Title Author(s) Journal Issue Date Type Viva, paixão e morte da literatura indo-portuguesa Machado, Everton V. Encontros Lusófonos, (12) 2010-09-30 紀要/Departmental Bulletin Paper Text Version 出版者/Publisher URL Rights http://repository.cc.sophia.ac.jp/dspace/handle/123456789/169 60 【論文】 Vida, paixão e morte da literatura indo-portuguesa Everton V. Machado1 A literatura chamada “indo-portuguesa”, fruto de quatro séculos e meio de presença colonial portuguesa na Índia (1510-1961), está envolta num dos mais curiosos fenômenos. Primeiro, pelo fato de uma língua falada por uma minoria2 constituir um corpus de obras (entre poesia, conto, romance, crítica e historiografia) numericamente importante. Segundo, por não ter sobrevivido – ao contrário de outras literaturas praticadas em contextos coloniais (na língua do colonizador) – ao processo de descolonização, podendo-se contar nos dedos os autores goeses relevantes a escreverem em português após a integração de Goa na União Indiana em 1961. A literatura goesa de língua portuguesa parece, deste modo, ser o único caso que confirma a precipitada (por razões óbvias) tese de Albert Memmi enunciada em finais dos anos 1950, segundo a qual as literaturas colonizadas de línguas européias, visto a força dos movimentos de libertação nacional naquela altura, estavam condenadas a morrer. A literatura indo-portuguesa se enquadra perfeitamente nas causas sugeridas para o desaparecimento de tais literaturas: as novas gerações, nascidas num ambiente de liberdade, escreveriam espontaneamente em sua língua reencontrada ou então passariam os escritores a pertencerem totalmente à literatura metropolitana3. Ora, em Goa, o concanim, a língua nativa do lugar, dera a volta por cima após a partida dos portugueses em 1961, e os escritores locais de língua portuguesa sempre tiveram dificuldade em formar um campo literário próprio, pelo motivo de produzirem as suas obras na órbita da literatura portuguesa. As obras mais significativas da literatura indo-portuguesa foram originalmente publicadas em Portugal4 (onde, aliás, circularam melhor que na Índia), e os seus autores, à exceção de um ou outro, foram viver na metrópole. A figura de um Orlando da Costa (poeta, romancista e dramaturgo), já por si só comodamente instalado na história da literatura “portuguesa” como integrante da última fase 1. 2. 3. 4. Pesquisador de pós-doutorado no Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (bolsista da Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal). Doutorou-se em Literatura Comparada pela Sorbonne (Universidade de Paris IV) com uma tese sobre o primeiro romance indo-português, Os Brahamanes de Francisco Luís Gomes e ensinou literatura e civilização brasileiras na Universidade Lumière Lyon 2. De acordo com um censo realizado em 1960, apenas 3,5% da população de Goa (incluídos aí os portugueses a viverem na colônia) falavam português. Cf. Albert Memmi, Portrait du colonisé (précédé de) Portrait du colonisateur, Paris, Gallimard,“Folio actuel”, 2006, p. 128. A edição original é de 1957 (Coréa). Salvo Jacob e Dulce de Gip, de que falarei adiante e que obteve um sucesso considerável em Goa, tendo merecido uma tradução em concanim e outra em inglês. 17 do movimento neo-realista, fecha o círculo iniciado por Francisco Luís Gomes – o autor do primeiro romance indo-português –, ambos tendo sido devedores mais da cultura portuguesa do que da cultura indiana, ainda que – como todo goês educado em ambiente cristão e europeu – “sob o signo duma rotura”, para usar as palavras de Eufemiano de Jesus Miranda que bem definem a condição do escritor indo-português5. Rotura que se explica, naturalmente, pela delicada relação desses goeses com o universo ancestral hindu. Não faz muito a morte levou três contistas, aparentemente os derradeiros escritores goeses de língua portuguesa a residirem em Goa. Um Agostinho Fernandes, estabelecido em Portugal, e uma Vimala Devi (historiadora da literatura indo-portuguesa, mas também, ou sobretudo, poeta e contista), que vive há muitos anos em Barcelona, continuam a publicar livros, sem que estes reflitam, no entanto, temas goeses ou indianos. A surpresa em 2008 foi o lançamento de um romance autobiográfico do autor de um estudo bastante conhecido sobre as confrarias religiosas de Goa6. Mas convém começar pelo início. A literatura indo-portuguesa nasceu nos conventos católicos de Goa. Do século XVI ao século XVIII, ela se havia limitado a textos de caráter religioso e pedagógico ou abordando problemáticas ligadas às castas, mantidas no meio católico (com importantes diferenças relativamente ao sistema original, seja em sua constituição ou em suas implicações sociais) em seguida à conversão de largos estratos da população hindu. Tal literatura teve, contudo, de esperar o século XIX para ver surgirem as suas primeiras obras de imaginação, conseqüência da introdução em Goa do romantismo e do liberalismo, por via da imprensa local, que começou a se desenvolver em 1821. O primeiro romance de Goa se deve a Francisco Luís Gomes (1829-1869). Ele foi também um dos primeiros romances da Índia, já que publicado em 18667. Esta obra, intitulada Os Brahamanes, dá testemunho do desinteresse geral dos escritores goeses de língua portuguesa pela adaptação dos gêneros literários europeus às formas literárias tradicionais da Índia ou às sensibilidades locais, o que foi a principal preocupação dos escritores das outras partes da Índia, em língua vernácula ou em língua inglesa, quando da “aclimatação” do gênero europeu do romance nessa região da Ásia, propulsada pelo célebre Renascimento bengali (o Bengala era governado pelos ingleses). Grande apaixonado pela cultura francesa e parlamentar do movimento “regenerador” (liberal e progressista) do Portugal oitocentista, Francisco Luís Gomes escreveu, em todo caso, um dos textos mais originais da época. O seu romance (a uma só vez de tese e exótico) poderia 5. 6. 7. Eufemiano Miranda, Literatura indo-portuguesa dos séculos XIX e XX: um estudo de temas principais no contexto sócio-histórico, tese de doutorado em Letras (Português), Pangim, Universidade de Goa, 1995, p. 247. O romance é Casa grande e outras recordações de um velho goês (2008) e o seu autor Leopoldo da Rocha (1932), que havia publicado em 1973 pelo Centro de Estudos Históricos Ultramarinos de Lisboa As confrarias de Goa : conspecto histórico-jurídico. Alaler Gharer Dulal (A criança mimada de uma grande família), publicado em livro em 1858 pelo bengali Pyari Chand Mitra é comumente considerado como o primeiro romance indiano. 18 ser considerado não apenas como a primeira obra de ficção da literatura moderna a denunciar os abusos do colonialismo e a “sugerir” a retirada de uma potência estrangeira do solo que usurpava, mas também a que pela primeira vez atacou frontalmente o sistema de castas hindu. Além disto, o escritor teve a audácia de promover em seu livro um casamento interétnico, no mesmo momento em que as teorias raciais começavam a aparecer no Ocidente ou, mais concretamente, pouco tempo depois de o Conde de Gobineau ter lançado a sua, baseada em suposta degenerescência resultante da mistura de raças8. O discurso de Gomes comporta, porém, alguns (importantes) problemas : ao mesmo tempo que se revolta contra a pretensa superioridade dos europeus (ou do homem branco simplesmente) sobre os outros povos do planeta que engendrara o colonialismo, Gomes acaba por legitimar as empresas coloniais. Se, em função da perspectiva adotada pelo escritor em apresentar o fato colonial, pode-se tomar Os Brahamanes por um romance “anti-colonialista”, deve-se levar em conta que este exalta o modelo colonialista português, a “besta negra” do livro sendo a dominação britânica do norte da Índia (a ação se desenrola no reino muçulmano de Oude, no atual estado do Uttar Pradesh). A própria questão do racismo colonial é problemática no romance. O europeu não é capaz de compreender que a cor escura da pele não priva de humanidade aqueles que a possuem, mas os grandes valores morais considerados como exclusivos do homem branco são mostrados no romance como atributos inerentes à personagem feminina européia em contraponto com o retrato feito dos personagens indianos. Francisco Luís Gomes, a despeito de sua naturalidade, dá-nos também uma imagem da Índia muito corriqueira no Ocidente daquela época, para não dizer que colabora para com esse estilo ocidental de dominação, reestruturação e autoridade sobre o Oriente, levantado por Edward W. Said (Orientalism, 1978).9 Publicado trinta anos depois, o romance Jacob e Dulce de Gip, pseudônimo de Francisco João da Costa (1864-1901), não é menos original, mas por outras razões. Tem já o mérito de situar a ação em Goa mesmo. Romance imperfeito (mas saborosa e divertida crônica de costumes), Jacob e Dulce faz “uma crítica de expressão goesa à dependência cultural”10 através de uma sátira da burguesia média da Goa católica e portuguesa, bastante servil face à Europa. Gip teria até feito escola: a sua veia naturalista (e polêmica) inspirou provavelmente José da Silva Coelho (1889-1944), um notável contista cujos textos apareciam com regularidade nos jornais locais. Quanto a Jacob e Dulce, o seu ponto forte também é que o autor emprega vocábulos e construções do português dialetal, um exemplo que poderia ter sido seguido pelos outros escritores com o objetivo de construir uma literatura intrinsecamente goesa do ponto de vista da mestiçagem cultural. Apenas um Ananta Rau Sardessai (1910-?), o único hindu Joseph-Arthur de Gobineau, Essai sur l’inégalité des races humaines (1853-1855). Para uma abordagem mais aprofundada do romance Os Brahamanes, cf. minha tese de doutorado: http://www.theses. paris4.sorbonne.fr/These-EVM.pdf. 10. Rui Simões,“A literatura luso-indiana” , in Rosa Maria Perez, Susana Sardo, Joaquim Pais de Brito (coord.), Histórias de Goa, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia, 1997, p. 163. 8. 9. 19 com R. V. Pandit (1917-1990) e Laxmanrao Sardessai (1904-1986) a escrever em português, parece ter desejado ir na mesma direção tomada por Gip, com seus contos e sobretudo peças de teatro radiofônicas. Na era pós-colonial, nada mudou realmente: preferiu-se deixar de lado o multilingüismo da Índia e as tradições orais do folclore goês, que poderiam ter se constituído em importantes recursos literários, para não dizer de emancipação relativamente à literatura portuguesa. As marcas vernaculares são encontradas nos diálogos dos personagens (o que estabelece uma hierarquia de língua no seio mesmo da diegese) ou sofrem seja glosa, seja tradução11. Os poetas, por sua vez, formam um caso à parte. A Índia “tradicional” ou hindu, bastante idealizada, foi principalmente o assunto deles. Os primeiros poetas indo-portugueses estavam presos, como no início de todas as literaturas das sociedades colonizadas, na armadilha alienante das escritas do mimetismo. Muito ligados aos temas da lírica portuguesa, faziam-se notar nas revistas e jornais locais por uma poesia sobretudo tributária do ultraromantismo português. Foi a partir de um poeta como Floriano Barreto (1877-1905), em fins do século XIX, que elementos temáticos locais começaram a surgir com mais freqüência, anunciando assim a moda nativista. Três fatores teriam contribuído para esta moda: o surgimento em Goa desde a década de 1840 de alguns trabalhos sobre o hinduísmo, a dissolução em 1871 do exército local (reduto dos luso-descendentes, que se encontraram enfraquecidos face às elites autóctones) e a possibilidade oferecida aos hindus, após a proclamação da República portuguesa em 1910, para acederem aos cargos da função pública. Pais católicos vieram a dar nomes hindus aos filhos, começou-se, entre algumas famílias, a ostentar os antepassados hindus, e as literaturas indianas, muito pouco conhecidas no meio cristão, passaram a ser difundidas em revistas criadas com este fim. Desta forma, mitos, lendas e costumes do mundo hindu irromperam na literatura indo-portuguesa. Os dois poetas mais representativos dessa tentativa de indigenização da literatura local em português foram Paulino Dias (1874-1919) e Nascimento Mendonça (18841927). Este último é o autor do poema que segue, “Coro de bailadeiras”: Durga12, a Serena, Deusa da Morte, Tem olhos de hiena E airoso porte. Durga, a Serena, 11. Trato desta questão com mais detalhes na comunicação“Autopsie d’une littérature : le portugais des écrivains goannais” , apresentada no The XIII International Seminar on Indo-Portuguese History, realizado na Universidade da Provença em março de 2010. 12. Divindade do panteão hindu. 20 Senhor, Senhor! Traz-nos a Morte E é mãe do Amor. Não vem sozinha Durga, a Serena, Dura e daninha, Tal como a hiena, Não vem sozinha, Senhor, Senhor! Durga, a Serena, Traz-nos o amor. De seus punhais O sangue escorre, Chove em corais Na erva que morre. Chove em corais, Senhor, Senhor! A erva que morre Vejo-a em flor. E o pó, agora, Ei-lo mudado, Jardim de aurora Todo orvalhado. E o pó, agora, Fez-se erva e flor Ei-lo mudado P’la mão do Amor.13 Porém, se, no plano temático, o nativismo goês aproxima as suas preocupações das dos outros nativismos surgidos sob a impulsão do romantismo, o seu advento não se fez acompanhar de um projeto consciente de diferenciação para com a metrópole. “A busca de 13. Reproduzido em Vimala Devi e Manuel de Seabra, A Literatura Indo-portuguesa, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1971, t. 2, pp. 197-198. 21 originalidade temática arriscou-se a não ultrapassar os limites do exótico”14, e os escritores, ainda que “recusando os modelos europeus que lhe propunha Portugal”, não aceitavam em sua totalidade “os traços culturais da tradição indiana”15. Constata-se, no entanto, uma sensível mudança a partir do poeta Adeodato Barreto (1905-1937), que representa a evolução da poesia indo-portuguesa, embora autor de uma só recolha de poemas e apesar da qualidade irregular dos mesmos. Barreto foi o primeiro goês a utilizar o verso livre, e é também na sua obra que encontramos, como afirma o romancista Orlando da Costa, o embrião de uma certa “goanidade”, com “recuperação das raízes do pensamento hinduísta”16. Poemas como “Apoteose”, “Shivaji” e “Redenção” de seu O Livro da vida – Cânticos indianos (publicado postumamente em 1940) tratam explicitamente do tema da autonomização da Índia, mas tanto sua estrutura como a interconexão de motivos nos sugerem a ocorrência da noção do “eterno retorno”, presente na mitologia indiana desde o Atharva-veda, um dos quatro textos sagrados que deram origem ao hinduísmo17. O poeta instaura, além disto, um interessante diálogo com a própria tradição poética indiana, pois dos trinta e três poemas de O Livro da Vida treze são adaptações livres de textos de Sarvajna, Pugliere Soma, Bhima-Khavi e Tagore, ou ainda extraídos do Kavarijamarga e do Panchatantra. Em “ A casta ”, por exemplo, ele recria versos escritos em metro tripadi pelo poeta canarês Sarvajna (século XVII): Quando o sol entra na choupana escura e vai beijar na esteira o pobre pária, fica a sua luz, acaso, menos pura? Ó! Não faleis em casta “ordinária”, ou “baixa” ou “alta” ou “plebeia” ou “nobre”: só é alto no mundo quem Deus cobre com a sua graça; só é grande quem é filho de Deus! Quando a Desgraça nos bate à porta, a “nobres” e a “plebeus”, 14. Orlando da Costa, « A literatura indo-portuguesa contemporânea : antecedentes e percurso », comunicação apresentada durante o Colóquio Internacional Vasco da Gama e a Índia, realizado em Paris em maio de 1998 pela Fundação Calouste Gulbenkian. Texto policopiado fornecido pelo autor. 15. Rui Simões, “A literatura luso-indiana”, artigo citado, p. 81. 16. Orlando da Costa, “A literatura indo-portuguesa contemporânea : antecedentes e percurso”, texto policopiado citado. 17. Faço uma análise destes poemas em “Un exercice de mythocritique à partir d’un poète indo-portugais du XXe siècle”, in Danielle Buschinger (dir.), Mythes et Mythologies, Presses du Centre d’Etudes Médiévales de l’Université de Picardie Jules Verne, 2009, pp. 154-158. 22 todos tragamos igualmente a taça da Amargura; quando a Ventura alegre e prazenteira nos acolhe, entre pobres e ricos não escolhe; quando na ígnea pira mortuária o fogo nos consome, não arde mais o coração do pária! A mesma fonte nos sacia a sede, a mesma várzea nos fecunda o pão que mata a fome: dizei-me então, vós que no varnashrama18 acreditais, se Deus nos fez nascer assim iguais, como é que ainda há castas em seu nome?19 O momento pós-colonial nos havia reservado, na poesia, duas agradáveis surpresas : Judit Beatriz de Souza (?) e Vimala Devi (1936), que assimilaram perfeitamente as tendências modernistas da literatura européia e cujo nível de qualidade estética ultrapassa largamente o dos outros poetas goeses de língua portuguesa. A primeira é autora de Destino (1955) e Gesto Supenso (1962). A segunda, além de ter co-escrito com seu marido A Literatura Indoportuguesa (ainda que não atualizada, a principal referência para se conhecer em seu conjunto a literatura indo-portuguesa, tendo vindo a lume em 1971) e traduzido em catalão autores portugueses e anglo-saxões, publicou em português Súria (1962), Hologramas (1969) e Telepoemas (1970). A poeta, depois de ter passado por Lisboa, Rio, Paris e Londres, vive há mais de quarenta anos em Barcelona, onde lançou desde a década de 1990 várias recolhas de poesia em catalão. Súria (nome do deus védico do sol) é seu único livro de poemas que aborda a Índia. Este funda a problemática da identidade no momento pós-colonial e tenta falar em nome das comunidades “subalternas”20 de Goa, como no poema “Chamdrîm”: Vem, Chamdrîm feiticeiro, com a tua luz concreta, 18. O sistema de castas hindu. 19. Adeodato Barreto, Civilização hindu seguido de O Livro da vida (Cânticos Indianos), Lisboa, Hugin, 2000, pp. 336337. 20. No sentido gramsciano dos Subaltern Studies. 23 Transformar as casas de churtas21 em casas de prata, E deixar que os farazes22 penetrem oiteiros Em busca de bambus com que tecer sobrevivência! O Mandovi e o Zuari23, fios de lágrimas salgadas, Abrigam deuses tisnados e humildes, Que nas noites escuras regressam tristes Com alforrecas nas redes e com as tonas vazias. Vem, Chamdrîm, rei do firmamento nocturno, Perolizar, com as tuas tintas mágicas, Os troncos nus de curumbins24 crestados pelo sol – Velas derretendo no perene meio-dia! Vem rasgar o mistério das aldeias moribundas Onde serpentes venenosas mordem a noite. A morte espia os camponeses, no regresso das várzeas, Banhados em suor de terra – com olhos nos pés! Vem, Chamdrîm, alumiar poços e regatos, Onde mainatos25, vergados, lutam com a imundície. Sem ti, o sol tropical ardia crânios... Por isso, Chamdrîm, és o deus dos pobres!26 Vimala Devi é também contista. Seu Monção (1963) e Os javalis de Codval (1973) de Epitácio Pais (1928-2010) são duas obras que assinalam o amadurecimento do conto em Goa. O primeiro é uma descrição tanto do universo católico como do universo hindu da Índia portuguesa, sem esquecer o mundo da diáspora goesa. O segundo revela um escritor, como assinala Manuel de Seabra no prefácio à obra, “extremamente preocupado com a vida à sua volta, e a febre do minério, que assaltou Goa (...) com a consequente deterioração do tipo tradicional de relações humanas”27. Epitácio Pais tinha ainda vários contos não publicados em livro e Vimala Devi lançou em 2008 A Cidade e os Dias (nenhum conto desta recolha não se 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. Folhas de palmeira. Servidores de casta baixa. Rios de Goa. Agricultores (casta baixa). Lavandeiros (casta baixa). Vimala Devi, Súria, Lisboa, Agência-geral do Ultramar, 1962, pp. 11-12. Cf. Epitácio Pais, Os Javalis de Codval, Lisboa, Futura, 1973, p. 9. 24 passa, porém, em Goa). Quanto ao romance (gênero minoritário), “o primeiro romance adulto”28 da literatura indo-portuguesa é O Signo da Ira (1961), de Orlando da Costa (1929-2006). Como Jacob e Dulce de Gip – e ao contrário de Os Brahamanes de Francisco Luís Gomes –, O Signo da Ira se debruça sobre a realidade de Goa, mas ao contrário de Gip, Costa prefere falar das camadas mais baixas da população goesa, e isto num tom dramático e poético, enquanto a ironia e o sarcasmo predominam no primeiro. Tendo ido viver em Lisboa com a idade de 18 anos (o romancista nasceu em Moçambique e passou as suas infância e adolescência em Goa), Costa fez-se na metrópole um militante de esquerda e contestatário do Estado Novo (1933-1975), o regime ditatorial de António de Oliveira Salazar. Premiado pela Academia de Ciências de Lisboa, O Signo da Ira vendeu-se muito bem em Portugal. Um ano depois, a obra já havia sido reeditada, mas rapidamente retirada das livrarias pela censura de Salazar. De tendência neorealista, O Signo da Ira aborda a vida dos “curumbins” (casta cristã de trabalhadores rurais) e o entorno militar português de Goa. Costa publicou no total nove títulos (entre poesia, romance e teatro), mas somente O Signo da Ira e duas outras obras têm Goa como pano de fundo: Sem flores nem coroas (1971), peça de teatro que trata da perda do Estado Português da Índia, e O último olhar de Manú Miranda (2000), romance que dá testemunho das últimas décadas do período colonial português. Um ano depois de O Signo da Ira apareceu Bodki de Agostinho Fernandes, autor também instalado em Portugal. Este romance conta a experiência de um jovem médico (o próprio Fernandes) que foi trabalhar num vilarejo e se vê lá confrontado às superstições locais, notadamente as que levam à marginalização da bodki (“mulher de cabeça rapada” em concanim, isto é, a viúva hindu), de quem foge a população, pois se lhe acusa de ser a responsável por todos os acontecimentos trágicos que têm lugar na comunidade. Agostinho Fernandes continua a publicar romances (o terceiro deve ser lançado em breve), mas ele abandonou completamente o universo goês. Como foi dito antes, os escritores goeses de língua portuguesa sempre tiveram dificuldade em formar um campo literário próprio, independentemente do fato de muitas produções terem circulado apenas em Goa (seus alcance e impacto devem ainda ser bem avaliados). Do ponto de vista estético, não se verifica um projeto consciente de “descolonização literária”, a autenticidade de tal literatura se limitando às condições de sua emergência e ao talento individual de um número reduzido de autores na representação de Goa e da Índia. No geral – não obstante uma “estética da resistência”29 ter começado a se desenhar com Jacob e Dulce de Gip –, foram bastante tímidos quanto à transgressão dos códigos genéricos da 28. João Gaspar Simões, citado por Vimala Devi et Manuel de Seabra, A Literatura Indo-portuguesa, op. cit., t. 1, p. 208. 29. Sobre este assunto, cf. Jean-Marc Moura, Littératures francophones et théorie postcoloniale, Paris, PUF, « Quadrige », 2007, pp. 68-82. 25 literatura ocidental (algo que poderia ter sido realizado com apoio nas literaturas clássicas e modernas indianas) e não deram ao português dialetal de Goa a importância devida. A contribuição e a originalidade de escritores contemporâneos como Orlando da Costa, Agostinho Fernandes, Epitácio Pais e Vimala Devi estão no apostar em temas e problemáticas novos com relação às narrativas “exoticizantes” da tradição ocidental e no ponto de vista adotado a partir de seu estatuto de autores periféricos. A isto se acrescenta uma reflexão dinâmica sobre a identidade e a divisão societal entre hindus e católicos, para além do cuidado em levar em conta os “subalternos” locais. Não se assiste, porém, em suas obras – vale salientar novamente – a essa “harmoniosa conciliação entre temática e forma de expressão” de que fala Celso Cunha a respeito da literatura brasileira30, asserção também aplicável à África literária lusófona e ainda ao mais representativo da literatura indiana de língua inglesa. Algumas pistas devem, por outro lado, serem ainda exploradas no que se refere à estética desses autores. O caso de Orlando da Costa é particularmente interessante, já que vai se afastar em O último olhar de Manú Miranda, seu último romance, dos pressupostos estéticos e ideológicos da segunda fase do neo-realismo português presentes em seu primeiro romance O Signo da Ira, para se aproximar, como observa Fortuna do Vale31, do “realismo maravilhoso” latino-americano: o recurso ao mito e à fábula ter-lhe-á permitido uma elaboração estética capaz de tratar a uma só vez da identidade social goesa e de uma identidade literária menos dependente da Europa. Dever-se-ia também procurar a fonte deste projeto nas próprias literaturas modernas indianas, que já no século XIX haviam levantado a questão do “maravilhoso” na construção de um romance autenticamente local32. Um outro caso, o da contista Vimala Devi, não é menos interessante, haja vista contos (em Monção) como “Nâttak” e “Tyâtr” – do nome de duas modalidades teatrais locais – parecerem dialogar com certos códigos dessas tradições, para não dizer ainda que algumas das heroínas do seu livro de contos lembram o tipo de personagem feminina indiana que é a nāyikā, a heroína do teatro e da poesia amorosa clássicos da Índia, para a qual era necessário respeitar certas convenções de estilo. Infelizmente (mas para os pesquisadores trata-se aí de mais um desafio), ao mesmo tempo que esta literatura começa a chamar a atenção de comparatistas, lusitanistas e indianistas em Portugal, na Índia, na França, no Brasil e no Reino Unido, ela começa a desaparecer, devido, sobretudo, à situação bastante crítica nos dias atuais da língua portuguesa em Goa. Falecidos recentemente, os contistas Maria Elsa da Rocha (Vivências Partilhadas, 2005), Carmo de Noronha (Contracorrente, 1991, Escavando na Belga, 1993 e Contos e Narrativas, 1997) e o já mencionado Epitácio Pais pareciam ser os últimos sobreviventes da literatura indo-portuguesa a residirem em Goa mesmo. 30. Celso Cunha, Língua portuguesa e realidade brasileira, Lisbonne, Sá da Costa, « Livros Plural », 1999, p. 15. 31. Regina Célia Fortuna do Vale, Poder colonial e literatura: as veredas da colonização portuguesa na ficção de Castro Soromenho e Orlando da Costa, tese de doutorado, São Paulo, FFLCH/USP, 2005. 32. Sobre este assunto, cf. Claudine Le Blanc, Histoire de la littérature de l’Inde moderne, Paris, Ellipses, 2006, pp. 16-20. 26 インド ・ ポルトガル文学の生、受難、そして死 インド・ポルトガル文学は、1950 年代末アルベール・メンミが唱えた軽はずみな説を支持する 唯一のケースだと言えよう。その説によれば、ヨーロッパの言語に支配された文学は、当時の民 族解放運動の勢力を鑑みると、消滅の途を辿るしかなかったということである。インド・ヨーロッ パ文学はまさにそうした消滅を余儀なくする条件にぴたりとはまるのだ。自由な雰囲気の中で生 まれる新しい世代は、再発見された自分たちの言語で自発的に作品を発表するか、完全に本国の 文学世界に属するようになるかであった。ゴアでは、先住民族の言葉であるコンカニ語は、ポル トガル人たちが退去した 1961 年から復興し、一方ポルトガル語で書く現地の作家たちは、ポルト ガル文学という枠組みの中で書かねばならないという理由もあり、独自の文学を確立する上で常 に困難に直面した。芸術的観点からいえば、意識的な「文学的非植民地化」は見られず、インド・ ポルトガル文学の真正さは、その緊急を要する状況と、ゴアとインドを代表する少数の作家たち の個人的な才能に限定されているのである。 (エヴェルトン・マシャード リスボン大学文学部比較研究センター PD 研究員) 27