resenhas
Meandros de uma guerra colonial
Angelo Alves Carrara
Guerra e pacto colonial.
A Bahia contra o Brasil
holandês (1624-1654)
Wolfgang Lenk
Alameda/FAPESP
482 páginas, R$ 70,00
(preço estimado)
92 | maio DE 2013
levantada a história do exército e da fiscalidade na
Bahia durante as invasões holandesas. O segundo
capítulo explora a relação do exército com a sociedade baiana, buscando comparar a formação
militar das ordenanças da Bahia à infantaria regular deixada em Salvador para a defesa contra
as investidas do holandês. O autor destaca a associação entre militares e moradores.
O capítulo terceiro estuda os meios pelos quais
o financiamento foi levado a efeito pela Coroa. O
socorro do Brasil é visto do ponto de vista da política de Lisboa, seja durante o governo filipino
de Portugal, seja durante a guerra de Restauração. Aqui um dos pontos nevrálgicos do trabalho:
está-se diante de um tesouro régio fortemente
comprometido até o final da união ibérica em conflitos na Alemanha, na Saboia, em Flandres, bem
como na Índia e na África; e a partir de 1640, com
a disputa pela própria autonomia perante Castela.
No quarto capítulo debate-se o financiamento do
exército e da defesa na colônia, com ênfase sobre
a tributação e demais políticas de direcionamento
de recursos para a defesa: os donativos, as fintas,
os empréstimos. Este talvez seja o capítulo em que
as relações entre fiscalidade e guerra mostram-se
mais claras: as reações da sociedade colonial ao
incremento do fisco e seus reflexos nas relações
com o governo e o Senado da Câmara de Salvador.
Por fim, caracteriza-se esta obra pelo esforço
de consulta e sistematização das informações em
uma base documental variada. Merece destaque
a documentação manuscrita, além das dezenas de
fontes publicadas, como as atas e cartas da Câmara
de Salvador e a coleção Documentos Históricos da
Biblioteca Nacional: o Arquivo Histórico do Município de Salvador, o Arquivo Histórico Ultramarino,
o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o Arquivo
Público do Estado da Bahia, na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Biblioteca do Palácio da Ajuda.
A pertinência do tema, o rigor da análise e a
inequívoca qualidade das fontes tornam esta obra
leitura obrigatória a todos quantos se dediquem
à história da colonização no Brasil.
Angelo Alves Carrara é professor de história econômica na
Universidade Federal de Juiz de Fora e pesquisador do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
eduardo cesar
G
uerra e pacto colonial. A Bahia contra o
Brasil holandês (1624-1654) corresponde à tese de doutoramento de Wolfgang
Lenk apresentada ao Instituto de Economia da
Unicamp, sob orientação do professor José Jobson de Andrade Arruda. Seu objeto, as invasões
holandesas da Bahia e de Pernambuco que ameaçaram por três décadas o domínio português
na América. O primeiro aspecto inovador que
merece atenção do leitor é o fato de se buscar
compreender as relações entre a Fazenda Real
e a açucarocracia baiana. O argumento do autor
é o de que a vitória portuguesa sobre os invasores deveu-se a elementos internos a sua colônia,
em particular o levante de senhores de engenho
pernambucanos contra a Companhia Holandesa
das Índias Ocidentais. Em apoio a essa tese, Lenk
assevera que a política adotada para o governo da
Bahia permitiu que sua defesa fosse financiada
pela própria economia colonial. A esse respeito
o autor assinala duas áreas que requerem uma
reflexão mais detida.
Em primeiro lugar, em razão da importância da
participação dos colonos na guerra em nome da
Coroa de Portugal, analisar os limites possíveis de
tal envolvimento. Já do ponto de vista militar, havia problemas específicos na disposição das forças
armadas na colônia. Como muito acertadamente
destaca Lenk, a colônia já vivia diariamente sua
guerra particular: a de reprodução da ordem escravista, entre a senzala e o engenho, para além
das novidades trazidas com o recrudescimento
das disputas entre as potências coloniais europeias e com a invasão holandesa, que resultou na
reformulação da defesa da colônia segundo os
parâmetros da guerra seiscentista (confronto de
posições fixas, de cercos e baluartes, de infantaria; alistamento e uniformização do combatente,
por exemplo). O senhor de engenho era “sócio da
empresa militar (em muitas ocasiões como comandante de ordenanças); os regimentos exigiam-lhe
o armamento, o próprio edifício era tomado por
uma fortificação”. Em síntese, “o policiamento do
trabalho escravo foi uma extensão da organização
militar da conquista do litoral”.
Mas, para Lenk, ao lado dos itens associados à
guerra há o da fiscalidade. No primeiro capítulo é
Um corpo a corpo com ideias de Candido
Adélia Bezerra de Menezes
C
Ficção e ensaio.
Literatura e história
no Brasil
Maria Célia Leonel e
José Antonio Segatto
EdUFSCar
225 páginas, R$ 29,00
om o propósito explícito de travejar litera- Formação, embasada na noção de “sistema”: foi
tura e história na mesma visada crítica, o no século XVIII, com o Arcadismo, que em solo
livro de Maria Célia Leonel e José Antonio pátrio uma literatura se configura.
Segatto abarca uma gama rica de assuntos, de
Retomo as ideias de Antonio Candido: no
Machado a Euclides, a Guimarães Rosa, Chico momento em que se constela um conjunto de
Buarque, Silviano Santiago e Moacyr Scliar – produtores literários (Autor), um conjunto de
para culminar com um ensaio reverentemente receptores (Público – que lê/ouve) e um veícupolêmico sobre a Formação de Antonio Candido. lo transmissor (Obra), numa continuidade de
Com efeito, nas competentes resenhas sobre ca- tradição, as produções literárias adquirem cada obra e cumprindo o prometido, os autores mo- racterísticas orgânicas de sistema – e isso aconbilizam vasta erudição; mas é na
teceu antes da Independência,
“crítica da crítica” que radicam
antes da organização do Estado
os pontos nevrálgicos. É o caso
nacional, constituindo um mode “Alegoria e política no sertão
mento de formação da literatura
rosiano”, abordando ensaios que
brasileira, vista como processo.
Autores mobilizam
propõem uma leitura históricoNa sequência, a reflexão de
vasta erudição,
-política do Brasil. Questionando
Leonel e Segatto avança por
a posição de W. Bolle [grandeserum outro viés: admitindo numa
mas é na crítica
tao.br. São Paulo, Duas Cidades,
“digressão” a ideia de sistema,
da crítica que
Editora 34, 2004], que, na linha
contestam que a literatura forda historiografia alegórica de
mada no século XVIII seja “do
radicam os pontos
Benjamin, afirma que o Grande
Brasil” (que não existia), mas tão
nevrálgicos do
sertão: veredas pode ser lido cosomente “de Vila Rica”. Mas, semo um “Retrato do Brasil”, Leoguindo esse raciocínio, não se
livro de ensaios
nel e Segatto contestam a ideia de
poderia falar em Descoberta do
que o “sistema jagunço” repreBrasil, pois em 1500 o país ainda
senta as estruturas atuais do país. Mas: será que não existia... Quanto a Vila Rica, o que nela se teos episódios do crime organizado em São Paulo e cia configura, nos termos de Bourdieu, um campo,
no Rio, o massacre do Carandiru ou o filme Tro- necessariamente delimitado, dentro daquilo que
pa de elite não mostrariam – e na mais estridente mais tarde viria a ser a nação; é só na evolução que
atualidade – o “sistema jagunço” em ação?
o campo vai se estender.
Vamos ao capítulo “Formação da literatura e
Várias objeções eles ainda elencam, desmeconstituição do Estado nacional”, focando o gran- recedoras de uma vida literária nas Minas. A
de livro de Antonio Candido, Formação da lite- historiadora Laura de Mello e Souza, no livro
ratura brasileira. Momentos decisivos [São Paulo, Cláudio Manuel da Costa [São Paulo, CompaMartins Ed., 2 v., 2ª. ed.]: o intento dos autores é nhia das Letras, 2011], provê dados instigantes
discutir e redefinir o marco histórico da literatura sobre essas questões – também presentes, aliás,
nacional: ela começaria a ser criada na década de ao longo da Formação. Enfim: tudo fica cristali1830, com a constituição de um Estado nacional. no se, em vez de nos atermos aos Prefácios e à
“Se não havia país, Estado nacional, como poderia Introdução, mergulharmos nas páginas em que
haver literatura brasileira”? – perguntam – para somos confrontados com a força das ideias de
concluir: “Talvez fosse mais plausível afirmar que, Antonio Candido, no corpo a corpo com as obras,
até o século XVIII, o que havia era uma incipien- analisadas em seu contexto.
te produção literária colonial portuguesa e que,
de meados desse século até as primeiras décadas Adélia Bezerra de Meneses é professora de teoria literária.
continua vinculada à Pós-graduação da USP e Unicamp.
do XIX, houve uma espécie de pré-história da Aposentada,
Dentre outros livros, é autora de Cores de Rosa. Ensaios sobre
literatura brasileira”. Contestam assim a tese da Guimarães Rosa (Ateliê, 2011).
PESQUISA FAPESP 207 | 93
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