança e permita
uma interferência crítica. Cabe ao educador romper com o estabelecido, propor
a busca e apontar o avanço, para além da dicotomia valorativa entre
quantidade ou qualidade. Para isso, é preciso problematizar o conhecido,
transformando-o num desafio que propicie a mobilidade.
Passando obrigatoriamente pela concepção de escola e de sociedade
que queremos, a formação do gosto das pessoas-alunos, não só para um vir-aser, mas também para um aqui e agora, principalmente político. E se
entendemos que “os gostos não são sucessivos, mas dependentes”,
envolvendo as histórias de leitura (do leitor, do texto e da época), e que o
crescimento diz respeito
“à necessidade de a criança ir-se transcendendo a si
mesma e as seus retratos anteriores” (ou seja de
traçar seu percurso histórico) “rumo a um progresso
que nunca é final e que se caracteriza pela obstinação
insatisfeita de sua busca e pela alegria de sua vitória
sobre cada novo obstáculo”,
o trabalho com a leitura da literatura tem de levar em conta essa luta da criança
inserida na luta de linguagens e códigos, problematizando a noção de carência
geradora de um “infantilismo pedagógico”, bem como repensar a formação do
leitor, deslocando o impasse entre adequação demagógica ou imposição
retórica para o problema da superação crítica e histórica do gosto, através de
uma “pedagogia da exigência”, como propõe Gramsci5.
5.2 – Escalonamento e Penetrabilidade
Sobe esse ângulo, a leitura, enquanto processo de conhecimento,
envolve alguns procedimentos didáticos decorrentes da opção pela diversidade
e, entre eles, a “penetrabilidade”e o “escalonamento”. Este
diz respeito à
adaptação da leitura à capacidade de apreensão do leitor; aquele oferece a
possibilidade de “medir tanto nosso esforço, quanto nossas capacidades
aquisitivas”. Nesse sentido, a penetrabilidade se torna um procedimento que,
oferecendo o desafio do conhecimento sempre novo e diferente, é “um dos
elementos mais emulativos da degustação” e propicia não o efeito
momentâneo e confortável do lazer, que contenta, enche e dá euforia; mas a
provisória satisfação da permanência do prazer-fruição que faz vacilar a
consistência dos gostos e as bases históricas, culturais, sociais e psicológicas
do leitor, tornando seu percurso o de um guerreiro em busca dos significados,
através do processo de leitura.
Assim, evitar a trivialização no trabalho com a literatura é procurar na
diversidade (de enredos, procedimentos narrativos, gêneros, linguagem,
autores e metodologias) romper com a limitação do totalmente conhecido e
transportar o leitor, através da luta pela busca de significado, a ampliar seus
horizontes.
5
El Principio Educativo em Gramsci
As leituras de que o aluno gosta podem ser trazidas para a sala de aula,
como ponto de partida para a reflexão, análise e comparação com outros textos
(inclusive
os
produzidos
pelos
próprios
alunos),
sendo
introduzido,
posteriormente, clássicos da Literatura (adaptados), proporcionando a iniciação
literária e o trabalho de alfabetização. E esse trabalho pode ser iniciado com a
literatura trivial ou com a história em quadrinhos e programas televisivos, por
exemplo. Saber por que o professor ou o aluno gostam ou não desse tipo de
texto é um caminho para o crescimento. Assim , o estudo crítico e comparativo
do texto como um todo (condições de emergência, utilização, funcionamentos
conforme e disfuncionamentos) se apresenta como uma forma de desmistificar
e desautorizar modelos; de recuperar o prazer de saber que há muitos jeitos de
ler e de escrever e que não são casuais; de perceber que o prazer não se
compra em lojas, nem é automático, mas depende da emoção e da percepção
mais ou menos clara do trabalho particular de linguagem e de formas6, e
tampouco é incompatível com o saber; que a literatura é também novidade e
ruptura e só será agente de transformação na medida em que for resultado e
lugar de transformação.
Outro ponto importante é a associação “Literatura-alfabetização”.
Teríamos dois propósitos, consequentemente, dois resultados esperados com
um instrumento de trabalho: a Literatura.
Além da formação do leitor, crítico, ativo e participativo, teremos o
propósito da alfabetização. Os conceitos vistos anteriormente dão conta deste
propósito. As noções de lingüística e sociolingüística são importantes
ferramentas para a aquisição da leitura. A partir do momento em que os
professores do I ciclo do ensino fundamental conheçam e entendam estes
princípios, entendemos que o processo de alfabetização surtirá um efeito
qualitativamente superior aos modelos atuais. As noções de signo, símbolo,
ícone etc são importantes já que é através desses conceitos, constituídos a
partir da observação dos atos da fala, da linguagem humana, que construímos
nossas relações com o outro e com o mundo.
6
ver lingüística: signo lingüístico.
O ponto de partida e, juntamente, o texto, em particular o texto literário,
que terá o duplo propósito, ponto defendido neste trabalho.
6 – CONCLUSÃO
Com este trabalho, não temos a pretensão de esgotar o assunto e muito
menos apontar “a solução definitiva” para os problemas de alfabetização
(aquisição da linguagem, conhecimento lingüístico), iniciação literária e
problemas educacionais. Mais do que isso, propomos um modelo para estudo
e reflexão, destinado a professores e educadores apaixonados pela arte do
ensino. Preocupamo-nos, em particular, com o 1º segmento do ensino
fundamental, fase inicial que tem peso fundamental na vida de nossos alunos.
Através deste trabalho, demonstramos, através das noções de
lingüística e sociolingüística, que a literatura pode ser utilizada não só como
processo de criação, mas também para aquisição da linguagem e
desenvolvimento
das
potencialidades
lingüísticas
de
nossos
alunos,
introduzindo nas turmas iniciais os clássicos universais da literatura,
devidamente adaptados por autores, bem como por professores.
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Paulo: Scipione, 2001.
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TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria Literária. 11 ed. Belo Horizonte, MG: Villa Rica,
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