Terra de cobertura – Construções circulares com cobertura de terra
(Alentejo) e coberturas de salão do Porto Santo (Madeira)
Texto publicado na monografia Arquitectura de Terra em Portugal | Earth Architecture in Portugal, da
coordenação de Maria Fernandes e Mariana Correia, Argumentum, Lisboa, 2005, pp. 62-67
Por Victor Mestre
O Mediterrâneo terá sido seguramente uma das bases mais extraordinárias no surgimento e
afirmação da cultura ocidental. Aproximou povos, permitiu a circulação de pessoas, produtos e
sobretudo transmitiu ciência e cultura do Extremo e do Médio Oriente até às culturas de borda
de água de todo o espaço marítimo. A Ocidente o mundo de então acabava entre as abruptas e
enigmáticas colunas de Hércules, mas a curiosidade e a ousadia superaram os temores e as reais
dificuldades. Este mundo do lado de cá afinal existia, apesar de longínquo como refere
Braudel(1), e nele habitavam povos distintos cujo grau de desenvolvimento, ainda rudimentar,
mas não atrasado no sentido que escreve LéviStraus(2) terá sido surpreendido com os primeiros
navios fenícios, cartagineses e muçulmanos que fizeram nesse tempo antigo e subsequente, a
sua "circum-navegação" explorando o mundo desconhecido das costas ocidentais até ao Norte
da Europa e parte da costa atlântica de África. Nesse tempo de comunicações marítimas, os rios
eram determinantes no apoio logístico vindo progressivamente a estabelecer--se neles feitorias,
autênticos interpostos comerciais que em muitos casos não se quedavam pela foz e, rio acima,
encontravam povos disponíveis para mercadejar. Este pedaço de terra que é hoje Portugal,
enfrenta na sua geografia física o Atlântico, a Ocidente, e "desalinha-se" a Sul em direcção
Noroeste do Mediterrâneo. Contudo viria, nos prim6rdios do "tempo novo", a ter no espaço
mediterrâneo a sua principal fonte de cultura vencendo gradualmente "estados primitivos de
civilizações regionais". Muito autores, nacionais(3)e internacionais, associaram as construções
circulares de feição tradicional a uma prática construtiva ancestral ligada inclusivamente à
execução de monumentos funerários, localizando-os em tempos históricos e em espaços
geográficos nem sempre coincidentes. Importará todavia, em nossa opinião, deixar expresso que
estas arquitecturas de extrema singeleza formal detêm um conhecimento técnico considerável,
que terá sido adquirido e transmitido a partir de fontes experimentadas por uma longa prática
construtiva, de feição eruditizante e cujo conhecimento terá estabilizado numa prática comum
adquirida e progressivamente propagada por mestres ligados às arquitecturas tradicionais -uma
vez que esta Circular técnica caiu em desuso na construção de templos funerários ou de outra
natureza, sendo esta substituída por arquitecturas de cânone.
Em praticamente todo o país registam-se construções circulares de falsa cúpula. No entanto as
zonas interiores ao longo da fronteira são as que mais evidenciam esta tipologia e técnica
construtiva,
verificando-se
inclusivamente
continuidade
em
território
espanhol.
Ao
percorrermos a região do Sul que referenciamos a partir do Tejo internacional e descendo a raia
até à foz do Guadiana, registamos várias construções de falsa abóbada de pedra, mas com usos
distintos. A maioria dos casos encontram-se desactivadas devido ao fim da transumância,
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enquanto que outros Beira exemplos integrados em montes, cujo ciclo produtivo agonizou
lentamente nas últimas duas décadas, mantêm-se hirtos, entre outras construções, num silêncio
próprio do abandono integral das actividades humanas. Mas quando subimos a Beira Alta junto à
fronteira, em direcção a Figueira de Castelo Rodrigo, voltamos a encontrar igualmente
construções idênticas com pequenas nuances relativamente às suas congéneres do Sul,
sobretudo na sua dimensão.
Com diâmetros menores que raramente ultrapassam os 2.5 m (interior), enquanto que no
Alentejo atingem vulgarmente os 3 m, chegando mesmo aos 4 m (interior) mantendo a mesma
proporção na altura (interior). As sólidas paredes têm vulgarmente 0.6 m na base e vão
aumentando conforme a disposição da cúpula, composta por avanços sucessivos das pedras
laminares de xisto ou de granito.
As safurdas ou chafurdas destinadas ao porco são significativamente mais baixas, embora o
princípio construtivo seja o mesmo. Caracterizam-se normalmente por uma sobreposição de
grandes lajes atravessadas lateralmente ou seja, estruturando o seu peso e equilíbrio numa
forma radical como um diafragma fotográfico. Observamos este"esquema construtivo" nas
herdades junto a Barrancos e no Monte do Conde, junto à Aldeia da Luz, no Alqueva.
A terra que se coloca ciclicamente sobre a cúpula permite a uniformização da cobertura. Esta,
após escolha criteriosa, quase sempre rica em tal isca (pedra mole) ou solos argilosos com
mistura de pequenas pedras que seguram a terra face às bátegas violentas provocadas pelas
trovoadas. A criteriosa elevação das paredes representará a chave do sucesso destas
construções. Nas safurdas e safurdões de grandes dimensões, as paredes elevam-se geralmente
com grandes peças de fora a fora, ou de "pedras-tranca" que vão surgindo espaçadas nos
sucessivos anéis de elevação da parede. A sua sobreposição ajustada e em fieiras
desencontradas garante a estabilidade e, sobretudo, recebe geralmente o peso distribuído da
falsa cúpula. O carrego de pedra miúda e de terra primorosamente colocado em todo o
perímetro da construção, assegura o renivelamento da parede de fora e dita a altura do
coroamento, concorrendo para a estabilização das forças laterais exercidas num plano inferior,
onde se encaixam as pedras de maior dimensão e que estão na base do desenvolvimento da
falsa cúpula.
O lintel de pedras pousadas, sem argamassa, projecta-se do plano vertical cerca de 10 a '5 cm,
marca o coroamento chefe e nivela a construção, conferindo-lhe graciosidade arquitectónica e
assegura a "linha" de permanência da terra. De um modo geral a safurda e o chafurdão não são
rebocados e o aparelho fica à vista, mostrando que se trata de uma construção de pedra seca,
ainda que a terra como outra principalmente nos níveis superiores, misturada com pedras
miúdas constituindo um poderoso isolante térmico. Simultaneamente funciona como matéria
absorvente das chuvas a partir dos níveis superiores. A região de Barrancos é, curiosamente, a
que dispõe de exemplos de maior dimensão, por vezes associados, com duplo módulo encostado
não comunicante, e também serão dos poucos exemplos rebocados e caiados. Provavelmente
estas características serão reveladoras da sua condição habitacional. Em tantos exemplos, por
n6s visitados, poucos foram aqueles onde se observaram pequenas frestas quadrangulares
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reforçando-se assim a possibilidade de uso doméstico. No inicio dos anos oitenta do século XX,
no decorrer de um Inventário de Arquitectura Popular do Baixo Alentejo(4)' entrevistámos
algumas pessoas idosas ligadas à lavoura que sabiam quem tinha utilizado as safurdas para
habitação, associando-as à antiquíssima vida da transumância. Progressivamente abandonadas,
mantiveram-se ainda activas enquanto postos de pernoita sazonal dos pastores de rebanhos,
cada vez mais sedentários na segunda metade do século XX.
Contudo vários destes apoios dispersos permanecem num vasto territ6rio transfronteiriço como
marcos da rota da deslocação dos grandes rebanhos ibéricos. Hoje, estas majestosas
construções celebram as planícies como templos de um tempo impreciso e imperceptível para a
maioria dos cidadãos, podendo agora ganhar novos usos enquanto resguardo ao violento estio
e, simultaneamente, albergar diversa informação sócio-cultural de uma região.
Do Mediterrâneo ao Atlântico -Casas de Salão do Porto Santo Apesar de se encontrar em
acelerado desaparecimento, podemos ao longo dos últimos vinte e cinco anos observar e
registar diversos exemplos representativos desta tipologia e técnica construtiva. De um modo
geral, as construções que utilizam este tipo de cobertura são de quatro e duas águas, e por vezes
de uma só (bastante prolongada) para outros usos, que não a habitação. A tipologia habitacional
corrente é térrea, com a cozinha integrada, forno exterior encostado com abertura interior para
o lar. As restantes divisões comunicam entre si e variam entre dois ou mais compartimentos.
A construção da casa era normalmente uma tarefa dividida entre o proprietário da futura casa e
por ajustamento com um mestre-pedreiro e um mestre-carpinteiro. assim vulgar o dono da obra
extrair de pedreiras locais os blocos de pedra calcária, conhecida por pedra de areia, utilizando
para tal guilhos e marretas. A pedra era então aparelhada pelo mestre-pedreiro que preparava o
engalgamento" das paredes no terreno sobre os alicerces. Interiormente, e no sentido
transversal, é vulgar encontrarmos também parede(s)-mestra(s), embora o tabique de caniço
seja comum. Elevadas as paredes, dá-se início à preparação do telhado, da responsabilidade do
mestre-carpinteiro.
Este é constituído por uma armação de taras e varas de madeira, cuja disposição regular de 50
em 50 cm é denominada de "mãos-dadas", para o caso de quatro águas. Esta apoia-se nos
"frochais" (nome local para frechais) que, por sua vez, são pregados a uma viga pousada sobre as
paredes.
No caso de telhado de duas águas, a cobertura apoia-se em empenas triangulares que suportam
o toro central para apoio da restante estrutura do telhado, constituída por toros de menor
dimensão. As condições económicas do dono da obra ditam então o uso de um forro de tabuado
de caixote e telha cerâmica, ou o mais vulgar o forro de mato seco-feiteira, ou rama de cedro, ou
caniço, ou folhas de palmeira sobre a armação de madeira.
Seguidamente, sobre as paredes e o remate da armação de madeira, são depostas pedras
aparelhadas que se projectam 10 a '5 cm sobre a fachada formando uma "cornija lintel".
Finalmente é espalhado sobre a "cobertura vegetal" uma camada de 7 a 10 cm de salão, que
uniformemente cobre toda a área do telhado. Interrompido apenas por uma chaminé austera e
paralelepipédica.
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No exterior a casa é tradicionalmente rebocada com argamassas pobres de areia e cal, embora
seja comum encontrar casas de pedra à vista. Primitivamente o pavimento era em barro batido
por um "calcão" e raramente tinha sobrado. A partir da segunda metade do século XX,
vulgarizou-se o uso de betonilha e cerâmicos.
Dos materiais utilizados em obra destacamos o "salão", cuja constituição é basicamente a
decomposição de materiais vulcânicos.
Este barro local apresenta um apreciável grau de"goma natural" de modo a agregar-se com
facilidade quando em contacto com a água. É nesta característica que reside a vantagem da sua
aplicação uma vez que, devido aos factores climatéricos locais (clima seco, temperaturas
elevadas e fraca pluviosidade), este apresenta um comportamento ideal. Assim, verifica-se que
na maior parte do ano as coberturas de barro estão secas, abrindo fendas por toda a superfície,
permitindo deste modo uma circulação de ar entre o interior e o exterior da casa. Porosas ao ar
na época seca e estanques em contacto com as chuvas (devido à facilidade de agregação do
barro), estas coberturas respondiam assim às necessidades e condições económicas dos
habitantes da ilha, sendo ainda de registar a sua fácil manutenção, bastando a reposição do
barro que, com a erosão, desliza para a cornija ou recarregando zonas em falta.
A arquitectura tradicional do Porto Santo revela-nos uma extrema simplicidade, em parte devido
à escassez de meios, recorrendo, desde sempre, aos materiais preexistentes, conhecimentos
técnicos e aperfeiçoadas ao longo dos séculos. A transposição de a tecnologias adquiridas
modelos e técnicas construtivas da origem dos povoadores terão sofrido ajustamentos face às
condições locais e, inclusivamente, terão evoluído com a introdução de inovações. Esta técnica
simples, talvez introduzida por tornar-viagem das ilhas mediterrânicas e /ou a partir da costa
africana, representa uma alternativa à telha cerâmica de importação e custos elevados. Durante
a investigação local, onde observámos a técnica construtiva e os respectivos resultados, tudo
nos pareceu ter um grande sentido este território agreste, onde as coberturas de palha são
impossíveis face às fortes ventanias, acontecendo o mesmo telha portuguesa que só com o peso
de pedras colocadas entre fieiras ou através da telha meia mouriscada se evitam os
deslizamentos. O uso do "salão" é uma memória em vias de extinção mas a razão deste recurso
continua perene, dado o grau de eficácia no isolamento de uma construção contemporânea. O
arquitecto Raúl Chorão Ramalho, atento a esta particularidade, potenciou este material na sua
reutilização pioneira na Escola Primária do Porto Santo (projecto de 1959).
Em nosso entender o interesse actual destes conhecimentos da tradição servirá para assegurar a
manutenção do património tradicional da região e ainda poderão estimular os arquitectos a
reinventá-los em novas intervenções nas vertentes plástica cultural e tecnológica.
1. "Em Espanha a penetração megalítica é ainda mais curiosa. (...) a penetração parece ter-se
feito a partir do Sul, por uma brecha estreita da altura da célebre estação arqueológica de los
Millares (meados do III milénio). Depois de terem fraqueado esta porta de entrada, os recém
chegados por volta do inicio do II milénio, encaminharam-se em direcção ao Atlântico, seguindo
até ao longínquo Portugal”, In Fernand BRAUDEL – Memórias do Mediterrâneo ...,2004, p. 114.
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2. Paul Oliver – Cobijo y Sociedad. Madrid: ed. Blume, 1978. Claude Lévi-Strauss – Structural
Antropology, New York: Basic Books Inc., 1963.
3. Leite de Vasconcelos, Martins Sarmento, Joaquim de Vasconcelos, Vergílio Correia, Jorge Dias,
Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Benjamim Pereira, Orlando Ribeiro, entre outros.
4. Trabalho de iniciativa pessoal, parcialmente publicado em artigos no Jornal dos Arquitectos,
1982.
Bibliografia Bibliography
AAW - Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Sindicato Nacional dos Arquitectos, '96'.
BAROJA, Júlio Caro - Tecnologia popular esponõla. Madrid: Montena Aula, 1983.
BRAUOEL, Fernand - Memórias do Mediterrâneo. Lisboa: Terramar, 2004.
CORREIA, Vergílio - Etnografia Artística Portuguesa. Barcelos: Comp. Edit. Minho, '937.
VASCONCELOS; j. Leite de - Etnografia Portuguesa. Lisboa: Imp. Nacional/Casa da Moeda,
volume VI, '983.
RODRIGUEZ, Fernando GABRIEL MARTÍN - Arquitectura doméstica canária. Sta. Cruz
Tenerife: Ed. Interinsular Canaria, 1978.
MESTRE, Victor - Levantamento da Arquitectura Popular do Arquipélago das Canárias:
trabalho de iniciativa pessoal, 1985 (publicado parcialmente no Jornal dos Arquitectos,
1986).
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando - Arquitectura Tradicional Portuguesa.
Lisboa: D. Quixote, 1992.
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando; PEREIRA, Benjamim - Construções
Primitivas em Portugal. Lisboa: D. Quixote, 1988.
RIBEIRO, Orlando - Portugal, o Mediterrânico e o Atlântico. Lisboa: Livraria Si da Costa, 1991.
RIBEIRO, Orlando - Geografia e Civilização. Lisboa: Instituto de Alta Cultura I Centro de
Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, 1961.
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