www.bmfbovespa.com.br/revista No 9 / 2011 5 ANOS DO ISE: EMPRESAS CADA VEZ MAIS SUSTENTÁVEIS mercado de capitais PETROBRAS PUXA ONDA DE INVESTIMENTOS sustentabilidade DIREITOS HUMANOS NAS EMPRESAS ensaio classe média em ação EXTRATO DE CUSTÓDIA ELETRÔNICO É mais simples. É mais rápido. É mais seguro. Faça sua escolha! O Canal Eletrônico do Investidor (CEI) é um serviço gratuito oferecido pela BM&FBOVESPA aos investidores para acompanharem seus investimentos no mercado de ações, renda fixa e privada, empréstimo de títulos, opções, termo e títulos públicos (Tesouro Direto) pela internet. No CEI, você pode consultar a Posição Diária, o Aviso de Negociação de Ações e o Extrato Mensal de Custódia. Além disso, pode suspender o envio desses informativos impressos e recebê-los por e-mail. Dessa forma, você tem mais segurança, facilidade no acesso e contribui para reduzir a emissão de milhares de extratos impressos em papel. Saiba mais. Acesse: www.bmfbovespa.com.br/cei carta ao leitor www.bmfbovespa.com.br/revista No 9 / 2011 5 ANOS DO ISE: EMPRESAS CADA VEZ MAIS SUSTENTÁVEIS mercado de capitais petroBras pUXa oNda de iNVestimeNtos sUsteNtaBilidade direitos HUmaNos Nas empresas eNsaio classe média em ação OUT/DEZ 2010 nº9 Depois da oferta pública histórica de ações da Petrobras, novas empresas fizeram IPOs ou lançaram emissões na Bolsa, como HRT Participações e Brasil Insurance. Elas deram curso a um novo movimento de expansão do mercado de capitais no Brasil, do qual é simbólica a elevação da BM&FBOVESPA à condição de uma das três maiores bolsas do mundo pelo critério de valor de mercado. Em comemoração aos 120 anos da Bolsa, num tempo em que o capitalismo se fortalece no Brasil, ganharam força estudos como o da brasilianista Anne Hanley, que contempla o Encilhamento (1889-1891), período em que, além de prejuízos se instalou um verdadeiro mercado de risco no Brasil, com o surgimento de centenas de empresas, muitas das quais se mantiveram à tona durante décadas. Retoma-se ainda a saga de um típico capitalista global do século passado, Percival Farqhuar, responsável pelo levantamento de vultosos recursos para mineração, energia e transportes, em empreendimentos como Madeira-Mamoré. Ainda, nesta edição, há uma pesquisa inédita sobre os investidores brasileiros encomendada pela Bolsa, matéria com o cantor e apresentador de TV Ronnie Von, um tradicional investidor em ações. Leiam-se, ainda, os ensaios de José Roberto Nassar sobre a economia internacional – as regras da Basileia e a reunião do G-20, em Seul, e de Fábio Gallo, professor da FGV, sobre o comportamento dos investidores. Para finalizar, o escritor Humberto Werneck trata, no Contraponto, da reabertura da Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Boa leitura! R E V I S T A U M A D A P U B L I C A Ç Ã O D A B M & F B O V E S P A Diretor Presidente: Edemir Pinto Diretoria Executiva: Amarílis Sardenberg, Cícero Vieira Neto, Eduardo Guardia, José Antonio Gragnani e Marta Alves Conselho de Administração: Arminio Fraga Neto – Presidente, Marcelo Fernandez Trindade – Vice-presidente,Candido Bracher, Claudio Luiz da Silva Haddad, Craig Steven Donohue, Fabio de Oliveira Barbosa, José Roberto Mendonça de Barros, Julio de Siqueira Carvalho de Araujo, Luiz Stuhlberger, Renato Diniz Junqueira e René M. Kern Jornalista responsável: Alcides Ferreira Coordenação editorial: Fábio Pahim Jr. Editores: José Roberto Nassar, Jorge Wahl, Patrícia Brighenti e Theo Carnier Edição final: Rose Jordão Colaboraram nesta edição: Fabio Gallo Garcia, Paulo Trevisani, Priscilla de Cassia Ferreira, Tatiany Cavalcante e Vitória Guimarães Revisão: Daniela De Piccoli e Rosangela Kirst Criação: Glauce Sayar, Rogerio Guerra e Ronald Capristo Trapino Edição de arte e diagramação: GB8 Design e Editoração Ltda. Foto da capa: Divulgação A Revista da Nova Bolsa é uma publicação trimestral da BM&FBOVESPA. O conteúdo desta publicação não representa a opinião da Bolsa, nem deve ser interpretado como recomendação de compra ou venda deativos. Os artigos assinados expressam a opinião de seus autores. É proibida a reprodução parcial ou integral de textos contidos nesta publicação. ISSN 1983-8182 Assinaturas: tel. (11) 2565-7581 – fax (11) 2565-7423 As correspondências à Revista da Nova Bolsa devem ser enviadas para: Rua XV de Novembro, 275 – 5º andar, São Paulo/SP – CEP 01013-001 www.bmfbovespa.com.br/revista – e-mail: [email protected] índice 38 18 6 ESPAÇO BM&FBOVESPA ENTREVISTAS 8 ANNE HANLEY, autora de Native Capital Na Bolsa de São Paulo, a origem do capitalismo brasileiro Paulo Trevisani 14 FERNANDO SIMÕES, diretor presidente da Julio Simões O novo mercado traz visibilidade para as empresas Fábio Pahim Jr. CAPA 18 PETROBRAS Empresa puxa onda de investimentos Concluído o gigantesco aporte de recursos de investidores para a Petrobras – e o avanço do País no mundo do petróleo – retomaram-se os IPOs, incorporando mais empresas ao mercado de capitais. Theo Carnier 4 REVISTA DA NOVA BOLSA 28 ISE BM&FBOVESPA comemora 5 anos do índice de Sustentabilidade Empresarial Seminário internacional celebra cinco anos do indicador que vem ganhando, cada vez mais, relevância como instrumento financeiro de estímulo à construção de uma sociedade sustentável. Priscilla de Cassia Ferreira TENDÊNCIAS GLOBAIS 32 O avanço limitado do G-20 em Seul O fim da guerra cambial depende da retomada do crescimento dos Estados Unidos e do fato de a China não só valorizar o yuan, como adotar políticas de estímulo ao consumo interno. José Roberto Nassar MERCADOS DE CAPITAIS 38 ESPECIAL Percival Farquhar: um empresário pioneiro Nos arquivos da Universidade Yale, nos Estados Unidos, está a história completa de Percival Farquhar, um empresário dos primeiros tempos do capitalismo brasileiro, certamente só comparável ao Barão de Mauá. Paulo Trevisani 74 46 BOVESPA MAIS 52 52 Mais força a mecanismo de acesso de pequenas e médias empresas A BM&FBOVESPA está tornando ainda mais atrativo o segmento de acesso de pequenas e médias empresas, com vistas à expansão do número de companhias listadas e de investidores. Jorge Wahl 52 ENSAIO Entre os mitos e a realidade Investir para ficar rico é o sonho das pessoas. O problema é acreditar que é possível realizar o tal sonho do dia para a noite. Fabio Gallo Garcia POPULARIZAÇÃO 54 O príncipe da jovem guarda O músico e apresentador Ronnie Von, há quatro décadas no rádio e na TV, começou a vida estudando economia, mas trocou o mercado financeiro pela carreira artística, sem deixar de investir em ações. Vitória Guimarães SUSTENTABILIDADE 60 Os direitos humanos nas empresas Avanços no ambiente de trabalho convivem com alta porcentagem de casos de violações graves, dentro e fora das organizações. José Roberto Nassar 64 EM REVISTA 66 ON-LINE 70 LIVROS 74 CONTRAPONTO Biblioteca Mário de Andrade Segunda maior biblioteca pública do País, a Mário de Andrade acumulou história e prestígio, além de tesouros bibliográficos, ao longo de seus 86 anos de existência. Humberto Werneck 58 A classe média em ação Pesquisa inédita revela o perfil de um novo investidor: assalariado, jovem, das faixas de renda B e C. REVISTA DA NOVA BOLSA 5 visite a bolsa fotos agência luz Onde: Rua XV de Novembro, 275, Centro – São Paulo – SP Quando: De segunda a sábado, das 10h às 17h. Quanto: Entrada gratuita Atrações: Filme em 3D sobre a Bolsa; mesa de operações, com demonstração de como são realizados os negócios no pregão eletrônico; Centro de Memória, com vídeos e objetos que contam a história da Bolsa; auditório para palestras; e café. Mais informações e agendamento para grupos: www.bmfbovespa.com.br, no menu Institucional, Visitas. Faria Coutinho, 29 anos, contador e profesq Cleison sor (Palmital-SP) A primeira vez que vim à Bolsa não pensava em investir em ações. Depois das informações que tive aqui, procurei uma corretora e me tornei investidor. É muito importante que o jovem pense em seu futuro financeiro. Charles, 21 anos, estudante (São Paulo-SP) q Johnn O prédio da Bolsa, quando visto por fora, não consegue mostrar o que tem por dentro. O lugar é magnífico e muito diferente do que vi em filme e na TV. Agora é tudo altamente tecnológico e num ambiente muito legal. p Titania Dias Tononi, 35 anos, arquiteta (São Paulo-SP) Gostei muito do que vi aqui. Um ambiente que me faz lembrar a adrenalina que sinto toda vez que faço um investimento. Sou investidora e agora estou interessada em fazer os cursos gratuitos que a Bolsa oferece para entender mais sobre o mercado de ações. Rodrigues, 21 anos, estudante (São Paulo-SP) q Eduardo Depois que me cadastrei no simulador Folhainvest, passei a ter mais curiosidade sobre o mercado de ações. Achei muito interessante o ambiente da Bolsa e pretendo me informar mais a respeito do mercado de capitais. p Alecsandro Michael de Andrade, 33 anos, contador e professor (Palmital-SP) Viajei 500km com os alunos para que eles tivessem a oportunidade de conhecer a Bolsa. É fundamental que, além da experiência teórica, aprendam na prática. Assim, passam a entender melhor o assunto. Eles estão tão empolgados que comentam no Twitter e no Orkut, para que os outros colegas também saibam o que aconteceu durante a visita. 6 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 Geraldo Vicente Christ, 55 anos, agricultor q (Palmital-SP) É a segunda vez que venho à Bolsa e, em cada visita, aprendo coisas totalmente diferentes e absorvo mais as informações. Além disso, estar no ambiente físico desperta a curiosidade para o mercado de capitais. Cyro Paulo Cinti Flores, 25 anos, analista de cop mércio exterior (São Paulo-SP) Estou procurando opções de investimento, por isso decidi conhecer a Bolsa. Quando entrei aqui, tive uma impressão de organização e tranquilidade para participar do mercado. O local transmite uma sensação de segurança para quem deseja investir. Geissiani Fernanda Leal Ronqui, 22 anos, e q Valéria Cristina Camargo, 17 anos, estudantes (Palmital-SP) Sempre que pensávamos em Bolsa, lembrávamos daquela multidão que gritava para negociar as ações. Quando chegamos aqui, vimos que as negociações são feitas via tecnologia, tudo muito moderno. Adoramos participar dessa visita, que nos incentivou a aprender mais sobre o assunto. No futuro, poderemos começar a investir em ações. Pedro Pedroso Pires, 16 anos, estudante p João (Palmital-SP) Meu professor sempre falou muito sobre a Bolsa. Certa vez, fizemos um exercício em sala que despertou meu interesse sobre o mercado. Cheguei aqui e tive acesso a várias informações que não conhecia, participei de palestra e esclareci minhas dúvidas. Agora estou ansioso para investir em ações. POR Tatiany cavalcantE, JORNALISTA DA gerência DE IMPRENSA DA BM&FBOVESPA. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 7 entrevistas anne hanley autora de Native Capital na bolsa de são paulo, a origem do capitalismo brasileiro POR paulo trevisani* Há pouco mais de um século, nos primórdios da história da moderna economia do País, “a instituição mais importante foi a Bolsa de São Paulo”, determinante para o surgimento de um pujante setor privado, no alvorecer da República (proclamada em 1889 por Deodoro da Fonseca), como enfatiza nesta entrevista à Revista da Nova Bolsa Anne G. Hanley, professora e historiadora da Universidade de Stanford e responsável por uma das mais aprofundadas pesquisas sobre o mercado de ações, títulos e bancos brasileiros. Anne Hanley é autora do espetacular livro Native Capital – Financial Institutions and Economic Development in São Paulo, Brasil, 1850-1920 (veja resenha nesta edição), no qual investigou aquela que foi uma das fases mais ricas da história do capitalismo no Brasil, que inclui o período conhecido como Encilhamento, quando a fase febril de abertura de empresas inaugurada por Rui Barbosa foi abortada por uma política contracionista. 8 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 Começou cedo a paixão de Anne Hanley pelo Brasil. Adolescente, resolveu pôr o pé na estrada. Inscreveu-se na American Field Service (AFS), uma organização filantrópica que envia jovens a países diversos para trabalho voluntário. Foi assim que foi parar em Vitória, no Espírito Santo, onde se iniciou a história de amor pelo País e a levou a estudar os aspectos financeiros do Brasil. Em 2003, a editora da Universidade Stanford publicou o livro Native Capital, pesquisa que inclui a fase de política expansionista de Rui Barbosa, seguida da bolha do Encilhamento, abortada pelo aperto recessivo de Murtinho – Rui Barbosa e Joaquim Murtinho foram os dois primeiros ministros da Fazenda da República – até a Primeira Guerra e o consequente enfraquecimento do comércio exterior brasileiro. A pesquisa trouxe à luz uma atividade econômica vibrante e de mercado livre, com regulamentação em geral sóbria e que estimulava a divulgação A Bolsa foi a principal instituição no desenvolvimento econômico de São Paulo. Até 1920, ainda não havia uma integração nacional dessas instituições. As ações eram de empresas paulistas emissão de ações e títulos de dívida e as negociações em Bolsa, em particular a de São Paulo, a mais próspera do Brasil de então. Na verdade, Hanley acredita que a Bolsa de São Paulo foi a entidade que permitiu o surgimento de um pujante setor privado nas primeiras décadas da República, quando os bancos não tinham muita margem para conceder empréstimos de longo prazo. “A Bolsa permitiu o levantamento de capital que podia ser investido no longo prazo”, enfatiza. Em seu trabalho, a pesquisadora e professora do Departamento de História da Universidade do Norte de Illinois descobriu outra preciosidade: os arquivos históricos brasileiros. Em outubro, nesta entrevista para a Revista da Nova Bolsa, relata como descobriu uma documentação minuciosa sobre as operações financeiras feitas há cem anos no Brasil, e por que aquele momento foi tão importante para a construção do capitalismo no País. Revista da Nova Bolsa – Qual a importância da Bolsa de São Paulo entre 1890 e o início do século 20 – há 120 anos, portanto –, num período em que o Brasil já apresentava expressivo desenvolvimento econômico? Anne Hanley – Para mim, a Bolsa foi a instituição fundamental no desenvolvimento econômico de São Paulo, principalmente. Na época do meu livro, que termina em 1920, ainda não havia integração nacional de bolsas. Eu brinco, mas é verdade: eu não sei o que aconteceu no Brasil e na Bolsa de São Paulo depois de 1920, toda a minha pesquisa é antes disso. Mas sei que, até 1920, as ações eram de empresas paulistas. Havia algumas exceções, mas poucas. Ao mesmo tempo, na Bolsa do Rio também a maioria era de empresas do Rio. Então, eram bolsas regionais, não nacionais. A grande pergunta na história econômica do Brasil é: por que o Brasil foi bem-sucedido nessa época de boom de exportação, quando outros países que também tiveram esse boom não o foram? Há muitas teorias, mas, para mim, foi o surgimento de instituições que podiam facilitar o movimento de capital do setor agrário para o setor urbano, comercial e industrial. No livro, pesquiso todas as instituições financeiras dessa época. A mais importante foi a Bolsa, JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 9 entrevistas Muito da minha pesquisa foi realizada nos jornais Correio Paulista, Província de São Paulo e O Estado de S. Paulo, que publicavam dados de operações de bolsa todos os dias, além de um sumário das atividades do O Estado de S. Paulo, uma página maravilhosa com as transações do mercado pois permitiu o levantamento de capital que podia ser investido no longo prazo. Não existia nenhuma outra instituição de crédito de longo prazo. A única outra tentativa foi a de criar bancos universais do estilo alemão, que investiam também em empresas, mas não foram bem-sucedidos. R.N.B. – E por que um país que gerou uma bolsa ágil e dinâmica não gerou bancos que pudessem financiar projetos de longo prazo? A.H. – O grande constrangimento dos bancos é o prazo do crédito que têm a aplicar. Bancos comerciais funcionavam na base de depósitos, mas o depositante podia escolher: receber o dinheiro daqui a um mês, três meses ou um ano. Havia um contrato: prometo deixar meu dinheiro com vocês por determinado prazo. O depositante recebia uma taxa de juros menor para prazos mais curtos e maior para deixar o dinheiro no banco por mais tempo. Então, um banco comercial arriscaria muito fazendo operações de crédito de longo prazo com um ativo de curto prazo. E a maioria dos bancos de São Paulo eram comerciais, porque o setor bancário surgiu em volta da exportação, e não do desenvolvimento doméstico. R.N.B. – Mas eles acabaram desenvolvendo um modelo de hipotecas para financiamento de longo prazo, certo? A.H. – Sim. Foram formados três bancos que investiam no longo prazo por intermédio de hipotecas. Aqui, o grande problema é que o governo impôs a taxa de juros. Portanto, os bancos não tinham liberdade para ganhar dinheiro tanto quanto possível, o quanto queriam ganhar, pois foram regulados pelo governo de uma maneira que desincentivou muita atividade hipotecária. Além 10 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 disso, esses bancos foram formados na década de 1890 – uma década de instabilidade ou de recessão. Na verdade, acredito que o maior problema foi a instabilidade macroeconômica em que os bancos foram formados. Não tem como saber. Se eles fossem formados depois de 1906, por exemplo, quando o mercado estava melhor, talvez tivessem mais sucesso. Entretanto, foram criados para resolver um problema numa época de grande instabilidade e os mercados de capital não gostam muito de instabilidade, querem ganhar o juro mais alto para compensar o risco, mas tinham um teto. E havia certa razão. Os bancos que fizeram essas operações hipotecárias ficaram sem ter como liquidar os bens quando seus credores faliram. Por exemplo, o Banco de Crédito Real, que foi o maior banco hipotecário de São Paulo e fazia operações de crédito de longo prazo. Com a grande recessão no final dos anos 1890, ficou com papel na mão sem poder liquidar a propriedade hipotecada porque o mercado caiu e não havia quem quisesse comprar nem o papel nem a terra. E há relatos de gerentes de fazenda nos escritórios do banco para receber salário porque o banco virou dono de fazendas – e o banco não era competente para administrar fazendas. Então, o modelo não deu certo, mas eu acho que foi a instabilidade da época. R.N.B. – Seu livro descreve uma relação do governo com o mercado que oscila entre políticas que estimulavam a iniciativa privada e medidas que a prejudicavam. De onde vem essa relação dúbia do governo com o mercado? A.H. – Vejamos. Em certas épocas, os objetivos do governo brasileiro eram diferentes. Houve momentos em que o governo nacional escolheu promover o crescimento das exportações e, em outros, o desenvolvimento econômico doméstico. Até o fim do império, estava claro que o objetivo era crescimento de exportações – a força da economia brasileira, sempre. Nos anos 1890, com a queda do império e ascensão da administração republicana, especialmente por causa do ministro da Fazenda, Rui Barbosa, houve, por um breve período, real esforço para desenvolver o mercado doméstico, para desenvolver empresas domésticas e focar na população urbana. As cidades, o comércio e a indústria começaram a crescer. E o governo flertou com desenvolvimento econômico doméstico como sua prioridade. Com o estouro da bolha do Encilhamento e a desvalorização da moeda, o governo brasileiro ficou assustado. De repente, o preço do café estava caindo e a moeda desvalorizando. Além disso, o ministro Joaquim Murtinho era bastante conservador e insistia em que o Brasil devia voltar a seus pontos fortes, que a prioridade era o setor externo, as exportações. Então, não é que a regulamentação do governo acreditasse no mercado – ele acreditava um pouco, mas sempre com moderação –, mas o desenvolvimento econômico doméstico não era uma prioridade importante no fim do século 19, começo do século 20. Era, muitas vezes, uma feliz coincidência de boas taxas de câmbio ou boas políticas. O que eu achei muito interessante na minha pesquisa é que toda vez que essas oportunidades apareciam, empreendedores corriam para aproveitar. É aí que eu acho que o dinamismo da Bolsa fica mais evidente. R.N.B. – Seu argumento é que foi a atividade doméstica, e não o capital estrangeiro, que deu o maior impulso para a economia da época, correto? A.H. – Isso é o que eu acredito, mas tenho colegas que formalmente discordam, porque o capital estrangeiro era tão grande e tão importante em certos setores estratégicos. Em São Paulo, o capital estrangeiro foi muito importante no desenvolvimento das ferrovias, a princípio, como a Sorocabana, que foi inicialmente uma empresa brasileira e depois adquirida por estrangeiros – mas também no investimento em eletricidade e serviços públicos na cidade de São Paulo. Sem eletricidade é muito difícil tocar uma fábrica. Então, grande parte da infraestrutura básica de que a indústria depende foi financiada por capital estrangeiro. Mas as indústrias que se desenvolveram eram domésticas. Os bancos eram regulamentados pela Lei das S.As., que determinava a realização de assembleias anuais de acionistas, publicação de lista de acionistas e de balanços R.N.B. – No período de sua pesquisa, 1850 a 1920, o País era politicamente estável, exceto pela revolução republicana. Como essa estabilidade pode ter ajudado no desenvolvimento econômico desse período? A.H. – Bem, o que surpreende é que a estabilidade política não tenha produzido mais desenvolvimento econômico. Se você comparar o Brasil com o México, por exemplo, o México teve grande instabilidade no século 19, com guerras civis e externas, tremendas disputas internas, até o governo de Porfírio Dias, um presidente autoritário que impôs ordem no País – depois que a ordem foi imposta, o capital começou a entrar. O Brasil foi politicamente estável a partir de 1850, com exceção da Guerra do Paraguai, e ainda assim não se vê tanto capital estrangeiro entrando no Brasil quanto se poderia esperar. Investidores estrangeiros adoram países estáveis, e Brasil atraiu bastante capital estrangeiro, quase tudo em JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 11 entrevistas Sem a Bolsa, não teria havido tantos bancos em São Paulo. Os bancos formaramse como sociedades anônimas: um mecanismo muito poderoso para o desenvolvimento econômico, porque um banco formado como S.A. não é um banco de família ou um banco de bairro sem clientela. É por isso que eu gosto tanto da Bolsa 12 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 ferrovias e portos. Mas esse capital não contribuiu para uma dramática diversificação econômica. R.N.B. – O Brasil teria perdido uma oportunidade ao não ter aproveitado bem o ingresso de capital estrangeiro? A.H. – Muito do investimento estrangeiro foi investimento direto e os países não têm muito como determinar para onde esse investimento é dirigido. Os investimentos britânicos no século 19 ao redor do mundo voltavam-se para mineração, ferrovias e portos. Não sei se autoridades nacionais tinham muita influência para mudar o plano de jogo dos britânicos. Não acho que o Brasil tenha perdido uma oportunidade. O País recebeu de braços abertos o capital estrangeiro da maneira como ele era investido, e esse capital liberou capital brasileiro para investimentos. R.N.B. – Além das ferrovias e outros empreendimentos de capital intensivo, iniciativas menores nos setores de manufatura e de bancos também se valeram da Bolsa para financiar projetos de longo prazo, não? A.H. – Usaram a Bolsa para financiar a formação da empresa. Sem a Bolsa, não teria havido tantos bancos em São Paulo. Os bancos formaram-se como sociedades anônimas e esse é um mecanismo muito poderoso para o desenvolvimento econômico, porque um banco formado como sociedade anônima não é um banco de família, ou um banco de bairro sem clientela. É uma instituição formal, impessoal. Então, a existência da Bolsa traz a possibilidade de uma ruptura entre um financiamento muito pessoal, em que os dois lados precisam se conhecer, e empréstimos baseados em informações mais objetivas e transparentes. Essa é uma grande inovação, possibilitada pelo fato de os bancos poderem obter seu capital de investidores anônimos via Bolsa. R.N.B. – Como os bancos faziam para avaliar o risco de crédito de seus clientes? A.H. – Se você ler meu livro com atenção, vai notar que eu não respondo a essa pergunta, porque para isso é preciso acesso a registros bancários da época sobre suas decisões de financiamento. O que posso dizer com certeza é que, num período intermediário, entre o fim da década de 1890 e o início da de 1900, os bancos trataram de estabelecer ligações com empresas (financiadas por eles), tendo membros de seu conselho sentados no conselho da empresa. Esse procedimento tem sido demonstrado por historiadores como um meio de obtenção de informações. Com o tempo, essas ligações desaparecem. Então, só posso concluir que os bancos desenvolveram outros meios de saber para quem estavam emprestando, mas em nenhum momento do meu livro eu tento dizer como. R.N.B. – E os investidores, como eles sabiam de que empresas comprar ações? Havia falta de informações? A.H. – Isso foi algo em que o governo brasileiro realmente acertou. Não havia nenhum grande banco de capital fechado. Todos, em São Paulo, eram sociedades anônimas e, portanto, regulamentados pela Lei das S.As., que determinava a realização de assembleias anuais de acionistas, publicação de lista de acionistas – e quantas ações cada um tinha –, e publicação de seus balanços. Havia uma quantidade substancial de informações disponíveis para os investidores entenderem a estabilidade financeira dessas sociedades anônimas. E é por isso que eu gosto tanto da Bolsa. Ela permitiu que os bancos se formassem como sociedades anônimas, e assim criassem liquidez na economia. R.N.B. – Quem comprava ações? Pessoas comuns? Investidores institucionais? A.H. – Não havia investidores institucionais no período que estudei. Há um livro lançado recentemente, de um colega da Faculdade de Administração de Harvard, Aldo Musacchio, chamado Experiments in Financial Democracy [Experimentos em Democracia Financeira], que leu meu trabalho sobre a Bolsa e se interessou pela regulamentação, mostrando de maneira bem convincente que essa transparência foi essencial para atrair investidores para o mercado. Então ele tem mais informação para responder a essa pergunta. Mas, com base nas listas de acionistas que estudei, os acionistas eram indivíduos. Há algumas corporações detentoras de ações, geralmente bancos estrangeiros – temos que presumir que esses bancos também concediam crédito a empresas – mas a maioria era individual. Alguns indivíduos tinham um punhado de ações, outros tinham centenas. R.N.B. – Era um investimento para aposentadoria ou coisa assim? A.H. – Não tenho as informações para responder. R.N.B. – A Bolsa teve grandes problemas de volatilidade nesse período? A.H. – De fato, com a crise do Encilhamento, a Bolsa deixou de existir por quatro anos. Na ocasião, era realmente só uma associação de corretores. Com o crash do Encilhamento, a maioria voltou a operar individualmente. Até que, em 1895, alguns dos maiores corretores se reuniram e concluíram que era melhor operarem juntos – e a Bolsa voltou a existir. Até 1920 não houve nenhum crash. Houve queda significativa das atividades durante a Primeira Guerra Mundial. O número de companhias listadas e o volume caíram bastante. R.N.B. – Onde a senhora conseguiu obter todos esses dados? A.H. – Em arquivos brasileiros. Muito da minha pesquisa foi feita nos jornais Correio Paulistano, Província de São Paulo e O Estado de S. Paulo. Eles publicavam dados de operações de bolsa todos os dias. Eu optei por pegar uma semana de dados de operações por mês por todo o período. Havia também páginas geralmente publicadas, creio, em janeiro, que eram um sumário das atividades. Isso era mais comum em O Estado de S. Paulo, uma página maravilhosa com as transações do mercado: picos e vales, volumes. Há muita informação sobre os preços das ações publicados em jornais. E também li relatórios anuais de empresas. Essas foram as fontes mais importantes. O Diário Oficial do Estado de S. Paulo também tinha muitos dados. Passei nove meses coletando dados no Brasil, e depois, de volta aos Estados Unidos, completei a pesquisa usando uma biblioteca maravilhosa chamada Biblioteca Centro de Pesquisas, em Chicago, que tem uma fabulosa coleção de microfilmes de jornais estrangeiros. R.N.B. – E onde estavam esses arquivos no Brasil? A.H. – Vocês têm a sorte de ter o Arquivo do Estado de São Paulo. Eles têm uma coleção maravilhosa de manuscritos e documentos históricos. *paulo trevisani De fato, com a crise do Encilhamento, a Bolsa deixou de existir por quatro anos. Até que, em 1895, alguns dos maiores corretores se reuniram e concluíram que era melhor operarem juntos – e a Bolsa voltou a existir é jornalista radicado em nova york. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 13 entrevistas fernando simões diretor presidente da Julio Simões o novo mercado traz visibilidade para as empresas POR fábio pahim jr* Empresa líder do mercado de transporte rodoviário e logística do País, a Júlio Simões estreou na Bolsa em abril, aderindo prontamente ao Novo Mercado, o segmento de mais elevada governança corporativa da BM&FBOVESPA, em que uma das maiores preocupações é estender aos acionistas minoritários direitos semelhantes aos dos acionistas controladores. “Estamos muito contentes com a abertura”, enfatizou o diretor presidente da Julio Simões, Fernando Antonio Simões, em entrevista à Revista Nova Bolsa. “Não fomos atrás de capital, mas de visibilidade”, acrescentou sobre a decisão de abrir o capital. A história da Júlio Simões – holding de um grupo de empresas que nasceu em Mogi das Cruzes nos anos 1950 e que hoje se estende por todo o País – assemelha-se a de outras tantas companhias que traçaram uma estratégia sustentada de crescimento, profissionalizaram a gestão e estão prontas para colherem os frutos do ingresso em bolsa. Fundada pelo imigrante 14 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 português Júlio Simões, hoje com 82 anos, a empresa alcançou enorme expansão durante anos a fio – nada menos de 26,3% ao ano, nos últimos nove anos. Fernando, filho do fundador, assumiu a presidência do grupo há um ano e meio. “Minha grande escola foi a empresa, onde estou desde os 14 anos”. O desafio de crescer num ambiente de fortíssima concorrência é bem visto pela Júlio Simões, pois os clientes têm de apertar ao máximo seus custos para poder competir – e a logística é uma questão-chave. “Há muitos anos nos habituamos a atender empresas com elevadíssimo grau de exigência, como multinacionais, montadoras, companhias siderúrgicas e de celulose ou de energia, do setor sucroalcooleiro”. O ingresso no Novo Mercado permite “obter um selo de qualidade”, mostrar ao mercado e aos acionistas que a empresa optou pela “perpetuidade”. divulgação Só vamos ter desenvolvimento sustentável, no Brasil, se todos os meios de transporte – rodoviário, ferroviário, aquaviário – melhorarem. Isso passa pela modernização das estradas de rodagem e a ampliação da cabotagem Revista da Nova Bolsa – Conte um pouco da Júlio Simões, da sua origem em Mogi das Cruzes até se tornar uma gigantesca empresa de logística. Fernando Simões – A Júlio Simões tem 54 anos, foi fundada por meu pai, um imigrante português de Ribeira do Alcalamouque, em Leiria, que aqui chegou com uma carta de chamada do tio para trabalhar numa empresa de ônibus. O primeiro caminhão era um Big Job, da Ford, com oito anos de uso – ou seja, fabricado em 1948 (hoje um ícone entre os veículos de colecionadores). Começamos transportando verdura do cinturão verde de São Paulo, do qual Mogi é parte, para o Rio de Janeiro. Era o “expresso da verdura” – que tinha de sair de noite e chegar de manhãzinha no Rio, a tempo de entregar o produto fresco, após um percurso que durava 8 horas. Depois, começamos a transportar celulose da Companhia Suzano, e a levar papel, mas já de olho em outros mercados. A Transportadora Julio Simões nasceu ali, na Suzano, que deixou de ter carreteiros autônomos. Preenchemos uma la- cuna. Trazíamos carga de São Paulo, ou de Mogi para o Rio, e voltávamos pela CSN, depois pela Cosim, da Siderbrás. Eu comecei em 1981, com 14 anos, no chão da fábrica, como se diz. Primeiro na expedição, controlando as saídas dos caminhões próprios – eles eram 90 – e de terceiros que trabalhavam para nós. Passei a ser gerente de expedição quando começou a crise para o Brasil. Assumi a parte operacional em 1986 e, com a saída de meu irmão mais velho em 1988, a parte comercial. Tínhamos 150 caminhões e 300 funcionários. Éramos apenas uma transportadora de carga. Fui vice-presidente até um ano e meio atrás, quando assumi a presidência. R.N.B. – Vamos voltar um pouco até os anos 1980. F.S. – Naquela época, dependíamos da celulose e da siderurgia e, por isso, decidimos diversificar. Começamos com o transporte de passageiros para a Suzano e a locação de veículos para a Aracruz Celulose. Ganhamos visibilidade não só como empresa de transporte de carga. Participamos de concorrências e fizemos mudanças de modelos operacionais. Em 1992, 90% do nosso negócio era transporte e éramos a 30ª empresa do setor. Começou aí, há 18 anos, a mudança do perfil da empresa. Até 1996, empresas como a Volkswagen, Aracruz, Cenibra e Suzano tinham transportadoras próprias. Com o dólar a um por real, todos começaram a rever seu processo interno. As empresas tinham necessidade de diversificar. Aí entramos com o transporte interplantas da Volks, madeira para a Aracruz e, depois, para a Cenibra – e nasceram as chamadas operações dedicadas, com um portfólio de serviços muito maior. Desde 2002, somos líderes no segmento logístico-rodoviário no Brasil. É preciso entender o cliente para poder atendêlo – em toda a cadeia de suprimentos. São operações mais completas, mais rentáveis e os riscos para os clientes diminuem. Há mais oportunidade de otimizar o trabalho. É possível aumentar os ganhos cobrando menos. Nos últimos oito ou nove anos, passamos a oferecer produtos diferenciados. Em 2009, a empresa faturou R$1,55 bilhão, com 14 mil colaboradores. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 15 entrevistas R.N.B. – Qual sua visão da logística no País? F.S. – Acredito em soluções customizadas. Os portos foram construídos perto dos grandes centros. As ferrovias foram criadas para atender às usinas siderúrgicas. O desenvolvimento industrial ocorreu muito mais pela controladoria: para saber em que estados se pagaria menos tributos. A logística não comporta soluções do dia para a noite nem soluções alternativas. A madeira da Bahia vem de barcaças, uma solução sob medida para os gargalos. A companhia é uma soma de vários contratos segmentados. Transporte de passageiros, operações com Toyota, GM, Volks, Honda, Ford e MercedesBenz. Buscamos soluções de logística para integrar cliente e consumidor. Nossas atividades estão divididas em quatro grandes áreas – serviços dedicados à cadeia de suprimento, gestão e terceirização de frotas com serviços, transporte de carga geral e transporte de passageiros. R.N.B. – Há, assim, dificuldades de gestão, não? F.S. – No dia a dia, temos gestores por contrato e diretorias por segmento, são 12 diretores, dos quais 6 executivos, 90 gerentes e 200 gestores de contratos. É gente especializada no negócio, com conhecimento aprofundado. R.N.B. – O modal rodoviário tende a ceder espaço para o ferroviário e o aquaviário? F.S. – A situação geográfica nos dá oportunidade de ter várias operações customizadas, não vejo perda de espaço, do ponto de vista da empresa. Mas, é importante que as ferrovias tenham maior peso nos transportes. Só vamos ter desenvolvimento sustentável, no Brasil, se todos os modais melhorarem. É uma forma de evitar problemas logísticos futuros. Isso passa pela mo16 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 dernização das estradas de rodagem e a ampliação da cabotagem. R.N.B. – Como avalia a regulação, via Agência Nacional do Transporte Rodoviário (ANTT)? F.S. – A ANTT tem trabalho no planejamento para evitar os gargalos futuros, por exemplo, na sinalização das ferrovias. Vemos um planejamento futuro mais agressivo. Mas há muito por fazer. R.N.B. – O balanço rodoviário da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) mostrou melhora nas estradas brasileiras, sobretudo nas que já eram boas, mas situação ruim nas estradas mais deficiente. Qual é a sua avaliação das rodovias? F.S. – O trabalho da CNT ajuda a orientar o foco, onde é preciso trabalhar. No nosso caso, ficamos muito centrados em atender às necessidades do cliente, caso a caso. R.N.B. – Como comparar o custo de trafegar numa estrada ruim com o de pagar pedágios de valor elevado? F. S. – O pedágio tem um bom custobenefício. Mas há pedágios caros e outros mais coerentes. Nas concessões mais antigas, o pedágio é mais caro. Nas últimas concessões, parece-me mais justo. O problema acaba recaindo no consumidor final, pois o transporte encarece a mercadoria. Ainda assim, é melhor ter uma estrada com pedágio. R.N.B. – Voltando a Júlio Simões, qual é a posição da empresa, hoje? F.S. – É diversificada. Atuamos com indústria automobilística, celulares, energia elétrica e mineração. Os serviços dedicados representam 53% do faturamento. O portfólio diversificado nos permite crescer; nos últimos nove anos, crescemos, em média, 26,3% R.N.B. – Como foi a decisão de abrir o capital, eu tive a impressão de que ela se destinava a reduzir o endividamento, mas seu diretor Marc Ferrez me esclareceu que não é isso, pois o ciclo de negócios inclui pontos de alto e de baixo endividamento perfeitamente previsíveis e recorrentes. F.S. – A abertura de capital ocorreu depois de vários avanços. Nos últimos cinco anos, embora na condição de empresa familiar, tornamo-nos totalmente profissionalizados. Da família, só estou eu. Meu filho é apenas conselheiro. Somos auditados há cinco anos. Passada a “marolinha” de 2009, tínhamos de nos tornar cada vez mais diferenciados e isso passava pelo mercado de capitais. Tínhamos de ter funding diversificado para nos desenvolver. R.N.B. – Como é a governança corporativa numa empresa de gestão tão complexa? F.S. – É importante para nosso modelo ter o selo do Novo Mercado. Quando você diversifica o portfólio, pode aproveitar melhor o crescimento do País, as oportunidades que vão surgindo. R.N.B. – Como foi a preparação para a oferta inicial de ações, o IPO da Julio Simões? F.S. – Não acredito em preparação acelerada de uma empresa para a abertura, pois se ela é profissionalizada, a abertura não pode ser artificial. Em seis meses, oito meses, que foi o tempo para as providências legais, foram feitos apenas os ajustes para atender aos requisitos da abertura, às regras rigorosas de compliance. R.N.B. – Como imagina que será o setor – e a Júlio Simões – daqui a uma década? Estará, por exemplo, prestando serviços na área do pré-sal? F.S. – Daqui a dez anos, o mercado de logística vai ter de achar soluções para participar do desenvolvimento de forma cada vez mais diversificada, em função do portfólio de clientes e atividades. Acredito que nesse tempo nosso segmento permitirá uma grande consolidação orgânica, não via aquisições. Acreditamos que faremos parte de uma mudança logística com crescimento orgânico – aliás, fizemos só duas aquisições, sem as quais teríamos crescido não 26%, mas 24%. A base logística está sendo construída – rodoanel, ferroanel, rodovias. Há segmentos que já vivem essa fase, alguns já estão maduros, como o setor automobilístico, e essa será a tendência dos próximos dez anos. R.N.B. – Voltando aos aspectos contábeis, não há necessidade de reduzir o endividamento, da ordem de R$1,2 bilhão, conforme o balanço do segundo trimestre? F.S. – O endividamento sempre esteve sob controle. A operação baseia-se em endividamento, retorno (com a redução das dívidas) e novo endividamento. A questão é fortalecer a estrutura de capital, pensando no futuro. As empresas estão maduras e sabem o que precisam para poder atender aos seus clientes. Têm de atender à demanda. A busca de capital é para o desenvolvimento. E queremos a perpetuação da companhia. O mercado de capitais é o selo dessa perpetuidade. R.N.B. – E base de acionistas? Algumas centenas entraram no IPO da Júlio Simões, mas ainda é pequena, não? F.S. – O mercado vai conhecendo aos poucos a Júlio Simões. Não há companhias comparáveis, o aumento da base de acionistas é uma consequência natural desse conhecimento. *fábio R.N.B. – Os demonstrativos sugerem que as margens não são elevadas, a lucratividade do patrimônio não é alta. F.S. – As margens são baixas, mas a tendência é positiva. O segundo semestre contribui mais para o lucro do que o primeiro, com o aumento natural da atividade econômica. Já no primeiro semestre, há mais desembolsos. R.N.B. – Quantos veículos existem na frota da Júlio Simões? F.S. – Há 23 mil DUTs (Documentos Únicos de Transporte), entre automóveis, tratores e semirreboques. R.N.B. – Vocês também ingressaram na área de locações F.S. – Além de automóveis, temos 1,5 mil caminhões alugados para as mais diversas empresas, para o setor público, para companhias de alimentação, construção civil e gás. As locações de automóveis são, em geral, por dois anos, e as de caminhões, em média por cinco anos. Os clientes têm condição especial, pois asseguramos a disponibilidade da frota, ou seja, carros-reserva em todo o País. Trabalhamos no atacado. A customização traz ganhos para os clientes. Calculamos que um cliente que precisasse ter uma frota própria de cem veículos possa locar apenas uns 80, ou seja, seu custo é menor quando há carrosreserva prontamente disponíveis. Daqui a dez anos, o mercado de logística vai ter de achar soluções para participar do desenvolvimento de forma cada vez mais diversificada, em função do portfólio de clientes e atividades, o que permitirá, em nosso segmento, uma grande consolidação orgânica, não via aquisições R. N.B. – Há alguma demanda especial dos investidores estrangeiros, que subscreveram cerca de 2/3 das ações oferecidas no IPO? Enfim, como avalia a abertura do capital alguns meses depois? F.S. – Estamos felizes com a abertura. Por exemplo, temos um conselho que nos propicia outras visões e que permite um planejamento mais claro da companhia. pahim jr é jornalista e coordenador editorial da revista da nova bolsa. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 17 petrobras petrobras: a empresa puxa onda de investimentos Concluído o gigantesco aporte de recursos de investidores para a Petrobras – e o avanço do País no mundo do petróleo – retomaram-se os IPOs, incorporando mais empresas ao mercado de capitais POR THEO CARNIER* A Petrobras – e o mercado de capitais brasileiro – deram enorme passo à frente com a capitalização da empresa por intermédio da maior oferta de ações da história mundial, correspondente a R$120 bilhões ou perto de US$70 bilhões, dos quais US$45 bilhões em reservas nos campos do pré-sal. Poucos dias depois da oferta, realizada em 24 de setembro, novas companhias abriram o capital na Bolsa: a primeira foi a HRT Participações, que captou R$2,624 bilhões em 25 de outubro, seguindo-se o IPO da Brasil Insurance, que levantou R$644 milhões em 1º de novembro. Foi uma pronta resposta do mercado. “Uma nova onda de investimentos surgirá a partir dessa capitalização, num primeiro momento no setor de petróleo é gás”, previu o diretor presidente da BM&FBOVESPA, Edemir Pinto. “Esses investimentos vão gerar mais empregos, renda e crescimento”. Pesos pesados Participaram do evento da Petrobras o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente, José Alencar, os ministros Guido Mantega, da Fazenda, Márcio Zimmermann, de Minas e Energia, e o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli. Eles foram recebidos pelo presidente da Bolsa, Edemir Pinto, para quem “a história da economia brasileira e, principalmente, do mercado de capitais, passa a se dividir em antes e depois da operação que celebramos agora”. O lançamento superou os recordes anteriores, do Royal Bank of Scotland, em 2008 (US$24,4 bilhões), e do Agricultural Bank of China (US$22,1 bilhões). E “colocou o Brasil em destaque no noticiário mundial”, lembrou William Eid, professor de Finanças e Mercado de Capitais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Os holofotes do mundo se voltaram para a BM&FBOVESPA”, acrescentou. Servirá para cobrir uma fração do previsto para explorar o pré-sal – Gabrielli calcula que a estatal terá de levantar no mercado mais US$60 bilhões entre 2011 e 2015 para financiar o programa de investimentos. 18 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 getty image JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 19 petrobras Galgando posições Com a operação, o mercado acionário brasileiro galgou posições entre os mercados globais. Na véspera da operação da Petrobras, a companhia aberta BM&FBOVESPA chegou ao segundo lugar entre as maiores bolsas do mundo pelo critério de valor de mercado, alcançando R$30,4 bilhões – outro marco. “Esse valor é 25% maior que a soma das três bolsas consideradas as catedrais do capitalismo internacional – a Bolsa de Nova York, a de Londres e a Nasdaq”, lembrou Edemir. Diante dele, na cerimônia de lançamento, um presidente Lula entusiasmado com a “Bolsa verde-amarela” afirmou: “Essa é uma decisão da sociedade de capitalizar seu futuro. Parabéns à Petrobras e à BM&FBOVESPA que, com muito trabalho, conseguiram fazer com que o Brasil vivesse um momento histórico como este”. A Petrobras ofertou 4,27 bilhões ações, das quais 2,369 bilhões de ordinárias e 1,901 bilhão de preferenciais, atraindo 55,3 mil acionistas na oferta ao varejo, mais 18 mil cotistas de fundos de investimento e 14,9 mil funcionários da empresa. Os números ajudaram a elevar para 630.895 o número de pessoas físicas presentes no mercado de ações, em setembro – esse é outro recorde histórico no País. Apesar disso, certos aspectos da operação não passaram incólumes a críticas. Algumas instituições financeiras manifestaram reticências quanto às ações. As cotações oscilaram muito em outubro, nos dias seguintes à batida do martelo, chegando a ficar abaixo do preço de lançamento. O presidente do Conselho de Administração da BM&FBOVESPA, Arminio Fraga, afirmou, no 11º Congresso Internacional de Governança Corporativa, realizado em 26 de outubro: “Não dá para tapar o sol com peneira. Ficou, com certeza, um mal estar generalizado”. O fato de a operação ser entre partes relacionadas foi vista com críticas pelos estrangeiros. “O investidor estrangeiro olha para o Brasil e pergunta: o que é isso?” Gabrielli respondeu às críticas citando os números do conjunto da operação. “Estruturamos a oferta de ações com equanimidade, tanto aqui como no exterior”, afirmou. “Recebemos ofertas a partir de R$200,00, que resultaram na conquista de dezenas de milhares de investidores. Durante três semanas, cinco equipes de especialistas da Petrobras fizeram uma maratona em 71 cidades para detalhar a operação. Demos prioridade à governança, o que certamente ajudou a atrair os investidores”. A oferta destinada aos já acionistas perfez US$49,4 bilhões e, somada à demanda dos funcionários da empresa, atraiu mais de 70 mil investidores. Foi captado US$1,4 bilhão no exterior. Segunda maior do mundo Parabéns à Petrobras e à BM&FBOVESPA que, com muito trabalho, conseguiram fazer com que o Brasil vivesse um momento histórico como este LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, PRESIDENTE DA REPÚBLICA 20 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 A Petrobras chegou ao final de setembro como a segunda maior empresa petrolífera de capital aberto do mundo, com valor de mercado de cerca de US$223 bilhões, atrás apenas da Exxon (US$290 bilhões). Tornou-se ainda a quarta colocada no ranking geral de empresas abertas do mundo, atrás apenas da Exxon, da PetroChina e da Apple e à frente da Microsoft, do Bank of China, da WalMart e da General Electric. Antes da oferta, o valor de mercado da Petrobras era de US$147 bilhões. fotos: agência luz Como lembrou o ministro da Fazenda, “os acionistas minoritários tiveram ampla participação”. Mantega destacou, no evento de lançamento: “A bolsa brasileira mostrou que tem o mesmo nível das maiores do mundo. Essa capitalização não é um fato isolado. Reflete a força do mercado brasileiro e da economia do País” – o valor de mercado da Petrobras ficou quatro vezes maior em cinco anos, disse. Para o vice-presidente Alencar, “fica para trás o tempo em que temíamos as altas do preço do petróleo no mercado internacional”. E, na opinião do ministro Zimmermann, o lançamento “mostrou como o País está crescendo e como se pode fazer uma gestão eficiente”. O presidente Lula, por sua vez, enfatizou: “A alegria de estar aqui, comemorando esse lançamento de ações na BM&FBOVESPA, não tem tamanho. Estamos vivendo um dos momentos mais auspiciosos da história, que ajuda a criar um País mais livre e justo para as próximas gerações”. Edemir Pinto, presidente da BM&FBOVESPA, recordou a visita do presidente Lula à Bolsa há dois anos, para comemorar a obtenção do grau de investimento pelo Brasil. Naquela ocasião, lembrou, o presidente da República disse que “o Brasil precisa da BM&FBOVESPA e a BM&FBOVESPA precisa do Brasil”. Essas palavras, afirmou o presidente da Bolsa, anteciparam a operação recorde da Petrobras. “O mercado deve muito a Vossa Excelência. Foi no seu governo que a tributação dos ganhos de capital caiu para 15% e o mercado acionário se popularizou”, disse Edemir. “Essas ações fizeram do senhor, presidente, um dos principais parceiros de uma revolução que aconteceu no País. A revolução dos investidores que têm uma visão moderna, de longo prazo, e a dos empresários que querem sócios para poder competir de modo mais eficiente”. Mais investidores O momento é propício. “A Bolsa está fazendo um grande esforço para atrair mais investimentos para as empresas brasileiras. Investimos pesado na educação financeira, na atração de novas companhias, na formação de novos gestores e no aprimoramento das regras de governança”. Esse tra- Fica para trás o tempo em que temíamos as altas do preço do petróleo no mercado internacional José Alencar, vice-presidente balho, lembrou Edemir, “tem como base um sistema de negociação, de liquidação, de custódia e de gerenciamento de riscos que é modelo para todo o mundo, o que ficou ainda mais claro após a crise financeira de 2008”. O esforço permitiu atrair mais de 150 companhias para o mercado de capitais desde 2004. “Ao final de 2014, vamos chegar à marca de 5 milhões de investidores pessoas físicas, saindo dos atuais 600 mil”, garantiu Edemir. “Vamos reduzir os custos para os pequenos investidores na Bolsa. Queremos atrair também ao menos mais 200 companhias para a BM&FBOVESPA, o que é uma meta conservadora, dado o potencial do País”. Conta, para isso, com a presença da Petrobras. “A cultura do investidor brasileiro associa de maneira direta a Petrobras à Bolsa”, afirma Ricardo Almeida, professor de Mercados Financeiros e de Avaliação de Empresas do Insper (ex-Ibmec São Paulo). Para atrair investidores, a companhia tomou cuidados. O preço de emissão foi fixado em R$29,65 por ação ordinária e em R$26,30 para as preferenciais, depois da conclusão do JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 21 petrobras Vamos construir dezenas de plataformas nos próximos anos e elas vão precisar de centenas de barcos de apoio José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras procedimento de coleta de intenções de investimento dos investidores institucionais (bookbuilding). Para o mercado externo, a negociação foi feita em ADS (American Depositary Shares), cada um representado por duas ações ordinárias ou duas preferenciais, e expresso por um ADR (American Depositary Receipt). O preço foi fixado em US$34,49 por ADS representativo de ações ordinárias e em US$30,59 para os representativos de preferenciais, com a cotação de R$1,7194 por dólar (taxa média de venda do Banco Central no dia 23 de setembro). Ao final da operação, a Petrobras ficou com nova composição acionária. A União passou de 32,1% do capital total da companhia (55,6% do total com direito a voto) para 31,1% (53,6% das ações ordinárias), considerando os lotes suplementar e adicional. O BNDES e seu braço de participações BNDESPar passaram a ter fatia de 13,4% no capital total, em comparação aos 7,7% antes da oferta (levando em conta apenas o BNDESPar, já que o banco não era considerado acionista antes da operação). O Fundo Soberano, que também não tinha participação antes do lançamento recorde da Petrobras, passou a deter 3,9% do capital total (4,6% do 22 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 ordinário e 2,9% do preferencial). Os ADR Nível 3 reduziram sua participação total de 28,9% para 22,7% e os investidores estrangeiros mantiveram a fatia de 8,7%. Os demais acionistas passaram de 22,6% para 20,2% do total. A proporção de ações ordinárias no capital total caiu de 57,8%, antes da oferta, para 57,1% e a de preferenciais subiu de 42,2% para 42,9%. Distribuição do dinheiro Os R$120 bilhões da captação serão utilizados pela companhia de duas maneiras, segundo Gabrielli: a) para pagar a cessão onerosa com a União, em que a companhia adquiriu o direito de exploração até que produza 5 bilhões de barris de petróleo na camada pré-sal; e b) para investir no desenvolvimento das várias áreas da empresa, com o financiamento de parte do plano de investimento de US$224 bilhões até 2014. “Com os recursos da captação, estamos em condições de começar uma nova etapa da Petrobras, do Brasil e da nossa sociedade”. No dizer do ministro Mantega, também presidente do Conselho de Administração da companhia, isso mostra a força da economia brasileira. “Aqui, não há risco de doença holandesa”, esclareceu, referindo-se aos problemas que a economia da Holan- da enfrentou nos anos 1960: com a descoberta de grandes reservas de gás natural, houve valorização da moeda e prejuízos no setor industrial. “No Brasil, não existe o que foi chamado de ‘maldição do petróleo’. O que temos é a bênção do petróleo”. A Petrobras puxa o crescimento de centenas de outras empresas, principalmente indústrias, que fazem parte de sua cadeia de fornecimento. Bens de capital e indústria naval são exemplos. “Vamos construir dezenas de plataformas nos próximos anos e elas vão precisar de centenas de barcos de apoio. Também precisaremos de mais cargueiros para o transporte”, informou Gabrielli. “Tivemos o respaldo dos investidores e o governo ajudou. Mas milhares de outros acionistas também compraram ações. É o reconhecimento e a aceitação do nosso programa de crescimento. É natural que aconteçam flutuações das ações após a capitalização, em uma empresa que fez a maior oferta de ações da história”. Pré-sal na mira Com o sucesso do lançamento de ações, a Petrobras acelera seus planos de exploração da camada pré-sal, o maior projeto em andamento no mundo do setor de petróleo e gás. Com a HRT, a volta dos IPOs getty image O prospecto preliminar de abertura de capital da HRT Participações em Petróleo, divulgado no início de outubro, indicou que o mercado de ações deve mesmo crescer a partir da operação da Petrobras. A HRT captou no ano passado US$275 milhões de 66 investidores, em operação privada. Dentre esses investidores, destacou-se o fundo MSD Capital, que tem entre seus principais cotistas Michael Dell, fundador da Dell Computers, uma das maiores fabricantes de computadores do mundo. Fundada pelo geólogo Márcio Mello, um especialista em pré-sal, a empresa – da qual participam ex-funcionários da Petrobras – nasceu em julho de 2009, englobando a antiga HRT Petroleum, de serviços de petróleo, e a HRT O&G, de exploração e produção. Já conta com uma área de Relações com Investidores, entrou no Novo Mercado da BM&FBOVESPA e previu, no prospecto preliminar, a emissão de 1,820 milhão de ações. O valor da distribuição previsto em R$1,9 bilhão acabou gerando R$700 milhões mais. A HRT comprou, no final de 2009, 51% de participação em 21 blocos de exploração da Bacia do Solimões, no Amazonas. Somando todas suas participações em blocos, a empresa tem uma área com potencial para produzir bi- lhões de barris de petróleo leve, segundo estudos preliminares realizados por técnicos. A HRT puxou a fila de novos lançamentos de ações, no rastro da operação recorde da Petrobras. Mas esse recorde também não foi um fato isolado na história da Bolsa. Em 2009, o Banco Santander realizou a maior oferta inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) do mundo naquele ano, na qual captou US$7,5 bilhões. O mercado brasileiro teve seis dessas operações em 2009, que somaram US$13,2 bilhões. “Vários lançamentos importantes ajudaram a colocar a bolsa brasileira em papel de destaque entre as maiores do mundo”, lembra Almeida, do Insper. “Além do Santander, aconteceram operações como a da Cielo, que despertaram o interesse do investidor”. No primeiro semestre de 2010, houve 13 ofertas de ações, que somaram R$13,55 bilhões, crescimento de 19,6% sobre igual período de 2009. Do total de ofertas, a maioria (sete) foram aberturas de capital. Na avaliação de Celso Grisi, professor de Finanças da Fipecafi (Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras), a capitalização foi fundamental para a Petrobras e para a Bolsa, que já vivia um momento de otimismo. Para ele, as perspectivas do mercado acionário brasileiro “são muito positivas” e a operação Petrobras será mais um estímulo ao aquecimento do mercado de ações brasileiro. Dou parabéns à companhia e a seus funcionários, que fizeram da Petrobras um exemplo de inovação para o Brasil e para o mundo EDEMIR PINTO, diretor presidente da bm&fbovespa No final de setembro, o Conselho de Administração da empresa homologou o valor de R$4.383,58 para cada uma das LFTs (Letras Financeiras do Tesouro) disponibilizadas pelo acionista controlador e pelos minoritários, com os quais se comprometeu a pagar as reservas de petróleo equivalentes a 5 bilhões de barris em áreas não licitadas no pré-sal da Bacia de Santos. As reservas foram repassadas pela União, no processo que ficou conhecido como cessão onerosa. As LFTs foram entregues na conta de liquidação da BM&FBOVESPA, no Sistema Especial de Liquidação e Custódia. Do total captado na oferta primária pública, R$67,8 bilhões foram recebidos em LFTs. “Quando José Sérgio Gabrielli me informou, há alguns anos, que teríamos um projeto chamado de pré-sal, para explorar petróleo a 6 mil metros de profundidade, fiquei surpreso”, afirmou Lula no evento de lançamento. “No entanto, vivemos momentos gloriosos. Essa operação é mais uma afirmação de que estamos caminhando na direção JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 23 correta”. Ao que o diretor presidente da Bolsa, Edemir Pinto, acrescentou: “Dou parabéns à companhia e a seus funcionários, que fizeram da Petrobras um exemplo de inovação para o Brasil e para o mundo. Ela agora propicia ao Brasil o registro da maior operação do mundo no mercado de capitais, uma realização que ficará para a história”. A companhia “está intimamente ligada ao mercado de capitais brasileiro; logo na sua criação, em 1953, foi feita uma emissão de debêntures. Sua evolução é notável”. Tupi, 2014, Copa Quando virarem produção, essas reservas se destinarão na maior parte às exportações. A produção mundial de petróleo (86 milhões de barris/ dia) está em declínio e o consumo, em alta e já se prevê um déficit (lá por volta de 2030) que será coberto por novas descobertas (como as brasileiras), por fontes alternativas e por maior eficiência energética. A atual produção brasileira – sem o pré-sal – está em 2 milhões de barris/dia, para um consumo também de 2 milhões. Só não há autossuficiência porque diferenças na qualidade do óleo tornam mais negócio importar, de um lado, e exportar, de outro. Segundo a Petrobras, que pretende investir US$224 bilhões em quatro anos, a produção das áreas não pré-sal já conhecidas vai chegar a 3 milhões de barris/dia em 2014, ano da Copa. A partir daí, o pré-sal entra para valer. Estima-se que os campos da primeira fase do pré-sal (Tupi e outros) – objeto da cessão onerosa que permitiu a recente capitalização da Petrobras – estarão produzindo 1,8 milhão de barris/dia em 2020. Com a entrada em operação de novas descobertas, em 2030 o aumento da produção poderá chegar a 2,8 24 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 folhapress petrobras Marco regulatório Entre partilhas, concessões, novas descobertas O pré-sal pode não ser a panaceia com que sonham os mais afoitos. Mas certamente mudará a face do País nos próximos 10, 20 anos – para o bem, espera-se, embora o mal esteja à espreita. Pois seus impactos serão tremendos seja na produção, nas exportações, na receita de divisas, na dinamização de fornecedores internos, nas perspectivas que se abrem para investimentos públicos em infraestrutura, saúde, educação, seja nas pressões altistas sobre o real, nos riscos de desindustrialização se a economia ficar dependente demais desse núcleo extrativo-industrial (é o que ocorre na Rússia). Tudo isso para não falar naquela espécie de alienação febril que o dinheiro do petróleo, como a história demonstra, injeta em pessoas e nações. Os números são todos grandiloquentes, mesmo considerando-se o que se sabe até agora. Não contando o pré-sal, as reservas provadas brasileiras estão em torno de 14 bilhões de barris (principalmente a partir das águas profundas da bacia de Campos, RJ). As primeiras descobertas do pré-sal (onde avultam os campos de Tupi e Franco nas águas ultraprofundas da bacia de Santos) indicam, segundo o governo, reservas que podem ir de 9,5 bilhões a 14,5 bilhões de barris. Somando as duas, já teríamos alguma coisa entre 17,4 bilhões e 29 bilhões de barris. Na véspera do segundo turno eleitoral, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) tornou o mar ainda mais encapelado ao anunciar que o poço de Libra, também na bacia de Santos, tem reservas de 7,9 bilhões de barris (podendo chegar a 15 bilhões). Não faltaram especulações citando reservas entre 32 bilhões e 51 bilhões de barris, situando o Brasil entre os dez grandes (o líder é a Arábia Saudita, com mais de 200 bilhões). Mais Estado, mais Petrobras O andar dessa carruagem sofreu, no entanto, uma meia-trava ao longo de 2010. Trata-se do novo marco regulatório do petróleo. No começo do ano, o governo enviou ao Congresso quatro projetos: a criação da Petro-Sal para administrar os novos contratos e as relações com as empresas (inclusive os contratos de partilha); a instituição de uma cessão onerosa de até 5 bilhões de barris (que a Petrobras pagará com óleo à União, detentora, afinal, das jazidas) para permitir a capitalização da empresa; a criação de um Fundo Social para destinar parte dos recursos advindos do pré-sal ao combate à pobreza e ao desenvolvimento das áreas de educação, saúde e inovação científica e tecnológica, nas áreas de infraestrutura (quase um fundo soberano); a instituição dos contratos de partilha em substituição aos contratos de concessão, mantendo No Brasil, não existe o que foi chamado de ‘maldição do petróleo’. O que temos é a bênção do petróleo Guido Mantega, ministro da Fazenda a distribuição vigente dos royalties a Estados e municípios. Os dois primeiros já foram aprovados e sancionados; os outros dois estão encalacrados por conta do potencial conflitivo da distribuição de royalties. Em seu conjunto, representam claramente aumento do papel do Estado no setor, um aperto forte nos controles governamentais e grande ampliação de poderes da Petrobras. E ganharam apoio do Congresso, exceto quanto aos royalties (aprovouse a Petro-Sal, por exemplo, sem que seu objeto – os contratos de partilha – tenha sido aprovado). O regime vigente no Brasil para petróleo e gás natural é o de concessão, instituído pela Lei 9.478/97 (que abriu o monopólio e substituiu a Lei 2.004/53, a madrinha do “petróleo é nosso”, da era Vargas). Na concessão, a empresa vencedora da licitação é dona do óleo que produz e das instalações; fica com a receita após cumprir exigências legais, como recolher os bônus de assinatura (valor em dinheiro ofertado à União pelo direito de usufruir da concessão), os royalties, as participações especiais. Os primeiros contratos do pré-sal (Tupi incluído) foram assinados sob o regime de concessão: representam uma área de 41,8 mil km2, ou 28% da área total já mapeada para o pré-sal (149 mil km2); a Petrobras detém mais de 90% dessas concessões, ganhando, portanto, a companhia de empresas privadas. Baixo risco O que fazer com os restantes 107,2 mil km2 da área já mapeada e ainda não licitada? O atual governo decidiu estabelecer a partilha. Por esse regime, a propriedade é da União, a empresa contratada (após licitação) assume os riscos da exploração, é ressarcida pelos custos (se houver descoberta comercial) e cumpre as exigências legais (bônus de assinatura e royalties, por exemplo). Havendo exploração comercial, o óleo produzido será dividido entre a empresa e a União. Segundo o projeto do governo, a Petrobras, além de participar das licitações, sozinha ou consorciada, e/ou de poder getty image milhões de barris/dia, de acordo com recente estudo do BNDES. Assim, daqui a 20 anos, somando o já conhecido e o apenas suspeitado até agora, poderemos produzir 6 milhões de barris/dia, sendo o consumo interno em torno de 3 milhões de barris/dia. Esta é uma projeção da governamental Empresa de Pesquisa Energética (EPE), feita para o Plano Nacional de Energia, o último disponível, elaborado com dados de 2007, quando o pré-sal ainda era só uma sementinha. Pode estar defasado, mas, se estiver, as diferenças não serão grandes: o plano baseou-se em projeções comumente aceitas para o crescimento médio do PIB e para avanços importantes, na matriz energética brasileira, no consumo de gás natural e de derivados da cana-de-açúcar, em substituição ao petróleo. Em qualquer caso, sobrará muito óleo para exportar. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 25 petrobras folhapress Após candentes discussões e ameaças de veto por parte do Executivo, o Senado aprovou a essência do novo texto, por caminhos ainda mais complicados ser contratada diretamente, será a operadora exclusiva (com um porcentual mínimo de 30% em todos os consórcios). Argumentos oficiais: a concessão foi interessante no final da década de 1990, por causa das incertezas da economia, do baixo preço do petróleo e do alto risco exploratório. Agora, o petróleo subiu, a economia cresce e o risco é baixo – além do que, dizem documentos oficiais, os grandes produtores do Oriente Médio aplicam o regime de partilha e é necessário “maior controle do governo” numa atividade de grande sensibilidade geoeconômica e política. O Congresso acolheu esses argumentos quanto à partilha. O enrosco aconteceu no caso dos royalties. As duas questões compunham o mesmo projeto. A intenção do governo era manter a atual norma dos royalties, pela qual os Estados produtores (principalmente o Rio de Janeiro) obtinham uma receita diferenciada – cerca de 60% do arrecadado a esse título. Na Câmara, porém, o deputado gaúcho Ibsen Pinheiro (PMDB) apresentou emenda que tornava igualitária a dis26 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 tribuição dos royalties, seguindo os critérios (populacionais) dos Fundos de Participação dos Estados e Municípios (que já recebem parte da arrecadação federal). E mais: a nova norma valeria para frente e para trás, ou seja, não só para o pré-sal mas também para as concessões já em vigor. Aprovada a emenda em março – em meio a grande chiadeira dos estados atualmente produtores –, o texto ganhou o título de Projeto de Lei da Câmara (PLC) 7 e seguiu para o Senado. Tramitação complicada Após candentes discussões e ameaças de veto por parte do Executivo, o Senado aprovou a essência do novo texto, por caminhos ainda mais complicados. O também gaúcho senador Pedro Simon (PMDB) apresentou um substitutivo juntando nesse mesmo PLC 7 os temas da partilha, da distribuição igualitária dos royalties (repetindo a emenda Ibsen) e da estrutura do Fundo Social. Enquanto o projeto original da partilha/ royalties ia para a gaveta do Senado, o novo texto globalizante voltava para a Câmara, onde teria de ser votado novamente, já que houve modificações estruturais. Aguardou decisão desde meados de junho – as eleições, naturalmente, interpuseram-se à rotina da tramitação. Passada a eleição, os trabalhos recomeçaram, mas havia dez medidas provisórias (MPs) e o orçamento de 2011 trancando a pauta. Quando ninguém mais esperava alguma decisão – nem mesmo o líder do governo na Câmara – os deputados aprovaram inteiramente o substitutivo do senador Pedro Simon na madrugada do dia 2 de dezembro. No caso dos royalties e das compensações que o governo federal terá de fazer para estados e municípios, contrariaram o parecer do relator, o deputado e futuro ministro Antônio Palocci (PT-SP), chamado a plenário após quatro meses de campanha. O texto segue para sanção de Lula. Dado o potencial conflitivo da questão dos royalties, veto e novas negociações são os itens que entram em pauta. *THEO CARNIER É JORNALISTA ECONÔMICo E SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DO JORNAL DCI. capa capa Da esquerda para a direita: Mário Monzoni, da FGV; Maired Hancock, da EIRIS; Sonia Favaretto, da BM&FBOVESPA; e Peter Clifford, da WFE Pedro Sirgado Roberta Simonetti Maria Eugenia Buosi ANIVERSÁRIO DO ISE Seminário internacional celebra 5 anos do Índice de Sustentabilidade Empresarial por priscilla de cassia ferreira* FOTOS agência luz 28 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 A comemoração dos cinco anos do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), lançado em dezembro de 2005, culminou no “Seminário Internacional Índices de Sustentabilidade – Análises e Perspectivas”, realizado na BM&FBOVESPA, em 26 de novembro. Para debater a eficiência desses indicadores, foram convidados membros da WFE (Federação Mundial das Bolsas) e representantes de indicadores semelhantes que são referência internacional. Na abertura do seminário, o diretor presidente da BM&FBOVESPA, Edemir Pinto, destacou a nova carteira do ISE, que entrará em vigor em 3 de janeiro de 2011, e a informação de que a Bolsa dará início, em breve, ao processo para o lançamento de um Fundo de Índice (ETF) do ISE. “Acreditamos que o ISE vem, a cada ano, ganhando mais relevância como um instrumento financeiro de estímulo à construção de uma sociedade sustentável. O interesse e o esforço para integrar o índice mostram que isto já está se tornando um diferencial importante de valor para um número cada vez maior de companhias”. Para discutir o papel do ISE e de outros índices de sustentabilidade, o secretário-adjunto da WFE, Peter Clifford, apresentou um histórico da adoção de práticas sustentáveis nas bolsas do mundo. Segundo ele, a maior parte das iniciativas pela sustentabilidade no mercado de capitais atualmente tem partido de economias emergentes. Um exemplo disso é que apenas as bolsas do Brasil, da Turquia e da África do Sul são atualmente signatárias do PRI (Principles for Responsible Investment) da Organização das Nações Unidas. Acreditamos que o ISE vem, a cada ano, ganhando mais relevância como um instrumento financeiro de estímulo à construção de uma sociedade sustentável. O interesse e o esforço para integrar o índice mostram que isto já está se tornando um diferencial importante de valor para um número cada vez maior de companhias Edemir Pinto, diretor presidente da BM&FBOVESPA André Palhano, da Folha de São Paulo , e Baljit Wadhwa, da International Finance Corporation JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 29 capa Nova carteira A carteira do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), que vai vigorar de 3 de janeiro a 29 de dezembro de 2011, reúne 47 ações de 38 companhias. Elas representam 18 setores e somam R$1,17 trilhão em valor de mercado, o equivalente a 46,1% do valor de mercado total das companhias com ações negociadas na BM&FBOVESPA (em 24/11/2010). Três setores estão ingressando no índice: serviços educacionais, holding diversificadas e mineração. Das 34 empresas que constavam na carteira anterior, 32 foram selecionadas também para a nova carteira. As seis companhias que ingressam agora e não estavam na anterior são: Anhanguera, Bicbanco, Copasa, Santander, Ultrapar e Vale. Ao atingir 38 participantes, a carteira do ISE se aproxima do seu limite, que atualmente é de 40 companhias. Esse fato incentiva as companhias a se empenharem mais para permanecer no índice e amplia a diversificação da carteira. Carteira ISE 2011 AES Tiete, Anhanguera, Bicbanco, Bradesco, Banco do Brasil, Braskem, BRF Foods, Cemig, Cesp, Coelce, Copasa, Copel, CPFL Energia, Duratex, Eletrobras, Eletropaulo, Embraer, Energias BR, Even, Fíbria, Gerdau, Metalúrgica Gerdau, Indústrias Romi, Itaúsa, Itaú-Unibanco, Light, Natura, Redecard, Sabesp, Santander, Sulamérica, Suzano Papel e Celulose, Telemar, Tim, Tractebel, Ultrapar, Vale e Vivo. 30 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 Mário Monzoni, do Centro de Estudos de Sustentabilidade da FGV Os índices ainda precisam evoluir para atingir um equilíbrio entre os padrões exigidos internacionalmente e as características específicas de cada região Maired Hancock, diretora de atendimento ao cliente da EIRIS Maired Hancock, diretora de atendimento ao cliente da EIRIS, consultoria responsável pelos índices de sustentabilidade das bolsas de Londres e Johanesburgo, também participou da discussão. Ela destacou alguns dos principais desafios para o futuro destes indicadores no mundo: “Os índices ainda precisam evoluir para atingir um equilíbrio entre os padrões exigidos internacionalmente e as características específicas de cada região”. Estudo e diálogos com stakeholders O IFC (International Finance Corporation), que ajudou a financiar a criação do ISE, apresentou o estudo “Índice de Sustentabilidade Empresarial BM&FBOVESPA e as práticas responsáveis de empresas brasileiras”. Para a líder do departamento de avaliação e monitoramento da área de consultoria em negócios sustentáveis do IFC, Baljit Wadhwa, o ISE tem cumprido um papel relevante na promoção de práticas de sustentabilidade nas empresas. Ela acredita, no entanto, que o investidor ainda precisa ser convencido de que a sustentabilidade aumenta o valor para o acionista no longo prazo. “Cabe à comunidade financeira capacitar profissionais para fazer essa análise e educar o mercado”, avalia Wadhwa. Roberta Simonetti e Mário Monzoni, do Centro de Estudos de Sustentabilidade da FGV, apresentaram os resultados dos 5 Diálogos com Stakeholders (analistas, investidores, gestores, acionistas, especialistas, imprensa, empresas e funcionários da Bolsa), que foram realizados ao longo do ano de 2010. Na sequência, um painel de debates reuniu um participante de cada Diálogo para discutir os desafios e perspectivas do ISE para os próximos anos. Participaram Pedro Sirgado, diretor do Instituto Os próximos cinco anos Publicação comemorativa O “Seminário Internacional Índices de Sustentabilidade – Análises e Perspectivas” foi encerrado com um coquetel para o lançamento do livro “ISE: Sustentabilidade no Mercado de Capitais”. Em edição bilíngue, o livro conta a história dos cinco anos do ISE e registra seus principais desafios na missão de contribuir para o desenvolvimento de uma nova cultura de sustentabilidade entre as empresas brasileiras. EDP, Maria Eugênia Buosi, analista de Investimentos Responsáveis do Santander, André Palhano, repórter da Folha de S. Paulo, Roberto Gonzalez, diretor de estratégia de sustentabilidade da The Media Group e Cláudio Jacob, gerente de relações com investidores da BM&FBOVESPA. “A manifestação democrática dos pontos de vista dos diferentes participantes do mercado foi fundamental para que tivéssemos subsídios para avaliar as conquistas e os pontos que precisam ser aperfeiçoados daqui pra frente”, afirmou a diretora de sustentabilidade da BM&FBOVESPA, Sonia Favaretto. Ela encerrou o evento lançando o desafio: “Comemoramos esta data cientes de que para que o ISE se torne referência para o investidor ainda é preciso um movimento de conscientização da sociedade e de mudança de comportamento”. Mirando nos próximos cinco anos do ISE, a diretora de sustentabilidade da BM&FBOVESPA, Sonia Favaretto, apresentou durante o seminário os cinco objetivos estratégicos estabelecidos pelo Conselho Deliberativo do ISE. São eles: 1. Ampliar a abertura de informações ao mercado 2. Aumentar a participação das empresas no processo de seleção 3. Aumentar o volume de recursos investidos e produtos atrelados ao ISE e torná-lo um benchmark de investimentos 4. Fortalecer os canais de comunicação e diálogo com as partes interessadas 5. Trabalhar pelo aperfeiçoamento do escopo e processos de elaboração do questionário (refinamento e aperfeiçoamento da metodologia, processos de seleção das empresas, verificação etc.) Sonia Favaretto *Priscilla de Cassia Ferreira é jornalista da assessoria de imprensa da bm&fbovespa. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 31 tendências globais O avanço limitado do G-20 em Seul O fim da guerra cambial depende da retomada do crescimento dos Estados Unidos e do fato de a China não só valorizar o yuan, como adotar políticas de estímulo ao consumo interno POR JOSÉ ROBERTO NASSAR* fotos folhapress 32 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 I ncomodado com as políticas monetárias que deprimem o dólar, mantém o yuan subvalorizado e propelem o real (sitiando, por esse ângulo, a competitividade brasileira), o ministro Guido Mantega, da Fazenda, cunhou em meados de setembro a expressão: está em curso uma “guerra cambial”. Não seria para menos: moedas desvalorizadas e voláteis, em meio a essa abundante liquidez global, transformam os países emergentes – principalmente o Brasil, com seus juros tão altos – em campo de provas para investidores de ocasião e em destino para toda a sorte de mercadorias, úteis e inúteis, que precisam exportar para enfrentar a própria crise. Na mídia financeira internacional, a frase de Mantega pegou, pelo menos como mote para artigos “analíticos”. Não teve respaldo entre seus colegas, que não quiseram passar recibo. “A expressão é inadequada; estamos em processo de discussão e acordo”, afirmou na época Christine Lagarde, ministra francesa da Economia. “Há tensão, não guerra”, disse depois Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial. “É certo que os países podem usar sua moeda como arma, mas a expressão é muito militar”, afirmou, com leve ironia, Dominique Strauss-Kahn, diretor-gerente do FMI, ao abrir a assembleia de outubro do Fundo e repetir seu bordão preferido: “Tem de haver, a partir da cooperação, uma saída global para o câmbio”. Tensão ou guerra, estabeleceu-se um armistício na reunião do G-20 – o grupo das nações ricas e emergentes, mais a representação da União Europeia, que hoje diz falar pelo mundo inteiro – realizada dias 11 e 12 de novembro, em Seul, na Coreia. Avanços ficaram claros nos compromissos em favor de uma “ação coletiva”, formalizados no documento final. Itens espinhosos ganharam um adiamento, Apesar da guerra e da enxurrada de dólares, cartas foram postas na mesa Guido Mantega, ministro da Fazenda em busca de novos “estudos técnicos”. Cartas foram postas na mesa e desarmaram-se as frases conflitivas. O ministro Mantega reconheceu: “A guerra cambial não acabou, mas passou a ser discutida”. O presidente francês Nicolas Sarkozy, que vai “presidir” o G-20 em 2011, disse que o acordo de Seul “é melhor que um desacordo” – pressionado pela queda de popularidade no front interno, prometeu trabalhar de mãos dadas com o FMI, já que, em sua opinião, o “sistema não funciona mais”. StraussKahn, por sua vez, admitiu que “resta muito a fazer” (o desafio é retomar o crescimento e criar empregos), mas foi dado “um passo na direção correta”. O presidente Lula, que passeava com a desenvoltura de sempre pela última cúpula de seu atual mandato, afirmou: “Este é um foro político; as decisões técnicas ficam para depois.” Conclamando pela solidariedade, advertiu: “Não pode ser cada um por si”. Desvalorizações competitivas O que foi decidido e o que fica para depois? Sancionando acordos firmados pelos ministros de Finanças e presidentes de bancos centrais 15 dias antes na mesma Coreia, os presidentes firmaram o Plano de Ação de Seul. Comprometeram-se: a empreender políticas macroeconômicas, incluindo ajustes fiscais, que busquem o crescimento sustentável e a estabilidade dos mercados financeiros, movendo-se, em particular, rumo a taxas de câmbio “mais determinadas pelo mercado”; “abster-se de desvalorizações competitivas” (eufemismo que tem China e Estados Unidos como alvo); manter “vigilância”, nos países ricos, contra “o excesso de volatilidade e movimentos desordenados das taxas de câmbio” (que estimulam perigosos fluxos de capital especulativo para os emergentes); admitir algum tipo de controle de capitais temporário, enJAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 33 tendências globais fim. Mas foi rechaçada por muitos, chineses e alemães à frente. Superavitários, donos de poderosa máquina exportadora (apesar do euro valorizado), os alemães se recusam a intervir nos mercados dessa forma. E, respondendo às constantes pressões por aumento de consumo, dizem sempre: é natural que países que estão envelhecendo poupem mais. Basileia 3 Deflação é muito pior que inflação baixa e pode gerar estagnação econômica Ben Bernanke, do FED tre os emergentes (medidas “macroprudenciais”); implantar reformas estruturais que estimulem a demanda global e criem empregos. São compromissos importantes, conquanto vagos. Mas não poderia ser diferente, dada a complexidade dos interesses em jogo. Assim, números, metas, bandas largas ou estreitas – as decisões mais difíceis – ganharam mais tempo para amadurecer. Ministros e funcionários dos países do G-20 vão desenvolver, com apoio técnico do FMI, indicadores e parâmetros técnicos que vão servir de referências para definir a proporção dos desequilíbrios, o que é, para esses fins, moeda valorizada, subva34 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 lorizada, desvalorizada ou até onde são aceitáveis déficits ou superávits em conta corrente. Isto ocorrerá, até junho de 2011, no âmbito do MAP, sigla em inglês para o Processo de Avaliação Mútua criado pelo G-20. Por isso mesmo, o documento desconheceu a proposta de Timothy Geithner, secretário do Tesouro norte-americano, de estabelecer o teto de 4% para os déficits ou superávits em conta corrente. A proposta teve o mérito de abrir a discussão para além do câmbio, pois a competitividade de uma economia não depende só da moeda, mas de suas condições de infraestrutura, carga tributária, legislação, tecnologia, custo país, en- Além desses temas ligados diretamente aos desequilíbrios econômicos e cambiais, o G-20 ratificou duas decisões que expressam avanços concretos. Uma delas diz respeito ao FMI e foi acordada na assembleia de outubro do Fundo: a reforma do sistema de cotas, há muito em discussão, “uma reestruturação histórica”, na frase de Strauss-Kahn. Os emergentes ganharam poder e os quatro Brics passaram a figurar no ranking dos dez maiores, ao lado de seis países ricos; o Brasil ficou com o décimo posto. Outra se refere à reforma do sistema financeiro global, parcialmente aprovada em reunião na sede do Banco de Compensações Internacionais (BIS), na Suíça, em 12 de setembro, da qual tomaram parte presidentes de bancos centrais. Recebeu nome e sobrenome: acordo de Basileia 3. Para tentar blindar os bancos – algozes da crise de 2008 – contra a emergência de novas crises, foram aprovadas novas exigências de capitalização e supervisão. O capital mínimo dos bancos, de primeira qualidade (acionário), passa a ser de 7% em relação aos ativos ponderados pelo risco, mais que dobrando em relação à situação atual. Esses 7% correspondem ao de 4,5% mais 2,5% como um colchão de liquidez. A isso se acrescenta obrigatoriamente 1,5% de capital composto por ativos (Tier 1) “de qualidade levemente inferior às ações próprias”. Opcionalmente, criou-se outro colchão, anticíclico, que pode ir até 2,5% de acréscimo no capital – dependendo de cada banco, essa é uma reserva que deve ser feita nos tempos de vacas gordas para prevenir sustos nas épocas de vagas magras. Um ponto ficou em aberto: o que fazer precisamente com os bancos cuja quebra afeta todo o sistema (os too big to fail); mas, tal como na questão das metas cambiais, esse é um tema muito delicado e vai exigir muitas outras rodadas de negociação. Outro ponto ganhou críticas: o custo dos bancos pode aumentar, mas estes terão um prazo longuíssimo para se ajustar – de 2013 a 2019. Dilúvio americano Como se vê, avanços foram palpáveis na reunião do G-20. Podia ter sido pior, diriam os realistas. No dia seguinte à eleição – uma derrota para o presidente Barack Obama – e uma semana antes da cúpula de Seul, os norte-americanos decidiram inundar os mercados com a compra de até US$600 bilhões em títulos (sua a terceira incursão nessa área desde a crise). O objetivo é nobre – recuperar a economia e os investimentos –, mas fez o mundo emergente temer, a começar pelo Brasil, assustado com a perspectiva de mais um dilúvio de capital especulativo. Falando só para o público interno, Ben Bernanke, o presidente do Federal Reserve (Fed), escreveu um artigo para justificar a decisão. Refutou os críticos que brandiram a ameaça de inflação. Na verdade, ao contrário de nove entre dez presidentes de bancos centrais, defendeu até um pouco de inflação. “Nos casos mais extremos, uma inflação muito baixa pode se transformar em deflação, o que pode contribuir para longos períodos de estagnação”, ressaltando o duplo mandato do Fed: manter a inflação em níveis aceitáveis (como a atual, em torno de 2%) e promover o aumento do emprego. Em entrevis- Reestruturação histórica do Fundo dá mais poder aos emergentes Dominique Strauss-Kahn, do FMI JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 35 tendências globais tas posteriores, Bernanke lembrou-se de comentar os impactos externos da decisão. “A recuperação da economia norte-americana é fundamental para os outros países” – ninguém tem dúvida disso. O presidente Obama, então, reforçou: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o mundo.” (Parafraseando o general Juracy Magalhães, que ao assumir a embaixada em Washington, em 1964, declarou: “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.) Poupadores versus pródigos O “afrouxamento monetário” norte-americano (“quantitative easing”, na linguagem deles) revela a persistência dos impasses, para além dos avanços comedidos do G-20. “Estão jogando dinheiro por avião”, criticou o ministro Mantega, no que seria uma referência a antiga proposta de Bernanke de combater a deflação jogando dinheiro de helicóptero (de onde surgiu, dizem, o apelido Helicopter Ben). “O Brasil não pode assumir prejuízos para ajudar os Estados Unidos”, reforçou Henrique Meirelles, presidente do Banco Central. Mais grave é a permanência de 36 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 Há tensão, não guerra cambial Robert Zoelick, do Banco Mundial fatores estruturais que põem em conflito poupadores versus gastadores do mundo. Os norte-americanos, tradicionais gastadores, jogam o dólar para baixo para exportar mais e consumir menos – “as fundações de uma recuperação não vão se materializar se as famílias pararem de economizar e voltarem a gastar endividando-se”, já disse o presidente Obama. Os norte-americanos querem que a China, tradicional poupadora, valorize o yuan e aumente salários para consumir mais (o que já vem acontecendo, mas não no ritmo desejado pelos ocidentais). A mesma pretensão se dirige a sociedades ricas e disciplinadas como Alemanha e Japão. A China responde que se voltará para o mercado interno a seu tempo e segundo seu planejamento. Ao mesmo tempo, outras economias europeias vão sendo acossadas pelo contágio. Reino Unido (com duros cortes), França (enfrentando greves e tumultos), Espanha, Itália promo- vem ajustes fiscais, sobretudo no campo da aposentadoria e do serviço público. Depois da Grécia, chegou a vez de Irlanda e Portugal, os mais vulneráveis desse grupo: estão sendo pressionados a pedir socorro à União Europeia e é muito provável que tenham de fazê-lo. Tentações e ajustes fiscais Como nada disso tem solução no curto prazo, persiste um estado de beligerância. É grande a tentação por saídas individuais, enquanto os discursos de solidariedade se reproduzem. Tailândia, Indonésia, Taiwan, Coreia já decidiram, em graus variados, impor controles ao ingresso de capitais, seja por meio de impostos ou até de quarentenas. O Brasil também elevou o IOF por duas vezes nos últimos meses, localizando-o nas aplicações em renda fixa mas começando a avançar nos mercados futuros. Além disso, mantém a compra de dólares para aumentar as reservas (que são estratégicas, mas que podem estar já passando do ponto) – para não falar de medidas antidumping, contra importações descontroladas, crescentemente reclamadas pelos industriais. Esses freios, paliativos, podem ajudar a mitigar a valorização do real e até ganhar intensidade. Reforça-se a ideia, porém, de que, para o médio e longo prazos, no caso brasileiro, serão necessárias decisões de outra natureza. Há entre economistas um consenso de que o nome do jogo é ajuste fiscal, principalmente no primeiro ano de um novo governo, quando seu capital político está intacto. Ele teria o condão de, ajudando a política monetária, reduzir o juro real, diminuir o apetite do capital especulativo (e assim desvalorizar um pouco a moeda), impor alguma moderação à economia (que continuaria a crescer em torno de 4% a 4,5%, mas em bases mais sustentáveis) e, consequentemente, enfrentar o déficit externo (em conta corrente). Membros do gabinete de transição asseguram que o ajuste fiscal virá e de vez em quando alguém solta a meta de improváveis juros reais de 2%, num aparente choque com idéias como a do reajuste dos valores do Bolsa Família e a redução de tributos, como os que incidem sobre a folha de pagamento das empresas. A presidente Dilma Roussef evidentemente mergulha no tema – sem detalhes à época da cúpula do G-20. Mas com uma certeza, além da defesa do câmbio flutuante. “Ter a moeda mais valorizada do mundo não é bom para o Brasil”, disse Dilma em Seul. “Vamos olhar cuidadosamente e tomar todas as medidas possíveis”. Lula e Obama: Sorrisos guardados, tensão cambial Ter a moeda mais valorizada do mundo não é bom para o Brasil Dilma Roussef, presidente eleita *JOSÉ ROBERTO NASSAR É JORNALISTA ECONÔMICO. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 37 mercado de capitais A SAGA FANTÁSTICA DE UM EMPRESÁRIO PIONEIRO Nos arquivos da Universidade Yale, nos Estados Unidos, está a história completa de Percival Farquhar, um empresário dos primeiros tempos do capitalismo brasileiro, certamente só comparável a Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá POR PAULO TREVISANI* 38 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 folhapress U m grande empreendedor norte-americano da virada do século 19 para o 20, um gênio que se aventurou pelos quatro cantos do Brasil e fez história. Seu nome: Percival Farquhar, que investiu e mobilizou recursos em projetos nas áreas de mineração, siderurgia, energia, transporte, ferrovias, madeira, cafeicultura, pecuária. Cruzando fronteiras e dotado de visão estratégica, sacudiu os primeiros tempos do capitalismo brasileiro, desempenhando papel semelhante ao de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. Capaz de negociar com Theodore Roosevelt, Lênin ou, aqui entre nós, com o presidente Epitácio Pessoa, atraiu investidores do mundo inteiro para financiar suas ideias mirabolantes. Criou os embriões do que viriam a ser a Vale do Rio Doce, a Acesita, as ferrovias da Light ou a (trágica) MadeiraMamoré, lançando as bases do que viriam a ser sonoros êxitos e grandes malogros. Deixou legiões de admiradores e críticos, dentre os quais, nesse caso, o presidente Getúlio Vargas e os nacionalistas que na época combatiam o capital estrangeiro. Sua vida romanesca tem documentação completa, arquivada na Universidade Yale, nos Estados Unidos. O Brasil entrou no mundo de Percival Farquhar há mais de um século, pelas atividades de seu pai, Arthur, cuja indústria no estado norteamericano de Pensilvânia exportava máquinas agrícolas para a potência cafeeira do sul. O jovem engenheiro Percival, formado em Yale, no frio nordeste dos Estados Unidos, participou de empreendimentos elétricos e ferroviários pioneiros em Cuba e na Guatemala logo depois da guerra hispano-americana de 1898. Nesses países, negociou financiamento estrangeiro para a criação da International Railways of Central America. Usando as conexões comerciais do pai, Percival embarcou para o Rio em 1906, segundo ele próprio conta num relato autobiográfico, depois de ter adquirido a concessão da Rio de Janeiro Tramway Light & Power Ltda., estabelecida em Toronto. Em seguida, na medida em que a cultura do café ganhava, literalmente, terreno em São Paulo, adquiriu a São Paulo Tramway Light & Power e tratou de expandir as estradas de ferro pelo interior cada vez mais tomado pelos cafezais. A partir daí, visionário e audacioso, Farquhar passaria o resto da vida engendrando financiamento estrangeiro para empreitadas de infraestrutura no Brasil, movimentando montanhas de dinheiro com ações e debêntures, negociando com governos, quebrando e reerguendo-se logo depois. Entre 1905 e 1918, foi o maior investidor privado do Brasil. Nos 88 anos de vida, Farquhar deixou legiões de críticos e admiradores, capazes de dar opiniões diametralmente opostas sobre os mesmos empreendimentos que ele liderou – tais como a ferrovia Madeira-Mamoré, a expansão da indústria siderúrgica brasileira, com a exploração de ferro em Itabira, e a conexão ferroviária ao porto de Vitória pelo Vale do Rio Doce, as estradas de ferro de vários Estados e outras tantas. Num certo sentido, Farquhar foi um dos pais da Vale – a segunda maior empresa brasileira, privatizada em 1997 – e da Acesita. Em certas ocasiões, Farquhar se irritou com financistas norte-americanos que relutavam em investir na América do Sul. Dispondo de farta experiência em Wall Street, esse filho de família quacre da Pensilvânia não se conformava com que outros capitalistas deixassem de enxergar o potencial da expansão da lavoura do café e da indústria no País. Ao lado de tantas cartadas arrojadas, muitas de suas visões se revelaram catastróficas. Apostas no ciclo da borracha foram por água abaixo quando os seringais asiáticos suplantaram os da Amazônia, onde Farquhar tinha empreendimentos como o Port-of-Pará e a ferrovia MadeiraMamoré, dois projetos cujo êxito dependia da exportação da borracha. A expertise financeira frequentemente JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 39 negras do rio/rugendas AS DIFICULDADES DESDE SEMPRE superava a do administrador, e aquisições em cascata levaram suas empreitadas à falência em meio a polêmicas nacionais. Os tropeços financeiros, associados à onda de nacionalismo que demonizou o capital estrangeiro – e, muitas vezes, os próprios estrangeiros – a partir dos anos 1940, acabaram por manchar a imagem desse pioneiro do capitalismo brasileiro. Sem dúvida, um desfecho no mínimo inusitado para um membro da comunidade quacre. ÉTICA, HONESTIDADE E TRABALHO DURO Os quacres são grupos cristãos protestantes com características diferentes em vários países. Farquhar nasceu num desses grupos, em 1864, na pequena York, cerca de 250km a sudoeste de Nova York. Os “quakers”, como se diz em inglês (a pronúncia é “quêiquer”) da Pensilvânia são conhecidos pelo modelo de vida simples e comunitário, em que vizinhos ajudam a construir casas e igrejas, homens e mulheres se vestem com simplicidade – os luxos da civilização 40 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 moderna são considerados supérfluos e, portanto, descartados. Ética, honestidade e trabalho duro são tidos em altíssima consideração. Não faltará quem aponte Farquhar como ovelha negra. Mas seu legado, ainda que controverso, é inegável – e ainda tangível nos trilhos de ferro que só foram deitados graças ao financiamento que ele extraiu de capitalistas internacionais e de seu espírito expansionista; ou na Vale, que nasceu da nacionalização de sua conturbada empreitada mineral no interior de Minas. Também está presente, de maneira menos tangível, no espírito empreendedor de que Farquhar foi intérprete de norte a sul do País, ao mesmo tempo em que semeava o interesse do capital estrangeiro pelo potencial econômico brasileiro. Documentos sobre suas atividades estão arquivados em 19 caixas e dezenas de pastas na biblioteca de Yale na coleção conhecida como Farquhar Papers, incluindo as Notas Autobiográficas, em que faz, em terceira pessoa, um relato razoavelmente pormenorizado de sua vida. Nas notas, ele diz que enfrentou dificuldades no Brasil desde o início. Em 1906, o País era uma república recém-nascida, com uma economia que engatinhava. A cultura da cana-de-açúcar no Nordeste, que propiciou riqueza num período de escravismo, tinha, havia algumas décadas, sido suplantada pela do café, que trouxe, primeiro, escravos e, depois, imigrantes para o Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. O café substituiu a cana-de-açúcar na pauta de exportações, com grandes vantagens. A indústria têxtil, por exemplo, floresceu fabricando sacas para a produção cafeeira. As trilhas de mulas, que até meados dos anos 1850 tinham dado conta de transportar a produção agrícola para os portos, já não venciam o grande volume demandado pela insaciável sede europeia pelo café. E linhas de ferro chegavam para resolver o problema, estendendose para aonde iam os cafezais. Produção de café é uma atividade que exige de quatro a seis anos para assegurar o retorno do investimento inicial. Os bancos – acostumados, por séculos, a emprestar dinheiro só para parentes dos sócios (e geralmente por curto prazo) – passaram a atender a uma demanda crescente por financiamento de prazo mais longo. Empresas cafeeiras, tecelagens, transportadoras e outras vieram acompanhadas de bancos mais ativos e de um mercado secundário para ações e títulos de dívida. A Bolsa de São Paulo surgiu, em 1890, para organizar a cada vez mais intensa negociação desses papéis. A indústria financeira local, apesar de ebuliente, não dava conta das necessidades de capital de Farquhar. Poliglota e cosmopolita, sua natureza inquieta o levou a fazer uma folhapress ainda estava na Europa arrebanhando investidores para sua empreitada brasileira, foi informado de que o governo havia proibido sua empresa de operar por falta de fundos. O empresário embarcou para o Brasil – foi uma viagem de meses pelo mar – e explicou às autoridades que o capital real era bem maior que o nominal. A concessão foi então reativada. arquivo BM&FBOVESPA espécie de road show por Londres e Bruxelas angariando investidores para seu projeto de transporte e iluminação nos trópicos. Farquhar comprou a belga Société Anonyme du Gas de Rio, que passou a ser controlada pela Light. Relata que incorporou, no Canadá, a Rio de Janeiro Tramway, com capital nominal de US$100.000. Os sócios europeus puseram US$25 milhões em capital social e os bancos entraram com um empréstimo de outros US$25 milhões. Os registros apontados no site da companhia mostram que a Light começou a existir em 1899, com a construção da Hidrelétrica Parnaíba, no Rio Tietê, foi incorporada em Toronto em 1904 e recebeu permissão para operar no Rio de Janeiro a partir de 1905. O relato é consistente com as memórias de Farquhar, mas o empresário não é citado pela Light em seu site. Porém, Farquhar conta que, para o governo brasileiro, só chegou a informação de que o capital da empresa era de US$100.000 – um montante obviamente insuficiente para os objetivos da concessão. Quando ele A Bolsa de São Paulo surgiu, em 1890, para organizar a cada vez mais intensa negociação desses papéis. Estabilizada a situação no Brasil, um abalo no Hemisfério Norte dificultou as coisas para Farquhar. Em 1907, apenas um ano após sua chegada aos trópicos, houve pânico na bolsa de Nova York – e falta generalizada de liquidez. Os investidores torceram o nariz para investimentos mais arriscados, como o de Farquhar. Resultado: a cotação dos títulos da dívida da Rio de Janeiro Tramway caiu entre 60% e 70%, escreveu o empresário. Com isso, ficava mais caro levantar capital. O DESAFIO DA BITOLA Farquhar reagiu fundindo as operações do Rio e de São Paulo, decisão da qual resultou a Brazil Railway Co. Ltd. Sua visão não deixava dúvidas: era preciso unir os sistemas ferroviários de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Farquhar foi dono da Sorocabana, da Mogiana e muitas outras ferrovias, inclusive uma que ligava São Paulo ao Rio Grande do Sul. Aonde ia o café, seus trilhos iam atrás – ou vice-versa. Maurício Nabuco, então embaixador do Brasil nos Estados Unidos, disse ao biógrafo Charles Gauld, numa carta de maio JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 41 mercado de capitais fotos: divulgação de 1951, que Farquhar teve “a visão de unificar as bitolas ferroviárias” do Brasil. Na primeira metade do século passado, já se sabia o que até hoje não foi feito – oferecer bitolas iguais para o transporte ferroviário. Mas as visões de Farquhar, provavelmente corretas, podem ter sido minadas pela própria ambição. O banqueiro de investimento e diplomata W. Cameron Forbes escreveu, em novembro de 1950, numa carta a Gauld, autor da única biografia de Farquhar já publicada (The Last Titan: Percival Farquhar, American Entrepreneur in Latin America, da editora da Universidade de Stanford): “O império da Brazil Railway foi por água abaixo nem tanto por causa de alguma falha essencial nas ideias de F., mas porque o gênio dele para aquisições obscureceu sua percepção da necessidade de fundos para operações, conservação e capital de giro”. Forbes, que entre 1914 e 1919 foi o sole receiver – ou seja, o liquidante – do empreendimento ferroviário de Farquhar, disse que o empresário ignorou seus insistentes alertas de que o capital obtido com as operações e os novos empréstimos precisavam ser utilizados também para reinvestimento, em vez de ser aplicado somente em 42 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 novas aquisições. O resultado, segundo o banqueiro, foram “38 falências”, ao longo da vida, que esmigalharam o crédito de Farquhar e “irritaram os franceses” que tanto haviam apostado em suas empreitadas. Forbes deixou claro ao biógrafo, contudo, sempre ter achado que Farquhar perseguia suas visões empreendedoras com a melhor das intenções. Apesar disso, muitos desses tropeços foram vistos como pura fraude. Nos arquivos de Yale, um libreto reúne artigos do Diário de Notícias do Rio de Janeiro e traz na capa um título que já diz tudo: “A maior escroqueria do século – Os casos da São Paulo-Rio Grande, da Port-of-Pará e outras relacionadas com a Brazil Railway”. Essa noção permeia até hoje a visão que muitos ainda têm de Farquhar, retratado como um empresário de poucos escrúpulos numa recente série de televisão sobre a Madeira-Mamoré. (Os aspectos mais controvertidos da presença de Farquhar no Brasil e dos seus investimentos mirabolantes na Madeira-Mamoré foram apresentados, há cinco anos na Globo, na minissérie Mad Maria, com Tony Ramos, no papel de Farquhar, e Ana Paula Arósio). ALÉM DO CAFÉ Se ferrovias e eletricidade foram as iscas que atraíram Farquhar para o Brasil, sua ambição o levou a abocanhar outros peixes. Farquhar não custou, por exemplo, a perceber o potencial das florestas de araucária do Paraná, especialmente se associado às linhas de ferro para transporte, e fez da madeira paranaense um insumo básico da construção civil na Argentina. Numa edição de agosto de 1910 do jornal The New York Times, foi escrito um festivo artigo sobre Farquhar e seu sócio nos empreendimentos ferroviários do Rio e São Paulo – Fred Stark Pearson, um engenheiro elétrico e empresário com reputação de técnico conhecedor do ofício e, não pouco importante para Farquhar, com laços comerciais no Canadá. O texto diz que a madeireira Southern Brazil Lumber foi organizada por Farquhar em 1908 e incorporada no Estado de Maine (EUA), alegando ter direitos de extração de madeira sobre uma área de “3 [bilhões] de pés” quadrados, ou quase 23.000 hectares. Entre as aquisições maciças a que Forbes se referia também estavam grandes extensões de terra, num to- tal, segundo o próprio Farquhar, de 2 milhões de acres (809.371 hectares) nos estados de Mato Grosso, Paraná e Minas Gerais. Do seu obituário, publicado no New York Times, consta que as propriedades de Farquhar no Brasil chegaram a mais que o dobro disso: quase 2 milhões de hectares, formando “a maior rede de fazendas de gado do mundo”. Naturalmente, o empreendedor tratou de criar uma processadora de carnes perto da cidade de Osasco, em São Paulo, que ele apenas menciona superficialmente em sua autobiografia, mas que foi uma pioneira no ramo no País. A FERROVIA MADEIRA-MAMORÉ folhapress Não foi só no próspero Sudeste que Farquhar vislumbrou grandes empreitadas. Em 1903, um pouco antes de Farquhar chegar ao Brasil, o governo brasileiro havia assinado o Tratado de Petrópolis, adquirindo da Bolívia o revoltoso Acre em troca de terras do Mato Grosso, mediante o pagamento de 2 milhões de libras esterlinas e o compromisso de construir uma ferrovia ao longo do Rio Madeira, o que daria à Bolívia um acesso ao Rio Amazonas – e dali ao mar e ao mercado exportador. Malograram, segundo a autobiografia de Farquhar, várias expedições organizadas pelo governo na Amazônia, para estudar como fazer a ferrovia “em torno das cataratas do Madeira”. Muitos morreram, diz ele, nesse esforço preliminar. Os riscos presentes na floresta não eram poucos. Entre eles estavam a malária, os índios arredios, as onças e as cobras ou mesmo os galhos de altas castanheiras que nem escolhem a hora de cair, nem sobre a cabeça de quem. Farquhar foi lá, traçou o projeto, obteve a concessão e construiu a ferrovia entre 1908 e 1918. Mas a ferrovia não chegou a operar. Pouco antes do término da empreitada, o ciclo da borracha – que derrubou até gente do porte de Henry Ford – começava a entrar para os livros de história como uma grande oportunidade perdida pelo Brasil, e a Bolívia tinha achado outros caminhos para o mar. A empreitada no coração da selva até hoje tem uma história mal contada e insuficientemente documentada. Há quem diga que nada menos do que 30 mil pessoas morreram em sua construção, e ela entrou no currículo de Farquhar com o sinistro apelido de Ferrovia da Morte. Era um dos pilares da estratégia de Farquhar para a borracha. Em 1906, diz ele, encontrou-se em Londres com um representante da S. Pearsons and Sons Ltd. – antecessora da Pearson PLC., a dona do Financial Times, na época uma empresa de construção e engenharia – e observou que da Amazônia brasileira saía “90% da borracha do mundo”. O PORTO DO PARÁ Antes mesmo da MadeiraMamoré, a primeira iniciativa de Farquhar na busca de lucros com a borracha foi a empreitada de Portof-Pará, o porto de onde a produção dos seringais transportada pelo Rio Amazonas ganharia o mar. Tudo estava sob o guarda-chuva da Brazil Rayway, de acordo com Farquhar, e acabou em falência, com uma dívida total de US$118 milhões, segundo relatos da época. Não é demais observar que, naqueles tempos, a única forma de transporte de longa distância era por navio e as ferrovias só recentemente haviam ganhado a competição contra o jumento. E que Farquhar tinha um perfil hiperativo, atuando simultaneamente em várias frentes. Esteve nos quatro cantos do Brasil para projetar seus empreendimentos, e ainda arrumou energia para negociar com investidores locais e internacionais – ele chegou a viajar até a Rússia atrás de financiamento, antes e depois da revolução soviética, onde se reuniu com Lênin. Lá também iniciou um empreendimento, aparentemente em mineração – conhecido pela intensa correspondência com todas as partes, para instruções operacionais ou negociação com investidores por carta ou telegrama, ao lado do constante assédio de credores. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 43 mercado de capitais COM A FAMÍLIA Seu contato com a família também se preservou. Manteve contínua correspondência com a esposa, Cathya – que era filha de um general romeno – e com os filhos George, Donald e Gordon e com o irmão, Francis. Nas cartas, escritas a mão ou à máquina, tratava de assuntos familiares, mas também de negócios, envolvendo todos a sua volta nos empreendimentos de além-mar. Naturalmente, a maioria da correspondência de Farquhar é em inglês, mas ele também escrevia em português, francês e espanhol, conforme o destinatário. O que aprendeu em Yale e Colúmbia – as respeitadas universidades onde estudou, respectivamente, Engenharia e Direito – Farquhar aplicou na vida profissional. Ele próprio conduzia estudos e fazia projetos para suas empresas, embora também se cercasse de bons profissionais, como Fred Pearson. COM ROOSEVELT Além de tudo isso, tinha vida social intensa. Em 1913, Farquhar recebeu, num almoço no Jockey Club do Rio, o ex-presidente norteamericano Theodore Roosevelt e seu filho Kermit, que dali embarcariam numa expedição pelo Rio da Dúvida, hoje Rio Roosevelt ou Rio Teodoro, um afluente do Madeira descoberto pelo Marechal Cândido Rondon. A expedição Rondon-Roosevelt em muito espelha a própria aventura de Farquhar na Amazônia: duas pessoas morreram, o próprio Roosevelt quase se tornou o cadáver de maior reputação internacional da selva brasileira, mas o grupo conseguiu pôr um rio no mapa, um feito por enquanto tão perene – ainda que sem utilidade prática – quanto o fruto da empreitada de Farquhar, até hoje contornando as cataratas do Madeira. 44 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 É difícil saber se o investidor contumaz teria conseguido formar seu império se tudo corresse bem e pelo menos o café continuasse em expansão. Até 1913, as peças de seu conglomerado envolviam a produção e industrialização de matéria-prima e transporte para portos de exportação. Seu talento de vendedor ainda seduzia investidores por toda parte, mas era cada vez maior o número de credores decepcionados. Desde 1911, ele também investia na produção de ferro em Minas Gerais, então uma titubeante empreitada inglesa. Nem tudo correu bem. Em junho de 1914, o tiro que matou o arquiduque Ferdinando da Áustria deu início a primeira Grande Guerra. A Europa, aquela eterna fonte de capital para Farquhar e de consumidores para os cafeicultores brasileiros, ficou mais ocupada com a própria destruição e o comércio internacional foi à breca. Houve quem chamasse a primeira guerra tecnológica da história de um furacão de aço, a liga metálica que assustou o mundo sob a forma de tanques, metralhadoras ou o revestimento dos coturnos. Mas esse aço tinha de vir de algum lugar – e Farquhar voltou os olhos para Itabira. A cidade da nostalgia de Carlos Drummond de Andrade atiçou os sentidos do empresário – seu poema chamou-se Itabira Iron Ore Company Limited. COM EPITÁCIO PESSOA Em suas memórias, Farquhar conta que estava em Nova York em 1919 – seus projetos iniciais no Brasil quebraram ou foram nacionalizados com os revezes da guerra – quando por lá passou Epitácio Pessoa, a caminho do Rio para assumir a Presidência, no lugar do presidente eleito em 1918, Rodrigues Alves, que estava doente. Os dois se encontraram, relata Farquhar, num evento em homenagem ao brasileiro. Pessoa teria abordado Farquhar e solicitado que ele “voltasse a se interessar pelo Brasil”. O norte-americano disse que o faria se tivesse apoio do governo. Pessoa garantiu o apoio – e Farquhar iniciou seu grande projeto em Itabira. Ele e seus associados (muitas vezes ele só exercia o papel de mobilizador de capitais) conceberam uma enorme ampliação da mineração de ferro na região, ligada por estrada de ferro a Vitória, no Espírito Santo, onde construiriam um porto para exportações. Mas, desde o nascedouro da empreitada mineira, Farquhar se viu às voltas com um governo – e uma sociedade – com crescente aversão ao capital estrangeiro. Certamente, não tinha como prever o que estava por vir. Em 1920, a concessão foi autorizada, como Pessoa prometera. Entretanto, foi preciso enfrentar a resistência nacionalista, avessa à presença de capital estrangeiro na exploração de matérias-primas. A aprovação final do Congresso veio em 1928. Dois anos depois, chegou ao poder Getúlio Vargas – e o projeto de Farquhar estava atrasado em relação ao cronograma inicial, possivelmente devido à nova crise global de liquidez após o craque da Bolsa de Nova York, em 1929. Farquhar pediu uma extensão de prazo, alegando force majeure (força maior), segundo sua própria descri- fotos: divulgação ção, por causa da precária situação econômica do País e do mundo. A Grande Depressão estava engatinhando, mas ninguém podia prever quão ruim a economia mundial ficaria nos anos que antecederam a Segunda Guerra – e Vargas recusou o pedido. Só não poria fim à empreitada se Farquhar aceitasse pagar a multa de 50 contos de réis por mês por 12 meses. O empresário diz que aceitou “sob protesto”. No ano seguinte (1931), o mesmo governo pediu moratória da dívida soberana alegando, ironicamente, force majeure. Mas a sorte já estava lançada. O nacionalismo era um fenômeno presente em muitos países empobrecidos pela crise mundial. O Brasil estava no mesmo barco da Alemanha, da Itália e de outras nações. “Capital estrangeiro” era quase sinônimo de palavrão. Em muitos casos, ter um sócio nascido no exterior já era pecado – ou até proibido, se o tal sócio morasse no Brasil e tivesse, portanto, capital brasileiro. Não era clima para um empreendedor como Farquhar, cujo grande trunfo era, exatamente, a habilidade de cruzar fronteiras para amealhar capital para empreendimentos nacionais. O cheiro de estatização cobria Itabira. NA ORIGEM DA VALE E DA ACESITA A história oficial da Vale define 1942 como o ano de seu nascimento, fruto da caneta de Vargas. Mas ela nasceu da estatização da Itabira Iron Ore Company, que Farquhar criou sobre a então atrofiada empreitada inglesa. Seu ambicioso projeto incluía exportar minério de ferro com os mesmos navios que trariam carvão siderúrgico escasso no Brasil, numa estratégia de redução de custo. Mas o Brasil estava embarcando numa nova era, de expansão do Estado e aversão ao capital estrangeiro. Os ventos sopravam contra o empreendedorismo de Farquhar. Ele não se deu por vencido. Associado a Amyntas Jacques de Moraes e Athos de Lemos Rache, criou em 1944 a Cia. Aços Especiais Itabira, mais conhecida como Acesita – hoje ArcelorMittal Inox Brasil S.A. Esse empreendimento teve a participação do Banco do Brasil e também foi estatizado pelo getulismo. Para se ter uma ideia da hiperatividade de Farquhar, nos arquivos de Yale há um estudo que ele fez para seus colegas da Acesita sobre a enxada. O empresário vindo da zona rural da Pensilvânia argumentava que a cultura e a topografia do Brasil faziam da enxada o instrumento mais apto para lidar com a terra no País. Em várias páginas datilografadas, com estatísticas e tabelas numa ordem típica da mente de um engenheiro, Farquhar defende a produção de lâminas para enxadas pela Acesita, pois acreditava que teriam mercado garantido. Na descrição do biógrafo Gauld, Farquhar foi o último titã da iniciativa privada, de uma estirpe que era forte na virada do século 20 e que tinha, na personalidade do empreendedor, a grande turbina produtiva. Em sua obsessão por alavancagem, um traço com potencial suicida de sua personalidade empresarial, Farquhar costurou a demanda de infraestrutura no Brasil com a abundância de capital na Europa – e, de quebra, mostrou a seus conterrâneos que a América do Sul tinha grande potencial. Nos arquivos de Yale, uma foto datada de 1950 mostra-o em seu escritório no Rio, usando um aparelho de audição. Em uma de suas anotações, Gauld cita um amigo de Farquhar dizendo-se impressionado que, aos 73 anos, o empresário ainda dava seus mergulhos em Copacabana. Farquhar morreu em 4 de agosto de 1953, em Nova York, “depois de uma longa doença”, segundo o New York Times. O jornal lembra que ele era advogado registrado no estado e havia cumprido dois mandatos como deputado estadual. Lembra também que ele recebeu a maior honraria do governo brasileiro para estrangeiros, a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. * PAULO TREVISANI É JORNALISTA BRASILEIRO RADICADO EM NOVA YORK. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 45 MAIS FORÇA A MECANISMO DE ACESSO DAS PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS Com vistas à expansão do número de companhias listadas e de investidores, a BM&FBOVESPA está tornando ainda mais atrativo o segmento de acesso de pequenas e médias empresas POR JORGE WAHL* fotos folhapress e agência luz N ão se previa, até o primeiro semestre, que 2010 seria um ano tão bom para o mercado de capitais, mas as últimas projeções apontam para captação de novos recursos mediante oferta de ações da ordem de R$40 bilhões – sem contar os recursos da megaoperação de capitalização da Petrobras. E como ainda há quase uma dezena de novos lançamentos em análise na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), 2011 já é visto como um ano promissor para abertura de capital. O mercado de capitais torna-se, assim, uma das opções preferidas das empresas brasileiras que buscam recursos de novos sócios para enfrentar a briga global. E o caminho trilhado por algumas empresas poderá se transformar em estrada para muitas, pois a BM&FBOVESPA reserva boas surpresas para as pequenas e médias companhias que querem ter acesso aos mecanismos da Bolsa para alavancar seus negócios. A alavanca atende pelo nome de Bovespa Mais – um segmento que funciona como mercado de acesso, no qual as empresas podem fazer lançamentos menores e cujo arcabouço regulatório, concluído em 2006, está maduro para conquistar uma nova estatura. O Bovespa Mais é uma das peças-chave de um conjunto maior de iniciativas da Bolsa voltado para aumentar em 50% o número de em- presas listadas nos diversos segmentos de negócios. “A Bolsa acredita que o mercado de capitais pode e deve ser acessado por empresas de todos os tamanhos e está trabalhando com muito empenho para popularizar o acesso a empresas dos mais diversos portes”, explica o diretor executivo de Desenvolvimento e Fomento de Negócios da BM&FBOVESPA, José Antonio Gragnani. “O Bovespa Mais tem mesmo potencial para crescer”, concorda o presidente da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca), Antônio Duarte Carvalho de Castro. E se trata de um crescimento necessário e oportuno, pois “aumentar o número de empresas listadas passa a ser o maior desafio do mercado brasileiro a partir de agora”, assinala Castro. Se os mercados da Índia e de Hong Kong, entre outros, têm cada qual milhares de empresas listadas e nas quais é possível investir, acrescenta, não há motivo para que o mesmo não ocorra no Brasil. A experiência internacional, segundo Francisco Satiro, professor de mercado de capitais da Escola de Direito de São Paulo da FGV, indica que é esse o caminho certo. Londres, por exemplo, dispõe, desde 1995, do Alternative Investment Market (AIM). Passaram pelo AIM 3.100 empresas – e nada menos de 1.300 companhias têm as ações negociadas, atualmente. No Brasil, as sementes foram lançadas em 2010 e os frutos são esperados a partir de 2011. Gragnani transmite confiança: “O Brasil tem um número muito grande de empresas, entre 15 e 20 mil, com faturamento a partir de R$20 milhões até R$400 milhões, mas pouquíssimas sentem ter, de fato, acesso ao mercado de capitais, o que torna o Bovespa Mais um segmento de listagem com grande potencial de desenvolvimento”. Empreendedorismo e prospecção Para abrir o caminho foram criadas, na Diretoria de Desenvolvimento de Empresas da Bolsa, três novas áreas, duas das quais – de empreendedorismo e de prospecção – destinadas a atrair novas empresas e uma terceira, de relacionamento com as companhias abertas já listadas. A primeira está voltada para os negócios nascentes ou em estágios iniciais de desenvolvimento. Como a preparação para acessar o mercado pode ser feita desde os estágios iniciais, as iniciativas da Bolsa concentram-se em parcerias com o Instituto Endeavor, com várias incubadoras de empresas, parques tecnológicos e os chamados fundos de capital (venture capital). A segunda área prospecta pequenas e médias empresas que os mais diversos tipos de orientação. REVISTA DA NOVA BOLSA 47 telecomunicações Mercados de acesso a pequenas e médias empresas têm importância crescente em diferentes pontos do mundo, como Londres, Toronto e Hong Kong Raul Ciarelli, da Latin Finance Paulo Sérgio Dortas, sócio responsável pela área de IPOs da Ernst Young Terco, uma das parceiras da Bolsa nessa iniciativa acredita que o Bovespa Mais terá oportunidade maior de atingir seus objetivos se conseguir reunir “ativos de qualidade e investidores propensos a abrir mão de um pouco de liquidez imediata em favor de um ganho maior no futuro”. Frederico Soares, chefe da mesa de operações da HSBC Corretora (o banco HSBC foi o coordenador líder da primeira operação de oferta de ações do Bovespa Mais, o da Nutriplant, empresa do setor de fertilizantes instalada em Paulínia, Estado de São Paulo) – explica que boa parte dos papéis chegou a ser colocada junto a investidores muito qualificados, como os fundos de pensão. Estes se interessaram porque têm um perfil de aplicações de prazo longo, compatível com as obrigações previdenciárias assumidas com os participantes, ou seja, os futuros aposentados. 48 REVISTA DA NOVA BOLSA As obrigações vencerão, em média, dentro de várias décadas, o que lhes permite esperar pelo crescimento das empresas com bom potencial. Como previam as regras do Bovespa Mais, as ações são negociadas no sistema eletrônico Mega Bolsa por meio de leilões previamente programados. Houve, é verdade, alguma certa frustração de expectativas dada a baixa liquidez dos papéis, segundo Soares. O segmento, explica o especialista, não pode prescindir do acompanhamento cuidadoso de cada lançamento, além do uso de instrumentos derivativos que ajudem a garantir alguma liquidez. Um bom momento É uma boa hora para fortalecer o Bovespa Mais, observa Ricardo Martins, gerente da área de pesquisa da Planner Corretora, pois “a liquidez internacional deve ajudar”. E o êxito será maior com o acréscimo de alguns ingredientes. Entre estes, “um grande esforço para mudar a cabeça de muitos empresários, especialmente pequenos e médios, frequentemente avessos a ter novos sócios” e a pulverização de informações, “fazendo-as chegar de maneira mais simples a mais investidores”. A ênfase na governança corporativa é uma das armas de que a BM&FBOVESPA dispõe para reforçar o Bovespa Mais. Mostra-se ao empresário a importância das boas políticas de governança e o acionista fica mais seguro quanto à qualidade do investimento. É um trabalho educativo, indicado para as empresas que darão os primeiros passos no mercado. Afinal, ao ter as suas ações listadas o empresário se expõe mais aos olhares de terceiros e, nesse caso, é melhor que tal exposição mostre, com transparência, a verdadeira imagem da empresa. Ao listar as ações na Bolsa, a empresa amplia a visibilidade do seu negócio junto a investidores, bancos, clientes e fornecedores, além, é claro, de poder financiar seu crescimento da forma mais interessante que existe. Instituto Educacional BM&FBOVESPA Um dos instrumentos destinados a preparar as empresas para a abertura será o segmento de empreendedorismo, recém-criado dentro do já tradicional Instituto Educacional da BM&FBOVESPA – ajudará a capacitar empresas e empreendedores nas áreas de planejamento estratégico, elaboração de business plan e governança. Os empresários saberão como valorizar seus negócios antes mesmo de entrar no mercado. Para isso, o Instituto Educacional BM&FBOVESPA assinou um convênio com a Babson College, a primeira em empreendedorismo no mundo, já há mais de uma década, e oferecerá o programa de Gestão de Crescimento em Empresas de Alto Potencial, a partir de 2011. Além disso, a Bolsa auxiliará as empresas nas diversas etapas do processo de abertura de capital, colocando sua equipe à disposição para melhor encaminhar as questões que se apresentarem. O intuito é que a oferta de ações transcorra de forma ágil e tranquila em todas as suas várias fases. Captação gradativa Segundo Gragnani, o Bovespa Mais quer atingir as empresas que pretendem buscar recursos no mercado de capitais de forma gradativa, ou seja, que acreditam na ampliação gradual da base acionária como o caminho mais adequado. Não há restrições quanto ao setor ou porte e, independentemente da realização imediata de uma distribuição pública de ações, as empresas devem ter o propósito de se desenvolver no mercado, comprometendo-se com elevados padrões de governança corporativa, assumidos formalmente na adesão ao Regulamento de Listagem, busca de liquidez para suas ações e postura pró-ativa para conquistar investidores. Esse objetivo, nota Gragnani, será facilitado com a ajuda dos programas de exposição promovidos pela Bolsa. O apoio às empresas só tende a crescer. A parceria entre o Instituto Endeavor e o Instituto Educacional BM&FBOVESPA contempla a utilização do programa e da metodologia da Kauffman Foundation voltados para as empresas nascentes (start ups), aquelas que fazem parte das incubadoras e parques tecnológicos com os quais a Bolsa se relaciona, como em São José dos Campos (SP). Uma caravana do programa Bovespa Mais começou, em 2009, em Belo Horizonte e chegou a Recife, Goiânia, Porto Alegre, Curitiba e Campinas, em 2010, atraindo mais de 200 pequenas e médias empresas Paulo Sérgio Dortas, da Ernst&Young terco Dortas, da Ernst Young Terco, fala da caravana do programa desenvolvido pela Bolsa junto com a sua empresa e a Câmara Americana de São Paulo. Iniciada no ano passado com uma palestra em Belo Horizonte, a caravana já passou, em 2010, por Recife, Goiânia, Porto Alegre, Curitiba e Campinas, atraindo mais de 200 pequenas e médias empresas. Assim é possível conhecer melhor o perfil e as demandas dessas companhias. Além disso, afirma Dortas, uma pesquisa está em andamento para identificar o perfil das empresas potencialmente demandantes do mercado de capitais fora do eixo Rio-São Paulo. Será possível ter uma ideia melhor da governança, processos internos, grau de tecnologia empregado e maneira de financiar o crescimento. “Fazemos isso sem nunca perder de vista que atrás da Petrobras vêm centenas de fornecedores, e há também centenas de pequenas e médias redes de supermercados e de lojas que estão crescendo para atender aos consumidores emergentes”. Ele acredita que a tendência primária de queda dos juros e da existência de investidores com mais recursos para aplicar farão a diferença. Dortas prevê, ainda, que 2011 será um bom para as emissões de ações, talvez “com umas 20 operações, mas de menor valor do que as deste ano”. Enfim, não só acredita no êxito do esforço de atrair empresas com menor tamanho, como alimenta grandes expectativas. Redução de custos Para alguns analistas, a atração dessas empresas depende de redução nos custos e da flexibilização das exigências regulatórias. “O problema não costuma ser o custo de se abrir o capital, pois este acaba sendo abatido do montante captado, mas das REVISTA DA NOVA BOLSA 49 A Bolsa trabalha com muito empenho para popularizar o acesso a empresas dos mais diversos portes José Antonio Gragnani, diretor executivo de Desenvolvimento e Fomento de Negócios da BM&FBOVESPA despesas para se manter aberto”, resume Castro, da Abrasca. O Bovespa Mais “pode muito bem ser a resposta, combinada com despesas menores e regras mais simples”. Não é diferente do que ocorre no exterior: em relatório divulgado em setembro, a consultoria Grant Thornton sugere para o mercado de acesso de Londres uma tributação mais favorável e incentivos para atrair o venture capital. O custo não parece ser determinante entre escolher emitir ações e tomar crédito bancário, pois se trata de alternativas distintas, observa 50 REVISTA DA NOVA BOLSA Andreas Ricardo Belck, professor e chefe do Departamento de Finanças da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Mas, com certeza, “a ida para a Bolsa é recomendável para os negócios com boas perspectivas e que precisam de capitais para além do que o sistema financeiro está disposto a oferecer sob a forma de crédito”. “O mercado de capitais pode fornecer recursos de forma concentrada e num prazo relativamente curto àquelas empresas que desejam mudar a sua escala de negócios”, nota Belck. E isso porque, acrescenta, “o investidor vai muito além do que o banqueiro está disposto a apostar”. Belck destaca o exemplo da Alemanha, onde pequenas empresas exportadoras recebem apoio decisivo do mercado de capitais. Outra variável é a oferta de crédito do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), alavancada entre setembro de 2008 e agosto de 2010, quando a participação do banco no estoque de financiamentos concedidos na economia passou de 16% para 21%, embora dependa da política do novo governo. Belck sintetiza: “IPOs devem ser a opção de todo pequeno e médio empresário que precisa expandir o seu negócio, aproveitando um caminho que já está aberto”. O fator tempo A redução do custo e dos requisitos regulatórios podem até ajudar, adiciona Raul Ciarelli, sócio da LatinFinance, mas o fator tempo continuará tendo a sua importância. “O Novo Mercado também demorou um pouco para acontecer. O mesmo deverá acontecer com o Bovespa Mais, até porque vai ser preciso trabalhar com o receio dos investidores em relação à liquidez menor”. Sem esquecer de que mercados de acesso para pequenas e médias empresas adquiriram importância em diferentes pontos do mundo: Londres, Toronto e Hong Kong, por exemplo. Para atrair pequenas e médias empresas, não há soluções fáceis nem a certeza de que a redução de custos e de exigências regulatórias são sempre boa solução. Em Londres, as restrições foram drasticamente cortadas dos regulamentos e não há sequer valor mínimo para os lançamentos. “Mas isso trouxe mais insegurança para os investidores”, lembra Satiro, da FGV. Em especial, um caso de fraude registrado em 2005 deixou marcas, quando se descobriu que não havia garantias efetivas – e uma autoridade do órgão regulador dos Estados Unidos qualificou o mercado de acesso de Londres de “verdadeiro cassino, uma vez que ninguém sabe por quanto tempo as empresas vão conseguir ficar listadas”. Pela regra do Grow Enterprises Market, um mercado que opera, na prática, como entidade autônoma da Bolsa de Hong Kong, cabe oferecer o máximo possível de informações aos investidores e que se mostre, periodicamente, que os resultados são compatíveis com os previstos no business plan. Feito isso, que se deixe o mercado funcionar livremente. No caso do Brasil, explica Osmar Camilo, analista da Corretora Socopa, as condições favorecem o êxito do Bovespa Mais. O momento parece apropriado à retomada dos esforços para dar ao mercado brasileiro um segmento de acesso forte: “A BM&FBOVESPA ganha crescente importância no contexto mundial das bolsas e isso com certeza vai ajudar”. * JORGE WAHL É JORNALISTA ESPECIALIZADO EM MERCADO DE CAPITAIS. ensaio entre os mitos e a realidade Investir para ficar rico é o sonho das pessoas. O problema é acreditar que é possível realizar o tal sonho do dia para a noite getty image POR FABIO GALLO GARCIA* A o longo dos últimos anos, tenho ministrado muitas aulas, dado diversas palestras, escrito artigos, participado de debates e concedido entrevistas para a mídia sempre respondendo a questões trazidas pelas pessoas interessadas em investir. E, logicamente, interessadas em ficar ricas. As dúvidas são as mais diversas, mas alguns traços são comuns entre os questionadores. O que percebo é que, de alguma forma, as pessoas trazem em suas questões os famosos “mitos” dos investimentos, ou “máximas” em finanças, ou ainda “axiomas” de investimentos. 52 REVISTA DA NOVA BOLSA Listo alguns para que entendam o que eu quero dizer. Por exemplo, quem nunca ouviu expressões como: § preocupação não é doença, mas sinal de saúde; se você não está preocupado, não está arriscando o bastante; § somente compre ações que cresceram muito nos meses anteriores; esse crescimento vai induzir outros a também comprarem; será uma profecia autorrealizável; § resista à tentação das diversificações; § diversificação é uma máxima; § comprei na alta, agora que caiu vou comprar mais, porque na média estarei bem; § o mercado, como Deus, ajuda aqueles que o ajudam (de Warren Buffett); § não importa o que os professores dizem (outra de Buffett, muito legal para mim). Não pretendo tratar de todas as estratégias de investimento, seus mitos ou tentar descrever as verdades em que acredito. Mesmo porque, como já foi dito por Damodaran (professor da Stern Scholl of Business da New York University, considerado um dos maiores especialistas do mundo em avaliação de empresas), muitos querem promover essas máximas enquanto outros pretendem destruí-las. A promoção muitas vezes fica por conta de analistas e corretores. Os “cínicos” – encontrados no mundo acadêmico – se encarregam da tentativa de desqualificar os “mitos”. O traço comum em todos os mitos é que esses instigam o nosso comportamento porque contém algo de nossa natureza, como esperança, ganância, medo e outros sentimentos. Interessante também é o fato de que esses mitos são expostos ao longo de boas histórias com finais felizes. Algumas dessas histórias vêm baseadas em testes empíricos. Outras contêm um personagem importante como Paul Getty, que fez US$1 bilhão no início do século 20. O fato é que verdades e resultados ocorridos nessas histórias nem sempre podem ser replicados, uma vez que dependem do ambiente econômico, do perfil do investidor e até mesmo da “sorte”. Vamos examinar o caso de Paul Getty. Ele apostou no risco e colocou todo o dinheiro que tinha na época – US$500 – em uma sociedade do ramo de petróleo. O final foi feliz. Agora, a pergunta é: quantos tiveram essa oportunidade? Será que os outros que tiveram acesso ao negócio tinham dinheiro? Poderíamos fazer muitas outras perguntas, mas o meu ponto é que há tantas possibilidades de resultado em situações como essa, que não há como generalizar os casos de sucesso e tornar boas histórias em “mapas da mina” para que as pessoas fiquem ricas. Mesmo porque, se isso fosse verdade, teríamos uma distribuição de riqueza muito maior. Muitas publicações, para facilitar a vida do investidor, têm orientado os seus leitores com divisões predeterminadas para definir sua carteira de investimentos como se fossem “máximas”. Estou me referindo a determinar porcentagens para renda fixa e renda variável e em relação às classes de ativos, como se isso pudesse ser generalizado. As pessoas têm rendas diferentes, modos diversos de tocar as suas vidas, culturas diferentes, enfim mantêm condutas financeiras distintas. Assim, como podemos preestabelecer “menus”? Essa discussão nos leva a observar um conflito entre as máximas. Ora ouvimos que diversificar é absolutamente correto. Em outros momentos, escutamos que devemos resistir à tentação. Eu sou do grupo que admite que em finanças a diversificação é uma regra, afinal assim procedendo obteremos o retorno médio ponderado, mas usualmente uma redução em relação ao risco médio. O problema é que, mesmo sendo verdade, a diversificação não é para todos os bolsos. E isso nem sempre é dito com clareza e objetividade. Por outro lado, indicar que a diversificação deve ser abandonada completamente, é o mesmo que falar para as pessoas “apostarem”. Isso não é investir, mas sim jogar. Outro aspecto que essas máximas acabam nivelando é em relação à indicação do investimento, pois há a tese de que investir depende basicamente do grau de aversão ao risco da pessoa, esquecendo-se de que além do perfil do investidor devemos considerar duas outras variáveis em relação ao próprio investimento. Ou seja, temos que considerar o prazo daquela aplicação (que depende do seu objetivo) e da utilidade marginal do valor investido, em outros termos, da importância daquele dinheiro para aquele investidor. Outras máximas lidam com a questão da eficiência dos mercados. Novamente recorrendo a Buffett, há uma das suas frases que diz: “Eu seria um mendigo vagando pelas ruas com uma caneca na mão se os mercados fossem realmente eficientes”. Essa é uma longa discussão e objeto de muitas teses, mas mesmo admitindo que os mercados não sejam fortemente eficientes, garimpar títulos subavaliados exige um esforço muito grande e muito dinheiro nessa busca. Assim, mais uma vez, não é para todos. Poderíamos também mencionar outros mitos como usar do efeito valor, ou do efeito momento, como investimentos vencedores. Podem ser citadas também estratégias seguras e baratas como investir em ações de baixo P/L, ou aquelas com preço inferior ao valor patrimonial. Para aqueles com apetite ao risco podem ser máximas o investimento em ações de crescimento ou investir nas perdedoras. E assim poderíamos seguir elencando possibilidades de “menus” de investimentos. Enfim, há alguma moral nessas histórias e máximas? Sim. A moral é que não há “receitas fechadas” que deem conta de gerar riqueza para todos. Devemos ter em mente que investir exige muito planejamento, disciplina e conhecimento. Essa receita é indicada para todos. *FÁBIO GALLO É PROFESSOR DE FINANÇAS DA PUC-SP E DA FGV/EAESP E RESPONSÁVEL PELA COLUNA “SEU DINHEIRO” DO JORNAL O ESTADO DE S. PAULO. REVISTA DA NOVA BOLSA 53 popularização o príncipe da jovem guarda é também investidor em ações O músico e apresentador Ronnie Von, há quatro décadas no rádio e na TV, começou a vida estudando economia, mas trocou o mercado financeiro pela carreira artística, sem deixar de investir em ações POR VITÓRIA GUIMARÃES* foto agência luz A os 17 anos, Ronaldo Lindenberg von Schilgem Cintra Nogueira já tinha seu futuro profissional traçado: iria cursar a faculdade de economia para depois assumir a organização financeira da família, um conglomerado que reunia banco de investimentos, banco comercial, corretora de valores, financeira, distribuidora e seguradora. A primeira parte do planejamento foi cumprida à risca. Ronaldo conseguiu o diploma, mas anunciou aos pais que, apesar da afinidade com o mercado financeiro, preferia dedilhar a guitarra em vez de fazer contas, e sentar num banco de madeira no palco de um boteco no Rio de Janeiro a ficar atrás de uma mesa de escritório. Ronnie Von, nome artístico que ganhou mais tarde, deu sorte, como ele mesmo costuma dizer. “Se eu era talentoso? Talvez, mas não é só isso. Quando vi uma oportunidade, agarrei, mas podia nunca ter aparecido”, diz o apresentador e empresário de 66 anos, sem disfarçar o sotaque fluminense de quem nasceu e cresceu em Niterói. Gravou 25 discos, viajou o mundo fazendo shows e colecionando fãs, tanto pela música que tinha forte influência dos Beatles, seu grupo preferido até hoje – um dos seus maiores sucessos é Meu Bem, versão para a música Girl do quarteto de Liverpool –, quanto pelo 54 REVISTA DA NOVA BOLSA rosto delicado, delineado por cabelos médios e lisos, e pelos olhos verdes. Virou o príncipe da Jovem Guarda. Dividia-se entre turnês e gravações do programa da TV Record O Pequeno Mundo de Ronnie Von, que apresentava na década de 1960. “Televisão é a minha grande paixão”, conta ele, que há seis anos comanda o Todo Seu, exibido diariamente pela TV Gazeta, que lhe rendeu vários bordões, como “bonitinhas e bonitões” e “significa”. “Quando a luz da câmera acende, me desligo de tudo. Para mim, fazer televisão é uma alienação – positiva, é claro”. Mas Ronnie Von é homem de várias paixões. Uma delas, curiosamente, é a aviação. “Voo desde os 17 anos. Hoje em dia, não tenho mais avião, mas tenho amigos que têm. E você sabe:, quem tem amigo rico não morre pagão”, brinca. Ele chegou a compor uma música inspirada na sensação de olhar o mundo de tão longe: “Combustível, metal e poema/ minha máquina voadora/ vejo os homens de cima em cena/ entre a música de um motor/ vou vagar em pleno ar/ vou voar/ vou voar...”, diz a letra de Máquina Voadora, faixa do álbum homônimo lançado em 1970. As flores são outro hobby do apresentador, que tem até uma orquídea batizada com seu nome. O gosto por vinhos também divide seu (escasso) tempo livre. Atual- Ronnie Von, músico e apresentador de TV, começou comprando ações do Banco do Brasil e hoje, antes de fazer um investimento, analisa cuidadosamente os papéis e os lucros das empresas. mente, além do programa, Ronnie comanda uma agência de publicidade, a Von Comunicações, e um site de compra coletiva, o Nossa Vitrine, que comprou há cinco anos da também apresentadora Ana Maria Braga. “É com eles que pretendo garantir a minha aposentadoria”. Mesmo com tantas atividades e a carreira artística, Ronnie Von, que entrou na Bolsa na década de 1960, aos 20 e poucos anos, comprando ações do Banco do Brasil, nunca deixou de investir no mercado de capitais. “A Bolsa está no sangue”, revela ele, que compara a emoção de grandes quedas com a de subir num palco. “Atualmente, optei por deixar meus investimentos em fundos, pois não tenho tempo para acompanhar de perto o desempenho da minha carteira. Geralmente, funciona assim: quando estou mais livre, meus investimentos ficam em ações que opero via Home Broker, sempre estudando os papéis e observando de perto os lucros das ações, que geralmente pulverizo entre grandes empresas e algumas menores. Quando a falta de tempo aperta, distribuo entre fundos diversificados, agressivos, médios e moderados. Penso sempre em longo prazo e aprendi a nunca contar com o dinheiro aplicado. É um complemento para minha aposentadoria”. O filho mais novo, Leonardo, de 23 anos – Ronnie é pai também de Alessandra, de 39, e Ronaldo, de 38, frutos do primeiro casamento –, herdou o gosto pelo mercado de capitais e prepara-se para entrar na Bolsa, contando com os conselhos do pai. Mas Leonardo pretende seguir também outros passos de Ronnie, tanto que já está gravando seu primeiro disco. “O castigo vem a galope. Quando meu filho me disse que queria ser músico, reagi da mesma maneira que meu pai. Quase tive um ataque”, lembra ele, que tentou de todas as maneiras convencer o filho a continuar a carreira na publicidade – atualmente, Leonardo trabalha na agência de Ronnie. “Desisti quando o meu pai me disse: ‘não cometa com meu neto a imprudência que cometi com você. Quando você faz aquilo que gosta, há grandes chances que você passe uma vida inteira sem precisar trabalhar’”. Ele e a minha mulher, Cristina, acabaram me convencendo e ajudo da maneira que posso”, admite com reticência digna de uma mãe; mas uma “mãe de gravata”. * VITÓRIA GUIMARÃES É JORNALISTA. REVISTA DA NOVA BOLSA 55 popularização a classe média em ação Thinkstock Pesquisa inédita revela o perfil de um novo investidor: assalariado, jovem, das faixas de renda B e C A ideia de que a Bolsa é um clube fechado, formado por homens sisudos, é cada vez mais ultrapassada e está com seus dias contados. Suas portas vêm se abrindo para jovens, mulheres e pessoas de classe média, tipicamente assalariadas, que tratam ações como um investimento de longo prazo, capaz de lhes propiciar maior rentabilidade. É o que revela – sistematizando o que os olhos dos observadores já detectavam – a “Pesquisa do Perfil do Investidor em Ações”, realizada pela consultoria Plano CDE para a BM&FBOVESPA. Seus resultados podem ser um sinal, ainda que indireto, das mudanças que acontecem na sociedade brasileira, mas indicam, direta58 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 mente, que “o projeto de popularização parece ter decolado”, como diz Haroldo Torres, o coordenador do trabalho. E dão suporte ao plano da Bolsa de decuplicar, em cinco anos, o contingente de pessoas físicas que aplicam em ações (atualmente, em torno de 500 mil). A pesquisa ouviu 600 pessoas em São Paulo e no Rio de Janeiro, em julho deste ano, entre investidores em ações e não investidores. Mapeou renda, sonhos, projetos, intenções, dúvidas e temores. Produziu dados interessantes em ambos os segmentos. Por exemplo, entre os investidores, a maioria (61%) ainda é da classe A, claro (ganham acima de R$6 mil). No entanto, nada menos do que 31% dos entrevistados – uma proporção importante – declararam renda que os inclui na classe B e os restantes 8% inscrevem-se na classe C (uma surpresa favorável, para Torres). Portanto, a Bolsa não só vem mantendo sua clientela tradicional como avança pelos demais segmentos sociais, incluindo “os mais ousados da classe C”. E vê que a grande maioria dos entrevistados (86%) concorda com a afirmação de que “pessoas de classe média têm condições de comprar ações”. Quem é o investidor em ações, segundo as conclusões da pesquisa? Ele tem um portfólio diversificado. Aplica também em renda fixa, mas as ações estão no topo da carteira, representando 33% (parcela que sobe a 39% quando se incorporam os fundos de ações). Tem alta propensão a permanecer investindo em ações: é o que disseram 92% dos entrevistados (apenas 8%, portanto, pensam em desistir); e entre os que pretendem continuar, 73% querem aumentar o investimento. O investidor vai à Bolsa em busca de maior rentabilidade (51% dos respondentes indicaram a rentabilidade como o principal argumento, sendo que, segundo o relatório da pesquisa, “esse apelo é mais forte entre mulheres, pessoas mais velhas, casadas, inativas e com renda superior a R$6 mil). Sabe que essa é uma aplicação de longo prazo e ainda quer aprender mais sobre como investir. Na classe A, o investidor é profissional liberal, sócio de empresas, aposentado ou pensionista (58% dos casos). Na classe B – esse é o novo investidor – tipicamente um profissional com carteira assinada (60%). Refletindo o “primeiro movimento de popularização do mercado, é possível que esse perfil também possa vir a demandar produtos e serviços diferenciados nos próximos anos”, de acordo com os responsáveis pela pesquisa. “Trata-se de um novo cliente a ser cultivado e valorizado, como um multiplicador da mensagem de que as ações podem ser produtos acessíveis para a classe média brasileira”. SONHOS E TEMORES E qual é o retrato da pessoa que não investe em ações? Ele tem renda familiar menor que a do investidor, é um pouco mais jovem e é assalariado (61% dos respondentes à pesquisa). Investe basicamente em poupança, produto mais mencionado por mulheres, solteiros, pessoas com renda inferior a R$6 mil e trabalhadores formais. Ação não lhe é uma palavra estranha, ele já ouviu falar dela. Mas tem um conhecimento “muito superficial”, segundo o relatório da pesquisa: 89% responderam afirmativamente a essa questão; e, entre estes, apenas 43% declararam saber como investir. A maioria, portanto – vale enfatizar, como destaca Haroldo Torres –, não domina os mecanismos do Refletindo o “primeiro movimento de popularização do mercado, é possível que esse perfil também possa vir a demandar produtos e serviços diferenciados nos próximos anos”, de acordo com os responsáveis pela pesquisa investimento em ações. Mesmo quem afirma conhecê-los tem apenas uma noção ligeira disso: 15% deles acham que o investimento é feito pessoalmente na Bolsa. E muitos desses não investidores pouco sabem do papel das corretoras de valores: quando pretendem tratar de aplicações, falam com o gerente de seu banco. Nesse quadro, é natural que surjam dúvidas e temores. Entre os não investidores que disseram saber como investir, 31% afirmaram que pretendem aplicar em ações nos próximos 12 meses; entre os que confessaram desconhecer o processo, essa proporção é de apenas 13%. Diz Torres: “Como esperado, os que menos conhecem são também aqueles que mais rejeitam o investimento em ações (58%), os que mais declaram ter medo de investir nesse mercado (57%) e os que mais frequentemente associam a Bolsa a jogos de azar (47%).” Informação e simplificação dos mecanismos são os melhores antídotos para essas dúvidas e temores. Basta ver que os programas de educação financeira que a Bolsa já implantou influenciaram as decisões de 30% dos respondentes que já são investidores. Dona de uma imagem sólida, inclusiva e democrática, a Bolsa vai continuar a desenvolvê-los (junto com corretoras de valores, bancos e demais protagonistas do mercado). Os programas terão grande serventia na catequese dos não investidores, e na derrubada desses mitos e barreiras que ainda resistem. Dadas as mudanças que acontecem na sociedade brasileira, com o surgimento de uma nova classe média, é imenso o espaço a ocupar por iniciativas de massificação que pretendem transformar desejo (de investir) em realidade. O principal esforço a ser feito neste momento parece ser o de aumentar o entendimento específico do público-alvo em relação ao produto, afirma Torres. E sublinha, à luz dos “findings” da pesquisa, um dos pontos-chave: “Disseminar o como fazer”. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 59 sustentabilidade os direitos humanos nas empresas Avanços no ambiente de trabalho convivem com alta porcentagem de casos de violações graves, dentro e fora das organizações POR JOSÉ ROBERTO NASSAR* fotos thinkstockphotos A responsabilidade socioambiental – conjunto de normas que estimulam o bom relacionamento da empresa com seus funcionários, fornecedores, consumidores, clientes, acionistas e comunidade – já se tornou um lema para a organização moderna. Sua aplicação avança pouco a pouco no Brasil e no mundo. Direitos humanos são uma costela essencial desse corpo, embora, como parte do todo, não se confundam. Também vêm avançando, lenta e paulatinamente, nas empresas e na sociedade em geral. Mas, apesar das iniciativas pioneiras, ainda existem, com frequência, casos de discriminação racial e de gênero, preconceito, abusos, desrespeito e até humilhação de colegas e subordinados no trabalho, agravados pela desinformação. É o que demonstra com números a pesquisa Direitos Humanos nas Empresas, realizada pela consultoria Plano CDE para o Instituto Norberto Bobbio, em parceria com a BMF&BOVESPA (e apresentada em workshop em 18 de outubro, na Bolsa). “Os que mais sentem a presença de tratamento desigual ou discriminatório são mulheres, negros e pessoas com renda inferior a R$3.000”, afirma Raymundo Magliano Filho, presidente do Instituto e ex-presidente da Bovespa. Por isso, o tema “precisa passar urgentemente a compor o conjunto das preocupações centrais das empresas brasileiras”, acrescenta Haroldo Torres, sócio da Plano CDE. 60 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 61 sustentabilidade A pesquisa nasceu da necessidade do Instituto de identificar em que medida os direitos humanos “estão incorporados nas políticas e nas diretrizes das empresas”. O Instituto dedica-se aos temas da promoção da paz, dos direitos humanos e da democracia, matéria-prima dos estudos do filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio. O questionário foi formulado à luz dos princípios da Declaração Internacional dos Direitos Humanos, assinada em 10 de dezembro de 1948 no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Seus 30 artigos elencam direitos civis e políticos (liberdade de expressão, de ir e vir, de associação, igualdade perante a lei, sufrágio universal, entre outros) e direitos sociais (não discriminação no trabalho, isonomia salarial, liberdade sindical, por exemplo), e sua observância ao longo do tempo contabilizam sucessos e recuos no mundo inteiro. Portanto, quando se trata do tema, não se fala apenas em “direitos humanos dos bandidos” ou só em direitos das minorias – como se afirma largamente em certos segmentos sociais –, mas em direitos da sociedade inteira. RIO, SÃO PAULO, QUATRO SETORES Com essa ambição, definiram-se os limites da pesquisa, realizada entre junho e julho de 2010. O trabalho abrangeu 800 pessoas no Rio de Janeiro e São Paulo, todos funcionários com carteira assinada, classes de renda A,B, C, e D, em porcentuais idênticos de homens e mulheres, de empresas com mais de 50 funcionários, em quatro setores (também em proporções semelhantes): indústria, bancos e serviços financeiros, comércio e serviços não financeiros (call centers, prestadores de serviços de saúde e educação). Percebe-se que foram entrevistadas pessoas de certa “elite” – dizem observadores que, num país heterogêneo como o Brasil, se fossem pesquisadas pessoas de outras regiões, mais desassistidas, sem vínculo empregatício, os resultados seriam piores do ponto de vista do respeito aos direitos humanos. A pesquisa estimulou os entrevistados a manifestarem sua opinião sobre o que acontecia com os direitos humanos dentro e fora da empresa. E procurou separar os casos graves – ações e declarações explícitas de preconceito, agressões verbais e/ou físicas, roubo e assédio sexual – dos casos leves (“generalizado desconforto e mal-estar” nos ambientes de trabalho). Dentro da empresa, 8,9% disseram que ocorreram violações graves (no último ano); pesquisas mais específicas mostraram que 11% têm notícias de episódios de discriminação contra negros, mulheres, homossexuais ou idosos e 7% declararam ter sido vítimas diretas de preconceito, segundo Haroldo Torres. Quando se soma, dentro da empresa, as violações leves (tratamento desrespeitoso por parte das chefias, por exemplo), o percentual sobe a 43,4% dos entrevistados. É um contingente preocupante. Ainda assim, da perspectiva otimista pode-se registrar que a maioria, embora ligeira, já considera ter respeitados os direitos humanos. A situação nas empresas reflete certamente, em proporção menor, o que se passa na própria sociedade brasileira, fora da organização, portanto. Como apurou a pesquisa, 31,8% dos entrevistados disseram que foram alvo de violações graves (nos últimos dez anos), percentual que sobe a 73,3% quando consideradas as violações leves. Foi perguntado também se tinham conhecimento de violações no caso de pessoas próximas, como parentes ou amigos: 22% responderam sim às graves e 71,1% quando somadas graves e leves. INDÚSTRIA À FRENTE De modo geral, voltando às fronteiras internas das empresas, boa parte ainda adota um estilo rígido de gestão, com baixa participação dos funcionários, critérios pouco claros de promoção e remuneração, ruídos frequentes no ambiente de trabalho. Mas há diferenças importantes conforme setor ou tamanho. O segmento mais mal avaliado foi o de serviços não financeiros, em que, pulverizado e Dentro da empresa, 8,9% disseram que ocorreram violações graves; pesquisas mais específicas mostraram que 11% têm notícias de episódios de discriminação contra negros, mulheres, homossexuais ou idosos e 7% declararam ter sido vítimas diretas de preconceito 62 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 O QUE PENSAM OS FUNCIONÁRIOS Indicadores sobre direitos humanos nas empresas. Rio de Janeiro e São Paulo, 2010 Na empresa em que você trabalha... % do total 50 a 499 funcionários (%) 500 funcionários ou + (%) Comércio (%) Serviços não financeiros (%) Bancos e demais serviços financeiros (%) Indústria (%) As opiniões dos funcionários não são levadas em conta 37,8 38,6 37,1 42,9 42,9 41,6 23,9 Os funcionários não conseguem entender os critérios de promoção 37,6 39,9 35,4 35,0 45,8 38,6 30,8 Alguns funcionários chegam a ser maltratados 20,6 18,7 22,5 23,6 25,1 17,8 15,9 A empresa cumpre apenas o que a lei obriga 51,3 61,9 41,4 55,2 63,5 44,6 41,8 A empresa paga salários diferentes para trabalhos iguais 44,1 43,7 44,5 47,8 37,4 50,0 41,3 Alguns chefes tratam os funcionários de maneira desrespeitosa ou humilhante 29,9 28,6 31,1 29,1 32,5 31,2 26,9 A segurança no trabalho deixa a desejar 15,6 13,6 17,5 16,3 18,2 15,8 11,9 Existem áreas onde o funcionário não deve circular 16,6 14,6 18,4 11,8 26,1 15,3 12,9 Fonte: Pesquisa “Direitos Humanos nas Empresas” da Plano CDE e Instituto Norberto Bobbio. heterogêneo, ocorrem mais manifestações de desrespeito e até humilhações por parte das chefias. Em linha ascendente, depois desse setor vêm o comércio e os bancos. O mais bem avaliado foi o industrial (80% disseram que são tratados com educação e, 75%, que suas opiniões são levadas em conta). De qualquer forma, indústria e bancos são setores mais organizados, com um histórico antigo de know-how no relacionamento com seus sindicatos. Considerando o tamanho, as grandes empresas (500 funcionários ou mais) oferecem mais benefícios a seus empregados do que as pequenas (de 50 a 499), mas as distinções são menos nítidas. As menores estão mais bem posicionadas nos itens de tratamento respeitoso. “É provável que nas grandes o anonimato de muitos funcionários os deixe mais expostos a eventuais situações de desrespeito”, diz Torres (é o que se pode ver na tabela acima). No conjunto da pesquisa, para além de setor e tamanho, a maior parte das empresas foi avaliada de maneira positiva (64% acreditam que elas se preocupam com a qualidade de vida dos empregados). A maioria (em torno de 60%) tem algum programa de responsabilidade social e ambiental e de participação nos lucros e 62% têm código de ética/conduta – nestas últimas, isso contribui para melhorar a percepção dos funcionários quanto aos direi- tos humanos. Mas a frequência da incidência de violações graves e leves e o grau de desinformação evidenciam o quanto ainda é preciso caminhar, na esfera das empresas (e da própria sociedade). Grande parte pensa mais nos direitos sociais do que nos civis e o número médio dos direitos humanos mencionados por entrevistado é relativamente baixo (3,56, dentre dezenas de itens citáveis). MUDAR A CABEÇA O remédio para isso tem nome: educação e informação de dirigentes e funcionários a partir de cursos e debates (que o Instituto Norberto Bobbio pretende montar) nas empresas, envolvendo direitos humanos, responsabilidade socioambiental, transparência, códigos de ética que combatam situações de discriminação e tratamento desigual. É assim – com a implantação de uma nova cultura – que se mudam as coisas, diz Magliano Filho. Tendo já começado um curso específico na sua própria corretora, ele imagina: quem sabe não se criará, um dia, um Índice de Direitos Humanos, semelhante ao ISE (Índice de Sustentabilidade Empresarial) da Bolsa? *JOSÉ ROBERTO NASSAR É JORNALISTA ECONÔMICO. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 63 em revista Por THEO CARNIER* APLICATIVO PARA iPAD: DE OLHO NA MOBILIDADE Desde 9 de novembro, a BM&FBOVESPA oferece aos investidores aplicativo para iPad, disponível em português e inglês na App Store, da Apple. No primeiro dia de operação, o aplicativo registrou 1.795 downloads – foi o mais baixado na loja. O download é gratuito e permite o acompanhamento de índices da Bolsa, cotações de ações de empresas listadas, commodities e mercados futuros, dentre outras informações. Também oferece melhor interação do usuário com os gráficos e a elaboração de listas personalizadas de cotações. O aplicativo foi produzido pela Livetouch, especializada no desenvolvimento de aplicações para dispositivos móveis. Para fazer o download, o usuário deve acessar a loja na internet e procurar por BM&FBOVESPA. divulgação EMPREENDEDORISMO LANÇAMENTO DO ÍNDICE CARBONO EFICIENTE A BM&FBOVESPA e o BNDES lançaram, em 2 de dezembro, o Índice Carbono Eficiente (ICO2), que mede o retorno de uma carteira teórica constituída por ações de empresas do IBrX-50 (composto pelas 50 ações mais negociadas na Bolsa) que aderiram à iniciativa. O indicador é ponderado pelo free float e pelo coeficiente de emissões de gases de efeito estufa (GEE) das empresas. Além das companhias atualmente presentes no IBr-X 50, foram convidadas outras empresas emissoras de ações com alta liquidez na Bolsa e potencial para futuramente ingressar no IBrX-50. Aceitaram voluntariamente participar do índice 51 das 58 companhias abordadas. A primeira carteira será composta por 42 delas. DADA NOVA BOLSA 64 REVISTA REVISTA NOVA BOLSA O Instituto Educacional BM&FBOVESPA lançou, em 22 de novembro, dois programas para formação e aperfeiçoamento de empreendedores. Em parceria com o Instituto Endeavor, será realizado o Bota Pra Fazer, programa que utiliza a metodologia da Kauffman Foundation – principal fundação do mundo em educação e cultura empreendedora. Já com a Babson College, instituição pioneira no ensino de empreendedorismo, será desenvolvido o programa Gestão e Crescimento Empresarial de Alto Impacto. ALL, AmBev, B2W, Banco do Brasil, BM&FBOVESPA, Bradesco, Bradespar, Brasil Ecodiesel, BRF Foods, Brookfield, CCR, Cemig, CESP, Cielo, Cosan, Cyrela, Eletrobras, Embraer, Fibria, Gafisa, Gol, Itaú, Itaúsa, JBS, LLX, Lojas Americanas, Renner, Marfrig Group, MMX, MV Engenharia, Natura, OGX, Grupo Pão de Açúcar, PDG Reality, Redecard, Rossi, Santander, TAM, Oi, Tim, Vale e Vivo. Para a BM&FBOVESPA e o BNDES, a adesão ao ICO2, por si só, demonstra o comprometimento das empresas com as questões climáticas, com a transparência no que se refere às suas emissões e com a preparação para a economia de baixo carbono. Para facilitar a visualização dessas iniciativas, a Bolsa disponibilizou um lugar específico no site Em Boa Companhia para as empresas participantes divulgarem seus inventários de emissões de GEE e outras ações de gestão. A Bolsa optou por uma metodologia inclusiva no primeiro ano do índice. Isso significa que, em princípio, não foi obrigatória a apresentação de inventário de emissões. As empresas tiveram, no entanto, a oportunidade de fornecer informações para que fosse realizada a estimativa de suas emissões de CO2. A harmonização dos dados foi conduzida pela empresa global de pesquisa ambiental Trucost. A partir do ano que vem, será obrigatória a realização de inventário incluindo emissões diretas e emissões geradas pelo consumo de energia elétrica. Em 2012, haverá ampliação das fontes contempladas que serão definidas a partir de estudo a ser realizado em 2011. agência luz NOVO SIMULADOR DE AÇÕES: EXAME.COM Em continuidade ao programa de popularização de seus mercados, a BM&FBOVESPA promoveu, em 30 de novembro, o lançamento do simulador de ações Exame.com, em parceria com a revista Exame, do Grupo Abril. Com acesso livre e gratuito, o simulador apresenta gráficos que mostram a evolução do usuário em comparação aos outros participantes, tela de envio de ordens, start de compra e stop de vendas (funcionalidade que programa a venda ou a compra de um ativo a preço determinado). Traz ainda ferramentas para consulta de cotação rápida (com delay de 15 minutos) e criação de janela customizada para acompanhamento dos preços das ações de empresas listadas. A cerimônia de lançamento do Exame.com foi conduzida pelo diretor presidente da BM&FBOVESPA, Edemir Pinto, e pelo presidente executivo do Grupo Abril, Giancarlo Civita. ESTREIAM OS BDRS NÃO PATROCINADOS Os Brazilian Depositary Receipts (BDRs) Nível I Não Patrocinados tiveram estreia na BM&FBOVESPA, em 5 de outubro, com 10 lotes emitidos pelo Deutsche Bank. Já a negociação dos 10 lotes do Citigroup, por meio da Citibank DTVM S.A., teve início em 29 de novembro. A negociação de BDRs é realizada no Mercado de Balcão Organizado – Segmento Bovespa. Os lotes podem ser negociados por instituições financeiras e fundos de investimento, além de administradores de carteira e consultores de valores mobiliários autorizados pela CVM. Os investidores pessoas físicas só podem operar com BDRs por meio de fundos. BDRs emitidos pelo Deutsche Bank BDRs emitidos pelo Citigroup Apple Inc. Avon Products Inc. Arcelor Mittal CI A Ads Bank of America Corporation Exxon Mobil Corporation Goldman Sachs Group Inc. Google Inc. McDonald’s Corp. Pfizer Inc. WalMart Stores Inc. Alcoa Inc. Cisco Systems, Inc. Citigroup Inc. Freeport-McMoran Copper & Gold Inc. General Electric Company Intel Corporation Merck & Co., Inc. Microsoft Corporation Procter & Gamble Company Wells Fargo & Company *THEO CARNIER É JORNALISTA ECONÔMICO E SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DO DCI. EM PAUTA, AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS “Mudanças climáticas: responsabilidade empresarial e mecanismos de mercado” foi o tema do seminário realizado, em novembro, por BM&FBOVESPA, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Banco Mundial em São Paulo, com a participação de especialistas de diversos países da América Latina. O objetivo foi incentivar o mercado de crédito de carbono e outros mecanismos financeiros capazes de ajudar a reduzir o impacto das mudanças climáticas. Outros itens da agenda do seminário: oportunidades de responsabilidade empresarial; protocolos de inventário de emissões de gases causadores do efeito estufa; papel da regulação; medidas governamentais de incentivo à responsabilidade empresarial ambiental; e estratégias de sustentabilidade e o mercado de carbono. DI NOS ESTADOS UNIDOS Em novembro, uma delegação da BM&FBOVESPA participou, em Chicago, de seminário sobre oportunidades de investimento em contratos DI, em conjunto com a CME. Esses contratos estão entre os mais negociados do mundo no segmento de futuros de taxas de juro, mas falta mais conhecimento de investidores estrangeiros sobre as possibilidades de negociação que eles abrem. A delegação da BM&FBOVESPA também marcou presença no maior evento de derivativos do mundo, a FIA Expo de Chicago. A Bolsa teve um estande na mostra, na área de exibição para parcerias, em associação com a CME e outras bolsas. REVISTA NOVABOLSA BOLSA 65 REVISTA DADA NOVA ON-LINE fotos: divulgação Por Patrícia Brighenti* ALMOÇO MAIS CURTO Os corretores de ações de Hong Kong poderão perder o intervalo de duas horas para almoço – o mais longo entre os 20 maiores mercados mundiais –, à medida que a bolsa local procura atrair mais operações da China. A proposta da bolsa de Hong Kong é iniciar os trabalhos uma hora mais cedo (às 9h30), concedendo intervalo de uma hora e mantendo o fechamento às 16h00. Em Xangai, o pregão funciona das 9h30 às 15h00, com intervalo de 90 minutos (das 11h30 às 13h00). E tem mais I: sete anos atrás, a bolsa de Hong Kong já havia tentado encurtar o intervalo de duas horas, encontrando a oposição dos operadores. E tem mais II: a bolsa de derivativos da Malásia, que é o mercado referencial para os preços do óleo de palma bruto, vai passar a aceitar a moeda chinesa, o yuan, em garantia de operações em seus sistemas. (Bloomberg, 13/8 e 5/11/2010) OUTROS ACORDOS Em Tóquio, a bolsa de grãos (TGE) propôs à bolsa de commodities (Tocom) a fusão de suas atividades, pois seus sistemas de negociação deverão estar integrados a partir de janeiro do próximo ano. Além de assinar contrato de licença com a Bolsa Mercantil de Cingapura (SMX), para que esta liste contratos baseados nos produtos da japonesa, a Tocom permanece aberta a discussões de fusão com outras bolsas. Por sua vez, a SMX celebrou protocolo de intenções com a Bolsa de Futuros de Taiwan para explorar oportunidades de negócios, facilitar o desenvolvimento de canais de comunicação e estimular a formação de parcerias entre as indústrias de serviços financeiros dos dois países. Protocolo de intenções também foi assinado entre as bolsas de Oslo e Toronto, objetivando viabilizar iniciativas comuns de marketing, regulação e listagem. (Mondo Visione, 20/9, 15 e 20/10, e Bloomberg, 8/11/2010) 66 REVISTA DA NOVA BOLSA E AINDA OUTROS A Nyse Liffe e a Bolsa de Commodities de Dalian (DCE) pretendem aprofundar as iniciativas de cooperação existentes entre as duas entidades, desde novembro de 2008, nas áreas de tecnologia e produtos. Também em parceria com a Nyse Liffe, a Bolsa de Valores de Tóquio introduziu em Londres, em outubro último, a negociação a futuro do índice Topix, visando ampliar sua base de investidores e competir com a rival Bolsa de Valores de Osaca, cujo futuro de índice Nikkei 225 é mais ativo. Na via oposta, a Bolsa Financeira de Tóquio (TFX) e a bolsa alemã firmaram acordo para que a bolsa japonesa liste derivativos do índice DAX. Por sua vez, a Bolsa de Valores de Osaca fechou acordo com a Bolsa de Valores de Shenzhen e, posteriormente, com a Bolsa da Coreia para construir relacionamento em prol do desenvolvimento dos mercados financeiros dos respectivos países. (Mondo Visione, 31/8, 15/9, 12 e 21/10, e FT.com, 12/10/2010) VIDA QUE IMITA A ARTE QUE IMITA A VIDA No final de 1987, o cineasta Oliver Stone lançou, nos Estados Unidos, o filme Wall Street – Poder e cobiça, que retrata os efeitos corrosivos da ganância sobre a indústria financeira. Em vez de servir de alerta para os perigos do capitalismo selvagem, o filme acabou inspirando gerações a parodiar seus personagens. Apesar de não ter sido sucesso de público nem de crítica e consagrar frases como “almoçar é para os frouxos” e “ganância é bom”, sua influência sobre a cultura popular ainda é bastante expressiva. Já na continuação Wall Street – O dinheiro nunca dorme, assinada pelo mesmo diretor, a reputação e a posição social dos banqueiros foram devidamente dimensionadas. Talvez agora os alertas sejam finalmente ouvidos, embora sem a mesma repercussão do original, mesmo que as frases ainda sejam memoráveis, como: “Uma vez eu disse que ganância é bom. Agora parece que foi legalizada” e “Você é tão Wall Street que me dá náuseas.” E tem mais: no último ano, dois documentários foram produzidos para contar a história da transformação dos pregões de viva voz das bolsas de commodities dos Estados Unidos nos espaços virtuais das transações eletrônicas. Com direção de James Allen Smith, o filme Floored destaca os pregões de Chicago e The pit, de Johanna Lee, os de Nova York. (SmartMoney, 19/8, e FT.com, 24/9/2010) NOVAS BOLSAS A operadora hindu de bolsas, a Financial Technologies, lançou nas Ilhas Maurício a Bolsa de Comércio Global (GBOT), oferecendo à negociação derivativos de commodities, energia e moedas africanas. Também a CBOE Holdings inaugurou nova bolsa de opções em 29 de outubro último, a C2, que pretende atrair operadores de alta frequência, oferecendo inicialmente opções sobre as ações listadas nos outros oito mercados norte-americanos de opções, inclusive a Bolsa de Opções de Chicago (CBOE). E tem mais I: a Bolsa de Valores Internacionais (ISE), propriedade da unidade de derivativos da bolsa alemã, igualmente avalia a possibilidade de lançar um segundo mercado de opções nos Estados Unidos. E tem mais II: a CBOE Holdings pretende adquirir, em oferta pública, até US$300 milhões em ações detidas por ex-membros, as quais não podem ser negociadas em mercado até o encerramento das restrições de lockup, em dezembro de 2010 e junho de 2011. (Chicago Business e Reuters, 13/10, e FT.com, 15/10/2010) EM GESTAÇÃO Ainda em 2010, a Nyse Euronext planeja implementar joint venture com a APX, empresa fornecedora de infraestrutura e serviços, que resultará na criação da Nyse Blue, voltada aos mercados ambientais e de energia sustentável, da qual será acionista majoritária. Os acionistas da APX, dentre os quais o Goldman Sachs, a MissionPoint Capital Partners e a Onset Ventures, deterão posições minoritárias. A Nyse Blue contará com os investimentos feitos pela Nyse Euronext na BlueNext, mercado a vista para créditos de carbono, que incluem os sistemas de pré e pós-negociação, os serviços de registro de projetos ambientais, os mecanismos de acesso aos mercados e de gestão de carteiras ambientais, os dados referenciais desses mercados e a plataforma eletrônica da BlueNext. (Securities Technology Monitor, 7/9/2010) REVISTA DA NOVA BOLSA 67 ON-LINE NO CAMINHO CERTO Pesquisa recente da Associação Internacional de Swaps e Derivativos (Isda) revelou o benefício da transparência de preços pós-negociação e da negociação eletrônica de swaps de juros. A pesquisa foi realizada com 295 empresas não financeiras, administradores de ativos e outras instituições financeiras nos Estados Unidos e na Europa, entre julho e agosto deste ano. Para essas entidades, que utilizam derivativos de balcão para hedge contra mudanças na taxa de juro, quanto mais informações estiverem disponíveis sobre preços e negócios, melhor. Ao mesmo tempo, 2/3 desses usuários afirmaram que a obrigatoriedade de negociar tais contratos em sistema eletrônico não impactará sua capacidade de gerir riscos. Entretanto, há preocupação com o risco de que a divulgação dos dados dos negócios possa expor suas posições aos competidores, que poderão operar na ponta oposta. A maioria dos entrevistados também comentou que a transparência de preços pré-negociação e a liquidez dos swaps de juros eram melhores ou iguais às dos mercados de câmbio, ações, papéis corporativos e títulos lastreados em ativos. Finalmente, antes de executar uma operação, 84% dos agentes costumam cotar preços com vários dealers e 62% consideram esses preços competitivos. (Reuters, 14/10/2010) 68 REVISTA DA NOVA BOLSA CINGRÁLIA A Bolsa de Cingapura (SGX) pretende adquirir a bolsa da Austrália (ASX) por US$8,3 bilhões, valor que equivale a prêmio de 84% sobre o valor de mercado da ASX. A bolsa que resultará da fusão será a sétima maior do mundo, com capitalização total de mercado das companhias listadas (2.750) no montante de US$1,9 trilhão, e a maior bolsa de derivativos da Ásia, além de representar a primeira grande consolidação de bolsas na região. A proposta necessita da aprovação de acionistas e reguladores dos dois países, bem como do parlamento da Austrália, cujo governo detém 23% de ações da ASX sem direito de voto. E tem mais: a SGX ampliou sua parceria com a Nasdaq OMX para oferecer às empresas negociadas a possibilidade de listar suas ações nas duas bolsas, com o intuito de proporcionar-lhes melhor formação de preço e novas oportunidades de negócios. (Mondo Visione, 22/10 e Barron’s, 30/10/2010) EXAGERO A sentença que condenou o operador Jérôme Kerviel a devolver ao banco Société Générale (SocGen) os €4,9 bilhões de prejuízo em operações não autorizadas nos mercados futu- ros, em janeiro de 2008, levou a instituição a considerá-la apenas uma declaração simbólica da responsabilidade de Kerviel. Este, que entrou com apelação, também foi condenado a cinco anos de prisão. Para o SocGen, é impossível reivindicar tamanha quantia de um único indivíduo. Temendo estimular simpatia pelo operador e hostilidade contra o banco, o SocGen pretende aguardar o resultado da apelação para buscar solução alternativa, que poderia envolver os ganhos posteriores de Kerviel, como o rendimento da venda de seu livro sobre o escândalo. E tem mais: o SocGen foi multado pelos reguladores franceses em €4 milhões, depois de receber €3,4 bilhões do governo local durante a crise financeira de 2008. (FT.com, 6 e 7/10/2010) TEMPO LIVRE A Bolsa de Valores de Nova York (Nyse) tem registrado concentração expressiva de negócios durante a primeira e a última horas diárias de negociação. Essas duas horas têm respondido por mais da metade do volume de operações. Em agosto passado, por exemplo, representaram 58% do volume da Nyse, acima dos 45% verificados em agosto de 2005. Com isso, muitas corretoras, especialmente as que operam com carteira própria, têm aproveitado os horários de queda de atividade para jogar tênis, marcar longos almoços, visitar a escola das crianças, caminhar e treinar em academias. O crescimento das operações de alta frequência, que aplicam algoritmos para explorar pequenas discrepâncias em situações de volume elevado, amplia essa concentração tanto no início quanto no final do dia. Já o acúmulo de ordens de investidores individuais e corretores a partir do encerramento do dia anterior, as estratégias dos investidores institucionais e as ordens emanadas do exterior ficam mais concentradas na primeira hora do dia, enquanto os fundos que acompanham os índices de ações costumam aguardar a hora final para executar operações, para melhor refletir os preços de fechamento. (Wall Street Journal, 10/9/2010) RISCO DE CONTRAPARTE EM FOCO O risco de contraparte foi jogado à cena depois da quebra do banco Lehman Brothers, levando os participantes de mercado a intensificar os controles de risco, inclusive elevando a frequência das chamadas de margem, alterando os tipos de garantia e utilizando mais contrapartes. Antes, a administração de garantias ficava restrita aos bancos de investimento, mas o uso crescente de derivativos por parte de gestores de ativos e investidores para hedgear ou obter lucro tornou-se o foco de agentes tanto da ponta compradora como da vendedora. Com isso, começa a se difundir a prática de contratar empresa especializada para monitorar as garantias e oferecer suporte total a seu processamento, que inclui negociação do contrato, gestão das posições de garantia e cálculo diário das margens exigidas por diferentes contrapartes. Outro motivo para a terceirização dessa função está na administração da frequência de chamadas de margem, que acaba demandando muitos recursos e dificultando sua condução interna. Adicionalmente, garantias como títulos e valores mobiliários, que têm sido mais utilizados, requerem sistemas mais sofisticados de avaliação e monitoramento, assim como a assinatura de contratos para definir critérios e formas de gestão. (FT.com, 17/10/2010) A CULPA É DO NOBEL Nassim Taleb, ex-operador que ficou famoso com as ideias sobre risco difundidas no livro The Black Swan (O cisne negro), publicado em 2007, culpa o prêmio Nobel de Economia e as teorias por ele consagradas por grande parte da maior crise financeira mundial desde a Grande Depressão. Segundo Taleb, há uma série de conceitos errados sobre previsão e mensuração de riscos, para os quais o Nobel de Economia acaba servindo como selo de aprovação e propagação, capazes de desencadear eventos como a crise global de 2008. Nomes como Harry Markowitz, William Sharpe, Robert Merton, Myron Scholes, Robert Engle, Franco Modigliani e Merton Miller compõem a lista negra de Taleb. Para ele, métodos de previsão criam falso senso de segurança ou, pior, conduzem as pessoas à direção errada, com as universidades agravando o problema ao sancionar e ensinar as ideias consagr;adas pelo Nobel como ortodoxia. E tem mais: Taleb chegou a sugerir ao rei da Suécia que tomasse alguma atitude a respeito do prêmio de economia, que só foi acrescentado em 1960 às categorias originalmente premiadas desde 1901 nas áreas de ciências, literatura e paz. (Reuters, 28/9/2010) *PATRÍCIA BRIGHENTI É JORNALISTA E TRADUTORA JURAMENTADA. REVISTA DA NOVA BOLSA 69 livros a bolsa pulsa na história do brasil POR FÁBIO PAHIM JR.* Nas origens da BM&FBOVESPA, constituída há dois anos com a fusão da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) e a Bovespa, está a Bolsa de São Paulo, fundada em 1890 por Francisco Rangel Pestana. Desde o nascimento – às vésperas da crise do Encilhamento, de 1891, cujo epicentro ocorreu no Rio de Janeiro – desempenhou papel notável na estruturação do capitalismo brasileiro, ao mostrar o poder do mercado acionário de atrair poupanças, estimular a criação de sociedades anônimas e de impor regras claras para seus acionistas, incentivar o desenvolvimento dos negócios e, em consequência, da economia brasileira, então dependente das exportações de café. É sobre essa rica origem, revisitada no 120º aniversário da Bolsa, registrado em agosto de 2010, que despontam escritos históricos sobre o Encilhamento: o livro de Ney Carvalho O Encilhamento – Anatomia de uma Bolha Brasileira, editado pela Comissão Nacional de Bolsas e pela Bovespa e, sobretudo, o estudo da professora de História da Northern Illinois University, Anne Hanley, Native Capital – Financial Institutions and Economic Development in São Paulo, Brazil 1850-1920, texto riquíssimo e pouco divulgado no País. Os dois trabalhos iluminam uma época que ainda hoje costuma ser caracterizada pelos vultosos prejuízos e pelo tom de denúncia de investidores malsucedidos, como Alfredo D’Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, cuja linguagem sarcástica buscou reduzir aquele momento eco70 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 nômico único a palco de trambiqueiros, ignorando os efeitos positivos da política de abertura da economia de Ruy Barbosa. Houve, é claro, prejuízos para alguns e casos de má-fé. Porém, mais importante, a política de abertura transformou, para melhor, o ambiente político e econômico do País, na fase de efervescência que se sucedeu à libertação dos escravos, pela Lei Áurea, de 1888, e da proclamação da República, em 1889. O texto da historiadora Anne Hanley – entrevistada nesta edição – deveria ser de leitura obrigatória para os estudiosos da história econômica brasileira e, em especial, do papel decisivo da Bolsa de São Paulo como instrumento de implantação do capitalismo no País. Ela mostra que centenas de companhias abertas e dezenas de bancos foram formados, naquela época, por empreendedores brasileiros “com capital obtido de investidores brasileiros”. E entre as companhias então criadas estavam algumas das maiores empresas industriais da região. Anne Hanley tratou em detalhe das atividades bancárias em São Paulo entre 1850 e 1920 e do surgimento de um vigoroso mercado de capitais. De certa forma, é possível comparar a atuação dos bancos da época – brasileiros e estrangeiros – com a atual, em que se combinam estratégias de risco com estratégias conservadoras. Naqueles tempos, predominavam os financiamentos com garantia hipotecária e de mercadorias, mas, assim como agora, o resultado foi uma contribuição relevante para o desenvolvimento econômico paulista, quando se firmavam os merca- dos de ações e de títulos de dívida em São Paulo e a economia alcançava rápida diversificação econômica. As instituições e os instrumentos financeiros tiveram papel decisivo na urbanização e na industrialização de São Paulo no início do século passado, segundo Anne. O trabalho é exemplar não apenas ao tratar da história econômica brasileira, mas ao contribuir para o conhecimento dos sistemas financeiros e das mudanças econômicas em outros países. Naquele momento, já se destacava a atividade regulatória do governo, ante o temor de uma expansão exagerada dos empréstimos. Mas o papel dos bancos como pro- vedores de liquidez foi decisivo para o desenvolvimento financeiro e industrial do Brasil. Acima de tudo, o livro identifica a forte relação entre as instituições financeiras – muitas das quais quebraram, enquanto novas surgiam para ocupar o lugar – e a economia paulista. A obra mostrou o que aconteceu na economia brasileira da época e por que, segundo o Journal of Latin American Studies, foi crucial o papel das instituições financeiras para entender o desenvolvimento daquele momento caracterizado por inovações financeiras. O alerta é de Anne Hanley: “Apesar da clara influência das instituições financeiras no leque de experiências de desenvolvimento, tanto positivas quanto negativas, elas nunca conseguiram muito espaço na literatura do desenvolvimento brasileiro. (...) Neste livro, eu defendo que as instituições financeiras foram precisamente o que tornou o desenvolvimento de São Paulo tão bem-sucedido. Apesar de um começo lento e conservador, as instituições financeiras de São Paulo foram compelidas pelo repentino boom do café a evoluir rapidamente, passando de instituições de caráter altamente pessoal para intermediários impessoais e formais que historicamente tanto beneficiaram economias”. Em outro trecho, a autora esclarece: “A Bolsa de São Paulo diversificou e começou a negociar dívida depois de 1909 em benefício direto de novas companhias urbanas de infraestrutura e manufatura. (...) Embora o capital estrangeiro tivesse presença notável na economia de São Paulo, não se compara ao nível de formação de capital doméstico que estava acontecendo nas áreas urbanas de São Paulo por intermédio das sociedades anônimas. Esse breve e intenso período no começo do século deu a São Paulo o arcabouço institucional vital para sua rápida modernização”. Foi naqueles anos distantes do final do século 19 e do início do século 20 que São Paulo criou as bases de uma expansão econômica acelerada, com pontos altos como a inauguração da ferrovia Santos-Jundiaí, em 1867, a mecanização das lavouras, a produção interna de têxteis e o incremento das exportações. Por volta de 1920, São Paulo ultrapassou o Rio como líder industrial e, em 1940, já dispunha da maior base industrial da América Latina. Bem antes, nas décadas de 1870 a 1880, já se revelava “o apetite por ações, revelado pela capacidade das companhias ferroviárias de continuamente e fortemente expandir suas ofertas, demonstrada como poderosos investimentos em serviços públicos cresciam no período”. Numa época em que os juros dos títulos das empresas oscilavam entre 5,5% ao ano e 8% ao ano, já era claro o interesse dos investidores individuais pelas ações, na tentativa de ampliar os ganhos. No boom do café de 1886, um total de 23 companhias colocou 450 mil ações no mercado, levantando US$35 milhões –montante muito expressivo na época. O PAPEL DA BOLSA DE SÃO PAULO Como escreveu Anne Hanley: “Apesar da doença econômica que se seguiu, o Encilhamento foi o início de um tempo de real desenvolvimento e diversificação econômica em São Paulo. A diversificação foi liderada pela constituição da Bolsa e sustentada pelo fato de que o governo deixou a peça central da legislação sobre os novos negócios – com responsabilidades limitadas – intocada”. Na década de 1890, foram constituídas em bolsa 87 companhias, para produzir máquinas, atuar em metalurgia, móveis, têxteis, sapatos e couro, processar alimentos, fabricar cerveja, papel, impressão, produção química básica, além de outras atividades manufatureiras e comerciais. Seria um erro considerar pouco importante a captação de recursos via ações, adverte a brasilianista. Aquele número aparentemente pequeno de empresas respondia por 16% do capital das indústrias paulistas em 1905 – e algumas já eram grandes contratadoras de mão de obra. Naquela época, a Bolsa ajudou a capitalizar empresas como a Vidraria Santa Marina e a Antártica – hoje parte da Ambev – além dos grupos Moinho Santista (Crespi), Industrial de São Paulo, Companhia Paulista e Companhia Mogiana, entre inúmeras outras. Em 1890-1891, eram negociadas na Bolsa de São Paulo ações de 101 companhias, número que caiu para 20 em 1902, após a crise do Encilhamento, mas logo voltou a subir para 30, em 1905, segundo os jornais da época O Estado de S.Paulo e Correio Paulistano. Dali até 1920, o mercado acionário teve uma vigorosa reação, em especial, de 1909 a 1913, embalado pela sólida política macroeconômica iniciada em 1906. Em 1917, nada menos de 158 companhias tinham ações negociadas na Bolsa de São Paulo, segundo O Estado de S.Paulo. Nas conclusões, Anne Hanley enfatiza que foi o native capital – ou o capital dos empreendedores brasileiros, e não dos estrangeiros – o maior responsável pela prosperidade e pela industrialização paulistas. Textualmente, ela afirma: “Virtualmente, cada aspecto da lendária transformação econômica de São Paulo foi fundada pelo capital nativo acumulado e distribuído pelos bancos, corretores e pela Bolsa de São Paulo”. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 71 livros os dividendos como aplicação em renda fixa O livro Viva de dividendos, de Fernando Leitão da Cunha, com 65 páginas e diagramação leve vale pelo título. Escrito em corpo 12/16, o texto pode ser lido em menos de uma hora por quem tem familiaridade com o mercado acionário. Ele mostra que é possível obter uma renda regular com a aquisição de ações de empresas que remuneram bem os acionistas. Nos primeiros capítulos, leitores menos afeitos ao mercado acionário recebem lições enxutas sobre o tema, como uma introdução à história das bolsas e o entendimento de que aplicações de risco – como as ações – não são previsíveis. Nunca é demais lembrar essa verdade básica. Quem a ignora, nem deveria aplicar em Bolsa. Ensinamentos básicos sobre o mercado de capitais são recapitulados. As ações devem ser vistas pelos detalhes, sobretudo, sem se fixar nas oscilações de curto prazo. Aplicadores interessados em dividendos – ou na remuneração distribuída aos acionistas em decorrência dos lucros da empresa – têm de evitar o frenesi dos pregões. Entrar no mercado acionário pensando no curto ou no curtíssimo prazo é para poucos. Para a maioria, cabe conhecer bem a empresa em cujas ações o dinheiro será aplicado. A novidade é singela: os dividendos são tratados como meio de obter renda constante por muito tempo – e esta é de fato uma abordagem inovadora, do ponto de vista da maioria absoluta de investidores. Só ela 72 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 já justifica repassar o texto, que trata de princípios básicos, como forma de comparar dividendos e renda fixa. Para os que já conhecem o mercado e termos como dividend yeld, o porcentual que resulta da divisão do valor do dividendo pago pela cotação da ação – é possível seguir logo até os capítulos finais, a começar da página 55, ou seja, os “finalmente” – na linguagem do personagem Odorico Paraguassu, de volta à notoriedade. Há empresas pagadoras habituais de bons dividendos, das quais a mais tradicional é a Souza Cruz. O autor cita outras, recomendando que os investidores não concentrem as aplicações em uma só companhia. Não é um negócio para os acomodados, que querem aplicar e “esquecer”, olhando só o retorno pecuniário do investimento. É preciso saber mais sobre as empresas, sem ignorar o óbvio: os dividendos vêm dos lucros – e se estes caírem, será inevitável que o valor dos dividendos que serão distribuídos também caia, se não neste, nos próximos anos. Uma listagem de empresas que pagam maiores dividendos, e que têm tradição em fazê-lo, é o primeiro passo. E a listagem será facilmente encontrada, com alto grau de atualização, na corretora por intermédio da qual o investidor opera em bolsa. Depois, será preciso conhecer mais sobre a política das empresas que pagam bons dividendos, para avaliar seu grau de comprometimento com tal diretriz. Além disso, dois aspectos têm de ser lembrados pelos investidores. Dividendos tendem a ser mais altos, em termos reais, quando a inflação é baixa – ou seja, a política macroeconômica dos últimos 15 anos foi decisiva para transformar os dividendos num item muito importante do mercado de capitais. Segundo, se o aplicador quiser obter uma renda elevada, também terá de ter um capital elevado. Se, na média, uma carteira de dividendos rende, a título de dividend yeld, 6% ao ano, para obter renda anual de R$60 mil – ou seja, R$5 mil mensais – será preciso ter um capital de R$1 milhão. É necessário fazer mais contas até que o aplicador possa concluir se disporá de tempo para chegar lá. * FÁBIO PAHIM JR. É COORDENADOR EDITORIAL DA REVISTA DA NOVA BOLSA. Untitled-1 1 07/10/2010 16:12:30 contraponto 74 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE: NO PRÉDIO ART DÉCO, RENASCE UM MARCO DA CULTURA BRASILEIRA POR humberto werneck* FOTOS agência luz e acervo da biblioteca mário de andrade JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 75 contraponto S egunda maior biblioteca pública do País, atrás apenas da bicentenária Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, a Mário de Andrade, no Centro da São Paulo, acumulou história e prestígio, além de tesouros bibliográficos, ao longo de seus 86 anos de existência. Lamentavelmente, acumulou também, sobretudo nas últimas décadas, um extenso rol de problemas, tão graves que, em 2007, foi determinado seu fechamento ao público para que passasse por uma reforma cada vez mais imperiosa. Já não se tratava apenas de estancar as goteiras de que já se queixava um de seus diretores, o escritor Sérgio Milliet, mais de meio século atrás. O valioso acervo, composto por 3,3 milhões de livros, periódicos, mapas e reproduções de arte, entre outros itens, tornou-se pasto de brocas e cupins, que acabaram por tornar ilegíveis as páginas de muitas obras. Como se isso não bastasse, tornou-se vítima também de ladrões, responsáveis pelo desaparecimento, constatado em 2006, de preciosos livros e centenas de gravuras, muitos dos quais ainda não recuperados. 76 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 Hoje, pode-se dizer que o pesadelo ficou para trás. Concluída a primeira parte da reforma iniciada em setembro de 2007, ao custo total de R$16,4 milhões, financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em parceria com a prefeitura paulistana, em julho de 2010 foi aberta novamente ao público, com outra cara, a Biblioteca Circulante – que permite empréstimo de livros – da Mário de Andrade. (Chegou a existir uma biblioteca literalmente circulante, criada em 1936, sob a forma de um ônibus carregado de livros – para consulta apenas – que fazia ponto em algumas praças da cidade.) Outros setores, como a seção de Obras Raras e Especiais, seriam entregues em janeiro, ao mesmo tempo em que chegavam ao fim os trabalhos de paisagismo no entorno do prédio, na Praça Dom José Gaspar. A reforma, segundo o secretário municipal de Cultura, Carlos Augusto Calil, se insere num esforço mais amplo para a revitalização do Centro de São Paulo. “A intervenção em curso devolve a Mário o lugar que é só seu – na praça, na cidade, no País”, disse o secretário por ocasião da reabertura da Circulante, lembrando que por muitos anos a biblioteca esteve “engradada, voltada para dentro de si própria, escura e deprimida”. Literalmente engradada: só agora foram removidas as feias, ostensivas, quase agressivas grades que, por tanto tempo, isolaram o prédio dos jardins que a rodeiam – em cujo espaço, agora embelezado e revitalizado, um Mário de Andrade em bronze, por Bruno Giorgi, convive com Dante Alighieri, Luís de Camões, Goethe, Miguel de Cervantes e, estranho musical nesse ninho literário, o compositor Frédéric Chopin. A simples devolução da Circulante aos leitores já contribuíra para injetar vida na região. “Fico orgu- lhosa de colocar nesta praça mais setecentas e tantas pessoas todos os dias”, comemora a bibliotecária Maria Christina Barbosa de Almeida, há quase dois anos diretora da Mário de Andrade, referindo-se ao número médio diário de frequentadores. E tudo ali vai melhorar ainda mais quando estiverem concluídas, na mesma praça, as obras de reforma do antigo edifício do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo (Ipesp), anexo cujos 16 andares vão acolher os mais de 2,8 milhões de jornais e revistas que compõem a hemeroteca da Mário de Andrade. Mas não será necessário aguardar por essa última providência para avaliar a envergadura do que vem sendo feito desde setembro de 2007. Merece relato pormenorizado, por exemplo, o trabalho de desinfestação dos mais de 200 mil volumes da Coleção Geral da biblioteca, atacados ou ameaçados pelas brocas e cupins – processo por que vão passar, também, milhões de jornais e revistas antes de serem acomodados no anexo. Lá, como no prédio principal, medidas de segurança foram tomadas para evitar a entrada de outro tipo de invasores – os humanos que saquearam o setor de Obras Raras e Especiais, levando, além de livros, cerca de duzentas gravuras, entre elas algumas de Debret e Rugendas. A ação da polícia, logo após o anúncio do saque, em setembro de 2006, permitiu que algumas obras fossem recuperadas nas mãos de alfarrabistas ou em leilões de arte. Foi o caso do Manual do fazendeiro, ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros, do médico francês J. B. A. Imbert, de 1834. “Dele só existem dois exemplares no mundo, um na Mário de Andrade e outro na Inglaterra”, conta o bibliotecário Rizio Bruno Sant’Ana, curador de Obras Raras e Especiais da casa. Voltou também um desenho original de José Wasth Rodrigues, artista brasileiro do século XX que trabalhou na documentação de casas coloniais brasileiras. Mas ainda não foi recuperado o livro Souvenirs do Rio de Janeiro, com doze gravuras do suíço Johann Jacob Stein- JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 77 contraponto mann, introdutor da litografia no Brasil, que viveu aqui de 1825 a 1833. Pelas últimas contas do curador, das duzentas gravuras roubadas apenas 20 foram reintegradas ao acervo. Discute-se a necessidade de fazer seguro, mas essa é uma questão complicada pelos altos custos e pela dificuldade em fixar o valor das obras. Especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo por ocasião da descoberta do furto divergiram, por exemplo, quanto ao valor – de US$10.000 a US$100.000 – de uma das peças surrupiadas, um livro de horas (espécie de missal) impresso em pergaminho em 1501, em Paris. projeto de recuperação “A intervenção em curso devolve à Biblioteca Mário de Andrade o lugar que é só seu – na praça, na cidade, no País” Carlos Augusto Calil, secretário municipal de Cultura 78 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 Assinado pelo escritório Piratininga Arquitetos Associados, o projeto de reforma da Mário de Andrade previu, basicamente, recuperação estrutural do prédio, impermeabilização das lajes, realização de obras de segurança e restauro das fachadas e do mobiliário original, além do paisagismo. Em outros tempos, durante a administração da prefeita Marta Suplicy, sonhou-se com três subsolos, que acolheriam a Circulante, e um restaurante no último andar – o 22º – da torre da Praça Dom José Gaspar, servido por elevador panorâmico; mas as sugestões do arquiteto Fábio Penteado não emplacaram. Aquela não foi, aliás, a primeira vez que se frustrou uma ideia para o conjunto arquitetônico – o qual, no papel, era bem mais encorpado do que veio a ser quando se materializou, em 1942. Fundada em 14 de janeiro de 1925 como Biblioteca Municipal de São Paulo, a Mário de Andrade foi inaugurada em 1926, na Rua 7 de Abril, 37, com 92 lugares para pesquisa e 15.000 livros doados pela Câmara Municipal. Em 1934, incorporouse à Biblioteca Pública do Estado – e o crescimento do acervo, a partir de então, passou a demandar instalações cada vez mais amplas. Para esse processo de enriquecimento bibliográfico contribuiu, desde cedo, a aquisição de acervos particulares, como os do escritor e político Félix Pacheco, do crítico e historiador da literatura Otto Maria Carpeaux e o do ensaísta Paulo Prado, o principal mecenas da Semana de Arte Moderna de 1922. Na segunda metade da década de 1930, o prefeito Fábio Prado deu os primeiros passos para instalar a biblioteca em espaço mais confortável. Seu sucessor, Francisco Prestes Maia, foi adiante: desapropriou, não longe dali, na esquina das ruas São Luís e Consolação, o Palácio São Luís, sede do arcebispado paulistano, para em seu lugar construir uma praça (que, em 1949, seria batizada em homenagem ao arcebispo Dom José Gaspar, morto em acidente aéreo em 1943) – e nela erguer, entre 1938 e 1942, um prédio condigno para a biblioteca. O projeto, considerado um marco na arquitetura art déco na cidade, foi encomendado ao francês Jacques Pilon e previa a construção de duas torres. Mas Prestes Maia, que era engenheiro e arquiteto, além introduzir modificações no desenho de Pilon, vetou a segunda torre – por conta, há quem diga, da antipatia que tinha por Mário de Andrade, por ele demitido da diretoria do Departamento de Cultura em 1938. Qualquer que tenha sido a motivação, o veto de Prestes Maia – que viveria o bastante para ver a biblioteca ganhar, em 1960, o nome do escritor, falecido em 1945 – criou para a instituição um problema de espaço que não parou de se agravar. A tal ponto que, a partir da década de 1970, foi necessário remover setores inteiros da biblioteca, como a Circulante e a seção de Periódicos, para locais distantes de seu prédio. JAN/MAR abr/jun 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 79 contraponto Maria Christina Barbosa de Almeida, diretora da Biblioteca Mário de Andrade Os frequentadores diários chegam a 770, mas ela quer atrair mais pessoas para leitura e lazer. Diz que, em breve, haverá um café, a ser explorado pela Associação dos Amigos da Biblioteca Mário de Andrade, no espaço de convivência. A ideia de tirar do papel a segunda torre volta e meia ressurgia, até ser definitivamente enterrada em 1970, quando, em busca de solução para o sufoco, a Prefeitura decidiu construir uma biblioteca numa nesga entre a Rua Vergueiro e a Avenida 23 de Maio – projeto que, sem resolver o problema, acabou dando origem ao Centro Cultural São Paulo, inaugurado em 1982. Só agora, com a incorporação do antigo prédio do Ipesp, e sua reforma, ao custo de R$11,6 milhões, haverá desafogo na Biblioteca Mário de Andrade. A aquisição desse anexo, disse o secretário Calil, finalmente concretiza “o desejo histórico da segunda torre”. Desde a reabertura da Circulante, seus usuários podem desfrutar de confortos impensáveis para quem a frequentou na fase pré-reforma. A entrada principal, que durante anos abria para a Rua da Consolação, voltou a ser pela São Luís; agora ocioso, o antigo saguão de entrada passará a ser espaço para exposições. Ali perto, onde antes havia fichários, uma sala acolhe a Coleção São Paulo que 80 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 conta com 1.335 obras sobre a capital paulista. Ao lado da nova portaria, criou-se um amplo e bem iluminado “espaço de convivência” para quem quiser ler revistas e os jornais do dia. No lado oposto fica a sala de leitura da Biblioteca Circulante, aberta ao público das 8h30 às 20h30, de segunda a sexta-feira, e das 10h00 às 17h00, aos sábados. Os números de setembro informam que 770 pessoas por dia, em média, lá estiveram e que, ao final do mês, 4.588 livros haviam sido emprestados, sempre pelo prazo de 15 dias. O mais consultado foi Para viver um grande amor, coletânea de crônicas e poemas de Vinicius de Moraes, junto com Ode triunfal e outros poemas, de Fernando Pessoa, Nosso lar, ditado a Chico Xavier, pelo espírito de André Luís Criança 44, policial do inglês Tom Rob Smith, e o romance Viciada em feng shui, do irlandês Brian Gallagher. Oito leitores estavam na fila de espera para ter nas mãos o best-seller 1808, de Laurentino Gomes, sobre a chegada da Corte portuguesa em Brasil, e A cabana, romance do espanhol Vicente Blasco Ibañez. Quatro esperavam sua vez para ler A menina que roubava livros, do romancista australiano Markus Zusak, e duas, Clarice, a monumental biografia de Clarice Lispector pelo americano Benjamin Moser. Com quase 42.000 livros e capacidade para 130 usuários, a Biblioteca Circulante nem de longe lembra (a não ser pelo mobiliário, reformado com esmero) o ambiente quase inóspito dos tempos que precederam a reforma. “Viva a diferença”, diz Edmundo Juarez Filho, de 51 anos, frequentador da Mário de Andrade desde 1999 e que atualmente passa o dia inteiro às voltas com a preparação de uma tese de doutoramento em literatura brasileira. Ele conta que, antes da reforma, o tempo entre pedir livros – três de cada vez, no máximo – e recebê-los na mesa, levados por atendentes em geral de má vontade, era tão longo que lhe permitia sair, caminhar algumas quadras até o Teatro Municipal, assistir a pelo menos parte de um programa cultural e retornar Edmundo Juarez Filho, frequentador Passa o dia inteiro na Biblioteca Mário de Andrade, onde se prepara para uma tese de doutoramento em literatura brasileira. JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 81 contraponto Eduardo Fonseca, advogado Estudando para um concurso público, aproveita para ler Steinbeck, Salinger e Auster no mezanino da biblioteca, com “conforto e acesso fácil aos livros”. 82 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 à biblioteca. Os funcionários, elogia Edmundo, são tão gentis quanto eficientes e o ambiente é ótimo, avalia ele, embora se queixe da falta de telefone público e ambiente externo para relaxar nos intervalos da leitura, e também da ideia, a seu ver infeliz, de instalar terminais de pesquisa junto às mesas, pois não raro os usuários dos computadores promovem ali um incômodo bate-papo. Foi por isso, justamente, que o jovem advogado Eduardo Fonseca decidiu refugiar-se no sossego do recém-construído mezanino. Morador no distante bairro do Morumbi, ele se aloja nas alturas quase todos os dias, das 8h30 às 18h30, desde que a biblioteca reabriu. Está se preparando para um concurso público, mas dá sempre um jeito de entremear literatura prazerosa (romances dos americanos John Steinbeck, J.D. Salinger e Paul Auster, por exemplo) Os números grandiosos da segunda maior biblioteca pública do País na aridez de suas leituras de trabalho. “Uma coisa boa aqui é o conforto e o acesso fácil aos livros”, diz Eduardo, frequentador da biblioteca há cinco, seis anos. Já Edmundo, no térreo, reclama da demora em dotar a biblioteca de uma cafeteria e do fato de a sala de leitura não ser um ambiente wi-fi, para que os usuários munidos de notebooks, cada vez mais numerosos, possam pesquisar na internet. “Estamos cuidando disso”, tranquiliza a diretora Maria Christina Barbosa de Almeida, ao mesmo tempo em que anuncia para breve a abertura de um café – a ser explorado pela Associação dos Amigos da Biblioteca Mário de Andrade – no espaço de convivência. A frequência segue sendo a mesma de outros tempos, com dois troncos predominantes. Os jovens quase sempre são estudantes em busca de elementos para seus trabalhos escolares. Entre os adultos, em sua maioria homens e na faixa dos 40 anos para cima, há boa quantidade em preparativos para concursos públicos – além de amantes da leitura, simplesmente, muitos deles moradores das proximidades da biblioteca. Entre estes, contam-se alguns que, muito pobres, não têm onde morar e passam a noite em albergues. É o caso de uma estrangeira que, avessa à curiosidade alheia, pois teme a exploração sentimental de sua aflitiva situação de vida, bate ponto na Mário de Andrade todas as manhãs. Outro habitué é um homem de meia idade que invariavelmente vai direto à prateleira das bíblias e, às vezes, se põe a ler ou discursar em voz alta – até que o mandem calar-se. Em padrão menos bizarro que esse pregador solitário, a dona de casa Alair Cozzetti vai à Biblioteca Mário de Andrade uma vez por semana, sempre às sextas-feiras, numa longa viagem que a leva da Freguesia 3.316.680 itens compunham, em outubro de 2010, o acervo da Biblioteca Mário de Andrade. Entre eles: 326.700 livros da Coleção Geral 41.462 livros da Biblioteca Circulante 3.647 obras de referência 11.980 mapas 51.000 obras raras 70.000 livros, reproduções e outros itens de arte 1.990.000 jornais 850.000 revistas JAN/MAR 2010 REVISTA DA NOVA BOLSA 83 Desinfestação GUERRA a BROCAS E CUPINS F oi em 2002 que soou o alarme: o acervo da Biblioteca Mário de Andrade estava infestado por brocas e cupins. O que não era de espantar, explica o supervisor do acervo, bibliotecário William Okubo, há seis anos na casa: o fato de a Mário de Andrade estar situada numa praça, tipo de espaço onde costuma ser grande a circulação de insetos, já colocaria os impressos em perigo – e ainda mais quando há o hábito de deixar abertas portas e janelas. Além disso, o ambiente nas salas, nas quais não havia termo-higrômetros, era quente e úmido, ideal para a proliferação de brocas e cupins. O correto, ensina Okubo, seria manter a temperatura entre 19 e 22 graus centígrados e a umidade do ar entre 45% e 50%. Um paciente trabalho de limpeza, volume por volume, com o auxílio de escovinhas e de pinças para capturar as brocas – vorazes besourinhos que podem medir até 9 milímetros –, muitas das quais vivas e ativas, revelou que em alguns corredores quase 100% dos livros haviam sido atacados. Isso não acontecia, felizmente, no setor de Obras Raras e Especiais, pois nos cinco andares que ocupava todos os cuidados eram tomados. Também a Biblioteca Circulante havia sido poupada. Em 2006, depois daquela primeira limpeza, os livros em que foram encontradas brocas foram acondicionados em sacos de TNT (o “tecido não tecido”), como forma de separá-los dos demais. Mas não basta remover as brocas, explica William Okubo, pois muitas vezes restam seus ovos. Por isso, em 2009, cerca de 200.000 volumes foram acondicionados em 4.500 caixas de papelão de alta resistência e transportados para um galpão alugado em Santo Amaro. Ali, divididos em três lotes, passariam cerca de quarenta dias no interior de uma enorme bolha de plástico, na qual foi injetado nitrogênio para expulsar o oxigênio, provocando assim a morte dos insetos remanescentes. De volta ao prédio da Praça Dom José Gaspar, os livros passaram a ser conservados em recintos fechados e providos de termo-higrômetros. Todas as semanas, os cinco integrantes da equipe de preservação do acervo percorrem as prateleiras e, por amostragem, vão levantando os volumes, em busca do pó que acusaria a presença de brocas e cupins. “Ainda não achamos nada”, comemora William Okubo – e informa que os 2,8 milhões de itens do setor de periódicos passarão pelo mesmo processo, antes serem acomodados, em meados do ano, no anexo da Biblioteca Mário de Andrade. Não se descuida, igualmente, dos livros que não cessam de se incorporar às diversas coleções, seja por compra, seja por doação, pois podem estar infestados de insetos e contaminar o acervo. E não é pouca coisa: entre janeiro e setembro de 2010, a biblioteca adquiriu 5.697 livros novos, um investimento de R$123 mil. No mesmo período, a Circulante recebeu em doação 3.082 volumes, e a Coleção Geral, 668. Tudo o que entra, conta William Okubo, passa por exame, ou mesmo quarentena, antes de ganhar espaço nas estantes. 84 REVISTA DA NOVA BOLSA JAN/MAR 2010 Uma vez por semana, sempre às sextas-feiras, sai da Freguesia do Ó e vai à Biblioteca Mário de Andrade, no Centro, para ver as novidades e tomar livros por empréstimo Alair Cozzetti, dona de casa do Ó ao Centro em duas conduções – mas não toma assento na sala nem se demora: guiando-se apenas pelos textos das quartas capas dos livros expostos na prateleira das Novidades, ela escolhe dois e faz o caminho de volta para casa. Em geral, lê duas vezes cada obra: “Na primeira leitura”, explica, “estou tão empolgada que vou depressa demais”. Ela adora romances (do peruano Vargas Llosa, por exemplo) e biografias – uma das últimas que leu foi a de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, Minhas duas estrelas, do filho de ambos, o cantor Peri Ribeiro. “O Herivelto”, critica Alair Cozzetti, “era odioso, batia na Dalva, mas o livro é ótimo”. Entre os milhares de usuários que a Biblioteca Mário de Andrade veio acolhendo em seus 86 anos de vida, há nomes conhecidos e alguns têm sido convidados a gravar depoimentos para o Projeto Memória Oral, criado em 2005. Até o final de 2010, sessenta escritores, artistas, pesquisadores e exdiretores da casa já haviam registrado a história de sua relação com a biblioteca. Entre eles, o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso e a falecida antropóloga Ruth Cardoso, sua mulher, o escritor e músico Jorge Mautner, o historiador Carlos Guilherme Mota, a dramaturga Consuelo de Castro, o novelista Manoel Carlos, os artistas plásticos Marcelo Grass- mann e Maria Bonomi, o estudioso de cinema Jean-Claude Bernardet e o ficcionista Ignácio de Loyola Brandão. É pena que a morte do contista João Antônio, em 1996, nove anos antes da criação do Projeto Memória Oral, tenha impossibilitado o registro de uma história talvez única, a de uma obra literária que foi escrita de ponta a ponta nas dependências da Biblioteca Mário de Andrade. Em 1960, um incêndio doméstico destruiu o manuscrito daquela que talvez seja a obra-prima do escritor paulista, o conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”. O autor já estava se conformando com a perda quando o escritor Mário da Silva Brito conseguiu para ele o direito de usar uma das cabines de pesquisa da Biblioteca Mário de Andrade – reduto tranquilo e silencioso no qual, durante vários meses, João Antônio pôde reconstituir a obra-prima que daria título a seu premiado livro de estreia, lançado em 1963. Meio século depois, e ao cabo de uma reforma que tomou três anos, também as dezesseis cabines da Mário de Andrade ganharam cara nova e mais conforto – até mesmo para que eventualmente se possa, nelas, dar final feliz a tragédias como aquele incêndio que por pouco não nos privou de um clássico da moderna literatura brasileira. *humberto werneck JAN/MAR 2010 É JORNALISTA. REVISTA DA NOVA BOLSA 85