UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES Curso de pós-graduação lato sensu em Supervisão Escolar LITERATURA INFANTO-JUVENIL: UMA (RE)LEITURA DOS CLÁSSICOS. FORMAÇÃO HUMANÍSTICA E ALFABETIZAÇÃO Por Ceres Fingola da Silva Valle Monografia trabalho apresentada final Especialização Escolar. Rio de Janeiro Junho de 2003 do em Curso como de Supervisão Aos meus pais, Paulo e Flávia, a quem devo tudo que sei; A Carlos Eduardo, meu marido, pelo apoio e incentivo; Á minha irmã, Lívia, pelo exemplo de garra e força de vontade; À sobrinha e afilhada, Marina, por ensinar-me todos os dias que a vida vale a pena; Ao meu amigo, André, pelo companheirismo na trilha da educação. “As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito. Ou pelo menos não era apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar.” (Clarice Lispector) SINOPSE: Considerações sobre a implantação da Literatura no I Ciclo com o propósito da humanística, formação de Fundamental, formação leitores, e alfabetização. SUMÁRIO 1 – INTRODUÇÃO 2 – HISTÓRIA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL 2.1 - Século XVI: o Renascimento 2.2 – Arte e Literatura culta e popular no século XVI 2.3 – Século XVII: absolutismo e classicismo 2.3.1 – O momento cultural 2.4 – Século XVIII: o Pré-Romantismo 2.5 – A infância e o século XVIII ( a pedagogia de Jacques Rosseau) do Ensino 2.6 – Século XIX: Romantismo e Realismo (a descoberta da criança) 2.7 – O Brasil de entre-séculos: do final do império de D. Pedro II às vésperas do Modernismo (1861/1919) 2.8 – Brasil – século XX 2.8.1 – Monteiro Lobato, um marco 2.8.2 - Criatividade e literatura infantil nos anos 70/80 2.8.3 - A ilustração 2.8.4 - A poesia 2.8.5 - As tendências da literatura infantil atual 3 – A CONFORMIDADE TEXTUAL -Adaptação e trivialização 4 – ESTRATÉGIAS PARA APLICAÇÃO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL 4.1 - O Simbolismo Linguístico 4.2 - A Transição Entre a Escrita Icônica e a Simbólica 4.3 - Consciência Metalingüística 4.3.1 – Desenho, Palavra e Letra 4.3.2 – Palavra e Nome 4.3.3 - Consciência Fonêmica 4.4 – leitura de histórias 4.5 – a linguagem integral 5 – FORMAS DE IMPLANTAÇÃO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL NO 1º CICLO 5.1 – Função do professor: a interferência crítica 5.2 – Escalonamento e Penetrabilidade 6 – CONCLUSÃO 7 – BIBLIOGRAFIA 1 – INTRODUÇÃO Nos moldes do ensino atual, principalmente no ensino público, a Literatura não compõe o currículo do ensino fundamental, somente sendo apresentado ao aluno a partir do ensino médio, ou seja, nos três últimos anos escolares do ensino fundamental. Consideramos que o ensino de Literatura no ensino médio não é sobre a Literatura, entendendo como estudo dos textos, relação com outras áreas do saber humano (interdisciplinaridade) e relação com outros textos da época atual e de outras épocas (intertextualidade), e sim sobre historiografia da Literatura, restringindo-se somente ao estudo dos Estilos de Época, autores, datas, momento histórico etc. Dessa forma a Literatura em si fica em segundo plano. Entendemos que Literatura é mais do que isso: é a arte da palavra, o pleno desenvolvimento do senso de estética, do senso crítico, do domínio da língua, da imaginação e criatividade. Essas habilidades têm de ser desenvolvidas nas séries iniciais, a partir da alfabetização, como forma de termos indivíduos aptos a integrarem a sociedade, como elementos ativos, conscientes e comprometidos com os grupos sociais de que fazem parte. O ponto de partida para se chegar a esse objetivo é a introdução da Literatura Infanto-Juvenil nos currículos escolares. A partir da (re)leitura dos clássicos e das teorias lingüísticas, fundamentaremos nossa proposta, provando a viabilidade desse trabalho. A inserção da Literatura Infanto-Juvenil nos primeiros anos do ensino fundamental, Literatura destinada às crianças, revela sua essencialidade em seu valor maior: o de se inventar/construir como espaço de prazer que se quer, ao mesmo tempo, espaço de conhecimento subliminar. Esta função prazer/conhecer é o que transforma o livro infantil em um objeto novo. É um ser-de-linguagem que se constrói como espaço de convergência de multilinguagens: narrativas, fotografia, cerâmica etc. Linha de “criação complexa” que visa dar forma a concretude a novas maneiras de ver e construir o real, e por isso, se empenha em provocar nos leitores o “olhar da descoberta” que a paisagem caledoscópica do mundo atual exige, para que se possa interagir com ela. Esse objeto novo, o livro, oferece matéria extremamente rica para formar ou transformar as mentes, dinamizar as potencialidades do educando. É necessário lembrar que o poder mágico da mente será o elemento-chave para a exploração dinâmica ( e não mecânica) do poder da tecnologia, que comandará as relações eu-mundo neste terceiro milênio. Essa é uma nova perspectiva no ensino da Literatura direcionada à criança, onde há uma retomada do livro, principalmente dos clássicos da Literatura Universal, devidamente adaptados às faixas etárias a que se destinam, já que a partir dos anos 5060, com a industrialização em maior escala dos inventos audiovisuais e a crescente expansão desses recursos, houve uma alteração do relacionamento do homem com o mundo e seus semelhantes. A televisão chega para inaugurar oficialmente a civilização da imagem, do som, da fragmentação e da velocidade, na qual a palavra, como valor, passa para o plano secundário, embora ela continue a ser a base de tudo (sem texto, sem pensamento verbalizado, nada existe...). Alguns prevêem o fim do livro, que seria substituído por gravações ou videoteipes, onde as novas gerações se afastam cada vez mais da leitura literária e da capacidade de expressão verbal fluente – são as chamadas “gerações sem palavras”. Como forma de reverter esse quadro, a Literatura Infanto-Juvenil, através dos clássicos, como forma de continuidade cultural, teria as seguintes palavras de ordem: criatividade, consciência da linguagem e consciência crítica. Palavras que emanam de uma nova concepção de mundo: o homem entendido como “ser histórico e criador de cultura”, onde a infância seria o estágio inicial e fundamental para a formação desse novo homem; a palavra como nomeador do real; o saber ou o conhecimento entendidos como “prática da liberdade” (Paulo Freire) e, conseqüentemente, a valorização do espírito questionador, lúdico, irreverente e, sobretudo, bem humorado (que desafia as certezas e os paradigmas de comportamento, defendidos pela tradição). A matéria-prima da Literatura é a palavra, e essa descoberta da palavra pela criança é perfeitamente viável através da Literatura Infanto-Juvenil. Lembremos que a propósito que em nosso século houve uma verdadeira revolução na conceituação da palavra: de elemento representativo (mimético) da realidade por ela nomeada, passa a ser definida como elemento criador do real. Nos rastros da Lingüística, Antropologia, Fenomenologia, Semiótica etc, descobriu-se que a palavra é fundadora (e não mero rótulo de algo criado), que a palavra é o que torna existente o real, como disse Lacan: “só existe o que for nomeado”. Ou Heidegger: “a palavra é a morada do ser”. A nova Literatura Infanto-Juvenil, aplicada nas séries iniciais do ensino fundamental, defenderá de maneira lúdica e simples os “paradigmas emergentes” que surgiram na literatura de vanguarda, desde o início do século XX, em desafio aos “paradigmas tradicionais” (já hoje em franca deterioração). É essa a grande importância da Literatura Infanto-Juvenil na educação. Fazer uma urgente mudança de mentalidade, através da (re) leitura dos clássicos, que um dia transformará a atual desordem em uma nova ordem. E essa mudança será, sem dúvida, através da escola, e através da verdadeira descoberta da Literatura. Entendemos que quando falamos em clássicos (D.Quixote, Os Lusíadas, Odisséia, Robinson Crusoé, El Cid etc) para crianças, necessariamente será preciso usar um código lingüístico, narrativo, ideológico etc, acessível à compreensão do pequeno leitor. Há algumas editoras que já fazem essa adaptação destinada ao 2º ciclo do ensino fundamental, o que poderia ser feito perfeitamente para o 1º ciclo. É necessário que sejamos conscientes de que uma das mais fecundas fontes para a formação dos pequenos leitores é a imaginação – espaço ideal da Literatura. É pelo imaginário que o EU pode conquistar o verdadeiro conhecimento de si mesmo e do mundo em que lhe cumpre viver. Apenas a razão, a lógica já não são suficientes. 2 – HISTÓRIA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL 2.1 - SÉCULO XVI: O RENASCIMENTO O Renascimento foi o amplo e complexo movimento cultural que se propagou na Europa Ocidental a partir do momento em que as novas nações já estavam praticamente constituídas. Por volta do século XV e XVI, impo-se um novo viver, preparado durante a lenta transformação do mundo, que se processou na Idade Média. Transformação de limites, de horizontes, de idéias, de costumes... que foram sendo provocados por invenções e descobertas: o progresso da arte de navegação abre os mares para as grandes travessias, para o comércio com terras longínquas e descobertas de novas terras; a invenção da pólvora transforma a arte da guerra e precipita a decadência da cavalaria; o desenvolvimento das riquezas e do espírito de progresso provoca novos empreendimentos... Aos grandes descobrimentos de portugueses e espanhóis, segue-se o imenso esforço de colonização. Os limites do mundo se ampliam desmesuradamente. Imensos recursos drenados para a Europa modificam toda a política e a economia que antes tinham o Mediterrâneo como eixo. O surgimento do dinheiro transforma o antigo sistema de comércio por troca em operações de compra e venda. A riqueza cresce, as mudanças se multiplicam, uma prosperidade desconhecida até então favorece as iniciativas mais ousadas. Ao mesmo tempo se expande o mercantilismo: os bancos. As grandes companhias instauram o capitalismo. Por uma soberania crescente, a Europa domina o mundo. Politicamente mais evoluída, ela procura também sua estabilidade: a individualização crescente das diversas nações exige um crescente esforço de equilíbrio. A mudança do espírito parece mais sensível ainda. A vulgarização do papel ( a partir da 2ª metade do século XIV), a descoberta da gravura (século XIV), a invenção da imprensa (1ª metade do século XV) modificaram profundamente as condições da vida cultural e intelectual. Melhor armado, o pensamento se abre, vigorosamente lúcido, ao mesmo tempo crítico e criativo, e seu esforço se exerce em três áreas essenciais: nas ciências (Copérnico, Kepler, Galileu renovam a concepção do universo); na religião desenvolve-se o vasto movimento religioso desencadeado pela Reforma (Lutero, 1483-1546), e enfrentado pela ContraReforma católica (Concílio de Trento – 1545/1562; Inquisição...), provocando profundas transformações morais e materiais em todo o mundo ocidental; e, no domínio intelectual/artístico, um retorno à Antiguidade Clássica greco-romana, agora compreendida por um novo ângulo, - o do espiritualismo cristão, provoca uma essencial renovação da Filosofia, da Literatura e da Arte em geral. Nessa breve síntese, temos o mais vivo do Renascimento, - o fundo empenho de ressuscitar a Antiguidade, na forma de um mundo em plena reformulação; a alta autoridade que fortalece, disciplina e orienta, desde as raízes, os esforços tumultuados do espírito moderno, abrindo também caminho para uma nova Educação. Mas, sem dúvida, o ponto alto das transformações renascentistas está na invenção da imprensa. Sem muito risco de erro, podemos dizer que o aparecimento da Bíblia de Gutenberg, em 1456, foi o acontecimento universal de maior importância no amanhecer do Renascimento. E, isso, não exatamente pelo alto e perene valor desse monumento bíblico, “o Livro dos Livros”, mas sim pela invenção do livro, que essa publicação marca historicamente. Tendo-se em vista as imensuráveis conseqüências dessa invenção, compreendemos melhor a afirmação do historiador francês: “...com ela o Mundo entrou no infinito e o Homem se fez eterno”1. Claro está que um “infinito” e uma “eternidade” à dimensão do humano... A verdade, porém, é que, registrando ou perpetuando vivências de todos os tempos, idades ou eras, o livro, a palavra escrita, permite ao Homem tornarse contemporâneo de todas as épocas: conviver com o passado mais remoto e antecipar o futuro, ao participar, vivencialmente, da longa caminhada da Humanidade pela História. Indiscutivelmente, foi devido a esse natural impulso do Homem em procurar prender em algo concreto suas experiências essenciais, mas fugazes (como as realizadas pela Palavra, pelo Verbo), que puderam chegar até nós os vestígios das mais antigas manifestações do espírito humano, que formam o húmus primordial das atuais criações como, por exemplo, os clássicos da Literatura Universal. É óbvio que hoje, Era da Eletrônica, em matéria de registro das “manifestações fugazes” da vida, o livro tem inúmeros e mais potentes competidores, - como os audiovisuais. Mas, que tenha a sua especificidade, - a de tornar visível a linguagem e permitir o encontro íntimo e profundo ou o corpo-a-corpo fecundo de um Eu com sua realidade e com a experiência do Outro... nenhum. É, pois, o Livro uma das presenças mais significativas no processo cultural que tem início no Renascimento e prossegue até hoje... Coincidindo com o seu aparecimento, estabelecem-se as bases de um mundo novo, progressista, empreendedor, idealista, que valoriza o Homem em seu poder de Criatividade e sua força de Trabalho como as molas propulsoras da vida civilizada. Um mundo eu cresce desmesuradamente, em conquistas e problemas, e que através de várias metamorfoses chega aos nossos tempo, transformando no mundo tradicional contra o qual o século XX vai-se voltar, para tentar uma nova transformação, - a que ainda está em curso... 2.2 – ARTE E LITERATURA CULTA E POPULAR NO SÉCULO XVI Do foco gerador que foi a Itália de “quattrocento”, surge o Renascimento europeu (primeira fase da Era Clássica): período em que se difundem em todos os setores da sociedade, as novas formas de Vida e de Arte condicionadas pela nova imagem-de-Homem-e-de-Mundo que, lentamente, começaram a se forjar nos últimos séculos medievais, dentro do Movimento Humanista. Portanto, na base do amplo movimento renovador que foi o Renascimento, está o Humanismo: o novo Conhecimento do Homem, construído pelo pensamento cristão, ao descobrir no acervo cultural, deixado pela Antiguidade greco-romana, a idéia da “personalidade liberal”. É esse homem liberal, “renascido” depois de mil anos de espera, que vai construir a Renascença artística e literária, a partido dos “modelos” deixados pelos antigos gregos e romanos. Nasce uma Arte idealista, bela e harmoniosa, uma Literatura culta e aristocrática, alicerçada em pressupostos filosóficos e estéticos bem definidos. Uma Arte e uma Literatura que, por sua vez, com o passar dos séculos, se transformarão em “modelo clássico” para o mundo ocidental. 1 La Bible de l’Humanité, 1864 Entretanto, na área da literatura popular (que aqui nos interessa mais de perto), esse impulso renovador não penetra de imediato. Fenômeno, aliás, bastante natural, quando lembramos que as camadas mais populares são as que mais conservadores e mais resistentes a qualquer sugestão de mudança. Durante todo o século XVI continuam a circular, oralmente ou em manuscritos, a literatura surgida na Idade Média, em novas variantes ou simples imitações. Portanto, enquanto ao nível da literatura culta surgem as grandes obras renascentistas de um Boccaccio, um Camões, um Bernardim Ribeiro, um Rabelais, um Garcilaso de la Veja, um Ronsard... ao nível da literatura popularizante registram-se apenas quatro obras que, apesar de conter matéria semelhante à das narrativas medievais, apresentam nítida superioridade estilística e lingüística, quando comparadas com a anterior. Trata-se das coletâneas feitas pelos italianos Caravaggio, Basile, Croce e pelo português Trancoso, - coletâneas onde se encontram narrativas de origem oriental e relatos “exemplares” comuns no fim da Idade Média, muitos dos quais vão fazer parte do acervo da Literatura Infantil que começa a aparecer do século XVII em diante. (Obviamente, deixamos de mencionar o grande nome do século XVI, ligado ao popular, que é Gil Vicente, porque o teatro representa um outro problema a ser analisado...). 2.3 – SÉCULO XVII: ABSOLUTISMO E CLASSICISMO É na França, na segunda metade do século XVII, durante a monarquia absoluta de Luís XIV, o “Rei Sol”, que se manifesta abertamente a preocupação com uma literatura para crianças ou jovens. As Fábulas (1668) de La Fontaine; os Contos da Mãe Gansa (1691/1697) de Charles Perrault; os Contos de Fadas (8 volumes – 1696/1699) de Mme. D’Aulnoy e Telêmaco (1699) de Fénelon são os livros pioneiros do mundo literário infantil, tal como hoje o conhecemos. É essa uma literatura que resulta da valorização da Fantasia e da Imaginação e que se constrói a partir de textos da Antiguidade Clássica ou de narrativas que viviam oralmente entre o povo. Tal “tradição”, popularizante ou erudita, redescoberta ou recriada por escritores cultos, contrasta vivamente com a alta literatura clássica produzida nesse momento: o teatro de um Corneille ou de um Racine, um Malherbe; a oratória de um Bossuet; a teorização poética de um Boileau... Entretanto, vista dentro do panorama geral das idéias e correntes que caracterizam o século XVII, tal literatura torna-se perfeitamente justificada. Conhecendose esse panorama e como nasceu essa “literatura infantil”, descobre-se a seriedade e os altos objetivos que nortearam a construção de cada um de seus títulos. Não há nada, nessa produção, que seja gratuito ou tenha surgido como puro entretenimento sem importância, como muitos vêem a Literatura Infantil em geral. 2.3.1 – O MOMENTO CULTURAL Depois da turbulência política e o desequilíbrio que se seguiram à eclosão do Renascimento e à anarquia das guerras civis, a França, mais cedo do que qualquer outra nação, tenta reencontrar o equilíbrio. O século XVII francês (cujo modelo se impõe ao mundo civilizado de então) se caracteriza, acima de tudo, por um enorme esforço para estabelecer uma ordem racional, não só no pensamento, como na Sociedade, nos costumes e na Vida em geral. Lembremos que essa “ordem racional” tinha como alicerce o princípio humanista, de que era através da Razão que o homem podia conhecer a Verdade, a Beleza e o Bem. Ora, sendo essa Razão um poder inato para o conhecimento, que busca a experiência concreta para desenvolver de maneira ampla suas possibilidades inatas, é de se compreender a força dos dois fatores que marcam a arte clássica: a ênfase na grandeza do Homem (= dono da Razão que lhe possibilitava o Conhecimento) e obediência ao modelo dos antigos (= os que haviam realizado em alto grau de perfeição as experiências humanas dignas de serem imitadas). Em 1637, o Discurso do Método de Descartes (dando total apoio à Razão inata) ilustra bem essa tendência filosófica. De acordo com esse ideal dominante, instaura-se na primeira metade do século, em toda sua plenitude, o racionalismo na literatura, desde sempre se defrontando com duas grandes forças opostas: as do preciosismo e as do realismo libertino, - correntes de pensamento responsáveis pelas diferenças de temas ou problemas que marcam a produção literária da era clássica. Na primeira metade do século, essas duas tendências se manifestaram na produção de uma prosa narrativa caudalosa, exuberante, fantasista, que, em tudo, contrastava com a alta disciplina que presidia aos dois gêneros “nobres” da época: o teatro e a poesia. Pode-se dizer que o “romance precioso” e o “romance realista libertino” representam o avesso da alta literatura poética e teatral que acabou por caracterizar as tendências ortodoxas do Classicismo... Neles, nenhum “espírito de ordem”, nenhuma “objetividade”, nenhum “racionalismo” organizador... mas, pelo contrário, o excessivo, o tumultuado, o inverossímil, a fantasia mais exuberante. O “romance libertino”, de intenções filosóficas, tende à crítica cínica da vida cotidiana na corte, mas uma crítica entremeada de mil incidentes romanescos e personagens mitológicas. Muito mais difusão teve o “romance precioso” (cuja obra de maior repercussão foi Astrée d d’Urfé, publicada a 1ª parte em 1607 e a última em 1627). Se levarmos em conta a influência que ele exerceu posteriormente sobre vários escritores, pode-se dizer que foi, sem dúvida, o maior sucesso literário da França no século XVII. Herdeiro das novelas de cavalaria medievais e do romance pastoril renascentista (=Arcádia de Sannazzaro – 1502; Diana de Montemayor – 1582; e Galatea de Cervantes – 1585), o “romance precioso” desenvolve-se através das aventuras fantástico-maravilhosas de cavaleiros andantes ou cortesãos, ninfas, pastoras, pastores ou seres imaginários... e assim leva à exageração ou à deformação o idealismo básico do pensamento clássico; e também contraria o racionalismo e equilíbrio buscados pela estética clássica, que nesse momento se regulamentava definitivamente. A verdade é que, sendo herdeiro das idéias humanistas do século XVI, o século XVII (em suas décadas iniciais) vai prolongar o ideal de vida heróica e romanesca, típico do Renascimento. Um ideal de grandeza humana que se fundamenta, entre os franceses, sobre uma espécie de estoicismo cristão (representado pelos heróis de Corneille, cujas paixões são dominadas pela razão, mas não humilhadas...). Em meados do século, porém, vai-se dar uma mudança sensível nesse ideal “cavaleiresco, galante e orgulhoso”. O teatro de Molière e as fábulas de La Fontaine mostram claramente que já não se crê mais no estoicismo como ideal de comportamento. Um certo epicurismo infiltra-se na seriedade clássica. A grandeza intrínseca do homem parece ser posta em dúvida. La Fontaine e Molière, embora não se mostrem pessimistas com relação ao homem, deixam bem claro que não se deve contar demasiado com suas forças, nem pedir-lhe demasiado... pois seria ingênuo acreditar que ele é naturalmente bom e que sua razão inata o inclina à Verdade e ao Bem. “A razão do mais forte é sempre a melhor.” É o que constata La Fontaine. O ideal muda: em lugar de sonhar com heroísmos, o homem deve buscar uma sabedoria modesta. Inclusive, a legitimidade do magistério dos Antigos começa a ser posta em questão. Até que em 27 de janeiro de 1687 um poema de Charles Perrault, “O Século de Luís, o Grande”, é lido em sessão extraordinária na Academia Francesa e desencadeia a “Querela dos Antigos e dos Modernos”. Esta traz à tona as discordâncias internas do pensamento e da estética clássica e se prolonga por todo século XVIII, auxiliando decisivamente a fermentação das novas idéias que eclodiram na Era Romântica. Índice claro dessas “discordâncias” é o fato de que, exatamente no apogeu do racionalismo clássico (entre 1659 e 1680 mais ou menos), surgem as “obras clássicas” da Literatura Infantil, hoje espalhadas por todo o mundo civilizado, e que valorizam basicamente a fantasia, o imaginário, o maravilhoso... exatamente o contrário da atitude racionalista preconizada no momento. 2.4 – SÉCULO XVIII: O PRÉ-ROMANTISMO Se o foco gerador do Renascimento literário foi a Itália; o do equilíbrio clássico, no século XVII, foi a França; agora, no século XVIII, é na Inglaterra (do mercantilismo imperialista, da Revolução Agrária e Revolução Industrial) que surge o novo gênero que desse momento em diante vai superar todos os demais. Trata-se do romance, - a forma de ficção narrativa que se torna a expressão literária ideal da Sociedade burguesa que então se consolida. Entretanto, antes de aparecerem os primeiros modelos do romance moderno (tal como Richardson o vai criar com Pámela e Clarissa), surgem duas obras de ficção que, pela originalidade de sua invenção e enraizamento na Vida Real, foram, desde o primeiro momento, um sucesso absoluto entre os leitores e até hoje correm mundo entre as demais obras-primas da literatura universal. Referimo-nos ao Robinson Crusoé (1719) de Daniel Defoe e às Viagens de Gulliver (1726) de Jonathan Swift. Ambas publicadas na Inglaterra das primeiras décadas do século XVIII, quando se dava a grande transformação do mundo clássico, aristrocrático (baseado nos privilégios e hierarquias de sangue, nobreza e poder herdados ou conquistados pela guerra), para o mundo romântico, burguês (baseado nas relações de interesse criadas pelo individualismo, dinheiro, trabalho, produção, mercantilismo, industrialização, produção, progresso... que procuraram substituir as guerras por Tratados , Contratos ou Alianças de Paz, mas...) Mais uma vez se comprova o mistério ou a arbitrariedade que regem o destino dos livros: ambos os títulos, originalmente escritos para adultos e alimentados por um espírito crítico, senão cruel e cético, pelo menos descrente do gênero humano, transformaram-se, com o tempo e as “adaptações” , em duas das mais importantes obras da Literatura Infanto-Juvenil de todo o mundo. 2.5 – A INFÂNCIA E O SÉCULO XVIII ( A Pedagogia de Jacques Rosseau) Para além do que representa como preparação para o advento do Romantismo, que se aproximava, o século XVIII teve também o mérito de abrir caminho para o reconhecimento da criança (ou da infância) como um ser com características próprias e de cuja educação dependeria, no futuro, a personalidade ou o caráter do adulto. Embora nosso objetivo aqui não seja a análise das tendências pedagógicas da época, o fato de a criação literária para crianças estar tão intimamente ligada às diretrizes educacionais leva-nos a registrar o que então ocorria nessa área. Século que assistiu não só à expansão do Iluminismo, do Racionalismo e das idéias do Enciclopedismo (Montesquieu, D’Almabert, Voltaire, Diderot...), mas também às conquistas científicas e tecnológicas que mudavam a feição do mundo conhecido, é natural que tivesse se empenhado igualmente nos debates sobre a necessidade de uma nova pedagogia. Mas como é natural, as novas idéias educacionais, até o início do século XIX, permaneceram limitadas aos estudos e discussões, entre filósofos, psicólogos, pedagogos e escritores empenhados nas inovações. Pela extensão da influência que exerceram, destacamos três tendências: a doutrina empirista do inglês John Locke (1632-1704), - pela qual a origem do conhecimento é a experiência; o racionalismo cientificista e revolucionário do Enciclopedismo, - alertando para a importância da preparação técnica para os novos ofícios que surgiam, gerados pela máquina, que começava a invadir os sistemas de produção; e finalmente a doutrina naturalista de J. J. Rousseau ( 1712/1778), fundamentada em idéias religiosas e que, prescindindo do pecado original, afirmava a bondade natural do homem, corrompido pelos males da civilização. Essas três tendências nascentes explicam a natureza das inovações pedagógicas que marcaram a Escola Nova, a partir do século XIX, articulada por diferentes discípulos de Rousseau, como Pestalozzi, Herbart, Froebel, Decroly, Motessori, Claparède, Dewey... Inovações que têm sua pedra-de-toque na experiência concreta ou no convívio direto dos alunos com o fenômeno a ser conhecido. Daí a vulgarização (que chega até nosso século) da educação pelas coisas, considerada superior à educação pelas palavras (típico da pedagogia clássica, essencialmente retórica). Das três tendências acima mencionadas, a de Rousseau foi inegavelmente a de influência mais ampla. O livro-chave de suas idéias reformadoras na educação foi Emílio ou Da Educação (1726), escrito após longos anos de reflexão e que, apesar de condenado e queimado pelo Tribunal da Justiça, em Paris (11 de junho de 1762), foi dos livros de maior repercussão em sua época e períodos posteriores. Apesar de alguns defeitos de base (como a ênfase dada à educação do corpo e dos sentidos, em detrimento da educação e da inteligência, que só viria depois de 12 anos), a maior parte de seus princípios ainda são plenamente aceitos: a exigência de atividades práticas; a observação direta dos objetos de estudo; a adequação do ensino às faculdades da criança; o ensino ativo; a formação moral pelo exemplo e não pela punição etc. Entre as noções mais discutíveis de seu método natural, está a proibição dos livros às crianças, na primeira educação (até os 12 anos). Inclusive, proíbe as fábulas, como perniciosas à formação moral das crianças. Diz ele, no Livro IV de Emílio: Ensinamos as fábulas de La Fontaine a todas as crianças, e não há uma só que as compreenda. E se as entendessem, seria pior ainda, porque a moral ali está tão misturada e desproporcionada à sua idade que levaria mais facilmente ao vício do que à virtude. Direis que aí está um paradoxo. Seja, mas vejamos se não são verdades. Digo que uma criança não compreende as fábulas que lhe ensinamos, porque qualquer esforço que façamos para torná-las simples, o ensinamento que queremos tirar delas, leva a idéias que ela não pode apanhar, e que a própria forma de poesia, tornando-as mais fáceis de guardar de memória, torna-as também mais difíceis de conceber, de sorte que compramos o divertimento à custa da clareza. (...) Pergunto ainda se é a crianças de seis anos que será necessário ensinar que os homens elogiam e mentem para proveito próprio. (...) Acompanhai crianças que tenham estudado as fábulas e vereis que, quando as forem aplicar, farão em geral o contrário daquilo que foi a intenção do autor, e que, em lugar de se guardarem do defeito que precisa ser evitado, inclinam-se a apreciar mais o vício com o qual se tira partido dos outros. Enumera ainda uma série de fábulas, onde ressalta exatamente o contrário da moral visada por La Fontaine. (Seria o caso de tentarmos com nossas crianças, hoje, verificar até que ponto entendem a crítica presente nessas fábulas que continuam sendo oferecidas como leituras “infantis”.) Quanto à educação feminina, Rousseau dá voz ao Sistema Patriarcal que herdamos. Lno Livro V de Emílio, está: Toda educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradá-los, ser-lhes úteis, se fazerem amar e honrar por eles, educar os jovens, cuidar dos grandes, aconselhá-los, consolá-los, torna-lhes a vida agradável e doce: eis os deveres das mulheres em todos os tempos, e o que devemos ensinar-lhes desde a infância. Em Sophie, Rousseau cria o modelo de mulher que uma educação natural levaria a formar o casal feliz, com Émile. Obviamente, esse princípio de base, assimilado pelo Romantismo e perpetuado pelos costumes e pela pedagogia até o nosso século, explica a atitude que as meninas assumem nas estórias e também a imagem que a literatura tradicional (e muita literatura atual...) oferece às mulheres, como um modelo a ser imitado. Substituir essa imagem por outra mais condizente com os novos tempo e as novas conquistas está sendo o árduo trabalho de todos conscientizadas...). os espíritos criadores de nossos dias (e das mulheres 2.6 – SÉCULO XIX: romantismo e realismo (a descoberta da criança) Período decisivo para a consolidação da Sociedade liberal/burguesa, o século XIX representa o apogeu da Era Romântica, quando se dá a confluência/amálgama dos valores herdados da aristocrática Era Clássica e dos novos valores que o Individualismo romântico/plebeu vinha, lentamente, forjando, desde há muito. A partir do Romantismo (1ª fase da Era Romântica), vemos que em todas as nações européias e americanas, com maior ou menor ênfase, cresce rapidamente o número de autores e de grandes obras que marcam a gênese e evolução da Literatura, das Idéias e dos Valores que, hoje, conhecemos como Tradição. Conhecido literariamente como o século de ouro do romance e da novela, o XIX é marcado pela convergência de diferentes tendências e correntes literárias, que mesclam o culto e o popular. É dessa mescla que surge a forma romance, - o gênero narrativo que se queria um espelho da sociedade e que se torna a forma mais importante de entretenimento para o grande público da época (e que nosso século herdaria, para logo em seguida tentar destruir ou transformar). Toda uma evolução mental, econômica e social, atuando desde a base, alterava o conhecimento-de-mundo, no plano de Idéias; transformava a Vida no plano do cotidiano ou da práxis e, evidentemente, criava uma nova representação-de-mundo, no plano da Literatura (ou das Artes em geral). Dentro desse processo renovador, a criança é descoberta como um ser que precisava de cuidados específicos para sua formação humanística, cívica, espiritual, ética e intelectual. E os novos conceitos de Vida, Educação e Cultura abrem caminho para os novos e ainda tateantes procedimentos na área pedagógica e na literária. Podese dizer que é nesse momento que a criança entra como um valor a ser levado em consideração no processo social e no contexto humano. Mas, como é natural em todo fenômeno de transformação cultural, essa descoberta da infância não se fez de chofre. A criança começa por ser encarada como um adulto em miniatura, cujo período infantil deveria ser encurtado o mais depressa possível para que ela pudesse superá-lo e alcançar o estado adulto, ideal. A descoberta da qualidade específica do ser criança ou do ser adolescente (como estados biológicos e psicológicos e valiosos, no desenvolvimento do ser) será feita em nosso século XX. O idealismo romântico, entretanto, criou o mito da infância (como o da idade de ouro do ser humano) e o da adolescência (como o da pureza e sensibilidade instintivas, que o mundo adulto corromperia ou decepcionaria). Nos rastros dessa descoberta da criança, surge também a preocupação com a literatura que lhe servia para a leitura, isto é, para sua informação sobre os mais diferentes conhecimentos e para a formação de sua mente e personalidade (segundo os objetivos pedagógicos do momento). 2.7 – O BRASIL DE ENTRE-SÉCULOS: do Final do Império de D. Pedro II às Vésperas do Modernismo (1861/1919) Foi durante a primeira metade do século XIX que o Brasil iniciou sua caminhada para o progresso econômico, independência política e conquista da cultura que o colocaria entre as nações civilizadas do Ocidente. Caminhada aberta pela mudança da corte portuguesa para cá, em 1808, e pelas medidas oficiais tomadas imediatamente por D. João VI, no sentido de preparar a colônia brasileira para ser a nova sede do reino de Portugal. Praticamente tudo estava por fazer e tudo foi sendo feito em tempo realmente curto; acelerando-se mais, a partir de 1822, quando o Príncipe Dom Pedro, reagindo às decisões da nova Constituição Portuguesa (que pretendia fazer o Brasil voltar à antiga situação de colônia), proclama a Independência e se torna o Imperador do Brasil, com o título de D. Pedro I. No setor o Ensino, como nos demais setores, a carência era total. O Brasil enfrentava ainda as conseqüências da supressão do ensino jesuíta, sem que outro sistema viesse substituí-lo, apesar de algumas tentativas isoladas, em diferentes pontos do país. Entre as primeiras medidas oficiais, tomadas por D. João VI, estava a criação de Academias, Cursos, Escolas etc., visando atender, com urgência, à formação de profissionais competentes em todos os setores da Sociedade. Mas, evidentemente, na prática os resultados não podiam ser muito auspiciosos. Estudo e Cultura são aquisições que demandam tempo. Sabe-se, porém, que a educação era dos problemas que mais preocupavam os mentores de nosso desenvolvimento. Tão logo foi fundado o Império do Brasil, tem início uma fase de debates, projetos, reformas do ensino primário, secundário e superior, tendo por objetivo a estruturação de uma educação nacional, orientada pelas diretrizes “iluministas”. Desde a Carta Constitucional de 11 de dezembro de 1823 (que declara dever do Estado “a instrução primária a todos os cidadãos e que em colégios e em universidades se ensinassem as ciências, as belas-letras e as artes”), até a última “Fala do Trono”, em 3 de maio de 1889 (na qual D. Pedro II solicitou a “criação de um ministério de instrução, destinado aos negócios, a criação de escolas técnicas adaptadas às condições e conveniências locais, duas Universidades” etc.), muitos projetos puderam ser concretizados, mas grande parte frustrou-se. Foi no entre-séculos (quando as grandes transformações da sociedade brasileira se processavam) que o sistema escolar nacional passa por reformas de real alcance e incorpora em sua areal também a produção literária para crianças e jovens. Simultaneamente ao aumento de traduções e adaptações de livros literários para o público infanto-juvenil, começa a se firmar, no Brasil, a consciência de que uma literatura própria, que valorizasse o nacional, se fazia urgente para a criança e para a juventude brasileiras. (Tal como vinha sendo feito na área da literatura “adulta” e nos demais setores do pensamento culto.) Essa experiência literária vai-se dar, inicialmente, no âmbito do ensino escolar. A época era de transformações aceleradas. Emergia uma nova classe, - a classe média, que se auto-afirma, principalmente através das profissões liberais. Um novo valor começa a ser dado à inteligência, ao Saber. Analisadas em conjunto, as obras pioneiras (sejam adaptações, traduções ou originais) revelam facilmente a natureza da formação ou educação recebida pelos brasileiros desde meados do século XIX. Uma educação orientada para a consolidação dos valores do Sistema Herdado (= mescla de feudalismo, aristocratismo, escravagismo, liberalismo e positivismo). Os pilares desse sistema educativo seriam: 1 – Nacionalismo: preocupação com a língua portuguesa falada no Brasil; preocupação de incentivar nos novos entusiasmo e dedicação pela pátria; o culto das origens e o amor pela terra (com ênfase na vida rural e, conseqüentemente, idealização da vida do campo, em oposição à vida urbana). 2 – Intelectualismo: valorização do estudo e do livro, como meios essenciais de realização social – meios que permitiriam a ascensão econômica através do Saber. 3 – Tradicionalismo cultural: valorização dos grandes autores e das grandes obras literárias do passado, como modelos da cultura a ser assimilada e imitada. 4 – Moralismo e religiosidade: exigência absoluta de retidão de caráter, honestidade, solidariedade, fraternidade, pureza de corpo e alma, dentro dos preceitos cristão. São esses valores que encontramos na obra dos precursores e que, em certa medida, persistem latentes na criação literária posterior. 2.8 – BRASIL – SÉCULO XX 2.8.1 – Monteiro Lobato, um Marco A Monteiro Lobato coube a fortuna de ser, na área da Literatura Infantil e Juvenil, o divisor de águas que separa o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. Fazendo a herança do passado imergir no presente, Lobato encontrou o caminho criador que a Literatura Infantil estava necessitando. Rompe, pela raiz, com as convenções estereotipadas e abre as portas para as novas idéias e formas que o nosso século exigia. Entretanto, essa criação não se fez de chofre. Foi resultado de um longo processo de maturação. Quando A Menina do Narizinho Arrebitado foi publicado, em 1920, Monteiro Lobato estava com 38 anos de idade. Desde adolescente começara a lidar com as letras, escrevendo crônicas e artigos para a imprensa do interior e da capital paulista. Leitor voraz, preocupava-se igualmente com a renovação da Literatura Brasileira, no sentido de seu encontro com o autêntico da realidade brasílica e com a linguagem brasileira, liberta do magistério lusitano. Nos contos naturalistas de Urupês, com que Lobato estréia literariamente, está patente essa busca do nacional, tanto na linguagem quanto na matéria que lhe serve de tema. 2.8.2 - Criatividade e Literatura Infantil nos anos 70/80 A explosão de criatividade que, na década de 60, se dá na área da Música Popular Brasileira, em meados dos anos 70 vai-se dar com a Literatura Infantil/Juvenil (e também com o Teatro Infantil). Esse valor repercute além-fronteiras. Foram inúmeras as distinções concedidas no Exterior a essa nossa produção (seja através de prêmios ou de traduções). E em 1983, o Prêmio Internacional Hans Christian Andersen (espécie de Nobel da Literatura Infantil) foi concedido ao Brasil, pelo conjunto da obra de Lygia Bojunga Nunes. Entre os nomes que vêm dos anos 50-60 e prosseguem produzindo uma obra “sintonizada” com as novas forças, lembramos: Antonieta Dias de Moraes, Camila C. César, Lúcia Amaral, Lúcia Machado de Almeida, Maria Dinorah, Maria Heloisa Penteado, Odette de Barros Mott, Orígenes Lessa, Stella Carr e Stella Leonardos. A par de inúmeros “continuadores” que seguem nas trilhas batidas, surgiram dezenas de escritores e escritoras, obedecendo a uma nova palavra de ordem: experimentalismo com a linguagem, com a estruturação narrativa e com o visualismo do texto; substituição da literatura confiante/segura por uma literatura inquieta/questionadora, que põe em causa as relações convencionais existentes entre a criança e o mundo em que ela vive, questionando também os valores sobre os quais nossa Sociedade está assentada. As novas forças estimulam os criadores a preparar as novas gerações para a estruturação/construção de um novo mundo; e não para a consolidação de um Sistema já estruturado em suas bases (como aconteceu no século XIX, ao difundir através da Literatura Infantil/Juvenil os valores do Romantismo/Realismo...). Entre os muitos que, entre nós, tiveram sua criatividade e consciência crítica comprovadas por uma produção inovadora, registramos: Nos anos 70: Ana Maria Machado, André Carvalho, Ary Quintella, Bartolomeu Campos Queirós, Carlos Marigny, Dirceu Quintanilha, Domingos Pellegrini, Edson Gabriel Garcia, Edy Lima, Euclides Marques de Andrade, Everaldo Moreira Veras, Eliane Ganem, Elias José, Fernanda Lopes de Almeida, Ganymedes José, Giselda Laporta Nicolelis, Henry Correa de Araújo, Haroldo Bruno, Ignácio de Loyola Brandão, Joel Rufino dos Santos, João Carlos Marinho, Leny Werneck, Lurdes Gonçalves, Lúcia P. Sampaio Góes, Lúcia Aizim, Luiz Paiva de Castro, Lúcia Minners, Lygia Bojunga Nunes, Margarida Ottoni, Marta Azevedo Pannunzio, Moacir C. Lopes, Rachel de Queiroz, Ruth Rocha, Sérgio Caparelli, Teresa Noronha, Vivina de Assis Viana, Ziraldo, Wander Piroli, Werner Zotz... Nos anos 80: Alina Perlman, Amaury Braga da Silva, Anna Flora, Assis Brasil, Antônio Hohlfeldt, Carlos Moraes, Ciça Fittipaldi, Elza Cezar Sallut, Flávia Muniz, Josué Guimarães, Jandira Mansu, Jorge Miguel Marinho, Libério Neves, Lourenço Diaféria, Lino Albergaria, Luiz Galdino, Luís Puntel, Luís Camargo, Márcia Kupstas, Marina Colasanti, Mirna Pinsky, Paula Saldanha, Pedro Bandeira, Ricardo Azevedo, Ricardo da Cunha Lima, Santuza Abras P. Coelho, Roniwalter Jatobá, Tatiana Belinky, Telma Guimarães, Terezinha Alvarenga... 2.8.3 - A Ilustração Destaque-se nessa senda inovadora a excelente produção dos novos ilustradores empenhados em criar, através da imagem, uma linguagem narrativa autônoma. Destacamos: Ângela Lago, Ana Raquel, Alice Góes, Ciça Fittipaldi, Eliardo e Mary França, Gê Orthof, Gian Calvi, Gerson Conforto, Helena Alexandrino, Luís Camargo, Naomi Koruba, Patrícia Gwinner, Tato Orthof, Tenê, Ziraldo... 2.8.4 - A Poesia Área essencialmente importante da criação literária para crianças e jovens, a Poesia vem ganhando cada vez mais espaço em nosso mercado editorial e, o que é mais importante, na preferência dos pequenos leitores. Entre os nomes mais significativos de poetas estão: Antônio Barreto, Bartolomeu C. Queirós, Carlos Nejar, Elza Beatriz, Elias José, Guiomar, José Paulo Paes, Marina Colasanti, Marcus Accioly, Mário Quintana, Pedro Bandeira, Renata Pallottini, Roseana Murray, Sinval Medina, Sylvia Orthof. Em todos esses setores de criação literária e também na área didática (onde a literatura deve circular, pois é onde poderá abranger o maior público...), a palavra de ordem, hoje, é a criatividade. Há todo um mundo para ser transformado, e os novos precisam ser preparados para essa tarefa. 2.8.5 - As Tendências da Literatura Infantil Atual Analisando a natureza dessa literatura mais recente, conclui-se que hoje não há um ideal absoluto de Literatura Infantil (nem de nenhuma outra espécie literária). Será “ideal” aquela que corresponder a uma necessidade profunda do tipo de leitor a que ela se destina, em consonância com a época que ele está vivendo... Vista em conjunto, a atual produção de Literatura destinada a crianças e jovens, entre nós, apresenta três tendências mais evidentes: a realista, a fantasista e a híbrida. O eu talvez seja novo em qualquer delas é a busca de sua identidade cultural, em que o Brasil contemporâneo está empenhado. 1 – A Literatura Realista pretende expressar o Real, tal qual é percebido ou conhecido pelo senso comum, e visa um (ou mais) dos objetivos seguintes: 1.1 – Testemunhar o mundo cotidiano, concreto, familiar e atual, que o jovem leitor pode reconhecer prontamente, pois é nele que vive. (São livros que registram a vida infantil ou juvenil, no cotidiano, com as travessuras ou os vários problemas gerados pela necessidade de adaptação da criança ou do jovem ao mundo adulto. Entra nessa linha a literatura “participante” de intenções políticas.) 1.2 – Informar sobre costumes, hábitos ou tradições populares da diferentes regiões do Brasil. (Livros que se destinam principalmente aos jovens leitores dos grandes urbanos, no sentido de conscientizá-los para que o que é realmente o Brasil em seu todo, e quais são seus problemas humanos e sociais mais agudos.) 1.3 – Apelar para a curiosidade e a argúcia do leitor, explorando enigmas ou aparentes mistérios de certos acontecimentos que rompem a rotina cotidiana (como nos romances policiais). 1.4 – Preparar psicologicamente os pequenos leitores para enfrentarem sem ilusões, mais tarde ou mais cedo, as dores e sofrimentos da vida. (São livros que escolhem como problemática temas de sempre, - como a morte; ou tema mais recentes e não menos dolorosos, - como a separação dos casais e o problema dos filhos divididos; o problema dos tóxicos; as injustiças sociais; o racismo; as crianças abandonadas; a marginalização da mulher; etc. É via de regra, uma literatura pessimista que se fecha para a vida plena. Claro sinal destes tempos de violência e desequilíbrios, invadindo todos os recantos da vida humana... 2 - A Literatura Fantasista apresenta o mundo maravilhoso, criado pela Imaginação, e que existe fora dos limites do Real e do Senso Comum. Nesse universo literário, prevalece o lúdico ou o jogo sobre as demais experiência reais. As soluções estilísticas escolhidas pelos escritores têm sido as mais diversas: a que opta por personagens-animais (dando continuidade aos princípios da fábula...); a que se utiliza das descobertas da ciência para criar seus enredos (como a ficção científica); a que transcorre no âmbito do maravilhoso do “Era uma vez...” (onde o espaço e o tempo normais não existem e onde o inverossímil torna-se verossímil); a que utiliza a Imaginação como símbolo ou intuição de Metafísico; etc. Os que optam pela forma fantasita dão prioridade à ficção sobre o real. Sentemse mais atraídos pelo desconhecido do que pelo já conhecido; dão mais valor ao que podia ser ou acontecer do que àquilo que é ou que acontece realmente. Sentem-se compelidos, sem dúvida, a revelar o Trans-Real, o extraordinário ou o inexplicável pela lógica comum; ou ainda o insuspeitado que está ou pode estar oculto por detrás da aparência íntegra e comum do Real, vulgarmente conhecido. 3 – A Literatura Híbrida parte do Real e nele introduz o Imaginário ou a Fantasia, anulando os limites entre um e outro. É, talvez, a mais fecunda das diretrizes inovadoras. Os universos por ela criados se inserem na linha do Realismo Mágico, tão em voga na Literatura Contemporânea. Comumente, seu espaço básico é o próprio cotidiano, bem familiar às crianças, onde de repente entra, de maneira natural, o estranho, o mágico, o insólito... É a linha inaugurada entre nós por Monteiro Lobato e que os novos escritores enriqueceram com descobertas inesperadas. Nessa linha inscreve-se uma corrente nova, bastante importante: a que redescobre as nossas origens brasílicas ou a essencialidade e a magia da literatura mítica ou folclórica, filtrada por uma visão culta e criadora. 3 – A CONFORMIDADE TEXTUAL -Adaptação e trivialização Além das adaptações diretas de textos clássicos estrangeiros que tradicionalmente agradam ao público infanto-juvenil brasileiro, outras existem que, indiretamente, apropriam-se deles e repetem, de maneira trivializada, aspectos temáticos e recursos retóricos numa aproximação apenas tangencial e quase acidental das matrizes literárias. É o que sugerem os textos analisados, quando contrapostos a obras como Robisnon Crusoé (Daniel Defoe, 1719) e Dom Quixote de La Mancha (Miguel de Cervantes, 1605-1615), por exemplo. E talvez seja também no diálogo intertextual que se possam buscar outras fontes para iluminar as sensíveis limitações de literatura trivial infanto-juvenil em seu “funcionamento conforme” sem nos esquecer de que “as distorções constitutivas da literariedade de um texto continuam perceptíveis mesmo que os sistemas normativos tenham mudado.” Apesar de citarmos apenas dois clássicos, é possível encontrar muitos outros, todos eles importantes instrumentos para o desenvolvimento deste trabalho, com sua dupla função. Odisséia, Os Lusíadas, El Cid, dentre outros são perfeitamente aplicáveis a nossa proposta, desde que previamente planejada e elaborada. As salas de leitura, juntamente com as salas de aulas são o campo ideal para este desenvolvimento. 4 – ESTRATÉGIAS PARA APLICAÇÃO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL 4.1 - O SIMBOLISMO LINGUÍSTICO2 Primeira Noção de Signo Para que uma língua cumpra os seus fins, é necessário que os membros de uma comunidade, que compartilham as mesmas experiências coletivas, se coloquem previamente de acordo quanto ao sentido que vão atribuir às partes da corrente sonora que emitem e ouvem. Em outras palavras, é preciso que concordem em atribuir a determinados conjuntos fônicos, produzidos em certas situações, o poder de traduzir um determinado elemento da sua experiência histórica. Esse contrato social funda o convencionalismo do signo. Generalizando o alcance de suas experiências, os falantes de cada língua associam, assim, de modo arbitrário, por uma relação puramente simbólica, um conteúdo (= sentido) e uma expressão. A condição de inteligibilidade para a comunicação lingüística é dada pela correspondência de escolhas efetuadas no plano da expressão a outras escolhas efetuadas no plano do conteúdo. Ao falar ou ouvir a palavra “casa” /’kaza/, por exemplo, compreendemos que essa seqüência de sons, diferente de qualquer outra seqüência, refere-se a um significado “espaço construído 2 Por simbolização entenderemos, com Benveniste (1966a. 26a), “a faculdade de representar o real por um “signo” e de compreender o “signo” como representante do real, de estabelecer, portanto, uma relação de “significação” entre alguma coisa e alguma outra coisa. (...) A faculdade simbolizante permite, com efeito, a formação do conceito como algo distinto do objeto concreto.” pelo homem para lhe servir de habitação” diferente de qualquer outro significado. Se isso ocorrer, o conjunto de sons /’kaza/ transforma-se em signo lingüístico. O signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica3. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegarmos a chamá-la “material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mas abstrato. O caráter psíquico de nossas imagens acústicas aparece claramente quando observamos nossa própria linguagem. Sem movermos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou recitar mentalmente um poema. E porque as palavras da língua são para nós imagens acústicas, cumpre evitar falar dos “fonemas” de que se compõem. Esse termo, que implica uma idéia de ação vocal, não pode convir senão à palavra falada, à realização da imagem interior no discurso. Com falar de sons e de sílabas de uma palavra, evita-se o mal-entendido, desde que nos recordemos tratar-se de imagem acústica. O signo lingüístico é, pois, uma entidade psíquica de duas faces, que pode ser representada pela figura: CONCEITO ____________________ IMAGEM ACÚSTICA Esses dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro. Quer busquemos o sentido da palavra latina “arbor”, ou a palavra com que o latim designa o conceito “árvore”, está claro que somente as vinculações consagradas pela língua nos parecem conformes à realidade, e abandonamos toda e qualquer outra se possa imaginar. 3 “ÁRVORE” ____________________ ____________________ ARBOR ARBOR O termo de imagem acústica parecerá, talvez muito estreito, pois, ao lado da representação dos sons de uma palavra, existe também a de sua articulação, a imagem muscular do ato fonatório. Para F. de Saussure, porém, a língua é essencialmente um depósito, uma coisa recebida de fora. A imagem acústica é, por excelência, a representação natural da palavra enquanto fato de língua virtual, fora de toda realização pela fala. O aspecto motor pode, então, ficar subentendido ou, em todo caso, não ocupar mais que um lugar subordinado em relação à imagem acústica. Esta definição suscita uma importante questão de terminologia. Chamamos signo a combinação do conceito e da imagem acústica: mas, no uso corrente, esse termo designa geralmente a imagem acústica apenas, por exemplo uma palavra (arbor etc.). Esquece-se que se chamamos a arbor signo, é somente porque exprime o conceito “árvore”, de tal maneira que a idéia da parte sensorial implica a do total. A ambigüidade desapareceria se designássemos as três noções aqui presentes por nomes que se relacionem entre si, ao mesmo tempo que se opõem. Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica respectivamente por significado e significante; estes dois temos têm a vantagem de assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total de que fazem parte. Quanto a signo, se nos contentarmos com ele, é porque não sabemos por que substituílo, visto não nos sugerir a língua usual nenhum outro. Signos Não-Linguísticos: O Símbolo Os Símbolos são objetos materiais que representam noções abstratas: um pedaço de fazenda preta para significar o luto, uma cruz para significar o Cristianismo, são símbolos. A representação do símbolo é sempre deficiente ou inadequada parcialmente em relação ao conjunto das noções simbolizadas, porque o símbolo é uma parte do todo que é o conteúdo abstrato com o qual se relaciona. Assim, o conceito de justiça é muito mais amplo do que o conteúdo abrangido pela balança, que recorda apenas um dos atributos da justiça, a igualdade; e o conjunto de noções ligadas ao Cristianismo desborda, de muito, o primeiro significado da cruz, que recorda, apenas, o momento supremo dessa doutrina religiosa. Desse modo, a relação entre o símbolo e o conteúdo simbolizado é pelo menos parcialmente motivada: a figura de uma caveira com duas tíbias cruzadas para representar a morte, o desenho de um coração traspassado por uma flecha para simbolizar o amor etc., mostram que há, entre símbolo e conteúdo simbolizado, uma série de traços comuns. São características do símbolo: (a) a polissemia4: a cor branca representa a luz, a paz, a inocência, enquanto que a cor negra simboliza as trevas, a morte, a dor, a ignorância etc.; (b) a sinonímia: o sentido paz pode ser simbolizado por uma pomba branca, por um ramo de oliveira, pela figura da mulher etc; também a figura de Eros, um coração 4 Essa polissemia repousa na variabilidade dos contextos de ocorrência do símbolo: assim, a figura de uma mulher pode representar, conforme o contexto, a vida, a fecundidade, a paz etc. traspassado por uma flecha, uma rosa vermelha, simbolizam, todos, um único sentido, o amor. Sinais Não-Sígnicos: O Ícone ou Imagem A noção de Ícone foi introduzida na Semiologia por Peirce e, posteriormente, por Morris. Quando vemos uma fotografia de nosso amigo João, reconhecemos nela uma representação de João; um mapa de nossa cidade representa a nossa cidade. Há, em tais casos, uma certa similitude visual entre o significante e o significado. As fotografias, cópias, impressões digitais etc., possuem a particularidade de incluir uma relação necessária entre a parte que expressa, formalmente, o conteúdo (= significante) e o conteúdo expressado (= significado). Por esse lado, os ícones se aproximam bastante da natureza dos índices (motivação necessária. Ex: uma nuvem carregada indicando chuva), mas não confundem com estes porque a fonte produtora dos ícones é a mente humana, ao passo que, no caso dos índices, a fonte produtora do sinal é um elemento da natureza, uma força não-cultural. Por outro lado, sendo necessária a relação entre o significante e o significado do ícone, não se dá, nele, nenhum tipo de semiose, pois inexiste aí a convenção, produto da intencionalidade comunicativa dos homens. Essas são as razões pelas quais consideram-se que os ícones não são signos, são pura e simplesmente imagens. Como quer que seja, as línguas naturais possuem, pelo menos um estrato de elementos icônicos, representados pelas onomatopéias. Nas onomatopéias, os significantes imitam o significado: tique-taque são sons que significam sons produzidos pelo relógio. Mas é necessário reconhecer, aqui, para lá do fato de que as línguas podem valer-se de imagens, que, no caso das onomatopéias, existe uma relação pelo menos parcialmente arbitrária (não necessária), entre o significante e o significado. Por isso a representação do seu sentido é sempre cultural, convencional: em português, por exemplo, parece-nos que um corpo ao bater na água, faz tchibum!, mas para os falantes do inglês esse mesmo sentido é dado por splash! O esquema abaixo representa esquematicamente o simbolismo lingüístico: Imagens (ícones) Naturais (índices) SIGNOS Artificiais Lingüísticos (signos verbais) Não-linguísticos Símbolos Outros signos (apitos, tabuletas, fórmulas etc) 4.2 - A TRANSIÇÃO ENTRE A ESCRITA ICÔNICA E A SIMBÓLICA Luria procura investigar como se dá a transição entre a fase pictórica e a fase simbólica abstrata e descobre que isso se dá pela necessidade funcional de a criança representar palavras e sentenças que não se sujeitam a uma representação pictográfica. Nesse momento a criança aprende que pode representar simbolicamente, e na iconicamente, qualquer coisa. Ela apenas ainda não sabe como isto pode ser feito. Podemos relacionar essa interpretação de Luria à de Ferreiro e Teberosky (1979), Ferreiro (1990a, 1991a) sobre o primeiro nível de aquisição da escrita, em que tendo realizado a distinção entre o modo icônico e o não-icônico de representação, a criança constrói a hipótese do nome, um princípio organizacional que a ajuda a resolver o problema do relacionamento entre desenho e escrita. Mediante a hipótese do nome a criança passa a conceber as letras como objetos substitutos – série de letras ordenadas que constituem totalidades – (e não elementos que servem para constituir totalidades). Essas totalidades constituídas é que vão representar propriedades dos objetos que o desenho é incapaz de representar: seu nome. Investigando essa transição da fase pictórica para a simbólica, Luria encontra diferentes comportamentos entre seus sujeitos. Um deles, de seis anos, representa as sentenças com um único símbolo, havendo repetição do mesmo símbolo para várias sentenças. Os símbolos usados são letras do alfabeto. Outra criança, de nove anos, usa a mesma letra para todas as sentenças. Um terceiro sujeito usa também apenas uma letra para cada sentença, mas a letra correspondente à letra inicial da sentença. Já uma outra criança, de oito anos e meio, representa cada sentença com cruzes, que parecem representar palavras ou constituintes da sentença. Podemos dizer que três dos sujeitos de Luria apresentam o tipo da escrita unigráfica da correspondência entre escrita e som, embora não apresente variedade de quantidade. O quarto sujeito já parece usar uma escrita com controle de quantidade. Segundo Temple et al. (1982), discriminar e produzir escrita são duas capacidades independentes, prestando-se, portanto, a trabalhos empíricos distintos. Assumindo essa independência, Lavine conduz um experimento para verificar o que a criança na idade pré-escolar identifica como escrita. Seus sujeitos rejeitaram os seguintes estímulos como objetos de leitura: a) desenho, b) manifestação gráfica que não apresentava linearidade, c) manifestação gráfica que não mostrava variedade de repertórios, d) manifestação gráfica que não apresentava multiplicidade de elementos. Um grande número de pesquisas, endereçadas a diferentes perguntas, com metodologias e teorias diversas, têm surgido nas últimas duas décadas. Essas pesquisas abrangem desde os aspectos mecânicos da escrita até a composição de textos. Alguns pesquisadores da escrita emergente têm focalizado os aspectos externos da escrita ao convencional em histórias ou composições. Outros têm estudado as conceitualizações subjacentes às formas externas das produções infantis. Entre esses últimos, destacam-se Clay (1975) e Ferreiro (1982, 1986). Para Clay (1975), a aceitação pela criança de algo, como escrita, é regida pelos seguintes princípios: a) o princípio da não-pictorialidade, b) o princípio da linearidade (as grafias devem estar horizontalmente dispostas), c) o princípio da variedade (a escrita deve consistir de diferentes tipos de grafias) e d) o princípio da multiplicidade (a escrita deve consistir de mais de um elementos). Embora o trabalho de Clay não tenha objetivado ser um relatório de pesquisa, suas inferências sobre a compreensão das crianças e sobre suas formas de escrita – rabiscos, desenhos, seqüências de letras - impulsionaram inúmeras pesquisas posteriores. As investigações de Ferreiro, bem divulgadas no Brasil, concentram-se na psicogênese dos sistemas de interpretação construídos pela criança para compreender a representação alfabética da escrita. Os principais objetivos de suas pesquisas têm-se voltado à compreensão da evolução dos sistemas de idéias que a criança constrói sobre a natureza do objeto social que é o sistema de escrita. Com esse intuito tem estudado o desempenho das crianças em atividades de produção e interpretação com vistas à construção de uma teoria sobre sua competência cognitiva, numa abordagem construtivista de sua evolução. Para analisar as produções escritas infantis, Ferreiro não se limita às marcas escritas produzidas, mas inclui as intenções da criança, seus comentários, suas modificações introduzidas durante a escrita e suas interpretações. Em um de seus artigos (1990a), ela sumaria em três os cincos níveis desenvolvimentalmente ordenados das conceitualizações infantis, já apresentado em 1979, em seu trabalho com Teberosky: Nível 1: Duas aquisições marcam esse primeiro nível: 1) distinguir entre o modo icônico e o não-icônico de representação gráfica e 2) considerar seqüências de letras como objetos substitutos. Buscando critérios para distinguir desenho de escrita, a criança descobre que a diferença situa-se na organização das linhas: no desenho, as linhas se organizam para seguir o contorno do objeto; na escrita, a organização das linhas não se relaciona com a organização das partes do objeto: as formas gráficas são lineares e arbitrárias. Além disso, a escrita passa a ser considerada como um sistema de representação, ou seja, as letras passam a substituir algo. Realizada a distinção entre formas icônicas e não-icônicas, a criança vai precisar descobrir o modo como o desenho e escrita se relacionam, uma vez que o relacionamento entre o desenho e texto está presente não só em livros como também na escrita ambiental. Esse novo problema é resolvido mediante o seguinte princípio organizacional: as letras são usadas para representar uma propriedade dos objetos do mundo que o desenho é incapaz de representar seus nomes. Uma vez que as letras representam os nomes dos objetos é necessário examinar de que modo elas se organizam para representá-los adequadamente. Assim começam a procurar condições para que uma forma escrita seja interpretável. A partir de então os problemas com que se depara organizam-se em duas dimensões – quantitativa e qualitativa. A consideração pela quantidade vai dar lugar à construção de um princípio interno, denominado por Ferreiro de “princípio da quantidade mínima”, segundo o qual para se ter uma palavra escrita uma letra não é suficiente; seriam necessárias no mínimo duas ou três e, no máximo, seis ou sete. Entretanto, além da dimensão quantitativa é necessário à criança também considerar a qualitativa, que consiste na exigência de letras diferentes para uma forma escrita. Com esses dois princípios organizacionais, regulando a construção de seu conhecimento, a criança já pode decidir se uma seqüência de letras constitui ou não uma representação escrita de uma palavra. Embora não seja ainda capaz de descobrir, em seqüências de letras, como se representam as diferenças no significado. Nível 2: Uma das principais conquistas deste nível é o controle progressivo das variações quantitativas e qualitativas o que vai levar a modos de diferenciação entre formas escritas. A criança começa a procurar, nessas formas, diferenças objetivas que justifiquem diferentes interpretações. Trabalhando com o símbolo lingüístico como uma totalidade (som e significado como uma entidade única), tenta descobrir as razões para as variações na quantidade de letras. Buscando o significado e/ou referente do nome que quer escrever às vezes relaciona a variação na quantidade de letras a variações de aspectos quantificáveis do objeto referido; outras vezes, utiliza a variação qualitativa, ou ainda, as duas dimensões simultaneamente, o que implica um grande esforço de coordenação. Essas diferenciações, contudo não se dão em formas isoladas: a diferenciação de uma determinada forma escrita é determinada pelo contexto das outras formas escritas. Os princípios da quantidade mínima e da variação qualitativa interna continuam a regular a construção de uma representação escrita, mas agora em comparações inter-relacionais, que surge em substituição ao sistema anterior de variação intra-relacional. Todos esses esforços empreendidos pela criança para criar diferenciações gráficas a fim de representar diferentes palavras precedem qualquer conhecimento do relacionamento entre o padrão sonoro da palavra e a sua representação escrita. Nível 3: Este nível, cujo acesso é preparado através da informação que a criança recebe do ambiente e, sobretudo, através da informação de seu próprio nome, corresponde à fonetização da representação escrita. As crianças falantes do espanhol constroem três hipóteses diferenciadas durante este período: silábica, silábicaalfabética e alfabética. A primeira hipótese, também documentada no português representa uma importante conquista porque permite à criança encontrar uma solução satisfatória para os problemas defrontados no nível anterior. Durante o subnível silábico, a criança começa a procurar letras similares para representar sons similares escrita alfabéticos tem que focalizar o padrão sonoro da palavra. Do ponto de vista cognitivo, para Ferreiro, a hipótese silábica representa a primeira tentativa de lidar com o relacionamento entre o todo (uma seqüência escrita) e as partes (letras). As partes ordenadas da palavra falada – suas sílabas – são postas em correspondência um-a-um com as partes ordenadas da palavra escrita – suas letras. Entretanto essa hipótese silábica vai ser continuamente invalidada pela escrita ambiental e pelas produções de adultos, o que vai levar a criança a tentar uma nova hipótese – a silábico-alfabética, uma solução instável que ai dar lugar a um novo processo construtivo – a hipótese alfabética. Outros pesquisadores, em vários países têm colaborado com Ferreiro, utilizando-se de suas técnicas de investigação, basicamente a entrevista clínica Piagetiana, elaborando suas idéias e introduzindo-as na prática pedagógica. No Brasil, alguns pesquisadores estudaram o fenômeno da emergência do letramento. Citaremos aqui três estudos empíricos: a) o de Moreira (1987), que procura investigar as concepções da criança pré-escolar quanto a funções da escrita, mais especificamente a relação entre portador de texto e sua função; b) o de Contini Jr. (1985), cujo objetivo foi determinar como crianças pré-escolares concebem o nosso sistema de escrita; c) o de Rego (1982), que acompanha, em um estudo longitudinal, a construção e a descoberta da língua escrita por uma criança através de processos de socialização que promovem essa aprendizagem. Desses três estudos, relataremos o de Contini Jr. e alguns dos achados de Rego, referentes ao percurso de uma criança na construção da base alfabética do sistema de escrita, deixando os aspectos funcionais deste estudo e o de Moreira para o próximo item, relacionados aos processos de socialização em torno da escrita. Contini Jr. (1985), pautando-se inicialmente no trabalho de Ferreiro e colaboradores, objetiva, em sua pesquisa, encontrar os padrões evolutivos da concepção da escrita pela criança, limitando-se à fase pré-escolar. Seu trabalho parte da hipótese de que as etapas de evolução não são discretas, podendo os sujeitos apresentar concepções e padrões de comportamento variável. Sua pesquisa foi realizada em uma escola de classe média, que apresentava vários níveis de pré: maternal, jardim, pré I e pré II, distribuídas segundo idades. O pesquisador fez uma brincadeira de “ditado” de palavras substantivas, levando em conta, na seleção, dois critérios: familiaridade visual ou familiaridade auditiva. As categorias da produção infantil foram levantadas a partir de sua pesquisa piloto e consistiram das seguintes: a) grafismo primitivo: rabiscos sem nenhuma relação, nem visual nem auditiva, com a palavra ditada; b) grafismo primitivo com linearidade, com controle de direção e de quantidade c) escrita pictográfica; d) escrita ideográfica ou unigráfica, em que um único símbolo ou letra é usado para representar a palavra toda, como nos ideogramas chineses; e) escrita silábica, em que cada grafia representa uma sílaba. O autor nota ainda que muitas crianças revelam um comportamento nitidamente silábico com dissílabas, mas algumas apresentam dificuldades de atribuir três grafias a trissílabos. Na leitura dessas palavras, essas crianças mostraram que segmentaram a primeira sílaba, lendo o resto como um bloco, o que indica ser a sílaba inicial perceptualmente mais saliente para a criança. Um dado interessantes nessa pesquisa é o comportamento da criança na fase pictográfica, ao escrever a palavra trabalho. O produto da escrita parece mais um desenho abstrato do que um símbolo convencional próximo da letra. O autor conclui que as escritas muitas vezes se superpõem e acredita que o tipo de escrita produzido pode ser condicionado pela dificuldade da tarefa como, por exemplo, a escrita de palavra visual e auditivamente desconhecida como bolita ou ainda palavras trissilábicas. Contini Jr. verifica ainda que quando a criança está na fase silábica mais adiantada, ela já começa a evidenciar sua consciência da estrutura canônica da sílaba em português, ou seja, CV (consoante + vogal). Rego (1985) analisa dados longitudinais de uma criança, Fabiana, no período compreendido entre 4 e 7 anos. Sua análise abrange tanto aspectos funcionais, interacionais de sua aquisição da escrita, como também a natureza da escrita por ela produzida, em seus aspectos gráficos e textuais. Dentre estes últimos, examina a emergência da escritura de seu próprio nome, e as suas tentativas de tomá-lo como referência para a escritura de outros nomes. Rego verifica que nas primeiras tentativas de Fabiana escrever seu nome, não o diferencia dos outros, apresentando, contudo, a orientação horizontal. No que Rego chama de Escrita 2, Fabiana apresenta uma seqüência de letras de imprensa maiúsculas, a partir da qual ela faz permutas e transformações para construir o nome de outras pessoas, animais. Na fase da escrita 3, Fabiana brinca de fazer sua soletração silábica corresponder a seqüências de letras que ela alinha com peças de um abecedário ou com lápis e papel. Nesta brincadeira, ela suprime ou acrescenta letras para à correspondência, atingindo a fase da escrita silábica, que, segundo a autora, chega quando a criança supera a fase do realismo nominal, caracterizada pela não distinção entre significante e significado. O nome próprio estabiliza-se em FABO e, em seguida, ela evolui para o que Ferreiro e colaboradores chamam de escrita de transição entre o silábico e alfabético, passando a ser grafado FABINA, recebendo mais letras do que o número de sílabas. Quando Fabiana aprende em casa a escrever palavras como uva, ovo e vovó, e lhe é ensinado a isolar v, ela passa a fazer o mesmo com outras consoantes. É nesse instante que Fabiana passa a receber a educação formal da escola. Essas tentativas de compreender o significado de cada uma das letras que compõem o nome próprio e os problemas enfrentados pela criança, ao tentar coordenar os aspectos quantitativos e qualitativos da escrita, também foram mostrados por Ferreiro (1986) ao analisar alguns dos aspectos constitutivos da alfabetização de duas crianças. Teberosky (1989:34), endossando as idéias de Ferreiro (1982) afirma ser o nome próprio “uma escrita na interpretação estável, que não depende das vicissitudes do contexto (...) e facilita uma informação sobre a ordem não aleatória dentro do conjunto de letras”. Por sua estabilidade como modelo, seu valor de verdade, sua funcionalidade nos intercâmbios sociais e o seu papel facilitador “na passagem de um símbolo qualquer para um objeto qualquer em direção à atribuição de um símbolo determinado para indivíduos singulares e concretos”, Teberosky propõe o nome próprio como ponto de partida para iniciação da leitura. Em um estudo sobre a emergência da escrita, Landsman (1990), constata em crianças israelenses, operando com o sistema alfabético hebraico, as mesmas tentativas de utilização das letras do nome próprio para a produção de diferentes representações escritas. Cita ela o caso de uma criança que, usando apenas as letras de seu nome, é capaz de produzir variações entre palavras, introduzindo diferenças objetivas na ordenação e na quantidade de letras. 4.3 - Consciência Metalingüística No processo de construção da linguagem escrita, a criança, além de usar a linguagem para compreender e produzir idéias, aprende a refletir sobre a linguagem como objeto. A linguagem vai-se tornando alvo de pensamento e manipulação. A capacidade de refletir sobre a linguagem é conhecida como consciência metalingüística e se dá em vários níveis: consciência fonêmica (fonológica), consciência da palavra, consciência da forma, consciência pragmática. Enquanto as duas primeiras se referem à consciência da subunidades da língua, as últimas referem-se à habilidade de refletir sobre o significado e a aceitabilidade de unidades maiores da língua (sintagmas, sentenças, textos). 4.3.1 – Desenho, Palavra e Letra Góes e Martlew (1983) realizaram um experimento, objetivando verificar a capacidade metalingüística da criança relativamente aos itens desenho, palavra e letra. Em lugar de pedir para a criança verbalizar suas reações quanto a diferentes formas gráficas, elas simplesmente pediram para separar em palavra e outra coisa os cartões onde estavam grafados os estímulos. A conclusão das autoras é de que a criança confunde os conceitos de palavra e desenho, de um lado, e de palavra e letra, de outro, mas nunca os de desenho e letra. As autoras concluem que, embora as crianças usem esses termos metalingüísticos, sua aplicação é indiferenciada. É importante ressaltar, contudo, que há uma diferença significativa entre confundir palavra e desenho de um lado, e palavra e letra de outro. A criança que faz o primeiro tipo de confusão não distingue significante de significado, enquanto a que faz o segundo tipo de confusão já separa esses dois componentes do signo. 4.3.2 – Palavra e Nome Ferreiro e Vernon tentam examinar as conceitualizações de crianças referentes à distinção palavra e nome. Investigando sujeitos de 4 e 5 anos, encontram que, para um grande número de sujeitos, a escrita é o “critério distintivo para diferenciar nome de outras expressões metalingüísticas”. Segundo elas, as crianças, ao se expressarem sobre o termo palavra, distanciam-se dos conceitos de adultos, restringindo excessivamente o campo de referências (letras, mas não série de letras) ou ampliando demasiadamente este campo (situações interlocutivas ou enunciação, fazer uma promessa); entretanto, demonstram alcançar um consenso em “referir “nome” a cadeias gráficas que reúnem condições de interpretabilidade”. Para quase todas as crianças, “o nome é uma série de letras que “diz”... como se chama”. Apresentaremos um dos exemplos, citados pelas autoras, que bem ilustram essa questão: Antônio Carlos (12ª) (Diante da sentença agrandi do muro é grandi) Como sabe que a 1ª é grade e a 2ª é grande. Sei pelo nome. Como se faz para saber pelo nome. Pensa nas palavras e aí sabe. Para Antônio Carlos, nome parece ser a palavra escrita com significado. A oposição que ele estabelece entre palavra e nome pode ser interpretada como : nome e o que está escrito; palavra é algo da oralidade. Para saber-se o que está escrito, pensase no significado daquilo que se conhece (a palavra contextualizada) e “aí sabe”. O relacionamento entre linguagem oral e escrita é um dos aspectos críticos na alfabetização emergente. E um dos elementos importantes nas duas modalidades é o conceito de palavra, construto particularmente difícil de definir. Roberts (1992) conduz um estudo longitudinal com crianças da pré-escola à 2ª série, com o propósito de investigar, em três momentos do ano escolar, a evolução de vários aspectos do conceito de palavra e de definir os papéis do desenvolvimento cognitivo e da instrução em leitura na emergência deste conceito. Roberts usa em seu estudo os termos conhecimento tácito e conhecimento explícito da língua para referir-se aos tipos de conhecimentos sobre palavra. O primeiro refere-se ao conhecimento intuitivo, inconsciente que o usuário da língua possui das regras e convenções que subjazem à estrutura da língua. O segundo conhecimento diz respeito à capacidade de refletir deliberadamente sobre unidades lingüísticas, focalizando a atenção consciente sobre a própria língua. A autora, baseando-se numa síntese de pesquisas sobre a evolução desse conhecimento, hipotetiza que o desenvolvimento do conceito de palavra se dá ao longo de um contínuo: conhecimento tácito da palavra na linguagem falada, conhecimento tácito da palavra na linguagem escrita, conhecimento explícito da palavra na linguagem escrita e conhecimento explícito da palavra na linguagem falada. Hipotetiza também que crianças em diferentes estágios do desenvolvimento cognitivo teriam diferentes desempenhos, tendo aquelas, em nível de operações concretas, um desempenho melhor do que as outras aquém deste nível. Para testar essas hipóteses, diferentes tarefas foram usadas: 1) identificação da unidade palavra, que consistia em apresentar à criança 12 palavras e sintagmas para que ela dissesse se era ou não palavra; 2) ditado de frase, em que a criança escrevia uma frase ditada e depois a lia, apontando para cada palavra. O conhecimento tácito da palavra era verificado pela concordância ou não em relação às palavras na tarefa 1 e pelos espaços entre palavras na tarefa 2. O conhecimento explícito era medido pelas explicações fornecidas pela criança para as suas respostas. A autora concluiu que os conhecimentos tácitos da palavra na linguagem falada e na linguagem escrita se desenvolveram concomitantemente. Entretanto, o conhecimento explícito da palavra na linguagem escrita precede o conhecimento explícito na linguagem falada. O conceito tácito de palavra, requerido para uma comunicação efetiva, dá lugar ao conceito explícito de palavra, mediante a interação com a linguagem escrita e o desenvolvimento cognitivo. Esses dois fatores é que permitem o desenvolvimento do conhecimento das características relacionais da palavra como uma unidade do sistema da língua: o nível operacional do desenvolvimento cognitivo, quando comparado à quantidade de instrução em leitura, apresentou correlação mais alta com o conceito de palavra. Esses resultados levam a autora a concluir que o pensamento abstrato, relacional, possibilita à criança mover sua atenção de características concretas para características relacionais abstratas, e assim passar a refletir sobre atributos definicionais do conceito abstrato de palavra. 4.3.3 - Consciência Fonêmica Embora no processo de aquisição da linguagem escrita, a criança reflita sobre formas, registros, usos, gêneros, a consciência fonêmica tem ocupado um lugar especial nas pesquisas relativas à aquisição da linguagem escrita. Na área do letramento emergente, essa questão não tem sido destacada, conquanto consideremos necessário fazer algumas considerações face aos problemas teóricos por ela colocados. Há conceitualizações diversas sobre a relação entre consciência fonêmica e aquisição convencional da leitura e escrita. Uma delas, refletida nos estudos de Bradley & Bryant (1983), vê a consciência fonêmica como precursora causal da alfabetização convencional: a habilidade de segmentar palavras em seus constituintes fônicos seria um pré-requisito para esta alfabetização. Uma outra conceitualização vê a consciência fonêmica como conseqüência do ler e escrever: a habilidade de detectar fonemas em uma palavra é influenciada pelo conhecimento ortográfico. Uma terceira propõe um modelo interativo, de causação recíproca, que estipula não ser a consciência fonêmica precursora nem conseqüência, pressupondo que certas habilidades de consciência fonêmica seriam básicas a certas habilidades de leitura e escrita, e que outras habilidades de leitura e escrita, por sua vez, estimulariam determinadas outras habilidades relacionadas à consciência fonêmica. Tentando verificar a validade dos testes de consciência fonêmica através de análise fatorial, Yopp (1988) encontrou resultados que revelaram dois fatores relacionados, subjacentes à consciência fonêmica: consciência de fonemas simples (habilidade de segmentar, combinar e isolar um som) e consciência de fonemas compostos (habilidade de isolar um som em uma palavra e compará-lo a um outro som já isolado em outra palavra). Enquanto a consciência de fonemas simples pareça seu um pré-requisito necessário à leitura ainda não convencional, chamada por Sulzby (1989) de leitura aspectual, tanto esta como a leitura convencional e a escrita não-convencional aumentariam o conhecimento ortográfico que, por sua vez, faria avançar a consciência de fonemas compostos. Dois tipos de consciência fonêmica são também propostos por Morais: a consciência Holística, que inclui a capacidade de julgar conscientemente propriedades supra-segmentais de enunciados, necessária e talvez suficiente para o desempenho de tarefas de classificação baseadas na similaridade geral; a consciência analítica, que inclui a capacidade de isolar as partes constitutivas de um enunciado. O sujeito pode conscientemente isolar e representar diferentes unidades hierarquicamente encaixadas: palavras, morfemas, sílabas, rima, segmentos fonéticos e fonêmicos. Quanto mais encaixada a unidade na hierarquia lingüística, maior o esforço analítico para isolá-la. Segundo ele, o isolamento consciente de traços fonéticos requer o maior esforço analítico, o que parece mostrar um percurso na direção da percepção de unidades cada vez menores da fala. Para Marcel (1983), este percurso ocorre não só por dificuldades de segmentação de unidades mais encaixadas, como também devido a diferentes valores funcionais da unidade: quanto mais encaixada, menor o seu valor funcional. 4.4 – LEITURA DE HISTÓRIAS Estudos correlacionais sobre a leitura de histórias para crianças já mostraram, na década de 70, relações positivas entre a experiência de ouvir histórias lidas e desenvolvimento do vocabulário, desenvolvimento lingüístico, motivação para leitura, sucesso na aprendizagem escolar da leitura. Nos anos mais recentes, de acordo com Sulzby & Teale (1991), a pesquisa nessa área evoluiu por vários motivos: sua metodologia tornou-se descritiva, passando a analisar o que ocorria durante a atividade; em vez de uma leitura realizada de um para um (típica da interação em ambiente familiar), passou-se a considerar a leitura realizada em grupo, na sala de aula; em vez de focalizar apenas a interação entre adulto e criança durante a leitura, passou-se considerar também as tentativas de leitura independente pela criança a fim de inferir os conceitos que estavam sendo internalizados e usados em situações de leitura; por último, evoluiu no sentido de que a metodologia descritiva e os estudos experimentais passaram a ser usados de um modo complementar, em que os primeiros serviram de base para planejar intervenções e examinar os efeitos dessas intervenções sobre a prática de leitura de histórias e sobre o desenvolvimento da criança. Como resultado dessa evolução, pode-se melhor compreender as variáveis interferentes nas correlações entre leitura de histórias e desenvolvimento da linguagem escrita. Cinco principais conclusões das pesquisas sobre leitura de histórias são apontadas por Sulzby & Teale (1991): (1) A leitura de histórias é uma atividade interativa socialmente criada. Em outras palavras, nas situações investigadas, a leitura oral pelo adulto não se limitava à reprodução do texto, mas era complementada pela interação entre criança(s) e adulto, numa negociação cooperativa de significados através de meios verbais e não-verbais. A visão da leitura de histórias como uma interação social permite compreender a leitura como um ato de construção, para o qual contribuem a linguagem e a interação social com o texto. (2) A leitura de histórias com crianças muito pequenas é uma atividade tipicamente de rotina. O achado de que as práticas de leitura de livros de história se caracterizam por rotinas ajuda a explicar a contribuição da leitura para o desenvolvimento do letramento, pois criando contextos altamente predizíveis em ciclos de diálogo, a rotina permite à criança, ao deparar-se com determinados contextos semelhantes. Através das interações habituais, rotineiras, a criança desenvolve expectativas sobre os tipos de linguagem que encontraria em livros específicos e em livros em geral. Essas expectativas ajudam-na a participar de modo independente em tarefas que estariam acima de sua capacidade individual, guiando e confirmando suas alternativas de decodificar. (3) Os padrões da leitura de histórias mudam à proporção que as crianças crescem em idade, conhecimento e experiência. Dentre vários estudos que observam os padrões de interação entre adulto e criança(s), Sulzby & Teale (1987) documentaram mudanças ocorridas à proporção que a criança crescia. Padrões altamente interativos, observados nas leituras para crianças de um ano, cediam lugar, gradualmente, a outros menos interativos, que ocorriam somente depois de lidas grandes fatias do texto; estes, por sua vez, diminuíam até limitarem-se a apenas ocorrer após a leitura do texto inteiro, quando as crianças de seu estudo tinham alcançado 3 anos. Para ajudar a compreender essas mudanças, o conceito de “andaime” (scaffolding) nos parece útil: a ajuda inicial do adulto diminui à proporção que a criança se desenvolve até tornar-se independente, passando a reproduzir textos inteiros e a iniciar mais do que o adulto os turnos relacionados à discussão do que está sendo lido. Mudanças nos padrões de leitura também sofrem a interferência do gênero. As pesquisas mostram que livros de gravuras acompanhadas de rótulos, como livros de alfabeto, cores, animais, provocavam uma leitura dialógica, concentrada em itens, elaboração de itens, eventos, elaboração de eventos, enquanto que os de histórias priorizavam a leitura monológica e se concentravam nos motivos ou causas dos eventos. (4) A leitura de livros ainda não convencional realizada por crianças pequenas surge a partir de leituras interativas e provoca avanço no desenvolvimento da leitura e da escrita. Crianças expostas à leitura repetida dos mesmos livros, “lendo” esses livros espontaneamente apresentam uma evolução na conhecimento das características da linguagem escrita. Sulzby (1985) encontrou, em crianças de 2 a 6 anos, lendo os seus livros favoritos, a produção de uma fala que caracterizou como um ato de leitura, pois era prosódica, sintática e topicamente diferenciada da conversa da criança que circundava o evento de leitura. A autora descreveu essas tentativas de leitura, através de um esquema de classificação constituído por categorias de leitura emergente, que mostrava o desenvolvimento da compreensão das distinções entre fala e escrita. Enquanto nenhuma criança de 2 anos considerava o texto como fonte de leitura, as de 5 anos e a maioria das de 6 anos tratavam o texto como a fonte da história e algumas liam convencionalmente. Numa análise longitudinal, foi observada uma mudança de comportamentos mais primitivos para outros mais evoluídos: a) estratégias de rotular e comentar sobre itens de gravuras; b) produção de recontos orais sobre as gravuras em ordem; c) criação de histórias como a prosódia e o registro da linguagem escrita; d) uso do texto de um modo pré-convencional para ler a história; e) leitura convencional da história. Esses achados mostram que a “leitura” independente de livros desempenha um importante papel na ontogênese da leitura e escrita, pois oferece à criança oportunidades de praticar aquilo que foi experienciado em eventos interativos de leitura com adultos. Essas “leituras” constituem o acesso primário à leitura convencional, o que levanta questões para os que advogam textos simplificados para crianças pequenas. (5) As variações nos padrões de leitura de história de livros afetam de modo diferenciado o desenvolvimento da criança. Pesquisas diversas evidenciam a importância da mediação do adulto na leitura para crianças, argumentando não ser a simples presença ou ausência de leitura o fator determinante para a aquisição de leitura e escrita. Em um estudo conduzido com as mães de classe baixa e mães de classe alta, afirmamos que certos modos de leitura têm efeitos mais positivos sobre o desenvolvimento do vocabulário e rendimentos escolar do que outros. Examinando a aquisição de vocabulário, no contexto da leitura conjunta de livros de gravuras, encontra-se estilos diferentes de interação entre as mães das duas classes socioeconômicas, sendo o estilo de perguntar à criança e em seguida fornecer-lhe feedback, adotado por mães da classe alta, aquele associado positivamente com o desenvolvimento de vocabulário produtivo. Outros estudos têm apontado diferentes estilos de leitura de um mesmo livro por diferentes professores e indicado os diferentes efeitos provocados. O modo pelo qual o adulto faz a mediação em resposta às reações e iniciações da criança parece assim ser um fato crucial na leitura de livros de história para crianças: a elaboração pelo adulto de perguntas abertas, os comentários sobre funções e atributos, a expansão das contribuições da criança, a diminuição de perguntas que possam ser respondidas apenas com um gesto ou uma palavra são aspectos que contribuem para o desenvolvimento lingüístico-cognitivo da criança. Sulzby (1985) aponta dez níveis de leitura emergente de livros de história que precedem a leitura convencional. Esses níveis, posteriormente agrupados em cinco categorias amplas são melhor indicados para a avaliação das tentativas de leitura de histórias de livros que já foram lidos. Abaixo mostramos uma versão simplificada do seu “Esquema de Classificação para a Leitura Emergente de Livros de História Favoritos”, em que as categorias são acompanhadas de uma breve explanação. Categoria 1: A criança presta atenção às gravuras e não compõe uma história. (A criança “lê”, olhando os desenhos, as ilustrações; sua fala reporta-se apenas às gravuras que está vendo: ela não compõe uma história seguindo as páginas.) Categoria 2: A criança presta atenção às gravuras e compõe histórias orais. (“Lê” olhando os desenhos; sua fala compõe uma história ao longo das páginas e suas palavras e entonação ora assemelham-se às de alguém que conta uma história apoiando-se nas gravuras, ora parecem uma conversa sobre as gravuras; o ouvinte necessita ver as gravuras para compreender a história da criança.) Categoria 3: A criança presta atenção aos desenhos, e mistura leitura e narração da história. (“Lê” olhando as gravuras; sua fala flutua entre a narração de uma história, com a entonação oral, e a leitura, com entonação de leitura.) Categoria 4: A criança presta atenção às gravuras, compondo histórias escritas. (“Lê” olhando as gravuras; sua fala soa como se estivesse lendo, tanto pelas formas lingüísticas como pela entonação; o ouvinte não necessita olhar as gravuras para compreender a história da criança; se fechar os olhos é capaz de pensar que ela está lendo.) Categoria 5: A criança presta atenção às palavras escritas. (Há quatro subcategorias de prestar atenção ao texto. A última corresponde à leitura real. Nas outras, a criança explora a escrita utilizando estratégias que vão da recusa a ler ao uso de alguns aspectos das palavras escritas.) A leitura de histórias pela criança assim como a leitura oral feita para ela por alguém é uma das mais efetivas vias de internalização da linguagem escrita nas séries iniciais. Essa asserção parece ser corroborada não só pelas pesquisas examinadas por Sulzby & Teale (1991) como também por um amplo leque de trabalhos revistos por Fitzgerald (1989), que tentam verificar o relacionamento entre conhecimento da estrutura da história e leitura. Dentre as conclusões dessas pesquisas, Fitzgerald aponta o uso desse conhecimento para guiar expectativas sobre a organização de histórias e seus efeitos sobre compreensão, rememoração e produção de histórias, além dos efeitos significativos sobre conhecimento de relações causais e desenvolvimento da habilidade de inferir e integrar informações. O conhecimento da estrutura da história foi investigado por Moreira (1992). Seu corpus constou de produções escritas por 83 crianças de 1ª e 3ª séries de uma escola pública e outra particular. Para a análise dos textos – Chapeuzinho Vermelho – utilizou as categorias da gramática de Mandler (1987), segundo a qual uma história é constituída de um Cenário e um ou mais Episódios. Cada Episódio tem um Início (um evento que inicia a Reação Complexa), uma Reação Complexa constituída por uma Ração Simples (resposta cognitiva ou emocional) e um Objetivo (um estado que o personagem quer atingir), um Curso do Objetivo (goal path), formado por uma Tentativa (plano ou ação intencional) e um Resultado (conseqüência da Tentativa) e um Final (uma reação). Tentando verificar as categorias de aquisição precoce e tardia na aquisição de um esquema de história e os efeitos da escolaridade sobre essa aquisição, é possível constatar que certos episódios são mais memoráveis do que outros: o encontro do lobo com a avó, o de Chapeuzinho como o lobo e o do caçador com o lobo foram mais lembrados do que os episódios iniciais. Isso parece ter-se dado porque os últimos episódios envolvem conflito interpessoal, informações centrais para a cadeia de eventos causais da história e maior dinamismo de ação. No interior de cada episódio, os eventos iniciais e os resultados foram as categorias mais utilizadas; as menos presentes, reações, objetivos e tentativas, que envolvem, respectivamente, respostas cognitivas ou emocionais, estados a atingir e planos intencionais, categorias, portanto, de elaboração mais complexa. Quanto aos efeitos da escolaridade, constatou-se uma diferença insignificante entre séries. A diferença entre classes sociais foi, em todas as categorias, excetuandose a referente a objetivo, mais de duas vezes maior do que entre séries escolares. Em outras palavras, não é o tempo de escolaridade da criança, tampouco sua idade que parece interferir no conhecimento da estrutura da história, mas sim a experiência com leitura e audiência de histórias. As diferenças encontradas não dizem respeito apenas à reconstituição das categorias constitutivas dos episódios, mas também à da estrutura da história como um todo. Ao ouvir e produzir histórias a criança vai construindo o seu conhecimento da linguagem escrita, que não se limita ao conhecimento das marcas gráficas a produzir ou a interpretar, mas envolve gênero, estrutura textual, funções, formas e recursos lingüísticos. Ouvindo histórias, a criança aprende pela experiência a satisfação que uma história provoca; aprende a estrutura da história, passando a ter considerações pela unidade e seqüência do texto; aprende associações convencionais que dirigem as nossas expectativas ao ouvir histórias: o papel esperado de um lobo, de um leão, de uma raposa, de um príncipe; aprende convenções lingüísticas de histórias, como os delimitadores iniciais e finais, e. g., era uma vez... e viveram felizes para sempre, e estruturas lingüísticas mais elaboradas, típicas da linguagem literária. Aprende, pela experiência, o som de um texto escrito lido em voz alta: “De que outra forma poderia ela (a criança) vir a ouvir uma voz interior ditando-lhe a história que ela quer produzir?”. 4.5 – A LINGUAGEM INTEGRAL Considerando essas variadas contribuições sobre processos de leitura, estratégias, atividades, não poderíamos deixar de lado uma proposta recente, fundamentada em Piaget e Vygostsky: a linguagem integral ou “linguagem integrada” (whole language). Julgando ser a pesquisa experimental redutora da linguagem, por equiparar-se, na abordagem lingüística, ao ensino tradicional, entendemos que a linguagem só pode ser investigada em sua totalidade, o que é mais do que a soma de suas partes. Defendemos que a linguagem, o pensamento e o conhecimento se desenvolvem holisticamente e se apóiam mutuamente, e que o processo da linguagem tem que ser visto integrado no processo de aprendizagem. Segundo a abordagem funcionalista, as crianças aprende a linguagem oral “quando dela necessitam para expressar-se, e entendem o que os outros dizem sempre que estão com pessoas que utilizam a linguagem com sentido e com um propósito determinado”. A linguagem oral e a escrita compartilham as mesmas características básicas, um das quais é o seu desenvolvimento espontâneo. Essa proposta da linguagem integral, relacionada em vários aspectos à teoria do desenvolvimento de Piaget, sugere que a criança aprende a linguagem oral e escrita, acomodando e assimilando as informações externas, e que seu desenvolvimento cognitivo depende de sua ação sobre o mundo. A atividade é essencial, pois é através dela que a criança experiência o mundo e constrói o conhecimento. Os processos em jogo na apreensão da escrita seriam comparáveis àqueles da recepção da linguagem oral. Se o leitor está interessado no que lê, ele se coloca questões e antecipa o que vai encontrar da mesma forma que o locutor antecipa o que vai dizer o interlocutor. Ao experienciar a linguagem escrita, a criança desenvolve estratégias para dar sentido ao texto, pois espera sempre que o texto faça sentido, usa seu conhecimento prévio para compreendê-lo e tem uma atitude de assumir riscos em relação ao texto. A leitura é uma busca de significação orientada pela experiência lingüística anterior do leitor. Nessa busca, o reconhecimento de palavras é um efeito secundário da compreensão. A aprendizagem da linguagem orienta-se do todo para antes das letras e as histórias são lidas antes das frases. Quando o contexto escolar inverte essa ordem natural, a aprendizagem da linguagem torna-se difícil. Existem alguns fatores que contribuem para essa dificuldade. Na escola, a linguagem é artificial, fragmentada, não tem sentido, é aborrecida, pertence a outros, é irrelevante para o aluno, é descontextualizada, não tem valor social, não tem qualquer propósito verificável, é imposta por outros e é inacessível ao aluno, a quem se nega o poder de utilizá-la. Essas caracterizações retratam fielmente o que ainda, freqüentemente, se passa na alfabetização tradicional. Adota-se uma perspectiva ascendente da aprendizagem, avançando-se de unidades menores para maiores e assim dividindo-se a linguagem natural em fragmentos mínimos e abstratos; considera-se a linguagem por si mesma em vez de considerar-se aprender a linguagem como “aprender a significar”, desprezandose o fato de que a linguagem existe porque os seres humanos são capazes de criar sistemas simbólicos e porque são seres sociais; planejam-se seqüências artificiais e arbitrárias de comportamentos e habilidades, o que transforma a experiência escolar em “labirintos pelos quais as crianças devem passar”; propõem-se exercícios aborrecidos e irrelevantes, cujo conteúdo não tem relação com o que as crianças são, pensam e fazem, e menospreza-se o seu conhecimento acerca da linguagem, da escrita e da leitura. 5 – FORMAS DE IMPLANTAÇÃO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL NO 1º CICLO Com base no exposto acima, verificamos que é perfeitamente possível implantar a literatura nas séries iniciais (1º ciclo), aproveitando a dupla função: formação do homem crítico, ativo, participativo, e alfabetização. A grande pergunta é: como realizar esse trabalho? 5.1 – Função do professor: a interferência crítica Se a escola ainda é o espaço por excelência de contato com o material impresso e com a literatura em particular, em que pesem as condicionantes decorrentes da trivialização da literatura infanto-juvenil produzida para e utilizada no ambiente escolar brasileiro hoje, parece-nos que o imobilismo do professor é mais um fator que se acrescenta ao conjunto dos funcionamentos conforme. Entre esses profissionais, percebem-se atitudes frente ao trabalho com a leitura que vão desde a “neutralidade conformista” até a “cumplicidade revolucionária”, decorrendo daí equívocos em relação às possibilidades de mudança. Em primeiro lugar, pensamos que é necessário desmistificar certos clichês que caracterizam a trivialização da prática docente, principalmente a partir das duas últimas décadas. Um deles diz respeito à atuação política do professor, a qual não se esgota em lutas corporativistas. A prática pedagógica (objetivos, conteúdos, metodologias, estratégias e avaliação) não é neutra, mas envolve opções políticas menos ou mais conscientes, das quais, por sua vez, apenas o discurso não consegue dar conta. É preciso pensar no presente histórico de professores e alunos como possíveis de serem conhecidos e tomados como ponto de partida para a feitura da escola, da leitura e da literatura que queremos, para darmos e propiciarmos avanços qualitativos. Em decorrência disso, ressalta-se o óbvio: pode-se aprende a ler e pode-se formar o gosto. E mais: a passagem da quantidade para a qualidade de leitura (e vice-versa) não se dá num passe de mágica, mas pressupõe um processo de aprendizagem. Com a escola, em que pesem as restrições a sua incompetência competente, concorrem todos os outros estímulos ou desestímulos com os quais convivem professores e alunos nas horas restantes do dia, e, entre eles, as péssimas condições de trabalho, e a impossibilidade, para muitos alunos, de terminarem os estudos e trem tempo para a quantidade de leituras. Parece-nos que a saída mais coerente para o professor poder ser buscada numa “práxis” compartilhada que lhe ofereça segurança e permita uma interferência crítica. Cabe ao educador romper com o estabelecido, propor a busca e apontar o avanço, para além da dicotomia valorativa entre quantidade ou qualidade. Para isso, é preciso problematizar o conhecido, transformando-o num desafio que propicie a mobilidade. Passando obrigatoriamente pela concepção de escola e de sociedade que queremos, a formação do gosto das pessoas-alunos, não só para um vir-aser, mas também para um aqui e agora, principalmente político. E se entendemos que “os gostos não são sucessivos, mas dependentes”, envolvendo as histórias de leitura (do leitor, do texto e da época), e que o crescimento diz respeito “à necessidade de a criança ir-se transcendendo a si mesma e as seus retratos anteriores” (ou seja de traçar seu percurso histórico) “rumo a um progresso que nunca é final e que se caracteriza pela obstinação insatisfeita de sua busca e pela alegria de sua vitória sobre cada novo obstáculo”, o trabalho com a leitura da literatura tem de levar em conta essa luta da criança inserida na luta de linguagens e códigos, problematizando a noção de carência geradora de um “infantilismo pedagógico”, bem como repensar a formação do leitor, deslocando o impasse entre adequação demagógica ou imposição retórica para o problema da superação crítica e histórica do gosto, através de uma “pedagogia da exigência”, como propõe Gramsci5. 5.2 – Escalonamento e Penetrabilidade Sobe esse ângulo, a leitura, enquanto processo de conhecimento, envolve alguns procedimentos didáticos decorrentes da opção pela diversidade e, entre eles, a “penetrabilidade”e o “escalonamento”. Este diz respeito à adaptação da leitura à capacidade de apreensão do leitor; aquele oferece a possibilidade de “medir tanto nosso esforço, quanto nossas capacidades aquisitivas”. Nesse sentido, a penetrabilidade se torna um procedimento que, oferecendo o desafio do conhecimento sempre novo e diferente, é “um dos elementos mais emulativos da degustação” e propicia não o efeito momentâneo e confortável do lazer, que contenta, enche e dá euforia; mas a provisória satisfação da permanência do prazer-fruição que faz vacilar a consistência dos gostos e as bases históricas, culturais, sociais e psicológicas do leitor, tornando seu percurso o de um guerreiro em busca dos significados, através do processo de leitura. Assim, evitar a trivialização no trabalho com a literatura é procurar na diversidade (de enredos, procedimentos narrativos, gêneros, linguagem, autores e metodologias) romper com a limitação do totalmente conhecido e transportar o leitor, através da luta pela busca de significado, a ampliar seus horizontes. 5 El Principio Educativo em Gramsci As leituras de que o aluno gosta podem ser trazidas para a sala de aula, como ponto de partida para a reflexão, análise e comparação com outros textos (inclusive os produzidos pelos próprios alunos), sendo introduzido, posteriormente, clássicos da Literatura (adaptados), proporcionando a iniciação literária e o trabalho de alfabetização. E esse trabalho pode ser iniciado com a literatura trivial ou com a história em quadrinhos e programas televisivos, por exemplo. Saber por que o professor ou o aluno gostam ou não desse tipo de texto é um caminho para o crescimento. Assim , o estudo crítico e comparativo do texto como um todo (condições de emergência, utilização, funcionamentos conforme e disfuncionamentos) se apresenta como uma forma de desmistificar e desautorizar modelos; de recuperar o prazer de saber que há muitos jeitos de ler e de escrever e que não são casuais; de perceber que o prazer não se compra em lojas, nem é automático, mas depende da emoção e da percepção mais ou menos clara do trabalho particular de linguagem e de formas6, e tampouco é incompatível com o saber; que a literatura é também novidade e ruptura e só será agente de transformação na medida em que for resultado e lugar de transformação. Outro ponto importante é a associação “Literatura-alfabetização”. Teríamos dois propósitos, consequentemente, dois resultados esperados com um instrumento de trabalho: a Literatura. Além da formação do leitor, crítico, ativo e participativo, teremos o propósito da alfabetização. Os conceitos vistos anteriormente dão conta deste propósito. As noções de lingüística e sociolingüística são importantes ferramentas para a aquisição da leitura. A partir do momento em que os professores do I ciclo do ensino fundamental conheçam e entendam estes princípios, entendemos que o processo de alfabetização surtirá um efeito qualitativamente superior aos modelos atuais. As noções de signo, símbolo, ícone etc são importantes já que é através desses conceitos, constituídos a partir da observação dos atos da fala, da linguagem humana, que construímos nossas relações com o outro e com o mundo. 6 ver lingüística: signo lingüístico. O ponto de partida e, juntamente, o texto, em particular o texto literário, que terá o duplo propósito, ponto defendido neste trabalho. 6 – CONCLUSÃO Com este trabalho, não temos a pretensão de esgotar o assunto e muito menos apontar “a solução definitiva” para os problemas de alfabetização (aquisição da linguagem, conhecimento lingüístico), iniciação literária e problemas educacionais. Mais do que isso, propomos um modelo para estudo e reflexão, destinado a professores e educadores apaixonados pela arte do ensino. Preocupamo-nos, em particular, com o 1º segmento do ensino fundamental, fase inicial que tem peso fundamental na vida de nossos alunos. Através deste trabalho, demonstramos, através das noções de lingüística e sociolingüística, que a literatura pode ser utilizada não só como processo de criação, mas também para aquisição da linguagem e desenvolvimento das potencialidades lingüísticas de nossos alunos, introduzindo nas turmas iniciais os clássicos universais da literatura, devidamente adaptados por autores, bem como por professores. 7 – BIBLIOGRAFIA CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Adaptação de Rubem Braga e Edson Rocha Braga. São Paulo: Scipione, 2001. ______. Os Lusíadas. São Paulo: Abril Cultural, 1979. CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. Adaptação de José Angeli. São Paulo: Scipione, 2001. ______. Dom Quixote. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 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