UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL Periferia no Centro, Centro da Periferia: representação das práticas culturais no Minha Periferia Denise Figueiredo Barros do Prado Belo Horizonte — Minas Gerais Dezembro de 2007 Denise Figueiredo Barros do Prado Periferia no Centro, Centro da Periferia: representação das práticas culturais no Minha Periferia Monografia apresentada ao Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a Conclusão da graduação em Comunicação Social Orientadora: Profª.Drª. Vera Regina Veiga França Belo Horizonte — Minas Gerais Dezembro de 2007 2 Agradecimentos À Deus, por provar pela vida que a fé deve sempre vir antes. À minha família, que mesmo distante sempre se fez presente pelo amor que nos une. Obrigada pai, por ser bondoso e compassivo, sempre me ensinando a amar a vida e a todos; à minha mãe, que vive com coragem e força, me dando lições de perseverança; à Dé, minha alma-irmã, por sempre estar conectada comigo, para todos os momentos; ao David, que me mostra o valor do sorriso todas as vezes que o vejo; ao Daniel, pela confiança em mim e por acreditar que a vida e os sonhos sempre são possíveis. Aos novos membros da família, Penha e Tatá (e, em breve, Aline!) que são sempre bem vindas. Amo vocês. Às tias e tios, primas e primos que me amam e desejam o melhor para minha família: o carinho de vocês dá força para seguir (viu, Paulinha?rs!). Aos meus avôs e avós, em especial para Vô Jordino e Vó Eva, que eu tanto amo, por abrirem o portão já com abraços e se despedirem de mim sempre com saudades. À Cleonice, Cecília, Rejane e Dona Inês, por me receberem na sua casa e nas suas vidas. Nunca vou me esquecer da amizade e do carinho dessas mulheres fantásticas e cheias de vida. Aos meus amigos e amigas de Pouso Alegre, que confiaram em mim e na nossa amizade, não deixando que nos perdêssemos pelas mudanças no caminho. Ao Sergio, por todo amor. Às minhas amigas de casa, Lena e Patrícia, por cuidarem tanto de mim. Aos meus amigos e amigas do monosuts que nunca me deixaram sozinha, seja nos almoços às 11h, seja nas horas que eu precisava ver sorrisos por toda parte. Em especial à Dani, Fabiana, Ligia Li, Luana, Suellen e ao Claudinho, Denis, Guilherme, Gustavo Roni, Nessin, Pingüim e Vit. Aos meninos e meninas do Mídia em Pauta, por terem me ensinado tanto a cada reunião, cada programa, cada pauta problemática e pela amizade que dura ao longo dos semestres e, especialmente, à Marina e Michelle, grandes amigas. À família Gris, que me recebeu com carinho, como seu eu já fizesse parte do grupo há muito tempo e me trouxe novas e belas amizades. À Nessa, Carlinha, Cici, Roberto, Flavinha e Filipe(capa lindona!) por me aturarem em minhas agruras de pesquisa! Aos amigos do almoxarifado, Lúcio, Gilson, Neilton e Fidélis, pela paciência com a minha falta de habilidade técnica e, especialmente, ao Lúcio, por ter se tornado esse grande amigo. Ao Enderson, por me aturar no telefone da Officium(rs!). Ao colegiado, por me receber sempre bem, mesmo nos dias tumultuados de eletivas. À Vera, por me aceitar como “discípula” e ser essa grande Mestre que nos ensina, pelo exemplo, a amar nossas pesquisas. Ao Léo, meu co-orientador, pela paciência comigo e meus e-mails desesperados e pelo carinho ao fazer as observações necessárias. À Cici, pela leitura atenta e cuidadosa. Aos funcionários da Fafich, por cuidarem de tudo com carinho. Aos professores do curso de Comunicação, por lutarem com dedicação e amor, querendo sempre melhorar o curso. Por todos os professores que passaram pela minha vida, por me trazerem, cada um a seu modo, até aqui. Aos membros da banca, por participarem deste momento tão importante para mim. Por todas as pessoas da cidade que, mesmo anônimas, ao passarem por mim se mostraram sempre humanas e vivas, não me deixando esquecer que a vida pulsa e se faz sentir. Por todos os músicos que tocaram nos meus ouvidos durante a escrita frenética de todos esses anos. Pelos autores e escritores, por deixarem, corajosamente, a marca de seus pensamentos no papel. Ao CNPq, por acreditar no valor da pesquisa. Por todos vocês que me salvaram do medo e da insegurança acreditando em mim — mesmo que para muitos eu tenha parecido ser Dom Quixote — e apostando na minha força e coragem (e me mostrando que alguns problemas são só moinhos de vento). Com amor, obrigada. 3 Resumo A pesquisa avalia a forma como são representadas as práticas culturais da periferia na série de entrevistas Minha Periferia tendo em vista a sua inscrição num panorama cultural mais amplo. Esta análise busca apreender as atividades linguageiras e as produções discursivas sobre a construção do lugar de fala dos entrevistados, os movimentos de interpelação e posicionamento que se dão ao longo das entrevistas, bem como avaliar como são concretizadas as representações das práticas culturais da periferia como parte da construção de uma imagem dos moradores da favela. Para tanto foram analisadas as falas dos entrevistados e da entrevistadora, a composição imagética dos episódios e as articulações narrativas que perpassam o Minha Periferia. 4 À minha família, à família de amigos que escolhi e à família de mulheres que me recebeu com tanto amor 5 Sumário Introdução __________________________________________________________ 8 Capítulo I: Rediscutindo conceitos: cultura e legitimação das práticas culturais________________________________________________________ 9 1. Campo da Comunicação________________________________________ 9 2. Breve histórico do conceito de cultura_____________________________ 10 3. Legitimidade Cultural__________________________________________ 16 4. Novas teorias sobre a legitimidade cultural_________________________ 20 5. Formas de representação espacial das teorias de legitimidade___________ 25 6. Comunicação, Cultura e Práticas_________________________________ 26 Capítulo II: Cultura de periferia: contexto de fala____________________________ 29 1. Conceito de periferia, conceito de favela___________________________ 29 2. Dimensões do Conceito de Periferia: espacial, político-social e cultural___ 31 2.1 Dimensão espacial_____________________________________________ 31 2.2 Dimensão político-social________________________________________ 32 2.3 Dimensão cultural_____________________________________________ 35 3. Deslocamentos linguageiros e fluxo de produtos culturais_____________ 36 Capítulo III: Linguagem televisiva: construção do lugar de fala ________________ 41 1. Interações comunicativas_________________________________________ 41 2. Linguagem televisiva____________________________________________ 43 3. As narrativas televisivas: o apresentador/entrevistador__________________ 45 4. Seleção: falas e imagens__________________________________________ 49 Capítulo IV: Interpelação, posicionamento e deslocamentos: analisando o Minha Periferia__________________________________________________________ 52 6 1. Descrição do objeto empírico ______________________________________ 52 2. Análise________________________________________________________ 55 2.1 O Espaço Urbano _______________________________________________ 58 a) Problematizações do conceito ________________________________ 58 b) Relação entre sujeitos “do centro” e “ da periferia”________________ 59 2.2 O engajamento dos moradores de periferia para alterarem as condições de pobreza material____________________________________________________ 60 2.3 O Discurso da Violência___________________________________________ 61 a) O “Salvamento” dos Jovens __________________________________ 62 b) Questionando o papel das ONGs ______________________________ 63 c) O trânsito na cidade: as relações com o “centro” __________________ 64 2.4 O exercício de falar de si e de nomear o próprio espaço___________________ 65 2.5 Produção e distribuição da produção cultural da periferia__________________ 68 a) Valorização das práticas_____________________________________ 68 b) Desenvolvimento tecnológico ________________________________ 69 2.6 Relações de interpelação e posicionamento_____________________________ 70 a) Imagens__________________________________________________ 71 b) Edição das falas____________________________________________ 72 2.7 Deslocamentos____________________________________________________ 74 2.8 O papel articulador de Regina Casé____________________________________ 76 Apontamentos Finais______________________________________________________ 79 Referências Bibliográficas_________________________________________________ 82 Anexos_________________________________________________________________ 87 7 Introdução Nesta pesquisa pretendemos analisar como se dão as representações das práticas culturais dos moradores de periferia na série de entrevistas Minha Periferia veiculada pela Rede Globo como inserção do programa Fantástico e apresentado por Regina Casé. Nesta série, a entrevistadora visita várias cidades brasileiras para conhecer projetos culturais e entrevistar moradores de favela e participantes de ONGs (Organizações Não-Governamentais) com o intuito de apresentar um novo olhar sobre a periferia e sua produção cultural, deslocando as representações midiáticas recorrentes que os representavam pelo enfoque da violência. Para desenvolvermos esta pesquisa, dividimos em quatro capítulos as discussões teóricas e a análise do objeto. No capítulo I, “Rediscutindo conceitos: cultura e legitimação das práticas culturais”, realizamos um resgate do conceito de cultura e discutimos o novo contexto de legitimação das práticas culturais. No capítulo II, “Cultura de periferia: contexto de fala”, avaliamos o que é cultura de periferia e como é tratado o contexto de fala dos entrevistados. No capítulo III, “Linguagem televisiva: construção do lugar de fala”, discutimos a linguagem televisiva e a construção do lugar de fala dos entrevistados. No capítulo IV, “Interpelação, posicionamento e deslocamentos: analisando o Minha Periferia”, empreendemos a análise do problema de pesquisa e realizamos o estudo do objeto empírico. Analisamos então como se dão os movimentos de interpelação por parte da entrevistadora diante dos entrevistados e o posicionamento deles durante a construção (ou reconstrução) do seu lugar de fala e a representação imagética dos discursos que perpassam a série. Estivemos atentos também para a articulação da fala dos entrevistados e as interferências e questões propostas pela apresentadora para que pudéssemos analisar a estruturação da série de entrevistas. 8 CAPÍTULO I “Rediscutindo conceitos: cultura e legitimação das práticas culturais” “O senhor mire e veja: o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais,ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando”. (Guimarães Rosa) 1. O Campo da Comunicação Estudar o campo da comunicação é tarefa árdua. Atividade interdisciplinar, tem sua riqueza ao compartilhar grande quantidade de temáticas com outras áreas como a Psicologia, Sociologia e Ciências Políticas sem perder a perspectiva que lhe é característica, a das dinâmicas interativas. Ao reconhecer a riqueza do campo, advinda da interdisciplinaridade e da dinâmica que rege as relações humanas, compreendemos a importância dos deslocamentos e das buscas por novas perspectivas para a reestruturação e amadurecimento dos estudos da Comunicação. É por isso que a abordagem sistêmica do campo marcada pelo viés linear da teoria matemática e da abordagem funcionalista de Lazarsfeld e Lasswell foi revista e ainda é questionada. Aliás, mesmo a Teoria Crítica, tão aceita nos meios acadêmicos, no PósSegunda Guerra, não saiu ilesa às contestações que vêm com o tempo. Porém, é exatamente essa aparente volatilidade do campo que mostra o quanto é difícil apreender as características do objeto e tecer leituras. As teorias são sempre revistas — algumas acabam empoeiradas sobre as prateleiras —, mas o importante é reconhecer as heranças, identificar contribuições e buscar compreender o lugar de onde se fala. Aqui neste trabalho tentamos apontar para mais um deslocamento ao assumir uma compreensão relacional das dinâmicas interativas e tentar analisar a mudança na forma de se olhar para o campo da cultura, as práticas culturais e as formas de legitimação dessas práticas. 9 Para tanto, tentamos “apreender o social pelo viés das dinâmicas comunicativas que o constituem” (FRANÇA, 2003, p.43). O que isso quer dizer? Que o sentido que damos à comunicação está em consonância com aquilo que Quéré (1991) indicou ser a perspectiva comunicacional, ou praxiológica. Em outros termos, nesse paradigma, a comunicação é tratada como o lugar da constituição social dos fenômenos, que a análise social se propõe a descrever e explicar; como meio no qual emergem e se mantêm os objetos e os sujeitos, os indivíduos e as coletividades, o mundo comum e a sociedade. (QUÉRÉ, 1991, p.4) Tomar o ato comunicacional como atividade organizante é pensar a comunicação como histórica e socialmente contextualizada e também como um modo de se compreender as relações sociais como produtoras da história e como movimento que “se finaliza em si mesma”. É uma atividade que resgata um passado e tece as formas das relações futuras. A compreensão da comunicação enquanto atividade organizante, de construção (modelagem) de um mundo comum (de pontos de vista partilhados) é o viés que nos permite apreender em que medida as interações comunicativas, instaurando um espaço público (uma relação de troca e partilhamento simbólico entre os sujeitos), são lugares que constroem esses sujeitos — e os constroem no mundo (FRANÇA, 2003, p.15) É na construção desse mundo comum que são forjados os sujeitos e onde se dão as interações comunicativas. Sob esse viés comunicativo buscamos analisar a série de entrevistas Minha Periferia, tomando como problema de pesquisa: como as práticas culturais da periferia são inscritas, representadas e se dão a conhecer neste programa televisivo. 2. Breve Histórico do Conceito de Cultura A noção de cultura surge nos estudos das Ciências Sociais como fator de diferenciação dentro da suposta homogeneidade que forma o humano. Tomar a cultura como transformadora do comportamento social e construída no bojo das relações interativas é desnaturalizar o mito de que o ser humano é biologicamente estruturado para a vida em sociedade. 10 Mesmo as funções humanas tidas como biológicas estão inseridas num contexto de relações culturais que as revestem de significados e coordenam as ações das pessoas. Como ironiza Denys Cruche (2004), é comum interpelarem-se as crianças cobrando que elas ajam naturalmente, mas o “natural” exigido é o agir de acordo com as normas comportamentais compartilhadas pelo grupo social em que estão inseridas. A compreensão da cultura não é um termo pacífico nas Ciências Sociais nem deixa de remeter às discussões precedentes acerca do significado da expressão. Porém, não é a proposta deste trabalho fazer aqui um resgate aprofundado dos usos e interpretações acerca da palavra cultura. Trata-se antes de analisar as formas culturais, as questões de valorização e legitimidade atribuídas a elas. A seguir, apresentaremos um breve histórico do desenvolvimento do conceito, seguindo a divisão em quatro concepções básicas de sentido atribuídas à cultura. A primeira concepção de cultura é chamada de concepção clássica. Inicialmente, a palavra de origem latina foi compartilhada por diversos idiomas europeus e era relacionada à noção de “terra cultivada”. No século XVI, ela passa a ser associada ao ato de cultivar a terra, denominando uma ação. Esta concepção foi se alterando gradativamente no século XVIII, quando ela é desvinculada da noção de cultivo da terra para ser relacionada às artes e às ciências. É neste século que filósofos alemães e franceses, inspirados pelo Iluminismo, dão a esse termo a conotação de “formação” e de “educação”, ligando-o ao conceito de civilidade, e tomandoo como um processo de aprimoramento humano no que se refere às noções de desenvolvimento intelectual e espiritual. Aqui são valorizados os saberes acadêmicos, o desenvolvimento das faculdades humanas pela apreensão de obras de arte e o cultivo das qualidades tidas como elevadas. As críticas mais recorrentes feitas a esta concepção se referem à sua “restritividade e estreiteza”, uma vez que privilegia trabalhos e valores e considera que somente pelo “progresso intelectual” se poderia chegar ao enobrecimento da mente e do espírito. Essa perspectiva não resistiu às críticas feitas pelo desenvolvimento dos estudos antropológicos que estavam mais atentos aos costumes, práticas e crenças de outras sociedades que não as européias. 11 Desses estudos antropológicos surgiram outras concepções, das quais Thompson (1995) destaca duas: a descritiva e a simbólica. A concepção descritiva abarca valores, crenças, costumes, convenções, hábitos e práticas e os situa como definidores da cultura. Os estudos desta linha começaram a se desenvolver ainda no início do século XIX, com os trabalhos de descrição etnográfica de sociedades não-européias. Uma das definições exemplares de cultura para esta concepção foi formulada em 1871 por Taylor, para quem: Cultura ou Civilização, tomada em seu sentido etnográfico amplo, é aquele complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e todas as demais capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade. A condição da cultura, entre as diversas sociedades da espécie humana, na medida em que é passível de ser investigada nos princípios gerais, é um tema apropriado para o estudo do pensamento e da ação humanos. (TAYLOR apud THOMPSON, 1995, p.171) Com esta definição, percebemos que cultura é considerada aqui como a totalidade da expressão da vida humana e é, em grande parte, um conjunto de ações inconscientes1. Também podemos notar que o estudo da cultura, conforme esta concepção, deve comparar, classificar e analisar cientificamente os diversos fenômenos culturais como forma de apreensão das práticas culturais, o que foi denominado por Thompson de “cientifização do conceito de cultura”. Essa concepção foi criticada nem tanto pelo conceito de cultura adotado quanto pelo método de estudo, já que havia várias opiniões divergentes sobre a forma como esses estudos deveriam proceder, seja pelo viés evolucionista, seja pela análise funcional — sendo que ambos ainda têm sido questionados pelos antropólogos. Em conseqüência disso, o conceito de cultura também foi posto em xeque, pois ele só fazia sentido se houvesse métodos de análise e apreensão que fossem eficientes. Assim, o conceito, sem uma metodologia fechada, acabou sendo criticado como amplo demais, vago e redundante. A concepção simbólica, como o próprio nome indica, se detém nos estudos dos símbolos, na interpretação deles e na ação simbólica que os constrói. Para esta concepção, 1 Esta concepção de Taylor também é conhecida como concepção universalista de cultura, conforme Cruche (2004). Segundo esta classificação, também haveria uma concepção particularista da cultura, que teria como principal referência Franz Boas, para quem não há leis universais que regem comportamentos, nem leis gerais de avaliação da evolução das culturas. Sua concepção implica no relativismo da cultura e na compreensão de que cada cultura é única, específica. É a partir desta noção que surgiram também os questionamentos sobre o etnocentrismo. 12 A cultura é uma “hierarquia estratificada de estruturas significativas”; consiste de ações, símbolos, sinais, de “trejeitos, lampejos, falsos lampejos, paródias”, assim como manifestações verbais, conversações e solilóquios. Ao analisar a cultura, entramos em emaranhadas camadas de significados, descrevendo e redescrevendo ações e expressões que já são significativas para os próprios indivíduos que estão produzindo, percebendo e interpretando essas ações e expressões no curso de sua vida diária. As análises da cultura — isto é, os escritos etnográficos dos antropólogos — são interpretações de interpretações, abordagens de segunda ordem, por assim dizer, sobre um mundo que já é constantemente descrito e interpretado pelos indivíduos que compõe esse mundo. (THOMPSON, 1995, p.175-176) Para Thompson esta concepção traz contribuições significativas, pois se aproxima mais da interpretação de textos que dos métodos de classificação e também é mais exigente com os intérpretes, pois eles devem ter sensibilidade para “discernir os padrões de significado, discriminar entre gradações de sentido e tornar inteligível uma forma de vida que é já significativa para aqueles que a vivem” (THOMPSON,1995, p.176). No entanto, o autor faz uma crítica a esta concepção destacando que ela falha ao não dar suficiente atenção aos problemas de poder e conflito e, mais genericamente, aos contextos sociais estruturados dentro dos quais os fenômenos culturais são produzidos, transmitidos e recebidos. (THOMPSON, 1995, p.180) Percebemos então que Thompson, tomado pela “virada cultural”2 dos Estudos Culturais ingleses, opta por formular uma outra concepção de cultura, a concepção estrutural. Nela o autor pretende dar ênfase tanto à dimensão simbólica quanto ao contexto social em que são estruturadas as relações. Para ele, os fenômenos culturais devem ser vistos como “formas simbólicas em contextos estruturados” e a análise deve ser entendida como “o estudo da constituição significativa e da contextualização social das formas simbólicas” (THOMPSON, 1995, p.181). Para ele, os fenômenos culturais são interpretados rotineiramente pelas pessoas durante as suas vidas; logo, cabe aos analistas tentar compreender as “características 2 A “virada” dos estudos culturais foi marcada pelo surgimento de três obras fundadoras: The Uses of Literacy (1957), de Hoggart; Culture and Society 1780-1950 (1958), de Williams; e The Making of the English Working Class (1963), de Thompson. Para Hall, “num sentido profundo, o ‘acerto de contas’ em Cultura e Sociedade, a primeira parte de The Long Revolution, certos aspectos particularmente densos e concretos do estudo de Hoggart sobre a cultura da classe trabalhadora e da reconstrução histórica da formação da cultura de classe e das tradições populares do período entre 1790/1830, feita por Thompson — em conjunto — constituíram a ruptura e definiram um novo espaço em que uma nova área de estudos e prática brotou. (...) A ‘cultura’ era o local de convergência” ( HALL, 2003, p.134). 13 significativas da vida social” e também, durante a análise, é imprescindível que se avalie os contextos onde esses processos são estruturados. Esta concepção estrutural tenta evitar as limitações das abordagens estruturalistas, ao combinar esta perspectiva com outras vertentes, como a dos culturalistas. A análise estrutural da cultura foi empreendida primeiramente por Lévi-Strauss. Para este autor, a cultura pode ser tomada como um conjunto de sistemas simbólicos no qual são inscritas as práticas culturais e a vivência cotidiana. Esses sistemas representariam certos aspectos da realidade física e social e caberia analisar as relações estabelecidas entre esses sistemas3. Já os culturalistas acreditavam na especificidade de diferentes práticas e entendiam que as formas de consciência e de cultura eram coletivas. Além disso, para eles, a condição e a consciência interagiam no âmbito do “vivido”. Um dos grandes representantes desta corrente foi Raymond Williams, que se contrapôs ao materialismo histórico e ao determinismo econômico e dá ênfase à “atividade constitutiva” em geral e à atividade humana. Para Williams (1992), a cultura era um modo de vida global, ou seja, ela seria atravessada por todas as práticas sociais e era resultado das inter-relações delas. Thompson criticou esta concepção, pois para ele, esta perspectiva negligenciava a importância das condições materiais e o embate que ocorre no seio de um panorama cultural mais amplo pelo confronto entre “modos de vida” opostos. Para evitar e contornar as críticas feitas às outras abordagens, a concepção estrutural de cultura de Thompson apresenta uma caracterização das formas simbólicas, enquanto dotadas dos seguintes aspectos: 1. Aspecto intencional: as formas simbólicas seriam utilizadas com certo grau de intencionalidade comunicativa, sendo consideradas formas de expressão de um sujeito se posicionando para o outro sujeito da relação; 2. Aspecto convencional: há uma “gramática de valores” que permite que os indivíduos compreendam os códigos sociais; 3 Lévi-Strauss emprega quatro concepções apreendidas de Ruth Benedict: 1) as diversas culturas são definidas por um modelo; 2)há um número limitado de “combinações” de culturas possíveis; 3)o estudo de sociedades primitivas é a melhor forma de se determinar as combinações possíveis dos elementos permutáveis; 4)as combinações podem ser estudadas independentemente dos indivíduos, já que os grupos são inconscientes das combinações formadoras de suas sociedades. Conforme o autor, as culturas particulares não podem se formar sem se referenciarem à Cultura comum, ao “capital comum” da humanidade. 14 3. Aspecto estrutural: as formas simbólicas são construções que exibem uma estrutura articulada; 4. Aspecto referencial: as formas simbólicas são construções que tipicamente representam algo, referem-se a algo, dizem algo sobre alguma coisa; 5. Aspecto contextual: as formas simbólicas estão sempre inseridas em processos e contextos sócio-históricos específicos. A relevância do estudo das formas contextualizadas é destacada porque, com a análise do contexto, se expande o olhar para além dos traços estruturais internos. Somente na articulação deste olhar com a percepção das características externas é que se pode dar conta do ambiente e do discurso, das relações entre os aspectos estruturais e sistêmicos da interação. A inserção social das formas simbólicas indica que tanto o lugar de fala quanto o ambiente de interpretação do discurso estão situados e dizem de um contexto social da interação e também que “sua inserção contextual consiste em que elas são, freqüentemente, objeto de complexos processos de valorização, isto é, processos pelos e através dos quais lhes são atribuídos determinados tipos de valor” (THOMPSON, 1995, p.193). O autor destaca que há, essencialmente, duas formas de valorização das formas simbólicas: a valorização econômica e a valorização simbólica. O valor econômico é dado quando as formas simbólicas são mercantilizadas, se tornando aquilo que Thompson denomina bens simbólicos. A valorização simbólica é atribuída pela estima e pelas relações estabelecidas com os indivíduos. Porém, esse processo de valorização é conflituoso, pois a apreciação das formas está ligada ao “gosto”, forma individual de atribuir valor, e também às instâncias de legitimação e consolidação do processo de valorização. Ao adquirir um valor simbólico, um trabalho pode adquirir um grau de legitimação — isto é, pode ser reconhecido como legítimo e não apenas por aqueles que estão bem posicionados para atribuir valor simbólico, mas também pelos que reconhecem e respeitam a posição daqueles. Na medida em que um trabalho é reconhecido como legítimo, o produtor do trabalho receberá honras, prestígio e respeito. (THOMPSON, 1995, p.204) Outro ponto conflituoso deste tipo de valorização está ligado à noção de restrição e controle de certos bens, seguindo uma lógica classista e excludente. Com isso, muitos dos 15 bens simbólicos e das formas culturais passam então a ser vistos como elementos de distinção entre os indivíduos e representativos da estratificação social. 3. Legitimidade Cultural Pierre Bourdieu, em sua obra A Distinção, articula estas duas instâncias de valorização ao ligar o valor simbólico ao econômico na sua Teoria da Legitimidade Cultural. Nesta teoria, ele destaca que os gostos e hábitos culturais não se tratam apenas de percepções socialmente diferenciadas, mas também de valores hierarquizados pelos “jogos de poder”. Segundo ele, as preferências estéticas e as práticas culturais participam, nas sociedades modernas, de rituais de identificação de classe e esta distinção entre os indivíduos e os gostos obedeceria a um sistema de hierarquização e legitimação das práticas bastante rígido e estruturado pelas classes dominantes, que imporiam seus padrões de valorização e legitimidade. A legitimidade cultural seria então construída por duas asserções: a legitimidade ou ilegitimidade de uma prática seria definida pela posição social daqueles que a exercem e pela admissão de que as classes dominantes tendem a ter práticas mais legítimas. Esta posição, por fim, define que cultura legítima é aquela das classes mais elevadas: O ponto importante é que este espaço social é estabelecido sobre uma hierarquia de gostos e de práticas, o que constitui um espaço de “dominação simbólica” fundado sobre a interiorização dentro de um conjunto da sociedade, de uma ordem de legitimidade cultura das preferências. A escola, segundo essa teoria, contribui para a reprodução desta ordem, dotando a “arbitrariedade cultural” das classes dominantes de uma legitimidade acadêmica4. (COULANGNON, 2005, p.8) Durante muitos anos esta teoria foi tomada como uma interpretação fiel das relações sociais e da dinâmica de legitimação dos bens culturais. Porém, na última década, questionou-se quais eram os elementos que conferiam legitimidade às práticas culturais e se 4 “Le point important est que cet espace social est établi sur une hiéraquie des goûts et des pratiques, qu’il constitue un espace de ‘domination symbolique’ fondé sur l’intériorisation, dans l’ensemble de la société, d’un ordre de légitimité culturelle des préférences. L’école, selon cette théorie, contribue à lá reproduction de cet ordre, en fonat l’‘arbitraire culturel’ des classes dominantes d’une légitimité académique [Bourdieu et Passeron, 1970]” ( COULANGNON, 2005, p.8) 16 as relações de classe determinavam os processo de valorização e reconhecimento da legitimidade. Bernard Lahire (2006), um dos revisores da Teoria da Legitimidade Cultural, destacou que a crítica mais freqüente feita a ela se reporta à divisão em categorias ou gêneros utilizada na pesquisa de Bourdieu, pois, para os críticos, a lógica dos gêneros e das categorias estipuladas contribui para estereotipia das práticas culturais ao ligá-las às relações de grupo e às classes sociais e apaga as variações de gostos intra-individuais. Contudo, para Lahire, essas divisões que operacionalizaram a pesquisa de Bourdieu estão relacionadas à própria configuração do mundo social, que acaba por tornar equivalentes práticas distintas, pois associa o consumo de bens culturais à compra de produtos de luxo. Lahire destaca que não se pode deixar de perceber que as categorizações e divisões em gêneros por aproximação permeiam a vida social e é neste lugar e com a configuração deste mundo que se operam as qualificações e desqualificações das práticas. O autor, porém, ressalta que para se avaliar a legitimidade cultural não se pode partir somente de pressupostos, mas também é preciso que se desenvolvam pesquisas que tratem especificamente dessas questões e que sejam avaliadas as relações entre os grupos sociais na determinação da legitimidade. Segundo ele, a legitimidade só faz sentido em contextos onde há uma “sociologia de crença e dominação” e diz que somente é preciso que haja duas condições para o estabelecimento da legitimidade: que o universo social seja diferenciado e hierarquizado e que as pessoas, ainda que pertençam a diferentes grupos sociais, tenham, em maior ou menor grau, a consciência da “dignidade” e “indignidade” cultural dos objetos, práticas e de instituições. Assim, Lahire avalia que as pessoas que reconhecem a ordem das legitimidades, mas não a seguem rigorosamente na escolha dos bens culturais para consumo, tendem a desclassificar as próprias práticas quando questionadas sobre seus gostos e, inclusive, indicam displicência com relação às interações estabelecidas com esses produtos (por exemplo, a maioria dos entrevistados de Lahire que assistiam a talkshows e programas populares declarava que esses programas eram ruins, mas eles os assistiam assim mesmo por não terem “nada para fazer”, por “distração” ou apenas para descansar). Já as pessoas 17 “pobres de capital cultural”, que seriam aquelas que desconhecem a ordem das legitimidades, falam de suas práticas como se fossem legítimas por ignorância. Para ele, somente as pessoas de elevado capital cultural ou crentes de um outro sistema de classificação estariam em condições de questionar as legitimidades e teriam capacidade de resistência às imposições de legitimidade presentes nas escolas e em outras instituições. Para ilustrar esse tipo de valorização ele usa a metáfora da “moeda de troca”, ilustrando que existem moedas que valem muito em certos locais — assim como certas práticas culturais em determinados contextos específicos — mas que em outros locais perdem parte de seu valor — o que, no campo da cultura, seriam as práticas descontextualizadas que perdem sua base de referências significantes. Quanto a isso, o autor completa: em todo caso, é impossível agir como se estivéssemos ligados a um espaço cultural homogêneo sob o ângulo da legitimidade, isto é, estruturado de um extremo a outro por uma oposição legítimo/ilegítimo unívoco; oposição que todos conheceriam e poriam em prática, à qual todos atribuiriam o mesmo significado e na qual todos acreditariam com a mesma intensidade. (LAHIRE, 2006, p.57) Assim, para Lahire, o “efeito de legitimidade” não é estável nem perene, ele é construído coletivamente e afeito às mudanças do tempo, aos meios de resistência e à disputa por legitimidade de instâncias de legitimação concorrentes e, também por isso, ele destaca que negligenciar a pertinência das variações intra-individuais pode ter sido a maior falha da pesquisa de Bourdieu, uma vez que isso o levou a trabalhar com a noção de transferência de certos costumes para vários âmbitos da vida. Para Bourdieu, “os esquemas geradores de habitus aplicam-se, por simples transferência, aos campos mais diversos da prática” (BOURDIEU apud LAHIRE, 2006, p.124), mas esta interpretação, para Lahire, é um erro, pois para ele é preciso relativizar o peso do status e da formação dos indivíduos (e concebê-la como formada para além do âmbito escolar) para se olhar mais atentamente para as trajetórias individuais. Além disso, Lahire também critica a posição de Bourdieu sobre a existência de certa “homogeneidade das múltiplas situações culturais vividas pelos atores” (LAHIRE, 2006, p.125) dizendo que é exatamente porque os atores têm clareza das situações e adaptam seus comportamentos em função do que percebem delas que é possível observar as 18 variações das práticas e das atitudes culturais. Quando sentem que tal prática altamente legítima em tal quadro (conjugal ou profissional) poderia parecer pretensiosa, medíocre, absurda ou inadequada em outro quadro (amigável ou familiar) ou em outro momento (durante o período das férias), eles ajustam seu comportamento. (LAHIRE, 2006, p.125) Além disso, o estabelecimento de fronteiras entre o que são as práticas legítimas e as ilegítimas atua para além do campo das práticas em si, pois os indivíduos sabem que são avaliados constantemente na vida social a partir do modo como se comportam e pelos seus gostos e habilidades. É por isso que para Lahire a assimilação e envolvimento com certas práticas dizem de uma forma dos indivíduos se diferenciarem dos demais. Quanto mais o mundo social é diferenciado, mais existem variantes das maneiras de viver e de se ocupar, e mais os princípios de diferenciação diversificam-se. Poderíamos, inclusive, acrescentar que quanto mais o mundo social é diferenciado, mais os indivíduos que o compõem são definidos por uma infinidade de coordenadas e de propriedades sociais (...), e mais têm chances de fazer um uso contextualmente diferenciado — sempre em relação àqueles dos quais se diferenciam — de valores que os engrandecem. (LAHIRE, 2006, p.72) Porém, apesar do autor reconhecer a diversidade das práticas, ele destaca que a busca pela legitimação frente às demais práticas, sejam elas já legitimadas ou em vias de legitimação, estão inscritas em um contexto de embates e disputas por valorização. E esta disputa permite, inclusive, entender o campo da cultura como um ambiente heterogêneo e relacionado a estruturas hierárquicas que não respondem só às divisões de classe tão ressaltadas por Bourdieu. Mas a guerra simbólica de todos contra todos não significa que disponha de meios equivalentes para lutar e impor seus pontos de vista. É por essa razão que, apesar dos riscos de desvios legitimistas na descrição do mundo social, e ainda que tenha de se precaver para não transformá-lo em um espaço homogêneo e contínuo onde os dominantes reinariam absolutos por toda a parte e a todo momento, o sociólogo, se quiser respeitar a ordem real das coisas, terá de falar a linguagem da legitimidade, da dominação e da hierarquia.(...)É porque nem tudo se equivale e porque existem muitos “altos” e “baixos” que as variações intraindividuais de práticas e de preferências são mudanças planas em um leque de comportamentos equivalentes, simples variações horizontais de uma infinidade de objetos ou de atividades não-hieraquizadas. (LAHIRE, 2006, p.573) É sabido que as práticas vividas cotidianamente pelos indivíduos mesclam práticas mais ou menos legítimas, ao sabor dos acontecimentos e das vontades, mas isso 19 não faz com que todas elas sejam posicionadas em um mesmo patamar pelos próprios praticantes. Com isso, o autor propõe que se fale em “dissonâncias” no que se refere às relações entre essas práticas e destaca que ainda se vive em um contexto onde há práticas reconhecidas como legítimas e outras não e, apesar dos indivíduos transitarem por elas, não se percebe uma horizontalidade no trânsito, visto que a hierarquização ainda se impõe. É por isso que o uso do termo “dissonâncias” é preferido a qualquer outro termo, ainda que, em última análise, as dissonâncias culturais revelem-se mais freqüentes estatisticamente do que as consonâncias culturais para o alto ou para baixo. Falar metaforicamente de dissonância significa destacar o fato de que, no atual estado de coisas, a ordem desigual dos diferentes registros de legitimidade cultural não foi pelos ares e que as variações de um registro a outro raramente são vividas pelos atores como deslocamentos horizontais no interior de um espaço de registros estritamente equivalentes. Muito freqüente estatisticamente, a dissonância não se tornou, portanto, simbolicamente “normal” ou “desejável”. (LAHIRE, 2006, p.574) Por fim, Lahire destaca, ao final de sua obra, que a ligação das relações entre digno/indigno e legítimo/ilegítimo não estão marcadas somente pela dinâmica das classes sociais, mas também dizem dos formatos de interação social e da forma de se julgar os comportamentos próprios, dos outros e de se criar parâmetros de comportamento diante das diversas situações sociais. O autor propõe que se analise o contexto de legitimidades atual como permeado por uma “pluralidade de ordens de legitimidades”. As discussões de Lahire suscitaram polêmicas e levaram a discussões entorno da Teoria da Legitimidade Cultural e da flexibilização das fronteiras da legitimidade. 4. Novas Teorias Sobre a Legitimidade Cultural Recentemente, muitos pesquisadores têm discutido as ordens de legitimidade e a Teoria da Legitimidade Cultural. Dentre eles, destaca-se Philippe Coulangnon (2005), que realizou uma pesquisa na França sobre os gostos musicais segundo as categorias de idade, gênero, profissão e nível de estudos. Sem surpresa ele percebe que os gostos musicais não se encontram diferenciados claramente por apenas uma das categorias, mas sim que há um ecletismo nas práticas bastante significativo. Ele percebeu que os indivíduos das classes superiores identificavam “gradações de valor” entre aquilo que ouviam, e possuíam gostos 20 bastante variados, podendo ser considerados “onívoros”5, conforme a denominação utilizada por Lahire para descrever esses indivíduos. No entanto, Coulangnon critica esta denominação, pois acredita que ela possui certo caráter “elitista” ao restringir apenas aos indivíduos das classes dominantes o poder de assimilar diferentes práticas, inclusive porque caberia a eles definir quais práticas estariam “em vias de legitimação”. Coulangnon explica que a mudança nos gostos e no ecletismo das práticas se tornou relativamente comum depois da década de 80, pois houve certa flexibilização das fronteiras entre as músicas popular e clássica. Para ele, esta mudança nos gostos — e no menor constrangimento em assumi-los — está ligada aos movimentos político-sociais para a valorização dos gêneros musicais tidos como “menores”. Ele destaca que estas mudanças político-sociais tiveram implicações sobre a Teoria da Legitimidade Cultural, pois ela se mostrou historicamente datada — já que foi baseada nas pesquisas realizadas no início da década de 60, período tido como particular na história das sociedades ocidentais, e principalmente a francesa — e subestimava a autonomia e a segmentação dos sistemas de valores e normas estéticas das classes populares. Segundo ele, esta teoria negligenciou a possibilidade dos indivíduos se posicionarem com indignação diante da cultura dominante e a trabalhou com a noção de coerência dos grupos sociais, o que não permite contemplar a pluralidade e heterogeneidade das relações sociais6. O autor apresenta ainda o argumento dos pós-modernos, os críticos mais ferozes da Teoria da Legitimidade Cultural, para quem dentro das sociedades “pós-modernas”, as desigualdades e as distinções não desaparecem, mas elas são fundamentalmente incertas. Elas se redefinem permanentemente e reagrupam os indivíduos de maneira contingente, de acordo com as circunstâncias e os recursos e é isso que constitui uma das facetas da ‘sociedade da imprecisão’[Beck,1986]7. (COULANGNON, 2005, p.9) Outro crítico da Teoria da Legitimidade Cultural é Glevarec (2005), que apresenta esta teoria destacando dois traços marcantes: o “socialismo” e o “holismo”. A nomeação de 5 Esta denominação significa que esses indivíduos formariam um grupo que articula em seu repertório práticas culturais tomadas tanto como legítimas quanto ilegítimas. (Lahire apud Coulangnon, 2004, p.62) 6 Esta última crítica também pode ser encontrada em Lahire, conforme expresso nas páginas anteriores deste trabalho. 7 “Dans la société ‘post moderne’, les inégalités et les distinctions ne disparaissent pas, mais elles sont fondamentalement incertaines. Elles se rédefinissent en permanance et regroupent les individus de manière 21 holismo dada pelo autor se refere ao que Bourdieu dizia ser “a imposição generalizada da legitimidade da cultura dominante” (BOURDIEU apud GLEVAREC, 2005, p. 75)8 e insinua uma pretensão à universalidade do julgamento por gosto. O holismo é percebido então como uma aceitação da ordem das legitimidades e pela desvalorização dos bens considerados ilegítimos. Já o socialismo pressupõe certa homogeneidade nas classes sociais, tanto com relação à dominância quanto aos gostos. Para Bourdieu, os processos de distinção social se davam pela diferenciação dos gostos e, desta forma, as classes seriam facilmente identificáveis, uma vez que elas, consideradas grupos homogêneos, seriam fruto de agregações de indivíduos por meio de critérios ligados ao gosto e à hierarquia de classes.9 Glevarec, ao apontar os limites do holismo, questiona a própria definição de legitimidade e destaca a dificuldade de se definir o que é considerado legítimo para cada indivíduo no momento de seleção e apreciação dos bens culturais. Este autor tece duras críticas à pesquisa de Lahire, pois entende que ela foi realizada com o intuito de perceber as variações intra-individuais e valorizá-las a partir do mapeamento dos gostos e dos padrões de legitimação, contudo, não usou categorias que dessem conta dessa diversidade, reaplicando a categorização bourdiesiana. Segundo Glevarec, as falhas das pesquisas de Lahire são dadas pela própria forma como são enquadrados “gêneros problemáticos” como o jazz e o rock. Esses dois gêneros musicais não são considerados música clássica, no entanto, já foram incorporados como gêneros legítimos pelas pessoas, desobedecendo a critérios anteriores, que os julgavam como música transitória. No momento da categorização, Lahire percebe o desencaixe, mas não propõe outro sistema de categorização, mantendo o sistema bourdiesiano. Pensando sobre as formas de se construir uma legitimidade unívoca e linear e os critérios de avaliação dessas práticas, Glevarec entende que, caso sejam seguidos os pressupostos da Teoria da Legitimidade Cultural, somente seria possível avaliar conforme o contingente, augré des circonstances et des enjeux, ce qui constitue l’une des facettes de la ‘societé du risque’[ Beck, 1986]”. ( COULANGNON, 2005, p.9) 8 “l’imposition généralisée de la légitimité de la culture dominante” (BOURDIEU apud GLEVAREC, 2005, p. 75). 9 “ Comme toute espèce de goût, elle unit et sépare: étant le produit des conditionnements associés à une classe particulière de conditions d’existence, elle unit tous ceux qui sont le produit de conditions semblabes mais en distinguant de tous les autres et sur ce que l’on a, personnes et choses, et tout ce que l’on est pour les autres, de ce pour quoi on se classe et par quoi on est classé ”.(BOURDIEU, 1979, p.59) 22 número de membros de classes superiores e baixas presentes em cada gênero. Porém, ele destaca que a prática tida como a mais legítima é também a menos praticada pelas classes superiores — ainda que em número maior que em qualquer outra classe. Um exemplo disso foi a música clássica, tida como forma legítima e consolidada, que obteve baixos índices de audições em concertos. Com isso, questionou-se: o que faz da legitimidade cultural uma prática? Seria o fato de certas práticas culturais serem raras e pouco acessadas mesmo para os membros das classes elevadas (como a audição dos concertos demonstrou ser)? Ou elas deveriam mesmo ser minimamente praticadas para serem consideradas “raridades” da legitimidade? Glevarec destaca que a legitimidade possui três manifestações sociológicas: a simbólica; a social e a cultural ou axiológica. A primeira trata do reconhecimento, por parte do indivíduo, do valor do bem cultural; a segunda está ligada à renda e às instituições e desvaloriza as práticas não reconhecidas como legítimas por essas instâncias e seus praticantes; a terceira se refere à agregação de valor a certas práticas culturais em detrimento de outras. Glevarec destaca que o “legitimismo” desta teoria situa as práticas e os traços culturais das classes populares como destituídas de sentido, visto que neste sistema simbólico o sentido só é dado àquilo que corresponde à ordem legítima. Deste modo, os indivíduos das classes populares são tomados como infratores, errantes, malandros, privados de códigos, distanciados, desonrados, simplesmente por não serem “legítimos”. 10 O autor ressalta que seus estudos não pretendem avaliar quais os critérios de legitimidade das práticas de uma época e definir uma legitimidade cultural, como fizeram Bourdieu e Lahire — sendo que este último reconduziu os estudos sobre legitimidade cultural ao propor a valorização dos critérios intra-individuais — mas sim tratar do presente processo de construção de legitimidades. Glevarec destaca que atualmente há “ordens de legitimidade” que não são somente situacionais, mas também sociais, e propõe, ao invés de Lahire, que entende que hoje há uma “pluralidade de ordens de legitimidade”, entender que 10 “Un pas de plus dans la revendication du monopole descriptif, et la théorie de la légitimité culturelle bascule à son tour dans un déni de sens, écrivent les auteurs du Savant et le Popularie; les pratiques et les traits culturels des classes populaires se trouvent privés du sens qu’ils tiennent de leur appartenance a un système symbolique lorsque le sociologue [Bourdieu] énonce comme exclusif le sens qu’ils tiennent de leurs reférence à un ordre culturel légitime: infraction, erreur, maldresse, privation des codes, distance, conscience 23 há uma “heterogeneidade de ordens de legitimidade” e indica ainda que esta diferenciação não pertence somente ao campo semântico, mas sim a uma nova forma de se construir o objeto e a uma proposição teórica de análise. Ele apresenta então os debates da área sobre a construção de um novo conceito de legitimidade que dê conta das mudanças sociais e da nova percepção das pessoas do que se considera prática cultural legítima. Segundo o autor, Olivier Donnat propõe que se pense a legitimidade como conferida, atualmente, em duas vias, a “escolar-acadêmica” e a “midiática-publicitária”(GLEVAREC, 2005, p.83). Outra proposta vem de Dominique Pasquier, sugerindo que a legitimação das práticas vem da relação de dominação dos meios de comunicação e da percepção da cultura de massa como cultura dominante, cultura esta que tem tiranizado os adolescentes na construção do gosto e na definição da legitimidade (GLEVAREC, 2005, p.84-85) ou ainda a leitura mais otimista de Thornton, para quem o papel dos meios deve ser reavaliado, pois é através deles que os jovens têm conseguido legitimar as suas práticas (GLEVAREC, 2005, p.84). Retomando um dos questionamentos do holismo da Teoria da Legitimidade cultural, o autor cita a indagação de Grignon: “podemos oferecer um critério que permita hierarquizar as práticas e os gostos em uma escala única ou devemos admitir uma pluralidade de escalas de valores e de classes, relativamente diferentes, conforme os grupos?” (GRIGNON apud GLEVAREC, 2005, p.86)11. Respondendo a esta questão, o autor explica que Lahire é criticado por propor uma “pluralidade de ordens de legitimidade”, pois ao pensar em “pluralidade” ele indica que haveria várias ordens de legitimidade concorrentes entre si e estas ordens diversas seriam construídas em grupos de pares, no meio familiar, profissional ou em outros grupos, como, por exemplo, os fãns-clube. Deste modo, poderiam ser estabelecidas relações de hierarquização entre as ordens, principalmente por reafirmar a existência de uma ordem de legitimidade dominante. Glevarec destaca que, hoje, há instâncias de definição de legitimidade que estão além da noção de pluralidade de gostos, mas contemplam uma heterogeneidade de práticas legitimadas em instâncias diferentes — sem estabelecer honteuse ou malheureuse de cette distance ou des ces manques”( PASSERON et GRIGNON, apud GLEVAREC, 2005, p.73) 24 hierarquias entre as ordens de legitimidade—, justificando assim a expressão cunhada por ele, a “heterogeneidade das ordens de legitimidade”. Sobre este conceito, ele entende que a validade desta noção está em compreender que cada prática responde a uma ordem interna de valorização de práticas e não estabelece relações comparativas (muito menos legitimistas) com outras práticas diversas. 5. Formas de representação espacial das teorias de legitimidade Partindo destas discussões, Glevarec questiona as formas de representação espacial e esquemática das legitimidades, insistindo na busca por novos modelos que não reproduzam as estruturas verticalizadas até então utilizadas na composição dos quadros. Uma sugestão dada por ele quanto a essas representações espaciais foi o modelo piramidal desenvolvido por Richard Peterson, durante os anos 90. Neste modelo, cada prática estaria situada em uma face da pirâmide e, desta forma, somente se poderia falar em hierarquia das práticas nelas mesmas, uma vez que com relação às demais elas sempre estariam horizontalmente no mesmo nível, o que impediria qualquer julgamento de sobreposição ou dominância. Este modelo de representação é consonante com a proposta de “heterogeneidade das ordens de legitimidade” de Glevarec e abarca ainda uma discussão recente sobre as legitimidades, visto que se percebeu que hoje são estabelecidas hierarquizações dentro dos gêneros e não entre eles — indício que ajuda a reforçar e a justificar a insistência de Glevarec ao falar em “heterogeneidade” ao invés de “pluralidade”.12 Mas como explicar essa alteração nas formas de atribuição de legitimidade às práticas? Para Glevarec, há um contexto de heterogeneização crescente e um relaxamento do “controle social”. A heterogeneização crescente interferiu nos gostos das classes dominantes, visto que houve a emergência de uma nova classe média que é composta por 11 “Peut-on se donner um critière pemettant de hiérachiser les pratiques et les goûts sur une échelle unique ou doit-on admettre une pluralité d’échelles de valeurs et de classements, rélativement différents selon les grups?” ( PASSERON et GRIGNON apud GLEVAREC, 2005, p.86) 12 “ C’est pourquoi il ne s’agit plus simplement de ‘pluralisation’ mais d’‘hétérogéneisation’ des ‘ordres légitimité culturelle’: ceux-ci sont des genres et ils sont devenus incommensurables. Dorénavant, les individus discutent de savoir (nous prenons volontairement des examples sur divers supports), dans le domaine du rock, le meilleur entre Noir Désin et Kyo, dans le rap, entre un rap authentique et un rap commercial, dans la techno entre la radio Galaxie et la radio Contact FM”. (GLEVAREC, 2005, p.93) 25 pessoas jovens, com nível de escolaridade superior, mais flexíveis nos gostos e que são considerados sujeitos pós-modernos. Essa heterogeneidade foi articulada às alterações da postura do Estado com relação à difusão das culturas, respeitando particularidades regionais, e também ao desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. Outra heterogeneidade social notada se reporta às “cenas sociais de existência”. Isso quer dizer que se tem percebido a dissociação das cenas institucionais (trabalho, escola, etc.) e as cenas sociais (convivência familiar, grupo de amigos, etc.) e esta última têm sido percebida como um lugar privilegiado para a construção de legitimidades. Aliás, a variabilidade de cenas sociais demonstra, inclusive, que não há um ambiente homogêneo de interações, o que inviabiliza a Teoria da Legitimidade, a qual pressupõe tal característica para o funcionamento dos processos de diferenciação social pelo gosto e supõe a homogeneidade das classes e das situações de interação social. Já o relaxamento do controle social seria uma teoria que busca abordar o fato de que, atualmente, as pessoas se sentem menos culpadas ao declararem seu envolvimento com práticas tidas como ilegítimas pela Teoria da Legitimidade Cultural. Glevarec admite que esta teoria ainda é pouco desenvolvida, embora compreenda que ela tem grande relevância para essa nova leitura do quadro de legitimidades. Entende-se que, somando ao relaxamento do controle social, o ecletismo dos gostos, a oposição ao regime de distinção e a concepção de “heterogeneidade das ordens de legitimidade”, tem-se uma nova forma de se legitimar as práticas. 6. Comunicação, Culturas e Práticas Deste modo, ainda que expostas brevemente as concepções de cultura e as reformulações sofridas, entendemos que a concepção de cultura está imbricada aos modos de vida e às relações interpessoais e diz da construção de uma ordem simbólica compartilhada que dota de significado as ações, rituais e interações. Com isso, tomamos a definição de cultura expressa por Williams (1992), por compreender que é este autor quem dá a ela o status de prática significativa envolvida com 26 todas as formas de atividade social e, além disso, a concebe como plural e com especificidades valiosas em cada grupo social13. Há certa convergência prática entre (i) os sentidos antropológicos e sociológico de cultura como “modo de vida global” distinto, dentro do qual percebe-se, hoje, um “sistema de significações” bem definido não só como essencial, mas como essencialmente envolvido em todas as formas de atividade social, e (ii) o sentido mais especializado, ainda que também mais comum, de cultura como “atividades artísticas e intelectuais”, embora estas, devido à ênfase em um sistema de significações geral, sejam agora definidas de maneira muito mais ampla, de modo a incluir não apenas as artes e as formas de produção intelectual tradicionais, mas também todas as “práticas significativas” — desde a linguagem, passando pelas artes e filosofia, até o jornalismo, moda e publicidade — que agora constituem esse campo complexo e necessariamente extenso. (WILLIAMS, 1992, p.13) Hall (2003) destaca ainda que, devido às muitas reformulações já feitas das concepções de cultura, passou-se a compreendê-la como “socializada e democratizada”, pois ela não representa mais a soma daquilo de melhor que foi realizado pelos homens, mas sim como “ordinária”. Mas onde a cultura se realiza? De que forma essas práticas se inscrevem? Para responder a essas questões, vale lembrar a contribuição de Certeau (1994) para se entender a dinâmica das interações e o processo de mudança social. Para o autor, é no campo da cultura que os “sujeitos ordinários” inscrevem as suas práticas por meio da inventividade, criatividade e tenacidade, abrindo um espaço para a criação dentro do instituído. Ele destaca que é na disputa pela possibilidade de inscrição das práticas de quem tem poder (ou pelo menos está em posição de dominância ao se encontrar associado ao já instituído) que se pode calcular as forças e reconhecer como pré-definidos seus espaços de atuação e apoio, possuindo assim o espaço para a aplicação das “estratégias”. Isto quer dizer que os meios de legitimação da cultura (por exemplo, a escola) comumente reconhecidos são usados “estrategicamente” pelas práticas culturais que possuem 13 É importante destacar aqui que este conceito é retirado do livro Cultura, publicado originalmente com o título de Culture, em 1981, época em que Williams já havia feito as revisões conceituais que julgou necessárias após as críticas de Thompson aos seus outros dois livros, Culture and Society 1780-1950 (1958) e e The Long Revolution (1965). 27 legitimidade quase inquestionável para manter sua difusão, como por exemplo, o ensino das artes e da música clássica14. Já aqueles que não têm um espaço determinado, mas compartilham e ocupam o espaço comum da cultura não têm a oportunidade de traçar estratégias para guiarem a sua ação, logo lidam com a possibilidade da “tática”, aproveitando o tempo e a imprevisibilidade de suas atuações para conseguirem difundir suas práticas. Além do tempo, destaca-se que há um circuito de difusão das práticas que não recorre aos mecanismos institucionais, mas se valem de novos campos e instâncias de legitimação (por exemplo, as interações sociais cotidianas, conforme definido por Glevarec ao falar, das cenas sociais de existência). É neste espaço, entre o encadeamento das ações instituídas, que surge o momento de intervenção e o que antes era “marginal”, “periférico” ganha visibilidade e altera as relações e as formas de se olhar para as práticas. Obviamente, este é um modo sutil de se conceber as alterações internas ao campo da cultura; contudo, é por meio dessas pequenas alterações, lentas e graduais, que se tem a articulação das forças, a ação simultânea e o deslocamento causado pela “areia na engrenagem”, ou, conforme Certeau, é neste momento que se realiza a “caça furtiva”. Em síntese, Certeau chama a atenção para a operatividade e criatividade daqueles que são os considerados mais “fracos” para agirem pela apropriação subversiva e atuante, construindo e recuperando espaços no campo da cultura e das interações. Com isso, confere-se dinamicidade à cultura e ao âmbito em que ela se inscreve e percebe-se que, apenas pela análise das interações comunicativas poderemos compreender as formas de inscrição das práticas culturais. Assim, percebemos que uma nova forma de construção de legitimidades emerge. As variações intra-individuais, a heterogeneidade das ordens de legitimação e a compreensão da cultura como um espaço de disputa e inscrição de práticas que dizem da vida cotidiana se tornam conceitos chave para analisar a inscrição das práticas no Minha 14 Nota-se aqui que este tipo de estratégia é consonante com a dimensão de que existem práticas que, mesmo não fazendo parte dos usos cotidianos das pessoas, são reconhecidas como legítimas por seu valor histórico e pela representatividade e legitimação que possuem no âmbito escolar-acadêmico, conforme foi destacado por Glevarec e Lahire. 28 Periferia e discutir como a legitimidade destas práticas é destacada pela fala, pela interpelação da apresentadora e pelo posicionamento dos entrevistados. CAPÍTULO II Cultura de periferia: contexto de fala Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu. (Clarice Lispector) 1. Conceito de periferia, conceito de favela Há numerosas tentativas de se definir os conceitos de “centro” e “periferia” e as relações estabelecidas entre eles. Para Ribeiro (2006) “periferia é uma categoria relacional, ser periferia significa estar em uma posição inferior, subordinada, vis-à-vis a um centro que exerce poder” (RIBEIRO, 2006, p.53). Ele destaca que apesar de já terem sido feitas muitas críticas ao uso dessas denominações nas Ciências Sociais e na Antropologia, elas ainda perduram porque seriam eficientes para demonstrar as diferenças de poder que ainda não foram dissipadas. Mas qual foi a origem das expressões periferia e favela? A expressão “periferia” foi usada a partir de uma leitura geográfica e espacial do ambiente da cidade, cunhada no início do século XX. Esta compreensão sugeria que periferia era aquilo que ficava fora do ambiente citadino, um ambiente externo e desvinculado ao centro, à cidade. Já a denominação “favela” tem duas origens possíveis, sendo que ambas remetem à Guerra de Canudos15. A primeira origem seria relacionada ao processo de substantivação do nome da vegetação (favella) que cobria tanto o “Morro da Favella” de Monte Santo, município onde 15 Esta ligação tão marcada à Guerra de Canudos ocorre porque os primeiros habitantes do Morro da Favella do Rio de Janeiro (o primeiro morro a se formar) eram soldados combatentes desta guerra. Eles construíram 29 se deu a guerra, quanto o Morro da Favella do Rio de Janeiro. A segunda origem supõe que a denominação favela seria resultado do resgate do nome do Morro da Favella de Monte Santo em homenagem a este lugar porque as cabrochas (esposas dos soldados) sentiam saudades da cidade natal. Com o tempo, a denominação de favela passou a ser dada a qualquer morro onde moravam pessoas pobres e em condições precárias. As favelas foram se consolidando como parte do espaço urbano sem, no entanto, receberem benefícios advindos do poder público. Eram ambientes tratados como impuros, imorais, foco de doenças e enquadrados como uma patologia social que deveria ser extinta pelo Estado. Para tanto, foram desenvolvidos projetos de reurbanização da cidade, sanitarização, expulsão dos moradores das áreas periféricas. Em 1945, houve propostas de saneamento das cidades e de remoção dos moradores das favelas para “bairros proletários” (que eram instalações precárias e distantes das cidades e das indústrias, o que gerava um problema ainda maior com relação ao deslocamento dos trabalhadores). Os moradores estavam resistentes, então foram formadas comissões de moradores para negociarem as condições de translado junto ao Estado. Favorecidos pela restauração da ordem democrática, os moradores de favela puderam, pela primeira vez, interferir na pauta dos direitos sociais e debater questões de infra-estrutura e saneamento e se constituírem como ator político frente ao Estado 16. Há registros de que na década de 70 as favelas eram vistas como um corpo coeso e associativo, ambiente marcado pela cooperação e engajamento nas atividades sociais voltadas para a pró-atividade (desenvolvidas, majoritariamente, pelas instituições religiosas). Na década de 70, quando o esquema dualista de conceber a cidade era tão criticado, o lugar da favela, segundo o discurso sociológico, surpreenderia alguns desmemoriados observadores de hoje. Não faz muito tempo assim, em pleno regime militar, dizia-se que a favela era “um complexo coesivo, extremamente forte em todos os níveis: família, associação voluntária e vizinhança” (Boschi, 1970). Aprofundando o pensamento desse autor, Perlman (1976, 136) chega a afirmar que os favelados, além de estarem dotados de sentimento de otimismo, teriam uma vida (...) rica de experiências associativas, casebres no morro para ali viverem com as esposas (vindas do Morro da Favella de Monte Santo) e estarem mais próximos do poder central para reivindicarem maiores soldos. 16 Mais informações sobre os planos de saneamento urbano podem ser consultados em: ZALUAR, ALVITO(orgs).Um século de Favela. Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1998. e VALLADARES, L. A gênese da favela carioca. RCBS, Vol.15 N°44. (p.5-34) 30 imbuídas de amizade e espírito cooperativo e relativamente livre de crimes e violência”. Os autores citados não estavam delirando. Assim era o ethos predominante entre os favelados, assim concretizavam-se em práticas os jogos sociais nos quais eles se engajavam, assim se justificava sociologicamente as demandas para a sua inclusão no campo da política e da economia nacionais (ZALUAR & ALVITO, 1988, p.15) Zaluar e Alvito destacam que foi o tráfico de drogas, na década de 80, que alterou a percepção da favela e reinstalou o dualismo entre o “centro” e a “periferia”, associando a favela à violência, à criminalidade e à ausência do poder do Estado. Trabalhando um pouco mais com o conceito de periferia, percebemos que esta denominação guarda, ao menos, três dimensões importantes para a compreensão de seu conceito: a dimensão espacial, dimensão político-social e dimensão cultural. 2. Dimensões do Conceito de Periferia: espacial, político-social e cultural 2.1 Dimensão Espacial: A dimensão espacial é aquela que denomina um ambiente periférico, exterior, espaço que rodeia o centro, a cidade, o urbano. Esta leitura vem de uma perspectiva horizontalizada da cidade que marca o centro como o cerne do desenvolvimento e progresso e o periférico como o lugar da carência, da pobreza, da doença e subordinado às relações e associações com o centro. A favela, vista pelos olhos das instituições e dos governos, é o lugar por excelência da desordem.(...) Ao longo deste século, a favela foi representada como um dos fantasmas prediletos do imaginário urbano: como foco de doenças, gerador de mortais epidemias; como sítio por excelência de malandros e ociosos, negros inimigos do trabalho duro e honesto; como amontoado promíscuo de populações sem moral. (ZALUAR & ALVITO, 1998, p.14) Essa dimensão espacial é contestada por Magnani (2006) ao destacar que há pobres que moram nas regiões centrais das grandes cidades (principalmente em cortiços e prédios ocupados ilegalmente) e também o desenvolvimento de bairros e “condomínios fechados” de classe média e alta que ficam nas zonas periféricas da cidade. Zaluar e Alvito também fazem esta crítica à denominação espacial e destacam que a favela é dotada de potencial político e econômico. Segundo eles, é preciso entender que a favela não é o mundo da desordem, que a idéia de carência ( “comunidades carentes”), de falta, é insuficiente para entendê-la. É, sobretudo, mostrar que a 31 favela não é periferia, nem está à margem: Acari [favela do Rio de Janeiro], por exemplo, é o centro, o nó de uma série de práticas e estratégias de grupos bem específicos: a burocracia municipal, estadual e federal, políticos e/ou candidatos, jornalistas, policiais, membros de entidades civis laicas e religiosas, associações de moradores, comerciantes, traficantes, moradores em geral e, last but not least, pesquisadores, atuando de forma perene ou ocasional e influindo no cotidiano da favela. (...) A favela elege políticos (ou os faz cair em desgraça), proporciona material midiático valioso sob a forma de medo ou estranheza, gera financiamentos nacionais e internacionais, tanto para ações diretas de caráter assistencial e/ou religioso quanto para pesquisas; a favela é o campo de batalha freqüente pela conquista da opinião pública. (ZALUAR & ALVITO, 1998, p.2122) Zaluar e Alvito também fazem críticas à divisão espacial da cidade a partir da relação dual centro/periferia e destacam o engessamento que essa divisão provoca no estudo da dinâmica das culturas e das relações sociais. O artificialismo das divisões espaciais duais muitas vezes foi antes o resultado da ideologia daqueles que a concebiam do que uma realidade na vida dos citadinos. Tornou-se um equívoco tanto no plano das práticas sociais quanto das idéias e valores. Quanto mais não seja porque, no mundo urbano, a pluralidade de culturas em coexistência numa área com sistemas de comunicações freqüentes entre suas divisões impede que cada uma delas se feche para as outras. Mas essa maneira de pensar a cidade se manteve e foi confirmada pela própria maneira de fazer a pesquisa urbana, tornando as divisas espaciais duais meras descrições de culturas “locais” e contrastando-as entre si, cada uma delas reificada por uma identidade, uma referência a si mesma decorrente dessa visão teórica. (ZALUAR & ALVITO, 1998, p.16-17) 2.2. Dimensão Político-social Pelas interpretações do espaço da cidade e da favela, percebemos que as questões político-sociais tocam a problemática da favela seja pelo viés eleitoreiro, pelas campanhas e projetos socais que a envolvem ou pela dinâmica da cidade. Disso apreendemos que a favela é, antes de tudo, um ambiente de disputa pela construção do espaço, pela inscrição das práticas, pelo reconhecimento e pela legalização. Briga-se pelo direito de ter serviços de saneamento, coleta de lixo, energia elétrica e telefonia disponível, pela construção de postos de saúde, creches e áreas de lazer. Serviços que, a princípio, seriam obrigação do Estado disponibilizar, são conquistados palmo-a-palmo pela reivindicação e mobilização dos moradores. Contudo, esses serviços, frequentemente, não são prestados por uma série 32 de fatores, inclusive a falta de registro adequado das terras. Para burlar as questões burocráticas e ter acesso aos serviços, os moradores se valem de ações estratégicas e, em geral, ilegais. 17 Disputa-se o reconhecimento da favela como um ambiente de produção cultural, como uma comunidade que envolve os indivíduos e cria relações de identificação e valorização das práticas culturais. Na construção político-social, percebemos que a cidade é tomada como o lugar do desenvolvimento, é o centro, espaço onde há postos de saúde, escolas, creches, áreas de lazer e serviços de saneamento e infra-estrutura oferecidos. A periferia é o ambiente marcado como lugar da falta, da pobreza, da ignorância, da marginalidade, da violência, do crime e, principalmente, da ausência do poder estatal. Lá é a comunidade quem manda. Mas quem é a comunidade? Longe das distinções marcadas pela antropologia, comunidade aqui tem um outro sentido, ela é o ambiente de pertencimento e identificação, onde são traçadas as inscrições de si e estabelecidas as relações de identidade. Domínio de manifestações e fenômenos culturais denominados mestiços ou híbridos (por mesclarem diferentes componentes), os lugares, com suas práticas materiais e simbólicas particulares, testemunham que à universalização imaginária do consumo se contrapõem ações criativas e apropriações originais que promovem novos modos de subjetivação, tanto individuais quanto coletivos. Constituídas por traços heterogêneos (políticos, estéticos, econômicos) e pela multiplicidade de formas expressivas, essas ações criativas permitem aos sujeitos a conquista de um gesto auto-posicionante que os põe diante de uma alteridade ela também subjetiva —sejam outros sujeitos, seja o próprio espaço urbano. (GUIMARÃES & SILVA, 1999, p. 2) Neste domínio conflituoso e heterogêneo, Barbosa (2006) identifica quatro linhas de fuga, que seriam alternativas de ação para os jovens da periferia. Essas linhas seriam distribuídas entre as atitudes de velocidade e paralisia. A primeira linha seria a aceitação pelo jovem do quadro disciplinar imposto a ele, que exige dedicação e trabalho para se inserir no mercado formal de trabalho e tentar se adentrar na cidade (o que, para o autor, é 17 Segundo Baravelli (2006), “a auto-construção da moradia brasileira é um fenômeno mais complexo que o emprego da mão-de-obra da família moradora nos processos de edificação. Ela implica uma série de ações clandestinas em relação ao controle estatal sobre a terra e a infra-estrutura urbana. Começa pela gambiarra de uma fiação elétrica pública, passa pela edificação realizada contra qualquer código de obras e chega finalmente ao estatuto jurídico-fundiário do terreno. Na periferia, as casas são assentadas ‘no chão’, não em lotes ou cartórios. Assim, se a precariedade da construção pode variar indefinidamente, do ponto de vista fundiário só existem duas formas de moradia periférica: quando se descobre a falsificação de datas, subparcelamentos clandestinos, ocupação de áreas de destinação pública e outros expedientes, a moradia integra um loteamento irregular. Quando sequer isso existe, trata-se de uma favela”. (BARAVELLI, 2006, p.235) 33 uma perspectiva ingênua, pois a cidade não comportaria a ação de todos os jovens da periferia); a outra seria “estar na correria”, ou seja, atuar no mercado informal. Esta solução tem sido a mais visada e, caso o jovem seja bem sucedido, ele poderia ainda pleitear a sua inserção na cidade pelo consumo. A terceira linha se trata de aceitar os auxílios governamentais e abrir mão da proatividade, ou seja, “viver em suspenso”, aderir à paralisia. A quarta seria entrar para a velocidade, atitude suicidária e violenta, que significa entrar para o tráfico de drogas e atuar junto aos grupos de extermínio. Insatisfeito com essas quatro linhas de fuga, o autor vislumbra uma nova linha: Por fim, uma outra linha de fuga possível se abre para os jovens das comunidades. Mas essa, ao contrário do tráfico, é uma linha da vida, uma vez que implica na recriação dos códigos de comportamento; na reinvenção dos modelos e relações de produção; no redirecionamento da conexão e do acesso através de canais alternativos; na redefinição do consumo (trazendo para dentro dessa dimensão, tão central para o tempo que se inaugura e tão naturalizada, o desconforto, o questionamento sobre a necessidade, a utilidade, o desejo e a satisfação). O Hip-hop é o modelo, o ponto de abertura, um exemplo atual para o que virá. Talvez, não o caô [um levante de grupos armados ligados ao tráfico de drogas], mas o caos criativo já esteja ganhado as ruas. No ritmo das batidas dos DJs, na voz dos MCs, dissolvendo a paralisia e o convite para o extermínio que é endereçado aos jovens das comunidades pobres. Estreitando os limites do intolerável, inaugurando o futuro (BARBOSA, 2006, p.17). Passiani (2006) destaca que pós-década de 80, quando a virada dos Estudos Culturais chega ao Brasil, as formas de apreensão da periferia passaram a adotar uma perspectiva mais culturalista, olhando para as práticas culturais significantes que estavam ali inscritas e eram tratadas com displicência. Surgiu então a noção de que não só a estratificação social e a dinâmica de classes era estruturadora das relações sociais e das condições de vida, como também as práticas culturais diversas que permeiam as relações cotidianas. Tais trabalhos [desenvolvidos pós-década de 80] se debruçavam sobre o “modo de vida das classes populares urbanas” (Zaluar, 1994, [1986]), entendendo-se “modo de vida” como as redes de sociabilidade, hábitos e práticas desenvolvidos em múltiplos espaços sociais — os locais de moradia, as agremiações recreativas, quadras esportivas, campos de futebol, sedes de escolas de samba, circos-teatro, praças, esquinas, bares etc — e no curso de experiências coletivas concretas. (...) as interpretações culturalistas advindas da sociologia e, principalmente, da antropologia, revelavam que as camadas populares possuíam repertórios simbólicos próprios, ou seja, valores, crenças, atitudes e idéias desenvolvidas no “plano material das práticas sociais” (Zaluar, 1994:53), inventados e reinventados de forma dinâmica a partir de suas experiências cotidianas, e que vem de base para a elaboração de estratégias de participação 34 popular nas áreas periféricas dos centros urbanos, até aquele momento invisíveis aos olhos da comunidade científica brasileira, e responsáveis, a despeito da heterogeneidade das classes populares, pela formação de uma identidade de classe. (PASSIANI, 2006, p.223-224) É então por esta nova perspectiva de estudos que o conceito de periferia, pelo viés da dimensão cultural, ganha sentido para olharmos para o Minha Periferia. 2.3. Dimensão Cultural A aproximação da cidade e da periferia se deu, ao longo do tempo, pela cultura. É, especialmente pela música18, que a favela se aproxima da dinâmica da cidade de modo sorrateiro e olhado com displicência, durante anos, pelos pesquisadores. Burgos (1998) destaca que a aproximação de músicos (como Noel Rosa e Cartola, na década de 30), de intelectuais e acadêmicos (motivados pelas pesquisas de campo), o futebol — com a inclusão de atletas negros pelo Vasco da Gama, em 191719, e de festas comuns, como o carnaval, foram os primeiros elementos de diálogo. Percebemos que é no campo da cultura que se constrói uma outra perspectiva sobre o que é ser um “sujeito periférico”, um morador da periferia. Cria-se uma identidade e um lugar de fala que é conquistado por meio de tensões e atritos, uma construção sobre o falar de si, da busca pela atualização sobre o que é ser da periferia tanto para os indivíduos do centro quanto pelos próprios moradores da favela. Quando [a periferia] deixa de ser uma categoria operativa em termos de dicotomia espacial (pois há condomínios de luxo em bairros afastados, assim como a presença de pobres em moradias precárias em regiões centrais), ela é assumida, por exemplo, no discurso dos rappers, com uma conotação positiva, enfatizando não já a carência, mas o pertencimento. Há aí uma certa visão propositiva, segundo a qual “ser da periferia” significa participar de um certo ethos que inclui tanto uma capacidade para enfrentar as duras condições de vida, quanto pertencer a redes de sociabilidade, de compartilhar certos gostos e valores (MAGNANI, 2006, p.38-39). 18 Para mais informações sobre a temática da favela na Música Popular Brasileira, consulte: OLIVEIRA, J.S., MARCIER, M.H. A palavra é “favela”. In. ZALUAR, A., ALVITO, M. (orgs.). Um século de Favela. Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1998. (p. 61-114) 19 Mais informações, no artigo “As múltiplas identidades do Club de Regatas Vasco da Gama”, de Fernando da Costa Ferreira. Publicado na Revista Online Geo-Paisagem, Ano 3, n° 6, julho/dezembro de 2004. Link de acesso: http://www.feth.ggf.br/Vasco.htm ( acessado dia 12 de novembro de 2007). 35 Deste modo, entendemos que é no âmbito da cultura que são promovidos os deslocamentos de sentido e é por meio das práticas culturais significantes que os moradores de periferia exprimem essa vontade e necessidade de ressignificação. Portanto, buscamos neste trabalho, analisar a representação midiática dessas práticas e a construção do lugar de fala dos moradores de favela para apreendermos como, pela prática discursiva, os sujeitos deslocam percepções e reconstroem o seu lugar, dando a conhecer esse ethos e aderindo a esta visão positiva de si mesmos. 3. Deslocamentos linguageiros e fluxo de produtos culturais Percebemos que, recentemente, há uma tentativa de se deslocar as percepções estigmatizadas das comunidades de pertencimento dos sujeitos periféricos. Essa reconstrução do lugar de fala desses sujeitos é conquistada, a cada dia, pelas disputas no âmbito político e institucional e também no campo da linguagem. A própria forma de nomeação do espaço habitado e as novas denominações já estabelecidas dizem de uma relação dinâmica e de reconstrução desse lugar. Mais do que designar um espaço habitado — seja o centro, a favela ou o mangue — as palavras que os sujeitos utilizam para nomear um território urbano expressam um duplo movimento de demarcação simbólica, necessariamente dialógico (nos termos de Bakhtin): por um lado, elas trazem consigo os traços de uma experiência compartilhada — são índices de uma comunidade de sentido — e por outro, traduzem uma relação com o outro, com aquele que vive em outro espaço.(...) As palavras que nomeiam um território urbano só podem se manifestar plenamente nas formas concretas do discurso: elas não se oferecem, abstratamente, sob a forma de um inventário ou repertório de significações colhidas a posteriori. Inscritas em modalidades discursivas particulares e submetidas às modulações da enunciação, as palavras que designam um território nomeiam um mundo, e se o sentido aí varia continuamente é porque, ao promover a distinção entre nós e eles, o discurso — segundo Jacques Rancière — redistribui a maneira como os corpos falantes estão distribuídos numa articulação entre a ordem do dizer, a ordem do fazer e a ordem do ser. (GUIMARÃES & SILVA, 1999, p.10) 20 20 Também França (2001) no artigo “Discurso de Identidade, Discurso de Alteridade: o outro por si mesmo” dá a sua contribuição para entendermos a importância dos processos de nomeação do próprio ambiente para o estabelecimento das relações interlocutivas e do posicionamento dos sujeitos ao dizer: “É conhecendo as coisas que elas passam a existir para nós, é através dessa relação com o mundo, de apreender, de conhecer e de nomear o mundo que ele se torna o nosso mundo” ( FRANÇA, 2001, p.5) 36 O processo de dizer de si e de estruturar e difundir as próprias práticas está ligado à construção do lugar de fala e à inscrição de si no ambiente social. Quando, pela exercício linguageiro de nomeação do espaço em que vivem, os entrevistados da série de entrevistas alternam as denominações entre “aqui/ lá no asfalto”, “aqui na periferia”, “a favela”, “o morro”, “a comunidade” nos dá indícios para compreender que o processo de renomeação ainda não está concluído, nem há convergência na escolha das denominações, pois o modo de apreensão do mundo e de demarcação simbólica do espaço de onde se fala ainda não foram concluídas. A publicização de produtos culturais da periferia contribui para a difusão de novas interpretações e percepções sobre o mundo e, no caso dos produtos culturais da periferia, acaba também por dar a conhecer uma nova forma de organização social e de fluxos de produção. Se antes a relação com o centro era de subordinação, com uma produção própria almeja-se, quando não a penetração no centro, o espaço de difusão independente e interno ao próprio ambiente. Anunciar um produto cultural da periferia acaba, por fim, a remeter a diversos significados e às novas formas de estruturação e encadeamento das relações sociais. É importante destacar que esta produção apresenta diferenças internas ao produto e ao contexto de produção e também inauguram um novo modelo de distribuição e circulação. Consciente da dificuldade que produtos culturais desenvolvidos na periferia encontram para serem veiculados nas grandes empresas de comunicação de massa, Vianna (2006) faz um mapeamento do sistema de distribuição fonográfica das músicas de periferia em Belém (PA) e destaca a similaridade deste processo com a difusão em outras regiões periféricas do país. Segundo as observações deste autor, já não há neste formato de distribuição CDs piratas, e os músicos não estão vinculados às gravadoras que produziriam e distribuiriam os CDs originais; eles pagam para gravadoras independentes da comunidade para gravarem suas músicas e as distribuem a camelôs e DJs, para que suas músicas sejam veiculadas e comercializadas. O ganho dos músicos é retirado da contratação para shows, bailes e festas; assim, não há interesse algum em vender as próprias músicas aos intermediários, mas sim em torná-las o mais acessível para que a banda se torne um sucesso. É também por isso que muitas das músicas de sucesso são “metamídia”, ou seja, 37 músicas que elogiam DJs, bailes e programas de rádio. A partir destas informações o autor conclui que não há mais um elemento na cadeia produtiva com poder para controlar todas as outras etapas, papel que as grandes gravadoras continuam a exercer no mercado de música pop oficial (VIANNA, 2006, p.20). Fica então evidente que os produtos culturais difundidos — além de destacarem esse outro ambiente, tido sempre como o excluído, marginalizado e demandarem uma nova forma de se produzir e divulgar a cultura da periferia — marcam um lugar de fala, uma outra forma de se relacionar com o ambiente da periferia, buscando engajamento e usando uma linguagem que é própria, envolvendo assim moradores e atualizando leituras dos indivíduos do “centro”. A partir desse movimento e da mobilização dos moradores de periferia para a produção discursiva sobre o seu ambiente de interação, nomeando-o e caracterizando-o conforme uma perspectiva interna ao ambiente dos moradores de favela, houve um reposicionamento dos termos usados anteriormente, como por exemplo, “favelado”, que foi substituído por “morador de favela” com o intuito de desvincular a carga estigmatizante e negativa associada à expressão. O processo de nomeação, renomeação e atualização de percepções transcende o campo da linguagem, apesar de ter a mudança marcada nele. Isto acontece porque a linguagem somente sofre alterações nos âmbitos da nomeação e renomeação quando há uma disputa social pelo reposicionamento e ressignificação. Reinvindicar uma nova nomeação no campo da linguagem é exigir um lugar no mundo social comum, que antes era privado àqueles que eram objeto de nomeações externas, que não podiam nomearem-se a si mesmos. Sob essa perspectiva, as diferentes falas em torno do significado do termo “favelado”, para além de uma defesa contra a discriminação ou de uma querela sobre o conteúdo da linguagem, concernem à situação dos falantes que reivindicam um mundo comum que ainda não existe, isto é, um mundo comum que deve, a partir de agora, incluir aqueles que dele estavam excluídos, pois estes não eram contemplados pelos termos da linguagem comum que até então distribuía o que cabia a uns e a outros. As falas que reivindicam uma outra compreensão para os termos “favela” e “favelado” são dirigidas àqueles que agem como se ignorassem esse mundo comum que é reivindicado no momento mesmo em que se fala. Por isso é que cada ato de fala inaugura uma comunidade singular, erigida diante dos outros, aqueles parceiros que na verdade recusam a 38 própria discussão em torno dos termos que visam redistribuir as diferenças e semelhanças entre os seres falantes. (GUIMARÃES, 2002, p.23) O movimento de atualização das percepções acontece a partir de um reposicionamento, uma reconfiguração, uma refocalização. O viés pelo qual se trata uma questão é subvertido e passa-se então a usar outras “lentes” para se compreender o mundo. O ambiente onde vivem os moradores das favelas e as relações sociais estabelecidas entre eles são, frequentemente, retratados pelas perspectivas da falta, da violência e da força, da coragem. Na primeira, eles são os “despossuídos” que precisam passar por um processo civilizatório, de educação e socialização. Eles precisam ser “educados” para a vida social, para se relacionarem no mundo comum, para compreenderem a dinâmica das relações sociais e para “aprimorarem seus gostos”, de modo a aderirem aos gostos e interpretações dominantes. Essa perspectiva guiou, durante anos, as políticas de intervenção nos ambientes periféricos. Era preciso sanear, educar, embelezar e socializar os moradores das favelas para a vida em sociedade.21 Na segunda perspectiva, a favela era vista como o locus da violência, da criminalidade e da imoralidade. Se a criminalidade, hoje, é aproximada ao estigma da desigualdade, nada mais natural que associar a pobreza à violência. Vários filmes e produções documentais22 mostram essa faceta da vida na favela, contudo, estudos recentes demonstram que o fenômeno da violência é “multicausal”. Em debate realizado pela Revista Sexta Feira, sobre o tema pobreza e criminalidade, com a participação de antropólogos e sociólogos, as associações mais diretas e simplistas foram criticadas. Marques (2006) destacou que a pobreza e a violência são multidimensionais, ou seja, a condição de desenvolvimento e aparecimento de ambas é 21 Vale aqui recordar as intervenções mais expressivas para essas alterações, como o plano de sanitarização desenvolvido por Oswaldo Cruz no governo de Pereira Passos, que culminou na Revolta da Vacina (1904) e o e plano de embelezamento da capital, desenvolvido pelo urbanista francês Alfred Agache, em 1927. Para Burgos (1998) a questão da favela passa a ser tratada de modo mais direto na década de 40, quando são construídos os parques proletários. Segundo ele, “a ‘descoberta’ do problema da favela pelo poder público não surge de uma postulação de seus moradores, mas sim do incômodo que causava à urbanidade da cidade, o que explica o sentido do programa de construção dos parques proletários, que tem por finalidade, acima de tudo, resolver o problema das condições insalubres das franjas do Centro da cidade, além de permitir a conquista de novas áreas para a expansão urbana”. ( BURGOS, 1998, p.27) 22 A título de exemplo, citamos: Orfeu (1999), Notícias de uma guerra particular (1999), Cidade de Deus (2002), O Invasor (2002) e De Passagem (2003). Destacamos também o documentário Falcão — Meninos do Tráfico (2006) que foi veiculado no Fantástico, programa da Rede Globo, e que motivou a criação do 39 heterogênea. Para ele, “espaços igualmente pobres estão associados de maneiras muito diferenciadas a situações de violência” (MARQUES, 2006, p.105). Telles destacou que a violência não está somente associada com a pobreza, como também ao fluxo de riquezas (geralmente provenientes do tráfico de drogas). Conforme a autora, “simplificando muitíssimo, eu diria que a situação de pobreza extrema não é o que vai alimentar o tráfico de drogas; mas vai alimentar o nosso conhecido clientelismo velho de guerra, mesmo que opere sob novas roupagens” (TELLES, 2006, p.107). Já a perspectiva da força, da coragem, trabalha com as noções de resistência e perseverança dos moradores de favela e os coloca como guerreiros do cotidiano que, mesmo estando num ambiente de luta e provação, produzem o “melhor do samba e do carnaval”. A associação entre pobreza, exclusão social e o exotismo da produção cultural faz com que haja a displicência para com as condições sociais e que a pobreza seja vista como necessária e parte do processo criativo dessas pessoas, levando ao extremo de colocar em segundo plano as necessidades materiais apoiando-se em exemplos individuais. Esta construção é mais freqüente no senso comum e no âmbito midiático, que costuma apresentar os “vencedores” e “heróis” que, mesmo em condições adversas, superam e “vencem na vida” ou se tornam exemplo para a sociedade e para seus pares. Entendemos então que a criação do ethos que permeia as práticas sociais e a linguagem é mostrada nas representações sociais dos moradores da favela, representações estas que permeiam a produção midiática analisada. Isso faz com que seja imprescindível realizar a análise sem apartar os sujeitos numa relação polarizada em centro/periferia, moradores da favela/moradores do “asfalto”, procurando dar um viés dinâmico e interativo às relações estabelecidas entre os sujeitos. Somente com a adoção desta perspectiva poderemos reconhecer e identificar o lugar de fala desses sujeitos e, assim, compreendermos o modo como as práticas culturais dos moradores de favela, que dizem de um mundo significante, aparece no Minha Periferia. programa Central da Periferia, que inclui a série de entrevistas Minha Periferia, que é o objeto empírico desta pesquisa. 40 Capítulo III Linguagem televisiva: construção do lugar de fala E ser é uma ciência delicada, feita de pequenas-grandes observações do cotidiano, dentro e fora da gente. (Carlos Drummond de Andrade) Neste capítulo discutiremos a linguagem televisiva e suas especificidades, focando as especificidades do papel do apresentador nos programas de entrevistas. Pretendemos, a partir dessa discussão, analisar como a apresentadora Regina Casé marca a sua posição na série de entrevistas e como as falas dos entrevistados aparecem no Minha Periferia e os discursos são construídos. 1. Interações Comunicativas Neste trabalho tentamos olhar para a concretude das interações comunicativas, que se realiza através da inscrição das imagens, das palavras, pela co-presença e interlocução de indivíduos — posicionados como pertencentes à cultura de periferia — no momento em que ganham “existência televisiva” pela série de entrevistas que pretendemos analisar: o Minha Periferia. Falamos em “existência” porque, durante o processo de captação e difusão da situação interativa no ambiente televisionado, ganha-se um outro modo de existir, pois os indivíduos se tornam representações midiáticas e, muitas vezes, são tomados como representantes de seus pares nesse âmbito de visibilidade. Neste movimento representacional, encontram-se vestígios dos indivíduos em interação, das formas como eles são chamados a se dar a conhecer e também das representações precedentes a este momento de interação. Como destaca Charaudeau (2006), “o sentido nunca é dado antecipadamente. Ele é construído pela ação linguageira do homem em situação de troca social. O sentido só é perceptível através das formas” 41 (CHARAUDEAU, 2006, p.41). Para o autor, a estruturação do sentido se constrói por um “duplo processo de semiotização”: a transformação e a transação. A primeira se refere à nomeação das coisas do mundo e à narração e argumentação sobre estas ações; o segundo seria o processo de atribuição de sentido às ações linguageiras dos sujeitos. É no processo de transação que se criam identidades, definem-se e regulam-se relações. O ato de informar está ligado a este momento e consiste em fazer circular entre os parceiros um objeto de saber que, em princípio, um possui e o outro não, estando um deles encarregado de transmitir e o outro de receber, compreender, interpretar, sofrendo ao mesmo tempo uma modificação com relação a seu estado inicial do conhecimento (CHARAUDEAU, 2006, p.41). Ainda para este autor, é o processo de transação que comanda o processo de transformação e não o inverso. (...) É falando com o outro — isto é, falando o outro e se falando a si mesmo — que comenta o mundo, ou seja, descreve e estrutura o mundo (...). Assim, todo discurso, antes de representar o mundo, representa uma relação, ou, mais exatamente, representa o mundo ao representar uma relação. (CHARAUDEAU, 2006, p.42) Entendemos então que há, neste exercício de falar do outro e de construir um lugar de fala para ele, uma convocação e um posicionamento dos sujeitos inscritos na série analisada. Sobre estes dois movimentos, Hall (2003) destaca que a primeira seria a chamada dos indivíduos para que eles assumam o seu lugar de fala que foi histórica e socialmente construído, um movimento de interpelação, que busca marcar o lugar estabelecido para dizerem de si e se mostrarem confortáveis em assumirem esta posição. Os próprios discursos ideológicos nos constituem enquanto sujeitos para o discurso. Althusser explica como isso funciona através do conceito de “interpelação”, tomado de empréstimo a Lacan (1966/1977). Este sugere que somos chamados ou convocados pelas ideologias que nos recrutam como seus “autores”, seu sujeito essencial. Somos constituídos pelos processos inconscientes da ideologia, naquela posição de reconhecimento ou fixação entre nós mesmos e a cadeia de significados sem a qual nenhum significado ideológico seria possível. (HALL, 2003, p.177) O segundo momento é o posicionamento, ou seja, o movimento de se “tomar a posição”, seja para desconstruir o lugar de fala e tentar reconfigurá-lo; seja para aceitar este lugar estabelecido pelo outro como válido e, a partir disso, situar-se e ser situado neste 42 campo do discursivo. Para Hall, é a forma de se posicionar nessas “cadeias discursivas” que “significa” e não a correspondência exata dos sujeitos com este lugar construído. É, portanto, ao se posicionar e na realização das interações comunicativas que se materializa o simbólico e essas relações passam a ser captáveis. Porém, deve-se ainda dizer que as interações comunicativas são momentos complexos que estão para além da fala e de uma (equivocadamente) suposta dinâmica linear. A relação comunicativa é certamente singular, porque complexa e velada; ela é a armadura interna desse processo de ligação e expressão de sua natureza social, partilhada. Não existe a circulação em um sentido objetivo, mas um tipo de cumplicidade de alguns na construção simbólica do mundo, no partilhamento de um “saber comum” sobre seu mundo (FRANÇA, 1998, p.42) Deste modo, para se compreender como se dão as relações interativas no campo midiático, deve-se buscar entender as características intrínsecas ao meio e como estas relações são representadas, uma vez que é ali que elas são concretizadas, tanto pelas imagens e estruturação dos programas televisivos, quanto pelo contexto de fala23. A televisão é um meio de comunicação — dotado de configurações técnicas e padrões de funcionamento próprios, que obedece a uma lógica de produção e se realiza, historicamente, dentro de um determinado modelo e prática de distribuição e de recepção. Tais características indicam, sim, a presença de um modo operatório e singular (uma linguagem), que buscaremos delinear a seguir. Em outras palavras, e remetendo-nos às três grandes tendências indicadas acima, entendemos que o estudo da televisão compreende a atenção e leitura de produtos e relações concretas (fenômenos empíricos recortáveis, identificáveis) — o que não nos exime, mas no obriga a falar, ainda que indiretamente sobre o que é televisão (linguagem) e como ela se insere na sociedade. (FRANÇA, 2006, p.18) 2. A Linguagem Televisiva Para se compreender a linguagem televisiva é preciso tomá-la como parte de uma dinâmica de determinações e orientações inerentes ao meio e que tem suas particularidades de acordo com o tipo de produto (por exemplo, as diferentes formas de estruturação e linguagem de um telejornal e de um programa de auditório). França (2006) sistematizou os diferentes aspectos e peculiaridades da linguagem televisiva a partir dos seguintes aspectos: 23 Para uma breve e simples revisão das áreas de estudos sobre a televisão, veja FRANÇA, V.R.V. A TV, a janela e a rua. In_______. (org.) Narrativas televisivas: programas populares na TV. Belo Horizonte: editora Autêntica, 2006. 43 linguagem visual (se referindo ao peso da imagem para as produções televisivas); sensorialidade (pelo poder da televisão de incitar, chamar à emoção e ao envolvimento); instantaneidade e caráter massivo (relacionada ao potencial de difusão); fragmentação e diversidade (referindo-se à pluralidade de conteúdos e formatos); natureza industrial (pela forma de produção e veiculação); ficção e realidade (destacando que a linguagem da TV oscila entre a ficção e a realidade na estruturação de seus produtos, construindo um real); caráter lúdico (visto que a televisão também está voltada para a distração); arena de discursos (pela possibilidade de ser uma “caixa de ressonância” das questões públicas); caráter institucional (destacando os embates discursivos que permeiam a televisão); linguagem em construção (ressaltando que a dinamicidade da vida social impede que a linguagem seja um processo estruturado e impossibilitado de sofrer mudanças); interação comunicativa (dando relevância ao lugar de recepção, entendendo que, mesmo não havendo interações face a face, há um espaço de vivência, interação e diálogo entre os sujeitos e a televisão). Elencados todos esses aspectos da televisão, percebemos que ela é fruto da soma de todas essas características, sempre se adequando às mudanças da vida social e em constante renovação. Fonte inesgotável dos dizeres da vida cotidiana, a televisão é produto das dinâmicas que constituem a vivência e se revela impregnada pelas formas de interação da vida cotidiana e dos valores que permeiam este ambiente. Deste modo, captar leituras das dinâmicas interativas pela televisão é buscar compreender quais são os falares sociais que dizem da contemporaneidade. Para Eliseo Verón (2001), a televisão é um dos espaços fundamentais para a produção dos espaços imaginários da cidade, entendendo esta última como um espaço onde se dão as relações políticas24. Estas relações políticas permeiam também o campo da cultura e atravessam a forma como as práticas culturais são representadas nos meios de comunicação. É, inclusive, compreendendo a televisão como caixa de ressonância das questões sociais que se pode compreender a importância de se tratar a questão da legitimidade das práticas culturais do 24 “ Sea como fuere, es claro que un proceso de mediatización de las prácticas colectivas está en marcha y que, por ese hecho, la pantalla chica se ha vuelto uno de los lugares fundamentales de la producción de espacios imaginarios de la ciudad. Hablo de ‘ciudad’ y no de espacio urbano por una doble razón. Por una parte, porque la ‘ciudad’ es una entidade cuyo espacio, al que me referiré aqui, está enteramente construido en lo imaginario: desde el punto de vista de su existencia colectiva, no hay otro soporte material que el de la 44 Minha Periferia, transmitido em um canal aberto, de grande audiência, como a Rede Globo, inserido em um programa já consolidado, o Fantástico25. Compreender que há uma relação de reflexividade entre a televisão e a vivência é aceitar que o tratamento dado às questões da realidade passa por um processo de ficcionalização e narrativização para poderem ser representadas e se tornem apreensíveis. Deste modo, a televisão acaba por construir um mundo próprio para dizer da realidade, que, conforme Imbért (2003), pode ser entendido como um “modelo de realidade”, que vai além das relações de ficcionalização do “mundo real”, pois é capaz de criar um mundo televisivo, com interpretações, dinâmicas, espaço e tempo próprios, ancorado na realidade. É neste processo de representação das formas de vida que a televisão tenta fazer a realidade ser apreensível, “se fazer compreender” — “acostumar” os telespectadores com sua linguagem, sua dinâmica e os seus potenciais interativos — e de familiarizar a sua presença na vida das pessoas. Ela participa da criação do repertório cultural de seus telespectadores e, assim, permeia as relações mais prosaicas. Mas como a televisão ordena as relações da vida cotidiana de modo que elas sejam contextualizadas em si e apreendidas? Ela faz uso das técnicas narrativas como forma de organizar o mundo representado e facilitar a apresentação do sentido ordenado. 3. As narrativas televisivas: o apresentador/entrevistador Para começar a discutir as narrativas da televisão, nada mais certo que questionar quem, afinal de contas, é o narrador (ou seriam narradores?). Eles podem aparecer na figura dos repórteres, dos entrevistadores, mas sabemos que os produtos midiáticos têm um sistema de produção “compósito”, no qual há centenas de vozes que permeiam a construção e estruturação do produto e que, ao final, são unificadas para se apresentarem como unívocas e organizadas, para tentarem guiar o sentido de modo mais sistematizado (CHARAUDEAU, 2006). grilla evanescente de las ‘líneas’ de la pantalla catódica. Por otra parte, porque la ‘ciudad’ es una entidad del imaginario político”(VÉRON,2001, p.16) 25 Mais informações sobre o objeto empírico deste estudo serão apresentadas no capítulo seguinte. 45 Freqüentemente a figura do apresentador é utilizada como forma de validação do discurso, seja pela empatia que suscita, seja por ser reconhecido como uma pessoa engajada com as questões tratadas. No dispositivo narrativo são fundamentais as figuras mediadoras porque elas cumprem a função de narradores, dão corpo e figuratividade à mensagem, encarnando-o como figuras familiares que dialogam conosco, às vezes entre si, e nos aproximam da realidade, fazendo-a mais humana. (...) [o dispositivo] cria uma comunicação específica, intensa, espetacular; uma comunicação privilegiada que estabelece uma relação fluida com o público que assiste ao acontecimento, instituindo o espectador como sujeito que participa mais ou menos diretamente do jogo comunicativo (eventualmente através de outro sujeito), constituindo-o como co-espectador. Permite uma adesão ao acontecimento, uma fusão, com um forte componente emotivo; facilita uma identificação com um ‘nós’. (IMBERT, 2003, p.89-90)26 Segundo Verón (2001), esta aproximação com os telespectadores vem articulada com uma mudança interna dos processos de produção midiática. Ele destaca que na Paleotevê27 havia o “apresentador ventríloquo”, que era tomado mais como um “apresentador da informação” que como um corpo significante. Contudo, com o surgimento da Neotevê, os profissionais da mídia estabelecem relações mais próximas com os telespectadores e os produtos midiáticos ligaram, gradualmente, o “nome” dos profissionais ao conteúdo e ao perfil do produto. O aparecimento do corpo do repórter, maior movimentação de câmera e aproximação dos entrevistadores e entrevistados são elementos que compõem uma nova forma de se estabelecer relação com os telespectadores. Esta relação é da ordem do “contato”, é uma tentativa mais próxima do sensorial, tanto pelas novas técnicas de envolvimento quando pelas imagens. Verón (2001) descreve muito bem a passagem do “apresentador ventríloquo” para “corpo significante”. 26 “En el dispositivo narrativo son fundamentales las figuras mediadoras porque cumplen la función de narrador, dan cuerpo y figuratividad al mensaje, encarnándolo en figuras familiares que dialogan con nosostros,a veces entre sí, y nos acercan de la realidad, haciéndola más humana.(...) crea una comunicatión específica, intensa, espectacular; una comunicatión privilegiada que establece una relación fluida en el público que asiste al acontecimiento, instituyendo al espectador como sujeto que participa más o menos directamente en el juego comunicativo(eventualmente a través de outro), constituyéndolo como coespectador. Permite una adhesión al acontecimiento, una fusión, con un fuerte componente emotivo; facilita una identificación con un nosostros”(IMBERT, 2003, p.89-90) 27 Aqui se faz referência ao texto “Tevê: a transparência perdida”, de Umberto Eco (1984), no qual ele desenvolve duas concepções de televisão: a paleo e a neotelevisão. Segundo ele, a diferença fundamental entre elas é que a neotevê fala “sempre menos do mundo exterior. Ela fala de si mesma e do contato que estabelece com o próprio público” (ECO,1984, p.182) 46 Este apresentador ventríloquo aparecia sobre um fundo e o conjunto da imagem era plano, sem profundidade. A imagem do apresentador estava cortada muito alto: não se viam os braços nem suas mãos e havia um tipo de ausência de expressividade em seu rosto. Ele era, por conseguinte, um alto-falante pelo qual passava o discurso sobre a atualidade. Pouco a pouco seu corpo começou a existir, a emitir signos, a adquirir espessura. Do mesmo modo, o espaço do chão começou a encontrar uma arquitetura: foram sendo descobertos cantos, painéis, corredores, vidros e, inclusive, câmeras; o que se mostrava do apresentador foi se ampliando e começamos a ver suas mãos, a mesa sobre a qual estavam seus papéis, o microfone. O apresentador começou a fazer gestos, a matizar expressões faciais. A construção significante do corpo do apresentador e o aumento do espaço do chão foram dois processos inseparáveis: o primeiro precisava do segundo para se desdobrar. O espaço do contato havia nascido e, com ele, o eixo entorno do qual o discurso viria a construir a sua credibilidade: o eixo do olhar, os olhos nos olhos. 28(VERÓN, 2001, p.21) Com a mudança do papel do apresentador, a forma de relacionamento estabelecido com o telespectador foi reestruturada. Há a intenção de se criar um ambiente de familiaridade, reduzir as distâncias, falar em “nós”, gerando identificação entre o apresentador e os telespectadores. O autor destaca que este perfil aproximativo dos apresentadores tenta insinuar que eles estão no mesmo nível que os telespectadores, têm as mesmas informações e compartilham formas de ver o mundo e, por isso, quando se tenta olhar para a “realidade” compartilham das mesmas questões e pode-se sempre falar em “tudo mundo pensa isso” ou “a gente costuma achar que” e, quando se decide buscar conhecer o “real” ou o até então desconhecido e inacessível, busca-se a voz autorizada, a fonte especializada ou aqueles que têm a vivência necessária para dizer deste “outro mundo” que, apesar de próximo do “nosso” — do apresentador e do telespectador — é onde só vivem os “outros”. Charaudeau (2006) indica ainda outro motivo para a presença do representante das mídias nos produtos midiáticos: a “captação”, ou seja, a atração do olhar dos 28 “Este conductor ventrilocuo aparecia, sobre un fondo neutro, y el conjunto de la imagen era plano, sin profundidad. La imagen era cortada muy alto: no se veían sus brazos ni sus manos, y habia una suerte de grado cero en la expresión de su rosto. Él era, por conseguinte, un altavoz por el cual pasaba el discurso sobre la actualidad. Poco a poco su cuerpo comenzó a existir, a emitir signos, a adiquirir un espesor. De la misma manera, el espacio del piso comenzó a encontrar una arquitectura: se fueron descubriendo rincones, paneles, corredores, vidrios, e incluso las cámaras; lo que se mostraba del conductor se fue ampliando, y comezamos a ver sus papeles, el micrófono. El conductor se puso a hacer gestos, a matizar las expresiones de su rosto. La construcción del cuerpo significante del conductor y el aumento del espacio del piso fueron ds procesos inseparables: el primero necesitaba del segundo pára desplegarse. El espacio del contacto había nacido, y con él, el eje alrededor del cual todo el discurso vendría a construirse para encontrar su credibilidad: el eje de la mirada, los-ojos-en-los-ojos”. (VERÓN, 2001, p.21) 47 telespectadores e a estruturação do programa. Para mobilizar a atenção dos telespectadores e para organizar as falas no programa, os apresentadores gerenciam o espaço, performam vários papéis — como o de tradutor, simplificando a fala dos entrevistados; o de inquiridor, que coloca os entrevistados em posição defensiva tanto pelo teor das perguntas quanto pela entonação dada; o de provocador, quando contrapõe as falas dos entrevistados; e de comentarista, quando intervém na fala do entrevistado pontuando questões e ressaltando pontos dramáticos. Uma das características mais destacadas no papel de representante das mídias é o papel de articulador das falas e de controlador do espaço e tempo do programa. Esta última habilidade está relacionada à competência do profissional e ao conhecimento dele dos mecanismos internos da produção e com a familiaridade que ele possui com a linguagem do veículo. Evidenciamos as características da fala do animador, a qual comanda o jogo: não somente é o dono de sua própria fala, mas também é gerenciador da fala dos outros. É ele quem introduz os temas e sub-temas, que orienta, por seu questionamento, a maneira pela qual gostaria que respondessem à sua pergunta ou às dos outros (determina os pressupostos); é ele que dá a palavra aos convidados, às vezes a retira, ou mesmo a corta de maneira brutal; é ele que constrói a identidade de fala do convidado impondo-lhe “a que título” ele deve falar (...) é ele que pontua a fala dos demais por apreciações negativas ou positivas (sob a forma de muxoxos, de exclamações, de traços de humor discreto, de palavras de conivência); ele que, suprema marca de autoridade, pede que se fale com brevidade e precisão, que se reformule uma explicação de maneira clara, como um professor faria com seus alunos. (CHARAUDEAU, 2006, p.199) Percebemos que é a performance do profissional da mídia que organiza as relações estabelecidas neste ambiente midiático, preparando assim a estrutura que é materializada no produto final. Por isso se torna tão relevante para o nosso estudo avaliar a atuação da apresentadora Regina Casé na série de entrevistas e como ela articula a fala dos entrevistados, os interpela e organiza as intervenções. É ainda importante compreender quais são as regras que orientam a articulação das falas, a organização delas em um produto, como é feito ordenamento que dê conta de construir e estruturar um lugar de fala dos entrevistados e do profissional da mídia a partir da seleção das falas e das imagens — que criariam a ambiência necessária para se localizar o contexto de enunciação, principalmente no caso de um produto televisivo, como é o 48 objeto empírico deste estudo — e, por fim, como é construída a unidade do produto, para que ele se apresente como coerente. Seleção: falas e imagens O processo de seleção das falas e das imagens prima pelo prevalecimento da harmonia discursiva. Durante este processo são encontrados elementos dissonantes ou que atravessam o produto que serão, tanto quanto possível, afastados da narrativa final, pois se busca uma narrativa mais unificada e coerente em si. A escolha torna-se assim, composição, narração, a unificação discursiva de imagens analiticamente isoladas do contexto de uma série mais ampla de acontecimentos co-presentes e intersecantes. (ECO, 1976, p.183) A seleção das falas nos produtos televisivos – em especial nos que pretendem ser o espaço dado à voz do outro, como é o caso do Minha Periferia – acontece de modo semelhante ao sistema de citações e de incorporação de discursos. Para Mouillaud (2002), na produção da informação e na estruturação dos discursos pode-se traçar uma diferença significativa entre citação e intertextualidade. “A citação, diferenciando-se dos enunciados que traz respeita-lhes a forma (como se verá). A intertextualidade, apagando a enunciação dos mesmos, assimila seus conteúdos” (MOUILLAUD, 2002, p.118). Isto insinua que as informações faladas pelo apresentador, quando não são explicitadas as fontes, passam a ser incorporadas ao discurso, assimiladas pela posição e inscrição do apresentador no programa. Para o autor, quando um discurso faz uso de citações ou de informações provenientes de outra fonte, é estabelecida uma relação entre dois contextos e lugares de fala diferenciados e que passam a ser articulados por uma enunciação única, na qual o locutor reproduz um discurso ou o contextualiza para ganhar significado naquela enunciação. Isto deve ser observado durante a seleção das citações, ou, no caso dos produtos televisivos, da edição das falas, para que aquilo que foi dito não seja deturpado 49 pela descontextualização. Também se deve ter o cuidado de não deixar que as marcas dos múltiplos contextos comprometam a organização da narrativa nem a coerência interna do texto, em especial do texto midiático, pois ele deve manter a sempre a inteligibilidade e organização interna para que o produto final possa ser difundido. Quanto à imagem televisiva, tomada como “forma simbólica inscrita em uma materialidade significante” (GUIMARÃES, 2002, p.17), percebemos que ela vem dialogar com formas já consolidadas de se olhar. Por isso, o processo de articulação entre o texto e a imagem diz tanto do contexto de fala dos entrevistados — o que é relativamente evidente — como também explicita o discurso que permeia o texto e a forma como os produtores da série de entrevistas compreendem o lugar de fala dos entrevistados. Nesta construção imagética do lugar do entrevistado há certa atualização dos olhar que se lança sobre o morador de periferia e se remete a percepções precedentes deste lugar. Há, no entanto, algumas imagens que são “repetidas”, que remetem a representações anteriores — como, por exemplo, a captação de imagens de casas em tijolo, emaranhado de fios nos postes (os famosos “gatos”), que são representações imagéticas recorrentes da favela — que, embora sejam, em si, “novas” (ou seja, captadas exclusivamente para esta produção), se reportam a outras já carregadas de leituras e percepções bastante arraigadas do ambiente representado, e são interpretadas, muitas vezes, como “parte de um mesmo”, pois são apreendidas como repetição de imagens préexistentes. Elas são usadas, na maior parte das vezes, para ilustrar e reafirmar o discurso falado, sendo pouco trabalhadas no que se refere a uma construção mais elaborada e metafórica. Outras imagens que possuem forte carga semântica e já ocupam um lugar nas memórias coletivas pela sua dramaticidade ou pelas sensações que suscitam são denominadas, por Charaudeau (2006), “imagens sintoma”. Elas possuem um grau de reafirmação de representações anteriores, atualizações de um mesmo, buscando dramaticidade e a comoção dos telespectadores. Em programas os quais se pretende mostrar o “real”, as “imagens sintoma” ganham centralidade e prevalecem, pois elas 50 “impõem-se a nós de maneira teimosa e nos ofuscam a ponto de só vermos nelas a força simbólica” (CHARAUDEAU, 2006, p.248) 29. Há ainda outro tipo de imagem que devemos destacar neste estudo, que são as imagens produzidas que levam a deslocamentos e estabelecem relações metafóricas com o conteúdo do programa e com as falas dos sujeitos em interação. Essas imagens reconfiguram um lugar, mostram especificidades com um caráter, em alguma medida, inaugural. Reconhecendo a importância das imagens para a construção simbólica dos lugares de produção dos enunciados e entendendo o potencial comunicativo que possuem, percebemos que as formas concretas dos discurso (...) revelam não apenas um repertório de significações derivadas e decodificadas a partir da sua relação direta com a especificidade da experiência vivida pelos falantes, mas uma atividade que busca redistribuir as formas com as quais nós e eles disputamos a própria apreensão do sensível de um mundo que, recortado em regiões de sentido e sensibilidade, resulta dividido entre o que cabe a uns e a outros. (GUIMARÃES, 2002, p.22-23) Disso entendemos que os processos de construção e captação das imagens estão intimamente ligados à construção narrativa dos programas. A captação das imagens pela câmera é guiada pela intenção discursiva do produto midiático e pela organização interna do produto. As imagens não são selecionadas aleatoriamente, elas são produzidas de modo a, em alguns momentos, “ilustrar” a fala do entrevistador/apresentador e do entrevistado, em outros se coloca como “testemunha” do momento de encontro e diálogo entre esses dois interagentes do processo (captando imagens do diálogo em si, assegurando a co-presença); em outros tem uma função metafórica, buscando representar pela imagem o sentido que permeia a produção. 29 Este discurso do espelhamento não aparece apenas pelas imagens, mas também nos textos falados e na forma de denominação e apresentação dos programas, como veremos na análise do objeto empírico desta pesquisa. 51 Capítulo IV Interpelação, posicionamento e deslocamentos: analisando o Minha Periferia Só quem se mostra se encontra. Por mais que se perca no caminho. (Ariano Suassuna) Resgatando as temáticas trabalhadas nos capítulos anteriores, percebemos que para se olhar para a produção cultural da periferia devemos problematizar as relações estabelecidas neste ambiente, como os moradores da periferia se reconhecem e buscam estruturar discursivamente, por meio da sua produção cultural, o seu lugar de fala e como esta produção é inserida num panorama cultural mais amplo e inscrita num contexto de heterogeneidade das ordens de legitimação das práticas culturais. 1. Descrição do objeto empírico Indicado o aporte teórico que pretendemos olhar para o nosso problema de pesquisa, recortamos como objeto empírico deste estudo a série de entrevistas intitulada Minha Periferia, veiculado no programa Fantástico da Rede Globo. Esta série é um dos produtos do programa Central da Periferia30, que era composto também por uma produção itinerante de shows nas periferias de algumas capitais brasileiras com artistas locais e de 52 outras periferias como convidados31. Os shows foram veiculados na Rede Globo um sábado por mês, após o programa Caldeirão do Huck — por volta das 16 horas —, eram apresentados por Regina Casé e tinham a intenção de promover um evento cultural para os moradores da periferia e o diálogo entre os produtores das músicas de periferia. Já a série de entrevistas Minha Periferia foi transmitida todos os domingos entre os dias 23 de julho e 24 de dezembro, com inserções de 6 a 12 minutos, como um quadro do programa Fantástico. Nessas entrevistas a apresentadora aborda as temáticas da produção cultural da periferia, a divulgação de seus produtos e a representação social dos moradores de favela. Ambos os programas foram criados e produzidos pela Pindorama Filmes, pelo Núcleo Guel Arraes, por Hermano Vianna e Regina Casé. A Pindorama Filmes é uma empresa de comunicação que foi criada em 2000 e mantém parceria constante com a Fundação Roberto Marinho, o Grupo Cultural AfroReggae e a TV Globo e atua na produção de material audiovisual para televisão, cinema e internet. Já o Núcleo Guel Arraes, que desenvolveu este projeto na TV Globo, é conhecido pela valorização das técnicas de gravação inovadoras e apuro técnico na elaboração dos quadros. Hermano Vianna é antropólogo e pesquisa a produção cultural da periferia e Regina Casé, apresentadora do programa, tem trabalhado, desde 1991, com programas que tratam da periferia e de sua produção cultural32. Vale dizer que a veiculação no programa Fantástico dá mais destaque à produção, já que a sua difusão é nacional, em canal aberto e num programa já consolidado, pois já está no ar há quase 34 anos. O objetivo do produto Central da Periferia era apresentar a cultura de periferia e discutir as relações entre centro e periferia, como anuncia Regina Casé no episódio inaugural do Minha Periferia, intitulado “Regina Casé mostra a cultura da periferia”: RC: Oi! O Central da Periferia é esse programa que a gente vai mostrar a partir de sábado. Ele surgiu exatamente para isso, para ampliar a voz de toda essa 30 Aqui, para evitar confusão entorno das denominações chamaremos de produto Central da Periferia a soma dos dois programas, os shows Central da Periferia e a série de entrevistas Minha Periferia. 31 Os shows foram realizados em Recife (PE), São Paulo(SP), Rio de Janeiro (RJ), Porto Alegre (RS). Os convidados eram, em geral, artistas da periferia e que tocam musicas que estão excluídas do circuito das gravadoras tradicionais, mas que tem bastante sucesso junto ao público, como os MCs, funkeiros e arrochas. 32 A equipe Regina Casé, Hermano Vianna e Guel Arraes trabalha desde 1991 com a temática da periferia e já desenvolveu os programas Programa Legal(1991), Brasil Legal (1998) e Mercadão de Sucessos (2005). 53 gente e também para discutir o quê que é centro e o quê que é periferia. Chegou a hora da gente saber quem é que tá dentro e quem é que tá fora. RC: Quatro especiais, cada um numa periferia diferente do Brasil, uma vez por mês, mas tem Central da Periferia [a série de entrevistas Minha Periferia] aqui também no Fantástico. Embora o corpus desta pesquisa seja formado por seis episódios da série Minha Periferia — sendo que foram exibidos 23 episódios—, também foram buscadas informações e formas de dizer da inserção do programa na grade da emissora a partir da introdução feita pelos apresentadores do Fantástico e pela descrição do programa feita no site33. Os episódios analisados são “Regina Casé mostra a cultura da periferia”, veiculado dia 23 de julho; “Mudanças sociais por meio da cultura”, no dia 3 de setembro, “O batuque nas periferias”, no dia 10 de setembro; “Minha Periferia: gente que faz arte”, no dia 17 de setembro; “Periferia Digital”, no dia 24 de setembro; “Minha Periferia”, no dia 10 de dezembro. Esses episódios foram selecionados pela temática central de cada um: o primeiro por ser o episódio inaugural, que daria as linhas mestras da produção; o segundo porque tratava mais especificamente da formação dos grupos culturais; o terceiro e o quarto porque tratavam dos produtos culturais e dos artistas; o quinto porque, além de dar destaque aos artistas, trata dos processos de difusão desta cultura e o último porque tenta estabelecer uma relação comparativa entre o centro em a periferia. Para a formulação deste capítulo de análise, selecionamos as falas que tratavam mais especificamente dos temas relacionados a esta pesquisa e que davam conta de mostrar o modo como a cultura de periferia foi contemplada pela produção e condução das entrevistas no Minha Periferia. Discutiremos então a temática do espaço urbano pelo viés das denominações centro/periferia, o engajamento dos moradores de periferia para alterarem as condições de pobreza material, o discurso da violência, o exercício de falar de si e de nomearem o próprio espaço, produção e distribuição da produção cultural da periferia, o posicionamento dos sujeitos e os deslocamentos que ocorrem nas interações comunicativas e como esses elementos que permeiam tanto a vida social dos moradores de 33 Os sites consultados foram http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,5791,00.html, sobre o Minha Periferia e http://redeglobo.globo.com/Centraldaperiferia/0,30514,5625-p-225395,00.html sobre os shows Central da Periferia. 54 favela como o discurso da série se cruzam na temática central desta pesquisa que é a discussão acerca da heterogeneidade das ordens de legitimidade das práticas culturais. Nesta análise buscamos estar atentos para a complexidade das falas dos entrevistados, o posicionamento da apresentadora durante a série, a construção do lugar de fala dos entrevistados pelo movimento de interpelação e posicionamento e a forma significante da imagem. 2. Análise Olhando para a tessitura discursiva dos episódios analisados percebemos que a posição do “produtor”, ou seja a voz do ator mídia que organiza e conforma o produto final, aparece de modos diferentes ao longo da série. Nas inserções introdutórias, feitas pelos apresentadores do Fantástico, há certa conformação do lugar em que a série é inserida e demonstrada a forma como o produtor interpreta o próprio produto. Já a inscrição do ator midiático por meio da apresentadora Regina Casé se dá em dois momentos distintos: pela introdução e articulação das falas por textos pré-definidos e, às vezes, ensaiados — como será destacado e exemplificado adiante — e pela performance de Regina Casé como entrevistadora, em cena junto com os entrevistados. Analisando estas três entradas da fala do ator midiático — e conscientes que todas as mesmas passam por um processo, em alguma medida, de edição e de roteirização — percebemos que ela é bastante engessada na introdução do quadro no programa Fantástico, dando a conhecer a perspectiva dos produtores com relação ao Minha Periferia. Já a primeira forma de inserção de Regina Casé é mais flexível, possui vocabulário mais aproximado da fala dos entrevistados e é mais dado ao uso de gírias e tem como função contextualizar da fala dos entrevistados e situar o contexto da interação. O segundo momento surge quando a performance da apresentadora dá a conhecer deslocamentos e contradições por possuir uma fala menos roteirizada e passível de interferências contextuais. Disso apreendemos que a postura do ator midiático não é homogênea ao longo da série, pois nem sempre o roteiro pressuposto opera e engessa as relações quando a interação 55 propriamente dita se concretiza, pois se isso acontecesse não seria observadas contradições na fala da representante do ator mídiático, sendo mantidas a homogeneidade discursiva. Assim, antes de entrarmos no conteúdo dos episódios em si, destacamos então a inserção dele no programa Fantástico pela fala dos apresentadores que introduziram os episódios analisados34. As introduções são: 1)Regina Casé mostra a Cultura de Periferia Zeca Camargo: Chegou a hora de dar voz à periferia. Regina Casé vem aí com um programão com direito a participação aqui no Fantástico Glória Maria: se você quer saber, Brasil é isso aí! 2) Mudanças sociais por meio da cultura Renata Ceribelli: Regina Casé desembarca no planeta periferia... Pedro Bial: aquele Brasil que nem sempre aparece na mídia. 3)O Batuque das Periferias Zeca Camargo: a periferia tem batuque? Claro que tem e do bom! Regina Casé viaja pelo Brasil para descobrir como a música tem o poder de mudar vidas. 4)Minha Periferia: gente que faz arte Zeca Camargo: gente que faz arte agita as periferias dos quatro cantos do Brasil. Renata Ceribelli: fala Regina Casé! 5)Periferia Digital Glória Maria: a periferia invade o terreno da arte digital Zeca Camargo: Regina Casé mostra quem são esses craques dos computadores. 6)Minha Periferia Zeca Camargo: a descoberta de um novo mundo. Ivan, um menino de classe média, vai entrar na favela pela primeira vez com Regina Casé Glória Maria: esta na hora do Minha Periferia Por essas introduções também podemos perceber claramente que a periferia é o lugar do “outro”, o outro mundo, o outro planeta. Com fronteiras cada vez mais rígidas, aparta-se este lugar com relação ao “centro” e insinuando um movimento de invasão pela 34 Os apresentadores eram Glória Maria, Pedro Bial, Renata Ceribelli e Zeca Camargo. Eles se alternavam, atuando geralmente em pares (com exceção do terceiro episódio analisado, que foi apresentado somente por Zeca Camargo). 56 presença da câmera e o olhar curioso do telespectador. Este mundo inacessível e distante (distante porque distanciado pela marginalização social, que aparece mais explícita no último programa analisado) é tratado como um espaço que, cercado pelos muros do preconceito ou simplesmente consolidado como o “não-visto”, ganha o status de novo mundo porque, pela produção interna, que circula somente entre estes “de fora”, começa a “agitar” as periferias das cidades. A articulação das periferias, evento noticiável e inesperado, merece ser recortado e mostrado aos telespectadores do programa que anuncia o fantástico, o improvável. Contudo, a característica intrínseca a toda forma de representação, o recorte da realidade, não é explicitada. “O Brasil é isso aí”, diz Glória Maria. A partir disso é estabelecida uma relação de espelhamento entre a realidade e o que chega aos telespectadores. Não dizer que a série de entrevistas transmite uma realidade apreendida por um olhar que tece significações é se propor a oferecer aos telespectadores o inacessível. É por isso que vamos analisar como este olhar sobre a periferia constrói o lugar das práticas culturais deste espaço permeado por significações, estigmas e preconceitos. Destacamos ainda que a série de entrevistas, embora mantendo a titulação Minha Periferia, tem sua logomarca alterada de acordo com a forma e o contexto onde se passa o episódio. Percebemos que os episódios “Mudanças sociais por meio da cultura”, “O batuque nas periferias”, “Minha Periferia: gente que faz arte” e “Periferia Digital”, por focarem os jovens moradores de periferia e as ONGs que trabalham com o desenvolvimento das práticas culturais, apresentam logomarca com a inscrição “Na Periferia” — conferindo relevância para o lugar onde o episódio foi produzido e indicando que o discurso a ser produzido tem como tema a produção e o contexto local. Já o episódio “Minha Periferia”, a logomarca apresenta a inscrição “Minha Periferia”, remetendo não só ao nome da série como também indicando que neste episódio um morador da favela vai acompanhar Regina Casé na visita à periferia e apresenta-la aos outros moradores35. Seguimos agora com a análise avaliando as posturas e contradições da fala do ator midiático pela performance da apresentadora e a análise das falas dos entrevistados, 35 Percebemos esta indicação temática pela inscrição da logomarca não só a partir dos episódios analisados, mas também atentos aos demais que compõe a série, pois a inscrição “Minha Periferia” na logomarca também se repete em outros episódios, quando algum artista (como por exemplo, Luiz Melodia) vai apresentar a 57 buscando sempre captar os deslocamentos e as construções que emergem pela interação e inscrição dos entrevistadores e da entrevistadora. 2.1 O Espaço Urbano Discutindo a dimensão espacial representada na série percebemos que há duas questões postas: uma se refere à problematização dos conceitos de periferia e de centro e a outra às relações entre os sujeitos “de centro” e os “de periferia”. a) Problematizações do conceito: Neste tópico destacamos como esse tipo de divisão do espaço urbano incorre em falhas. Uma delas é intrínseca ao próprio conceito e sua aplicação, pois a sua arbitrariedade está em supor que as áreas de favela ou pobreza estão situadas na área periférica da cidade36, o que nem sempre ocorre, e outra questão que se impõe, ainda mais gravemente que a primeira, é quanto ao distanciamento das relações sociais que permeiam o fluxo de interações entre o dito “centro” e a “periferia” com essa polarização. Conceber esses espaços como isolados é reduzir drasticamente a possibilidade de se complexificar a relação entre os moradores da favela e os outros moradores da cidade, bem como perceber as influências culturais que afetam mutuamente esses grupos. Aliás, o confinamento das regiões em centrais e periféricas é, inclusive, questionado dentro da série pela fala dos entrevistados e da entrevistadora. Os entrevistados destacaram a importância de se buscar a quebra das fronteiras e deixam essa intenção explícita destacando a importância de se “quebrar os muros” e pensar em termos de diversidade e heteorogeneidade, tanto no que se refere ao espaço quanto à produção cultural. Já pela fala da apresentadora — no episódio “Minha Periferia” — esta questão fica ainda mais explícita, pois ela ironiza a separação entre centro e periferia ao perguntar favela em que foi criado para Regina Casé. Destacamos ainda que o primeiro episódio, “Regina Casé mostra a cultura da periferia”, se configura como uma exceção, já que não apresenta nenhuma logomarca. 36 Apesar do programa “Minha Periferia: Popó apresenta a baixada das Quintas” não compor o corpus da pesquisa, destacamos que Regina Casé, ao falar da periferia Baixada das Quintas (Salvador, BA), destaca que é difícil falar que esta área é uma periferia pois ela se mistura com o centro da cidade, dizendo que ela esta “entranhada” na cidade. 58 aos entrevistados se eles vêem um muro com arame farpado que separe as duas áreas e depois diz que era uma brincadeira, porque, logicamente, não existe muro nenhum que separe a cidade do morro. Contudo, ressalta que há, ainda que imaterial, uma divisão entre esses espaços, o que permite que ela fale em dimensões diferentes. Menino A (grupo de entrevistados unformizados da Kabum!): o periférico foi um rótulo criado para dizer que a gente tá longe do centro e que não tem um “padrão” adequado para freqüentar esse dito centro que até hoje eu não sei onde é. A gente tá ao redor do centro, mas não pode chegar no centro, mas, contrariando, a gente chega no centro. (risos) (extraído do episódio: “Minha Perifeira: mudanças sociais por meio da cultura”) Tilson Ribeiro (professor de teoria musical da Eletrocooperativa): tentar quebrar esses muros, mudar essa realidade, chamar essas pessoas para que não aja nem centro nem periferia e para que se crie esse todo. (extraído do episódio: “Periferia digital”) RC: a gente está no bairro de botafogo, Rio de Janeiro, pertinho do consulado de Portugal, do lado de vários colégios tradicionais, de muitos prédios de classe média e alta e ali, atrás da gente, tá a favela. O morro Santa Marta onde mora o Anderson. E ali tem um muro, não tá vendo não? um muro bem alto, cheio de arame farpado? tô zoando, não tem muro nenhum, mas é como se tivesse, como se tivesse uma muralha. Daquela ladeira pra lá é como se tivesse uma linha que a gente entra numa outra dimensão. B’ora pra lá? (para Ivan) (extraído do episódio: “Minha Periferia”) b) Relação entre sujeitos “do centro” e “ da periferia” Fica claro, dentro da série, que mesmo os entrevistados se orgulhando da sua esfera de convivência e da comunidade em que vivem e fazendo circular uma perspectiva positiva das favelas, não aceitam passivamente o rótulo de periférico, de distantes do centro. Eles querem ser vistos por uma perspectiva mais positiva, deslocado o lugar da exclusão e da marginalidade que está associada a essa denominação, e buscam o diálogo com outros ambientes, outras pessoas e comunidades, tanto periféricas quanto “incluídas”, as “centrais”, e se orgulham diante da possibilidade de “ensinarem” alguma coisa para o “centro”. É válido destacar que as relações que se estabelecem entre os sujeitos transcendem as fronteiras centro/periferia, sendo flexibilizadas ao se mostrar que se esta divisão realmente apartasse os mundos não seria possível uma relação interativa entre sujeitos do “centro” e “da periferia”. No entanto, não é isso que se observa, pois Ivan, 59 considerado “de centro”, reconhece outros meninos moradores de periferia ao ir até a casa de Anderson e estabelece relações interativas e diálogo com eles. RC: muitos dos grupos culturais da periferia criam parcerias com gente de fora da periferia, todo mundo ensina, todo mundo aprende ao mesmo tempo. Aqui por exemplo a gente tá na Spetáculu, na Kabum! Que tem gente de todas as periferias do Rio de Janeiro, quer ver? Jovens da platéia falam nomes de periferias de onde vieram: Senador Câmara, Providência, Rua dos Macacos, Turano, Nova Roma, Sepetiba, No Holanda, Nova Iguaçu, Cidade de Deus, Complexo do Alemão. ( extraído do episódio: “Periferia Digital”) Jovem / cantor 2: eu estava aqui a uns seis meses né, aí a Alessandra pegou e arrumou pra eu dar aula, falar sobre o hip hop na faculdade. Aí eu pensei: “fala sério! Eu dando aula, falando sobre o hip hop na faculdade! Esse pessoal da Eletrocooperativa tá ficando doido!”. Aí eu fui e comecei a falar assim tudo, bem explicado pra eles, aí um cara falou “pô véio, você tá se formando em quê?”. Eu falei: “pó véio, eu sou da oitava série, sou da Eletrocooperativa, eles me ensinaram e agora eu vim aqui passar pra vocês, tá entendendo?”. ( extraído do episódio: “Periferia Digital”) Wilson: de repente a gente tocou em um dos festivais e gostaram tanto que ficou aparecendo convites para outros festivais e virou um rolo compressor, né. A gente perdeu o controle. Agora todo ano a gente tá na Europa! RC: e vocês gostam de ir pra lá? Wilson: eu particularmente gosto, rapaz! E a galera aí gosta? Outros integrantes da banda: ô!(risos) ( extraído do episódio: “O batuque das periferias”) Rapaz 1: Ivan! Você por aqui! RC: vocês se conhecem? Ivan: ahan! RC: tô chocada! Resolvi trazer você aqui e achei que você não ia conhecer ninguém e na primeira parada você já tá encontrando amigo! Ivan: é, ele foi boleiro lá na LOB. RC pra rapaz 1: você tá achando estranho ver ele aqui? Rapaz 1: muito! RC: Você achou maneiro ele vir? Rapaz 1: com certeza, né. 37. ( extraído do episódio: “Minha Periferia”) 2.2 O engajamento dos moradores de periferia para alterarem as condições de pobreza material 37 Aqui não ignoramos que a relação estabelecida entre esses garotos é marcada pelo estigma das classes sociais, pois os moradores de favela conheceram Ivan na LOB, academia de tênis em que Ivan é sócio e eles empregados (boleiros), mas este fator não impede que relações interativas entre eles sejam estabelecidas. 60 A questão que emerge é: como a periferia lida com as dificuldades materiais? Tem sido amplamente reconhecido o potencial de organização das periferias em torno da busca pela consolidação dos direitos e pela exigência de melhores condições sociais por meio de políticas públicas. Além disso, há o crescente engajamento das crianças, jovens e moradores da periferia em geral em ONGs e associações de bairro que buscam implementar programas de profissionalização e incentivam a produção de bens culturais. A apresentadora destaca que as ONGs perceberam que uma das principais vias para se alterar as condições sociais e buscar novas formas de atuação dos moradores de periferia podia ser encontrada por meio da cultura. A partir disso, foi incentivada a produção musical, artística, audiovisual, entre outras, junto aos moradores de favela. No entanto, a presença das ONGs não passou despercebida nem deixou de ser questionada, tanto pelos voluntários dos programas quanto pelos moradores de favela. Nos episódios analisados esse questionamento aparece por uma seleção de falas rápida que articula vozes dissonantes sobre a questão e se apresenta como um panorama para o telespectador das questões que permeiam a atuação das ONGs. RC: Outra coisa impressionante é a quantidade de gente que se junta e se organiza nas periferias para melhorar a sua vida. Muitos grupos descobriram que produzir cultura é uma das melhores armas para acabar com a desigualdade social. Em todo o Brasil tem grupos propondo mudanças sociais por meio da música, teatro, dança e vídeo. Eu, agora, neste momento, estou sendo filmada pelo pessoal da Kabum! E aí, to bem na fita? (extraído do episódio: “Mudanças sociais por meio da cultura”) Fernando Narduchi: O grupo trabalha pela busca de novos talentos, (...) o objetivo maior do projeto do nosso balé, o principal, é oferecer oportunidades a quem não tem. (extraído do episódio: “Minha periferia: gente que faz arte”) RC: e alguém conseguiu alguma coisa? Jovem da Kabum 4: eu fiz um trabalho recentemente no teatro municipal... Jovem da Kabum 5: tem uns comerciais que eu já trabalhei... RC: e você o quê? Jovem da Kabum 6: eu já estou de cinco para seis anos trabalhando na área (extraído do episódio: “O batuque das periferias”) No entanto, ao longo dos episódios, menos pela fala dos voluntários das ONGs que pelos entrevistados moradores de favela e pela apresentadora, aparece o discurso da violência, segundo o qual a presença das ONGs ajudaria os jovens “em situação de risco 61 social”, pois o envolvimento deles com atividades culturais os distanciaria das posturas violentas e criminosas e também do estigma social que surge quando os jovens recordam experiências cotidianas. 2.3 O Discurso da Violência A temática da violência surge a partir de três perspectivas: a noção de que é preciso que se tenha ONGs interferindo no cotidiano das favelas para distanciarem os jovens da violência e da criminalidade; o questionamento desta visão “positiva” e “salvadora” do papel das ONGs, pois isto reafirmaria o discurso de que os jovens são violentos devido às condições em que vivem e o questionamento dos jovens sobre os preconceitos e o estigma social que perpassam as relações que eles estabelecem com o centro ( seja pela aproximação do “centro”, seja pelo trânsito nos espaços da cidade). a) O “Salvamento” dos Jovens A temática da violência surge então por meio de um discurso recorrente quando se trata da atuação de ONGs em favelas: a recuperação e salvamento dos jovens que se encontram em “situação de risco”. A expressão “jovens em situação de risco” foi criada para designar jovens que viviam em regiões pobres e que estariam mais vulneráveis que outros a se envolver com atividades criminosas e consumir drogas ilícitas. Esta ligação direta entre pobreza e violência foi extensamente criticada, pois hoje se entende que a violência é “multicausal”. Dayrell e Gomes (2007) também criticam esta expressão: a juventude vista como problema, ganhando visibilidade quando associada ao crescimento alarmante dos índices de violência, ao consumo e tráfico de drogas ou mesmo à expansão da Aids e da gravidez precoce, entre outros. Não que estes aspectos da realidade não sejam importantes e estejam demandando ações urgentes para serem equacionados. A questão é, ao conceber o jovem de uma maneira reducionista, vendo-o apenas sob a ótica do problema, as ações em prol da juventude passam a ser focadas na busca de superação do suposto “problema” e, nesse sentido, voltam-se somente para os setores juvenis considerados pela sociedade, pela escola e pela mídia como “em situação de risco”. Tal postura inibe o investimento em ações baseadas na perspectiva dos direitos e que desencadeiem políticas e práticas que focalizam a juventude nas suas potencialidades e possibilidades. (DAYRELL & GOMES, 2007, p.2) 62 Este discurso que associa violência e pobreza aparece tanto pela fala dos voluntários de ONGs, que demonstram ter posturas compassivas e interessados em contribuir para o “salvamento” dos jovens quanto na fala de certos entrevistados moradores de favela. Aparece também através de algumas contradições presentes na fala da apresentadora: mesmo sabendo que há certo esforço do Minha Periferia em deslocar esta perspectiva, Regina Casé se perde a acaba por confirmar esta percepção em alguns momentos. Alberto Pita, artista plástico (voluntário do Instituto Oyá): O que nós pensamos é que tem que ser o melhor para os filhos das classes populares. Esta é a melhor forma de acabar ou pelo menos diminuir a marginalização e a violência, porque vem justamente daí, da falta. (extraído do episódio: “Mudanças Sociais por meio da cultura”) Aluno Bailarino da Esperança: eu sou bailarino da Esperança, to aqui desde o começo, né. Uai, eu só vivia na rua, saía cedo e chegava só de madrugada...a gente pensava: ah, vamos fazer um assalto aí, vamos roubar...e rapidinho, dentro de dois dias, a gente tinha uma bicicleta nova. Agora hoje não, hoje eu tento ganhar dinheiro em cima da dança. Eu nem sabia que eu tinha um dom, né. Agora eu vejo que já dão valor pro meu trabalho, né. ( extraído do episódio: “Minha periferia: gente que faz arte”) RC (o auditório da Kabum!):e aí? Você aí? Tá reclamando do quê? Tá reclamando de tudo né, dizendo que este país não tem jeito, muito assalto, muita violência... tem jeito sim, se a gente quiser que tenha, é ou não é? Dá um rolé no seu bairro, na sua cidade, eu garanto que pertinho da sua casa tem um grupo cultural bem bacana precisando de gente com energia para trabalhar. Não importa se você vai ensinar ou aprender, o que não pode é ficar parado”. (extraído do episódio: “Minha Periferia: gente que faz arte”) b) questionando o papel das ONGs Nos episódios analisados percebemos que a maioria dos jovens nega que sejam vistos como “em situação de risco”. Segundo eles, ainda que as ONGs tenham papel importante na ampliação das possibilidades de inserção no mercado de trabalho, há um espaço de “decisão” e “ação” em que eles se posicionam diante das próprias escolhas, sem depender das ações supostamente “salvadoras” de ONGs. Em conformidade com este discurso dos jovens, também temos as falas da apresentadora (ainda que ela seja contraditória em alguns momentos) e dos voluntários e fundadores de ONG que destacam o papel das organizações como importantes para a ampliação das oportunidades de inserção 63 no mercado de trabalho. Observamos que as ONGs são associadas à produção cultural e às atividades que oferecem uma possibilidade de se superar as condições de desigualdade social, o que acaba por reconfigurar a forma de se interpretar a presença das ONGs nas favelas. Na fala dos entrevistados percebemos que é destacada a importância de se permitir que o jovem escolha a sua profissão conforme o seu sonho e que esteja preparado para ser incluído no mercado de trabalho em áreas mais especializadas que permitiriam melhores condições de vida. Menino A (grupo de entrevistados uniformizados da Kabum!): É, essa imagem mesmo que eles têm, de jovens que estão enterrados até o pescoço na lama e que se não fosse a ONG a gente ia tudo estar atolado na violência. (garoto não identificado diz: “é jovem em situação de risco” e provoca risos ) A ONG ajuda, mas a gente também tem a nossa autonomia. (extraído do episódio: “Mudanças sociais por meio da cultura”) João Bachilli(diretor geral da OPTC): A OPTC é engajada com os movimentos sociais de uma forma muito simples, de querer proporcionar que qualquer indivíduo tenha a oportunidade de realizar um sonho e poder sobreviver desse sonho. (extraído do episódio: “Minha periferia: gente que faz arte”) Gringo Cárdia (diretor da Spetáculo Kabum!): A gente usa arte para os meninos se descobrirem, mas a gente tem um enfoque muito certo assim no trabalho. Os meninos precisam trabalhar. A escola funciona assim: dois anos em média, a partir de um ano e meio ele já começa a ter estágios e depois desse um ano e meio a gente já começa a indicar alguns clientes e eles já se organizam como cooperativa. Lúcia Coelho( diretora da Spetáculu Kabum!): Agora pra você ter uma idéia, tem teatros agora que todos os funcionários foram alunos daqui da escola. O contra regra, iluminador, assistente... (extraído do episódio: “Periferia digital”) c) o trânsito na cidade: as relações com o “centro” No decorrer da série são resgatadas situações cotidianas retomadas pelos jovens sobre o modo como eles são tratados no convívio social e enquadrados como jovens em “situação de risco” ou violentos. Percebemos pela fala dos jovens que este preconceito permeia as relações que atravessam a cidade e se concretizam em situações corriqueiras que trazem marcas dessa percepção preconceituosa com relação aos jovens. Isto acontece quando dos jovens moradores da periferia vão até as regiões de classe média ou mais ricas da cidade, sendo vistos como ameaçadores pelos os habitantes dessas regiões. 64 Observamos então que estas percepções preconceituosas que surgem quando os jovens transitam pela cidade são reflexo não só da costumeira polarização do espaço, como também de percepções arraigadas que situam os moradores de periferia como imorais, criminosos e inconseqüentes — o que, ironicamente, motivam a formação de ONGs que se propõem a socializar e recuperar os jovens. Negando veementemente este lugar, os jovens destacam que, caso não estivessem envolvidos com os projetos culturais, iriam trabalhar junto com suas famílias, no mercado informal ou estariam procurando emprego. Menina A (grupo de entrevistados uniformizados da Kabum!): Um colégio que foi pra lá visitar a gente, era colégio particular entendeu, aí perguntaram se a gente sabia ler, se a gente sabia ligar os computadores, e tem a maior galera lá na kabum! que faz faculdade... RC: o quê que é ruim de morar na favela? Músico 2: é o preconceito. Músico 1: a gente tava passando no sinal aqui, ai tinha um mulher que passou, olhou assim, e levantou o vidro. RC: aqui o pessoal tem medo de vocês? Músico 3: tem sim, tem medo. RC: O crescimento da violência na década de 90 foi uma coisa que eu acho péssima. O medo da rua. As pessoas passaram a achar que todo o mal ta na rua. Menina 1: hoje em dia a gente não pode ficar na rua porque tem medo de assalto, de seqüestro de crianças, tráfico de drogas, de bala perdida... Rapaz: se acontecer um assalto tem os policiais corruptos, eles podem achar que você é “mau elemento” e te agredirem por isso... (extraído do episódio: “Mudanças sociais por meio da cultura”) RC: se você não tivesse aqui, você ia estar fazendo o que agora? Músico 1: ah, pô...ia estar na pichação. RC: ah, só pichação não, que tipo de emprego? Músico 1: ah, emprego, acho que eu não ia ter emprego não... (cortaram a pergunta da RC, que supomos ser sobre a profissão dos pais) a minha mãe e empregada doméstica Músico 2: meu pai é comerciante e a minha mãe não ta pra nada. RC: comerciante de quê? Músico 2: ele vende macaxeira na rua. RC: num carrinho, assim, pequeno. Músico 2: é RC: então se você não estivesse aqui talvez você estivesse ajudando o seu pai empurrando o carrinho. ( extraído do episódio: “O batuque das periferias”) 65 Na construção dessa imagem de um novo jovem, um outro morador da periferia que não quer ser identificado com os estigmas e os preconceitos que permeiam as relações sociais, há um processo de nomeação do espaço, valorização das práticas e reconstrução do próprio lugar de fala. 2.4 O exercício de falar de si e de nomear o próprio espaço Quando Regina Casé fala que os moradores de favela dão agora um “papo reto” ela está dizendo que eles não querem mais “ser falados”, querem falar de si e construir significações acerca da inscrição deles no mundo e do espaço onde vivem. Ela destaca ainda que a grande inovação da década de 90 no Brasil foi o surgimento da “voz da periferia” querendo falar de si mesma. Negar rótulos e propor novas denominações. Este é o primeiro passo para aqueles que buscam o reposicionamento e a renomeação. A construção desse novo posicionamento também está relacionada à reconfiguração do espaço e do lugar de fala. Negar as posições modestas atribuídas pelos outros atores da sociedade e situar-se como capaz, autêntico e digno é um dos comportamentos essenciais para se lutar por uma nova configuração. Em “Mudança social por meio da cultura”, um dos entrevistados destaca que, aproveitando que o foco está, hoje, na periferia, seria muito mais interessante se esse espaço fosse dedicado a mostrar o trabalho deles e, porque não, a construção desta nova identidade. No episódio “Periferia Digital” um dos músicos também faz menção ao desencaixe das representações sociais dos moradores de periferia atuais com relação às representações costumeiras, que acionam todos os estigmas socialmente construídos para eles. Para construir esse novo perfil do sujeito periférico os jovens destacam a mudança na compreensão de três questões: o orgulho de ser morador da periferia e de compartilhar do ethos presente na comunidade; o surgimento de um novo jovem da periferia, mais engajado com as questões sociais e com a temática da periferia, e o domínio das tecnologias de comunicação para que ele possa veicular uma nova representação ou, ao menos, seja capaz de representar-se a si mesmo. 66 Com esta reconstrução e renomeação do lugar de fala do morador de favela, situando-o não mais como “alvo” das políticas públicas e passivo diante das denominações atribuídas, surge uma vontade e interesse de ser reconhecido a partir desta nova denominação, se apresentar como sujeito diante dos demais. RC: Eu não tenho dúvida que a novidade mais importante da cultura brasileira dos anos 90 foi o aparecimento da voz da periferia falando bem alto e em todos os lugares (extraído do episódio: “Regina Casé mostra a cultura da periferia”) Menina A (grupo de entrevistados uniformizados da Kabum!): A: o critério da Kabum! É que os jovens seja dessas comunidades que eu nem digo periférico, eu digo popular Menino A (grupo de entrevistados uniformizados da Kabum!): hoje a periferia está em foco. A grande mídia trabalha com a gente da periferia como se o jovem fosse assim um animador de platéia, tocando tambor e tal, falando coisas bonitas, mas a gente quer é mostrar o nosso trabalho. Jovem cantor 2 ( outro ambiente, na Eletrocooperativa): já tô cansado de dizer que na periferia tem aquele cara sofridinho, que na periferia tem aquele cara que é coitadinho, sacou? Na periferia tem o cara que é artista, tem músicos, sacou véio? Tem cara que morre é de zoar com a cara mermo, porque a periferia ta cansada de “ah, vamos ajudar aquele cara da periferia”, tá ligado? De “vamô dá curso pr’aquele cara da periferia, pr’aquele cara da periferia aprender”, sacou? Menino A (grupo de entrevistados uniformizados da Kabum!): fundamental é mostrar que a gente é capaz de produzir as nossas idéias ( extraído do episódio: “Mudanças sociais por meio da cultura”) Jovem/cantor 3: todo mundo aqui é da periferia com muito orgulho! (risos) (extraído do episódio: “Periferia digital”) RC: você acha que já tem uma geração criada em ONG? Wilson: tem, mas... RC: tem alguma gíria pra isso, tipo “aquele menino é da ONG”. Músico 1: tem, menino do projeto. RC: e é chato? Músico 1: não, é legal. RC: é melhor ser identificado como menino do projeto que com outra coisa, né... Musico 1: é 67 RC: você acha que essa categoria, quem é de uma ONG e já tá fazendo coisas legais, é um novo tipo de jovem que está surgindo na favela ou ele é um office boy que é otário? Jovem da Kabum 1: ele é visto como um novo jovem. (ambos extraídos de “O batuque das periferias”) Homem 4: A gente aqui conseguiu adquirir nos dias de hoje uma ilha de edição e duas câmeras o que deixou a gente muito feliz. Agora a gente tem oportunidade, mostrar o nosso olhar, o periférico para a elite. (extraído do episódio: “Mudanças sociais por meio da cultura”) Menina do Cortejo 3: quando a gente passa no pelourinho o povo fala “ô menina do cortejo afro!” ai eu, “nossa, pôxa gente...!” Menina do Cortejo 3: Eu quero assim estar no palco, eu quando tô no palco fico me achando. ( extraído do episódio: “O batuque das periferias”) É a partir dessa diferenciação e reposicionamento que os moradores de periferia querem ser reconhecidos. Sabemos ainda que é no campo da linguagem e na difusão das práticas que este movimento de ressignificação ganha materialidade. É por isso que vamos tentar apreender as construções linguageiras deste lugar de fala e como são ventiladas essas novas questões por meio da produção cultural da periferia e seus modos de difusão. 2.5 Produção e distribuição dos produtos culturais Aqui percebemos que há duas questões que permeiam a produção e a distribuição: a valorização dos produtos e o uso de novas tecnologias do mercado fonográfico para assegurar a qualidade e apuro técnico das produções. a) Valorização das práticas Quando Regina Casé começa a falar da produção cultural da periferia a primeira característica que ela destaca é que esta produção está fora do circuito das grandes gravadoras. Há um modelo peculiar de distribuição que foge à lógica do centro, mas que não deixa de ser eficiente. O acesso a esses produtos é destacado pela apresentadora quanto ela convida jovens e crianças que estão ao redor dela para cantarem músicas do funkeiro carioca, Mc Marcinho. Esta atitude demonstra que as periferias estão interligadas, há um circuito de divulgação que transcende as relações internas das periferias, ligando-as entre si. 68 Também não é por acaso que a apresentadora destaca que a maioria conhece esse tipo de música. Isso é um preâmbulo para ela abordar a questão que vem ao final do episódio: não se pode negligenciar as práticas culturais da maioria e o movimento de consolidação de outras ordens de hierarquização das práticas. Fica claro que a apresentadora não quer homogeneizar gostos, mas sim apresentar um outro campo de produção cultural que, embora seja com freqüência desqualificado por outras pessoas envolvidas com outras práticas culturais, tem consolidado o seu lugar entre os produtos musicais da atualidade. RC: quando a gente anda pelas favelas de todo o Brasil, os mega sucessos, as músicas que todo mundo canta, todo mundo dança, os ídolos da molecada, nunca passaram por uma grande gravadora e, em geral, você nunca viu na televisão, nem ouviu no rádio, em cadeia nacional, nem nunca tá no jornal nem na revista. Foi assim no comecinho com a banda Calypso, com Aviões do Forró, com o Tecnobrega do Pará, com o Arrocha baiano e isso sem falar do maior fenômeno da periferia: Racionais MCs. (extraído do episódio: “Regina Casé mostra a cultura da periferia”) RC: olha, vou fazer um exemplo para vocês: o funk carioca. O pessoal diz que é só do Rio? Mentira, tá espalhado para o Brasil inteiro. O Mc Marcinho, que nunca gravou um CD por nenhuma gravadora, que se você vai numa loja e diz “quero um CD do Mc Marcinho” não existe, só se você comprar no baile, você quer ver? aqui em São Paulo: Vocês conhecem o MC Marcinho? Meninas: Conheço RC: Vou cantar uma música qualquer dele...quer ver ó: Glamourosa, rainha do funk Poderosa, olhar de diamante Nos envolve, nos fascina, agita o salão Balança gostoso requebrando até o chão (meninas cantam junto) RC: Aí, não conhece? A maioria conhece. (extraído do episódio: “Regina Casé mostra a cultura da periferia”) RC: Mesmo que você não goste de nada do que você viu, nem do que ainda a gente vai mostrar, vê, não deixa de ver não. A gente não quer que ninguém goste disso, desses lugares, dessas pessoas, só acha que não dá pra ignorar o que a maioria gosta e viva a maioria! (extraído do episódio: “Regina Casé mostra a cultura da periferia”) RC: os políticos adoram dizer “nós vamos levar a cultura para a favela”. Agora a favela responde: “qual é mané, o que não falta aqui é cultura”. Isso é muito bom, isso é ótimo, mas não quer dizer que as coisas tenham que viver separadas. Eu detesto gueto. Gueto pra mim é filho do preconceito, filho da injustiça. Eu 69 gosto quando as diferenças se misturam. digital”) (extraído do episódio: “Periferia b) Desenvolvimento tecnológico Sobre a qualidade das produções, Regina Casé aborda a questão indicando que não há instâncias que possam dizer que aquilo que é produzido na favela não tem valor cultural, despreza as posturas legitimistas e destaca que hoje os moradores de favela têm consciência do valor de sua produção, não aceitando desqualificações de suas práticas e reafirmando o seu lugar de produtor de cultura. Mesmo situando esta produção como “desvinculada” e “independente” da valorização dos membros do centro, a produção cultural da periferia se vale de novas tecnologias (que ironicamente vieram do centro) para produzirem e divulgarem seu material. Além disso, a qualidade técnica das produções passa a ser inconteste diante do uso dos mesmos meios materiais para a produção. Se o conteúdo difere, é porque diz de um outro contexto de produção, e não por displicência ou falta de acesso a meios tecnológicos que conferem qualidade às gravações. Isso é destacado nos programas “Minha Periferia: gente que faz arte” e no “Periferia digital”. RC: Agora a gente vai direto do triângulo mineiro para o extremo sul do Brasil, Pelotas. Lá tem a OPTC, Oficina Permanente de Técnicas Circenses que pega a galera do morro e do asfalto também e bota para aprender salto, fazer maquiagem, um montão de coisa. Agora tudo isso não é mixaria não, é muito luxo, muita técnica. (extraído do episódio: “Minha Periferia: gente que faz arte”) (Tilson – voz em off sem créditos) : A tecnologia que se trabalha aqui é de ponta mesmo. São programas que são usados nos EUA, na Europa. E em todos os lugares que fabricam a música digital. Jovem/cantor 1:eu achei que eu nunca ia ter acesso a um computador, eu achava que isso era coisa de luxo, de barão Jovem/cantor 2: quanto eu cheguei eu pensei “poxa computador, véio!”. Hoje eu chego e vou lá em baixo, rapidinho, e eu faço as minhas próprias batidas quando eu tô a fim e pronto. (extraído do episódio: “Periferia digital”) 2.6 Relações de interpelação e posicionamento 70 Conscientes de que no processo de estruturação das entrevistas há um processo de interpelação e posicionamento na relação entre entrevistador e entrevistado, analisamos aqui como se dão essas construções do lugar de fala dos entrevistados a partir da postura da entrevistadora/apresentadora Regina Casé e como os entrevistados assumem ou reconstroem esse lugar. Na série, além das falas serem editadas num momento posterior à edição, há duas edições simultâneas: a edição da câmera e a edição feita por Regina Casé. A primeira é realizada pela seleção dos quadros e sua articulação com o texto falado, podendo ser divididas em três categorias: metafóricas, imagens-sintoma e ilustrativas (que se dividem entre reafirmação do texto locutado ou “testemunha”). Já a edição realizada pela apresentadora surge sobre três formas: pergunta aberta (que seria aquela que menos fixa ou induz a resposta do entrevistado, por ser bastante genérica), a pergunta direcionada (quando a entrevistadora busca uma resposta curta e reafirmadora da própria fala) e o corte (quando a apresentadora interrompe o entrevistado para pontuar ou destacar algo que ela julga interessante). a) Imagens Sabendo que um dos diretores do Minha Periferia é um cineasta e que tem se destacado nas produções televisivas pela variação dos quadros e pelo apuro metafórico de suas construções, não é de se estranhar que essas características apareça materializadas na tela. De modo geral, a câmera capta ângulos alternativos (como por exemplo quando a apresentadora fala que vai buscar soluções encontradas lá em cima, na Bahia, e a câmera a filma a partir do teto, de cima para baixo), trabalha as construções dos quadros com bastante rigor e demonstra que, diferentemente das produções jornalísticas em geral, não há a intenção de se captar um “instante decisivo”, pois a maioria delas foi produzida anteriormente, algumas vezes ensaiadas (como o fechamento do primeiro episódio, quando quatro meninos aparecem junto da apresentadora para dizer “um, dois, três, quatro” para ilustrar quer cada show será localizado em uma periferia diferente) e poderiam ser, em geral, repetidas. 71 Imagens metafóricas: Este tipo de imagem guarda relação indireta com o texto locutado. Como exemplo, citamos uma cena do episódio “Regina Casé mostra a cultura da periferia”, quando a apresentadora está sobre uma pilha de tijolos que estão sendo enfileirados por um homem (supostamente um pedreiro) no momento em que ela fala que a periferia tem atuado por duas frentes na construção de seu lugar de fala: pela nova indústria do entretenimento e pelos movimentos sociais organizados, com viés político. Aqui é associada a construção do lugar de fala da periferia à colocação de um tijolo por vez em cena. Outro exemplo é dado quando Regina Casé fala da ascensão da periferia e do seu novo espaço de visibilidade, e ela surge na tela aos poucos, subindo um morro, cercada por crianças da favela. Aqui, associa-se o movimento de aparecer na tela com a crescente visibilidade que os sujeitos da periferia têm conquistado. Imagens-sintoma: Como já foi dito anteriormente, elas reafirmam uma representação anterior e estão associadas à tentativa de comoção. Como exemplo, citamos a utilização de imagens de arquivo do documentário “Falcão: meninos do tráfico” que apelam tanto para o conteúdo do documentário, quanto para a dramaticidade das imagens, que mostram meninos com cerca de 10 anos se drogando; a exibição de parte do vídeo produzido pelos meninos da Kabum! que tinha como tema uma chacina na qual foi assassinado um parente de um dos garotos do projeto; imagens do Cortejo Afro exibido no episódio “O batuque das periferias”, que é bastante similar às imagens gravadas do carnaval e remetem a uma prática identificada como nacional. Imagens ilustrativas: Este tipo de imagem é menos informativa que as demais, porque tem apenas duas funções: remeter a significados já bastante delimitados pelo texto locutado ou testemunhar a presença dos atores em cena e captar a performance deles. Como exemplo do primeiro caso, citamos as imagens panorâmicas das favelas e as imagens de fundo das entrevistas, 72 que mostram casas em tijolos, sem pintura, características das áreas de favela e do segundo caso, citamos aquelas em que Regina Casé aparece ao lado dos entrevistados, no mesmo quadro, como acontece, muitas vezes, no episódio “Minha Periferia”, quando ela aparece entre dois garotos. b) Edição das falas Aqui analisamos de modo mais sistemático a interpelação dos entrevistados, a construção do lugar deles e a edição das falas operada pelas intervenções da entrevistadora. Este destaque se deve à tentativa de apreender as características performáticas da apresentadora que contribuem para a construção discursiva da série. Pergunta aberta: Esse tipo de pergunta, embora preveja uma resposta, dá espaço para o entrevistado ampliar a resposta, inclusive para abordar outros termos. Nesses casos, os entrevistados são raramente interrompidos pela entrevistadora. Elas aparecem, em geral, quando a entrevistadora pergunta sobre os projetos sociais aos fundadores e diretores, como por exemplo, quando ela pergunta à Gringo Cárdia e Lúcia Coelho sobre a fundação da ONG Spetáculu. RC ( para Gringo): Quanto tempo tem o projeto? Gringo Cárdia (diretor da Spetáculo Kabum!): Seis anos já. A gente pensou em fazer uma escola ligada a alguma coisa que a gente trabalha já, porque ficava mais fácil de transitar. A gente usa arte para os meninos se descobrirem, mas a gente tem um enfoque muito certo assim no trabalho. Os meninos precisam trabalhar. A escola funciona assim: dois anos em média, a partir de um ano e meio ele já começa a ter estágios e depois desse um ano e meio a gente já começa a indicar alguns clientes e eles já se organizam como cooperativa. ( extraído do episódio: “Periferia digital”) Pergunta fechada: Esse tipo de pergunta prevê uma resposta curta e não oferece margem para divagações. Nesta série Regina Casé as utiliza com bastante freqüência para confirmar a própria fala. Como exemplo citamos: RC: você é nascido e criado na favela. Você tem orgulho de ser da favela? 73 Dedesso: eu tenho orgulho de ser da favela. (extraído do episódio: “Regina Casé mostra a cultura da periferia”) Corte: Esta prática é recorrente em programas de entrevista “ao vivo”, nos quais o entrevistador controla o tempo de fala de cada entrevistado para não ultrapassar a duração de cada bloco ou em programas de entrevistas mais humorísticos, nos quais é importante manter o sentido truncado das falas para que se possa ironizar ou satirizar a fala do entrevistado. No Minha Periferia esta prática é utilizada para que a fala do entrevistado “encaixe” com o texto da apresentadora, assim como no caso anterior. Citamos como exemplo: RC: nossa, mas que milagre! Acho que é a primeira entrevista que eu faço até hoje que tem isso...primeiro uma casa que tem mãe cuidando, porque só tem avó cuidando essa hora, pai que é o artigo mais raro que eu conheço na favela. E ele dorme com quem? Adriana: ele dorme sozinho ou, de vez em quando...(Regina Casé corta e não deixa ouvir o complemento: com o sobrinho) RC: outra raridade! Você tem um quarto só seu. (extraído do episódio: “Minha Periferia”) 2.7 Deslocamentos Mesmo inscrito em uma cadeia produtiva rigorosa e bem estruturada, que busca roterizar a fala do entrevistador e editar de modo mais elaborado possível as falas dos entrevistados — sempre atentos para a coerência narrativa da série — o Minha Periferia não se apresenta como um produto homogêneo, visto que ao longo dos episódios analisados foi percebido que havia dificuldades de se fechar conceitos e posições acerca da temática da série e, além disso, como as entrevistas acontecem num ambiente interativo e dialógico, há processos de interpelação e posicionamento que permitem que os sujeitos “deslizem” e os lugares antes estabelecidos se tornem móveis devido à fluidez das relações. Com isso, pudemos observar que houve deslocamentos que evidenciam as contradições dessas tentativas de se “fechar” conceitos. É importante destacar que na interação há momentos em que o lugar de fala dos entrevistados é construído pela apresentadora, mas eles se mostram resistentes em se posicionar, pois deslocam o sentido daquilo que foi dito por ela ou subvertem a cena, 74 negando o lugar construído de modo mais incisivo. Um exemplo bastante claro deste deslocamento aconteceu no episódio “Minha Periferia” quando Regina Casé entra em um bar da periferia, chamado “Bar da Regina” e pergunta sobre quem seria a sua xará. Lá dentro ela conhece uma senhora que é moradora do Santa Marta há muitos anos. A partir disso, a apresentadora supõe que ela conhece os moradores das redondezas, já que ela identifica Anderson, e começa a entrevistá-la, perguntando se conheceria Ivan também. Acompanhemos o diálogo: RC: olha, ela conhece geral. Ivan: ué aqui todo mundo conhece todo mundo? RC: e esse menino aqui ( aponta pro Ivan) mora onde? Regina: esse ai eu não sei, acho que ele não é daqui da favela não. RC: porque você acha que ele não é da favela? Regina: Porque eu não conheço ele. RC: só por isso? não é porque ele tem cara de rico? Regina: não porque às vezes a pessoa tem cara de rico e é pobre. RC: as aparências enganam. Regina: é RC: por exemplo, a gente achou que ele, porque tinha cara de rico, não ia saber tocar caixa, e ele arrebentou. Regina: é? Essa aqui toca violino, você sabia que ela toca violino? RC: Fala sério Ivan, você ia olhar pra ela e achar que ela sabe tocar violino, música clássica? Aqui percebemos que a entrevistada se nega a aceitar o papel conferido a ela, de uma pessoa que julgaria alguém pelas aparências (principalmente pelo critério: “cara de rico”) e também surpreende Regina Casé ao apresentar uma menina que toca violino e mora na favela. A apresentadora não esconde a surpresa e tenta transferir essa mesma sensação para Ivan (contudo, não sabemos o posicionamento dele, pois a cena é cortada neste momento). Além disso, Regina Casé situa como improvável o fato de Ivan saber tocar caixa e da menina tocar violino e situa esta impressão que só foi enunciada por ela, como uma impressão generalizada, ao usar a expressão “a gente”. Assim, percebemos que o envolvimento com as práticas culturais ainda é situado, em alguns momentos, mais próximo de uma “pluralidade de ordens de legitimidade”, se distanciando da proposta do Minha Periferia que é apresentar um quadro de “heterogeneidade de ordens de legitimidade” e um contexto de valorização das práticas culturais da periferia. 75 Aliás, vale destacar que a apresentadora, em diversos momentos, situa certas relações sociais conforme interpretações tradicionais, causando ruídos no sentido geral que a série se propõe a representar — que é um mundo em que as práticas culturais são inscritas nas relações mais corriqueiras e também um ambiente flexível e atento às mudanças sociais, sem se ater a percepções tradicionalistas. Como já foi citado acima, ela já tem uma perspectiva pré-concebida da estrutura familiar da periferia e considera um “milagre” Anderson morar com os pais. Outra naturalização das posições que cada um deveria ocupar acontece no início do episódio “Minha Periferia”, quando Regina Casé diz que não precisa dizer que Anderson mora na favela e que Ivan mora no “asfalto” e que eles mantêm uma relação de distanciamento no convívio social. RC: O Anderson trabalha como boleiro no clube onde o Ivan é sócio. Ou seja, o Anderson pega as bolas que o Ivan perde. Eu não preciso dizer que o Anderson mora na favela, que o Ivan mora no asfalto e que o Ivan nunca foi numa favela e que o Anderson nunca foi jogar videogame no apartamento do Ivan. Também no início deste episódio, a apresentadora diz que Anderson e Ivan são muito legais e destaca que o primeiro não é um “pivetinho abusado” nem o segundo um “playboyzinho babaca”, mas a ênfase dada a esta característica acaba por situar os garotos em um regime de exceção, reafirmando estereótipos precedentes. RC(abraçando os dois garotos): Tô louca pra começar essa visita e uma coisa já posso adiantar para vocês. O Anderson não é um pivetinho abusado e o Ivan não é um playboyzinho babaca. Os dois são muito legais. 2.8 O papel articulador de Regina Casé Sabemos que a estruturação narrativa do Minha Periferia envolve complexos processos de produção, roteirização, captação, entrevistas e edição, mas também entendemos que é imprescindível destacar o papel que Regina Casé desempenha nesta estrutura, pois além dela materializar no produto a “voz da mídia” dar-lhe corporalidade, ela organiza as entrevistas pela edição simultânea — conforme apresentado anteriormente —, se envolve na linguagem dos entrevistados e a sua presença no programa já indica o formato que se segue. Como a entrevistadora trabalha com programas que tratam da favela desde 1991 com um viés alternativo, espera-se que as produções realizadas por ela e sua equipe (além 76 da equipe de produção, destacamos o sociólogo Hermano Vianna e Guel Arraes) sejam mais próximas da temática da cultura, deslocando a perspectiva recorrente da violência. Deste modo, sua inscrição na série marca um lugar mais flexível, aberto e interessado naquilo que vem da periferia e de seus moradores. Com esta bagagem, a entrevistadora desenvolveu certas técnicas de aproximação dos entrevistados, que se dão por características subjetivas, como simpatia e bom humor, e pela aproximação da linguagem. A fala de Regina Casé é marcada por gírias e expressões que são usadas pelos moradores de periferia e isto indica, na relação entrevistadora/entrevistado, que eles compartilham a mesma linguagem e o lugar de interação é mais acolhedor que o criado pelo distanciado, formal e objetivo jornalismo tradicional. Percebemos então que Regina Casé não aparece nesta produção apenas como profissional, mas como uma marca indicativa da formatação do produto final, o Minha Periferia. Avaliando então o papel dela como “voz da mídia” na série percebemos que ela não se comporta somente como entrevistadora durante os episódios analisados. Mesmo que o produto midiático se ofereça como uma série de entrevistas, Regina Casé transcende os papéis típicos de uma entrevistadora — de tradutora, inquiridora, provocadora e comentarista — e agrega a ele o papel de articuladora de falas e apresentadora. Ela encaixa as falas dos entrevistados de modo que seus enunciados sejam reafirmados ou ilustrados. Isso pode ser percebido, por exemplo, quando ela convida as crianças da periferia a cantarem com ela o refrão da música do Mc Marcinho, no episódio “Regina Casé mostra a cultura da periferia” para comprovar que ele é conhecido em outras periferias além da carioca. E se mostra como apresentadora ao tentar captar a atenção dos telespectadores, se dirigindo especificamente a eles (como, por exemplo, no episódio “Periferia digital” quando, ao final, ela convoca os telespectadores a procurarem uma ONG para participarem). É a partir dessa confluência de papéis para a edição das falas que apreendemos o modo de inserção da apresentadora em cena e a centralidade de sua performance para que sejam organizados os discursos no Minha Periferia. Percebemos também que a maioria das falas dos entrevistados é editada de modo a exemplificar o texto locutado dito por ela ou segundo o encadeamento dado pela enunciação de Regina Casé, que nem sempre é redigido no formato de pergunta. Esta forma 77 de apresentação de uma série de entrevistas difere dos formatos tradicionais tanto por abolir a estrutura pergunta/resposta quanto por editar as falas dos entrevistados como diálogos subseqüentes a uma introdução feita por ela. Assim, a estruturação desta série se constitui como uma nova acepção do formato tradicional dos programas de entrevistas. Esse tipo de construção pode ser caracterizada como mais encadeada, com ritmo mais ágil, ausência de “espaços brancos” — típicos de entrevistas tradicionais “ao vivo” — além de maior controle das falas dos entrevistados (visto que passam por várias edições) e contextualização das falas dos entrevistados por uma fala introdutória do apresentador/ entrevistador/ articulador. Apontamentos Finais Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever. (Clarice Lispector) Optamos por dividir as nossas percepções acerca das questões tratadas nesta pesquisa em dois campos: o que se refere aos conceitos tratados na série (que se refere às problematizações dos conceitos de centro e periferia, o questionamento do papel das ONGs envolvidas com as práticas culturais locais e a discussão da inscrição das práticas culturais num panorama de legitimação mais amplo) e a formatação do Minha Periferia. Sobre os conceitos de centro e periferia, percebemos que eles não operam para descrever e tratar o espaço urbano nem para fornecer bases para se pensar o lugar de fala dos entrevistados, pois a polarização das relações decorrentes deste tipo de visão dificulta a compreensão das relações interativas entre os sujeitos de “centro” e de “periferia”, situando-os em âmbitos opostos e fazendo com que um repertório comum, necessário para 78 as interações sociais, não seja identificado. Além disso, com essa divisão, reforçam-se as percepções acerca das regiões de favelas como o lugar “da falta” e seus moradores como “despossuídos” e pobres tanto no que se refere às condições materiais quanto ao capital cultural. Quando são tratadas as questões sobre o papel das ONGs percebemos que a série, ainda que não aprofunde as discussões sobre esta temática, defende que estas organizações devam ser percebidas como importantes para a ampliação das oportunidades de inserção no mercado de trabalho. Isso promove uma contraposição entre a noção de que há jovens “em situação de risco” que devem ser socializados e a inscrição de alguns entrevistados voluntários e fundadores de ONGs que negam este papel. Deste modo, com a reafirmação da voz do produtor midiático e o reforço pela fala dos entrevistados, percebemos que há a intenção de que estas organizações sejam vistas como parte dos processos de organização política e social das comunidades sem, no entanto, serem um fator motivador — talvez possamos pensar em ação catalisadora das ONGs, mas não em ação motivadora, responsável pela socialização dos envolvidos. Com isso, as ONGs são vistas como entidades que contribuem sim para a inserção dos jovens no mercado de trabalho por meio dos programas de profissionalização oferecidos ou pelo engajamento juntos às práticas culturais da comunidade, mas não como responsáveis por alguma melhora das condições de violência ou como agentes de socialização da favela. Isto nos permite observar que os produtores da série estão atentos para as problematizações recentes no campo da política, no que se refere ao papel das ONGs e dos movimentos associativos na favela. Já sobre a valorização das práticas culturais dos moradores de periferia podemos observar que o Minha Periferia se reporta a um contexto de heterogeneidade das ordens de legitimidade, pois não as enquadra em ordens legitimistas tradicionais e também trabalha com a possibilidade de “tornar visto” aquilo que ocorre “nas periferias de todo o país”. Contudo, esta última perspectiva, apesar de poder ser compreendida num primeiro momento como louvável, traz as marcas de uma produção que pensa as relações entre “centro” e “periferia” como desconectadas, retratando esta movimentação como aquilo que acontece ao redor do centro, sem, no entanto, chegar a ele. Além disso, intrínseca a esta percepção polarizada está a compreensão de que a ordem das legitimidades e a valorização das práticas é uma questão que só ganha sentido quando se pensa as práticas culturais da 79 “periferia”. Sabendo, no entanto, que esta é uma questão que tem se imposto à sociedade e diz respeito a um panorama mais amplo que o concebido pela série. Discutindo agora a formatação do Minha Periferia, percebemos que é apresentado uma nova forma de se conceber a entrevista, tomando-a pela articulação e edição das falas de modo mais apurado. Aliás, vale destacar que em alguns momentos as falas dos entrevistados somente podem ser compreendidas a partir da introdução da apresentadora, o que confere centralidade à performance dela para se entender a lógica discursiva tecida. Aqui serão destacados dois méritos realizados na construção do Minha Periferia: a busca por novas representações imagéticas e o movimento de se ir até os moradores de favela. Estas características são ressaltadas porque a busca por novos quadros e novas representações, estabelecendo-se relações metafóricas com o texto falado, tende a evitar o uso de imagens já recorrentes quando se vai tratar dos moradores de favela e acaba-se por atualizar as representações destes sujeitos. Já o movimento de se ir até os moradores de favela para entrevistá-los demonstra que o contexto de fala é valorizado como componente do sentido e da tessitura da série. Também ao colocar a apresentadora Regina Casé como “representante das mídias” indica-se interesse em estabelecer uma relação mais próxima com os entrevistados (seja pela linguagem, seja pelo passado da apresentadora que tem certa familiaridade com as questões) e valorizar a articulação realizada por ela como importante para a composição do sentido. Entretanto, é também pela experiência dela como entrevistadora e dos mecanismos de edição simultânea da fala que ela demonstra mais claramente o seu papel e, por este movimento, que se apreende a intenção discursiva do produtor e o potencial de edição e roteirização dos mecanismos midiáticos. É, aliás, pela própria roteirização da série de entrevistas que observamos que a entrevistadora e a organização geral do Minha Periferia é pouco sensível aos deslocamentos sugeridos pelos entrevistados (principalmente os ligados à renomeação38) e as discussões que são propostas, como sobre o papel das ONGs, não são levadas a cabo, sendo esgotadas sem aprofundamento. 38 Exemplificamos esta situação a partir do diálogo de Regina Casé com Anderson no episódio “Minha Periferia”. Neste diálogo ela pergunta ao garoto como ele gostaria que se referisse ao seu bairro e ele diz: “Santa Marta”. No quadro seguinte, a entrevistadora apresenta o lugar a ser visitado por ela, Anderson e Ivan como “Morro Santa Marta”, desconsiderando a opção de nomeação dada por Anderson. 80 Por fim, em um balanço geral, destacamos a importância de se discutir na série a hierarquização das práticas culturais e apresentar, a partir de entrevistas e falas reafirmadoras da apresentadora, a cultura da periferia como válida e coerente com um contexto de heterogeneidade de ordens de legitimidade. Além disso, destacamos a importância de se propor um novo formato de estruturação de programas de entrevistas, por meio de novas técnicas de edição, encadeamento, enunciação e articulação das falas. Referências Bibliográficas ALVITO, Marcos. Um bicho-de-sete-cabeças. In. ZALUAR & ALVITO(orgs.).Um século de Favela. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas,1998. (p.181-208) BARBOSA, Andréa. Periferia, cinema e violência. Revista Sexta Feira, N° 8 Tema: Periferia. São Paulo: Editora 34, 2006. 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Produção: Central Globo de Jornalismo Núcleo: Guel Arraes Grupo de Produção: Pindorama Filmes Apresentação: Regina Casé Criação: Estevão Ciavatta (Pindorama Filmes), Hermano Vianna (antropólogo), Guel Arraes (produtor e diretor de cinema e televisão) e Regina Casé (apresentadora). Equipe de Produção: Imagens: João Carlos Nascimento, Roberto Carlos, Eduardo Mendes, Eustáquio Júnior, Álvaro Aníbal dos Santos, Maurício Jordy, Roberto Piva . Produção: Vladimir Carvalho, Willian Barreto,Liv Castro, Silvia Othoran, Emilene Silva, Iracema Marcondes, Mariana Pinheiro, Renata Moura. Direção de Fotografia: Fred Rangel, Joel Francisco, Estevão Ciavatta. Roteiro: Alberto Renault. Edição: André Pinto, Sérgio Meckler, Gian Carlo Bellotti. Efeitos Visuais: Cristiana Queiroga. 86 Sonoplastia: Leonardo Queyroi. Produção de Engenharia: Alfredo Campos. Assistente de Direção: Karen Barros, Mariana Reade, Lao de Andrade. Projeto: Central da Periferia Série de entrevistas Minha Periferia Veiculação: Fantástico, Rede Globo Programa do dia 23 de julho de 2006 Nome: Minha periferia: programa inaugural Duração: 6’12” Logomarca: sem logomarca Apresentação no Site: Regina Casé mostra a cultura da periferia Seguindo os exemplos de grupos culturais como Cufa e Afroreagge, diversas comunidade carentes do país estão usando todo tipo de arte para construir uma vida melhor Link de acesso ao vídeo: http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM436942-7823REGINA+CASE+MOSTRA+A+CULTURA+DA+PERIFERIA,00.html Projeto: Central da Periferia Programa: Minha periferia Veiculação: Fantástico, Rede Globo Programa do dia 3 de setembro de 2006 Nome: Mudanças sociais por meio da cultura Duração: 8’12” Apresentação no Site: Minha Periferia: as mudanças sociais por meio da cultura Regina Casé mostra o trabalho da Kabum, um centro de artes e espetáculos que ensina os jovens a difundir a cultura de sua região utilizando a tecnologia Logomarca: Na Periferia Link de acesso ao vídeo: http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM4581467823MINHA+PERIFERIA+AS+MUDANCAS+SOCIAIS+POR+MEIO+DA+CULTURA, 00.html Projeto: Central da Periferia Programa: Minha periferia Veiculação: Fantástico, Rede Globo Programa do dia 10 de setembro de2006. Nome: O batuque das periferias Duração: 7’21” 87 Apresentação no Site: O batuque nas periferias Regina Casé discute com jovens de comunidades como projetos sociais podem mudar a vida de moradores da periferia. Um exemplo é a banda pernambucana Batuque Usina Logomarca: Na Periferia Link de acesso ao vídeo: http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM4620907823-O+BATUQUE+NAS+PERIFERIAS,00.html Projeto: Central da Periferia Programa: Minha periferia Veiculação: Fantástico, Rede Globo Programa do dia 17 de setembro de 2006 Nome: Minha Periferia: gente que faz arte Duração: 7’08” Apresentação no Site: Minha Periferia: gente que faz arte Grupo Balé de Rua, de Uberlândia, levou a arte da dança, através de oficinas, para as ruas mais violentas da cidade. O principal objetivo da companhia é oferecer oportunidade às pessoas carentes Logomarca: Na Periferia Link de acesso ao vídeo: http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM4733917823-MINHA+PERIFERIA+GENTE+QUE+FAZ+ARTE,00.html Projeto: Central da Periferia Programa: Minha periferia Veiculação: Fantástico, Rede Globo Programa do dia 24 de setembro de2006. Nome: Periferia Digital Duração: 6’03” Apresentação no Site: Periferia digital No Rio de Janeiro, o intercâmbio entre a periferia e outras áreas da cidade faz com que iniciativas como uma escola de espetáculos, de arte e de tecnologia se desenvolva Logomarca: Na Periferia Link de acesso ao vídeo: http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM4846507823-PERIFERIA+DIGITAL,00.html Projeto: Central da Periferia 88 Programa: Minha periferia Veiculação: Fantástico, Rede Globo Programa do dia 10 de dezembro de 2006 Nome: Minha Periferia Duração: 10’04” Apresentação no Site: Minha periferia Um menino de classe média visita a favela, pela primeira vez, com Regina Casé e um morador, um menino que é boleiro na academia onde o primeiro aprende tênis. Logomarca: Minha Periferia Link de acesso ao vídeo: http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM5994657823-MINHA+PERIFERIA,00.html Linha Editorial do programa: Texto de apresentação disponível no site http://redeglobo.globo.com/Centraldaperiferia/0,30514,5625-p-237229,00.html redigido por Hermano Vianna, antropólogo, e um dos criadores do programa “Central da Periferia”. Central da Periferia Não tenho dúvida nenhuma: a novidade mais importante da cultura brasileira na última década foi o aparecimento da voz direta da periferia falando alto em todos os lugares do país. A periferia se cansou de esperar a oportunidade que nunca chegava, e que viria de fora, do centro. A periferia não precisa mais de intermediários (aqueles que sempre falavam em seu nome) para estabelecer conexões com o resto do Brasil e com o resto do mundo. Antes, os políticos diziam: "vamos levar cultura para a favela." Agora é diferente: a favela responde: "Qualé, mané! O que não falta aqui é cultura! Olha só o que o mundo tem a aprender com a gente!" De um lado, há milhares de grupos culturais, surgidos na periferia, que em seus trabalhos juntam - de formas totalmente originais, e diferentes a cada caso - produção artística e combate à desigualdade social. Os exemplos da CUFA (Central Única das Favelas), que produziu o documentário Falcão, e do Afro Reggae, que inventou projeto para dar aulas de cultura para policiais, são apenas os mais conhecidos. Na maioria das periferias onde chego, em todas as cidades brasileiras, mesmo bem longe das capitais, encontro grupos muitíssimo bem organizados, com propostas de ação cultural cada vez mais supreendentes. Para citar apenas mais alguns: a Fundação Casa Grande, de Nova 89 Olinda (região do Cariri, interior do Ceará), com suas equipes de rádio e TV formadas por crianças e adolescentes; a ONG Altofalante, do Alto José do Pinho, Recife, com suas lições de rádio e hip hop; o Instituto Oyá, de Salvador; a Companhia Balé de Rua, de Uberlândia... Há muito mais. Do outro lado, assistimos também ao nascimento de indústrias de entretenimento popular que já produzem os maiores sucessos musicais das ruas de todo o país sem mais depender de grandes gravadoras e grandes mídias para construir sua rede de difusão nacional. É o caso do funk carioca, do forró eletrônico cearense (as banda têm DVD, sugerindo o surgimento de uma indústria audiovisual que não está baseada em recursos captados pela Lei Rouanet), do tecnobrega paraense, do arrocha baiano, do lambadão cuiabano, da tchê music gaúcha. Todas essas músicas são produzidas na periferia para a periferia, sem passar pelo centro. O centro apenas reclama da sua falta de qualidade musical, mas não pode mais usar o argumento de que o povo está sendo enganado por uma indústria cultural hegemônica, já que a tal indústria cultural hegemônica não tem a menor idéia do que está se passando - e parece ter perdido totalmente o contato com o que realmente faz sucesso - na periferia. O tecnobrega paraense, por exemplo, desenvolveu um novo modelo de negócios fonográficos que não precisa mais de gravadoras para se desenvolver. As músicas saem direto dos computadores dos estúdios periféricos e vão parar nos camelôs e no circuito das festas de aparelhagem (que animam as noites de fim de semana dos subúrbios de Belém, com suas toneladas de equipamento de som e luz hoje com controle totalmente digital). Laptops gravam tudo o que estiver tocando e os dançarinos podem comprar o CD - com tudo que acabaram dançar - na saída da festa. O aparecimento de usos locais para as novas tecnologias é cada vez mais veloz. O pano de fundo para essa grande transformação das periferias não é apenas brasileiro, mas reflete uma tendência global. A população urbana do mundo hoje é maior que toda a população do planeta em 1960. O número de habitantes das grandes cidades cresceu vertiginosamente num período em que a economia da maioria desses centros urbanos estava (e continua a estar) estagnada, sem gerar novos empregos. Mesmo assim a migração para as cidades não parou, e hoje - pela primeira vez na história da humanidade há mais gente vivendo em cidades do que no campo. Calcula-se que mais de um bilhão de 90 pessoas vivam atualmente em favelas de todos os países (os "chawls" da Índia, os "iskwaters" das Filipinas, os "baladis" do Cairo, as "colonias populares" do México, as "vilas" de Porto Alegre, os "aglomerados" de Belo Horizonte, e assim - quase infinitamente - por diante). Cerca de metade dessa população favelada tem menos de vinte anos. Quase todo mundo com trabalho informal. É muita gente, jovem. Governos e grande mídia não sabem o que fazer diante dessa situação. Muitas vezes não sabem nem se comunicar com essa "outra" população, que passa a ser invisível para as estatísticas oficiais, a não ser para anunciar catástrofes. Essa gente toda vai fazer o que com toda sua energia juvenil? Produzir a catástrofe anunciada? É só isso que lhe resta fazer? Sumir do mapa para não causar mais problemas para os ricos? Em lugar de sumir, as periferias resistem - e falam cada vez mais alto, produzindo mundos culturais paralelos (para o espanto daqueles que esperavam que dali só surgisse mais miséria sem futuro), onde passa a viver a maioria da população dos vários países, inclusive do Brasil. Esses mundos culturais periféricos não são homogêneos. O pessoal dos grupos culturais politizados (os que usam a cultura como arma contra as injustiças sociais) geralmente tem horror aos produtos bregas das novas indústrias do entretenimento periférico, considerado alienado, alienante e reprodutor de desigualdades. As duas visões de mundo parecem incompatíveis, inconciliáveis, mas acabam produzindo, nas mesmas favelas - mas cada uma a seu modo, as novidades mais vitais (e nisso não há um julgamento estético - apesar de na minha opinião essas novidades muitas vezes serem mais interessantes também esteticamente) da cultura brasileira como um todo. A própria idéia de inclusão cultural tem que ser repensada - ou descartada - diante dessa situação. Quando falamos de inclusão, partimos geralmente da suposição que o centro (incluído) tem aquilo que falta à periferia (que precisa ser incluída). É - repito - como se a periferia não tivesse cultura. É como se a periferia fosse um dia ter (ou como se a periferia almejasse ter, ou seria melhor que tivesse) aquilo que o centro já tem (e por isso pode ensinar a periferia como chegar até lá, para o bem da periferia). É como se as novidades culturais chegassem exclusivamente pelo centro, ou fossem criadas no centro, e lentamente se espalhassem - à custa de muito esforço civilizador - em direção à periferia. Nos exemplos acima vemos que a periferia não esperou que o centro apresentasse as novidades. 91 Sem que o centro nem notasse, inventou novas culturas (muitas vezes usando tecnologia de ponta) que podem muito bem vir a indicar caminhos para o futuro do centro, cada vez em pânico diante do crescimento incontrolável da periferia. Quando viajo pelo Brasil, fora das zonas ricas e oficiais do eixo Rio-São Paulo (mas muitas vezes a apenas poucos passos dos seus centros de poder), fico sempre com a seguinte impressão: o minúsculo país cultural oficial, mesmo o retratado nos programas mais "populares" da mídia de massa, parece uma pequena e claustrofóbica espaçonave, em rota de fuga através de buracos negros, cada vez mais afastado do país real, da economia real, da cultura da maioria. Do lado de fora (na realidade em todo lugar), as periferias das cidades inventam com velocidade impressionante novos circuitos culturais, e novas soluções econômicas por mais precárias ou informais que sejam - para dar sustentabilidade para essas invenções. Presto atenção especial nos circuitos festivos, que sempre atraem multidões todos os fins de semana. Hoje, quase todas essas festas - conseqüência também do descaso do poder público e do desprezo dos bem-pensantes - proliferam na informalidade (quando não são literalmente criminalizadas, como é o caso dos bailes funk do Rio). De certa forma, essa economia artística informal é produto de uma inclusão social conquistada na marra, quando a periferia deixa de se comportar como periferia, ou deixa de conhecer o "seu lugar", o lugar que o centro desejava que para sempre ocupasse (o lugar daquele que sempre espera ser incluído, que sempre acha que é do centro que virá sua libertação). O Brasil vai ter que se acostumar com essa "inclusão" forçada, de baixo para cima, feita assim aos trancos e barrancos. Enquanto isso o centro parece não conseguir deixar de lado esta nostalgia perversa de um país que "perdemos", quando os pobres e seus costumes "bregas" eram inaudíveis, a não ser num ou noutro livro de Gilberto Freyre (e Jorge Amado, é claro), ou num ou noutro filme de Glauber Rocha, ou numa noitada no Zicartola. O centro quer que a retirante nordestina ainda ande com vestido de chita, e não com shortinho e top de lycra, como manda o uniforme atual das periferias brasileiras... Como cantam os Racionais MCs, periferia é periferia, em qualquer lugar. Essa letra é mais verdadeira do que nunca. Cada vez mais, a periferia toma conta de tudo. Não é mais o centro que inclui a periferia. A periferia agora inclui o centro. E o centro, excluído da festa, se transforma na periferia da periferia. 92 O Central da Periferia quer colocar todas essas questões em discussão, trazendo essa realidade periférica - e suas festas, e seus problemas - para a TV (mesmo tendo a humildade de saber que a cultura da periferia não precisa mais da TV para sobreviver). O nome do programa já é uma provocação, já abre o debate: hoje a fronteira entre o centro e a periferia - mesmo que o centro não queira, e que invista no apartheid cultural, no aprofundamento do abismo entre um lado e outro - rebola mais freneticamente que a egüinha pocotó do funk do MC Serginho. E queremos que rebole ainda mais. O Central da Periferia não vai descobrir nada, não vai revelar nenhum novo talento desconhecido. A grande maioria das atrações musicais do programa é formada por ídolos de massa, já consagrados pelas multidões das periferias. Ou são projetos sociais que já influenciam decisivamente a vida de suas favelas, e contam com apoios internacionais. Mas que em sua maioria nunca apareceram na TV em rede nacional. O Central da Periferia não quer falar por esses ídolos e projetos periféricos, mas sim abrir espaço para amplificar as múltiplas vozes da periferia, para que elas conversem finalmente com o Brasil inteiro. Você não precisa gostar de nada que o Central da Periferia vai mostrar. Você só não pode ignorar que isso tudo está acontecendo, e que essa é a realidade cultural da maioria, em todo o Brasil. VIANNA, Hermano. Central da Periferia. Retirado do http://redeglobo.globo.com/Centraldaperiferia/0,30514,5625-p-237229,00.html Acessado dia: 15/11/2007. site: 93