REVISTA DA ABRALIN ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA R454 Revista da Abralin / Associação Brasileira de Linguística. Vol. I, n. 1 (junho 2002) - . - São Carlos, SP: UFSCar, 2014. Volume XIII, n.1 (jan./jun. 2014) Semestral ISSN 2178-7603 1. Linguística - Periódicos. 2. Gramática comparada e geral. 3. Palavra - Linguística. I. Universidade Federal de São Carlos. II. Associação Brasileira de Linguística. III. Título. CDD: 415 Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB 9/1548 REVISTA DA ABRALIN ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA ISSN 2178-7603 REVISTA DA ABRALIN VOLUME XIII NÚMERO 1 JAN./JUN. DE 2014 REVISTA DA ABRALIN ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA CONSELHO EDITORAL Aryon Dall'Igna Rodrigues (UnB) Bruna Franchetto (UFRJ/Museu Nacional) Carlos Alberto Faraco (UFPR) Cesar Augusto Mortari (UFSC) Charlotte Marie C. Galves (UNICAMP) Daniel Vanderveken (Quebéc Trois-Rivières) Dermerval da Hora (UFPb) Didier Sheila Jean Marie Demolin (USP) Dino Preti (USP) Eduardo Roberto J. Guimarães (UNICAMP) Eleonora Cavalcante Albano (IEL-UNICAMP) Elza Gomez-Imbert (Université de Toulouse) Emilio Bonvini (CNRS-LLACAN-Paris) Eni de Lourdes P. Orlandi (IEL-UNICAMP) Esmeralda Negrão (USP) Fábio Alves (UFMG) Gessiane Picanço (UFPará) Gillian Sankoff (University of Pennsylvania) Gregory Guy (York University) Ida Lúcia Machado (UFMG) Ieda Maria Alves (USP) Ilza Maria de Oliveira Ribeiro (UFBA) Ingedore Grunfeld Villaça Koch (UNICAMP) Ingrid Finger (UFRGS) Ivone Panhoca (PUCCAMP) Kazué Saito Monteiro de Barros (UFPe) Laura Álvarez (ISPLA - Univ. de Estocolmo) Leda Bisol (PUC-RS) Leonor Scliar-Cabral (UFSC) Letícia Maria Sicuro Corrêa (PUC-RIO) REVISÃO E NORMALIZAÇÃO DE TEXTOS Roberto Leiser Baronas Lorenzo Teixeira Vitral (UFMG) Luiz Carlos Cagliari (UNESP Araraquara) Luiz Carlos Travaglia (UFU) Luiz Marcuschi (UFPE) Luiz Paulo da Moita Lopes (UFRJ) Maralice de Souza Neves (UFMG) Márcia Cançado (UFMG) Marcus A. Rezende Maia (UFRJ/Mus. Nac) Margarida Basílio (PUC - Rio) Maria Aparecida Torres Morais (USP) Maria Bernardete Abaurre (UNICAMP) Maria Carlota do Amaral Rosa (UFRJ) Maria da Graça Krieger (UNISINOS) Maria Eugênia Lamoglia Duarte (UFRJ) Maria Helena Mira Mateus (Univ. de Lisboa) Maria Helena M. Neves (UNESP-Araraquara) Maria Izabel Magalhães (UNB) Maria Luiza Braga (UFRJ) Maria Manoliu (UC-Davis) Maria Marta Pereira Scherre (UnB) Maximiliano Guimarães (UFPR) Oswald Ducrot (EHESS - Paris) Palmira Marrafa (Univ. de Lisboa) Rosane de Andrade Berlinck (UNESP) Ruth Elisabeth V. Lopes (UNICAMP) Sérgio Moura Menuzzi (UFRGS) Teresa Cristina Wachowicz (UFPR) Tereza Cabré (Universidade de Barcelona) Thaís Cristófaro Silva (UFMG) Vanderci Aguilera (UEL) CAPA E PROJETO GRÁFICO - Lúcio Baggio FORMATAÇÃO - Patricia Mabel Kelly Ramos COMITÊ EDITORAL EDITOR CHEFE Roberto Leiser Baronas UFSCar EDITOR ADJUNTO Teresa Cristina Wachowicz UFPR EDITOR ADJUNTO E REPRESENTANTE JUNTO AO SER-UFPR Luiz Arthur Pagani - UFPR UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCAR CAMPUS SÃO CARLOS RODOVIA WASHINGTON LUÍS, KM 235 - SP 310 SÃO CARLOS–SP–BRASIL / CEP: 13.565-905 TELEFONE: +55 (16) 3351 8358 (DEPARTAMENTO DE LETRAS) FAX: +55 (16) 3351-2081 - EMAIL: [email protected] NOTA DO EDITOR É com muita alegria que disponibilizamos ao público leitor, sobretudo, o interessado em questões, que dizem cientificamente a linguagem nos seus mais diversos sistemas significantes, mais uma edição semestral online da Revista da Associação Brasileira de Linguística – ABRALIN. Essa Edição, a 2014/01, referente ao período de janeiro a junho de 2014, traz catorze artigos de pesquisadores, ligados a diferentes universidades brasileiras e estrangeira, que, tomando distintos objetos linguageiros de pesquisa, analisando-os e/ou teorizando-os, se inscrevem nos mais variados domínios e escolas das ciências da linguagem, praticadas em solo brasílico e francês. Pelo muito que fez pela linguística do/no Brasil, essa edição é justa e carinhosamente dedicada ao Professor Doutor Dercir Pedro de Oliveira, falecido em janeiro último em Mato Grosso do Sul. Além de ser um pesquisador brilhante com inúmeros artigos e livros publicados e teses e dissertações orientadas nos domínios da sociolinguística e da sintaxe, Dercir foi Diretor do Campus da UFMS em Três Lagoas e também PróReitor de Pesquisa e Pós-Graduação na mesma instituição. A partida do bom e velho Mestre Dercir deixou a voz de fazer nascimentos da linguística brasileira afônica. Na sua casa sobre orvalhos, esse linguista pantaneiro, que desde muito cedo viu que podia fazer peraltagens com as teorias linguísticas continuará a ser o fazedor de amanhecer de sempre. Gostaríamos de agradecer a todas as pessoas que de uma maneira ou de outra e a seu modo contribuíram para a efetivação de mais essa edição. Sem esse apoio a Revista não seria publicada. Roberto Leiser Baronas (UFSCar) SUMÁRIO ARTIGOS SEXO E LINGUAGEM: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS SABATINAS DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JOAQUIM BARBOSA E ROSA WEBER.............................................. ................................................................... 13 Thais Aranda Barrozo - Universidade Estadual de Londrina (UEL) Vanderci de Andrade Aguilera - Universidade Estadual de Londrina (UEL) VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA ESCOLA: RESULTADOS DE UM PROJETO ......39 Joyce Elaine de Almeida Baronas - Universidade Estadual de Londrina (UEL) SOBREASSEVERAÇÕES NA MÍDIA ONLINE: ARTICULAÇÃO DE CONCEITOS EMERGENTES E ESTABILIZADOS ............................................... 63 André William Alves de Assis - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - POSLIN Sonia Aparecida Lopes Benites - Universidade Estadual de Maringá (UEM) GÊNEROS E GRAMÁTICA NO ARTIGO PRIMEIRO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS............................. .................................. 85 Simon Bouquet - Université Paris Quest O QUE ORIGINA A VARIAÇÃO DA ALTERNÂNCIA CAUSATIVA? UMA COMPARAÇÃO ENTRE O DÂW (FAMÍLIA NADAHUP) E O PORTUGUÊS BRASILEIRO ....................................................................... .................119 Janayna Carvalho - Universidade de São Paulo (USP) Jéssica C. Costa - Universidade de São Paulo (USP) ANÁLISE SEMÂNTICA DO PREFIXO RE EM VERBOS DE PORTUGUÊS BRASILEIRO............................................. .........................................................................155 Leitícia Lucinda Meirelles - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Márcia Cançado - Universidade Federeal de Minas Gerais (UFMG ALFABETIZAÇÃO APÓS O ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990: A QUESTÃO DO “Y” E DO “W”. ...............................................................................181 Celso Ferrarezi Júnior - Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL) Cláudia Teles - Faculdade de Ciências da Administração e de Tecnologia de Rondônia (FATEC-RO) Iara Maria Teles - Universidade Federal de Rondônia (UNIR) LINGUAGEM E PRÁTICAS IDENTITÁRIAS .........................................................203 Nádia Gadelha - Universidade Federal do Ceará (UFC- PG) ATRIBUIÇÃO DE POSTURA EPISTÊMICA ÀS FRASES CONDICIONAIS EM FUNÇÃO DE GÊNERO, IDADE E ESCOLARIDADE ............................. ..235 Gilberto Gomes - Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) Priscila Mattos Monken - Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) SUBSTITUIÇÃO DE SER POR HAVER NAS CONSTRUÇÕES EXISTENTES DO PORTUGUÊS: UM ESTUDO DIACRÔNICO .................................................257 Elisângela Gonçalves - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) ILUSÃO GRAMATICAL E FALIBILIDADE SELETIVA NO PROCESSAMENTO DE LACUNAS NÃO PREENCHIDAS EM PORTUGUÊS BRASILEIRO .........................................................................................301 Marcus Maia - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Amanda Moura - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Fernando Lúcio de Oliveira - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DO JORNALISMO EM UM EDITORIAL DA REVISTA VEJA: REFLEXÕES SOBRE AS PRÁTICAS DISCURSIVAS MIDIÁTICAS ....................................................................................................................325 Vinícius Durval Dorne - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)-PG Pedro Navarro - Universidade Estadual de Maringá (UEM) DA LINGUAGEM DAS ROUPAS AO DISCURSO DA MODA ............................349 Humberto Pires da Paixão - Universidade Federal de Goiás (UFG)- PG Kátia Menezes de Sousa - Universidade Federal de Goiás (UFG) INTERPRETANDO PHRASAL VERBS A PARTIR DAS EXTENSÕES METAFÓRICAS DAS PARTÍCULAS...........................................................................371 Samanta Kélly Menoncin Pierozan - Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) ARTIGOS SEXO E LINGUAGEM: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS SABATINAS DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JOAQUIM BARBOSA E ROSA WEBER SEX AND LANGUAGE: AN ANALYSIS FROM THE OFFICIAL INQUIRIES OF SUPREME COURT MINISTERS JOAQUIM BARBOSA AND ROSA WEBER Thais Aranda BARROZO Universidade Estadual de Londrina (UEL) Vanderci de Andrade AGUILERA Universidade Estadual de Londrina (UEL) RESUMO O trabalho analisa a variação linguística decorrente da variável sexo em indivíduos ocupantes de cargos de Ministro do Supremo Tribunal Federal, hierarquia máxima na estrutura do Poder Judiciário brasileiro. Tem por objeto o estudo da fala espontânea dos Ministros Joaquim Benedito Barbosa Gomes e Rosa Maria Weber Candiota da Rosa por ocasião de suas sabatinas pelo Senado Federal, como requisito à nomeação para os cargos de Ministro da Suprema Corte. Com base em critérios e princípios da pesquisa sociolinguística quantitativa Laboviana, foram identificadas marcas de fala dos sujeitos investigados que realçam traços distintivos entre a linguagem masculina e a feminina. © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 13-38, jan./jun. 2014 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber ABSTRACT This work analyzes the linguistic variation stemming from the variable sex in individuals who occupy the position of ministers at the Justice Supreme Court, the highest position in the Brazilian Judiciary Power. Its object of study is the spontaneous speech by Ministers Joaquim Benedito Barbosa Gomes and Rosa Maria Weber Candiota da Rosa, during their official inquiry by the Federal Senate as a requisite for the nomination to the position of Ministers of the Supreme Court. Based on criteria and principles from the Labovian quantitative sociolinguistic research, markers were identified in the subjects’ speech which highlight distinctive features between male and female language. PALAVRAS-CHAVE Variação linguística. Variável sexo. Ministros do Supremo Tribunal Federal. KEYWORDS Linguistic variation. Variable sex. Ministers of the Justice Supreme Court. Introdução A pesquisa sobre a linguagem, voltada para a influência da variável sexo, tem interessado dialetólogos e sociolinguistas, por ser um dos fatores socioculturais, ao lado da escolaridade e da idade do falante, que pode levar à variação e à mudança linguísticas. Os estudos sociolinguísticos da variável sexo ganham relevo com as pesquisas realizadas por Labov e, não raras vezes, partem da análise comparativa dos resultados por ele obtidos na investigação de marcas características da fala de mulheres, distinguindo-as entre aquelas que vivem no campo e as que vivem nas cidades. O presente trabalho tem por foco a análise da linguagem de falantes que ocupam cargos de Ministro de Estado e que compõem a alta cúpula do Poder Judiciário brasileiro, e se fundamenta em resultados obtidos por meio de pesquisa sociolinguística na observação da fala de homens e mulheres que ocupam o mesmo espaço urbano e sociocultural. 14 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera Pretende-se, pois, analisar essas principais distinções a partir das transcrições das sabatinas dos Ministros Joaquim Barbosa e Rosa Weber pelo Senado Federal, como requisito às suas respectivas nomeações ao cargo de Ministros do Supremo Tribunal Federal. A partir da constatação de uso da norma oral culta, são identificadas as principais marcas de fala que distinguem as linguagens masculina e feminina, identificando os fatores sociais e o ambiente linguístico condicionantes. A metodologia variacionista levou em conta, na análise dos resultados, apenas a variável sexo, demonstrando que as marcas de fala se fazem presentes mesmo para os ocupantes de cargos na alta cúpula do Poder Judiciário, a despeito da equivalência de padrão social, econômico, educacional e cultural dos informantes investigados. 1 Linguagem feminina e masculina: principais traços distintivos A partir da observação de que as diferenças linguísticas entre os sexos existem nas mais variadas línguas do mundo, estudiosos da dialetologia há algum tempo ocupam-se da análise das divergências entre as falas feminina e masculina, estudos esses que ganharam muito em sistematização e evolução metodológica na segunda metade do século XX com o surgimento da sociolinguística, definida “como el estudio del linguaje en su contexto social” (LOZANO DOMINGO, 2005, p.76). O surgimento da sociolinguística é apontado, assim, como fator de relevância para que os dialetólogos passassem a dar maior atenção às mulheres enquanto falantes dialetais. A partir das investigações de William Labov na década de sessenta, a análise da variável sexo torna-se imprescindível nas pesquisas sociolinguísticas, reveladoras de resultados confiáveis sobre os principais traços distintivos entre as falas feminina e masculina (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 52). 15 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber Segundo Malcom Coulthard (1991, p. 8), tal qual se observa quanto à variação dialetal regional, as diferenças linguísticas observadas nas falas do homem e da mulher permitem afirmar a existência de um dialeto próprio do feminino e outro do masculino. E, considerando essa estreita relação entre linguagem e sexo, o fenômeno linguístico pode ser observado por diferentes vieses, desde a variação fonética, lexical, morfológica, sintática e, até mesmo, pelo modo de interação social. Na sequência, os principais traços distintivos das linguagens feminina e masculina. 1.1 Linguagem de prestígio: autocorreção, ultracorreção e insegurança linguística Os principais resultados obtidos a partir da observação da fala de mulheres que viviam no espaço urbano apontaram pelo uso de linguagem prestigiosa (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 140) pela ocorrência de ultracorreção, autocorreção e insegurança linguística (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 52). Segundo Labov (1972, p. 123), a hipercorreção (ultracorreção) é o fenômeno decorrente de uma pressão social verticalizada de cima para baixo (social pressures from above), que se revela como um processo de correção social aplicada a formas individuais de linguagem. Na hipercorreção os falantes de classes sociais menos favorecidas buscam alcançar maior status social utilizando-se de expressões que acreditam corretas ou formalmente mais apropriadas, porém utilizando a correção de forma exagerada (LABOV, 1972, p. 126). O fenômeno é facilmente observável na sociedade brasileira. Como dito por Possenti (2012): Os exemplos mais claros, no campo das línguas, são do tipo dizer “telha” por “teia” (de aranha), já que se descobriu que a “teia” que cobre a casa é “telha” e não “teia”. É, portanto, um tipo de generalização, que consiste 16 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera em aplicar mais ou menos cegamente a mesma regra a todos os contextos iguais ou semelhantes: se uma “pia” é “pilha” e se uma “fia” e “filha”, então todas devem ser. É por isso que se acaba falando, querendo acertar, da “pilha branca” do banheiro. Um dos melhores casos eu ouvi da boca de um pedreiro, que sugeriu colocar “vitror” num certo lugar da casa. O raciocínio dele é óbvio: se “dotô” é “do(u)tor”, então “vitrô” é “vitror”. A autocorreção, de sua vez, ocorre quando o falante procede à correção de sua própria fala ao perceber que esta foi mal utilizada, ou seja, quando constata que sua linguagem falada se distanciou da linguagem padrão normativa e, espontaneamente, procede à sua imediata correção. A insegurança linguística, fruto do papel social de subordinação de longa data experimentado pela mulher, a faz buscar prestígio e reconhecimento no grupo em que está inserida por meio de uso de linguajar prestigioso em detrimento de estilos estigmatizados, gerando uma variante linguística muito característica. Mulheres pertencentes a classes socioeconômicas menos favorecidas tendem, normalmente, a copiar modelos de fala das classes econômicas mais privilegiadas, orientadas por um sentimento de integração e pertencimento a este grupo social. Para García Mouton (2000, p. 53), o uso da linguagem de prestígio confere à mulher um aval social quanto ao seu comportamento e, por vezes, até mesmo a eleva a um melhor status ao copiar um estilo de fala (e também de moda, de roupa, de cabelo, de postura etc.) de um nível social superior ao seu, pelo qual busca ser socialmente identificada. Em contrapartida, os resultados obtidos a partir de pesquisas sociolinguísticas revelam uma maior segurança linguística do homem, fruto da sua posição social privilegiada, que o liberta de pressões sociais impositivas de um “falar bem”. O valor social do uso da linguagem de prestígio não é para o homem o mesmo que para mulher. 17 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber Em verdade, para o homem, o uso da linguagem não normativa, em muitas situações, acaba recebendo um reforço social positivo, eis que socialmente interpretada como um traço de sua masculinidade (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 52). Como dito por Lozano Domingo (2005, p. 42), homens não privilegiam o uso de uma linguagem prestigiosa, pois que “La pronunciación no estándar tiene connotaciones de masculinidade que hacen a los varones inclinarse por elas”. Observa-se, assim, o homem, de modo geral, menos preocupado com o uso de uma linguagem prestigiosa e até mesmo mais autorizado socialmente ao uso de um linguajar rude, utilizando, com maior frequência, gírias e palavrões. Interessante destacar, quanto a esse tópico, que estudos realizados com crianças de 6 anos de idade revelaram que também o linguajar infantil reproduz essa dicotomia entre feminino/prestígio e masculino/ estigma (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 41). Assim, não restam dúvidas de que as investigações sociolinguísticas apresentam resultados confiáveis que permitem afirmar não só que mulheres e homens usam diferentes linguagens no seu processo comunicacional, mas também que mulheres falam melhor que homens, aqui dito melhor em razão do valor social atribuído à aproximação da fala feminina à linguagem normativa padrão. 1.2 Estereótipos, instruções de uso e marcas de fala Os estudos sociolinguísticos evidenciam, também, que o comportamento linguístico feminino e masculino guarda estreita relação com crenças e atitudes relacionadas às tradições socioculturais do grupo em que inseridos. Como exemplo, tem-se o acima exposto quanto ao uso de uma linguagem de prestígio, de muito maior valor social à mulher do que ao homem, criando uma verdadeira identidade aos sexos, reforçada social e culturalmente. 18 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera Como já dito, o uso pelo homem de um linguajar rude, agressivo e não muito comprometido com a linguagem padrão normativa encontra respaldo numa crença social de que tais características revelam traços de masculinidade ao falante, enquanto que se reconhece traço de feminilidade ao uso de uma linguagem mais delicada, próxima daquela utilizada por falantes pertencentes a altas classes sociais. Ao par disso tudo, observam-se muitos estereótipos - positivos e negativos - relacionados ao comportamento linguístico de homens e mulheres, cumprindo, antes de prosseguir no estudo, fazer a necessária distinção entre estereótipos e marcas de fala. Como bem explicado por García Mouton (2000, p. 59), os primeiros nada mais são do que supostos traços de fala, enquanto que os segundos os traços reais, devidamente comprovados, da fala feminina ou masculina. Vejamos uns e outros. 1.2.1 Estereótipos Em diversas sociedades observa-se que, com maior frequência, os estereótipos negativos relacionam-se à linguagem feminina, sendo um dos mais comuns aquele, reflexo de uma consciência coletiva, fundado na ideia de que a mulher fala demais, do qual derivam as depreciações atribuídas a esse “mau comportamento” feminino. Em reforço, muitos se apegam até mesmo a ensinamentos bíblicos para enaltecer a sabedoria da mulher que usa de sua fala de maneira comedida1. Para os antropólogos, tais estereótipos servem para proteger uma ordem social patriarcal estabelecida, impedindo que a mulher se utilize de sua fala para sair do lugar de subjugação em que socialmente foi colocada. Por essa razão os contos, os provérbios e as tradições religiosas elogiam a sabedoria da mulher discreta e calada (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 61). Em Provérbios 31:26, a mulher virtuosa é descrita como aquela que “Abre a sua boca com sabedoria, e a lei da beneficência está na sua língua”. Disponível em http://www.bibliaonline.com.br/acf/ pv/31, acesso em 01/07/2013. 1 19 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber Veja, como exemplo, o texto atual divulgado na internet sob o título A mulher segundo o coração de Deus, de autoria do Bispo Edir Macedo (2013), que revela como a sociedade é ainda machista e encontra eco para enaltecer a mulher que contém a sua fala: “A mulher sábia se mantém calada. Não é você que vai dirigir a igreja. Ela é conduzida pelo próprio Deus. Se a mulher é sábia, temente a Deus, sabe se posicionar no seu lugar. Ela cuida da casa, não o marido. Ela educa seus filhos; lhes ensina o que devem fazer; tem autoridade sobre eles, dentro de casa. Na igreja, todavia, a autoridade pertence ao marido, que está no altar, tendo mais sensibilidade para ouvir a voz de Deus. A esposa de bispo, ou do pastor, se mantém numa posição bem discreta, tal qual mulher sábia e sensata, falando o necessário. Vejam por exemplo a minha esposa Ester. Ela nunca se envolveu na igreja. Não a vemos pregando ou tomando decisões. É preciso tomar muito cuidado com a língua. A Bíblia diz, no livro de Tiago, que todos tropeçamos em muitas coisas; se alguém não tropeça no falar, é perfeito varão, capaz de refrear também todo o seu corpo. Com raras exceções, a mulher fala demais. Muitas não ganham seus maridos para Jesus por causa dessa insensatez. São egoístas, porque não querem ouvir; só falar. Graças a Deus a minha esposa fala pouco. (destacamos) Esses estereótipos, sem dúvida, influenciam nas crenças e posturas linguísticas, sobressaindo a imagem negativa que a sociedade guarda da mulher que fala, que manifesta suas opiniões, em oposição à valorização do homem que expressa suas ideias e que se impõe socialmente por sua fala. 20 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera Ressalta-se, contudo, que também em sentido inverso o estereótipo pode ser observado quando se aponta que homens são frios, pouco comunicativos ou mesmo inexpressivos, em contraposição às mulheres que, com maior facilidade, expressam suas emoções. Tais estereótipos, contudo, não os desqualificam, já que esses traços linguísticos são tomados como marca de sua virilidade, francamente almejada, aprovada e apoiada nos contextos sociais. É bem verdade que mulheres são mais verbais que homens e que meninas desenvolvem sua habilidade comunicacional mais precocemente que meninos (COULTHARD, 19991, p. 46). Muito provavelmente, por essa razão, é que a imagem da mulher “faladeira” é reproduzida socialmente ao longo dos tempos, até mesmo pelas próprias mulheres. Nada obstante, investigações sociolinguísticas realizadas nos Estados Unidos, na Inglaterra, e até mesmo no Brasil, revelam que em várias situações homens falam muito mais que mulheres, e por mais tempo (COULTHARD, 1991, p. 47), o que autoriza concluir que o senso comum de que homens são calados e mulheres faladeiras constitui mero estereótipo, que se fará muito mais presente quão mais machista seja a sociedade de que façam parte os falantes, não podendo ser apontada como marca de fala dos gêneros. 1.2.2 Instruções de Uso Como visto, a língua é mais que mero instrumento de comunicação e de interação: é instrumento de controle social. Desse modo, quanto mais machista for uma sociedade, mais visíveis serão as distinções observadas no processo educacional de homens e mulheres, no intuito de moldar socialmente o seu comportamento verbal, reforçando a estrutura de poder masculino e subordinação feminina. Quanto às mulheres, as instruções de uso relacionam-se diretamente com os estereótipos acima tratados, conduzindo a uma subjugação social da mulher por meio da linguagem. As instruções rumam no sentido de 21 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber que a mulher fale pouco, fale bem, tenha uma fala suave, utilize-se mais de sugestões do que de ordens, não grite, não interrompa, não pergunte diretamente, dentre várias outras (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 63). Portanto, como regra geral, o que se observa é uma expectativa da sociedade de que a mulher, em suas relações sociais e pessoais, seja expressiva e dócil ao falar. Se assim não proceder, ainda que não haja sanção social ostensiva, facilmente surgirá um estranhamento do grupo social quanto a essa postura diferenciada (quando mulheres usam expressões grosseiras, palavrões etc.). De sua vez, as instruções de uso dadas ao homem são diametralmente opostas àquelas dadas às mulheres, reforçando-se socialmente comportamentos como o de falar de maneira forte, firme e direta, de dar ordens, de ter a primeira e a última palavra, chegando-se mesmo a exigência social de que “fale como homem” (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 64). Convém ressaltar, ainda, que, por essa razão, é consensual que mulheres são mais polidas que homens ao falar. Esta ideia, contudo, foi confirmada apenas em parte por pesquisa sociolinguística narrada por Coulthard (1991, p. 56-57), realizada na Bélgica e no Brasil, que revelou que tanto homens como mulheres são mais polidos ao falar quando se dirigem a homens, e menos quando se dirigem a mulheres, constandose, enfim, que apenas em interação mista é que mulheres são, em geral, mais polidas que homens. 1.2.3 Marcas de Fala As principais marcas de fala que identificam o gênero vão desde as diferentes entonações utilizadas pelo homem e pela mulher em seu falar, passando pelos diversos estilos interativos, bem como pela variação de tópicos e especialização lexical. Quanto ao tom da fala, homens e mulheres são culturalmente influenciados a utilizar uma entonação que os distinga (homens/grave; 22 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera mulheres/agudo), na busca de maior aceitação do grupo social (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 66). A linguagem feminina é igualmente caracterizada por um maior número de variações de entonação. Elas entremeiam suas conversas com sorrisos e utilizam gestual que transmita receptividade a seu interlocutor (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 74). Isso se dá porque, como regra geral, a mulher comunica-se com vistas a estabelecer ou manter suas relações sociais, estreitando os laços com seu interlocutor. Daí dizer-se que a linguagem feminina é cooperativa (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 177). O homem, de sua vez, em seu processo comunicativo, busca uma troca de informações com seu interlocutor e tende a firmar suas opiniões pessoais sobre determinado tema, no intuito de que estas prevaleçam sobre aquelas de seu interlocutor. Sua linguagem caracteriza-se, assim, como competitiva (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 177). Mulheres, ao contrário dos homens, nessa tentativa de criar vínculos com o interlocutor permeiam sua fala de respostas mínimas (HIRSCHMANN apud LOZANO DOMINGO, 2005, p. 178) de apoio (sim, hãhã, humm), que demonstram sua concordância com a fala do interlocutor, utilizando-se até de gestuais com essa finalidade, tais como balançar a cabeça afirmativamente, firmar o olhar naquele que fala etc. Tais posturas são bem menos visíveis em falantes do sexo masculino. Ainda no que concerne aos diferentes estilos de interação verbal, é possível observar que a linguagem feminina comporta verdadeiras estratégias para cativar seu interlocutor, como, por exemplo, ao optar pelo uso de expressões que podem levar a supor uma insegurança na linguagem por preferir o uso de sugestões, em vez de ordens e comandos, com a adoção de uma fala indireta, exatamente ao contrário do que fazem os homens (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 74-75). Incluem-se nesse contexto as expressões pragmáticas - tais como sabe, bem, acredito que, uma espécie de, quero dizer -, utilizadas com frequência por mulheres, adotando uma estratégia de fala menos incisiva em relação à expressão de suas opiniões pessoais, deixando em aberto mais opções 23 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber de interpretação e interação a seu interlocutor, postura esta também socialmente reconhecida como mais polida (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 181). Essa postura cooperativa, menos impositiva, leva as mulheres, com bem maior frequência que homens, a fazerem citações ou referências a opiniões de outras pessoas, no intuito de mostrar a seu interlocutor que já obtivera o aval de um terceiro quanto ao tópico objeto de sua fala, como verdadeira estratégia para evitar a rejeição de sua ideia pelo interlocutor, ou, em último caso, de não sofrer uma rejeição pessoal se a sua ideia não for aceita pelo interlocutor, haja vista tê-la atribuído a outrem (COULTHARD, 1991, p. 49). As mulheres também utilizam mais os eufemismos (sobremaneira quando precisam contornar alguns temas “tabus”), um linguajar mais infantilizado, o diminutivo, os superlativos, os de vocativos carinhosos (querido, meu amor), até mesmo porque a sociedade lhe valora positivamente uma melhor expressão de suas emoções e da afetividade (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 70-73). Outra observação em relação ao comportamento verbal feminino é que, nesse papel convergente, a mulher formula perguntas no intuito de envolver o seu interlocutor no diálogo (COULTHARD, 1991, p. 49), postura essa que, contudo, não é sempre bem recebida e/ou compreendida por homens, que se sentem invadidos e incomodados com essa suposta intromissão (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 180). Destaque-se, ainda, que, contrariando os estereótipos negativos quanto à linguagem feminina, as pesquisas revelam que homens, em interação mista, respeitam muito menos os turnos de fala do que as mulheres, procedendo a recorrentes interrupções e/ou sobreposições na fala feminina, o que representa uma violação pelo homem do direito de falar da mulher (COULTHARD, 1991, p. 52). Mulheres, como já apontado, quando intervêm na fala de seu interlocutor, fazem-no com o intuito de completar seu discurso, numa postura cooperativa, mas não com o intuito de interrompê-lo ou de desrespeitar o seu direito de fala 24 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 76-77). Quanto à variação de tópicos e especialização do léxico, ambas relacionamse à divergência de campos de interesses entre homens e mulheres. Como assinalado por Jenny Coates (apud COULTHARD, 1991, p. 53), “os homens falam de esportes, política, carros e mulheres, enquanto as mulheres falam de roupas, comida, casa, crianças e homens”. Consequentemente, considerando que homens e mulheres, regra geral, não possuem os mesmos campos de interesse, não falam sobre os mesmos temas, produzindo, assim, diferentes marcas em seus léxicos2. E não só isso. Em interação mista, alguns tópicos femininos chegam a ser evitados, e são os homens que acabam definindo os tópicos das conversas e dominando a conversa, utilizando muito mais o tempo de fala (COULTHARD, 1991, p. 53-54). Ou seja, num grupo de homens e mulheres, é bem mais comum e provável que a conversa tenha por objeto assuntos relacionados a esporte, política e carros, e não roupas, comida, casa e crianças. Coulthard (1991, p. 55) chega mesmo a apontar especial característica da sociedade brasileira que, em ocasiões públicas, homens e mulheres frequentemente segregam-se, colocando em questão se essa divisão se dá por diferença de interesse nos tópicos de conversação (e, assim, por consentimento mútuo), ou para permitir que homens conversem apenas sobre os tópicos de seu interesse, excluindo as mulheres de sua roda de conversas. O que se revela, conforme apontado por García Mouton (2000, p. 78), é que quem tem o poder faz uso tranquilo da palavra, com a calma e tempo necessários para expor suas ideias, enquanto que os que não o tem não só têm pouco tempo para expressá-las, como tentam usar o pouco tempo que têm para nele tentar transmitir o máximo possível de informações a seu interlocutor. 2 Como exemplo é possível citar que mulheres incluem em sua fala termos referentes aos diferentes tons da mesma cor (rosa, rosa bebê, rosa choque, rosa chiclete, rosa antigo, nude etc.), e a facilidade do homem de falar com precisão sobre os diferentes dribles de futebol (drible tradicional, drible de auto passe, roleta, bicicleta, chicote, croquete etc.). 25 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber 2 Metodologia As hipóteses preliminares desse trabalho foram levantadas a partir da análise das sabatinas realizadas pelo Senado Federal quando da indicação do então Procurador da República, Joaquim Benedito Barbosa Gomes, e da Ministra do Tribunal Superior do Trabalho, Rosa Maria Weber Candiota da Rosa, ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, órgão máximo na estrutura do Poder Judiciário nacional. A escolha dos Ministros justifica-se pelo escopo de analisar a variável sexo na fala de Ministros ocupantes da alta cúpula do Poder Judiciário. Destaque-se ainda, que ambos os informantes representam minorias naquela Corte Suprema. Ele foi o primeiro negro indicado ao cargo de Ministro do STF, indicação esta feita pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ela, a única mulher até então indicada pela Presidente Dilma Roussef ao cargo3. Esse fato é, todavia, ora aqui narrado apenas a título de curiosidade, já que não levado em conta na análise de dados. As sabatinas foram realizadas em duas partes: a) a primeira, consistente na exposição pelos informantes de sua apresentação ao Senado Federal, tendo-lhes sido concedida a palavra para uso livre por 20 minutos, prorrogáveis por mais 10; e b) a segunda, em que os Ministros responderam livremente aos questionamentos formulados pelos Senadores Federais. Considerando que, na primeira etapa da sabatina, os informantes puderam tecer suas considerações a partir de notas escritas previamente elaboradas, uma melhor análise da fala espontânea dos informantes é observada na segunda etapa das sabatinas (apresentação de respostas livres às questões formuladas pelos Senadores Federais), razão pela qual a presente pesquisa teve seu corpus constituído pela análise dessa segunda 3 O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao longo de seus dois mandatos (2003-2010) indicou e nomeou oito ministros ao Supremo Tribunal Federal. A Presidente Dilma Roussef, com mandato iniciado em 2011, nomeou, até o mês de junho de 2013, quatro ministros ao mesmo Tribunal. Esses dados estão disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/ministro/ ministro.asp?periodo=stf&tipo=quadro. Acesso em 10 de junho de 2013. 26 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera parte das transcrições das sabatinas dos informantes previamente selecionados. As transcrições das sabatinas encontravam-se disponíveis na internet, tendo sido a dele disponibilizada na página do Senador Paulo Paim4 e a dela no site Conjur – Consultor Jurídico5. O corpus referente à entrevista do informante homem partiu de uma análise de 7.196 palavras, contra 14.802 palavras contidas no corpus da entrevista da informante mulher. Convém ressaltar, no entanto, que a sabatina do Ministro Joaquim Barbosa foi realizada em 25 de maio de 2003, com 03h32min de duração, com início próximo das 10h30min e encerrada às 14h02min. A da Ministra Rosa Weber, de sua vez, teve duração de 6h21min, iniciando-se às 09h39min e finalizando às 16h10min do dia 06 de dezembro de 2011. Ambos os informantes, à época de suas sabatinas, já eram ocupantes de cargos públicos da carreira jurídica (ele, Procurador da República; ela, Ministra do Superior Tribunal de Justiça) e, ainda, detentores de notável saber jurídico nos termos da exigência constitucional para alçamento ao cargo de Ministros do Supremo Tribunal Federal6, sendo possível afirmar uma equivalência entre os informantes quanto a seu grau de instrução, não se atribuindo, assim, a esse fator as variantes linguísticas observadas. Quando da coleta de dados, ele contava 49 anos e ela 63. Logo, a partir de dados do IBGE, o informante homem estava na faixa entre 4549 anos (adulto, portanto), e a informante mulher na faixa entre 60-64 anos (início da terceira idade). A despeito desse fato, a variável idade não foi analisada no presente trabalho, que teve por foco apenas a variável sexo. Disponível em http://www.senadorpaim.com.br/uploads/downloads/arquivos/9a3b 748ac4a8748f47c6f645dc5d710d.pdf. 5 Disponível em http://www.conjur.com.br/2011-dez-08/leia-transcricao-completasabatina-ministra-rosa-maria-weber. 4 6 CF/88. Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada (destaques não constantes do texto original). 27 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber Acresça-se, ainda, que as sabatinas foram realizadas por Senadores da República de ambos os sexos e, ainda que os questionamentos tenham sido majoritariamente apresentados por investigadores homens, considerou-se na análise de dados coletados que em ambas as entrevistas houve interação mista. A análise quantitativa foi feita com a utilização do programa Lexico 3, da Université de la Sorbonne Nouvelle - Paris 3, em versão disponibilizada gratuitamente para download na internet7, com seleção dos fatores relacionados às principais distinções de marcas de fala que caracterizam a variação linguística em razão do sexo do falante, procedendo-se, em sequência, à análise comparativa entre os fatores observados. 3 Análise de dados Antes de adentrar em qualquer discussão quanto aos dados levantados, convém destacar que tamanha diferença numérica quanto aos termos analisados nos corpora investigados não é elemento suficiente para qualquer tentativa de atribuir validade ao estereótipo de que mulheres falam demais, ou que falam mais que homens. Afinal, como demonstrado no item relativo à metodologia, a sabatina da Ministra Rosa Weber durou praticamente o dobro do tempo daquela do Ministro Joaquim Barbosa, justificando, assim, a diferença quanto ao número de palavras nas falas de um e outro. Ressalve-se, também, que, em razão da análise ter partido das transcrições das sabatinas disponibilizadas em texto na internet, não foi possível qualquer observação quanto a eventuais diferenças de entonação e/ou gestuais pelos informantes ao longo das entrevistas. Iniciando a discussão dos resultados a partir da observação do uso de linguagem prestigiosa pelos informantes, a pesquisa revelou que ambos os informantes utilizaram em suas sabatinas a linguagem culta, 7 Disponível em http://www.tal.univ-paris3.fr/lexico/. 28 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera muito provavelmente por sua posição social8, nível educacional/cultural elevados e pela formalidade de que se revestia o evento, requisito a suas nomeações aos cargos de Ministros do STF. Nesse sentido, convém destacar o uso por ambos os informantes do pronome de tratamento Excelência (ora no singular, ora no plural) para se dirigirem aos Senadores da República. A despeito do uso frequente pelos informantes, observou-se que a informante mulher socorreu-se mais vezes ao uso do pronome em questão, conforme se vê do quadro abaixo, o que revela que, também, a adoção por ela de uma postura mais formal do que a dele ele em interação mista: TABELA 1: Uso do pronome de tratamento Excelência pelo falante. Excelência Excelências Total Joaquim Barbosa Rosa Weber 22 4 58 26 26 84 Essa conclusão é, ainda, corroborada, pelo fato de que a informante mulher também utilizou com mais frequência que o informante homem algumas expressões de polidez em suas manifestações. O quadro a seguir representa o uso pelos informantes dos termos agradeço, por favor, obrigado e obrigada, perdoe e perdão, ao longo das sabatinas: Os cargos ocupados pelos informantes compõem a alta cúpula do Poder Judiciário. Ele, inclusive, foi nomeado, em 2012, ao cargo de Presidente do Supremo Tribunal Federal, autoridade máxima na estrutura do Judiciário, em equivalência de hierarquia com o Presidente da República, autoridade máxima do Executivo, considerando a divisão tripartite do poder no Estado brasileiro. 8 29 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber TABELA 2: Expressões denotadoras de polidez na fala. Agradeço Por favor Obrigada Obrigado Perdoe(m) Perdão Escusas Total Joaquim Barbosa Rosa Weber 1 0 0 2 0 0 1 4 16 3 6 1 4 4 1 35 O uso das expressões na forma acima não só espelham as instruções de uso socialmente recebidas por mulheres para que sejam mais polidas e delicadas em seu falar, como trazem à tona a insegurança linguística reveladora de submissão social observada na sua reiterada postura de agradecimento pela oportunidade de fala, ou até mesmo de desculpas ao expressar seus sentimentos ou ao não se sentir capaz de atender à expectativa de seu interlocutor quanto à expressão de suas opiniões9. O informante homem, em contraposição, revelou-se de forma mais assertiva em seus questionamentos públicos, e muito menos preocupado em se desculpar perante seus interlocutores ou mesmo em agradecer pela oportunidade de ser sabatinado pelos Senadores da República. Observou-se, também, no que toca a seus diferentes estilos interativos, que a informante mulher utilizou-se de uma linguagem mais cooperativa, convergente, em oposição à linguagem competitiva do informante homem. Veja-se, por exemplo, que a informante mulher socorreu-se, por várias vezes, ao uso de citações ou referências em sua fala. O fator considerado de destaque na pesquisa, nesse aspecto, foi a constatação 9 O contexto do uso de expressões de desculpas foram os seguintes: “perdoem-me, gosto de poesia”; “perdoem-me, mas realmente não teria agora condições de emitir cum muita tranquilidade uma opinião mais assertiva”; “perdoe-me Senador se eu não consegui atender todos os questionamentos”; “perdoe Senador, ah, eu não estou encontrando aqui”. 30 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera de que a informante mulher com muito maior frequência fundamentou suas falas em textos de lei ou da própria Constituição Federal, invocando os artigos da norma jurídica com vistas a fundamentar as opiniões expressadas perante os Senadores da República. TABELA 3: Uso de referências a normas jurídicas. Artigo Artigos Constituição Lei Total Joaquim Barbosa 2 1 8 11 22 Rosa Weber 37 2 63 43 143 Essa postura da informante mulher justifica-se, muito provavelmente, no intuito de demonstrar a seus interlocutores que as ideias e opiniões por ela expressadas não eram infundadas, haja vista que se baseavam em normas jurídicas, sobremaneira na Constituição Federal, norma de hierarquia máxima na estrutura legislativa brasileira, pelo que mereciam ser referendadas por aqueles que a sabatinavam. Observou-se, ainda, que os dois informantes investigados utilizaram em suas respostas a estratégia de fala consistente na formulação de perguntas, no intuito de envolver o seu interlocutor no diálogo, conforme demonstrado a seguir: TABELA 4: Uso de perguntas como estratégia de interação. Perguntas entremeadas às respostas Joaquim Barbosa Rosa Weber 17 37 Nesse aspecto, muito embora os resultados sejam superiores para a informante mulher, a diferença numérica não parece significativa o suficiente para que se possa atribuir esse traço como distintivo de 31 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber marca de fala em razão do gênero, tendo em vista que a sabatina da informante mulher durou o dobro do tempo que aquela do informante homem, tendo os fatores sido identificados nos corpora guardando, aproximadamente, essa mesma proporção. No entanto, no que se refere ao uso de respostas mínimas de apoio, com o escopo de estreitar vínculos comunicacionais com o interlocutor, essas, ainda que em pequeno número, foram utilizadas pela informante mulher (isso...; exatamente), e em momento algum utilizadas pelo informante homem, conforme retratado na tabela abaixo: TABELA 5: Uso de respostas mínimas de apoio. Isso Exatamente Total Joaquim Barbosa 0 0 Rosa Weber 0 3 2 1 Os turnos de fala não puderam ser objeto de análise no presente estudo, posto que o procedimento adotado nas sabatinas impediu que essas figuras se fizessem presentes, já que os entrevistadores faziam seus questionamentos em bloco, dando-se a palavra aos investigados após, para que apresentassem suas respostas. Muito embora a postura dos entrevistadores não tenha sido objeto do presente trabalho, uma especial circunstância merece ser destacada quanto à interação entre os entrevistadores e os sabatinados, que, inclusive, justifica o fato de a sabatina da informante mulher durasse o dobro do tempo daquela do investigado homem. O informante homem foi sabatinado por 15 Senadores da República10 (uma mulher e 14 homens). Desse total, apenas nove Senador Demóstenes Torres, Senador Pedro Simon, Senador Antônio Carlos Magalhães, Senador Eduardo Suplicy, Senador Tião Viana, Senadora Serys Slhessarenko, Senador Rodolpho Tourinho, Senador Juvêncio da Fonseca, Senador Sérgio Cabral, Senador Hélio Costa, Senador Antônio Carlos Valadares, Senador João Capiberibe, Senador Paulo Paim, Senador Romero Jucá e Senador Renan Calheiros. 10 32 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera Senadores efetivamente dirigiram perguntas ao sabatinado (aí incluída a entrevistadora mulher), e os demais se limitaram a tecer elogios e parabenizações ao sabatinado pela indicação ao cargo. Ao final da sabatina, a votação redundou na aprovação do nome do informante homem ao cargo, em votação unânime (21 Senadores votaram). Já a informante mulher foi sabatinada por 18 Senadores11 (duas mulheres e 16 homens), e à exceção de dois entrevistadores homens, todos os demais 16 Senadores efetivamente formularam perguntas à sabatinada, o que exigiu do Presidente da Sessão fixar limite de tempo para as perguntas. Em algumas oportunidades a informante mal teve tempo e condições de tomar nota das perguntas formuladas, necessitando da ajuda dos entrevistadores para retomá-las quando da apresentação de suas respostas. Além do que, o Senador Demóstenes Torres, que muito pouco perguntou ao sabatinar Joaquim Barbosa, após exaustivamente questionar Rosa Weber, insistiu em retomar a palavra para novas perguntas ao final dos trabalhos, extenuando a informante mulher de tal forma que, ao final, se reservou o direito de escolher apenas algumas das questões para responder. Essa situação toda levou dois Senadores da República a colocar em relevo que aquela fora, sem dúvida, a mais longa sabatina por eles presenciada. Ao final, a aprovação do nome da informante para o cargo se deu por maioria, obtendo 19 favoráveis e três contra a sua nomeação. Tais circunstâncias revelam que os entrevistadores homens se sentiram à vontade para formular muito mais questões à informante mulher, colocando em xeque suas ideias e opiniões, diferentemente do Senadora Marta Suplicy, Senador Luiz Henrique, Senador Ricardo Ferraço, Senador Marcelo Crivella, Senador Álvaro Dias, Senador Valdir Raupp, Senador Pedro Taques, Senador Demóstenes Torres, Senador Aloysio Nunes Ferreira, Senador Renan Calheiros, Senador Pedro Simon, Senadora Marinor Brito, Senador Eduardo Suplicy, Senador Antônio Carlos Valadares, Senador Aécio Neves, Senador Sérgio Petecão, Senador Inácio Arruda, Senador Vicentinho Alves. 11 33 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber observado quando em interação com o informante homem, que foi pouco perguntado (sua sabatina durou pouco mais de três horas), muito elogiado e, ao final, teve seu nome aprovado por unanimidade. Ela, por sua vez, teve que responder a esses questionamentos por mais de seis exaustivas horas e, ao final, não obteve o voto de todos os presentes, tendo sua indicação sido aprovada por maioria. Essa observação foi aqui tecida apenas em relação aos entrevistadores homens, tendo em vista ter-se observado que as entrevistadoras mulheres, em ambas as ocasiões, fizeram questionamentos concisos, sem se observar qualquer distinção significativa em suas posturas fosse o sabatinado homem ou mulher. Tais observações confirmam que homens tendem a uma postura de não contestar com tanta veemência outros homens, não os colocando em xeque como o fazem quando em interação comunicacional com mulheres, e que têm maior facilidade em ratificar as opiniões de outro homem, em atitude gregária. Feitas essas considerações, afasta-se definitivamente o estereótipo de que mulheres falam mais que homens. Voltando à análise dos estilos interativos, os resultados apontam à informante mulher o uso mais frequente de expressões pragmáticas que supõem uma insegurança linguística, como por exemplo, digo, parece, acho, entendo, dentre outras. Observe: TABELA 6: Uso de expressões reveladoras de insegurança linguística. Digo Parece Acho Entendo Acredito Creio Total Joaquim Barbosa 0 2 5 2 2 2 Rosa Weber 11 56 34 12 8 14 22 0 0 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera Observa-se que tais expressões são também utilizadas pelo informante homem, mas em menor frequência, à exceção das expressões acredito e creio, pouco utilizadas por ele e sem qualquer uso por ela. Por fim, cumpre destacar que o estudo revelou maior expressividade da informante mulher em relação a sentimentos e emoções, utilizando os termos orgulho, angústia, preocupação e coração como a seguir demonstrado: TABELA 7: Expressões de sentimento e/ou afetividade. Orgulho Angústia Preocupação Coração Total Joaquim Barbosa 0 0 2 0 Rosa Weber 2 21 8 6 5 2 Como última observação, convém destacar o uso da palavra candente pela informante mulher (o item foi repetido por sete vezes em sua fala, sendo três no singular e quatro no plural), indicando não só o uso de adjetivos intensos, mas de linguagem prestigiosa e pouco usual. Esclareça-se, em conclusão, que a análise de dados coletados não focou na variação de tópico entre os informantes e a conseguinte especialização do léxico12, em razão da escolha dos temas debatidos ter sido feita pelos próprios entrevistadores, condutores das sabatinas, direcionando, assim, a fala dos informantes investigados. Conclusão Confirmando-se, em sua maioria, as hipóteses levantadas ao início do trabalho de que homens e mulheres efetivamente falam variedades distintas, e que existem marcas de fala específicas que caracterizam uma Observou-se na leitura das transcrições, por exemplo, que a informante mulher abordou temas relativos à família e ao casamento, o que não fez o informante homem. 12 35 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber linguagem e outra, conclui-se que os fatores linguísticos que condicionam a variação em razão do sexo do falante incidem mesmo entre os falantes de alto grau de instrução, que exercem a mesma atividade profissional e que ocupam cargos na alta cúpula do Poder Judiciário brasileiro, que lhe conferem, assim, status social e poder. Muito provavelmente em razão dessas particularidades que envolvem os falantes investigados - grau de instrução, posição profissional e social -, ambos utilizam a linguagem culta, muito próxima da norma padrão. Todavia, a despeito da aparente isonomia existente entre os Ministros Joaquim Barbosa e Rosa Weber, constatou-se que pressões socioculturais moldaram o comportamento verbal de ambos, produzindo variação linguística característica, tão estudada por dialetólogos e sociolinguistas. A conclusão se funda, em síntese, nas seguintes tendências e posturas observadas na fala espontânea dos Ministros investigados: a) b) c) ambos trataram seus interlocutores utilizando o pronome de tratamento Excelência, observando-se, contudo, em relação à fala da Ministra Rosa Weber o uso mais frequente do pronome em análise, bem como de outras expressões de polidez, caracterizando, assim, uma linguagem mais prestigiosa em comparação àquela do Ministro Joaquim Barbosa; a Ministra Rosa Weber revelou maior insegurança linguística em suas respostas, evidenciada pelas várias citações e referências a texto de lei ou da Constituição Federal no intuito de fundamentar suas opiniões, bem como em seu estilo interativo, com o uso de expressões tendentes a cativar o apoio de seu interlocutor, dando-lhe liberdade para interpretar e adotar suas próprias posições quanto às ideias por ela expressadas; também se observou em relação à Ministra Rosa Weber o uso de respostas mínimas de apoio, revelando uma fala mais cooperativa, em contraposição à fala mais assertiva e direta do Ministro Joaquim Barbosa; 36 Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera d) a Ministra Rosa Weber também utilizou com mais frequência e facilidade expressões relativas a seus sentimentos e emoções, nada se observando, nesse aspecto, quanto ao Ministro Joaquim Barbosa. A pesquisa revelou, ainda, que os dois Ministros investigados utilizaram em suas respostas a estratégia de fala consistente na formulação de perguntas, no intuito de envolver o seu interlocutor no diálogo. Não foi possível, assim, afirmar uma distinção da marca de fala feminina e masculina nesse aspecto. A partir dos resultados obtidos, é possível afirmar que, com a evolução social e a maior participação da mulher na vida política e social, a linguagem feminina começa a se apresentar um pouco mais próxima da do homem. Mas apenas isso: “um pouco mais próxima”, haja vista as tantas divergências apontadas, todas, certamente, condicionadas à variável sexo. Afinal, o estudo revelou que as pressões sociais e culturais continuam a moldar o comportamento verbal feminino e masculino de forma tal, mesmo entre falantes de status social equivalente (como se viu entre os Ministros sabatinados), não parecendo correto dizer que, nos dias atuais, homens e mulheres ocupam espaços públicos em igualdade de condições e de oportunidades de fala para expressar suas ideias. E não há dúvidas de que quanto maiores forem as variações e variedades linguísticas observadas em razão do sexo do falante, mais indicativos teremos de que a sociedade ainda caminha a passos largos na evolução em direção a uma sociedade justa, fraterna e solidária, em que não haja espaços para os estigmas. Enfim, que homens e mulheres tenham igualdade de condições para exprimir suas ideias, rechaçando-se, em definitivo, a subjugação da fala feminina. 37 Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal Joaquim Barbosa e Rosa Weber Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. COULTHARD, Malcom. Linguagem e sexo. Trad. Carmen Rosa Caldas-Coulthard. São Paulo: Ática, 1991. GARCÍA MOUTON, Pilar. Cómo hablan las mujeres. Madrid: Arco Libros, 2000. LABOV, William. Sociolinguistic patterns. 11ª ed. University of Pennsylvania Press Inc., 1972. Disponível em http://books.google.com.br/ books, acesso em 29 de junho de 2013. LOZANO DOMINGO, Irene. Lenguaje feminino, linguaje masculino. ¿Condiciona nuestro sexo la forma de hablar? Madrid: Minerva Ediciones, 2005. MACEDO, Edir. A mulher segundo o coração de Deus. Disponível em http://www.arcauniversal.com/mundocristao/noticias/a-mulher-segundo-ocoracao-de-deus-11281.html, acesso em 01 de julho de 2013. POSSENTI, Sírio. Hipercorreção. Disponível em http://terramagazine. terra.com.br/blogdosirio/blog/2012/06/07/hipercorrecao/, acesso em 29 de junho de 2013. 38 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA RESULTADOS DE UM PROJETO ESCOLA: (LINGUISTIC VARIATION IN SCHOOL: RESULTS OF A PROJECT) Joyce Elaine de ALMEIDA BARONAS Universidade Estadual de Londrina (UEL) RESUMO O presente estudo objetiva apresentar resultados de um projeto de pesquisa “Variação linguística na escola: propostas didáticas”, vinculado ao Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina. Nesta pesquisa, serão apresentados os primeiros estudos desenvolvidos no projeto, com a análise de dois corpora (i) documentos oficiais que regem o ensino da língua portuguesa no Paraná, (ii) coleções de livros didáticos utilizados nas escolas do Paraná. Tal análise objetiva verificar o alcance dos estudos sobre a variação da língua, veiculados no ambiente acadêmico, no meio escolar, com o propósito de colaborar para a efetiva concretização de uma pedagogia da variação. ABSTRACT The present study aims to present the results of a research project “Change language in school: didactic proposals”, linked to the Department of Classical and Vernacular Literature from the State University of Londrina. In this study, we present the first studies developed in the project, with the analysis of two corpora (i) the official documents governing the teaching of Portuguese in Paraná, (ii) collections of textbooks used in the schools of Paraná. This analysis aims to verify the scope of studies on language variation, served in the academic environment, at school, in order to contribute to the effective implementation of a pedagogy of variation. © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 39-62, jan./jun. 2014 Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto PALAVRAS-CHAVE ensino de Língua Portuguesa; variação linguística; normas KEYWORDS teaching of Portuguese language, linguistic variation; norms Apresentação A variação linguística constitui um fenômeno natural em qualquer língua, entretanto tal fato não é compreendido pela grande maioria da população brasileira que acredita ser a língua do Brasil um objeto homogêneo, inflexível. Tal fato é comentado por Faraco, ao propor a ideia de uma pedagogia da variação: Se, como resultado da intervenção dos linguistas, o tema da variação acabou incorporado pelo discurso pedagógico, podemos dizer que não conseguimos ainda construir uma pedagogia adequada a essa área. Talvez porque não tenhamos ainda, como sociedade, discutido suficientemente, no espaço público, nossa heterogênea realidade linguística, nem a violência simbólica que a atravessa. (FARACO, 2008, p.177) No meio escolar, na maioria das vezes, a diversidade da língua é também ignorada, pois falta preparo teórico-metodológico para o professor lidar com um fenômeno comum, entretanto incompreendido pela sociedade. Dada tal situação, é crucial uma alteração na tarefa do profissional que lida didaticamente com a língua portuguesa no Brasil, uma vez que os estudos sobre a diversidade linguística brasileira já avançaram consideravelmente. Pensando no distanciamento entre a 40 Joyce Elaine de Almeida Baronas realidade social e os avanços empreendidos no meio acadêmico, pode-se firmar a necessidade da implantação da pedagogia da variação, proposta por Faraco: ... cabe reiterar que nosso grande desafio, neste início de século e milênio, é reunir esforços para construir uma pedagogia da variação linguística que não escamoteie a realidade linguística do país (reconheça-o como multilíngue e dê destaque crítico à variação social do português); não dê um tratamento anedótico ou estereotipado aos fenômenos da variação; localize adequadamente os fatos da norma culta/ comum/ ‘standard’ no quadro amplo da variação e no contexto das práticas sociais que a pressupõem; abandone criticamente o cultivo da norma-padrão; estimule a percepção do potencial estilístico e retórico dos fenômenos da variação (FARACO, 2008, p.180) Este texto pretende, pois, apresentar uma pesquisa que objetiva fornecer subsídios aos professores de Língua Portuguesa a partir da elaboração de propostas adequadas ao estudo da língua em suas diversificadas matizes. Trata-se de busca de uma melhor compreensão da língua portuguesa abrangendo as variadas normas presentes no país, ou seja, o trato da linguagem numa perspectiva sociolinguística. Espera-se, com este estudo, levar ao professor, ferramentas úteis para o trabalho com a língua de forma consciente e inovadora, no sentido de romper com o preconceito linguístico e de conceber a linguagem como forma interação social, abordando não só a norma padrão, mas também as variedades linguísticas. Tal proposta se dará a partir de estudos desenvolvidos no projeto de pesquisa “Variação linguística na escola: propostas didáticas”, vinculado ao Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Londrina, no qual se unem docentes e discentes do curso de 41 Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto Letras, além de professores da rede estadual do Paraná, a fim de pensar o ensino de língua portuguesa atual. Desta forma, serão apresentados, nesta pesquisa, os primeiros estudos desenvolvidos no projeto citado, apresentando análise de dois corpora, a saber: (i) documentos que regem o ensino da língua portuguesa, evidenciando em que sentido a variação faz parte de tais textos normativos, (ii) 15 coleções de livros didáticos aprovadas pelo Plano Nacional do Livro Didático. Tais análises se deram no sentido de colaborar para uma nova abordagem da língua na escola, sob a perspectiva da diversidade linguística. 1 Pressupostos teóricos Nesta seção, apresentam-se algumas discussões de pesquisadores renomados sobre questões relacionadas à língua e ao fenômeno da variação. 1.1 Normas A língua portuguesa do Brasil apresenta diversas normas, apesar disso, a sociedade em geral, distante dos estudos linguísticos, apresenta uma busca incessante de uma língua única, invariável, ou seja, a norma padrão expressa na gramática normativa. Segundo Castilho (2002), existem três tipos de norma: a norma objetiva, a norma subjetiva e a norma prescritiva. A norma objetiva, também chamada de padrão real, é a linguagem praticada pela classe social de prestígio, ou seja, pela classe culta, escolarizada. O segundo tipo de norma, a norma subjetiva considerada padrão ideal de linguagem é a atitude que o falante assume perante a norma objetiva em situações em que a comunidade linguística exige maior cuidado com a linguagem. Já a norma prescritiva é a combinação da norma objetiva com a norma subjetiva, em que são ensinados os usos 42 Joyce Elaine de Almeida Baronas linguísticos de uma classe de prestígio considerados mais adequados a cada situação e mais bem identificados com o ideal de perfeição linguística. De acordo com Faraco (2002), a norma pode ser considerada um fator de identificação sociocultural. Diante disso a norma culta da língua se destaca por ser a utilizada pelos grupos que controlam o poder social. O autor esclarece a distinção entre norma culta e norma padrão, já que essas costumam ser confundidas, inclusive no meio acadêmico. Segundo Faraco (2002), norma culta é a norma linguística praticada em determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau de formalidade) por aqueles grupos sociais mais relacionados com a língua escrita, enquanto a norma padrão são as formas contidas e prescritas pelas gramáticas normativas. Por esse padrão ter tido origem de um modelo lusitano praticado por alguns escritores portugueses, não há muita relação entre a norma padrão e o uso; desta forma, o distanciamento entre a norma padrão e a realidade linguística brasileira dificultam a assimilação de tal norma por uma grande parcela da população do país. Na sociedade brasileira, podem-se constatar empiricamente variadas normas, visto que constituem possibilidades adequadas a determinados contextos, assim há a “norma da casa”, a “norma do emprego”, a “norma dos amigos”, e assim por diante. Pensando desta forma, pode-se associar o conceito de norma à variação, dado que cada norma constitui uma variedade; desse modo, a norma padrão constitui uma entre as diversas variedades do português do Brasil. 1.2 Variação linguística A linguagem é, por natureza, um objeto sujeito a alterações, por ser uma parte constitutiva do ser humano e da cultura na qual este se insere. Ora, se o homem está sempre evoluindo, mudando sua aparência, suas ideias, seus valores, bem como a sociedade na qual este se inscreve, 43 Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto é perfeitamente normal haver variações e mudanças linguísticas. Os estudos de Labov (1962) apontam que a variação linguística é natural, é essencial à linguagem humana, desta forma o que exigiria explicação seria a ausência da variação na linguagem e não a sua presença. Meillet já apontava, no início do século passado, em 1906, o fato social como motivação fundamental para ocorrerem alterações linguísticas: “Por ser a língua um fato social resulta que a linguística é uma ciência social, e o único elemento variável ao qual se pode recorrer para dar conta da variação linguística é a mudança social” (MEILLET apud CALVET, 2002, p. 16). A variação da língua ocorre devido a fatores linguísticos ou extralinguísticos, de forma que os primeiros se dão pela própria natureza linguística e os segundos, por motivos externos à língua. Em relação aos fatores extralinguísticos, Camacho (1988) propõe uma sistematização apontando a classificação: variação histórica, geográfica, social e estilística. O autor ressalta que tal classificação proposta não se dá de forma estanque, ou seja, muitas vezes uma variação ocorre devido a mais de um fator, como o social e o geográfico, por exemplo. Já Castilho (2010) apresenta outra proposta de classificação, a saber: variação geográfica, variação sociocultural, variação individual, variação de canal e variação temática. A seguir, busca-se correlacionar as propostas de Camacho (1988) e de Castilho (2010) A variação histórica resulta das mudanças naturais consequentes da evolução temporal. Moda, decoração, conceitos de beleza constituem costumes que variam conforme o tempo; isto porque a sociedade evolui e altera sua forma de agir, de pensar e de conceber seus padrões de beleza e de normalidade. Assim também acontece com a língua, formas linguísticas consideradas comuns em determinada época não o são em outra. Daí o que se entende por arcaísmos e neologismos, de forma que as primeiras constituem formas desatualizadas, não mais utilizadas pela maioria da comunidade, enquanto que as segundas, novas, inovadoras. Conforme aponta Camacho (1988, p.30), “podem conviver 44 Joyce Elaine de Almeida Baronas no mesmo plano temporal variantes em desuso com suas respectivas substitutas, estritas, porém a alguns poucos falantes de idade avançada que, paralelamente à evolução dos usos e costumes, mantêm formas de expressão adotadas como prestigiosas pela norma pedagógica ou social de décadas atrás”. Cabe ressaltar que este tipo de variação evidencia a intrínseca relação existente entre língua e sociedade; ora, se a sociedade evolui, muda com o passar do tempo, nada mais do que natural do que a mudança linguística, dado que o ser humano se constitui pela linguagem. A variação geográfica resulta da forma linguística comum a uma região. A língua portuguesa falada em diferentes países constitui exemplo interessante deste tipo de variação, pois se diferencia nos diversos países em que é falada, chegando a ser classificada, por alguns pesquisadores, como outra língua, como no caso no Brasil em que se nomeia “português brasileiro”. Camacho ressalta que o limite geográfico de uma comunidade linguística muitas vezes não coincide com os limites políticos; segundo o autor, “tais limites são relativamente fixados, porque graduais, e se às vezes a rotulação de determinado falar regional corresponde aos limites políticos, será por necessidade prática.” (CAMACHO, 1988, p.31-32) Castilho (2010, p.198), afirma ser a variação geográfica a mais perceptível: Quando começamos a conversar com alguém, logo percebemos se ele é ou não originário de nossa região. O autor ainda salienta que a visibilidade deste tipo de variação fez surgir a Dialetologia; pode-se afirmar aqui a importância dos estudos dialetológicos no Brasil, que conta com pesquisadores renomados, os quais contribuem para a descrição do português brasileiro. A variação social resulta da diferença entre setores socioculturais da comunidade, o que implica diferenças etárias, sexuais e socioculturais. Em relação à diferença entre faixas etárias distintas, pode-se visualizar com ênfase a linguagem dos adolescentes e a dos idosos. A adolescência constitui uma fase importantíssima para o indivíduo, em que o adolescente, ansioso pela marcação de identidade, define formas linguísticas próprias 45 Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto que o diferem dos demais. Já os idosos, também marcam sua identidade pelas formas próprias de sua época e pelo cuidado com a língua, forma de demarcar a cautela do homem já vivido e experiente. A diferença sexual se identifica também na linguagem, sendo mais comuns formas delicadas, com predomínio de diminutivo na fala feminina. Já a questão sociocultural implica diferenças entre classes sociais, fator de suma importância para a abordagem na escola, uma vez que diferenças características de determinados extratos sociais resultam barreiras sociais, inclusive no âmbito linguístico. Tais questões são relativas ao prestígio às formas características de determinados grupos, conforme aponta Camacho (1988, p.33): A divisão de uma comunidade em setores sociais não significa que o intercâmbio linguístico entre indivíduos de distintos estratos seja prejudicado por dificuldades de compreensão, como poderia ocorrer entre duas comunidades regionais. Significa, antes, que o uso de certas variantes é indício, numa sociedade estratificada, do nível sócio-econômico e cultural de seus membros e, portanto, indício de alto ou baixo grau de prestígio Em sua classificação, Castilho (2010, p.204) apresenta uma delimitação, apontando a variação sociocultural, considerando as variáveis: (i) falante não escolarizado e (ii) falante escolarizado. Para o autor (2010, p.204), analfabetos e falantes escolarizados não falam exatamente da mesma forma. Assim, Castilho afirma ser comum a variedade culta para pessoas escolarizadas enquanto que a variedade popular caracteriza o falar dos não escolarizados. Já em relação aos fatores etário e sexual, Castilho (2010) propõe outro tipo de classificação denominada variação individual. Em relação à idade, o autor afirma: sabe-se que velhos falam como se falava antes, e jovens acolhem as mudanças na língua que foram generalizadas posteriormente (CASTILHO, 2010, 46 Joyce Elaine de Almeida Baronas p.212). Já, em relação ao sexo, o autor aponta uma questão relacionada à própria estrutura da língua portuguesa, visto que não se identificam diferenças estruturais caso o falante seja homem ou mulher, como ocorre no japonês, por exemplo. A variação estilística, proposta por Camacho (1998), se compõe das diferentes maneiras de se manifestar linguisticamente diante de situações formais e informais, daí a necessidade de adequação ao ambiente. Tratase de um tipo muito importante para a abordagem em sala de aula, pois neste tópico é possível ensinar ao aluno a possibilidade de utilizar formas coloquiais e a necessidade de aprender formas mais elaboradas, devido à situação interativa. Cabe ressaltar que, para Castilho (2010), as diferenças de registro resultantes da situação se incluem no tipo por ele denominado variação individual. Castilho (2010, p.211) ainda aponta a variação de canal: A comunicação linguística pode ocorrer em presença do interlocutor, quando falamos, ou na sua ausência, quando escrevemos. Assim o autor propõe a variação entre a língua falada e a língua escrita. Em relação à variação de canal, Ilari e Basso (2006) propõem outra denominação: variação diamésica. Segundo os autores, a variação diamésica compreende, antes de mais nada, as profundas diferenças entre a língua falada e a língua escrita. (ILARI; BASSO, 2006, p.181). Cabe ressaltar que tal classificação se estende, para os pesquisadores, para a variação entre os gêneros discursivos. Castilho (2010) ainda aponta a classificação temática que diz respeito ao modo como se trata determinado assunto. Segundo o pesquisador: Podemos falar de assuntos do dia a dia, e teremos o ‘português corrente’. Podemos falar de assuntos especializados, e aí teremos o ‘português técnico’. Assim, o autor afirma que tais variedades distinguem a linguagem do cidadão comum da linguagem dos cientistas, dos clérigos, dos políticos etc. (CASTILHO, 2010, p.223) Tais classificações são de grande relevância para o profissional que se dedica a estudar o fenômeno da variação, uma vez que propiciam visualizar a amplitude que o constitui. 47 Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto 1.3 Oralidade e escrita É possível abordar, conforme aponta Marcuschi (2001), eventos de oralidade e de escrita como um contínuo, em que se identificam determinados gêneros. Desta forma, há gêneros que se encaixariam num pólo de maior oralidade, como uma conversa informal, por exemplo, enquanto outros se enquadrariam num pólo mais apropriado para eventos da escrita, como um artigo científico. Corroborando com as ideias de Marcuschi (2001), Bortoni-Ricardo (2004) apresenta uma proposta de contínuos de oralidade e escrita para os eventos comunicativos, havendo também pólos de maior predominância ou da oralidade ou da escrita. Cabe ressaltar a não correlação: escrita-formalidade, oralidadeinformalidade, visto que do mesmo modo, podemos aplicar a proposta dos contínuos para os níveis de formalidade, tanto nos gêneros orais, como nos escritos. Apesar disso, é fato natural a associação da formalidade ao texto escrito devido à própria história da escrita na vida do ser humano. Ora, uma criança, até a educação formal escolar, pratica anos eventos orais livres de padronização, enquanto que, ao adentrar o meio escolar, insere-se na necessidade de padronização do texto escrito. Além disso, ressalta-se a diferença quantitativa em relação à produtividade de textos escritos, pois um profissional que não tem a escrita como profissão, raramente se depara com eventos de escrita, e quando isto ocorre, em geral devem ser produzidos na norma-padrão, pois constituem gêneros que se caracterizam pela formalidade, como é o caso de requerimentos, procurações, ofícios, etc. Nesse sentido, é papel do professor de língua portuguesa, levar o aluno ao contato com diversos gêneros orais e escritos, propiciando a percepção da adequação da linguagem a cada evento de comunicação. Ressalta-se ainda a interferência da variação própria da situação de oralidade para a de escrita, e, como afirma Cagliari (1992, p.124), “a variação linguística, característica inerente a toda e qualquer língua do mundo, pode constituir um grande problema para quem está adquirindo 48 Joyce Elaine de Almeida Baronas o sistema da escrita.” Isto porque o aluno pode transpor as variantes distantes da norma para o texto escrito. Em outro estudo, o autor ainda aponta que “o erro mais comum dos alunos é caracterizado por uma transcrição fonética da própria fala” (CAGLIARI, 1992, p.138). 2 Sobre o projeto Variação linguística na escola O projeto “Variação linguística na escola: propostas didáticas” constitui uma investigação de natureza teórico-metodológica sobre o atual sistema de ensino da língua portuguesa nas escolas do Paraná, incluindo documentos oficiais de ensino, livros didáticos e atuação profissional, a fim de averiguar até que ponto os estudos sociolinguístico estão efetivamente presentes no dia-a-dia da escola. Pretende-se, neste projeto, verificar se ocorre a abordagem da variação linguística nos manuais didáticos utilizados no Paraná, e, em caso positivo, como isso se dá. A partir dos dados obtidos, objetiva-se propor atividades sobre a variação pouco contempladas nos atuais manuais e que merecem atenção. Com isso, espera-se colaborar para a divulgação dos estudos sociolinguísticos e a extinção do tão arraigado preconceito linguístico presente em nossa sociedade. Para tal tarefa, professores da rede estadual, docentes e discentes do curso de Letras da Universidade Estadual de Londrina se reúnem para estudar questões sobre a língua e analisar documentos oficias de ensino e manuais didáticos para, a partir deste estudo sistematizado, elaborar novas propostas de ensino da língua que contemplem a variação. No presente artigo serão apresentadas (i) a análise dos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio e os Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental; (ii) a análise de 11 coleções de livros didáticos utilizadas no Paraná. 49 Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto 3 Análise dos corpora Nesta seção serão apresentas análises de dois corpora: (i) documentos oficiais de ensino, (ii) manuais didáticos do ensino fundamental e médio. 3.1 Análise dos documentos Os Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental apresentam uma orientação sobre o trabalho com a variação linguística na escola. Apresentam-se, a seguir, trechos do documento em que se evidencia tal afirmação: Entre as críticas mais frequentes que se faziam ao ensino tradicional destacavam-se: a excessiva valorização da gramática normativa e a insistência nas regras de exceção, com o consequente preconceito contra as formas de oralidade e as variedades não-padrão;(...) É neste período que ganha espaço um conjunto de teses que passam a ser incorporadas e admitidas, pelo menos em teoria, por instâncias públicas oficiais. A divulgação dessas teses desencadeou um esforço de revisão das práticas de ensino da língua, na direção de orientá-las para a ressignificação da noção de erro, para a admissão das variedades linguísticas próprias dos alunos, muitas delas marcadas pelo estigma social, e para a valorização das hipóteses linguísticas elaboradas pelos alunos no processo de reflexão sobre a linguagem e para o trabalho com textos reais, ao invés de textos especialmente construídos para o aprendizado da escrita. (BRASIL, 1998, p.18) 50 Joyce Elaine de Almeida Baronas Pode-se contatar, nesta citação, a necessidade do trabalho com a variação linguística, implicando necessariamente uma melhoria na qualidade do ensino da língua no período atual. No documento em análise, identifica-se ainda um item “Implicações da questão da variação linguística para a prática pedagógica” (BRASIL, 1998, p. 29), em que se discorre sobre a necessidade da abordagem da língua em sua diversidade. Além disso, nas “Orientações didáticas específicas para alguns conteúdos” (BRASIL, 1998, p.81-83), há uma seção específica intitulada “Variação linguística”. Tais apontamentos mostram a aceitação e a crença por parte dos responsáveis pelos documentos do ensino fundamental da necessidade da abordagem da variação linguística no ambiente escolar. Já nos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, os apontamentos sobre variação linguística não se dão com tanta ênfase, o foco se dá mais diretamente no que diz respeito à linguagem e identidade. Isto talvez se deva ao fato de estar subentendido que o trabalho sobre variação seja bem realizado já no ensino fundamental, conforme as indicações dos documentos direcionados a tal fase. No item “Competências e habilidades” (BRASIL, 2000, p.19), verifica-se o subitem “Considerar a Língua Portuguesa como fonte de legitimação de acordos e condutas sociais e como representação simbólica de experiências humanas manifestas nas formas de sentir, pensar e agir na vida social” (BRASIL, 2000 p.20) em que consta a seguinte afirmação: Dar espaço para a verbalização da representação social e cultural é um grande passo para a sistematização da identidade de grupos que sofrem de deslegitimação social. Aprender a conviver com as diferenças, reconhecêlas como legítimas e saber defendê-las em espaço público fará com que o aluno reconstrua a auto-estima. (BRASIL, 2000, p.20) 51 Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto É possível verificar, nesta citação, a importância atribuída à identidade e às diferenças, o que implica, em se tratando de linguagem, a valorização também da variação linguística, dado que tal fenômeno constitui instrumento de identidade e de consequente marcação de diferença social. Ainda neste item constata-se o seguinte apontamento: A escola não pode garantir o uso da linguagem fora do seu espaço, mas deve garantir tal exercício de uso amplo no seu espaço, como forma de instrumentalizar o aluno para o seu desempenho social. Armá-lo para poder competir em situação de igualdade com aqueles que julgam ter o domínio social da língua” (BRASIL, 2000, p.22) Pode-se evidenciar, nesta afirmação, as ideias apontadas por Gnerre (1985) em que o autor afirma a necessidade de a escola proporcionar ao aluno o acesso à norma culta e à norma padrão a fim de que ele possa utilizá-las nas situações em que são necessárias. Tal formação é de suma importância haja vista o estigma que carregam as variedades do português distantes da norma, de forma que os falantes dessas variedades são considerados incultos, ignorantes, sendo desprezados socialmente pelos que dominam a norma de prestígio. Com base nos dados identificados nesta análise, pode-se afirmar um avanço em relação à situação de ensino se comparada a anos anteriores, uma vez que a sugestão da necessidade da abordagem da variação linguística se faz presente tanto nos Parâmetros do Ensino Fundamental como nos documentos do Ensino Médio. A seguir, apresenta-se a análise dos manuais didáticos do Paraná. 52 Joyce Elaine de Almeida Baronas 3.2 Análise dos manuais didáticos Nesta seção, pretende-se apresentar uma análise quantitativa da abordagem da variação linguística nos livros didáticos utilizados no Paraná até 2012. Cabe ressaltar que foram aprovadas 16 coleções pelo Plano Nacional do Livro Didático, entretanto, para a presente pesquisa foi possível analisar 15 coleções, uma coleção é indisponível, visto que nem mesmo as escolas de Londrina a possuíam. Desta forma, foram analisadas 15 coleções, buscando identificar quais tipos de variação são contempladas por ano a fim de traçar um panorama geral. Para a análise em questão, utilizou-se a proposta de Camacho que classifica a variação em quatro tipos: geográfica, estilística, histórica e social; optou-se por esta classificação pelo aspecto téorico-prático desta classificação, ou seja, trata-se de uma proposta viável para análise, o que não desmerece as demais classificações de outros autores. Cabe ainda ressaltar que, para a busca de cientificidade do presente trabalho, os manuais analisados são nomeados pelos numerais de 1 a 15. Assim, foram elaboradas 4 tabelas correspondentes aos quatro tipos de variação proposta por Camacho (1988) com a análise quantitativa da abordagem da variação da língua. Seguem tabelas com a análise, para posterior discussão: TABELA 1: Presença da variação estilística Variação estilística 1 6º ano X 7º ano 8º ano 9º ano 2 X X X 3 4 5 6 7 X X X X X X X X X X X X X X X X TOTAL: 44 ocorrências/ 73,3 % 53 8 9 10 X X X X X 11 12 X X X X X X X X X X 13 14 X X X X X X X X 15 X Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto TABELA 2: Presença da variação geográfica Variação geográfica 1 2 6º ano X 7º ano X 3 4 X 8º ano X 9º ano X X 5 6 7 8 9 10 11 X X X X X X X X X X X X X X X X X X 12 13 14 X X X X X 15 X TOTAL: 30 ocorrências/ 50% TABELA 3: Presença da variação social Variação social 1 2 3 6º ano X 7º ano 4 5 X X X 8º ano X X 9º ano 6 7 X X 8 9 10 X X 11 X X X 13 14 X X X X X X X 12 X X X 15 X X X X 14 15 TOTAL: 27 ocorrências/ 45% TABELA 4: Presença da variação histórica Variação histórica 1 6º ano X 2 3 4 5 6 7 X X 8 7º ano X X X 8º ano X X X 9º ano X X X X 9 10 11 12 X X 13 X X X X TOTAL: 19 ocorrências/ 31,6 % Com base nos dados gerais das tabelas, é possível constatar os seguintes resultados: a variação estilística é a mais contemplada entre as coleções, pois entre os 60 manuais, ela se constata em 44, ou seja, há 73,3 por cento de ocorrências (Tabela 1). A variação regional é abordada em metade dos livros analisados, pois, dos 60, está presente em 30 livros (Tabela 2). Já a variação social e a histórica são as menos abordadas; a 54 Joyce Elaine de Almeida Baronas variação social se evidencia em 27 manuais, totalizando 45 por cento (Tabela 3) e a variação histórica se identifica em 19 manuais, resultando 31,6 por cento (Tabela 4). FIGURA 01: Porcentagem dos tipos de variação presentes nos manuais didáticos Tais dados numéricos permitem afirmar que a variação histórica é pouco contemplada nesses manuais, o que se explica pela própria área em que se insere tal tipo de variação: a Linguística Histórica, que exige do profissional que se interesse por caminhar nesta perspectiva, um conhecimento muito vasto e uma formação acadêmica diferenciada, uma vez que noções a respeito de língua latina, diacronia e história são cruciais para tal formação. A variação social também é pouco abordada nas coleções, fato que pode ser explicado também pela área de estudo, a qual envolve questões polêmicas, relacionadas ao preconceito linguístico. É fato que a sociedade ainda desconhece e, consequentemente, despreza os estudos desenvolvidos no ambiente acadêmico sobre língua e preconceito, de forma que, para o meio social, ensinar língua significa ensinar regras gramaticais, como se a norma padrão fosse algo concreto e realizável, ou seja, prevalece ainda a “pureza da Língua”, contemplada por Otávo Bilac ao falar sobre “a Flor do Lácio”. Ressalta-se ainda que a atitude 55 Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto da sociedade atual ainda reflete a atitude da sociedade brasileira em sua colonização quando o ideal lusitano prevalecia, ou seja, a elite brasileira rejeitava a “língua de preto”, almejava a uma sociedade branca, europeizada. Tais afirmações são apontadas por Faraco (2008) ao comentar a atitude da elite brasileira no período da colonização: Por trás da atitude excessivamente conservadora dessa elite letrada, além de uma herança da pesada tradição normativa dos países de línguas latinas, estava seu desejo de viver num país branco e europeu, o que fazia lamentar o caráter multirracial e mestiço do nosso país (aspirando, de modo explícito até a década de 1930, a um ‘embranquecimento da raça’); e, no caso da língua, a fazia reagir sistematicamente a tudo aquilo que nos diferenciasse do modelo linguístico lusitano por ela escolhido para padronizar a fala e a escrita no Brasil. (FARACO, 2008, p.79) Pode-se, pois, relacionar a atitude da elite letrada comentada por Faraco com a elite brasileira, havendo muitos resquícios daquela busca de um padrão lusitano e “puro”. Já em relação às séries, pode-se evidenciar que a variação da língua tem pouca evidência nos anos finais do ensino fundamental, pois três coleções não tratam de nenhum tipo de variação no nono ano e sete coleções tratam apenas de um tipo de variação no último ano. Tais dados indicam que a maioria dos profissionais que produziram os manuais didáticos acredita ser desnecessário trabalhar a variação linguística no final do ensino fundamental, fato curioso e preocupante uma vez que tal atitude pode resultar da pouca importância destinada ao assunto, ou seja, é possível que se julgue o tema da variação linguística menos importante do que outros mais relacionados à noção de “pureza da Língua”. Além disso, a ausência do enfoque à variação linguística no final do ensino fundamental pode ainda resultar da crença de que esse tipo de conhecimento não será objeto de cobrança em vestibulares, Enem, etc. 56 Joyce Elaine de Almeida Baronas Em relação à qualidade da abordagem identificada nos manuais analisados, pode-se afirmar novamente a necessidade da aplicação, no ambiente escolar, dos estudos realizados nas universidades, visto que há muitas pesquisas voltadas para a variação linguística que poderiam muito auxiliar professores de ensino fundamental e médio na tarefa de abordar a língua em sua diversidade. Tal fato se constata, por exemplo, nas atividades encontradas sobre a variação histórica; como já pontuado, pouco há sobre tal variação nos manuais analisados e, quando isto se dá, a maioria dos livros traz o mesmo texto: “Antigamente”, de Carlos Drummond de Andrade. Ressalta-se que não se objetiva criticar tal texto, trata-se, é claro, de uma obra muito interessante, rico em termos arcaicos, o que se questiona é a raridade de exemplos oferecidos para os leitores dos manuais didáticos. Novamente tal fato se dá pela própria formação dos autores dos manuais, pois a área da diacronia é pouco aprofundada durante a maioria dos cursos de graduação, somente quem se aventura por tal área em pesquisas posteriores, teria melhores condições de oferecer possibilidades diversificadas sobre os estudos antigos, como por exemplo, manuscritos de séculos anteriores, jornais antigos, cartas etc. Em relação à variação geográfica, reafirma-se um distanciamento entre a escola e a universidade, pois a maioria trata o fenômeno da variação regional sem fundamentação teórica, com fontes pouco seguras, como glossários regionais não fundamentados em estudos linguísticos. A abordagem deste tipo de variação também poderia ser muita mais enriquecida pelos estudos acadêmicos haja vista o intenso trabalho realizado por dialetólogos brasileiros na tarefa de registrar a língua do Brasil no projeto ALIB – Atlas Linguístico do Brasil, além dos atlas regionais já concluídos. Em relação à variação social, a maioria traz a diferença entre faixa etária, havendo poucas atividades destinadas à questão cultural, o que implica necessariamente comentários a respeito do preconceito 57 Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto linguístico. Trata-se de um tema bastante polêmico, difícil de ser abordado sem correr o risco de ser mal interpretado pela sociedade, mas que merece sim ser estudado, havendo, pois, a necessidade de profissionais que se aventurem a realizar tal atividade. Pode-se reafirmar, com base nas constatações apresentadas, a necessidade de uma maior proximidade entre escola e universidade a fim de que a prática escolar seja enriquecida e que a escola seja competente na tarefa de abordar a variação língua. Considerações O estudo sobre variação linguística nos bancos acadêmicos já é bastante profícuo, no entanto ainda urge sua presença nos bancos escolares, uma vez que a academia não pode se dissociar da prática educacional, principalmente nos cursos de licenciatura, com é o caso do curso de Letras. O presente trabalho busca, pois, indicar a importância da pesquisa sobre a variação linguística, implementada no ambiente escolar e, para isto, foram analisados documentos oficiais de ensino e manuais didáticos utilizados nas escolas paranaenses. Em relação aos Parâmetros Curriculares, tanto do ensino fundamental como do ensino médio, pode-se afirmar que já há uma conscientização da necessidade da abordagem da variação linguística na escola, fator de suma importância, uma vez que tais documentos podem alterar a atual sistema de ensino. Cabe ressaltar que o que se evidencia nos PCNs, necessariamente, não se vê na prática, entretanto já há um avanço considerável em relação a épocas anteriores em que se abominava o fenômeno da variação. Já, em relação à análise quantitativa da abordagem da variação linguística nos manuais didáticos, foi possível verificar que a variação é abordada, mas tal fato ainda carece de mais atenção, uma vez que se 58 Joyce Elaine de Almeida Baronas identificaram lacunas, como, por exemplo, a escassez da abordagem de determinado tipo de variação _ a histórica _ como também a pouca atenção dada ao fenômeno da variação da língua no nono ano. A análise qualitativa das atividades oferecidas pelos manuais didáticos permitiu constatar a distância entre a escola e a universidade, visto que a riqueza dos estudos já realizados no meio acadêmico não presencia os manuais didáticos. As análises realizadas no presente estudo se deram com a finalidade de verificar como as ideias sobre o fenômeno da variação se propagaram no ambiente escolar. A proposta não é criticar a situação atual de ensino, mas verificar lacunas existentes para que se busquem esforços no sentido de preenchê-las. Tal tarefa é fundamental para concretizar a proposta da pedagogia da variação linguística no Brasil. Referências AZEREDO, Cristina Soares de Lara. Língua Portuguesa. Manual do professor. Curitiba: Positivo LV, 2009. (Projeto Eco). BELTRÃO, Eliana Lúcia Santos; GORDILHO, Tereza Cristina S. Diálogo: Língua portuguesa. Manual do professor. Renov. São Paulo: FTD, 2009. 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Uma delas é o fio condutor deste artigo, que objetiva elencar reflexões sobre relatos de falas que compõem o gênero notícia online, provenientes de retomadas de sobreasseverações. Estas, de acordo com Maingueneau, referem-se ao destaque de trechos efetuado pelo próprio locutor do texto-fonte em seu discurso, geralmente sob forma de pequenas-frases. Para este artigo, selecionamos como corpus um debate político-televisivo do segundo turno das eleições de 2010 para presidência do Brasil, e notícias online que são construídas com recortes de falas dos atores envolvidos nos debates. Foi possível articular, no percurso de análise, o conceito de sobreasseveração com novas e antigas problemáticas, como a heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade mostrada, o silenciamento, a citação e as aforizações, todas constitutivas das sobreasseverações e indispensáveis para compreender o funcionamento das notícias online construídas sobre relatos de falas. © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 63-84, jan./jun. 2014 Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados ABSTRACT The online spread of news, a product of sophisticated and heterogeneous social medium machinery, imposes new issues in discourse studies at a moment in which the limits of time and space are socially more and more diluted. One issue foregrounds current research that aims at listing considerations on discourse reports that make up the online news genre originating from reiterated surassertions. According to Maingueneau, they refer to the underlining of speech under the form of small phrases. The corpus of current essay is a TV political debate during the second round of the 2010 Brazilian presidential election and the online news built from sections of the speeches of agents involved in the debate. The concept of surassertion could be articulated with old and new issues such as constitutive heterogeneity and shown heterogeneity, silencing, quoting and aphorisms, which are all constitutive of surassertions. In fact, they are indispensable to understand the functioning of online news constructed on speech reports. PALAVRAS-CHAVE Sobreasseveração, citação, notícias online, mídia. KEYWORDS Surassertion, quotes, online news, social media. Considerações iniciais Uma contínua retomada de dizeres é característica do funcionamento de grande número de notícias que atribuem uma fala a outrem. Compreender essas retomadas implica considerar uma sofisticada maquinaria midiático-discursiva em cujo funcionamento intervêm fatores e atores diversos, sistemicamente inter-relacionados e envolvidos na obtenção, triagem, interpretação e circulação das informações. Tratase de um processo similar ao da cadeia detectada por Salgado (2011, p. 22), na chamada Lei do Livro, que trata da autoria, edição, distribuição, comercialização e difusão do livro. E, tal como aquela, “envolve coletivos complexos, etapas distintas de trabalho, uma diversidade de colaborações” (idem). 64 André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites Produto dessa maquinaria, as notícias calcadas em relatos de fala fazem emergir antigas questões que se problematizam em torno de citações1, heterogeneidade constitutiva e mostrada, tópicos já há certo tempo abordados por diversos pesquisadores, dentre os quais destacamos Authier-Revuz (1982, 1990, 2004), que ancora seus estudos na concepção do duplo dialogismo bakhtiniano e na abordagem psicanalítica do sujeito. Essa maquinaria também faz emergir problemáticas não abordadas nas primeiras fases da Análise do Discurso. Exemplo disso são as sobreasseverações, as cenas da enunciação, o ethos discursivo, as aforizações e as pequenas frases, conceitos desenvolvidos e articulados por Dominique Maingueneau, nas três últimas décadas, com o objetivo de compor um corpo teórico que permita abordar o aparecimento e a circulação de uma grande diversidade de materiais linguísticos, dentre os quais destacamos a notícia online, objeto deste artigo. Com o objetivo de observar o funcionamento da maquinaria discursiva que produz notícias online baseadas em relatos de fala, abordamos os enunciados destacados, focalizando as noções de sobreasseveração e aforização. Em um primeiro momento, aproximamos essas noções das de heterogeneidade constitutiva e mostrada, enfatizando as não-coincidências do dizer; em seguida, aproximamos citações e sobreasseverações da questão do silenciamento, que, ao lado da inclusão de informações, funciona como manobra discursiva da referida maquinaria midiática. Ao final, apresentamos nossas considerações finais. 1 Sobreasseverações e aforizações: o percurso das citações Uma das temáticas recorrentes na obra recente de Maingueneau tem sido a questão da destacabilidade enunciativa de algumas frases, Neste artigo, utilizamos o termo “citação” como sinônimo do fenômeno de retomada de enunciados sobreasseverados. 1 65 Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados propiciada por algumas características formais da enunciação: “são curtas, bem estruturadas, de modo a impressionar, a serem facilmente memorizáveis e reutilizáveis”; são, além disso, “pronunciadas com o ethos enfático conveniente” e generalizações “que enunciam um sentido completo”. (2008, pp. 74-77). Para tratar convenientemente da destacabilidade e de suas interfaces, aí incluída a sobreasseveração, nosso interesse maior, necessitamos evocar os regimes enunciativos propostos por Maingueneau (2010, p. 13), apresentados no esquema abaixo: FIGURA 1: Enunciações aforizante e textualizante. De acordo com a figura 1, são dois os regimes enunciativos: o aforizante e o textualizante. No regime aforizante inserem-se os enunciados naturalmente destacados (slogans, ditados e provérbios, por exemplo) e os enunciados retirados de textos e utilizados sob a forma de citação (os destacados de um texto). A enunciação aforizante caracterizase por pretender “exprimir o pensamento de seu locutor, aquém de qualquer jogo de linguagem: nem resposta, nem argumentação, nem narração, mas pensamento, dito, tese, proposição, afirmação soberana...” (MAINGUENEAU, 2010, p. 14). Sinteticamente, podemos afirmar que, enquanto resposta, a argumentação e a narração são casos de regime textualizante, as enunciações destacadas caracterizam-se como aforizações. 66 André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites Há situações em que o próprio locutor do texto-fonte marca um trecho como destacável, seja com o auxílio de um conector, seja com uma reformulação (“dito de outra forma”, “em suma”), seja por meio de uma generalização ou por sua localização em final de texto ou de parágrafo. Temos nesses exemplos o que Maingueneau (2008, 2010) denomina sobreasseveração. No procedimento de retomada de enunciados, o discurso direto é bastante empregado. Contudo, ele não é uma transcrição autêntica, mas consiste tão somente em uma simulação, em um diálogo construído a partir de um registro. Nesse processo de retomada de falas, pode acontecer de o lugar de sobreasseverador ser imputado ao locutor do texto-fonte, à sua revelia, conforme esclarece Maingueneau (2012), em uma obra ainda inédita no Brasil: Como nada impede que se destaque de um texto uma sequência que não foi sobreasseverada, os locutores dos textos-fonte se encontram frequentemente como sobreasseveradores involuntários de enunciados que não proferiram como tal. Uma responsabilidade tanto mais problemática quando a análise mesmo superficial mostra que o enunciado destacado raramente é idêntico à sequência a que deveria corresponder no texto-fonte. (MAINGUENEAU, 2012, p. 19, tradução nossa2) O fenômeno da citação que emerge desse processo de retomada das sobreasseverações já foi tratado, de maneiras variadas, por consagrados estudos que versam sobre discurso relatado, discurso direto, entre outros. “Dès lors que rien n’empêche de détacher d’un texte une séquence qui n’a pas été surassertée, les locuteurs des textes sources se retrouvent constamment surasserteurs involontaires d’énoncés qu’ils n’ont pas posés comme tels. Une responsabilité d’autant plus problématique que l’examen le plus superficiel montre que l’énoncé détaché est rarement identique à la séquence à laquelle il est censé correspondre dans le texte source.”. 2 67 Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados Por isso, com o intuito de dar algum tipo de contribuição, propomo-nos pensar a configuração discursiva da retomada da sobreasseveração, a partir dos desdobramentos da Análise do Discurso (AD), que concebem: a) a língua como constitutivamente opaca e polissêmica e não como transparente; b) os sujeitos como clivados, e não unos; c) os textos como marcados pela heterogeneidade e pela alteridade constitutivas de todos os dizeres; d) a interpretação como um trabalho, já que as palavras não têm sentidos unívocos. 2 A citação: um caso de heterogeneidade mostrada Authier-Revuz (1982) fundamenta seu conceito de heterogeneidade discursiva nos estudos de Bakhtin sobre o dialogismo e na abordagem psicanalítica do sujeito. Para a autora, o discurso é heterogêneo uma vez que é “constitutivamente atravessado pelos ‘outros discursos’ e pelo ‘discurso do Outro’. O outro não é um objeto (exterior; do qual se fala) mas uma condição (constitutiva, pela qual se fala)” (AUTHIERREVUZ, 1982, p. 140). A heterogeneidade constitutiva deve-se ao fato de que o outro “é sempre onipresente e está em toda a parte” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 21). Nesse sentido, o discurso é sempre heterogêneo porque comporta, constitutivamente no seu interior, outros discursos. Graças à ilusão que o caracteriza, o sujeito discursivo julga-se fonte primeira de seu discurso. Ele tem a ilusão de que seu discurso é homogêneo, não identificando a presença do “discurso do Outro” e dos “outros discursos” na construção do “seu”. Embora a percepção da heterogeneidade constitutiva seja ignorada pelo sujeito, que não tem consciência dessa alteridade, há situações em que esta é percebida e dada a perceber. Nesses casos, por meio de marcas da presença do outro no discurso, opera-se a separação entre o que o sujeito diz e o que o outro diz. Tratase dos casos de heterogeneidade mostrada, que pode ser: i.) marcada, 68 André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites isto é, visível na materialidade linguística, como acontece com o uso das aspas nas notícias online, em que “o locutor dá lugar explicitamente ao discurso de um outro em seu próprio discurso” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12), instituindo, ao mesmo tempo, todo o restante do discurso como emanando dele próprio; ii.) não marcada, ou seja, não evidenciada na ordem do discurso, como nas situações de ironia e de discurso indireto livre. Percebemos, dessa forma, que as situações em que o sujeito constata a presença do outro em seu discurso e, mais que isso, deseja dar a conhecê-la, como nos casos de heterogeneidade mostrada, servem para confirmar mais a ilusão de que todo o restante do discurso emana dele próprio. Em outras palavras, ao mostrar que a presença do outro está em um trecho, o locutor “afirma” que os lugares não mostrados lhe pertencem. Uma das formas de mostrar (e marcar) a presença do outro em um discurso é atribuir a fala a outrem. Há notícias que são quase inteiramente construídas por relatos de fala. É o caso das notícias online que nos servem de corpus, que relatam o debate político eleitoral entre Dilma Rousseff e José Serra, veiculado pela emissora BAND, no segundo turno das eleições de 2010. Esses relatos possuem características formais específicas, conforme se trate de discurso direto (provocando um efeito de teatralização de uma enunciação), ou de discurso indireto (com efeitos de interpretação). No processo de seleção, recorte, produção e circulação da notícia, o discurso direto é um recurso bastante utilizado, uma vez que seu uso está relacionado a três necessidades da maquinaria midiática: i.) criar autenticidade, o efeito de sentido de que aquela é a exata transcrição da fala do outro; ii.) distanciar-se ou aproximar-se, na medida em que pode evidenciar uma aceitação ou recusa em relação ao dizer; iii.) mostrarse objetivo, isento (MAINGUENEAU, 2011, p.142). Em decorrência disso, o aspeamento que acompanha o discurso direto 69 Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados [...] nunca é neutro, mas implica uma tomada estratégica de posição face ao discurso relatado, resultante na aprovação do dito, na sua ridicularizarão ou na sua negação; [permite ao locutor que cita...] resguardarse, protegendo de polêmicas porque ‘foi o outro quem disse’, [ou ...] expor-se a elas, pelo enquadramento do pronunciamento alheio numa sequência textualargumentativa que lhe é sutil ou declaradamente divergente ou convergente. (BENITES, 2002, p. 61, inserção nossa) Os três aspectos levantados por Maingueneau (2011) permitem-nos observar o recurso de utilização das aspas como manobra relacionada ao uso do discurso direto, que opera “um distanciamento muito variável entre o locutor citante o locutor citado” (BENITES, 2002, p. 57). O uso do discurso direto é uma maneira hábil de dizer o que se pensa sem necessariamente se responsabilizar pelo dizer. A utilização das aspas é a forma de inserção do discurso direto mais frequente na mídia e nas notícias online, mas o recorte de um discurso pode também ser marcado pelo uso de itálico e travessão. 3 A sobreasseveração em circulação: heterogeneidade constitutiva com ares de mostrada Os conceitos de sobreasseveração e aforização, brevemente expostos anteriormente, começaram ser delineados por Maingueneau (2008) na obra “Cenas da Enunciação”, em um texto em que o autor parece estar construindo o raciocínio, elaborando a “teoria”. No último parágrafo do texto, ele chama a atenção para a distinção entre a lógica da sobreasseveração e a lógica da aforização: 70 André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites Parece-nos preferível não confundir uma lógica de sobreasseveração - que faz aparecer uma sequência sobre um fundo textual - e uma lógica de aforização (para ser exato, um destaque aforizante), que implica um tipo de enunciação totalmente diferente, uma outra figura do enunciador e do coenunciador, do estatuto pragmático do enunciado. (MAINGUENEAU, 2008, p. 92, grifos do autor) Segundo o autor, a sobreasseveração decorre do destacamento realizado pelo próprio locutor do texto-fonte, por meio de recursos coesivos, posicionais, sintetizadores ou reformuladores. Dependendo de sua circulação, esse elemento destacável pode tornar-se, posteriormente, destacado, isto é, um trecho destacado pelo autor de determinado texto pode vir a se tornar um dito ou uma frase feita. Tomemos um exemplo de nosso corpus. Em um debate com seu adversário, José Serra, ao responder uma pergunta sobre a descriminalização do aborto, a candidata Dilma Rousseff afirmou ao final de sua argumentação: “Entre prender e atender, eu fico com atender”. Como locutora do texto-fonte, a debatedora marcou esse trecho como destacável (por seu caráter generalizante e sintetizador de uma posição, e pela posição final no texto). Ao cunhar essa “pequena frase”, um enunciado de fácil circulação, ela antecipou um destacamento, e, assim, produziu uma sobreasseveração. A depender de suas condições de circulação, essa sobreasseveração poderia vir a passar de um enunciado destacável para destacado e transformar-se em uma palavra de ordem, um dito. A circulação dessa sobreasseveração traz à tona outras questões discursivas: a) em um posicionamento (aqui entendido como sinônimo de formação discursiva) ligado aos direitos das mulheres, a sobreasseveradora 71 Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados Dilma (não o sujeito empírico) da frase “Entre prender e atender, eu fico com atender” apresenta-se como alguém favorável à vida. Dessa forma, essa sobreasseveração pode ter como paráfrases: “Não se deve colocar em risco a vida da mulher”; “A mulher tem direito de optar entre ter filhos ou não e escolher o melhor momento para fazê-lo”; “O fato de o aborto ser considerado crime marginaliza a mulher, levando-a a praticar o ato sem as mínimas condições de higiene e sem assistência, o que resulta em morte”, etc.; b) em um posicionamento discursivo ligado ao campo religioso, a sobreasseveradora será vista como alguém que atenta contra a vida, pois serão evocadas questões de outro caráter, como: “Onde fica o direito à vida do bebê?”; “Quem é essa mulher desumana que não reconhece os direitos do feto, que ignora que a vida tem início na concepção?”. Maingueneau (2008, p. 83) assevera que a sobreasseveração é “muito presente nas mídias contemporâneas”, e relaciona-a ao fenômeno das pequenas frases, que ele define como “enunciados curtos que, durante um curto período de tempo, vão ser intensamente retomados nos programas de informação”. Conforme o autor, não é possível definir se essas ‘pequenas frases’ são assim porque os locutores dos textos de origem as quiseram assim, isto é, destacáveis, destinadas à retomada pelas mídias, ou se são os jornalistas que as dizem dessa forma para legitimar seu dizer. Sobre o processo de produção de uma notícia que relata falas incidem diversas ações empíricas que modificam e afastam o recorte de fala de sua fonte. Porém, na circulação discursiva das notícias, o sobreasseverador é posto assinando a fala que se destacou do texto. Essa imagem discursiva pode vir a ser assumida ou contestada, conforme o locutor-fonte concorde que ele seja aquele sobreasseverador ou afirme que não foi aquilo que falou. Trata-se, mais uma vez, de uma questão de circulação. 72 André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites É bastante comum que a autonomização da sobreasseveração frente ao texto de origem promova “uma transformação do enunciado, ou de um ou de outro de seus parâmetros enunciativos, quando ele passa ao paratexto” (MAINGUENEAU, 2008, p. 83). Mesmo nos casos em que os enunciados “mantêm um elo com um texto de origem” (os chamados destacamentos fracos), não existe, necessariamente, fidelidade do texto relatado com o discurso de origem, o que confirma os resultados dos numerosos estudos sobre o discurso direto, que mostram seu caráter de simulação e a intervenção da máquina midiático-discursiva. Essas transformações devem-se ao posicionamento do veículo e consistem, muitas vezes, em manobras de eliminação de modulações, que reforçam “a autonomia e o caráter lapidar do enunciado”, possibilitando sua sobreasseveração (MAINGUENEAU, 2008, p. 86). Essas manobras discursivas não podem ser atribuídas a um agente específico, uma vez que a produção da notícia é uma atividade conjunta. Trata-se de uma elaboração da maquinaria midiático-discursiva, grande organismo que envolve diferentes atores e processos, peças constitutivas de uma engrenagem, cada qual com uma finalidade específica na manutenção e propagação de práticas discursivas. Dessa forma, a circulação da sobreasseveração constitui um caso de heterogeneidade constitutiva que se apresenta como heterogeneidade mostrada. 4 Sobreasseverações, citações e silenciamento No funcionamento de sobreasseverações e citações, observamos que a maquinaria midiática, em suas práticas discursivas, realiza opções que ora envolvem o silenciamento de enunciados, ora submetem as sobreasseverações a manobras diversas, como inclusão, modificação, exclusão e/ou apagamento de partes do enunciado. Neste artigo, trataremos com mais vagar das manobras de apagamento e de inclusões justificadas pelas coerções da maquinaria e indiciadoras do posicionamento do veículo de comunicação. 73 Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados Partimos do princípio de que o silêncio é fundador, ou seja, que o silêncio é aquele que “existe nas palavras, que significa o não-dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar” (ORLANDI, 2010, p. 24), portanto mesmo em inclusões, alterações/ modificações e exclusões podemos falar em silenciamentos, manobras que são atreladas às retomadas de fala. É importante ressaltar que “sem considerar a historicidade do texto, os processos de construção dos efeitos de sentidos, é impossível compreender o silêncio” (ORLANDI, 2010, p. 45); só é possível observá-lo pelos efeitos que ele produz, e pelos diferentes modos de significar nesses textos, pelas falhas que ele apresenta, pelos traços e pistas deixados ao longo dos discursos. Nessa linha de raciocínio, “[...] o sentido é sempre produzido de um lugar, a partir de uma posição do sujeito – ao dizer, ele estará, necessariamente, não dizendo ‘outros’ sentidos. Isso produz um recorte necessário no sentido” (ORLANDI, 2010, p. 53), recorte que observamos como operado por uma tomada de posição, um posicionamento pelo produtor da notícia, que se apresenta em forma de retomadas de sobreasseverações nas notícias geralmente publicadas em veículos impressos e digitais. Descontextualizados, os recortes de falas que compreendem as notícias online podem assumir sentidos diferentes, ser utilizados como mecanismos de produção de sentidos. Alguns mecanismos frasais são lembrados por Orlandi (2010) como os responsáveis por atribuir ao silêncio uma identidade positiva. A autora elenca a elipse, a reticência, a descontinuidade temática, a subdeterminação semântica e a preterição. Acrescentamos a essa lista aqueles que se relacionam de perto à retomada das sobreasseverações, com destaque ao aspeamento que produz no texto um efeito de verdade nas sobreasseverações fortes, em que o leitor não tem acesso ao texto fonte. O uso das aspas em textos sobreasseverados atribui pelo menos dois sentidos diferentes: o efeito de recorte literal de um texto fonte e o de distanciamento em torno do que é dito. Maingueneau (2008, p. 91) reforça essa ideia ao afirmar que 74 André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites a sobreasseveração, qualquer que seja a modalidade, implica uma figura de enunciador que não apenas diz, mas que mostra que diz o que diz, e presume-se que o que ele diz condensa uma mensagem forte, induz a uma tomada de posição exemplar. A sobreasseveração estabelece uma asserção que leva a uma responsabilidade diante do mundo. A utilização das aspas que proporciona o silenciamento e a produção de sentidos se apresenta como mecanismo que afasta o apagamento de imparcialidade em relação à notícia veiculada. Atribuir o dizer ao outro é um procedimento muito recorrente em textos da maquinaria midiática, como podemos perceber nas notícias online de nosso corpus e na maior parte de revistas e jornais em circulação. A sobreasseveração vinculada à maquinaria de produção de notícia online manifesta/operacionaliza mecanismos de silenciamento, o que evidencia a incompletude constitutiva da linguagem. Por isso, para se compreender o funcionamento das sobreasseverações retomadas em citações nas notícias online, também é necessário compreender o silêncio, atribuindo-lhe estatuto de sentido, presente tanto na ausência quanto na presença de palavras, no distanciamento de sua fonte de origem, no dito e no não-dito dos discursos, o que nos permite observar a sobreasseveração também em seu caráter histórico. Os movimentos da seleção, do recorte e da circulação a que as sobreasseverações são submetidas contemplam sentidos envoltos em silêncio: ao mesmo tempo em que a alteração de um enunciado marca um posicionamento, também silencia posicionamentos diferentes, contrastantes, inadequados, desnecessários. 75 Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados 5 Manobras da maquinaria midiática na produção de notícias online 5.1 Silenciamento: omissão/exclusão de sentidos Levantamos neste trabalho a discussão em torno do funcionamento do silenciamento como prática da maquinaria de produção de notícia online. Para que um jornal selecione um recorte do debate televisivo e o coloque em evidência nas notícias, deve operar um movimento pragmático de escolha daquilo que convém ao jornal ser evidenciado, são as coerções da máquina midiática. Uma das características bastante recorrentes no processo que compreende a saída da sobreasseveração para figurar na composição de notícias online em forma de citação se dá pela omissão ou exclusão de palavras. A própria seleção de uma porção da fala de atores políticos no debate político-televisivo já opera o apagamento de um contexto maior, de uma porção maior de texto, de um sentido mais amplo. Esse apagamento pode se evidenciar por uma exclusão, uma ação de “jogar para fora” da notícia aquilo que não convém ou não pode ser dito, característica essa relacionada com o movimento pragmático de retirar da fala do ator político aquilo que não pode ser dito dentro da notícia daquele veículo de informação. Essas ações cumprem um papel pragmático-discursivo de adequação ao posicionamento, de escolha, de recorte, de pôr em evidência um e não outro enunciado. Vejamos alguns exemplos em que esses apagamentos se processam: (1) José Serra: você disse com clareza no debate na FOLHA, na UOL, que era a favor da liberação do aborto, depois diz o contrário. (BAND) UOL: Na questão do aborto, você disse isso no debate da Folha, no UOL, que era a favor do aborto. 76 André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites (2) Dilma Rousseff: E aí o que aconteceu, há hoje uma denúncia em que você, o Juiz te denunciou e você hoje é réu por calúnia, pelo crime de calúnia e difamação. (BAND) Veja: “Você precisa ter cuidado para não ter mil caras, está sendo processado por calúnia.” No exemplo da retomada da fala elaborada por UOL, em (1), podemos observar que há o apagamento da sequência “depois diz o contrário”, que se refere a Dilma, em forma de crítica, por ela não se posicionar claramente em relação ao aborto. Reconhecemos que as notícias sofrem coerções de conteúdos, muitas vezes devido à velocidade entre o acontecimento e sua publicização na web, que pode acabar impondo cortes a fim de, rapidamente, por a notícia em circulação. Contudo, é difícil acreditar que esse apagamento ocorra por acaso ou se deva às coerções do gênero relacionadas ao trabalho do jornalista propriamente dito. Quando o site retoma a fala de Serra, ao dizer que Dilma Rousseff é a favor do aborto, e omite “depois diz o contrário”, parece-nos que esse apagamento deixa de comprometer a candidata como uma pessoa que se diz a favor em um momento e contra em outro. Assim, não caracteriza Dilma como contraditória, sentido produzido pela fala de José Serra. Para todo político, é muito importante ter uma posição que não evidencie desvios de conduta, de moral; o ethos de “virtude” (CHARAUDEAU, 2006, p. 122) seria abalado se a candidata se posicionasse de formas diferentes, em momentos diferentes. Em (2), também se opera um apagamento quando VEJA exclui da lista de crimes de Serra, levantados por Dilma, a “difamação”. Em termos jurídicos há diferença entre calúnia e difamação. Embora ambas estejam muito próximas, de acordo com Gonçalves (1999), a calúnia consiste em atribuir, falsamente, a uma pessoa a prática de um ato criminoso. Já 77 Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados a difamação consiste em atribuir a alguém um fato que seja desonroso, que ofenda a reputação de alguém. Nesse sentido, os apagamentos de “difamação” e do autor da denúncia, o Juiz, provocam relevantes efeitos de sentido, por dois motivos: porque “difamação” e “calúnia” são termos jurídicos que não representam um único tipo de crime; porque ser acusado por calúnia e difamação por seu oponente político poderia ser, de certa forma, aceitável dentro de uma disputa política. Mas, ser acusado por um Juiz tem um peso maior, em termos de argumentação, se pensarmos que o Juiz, autoridade em direito, conhecedor das leis, é quem irá julgar o candidato que teria caluniado e difamado outrem. Aparentemente, ser denunciado por um Juiz implica estar direcionado à condenação. Esses sentidos, apagados pelos recortes operados por VEJA, parecem coadunar-se com a posição política da revista. O apagamento que levantamos neste tópico não diz respeito somente a exclusões de trechos ou palavras. As retomadas das sobreasseverações, em forma de citações, em si já são evidências de silenciamentos que produzem sentidos. O processo de destextualização já é, em parte, responsável por esse apagamento, pois quem seleciona um texto o faz de um lugar discursivo, para expor aquilo que convém a seu posicionamento. A manobra de apagamento operacionaliza, ainda, outros mecanismos de silenciamento, como podemos observar nos exemplos (1) e (2), em que há o apagamento de trechos ou de palavras, o que nos permite compreender que o silêncio funciona de maneiras diferentes nos diferentes processos de recorte, seleção e circulação de discursos. A manobra de omitir ou de apagar parte ou partes do texto destacado está presente em quase todos os exemplos levantados no corpus. São mais do que adequações entre as modalidades da fala e da escrita, indo além do uso do discurso direto e das aspas. Como foi possível observar nos exemplos (1) e (2), essas retomadas de fala são tomadas de posição que, pelo uso dessas manobras, operam um direcionamento pragmático de sentidos dentro do texto. 78 André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites 5.2 Ampliação ou inclusão de informações Por ampliação compreendemos uma ação metadiscursiva que resulta em amplificação de sentido, isto é, o dizer é intensificado a ponto de alterar o sentido do discurso. Essa é uma manobra que tem a intenção de chamar a atenção ou direcionar a compreensão do interlocutor, o leitor. Vejamos o exemplo a seguir: (3) Dilma Rousseff: Você [Serra] regulamentou, até eu concordo com a regulamentação, porque eu sou contra tratar a questão das mulheres, das duas mulheres que morrem por dia, ou um dia sim um dia não, por aborto, como uma questão de polícia. (BAND, grifos nossos) Carta Capital: Desde o início da polêmica, Serra vem dizendo que Dilma defende o aborto, mas a candidata insistiu e mostrou que ela defende é que ele deixe de ser considerado crime, pois coloca milhares de mulheres pobres sob risco de morte. “Concordo com a regulamentação (feita por Serra, em 1988). São milhares de mulheres que praticam aborto em condições precárias (a cada ano).” (grifos nossos) Em relação aos grifos, no exemplo (3) podemos observar que a fala de Dilma Rousseff no debate da BAND traz à luz a discussão em torno das mulheres que morrem por praticarem abortos. Em seu discurso, a candidata afirma que são “duas mulheres que morrem por dia” em consequência do aborto. Em seguida, especifica que essas mortes ocorrem “um dia sim um dia não”. Mesmo parecendo contraditório, ela menciona em sua fala que são duas mulheres que morrem por dia ou ainda que duas mulheres morrem em um dia e no outro não morre nenhuma, e assim sucessivamente. Na notícia online, CARTA CAPITAL informa ao leitor que são “milhares de mulheres que praticam aborto”. Nessa 79 Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados alteração enunciativa, ocorre uma ampliação de uma ou duas “mulheres que morrem por dia”, na fala de Dilma, para “milhares” no relato de CARTA CAPITAL. O referente também é modificado, deixando de ser “mulheres que morrem” e passando a ser “mulheres que praticam aborto”, mudança que certamente resulta em um número bem maior. Essa mudança de sujeitos dá maior amplitude ao problema do aborto porque evidencia outros índices, altera a informação apresentada pela candidata, sem deixar de responsabilizá-la pela fala. As aspas cumprem esse papel de atribuir a Dilma o dizer. A ampliação aí ocorrida é notável. Se fizermos um cálculo da quantidade de mulheres a que Dilma se refere, duas, não chegaremos ao total de “milhares” de CARTA CAPITAL. Ainda que considerássemos duas mulheres, dia sim e dia não, ou mesmo duas diariamente não chegaríamos sequer a um milhar, quantidade distante da apresentada pela revista. Há neste exemplo pelo menos três manobras discursivas, funcionando simultaneamente: • a de ampliação do referente, uma vez que há uma diferença quantitativa em relação aos referentes dos dois discursos; • a de alteração da mensagem informada, que pode remeter a um outro dado estatístico, uma vez que CARTA CAPITAL não traz a quantidade de mulheres que morrem por causa do aborto, e sim a quantidade de mulheres que praticam o aborto; • o uso das aspas para marcar o discurso direto, isentando a revista da responsabilidade sobre o que é dito. Essa relação entre a quantidade de pessoas que praticam o aborto e a quantidade de pessoas que morrem por praticá-lo não nos parece 80 André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites simétrica (todas as mulheres que praticam aborto morrem?). Mas, a informação da revista pode direcionar o leitor à interpretação de que todas as mulheres que praticam o aborto, em situações precárias, morrem. O emprego do verbo “praticar” denota certa recorrência e liberdade em relação à escolha de abortar ou não, ao mesmo tempo em que evidencia uma repetição dessa prática na sociedade. Durante toda sua campanha, Dilma sofreu muitas críticas relacionadas a essa temática. Por esse motivo, o verbo “praticar”, de certa forma, retoma o sentido de facilitação ao procedimento de aborto que faz parte da memória do eleitorado, assim como o sentido envolto ao discurso de aceitação por parte da candidata que se mostra, na fala, favorável à regulamentação dessa prática. “Praticar” é um verbo de ação e, inserido dentro do discurso de Dilma, como foi possível observar em (3), evidencia em CARTA CAPITAL um sujeito que deixa de ser passivo, alguém que sofre por causa do aborto, e passa a ser ativo, que “pratica” a ação. Transformase numa relação de causa (apontada por Carta Capital) a consequência (apresentada por Dilma Rousseff), evidenciada, respectivamente, por uma contradição entre um sofrer (a morte) e um agir em relação ao aborto. A fala de Dilma possibilita a interpretação de que a mulher sofre por consequência do aborto; já em CARTA CAPITAL a mulher é a responsável pelo aborto porque é ela quem o pratica. A amplificação dos dados dá outra dimensão ao problema, intensifica-o de tal modo que a situação sai de duas por ano, como exposto na fala de Dilma, para milhares ao ano, na notícia da revista. Da mesma forma que ampliaram o referente em (3), também os veículos inserem informações que vão além de adequação entre as modalidades falada e escrita. No mesmo exemplo, podemos observar na fala da candidata que as mulheres que morrem por aborto não são especificadas, (trata-se simplesmente “das mulheres que morrem”). CARTA CAPITAL inclui o adjetivo “pobres” à informação, afastando 81 Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados a possibilidade de mulheres ricas ou mulheres de outra classe social também correrem esse risco. O sentido da fala de Dilma é alterado por essa informação que delimita e especifica quem são as mulheres que morrem por consequência do aborto. No decorrer da pesquisa, percebemos diversos indícios de que CARTA CAPITAL tendeu em favor da eleição de Dilma Rousseff. Nesse sentido, vemos que a especificação das mulheres por CARTA CAPITAL está relacionada ao discurso do PT, voltado aos mais pobres, ou seja, ao posicionamento político do jornal. Considerações finais Foi possível observar no decorrer das reflexões aqui empreendidas que a retomada de enunciados sobreasseverados é parte do mecanismo de uma sofisticada, complexa e heterogênea maquinaria midiáticodiscursiva, que produz e põe em circulação notícias online. Ocorre, nesse processo, a articulação do conceito de sobreasseveração com novas e antigas problemáticas, tais como a heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade mostrada, o discurso relatado, o silenciamento e as aforizações. Todos esses elementos estão envolvidos no processo de seleção, recorte, produção e circulação da notícia, e exercem um importante papel no efeito de autenticidade, distanciamento ou aproximação do dizer e na objetividade pretendida pela maquinaria midiática. Observamos que tanto manobras que silenciam e excluem quanto manobras que ampliam o dizer sobreasseverado pelos candidatos são comuns e recorrentes na composição das notícias e indispensáveis para compreender o funcionamento das notícias online construídas sobre relatos de fala. Acreditamos ter deixado claro que as manobras discursivas que incidem sobre a construção da notícia online estão ancoradas na contínua retomada de dizeres que envolve as heterogeneidades constitutiva 82 André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites e mostrada. As alterações nas retomadas de sobreasseverações que compõem as notícias online se manifestam como manobras discursivas dessa sofisticada maquinaria midiática que envolve o complexo processo de produção onde intervêm fatores e atores diversos. Referências AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneité Montrée et Heterogeneité Constituvive: élements pour une approache de l’autre dans le discours. DRLAV Revue de linguistique. Paris, Centre de Recherche de l’Université de Paris VIII, 26, 1982. __________. Heterogeneidade(s) Enunciativas. Trad. Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi. Cadernos de Estudos Linguísticos, n. 19, p. 25-42, Jul/dez, 1990. __________. Entre a Transparência e a Opacidade. 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São Paulo: Annablube; FAPESP, 2011. 84 GENRES ET GRAMMAIRE DANS L’ARTICLE PREMIER DE LA DÉCLARATION UNIVERSELLE DES DROITS DE L’HOMME Simon Bouquet Université Paris Ouest - C.N.R.S. ITEM – C.N.R.S. MoDyCo A quoi aspirent les innombrables et différentes cultures? Elles aspirent, à partir des données largement différentes de leur expérience historique, anthropologique si l’on veut, elles aspirent à quelque chose, vous l’appelez transcendance, c’est un terme qui me convient tout à fait. C’est l’aspiration vers qui me parait la chose à détecter. (Stéphane Hessel (in Bouquet et Hessel, 2012) Il y faut mieux qu’une connaissance. Il y faut une poétique de cela qui advient sans cesse autour de nous. Edouard Glissant et Patrice Chamoiseau, L’intraitable beauté du monde. RESUMO Este artigo inicialmente apresenta de forma sucinta a epistemologia néo-saussuriana, que se pode designar como uma linguística da interpretação, fundada principalmente com base no manuscrito Da dupla essência da linguagem de Ferdinand de Saussure. Em seguida, aplicase essa epistemologia a uma análise semântica do artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos. © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 85-118, jan./jun. 2014 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS RÉSUMÉ Cet article présente succinctement l’épistémologie néo-saussurienne de ce qu’on peut appeler une linguistique de l’interprétation – fondée notamment sur le manuscrit retrouvé De l’essence double du langage de Ferdinand de Saussure – et l’application de cette épistémologie à l’analyse sémantique partielle de l’article premier de la Déclaration universelle des droits de l’homme. PALAVRAS-CHAVE epistemologia néo-saussuriana; linguística da interpretação e Declaração Universal dos Direitos Humanos. MOTS-CLÉS épistémologie néo-saussurienne; linguistique de l’interprétation et Déclaration universelle des droits de l’homme. Introduction Notre propos, ici, est de montrer comment l’épistémologie saussurienne – ou, pour mieux dire, l’épistémologie néo-saussurienne – est un cadre permettant l’analyse de la relation entre genres et grammaire. Néo-saussurienne, cette épistémologie n’est pas fondée sur le Cours de linguistique générale mais sur les textes saussuriens originaux1. Elle s’oppose d’ailleurs diamétralement au célèbre Cours, en postulant trois thèses liées: (1) la thèse que la description des objets de langue est intégralement concevable sur une base sémiotique2; (2) la thèse que cette base sémiotique peut être étendue à la description des objets de parole ; (3) la thèse que l’objet essentiel de la linguistique peut être vu, sur cette double base, comme la description de l’articulation inséparable des objets de Notamment De l’essence double du langage (in Saussure, 2002) Cette thèse, regardant la phonologie et la syntaxe, n’est pas postulée par le Cours, contrairement aux textes originaux. 1 2 86 Simon Bouquet langue et des objets de parole3. Une telle compréhension de la perspective scientifique saussurienne, ayant pour conséquence de dessiner les lignes d’une refondation herméneutique de la science du langage, y projette aussi l’épistémologie d’une linguistique des genres. Dans une première partie, nous exposerons cette épistémologie en la résumant dans un ensemble de principes qui la sous-tend4. Dans un second temps, nous illustrerons son application à l’analyse sémantique partielle de l’article premier de la Déclaration universelle des droits de l’homme (1948). 1 Une épistémologie néo-saussurienne pour une linguistique des genres 1.1 Principe de scientificité Le principe de scientificité, déterminant le caractère proprement épistémologique du programme saussurien, est simple: il postule que la linguistique est une science exacte. En cela, elle doit satisfaire aux critères de scientificité qui sont ceux des sciences exactes: (1) la littéralisation (désignation algébrique de ses objets); (2) la formalisation (écriture formelle de ses lois); (3) la falsifiabilité (caractère réfutable de ces lois). C’est en analysant comment la grammaire comparée – science du son – satisfait à ces trois critères généraux, et en étendant ceux-ci à une linguistique du sens, que Saussure pose ce principe de scientificité, dont le critère de littéralisation est garanti par un principe distinct: le principe de différentialité (cf. infra, 1.6.). Cette troisième thèse est énoncée ainsi dans De l’essence double du langage: «Sémiologie = morphologie, grammaire, syntaxe, synonymie, rhétorique, stylistique, lexicologie, etc., le tout étant inséparable» (Saussure, 2002, p. 45). Elle contredit le postulat, fameux mais apocryphe, concluant le Cours de linguistique générale: «La linguistique a pour unique et véritable objet la langue envisagée en elle-même et pour elle-même». 4 Pour un exposé plus détaillé des présents principes, cf. Bouquet, 2012. 3 87 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS 1.2 Principe d’empiricité Science exacte, la linguistique s’applique nécessairement à un objet empirique. En tant que tel, cet objet devra: (1) s’inscrire dans un dispositif d’observation au sein d’une triade observateur/observatoire/ objet observable; (2) être doté de coordonnées spatio-temporelles. L’audace de l’épistémologie saussurienne est de postuler un tel principe, connexe au principe de scientificité, relativement à un objet d’esprit5. Ce principe d’empiricité est opérant car le dispositif d’observation propre à la linguistique est le suivant: (a) l’observateur est un sujet parlant – ou, plus précisément, l’esprit d’un sujet parlant –; (b) l’observatoire est, semblablement, l’esprit de ce sujet parlant – doué de sa compétence de locuteur d’une langue, ainsi que de l’aptitude, pouvant être dite métalinguistique, à observer un fait langagier –; (c) l’objet observable est une séquence de langage, prenant également place, à fin d’observation, dans l’esprit de ce sujet parlant. Quant aux coordonnées spatiotemporelles assignables à la séquence de langage analysée – c’est-à-dire quant à l’attestation du fait actuel de l’existence spatio-temporelle de cette séquence de langage – elles ne peuvent être rapportées qu’à l’évènement de son interprétation6 (par opposition à l’événement de la production de cette séquence – largement opaque au dispositif d’observation décrit, regardant les unités de signifié). C’est d’un tel dispositif et de telles coordonnées spatio-temporelles que relève l’observation d’une séquence de langage analysée, par exemple, dans une publication scientifique de C’est parce qu’elle définit comme objet d’esprit le phonème – unité bien identifiable du signifiant et objet d’une science exacte (la grammaire comparée) – et parce qu’elle conçoit, au plan du sens, les unités du signifié comme relevant de correspondances terme à terme avec des compositions d’unités de signifiant, que cette épistémologie, déliant l’analyse du sens de toute référence à un référent tiers, peut postuler qu’un objet d’esprit est passible d’une science exacte. – Dans la terminologie de son époque, Saussure qualifie l’objet de la linguistique comme «un objet de nature concrète bien que purement spirituel» (CLG/E 1.44.263, cours de linguistique générale de 1910-1911 – Saussure 1968, p. 44) 6 Interprétation doit s’entendre ici dans son sens technique en linguistique : comme désignant le fait immédiat de la compréhension (par opposition à la non-compréhension) – fait dont répond par ailleurs le principe de sémioticité (cf. infra). 5 88 Simon Bouquet linguistique: cette séquence existe d’abord dans l’esprit de l’auteur de cette publication; ultérieurement, elle existe dans l’esprit de chacun de ses lecteurs. On pourrait juger cette caractérisation du dispositif trop générale car valant pour toutes les sciences; elle s’avère pourtant spécifique sur un point déterminant: dans la généralité des sciences exactes, l’objet observé par l’esprit de l’observateur existe aussi hors de l’espace de l’esprit; ce n’est pas le cas en linguistique. Le principe d’empiricité ainsi défini implique que l’analyse est reproductible. Et que la linguistique qui l’adopte est par définition une linguistique de l’interprétation. 1.3 Principe de sémioticité Le principe de sémioticité, définissant la nature des objets observables, permet leur identification et leur classification. Selon ce principe, les objets observables sont exclusivement des signes. La notion de «signe» désigne la conjonction de deux éléments distincts: un signifiant et un signifié – cette définition d’un signe biface est donnée par Saussure relativement à la langue; elle se laisse étendre à la parole (cf. infra, 1.5. Principe d’herméneuticité). Les signes sont stabilisés par leur appartenance à un système; celui-ci est saisi par le point de vue synchronique, considérant la coexistence, dans l’esprit d’un sujet parlant, de tous les signes (actuels ou virtuels) ressortissant à la compétence linguistique de ce sujet7. Homogènes quant à leur caractère biface et quant à leur caractère compositionnel (cf. infra, 1.4.) les signes de langue appartiennent à trois espèces compositionnelles : celle du phonème (unité minimale de signifiant) et de ses composés ; celle du morphème (unité minimale de signifié) et de ses composés; celle de la position syntaxique et de ses composés8. Ces trois espèces englobent l’intégralité des objets pouvant 7 La langue est «un système de signes totalement indépendant de ce qui l’a préparé et tel qu’il existe dans l’esprit des sujets parlants» (De l’essence double… in Saussure, 2002, p. 43) 8 Dressant la liste de «toute espèce de signe existant dans le langage», Saussure écrit: «1° le signe vocal de tout ordre: signe complet tel qu’un mot, ou un pronom, signe complémentaire comme 89 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS être décrits par des grammaires de langue. Ainsi toute grammaire de langue est-elle une grammaire sémiotique9. (La pertinence d’une description sémiotique de la langue est confirmée par le fait que l’espèce compositionnelle des signes se combine avec leur mode de signification dans la typologie fondamentale icône/indice/symbole de C. S. Peirce. Ainsi, par exemple, des valeurs de sens prises par des phonèmes, dans la poésie par exemple, relèvent-elles de l’iconicité ; ainsi, la catégorie grammaticale générale de l’anaphore correspond-elle à une indexicalité intra-segmentale, et la catégorie de la deixis à une indexicalité extrasegmentale.) 1.4 Principe de compositionalité Le principe de compositionalité pose que la linéarité d’une séquence de langage, analysée comme la composition de signifiants de langue, conjugue deux types d’articulation: (1) une articulation interne à chacune des trois espèces compositionnelles (phonème, morphème, position syntaxique) – articulation dans laquelle, semblablement, les unités sémiotiques minimales de chaque espèce compositionnelle se composent en plexus d’unités de la même espèce (ainsi, au palier phonologique, l’unité phonème se compose dans le plexus syllabe qui se compose lui-même dans le plexus polysyllabe; au palier morphologique, l’unité morphème se compose dans des plexus polymorphémiques; au palier syntaxique, le principe chomskyen de «fusion» n’est autre que celui de la composition d’unités sémiotiques syntaxiques dans des plexus sémiotiques syntaxiques); un suffixe ou une racine, signe dénué de toute signification complète ni complémentaire comme un “son” déterminé de langue ; ou [2°] signe non vocal comme “le fait de placer tel signe devant tel autre” (…)» (De l’essence double… in Saussure, 2002, p. 48). Cette conception d’une sémioticité transversale aux niveaux phonologique, morphologique, lexicologique et syntaxique a échappé aux rédacteurs du Cours de linguistique générale. 9 «Grammatical = significatif = ressortissant à un système de signes = synchronique ipso facto» (CLG/E 1.304.2128, cours de linguistique générale de 1909-10 – Saussure 1968, p. 304). 90 Simon Bouquet (2) une articulation des espèces compositionnelles entre elles – articulation dans laquelle les plexus maximaux de chaque espèce compositionnelle constituent l’unité minimale du palier compositionnel supérieur (ainsi: un plexus maximal de phonèmes constitue l’unité minimale du palier du morphème; un plexus maximal de morphèmes constitue l’unité minimale du palier de la position syntaxique). 1.5 Principe d’herméneuticité Pour autant, l’interprétation d’une séquence de langage par un sujet parlant n’est pas le simple produit d’une computation ressortissant au principe de compositionalité. L’interprétation linguistique – et donc sa description par une linguistique de l’interprétation – fait intervenir un autre principe: le principe d’herméneuticité. Ce principe stipule que, dans toute séquence de langage, la valeur des signes de langue (phonèmes, morphèmes, positions syntaxiques) est déterminée par la valeur d’un signe global (ou «signe de parole») attaché à la totalité de cette séquence – le signifié de ce signe global devant s’entendre non comme la somme des signifiés de langue de la séquence de langage analysée, mais comme un (ou plusieurs) trait(s) de sens spécifique(s) s’étendant à l’intégralité de cette séquence. Le terme de genre – bien établi dans les traditions de la rhétorique et de la théorie littéraire – est précisément employé par Schleiermacher pour désigner l’objet «globalité» dans la détermination du local par le global. Il peut s’entendre, regardant une linguistique de l’interprétation, dans une acception très générale: comme une appellation intuitive pour désigner un détermination globale du sens – sous forme de traits globaux de sens – ainsi qu’on l’a défini, pouvant être posé relativement à tout texte écrit ou oral. De fait, la notion de «signe global» correspond aussi assez bien à ce que Wittgenstein désigne comme jeux de langage (en postulant un primat de ces derniers sur la détermination logique du sens). A ces notions philosophiques et de théorie littéraire font écho des objets conceptuels plus ou moins intuitifs, familiers à diverses approches 91 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS d’analyse textuelle ou discursive contemporaines, mais souffrant d’un déficit épistémologique: discours, type, mode, champ générique, sousgenre, registre, domaine, niveau, isotopie, thème, etc. L’innovation épistémologique néo-saussurienne, en l’occurrence, consiste à reconcevoir dans une logique sémiotique le thème herméneutique de la détermination du local par le global. Une telle reconception sémiotique donne forme à l’articulation inséparable, requise par Saussure, de la linguistique de la langue et de la linguistique de la parole: en posant la notion de «signe global», il devient possible de traiter les signifiés de langue et les signifiés de parole selon une grammaire homogène (cf. infra, 1.6. Principe de différentialité) et, partant, de formuler des lois qui décrivent le sens, satisfaisant au principe de scientificité (cf. infra, 1.7. Protocole méthodologique). 1.6 Principe de différentialité Du postulat de la coexistence synchronique des signes dans l’esprit des sujets parlants, Saussure tire pour conséquence une thèse ontologique qui a marqué l’histoire des sciences humaines: les signes du langage n’ont pas d’identité propre; interdépendants au sein d’un système, ce sont des entités purement différentielles. Le principe épistémologique de différentialité est l’expression de cette thèse. Il stipule que la valeur des signes linguistiques peut être désignée sur la seule base de cette différence et de cette interdépendance systémique.10 Ce principe de différentialité suffit à poser un critère de littéralisation – premier critère du principe de scientificité – propre à la linguistique: la littéralisation (ou grammaire) de la valeur des signes sera la littéralisation de leur différence. (Cette littéralisation prendra, par définition, la forme d’une algèbre du type suivant: soit un corpus de signes a, b, c, d; la valeur du 10 «Les objets [que la linguistique] a devant elle n’ont jamais de réalité en soi, ou à part des autres objets à considérer; n’ont absolument aucun substratum à leur existence hors de leur différence ou en DES différences de toute espèce que l’esprit trouve moyen d’attacher à LA différence fondamentale (…)» (De l’essence double… in Saussure, 2002, p. 65) 92 Simon Bouquet signe a dans le corpus est littéralisée11: {~b, ~c, ~d}; celle du signe b: {~a, ~c, ~d}, etc. – ce principe s’appliquant en général, à un type de signes, ou à toute sous-catégorie ou corpus de signes.). En cela que cette littéralisation s’étend aux signes de langue et aux signes de parole de manière homogène – c’est-à-dire: sous une forme algébrique homogène –ce principe de différentialité sous-tend également la possibilité de l’écriture formelle de lois – conformément au deuxième critère du principe de scientificité –, ces lois conjuguant inséparablement, en l’occurrence, le point de vue d’une linguistique de la langue et celui d’une linguistique de la parole (cf. infra, Protocole méthodologique). 1.7 Protocole méthodologique (principe de légalité) Aux principes épistémologiques qui ont été énumérés, répond un protocole méthodologique, définissant la forme générale que prendront les lois d’une linguistique de l’interprétation. Ce principe de légalité peut s’énoncer ainsi: pour décrire le sens d’une séquence de langage quelconque, la linguistique de l’interprétation opposera cette séquence à une séquence homonyme et décrira, sous la forme de lois littéralisées et formalisées, les corrélations entre niveau sémiotique global et niveau sémiotique local, spécifiques à chacune de ces deux séquences homonymes et déterminant leur différence d’interprétation. 12 Le signe ‘~’ signifie ici «n’est pas». Concrètement, l’écriture d’une loi de corrélation dans ce cadre méthodologique suppose un corpus d’interprétation et un corpus de grammaires. Le corpus d’interprétation est composé des deux séquences de langage homonymes (c’est-à-dire: de deux séquences auxquelles un sujet-interprète reconnait, pour un même signifiant, deux sens différents – le rôle joué par l’homonymie tient ici essentiellement au fait que, la loi de corrélation posant, au plan du signifié global et du signifié local, une corrélation de deux variables, cette loi requiert l’assise d’une constante: c’est, au plan du signifiant, le segment phonologique, fondement de l’homonymie, qui remplit cette fonction). Le corpus de grammaires (autrement dit: de littéralisations différentielles ad hoc) comprend: (a) une grammaire différentielle de la valeur dans ce corpus d’interprétation des signifiés locaux variant pour chacune des deux séquences; (b) une grammaire différentielle de la valeur dans ce corpus d’interprétation des signifiés globaux de ces deux séquences. Sur ces bases, seront opérées les littéralisations et les formalisations suivantes. Soient deux séquences de langage homonymes [SQ1] et [SQ2]; autrement dit, deux segments phonologiques (notés [SgPHO]) interprétés comme phonologiquement identiques: [SgPHO(SQ1)] = [SgPHO(SQ2)], et dont le sens (noté [Sé]), conçu selon un simple jugement de différence, est interprété comme non identique: [Sé(SQ1)] ≠ [Sé(SQ2)]. Soit le signifié global (noté [SéGL]) de 11 12 93 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Le caractère réfutable des lois ainsi définies – troisième critère du principe de scientificité – tient à des tests qui peuvent être réalisés par (sur) des sujets parlants. Ces tests impliquent: (1) un jugement de différence portant sur le sens global des deux séquences considérées (test propre à confirmer que les littéralisations grammaticales du signe global ont un objet réel); (2) un jugement d’acceptabilité relatif à des procédures de substitution mettant en évidence les sens différentiels des signes locaux analysés dans chacune des séquences (test confirmant que les grammaires littéralisant ces sens différentiels ont un objet réel). On peut tenir que ce protocole méthodologique permet la description du sens la plus fine possible, et qu’en cela il confirme l’efficace des principes épistémologiques d’une linguistique néo-saussurienne de l’interprétation et sa valeur de modèle épistémologique pour une linguistique des genres. 2 Analyse semantique partielle de l’article premier de la Déclaration universelle des droits de l’homme13 La Déclaration universelle des droits de l’homme (ci-après DUDH) est un objet d’analyse particulièrement digne d’intérêt, pour deux raisons liées: 1° c’est un texte constituant14 par excellence, qui crée en outre un genre singulier (en cela même qu’il se présente – par son titre et par chacune de ces deux séquences, représenté par un trait différentiel (TrSéGL…): [SéGL(SQ1)] ≠ [SéGL(SQ2)]; [TrSéGL(SQ1): +X] / [TrSéGL(SQ2): -X]. Soit le signifié d’un signe local (noté [SéLOs]), dont le signifiant appartient à l’homonymie de ces deux textes (phonème(s) – exceptionnellement –, morphème, plexus de morphèmes ou structure syntaxique); ce signifié, affecté d’une variation dans chacune des deux séquences, sera représenté par un trait différentiel (TrSéLOs…): [SéLOs(SQ1)] ≠ [SéLOs(SQ2)]; [TrSéLOs(SQ1): +a] / [TrSéLOs(SQ2): -a]. La loi d’interprétation consistera à établir simultanément les deux corrélations suivantes: [TrSéGL(SQ1): +X] => [TrSéLOs(SQ1): +a] /[TrSéGL(SQ2): -X] => [TrSéLOs(SQ2): -a]. 13 Cette section reprend les éléments d’un article paru dans un ouvrage collectif sous la direction de D. Leeman (Leeman, 2011). Je remercie Danielle Leeman pour ses conseils amicaux lors de l’écriture de cette section. 14 Sur la notion de «discours constituant», cf. Cossuta et Maingueneau, 1995. 94 Simon Bouquet sa forme générale – comme un texte juridique, tout en se définissant, dans son préambule, de manière fort peu juridique comme «un idéal commun à atteindre progressivement»15); 2° son universalité fait l’objet de controverses quelque peu enlisées depuis des décennies (la question irrésolue étant: «La Déclaration de 1948 peut-elle, en elle-même, être tenue pour un texte universel; ou: ne le peut-elle pas, en cela qu’elle est inscrite dans une tradition de pensée marquée du sceau de l’Occident?»)16. Or, c’est précisément sur la base de ces deux particularités que peut se fonder une analyse interprétative différentielle, qui procèdera de l’hypothèse suivante: si l’argumentation théorique de l’universalité semble souvent vouée à une impasse, c’est parce que cette argumentation ne tient généralement compte 1° ni du fait sémantique que la DUDH se comprend différemment selon qu’on la lit comme un texte légal ou comme un texte éthique, 2° ni du fait sémantique que la DUDH peut également se comprendre différemment dans des contextes culturels divers. 2.1 La DUDH dans les genres «légal» et «éthique»: sémantique des verbes de l’article premier L’analyse interprétative, on l’a dit, consiste à établir des corrélations entre des signifiés globaux différentiels (signifiés de genres) et des signifiés locaux (signifiés attachés, en l’occurrence, à des morphèmes) variant dans chacun des genres concernés. On appliquera cette méthode à l’article 1 de la DUDH: [Première proposition] Tous les êtres humains naissent libres et égaux en dignité et en droits. [Deuxième proposition] Ils sont doués de raison et de conscience [Troisième proposition] et doivent agir les uns envers les autres dans un esprit de fraternité. «L’Assemblée Générale proclame la présente Déclaration universelle des droits de l’homme comme l’idéal commun à atteindre par tous les peuples et toutes les nations (…) [pour que ceuxci s’efforcent] d’en assurer par des mesures progressives (…) la reconnaissance et l’application universelles et effectives (…)» (DUDH, Préambule) 16 Cf. Bouquet, 2011. 15 95 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Une analyse complète de cet article montrerait que verbes, noms et adjectifs font l’objet d’actualisations sémantiques distinctes dans les genres «loi» et «éthique». La place manquant pour développer une telle analyse, on se contentera de l’illustrer tout d’abord sur le verbe naissent, puis sur les autres verbes conjugués de cet article 1, dont on examinera successivement la valeur du morphème de conjugaison (présent de l’indicatif) dite encore valeur flexionnelle, et la valeur du morphème radical, dite ici valeur lexicale. 2.1.1 Signifiés globaux On posera donc formellement, correspondant à la séquence des mots de l’article 1, l’existence de deux textes homonymes: 1° un texte légal, dont le signifié global sera noté par le trait [+LOI] (notation différentielle équivalant au trait [– ETHIQUE]); 2° un texte énonçant un idéal éthique, dont le signifié global sera noté par le trait [+ETHIQUE] (notation équivalant au trait [–LOI]). Cette grammaire différentielle de genres, construite ad hoc, selon les principes épistémologiques d’une linguistique de l’interprétation, – c’est-à-dire construite relativement au seul corpus constitué par les deux textes homonymes considérés –, sténographie une réalité sociale facilement identifiable. Le texte légal a pour source une autorité politique, édictant les lois régissant la vie collective, dont la non-observance est normalement passible de sanctions. Il s’agit d’un texte «injonctif» (un ordre), «déontique» (on doit se plier à cet ordre), à valeur future puisqu’il vaut à partir du moment où il est énoncé (c’est ce que l’on peut appeler sa «valeur performative»). Ainsi, par exemple, l’Article 3 de la loi du 10 août 2007 relative à l’autonomie des universités – «Les établissements déterminent par délibérations statutaires du conseil d’administration (...)» – s’applique-t-il à partir du moment où ce texte est adopté. 96 Simon Bouquet Le texte éthique, quant à lui, définit, de manière spéculative, des comportements humains comme positifs ou négatifs – des comportements considérés comme tels par une morale, par une autorité religieuse (parlant éventuellement au nom d’une divinité), voire par une coutume – sans pour autant qu’une sanction légale ne soit prévue en cas de comportement non conforme (ainsi, par exemple, le code déontologique du fonctionnaire). Quand bien même il ne formule nullement des lois au sens juridique du terme, le genre éthique présente volontiers ses règles de conduite comme éternelles et universelles : «Il se faut entraider, c’est la loi de nature» (La Fontaine). Pour autant, insistons sur ce point, l’analyse ne se fondera ici – ni sur une théorie objective des genres de textes (l’opposition trait [+LOI] / [+ETHIQUE] ne valant, comme on l’a signalé, que pour le corpus considéré) – ni sur une conception de ce que doit être l’interprétation de la DUDH ou sur quelque théorie des fondements du droit, mais sur une observation de ce qu’elle peut être (autrement dit, sur une observation des variations de sens possibles de deux textes homonymes, ces variations étant, dans la perspective d’une linguistique de l’interprétation, la seule réalité pouvant faire l’objet d’une écriture de lois et d’une vérification expérimentale). 2.1.2 Corrélations entre les signifiés globaux et la valeur flexionnelle du verbe naissent Afin de rendre compte de la corrélation entre les valeurs des signifiés globaux, qu’on vient de poser formellement, et la valeur flexionnelle (c’est-à-dire la valeur du temps «présent») du verbe naissent, la double loi suivante peut être formulée, dans laquelle les notations différentielles de valeurs locales doivent également être considérées comme ad hoc, c’est-àdire relatives au corpus des deux textes homonymes considérés: 97 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS [+LOI] => [+performatif légal] [+ÉTHIQUE] => [+vérité générale] En effet, le genre noté [+LOI] actualise une valeur du temps «présent» du verbe naissent qui peut être notée [+performatif légal] (ou [–vérité générale]): conformément au genre juridique, ce présent peut être tenu pour un performatif (énoncer une loi est ce qui lui donne «force de loi»), contenant les valeurs injonctive et déontique qui ont été évoquées. Un test de commutation permet d’attester de cette valeur: de même que, dans l’exemple proposé plus haut, la formule «Les établissements déterminent, par délibérations statutaires du conseil d’administration (...)» peut être remplacée salva congruitate par «Les établissements détermineront, par délibérations statutaires du conseil d’administration (...)», de même, dans l’interprétation «légale» de la DUDH, il est possible de remplacer le présent par un futur : Tous les êtres humains naitront libres et égaux en dignité et en droits. Dans le genre noté [+ETHIQUE], le présent de naissent prend une valeur différente de la précédente. Cette valeur, bien reconnue par la tradition grammaticale comme celle du «présent de vérité générale», sera donc notée [+vérité générale] (ou [–performatif légal]); elle confère ici à la DUDH le sens d’un constat: «il est de fait que les hommes naissent libres et égaux»17. Un test vérifie cette valeur: de même qu’un présent de vérité générale comme celui de la phrase Les baleines sont des mammifères ou comme celui de la fable citée ne peut être remplacé salva congruitate par un futur (on n’aura pas: Les baleines *seront des mammifères ou Il se *faudra entraider, c’est la loi de nature), de même Tous les êtres humains *naitront libres et égaux en dignité et en droits est incompatible avec le genre [+ÉTHIQUE]. L’éthique est en effet interprétable comme l’énonciation d’une vérité générale – qu’elle constate ou qu’elle recherche. Elle s’oppose en cela au texte de loi ou, en tout cas, au caractère performatif de celui-ci, à l’aune duquel l’énonciation légale, si elle a le pouvoir de faire advenir une contrainte, n’a pas le pouvoir de faire advenir une vérité. 17 98 Simon Bouquet 2.1.3 Corrélations entre les signifiés globaux et la valeur lexicale du verbe naissent Regardant maintenant la valeur lexicale du verbe naissent, la double corrélation suivante entre signifié global et signifié local peut être posée: [+LOI] => [+qualité originaire] [+ÉTHIQUE] => [+destinée] Dans le genre [+LOI], en effet, la valeur lexicale du verbe naissent – considérée dans sa construction syntaxique naître X, comme déterminant l’adjectif ou le substantif attribut – peut être notée [+qualité originaire] (ou [–destinée]). Cette valeur est celle que prend le verbe naître dans des énoncés comme Il est né aveugle. Elle implique que l’adjectif ou le substantif attribut dénote «une qualité possédée, à sa naissance, par un être vivant ». Référant à un fait objectif et daté, et non à une destinée, l’existence de cette valeur différentielle dans la langue est attestée par un test négatif, vérifiant que le terme X ne peut pas être remplacé par pour être X: de même qu’on n’aura pas, salva congruitate, *Il est né pour être aveugle, on n’aura pas, dans le genre [+LOI], *Tous les êtres humains naissent pour être libres et égaux en dignité et en droits. Dans le genre [+ETHIQUE], la valeur lexicale du verbe naissent – envisagée semblablement pour la construction naître X – sera notée [+destinée] (ou [–qualité originaire]). Cette valeur est celle que prend ce verbe dans des tours comme Il est né poète18. Quant à la qualité attribuée par l’adjectif ou par le substantif, elle ne se réfère pas à un fait objectif et daté, mais au contraire à un destin et/ou à la clairvoyance de dispositions particulières. Un test positif répond de cette valeur: le terme X dépendant du verbe naître peut être remplacé par pour être X; Cette valeur se retrouve dans la construction prépositionnelle de naître avec pour : L’homme est né pour le bonheur. 18 99 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS c’est ainsi que, salva congruitate , on pourra dire Il est né pour être poète et, dans le genre [+ÉTHIQUE] de la DUDH, Tous les êtres humains naissent pour être libres et égaux en dignité et en droits.19 2.1.4 Isotopies différentielles et valeurs des verbes de l’article 1 Des traits sémantiques transversaux qu’on peut désigner par le terme d’isotopie20, propres à chacun des deux genres considérés, lient entre elles la valeur flexionnelle et la valeur lexicale du verbe naissent: – dans le genre «légal» une isotopie pouvant être notée [+OBJECTIVITÉ] (ou [–SPÉCULATIVITÉ]) répond du fait qu’une loi, en ce qu’elle est arbitraire et sui-référente, énonce une proposition objective, incontestable; cette isotopie sous-tend la composition de la valeur flexionnelle [+performatif légal] du verbe naissent (l’acte performatif de promulguer une loi est luimême un acte objectif, incontestable) avec sa valeur lexicale [+qualité originaire] (une qualité originaire est fait objectif, incontestable); – dans le genre «éthique», une isotopie pouvant être notée [+SPÉCULATIVITÉ] (ou [–OBJECTIVITÉ]) s’accorde avec le fait qu’une proposition éthique, comme toute «vérité générale», ne possède pas le caractère arbitraire d’une loi: au contraire, spéculative, elle est motivée (par une représentation, un raisonnement, des expérimentations, etc.) et peut, eu égard à son caractère motivé, être reconnue, ou discutée, ou contestée, etc.; cette isotopie [+SPÉCULATIVITÉ] sous-tend la composition Si la distinction des valeurs [+qualité originaire] et [+destinée] se fonde ici sur un sens «propre» de la première et un sens «figuré» de la seconde, l’important, pour l’analyse, est que le test de commutation fait apparaître ces valeurs comme synchroniquement opposées. – Par ailleurs, l’emploi du verbe naître, dans la construction naître X, semble plus courant à la fin du XVIII° siècle que de nos jours. Or, la Déclaration de 1948, dans son article 1, réécrit le premier article de la Déclaration des droits de l’homme et du citoyen de 1789: Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. Il est possible que la DUDH, par sa notoriété, ait contribué à maintenir un tour déclinant et qu’elle lui ait en outre conféré, dans son contexte, un sens quelque peu hiératique – à la fois figé et incertain – susceptible de faire obstacle à la conscience des différences virtuelles, qu’on vient d’analyser, de ses signifiés locaux. 20 Ce terme est utilisé par A.-J. Greimas et F. Rastier, qui nomment également classèmes ces traits communs. Je le leur emprunte ici pour désigner, de manière générale, des traits relatifs à un signifié global. 19 100 Simon Bouquet de la valeur flexionnelle [+vérité générale] du verbe naissent (objet d’une pensée spéculative) avec sa valeur lexicale [+destinée] (la destinée d’un individu, ou celle de l’espèce humaine, est un objet conceptuel spéculatif). Les isotopies différentielles [+OBJECTIVITÉ] et [+SPÉCULATIVITÉ] mises en évidence quant au verbe naissent lient semblablement la valeur flexionnelle et la valeur lexicale des deux autres verbes conjugués de l’article 1. Quant au groupe verbal sont doués21, – dans le genre «légal», l’isotopie [+OBJECTIVITÉ] sous-tend la composition de la valeur flexionnelle [+performatif légal] de ce groupe verbal avec une valeur lexicale [–agent implicite] – cette dernière, «adjectivale», correspondant à un emploi de doués constatant un fait sans se préoccuper de sa genèse (comme dans la phrase cet espace est doué de profondeur22); l’objectivité de la performativité légale de la DUDH s’accorde ici avec le caractère constatif (objectif) des qualités légiférées ; on peut en outre considérer que, ce texte se bornant à signifier une vérité générale («les êtres humains sont doués de raison et de conscience, c’est ainsi»), la valeur performative de sont doués revient à l’institutionnalisation légale de cette vérité générale – et le test du remplacement par un futur, attestant la valeur flexionnelle, prendra ce fait en considération: «ils seront considérés/reconnus comme doués...»); – dans le genre «éthique», l’isotopie [+SPÉCULATIVITÉ] sous-tend la composition de la valeur flexionnelle [+vérité générale] de ce groupe verbal avec une valeur lexicale [+agent implicite] cette dernière étant une valeur «verbale» de doués, héritant par connotation23, contrairement à la valeur «adjectivale» du genre «éthique», de la structure argumentale du verbe douer à la voie passive – qui implique l’existence d’un complément 21 On ici considère sont doués à parité avec une forme verbale dans la mesure où le verbe sont est, sémantiquement, un simple «support d’attribut». (Par ailleurs, on simplifie l’analyse en la limitant au cas où les propositions contenant les verbes sont doués et doivent sont interprétées comme des propositions sémantiquement indépendantes.) 22 ou «Le benzole est doué de propriétés antidétonantes», TLF, p. 466 23 On pourrait encore parler, à ce propos, de valeur afférente (cf. note infra). 101 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS d’agent, demeurant implicite en l’occurrence: «les êtres humains ont été doués de raison et de conscience (par un «agent»), c’est pourquoi ils sont doués de raison et de conscience». Quant au verbe doivent, – dans le genre «légal», l’isotopie [+OBJECTIVITÉ] sous-tend la composition de la valeur flexionnelle [+performatif légal] de ce verbe avec une valeur lexicale [+impératif légal] (ou [– impératif moral]) ; dans le genre «légal» en effet, la valeur déontique juridique portée par le temps verbal «présent» spécifie une valeur déontique non spécifiquement juridique portée par le radical de ce même verbe (c’est-à-dire son sens lexical d’auxiliaire modal) – le test de cette transformation étant que le présent de doivent peut, ici, être remplacé salva congruitate par un futur; – dans le genre «éthique», l’isotopie [+SPÉCULATIVITÉ] sous-tend la composition de la valeur flexionnelle [+vérité générale] de doivent avec une valeur lexicale [+impératif moral] (ou [–impératif légal]): dans le genre «éthique» en effet, cette valeur lexicale est celle d’un déontique ordinaire, non spécifiquement juridique – le test de cette valeur étant que le présent ne peut pas, ici, être remplacé par un futur. 2.1.5 Le genre «éthique» s’oppose au genre «légal» par une ouverture de son sens L’ensemble des analyses qui précèdent concourt à montrer que le signifié global [+ETHIQUE] détermine un sens plus «ouvert» que le signifié global [+LOI]. Cette «ouverture» peut être remarquée: – quant à la valeur flexionnelle (présent) des trois verbes conjugués de l’article 1: la valeur [+vérité générale] du genre «éthique», non performative et prêtant à discussion, est plus ouverte que la valeur du genre «légal», performative et ne prêtant pas à discussion en tant que telle; – quant à la valeur lexicale [+destinée] du verbe naissent: celle-ci réfère dans le genre «éthique» à une qualification plus ouverte – parce que 102 Simon Bouquet moins certaine – que son opposée qui dans le genre «légal» ne désigne qu’une qualité originaire objectivée; – quant à la valeur lexicale [+agent implicite] du groupe sont doués: référant dans le genre «éthique» à l’existence possible d’une cause – non explicitement déterminée – des qualités prédiquées, cette valeur est plus ouverte que la valeur opposée dans le genre «légal» qui exclut cette référence; – quant à la valeur lexicale [+impératif moral] du verbe doivent: cette valeur, dans le genre «éthique», est plus ouverte – quant à la définition de l’impératif moral, auquel elle renvoie ici encore de manière non explicitement déterminée – que son opposée référant à un impératif légal parfaitement déterminé en tant que tel. Si l’on analysait les valeurs des noms et des adjectifs de l’article 1, il apparaitrait que ces deux isotopies différentielles sont également agissantes pour la quasi totalité d’entre eux, et que leur sens est, semblablement, plus «ouvert» lorsqu’il est déterminé par le signifié global [+ETHIQUE] que lorsqu’il est déterminé par le signifié global [+LOI]. Ce que ces analyses mettent clairement en lumière, c’est que la DUDH interprétée comme une loi n’est pas, sémantiquement, le même texte que la DUDH interprétée comme un idéal éthique. Ce faisant, ces analyses suggèrent qu’une réflexion sur l’universalité ou la nonuniversalité de la Déclaration de 1948 ne saurait faire l’économie d’un examen préalable du problème d’interprétation soulevé – par un texte qui se présente lui-même, assez paradoxalement, comme un idéal éthique énoncé sous forme de loi. De fait, toute réflexion sur l’universalité ou la non-universalité qui ne serait pas attentive à la sémantique de la DUDH risquerait de ne pas porter sur un objet réel. 103 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS 2.1.6 Deux hypothèses relatives à la plasticité sémantique du genre «éthique» La linguistique de l’interprétation ne permet pas seulement d’attirer l’attention sur la pluralité possible des significations de la Déclaration de 1948. Cette linguistique peut également, par des analyses plus fines, contribuer à éclairer la question évoquée en introduction «La DUDH est-elle légitimement universelle, ou est-elle entachée d’ethnocentrisme?» – en disqualifiant cette question pour la remplacer par une autre: «Quelles sont les conditions d’interprétation selon lesquelles la DUDH peut être comprise (ou non) comme universelle?». Le fil conducteur propre à guider cette investigation sera fourni par l’analyse des isotopies différentielles (supra, 2.1.4.) établissant que le genre «éthique» détermine un sens plus ouvert que le genre « loi». En effet, ce phénomène, qui peut être également qualifié de plasticité sémantique du genre «éthique», est propre à inspirer deux hypothèses: 1° l’hypothèse que cette plasticité sous-tend la possibilité que la DUDH s’interprète différemment en fonction d’arrière-plans culturels distincts; 2° l’hypothèse que cette plasticité sous-tend également, conjointement, la possibilité d’une interprétation «non universelle» de la DUDH et celle de son interprétation «universelle». Ces hypothèses ne sont pas des spéculations métaphysiques : portant sur les conditions matérielles de l’interprétation du texte, elles doivent pouvoir être confirmées par l’analyse – c’est-à-dire par l’établissement de lois de corrélation entre signifiés globaux et signifiés locaux. Dans cette perspective, ces deux hypothèses pourront être examinées sur la base de deux subdivisions du signifié global [+ETHIQUE] (ces subdivisions s’entendant toujours, pour satisfaire au principe de différentialité, comme des bipartitions oppositives): 1° sa subdivision par des traits différentiels successifs répondant de divers arrière-plans culturels; 104 Simon Bouquet 2° sa subdivision par des traits différentiels propres à rendre compte du caractère «universel» ou «non universel» de l’interprétation de la DUDH. 2.2 Plasticité du genre «éthique» et diversité des arrièreplans culturels 2.2.1 Valeurs locales et valeurs globales Alors que ce sont des valeurs locales inhérentes qui ont été captées dans l’opposition des genres «loi» et «éthique» – c’est-à-dire: des valeurs inscrites («dénotées») dans le système différentiel de la langue –, il n’en ira pas de même pour les valeurs locales liées aux arrière-plans culturels de la DUDH. L’analyse identifiera cette fois, quant aux signifiés locaux, des valeurs afférentes – c’est-à-dire: des valeurs «connotées», ressortissant à d’autres normes que celles du système de la langue24. Lesdites valeurs afférentes, également différentielles, ne se composent pas moins avec les valeurs inhérentes des unités linguistiques auxquelles elles sont liées. Pour faire apparaître cette composition, les analyses qui suivent s’appliqueront aux mêmes objets que les précédentes: les morphèmes flexionnels et les morphèmes lexicaux des trois verbes conjugués de l’article 1. Regardant le genre (la valeur globale) lié à un contexte culturel, on choisira, pour donner un exemple simple de ces analyses «culturelles», deux subdivisions successives du genre noté [+ETHIQUE] – la première subdivision divisera ce genre en deux genres, notés [+RELIGION] et [–RELIGION]; par «éthique religieuse» ([+ETHIQUE, +RELIGION]), on entendra une pensée morale se posant comme dépendante d’un fait culturel dit religion, répondant d’un ensemble de croyances, de dogmes, de pratiques et de textes ; par «éthique non religieuse» ([+ETHIQUE, –RELIGION]), on entendra une pensée morale se Notre distinction sémantique inhérence/afférence s’inspire de celle de F. Rastier (cf. par exemple: Rastier, Cavazza et Abeillé, 1994, p. 53). 24 105 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS posant comme indépendante du fait culturel dit religion; – la seconde subdivision, subséquente à la précédente, divisera le genre «éthique religieuse» en deux genres notés [+CRÉATIONNISTE] et [–CRÉATIONNISTE]; par «éthique religieuse créationniste» ([+ETHIQUE, +RELIGION, +CRÉATIONNISTE]), on entendra que cette éthique est attachée à une religion posant un acte créateur à l’origine du cosmos, de la terre, de l’homme, etc. (par exemple: les monothéismes judaïque, chrétien ou islamique); par «éthique religieuse non créationniste» ([+ETHIQUE, +RELIGION, –CRÉATIONNISTE]), on entendra que cette éthique est attachée à une religion ne posant pas d’acte créateur à l’origine du cosmos, de la terre, de l’homme, etc. (par exemple: le bouddhisme). 2.2.2 Exemples de corrélations déterminées par les genres «éthique religieuse» et «éthique non religieuse» Les lois de corrélation différentielles des signifiés globaux [+ETHIQUE, +RELIGION] et [+ETHIQUE, –RELIGION] avec les signifiés locaux des verbes conjugués de l’article 1 décriront la composition des valeurs locales inhérentes du genre «éthique» (valeurs analysées supra, section 2) avec des valeurs afférentes propres aux genres «éthique religieuse» ou «éthique non religieuse». (1) Verbes naissent, sont (doués) et doivent: la valeur flexionnelle inhérente [+vérité générale] se compose – dans le genre «éthique religieuse», avec la valeur flexionnelle afférente [+référée à une religion] (les trois propositions de l’article 1 énoncent «une vérité référée à une religion»); – dans le genre «éthique non religieuse», avec la valeur flexionnelle afférente [–référée à une religion] (les trois propositions de l’article 1 énoncent «une vérité non référée à une religion»). (2) Verbe naissent: la valeur lexicale inhérente [+destinée] se compose – dans le genre «éthique religieuse», avec la valeur lexicale afférente [+référée à une religion]25 (la première proposition de l’article 1 concerne La Déclaration d’indépendance des Etats-Unis (1776) – ancêtre de la Déclaration des droits de l’homme et du citoyen (1789) et de la DUDH – énonçait: «Tous les hommes sont créés égaux». 25 106 Simon Bouquet «une destinée elle-même référée à une religion»); – dans le genre «éthique non religieuse», avec la valeur lexicale afférente [–référée à une religion] (la première proposition de l’article 1 concerne «une destinée non référée à une religion»). (3) Groupe verbal sont doués: la valeur lexicale inhérente [+agent implicite] se compose – dans le genre «éthique religieuse» avec la valeur lexicale afférente [+(agent) défini par une religion] (la deuxième proposition de l’article 1 concerne «des qualités octroyées par un agent défini par une religion»)26 – dans le genre «éthique non religieuse», avec la valeur lexicale afférente [–(agent) défini par une religion] (la deuxième proposition de l’article 1 concerne «des qualités non octroyées par un agent défini par une religion»). (4) Verbe doivent: la valeur lexicale inhérente [+impératif moral] se compose – dans le genre «éthique religieuse», avec la valeur lexicale afférente [+énoncé par une religion] (la troisième proposition de l’article 1 «concerne un impératif moral énoncé par une religion»); – dans le genre «éthique non religieuse», avec la valeur lexicale afférente [–énoncé par une religion] (la troisième proposition de l’article 1 «concerne un impératif moral non énoncé par une religion»). 2.2.3 Exemples de corrélations déterminées par les genres «éthique religieuse créationniste» et «éthique religieuse non créationniste» Les lois de corrélation différentielles des signifiés globaux [+ETHIQUE, +RELIGION, +CRÉATIONNISTE] et [+ETHIQUE, +RELIGION, –CRÉATIONNISTE] avec les signifiés locaux des mêmes verbes décriront la composition des valeurs locales inhérentes et afférentes du genre «éthique religieuse » (valeurs analysées supra, 2.2.2.) avec des valeurs afférentes propres aux Dans la Déclaration d’indépendance des Etats-Unis, l’emploi de sont doués appartient explicitement à ce genre: «tous les hommes (…) sont doués par le Créateur de certains droits inaliénables». 26 107 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS subdivisions «créationniste» ou « non créationniste». (1) Verbes naissent, sont (doués) et doivent: les valeurs flexionnelles inhérente [+vérité générale] et afférente [+référée à une religion] se composent – dans le genre «créationniste», avec la valeur lexicale afférente [+créationniste] (la première proposition de l’article 1 concerne «une vérité référée à une religion créationniste»); – dans le genre «non créationniste», avec la valeur lexicale afférente [–créationniste] (la première proposition de l’article 1 concerne «une vérité référée à une religion non créationniste»). (2) Verbe naissent: les valeur lexicales inhérente [+destinée] et afférente [+référée à une religion] se composent – dans le genre «créationniste», avec la valeur lexicale afférente [+dessein d’un Créateur] (la première proposition de l’article 1 concerne «une destinée référée à une religion qui la conçoit comme le dessein d’un Créateur»). – dans le genre «non créationniste», avec la valeur lexicale afférente [–dessein d’un Créateur] (la première proposition de l’article 1 concerne «une destinée référée à une religion qui ne la conçoit pas comme le dessein d’un Créateur»). (3) Groupe verbal sont doués: les valeurs lexicales inhérente [+agent implicite] et afférente [+défini par une religion] se composent – dans le genre «créationniste», avec la valeur lexicale afférente [+Créateur] (la deuxième proposition de l’article 1 concerne «des qualités octroyées par un agent défini par une religion comme étant un Créateur»); – dans le genre «non créationniste », avec la valeur lexicale afférente [–Créateur] (la deuxième proposition de l’article 1 concerne «des qualités octroyées par un agent défini par une religion non comme n’étant pas un Créateur27»). Dans le bouddhisme, cet agent sera une «loi de causalité», étendue ou non, suivant les écoles, à des mondes supranormaux. 27 108 Simon Bouquet (4) Verbe doivent: les valeurs lexicales inhérente [+impératif moral] et afférente [+énoncé par une religion] se composent – dans le genre «créationniste», avec la valeur lexicale afférente [+dessein d’un Créateur] (la troisième proposition de l’article 1 concerne «un impératif moral énoncé par une religion et reflétant le dessein d’un Créateur»); – dans le genre «non créationniste», avec la valeur lexicale afférente [–dessein d’un Créateur] (la troisième proposition de l’article 1 concerne «un impératif moral énoncé par une religion, et ne reflétant pas le dessein d’un Créateur»). 2.2.4 Spécificité de la plasticité «culturelle» Notre première hypothèse sur la plasticité du genre «éthique», supposant une multiplication des interprétations de la DUDH selon ses arrière-plans culturels, se trouve confirmée par les corrélations qu’on vient de décrire. Sur la base de ces exemples, on peut également définir, relativement à ce cas particulier des subdivisions «culturelles» du genre «éthique», le principe fonctionnel de ce que nous nommons plasticité sémantique. Cette plasticité obéit aux critères spécifiques suivants: 1° le signifié global «éthique» de la DUDH se laisse aisément subdiviser en de multiples sous-genres; 2° ces sous-genres sont en nombre indéterminé (et ils ne revêtent aucune valeur absolue: ainsi, au lieu des sous-genres proposés cidessus, il aurait été parfaitement possible de subdiviser le signifié global [+RELIGION] en [+THEISME] / [–THEISME], puis le signifié global [+THEISME] en [+MONOTHEISME] / [–MONOTHEISME], etc.); 3° les valeurs des signifiés locaux, dans tous les cas analysés ici, sont des valeurs afférentes. En outre, une conclusion s’impose: nos analyses d’interprétations multiples correspondant aux sous-genres «culturels» ne sauraient gager une interprétation «universelle» de la DUDH. Mettant en lumière des 109 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS valeurs oppositives qui sont par définition sémantiquement exclusives les unes des autres, ces analyses attestent au contraire, de facto, des interprétations propres à une culture, et en cela «non universelles»28. 2.3 Plasticité du genre «éthique» et question de l’universalité 2.3.1 Signifié global: la dichotomie statique/dynamique Notre seconde hypothèse – supposant une plasticité sémantique propre à générer conjointement, dans le genre «éthique» de la DUDH, une interprétation «non universelle» et une interprétation «universelle» – ne saurait être argumentée sur la base du principe de plasticité «culturelle» puisque celui-ci ne sous-tend a priori, comme on l’a vu, que des interprétations «non universelles». Cette seconde hypothèse doit donc s’étayer d’un principe de plasticité distinct, dont les critères programmatiques suivants peuvent être posés: 1° l’opposition «non universel» / «universel» sera captée par une unique subdivision de signifié global (ou genre); 2° cette subdivision devra se combiner avec celles des multiples genres «culturels»; 3° la détermination des signes locaux par le signifié global « universel » devra consister en une neutralisation des valeurs oppositives attachées aux genres «non universels» régissant ces mêmes signes locaux. Il se trouve que la réflexion développée par Henri Bergson dans Les deux sources de la morale et de la religion (Bergson, 1932), reprise par Karl Popper dans La société ouverte et ses ennemis (Popper, 1945), est en Certes, on peut argumenter que, se prêtant à ces multiples interprétations « culturelles », la DUDH est susceptible de jouer un rôle médiateur entre ces interprétations lorsqu’elle suscite des afférences sémantiques similaires ; mais ce rôle, s’il est lié à une illusoire « présomption d’universalité », peut tout aussi bien occasionner des malentendus – pouvant porter, par exemple, sur des conceptions incompatibles de l’éthique (ou de la loi sous-tendue par cette éthique), ou encore sur des représentations divergentes des concepts attachés à des mots comme dignité, liberté, arbitraire, etc. 28 110 Simon Bouquet mesure de donner un contenu intuitif à ces critères programmatiques. La philosophie sociale bergsonienne, en effet, caractérise toute pensée éthique comme découlant de deux «sources» antagoniques et complémentaires: – une «source» dite statique – ou encore institutionnelle –, d’où procède une organisation de pensée close (une pensée incarnée dans des institutions et exclusivement vouée à la conservation du statu quo d’un groupe social); – une «source» dite dynamique – ou encore mystique (ce concept ne s’entendant pas comme limité au fait religieux) –, produisant une organisation de pensée ouverte (une pensée incarnée par des «sages» et liée, au contraire de la précédente, à un «élan créateur» compatible avec des valeurs plus universelles). Alors que nous avons utilisé jusqu’ici le terme d’universel sans en problématiser la signification – nous référant simplement au fait que ce terme figure dans le titre de la Déclaration et qu’il est au centre de nombreux débats –, la dichotomie bergsonienne permet de préciser la dualité non universel / universel sur laquelle porte notre seconde hypothèse. En effet, noter cette dualité par les signifiés globaux [+STATIQUE] (équivalent de [–DYNAMIQUE]) et [+DYNAMIQUE] (équivalent de [– STATIQUE]) présente les avantages suivants: – le trait [+STATIQUE] rendra compte de l’interprétation «culturelle» de la DUDH telle que nous l’avons analysée (supra, 2.2.), déterminant des valeurs «non universelles» opposées, exclusives les unes des autres: il s’agira, en l’occurrence, d’une interprétation conceptuellement figée, objectivée par une tradition culturelle, et vouée à la conservation d’un statu quo social; – le trait [+DYNAMIQUE] permettra de capter un autre aspect de l’interprétation de la DUDH (dont notre analyse n’a jusqu’ici pas rendu compte), susceptible de se greffer sur n’importe quelle interprétation «statique»: il s’agira d’une interprétation conceptuellement «ouverte», correspondant à une «expérience de pensée» subjective (ce que Bergson 111 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS nomme mystique), et visant une transformation éthique, un devenir (ce qu’on peut appeler transcendance). De fait, cette interprétation «dynamique» ne produira pas un sens universel en soi: ce sera plutôt un sens constitué de telle sorte que sa visée puisse être tenue pour l’objet possible d’une unanimité. En bref, alors que l’interprétation «statique», dans ses subdivisions «culturelles», rendra compte de divergences de pensée, l’interprétation «dynamique» rendra compte, sur la base d’une plasticité sémantique, d’une convergence possible de pensée. Ces deux interprétations antagonistes – une doxa et une mystique – n’en seront pas moins complémentaires l’une de l’autre, en cela que, si l’immanence statique est bien distincte de la transcendance dynamique, la seconde n’en repose pas moins, chronologiquement et logiquement, sur la première. Tout ceci, de nouveau, n’est pas pure spéculation métaphysique mais élaboration d’une hypothèse propre à être avérée par l’analyse interprétative. 2.3.2 L’interprétation «dynamique» comme neutralisation des oppositions de l’interprétation «statique» La préséance chronologique et logique de l’interprétation «statique» sur l’interprétation «dynamique», qu’on vient de postuler, implique, en termes sémantiques, de poser le «sens ouvert» de l’interprétation «dynamique» comme une neutralisation des oppositions de l’interprétation «statique». Pour illustrer par quelques exemples comment le signifié global [+DYNAMIQUE] peut neutraliser les oppositions de valeurs locales déterminées par le signifié global [+STATIQUE], on reprendra l’analyse menée plus haut sur les genres notés [+ETHIQUE, +RELIGION] et [+ETHIQUE, –RELIGION], en poursuivant la subdivision de chacun de ces signifiés globaux par la dualité [+STATIQUE] / [+DYNAMIQUE]. (1) Verbes naissent, sont (doués) et doivent – composition des valeurs flexionnelles inhérente [+vérité générale] et afférentes [+référée à une religion] ou [–référée à une religion] (ainsi que toutes leurs subdivisions possibles): 112 Simon Bouquet – dans l’interprétation «statique», ces valeurs se composent avec une valeur afférente [+sens fermé] (les trois propositions de l’article 1 réfèrent à une vérité close, objectivée dans une pensée instituée, conservatrice d’un statu quo social); – dans l’interprétation «dynamique», ces valeurs se composent avec une valeur afférente [+sens ouvert] (les trois propositions de l’article 1 réfèrent à une vérité ouverte, relevant d’une expérience de pensée de type mystique (au sens de Bergson) et d’une visée unanime possible29 – cette vérité étant, de ce fait, à la fois distincte et non exclusive de celle de l’interprétation «statique»). Ces traits afférents [+sens fermé] et [+sens ouvert] de la flexion des trois verbes se composeront, par isotopie, avec les compositions des valeurs lexicales desdits verbes. (2) Verbe naissent – composition des valeurs lexicales inhérente [+destinée] et afférentes [+référée à une religion] ou [–référée à une religion] (ainsi que leurs subdivisions): – dans l’interprétation «statique», ces valeurs se composent avec la valeur afférente [+sens fermé] (la «destinée» humaine est une notion close, objectivée dans une pensée instituée, et conservatrice de statu quo); – dans l’interprétation «dynamique», ces valeurs se composent avec la valeur afférente [+sens ouvert] (la « destinée » humaine est une notion ouverte, appartenant à une expérience de pensée subjective – dans laquelle elle peut prendre un sens transcendant, non attaché exclusivement à une pensée instituée, sans pour autant exclure aucune pensée instituée). (3) Groupe verbal sont doués – composition des valeurs lexicales inhérente [+agent implicite] et afférentes [+défini par une religion] ou [–défini par une religion] (ainsi que leurs subdivisions): – dans l’interprétation «statique», ces valeurs se composent avec la valeur afférente [+sens fermé] (connotant un «agent» identifié dans 29 L’«ouverture», ici, ne renvoie pas à une relativité de cette interprétation mais au fait qu’elle reflète le dynamisme d’une expérience et un devenir de pensée. Cette valeur flexionnelle s’attachant à une «vérité heuristique» conditionne, comme on le verra, les valeurs lexicales. 113 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS des institutions de pensée, religieuses ou non religieuses – par exemple: Jéhovah, Dieu ou Allah, dans les dogmes judaïque, chrétien ou islamique; dans un dogme athée, l’évolution per se); – dans l’interprétation «dynamique», ces valeurs se composent avec la valeur afférente [+sens ouvert] (l’agent implicite de la deuxième proposition de l’article 1 est un principe non objectivable, qui excède le pensable; dans cette interprétation la valeur [+défini par une religion], par exemple, cesse d’être exclusive de son opposée, et inversement). (4) Verbe doivent – composition des valeurs lexicales inhérente [+impératif moral] et afférentes [+énoncé par une religion] ou [–énoncé par une religion] (ainsi que leurs subdivisions): – dans l’interprétation «statique», ces valeurs se composent avec la valeur afférente [+sens fermé] (l’impératif moral est figé, objectivé dans une pensée instituée, conservateur de statu quo); – dans l’interprétation «dynamique», ces valeurs se composent avec la valeur afférente [+sens ouvert] (l’impératif moral est ouvert, nourri par une expérience de pensée subjective dans laquelle il peut devenir l’objet d’une visée unanime). Comme on en a fait l’hypothèse, l’interprétation «dynamique» atteste bien, sur la base d’une plasticité sémantique, une convergence possible de pensée – là où l’interprétation «statique» et ses subdivisions «culturelles» attestaient des divergences. La plasticité «dynamique», ainsi qu’on l’a vu, neutralise les divergences de l’interprétation «statique»; elle ne les abolit pas pour autant puisque, d’une part, la convergence requiert ici le point de départ des divergences et que, d’autre part, sa neutralisation n’est pas une suppression mais une sorte de «mise entre parenthèses» heuristique au service d’une interprétation transcendante. (Le paradoxe de l’universalité, conçue comme interprétation «dynamique», est que l’éthique de la DUDH est d’autant plus pensable comme «universelle» que, sur le fondement d’un sens ouvert, elle est propre à accueillir les différences culturelles sans rien niveler de ces différences.30) «Il faudra la diversité dont nous avons tant besoin. Une des valeurs cibles de la spiritualité commune, c’est la préservation la diversité.» (S. Hessel, in Bouquet et Hessel, 2012, p. 12) 30 114 Simon Bouquet Finalement, le concept de transcendance, dans l’usage que nous en avons fait, réfère à la qualité d’un type particulier de plasticité sémantique, rien de plus. Il en va de même du qualificatif bergsonien de mystique attribué ici à l’éthique. Et, dans cette perspective, le «sens ouvert» d’une interprétation éthique «dynamique» est comparable au «sens ouvert» en poésie. Cette parenté est attestée par un fait remarquable: de même qu’un texte poétique, traduit dans une langue quelconque, perd des particularités de sa langue originaire mais conserve intact son caractère voire sa force de poéticité, de même un texte comme la DUDH dans son interprétation «éthique» peut être traduit dans toutes les langues et compris dans toutes les cultures en conservant intact un caractère et une force d’éthicité. 2.4 Enjeux d’une sémantique des droits de l’homme Les analyses présentées ici ne font qu’esquisser une sémantique de la DUDH. Elles n’en laissent pas moins entrevoir que cette sémantique est probablement en mesure de clarifier et de soutenir deux enjeux sociopolitiques: 1° combattre et disqualifier les instrumentalisations de la DUDH; 2° éclairer la compréhension du rôle pouvant être joué par l’unanimité dans le domaine de la gouvernance mondiale. 2.4.1 Combattre les instrumentalisations de la DUDH L’instrumentalisation politicienne de la DUDH consiste notamment à clamer son universalité, ou au contraire à contester celle-ci, dans le but de servir des intérêts hégémonistes ou totalitaires. Ces manœuvres ont en commun une réification du sens: qu’elles s’en prévalent ou qu’elles l’attaquent, elles conçoivent la DUDH comme univoque – comme pourvue d’un sens existant en lui-même et par lui-même. L’analyse d’une linguistique de l’interprétation fait voler en éclats cette réification du sens. Dissipant l’illusion d’un texte univoque 115 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS et montrant que le sens de la Déclaration n’est pas figé en lui-même mais produit par des interprétations multiples, elle invalide aussi bien la thèse d’une pseudo-universalité insoucieuse des diversités culturelles que la thèse d’une pseudo-non-universalité réfractaire à toute visée convergente. Ainsi, la sémantique de la DUDH disqualifie-t-elle par avance l’instrumentalisation hégémoniste ou totalitariste. L’approche sémantique peut également servir à faire la part entre les diverses lectures et les instrumentalisations possibles de textes comme la Charte africaine des droits de l’homme et des peuples (1981), la Déclaration islamique universelle des droits de l’homme (1981) ou la Déclaration de Bangkok (1993) – des textes qui se prêtent à être interprétés tout autant dans un genre «statique» que dans un genre «dynamique». Et cette approche vaut semblablement, a priori, pour tout texte à venir. En résumé, l’approche sémantique permet de dénoncer les instrumentalisations de la DUDH et des textes de sa parenté, en analysant ces instrumentalisations comme reposant sur une interprétation « tatique» ad hoc. 2.4.2 Eclairer la perspective de l’unanimité dans une gouvernance mondiale L’analyse de l’interprétation « dynamique » permet, quant à elle, d’accréditer une lecture de la DUDH pouvant être effectivement dite universelle. Il est toutefois plus clair de qualifier cette lecture de possiblement unanime car, comme on l’a vu (supra, 2.3.2.), elle se soutient d’un processus interprétatif gageant une unanimité possible et non un sens ordinaire; en d’autres termes, ce n’est pas la DUDH en tant que sens établi qui a la qualité d’ «universalité» ou de transcendance, mais une interprétation de la DUDH en tant qu’aspiration31. L’enjeu d’identifier une telle sémantique est d’importance, en cela qu’il y va de la mise en Si l’unanimité peut être ainsi posée à la base de l’analyse sémantique «dynamique» de la DUDH, elle est aussi sa fondation historique, sous la forme minimale du vote sans opposition des Etats membres de l’ONU qui l’a instituée le 10 décembre 1948. 31 116 Simon Bouquet évidence d’une lecture unanime possible d’un texte fondateur de l’ONU, tout autant que de la conception d’une transcendance compatible avec la diversité culturelle. Mais l’analyse de l’interprétation «dynamique» de la DUDH peut également jouer un rôle critique au regard des institutions de l’ONU32. En effet, mettant en lumière les conditions interprétatives de l’unanimité possible, et posant ces dernières comme fondatrices du fait même de l’unanimité possible, cette analyse montre que l’unanimité interprétative n’est accessible qu’au prix de l’organisation de pensée que Bergson nomme, techniquement, mystique – correspondant, dans une terminologie sémantique, à une ouverture du sens. De cette organisation de pensée, les institutions de l’ONU peuvent-elles être les garantes, tant pour interpréter la DUDH et les textes de sa parenté, que pour éventuellement les compléter et les adapter au cours du temps? Dans une perspective bergsonienne, la réponse semble être non, car l’interprétation ressortissant au genre «dynamique» ne peut, selon la définition même de ce genre, être gagée sur des institutions: cette interprétation et ses valeurs sont gagées, par définition, sur la dimension «mystique» de traditions humaines de réflexion, de spiritualité, de sagesse. Aussi semblerait-il qu’une articulation reste à trouver entre le gage institutionnel et un gage «mystique» de la DUDH. Une articulation dont l’analyse sémantique pourrait stimuler, à sa manière, la compréhension. Bibliographie BERGSON, H. Les deux sources de la morale et de la religion, Paris, Presses universitaires de France, 1932. «Je pense que nous avons besoin d’une réflexion approfondie sur la légitimité des institutions qui s’inspirent peut-être vaguement de la Déclaration universelle mais qui se sont beaucoup différenciées.» (S. Hessel, in Bouquet et Hessel, 2012, p. 12) 32 117 Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS BOUQUET, S. «Da una epistemologia neosaussuriana della linguistica alla questione dell’universalità dei diritti dell’uomo», Saussure, Quaderni di Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, Catania, Bonanno Editore, 2011. BOUQUET, S. «Principes d’une linguistique de l’interprétation. Une épistémologie néosaussurienne», L’apport des manuscrits de Ferdinand de Saussure, Langages, n° 185, p. 21-33, 2012. BOUQUET, S. et Hessel, S. «Pour une linguistique des droits de l’homme» (entretien de Stéphane Hessel avec Simon Bouquet, Collegium International, 22 février 2010), Texto! Revue électronique de l’Institut Ferdinand de Saussure, vol. XVII, p. 1-12, 2012. COSSUTA, F. et Maingueneau, D. «L’analyse des discours constituants», Les analyses du discours en France, Langages, n° 117, p. 112125, 1995. LEEMAN, D. (dir.) L’interculturel en entreprise: quelles formations? Aspects civilisationnels, économiques, historiques, juridiques, linguistiques, Limoges, Lambert-Lucas, 2011. POPPER, K. The Open Society and Its Enemies, London, Routledge, 1945. RASTIER, F., Cavazza, M., Abeillé, A. Sémantique pour l’analyse, Paris, Masson, 1994. SAUSSURE (de), F. Cours de linguistique générale, édition critique par R. Engler, Wiesbaden, Otto Harrassowitz, 1968. SAUSSURE (de), F. Ecrits de linguistique générale, édités par S. Bouquet et R. Engler, Paris, «Bibliothèque de Philosophie», Gallimard, 2002. 118 O QUE ORIGINA A VARIAÇÃO DA ALTERNÂNCIA CAUSATIVA? UMA COMPARAÇÃO ENTRE O DÂW (FAMÍLIA NADAHUP) E O PORTUGUÊS BRASILEIRO Janayna CARVALHO Universidade de São Paulo (USP)1 Jéssica C. COSTA Universidade de São Paulo (USP)2 RESUMO Aplicamos dois modelos sintáticos para a alternância causativa, quais sejam, a Sintaxe Lexical, de Hale & Keyser (2002) e a Morfologia Distribuída, representada por vários autores, ao estudo de duas línguas brasileiras, Dâw, uma língua indígena brasileira da família Nadahup, e o português brasileiro. Com base nas ferramentas analíticas oferecidas por esses modelos, argumentamos que a variação da alternância causativa nas línguas se dá por dois motivos: (a) a disponibilidade de um tipo de raiz em uma dada língua; (b) variação de núcleos funcionais. Teoricamente, almejamos comprovar que abordagens sintáticas são mais vantajosas por lidarem com primitivos da construção da palavra e da sentença e, assim, capturarem pontos contrastantes em duas ou mais línguas que são o lócus de variação com relação a um fenômeno. Doutoranda em Linguística Geral no Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo – DL-USP. Bolsista CNPq (Processos: 229746/2013-6 e 142048/2012-7). E-mail: [email protected]/ [email protected]. A autora agradece sua orientadora, Ana Paula Scher (USP), pelas inúmeras discussões sobre o tema 2 Doutoranda em Linguística Geral no Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo – DL-USP. A autora desenvolveu a pesquisa sobre a língua Dâw durante o curso de mestrado, período em foi bolsista FAPESP (Processo: 2011/16168-2). E-mail: jessica.cc@usp. br. A autora agradece sua orientadora, Luciana Storto (USP), pelas inúmeras discussões sobre o tema. 1 © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 119-154, jan./jun. 2014 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro ABSTRACT We use two syntactic models for causative alternation, namely Lexical Syntax, proposed by Hale & Keyser (2002) and Distributed Morphology, proposed and developed by several authors, and we apply each of them to two Brazilian languages, namely Dâw, an indigenous language from the Nadahup family, and Brazilian Portuguese. These models offer tools for us to argue that the variation in causative alternation is due to the following factors: (a) the availability of a specific kind of root in a given language; (b) variability of functional projections. From a theoretical point of view, we pursue to comprove that syntactical approaches are empirical better, given the fact that the attention addressed to primitive blocks for words and sentences in these models makes it possible to capture different ways of building syntactic structure. This is crucial for our analysis since we defend that the primitives for words and sentences are the locus to the contrasting behaviors for the same phenomena in the languages under comparison. PALAVRAS-CHAVE Alternância Causativa. Língua Dâw. Português Brasileiro. KEYWORDS Brasilian Portuguese. Causative Alternantion. Dâw language. Introdução Neste trabalho, examinamos a alternância causativa à luz de dois modelos construcionistas3, a saber, a Sintaxe Lexical e a Morfologia Distribuída. O primeiro modelo é aplicado com mais minúcias ao exame Abordagens em que a estrutura argumental é construída com expedientes sintáticos, assim condições de localidade e licenciamento também se aplicam à formação de verbos, o que muitas vezes explica a gramaticalidade ou não de um verbo em uma dada construção. Essa ideia se apresenta de forma especialmente clara em Hale & Keyser (1993). Remetemos o leitor a este trabalho para detalhamento. 3 120 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa da língua Dâw e o segundo ao português brasileiro (doravante PB)4. A alternância causativa pode ser definida como a possibilidade de um verbo figurar em duas sentenças diferentes, uma transitiva e outra intransitiva, as quais têm em comum a mudança de estado do argumento interno. Observe os exemplos da alternância causativa com o verbo quebrar no português brasileiro no inglês e na língua Dâw (família Nadahup): (1) a. b. João quebrou o prato. (sentença causativa)5 O prato quebrou. (sentença inacusativa) (2) a. b. John broke the vase. The vase broke. (sentença causativa) (sentença inacusativa). (3) a. Mateus pêt bee Mateus quebrar pau ‘Mateus quebrou o pau’ (sentença causativa) b. (COSTA, 2014b:15) (sentença inacusativa) Bee pêt pau quebrar ‘O pau quebrou’ (COSTA 2014b:15) Esses exemplos evidenciam alguma uniformidade do fenômeno em tela em línguas pertencentes a famílias linguísticas distintas. Isso sugere que a alternância causativa tem uma relativa independência das 4 Cada uma dessas aplicações resulta do trabalho individual das autoras e este trabalho é uma síntese conjunta do poder explanatório de abordagens sintáticas. 5 Uma possível objeção para a nomenclatura usada pode ser a de que ‘sentença inacusativa’ reflete uma caracterização sintática do fenômeno, visto que os verbos intransitivos são classificados como inacusativos ou inergativos em virtude de seu comportamento sintático, e sentença causativa reflete uma classificação semântica. Essa seria uma objeção pertinente, mas, ainda assim, escolhemos manter essa nomenclatura porque é a mais neutra tanto para o leitor leigo quanto para o leitor já familiarizado com o estudo de alternâncias verbais. 121 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro características de cada língua. O estudo de HASPELMATH (1993) sobre esse tipo de alternância corrobora essa hipótese. Nele, o autor observa a alternância de 31 verbos em 21 línguas e estabelece uma classificação para elas. Abaixo, encontra-se a tabela com os dados de alternância do verbo quebrar nessas 21 línguas, codificada com as siglas (A), (S), (L), (E), (C) que indicam, na terminologia do autor, a direção da alternância. Por exemplo, quando a inacusativa é marcada morfologicamente, ela é derivada da causativa, nesse caso, a alternância seria anticausativa (A). Quando a causativa é marcada morfologicamente, ela é tida como derivada da sentença inacusativa. Nesse caso, a alternância é causativa (C). As alternâncias lábil (L), supletiva (S) e equipolente (E) seriam nãodirecionadas, uma vez que não há marcas morfológicas na alternância lábil (veja, por exemplo, o dado do inglês) e as raízes verbais são diferentes na alternância supletiva (há vários exemplos para morrer/ matar abaixo). Por fim, na alternância equipolente, os dois membros da alternância têm morfologia característica (georgiano, entre outras línguas no quadro abaixo). Seguindo essa perspectiva icônica para a alternância - isto é, o par da alternância que tem mais morfologia é derivado de um mais básico -, essas alternâncias não-direcionadas se caracterizariam pela independência de formação dos dois membros da alternância. TABELA 1: Dados de alternância do verbo quebrar em 21 línguas segundo Haspelmath (1993) Língua Árabe Armênio Inglês Finlandês Francês Georgiano Formas do verbo quebrar Forma do(s) verbos morrer/matar nas línguas in-kasara/kasara (A) maata/qatala (S) spa-n-el/mer-n-el (S) Ǯard-v-el/Ǯard-el(A) break/break (L) die/kill (S) murt-ua/murtaa (A) kuolla/tappaa (S) se briser/briser (A) mourur/tuer (S) i-mt’vreva/a-mt’vrevs (E) mo-k’vdeba/mo-k’lavs (S) 122 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa Alemão zerbrechen (L) sterben/töten (S) Grego moderno 1) spázo (L) pethéno/skotóno (S) 2) tsakísome/tsakízo (A) Hebraico ni-šbar/šavar (A) mat/he-mit (C) Hindi-Urdu tuut-naa/tor-naa (E) mar-naa/maar-naa (A) Húngaro össze-tör-ik/ *ossze-tör (A) meg-hal/meg-öl (S) Indonésio patah/me-matah-kan (C) mati/me-mati-kan (C) Japonês or-e-ru/or-u; war-e-ru/war-u sin-u/koros-u (S) (A) Lezguiano xu-n (L) q’i-n (L) Lituano lüz-ti/lauz-ti (E) užmuš-ti/mir-ti (S) Mongolês xuga-r-ax-/xuga-l-ax; üx-ex/al-ax (S) xemx-r-ex/xemx-l-ex (E) Romeno se rupe/rupe (A) muri/ucide (S) Russo lomat’-sja/lomat’ (A) umeret’/ubit’ (S) Swahili vunj-ik-a/vunj-a (A) fa/ua (S) Turco kir-il-mak/kir-mak (A) öl-mek/öl-dür-mek (C) Udmurt (?) tija-sky-ny/tija-ny (A) kuly-ny/viv-ny (S) Legenda: A= altern â ncia anticausativa; C=altern â ncia causativa; E= alternância equipolente; L=alternância lábil; S=alternância supletiva. Vimos que, em todas as línguas pesquisadas por HASPELMATH (op.cit.), o verbo quebrar alterna, corroborando a ideia de que a alternância causativa parece ser um fenômeno estável através das línguas. A variação de classificação que observamos está relacionada com os expedientes morfológicos disponíveis para as línguas, algo bastante relevante para a alternância, conforme se verá na seção 4 de análise. Entretanto, quando nos atentamos para dados de alternância com os verbos morrer/matar, há maior variação. Na maioria das línguas, a alternância encontrada com esses verbos é a supletiva. Nesse tipo de alternância, como falamos, a raiz verbal não é a mesma, portanto não 123 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro há derivação, no sentido estrito. Desse modo, esse conjunto diverge da uniformidade que encontramos para as alternâncias com quebrar. Por que isso acontece? Para verbos como matar e morrer, acreditamos que uma explicação plausível seria tão somente opções idiossincráticas das línguas, ou seja, a possibilidade de morrer e matar alternarem ocorre se a língua engloba essas duas codificações distintas de eventos em um só signo. Se forem signos diferentes em uma mesma língua, é muito provável que morrer e matar não sejam tidos como verbos alternantes. Não obstante, não acreditamos que todos os casos de variação de alternância em uma perspectiva translinguística estejam ligados a idiossincrasias. É exatamente o que a comparação da língua Dâw com o PB intenta mostrar. Na exposição a seguir, defendemos que as variações de alternância estão ligadas a dois fatores: i) ao número de raízes e núcleos funcionais, que realizam expedientes morfológicos, da língua; ii) à compatibilidade entre os núcleos funcionais disponíveis e as raízes. Para exemplificar a importância desses dois fatores, tomemos uma língua hipotética X. Se essa língua hipotética não possui expedientes morfológicos que restrinjam as alternâncias da língua, espera-se que mais verbos alternem em comparação com uma língua que tenha o mesmo inventário de raízes e um ou mais expedientes morfológicos para alternância causativa que imponham restrições ao licenciamento de raízes. Isto é ilustrado abaixo. FIGURA 1: Licenciamento de raízes em uma língua hipotética X 124 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa FIGURA 2: Licenciamento de raízes em uma língua hipotética Y Em suma, é o balanço entre essas duas entidades – raízes e expedientes morfológicos - que determinará a maior ou menor possibilidade de alternância. Neste artigo, defendemos essa ideia com base no exame dessas duas línguas brasileiras. Este artigo está organizado da seguinte maneira: na seção 1, apresentamos brevemente algumas abordagens sintáticas que analisam a estrutura argumental e as alternâncias causativas. Mostramos que as abordagens sintáticas são mais vantajosas em relação às abordagens lexicais por lidarem com primitivos teóricos possíveis de serem checados nas línguas de modo geral, chegando, assim, a uma generalização teoricamente mais abrangente; na seção 2, apresentaremos os dados acerca da alternância causativa na língua Dâw e no PB; na seção 3, esboçamos uma análise comparativa entre a alternância discutida acerca das duas línguas supracitadas; na seção 4, apresentamos uma síntese do trabalho e algumas considerações finais sobre a questão discutida. 1 Abordagens sintáticas para a estrutura argumental 1.1 Por que abordagens sintáticas? Um dos grandes trabalhos motivadores para o estudo das alternâncias verbais é o estudo de LEVIN (1993), em que foram discriminados vários tipos de alternância, com base em um grande inventário de verbos do 125 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro inglês. Esse trabalho está entre os muitos6 que instauraram a tradição de se estudar a estrutura argumental com base em propriedades verbais que projetariam a estrutura sintática a partir da estrutura argumental ‘cunhada’ nos verbos. Atualmente, mesmo que as propostas lexicalistas tenham se diversificado bastante (RAMCHAND, 2008), ainda há bastante peso em uma estrutura argumental da raiz nessas abordagens, como se vê em RAPPAPORT-HOVAV & LEVIN (2012). As autoras postulam duas condições que visam descrever as possibilidades de alternância dos verbos. São elas: Condição de causação direta: um único argumento que acompanha a raiz pode ser expresso em uma sentença com um verbo transitivo se o sujeito representa a causa direta da eventualidade expressa pelo verbo e seu argumento. (RAPPAPORT-HOVAV &LEVIN, 2012, nossa tradução)7. Condição de continência apropriada: Quando a mudança de estado é apropriadamente contida dentro de um ato causador, o argumento representando esse ato deve ser expresso na mesma sentença que o verbo descrevendo a mudança de estado. (RAPPAPORT-HOVAV& LEVIN, 2012, nossa tradução)8. Se esses fatores se aplicam translinguisticamente, seria esperado que verbos em Dâw como rõ ‘queimar’ e beg ‘clarear’ alternassem, já que na contraparte transitiva desses verbos em português, por exemplo, o sujeito pode representar a causa direta da mudança de estado. Observe os exemplos abaixo que corroboram essa ideia: Dependendo da visão, a hipótese lexicalista tem seu ‘’pronunciamento’’ com o trabalho de CHOMSKY, 1970. Ver MARANTZ, 1997 para uma revisita a esse trabalho e uma reinterpretação de CHOMSKY (op.cit.) 7 No original: “The Direct Causation Condition: A single argument root may be expressed in a sentence with a transitive verb if the subject represents a direct cause of the eventuality expressed by the root and its argument. 8 No original: “The Proper Containment Condition: When a change of state is properly contained within a causing act, the argument representing that act must be expressed in the same clause as the verb describing the change of state.” 6 126 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa (4) João queimou o papel com um isqueiro. (5) Maria clareou os cabelos com um pincel. Os exemplos em (4) e (5) deixam claro que esses verbos atendem à condição de causação direta em PB; em Dâw, todavia, os mesmos verbos só são causativizados com a inserção de um auxiliar causativo específico, dôo. (6) Tir dôo rõ mãam-ʉ̃ʉy’ 3PS CAUS queimar feijão-MDO ‘Ele fez o feijão queimar/Ele queimou o feijão’ (COSTA, 2014b:29) (7) Woor dôo beg yun Tukano CAUS clarear roupa ‘O Tukano fez a roupa clarear/O Tukano clareou a roupa’ (COSTA, 2014b:29) Tendo em vista o contraste entre essas duas línguas, acreditamos que explicações que decomponham mais o sentido dos elementos formadores das sentenças sejam mais interessantes. Essas explicações formam as abordagens sintáticas e sintático-lexicais (também chamadas de construcionistas) para a explicação do comportamento dos verbos em alternância. Nessas abordagens, não se ignora um fato empírico como o aludido na citação de RAPPAPORT-HOVAV & LEVIN (op. cit) de que alguns verbos, obrigatoriamente, aparecerão em sentenças transitivas e com causas diretas como argumento externo. Entretanto, se o argumento externo é o último estágio de formação de um verbo deve haver algum ingrediente semântico ou sintático que licencie a concatenação de uma causa direta. Então a causa9, como argumento 9 Estamos usando neste trecho a nomenclatura das autoras, que se refere à causa como algo que “desencadeia o evento”. Esse desencadeador não tem de ser, necessariamente, um DP com papel temático causa. 127 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro externo, não é um primitivo, mas um produto de uma configuração sintática e sua interpretação semântica. Tendo em vista, então, a atenção aos blocos formadores do verbo e de suas estruturas sintáticas compatíveis, acreditamos que essas abordagens são as mais compatíveis para a pergunta que dá título a este texto. Passamos a apresentar as abordagens de que fazemos uso, quais sejam, HALE & KEYSER (2002), na seção 1.2, e a Morfologia Distribuída (doravante, MD), na seção 1.3. 1.2 Breve apresentação da teoria de HALE & KEYSER (2002) Para HALE & KEYSER (2002), a estrutura argumental é a configuração sintática projetada por um item lexical. Ela é determinada pelas configurações sintáticas geradas pela relação entre núcleo (item lexical) e argumento(s). A estrutura argumental dos verbos é formada, basicamente, por quatro tipos de estrutura: Monádica: o núcleo projeta apenas um complemento e nenhum especificador. Diádica básica: o núcleo projeta um complemento e um especificador. Diádica composta: o núcleo projeta apenas um especificador e não um complemento. Este último argumento é gerado somente por composição com outro núcleo. Atômica: o núcleo especificador. não projeta nem complemento, nem Passemos à exposição e motivação das estruturas na ordem em que foram elencadas acima. A estrutura monádica é formada por dois elementos: uma raiz (R) e um núcleo verbal (V). 128 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa (8) O núcleo verbal possui apenas um complemento (a raiz) e não projeta um especificador. A natureza dessa raiz, na maior parte dos casos, é um nome (NP), que não projeta nem especificador, nem complemento. Verbos denominais, como cough ‘tossir’ e dance ‘dançar’, são exemplos de verbos com esse tipo de estrutura. Em um primeiro momento, cough é gerado como um nome, na posição de raiz. O núcleo verbal, nesses casos, está vazio. Para se tornar um verbo, a matriz fonológica do nome passa para a posição estrutural de núcleo verbal por meio de um processo chamado de conflation. Conflation: processo no qual a matriz fonológica do complemento do núcleo é introduzida na matriz fonológica vazia do núcleo que seleciona o complemento10. (Adaptado de HALE & KEYSER, 2002: 12) Desse modo, depois de transferir a matriz fonológica do complemento nominal para o núcleo verbal, gera-se um verbo sintético que não projeta um especificador. Verbos inergativos e transitivos com esse tipo de estrutura são comumente encontrados nas línguas do mundo. Uma característica importante desses tipos de verbos é a impossibilidade de sofrerem a alternância causativa, como se vê abaixo: (9) a. The children laughed A criança riu No original: Conflation is restricted to the process according to which the phonological matrix of the head of a complement C is introduced into the empty phonological matrix of the head that selects (and is accordingly sister to) C. 10 129 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro b. *The clown laughed the children *O palhaço riu a criança (HALE & KEYSER, 2002:14) A alternância apresentada acima é do tipo causativo-inacusativa, na qual o sujeito do par intransitivo passa a ser objeto na sentença transitivada. Verbos intransitivos com estrutura monádica não podem ser transitivizados automaticamente, pois verbos desse tipo não projetam argumentos internos. Portanto, esses verbos não participam dessa alternância, o que explica a agramaticalidade de (9a) e (9b). O segundo tipo de formação verbal elencado é a estrutura diádica básica. Abaixo, observamos sua estrutura: (10) Nessa estrutura, a preposição é o núcleo que projeta dois argumentos: um especificador (DP) e um complemento (DP). A preposição especifica uma relação (que pode ser espacial, temporal, entre outras) entre duas entidades ou eventos. Isso define, para os autores, o caráter predicador da preposição, que, sendo núcleo, requer tanto especificador quanto complemento, diferentemente de nomes (que não requerem nenhum argumento) e adjetivos (que requerem apenas um argumento, o especificador). Para a formação do predicado verbal, é necessário que a estrutura diádica básica seja encaixada a uma estrutura monádica, que a toma como complemento, como é observado em (11). 130 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa (11) (HALE & KEYSER, 2002:24) Por fim, A estrutura diádica composta possui a seguinte estrutura: (12) Verbos com esse tipo estrutural possuem um especificador interno que é exigido semanticamente pela raiz (complemento do núcleo verbal11, isto é, V na estrutura) e é projetado pelo núcleo verbal. Na sintaxe, esse especificador sobe para o Spec de IP para receber caso e configura-se como o sujeito, se a sentença for inacusativa. Verbos desse tipo podem sofrer alternância causativo-incoativa por meio de um processo de transitivização simples, ou automática. O núcleo V tem como complemento uma raiz de natureza adjetival, que possui propriedades predicadoras e requer semanticamente um especificador, justamente pelo fato de ter características adjetivais. Em HALLE &KEYSER (2002), complementos são especificadores internos, por isso os dois termos são usados como sinônimos ao explorarmos as estruturas relevantes. 11 131 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro Compare o comportamento contrastante de, por um lado, amarelo e bonito, que precisam modificar um nome (casaco amarelo e homem bonito) e nomes como pulo e estudo que fazem sentido por si só. Assim, na estrutura diádica composta, a raiz adjetival, por meio de conflation, passa a ocupar a posição de núcleo verbal V (fonologicamente nulo e que recebe a matriz fonológica do adjetivo) tornando-se um verbo. Esse núcleo verbal projeta uma estrutura que recebe o especificador projetado pela raiz da estrutura. Desse modo, é o complemento (i.e., raiz adjetiva) que tem a propriedade de requerer um especificador. Essa estrutura é chamada de composta, pois a projeção do especificador interno depende de dois núcleos, a raiz, que o requer semanticamente, e núcleo verbal, que fornece uma estrutura para a projeção desse especificador. 1.3 Estrutura argumental em MD 1.3.1 A Morfologia Distribuída A Morfologia Distribuída (doravante, MD) é um dos desenvolvimentos da Gramática Gerativa e oferece uma proposta alternativa para o modelo de arquitetura da gramática assumido por essa corrente teórica. Seu grande diferencial é não tratar o léxico como um componente de idiossincrasias e de elementos indivisíveis. Na MD, não existe um componente lexical que alimenta a sintaxe. Em vez do léxico, existem três listas que têm as informações antes atribuídas ao componente lexical da gramática. Não há diferença entre a formação de palavras ou de sentenças, já que são necessárias as mesmas operações para a produção desses dois tipos de estruturas: move e merge. Portanto, este é um modelo que se mostra pertinente na exploração de questões morfossintáticas, como é o caso do objeto de estudo deste trabalho. Com o esquema do modelo de gramática da MD apresentado abaixo, podemos explicar melhor suas propriedades: 132 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa FIGURA 3: Arquitetura da Gramática na Morfologia Distribuída12 No modelo proposto pela MD, há três listas. A Lista 1, que contém traços gramaticais abstratos universais, além de raízes. A Lista 2 contém os expoentes fonológicos para as raízes que, uma vez manipuladas pela sintaxe, transformam-se em palavras, e morfemas funcionais abstratos, além de regras para sua inserção. A Lista 3, por fim, chamada de Enciclopédia, lista os significados especiais. Por exemplo, na sentença João é um gato, a interpretação de que João é uma pessoa bonita e não um tipo de animal felino é dada pela Lista 3. O módulo morfológico, presente após a derivação sintática, é o responsável por uma série de ajustes morfêmicos. Isso, argumentam HALLE E MARANTZ (1993), é o fator responsável para que não haja isomorfia entre sintaxe e fonologia, já que, nesse módulo da gramática, 12 Figura adaptada e traduzida por Paula R. G. Armelin a partir de SIDDIQI (2009, p. 14). 133 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro traços podem ser apagados (empobrecimento), concatenados (merge), fundidos (fusão) ou separados (fissão). Algumas máximas importantes para esse modelo de gramática são: As raízes são acategoriais. Assim, a partir de uma mesma raiz, como estud-, por exemplo, pode-se formar, por sua concatenação com um morfema categorial n, o nome estudante ou, por sua concatenação com um morfema categorial a, o adjetivo estudioso ou, ainda, por concatenação dessa raiz com o morfema categorial v o verbo estudar. Como as palavras podem mudar de classe de acordo com o contexto sintático, postular raízes acategoriais que são concatenadas com um morfema funcional durante a derivação é uma das vantagens da MD. Não são necessárias regras de ligação entre o léxico e a sintaxe, uma vez que, na teoria, o único componente gerativo é a sintaxe e as palavras são formadas pelos mesmos processos que sentenças. Palavras, assim como sentenças, são constituídas por morfemas lexicais e funcionais. Nesse modelo, estrutura argumental não é um produto do léxico e todas as alternâncias são tratadas como produtos de concatenação sintática. Estrutura sintática hierárquica em toda a derivação: para a MD, os mesmos processos que ocorrem para a formação de sentenças são aplicáveis na formação de palavras. 1.3.2 Estrutura argumental na MD As abordagens para a estrutura argumental em MD são um tanto dispersas e há várias correntes que não necessariamente se excluem. Todas partilham a ideia de que há raízes acategoriais, como exposto na seção 1.3.1. Com SCHER, MEDEIROS & MINUSSI (2010) e MARANTZ (2013), assumimos que as raízes são licenciadas em estruturas sintáticas. Há, pelo menos, duas posições em que elas podem ocorrer: elas podem se concatenar diretamente ao v (vezinho), funcionando como uma 134 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa espécie de advérbio de modo e raízes que se concatenam mais abaixo à estrutura e, quando categorizadas, podem expressar resultado da ação do verbo (incluem-se nessa última categoria muitas raízes que, quando categorizadas, participarão da alternância causativo-incoativa). FIGURA 4: Concatenação de raízes Nesse paradigma teórico, o significado de uma dada estrutura é dado por três fatores: Voice, a projeção funcional que introduz o argumento externo (KRATZER (1994)); vP, que introduz a eventualidade; Raízes, que podem ser de vários tipos. Esses três ingredientes, em suas mais diferentes combinações, devem refletir a variedade de codificação de eventos que há nas línguas do mundo. Para dar um exemplo útil à argumentação que será feita para o PB abaixo, ALEXIADOU, ANAGNOSTOPOLOU & SCHAEFER (2006) propõem que a estrutura de sentenças inacusativas alternantes pode ser de dois modos13: As estruturas árboreas em (13) e (14) estão ligeiramente diferentes das apresentadas em Alexiadou, ANAGNOSTOPOLOU & SCHAEFER (2006). Nas nossas representações, VP corresponde a √RootP dos autores. 13 135 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro (13) Inacusativos com VoiceP: (14) Inacusativos sem VoiceP: O primeiro tipo é o encontrado em línguas com morfologia nas inacusativas. Essa morfologia não é considerada pelos autores como marca de um núcleo funcional (ver discussão sobre isso na seção 3). Nas línguas que possuem esse expediente, a morfologia que é concatenada em VoiceP é categorizada sintaticamente, porque ocupa uma posição sintática dedicada, mas não semanticamente, já que essas formas não recebem papel temático porque não são interpretadas como entidades no mundo. O segundo tipo de inacusativos, ilustrado em (14), é aquele presente em línguas como o inglês, na qual as sentenças inacusativas não têm morfologia. A existência ou não de morfologia em inacusativas e a relação desse fenômeno morfológico com os verbos que alternam ou não em uma dada língua pode ser bem tratado nesse paradigma, visto que esses três elementos são tomados como os formadores do significado verbal e podem sofrer variações nas línguas. 136 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa 2 Alternância causativa nas línguas em análise Feita a introdução dessas teorias, passemos a explorar a alternância causativa nas duas línguas em análise. Cada uma das abordagens sintáticas tratadas neste artigo fará uso dos seguintes instrumentos para derivar a alternância causativa: HALE & KEYSER (2002): raízes, com propriedade adjetival14, que predicam um argumento interno e conflation15; MD: compatibilidade entre raízes e estrutura sintática. Se compatíveis, as raízes são licenciadas em determinadas estruturas. Ainda, as estruturas podem variar de língua para língua em virtude dos expedientes morfológicos das línguas. 2.1 Alternância causativa em Dâw A língua Dâw é falada por uma tribo de nome homônimo que vive na comunidade Waruá, no estado do Amazonas. Segundo MARTINS (2004), primeira pesquisadora a estudar a língua e autora da primeira gramática Dâw, essa língua se apresenta, tipologicamente, como isolanteanalítica com poucos processos de sufixação e nenhum de prefixação; além disso, seu léxico é predominantemente monossilábico. Ainda de acordo com MARTINS (2004), a alternância causativa teria reflexos nas mudanças tonais dos predicados verbais intransitivos. De acordo com a autora, verbos intransitivos são transitivizados por um morfema tonal descendente (H͡L)16. Para a autora, esse processo também estaria condicionado a restrições fonotáticas específicas da língua, como Isso não quer dizer que essas raízes sejam adjetivos. Significa dizer que elas têm alguma propriedade de medida/ escala, que é o que caracteriza os verbos da alternância causativa e também caracteriza os adjetivos. 15 Conflation não é exatamente um instrumento para derivar a alternância causativa, mas ele deriva as estruturas de modo geral. A raiz que predica um argumento interno (ou seja, a raiz com propriedades adjetivais) é mais responsável pela alternância do que a operação de conflation em si. 16 Tom alto e baixo (high e low). 14 137 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro ensurdecimento da coda silábica, entre outros17. Fruto de um trabalho de campo realizado em julho de 2013 junto à comunidade Dâw os trabalhos de COSTA (2014a) e STORTO, COSTA & ANDRADE (manuscrito) analisaram a alternância causativa e seus reflexos nas mudanças tonais de 21 verbos intransitivos, a saber: rôd – sair, ‘ãa – dormir, çeeb – mudar, ‘ʉb – acordar, beg – clarear, rõ – queimar, pêg-saak – crescer , çom – banhar, win – trabalhar , nõx - cair , kog’õogn – desmaiar, baax – aparecer, kʉ̃m – afundar , pôw’ – boiar, wʉʉd ‘chegar’, baad ‘virar’, ‘eed ‘virar’, bâar ‘derramar’, xop ‘secar’, pô ‘abrir’. A análise dos dados coletados evidenciou que o sistema tonal em Dâw é previsível na sentença, ou seja, o tom não está ligado a um tipo específico de sentença. Logo, não pode ser tomado como evidência da alternância de verbos. Desse modo, em linhas gerais, no nível fonológico, os itens lexicais que compõem as sentenças são divididos em frases fonológicas que são formadas por segmentos tonais previsíveis, isto é: (L H) e (L L H). Esses padrões são formas default e podem sofrer variações de contorno tonal. Diante dessas descobertas, COSTA (2014a) reavalia o processo de transitivização em Dâw e afirma que esse processo não condiciona mudança tonal dos verbos intransitivos, contrariando, desse modo, a hipótese de MARTINS (2004). Abaixo, apresentamos um exemplo de alternância causativa em Dâw no qual mostramos que os verbos da construção inacusativa (15a), e da construção causativa (15b) possuem o mesmo padrão tonal. (15) a) Mãam xop (L H) machado secar ‘O machado secou’ (COSTA, 2014b:24) Para a autora, o tom descendente transitivador, quando integrado aos verbos monossilábicos com a estrutura silábica CVC e coda desvozeada, seria pronunciado como tom ascendente (LH͡),pois palavras com coda surda não podem ter tom descendente (só ascendente ou neutro). 17 138 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa b) Tir xop mãam (L L HL) 3PS secar machado ‘Ele secou o machado’ (COSTA, 2014b:24) Desse modo, COSTA (2014a) assume que a alternância causativa apresentada acima é do tipo lábil. A mesma forma verbal é usada tanto na construção causativa quanto na construção inacusativa, sem o acréscimo de morfologia, o tipo (L) em HASPELMATH (op.cit.). A alternância acima exemplificada foi testada com 21 verbos intransitivos. Apenas 7 deles alternaram entre uma forma inacusativa e causativa. Eles são: pêt ‘quebrar’, wʉʉd ‘chegar’, baad ‘virar’,‘eed ‘virar’, bâar ‘derramar’, xop ‘secar’, pô ‘abrir’. Os outros 14 verbos intransitivos testados não alternaram livremente entre as formas inacusativa e causativa como foi observado com os 7 verbos supracitados. A causativização desses verbos pode ocorrer somente por meio da inserção de um auxiliar causativizador do tipo fazer em PB que em Dâw realiza-se como dôo. Na sintaxe, esse causativizador é concatenado acima do verbo substantivo da sentença. Neste trabalho, vamos nos deter apenas na alternância do tipo lábil. A escolha dos predicados verbais testados teve como objetivo a seleção de verbos que de acordo com a literatura (HALE & KEYSER 2002, HASPELMATH op.cit, entre outros) são prototipicamente alternantes (mudar, clarear, queimar, aparecer, afundar, boiar, virar, derramar, secar e abrir) e não-alternantes (sair, dormir, acordar, crescer, banhar, trabalhar, cair, desmaiar). O último grupo configurou-se como um grupo de controle, pois, por mais que nas línguas, de modo geral, esses predicados não alternam livremente entre uma forma inacusativa e causativa, testamo-los na língua Dâw de forma a constatar se essa língua em questão também segue o mesmo padrão de outras línguas já estudadas no que se refere à alternância desses predicados especificamente. 139 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro Dessa forma, COSTA (2014a) identifica duas subclasses de verbos intransitivos em Dâw: Subclasse dos verbos alternantes: 33% dos verbos elicitados: wʉʉd chegar, baad ‘virar’,‘eed ‘virar’, bâar ‘derramar’, pêt ‘quebrar’, xop ‘secar’ e pô ‘abrir’. Esses verbos alternaram entre a forma intransitiva e causativa sem morfologia específica que marque aumento de valência ou sem a inserção de um causativizador acima do VP. A semântica desses verbos é de mudança de estado no caso de verbos como pêt ‘quebrar’ e ‘xop ‘secar’, e de mudança de lugar no caso de verbos como wʉʉd ‘mudar’ e baad e ‘eed ‘virar’. Subclasse dos verbos não-alternantes: 66% dos verbos elicitados: rôd ‘sair’, ‘ãa ‘dormir’, çeeb ‘mudar’, ‘ʉb ‘acordar’, beg ‘clarear’, rõ ‘queimar’, pêg-saak ‘crescer’, çom ‘banhar’, win ‘trabalhar’, nõx ‘cair’, kog’õogn ‘desmaiar’, baax ‘aparecer’, kʉ̃m ‘afundar’, pôw’ ‘boiar’. Esses verbos foram causativizados apenas por meio da inserção do causativizador dôo.18 2.1.1 A subclasse dos verbos alternantes Segundo COSTA (2014a), cada uma das subclasses de verbos intransitivos apresentada caracteriza-se por um tipo específico de estrutura argumental que lhes capacita, ou não, a alternar entre uma forma intransitiva e causativa sem a inserção de um causativizador ou um morfema de aumento de valência. Como vimos na seção 1.2, para HALE & KEYSER (2002), verbos alternantes possuem estrutura diádica composta, formada por núcleo, raiz (complemento do núcleo) e especificador interno (sujeito do verbo na sentença intransitiva e objeto na sentença causativa). Os verbos intransitivos alternantes em Dâw estão configurados em uma estrutura como essa. Assim, na construção inacusativa, o complemento do verbo é o especificador interno do predicado. Esse predicado é formado por 18 Nesse artigo, não abordaremos essa subclasse verbal. 140 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa meio de conflation entre raiz e núcleo verbal. Na construção causativa (formada pela concatenação de duas estruturas: a diádica composta e a monádica, que está acima daquela), a matriz fonológica do verbo é movida para o núcleo da estrutura monádica. O especificador interno da estrutura diádica composta permanece in situ, ocupando a posição de objeto da sentença. Abaixo, as estruturas inacusativa e causativa dos verbos em Dâw propostas por COSTA (2014a) são apresentadas e ilustram a alternância com o verbo xop (secar). • Alternância causativo-incoativa (16) a) yun xop roupa secar ‘A roupa secou’ (COSTA, 2014a:146) b) Tir xop yun 3PS secar roupa ‘Ele secou a roupa’ (COSTA, 2014a:146) • Estrutura intransitiva (17) Pré-conflation (18) 141 Pós-conflation O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro • Estrutura transitiva (19) Pré-conflation (20) Pós-conflation Cabe ressaltar que o sujeito da sentença transitiva, ou seja, o argumento externo tir ‘ele’, é gerado apenas na sintaxe, não na estrutura argumental. Para os autores, o sujeito é estruturalmente um adjunto do VP. 2.2 Alternância causativa no português brasileiro O PB, assim como as demais línguas românicas e muitas outras do Tronco Indo-Europeu, pode apresentar uma morfologia específica nas sentenças inacusativas. O exemplo (1), acima, retomado como (27), poderia se manifestar da seguinte forma na língua em tela: (27) O João quebrou o prato. O prato se quebrou. Para muitos autores (BURZIO, 1986; LEVIN &RAPAPPORT, 1995; CHIERCHIA, 2004), tal distribuição é um marcador de valência, que indica, por exemplo, a ordem da derivação. Os três autores acima tomam a sentença causativa como básica e a inacusativa como contraparte derivada. Há uma série de testes que podem mostrar que esse não é o caso. Se essa morfologia das anticausativas for simplesmente um afixo sintático, não se espera que ela tenha efeitos de interpretação, o que os dados abaixo sugerem ser o caso. 142 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa (28) #A porta se abriu, mas não está completamente aberta. A porta abriu, mas não está completamente aberta. (29) A porta fechou rápido. #A porta se fechou rápido (NEGRÃO & VIOTTI, 2008) Outro argumento para que essa morfologia não seja vista como fruto de uma redução lexical é o fato de que ela não está disponível para todos os verbos alternantes. Verbos alternantes como aumentar e afundar, por exemplo, não aparecem com essa morfologia quando alternam nem os deadjetivais, que são tidos por alguns trabalhos como os verbos alternantes por excelência. (30) O navio (*se) afundou19. (31) O número de senadores (*se) aumentou. (32) A banana (*se) amarelou20. Tanto essa incompatibilidade de alguns verbos alternantes ocorrerem com essa morfologia quanto a possibilidade de uma língua perder ou ganhar essas marcas colocam em xeque a crença de que essa morfologia é fruto da redução lexical. Essa argumentação também vale para propostas sintáticas de que a morfologia da inacusativa é a lexicalização de uma categoria funcional como VoiceP [-ativo] (ver, por exemplo, LABELLE Essa sentença fica mais aceitável se a interpretação for reflexiva, se possível. Alguém poderia dizer que uma sentença como João se emudeceu é possível e o verbo presente nessa sentença é deadjetival. De fato, tanto João emudeceu quanto João se emudeceu são possíveis e, no último caso, há uma leitura disponível que parece divergir da disponível para anticausativas com morfologia reflexiva: em João se emudeceu, o participante João, deliberadamente, quis ficar mudo. Em João emudeceu, esse não precisa ser o caso. 19 20 143 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro & DORON, 2010).21 Os mesmos problemas – disponibilidade dessa morfologia com alguns verbos, e com outros não, e a possibilidade de essas marcas serem, diacronicamente, perdidas e adquiridas, ficam sem resposta22 . Uma questão que chama a atenção é o fato de marcas como essas estarem disponíveis em línguas que têm mais possibilidade de ter formas dependentes do verbo – afixos pronominais, afixos gramaticais e clíticos (CARVALHO & LAZZARINI-CYRINO, 2013). Línguas que não têm essa capacidade não possuem, geralmente, morfologia na anticausativa. Essa correlação não se sustentaria, mais uma vez, em uma visão que veja essa morfologia como fruto de redução lexical ou como uma categoria funcional. Levando essa argumentação em conta, seguimos aqui a proposta de SCHAEFER (2008) de que essa morfologia é um expletivo sintático. A estrutura para uma sentença como O prato se quebrou é a seguinte: (33) O fato de essa categoria ser pobre em termos de traços-phi23 – isto A categoria funcional que introduz argumentos externos. Para fundamentação dessa categoria, ver KRATZER (1996). 22 Para uma exploração diacrônica dessa morfologia no grego e no inglês, ver LAVIDAS (2010). 23 Traços-phi são traços de gênero, número e pessoa (ver CHOMSKY, 2001, entre outros). Uma categoria pode ser phi-completa, o que significa que tem todos esses traços ou phi-incompleta, ela porta só alguns deles. 21 144 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa é, ela ter menos traços-phi do que nos, a(s) e outros clíticos – demonstra que não há conteúdo suficiente para que ela seja interpretada como um constituinte passível de receber papel temático. Dito de outra forma: essa pouca especificação garante que ela não receba qualquer interpretação. Dessa forma, esse clítico é análogo a pronomes plenos expletivos como it e il, eminglês e francês respectivamente, que satisfazem tão somente um requerimento sintático, mas não têm participação na construção do evento. A estrutura para verbos que apresentam essa morfologia nas anticausativas foi esboçada acima, com base no trabalho de SCHAEFER (2008). Naturalmente, as línguas que não têm essa morfologia não poderão ter a mesma estrutura. Essas línguas só terão até o nível vP nas anticausativas. Uma sentença como O prato quebrou terá, então, a seguinte estrutura: (34) É de conhecimento geral que o PB tem perdido essa morfologia de inacusativas e seu padrão de alternância, que era (33) em sincronias anteriores, tem passado, gradualmente, a ser o de (34), ver discussão em (CHAGAS (2000) E RIBEIRO (2011), entre outros). Essa mudança no padrão de alternância sinaliza outra relação entre a raiz do verbo e os núcleos funcionais. Isso vai ser mais detalhado abaixo. 145 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro 3 Comparando a alternância causativa em Dâw e PB Com a análise aqui proposta, pretendemos mostrar que a alternância causativa é guiada por fatores sintáticos e sua variedade está ligada a fatores internos à língua. Por exemplo, se uma língua tem um núcleo funcional que impõe restrições aos membros da alternância causativa, menos verbos alternariam, porque menos seriam compatíveis com a estrutura da língua. Nas figuras (1) e (2), demos um exemplo abstrato sobre isso. Agora, vamos usar o PB para ilustrar esse caso. Veja um exemplo da alternância com um expediente morfológico que impõe restrições (comparar com a figura 1): (35) Em um sistema em que esse núcleo funcional não é mais projetado, mais verbos podem fazer parte dessa alternância, desde que eles sejam compatíveis com a mudança de estado (ou afetação) compatível com vP24. Veja um exemplo abaixo e compare com a Figura 2. Há outras abordagens para o estatuto categorial dessas sentenças, as quais não discutiremos aqui porque tal discussão foge dos objetivos deste artigo. O leitor interessado deve consultar, por exemplo, Negrão e Viotti (2008, 2010) e Cyrino (2007, 2013). Nossa proposta, embora divirja em alguns pontos de implementação, se assemelha às análises de Cyrino por julgar que tais construções são possíveis em virtude da perda do se (Cyrino, 2007) e de uma semelhança com a estrutura de sentenças inacusativas (Cyrino, 2013). 24 146 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa (36) Todavia, uma análise como essa para os dados do PB poderia entrar em choque com a análise dada para a língua Dâw. Acreditamos que esse não é o caso. Com essa mudança no sistema de anticausativas, o PB perdeu um núcleo funcional em anticausativas por ter perdido o item lexical que era concatenado a ele. Sendo o PB uma língua com grande quantidade de raízes compatíveis com uma estrutura de mudança de estado (cf. CANÇADO, GODOY & AMARAL, 2013 para um levantamento exaustivo de verbos), isso aumentou a alternância causativa. O Dâw, por outro lado, não poderia ser o mesmo tipo de língua. Os resultados do trabalho feito em campo por COSTA (2014a) levam a crer que a língua possui poucas raízes compatíveis com mudança de estado (daí resulta a pouca produtividade de alternância nessa língua) e poucas raízes, de um modo geral, compatíveis com conflation em algumas eventualidades, e a falta de alguns núcleos funcionais. Cada um desses dois tipos de situação será exemplificado abaixo. 3.1 Falta de alguns núcleos funcionais em Dâw: a inexistência de passivas Para evidenciar o argumento que esboçamos no final da seção anterior, é interessante observar que a pouca produtividade de alternâncias não é restrita à alternância causativa. A formação de passivas na língua não é possível25. No lugar dessa construção sintática, dois tipos de sentenças O teste de elicitação foi organizado da seguinte forma: Oferecemos um contexto situacional e solicitamos aos falantes a tradução de sentenças de PB para Dâw com a seguinte estrutura: (i) X foi cortado, mordido, comido Exemplo de contexto situacional utilizado: 25 147 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro foram produzidas na elicitação de dados: uma sentença inacusativa (37b); ii) uma sentença com sujeito genérico (38b). (37a) e (38a) são as contrapartes transitivas das sentenças em (b). (37) a) b) (38) a) Dâw xut rõk tor-ʉ̃ʉy’ gente macho cortar porco-MDO ‘O homem cortou o porco (COSTA, 2014a:181) Tor rõk yed. porco cortar ASPC ‘O porco cortou/O porco já cortou’ (COSTA, 2014a:181) Dâw xut wây pũug. gente macho ver porco ‘O homem viu o porco espinho’ (COSTA, 2014a:183) “Eu e um homem fomos para a mata e matamos um porco. Deixei o porco na casa do homem e da esposa dele. No dia seguinte, fui à casa dele e vi que o porco foi cortado”. O objetivo do teste foi elicitar construções passivas de verbos transitivos acompanhadas de um contexto em que há um agente ou causa não explícito(a). Neste teste, especificamente, os falantes não aceitaram a inserção de um adjunto como ‘agente da passiva’ nas construções elicitadas. Na visão de Baker, Roberts and Johson (1989), a morfologia participial da passiva está em uma cadeia com o agente da passiva, em uma estrutura que se assemelha ao fenômeno ‘redobro de clítico’. Portanto, a impossibilidade de concatenar um agente da passiva nessas estruturas pode ser analisada como a inexistência de um elemento como o partícipio, que tenha recebido o papel temático externo. Assim, se tais construções não mostram os efeitos de um agente implícito, elas não podem ser analisadas como passivas. Um fato que corrobora essa hipótese é a produção da sentença (i) por um dos informantes e a impossibilidade, atestada pelo mesmo falante, de concatenação de um agente da passiva. i) Tor rõk rãm porco cortar ir ‘O porco foi cortar’ Dada a hipótese acima sobre o papel do agente da passiva, julgamos que esse dado é uma párafrase da estrutura da voz passiva existente no português brasileiro, ou seja, ‘sujeito + auxiliar + verbo’. Outras sentenças produzidas pelos informantes quando lhes foi oferecido esse contexto estão em (37b) e (38b). 148 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa b) Dâw wây pũug gente ver porco ‘Alguém viu o porco’ (COSTA, 2014a:183) Como sabemos, a formação de passivas depende de formas fracas ligadas ao verbo (particípio ou clíticos). Se a língua não dispõe dessas formas e, consequentemente, da projeção funcional em que essas formas são concatenadas, como PartP, por exemplo, a passiva não é uma eventualidade disponível. 3.2 Raízes incompatíveis com conflation COSTA (2014a) afirma que em Dâw não há uma classe de verbos deadjetivais derivada morfologicamente como vemos em línguas como o PB (curto (adjetivo), encurtar (verbo)) e uma escala menor no inglês (red (adjetivo), redden (verbo)), mas construções analíticas na qual o adjetivo não é verbalizado, mas é complemento da cópula rãm ‘ficar’. Dessa forma, em Dâw, os verbos intransitivos “deadjetivais” possuem uma semântica estativa e não alternam. (39) a) b) weed çii rãm comida azeda ficar ‘A comida azedou’ *yu’ sol çii azedou rãm ficar (COSTA, 2014a:137) weed comida (COSTA, 2014a:137) A autora ainda afirma que a restrição de alternância deve-se à estrutura argumental desses tipos verbais. Desse modo, sequências formadas por um verbo auxiliar e um adjetivo são formadas por uma 149 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro construção diádica composta, na qual o núcleo verbal é preenchido por uma cópula que toma como complemento um adjetivo. O núcleo não sofre conflation com seu complemento, pois esse processo só ocorre quando o núcleo verbal é vazio, ou afixal26, e recebe a matriz fonológica do seu complemento. Caso esse núcleo seja fonologicamente pleno, ou seja, possua uma matriz fonológica, não ocorre conflation, como é observado em Dâw. A impossibilidade desses verbos alternarem é explicada, pois não há conflation do núcleo verbal e de seu complemento (o adjetivo), o que cancela a derivação do verbo. O que emerge dessa comparação entre o Dâw e o PB está sumarizado no quadro abaixo. TABELA 2: Síntese Elemento Raízes de mudança de estado ou afetação Conflation com V Morfologia em inacusativas PB Dâw Muitas Poucas Sim Têm desaparecido Em poucos casos Não há Os elementos explorados na tabela deixam claro que o PB não têm mecanismos que impediriam a alternância de ser tão produtiva, como foi descrito aqui. Como mencionado, essa língua possui muitas raízes de mudança de estado ou afetação, por outro lado, não há um verbo que impeça a operação conflation em estruturas diádicas compostas e a morfologia em inacusativas que, claramente, faz a seleção de alguns verbos com as quais pode se compor (o número de senadores (*se) aumentou)) é quase inexistente atualmente. O Dâw também não possui morfologia em sentenças inacusativas, o que poderia nos levar a prever que a alternância seria bastante difundida nessa língua também. Todavia, a falta desse elemento não favorece a Para HALE & KEYSER (2002), afixos possuem uma característica fonológica ‘defeituosa’, por isso permitem conflation. 26 150 Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa alternância porque elementos mais baixos do que ele já são restritivos para a alternância. Há raízes que não fazem conflation com V, portanto não há alternância, vide o exemplo de verbos deadjetivais. Além disso o número de raízes elegível para entrar na alternância é pequeno, presumivelmente porque várias raízes da língua não atendem ao requerimento semântico da construção inacusativa. Conclusão Neste artigo, mostramos que, apesar da aparente uniformidade da alternância causativa, os verbos que alternam em uma dada língua estão condicionados a propriedades das línguas, mais notadamente, a tipos de raízes e núcleos funcionais de que as línguas dispõem. Ilustramos isso com dois casos. O PB perdeu o expediente morfológico de um núcleo funcional que restringia a alternância causativa – só verbos com causa e agente como argumento externo eram licenciados nessa estrutura acarretando uma generalização de verbos alternantes. A língua Dâw parece ter comportamente oposto, ela apresenta raízes defectivas em alguns contextos e falta de núcleos funcionais defectivos que permitiram conflation. Em um nível empírico, esse trabalho corrobora a ideia de que a alternância causativa e os fenômenos de estrutura argumental, de um modo geral, estão relacionados à configuração dos primitivos nas línguas. Referências BAKER, M.; JOHNSON, K.; ROBERTS, I. Passive arguments raised. Linguistic Inquiry,1989, p. 219-251. BURZIO, L. Italian Syntax. Dordrecht: Reidel.1986. 151 O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família Nadahup) e o Português Brasileiro CANÇADO, M.; GODOY, L.; AMARAL, L. Catálogo de Verbos do Português Brasileiro: classificação verbal segundo a decomposição de predicados. Parte I: verbos de mudança. Editora UFMG. 2013. CARVALHO, J. &LAZZARINI-CYRINO, J.P. (De)transitivization and Labile verbs in Brazilian Portuguese. Poster Eilin 2013. COSTA, Jessica C. da. A estrutura argumental da língua Dâw. 2014. 288f. Dissertação (Mestrado em Linguística Geral) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014a. ______. Banco de dados linguístico dos trabalhos de campo realizados com a etnia Dâw. 2014b. CHAGAS DE SOUZA, P. A Alternância Causativa no Português do Brasil: Defaults num Léxico Gerativo. 199f. Tese (Doutorado em Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. CHIERCHIA, G. A semantics for unaccusatives and its syntactic consequences. In A.Alexiadou, E. Anagnostopoulou, & M. 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Ainda mostramos que, contrariamente ao que foi proposto por alguns autores, o escopo do prefixo re- não é sobre os subeventos de um verbo, uma vez que verbos monoeventivos também apresentam ambiguidade com a adição do prefixo. ABSTRACT Through a vast survey of verbs in Brazilian Portuguese, we have completed a detailed analysis of the “re-” prefix conveying the idea of repetition, with the intent of delimiting how it works. We demonstrate that the occurrence of this prefix is not restricted to a specific group of verbal classes, as some authors have noted; however, it occurs preferably with verbs that describe the lexical aspect of accomplishment and achievement. But it can also occur with verbs of activity connected to telic and reversible VP’s. We also demonstrate that the scope of the “re-” prefix is not related to the subevents of a verb, as is proposed by some authors, as the monoeventive verbs also present ambiguity through the prefix. 1 2 A autora agradece o suporte financeiro da FAPEMIG (Bolsa IC) A autora agradece o suporte financeiro do CNPq (Bolsa PQ) e FAPEMIG (Bolsa PPM). © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 155-180, jan./jun. 2014 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro PALAVRAS- CHAVE Aspecto Lexical. Classes Verbais. Prefixação. Telicidade. KEYWORDS Verbal Classes. Lexical Aspect. Prefixation. Telicity. Introdução Nas Gramáticas Tradicionais, a partícula re- é tratada como um prefixo de origem latina que carrega o sentido de repetição, sendo o conceito de prefixo definido como um elemento que toma um radical como base para formar novas palavras. Porém, ao analisarmos mais atentamente os verbos que se iniciam com esse prefixo, podemos perceber que nem sempre o re- vem aglutinado a um radical verbal, ou seja, nem sempre parece funcionar como um caso de prefixação, como ocorre em recuar, rechear e redigir. Além disso, apesar de grande parte dos verbos que começam com o prefixo re- apresentar a ideia de repetição, como em reabastecer, reabrir, reafirmar, existem outros que não apresentam tal sentido, como em reagir, reclamar, recorrer, etc. Assim, o presente artigo pretende apresentar uma análise mais detalhada sobre o funcionamento da partícula re- como prefixo que se aglutina a verbos do português brasileiro, doravante PB, e suas contribuições semânticas, mas focaremos nossa atenção mais especificamente nos verbos em que o re- apresenta a ideia de repetição. É importante ressaltar que aquilo que estamos chamando de “ideia de repetição” diz respeito a verbos em que o re- possui o mesmo significado que a locução adverbial de novo, não estando incluído nesse grupo palavras como, por exemplo, recortar e remexer, uma vez que essas dão ideia de iteratividade, movimento contínuo. 156 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado Na seção 1, fazemos uma breve descrição sobre os grupos de verbos que apresentam o prefixo; na 2, mostramos que o re- não é sensível a uma análise por classes verbais semânticas, ao contrário do que propõem Marantz (2007), Oliveira (2009) e Medeiros (2012); na 3, apresentamos a proposta de Dowty (1979) sobre o funcionamento do prefixo em inglês e analisamos a proposta de Dowty (1979) nos dados do PB; na seção 4, mostramos o papel que a telicidade exerce sobre o prefixo re-, baseadas nas propostas de Smith (1997) e mostramos como a propriedade da reversibilidade (Lieber, 2004) pode ser útil para a explicação do funcionamento do re-; e na seção 5, concluímos o artigo. 1 Grupos verbais com o prefixo re- no PB Usando o Dicionário Gramatical de Verbos do Português Contemporâneo do Brasil (Borba, 1990), fizemos um amplo e meticuloso levantamento de todos os verbos que se iniciam com o prefixo re-, no PB. Construímos sentenças com esses verbos, que passaram por julgamentos de aceitabilidade feitos através dos exemplos de Borba (1990), da nossa intuição de falantes e de buscas no site Google. Também foram aplicados testes semânticos e sintáticos, como os testes aspectuais retirados de Dowty (1979) e a participação em alternâncias verbais, para podermos fazer uma ampla radiografia do funcionamento do prefixo estudado. Ao todo foram selecionados 321 verbos que foram divididos em quatro grupos distintos, segundo o tipo de ocorrência do re-. Primeiramente, temos um grupo composto por verbos em que não há a ideia de repetição e em que o re- não se une a um verbo primitivo. Fazem parte dessa classe 127 verbos, tais como rebelar, receber, recepcionar, redimir, regar, etc. Vejamos que não há, pelo menos sincronicamente, um radical verbal primitivo e que esses verbos não podem ser interpretados como realizar uma ação novamente, ou seja, receber, por exemplo, não é *ceber de novo. 157 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro O segundo grupo é composto por verbos em que não há a ideia de repetição, entretanto há um verbo primitivo ao qual o re- se une. Fazem parte desse grupo 61 verbos, como reagir, rebater, recompensar, recorrer, reclamar etc. Notemos que, apesar de os verbos agir, bater, compensar, correr e clamar existirem sem a presença do prefixo, quando unidos a esse, nenhum deles denota a ideia de repetição. O terceiro grupo é composto de verbos em que há a ideia de repetição, entretanto não usamos os verbos primitivos nas mesmas construções. Foram encontrados 14 verbos desse tipo, como recapitular, retocar, retornar, entre outros. Observemos que apesar de podermos falar algo como eu recapitulei toda minha vida, dificilmente realizaremos a mesma sentença com o verbo capitular: ? eu capitulei toda minha vida. O mesmo ocorre com os outros verbos: Ana retocou a maquiagem / ? Ana tocou a maquiagem, a revista retornou às bancas/ ? a revista tornou às bancas. As três classes acima foram ilustradas brevemente com o intuito de realizarmos uma descrição do funcionamento do prefixo no PB. Entretanto, será o quarto grupo, o nosso objeto de estudo. Esse grupo é composto por verbos em que o re- se une a um radical verbal primitivo, equivalendo semanticamente à expressão adverbial de novo. Vejamos alguns exemplos: (1) O João reabasteceu o carro. (2) O mecânico realinhou o pneu do carro. (3) O técnico reconfigurou o computador. (4) O presidente redemocratizou o país. Em (1), temos o verbo abastecer acrescido do prefixo re-, que forma um verbo composto interpretado como abastecer de novo; em (2), o verbo alinhar, acrescido do prefixo re-, com o sentido de alinhar o pneu do carro 158 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado de novo; em (3), o verbo configurar, acrescido do prefixo re-, significando configurar o computador de novo; e em (4), o verbo democratizar, acrescido do prefixo re-, com o sentido de democratizar o país de novo. Fazem parte desse grupo 119 verbos3. 2 O prefixo re- e as classes verbais Começaremos nossa análise, utilizando algumas propostas sobre o re-, já apontadas na literatura. Alguns autores afirmam que a ocorrência do prefixo re- está restrita a determinadas classes semânticas de verbos. Por exemplo, Oliveira (2009), baseada em Marantz (2007), afirma que, no caso dos verbos transitivos, “o re- descreve a recorrência da mudança de estado sofrida pelo sintagma determinante que complementa o verbo”. Assim, para que o prefixo re- possa ocorrer, o verbo ao qual ele será unido tem que selecionar sintaticamente um DP e semanticamente um evento de mudança de estado. Também Medeiros (2012), em sua análise sobre o re- no PB, propõe que tal prefixo ocorre em “predicados que incluam um estado decorrente de um evento”, gerando a repetição do mesmo. Portanto, a proposta dos autores é que a inserção do prefixo re- é sensível às classes semânticas dos verbos, mais especificamente, é sensível a verbos que denotem uma mudança de estado. Entretanto, o que exatamente seja uma mudança de estado não fica muito claro. Por exemplo, Medeiros (2012) argumenta, já identificando o problema dessa classificação, que reler e reempurrar poderiam ser tipos de mudança de estado. No caso de uma sentença como Ana reempurrou o carrinho do bebê, podemos imaginar que há um estado pressuposto, o local prévio onde o carrinho estava e para o qual foi “reempurrado”. Já no caso de reler, é possível que haja algum tipo de conceptualização na qual, após uma leitura, o objeto lido passe a ser, também, uma entidade da vida mental do leitor, uma representação ou interpretação nova do livro. 3 Para uma maior clareza da descrição, anexamos esses dados em um apêndice final. 159 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro Assumir uma definição de mudança de estado de tamanha abrangência parece-nos enfraquecer a generalização proposta, pois será possível colocar muitos verbos dentro desses limites que não aceitarão o prefixo re-. Por exemplo, peguemos aleatoriamente três verbos como amadurecer, apodrecer, cegar. Seguindo essa linha de análise, poderíamos propor que a fruta madura, a fruta podre ou a pessoa cega mudaram de estados; contudo, parecem-nos bastante duvidosos (e não constam de dicionários) os verbos *reamadurecer, *reapodrecer e *recegar. Portanto, para verificar se realmente uma afirmação como essa se sustenta, um primeiro passo é propor uma definição exata do que seja uma mudança de estado. Para tentar clarear essa noção, vamos usar uma análise semântica mais fina, baseada na linguagem de decomposição em predicados primitivos, proposta por Cançado, Godoy e Amaral (2013). As autoras propõem em seu trabalho que existem verbos que denotam mudança, mas que essas podem ser de quatro tipos, e não somente mudança de estado. E que especificar essas mudanças é relevante para uma série de propriedades da sintaxe. Para tal afirmação, elas se valem de uma ampla classificação de 862 verbos do PB, divididos em quatro classes, de acordo com suas especificidades semânticas e seus comportamentos sintáticos, que denotam algum tipo de mudança, incluindo aí os que denotam uma mudança de estado. A primeira classe é a que elas denominam “classe de verbos de mudança de estado”. Os verbos pertencentes a essa classe acarretam o sentido de become ADJ (definição também dada por Parsons, 1990) e aceitam a alternância causativo-incoativa com ou sem o clítico se, como pode ser visto em (5): (5) a. b. c. A soprano quebrou a jarra de cristal A jarra de cristal ficou quebrada. (become ADJ) A jarra de cristal (se) quebrou. (alternância causativoincoativa) 160 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado Analisemos os exemplos dados por Medeiros (2012) e por Oliveira (2009) no âmbito dessa definição. Se os verbos que dão origem aos verbos com prefixo re- denotam uma mudança de estado, eles teriam que se comportar da mesma maneira que os verbos em (5): (6) a. O menino leu o livro. b. *O livro ficou lido. (become ADJ) c. *O livro (se) leu. (7) a. b. c. O garçom reconduziu a dama até a mesa. *A dama ficou conduzida. *A dama (se) conduziu até a mesa. (agramatical na leitura incoativa) Através das sentenças em (6) e (7), vemos que os exemplos dados pelos autores não se sustentam em uma análise mais rigorosa. E, além do mais, fica fácil mostrar que mesmo alguns verbos típicos de mudança de estado não aceitam a hipótese da mudança de estado como restrição à ocorrência do re- : (8) *A soprano requebrou a taça de cristal. Se ignorarmos esse contra exemplo e afrouxarmos a hipótese para que verbos que denotam uma mudança qualquer (de lugar, de posse, etc) aceitem tal prefixação, ainda assim podemos mostrar que, na realidade, a prefixação com re- não é sensível às classes verbais. Cançado, Godoy e Amaral (2013) propõem como outras três classes de mudança, a dos verbos de mudança de estado locativo, a dos verbos de mudança de lugar (location) e a dos verbos de mudança de posse (locatum). Os verbos de mudança de estado locativo acarretam ficar em um estado em um determinado lugar, são estritamente agentivos e não realizam a alternância incoativa: 161 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro (9) a. b. c. A Maria abrigou o idoso no asilo. O idoso ficou abrigado no asilo. *O idoso (se) abrigou no asilo. (agramatical na leitura incoativa) (10) a. b. c. Os guerreiros asilaram a Helena no território troiano. A Helena ficou asilada no território troiano. *A Helena (se) asilou no território troiano. (agramatical na leitura incoativa) Já os verbos de mudança de lugar acarretam que a entidade denotada pelo argumento interno do verbo passa a ficar em um determinado lugar, aceitando apenas um agente como argumento externo e não realizando a alternância incoativa: (11) a. b. c. O soldado crucificou o ladrão. O ladrão ficou na cruz. *O ladrão (se) crucificou. (agramatical na leitura incoativa) (12) a. b. c. O médico hospitalizou a paciente. A paciente ficou no hospital. *A paciente (se) hospitalizou. (agramatical na leitura incoativa) Por fim, os verbos de mudança de posse acarretam que a entidade denotada pelo argumento interno verbal passar a ser provida de alguma coisa, aceitando também apenas um agente como argumento externo e não realizando a alternância incoativa: (13) a. b. c. O guarda algemou o prisioneiro. O prisioneiro ficou com algema. *O prisioneiro (se) algemou. (agramatical na leitura incoativa) 162 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado (14) a. b. c. O menino açucarou o café. O café ficou com açúcar. *O café (se) açucarou. Retomando os exemplos das classes acima, mostramos abaixo que a ocorrência do prefixo re- não está restrita ao tipo de classe semântica do verbo ao qual ele se une, de modo que nas três classes, pode ou não existir exemplos com re-: (15) a. b. A Maria reabrigou o idoso no asilo. ?Os guerreiros reasilaram a Helena no território troiano. (16) a. b. *O soldado recrucificou o ladrão. O médico ?reospitalizou a paciente. (17) a. b. O guarda ?realgemou o prisioneiro. *O menino reaçucarou o café. Portanto, concluímos que denotar uma mudança de estado ou uma mudança qualquer não é uma restrição ao verbo aceitar a prefixação com re-. Com isso, vamos buscar uma resposta em outro nível de análise. 3 A análise de Dowty (1979) para re- no inglês Para Dowty (1979), o significado do prefixo re-, em inglês, parece ser o mesmo do advérbio again (de novo), que é analisado por McCawley (1971; 1973) e Morgan (1969) como sendo um advérbio ambíguo. Dowty (1979) propõe que tal ambiguidade pode ser descrita em termos de duas leituras: uma externa e outra interna. De acordo com o autor, em verbos que denotam o aspecto lexical de accomplishment4, como é o caso de fechar, 4 Vendler (1967) propõe a existência de quatro classes aspectuais do tipo lexical: atividades, estados, achievements e accomplishments. Estes últimos são verbos que indicam uma ação que se desenvolve no tempo, denotando um ponto de culminação e o ponto final. 163 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro apenas a leitura interna é acarretada, enquanto a outra constitui uma implicatura. Em uma sentença como O João fechou a porta de novo, a leitura externa corresponde ao fato de o próprio João ter feito a ação de fechar a porta mais de uma vez; já a leitura interna acarreta apenas que a porta já estava fechada em uma situação anterior, sem a necessidade de ter sido o João quem a fechou. Entretanto, Dowty (1979) nos mostra que a ambiguidade para sentenças modificadas pelo advérbio de novo é puramente estrutural, uma vez que se colocarmos o advérbio no início da sentença, não há mais dupla interpretação: (18) De novo, o João fechou a porta. Ao proferirmos a sentença em (18), só podemos interpretar que o João já havia fechado a porta anteriormente e teve que fechá-la de novo, ou seja, a leitura externa é a única presente. Diferentemente, sentenças com o prefixo re- não podem ser tratadas como casos de ambiguidade estrutural, uma vez que a posição do mesmo é fixa. Assim, de acordo com Dowty (1979), o prefixo re- ocorre preferencialmente com verbos de accomplishment e achievement5, acarretando que o resultado ou estado final destes é verdade pela segunda vez, mas não significando necessariamente que toda a ação expressa pelo radical verbal primitivo ao qual o re- se une tenha ocorrido mais de uma vez. Vejamos o seguinte exemplo: (19) O presidente Eurácio redemocratizou o país. A sentença em (19) acarreta apenas que o país já havia sido democrático em um momento anterior e esse acarretamento é aquilo que Dowty (1979) chama de leitura interna. A leitura externa de que Verbos de achievement são monoeventivos e télicos, descrevendo eventos que não se desenvolvem no tempo, ou seja, que são pontuais. 5 164 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado o próprio presidente Eurácio democratizou o país mais de uma vez é uma implicatura, ou seja, não é acarretada pela sentença. Isso é fácil de perceber quando dizemos uma sentença do tipo: (20) O presidente Eurácio redemocratizou o país, que já havia sido democratizado por Lucas há 10 anos atrás. Portanto, temos que, para o inglês, o re- ocorre com verbos de accomplishment e achievement, apresentando como acarretamento aquilo que Dowty (1979) chama de leitura interna e como implicatura, a leitura externa. Vejamos agora se o mesmo funciona para o português brasileiro. 3.1 A análise de Dowty (1979) e os dados do PB Apesar de Oliveira (2009) e Medeiros (2012) também se valerem da análise de Dowty (1979), os autores associam as restrições propostas por esse último à propriedade de mudança de estado. No entanto, como já comprovamos, essa restrição não se sustenta. Ainda, Oliveira (2009) e Medeiros (2012) ilustram suas propostas com poucos exemplos, o que leva a uma limitada descrição da língua. O que faremos é uma análise mais ampla das propriedades semânticas de aspecto lexical para os nossos dados, fazendo com isso, também, uma descrição mais minuciosa do fenômeno, e constatando se realmente elas são restritivas às ocorrências com prefixo re- no PB. Aplicamos aos nossos dados, os testes de aspecto lexical propostos por Dowty (1979). Como resultado tivemos que, dos 119 verbos analisados, 104 denotam o aspecto lexical de accomplishment e 15 denotam o de achievement. Vejamos alguns exemplos desses testes. Verbos de accomplishment, quando postos no progressivo, acarretam que a ação expressa pelo verbo ainda não ocorreu, enquanto verbos de achievement nos dão ideia de iminência6: Realçamos que estamos utilizando o verbo sem o prefixo re-, pois a afirmação a ser testada é a de que o prefixo em questão ocorre com verbos que são de accomplishment e achievement 6 165 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro (21) a. b. Carlos reformulou o trabalho. Se Carlos estava formulando o trabalho, então Carlos não reformulou o trabalho. (22) a. b. O guarda capturou o prisioneiro fugitivo. O guarda estava capturando o prisioneiro fugitivo. (expressa iminência) Verbos de accomplishment e achievement aceitam o advérbio temporal em x tempo: (23) Carlos formulou o trabalho em duas horas. (24) O guarda capturou o prisioneiro fugitivo em poucos instantes. Verbos de accomplishment, quando combinados com o advérbio quase, formam uma sentença ambígua, indicando que o verbo possui mais de evento. O mesmo não ocorre para verbos de achievement: (25) Se Carlos quase formulou o trabalho ou ele nem começou a formular, ou começou e parou a ação no meio. (26) Se o guarda quase capturou o prisioneiro fugitivo, então ele não o capturou. No entanto, é importante mencionar que, apesar de o re- ocorrer apenas com verbos de accomplishment e achievement, nem todos os verbos que denotam accomplishment e achievement podem ocorrer com o prefixo, como podemos ver nas sentenças a seguir: (27) *Ana requebrou o vaso. 166 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado (28) *João rechegou na festa. Em relação às leituras interna e externa, Oliveira (2009) e Medeiros (2012) concordam com Dowty (1979), afirmando que, em PB, o prefixo re- acarreta apenas a leitura interna nos verbos de accomplishment, ou seja, tem escopo apenas sobre o segundo subevento dos mesmos: (29) Carlos reformulou o trabalho. A sentença em (29) só acarreta que o trabalho já havia sido formulado anteriormente. A leitura de que o próprio Carlos o formulou mais de uma vez é uma implicatura. No entanto, não estamos certas de o prefixo re- ter escopo somente sobre os subeventos de um verbo, como afirmam Dowty (1979), para o inglês, e Oliveira (2009) e Medeiros (2012) para o português. Verbos de achievement são monoeventivos, portanto não se esperaria que apresentassem ambiguidade com o prefixo, já que essa é gerada pelo fato de o re- poder ter escopo sobre o primeiro ou o segundo subevento dos verbos de accomplishment. Vejamos o exemplo: (30) O guarda Leopoldo recapturou o assaltante. O verbo capturar é um verbo de achievement que tem sua monoeventividade confirmada através de sua combinação com o advérbio quase (26). No entanto, quando combinado com o prefixo re-, esse verbo apresenta uma ambiguidade que pode ser descrita da seguinte forma: (31) a. O guarda Leopoldo recapturou o assaltante que já havia sido capturado pelo soldado Lucas em um momento anterior. b. O próprio guarda Leopoldo capturou o assaltante mais de uma vez. 167 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro O mesmo tipo de ambiguidade ocorre para outros verbos de achievement que são transitivos, como é o caso de recomeçar: (32) a. b. c. Pedro recomeçou o trabalho. Pedro recomeçou o trabalho que Ana já havia começado antes. O próprio Pedro começou o trabalho mais de uma vez. Já o mesmo não ocorre para verbos de achievement intransitivos, como podemos observar em (33): (33) O relógio reapareceu. Notemos que esta sentença não é ambígua e isso ocorre devido ao fato de reaparecer ser um verbo intransitivo. Com isso, nos parece que, na verdade, o prefixo re- tem escopo sobre outro tipo de estrutura, e não sobre subeventos. Verbos transitivos, quando combinados com o prefixo re-, apresentam duas leituras. Podemos dizer que apenas a leitura interna é um acarretamento, enquanto a leitura externa é uma implicatura. Nossa análise encontra respaldo quando vemos que o mesmo ocorre com o advérbio de novo. Esse, por sua vez, é tido na literatura como ambíguo (McCawley, 1971, 1973; Morgan, 1969; Dowty, 1979), sendo utilizado como forma de atestar a presença de mais de um evento em determinados verbos (von Stechow, 1995, 1996). Porém, tendo o mesmo significado que o prefixo re-, o advérbio de novo não mede o número de eventos de um verbo, pois assim como o prefixo, tem escopo sobre outras estruturas, e não sobre seus subeventos. Isso explica porque certos verbos de atividade que são monoeventivos, como é o caso de martelar, por exemplo, formam sentenças ambíguas quando combinados com o advérbio de novo: 168 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado (34) O médico martelou o joelho do paciente de novo. A sentença em (34) apresenta duas leituras: uma de que o próprio médico martelou o joelho do paciente mais de uma vez, ou de que o médico martelou o joelho do paciente que já havia sido martelado por outra pessoa, como podemos ver na sentença a seguir: (35) O médico martelou o joelho do paciente que já havia sido martelado por uma enfermeira a poucos minutos atrás. Feitas essas considerações, concluímos até aqui que o prefixo re-, em PB, ocorre com verbos de accomplishment e achievement, concordando assim com as análises de Dowty (1979) para o inglês e Oliveira (2009) e Medeiros (2012) para o PB. Porém, ao contrário do que apontam esses autores, o escopo do prefixo não é sobre os subeventos de verbos de accomplishment, mas sobre algum outro tipo de estrutura de verbos que denotam accomplishment e achievement. Entretanto, só com essas restrições, ainda não podemos fazer uma generalização que abarque todos os exemplos com re-, como mostramos em (27) e (28) e outros exemplos ao longo do artigo. 4 A telicidade e os dados do PB Até este ponto da nossa análise, vimos que o prefixo re- não é sensível às classes verbais, e mais especificamente aos verbos de mudança de estado, mas sim ao aspecto lexical, de modo que este ocorre apenas com verbos que denotem accomplishment e achievement. No entanto, Smith (1997) aponta para o fato de o prefixo re- poder ocorrer com verbos de atividade, desde que eles denotem um evento télico7. A autora dá o seguinte exemplo: Segundo Rothstein (2004), ser um evento télico é ser um evento que tem um ponto final ou uma meta a ser alcançada. 7 169 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro (36) a. b. *They redanced. eles redançaram They redanced the second number. eles redançaram o segundo número Constatamos também, para o PB, que certos verbos de atividade, quando inseridos em sentenças que denotam telicidade, podem ocorrer com o prefixo re-, como em reescrever, reler e repensar. Vejamos o exemplo a seguir: (37) a. b. c. d. Henrique escreveu a carta. Henrique reescreveu a carta. Henrique escreveu o dia todo. *Henrique reescreveu o dia todo. Em (37), podemos observar que o verbo escrever só aceita o prefixo re-, quando se encontra em situações télicas. O mesmo ocorre para reler e repensar em sentenças do tipo: (38) a. b. Gisela releu o livro. *Gisela releu a noite toda. (39) a. b. Beto repensou o assunto. *Beto repensou a noite toda. Baseadas nesses exemplos, e assumindo que verbos que denotam accomplishments e achievements são télicos, poderíamos propor, mais genericamente, que a telicidade seria a maior restrição para a prefixação com re-. 170 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado Entretanto, constatamos ainda, para alguns exemplos do PB, que a telicidade sozinha não explica o funcionamento do re-, uma vez que temos outros verbos de atividade que não aceitam o prefixo, mesmo quando se encontram em sentenças que denotam eventos télicos: (40) a. b. Xuxa nadou 3 Km. *Xuxa renadou 3 km. (41) a. b. Rômulo correu 18 km. *Rômulo recorreu 18 km. A nossa explicação para tal fato é que, como Amaral (2013) propõe, nadar 3 km e correr 18 km não constituem propriamente um VP. As expressões 3 km e 18 km, segundo a autora, não são objetos de nadar e correr, mas sim adjuntos dos mesmos, ou seja, esses verbos não aceitam uma leitura de accomplishment, como acontece com escrever, ler e pensar. Notemos ainda, que nadar e correr não apresentam ambiguidade quando combinados com o advérbio quase: (42) Xuxa quase nadou 3 km. (43) Rômulo quase correu 18 km. Nas sentenças acima só temos a leitura de que a ação não foi terminada, ou seja, de que Xuxa parou de nadar antes de completar 3 km e de que Rômulo parou de correr antes de completar 18 km. Como as expressões 3 km e 18 km são adjuntos e não argumentos, os exemplos em (40) e (41) não constituem VPs télicos e, por isso, não aceitam o prefixo re-. Assim, a melhor explicação para a ocorrência do re-, com ideia de repetição é assumir que o prefixo ocorre apenas em verbos que possuem o aspecto lexical de accomplishment ou achievement, ou em VPs télicos que possam ter uma leitura de accomplishment. 171 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro No entanto, ainda há verbos de achievement que não aceitam o prefixo re-, como *rechegar e *reexplodir. 4.1 A propriedade semântica da reversibilidade Lieber (2004) mostra que há verbos de achievement e, consequentemente, télicos que não aceitam o prefixo re-, como: *reexplodir e *rechegar . Para essa autora, isso ocorre pois o re- adere a verbos que tenham um resultado reversível, o que justifica porque não podemos *reexplodir uma mesma bomba ou *rechegar em uma festa, por exemplo. Essa restrição é capaz de explicar algumas agramaticalidades. Retomemos os verbos amadurecer, apodrecer e cegar. Todos os três são verbos de mudança de estado que podem denotar achievement ou accomplishment e, portanto, são télicos. (43) a. b. c. d. O calor amadureceu a fruta. (accomplishment) A fruta amadureceu. (achievement) *O calor reamadureceu a fruta. *A fruta reamadureceu. (44) a. b. c. d. O calor apodreceu a fruta. (accomplishment) A fruta apodreceu. (achievement) *O calor reapodreceu a fruta. *A fruta reapodreceu. (45) a. b. c. d. A doença cegou o João. (accomplishment) O João (se) cegou com a doença. (achievement) * A doença recegou o João. * O João (se) recegou com a doença. 172 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado No entanto, como vimos nenhum deles aceita o prefixo re(*reamadurecer, *reapodrecer, * recegar). Com a proposta de Lieber (2004), podemos explicar isso, baseadas no fato de que nenhum desses verbos possui um resultado reversível, ou seja, não tem como fazer com que uma fruta, já madura ou podre, reverta seu processo para que possa amadurecer ou apodrecer de novo. Da mesma forma, não tem como fazer com que uma pessoa que esteja permanentemente cega volte a enxergar para que possa ficar cega novamente. Contudo, o problema é que ainda há uma série de verbos que têm o aspecto lexical de accomplishment ou achievement, e que possuem resultado reversível, mas que, ainda assim, não foram encontradas ocorrências dos mesmos com o re-: (46) ?João reapagou a luz do quarto. (47) ?O gás tóxico reasfixiou o fugitivo. (48) ?O diretor da faculdade reburocratizou a Pós-Graduação. (49) ?O vírus recorrompeu o arquivo. Notemos que todos os verbos de (46) a (49), apesar de serem interpretáveis, não são encontrados ou usados no PB. Também colocaríamos nessa lista os verbos conhecidos como psicológicos, embora Medeiros (2012) assuma que tais verbos aceitam a prefixação com re-. Não nos parece usuais ocorrências como ?repreocupar, ?reaborrecer, ?reirritar etc, apesar de serem verbos que denotam accomplishment e de terem uma natureza reversível. Com isso, concluímos que, embora haja algumas restrições para o uso do prefixo re-, como as de ser um verbo que tenha o aspecto lexical ou se encontre em um VP que apresente uma leitura de accomplishment 173 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro ou achievemente, apresentando um resultado reversível, o funcionamento de tal prefixo não pode ser totalmente explicado pelas mesmas. Isso nos mostra que há ainda uma série de idiossincrasias e outras questões, que não são de ordem semântica, envolvidas nesse fenômeno de prefixação. Considerações finais O trabalho aqui desenvolvido teve como objetivo fazer uma análise detalhada acerca do funcionamento do prefixo re- com ideia de repetição a fim de se tentar descobrir a que grupo de verbos esse pode se aderir para formar palavras derivadas. Ao todo, foram 119 verbos analisados. Mostramos, primeiramente, através da proposta de Cançado, Godoy e Amaral (2013) para as classes verbais do PB, que o prefixo re- não é sensível à classificação semântica dos verbos que denotam mudança de estado, contrariamente as análises de Oliveira (2009) e Medeiros (2012). Entretanto, concordamos com os autores no que diz respeito ao fato de, em PB, o re- ter preferência por verbos de accomplishment e achievement. Porém, diferentemente de Dowty (1979), Oliveira (2009) e Medeiros (2012), mostramos que o prefixo re- não tem escopo sobre os subeventos dos verbos de accomplishment, mas sim sobre algum outro tipo de estrutura, uma vez que verbos de achievement transitivos também apresentam ambiguidade quando combinados com o re-. Ainda chamamos atenção para o fato de que uma análise que tente explicar as ocorrências do prefixo re- através da telicidade (Smith, 1997) não se sustenta, pois há verbos que, mesmo quando inseridos em sentenças télicas, não aceitam o re, como *renadar, *recorrer e *redançar. Também mostramos que a proposta de Lieber (2004) a cerca da propriedade da reversibilidade pode ser útil na tentativa de se explicar porque certos verbos de accomplishment e achievement não aceitam o prefixo, como *reamadurecer, *rechegar, *reapodrecer, *recegar e *reexplodir. 174 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado Por fim, concluímos que, apesar de haver algumas restrições para o uso do de prefixo re-, como as de ser um verbo que tenha o aspecto lexical ou se encontre em um VP que apresente uma leitura de accomplishment ou achievement, apresentando um resultado reversível, o funcionamento tal prefixo não pode ser totalmente explicado pelas mesmas, de modo que outras questões, não semânticas, parecem estar envolvidas nesse processo de prefixação. Referências AMARAL, L. Os predicados primitivos ACT e DO na representação lexical dos verbos. 2013. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte, 2013. BORBA, Francisco da Silva. 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Ana readquiriu o apartamento. A empresa readmitiu o funcionário. Ana readquiriu o apartamento. João reafirmou a verdade. A professora reagrupou a turma. Blenda reajustou o relógio. A mãe realimentou o bebê. O mecânico realinhou o pneu do carro O reitor realocou a verba do orçamento. A chegada de Oscar reanimou a festa. O fantasma reapareceu para a garota. Josué reaparelhou seu carro. O índio reapossou sua terra. O menino reaprendeu a jogar futebol. Maria reapresentou o trabalho. Ana reaproximou o móvel à parede. O escoteiro rearmou a barraca no rio. A cabeleireira rearrumou a noiva. Benedita reassumiu o cargo da empresa. O vento reatiçou o fogo na plantação. Maurício reativou a empresa. Ricardo reatualizou o estoque. 177 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro 31. Reavaliar 32. Reavisar 33. Rebatizar 34. Rebobinar 35. Recair 36. Recapear 37. Recapturar 38. Recarregar 39. Recodificar 40. Recolocar 41. Recomeçar 42. Recompor 43. Recomprar 44. Reconciliar 45. Reconduzir 46. Recondicionar 47. Reconfigurar 48. Reconquistar 49. Reconsiderar 50. Reconsolidar 51. Reconstruir 52. Recontar 53. Recriar 54. Redefinir 55. Redemocratizar 56. Redescobrir 57. Redimensionar 58. Redirecionar 59. Redistribuir 60. Redividir 61. Redobrar 62. Reduplicar 63. Reeditar 64. Reeducar O corretor reavaliou a casa. Marcos reavisou Carlos da reunião. Bruna rebatizou o filho adotivo de Carlos. O pai rebobinou a fita. Ana recaiu em tristeza. (metafórico) O governo federal recapeou a estrada. A polícia recapturou o bandido. Juliana recarregou o celular. João Paulo recodificou toda a mercadoria. Beatriz recolocou o fone no gancho. Marina recomeçou o trabalho. O flautista recompôs a música. Pedro recomprou o mesmo carro A mãe reconciliou os filhos. O garçom reconduziu a dama até a mesa. Bento recondicionou o alto falante a falar. Bento reconfigurou seu computador. Gisela reconquistou o papel de atriz. Henrique reconsiderou sua decisão. Lula reconsolidou o Brasil. O povo reconstruiu a cidade. O menino recontou todo o dinheiro. O artista recriou o quadro. A mãe redefiniu a posição dos móveis. O presidente redemocratizou o país. Isadora redescobriu sua beleza. O engenheiro redimensionou a maquete. O piloto redirecionou o avião. O pai redistribuiu a terra (entre os filhos). A professora redividiu a tarefa. A empregada redobrou a roupa. Dilma reduplicou o preço da gasolina. A editora reeditou o livro. Carolina reeducou sua alimentação. 178 Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado 65. Reelaborar 66. Reeleger 67. Reembarcar 68. Reemitir 69. Reempossar: 70. Reimprimir 71. Reencarnar 72. Reencontrar 73. Reenrolar 74. Reensinar 75. Reequipar 76. Reerguer 77. Reescrever 78. Reestabilizar 79. Reestudar 80. Reexaminar 81. Refazer 82. Reflorescer 83. Reformular 84. Reintegrar 85. Reinterpretar 86. Reinaugurar 87. Reingressar 88. Reiniciar 89. Reinstalar 90. Reinstaurar 91. Reinventar 92. Relançar 93. Reler 94. Religar 95. Remarcar 96. Remodelar 97. Remontar 98. Renascer Marcos reelaborou o projeto. A população reelegeu Lula. Luma reembarcou no navio. Sara reemitiu a nota fiscal. Carlos (se) reempossou da terra. Larissa reimprimiu o documento. A alma de Bruna reencarnou. Carlos reencontrou Ana um ano depois. Lucas reenrolou a fita. O professor reensinou a matéria. A mãe reequipou a casa com coisas novas. O pedreiro reergueu o muro. Sara reescreveu a carta para o pai. Lula reestabilizou a economia do país. O aluno reestudou toda a matéria. O médico reexaminou o paciente. Beto refez o trabalho. A planta refloresceu com a chuva. Luiz reformulou o projeto A Febem reintegrou o menor à sociedade. Joana reinterpretou o papel de Madalena. Amélia reinaugurou o restaurante. Betânia reingressou na faculdade. O técnico reiniciou o computador. O menino reinstalou o jogo no laptop. O pai reinstaurou a paz na casa. Platão reinventou a retórica de Aristóteles. Araújo relançou a moda hippie no Brasil. Mariana releu o livro. Bruna religou a TV. Márcia remarcou o encontro com Letícia. Fabiana remodelou a jarra de barro. A criança remontou a maquete. A fênix renasceu das próprias cinzas. 179 Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro 99. Renegociar 100. Reocupar 101. Reordenar 102. Reorganizar 103. Reorientar 104. Repassar 105. Repavimentar 106. Repensar 107. Repintar 108. Replantar 109. Repor 110. Repovoar 111. Republicar 112. Requentar 113. Reestabelecer 114. Retomar 115. Revalidar 116. Revender 117. Rever 118. Reviver 119. Reunificar Os comerciantes renegociaram o preço. Luiz XV reocupou o trono. A professora reordenou as crianças na fila. Rianny reorganizou seu quarto. O cientista reorientou o satélite. O ator repassou o texto. A prefeitura repavimentou a rua da cidade. Miriam repensou o assunto. O pintor repintou o quadro. Fabiana replantou a árvore de maçã. Marcela repôs o estoque da dispensa. Noé repovoou a Terra (após o dilúvio). A editora republicou o livro. A mãe requentou o café. O diretor reestabeleceu o nome da escola. Os republicanos retomaram o poder. Lívia revalidou o contrato. Rodrigo revendeu a casa. Miriam reviu o trabalho. Laura reviveu a mesma história da mãe. O governo reunificou a Alemanha. 180 ALFABETIZAÇÃO APÓS O ACORDO ORTOGRÁFICO DE 19901: A QUESTÃO DO ‘Y’ E DO ‘W’ Celso FERRAREZI JUNIOR Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL) Cláudia TELES Faculdade de Ciências da Administração e de Tecnologia de Rondônia (FATEC-RO) Iara Maria TELES Universidade Federal de Rondônia (UNIR) RESUMO Com a introdução das letras y, k e w ao nosso alfabeto, pelo Acordo Ortográfico de 1990, muitos alfabetizadores têm ficado em dúvida sobre a classificação de y e w como vogais ou consoantes. O principal objetivo deste artigo é esclarecer essa questão, partindo de princípios fonéticos, fonológicos e pedagógicos, deixando claro que, na nossa língua, continuamos tendo sete vogais orais [ ↄ]. ABSTRACT With the introduction of the letters y, k and w to our alphabet, by the Ortographic Settlement of 1990, many literacy tutors have been having doubts about the classification of y and was vowels or consonants. The main objective of this article is to clarify that question, based on phonetic, phonologic and pedagogical principles, making it clear that, in our language, we still have seven oral vowels [ↄ]. O Acordo ortográfico de 1990 começou a valer no país a partir de 1º de janeiro de 2009, após a assinatura dos Decretos Presidenciais de números 6.583, 6.584 e 6.585 do ano de 2008. 1 © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 181-201, jan./jun. 2014 Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’ PALAVRAS-CHAVE Alfabetização. Acordo ortográfico. Classificação do Y e W. KEYWORDS Ortographic Settlement. Classification of Y and W. Introdução A associação dos sons com os símbolos escritos que os representam na grafia nunca foi tarefa fácil na alfabetização. A criança, quando chega à escola, hoje por volta dos quatro anos, nas classes que antecedem a alfabetização propriamente dita, já conhece os sons de sua língua materna e, com eles, já se comunica perfeitamente com o mundo. Ela se expressa usando todos os sons da língua com a entonação adequada, de forma que os que a cercam a compreendem e isso, por si só, demonstra que, nessa fase, a criança já não apresenta qualquer problema grave em relação ao uso e à compreensão dos sons de sua língua materna. Então, por que ela deve ser submetida a um processo de alfabetização? Porque seu processo de comunicação e expressão ainda ocorre basicamente na forma oral, o que não basta para se comunicar de forma satisfatória com seu mundo próximo ou distante em uma sociedade letrada. Nesse ambiente letrado, a escrita e a leitura complementam as possibilidades de comunicação da criança. Entretanto, o que se tem visto – ultimamente, de forma mais acentuada - é uma grande confusão no processo de ensino da leitura e da escrita. Há um patente desconhecimento dos processos envolvidos nesse ensino e um decorrente emaranhar de conceitos e métodos que enlouquecem as crianças mais do que as orientam. É preciso que os profissionais que trabalham com a formação da criança na área da comunicação e expressão, sobretudo o alfabetizador, que é o responsável pela base da 182 Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles pirâmide nessa área, tenham conhecimentos sólidos de Fonética, parte da Linguística que trata do estudo dos sons, tão necessários para se distinguir: 1. letra (grafema); 2. som (fone) e 3. fonema. Nosso principal objetivo, neste artigo, é tentar esclarecer um questionamento que tem sido feito por alguns alfabetizadores sobre a classificação de ‘y’ e ‘w’ como vogais ou consoantes, em virtude de essas letras terem, juntamente com o ‘k’, retornado ao nosso alfabeto após o Acordo Ortográfico de 1990. Achamos interessante reproduzir o questionamento de uma professora alfabetizadora2: “Dia desses, meu aluno M. de 7 anos perguntou:” ‘Profe’, Y é vogal ou consoante? Porque ele tem som de I né? Então é vogal?” Boa pergunta do M... eu nunca tinha parado para pensar!!! Eu apenas inclui as letras na faixa do alfabeto, mas quando as crianças foram avançando para hipóteses silábicoalfabéticas e a noção de sílaba (formada por duas ou mais letras) foi construída a dúvida que me pareceu muuuuito natural. ... Agora eu tenho outra dúvida: como vou apresentar as vogais para as crianças? A, E, I, O, U, Y e (às vezes) W???” Passos e Silva (2010, p.10)3, no livro Língua Portuguesa – 1º Ano do Ensino Fundamental, apresentam seis vogais em português: a, e, i, o, u, y. Se o ‘y’ está sendo considerado como vogal, então, o ‘w’ também não o deverá ser? Para melhor compreensão da noção de vogal, necessário se faz abordar, antes, alguns conceitos tais como grafema, fone e fonema, cinco ou sete vogais orais e hiatos ou ditongos4. Vamos a eles. www.google.com.br/fonetica/vogais. Acesso em 11/05/2012. PASSOS, Célia e SILVA, Zeneide, Língua Portuguesa – 1º ano Ensino fundamental, 2.ed.. São Paulo: IBEP, 2010. 4 FERRAREZI Jr., C.; TELES, I.M. Gramática do Brasileiro. São Paulo: Editora Globo, 2006 2 3 183 Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’ 1 Grafema, fone ou fonema? A abordagem sobre Fonética que normalmente é feita na educação básica brasileira deixa margem a uma conceituação confusa sobre as noções de grafema, de fone e de fonema. Em função da complexidade do tema, obviamente, não se abordam noções de Fonêmica nos níveis iniciais de ensino e, por isso, fala-se de fonema como se esse fosse um termo genérico. Ao se fazer os clássicos exercícios para distinguir grafemas de fonemas (quantas letras e quantos fonemas há na palavra ‘carro’, por exemplo?), não é feita uma preparação oral que permita ao aluno compreender, realmente, o que está fazendo, além de se considerar variações de alguns sons, às vezes, como se fossem fonemas. O aluno que aprende mecanicamente essas noções fará confusões entre grafema e fonema, o que o levará, certamente, a cometer, entre outros, erros de separação silábica, por exemplo, quando estiver separando dígrafos. Esclareçamos: a Fonética e a Fonologia são áreas da Linguística, estudo científico da linguagem como meio de comunicação, e ambas têm como objeto de estudo os sons da linguagem. No entanto, enquanto a Fonética, de modo geral, preocupa-se com a produção dos sons (ou seja, a forma como são realizados) e com a estrutura física desse sons, à Fonologia interessa saber se esses sons são distintivos ou não, se exercem uma função na linguagem. Por exemplo, conhecemos as diferentes maneiras de se pronunciar os dois grafemas ‘r’ da palavra ‘carro’: uns têm uma pronúncia mais anterior (região alveolar), outros uma mais posterior (região velar), ou mais posterior ainda (regiões uvular e faringal), mas sempre o falante do brasileiro saberá que se trata da palavra ‘carro’ e não de ‘caro’. Apesar das diferentes realizações dos dois (alveolar velar uvular glotal )5, objeto de estudo da Fonética, temos um só fonema 5 A escrita fonética dos sons se faz entre [ ] e a fonológica entre / /; não confundir com a escrita ortográfica que se faz com grafemas. Assim: carro (grafemas), (sons ou fones) e// (fonemas). Para as transcrições, utilizamos o Alfabeto Fonético Internacional (AFI). 184 Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles /r/ ou, conforme Cagliari (1997, pp. 14, 37 e 38)6, /x/ para o dialeto paulista, objeto de estudo da Fonologia. Os sons descritos pela Fonética, seu objeto de estudo, e que variam de sujeito a sujeito conforme fatores diversos – linguísticos e paralinguísticos – são chamados fones. Necessário se faz, no entanto, estabelecer um sistema para a língua que seja significativo, distintivo. Aí começa a construção da dimensão fonológica da língua (que vai determinar, pela prova de comutação, o sistema fonêmico da língua, mais econômico que seu sistema fonético), que é objeto de estudo da Fonologia. Pela prova de comutação (alternação de fones em um mesmo contexto), é verificado se uma alteração no significante (sequência de fones) resulta ou não em uma alteração no sentido. Assim, por exemplo, se falarmos ‘teto’ sabemos que não estamos falando de ‘neto’ ou de Nos três significantes temos o mesmo contexto ; como alteramos a palavra com a alternância dos fones , obtivemos, neste caso, sentidos diferentes; por isso, esses fones são fonemas //,// e /f/. Já no caso de ‘carro’, quer falemos [x [ o , sabemos tratar-se de um mesmo objeto, pois houve alterações na forma de pronúncia do som, mas o sentido não foi alterado. Temos para ‘carro’, então, vários fones que são alofones ou variantes entre si de um só fonema, o //. O falante do brasileiro sabe quando se trata de ‘carro’ (por exemplo, com sentido de ‘automóvel’) e quando se trata de ‘caro’ (por exemplo, com sentido de ‘algo de preço elevado’) pela distinção que ele é capaz de fazer entre os fonemas. Temos, então, que os fones (sons) que têm valor distintivo na língua são chamados fonemas. No exemplo dos dois ‘r’, podemos deduzir que o sistema fonêmico da língua é mais econômico que o fonético, pois, para um só fonema /r/, vimos quatro realizações (quatro sons) diferentes. A título de CAGLIARI, L. C. (1997). Análise fonológica. Introdução à teoria e à prática com especial destaque para o modelo fonêmico. Campinas: Edição do Autor. Série Linguística Vol.1. 6 185 Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’ informação, o sistema fonêmico do brasileiro é composto de 28 fonemas (21 consoantes – dentre as quais 2 aproximantes [j e [w, tradicionalmente conhecidas como semivogais – e 07 vogais)7 ou de 33 se forem consideradas 5 vogais nasais. Vejamos alguns exemplos para diferenciar grafemas de fones e de fonemas: Grafemas (escrita alfabética) Fones Fonemas chácara // tira // digo // quilo // cara // Wilson õ]7a /N/ Wudson õ /N/ Walkyria ou Valquiria ɐ] // Yara ou Iara ɐ] // Kalyl ou Kalil ou Calil // Vamos observar que ocorrem variações na forma como o som relacionado a cada grafema é pronunciado em diferentes regiões do Brasil, embora nada sobre isso seja dito aos pequeninos no processo de alfabetização. Vejamos as duas variações para as palavras ´tira´ e ´digo´: na Paraíba, o ´t´ e o ´d´ têm uma pronúncia apicodental [,[ (a constrição é causada pelo contato da ponta da língua contra os Cada língua tem um sistema fonêmico próprio. Como exemplos, citamos o francês com 36 fonemas, o espanhol com 24, o espanhol da América com 22, o italiano com 30, o inglês com 44, o holandês e o alemão com 36 7a Adotamos, neste artigo, a transcrição mais simples das vogais nasais, ressaltando que não é a única. 7 186 Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles incisivos superiores), enquanto, nas outras regiões, fala-se uma africada (o som sai com chiado). Tomamos, como exemplo, a variação da pronúncia dessas consoantes antes da vogal [i], mas é necessário esclarecer que, na Paraíba, tem-se essa pronúncia apicodental antes de todas as vogais, caracterizando-se como uma variação regional. Outro exemplo de variação regional da pronúncia dessas consoantes é o caso de Cáceres, Mato Grosso, onde se pronuncia uma africada antes de todas as vogais. Assim, por exemplo, em vez de ´dado´, temos em vez de ẽ ´dente´, temos ẽ em vez de ´dedo´, temos Mas, atenção: nos outros estados, pronunciase um som alveolar antes das demais vogais (a constrição é causada pelo contato da lâmina da língua contra a linha dos alvéolos), caracterizando-se como uma distribuição complementar, ou seja, é uma variação contextual e não regional. Assim, antes de temos e, antes das demais vogais, temos . Isso observado, nosso interesse mais direto deve ser: como trabalhar com os alunos quando o nível de ensino não permitir entrar nesses detalhes? Para não se incorrer em erros, falando-se em fonema como se esse fosse um termo genérico, como dissemos no início, julgamos ser preferível falar em “sons” em vez de “fonemas” no Ensino Fundamental e “fones” e “fonemas” nos outros níveis de ensino. 2 Cinco ou sete vogais orais? Se é constatado que temos um sistema vocálico composto de sete vogais em posição tônica – ↄ(ppa, pla, p]la, pla, pↄlo, p-lo, pla) – que se reduz a cinco em posição átona pretônica – (polticagem, m[e]tralhar, m[a]traca, m[o] lhado, [u]rubu) –, a quatro em posição átona postônica não-final – (polít[i]ca, paralelepíp[e]do, parágr[a]fo, íd[u]lo) – e, até mesmo, a três em posição átona final – (beb, cas, bol) –, então, por que iniciar a alfabetização dizendo que temos cinco vogais? 187 Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’ Aqui, os professores deveriam falar em sons ao invés de falar em vogais como se elas fossem ‘letras’. É absolutamente indispensável que o professor alfabetizador8 entenda que nosso sistema de escrita é ortográfico e não fonético-alfabético. O que isso significa? Significa que, em um sistema fonético-alfabético, haverá apenas um símbolo (letra/ grafema) relacionado a cada som. Em um sistema assim, ‘b’ com ‘e’ dá ‘bé’ e ponto final. Em um sistema ortográfico como o nosso, a coisa é bem diferente: ‘b’ com ‘e’ pode dar ‘bé’ (bela) , ‘bê’ (bebê”) , ‘bi’ (bebe) . Então, quando eu falo para o aluno que “há cinco vogais na língua”, pensando que meu sistema de escrita é fonéticoalfabético, eu o levo a entender que só “há cinco sons de vogais” porque eu só mostro para ele cinco letras (a, e, i, o, u) que eu, equivocadamente, chamei de “vogais” e isso está muito errado! Nosso sistema, diferentemente, é ortográfico. Isso significa que há uma forma correta (ortográfica) de escrever as palavras e que essa forma de escrever não corresponde à pronúncia das palavras na oralidade. Assim, o que eu deveria lhe mostrar é que há cinco letras9 que podem ser usadas para os sons de vogais, pois uma vogal é um som e não uma letra. Mas o sistema tradicional de alfabetização, que inclui os chamados métodos fônicos, tem confundido isso de forma drástica! Como eu posso ensinar um sistema ortográfico por um método fônico? Não dá! Depois os alunos ficam fazendo “transcrição fonética” na hora de escrever (e saem coisas como caza, tanbein, caxoro, mãi, naum, muinto) e os professores que os ensinaram uma “pseudotranscrição fonética” como forma de escrita ficam inconformados. Por isso é que sempre defendemos a ideia de que, nos cursos de Licenciatura em Pedagogia, deveria ser dada mais ênfase, nas grades curriculares, ao ensino da Fonética, pois um só semestre de Linguística e de Língua Portuguesa, como na maioria dos casos, não é suficiente, pelo contrário, pode até gerar mais dúvidas ao alfabetizador pela falta de tempo para esclarecer temas pilares. 9 ou 7, depois do Acordo Ortográfico que devolveu “y” e “w” ao alfabeto, ou ainda, mais, dependendo de nossa análise da pronúncia das palavras, já que em “canal” o som do “l” é igual ao som do “u” em “pau”, em muitas regiões do país. Então, nesse caso, o “l” teria que ser ensinado como uma “letra vogal”? 8 188 Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles Quando conversamos sobre as vogais com eles, os professores, normalmente, insistem na pretensa característica fonética do sistema e nos respondem: “Ora, temos sete sons representados por cinco letras que recebem o acento agudo para indicar os sons abertos”. E ficam sem resposta quando lhes perguntamos como explicar o fato de termos sons abertos que são representados por letras sem acento agudo, como em ‘pele’ e ‘polo’ ↄ, por exemplo. Ou seja, fazem uma confusão entre grafemas e sons. Por que não dizer que temos vários sons de vogais representados, na escrita, por menos letras, ou seja, que temos mais sons do que letras em nossa escrita? De modo geral, com quem temos conversado em nossa caminhada, fica claro que o receio de mudar se deve ao fato de que serão questionados pela família do aluno ou pelo corpo técnico da escola. A nosso ver, isso já deveria merecer um tratamento mais correto da parte dos alfabetizadores. 3 Hiatos ou ditongos? Por que importa falarmos em hiatos (ocorrência de duas vogais próximas na palavra, que se separam na pronunciação, ou seja, ficam em sílabas diferentes (saúde ) ou ditongos (ocorrência de uma vogal e uma semivogal que são pronunciadas conjuntamente, na mesma sílaba (pai [pai]) aqui? Devido à classificação dos grafemas ‘y’ e ‘w’ como vogais ou consoantes, problema que vem surgindo para os alfabetizadores, como já dissemos no início deste artigo. É importante observar que, como um mesmo som pode ser representado por vários grafemas (como vimos em 1), com a reinclusão das letras ‘y’ e ‘w’ em nossa grafia, pelo último Acordo Ortográfico, as vogais (fonemas) ‘i’ e ‘u’ passam a poder, ‘oficialmente’10, ser representadas, pelos grafemas ‘i’ ou ’y’ e ‘u’ ou ‘w’, dependendo da ortografia da palavra. Falamos aqui de “oficialmente” porque, na prática, essa representação nunca deixou de existir. Nomes como Kátia, Yvone, Yara, Wellington e Washington sempre foram aceitos como tendo grafias válidas, e as crianças nunca deixaram de os registrar assim por falta de um acordo ortográfico que o autorizasse. 10 189 Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’ Assim, temos Wilson õ, Wudson õ Walkyria ou Valquíria , Yara ou Iara (alguns consideram hiato ) Kalyl ou Kalil ou Calil . Observe-se que o grafema ‘l’ também é representado pelo som [w], ou seja, soa como “u” (com exceção do Rio Grande do Sul onde é pronunciado como ‘l’ mesmo ). Ainda mais alguns exemplos: em ‘whisky’ , o grafema ‘w’ soa como [u], mas, como se trata de um ditongo, foneticamente, temos a aproximante [w] e, fonologicamente, a semiconsoante /w/. Já está lexicalizada a forma ‘uísque’, mas é a mesma representação fonética com ditongo, apesar de alguns estudiosos considerarem aí a existência de um hiato . Em ‘hobby’ ↄ, temos o grafema ‘y’ que soa como a vogal [i], núcleo silábico. Em ‘byroniano’ , temos o grafema ‘y’ soando em um ditongo. Os sons [j] e [w] entram na composição dos ditongos e dos tritongos como semivogais ou semiconsoantes, dependendo da estrutura da língua. No caso do português brasileiro, como semiconsoantes, pois, em uma comutação, alternam com consoantes. Por exemplo, no contexto , podemos formar as palavras ‘Mara’ , ‘para’ e ‘Yara’ , além de outras mais. Em , temos um ditongo, portanto, duas sílabas, se bem que, para alguns, é um tritongo . Apesar de serem sons muito parecidos com os das vogais respectivas, se diferenciam por um tempo de emissão mais curto e rápido. Nunca serão vogais, pois o ápice da sílaba é sempre uma vogal, e tão somente uma. É frequente a dificuldade da maioria dos alunos, até mesmo de adultos, para distinguir ditongos de hiatos, e nem estamos falando aqui de ditongos crescentes e decrescentes. Essa questão simples, mas tornada complicada, sem entrar no mérito sobre ditongos verdadeiros e falsos, será facilmente resolvida se os professores levarem em conta que os sons, antes de qualquer coisa, devem ser pronunciados. Quando se faz uma abordagem oral correta da pronúncia das palavras, ou seja, uma prática oral em sala de aula, o problema desaparece. 190 Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles É necessário dar mais atenção ao fato de que, quando os alunos pronunciam, percebem a diferença entre hiato e ditongo e, quando sentem a intensidade mais forte ou mais fraca do início do ditongo, facilmente deduzem qual é o crescente ou o decrescente, sem ter necessidade de decorar, sem compreender, a fatigante lista dos ditos ditongos. Aliás, parece que os normativistas são fascinados por listas prontas... Pode-se, até mesmo, associar a representação Vv para os ditongos decrescentes e vVpara os crescentes. Assim, na palavra ‘pai’ temos , ou seja, Vv, e, em ´quase´, temos , ou seja, vV. É claro que, nas séries iniciais, o professor não deverá ter a preocupação de ensinar aos alunos a diferença entre ditongo, tritongo, hiato, ditongo crescente e decrescente, entre outros aspectos da fonologia da língua; afinal, o enfoque nesse período deve estar nas quatro habilidades básicas da comunicação: ler, escrever, ouvir e falar. Mas, quando o tema vier a ser introduzido, em séries mais avançadas, esses aspectos que abordamos aqui não devem passar sem relevo. Façamos, portanto, um exercício clássico para distinguir letras e fonemas, pois é assim que aparece nos manuais de alfabetização. Iremos um pouco mais adiante, porém, verificando como ele deveria ser respondido com base na moderna visão fonético-fonológica sobre a língua: Em ‘chaleira’, temos: a. oito letras (ou grafemas); b. sete sons (ou fones) []; c. sete fonemas //; d. três sílabas fonéticas e três sílabas gráficas [] e ‘chalei-ra’, respectivamente; e. três consoantes [] e não quatro (há 1 dígrafo “ch”); f. uma semiconsoante [] (aproximante é o termo fonético) e g. três vogais, considerando-se a repetição do ‘a’, [a, e, a]. 191 Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’ Para o aluno não confundir pensando que a letra ‘i’ é vogal, teríamos que fazê-lo pronunciar e perceber que ‘ei’ é um só som longo, parte de uma sílaba, e não ‘e’ e ‘i’, separadamente, pois aí seria hiato e não ditongo. Agora, a pergunta focal aqui é: um aluno de 4, 5 ou 6 anos, em fase de alfabetização, precisa saber tudo isso? É evidente que não! Mas seu professor precisa! É muito importante que o professor alfabetizador consiga diferenciar esses fenômenos, separar claramente cada um, compreender a diferença entre um sistema de alfabetização fonéticoalfabético e um sistema ortográfico para saber como lidar com cada um deles no processo de ensino e conseguir discernir as dificuldades de seus alunos na aprendizagem. Concluindo, temos que registrar que, em nossa caminhada pedagógica, observamos que a maioria dos professores de português brasileiro não sabe o porquê do estudo de ditongos e hiatos, não o associam à separação silábica, não dominam os fundamentos do sistema de escrita de nossa língua. Isso se reflete, inelutavelmente, no ensino da escrita e da leitura para os menores. 4 O Acordo Ortográfico (1990) e as letras reintroduzidas. Pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), as letras ‘k’, ‘w’ e ‘y’ são usadas em antropônimos e antropônimos estrangeiros e seus derivados (Franklin, frankliniano, Darwin, darwinismo, Taylor, taylorista, Wilson, Yara), topônimos e topônimos estrangeiros e seus derivados (Kuwait, Kuwaitiano) e em siglas e símbolos (TWA, kg – quilograma, kW – kilowatt, yd – jarda). Com a volta dessas três letras ou grafemas ‘k’, ‘w’ e ‘y’ (optamos aqui, por questões fonológicas, não empregar o termo consoante), em nossa ortografia, devemos nos lembrar que, em um sistema ortográfico como o nosso, são apenas mais uma opção para representar sons como 192 Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles o produzido pelos grafemas ‘qu’ em quilômetro, o som ‘u’ em Wilson e o som ‘i’ em Yara ou Iara, por exemplo. É exatamente o mesmo que acontece com alguns sons consonantais que são representados por várias letras (grafemas)11. Vejamos os exemplos seguintes: REPRESENTAÇÃO Letra Som Fonema GRAFEMÁTICA EXEMPLOS DE (SÍMBOLOS PARA COMO FICAM ESSES SONS COM ESCRITAS AS BASE NA ORTOGRAFIA PALAVRAS DA LÍNGUA) c [s] (CE) g (gê) [ g ] (GUE) /g/ j (jota) k r (erre) [] (JE) /s/ /Z/ [k] (CA) /k/ [r] (RRE) /r/ c (antes de “e”, “i”) ç (antes de “a”, “o”, “u”) g (antes de“a”,“o”, “u”) gu (antes de “e”, “i”) j (antes de todas as vogais) g (antes de “e”, “i”) c (antes de “a”, “o”, “u”) c (antes de outro grafema) qu (antes de “e”, “i”) r (inicial de sílaba) r (acompanhado de outro grafema) cerca, cimento cabeça, paçoca, açúcar galo, gota, gula guerra, guitarra já. jeca, jiló, jota, jumento gente, gilete casa, conto, locutor cravo, claro questão, quilo rua, rato, honra carro, carne, porta No anexo a este artigo, há um quadro da relação letra, som, fonema, representação grafemática e exemplos de todas as letras do alfabeto para conhecimento dos alfabetizadores, não devendo ser usado com os alunos para não os confundir. 11 193 Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’ s(esse) x (xis) z (zê) [s] (CE) [] (XE) [s] (CE) [z] (ZE) /s/ /S/ /s/ /z/ s (inicial de sílaba ou seguido de outro grafema) x ch x em casos especiais sapólio, falso, passo, cônscio, consciência xícara, xarope, caixa charque, chuveiro aproximar, próximo z s (entre vogais) zero, zebra casa, rosa exemplo, executar, exército x (em casos especiais) A professora que teve problema com seu aluno M., de sete anos (relatado no início deste artigo), após consultas feitas em blogs pedagógicos, chegou à seguinte conclusão12: Seguindo os princípios fonético-fonológicos, Y é uma VOGAL, pois é um fonema pronunciado com a passagem livre do ar pela boca. O K é uma CONSOANTE, pois precisa de uma vogal para formar sílabas e ser pronunciada. Já o W é VOGAL ou CONSOANTE, dependendo do uso. Fica assim: com som de V, quando proveniente do alemão (como Wagner), com som de U, quando de origem inglesa (caso de web). Sobre essa conclusão, é necessário reforçar que ela está errada! Nem ‘Y’ é vogal, nem ‘K’ é consoante, nem ‘W’ é vogal ou consoante. ‘Vogal’ e ‘consoante’ são especificações taxonômicas de ‘sons’ e não de ‘letras’. ‘Y’, ‘K’ e ‘W’ são apenas letras ou, mais tecnicamente, ‘grafemas’, que podem ser utilizados para representar ora sons vocálicos, ora sons consonantais, como ocorre com as demais letras do sistema do português brasileiro de escrita, sendo que isso varia de um sistema de escrita para outro. Veja: 12 www.google.com.br/fonetica/vogais. Acesso em 11/05/2012. 194 Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles uma vogal [a] será uma vogal [a] em qualquer sistema linguístico em que ela ocorra no mundo. A letra ‘a’ pode ter valores diferentes em sistemas de escrita diferentes. Conhecer claramente essa diferença é essencial para quem alfabetiza. É óbvio que há grafemas da escrita do português brasileiro que se especializaram em sons vocálicos (como o ‘a’), e outros que se especializaram em sons consonantais (como o ‘r’), mas também há outros que ora são vocálicos (ou semivocálicos, ou semiconsonantais, conforme a estrutura da língua) ora consonantais (como o “l”, que pode ter som de [w] – como em “final” - e o “m” que pode ter som do [w] dos ditongos nasais - como em “correram”, por exemplo). Assim, o que o alfabetizador deve mesmo reforçar com seus alunos é o fato de que, em um sistema de escrita como o nosso, uma mesma letra pode servir a muitas finalidades. Por isso, devemos aprender como as palavras são escritas, já sabendo que serão pronunciadas de formas diferentes, em diferentes partes de nosso imenso país, utilizando-se economicamente uns poucos símbolos para a grande quantidade de sons que a língua possui. E isso muito mais com a preocupação de que o aluno aprenda a ler e escrever com qualidade, do que com a “decoreba” de classificações e nomes que não lhe dizem nada. Conclusão Por tudo que expusemos neste artigo - e como dissemos no início - é preciso que os profissionais que trabalham com a formação da criança na área da comunicação e expressão, sobretudo o alfabetizador, revejam seus conceitos de grafema, som ou fone, fonemas, vogais e consoantes, encontros e separações vocálicas, entre outros. Queremos enfatizar que é preciso separar os diferentes níveis de análise: grafemática, fonética e fonológica, pois, assim procedendo, o alfabetizador não terá mais problemas em relação à classificação de 195 Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’ ‘y’ e ‘w’. Temos visto que alguns estudiosos e autores de livros estão misturando esses níveis de análise. Antes de se adotar um manual de alfabetização, seria interessante que a coordenação pedagógica das escolas, juntamente com os professores da área de Comunicação e Expressão, fizessem uma boa análise do capítulo em que são utilizados conceitos de Fonética, pois tudo o que se ensina no início da alfabetização exercerá influência sobre todo o processo da aprendizagem. Assim, fica claro que, na nossa língua, continuamos tendo sete vogais orais [ ↄ ], que elas podem ser nasalizadas (com ou sem o uso de diacrítico próprio (~) na escrita) e que também ocorrem semiconsoantes13 ([] e [w]) quando, na escrita, aparecerem duas letras na mesma sílaba, o que resulta, na fala, em ditongos que são formados de uma vogal (ápice silábico) e uma semiconsoante, devido à estrutura do português, ou em tritongos, como já explicamos no item três deste artigo. Para toda essa diversidade, a escrita conta hoje com poucas letras e outros símbolos (diacríticos). Veja o que usamos: a. a, e, i, o, u, y e w para representar as vogais e as semiconsoantes, conforme o caso; b. os diacríticos (^, ´, ~) para indicar certas modificações nos sons dessas vogais e semiconsoantes, mas apenas em alguns casos previstos na ortografia, já que o uso de diacríticos é próprio da ortografia e c. letras como “m” e “n” para indicar nasalizações em alguns casos previstos na ortografia, como em ‘antes’ [] e ‘ambas’ [˚]. Ou seja: como se trata de um sistema ortográfico, cumpre saber, caso a caso, como a palavra será representada, sem qualquer garantia de pronúncia idêntica por parte dos falantes. 13 Por força do hábito, continua-se falando em encontros vocálicos e semivogais. 196 Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles Referências ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 5ª ed., Rio de Janeiro: Global Editora. 2009. CAGLIARI, L. C. Análise fonológica. Introdução à teoria e à prática com especial destaque para o modelo fonêmico. Campinas: Edição do Autor. Série Linguística Vol.1. 1997. FERRAREZI JR., Celso. Discutindo Linguagem com Professores de Português. São Paulo: Terceira Margem, 2000. FERRAREZI JR., Celso. Ensinar o Brasileiro: Respostas a 50 perguntas de professores de língua materna. São Paulo: Parábola, 2008. FERRAREZI JR., Celso e TELES, Iara Maria. Gramática do Brasileiro. São Paulo: Editora Globo, 2006. PASSOS, Célia e SILVA, Zeneide, Língua Portuguesa – 1º ano Ensino fundamental, 2.ed.. São Paulo: IBEP, 2010. 197 Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’ Anexo Relação letra, som, fonema, representação grafemática e exemplos REPRESENTAÇÃO GRAFEMÁTICA LETRAS (grafemas) SOM (fone) FONEMA (SÍMBOLOS PARA EXEMPLOS DE COMO ESSES SONS FICAM ESCRITAS AS COM BASE NA PALAVRAS ORTOGRAFIA DA a b [a] [b] /a/ /b/ c [s] /s/ [d] ou d [d] /d/ [d] e f [e] /e/ [] [f] // /f/ LÍNGUA) a b c (antes de “e”, “i”) ç (antes de “a”, “o”, u”) d (antes de “a”, “e”, “o”, “u”) d (falar paraibano antes de todas as vogais) d (antes de “i” e falar de Cáceres MT antes de todas as vogais) e abóbora bonita cerca, cimento cabeça, paçoca, açúcar dado, dedo, Duda dia elefante e, é pele, Pelé, f faca 198 Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles [g] ou g /g/ [] h i --[i] -/i/ j [] // k l [k] /k/ [l] (lh) /l/ [u] ou [l] m n (nh) o p [λ] [m] [n] [] [] [o] [ↄ] [p] /λ/ /m/ /n/ // /o/ /ↄ/ /p/ [k] ou q /k/ [c] g (antes de“a”,“o”, “u”) gu (antes de “e”, “i”) h i j (antes de todas as vogais) g (antes de “e”, “i”) c (antes de “a”, “o”, “u”) c (antes de outro grafema) l (início de sílaba) Em final de sílaba, gaúchos pronunciam “l” lh m n filho, afilhado camada nadar nh montanha, manha ng canga, manga o o, ó p qu (antes de “a”,”o”) qu (antes de “e”, “i”) maroto, roto polo, paletó paletó quadrado, quociente, 199 galo, gota, gula guerra, guitarra homem igreja já. jeca, jiló, jota, jumento gente, gilete casa, conto, locutor cravo, claro lado, calado mel, Sílvia questão, quilo, Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’ r [r]ou [x ou [ ou [h /r/ r (inicial de rua, rato, honra sílaba) r (acompanhado de outro carro, carne, porta grafema) [] // r (entre vogais) u [u] /u/ s (inicial de sílaba ou seguido de outro grafema) t (antes de “a”, “e”, “o”, “u”) t (falar paraibano antes de todas s vogais) t (antes de “i” e falar de Cáceres MT antes de todas s vogais) u v [v] /v/ v s [s] /s/ [t] ou [t] t /t/ [t] [u] /w/ [v] /v/ w w (em ditongos, tritongos, nomes estrangeiros e nomes próprios) w (palavras estrangeiras e nomes próprios) 200 cara, arapuca sapólio, falso, passo, cônscio, consciência tatu, totó, teu tia uva Valter, Vilson, cavalo Kuwait, Kuwaitiano, Wilson, Walter, Darwin, darwiniano Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles [] // [s] /s/ x /i/ y [i] /j/ z 26 [z] 37 considerando as variações mais comuns /z/ x ch x em casos especiais y (em núcleo silábico) y (em ditongos, tritongos, nomes estrangeiros e nomes próprios) z s (entre vogais) x (em casos especiais) 28 201 xícara, xarope, caixa charque, chuveiro aproximar, próximo Walkyria, Kalyl , hoby Yara, yawalapiti, byroniano zebra, zarpar, Izabel casa, Isabel exemplo, executar LINGUAGEM E PRÁTICAS IDENTITÁRIAS Nádia GADELHA Universidade Federal do Ceará (UFC) RESUMO No presente trabalho, apresento a dialética do discurso, segundo FAIRCLOUGH (2003), relacionando discurso, identidade e representações com a práxis social da medicina. Este estudo é situado na prática de pesquisa etnográfico-discursiva sobre o discurso médico-paciente (MAGALHÃES, 2000). Os dados analisados apontam para as práticas identitárias de médicos e médicas e revelam profissionais compromissados com as tecnologias da medicina tecnicista no cenário contemporâneo global. As identidades médicas sugerem agonística, resistência, luta e tentativas de superação dos limites da arte de curar, processo pautado por muitas dificuldades de gestão e de recursos no contexto político e social, historicamente situado da saúde pública no Nordeste do Brasil. ABSTRACT In this paper, I present the dialectics of discourse, according to FAIRCLOUGH (2003), relating discourse, identity and representations with the praxis of social medicine. This study is situated in the practice of discursive ethnographic research on doctor-patient discourse (MAGALHÃES, 2000). The analyzed data point to the identity practices of physicians and medical professionals committed to reveal the technologies of medicine technicist contemporary global scenario. The identities suggest agonistic medical, resistance, struggle and attempts to overcome the limits of the art of healing, a process marked by many difficulties and management of resources in the social and political context, historically situated public health in the Northeast of Brazil PALAVRAS-CHAVE Análise de Discurso Crítica. Discurso Médico. Etnografia. Identidades. © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 203-233, jan./jun. 2014 Linguagem e Práticas Identitárias KEYWORDS Critical Discourse Analysis. Medical discourse. Ethnography. Identities. Introdução No contexto da práxis hospitalar, identidades médicas sinalizam aspectos importantes da prática social da saúde pública marcada por fortes mecanismos discursivos políticos de desrespeito à saúde das populações atendidas. No Brasil, falar de saúde é trazer ao debate o respeito aos princípios paradigmáticos do Sistema Único de Saúde – SUS e suas garantias nas prestações de assistência médica de qualidade aos usuários-cidadãos do SUS. Neste artigo, examino as vozes médicas de um cotidiano hospitalar situado em um município no Nordeste do Brasil, local historicamente lembrado como uma região de intensas desigualdades sociais. Situadas nessa complexidade histórica, as vozes médicas podem ser entendidas como protagonistas da vida e da morte. Este trabalho é parte de minha pesquisa de doutoramento que tem como objeto o estudo do discurso médico-paciente (MAGALHÃES, 2000), apresentando como suporte constitutivo a práxis médica no contexto de atenção às demandas populacionais SUS-dependentes, em sua grande maioria pessoas pobres, impossibilitadas de adquirirem planos privados de saúde. Nesse contexto, a assistência médica passa por inúmeras dificuldades e restrições nas coberturas de tais demandas, quer do ponto de vista da atenção primária de saúde, quer secundária ou de alta complexidade. Apresento uma análise discursiva das identidades médicas, tomando como referencial teórico metodológico a Análise de Discurso Crítica - ADC (FAIRCLOUGH, 2003) e a etnografia discursiva no âmbito do discurso médico-paciente segundo Magalhães (2000), situado no campo dos estudos de linguagem e sociedade. O objetivo é analisar 204 Nádia Gadelha os dois significados do discurso segundo Fairclough (2003), que se mostram centrais para a pesquisa etnográfico-discursiva: representação e identificação. As práticas identitárias estudadas no âmbito da ADC estão relacionadas a discursos (FAIRCLOUGH, 2003). A análise desses significados segue a orientação de Fairclough (2003, p.106): “identificar as principais partes do mundo (incluindo áreas da vida social) representadas”. A representação e a identificação são investigadas mediante entrevistas, observação e notas de campo. Proponho contribuir para o debate político e ético da saúde pública, e da práxis da medicina no Nordeste do Brasil sob as novas demandas do discurso da humanização da saúde. Este artigo está organizado em quatro seções. Na primeira, abordo o referencial teórico que orienta a análise. Na segunda, abordo o referencial teórico-metodológico prático que orienta a minha análise discursiva. A terceira seção desenvolve a análise discursiva e a quarta apresenta os relatos etnográficos. Concluo o trabalho com algumas inquietações e incompletudes. 1 ADC e pressupostos teóricos-metodológicos A ADC é uma epistemologia linguística contemporânea constituída de uma heterogeneidade de abordagens e epistemologias críticas que compartilham princípios comuns, sobre os quais esclarece seu foco: analisar discursos incidindo uma crítica filosófica/científica sobre eventos /contingências sociais sob os quais os sujeitos e sua relação natureza/sociedade estabelecem e estabilizam instituições, valores e práticas sociais. Tais características são apontadas como um campo (in )disciplinar aberto à reflexão teórica e epistemológica que atende às características de cada objeto de pesquisa a ser empreendido pelos pesquisadores em ADC. Para compreender que o mundo social e suas racionalidades 205 Linguagem e Práticas Identitárias não são imediatamente acessíveis, é necessária uma abordagem epistemológica multidimensional capaz de investigar a relação entre práticas, eventos, discursos, identidades e relações sociais, nos termos uma relação dialética (FAIRCLOUGH, 2003). Os discursos são os modos particulares de representar que, identificam a si mesmos, aos outros e a aspectos do mundo por meio de estilos – tipos de linguagem usados por uma categoria particular de pessoas que constroem a sua identidade. Dessa maneira, acionam a linguagem na vida social, ligando-se, por sua vez, a três principais significados do discurso – acional, representacional e identificacional (FAIRCLOUGH, 2003). Fairclough (2003) apresenta a dialética do discurso de forte ancoragem marxista. Uma linguística que dialoga com a sociedade não pode desvincular-se dessa epistemologia basilar para os estudos críticos. A ADC encarna seu compromisso político de articulação dos estudos da linguagem com as demandas da sociedade, as injustiças sociais e a luta pela dignidade humana. Um humanismo marxista instaurado no final do século IX surge como um divisor de águas na história recente do ocidente, trazendo ao debate a necessidade de se opor contra as formas clássicas de opressão que fizeram Karl Marx recriar as utopias de mudança e transformação social num mundo até então dominado pelas práticas sociais do capitalismo liberal, uma intensa e complexa rede de construções ideológicas, políticas e econômicas tão bem resenhados no O Capital, 1867. Fairclough retoma o marxismo, ancora-o na linguística pós-moderna e acena que a linguística deve dialogar, ensejar possibilidades de lutar, superar os cenários políticos de injustiças mantidos e realimentados nos discursos e suas instituições magnas do conhecimento: ciência, religião, economia. A ‘ordem do discurso’ mantém e realimenta ‘representações, ações e estilos’, quer nas instituições, quer na criação e manutenção de práticas identitárias (FOUCAULT, 1996; FAIRCLOUGH, 2001; MAGALHÃES, 2000). 206 Nádia Gadelha A dialética é a construção filosófica que emerge dessa dinâmica entre natureza, sujeitos e práticas sociais. Não é um aspecto isolado ou determinístico de leis causais no âmbito das leis naturais, biológicas, ou no âmbito das leis da sociedade, tais como o pensamento clássico sociológico profundamente influenciado por uma física social, mas sim uma contingência determinada pelos discursos e seus sistemas de concepções epistemológicas a dominar a ordem do discurso das instituições sociais. Fairclough (2003) sugere que a representação tem a ver com conhecimentos e por meio deles o controle sobre as coisas; a ação está relacionada, de modo genérico, com a relação com os outros, mas também com a ação sobre os outros, e com o poder dialeticamente relacionado. Representações particulares (discursos) podem desempenhar de modo particular ações e relações (gêneros), e apontar modos de identificação (estilos). Por isso, uma dialética do discurso marxista, segundo Fairclough (2003), é fundamental para entender como esse processo contingencialmente se organiza em momentos as três principais maneiras em que o discurso figura como prática social: como modos de agir (gêneros), como modos de representar (discursos) e como modos de ser (estilos), ou seja, a relação do texto com o evento; com o mundo; e com as pessoas envolvidas no evento. Fairclough, em vez de falar das funções da linguagem, opta por falar sobre os três principais tipos de significações: Ação, Representação e Identificação (FAIRCLOUGH, 2003, p. 27). O discurso figura de três principais maneiras na prática social: como modos de agir (gênero), como modos de representar (discursos) e como modos de ser ( estilos) (FAIRCLOUGH, 2003, p. 26). A Representação corresponde à função ideacional de Halliday (2004). Ação é a função interpessoal (modos de interagir). Uma ação implica uma relação social: “relação entre textos, eventos, práticas e estruturas sociais” (FARCLOUGH, 2003, p. 27). 207 Linguagem e Práticas Identitárias Para Fairclough, há uma sobredeterminação da linguagem por outros elementos sociais nas ordens do discurso: a organização e o controle social da variação linguística e seus elementos (discursos, gêneros, estilos) são correspondentemente, categorias não puramente linguísticas mas que fazem o corte através da divisão entre linguagem e não linguagem, entre o discursivo e o não discursivo (FARCLOUGH, 2003, pp. 24.25). 1.1 A Representação dos Atores Sociais A análise de textos sob uma perspectiva representacional é dialogada pela ADC com a Teoria dos Atores Sociais, de Van Leeuwen que propõe a análise de eventos sociais e sua relação com práticas sociais, linguagem e cultura. Nesse processo dialético, o significado representacional emerge em cada produção de contextos situados historicamente. Van Leeuwen esboça “um inventário sócio-semântico dos modos pelos quais os atores sociais podem ser representados, e dessa forma uma análise de discurso das representações sociais pode estabelecer a relevância sociológica e crítica” de eventos e práticas sociais (VAN LEEUWEN, 1997, p. 169). Discursos não podem ser analisados apenas sob os limites formais da linguística sem uma relação com o contexto cultural e sociológico “em contextos institucionais específicos que têm relações específicas com as práticas sociais e das quais produzem representações” (VAN LEEUWEN, 1997, p. 172). Para atender aos propósitos deste artigo, do inventário sociosemântico de Van Leeuwen escolhemos a categoria Identificação que mais se presta à análise dos significados representacionais das identidades médicas. A Identificação ocorre quando os atores sociais são definidos, não em termos daquilo que fazem, mas em termos daquilo que, mais ou menos permanentemente, ou inevitavelmente, são. Distingue três tipos: classificação, identificação relacional e identificação física. No que diz respeito à classificação, os atores sociais são referidos em termos das 208 Nádia Gadelha principais categorias através das quais uma dada sociedade ou instituição diferencia classes de pessoas (VAN LEEUWEN, 1997, p. 202). A Identificação é um comprometimento profissional devido – um comprometimento ético. Fairclough (2003, p. 17) propõe: “focalizar a análise de textos na interação de Ação, Representação e Identificação traz uma perspectiva social para o âmago do texto, para o seu mais afinado detalhe”, pois são dialeticamente relacionados. E as representações particulares são os discursos que podem desempenhar de modo particular Ações e Relações (gêneros) e apontar (estilos). O estilo tanto pode ser individual, como coletivo referente ao contexto discursivo profissional. Fairclough destaca para a análise de eventos sociais formas de ação, pessoas (com crenças, desejos, valores, histórias); relações sociais, formas institucionais; objetos; meios (tecnologias); tempos e espaços; linguagem (e outros tipos de semioses) (FAIRCLOUGH, 2003, p. 135). 1.2 Identidades e humanização da práxis médica O nascimento da humanização da prática médica, fruto da arte e da técnica advindas da racionalidade científica, tem como pano de fundo as rupturas primeiras das cosmogonias do Olimpo e o surgimento das cosmologias da razão e do logos, na constituição racional do que são o ser, as coisas, a origem, a causa e as transformações no mundo. A prática da medicina nasce filosófica e essa relação funda as bases das indagações sobre o ser da saúde e da doença, estabelecendo um diálogo com as cosmologias da ordem do mundo. A desordem do mundo é gerativa das doenças de corpos desequilibrados com o cosmos – uma leitura humana da doença e que requererá aptidões técnicas da arte de curar, produzidas pelas conquistas da racionalidade, dispensando oráculos, deuses e sacerdotes mágicos e feiticeiros. Com o desenvolvimento da racionalidade médica e suas rupturas com o sagrado, as identidades médicas requereram o mais alto nível de domínio da arte e técnica de curar, conferindo ao médico um papel 209 Linguagem e Práticas Identitárias social dotado de um poder sobrehumano, engendrando identidades inspiradoras de poder, salvação. Nessa interação, mantém a polifonia das ancestralidades religiosas e mágicas. Dessa força polifônica (BAKHTIN, 2008), resgatamos a complexidade híbrida do ser humano com seu passado ancestral e mítico (JUNG, 2008). O discurso da humanização na arte de curar, é o genial esforço filosófico e posteriormente científico, que coloca, nas mãos humanas, os domínios da razão autônoma nos polos diferenciados da vida e da morte. Uma práxis humanizada da medicina é celebrada atualmente como uma relação dialógica e interativa possível, responsiva às demandas dos pacientes e com finalidades terapêuticas resolutivas. Porém, no contexto do atendimento médico a pessoas pobres, são comuns, queixas e reclamações das populações pela negação e dificuldades desses encaminhamentos. Uma medicina relacional é aquela que mais os pacientes precisam; “uma qualidade de presença, sua humanidade, uma medicina mais à altura do homem, atenta antes ao doente do que à doença” (LE BRETON, 2011, pp.341, 342). Essa medicina vem afrontando a ordem discursiva da medicina1 e favorecendo novas abordagens de sua práxis social. No Brasil, o discurso da humanização da práxis médica assume conotações prescritivas políticas e éticas como uma proposta que se aproxima das concepções filosóficas do SUS, em busca de uma pragmática da atenção às demandas de saúde de forma resolutiva e solidária. A saúde como parte de um processo na dinâmica social alcança um olhar clínico 1 A ordem discursiva da medicina contemporânea sustentada no modelo mecanicista cartesiano, com base na física clássica, na bioquímica , biologia molecular vem sendo discutida desde a década de 1970 do século XX, como um paradigma não responsivo aos novos conceitos de saúde e doença. Novos paradigmas da doença para além do modelo biomédico reclamam a formulação desse conceito clássico para um novo enfoque crítico e dialético da doença e da saúde. Contudo, apesar das discussões e destaques epistemológicos importantes da saúde entendida não como ausência de doenças e sim como um processo biológico, psicológico e social, a formação médica no mundo ocidental ainda é predominante e rigorosamente cartesiana e suas práticas tecnológicas cada vez mais se distanciam do paradigma dialético da doença no qual o diálogo ocupa um lugar de destaque nas redes de assistência e solidariedade. 210 Nádia Gadelha não só sobre o corpo biológico separado de suas interações complexas com o ambiente social, cultural, politico e econômico. A humanização da práxis médica é um processo que exige identidades médicas com alcance de amplo espectro sobre corpos que eventualmente estão com ausência de doenças, mas buscam ajuda médica. Nesse abismo, necessário se faz o diálogo solidário, pois “o doente não é somente um corpo que precisa ser consertado” (LE BRETON, 2011, p. 290). Mas como identidades médicas no cenário de pesquisa são autorrepresentadas num hospital público? E como se relacionam com o discurso da humanização da práxis médica? 2 Metodologia Este artigo é parte de uma abordagem de estudos etnográficos sobre o qual elaboro minha tese de doutoramento. A pesquisa2 etnográfica foi realizada no período de 2010 a 2012 num hospital de atenção secundária da rede pública do Sistema Único de Saúde (SUS), no Estado do Ceará- Brasil. Para os objetivos deste artigo, analiso entrevistas com três médicos e três médicas no cotidiano profissional do hospital e realizo a triangulação com duas notas de campos colhidos na observação participante. Etnografia e ADC dialogam no sentido de compreender como textos são dotados de significados construídos em interação real com o campo, laboratório vivo de produção de sentidos. Os juízos cognitivos (representações) de ações (juízos éticos e políticos) estão situados nos discursos como constituintes e constitutivos das práticas sociais. A análise de discursos de práticas sociais contextuais é internamente dinâmica, num espaço de intensas inter-relações (HARVEY, 2013) com sistemas culturais, simbólicos, linguagens e ordens do discurso sob os O Projeto de Pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Ceará de acordo com a Resolução 199/96 do Conselho Nacional de Saúde das 2 Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. 211 Linguagem e Práticas Identitárias quais a práxis médica transitou e transita ao longo de sua constituição como prática social, científica e suas funções em nossa sociedade. 3 Análise discursiva Apresento, na Tabela 1, excertos (respostas de uma seção de entrevista) de relatos de médicos em que, fiz a seguinte pergunta: “Que é ser médico para você? O objetivo da pergunta norteadora foi o de identificar identidades profissionais e discursos. As entrevistas que compõem o conjunto de dados gerados da tese não estão transcritas na íntegra nesse artigo. Selecionei 1 pergunta que considero responsiva aos interesses desse trabalho. A convenção da transcrição adotada é a de Magalhães (2000, pp. 15,16,17,18) como no exemplo a seguir: Nádia: O que é ser médico (a) para você? Médico: Olha, especificamente, aqui no Maranguape, ser médico é ter que estar preparado para enfrentar uma série de desafios que de forma geral desencanta o sonho inicial de ser médico. A gente assim que se forma acha que vai encontrar o hospital dos sonhos, tecnologias, tudo de acordo com o que a gente aprende. Depois, a gente vai descobrindo que a realidade da medicina na saúde pública nega em muito tudo que nossa formação ao longo de 6 anos, e bota mais aí 4 anos de especialização, e aí a gente tem que virar santo, fazer milagres, sem esquecermos que fomos preparados para desenvolver protocolos científicos de alta tecnologia. Aqui como em muitos hospitais das regiões pobres no Brasil, a gente tem que reinventar a vida, não tem como seguir protocolos, a gente vai driblando as dificuldades e esperar em muitas ocasiões um milagre, pois de um modo geral, falta quase tudo (Médica C). A abordagem dialética, segundo Fairclough (2003), considera Ações e suas relações sociais, Identificação de pessoas, Representação do mundo, Discursos (gêneros, discursos, estilos). “Textos não são apenas efeitos de estruturas linguísticas e de ordens do discurso, são também 212 Nádia Gadelha efeitos de outras estruturas sociais, e de práticas sociais em todos os aspectos, de maneira que se torna difícil separar os fatores que modelam textos” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 25). É preciso enfatizar que as estruturas sociais sob as quais a práxis social da medicina é situada manifestam-se no evento de atendimento médico. Neste trabalho, o evento pertence a um hospital público. As relações externas de textos incluem suas relações com outros elementos de eventos sociais (mais abstratamente, práticas sociais e estruturas sociais). A análise desses outros elementos de eventos sociais inclui como eles figuram em Ações, Identificações, e Representações (FAIRCLOUGH, 2003, p. 36). A análise interdiscursiva da articulação dos textos vai considerar a posição de Fairclough (3003, p. 124) que vê discursos como modos de representar aspectos do mundo – os processos, as relações e estruturas do mundo material, o mundo mental dos pensamentos, as crenças, e assim por diante, e o mundo social. Os aspectos particulares do mundo são representados pelos diferentes discursos que são diferentes perspectivas do mundo, e elas estão associadas às diferentes relações que as pessoas têm com o mundo, suas identidades sociais, pessoais e as relações sociais com outras pessoas (FAIRCLOUGH, 2003, p. 124). 3.1 Identidades São três as formas de construção de identidades sugeridas por Castells (1999, p. 24); Identidade Legitimadora; a Identidade de Resistência e a Identidade de Projeto. A identidade legitimadora é introduzida pelas instituições dominantes. Já a identidades de resistência é criada por quem está em posição de trincheiras e a Identidade de projeto redefine posições e, ao fazê-lo, busca a transformação das estruturas sociais. A identidade agonística é compreendida a partir de reflexões sobre a 213 Linguagem e Práticas Identitárias luta travada pelos médicos e médicas no âmbito de sua práxis na saúde pública. A agonística é um termo utilizado pelos pré-socráticos e, na modernidade, passa a ser utilizado por Nietzsche (1998) realçada na obra: Assim falou Zaratustra, 1892. A agonística preconiza a constante superação de forças entre os atores sociais, tendo como meta o desenvolvimento de obras que possibilitem a afirmação da excelência humana e a superação de uma visão de mundo pessimista, decadente, em prol da afirmação da beleza e da glória, tornando-se, consequentemente, um dos grandes conceitos relativos à criação de valores afirmativos da vida através da vida através da interação de forças que garantam a vitória contra a inércia e a fraqueza dos instintos vitais (BITTENCOURT, 2011). O agon é uma luta na qual não há trégua nem fim. “Como é preciso que a luta perdure, para que as diferentes forças da vida se manifestem os lutadores não podem chegar a um acordo, o que seria uma trégua, e nenhum deles pode ser aniquilado pelo outro, o que significaria o fim do combate” (MOSÉ, 2011, p. 86). Dessa forma, vejo no cotidiano médico na saúde pública uma luta sem fim na qual a finitude, a morte, o colapso da existência quer aniquilar a esperança, a vida, momentaneamente transferida para as mãos dos médicos e médicas. Como toda hegemonia é relativa, as construções identitárias são possíveis de mudanças pela dinâmica das interações dialéticas capazes de criar e mudar coisas. Por isso, as identidades tratadas estarem relacionadas a contextos específicos e situados em práticas sociais (FAIRCLOUGH, 2003). Todas essas nomeações apresentam-se como identidades culturais profissionais, sociais, que são constituídas de um conceito carregado de poder simbólico, jurídico e social. TABELA 1: Dialética do discurso Significado Representacional Estilos (significado identificacional) “Que é ser médico para você?” 214 Nádia Gadelha Discurso belicista Discurso especialista Discurso ético e político Discurso da globalização Nós somos uma infantaria, estamos na linha de frente, é guerra, é guerra. Eu acho que o serviço público de saúde ele é mal, é, é questão de gestão mesmo. Porque eu acho que recurso tem, sabe. É gestão mesmo. E a gente tá aqui na ponta como aquela coisa da infantaria, né. Agente vai enfrentar isso tudo. É uma, é uma, é uma guerra. É uma guerra. (Ex 1. Médico A). O piloto de avião, que sabe lidar com o avião. É uma capacidade que ele adquiriu durante a vida, né. De formação. De resolver um problema. Assim como você, na sua profissão. Resolver um problema, né, uma situação. Ou o, o piloto de avião, que sabe lidar com o avião, conduzir de um lugar pro outro e às vezes numa situação crítica, conduzir pra sair do, da, da situação de perigo, né. Na verdade é uma formação profissional, né. (Ex2. Médico B) Eu sou uma médica responsável, faço o meu sonho falar alto. Atendo os pacientes, direitinho. Faço história, prontuário, etc. (Ex3. Médica A) A gente tá no serviço público de terceiro mundo, com informações de primeiro mundo. Que a internet é uma coisa, eu acho a internet fantástica. É de primeiro mundo. E as pessoas tão tendo acesso à isso aí. Seja da classe B, C, D, E, F, G, H, enfim, eu acho. Tá disseminado, e, e, é, o saber tá disseminado. Quando às vezes eu vou, vou, vou atender uma pessoa com artrose, ela já sabe de tudo pela internet mais do que eu. Quer dizer, aquela coisa de você ser, ser questionado sobre o seu saber, é o tempo todo. Quer dizer, eu tenho o tempo todo eu to estudando sobre o que é aquilo. Tá entendendo. Então eu tenho que resolver o problema da pessoa que a pessoa sabe.(Ex5. Médico C) 215 Linguagem e Práticas Identitárias Discursos Apontados em estilos (significados (significados identificacionais) representacionais) Não somos deuses, apenas entendemos muito bem a Identidade de vida, e a morte. É. O médico ele tem, ele é pra ter Legitimação capacidade de, de resolver uma situação, às vezes crítica. Ás vezes simples que vai tirar a pessoa duma condição de risco, né. Um risco ou iminente ou um risco potencial, né. Que pode culminar com um desfecho fatal, né. (Ex6.Médico C) [....]Depois de vinte pessoas você não tem mais como raciocinar no sentido de, o problema é esse. Mas eu gosto de conversar. Mas o que cansa é a quantidade, é o que limita. E você depois de vinte pessoas, num raciocina mais muita coisa não. Sabia disso? Cê se cansa. Cê sabe que é uma troca de energia, né. A Identidade de pessoa tá ali transmitindo energia. E às vezes a pessoa, resistência por não..., voltando aqui à questão do conhecimento, por não entender que é uma questão emocional, [...sai lá fora e diz assim: “Ah. Esse médico só quer conversa. Que conversa é essa.” [...não passou um remédio pra mim. Você tem que conversar e passar remédio. (Ex7. Médico B) 216 Nádia Gadelha Identidade de projeto Identidade agonística Discurso ético e político O médico tem um compromisso social. É que ele lida com a coisa mais iminente, né. Ou , a coisa mais, é, angustiante, né. Que é a situação crítica, né. Diante da situação crítica, iminente que pode complicar e o paciente vir a morrer, é o médico que está mais preparado para administrar esse processo. Como uma autodefesa, né., como gostaria de fazer, mas é que falta tudo, falta às vezes o básico, uma simples bala de oxigênio. Tem paciente que tá com AVC e precisa de UTI, a gente sabe que não tem leito, o paciente poderia evoluir bem se tivesse numa UTI, mas ele aqui sem os cuidados intensivos, esperando uma vaga vai afundando, afundando e morre. E isso não é só aqui, é no Brasil inteiro. É preciso mudar essa situação e a culpa é do Estado, o Estado tem que assumir seu papel que está na Constituição, né. Saúde um direito de todos e um dever do Estado. (Ex8.Médica C) Está provado que o médico morre sete anos mais cedo que a população normal. devido a tanto é... Sacrifício noites mal dormidas. Estresse durante o trabalho diário. Mas não desisto! Amo ser médico, amo a medicina!(Ex10. Médico B) Imagina qual a angústia maior? Essa madrugada peguei uma mulher parindo, o bebê prematuro, precisa de cuidados mais especializados. Chamei o pediatra, mas faltava o básico para reanimar a criança. A mãe olha pra gente e diz: e aí Dr. Meu bebê? tá bem? E muitas vezes dói muito em mim diante dessas expectativas: principalmente quando a gente tem cientificamente condições técnicas de reanimação, de tentativa, quero dizer de salvar. Mas na hora o carrinho de reanimação estava sem as drogas, sem os recursos enfim... A frustração é grande, e dizer pra mulher que o bebê morreu é pior ainda (Ex11.Médica A). 217 Linguagem e Práticas Identitárias Os excertos no Quadro 1 apresentam como os significados da linguagem elaboram representações, identificações e ações. Complementando com a Representação de Atores Sociais de van Leeuwen (1997), podemos propor que os atores sociais médicos estão situados sob forte dispositivo coletivo da práxis identitária médica como instituição política num mais alto nível de abstração e relação com os princípios ontológicos da medicina. As identidades médicas diferenciam-se no contexto geral das demais profissões por lidar com a morte: “é apenas o médico que está mais preparado para administrar esse processo” (Médica C). Por meio das representações mentais, sentimentos de insatisfação em relação ao contexto da saúde pública e suas múltiplas facetas de deficiência e negação dos princípios constitucionais do Sistema Único da Saúde (SUS), aflora um comprometimento ético em favorecer a defesa da vida, pois tantos médicos como pacientes passam no evento consulta por situações críticas complicadas do ponto de vista dos recursos institucionais e políticos que garantam assistências devidas. Os relatos médicos apontam precariedade da assistência na saúde pública, comprometendo a saúde e a vida das populações. No (ex.11. a médica C) por meio do processo material atribui-se um papel ativo, como assinala Van Leewen (1997, p. 187): “A ativação ocorre quando os atores sociais são representados como forças ativas e dinâmicas numa atividade”. A ação e interação no evento assistencial médico revelam comprometimento nesse “estado de guerra, nesse campo de luta” que dialoga com ciência e ficção. Os médicos e médicas recorrem muito ao uso de metáforas (Participantes), o que indica como a superação do caos da saúde publica pode ser enfrentada como algo mágico, extraordinário, surreal, que naquele estado de intensas precarizações e riscos de vida pouco irá depender do apoio gestor e político. As Circunstâncias estão nos marcadores de tempo, como por exemplo, no relato do médico 218 Nádia Gadelha transcrito: [...] “ a guerra não acaba nunca”, ou nesse outro excerto: “ A frustração é grande, e dizer pra mulher que o bebe morreu é pior ainda”. O dialogismo (BAKHTIN, 2008) está marcado pela presença do passado, e perspectivas de futuros, sonhos e esperanças: “Eu sou médica, sou a voz da esperança” (Médica C). A oração enseja nesse dialogismo o retorno à profissão médica que desde seu passado fundador surge como prática social garantidora de muitas das mais extraordinárias conquistas epistemológicas do mundo: vencer a morte. Quando a médica dialoga com a esperança, remete para o futuro, arrimo e conforto que sustentam corretamente o percurso do desenvolvimento da práxis médica, e arte de curar como suportes indispensáveis à vida. Faircloug (2003) vê textos como as três principais maneiras em que o discurso figura como parte da prática social: modos de agir, modos de representar e modos de ser. Portanto, o texto tem uma relação dialética com o evento e com a complexidade do mundo e sua realidade social. Fairclough opta, assim, pelas significações e não funções, e considera que os principais tipos de significação textual são ação, representação e identificação simultaneamente nos textos (FAIRCLOUGH, 2003, p. 27). Cada um desses significados no evento discursivo consulta médica reunidos num mesmo contexto tem intensa interrelação internamente; portanto, estão dialeticamente situados. Esse nível de análise social dos textos localiza as relações sociais, as práticas sociais, os modos de produção dos valores, a reprodução da vida cotidiana e as concepções mentais do mundo. Uma totalidade histórica, aberta, tensionada pelas relações de poder, controle, pelos sistemas de conhecimentos que são estabilizados e mantêm a ordem do discurso. Contudo, “todos esses elementos se desenvolvem em conjunto e estão sujeitos a renovações e transformações perpétuas como momentos dinâmicos no interior totalidade, momentos que se codesenvolvem de modo aberto, dialético”(HARVEY, 2013. p.193). Dessa forma, a situação de precarização da prática médica é atrelada ao descaso institucional e político da saúde pública. 219 Linguagem e Práticas Identitárias Entremeada em nosso contexto geopolítico sob o discurso da globalização, emerge um processo de geração de informações que desperta a preocupação de um dos médicos do hospital de Maranguape com informações das patologias advindas do “primeiro mundo”. Quando às vezes eu vou, vou, vou atender uma pessoa com artrose, ela já sabe de tudo pela internet mais do que eu. Quer dizer, aquela coisa de você ser, ser questionado sobre o seu saber, é o tempo todo. Quer dizer, eu tenho o tempo todo eu to estudando sobre o que é aquilo. Tá entendendo. Então eu tenho que resolver o problema da pessoa que a pessoa sabe (Médico C). O texto do Médico C traz ao debate discursivo as relações de poder e saber (FOUCAULT, 1996) que remetem ao contexto tradicional das identidades médicas simbolicamente detentoras das grandes funções da medicina em nossa sociedade. “A medicina, funciona como prática individualista de tête-à-tête, de diálogo médico-doente, como dizem, e no segredo” (FOUCAULT, 2011, p. 304). Foucault questiona o funcionamento do poder e saber em todas as instituições políticas, de Estado, e o funcionamento exercido sobre os indivíduos em seus comportamentos cotidianos e até mesmo em seus próprios corpos. “Vivemos imersos na rede política de poder, e ele é que está sendo questionado” (FOUCAULT, 2011, p.310). Nada tem mais poder sobre os corpos do que a práxis médica quer do ponto de vista judiciário, moral ou científico. A interdiscursividade apresenta discursos e estilos, os quais são articulados e conectados com práticas, e estruturas sociais que alcançam um arcabouço conceitual complexo situadas num historicismo emergente, dialético. Nossa relação com a natureza, as tecnologias, as relações sociais, as concepções mentais, os processos laborais, nossos sistemas de produção, nossas concepções do mundo, as tecnologias que empregamos e como conduzimos nossa vida cotidiana constituem uma totalidade e que funcionam em interação mútua (HARVEY, 2013, p. 191). Fairclough (2003) considera que entender as estruturas 220 Nádia Gadelha sociais e a realidade social dialeticamente é essencial para entender a intensa interrelação presente na construção de discursos, de ações, de concepções mentais (representações) e identidades. Diferentes discursos são diferentes perspectivas de mundo associadas a diferentes relações que as pessoas estabelecem com o mundo e que dependem de suas posições no mundo e das relações que estabelecem com outras pessoas (FAIRCLOUGH, 2003), competindo, cooperando, ou dominando. Fairclough (2003) sugere que discursos são distinguidos tanto pelos modos de representar quanto pela relação com outros elementos sociais. Os modos de representação em termos de traços linguísticos podem realizar um discurso do vocabulário, pois discursos nomeia ou lexicalizam o mundo de modos particulares (FAIRCLOUGH, 2003, p. 129). Nos dados desta pesquisa a interdiscursividade está caracterizada em 4 discursos: 1. O discurso belicista; 2. o discurso especialista; 3. O discurso ético político e 4. O discurso da globalização. 1. O discurso belicista está na metáfora da guerra como capaz de sustentar e derivar metáforas correlacionadas e justificar as práticas sociais da medicina no hospital sob intensos conflitos e tensões que se conflagram na difícil luta de preservar a vida, sobretudo diante das condições que respondam aos desafios dessa luta, dessa guerra. E como toda guerra, há vencedores e perdedores, mortos e feridos, heróis que conseguem sobreviver, e os que sucumbem diante do inimigo. 2. O discurso especializado profissional enfatiza sua episteme autonomizada como fundamental para a garantia da vida dos pacientes e legitima-se como responsável pela saúde da população estabelecida tanto de forma individual como social. Percebe-se que que há um diálogo entre os polos individuais e coletivos da prática da medicina que absorve as nuanças de sua ação política e institucional. 3. O discurso ético político se sobrepõe às práticas sociais das tecnologias e abordagens dos diversos profissionais estabelecidas nos domínios teóricos e científicos legais. As virtudes são enfatizadas, 221 Linguagem e Práticas Identitárias resgatando o caráter ético do agir sobre a vida, sem deixar de realçar a lógica conceitual tecnicista-biologista para enfatizar o compromisso com as angústias iminentes. O discurso ético hibridiza-se com o discurso do poder médico como estatuto apto e especializado que incide para as expectativas de perigo iminente e potencial que ronda a prática médica em seu cotidiano de atendimento profissional. O discurso político resgata o papel constitucional do Estado brasileiro que coloca a saúde como direito do cidadão e dever do Estado. 4. O discurso da globalização identifica o contexto da modernidade tardia, e os dispositivos tecnológicos da internet que está integralmente em todas as circunstâncias cotidianas da organização social sob a estruturação dos sistemas globais (GIDDENS, 2002). O significado ideacional e o estilo constituem os aspectos discursivos de identidades, que se relacionam dialeticamente (FAIRCLOUGH, 2003). As identidades pressupõem a representação, em termos de presunção, acerca do que é. O significado representacional das identidades pode ser analisado com as categorizações de funcionalidade e de identificação. “A identificação ocorre quando os atores sociais são definidos, não em termos daquilo que fazem, mas em termos daquilo que, mais ou menos permanentemente, ou inevitavelmente são” (VAN LEEUWEN 1997, p. 202). Dos excertos do Quadro 1 destacamos os relatos de médicos, em que os atores sociais referem-se à identificação de si interrelacionada à práxis social da medicina. (i) O médico tem um compromisso social. Do profissional médico, né.. Pro médico em geral, é diferente. É que ele lida com a coisa mais iminente, né. Ou, a coisa mais, é, angustiante, né. Que é a situação crítica, né. Diante da situação crítica, iminente que pode complicar e o paciente vir a morrer, é o médico que está mais preparado para administrar esse processo. 222 Nádia Gadelha (ii) Eu sou uma médica responsável, faço o meu sonho falar alto. Atendo os pacientes, direitinho. Faço história, prontuário. (iii) Está provado que o médico morre sete anos mais cedo que a população normal. Devido a tanto é... Sacrifício, noites mal dormidas. Estresse durante o trabalho diário. Mas não desisto! Amo ser médico, amo a medicina! (iiii) Sou médico, sou a voz da esperança. Por meio das representações mentais, aflora um comprometimento ético em favorecer a defesa da vida, pois tantos médicos como pacientes passam no evento consulta por situações críticas complicadas do ponto de vista dos recursos institucionais e políticos que garantam assistência devidas. Castells (1999, p. 22) entende por identidade “ o processo de construção de significado com base e um atributo cultura, ou ainda, um conjunto de atributos culturais interrelacionado (s) qual (ais) prevalece (m) sobre outras formas de significado”. No âmbito da medicina, as identidades se confundem com papeis sociais, no cenário da saúde pública (SARANGI, 2010). As habilidades médicas, o campo especialista do conhecimento científico das patologias, e como intervir nestas, o poder que emana desse saber constrói identidades metaforizadas, tal como o piloto de avião que tem a perícia de manobrar o voo e não causar o desastre. Castells (1999) adverte que a identidade coletiva é construída sob determinantes simbólicos de seu significado para aqueles que com ela se identificam ou delas se excluem (CASTELLS, 1999, p. 24). Na prática médica, há representações discursivas do mundo material e da própria prática (reflexividade). A práxis social da medicina é referenciada como complexa, e limitada no âmbito da saúde pública que no Brasil cobre as necessidades das precarizadas populações pobres e SUS dependentes. 223 Fairclough (2003) considera que entender as estruturas sociais e a realidade social dialeticamente é essencial para entender a intensa interrelação presente na construção de discursos, de ações, de concepções mentais (representações) e identidades. A médica por meio do processo material atribui-se um papel ativo, como assinala van Leewen (1997, p. 187): “ A ativação ocorre quando os atores sociais são representados como forças ativas e dinâmicas numa atividade”. A ação e interação no evento assistencial médico revelam comprometimento nesse “estado de guerra, nesse campo de luta” que dialoga com ciência e ficção. Por meio dos processos mentais, com sentimentos de insatisfação em relação ao contexto da saúde pública e suas múltiplas facetas de deficiência e negação com os princípios constitucionais do Sistema Único de Saúde no Brasil SUS- aflora um comprometimento ético em favorecer a defesa da vida, pois tanto médicos como pacientes passam nesse evento por situações críticas complicadas do ponto de vista dos recursos institucionais e políticos que garantam assistências devidas. Na prática médica, há representações discursivas do mundo material e da própria prática (reflexividade). A práxis social da medicina é referenciada como complexa e limitada no âmbito da saúde pública que no Brasil cobre as necessidades das precarizadas populações pobres e SUS dependentes. A interdiscursividade apresentam discursos e estilos, os quais são articulados e conectados com práticas, e estruturas sociais que alcançam um arcabouço dialético conceitual complexo. As identidades médicas apontam a precariedade da assistência médica na saúde pública comprometendo a saúde e a vida das populações. Assim cá estou, lutando, brigando pela pessoa que vai ter filho, brigando e quase como um mágico driblando as dificuldades, correndo pro um lado, pro outro, me dividindo em dez, nessas enfermarias, que parece mais um campo de luta, de guerra. (Ex11.Médica C) Nós somos uma infantaria. (Ex1.Médico A) Nádia Gadelha A médica por meio do processo material atribui-se um papel ativo, como assinala van Leeuwen (1997, p. 187) “A ativação ocorre quando os atores sociais são representados como forças ativas e dinâmicas numa atividade”. Ação e interação no evento assistencial médico revelam comprometimento nesse “estado de guerra, nesse campo de luta” que dialoga com ciência e ficção. Os médicos e médicas recorrem ao uso de metáforas (Participantes), o que indica como a superação do caos da saúde pública pode ser enfrentada como algo mágico, extraordinário, surreal, que naquele estado de intensas precarizações e riscos de vida pouco irá depender do apoio gestor e político. As Circunstâncias estão nos marcadores de tempo, como por exemplo, no relato do médico transcrito: [...] “a guerra não acaba nunca”, ou nesse outro excerto: “A frustração é grande, e dizer pra mulher que o bebe morreu é pior ainda”. Esse nível de análise social dos textos localiza as relações sociais, as práticas sociais, os modos de produção dos valores, a reprodução da vida cotidiana e as concepções mentais do mundo. Uma totalidade histórica, aberta, tensionada pelas relações de poder, controle, pelos sistemas de conhecimentos que são estabilizados e mantêm a ordem do discurso. Contudo, “todos esses elementos se desenvolvem em conjunto e estão sujeitos a renovações e transformações perpétuas como momentos dinâmicos no interior totalidade, momentos que se codesenvolvem de modo aberto, dialético”(HARVEY, 2013. p.193). Dessa forma, a situação de precarização da prática médica é atrelada ao descaso institucional e político. 4 Relatos etnográficos Nota de campo 1: Lute, lute, meu rapaz. Dra. Clarissa319 horas do dia 14 de abril de 2010. Desde as 17h, aguardo poder conversar com a médica plantonista. 3 Nomes fictícios. 225 Linguagem e Práticas Identitárias Está no final de 12 horas de plantão. Mas interrompe o inicio de nossa conversa a chegada de um novo caso na emergência. Acidentado de moto, paciente jovem, muito grave, com politraumatismo. Os primeiros procedimentos são para estabilizar o paciente. O paciente tem uma parada cardíaca. O carro de assistência da parada está com o ambur quebrado. A jovem médica faz todos os esforços manuais, inclusive com a respiração boca a boca para salva a vida do paciente, fazendo os procedimentos de ressuscitação manual, sem o auxílio das tecnologias disponíveis do respirador artificial que está quebrado. O paciente deve ser transferido para Fortaleza. Acompanho na ambulância a médica. Segue 1 enfermeira, e 1 auxiliar. São 45 minutos de muito estress a caminho de Fortaleza, para o Frotão4. No caminho, paciente tem nova parada. É reanimando boca a boca. Mantém-se respondendo para alegria de todos nós. Descemos no Frotão e o paciente é levado para a sala de ressuscitação. Todos os procedimentos tecnológicos são instalados e o mesmo fica no respirador. A médica, toda ensanguentada, olha para o homem no leito já estabilizado hemodinamicamente, em coma, e esta lhe diz: Pronto rapaz. Fiz minha parte, agora é sua vez de lutar, lute, viu, lute... Consegui, consegui trazê-lo vivo. Lute, lute, resista! Seu, colega médico da sala de ressuscitação parabeniza-a pelo esforço inaudito de tê-lo mantido vivo apenas com os recursos da força humana da colega médica. Saímos e a médica, atenciosa, me pede desculpas por termos interrompido nossa entrevista. Médicas e médicos revelam a complexidade de uma agonística que situa os polos extremos da problematização da prática profissional em situações críticas, enfrentando contextos adversos, frustrantes, vitoriosos, frágeis, que se metamorfoseiam em fênix, superam e voam ao infinito. Por este motivo, age-se sob a tutela de relações de poderes que geram manifestações das práticas sociais em agonística reveladora do 4 “Frotão”: referência ao Hospital Instituto Dr. José Frota hiperônimo Frotão, unidade central de alta complexidade, o maior hospital em traumas do Norte e Nordeste. Nos distritos e regionais de Fortaleza ficam os seus hipônimos: “frotinhas”, mini hospitais de médica complexidade. 226 Nádia Gadelha jogo que inverte, desloca e transforma estas relações. Nesse jogo, estaria o cansaço, o estress médico, a desorganização do sistema de saúde, a ineficiência das políticas de saúde, enfim, a vasta rede de complexidades funcionais da saúde pública, cenário das práticas sociais. A luta agonística institui o profissionalismo técnico científico sobre agentes sociais, que incorporam práticas identitárias especialistas com tal habilidade, que apaga as evidências, os resíduos que subjazem às emoções, aos sentimentos, ou demais estereótipos culturais que demarcariam posições de gênero em polos diferenciados. A seguir, a vivência médica integrada ao sensível, ao belo e à agonística. Nota de campo 2 Ela me dizia: Não me deixe morrer, Dr. Victor5. Eu quero terminar meus estudo e ser médica, médica pediatra. São 19 e 30 minutos. Como não teve tempo durante o plantão1 de ser entrevistado, combinamos Dr. Victor e eu, que logo após o plantão nos encontraríamos na pracinha em frente ao hospital, na barraquinha de D. Emília com direito a milho assado, e depois um picolé de seriguela: - Por onde você quer que eu comece Nádia? - Fale-me do mais belo momento de seu dia hoje. - Ok. Nesse momento estavam os pratinhos abarrotados de mugunzá. Dr. Victor para, se revela pensativo, respira, morde os lábios e diz: - Vou lhe contar o que ocorreu hoje comigo. Foi uma experiência muito bela, tão bela e paradoxalmente muito dolorosa: Fui atender a uma ocorrência lá na estrada que vai pro Maracanaú. Um caminhão carro forte atropelou três crianças. São três irmãos. Dois iam na garupa da irmã mais velha, 14 anos, que os conduzia para a escola. As duas crianças estavam sem grandes gravidades. A ambulância os conduziu pro hospital, mas a garota de 14 anos estava presa nas ferragens, e enquanto Os nomes dos sujeitos são fictícios de acordo com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que rege a Pesquisa com Seres Humanos no Brasil. 5 227 Linguagem e Práticas Identitárias os bombeiros estavam à caminho, tive que tentar estabilizar a paciente, que até então estava orientada, consciente. Apesar das pernas e braços muito machucados. Eu suspeitei de comprometimentos mais severos. Ajoelhado ao seu lado auscultei o tórax e identifiquei complicações pulmonares. Fazendo os primeiros procedimentos, ela repete o meu nome. - Dr. Victor. - Respondo: - oi, estou aqui pra lhe ajudar. - Sei. Mas tenho um pedido. - Qual seu nome? - Rosa. - Sim, Rosa, qual o pedido? - Prometa pra mim que eu não vou morrer, viu. Eu quero terminar meus estudo e ser médica, médica pediatra. - Sim, é muito bom cuidar das crianças, né? - Vou ajudar você ficar bem. Mas ela insistia. - Mas eu não quero morrer, e tem mais, amanhã é meu aniversário de 15 anos. - Tá bem vamos comemorar né? Mas observava que a paciente estava afundando. A levamos para o Frotão. No meio da viagem uma parada. Reanimei, ela acordou, olhou nos meus olhos: - Dr.Victor, nunca irei esquecer-me de você. Retornei ao plantão e ligaram pra mim avisando que a pobrezinha entrou em óbito. - Tô triste, esse é o lado ruim da questão. E amanhã, na casa dela, os 15 anos, o sonho de ser médica... - Por quê? me pergunto, porque a vida faz dessas coisas com a gente né?. Sou médico, todos os dias vejo acidentados, pacientes morrerem, mas não dá pra não sofrer quando a injustiça não tem explicação. O mundo é injusto. Sim... E respondendo sua pergunta: o mais belo momento do meu dia hoje foi ter a certeza que lutei, fiz tudo que estava 228 Nádia Gadelha ao meu alcance, fiz tudo, e que o sonho de Rosa irá vigiar meus dias e nunca mais esquecerei. “não me deixe morrer”. Identidades médicas são constituídas de semioses em tênues demarcações e fronteiras entre deuses e humanos. Ser médico ou médica, para além de uma profissão, é missão, precisa de juramentos e rituais de sustentabilidade desse poder simbólico. curar, vencer e insurgir-se contra a violência da morte irá reconstituir na arte médica a constituição de um lugar no mundo transitado por poucos. Conclusões A representação das práticas identitárias médicas estudadas no âmbito da ADC está dialeticamente relacionada a discursos, representações e ações (estilos) (FAIRCLOUGH, 2003). Tal arcabouço dialético analisado pela ADC alcança o discurso médico como parte de complexos momentos da prática social da medicina em nossa sociedade, na elucidação de problemas de saúde tidos como partes das estruturas sociais, políticas e culturais, constituindo representações, ações-estilos e identidades profissionais médicas. Não é possível compreender a identidades na forma de uma unidade, dotada de uma significação última. As identidades de médicos e médicas se remodelam em jogo, e como tal, não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. A agonística (um dos murmúrios identitários vibrando neste trabalho) traz ao jogo as forças que têm como tarefa as resistências, positivas, afirmativas da vida, incentivando a luta, a aceitação da imprevisibilidade, como forma de criação e de permanente superação. O discurso da humanização da práxis médica, de acordo com o dialogismo (BAKHTIN, 2008), participa de uma isomorfia intensa com os problemas éticos e políticos suscitados pelos sujeitos, em correlacionar o descaso e a gestão da saúde pública que favorece a má prestação dos serviços assistenciais médicos à população atendida pelo SUS. 229 Linguagem e Práticas Identitárias O discurso da humanização carrega polifonicamente residualidades de uma medicina nascente com as rupturas das cosmogonias em favor da supremacia da racionalidade e da técnica. A humanização valoriza antes o aspecto técnico do ofício médico na arte de curar e isola o que discursivamente hoje opera em termos de uma prática médica dialógica e comunicacional menos assimétrica entre médicos e pacientes. Nesse aspecto, médicos apresentam identidades de isolamento em relação aos pacientes. Encorajar o paciente a interrogar sobre suas doenças, e mesmo trazer ao espaço da consulta a democratização dos esclarecimentos pertinentes às suas patologias e às intervenções científicas, parece assustar. A medicina entendida pelos participantes deste estudo é revelada como supervalorizada em seus aspectos técnicos. Como afirma Foucault (1996, 2011), trata-se da escolha de um olhar, de uma moral que ilumina o ato médico em nome de suas conquistas e eficácias científicas, que trata uma doença, não um doente, um sujeito inscrito em uma trajetória social e individual (LE BRETON, 2011). Nos relatos etnográficos, encontramos novos enunciados da humanização voltada para o paciente, revelando identidades médicas que falam de um lugar hoje cartografado por angústias, limites diante do poder técnico- simbólico da arte de curar e salvar. Esses enunciados, incorporam a destreza de um piloto de avião, encaram a morte e a vida marcadas pelas interfaces entre ciência e ética, numa racionalidade da ação, com articulações complexas, dotadas de um sentido marcado por um discurso médico que se hibridiza entre ciência, fé, e espiritualidade. Na fase de transição epistemológica em que vivemos, o conhecimento das coisas necessita de reflexões para além dos modelos cognitivos científicos que iluminaram o conhecimento moderno. Incompletudes, inquietações são as marcas de nossa transição epistemológica em crise do paradigma científico e a abertura para um novo modo de buscar traduzir inteligibilidades. O desafio de trabalhos futuros, é transitar sobre 230 Nádia Gadelha percursos possíveis em busca de novos debates sobre a práxis social da medicina e as exigências de novas leituras da humanização da arte de curar na saúde pública. Referências BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoievski. 4a ed. Tradução Paulo Bezerra. 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ABSTRACT The attribution of epistemic stance to conditional sentences in speakers of Brazilian Portuguese, as a function of gender, age and level of schooling, was studied by the differential paraphrasability of se (if) by caso (in case) or já que (since). Conditional sentences with verb in the indicative were used, either presented in an indefinite context or preceded by a context inducing the attribution of either positive or neutral epistemic stance. It was found that men presented greater tendency to attribute positive epistemic stance to the utterer of such conditionals and that younger and less schooled subjects presented a greater tendency to ignore the provided context. © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 235-255, jan./jun. 2014 Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero, Idade e Escolaridade PALAVRAS-CHAVE Condicionais. Postura epistêmica. Parafraseabilidade. KEYWORDS Conditionals. Epistemic stance. Paraphrasability. Introdução O conceito de postura epistêmica foi introduzido por FILLMORE (1990: 142), que propôs que o falante pode ter três relações epistêmicas com o mundo representado por uma frase condicional, encarando-o seja como o mundo real, seja como um mundo diferente do real, seja, por fim, como um mundo que ele não sabe se corresponde ou não ao mundo real. Essas três formas de posicionar-se epistemicamente em relação à situação representada pela condicional correspondem, respectivamente, às posturas positiva, negativa e neutra. As três frases condicionais seguintes exemplificam, respectivamente, as três posturas epistêmicas: (1) Se ele é quem ele é, não podíamos esperar outra coisa. (2) Se ele tivesse caráter, não teria feito o que fez. (3) Se ele tiver oportunidade, fará a mesma coisa de novo. Na frase condicional (1), o conteúdo da oração condicional (se ele é...), proposto como condição suficiente para a validade da conclusão apresentada na apódose, é afirmado na mesma frase, através da oração quem ele é. Fica evidente, portanto, a postura epistêmica positiva do falante em relação ao conteúdo da prótase. Na frase (2), atribui-se naturalmente ao falante a postura epistêmica negativa, ou seja, a crença de que o homem de quem ele fala não tem caráter. Já na frase (3) a postura é neutra, pois o falante não sabe se aquele de quem fala terá ou 236 Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken não oportunidade de fazer novamente o mesmo. Ao discutir a postura epistêmica, Dancygier e Sweetser (2005: 45-46) exemplificam a postura positiva com uma frase com a conjunção when (quando) e as posturas neutra e negativa com frases com if (se). “Ifclauses (...) are presented as non-positively viewed: the speaker does not commit to a fully positive stance toward this material” (DANCYGIER; SWEETSER, 2005: 48).1 Ao introduzir since (já que) em sua discussão, as autoras afirmam categoricamente: “since adopts a positive epistemic stance towards its complement clause, while if does not” (DANCYGIER; SWEETSER, 2005: p. 49).2 HARDER (1966) também nega a possibilidade da postura epistêmica positiva em condicionais. GOMES (2008), por outro lado, dá vários exemplos em que if ou se são usados com postura epistêmica positiva e podem ser parafraseados por since ou já que. SCHWENTER (1999) também fornece inúmeros exemplos atestados de condicionais com if (em inglês) ou si (em espanhol) em que o falante se identifica com a verdade da prótase. TAYLOR (1997: 301) igualmente reconhece a possibilidade das três posturas epistêmicas nas condicionais: In a factual conditional, the content of the if-clause is presumed to be the case, whilst in a counterfactual the content of the if-clause is taken to be contrary to fact. Between these categories stand the hypothetical conditionals, in which the content of the if-clause is entertained as a possibility, neither in accordance with reality, nor necessarily inconsistent with it. 3 Traduzindo: “Orações com if [se] (…) se apresentam como não positivamente vistas: o falante não se compromete com uma postura plenamente positiva face a esse material”. 2 Traduzindo: “since [já que] adota uma postura epistêmica positiva em relação a sua oração complementar, enquanto que if [se] não o faz”. 3 “Numa condicional factual, presume-se que o conteúdo da oração com if [se] seja verdadeiro, enquanto que, numa contrafactual, o conteúdo da oração com if [se] é considerado como sendo contrário aos fatos. Entre essas categorias, situam-se as condicionais hipotéticas, nas quais o conteúdo da oração com if [se] é considerado como uma possibilidade, nem de acordo com a realidade, nem necessariamente inconsistente com ela.” 1 237 Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero, Idade e Escolaridade LEÃO (1961, p. 31-32) discute as frases condicionais do tipo realis, envolvendo fatos cuja realidade é reconhecida. Vincula tais condicionais ao uso do indicativo. Devemos observar, entretanto, que, embora o indicativo seja obrigatório em tais casos, ele também pode ser usado em condicionais com postura epistêmica neutra, envolvendo condições cuja realidade é apenas suposta. A nomenclatura empregada pelos autores é também variável, pois COSTA (1997, p. 27) inclui os casos de incerteza quanto à realidade do antecedente dentro do irrealis, enquanto LEÃO (1961, p. 31-32) usa esse termo para condicionais que envolvem uma “condição contrária à realidade”. Relevante para nossa pesquisa é a observação de NEVES (2000, p. 848), de que a conjunção se admite formas verbais tanto do indicativo quanto do subjuntivo, enquanto que caso ocorre só com o subjuntivo, e já que exclusivamente com o indicativo. É natural associarmos estas duas últimas conjunções às posturas epistêmicas neutra e positiva, respectivamente, já que o subjuntivo é o modo verbal da dúvida e o indicativo o da certeza. Já o se admite ambas as posssibilidades, sendo pertinente notar que, embora a gramática normativa preconize o uso do futuro do subjuntivo nos casos de incerteza (postura epistêmica neutra), na realidade o indicativo é muitas vezes usado em tais casos, mesmo na literatura culta. Assim temos que se com indicativo pode indicar postura epistêmica positiva ou neutra, enquanto que com futuro do subjuntivo indica postura neutra (e com imperfeito do subjuntivo, postura negativa). Quanto à especificidade das conjunções, autores como GARCIA (2000), NEVES (2000), LUFT (2002) e AZEREDO (2008) não atribuem à locução já que um papel condicional, mas apenas causal. Por outro lado, BECHARA (2003, p. 325) observa: “já, que tem valor originário temporal, ao unir-se ao que na fórmula já que, passa a uma interpretação causal ou condicional”. A questão terminológica e classificatória, entretanto, nos parece menos importante que a funcional. Mesmo que se classifique já que sempre como causal, forçoso é reconhecer que em muitos casos pode ser usada para parafrasear se. Deveríamos nesses casos classificar se 238 Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken também como causal? Ou admitir que, em tais paráfrases, há uma ligeira alteração de sentido, passando de um sentido ainda condicional (embora com postura epistêmica positiva) do se para um sentido puramente causal do já que? Essas questões não nos parecem tão importantes, pois, como observa Ferrari, “a relação entre a palavra e o mundo é mediada pela cognição. [...] Sob essa perspectiva, as palavras não contêm significados, mas orientam a construção do sentido” (FERRARI, 2011, p. 14). Dessa forma, a postura epistêmica do falante não está rigidamente codificada na conjunção escolhida, nem na forma verbal empregada, embora estas sejam recursos que o falante utiliza, em conjunto com fatores lexicais e contextuais, para comunicá-la. O ouvinte ou leitor, por sua vez, atribuirá àquele que enuncia a frase condicional uma postura epistêmica – que pode, aliás, não ser a mesma intencionada por este último –, através de seus próprios processos cognitivos, construindo-a a partir de todos os indícios presentes na frase e no contexto em que ela ocorre. Quanto ao uso de paráfrases para a elucidação do significado, acreditamos que ele se torna útil quando há a possibilidade de estabelecer o que chamamos de parafraseabilidade diferencial, o que ocorre quando a possibilidade de uma paráfrase exclui a possibilidade de outra, e viceversa. Se, em determinado contexto, a palavra A pode ser parafraseada por B, mas não por C e, em outro contexto, a mesma palavra A pode ser parafraseada por C, mas não por B, então podemos concluir que A, nos dois contextos, participa da construção de dois significados diferentes para a frase na qual se insere. Note-se que situamos a diferença de significado no nível da frase, não no nível da própria palavra. Consideremos o exemplo (1), acima. Podemos parafrasear Se ele é por Já que ele é, mas não por Caso ele seja. Já no exemplo (3), ao contrário, podemos parafrasear Se ele tiver por Caso ele tenha, mas não por Já que ele terá. Os exemplos são ainda mais eloquentes quando a mesma frase, em contextos diferentes, admite e exclui paráfrases opostas (como veremos em frases usadas em nossa pesquisa). 239 Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero, Idade e Escolaridade A possibilidade de paráfrase de se por já que ou caso, em função da postura epistêmica positiva ou neutra, respectivamente, foi por nós estudada em pesquisa empírica que integrou a dissertação de um dos autores (MONKEN, 2009). A metodologia e parte dos resultados dessa pesquisa foram apresentados e discutidos em outro artigo (GOMES & MONKEN, 2011). Nela, as mesmas frases condicionais com a conjunção se e verbo no indicativo foram apresentadas aos sujeitos em três condições: a) isoladamente (contexto indefinido); b) precedidas de uma frase que afirmava o conteúdo de sua prótase (contexto indutor de certeza); c) precedidas de uma frase que apresentava esse conteúdo como algo incerto (contexto indutor de incerteza). Com contexto indutor de incerteza, houve uma clara preferência pela paráfrase com caso, enquanto que, com contexto indutor de certeza, os sujeitos tenderam também nitidamente a escolher a paráfrase com já que. No caso do contexto indefinido, cerca de metade dos sujeitos deu às frases condicionais apresentadas (com se e verbo da prótase no indicativo) uma interpretação compatível com a paráfrase com caso e a outra metade as interpretou de forma compatível com a paráfrase com já que (GOMES e MONKEN, 2011). Verificou-se, assim, a polissemia das construções condicionais com se e verbo no indicativo, as quais se prestam tanto à postura epistêmica neutra, quanto à positiva. Foram confirmadas, dessa forma, as seguintes hipóteses de nosso artigo anterior: 1. 2. Em contexto indefinido, uma condicional com se e indicativo na prótase poderá ser interpretada como apresentando postura epistêmica positiva ou neutra e os sujeitos poderão preferir ou a paráfrase com já que ou a com caso. Em contexto indutor de certeza, uma condicional com se e indicativo na prótase tende a ser interpretada como exibindo postura epistêmica positiva, preferindo os sujeitos a paráfrase com já que. 240 Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken 3. Em contexto indutor de incerteza, uma condicional com se e indicativo ou futuro do subjuntivo na prótase tende a ser interpretada como apresentando postura epistêmica neutra, preferindo os sujeitos a paráfrase com caso. O objetivo do presente artigo é estudar a influência do gênero (masculino ou feminino) dos sujeitos, da sua faixa etária e do seu nível de escolaridade sobre a preferência pela paráfrase com caso ou com já que. Haveria maior tendência de um dos gêneros a interpretar uma condicional como apresentando postura epistêmica positiva e a escolher, portanto, a paráfrase com já que – e, complementarmente, maior tendência do outro gênero à interpretação de postura epistêmica neutra e à consequente escolha da paráfrase com caso? Podemos imaginar que isso poderia ocorrer, seja em decorrência de fatores biológicos, seja em função de fatores socioculturais, atuando sobre os processos cognitivos. Caso a resposta a essa pergunta se mostrasse positiva, qual dos gêneros teria mais afinidade com qual interpretação? Como poderíamos interpretar a preferência observada? Além disso, haveria maior tendência de um dos gêneros a aceitar, e do outro a rejeitar, a influência do contexto fornecido? As mesmas perguntas se colocam em relação às variáveis faixa etária e nível de escolaridade. Podemos supor que a idade afete o processo de interpretação das frases condicionais. Isso poderia ocorrer, por um lado, em função da evolução da língua, ou seja, de uma alteração semântica diacrônica. LABOV (1972), no plano da fonologia, fez estudos em que a linguagem de diversas faixas etárias aparece como evidência de diferentes estágios da evolução da língua. Podemos considerar que, quando temos um processo de variação, os jovens e as pessoas mais velhas apresentam um comportamento linguístico semelhante. Quando se trata de um processo de mudança linguística, as formas inovadoras serão mais frequentes em jovens e decairão à medida que aumenta a faixa etária dos informantes. 241 Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero, Idade e Escolaridade Por outro lado, podemos supor que, em relação a certos aspectos da linguagem, as diferenças no uso da linguagem entre diferentes faixas etárias se devam a características psicológicas ou socioculturais das mesmas. Isso significa que, em relação a esses aspectos, os idosos não usam a linguagem hoje do mesmo modo como a usavam quando jovens, assim como os jovens de hoje usarão a linguagem de modo diferente, quando forem idosos. Tal condição contrasta com a estabilidade do uso da linguagem pelo mesmo sujeito, suposta na proposta que infere uma evolução a partir das diferenças de uso entre faixas etárias. Em relação à escolaridade, podemos supor que o maior ou menor contato com a norma culta e a maior ou menor pressão social no sentido do uso da mesma levem a diferentes interpretações, em função dos usos consagrados por essa norma. Quanto mais elevado for o nível de escolaridade, mais frequentes deverão ser as respostas condizentes com os padrões estruturais e semânticos estabelecidos pela gramática tradicional estudada nas escolas e praticada no ambiente escolar e acadêmico. Além disso, podemos também supor que diferentes níveis de escolaridade correspondam a maior ou menor desenvolvimento de processos cognitivos envolvidos na análise e interpretação do sentido de frases escritas fornecidas numa pesquisa como esta e, ainda, uma maior ou menor capacidade de ater-se à tarefa cognitiva solicitada e analisar objetivamente os dados fornecidos em questões escritas. 2 Metodologia4 Elaboramos um formulário com 27 itens. Em todos eles, o sujeito devia escolher, para uma frase condicional apresentada no enunciado, uma (e apenas uma) entre duas paráfrases apresentadas, uma com caso e a outra com já que. Nos 9 primeiros itens, a frase era apresentada Para conveniência do leitor, apresentamos aqui uma nova descricão da metodologia, já exposta no artigo anteriormente citado (GOMES; MONKEN, 2011). 4 242 Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken isoladamente, ou seja, fora de qualquer contexto. Todas as 9 frases do enunciado foram formuladas usando formas do indicativo na prótase. Nos 18 itens restantes, em ordem variável, as mesmas frases apareciam precedidas de outra, que ou afirmava a verdade da prótase da condicional (contexto indutor de certeza), ou apresentava o conteúdo desta como algo incerto, através do uso de talvez, não sei se ou outras expressões indicativas de dúvida (contexto indutor de incerteza). Em alguns dos itens com contexto indutor de incerteza, achamos mais natural trocar o tempo verbal da prótase, no enunciado, para o futuro do subjuntivo. As formas verbais usadas nas paráfrases foram as exigidas pela gramática, ou seja, formas do indicativo nas paráfrases com já que e do presente ou do pretérito perfeito do subjuntivo nas com caso. A título ilustrativo, reproduzimos aqui os itens 8, 17 e 25: 8- Se você recebeu a carta, não deveria ter alegado o contrário. ( ) Caso você tenha recebido a carta, não deveria ter alegado o contrário. ( ) Já que você recebeu a carta, não deveria ter alegado o contrário. 17 - Você recebeu a carta. E se recebeu, não deveria ter alegado o contrário. ( ) Você recebeu a carta. E já que recebeu, não deveria ter alegado o contrário. ( ) Você recebeu a carta. E caso tenha recebido, não deveria ter alegado o contrário. 25 - Não sei se você recebeu a carta. Se recebeu, não deveria ter alegado o contrário. ( ) Não sei se você recebeu a carta. Caso tenha recebido, não deveria ter alegado o contrário. ( ) Não sei se você recebeu a carta. Já que recebeu, não deveria ter alegado o contrário. 243 Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero, Idade e Escolaridade Alguns itens apresentavam a paráfrase com caso em primeiro lugar, outros a apresentavam em segundo lugar. Em estudo preliminar, não houve influência dessa ordem sobre os resultados e, por isso, não levamos em conta essa variável. Ao término do formulário, fazíamos um inventário em que perguntávamos a respeito de algumas opções assinaladas pelos informantes. Essas perguntas se referiam às respostas que contrariavam o previsto por nossas hipóteses. Por exemplo, nos itens 17 e 25 reproduzidas acima, esperávamos que a primeira opção fosse marcada. Quando a segunda era a escolhida, perguntávamos sobre as razões do entrevistado para tal. Alguns entrevistados, ao serem questionados sobre sua escolha, mudavam a paráfrase escolhida. Isso era por nós registrado, mas só computamos em nosso estudo estatístico as primeiras respostas, já que a mudança poderia ter sido motivada exclusivamente por nosso questionamento. Foram entrevistados 137 sujeitos, dos quais 76 mulheres e 61 homens. 53 sujeitos (26 mulheres e 27 homens) estavam na faixa etária de 14-25 anos; 48 sujeitos (28 mulheres e 20 homens) estavam na faixa etária de 26-49 anos e 36 sujeitos (22 mulheres e 14 homens) tinham 50 anos ou mais. Quanto à escolaridade, 39 sujeitos (22 mulheres e 17 homens) tinham o ensino fundamental completo ou incompleto (EF); 63 sujeitos (34 mulheres e 29 homens) tinham o ensino médio completo ou incompleto (EM); e 35 sujeitos (20 mulheres e 15 homens) tinham ensino superior completo ou incompleto (ES). As entrevistas ocorreram em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro. O método do qui-quadrado foi usado no tratamento estatístico dos dados (COSTA NETO, 2005: 137-140, 248). Este método permite identificar as diferenças de frequência que são estatisticamente significativas das que não o são, levando em conta o número de observações feitas. Além da análise quantitativa, os resultados foram também investigados qualitativamente. 244 Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken 3 Resultados quantitativos As tabelas com os números de sujeitos que optaram por caso ou já que em cada item, nas duas categorias de gênero, nas três faixas etárias e nos três níveis de escolaridade, assim como as tabelas de contingência e os cálculos do qui-quadrado, podem ser encontrados em MONKEN (2009). Lembremos que, como há só duas alternativas de resposta mutuamente excludentes, sendo obrigatória a escolha de uma delas, a porcentagem de uma resposta é sempre o complemento (100% – x%) da porcentagem da outra. Como exposto e discutido em artigo anterior (GOMES & MONKEN, 2011), nos itens com contexto indefinido, houve, no total dos sujeitos, 51% de respostas caso (e, portanto, 49% de respostas já que). Nos itens com contexto indutor de certeza, houve 70% de respostas já que e naqueles com contexto indutor de incerteza, 71% de respostas caso. A diferença observada entre os contextos de certeza e de incerteza foi significativa, pelo teste do qui-quadrado, no nível de 0,001 (GOMES & MONKEN, 2011). 3.1 Gênero Quanto ao gênero, os resultados obtidos são apresentados na tabela a seguir. TABELA 1: Porcentagem da escolha da paráfrase com caso, em função do gênero do sujeito Mulheres % Caso 53% 55% 32% 72% Total Contexto Indefinido Contexto Indutor de Certeza Contexto Indutor de Incerteza 245 Homens % Caso 48% 47% 27% 70% Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero, Idade e Escolaridade Observa-se que, no contexto indefinido, houve 55% de respostas caso entre as mulheres e 47% entre os homens. Essa diferença foi significativa, pelo teste do qui-quadrado, no nível de 0,005. No contexto indutor de certeza, as respostas já que atingiram 68% de entre mulheres e 73% entre os homens. No contexto indutor de incerteza, houve 72% de respostas caso entre mulheres e 70% entre os homens. Essas duas últimas diferenças entre homens e mulheres não se mostraram estatisticamente significativas, no nível de 0,05. Entretanto, apresentam a mesma tendência observada no contexto indefinido, ou seja, maior frequência de já que entre os homens e maior frequência de caso entre as mulheres, nos dois contextos. Além disso, quando os três contextos foram avaliados conjuntamente, a diferença entre homens e mulheres mostrou-se estatisticamente significativa, no nível de 0,005. Esses resultados mostram que as mulheres tendem mais do que os homens à atribuição de postura epistêmica neutra (indicada pelas respostas caso) e, correspondentemente, os homens mais do que as mulheres à atribuição de postura epistêmica positiva (indicada pelas respostas já que). Essa diferença, apesar de estatisticamente significativa, não é grande, entretanto, limitando-se a cinco pontos percentuais no total dos itens. Além da maior ou menor tendência a atribuir ao falante uma postura epistêmica neutra ou positiva, em qualquer dos três contextos, outro aspecto a considerar é a maior ou menor tendência a seguir ou a desconsiderar o contexto fornecido, de certeza ou de incerteza, nessa atribuição de postura epistêmica. Nas 76 mulheres pesquisadas, houve 955 respostas concordantes com o contexto fornecido (490 respostas caso com contexto de incerteza e 465 respostas já que com contexto de certeza), contra 413 respostas discordantes do contexto fornecido (194 já que com contexto de incerteza e 219 caso com contexto de certeza), num total de 1.368 respostas a itens com contexto. Isso corresponde a uma porcentagem de 70% de respostas concordantes com o contexto fornecido. 246 Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken Nos 61 homens, houve 787 respostas concordantes com o contexto fornecido (387 respostas caso com contexto de incerteza e 400 respostas já que com contexto de certeza), contra 311 respostas discordantes do contexto fornecido (162 já que com contexto de incerteza e 149 caso com contexto de certeza), num total de 1.098 respostas a itens com contexto. Isso corresponde a uma porcentagem de 72% de respostas concordantes com o contexto fornecido. A pequena diferença entre os dois sexos quanto à frequência de respostas concordantes e discordantes não se mostrou estatisticamente significativa. Também não foi significativa a diferença entre os dois contextos fornecidos quanto à frequência de respostas concordantes e discordantes dadas pelo conjunto de homens e mulheres. Conclui-se que os contextos fornecidos influenciam igualmente os dois sexos, e que essa influência manifesta-se com a mesma intensidade nos contextos indutores de certeza e de incerteza. 3.2 Idade Em relação à idade, a tabela a seguir indica as porcentagens de respostas por faixa etária. TABELA 2: Porcentagem da escolha da paráfrase com caso, em função da faixa etária. 14-25 % Caso 51% 53% 37% 63% Total Contexto Indefinido Contexto Indutor de Certeza Contexto Indutor de Incerteza 247 26-49 % Caso 50% 49% 29% 72% ≥50 % Caso 52% 52% 20% 83% Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero, Idade e Escolaridade Observa-se que, tanto no total, como no contexto indefinido, as frequências de ambas as respostas situam-se em torno de 50%, nas três faixas etárias. As pequenas diferenças registradas não são estatisticamente significativas. Isso indica que nenhuma das faixas etárias tem maior tendência a fazer uma atribuição de postura epistêmica positiva ou neutra, com a consequente preferência pelas paráfrases com os conectores caso ou já que, respectivamente. Com contexto indutor de incerteza, entretanto, a frequência da resposta caso aumenta com a faixa etária, assim como, com contexto indutor de certeza, a frequência da resposta já que aumenta com a faixa etária. A diferença entre as faixas etárias, em ambos os contextos, foi estatisticamente significativa, no nível de 0,001. Na faixa mais jovem, de 14-25 anos, a concordância com ambos os contextos é de 63%, enquanto que na faixa mais idosa, de ≥50 anos, ela é de 80% e 83% para os contextos de certeza e de incerteza, respectivamente. Esses resultados mostram que, com o aumento da idade, aumenta a concordância das respostas com o contexto indutor fornecido. Os jovens são mais refratários à influência do contexto fornecido, parecendo pautarem-se mais pelo contexto imaginativamente criado por eles mesmos, ainda que este esteja em contradição com o contexto fornecido. 3.3 Escolaridade A tabela 3 apresenta os resultados quanto à escolaridade: 248 Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken TABELA 3: Porcentagem da escolha da paráfrase com caso, em função do nível de escolaridade. Total Contexto Indefinido Contexto Indutor de Certeza Contexto Indutor de Incerteza EF % Caso 51% 54% 33% 67% EM % Caso 51% 51% 33% 68% ES % Caso 50% 49% 21% 81% Pode-se observar que, no total dos contextos, as diferenças entre os níveis de escolaridade, em relação à frequência das paráfrases escolhidas, são mínimas, não atingindo qualquer significância estatística. No contexto indefinido, as diferenças observadas também não são estatisticamente significativas. Entretanto, no contexto de incerteza, a frequência de respostas caso aumenta com o aumento no nível de escolaridade mais altos. Essa diferença entre os três níveis é estatisticamente significativa, no nível de 0,001. Os números mostram que essa diferença se dá mais acentuadamente entre os dois primeiros níveis, tomados em conjunto, e o nível superior. De forma semelhante, no contexto de certeza, embora a porcentagem de já que esteja empatada, em 67%, entre os dois primeiros níveis de escolaridade, ela sobe para 79% no terceiro nível, e essa diferença é estatisticamente significativa, no nível de 0,001. Estes resultados, similares aos obtidos em relação à faixa etária, mostram que o nível de escolaridade não se relaciona a qualquer preferência por uma das paráfrases, por si mesma, mas que os níveis de escolaridade superiores correlacionam-se com uma maior concordância da paráfrase escolhida com o contexto fornecido. Na faixa EF, a concordância é de 67% com os dois contextos, enquanto que na faixa ES ela é de 79% e 81% para os contextos de certeza e de incerteza, respectivamente. 249 Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero, Idade e Escolaridade 3.4 Escolaridade e faixa etária Combinando os resultados de faixa etária e de escolaridade, verificamos que o subgrupo que deve apresentar a maior concordância com o contexto fornecido é o de sujeitos com ≥50 anos e nível de escolaridade superior. Por outro lado, o subgrupo que deve apresentar a menor concordância é o de sujeitos de 14 a 25 anos com ensino fundamental completo ou incompleto. Tabulando os resultados desses subgrupos (Tabela 4), verificamos que o primeiro apresentou 87% e 88% de concordância com os contextos indutores de certeza e de incerteza, respectivamente, enquanto que o segundo apresentou apenas 57% e 53% de concordância em relação aos mesmos contextos, respectivamente. (Essa diferença também é estatisticamente significativa, no nível de 0,001.) TABELA 4: Porcentagem da escolha da paráfrases com caso, por sujeitos com 14-25 a. e EM versus sujeitos com ≥50 a. e ES. 14-25 EF % Caso 51% 56% 43% 53% Total Contexto Indefinido Contexto Indutor de Certeza Contexto Indutor de Incerteza ≥50 ES % Caso 50% 49% 13% 88% 4 Resultados qualitativos e discussão geral dos resultados Como vimos, as mulheres tendem mais que os homens a interpretarem as condicionais com se e verbo no indicativo como expressando postura epistêmica neutra (parafraseável com caso). Isso pode significar que as mulheres convivem melhor com uma situação de dúvida, e os homens 250 Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken preferem as situações de certeza. Reconhecemos que esta inferência é especulativa, pois não dispomos de dados que a sustentem diretamente. Entretanto, observamos em nossos resultados uma diferença entre os gêneros, e não podemos nos furtar a tentar propor uma interpretação para ela. Admitindo-se tal diferença entre os gêneros quanto à preferência pela certeza e à capacidade de conviver com a dúvida, talvez isso reflita uma definição mais tradicional de papéis de gênero na cidade pesquisada, em que cabe ao homem maior assertividade e à mulher maior flexibilidade. Seria interessante verificar se a mesma tendência apareceria em uma cidade mais cosmopolita, já mais liberta dessa visão tradicional sobre os papéis de gênero. Por outro lado, a idade e a escolaridade não afetaram a postura epistêmica atribuída ao enunciador de tais condicionais, em si mesmas. Foi interessante notar a presença de uma exceção a esse padrão de diferenciação de gêneros, nos itens 12 e 20 do formulário. O item 12 tinha o enunciado: Talvez tenha pedra nesse arroz. Se tiver pedra, tem que catar.5 Neste item, a frequência de respostas caso foi aproximadamente a mesma em homens e mulheres (77% contra 74%). Já o item 20, com contexto indutor de certeza, dizia: Esse arroz está com pedra. Se tem pedra, tem que catar. Aqui, o padrão habitual inverteu-se, com as respostas caso em 16% das mulheres contra 30% nos homens. Parece que, em relação a esse conteúdo específico, muitas mulheres aceitaram prontamente como um fato a presença de pedras no arroz, seja diante da afirmação desse fato, seja diante da mera menção de sua possibilidade. Talvez isso tenha acontecido devido a maior familiaridade delas com situações semelhantes, ou maior aceitação da tarefa necessária de catar as pedras. Curiosamente, entretanto, o item que apresentava o mesmo conteúdo em contexto indefinido (item 4: Se tem pedra nesse arroz, tem que catar primeiro) Reconhecemos que é mais frequente o feijão ter pedras do que o arroz e que a situação mais típica é a de catar pedras no feijão. Teria sido mais adequado, portanto, termos usado o feijão em nosso exemplo, mas só nos demos conta disso a posteriori. Acreditamos que isso não invalida esse item de nosso formulário, entretanto, pois o arroz também pode ter pedras e a situação é facilmente compreensível. 5 251 Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero, Idade e Escolaridade apresentou o padrão habitual, com respostas caso mais frequentes nas mulheres que nos homens (51% contra 36%). Notemos que as respostas discordantes do contexto fornecido implicam uma rejeição ou desconsideração da postura epistêmica induzida pelo mesmo. Para tentar explicar esse fato, temos que recorrer a uma análise qualitativa dos resultados. Uma explicação para isso, que apareceu muitas vezes em nosso inventário, é a de os sujeitos interpretarem as duas frases desses itens como um diálogo. Assim, no item 12, por exemplo, uma mulher pode ter interpretado que, se alguém diz Talvez tenha pedra nesse arroz, deve ter uma razão para fazê-lo, e que portanto outra pessoa pode responder Já que tem pedra, tem que catar, tomando como fato o que a primeira sugeriu. Duas pessoas não precisam tem a mesma postura epistêmica, o que justificaria a aparente inconsistência da resposta. Já no item 20, diante da frase Esse arroz está com pedra, um homem que não faz serviços de cozinha pode pensar que isso não lhe diz respeito, que não quer saber disso, e se identificar com uma outra pessoa imaginada que responderia: Caso tenha pedra, tem que catar, tratando a presença de pedras no arroz como mera possibilidade. Vale registrar a explicação de um homem para sua resposta discordante no item 20: “Parece ter, e quando tem, tem que catar”. Apesar da afirmação Esse arroz está com pedra, ele aceita apenas que o arroz parece ter pedras. Vimos também que os contextos fornecidos influenciam igualmente os dois gêneros. As diferentes faixas etárias e os diferentes níveis de escolaridade, por outro lado, apresentam diferentes graus de sensibilidade à influência do contexto fornecido. Os mais jovens e menos letrados mostraram-se menos sensíveis à influência dos contextos fornecidos. Novamente, para tentar explicar essa diferença, devemos recorrer aos resultados qualitativos de nossa pesquisa. Ao serem indagados sobre as razões de suas respostas discordantes, os mais jovens e menos escolarizados deixavam claro que prendiam-se mais a um contexto por eles mesmos imaginado, do que ao contexto fornecido. Isso pode indicar 252 Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken que estes dão curso mais livre à sua imaginação, enquanto os mais velhos e mais instruídos estão mais habituados a adaptar-se à informação fornecida. Por outro lado, não encontramos qualquer efeito da idade sobre a atribuição de postura epistêmica em si, independente da influência do contexto fornecido. Em outras palavras, não houve maior ou menor tendência a atribuir a postura epistêmica positiva ou neutra a uma frase condicional, em função da idade, seja nas frases com contexto indeterminado, seja no conjunto dos três contextos. Isso significa que não houve evidência favorável a qualquer hipótese relativa a uma evolução da língua no que diz respeito à atribuição de postura epistêmica, nem evidência favorável a uma diferença psicológica ou sociocultural das faixas etárias quanto à mesma atribuição (hipóteses que havíamos levantado em nosso planejamento de pesquisa). De forma semelhante, não encontramos também qualquer efeito da escolaridade sobre a própria atribuição de postura epistêmica, independente da influência do contexto. Em outras palavras, a escolaridade não causou maior ou menor tendência a atribuir a postura epistêmica positiva ou neutra a uma frase condicional nas frases com contexto indeterminado, ou no conjunto dos três contextos. No plano metodológico, verificamos que a parafraseabilidade diferencial mostrou-se um instrumento útil para estudar a postura epistêmica atribuída aos enunciadores de frases condicionais, bem como as diferenças nessa atribuição e na consideração dos contextos fornecidos, em diferentes grupos de falantes6. 6 Priscila Mattos Monken teve bolsa de mestrado da FAPERJ durante esta pesquisa. Agradecemos a André Fernandes Meirelles e a Nilson Sérgio Peres Stahl pela ajuda na análise estatística dos resultados. 253 Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero, Idade e Escolaridade Referências AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003. COSTA, Ana Lúcia dos Prazeres. A variação entre formas de futuro do pretérito e de pretérito imperfeito no português informal no Rio de Janeiro. Dissertação. UFRJ, Faculdade de Letras, Rio de Janeiro, 1997. COSTA NETO, Pedro Luiz de Oliveira. Estatística. 2ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Edgard Blucher, 2005. DANCYGIER, Barbara; SWEETSER, Eve. Mental Spaces in Grammar: Conditional Constructions. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. FERRARI, Lilian. Introdução à linguística cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011. FILLMORE, C. J. 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CASTRO (2006, p. 150) cita “duas simétricas ‘franjas de separação’: uma coincidindo com a segunda metade do séc. XIV [...] e outra franja de igual duração, esta sim assegurando uma certa forma de transição entre o português médio e o português clássico, que CARDEIRA caracteriza como um patamar de estabilização. Depois disso, virá o Português Clássico. Pensando nessa noção do português médio como período de transição, Charlotte Galves sugeriu que nossa visão de competição de gramáticas parece ser muito permeada pela noção moderna de norma. Assim, poderíamos pensar na existência de duas normas e a substituição de uma pela outra. A língua portuguesa inicial (a do norte - o galegoportuguês) vai ser substituída por um novo dialeto, o de Lisboa a partir do século XIV. Segundo SILVA NETO (1961), trata-se de uma língua comum, nascida do contato de dialetos na grande cidade. MATTOS E SILVA (1994) chama de português arcaico o período que vai do século XII ao XIV). 2 GALVES, NAMIUTI & SOUSA (2006) consideram que o surgimento de uma nova gramática parte do processo de aquisição da língua, o que faz com que levem em conta na periodização a data de nascimento do autor e não a data de escrita do texto (havendo divergências da proposta de periodização por elas apresentada em relação à proposta tradicional), embora também tomem o português médio como um período fronteiriço entre os séculos XIV e XV. As autoras verificam dois pontos de inflexão (correspondentes ao surgimento de novas gramáticas) na periodização da história da língua portuguesa: “a fronteira entre os séculos 14-15, e o início do século 18” (p. 51). Apesar de compartilharmos desse ponto de vista, não pudemos fazer nossa análise com base na data de nascimento do autor, visto (1) a impossibilidade de precisarmos, em muitos casos, qual é o autor do texto; (2) a falta de informações de qualquer tipo sobre o autor, em outros casos. 1 © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 257-299, jan./jun. 2014 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico de analisar tais mudanças sob uma perspectiva formal, tentando mostrar como se caracteriza a estrutura sintática das orações existenciais com os verbos ser e haver ao longo do tempo. Insere-se numa linha de pesquisa que parte do pressuposto de que as chamadas construções locativas (locativas, possessivas e existenciais) provêm de uma mesma estrutura subjacente (cf. LYONS, 1968; CLARK, 1978; BENVENISTE, 1976; FREEZE, 1992; KAYNE, 2006). Buscaremos explicar essas mudanças com base na noção de “competição de gramáticas” (KROCH, 1994). Tentaremos, todavia, adequar essa noção à de que haver seria derivado de ser por meio de movimento e incorporação (conforme proposta de FREEZE, 1992), pautando-nos num modelo não-lexicalista, como o da Morfologia Distribuída (HALLE & MARANTZ, 1993), segundo a qual os itens funcionais não vêm “prontos” do léxico, mas são obtidos por meio da combinação de traços no decorrer da derivação sintática. Este consistirá no diferencial desta pesquisa em relação a outras já desenvolvidas sobre as mudanças envolvendo esses verbos na história do português. ABSTRACT This paper studies existential and possessive changes in 13th to 16th centuries, contributing to the analysis of those changes under a formal perspective, aiming to show the syntactic structure feature of existential constructions with the verbs “ser” and “haver” over time. It follows a line of research that considers the so called locative constructions (locative, possessive and existential) have the same subjacent structure (cf. LYONS, 1968; CLARK, 1978; BENVENISTE, 1976; FREEZE, 1992; KAYNE, 2006). We intend to explain such changes based on the notion of “grammar competition” (KROCH, 1994). Otherwise, we will try to accommodate this notion to that according to the verb “haver” would be formed by movement and incorporation (according to FREEZE, 1992), based on a nonlexicalist model, Distributed Morphology (HALLE & MARANTZ, 1993), according to functional itens are obtained by features matching during syntactic derivation. This is the point that differs this research from others which study changes related to those verbs in Portuguese history. PALAVRAS-CHAVE Construções Existenciais. Mudança. Português. Teoria Gerativa. Verbo Haver. Verbo Ser. 258 Elisângela Gonçalves KEYWORDS Change. Existential Constructions. Generative Theory. Portuguese. Verb “Haver”. Verb “Ser”. Introdução As construções existenciais têm sido foco de pesquisa de muitos investigadores, sincrônica ou diacronicamente. Vários estudos têm se voltado para a relação entre os verbos que compõem construções possessivas e existenciais3. Isso porque, conforme alguns estudiosos, essas construções possuem uma mesma estrutura subjacente (cf. LYONS, 1968; CLARK, 1978; BENVENISTE, 1976; FREEZE, 1992; KAYNE, 2006). Algumas pesquisas sobre o português tratam do percurso histórico dos verbos ser, estar, haver e ter, mostrando a interrelação entre eles na substituição de um pelo outro num dado padrão sentencial, tais como as de MATTOS E SILVA (1995, 1996, 1997, 2002a, 2002b), RIBEIRO (1996) e AVELAR (2004, 2006a, 2006b, 2007). Esses trabalhos leva em conta o fato de os verbos serem intercambiáveis na realização de diferentes funções, como a de auxiliares, possessivos e existenciais. MATTOS E SILVA (1995) relata que a variação entre as formas seer e habēre em construções existenciais já era verificada no latim vulgar, representadas pelo verbo esse no latim clássico, no qual, habere estava em competição com tenere em construções possessivas nos séculos IV e V. No latim vulgar, aver começou a perder os significados do verbo habere (do latim clássico: possuir, obter, manter, reter, segurar, conter, deter, entre outros), que passaram ao domínio do verbo teer, restringindo-se somente ao significado de possuir4. Isso nos mostra que essas não consistem em mudanças iniciadas no português, mas numa “herança” latina. No 3 Quero agradecer às professoras Charlotte Galves, Ilza Ribeiro e Evani Viotti, que contribuíram para a elaboração deste trabalho. 4 Segundo MATTOS E SILVA (1995), no português arcaico, por outro lado, haver ainda ocorre com esses significados. 259 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico português histórico, de acordo com MATTOS E SILVA (1995, 1996, 1997, 2002a, 2002b), haver-existencial sobrepõe-se a ser-existencial no século XV ((1a) e (1b), respectivamente), e ter-possessivo, a princípio usado na expressão de posse circunstancial, prevalece sobre haver-possessivo em todos os contextos de posse na metade do século XVI (seguem em (2a) e (2b), respectivamente, sentenças com ter e haver possessivos). O verbo seer ainda variava com star nas construções locativas/situativas e construções copulares transitórias, como pode ser visto nas sentenças em (3a) e (3b), funções que passaram a ser exercidas somente por estar no século XVI. Nesse século, a autora registra um contexto em que o verbo ter parece admitir tanto a interpretação de posse quanto a de existência, conforme (4). (1) a. En hua abadia huu tesoureiro avia. b. non foi quem podesse (MATTOS E SILVA, 1997:262) (2) a. Que os çegos a nam tenham, ainda que ouçam cousas de que se possa haver. b. E estas meas voages l, m, r, se chamam líquidas e houveram este nome açerca dos latinos. (MATTOS E SILVA, 2002b:128) (3) a. Este rey dom Afonso, seendo en Castella en este nono anno do seu reinado[...] (Crônica de Afonso X, Séc. XIV. Fonte: CIPM) b. [...] e todas aquelas cousas que Deus mi deu em poder sten em paz e em folgãcia. (MATTOS E SILVA, 2002a:105) (4) [...] se metiam [eles] em almaadias duas ou três que hy tiinhan [...] (MATTOS E SILVA, 1996:187) De acordo com RIBEIRO (1996), o emprego existencial de aver se inicia no Português Arcaico, já que, no latim clássico, as existenciais eram realizadas por esse. Segue em (5) sentenças existenciais com os verbos ter, haver e ser, retiradas por RIBEIRO (1996:373) do Índice Analítico do Vocabulário de Os Lusíadas 260 Elisângela Gonçalves (5) a. .......... e assim caminha Para a povoação, que perto tinha (Lus. V, 29) b. Que aqui gente de Cristo não havia (Lus. I, 102) c. Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha (Lus. III, 23) Menciona o fato de, no Português Arcaico, o verbo ser fazer parte das construções locativas ao lado de estar, que prevaleceu nessas construções. Ressalta o fato de, nas existenciais, ser e haver possuírem um traço locativo, próprio das construções locativas. Foi justamente a perda desse traço que fez com que ser deixasse de ser verbo existencial e auxiliar temporal (segundo RIBEIRO, o traço locativo era responsável pela caracterização de um verbo ser ou não auxiliar em português) 5. Ainda, “ser caracteriza-se no PA sempre como um auxiliar verbal, nas perifrásticas passivas e ativas, e nas construções existenciais e locativas. No PB contemporâneo conserva só o seu estatuto de auxiliar nas perífrases passivas” (RIBEIRO, 1996:377, grifo nosso). Assumindo a hipótese da existência de um paradigma locativo envolvendo sentenças locativas, possessivas e existenciais, AVELAR (2004) propõe que ter-existencial é formado pelo complexo de traços v+T no componente morfológico. A esse complexo são associados outros, de modo a obterem-se os demais verbos. Assim sendo, v+T+D leva à obtenção de estar; somando-se Top a esse complexo (v+T+D+Top), gera-se o verbo copulativo ser; o complexo v+T+D+C forma o que se tem denominado na literatura terceira cópula (cf. KATO, 2007). Enquanto MATTOS E SILVA e RIBEIRO afirmam a inexistência de ser-existencial no PB, AVELAR não menciona a possibilidade de tais construções nessa variedade do português6. RIBEIRO (2006, 1996:361) mostra, ainda, que os verbos que compõem as sentenças existenciais são os mesmos que compõem os tempos compostos. Esses verbos possuem em comum o fato de se caracterizarem “como verbos auxiliares, não atribuidores de papel temático”. 6 Em sua tese de Doutorado, Gonçalves (2013) analisou sentenças existenciais com o verbo ser no Português Brasileiro Contemporâneo, com base em dados orais de falantes de Vitória da Conquista e Salvador, ambas cidades da Bahia, e de Campinas-SP e São Paulo (capital). 5 261 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico Neste trabalho, vamos nos centrar nas sentenças existenciais construídas com ser e haver, conforme os exemplos a seguir. (6) a. b. c. [...] djzendo q(ue) era uerdade q(ue) antre elles fora (con)tenda. (Textos notariais in Clíticos da História do Português, Séc. XV. Fonte: CIPM) Titolo p(ri)m(eyr)o q(ue) fala das leys e som XIX leys en este titolo. (Alphonse X, Primeyra Partida, Séc. XIV. Fonte: CIPM) [...] diz a Sancta Escriptura que nõ é huu mayor enmigo ca aquel que dana a boa fama do outro. (Afonso X, Foro Real, 1280(?). Fonte: CIPM) Mostramos no par de sentenças em (7) abaixo que o verbo ser ocorre em contexto análogo ao que ocorre o verbo haver, sem que haja aparente prejuízo ou alteração de sentido. (7) a. b. Falando primeiro da soberva que procede da presunçom e desejo de propria vantagem, em ella sam tres partes. (Leal Conselheiro, Séc. XIV. Fonte: CIPM) Do entendimento nosso, segundo minha declaraçom, ha VII partes. (Leal Conselheiro, Séc. XIV.Fonte: CIPM) Tomaremos como base nesta análise o Blocking Effect (Aronoff 1976), princípio a que KROCH (1994) recorre para analisar fenômenos de variação e mudança linguísticas. KROCH (1994:1-2) concebe os doublets (duplos) como reflexos de ‘competição de gramáticas’, dado que, de acordo com o Blocking Effect, os “doublets are always reflections of unstable competition between mutually exclusive grammatical options”. Nossa abordagem se pautará, entretanto, numa perspectiva não-lexicalista, da Morfologia Distribuída, conforme proposto por EMBICK (2007), 262 Elisângela Gonçalves que discorda dessa visão “tradicional” de blocking effect, argumentando que, na formação dos comparativos e superlativos do inglês, por exemplo, a forma sintética smarter não bloqueia a forma analítica *more smart – formas analíticas são disponíveis em outros contextos, como more intelligent. Casos como esse não envolvem bloqueio baseado em competição entre palavras ou entre palavras e sintagmas (isso já fora notado por DI SCIULLO & WILLIAMS (1987). Ao contrário, efeitos de bloqueio se limitam a efeitos de mecanismos distintos, como (1) Inserção Vocabular em um determinado morfema, e (2) operação de processos combinatórios (EMBICK, 2007:1). O seu trabalho examina a formação dessas estruturas, buscando mostrar como é possível dar conta de efeitos de bloqueio em uma abordagem que envolve sintaxe e morfologia. Segundo o autor, […] competition is restricted to one aspect of the derivation of complex forms, namely the consideration of the phonological form of single nodes (morphemes). There is no competition at the level of outputs, so that larger objects like “words” do not compete with one another. Consider, for example, tak-en versus *tak-ed. Tak-en exists only as the result of a particular derivation, and has no independent existence on a list like the VI that inserts -(e)n in certain participial structures does. *Tak-ed is not derived at all; i.e. it could only exist if the grammar were altered. […] There is therefore no sense in which intelligenter and more intelligent exist on lists that are consulted for insertion, nor does the grammar generate both intelligenter and more intelligent and select a winner. Rather, the syntax and PF generate a structure which, after Vocabulary Insertion, receives the phonological form of more intelligent. (EMBICK, 2007:6-7) 263 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico Também assumimos nesta pesquisa pressupostos minimalistas da Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1995). Temos por objetivo: (a) demonstrar quando o verbo haver, que expressava posse, passou a designar existência, substituindo ser como verbo existencial canônico do português; (b) mostrar sintaticamente (estruturalmente) quais complexos de traços licenciam a obtenção do verbo ser-existencial em oposição ao verbo haver-existencial, o que distingue este trabalho de outros, como o de MATTOS E SILVA (1989, 1994, 1996, 1997, 2002) e RIBEIRO (1996), seguindo a linha de trabalhos que consideram que o verbo de posse/existência é resultado de uma derivação sintática e que são obtidos a partir de uma base comum; e (c) verificar se essa substituição de ser por haver na expressão de existência é ou não decorrente da ação do Blocking Effect nos moldes aqui assumidos (conforme explicitado acima). Analisamos textos dos séculos XIII-XVI, provenientes do Corpus Informatizado do Português Medieval (CIPM7)e do Corpus Tycho Brahe8 9 . Foram coletados 601 dados10 (204 sentenças existenciais e 397 possessivas) que foram submetidos ao Goldvarb 2001, programa usado como ferramenta metodológica, que, por meio de tratamento estatístico/probabilístico, aponta os fatores mais importantes para a ocorrência de uma dada variável dependente11. Considerando que estamos analisando a aplicação O CIPM conta com a organização de uma equipe do Centro de Lingüística da Universidade Nova de Lisboa dirigida pela professora Maria Francisca Xavier e sob a assessoria de Anthony Kroch (Universidade da Pensilvânia) e Stephen Parkinson (Universidade de Oxford). Encontramse nos materiais já digitalizados em seu acervo documentos produzidos nas regiões de Portugal e Galícia entre os séculos XII e XVI (textos notariais, crônicas e cantigas). 8 Procuramos analisar os dados, considerando (a) os séculos divididos por quinquênios; e (b) os textos divididos de acordo com os seguintes gêneros textuais: documentos notariais, textos narrativos e textos dissertativos. Todavia isso não foi possível no século XIII, devido à reduzida quantidade de dados, tampouco no XVI, visto que, na segunda metade desse século, não encontramos documentos notariais nem textos dissertativos. 9 As referências desses textos constam no final deste artigo. 10 Conforme ocorre nos dados analisados por MATTOS E SILVA (2002b), nesta pesquisa também são poucas as ocorrências de construções existenciais nos textos. 11 De acordo com MOLLICA (1992: 10), “a variação lingüística constitui fenômeno universal e pressupõe a existência de formas lingüísticas alternativas denominadas variantes”, que, por sua 7 264 Elisângela Gonçalves de construções existenciais com o verbo haver em oposição às existenciais com o verbo ser, nas rodadas desse Programa, estão sendo levados em conta os valores percentuais e pesos relativos referentes às existenciais com o verbo haver. O programa atribuiu o input de 0.750 à aplicação da regra, ou seja, às ocorrências de existenciais com o verbo haver, o que significa que, no corpus como um todo, levando-se em consideração todos os grupos de fatores, a ocorrência do verbo haver foi qualitativamente mais importante que a de ser. Dividimos este trabalho em duas etapas. Na primeira, apresentamos (na seção 2) propostas, dentro do arcabouço gerativista, que abordam a relação entre construções existenciais e possessivas, considerando o fato de ambas serem provenientes de uma mesma base estrutural. A seção seguinte se estrutura da seguinte forma: (a) em uma primeira fase, analisamos quantitativamente os dados, com base em fatores condicionadores intra e extralinguísticos, observando a variação/ mudança que envolvem os verbos ser e haver nas construções existenciais (e, por necessidade, voltando-nos para a substituição de haver por ter na expressão de posse); (b) em uma segunda fase, procedemos à análise qualitativa dos dados, apresentando hipóteses em termos teóricos para o fato de o verbo haver ter passado de possessivo a existencial, ocupando o lugar do verbo ser. Na segunda etapa, na seção 4, apresentamos, em linhas gerais, a proposta de ‘competição de gramáticas’ (KROCH, 1994), discutindo os ‘desafios’ que se coloca ao linguista histórico, ao lidar com dados de épocas passadas, para mostrar que a variação ou mudança linguística observada nos textos escritos se dá entre opções gramaticalmente incompatíveis, refletindo, assim, competição entre gramáticas. vez, consistem em formas alternativas que representam um fenômeno em variação, conhecido como variável dependente. Um exemplo de variável lingüística (ou fenômeno variável) dado pela autora é a concordância entre o verbo e o sujeito, que “se realiza através de duas variantes, duas alternativas possíveis e semanticamente equivalentes: a marca de concordância no verbo ou a ausência da marca de concordância” (p. 11). A concepção de variável dependente provém do fato de que o uso das variantes é condicionado por grupos de fatores (variáveis independentes) sociais ou estruturais. 265 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico 1 Relação entre construções existenciais e construções possessivas Se tomarmos como verdadeira a hipótese de que construções possessivas, existenciais (e copulativas) provêm de uma mesma estrutura subjacente, uma estrutura inerentemente locativa construída a partir de um verbo copulativo (LYONS, 1968; CLARK, 1978; BENVENISTE, 1976; FREEZE, 1992; KAYNE, 2006), acreditamos que poderemos explicar melhor as mudanças envolvendo os verbos ser e haver existenciais na história do português. FREEZE (1992:565), numa perspectiva gerativista, propõe que construções locativas, como em (8b), existenciais, (8c), e possessivas, em (8d’) abaixo, são geradas de uma única estrutura subjacente em torno de um verbo copulativo, em que a preposição é o núcleo do sintagma predicativo, como demonstrado com exemplos do russo12. Os movimentos a partir dos quais essas construções são formadas se baseiam na definitude do Tema: (i) um Tema definido é movido para o início da sentença (posição de sujeito, [Spec,IP]), gerando um predicado locativo, (8b); (ii) um Tema indefinido permanece in situ e o sintagma preposicionado se move para a posição de sujeito, o que leva à obtenção de dois padrões sentenciais: (iia) o existencial, quando o locativo possui o traço [-humano], (8c); (iib) e o possessivo, quando o locativo tem, preferencialmente, o traço [+humano], (8d) e (8d’). Essa estrutura é composta por uma cópula, um Tema e um locativo; os dois últimos gerados dentro do Sintagma Preposicionado (PP). 12 266 Elisângela Gonçalves Para as línguas românicas, FREEZE (1992:566) prevê uma arquitetura diferente da apresentada acima, que conta com a presença do que ele chama proforma (clítico locativo y), conforme representado em (9) a seguir, com um exemplo do francês: 267 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico Para esse autor, a proforma nessas línguas não ocupa a posição de sujeito, visto no francês essa posição ser ocupada pelo quase-argumento il (expletivo nos termos de CHOMSKY, 1995, conforme mostraremos adiante). Propõe, assim, que a proforma é uma realização do traço de Infl em PF (Forma Fonológica), sendo lexicalmente inseparável de AGR (concordância) e/ou TNS (tempo), mas nunca adjacente ao sintagma locativo, além de ter uma relação de precedência estreita com este (evidências do seu caráter locativo). Com relação às possessivas, a sua unidade com as existenciais é evidenciada em línguas como o hindi, em que ambos os padrões sentenciais apresentam os mesmos constituintes na mesma ordem, como podemos ver em (10). Conforme afirmado acima, é o traço [±humano] que diferencia possessivas de existenciais. 268 Elisângela Gonçalves (10) Hindi: a. kamree-ẽẽ aadmii hai. room.OBL-in man COP.3sg.PRES LOC] ‘There is a man in the room.’ b. larkee-kee paas kuttaa hai. boy.OBL-GEN proximity dog COP.3sg.PRES [+LOC] ‘The boy has a dog.’ (lit. ‘By the boy is a dog.’) (FREEZE, 1992:567) que se refere à forma verbal empregada nas possessivas, em algumas línguas, como o português, o possuidor, que é gerado dentro do sintagma preposicionado (PP), se move para a posição de sujeito e a preposição (P), núcleo do PP, permanece in situ, adjacente a I, obtendo-se a forma está com, conforme (11) a seguir. Quanto ao verbo ter (assim como o verbo inglês have), o autor propõe que este é obtido por meio da incorporação da preposição (P) a Infl, segundo o exemplo em (12). (11) O menino está com fome. (12) O menino tem fome. (FREEZE, 1992:567) KAYNE (2006:16) se baseia na proposta de FREEZE (1992) e SZABOLCSI (1983, 1994) de que as possessivas são originadas a partir das existenciais. Demonstra a equivalência entre as mesmas apontando a possibilidade de o clítico ci, constituinte que está presente nas existenciais, ocorrer em sentenças possessivas em alguns dialetos do italiano, como em (13) abaixo. (13) Gianni c’ha una sorella. (‘G ci has a sister’) (KAYNE, 2006:16) 269 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico A derivação das possessivas segue a das existenciais pelo fato de seu verbo tomar um único argumento (a despeito da possibilidade de adicionar-se um locativo): (14) ...[ci una sorella di Gianni]indef.DP... --> raising of ‘una sorella di Gianni’ ...[una sorella di Gianni]i...[ci ti]... --> merger of V ...è [una sorella di Gianni]i...[ci ti]... --> remnant movement ...[ci ti]k è [una sorella di Gianni]i...tk... C’è una sorella di Gianni... (‘there is a sister of G...’) (KAYNE, 2006:17) Até o ponto a que se chegou na derivação acima, obtém-se uma sentença existencial, ‘C’è una sorella di Gianni...’ (‘there is a sister of G...’). Seguindo a derivação, o possuidor Gianni é movido de dentro do sintagma ‘una sorella di Gianni’ para a posição de sujeito, obtendo-se uma sentença possessiva. (15) ...[ci ti]k ha [una sorella Gianni]i...tk... --> raising of the possessor ...Giannim [ci ti]k ha [una sorella tm]i...tk... (KAYNE, 2006:17) Para KAYNE, as existenciais de todas as línguas românicas possuem, na posição de sujeito, tanto clíticos locativos, do tipo do y (considerados pelo autor como um ‘modificadores dêiticos’, na medida em que é gerado juntamente com o DP a que modifica dentro de uma small clause)13 quanto um quase-argumento, como il (ambos do francês). Tanto o clítico como o quase-argumento poderão ser nulos em algumas línguas. 13 O foco de seu texto é discutir o papel desses constituintes nas sentenças existenciais e possessivas das línguas românicas, e demonstrar que esses não são, de fato, expletivos: y, hi, ci são modificadores dêiticos que são gerados junto com o associado (a que modificam) e il é um quase-argumento. 270 Elisângela Gonçalves Consideraremos em nossa análise as hipóteses de FREEZE (1992) e KAYNE (2006) de que clíticos locativos (ou, apenas, locativos) e quaseargumentos entram na composição das sentenças existenciais das línguas românicas (numa maneira a ser explicitada), discutindo o seu papel na formação das existenciais com os verbos ser e haver, bem como a de que as construções possessivas são geradas a partir das existenciais. 2 Substituição de ser por haver nas construções existenciais 2.1 Variação entre ser e haver existenciais – condicionadores extralinguísticos Na Tabela 1 abaixo, podemos ver que o verbo ser é mais representativo que haver nas construções existenciais no século XIII, conforme demonstra o peso relativo que as construções com ser apresentam nesse período: 0.823. A situação mantém-se assim até a primeira metade do século seguinte, em que o peso relativo aponta o fato de esse período ainda favorecer o emprego de ser-existencial (0.648). Observase, entretanto, uma mudança de comportamento quanto ao emprego das existenciais no terceiro período (1350-1399), cujo peso relativo de 0.614 leva ao uso de haver. A partir de então, todos os pesos relativos dos séculos seguintes favorecem a ocorrência das existenciais com esse verbo, até que, na segunda metade do século XVI, haver já substitui por completo o verbo ser nesse tipo de construção. O que podemos notar na Tabela 1 é que nem sempre peso relativo e valores percentuais “caminham juntos”. Isso pode ser observado no período de 1300-1349, em que, embora os percentuais de ocorrências de haver sejam superiores aos de ser (respectivamente, 59% e 41%), em termos de peso relativo, esse período é selecionado como significativo para a ocorrência de ser- 271 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico existencial, ou seja, esse fator, considerado com os demais fatores (sejam linguísticos ou extralinguísticos), está favorecendo o emprego de ser nas existenciais. TABELA 1: Verbo Ser Existencial, de acordo com o Século SÉCULO Ser Haver VERBO N T ( %) p. r. N T ( %) p. r. XIII 23 39 59 0.823 16 39 41 0.177 1300-1349 16 39 41 0.648 23 39 59 0.352 1350-1399 16 37 43,2 0.386 21 37 56,8 0.614 1400-1449 6 21 28,6 0.139 15 21 71,4 0.861 1450-1499 6 17 35,3 0.264 11 17 64,7 0.736 1500-1549 4 16 25 0.338 12 16 75 0.662 Quanto às construções possessivas, haver se mantém como verbo possessivo canônico do português até a segunda metade do século XIV, entre os períodos 1 a 3 (como indicado tanto em termos percentuais, respectivamente, 78,4%, 66,7%, 77,2%, quanto em pesos relativos (respectivamente, 0.805, 0.670, 0.828)). Entretanto, considerando o peso relativo, verificamos uma variação entre os empregos de ambos os verbos na primeira metade do século XV, o que é muito significativo considerando o ponto de vista de GALVES, NAMIUTI & SOUSA (2006) de que, num processo de mudança, deve-se olhar para o momento inicial (de surgimento das novas formas), não para quando a mudança já está concluída. Nossos resultados condizem com o que apontam as autoras, isto é, com o fato de um período de inflexão na história da língua portuguesa ser a fronteira entre o século XIV e o XV. A virada se dá no período seguinte (1450-1499), em que o verbo ter é favorecido por peso relativo de 0.809, ocorrendo o mesmo no século seguinte 272 Elisângela Gonçalves (peso relativo de 0.888), até que não encontramos nos dados nenhuma ocorrência de haver-possessivo na segunda metade do século XVI. Esses resultados podem ser conferidos na Tabela 2 a seguir. TABELA 2: Verbo Haver Possessivo, de acordo com o Século SÉCULO Haver VERBO Ter N T ( %) p. r. N T ( %) p. r. XIII 105 134 78,4 0.805 29 134 21,6 0.195 1300-1349 46 69 66,7 0.670 23 69 33,3 0.330 1350-1399 61 79 77,2 0.828 18 79 22,8 0.172 1400-1449 62 100 62 0.586 38 100 38 0.414 1450-1499 16 95 16,8 0.191 79 95 83,2 0.809 1500-1549 11 126 8,7 0.112 115 126 91,3 0.888 Concluímos que, à medida que o verbo haver vai espraiando seu uso entre as construções existenciais, vai perdendo seu uso entre as possessivas. Em termos de progressão, observamos que a expansão do verbo haver-existencial se dá mais rapidamente que a do verbo ter-possessivo, pois as ocorrências com o primeiro já superam as construções com serexistencial no terceiro período, enquanto as construções com ter-possessivo só ganham projeção sobre as construções com haver-possessivo no período 5. Na próxima seção, tentaremos explicar, em termos teóricos, o que motivou essas mudanças. Outro fator relevante é o gênero textual14: documentos notariais, textos narrativos (crônicas) e textos dissertativos (normas sobre a conduta, comportamento a ser adotado na vida em sociedade). De modo a obtermos alguma indicação sobre a dinâmica da mudança, decidimos cruzar o grupo de fatores gênero textual com século. 14 Não entraremos no mérito da terminologia ‘gêneros textuais’, deixando de lado o fato de que, segundo algumas teorias voltadas para a análise textual, documentos notariais não consistiriam num gênero textual, por exemplo. 273 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico Para a análise desses grupos, tivemos que descartar os dados do século XVI, já que, na primeira metade desse século, não foram encontrados textos dissertativos e, na segunda, só encontramos textos do gênero narrativo, o que poderia comprometer a análise. Como podemos ver na Tabela 3 abaixo, no século XIII, o verbo ser-existencial era mais usado que haver tanto nos documentos notariais, com 86% de ocorrências, quanto nos textos dissertativos, com 60%. Ambos os verbos variam nos textos narrativos, em que ser apresenta percentual de 52% e haver, de 48%. Todavia, é neste tipo de texto que haver começara a ter maior projeção nas construções existenciais nos séculos posteriores. Na primeira metade do século XIV, ser continua a se destacar nos documentos notariais, com 67%, enquanto haver vai ganhando espaço nas narrações, com 65%, bem como nos textos dissertativos, em que varia com haver, cada um apresentando 50% de ocorrências. No segundo quinquênio desse século, justamente quando haver se sobrepõe a ser nas existenciais, conforme demonstramos na Tabela 1, o emprego de haver se sobressai ao de ser nos documentos notariais, com 67%, e nas narrações chega a 100%. Ambos continuam a variar nas dissertações: ser com 54% e haver com 46%. O mesmo quadro se delineia no período de 1400-1449, em que haver alcança 100% de ocorrências tanto nos documentos notariais quanto nas narrações, variando com ser nos textos dissertativos, com 54% para 46% de ser. Os resultados obtidos na segunda metade do século XV são curiosos e não encontramos uma explicação para eles, pois ser apresenta 67% de ocorrências nos documentos notariais e varia com haver nas narrações, com 50%; haver predomina nas dissertações, com 88%. 274 Elisângela Gonçalves TABELA 3: Verbo Haver Existencial, de acordo com o Gênero Textual e o Século15 GÊNERO SÉCULO DOCUMENTO NOTARIAL SER HAVER NARRAÇÃO SER DISSERTAÇÃO HAVER SER HAVER n. % n. % n. % n. % n. % n. % III 6 86 1 14 14 52 13 48 3 60 2 40 1300-1349 4 67 2 33 11 35 20 65 1 50 1 50 1350-1399 1 33 2 67 0 0 6 100 15 54 13 46 1400-1449 0 0 1 100 0 0 7 100 6 46 7 54 1450-1499 2 67 1 33 3 50 3 50 1 12 7 88 Os dados acima nos mostram que os textos narrativos são a porta de entrada para o verbo haver-existencial, enquanto os dissertativos consistem no contexto de resistência para ser. Também, a fim de observarmos a dinâmica da mudança, analisamos, Tabela 4 a seguir, como se comporta o grupo de fatores Definitude do Tema ao longo do tempo, constatando que o verbo haver já se destaca com DPs indefinidos desde o século XIII, com 62%, com os quais sempre mantém percentuais superiores aos de ser; a partir da primeira metade do século XIV, sobressai-se a ser, de um modo geral, com 75%. Ao contrário, nunca obtém percentuais elevados com temas definidos. A segunda metade desse século chama a atenção pelo fato de haver e ser variarem com todos os tipos de DPs. Se observarmos atentamente, há uma diferença significativa quanto à quantidade de dados com haver existencial, pois nesta tabela estes totalizam 98 (sendo que no cômputo total as ocorrências com haver existencial somam 219). Isso se explica devido a alguns fatores terem sido excluídos, como, por exemplo, os dados do século XVI, pelo fato de contarmos essencialmente com textos narrativos nesse período. 15 275 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico TABELA 4: Verbo Haver Existencial, de acordo com a Definitude do Tema e o Século16 DEFINITUDE INDEFINIDO BARE NOUN16a SER SER DEFINIDO SÉCULO HAVER HAVER SER HAVER n. % n. % n. % n. % n. % n. % III 5 38 8 62 3 75 1 25 2 67 1 33 1300-1349 1 8 11 92 1 25 3 75 6 100 0 0 1350-1399 8 42 11 58 2 50 2 50 1 50 1 50 1400-1449 1 14 6 86 0 0 4 100 4 100 0 0 1450-1499 1 12 7 88 1 33 2 67 1 50 1 50 Os grupos de fatores sociolinguísticos serão de suma importância na discussão a ser estabelecida na seção 4, quando abordaremos a variação e a mudança linguísticas com base na noção de ‘competição de gramáticas’, segundo KROCH (1994). Assim como ocorreu na Tabela 2, nesses resultados não está representado o total de ocorrências nem do verbo haver (148 de 219 ocorrências) nem do verbo ser (41 de 71 ocorrências). Isso se deve à exclusão de alguns fatores que não apresentam variação: no grupo de fatores concordância, por exemplo, houve 100% de concordância com ser e 0%, com haver. 16a Em termos de definitude, os bare nouns estão sendo analisados como indefinidos em oposição aos DPs definidos, mesmo quando possuem uma leitura genérica, como no caso de “Lá não tinha nada [...] Ali era mato”. A distinção entre indefinidos e bare nouns se justifica por fatores morfossintáticos: se se trata de um DP introduzido, por exemplo, pelos quantificadores um e muito, no primeiro caso, ou se se trata de um NP (o caso dos bare). Remetemos os leitores a SCHMITT, Cristina; MUNN, Alan. Against the Nominal Mapping Parameter: bare nouns in Brazilian Portuguese. Proceedings of Nels 29, 1999; CHENG, Lisa Lai-Shen; SYBESMA, Rint. Bare and not-so-bare nouns and the structure of NP. Linguistic Inquiry 30:509-542, 1999; CHIERCHIA, Gennaro. Reference to kinds across languages. Natural Language Semantics 6, 339-405, 1998. 16 276 Elisângela Gonçalves 2.2 Variação entre ser e haver existenciais – condicionadores intralinguísticos Foram selecionados como significativos para a ocorrência de ser e haver existenciais os grupos de fatores intralinguísticos: (1) definitude do Tema; e (2) realização do pronome hy17 18. Quanto à Definitude do Tema, haver é favorecido por temas indefinidos, com peso relativo de 0.596 (exemplo em (16)); ser, por outro lado, ocorre preferencialmente com temas definidos, apresentando 0.941 de peso relativo, conforme exemplo em (17). Esses resultados podem ser conferidos na Tabela 4 abaixo. Ressaltamos que, em termos teóricos, para um gerativista, quando se fala em “preferencialmente”, está-se querendo apontar para o fato de que, na gramática internalizada do falante, a estrutura própria para a ocorrência de ser-existencial era aquela em que este seleciona como complemento um DP [+definido], embora possa ocorrer com DPs indefinidos e bare nouns em dados contextos. O fato de acontecer com menor ou maior peso relativo diz respeito ao reflexo da gramática do falante (fator interno) nos textos produzidos por ele (fatores externos). Tomando como variável dependente a especificidade do verbo nas existenciais (ser/haver), consideramos os seguintes fatores intralinguísticos que poderão nos levar a capturar o comportamento das construções existenciais: (a) a definitude do Tema (se definido, indefinido, bare noun); (b) a posição ocupada pelo Tema na sentença (se à esquerda ou à direita do verbo); (c) o conteúdo nocional do Tema (se [+animado], [inanimado material], [evento], [abstrato]). Ainda, a fim de verificarmos se fatores de natureza morfológica poderiam estar favorecendo o emprego de ser ou de haver, adicionamos à análise os grupos de fatores tempo e modo verbais e concordância entre o verbo e o Tema. Incluímos também o grupo de fatores realização do pronome locativo hy, pelo fato de a presença desse locativo com o verbo haver (mas não com ser) chamar a atenção nas construções existenciais. Voltando-nos para a análise da mudança de haver de verbo possessivo a existencial, observamos o estatuto do argumento interno (se argumental ou quase-argumental (expletivo)), tomando como variável dependente o padrão sentencial em que ocorre o verbo haver (possessivas/ existenciais). Nesta seção, priorizaremos os grupos de fatores selecionados como significativos pelo Goldvarb. 18 O leitor constatará, ao longo deste texto, que são utilizadas diferentes grafias para o clítico locativo, tais como hi, hy, i, y. 17 277 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico (16) a. Avya hi muytos mouros vezinhos acerca da cidade (Crônica de D. Afonso, Séc. XIV. Fonte: CIPM) a. O primeiro Hercoles foy em [o] tempo de Moyses, pero que naceu ante que elle, e este fez muytos grandes e bõõs feytos pero nom som contados ẽ estas estorias. (Crônica Geral de Espanha, Séc. XIV. Fonte: CIPM) (17) TABELA 5: Verbo Haver Existencial, de acordo com a definitude do Tema Definitude do Tema N Definido T ( %) p. r. 4 19 21,1 0,059 Indefinido 108 127 85 0,596 Nome nu 36 43 83,7 0,517 O grupo de fatores que considera a posição do Tema na sentença, embora não selecionado como significativo pelo Goldvarb, nos diz muito sobre os resultados obtidos, visto que está relacionado com a definitude do Tema, pois os temas definidos normalmente se encontram à esquerda do verbo (cf. exemplo em (17) acima), o que confirma o que vários estudos têm apontado: a “rejeição” de temas pós-verbais definidos em sentenças existenciais (cf. FREEZE, 1992; BELLETTI, 1998; entre outros)19. Assim, quando o Tema é definido, uma estratégia seria a de deslocá-lo para uma posição externa à sentença20. Uma exceção são as sentenças em que ocorrem os chamados contextos de lista, conforme numa sentença como “Tem o pai do Aroldo querendo uma vaga no Conselho de Pais”, ou seja, o pai do Aroldo faz parte de um grupo que inclui outros pais que querem fazer parte do Conselho. 20 Vale ressaltarmos que são muito escassas as ocorrências de existenciais com temas definidos em nossos dados. 19 278 Elisângela Gonçalves Os pesos relativos referentes à realização do pronome hy demonstram que o uso de haver é condicionado pela realização desse elemento (0.733), enquanto ser apresenta uma única construção com hy (com peso relativo de 0.267), conforme exemplos em, respectivamente, (18a) e (18b). Os resultados referentes ao verbo haver se encontram na Tabela 5 abaixo. (18) a. E ainda ha hy outra maior cousa q(ue) os leigos q(ue) [...] (Alphonse X, Primeyra Partida, Séc. XIV. Fonte: CIPM) b. [...] e out(ro)ssy os beens q(ue) hy som e q(ue) podẽ seer. (Alphonse X, Primeyra Partida, Séc. XIV. Fonte: CIPM) TABELA 6: Construções existenciais com o verbo haver, de acordo com a presença do locativo hy N Locativo hy T ( %) p. r. Presença 22 35 62,9 0,733 Ausência 197 484 40,7 0,482 Quanto ao grupo de fatores Concordância entre o verbo e o Tema, verificamos 100% de concordância com ser, conforme exemplo em (19) a seguir, e 0% de concordância com haver, como em (21). Esse grupo de fatores não foi selecionado pelo Goldvarb, não sendo obtidos pesos relativos, visto que esse Programa não procede a rodadas em que não há variação: nessa situação, aconteceram casos categóricos de realização de concordância com ser e nenhum caso com haver. Esses resultados são muito interessantes para a hipótese aqui desenvolvida, a ser apresentada na próxima seção, pois correlacionamos o fator concordância ao tipo de clítico locativo/quase-argumento que licencia cada verbo existencial (ser e haver). (19) a. Titolo #VIº da pẽedença q(ue) he o #IIIº sacram(ẽ)to e p(or) q(ue) ha assy nome e som q(ua)rẽeta e hũa leis. (Alphonse X, Primeyra Partida, séc. XIV. Fonte: CIPM) 279 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico (20) Capitollo primeiro Das partes do nosso entendimento. Do entendimento nosso, segundo minha declaraçom, ha #VII partes. (Leal Conselheiro, séc. XV. Fonte: CIPM) Na seção 4, analisaremos a importância dos resultados quantitativos para as mudanças aqui estudadas. 3 Mudanças envolvendo verbos existenciais e possessivos no português medieval – propostas de análise Conforme pôde ser visto na seção 3.1, foi no século XVI que o verbo haver se fixou como verbo existencial canônico do português. Neste tópico, apresentaremos hipóteses para as causas que podem ter levado haver a migrar dos contextos possessivos para os existenciais, tomando o posto de ser como verbo existencial. Partimos nossa análise de um fator que chamou a atenção nas construções existenciais com haver, que é a realização do pronome hy. Como notado por FREEZE (1991) e KAYNE (2006), é próprio das línguas românicas a presença de um clítico locativo em construções existenciais, conforme os seguintes exemplos retirados de FREEZE (1992:567-568): (21) French: a. Il y a deux enfants dans l’auto. it p has two children in the car. ‘There are two children in the car.’ Italian: b. Non ci sono uomini in casa. NEG p are men in house ‘There are no men in the house.’ Catalan: 280 Elisângela Gonçalves c. No hi ha peix al menu d’avui. NEG p have fish on.the menu of.today ‘Isn’t there fish on today’s menu?’ KAYNE (2006) ressalta o fato de que o português e o espanhol contemporâneos, apesar de não apresentarem uma contraparte visível do y francês (com exceção do tempo presente no espanhol: Hay gente en el pasillo), devem dispor de uma versão nula desse elemento. Acreditamos que os resultados desta pesquisa corroboram a sua afirmação, já que, no português antigo, encontramos vestígios da presença de tal locativo nas existenciais do português, evidenciando a sua realização fonológica (hy e suas variantes hi, y...) nas sentenças com o verbo haver, o que aproxima o português de suas irmãs. As existenciais com ser, por sua vez, contariam com um locativo do tipo do ci italiano, só que nulo, como argumentaremos a seguir. Podemos observar nas sentenças existenciais em (21a) e (21c) acima, respectivamente do francês e do catalão, que, quando o verbo realizado é haver, o locativo que ocorre com ele é do tipo do y/hi. Quando se trata do verbo ser, como no italiano (21b), o locativo é ci. Outro ponto relevante é que no italiano é ativada a concordância entre o verbo ser e o tema, enquanto, no francês e no catalão, não ocorre concordância. Esse fator também é atestado nos resultados apresentados na seção 3.2 deste trabalho, visto que com ser é verificado 100% de concordância com o tema, enquanto com haver, 0%. Observamos, desse modo, que o fator concordância está relacionado ao tipo de clítico locativo que ocorre com o verbo existencial. Mas essa não é toda a história. Ainda, para KAYNE, assim como o francês apresenta il na posição de sujeito das suas existenciais, as demais línguas românicas também contam com um sujeito quase-argumental (nos termos de CHOMSKY, 1981), só que na sua versão nula. 281 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico Quanto ao argumento que ocorre na posição de sujeito das construções existenciais, recorremos à distinção feita por CHOMSKY (1995) entre “expletivos puros”, do tipo de there do inglês (que não possui traços- φ nem traço de Caso) e expletivos com Caso e traços-φ (categorias quase-argumentais (CHOMSKY, 1981)), it do inglês e il do francês21. Os “expletivos” (puros e quase-argumentais) possuem estreita relação com os clíticos locativos do tipo de y, hi, ci. Logo, quando o pronome locativo é do tipo de ci, um expletivo puro aparece na posição de sujeito. Trazendo para a discussão os pressupostos assumidos por CHOMSKY (1995) quanto à checagem de traços, podemos afirmar que, nesse caso, numa sentença, como em (22) a seguir, T, uma sonda com traços-φ que precisam ser valorados, procura um elemento que possua esses traços valorados com que possa combinar os seus, encontrando o DP (Tema). Assim, T, além de valorar os traços-φ, compartilha com o tema o traço de Caso nominativo. Contudo, ainda resta um traço de T a ser valorado, o traço EPP. Esse traço exige a presença de um elemento em [Spec,TP], que, conforme vemos em (22), não se trata do tema, que permanece em posição pós-verbal; logo, o traço EPP só poderá ser satisfeito por um expletivo puro, que não possui traços-φ nem traço de Caso22. Quando o locativo é do tipo de hy,23 por seu turno, como em (23) abaixo, é um quase-argumento (pro quase-argumental) que ocupa a posição de sujeito no Sintagma Verbal/Small Clause, com o qual T valorará traços-φ e traço de Caso, bem como traço EPP. Nessa situação, o tema portará Caso Uma distinção básica estabelecida por CHOMSKY (1981) para caracterizar expletivos (em oposição a argumentos plenos) é o fato de estes não receberem papel-temático. 22 Atribui-se normalmente a inserção do quase-argumento (expletivo puro, no inglês) em [Spec,TP] a casos em que o tema é pós-verbal, pois, quando este se encontra antes do verbo, valora o traço EPP de T. Para nós, não haveria a necessidade da ativação de dois mecanismos distintos para a obtenção de sentenças existenciais com DP pós ou pré-verbal – em ambos os casos, o quase-argumento estará ocupando a posição [Spec,TP]; assim, quando o Tema se encontrar à direita na sentença estará na periferia de CP, na posição de tópico ou foco – o Caso nominativo será valorado com o DP in situ. 23 Os clíticos locativos ci e hy só portam traço [locativo], valorado por T. 21 282 Elisângela Gonçalves inerente partitivo. O clítico locativo ( e hy), que é gerado junto com o DP (dentro de uma Small Clause) se adjunge a T, conforme demonstrado nos esquemas abaixo. (22) [ TP e proexpletivo-puro [T’ -loc+som+T [DP -loc [q(ua)rẽeta e hũa leis [+nom,+φ]]]]] (Alphonse X, Primeyra Partida, séc. XIV. Fonte: CIPM) (23) [TP proquase-argumental [+nom,+φ] [T’hy+a+T [DP hy [muytos mouros...]]]] (Crônica de D. Afonso, Capítulo II – Século XIV. Fonte: CIPM) A partir do que é afirmado acima, podemos tentar uma explicação para a passagem de haver de possessivo a existencial. Consideramos que a presença de hy acarreta uma mudança de estatuto do verbo haver: enquanto nas construções de posse, haver contava com um sujeito argumental pleno, portador de traço geralmente [+humano], haver existencial ocorre com um sujeito quase-argumental (do tipo do il francês, só que nulo24, segundo FREEZE (1992) e KAYNE (2006)). Em (24), apresentamos a configuração para uma sentença possessiva e, em (25), para uma existencial, chamando a atenção para o constituinte que ocupa a posição de sujeito em cada uma delas [Spec,IP/TP]. Estamos seguindo as configurações propostas por FREEZE (1992), apresentadas na Seção 2. 24 No Português Europeu Contemporâneo, são encontradas construções existenciais com o pronome “ele” na posição de sujeito, num emprego análogo ao do il francês, conforme demonstrado nestas sentenças: (i) a. Afinal o que importa não é ser novo e galante // - ele há tanta maneira de compor uma estante! (Mário Cesariny 1945-6, 1991: 14) b. Ele há espadilha no mar. (Vila Praia de Âncora, CORDIAL VPA53) c. É a estrela da manhã (...) e há a estrela... Bom, ele há várias estrelas, não é?(Nisa, CORDIAL AAL92) d. Ele há o sete-estrelas, há o cacheiro. (Nisa, CORDIAL AAL93) (CARRILHO, 2001: 3) 283 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico (24) [IP [P’ Ihesu Cristo]i [I’ á d’omen e Deus] [P’ ti]]]] [PP en sy [NP duas naturas (25) [IP pro [I’ avya hi [PP hi [muitos mouros] [P’ acerca da cidade]]]]] Como estamos associando concordância e Caso, justificamos o fato de T não tomar como alvo muitos mouros, com que, inclusive, não concorda em número, porque está concordando com pro. Passemos agora ao segundo ponto a ser analisado nesta seção: o fator que fez com que ser perdesse o posto de verbo existencial canônico do português. Assumimos aqui a proposta de RIBEIRO (1996) de que esse verbo portava traço [locativo], o qual perdeu, deixando de poder ser licenciado entre as existenciais. Conforme registrado na introdução deste trabalho, ao mesmo tempo em que ser era empregado em construções existenciais, também o era em construções locativas/situativas e copulares transitórias (ao lado de estar, sendo suplantado por este no século XVI). As existenciais e as locativas/situativas têm em comum o fato de ocorrem com constituintes que envolvem a noção de locação, daí sustentarmos nossa proposta de que o verbo ser, nesses padrões sentenciais, possui um traço [locativo]. A partir de quando ser perdeu esse traço, deixou de ser licenciado entre as existenciais e locativas. Adotamos a visão de FREEZE (1992) de que o clítico locativo (proforma, em seus termos) consiste na realização fonológica do traço [locativo] do verbo existencial, que pode ser nulo. Tendo discutido quando e como se deu a “migração” de haver das construções possessivas para as existenciais, substituindo ser, vamos nos voltar para o nosso segundo objetivo: mostrar se essa mudança refletida nos textos escritos resultou de ‘competição de gramáticas’. 284 Elisângela Gonçalves 4 Variação e mudança linguísticas à luz da noção de ‘competição de gramáticas’ Tratando inicialmente dos fatores intralinguísticos, vimos, conforme análise desenvolvida na Seção 3.2, que foram selecionados como condicionadores do uso de ser/haver a definitude do Tema (haver ocorre preferencialmente com temas indefinidos e ser, com definidos) e a realização do pronome hy (que acontece quase exclusivamente com haver). Ainda, apesar de não terem sido selecionados pelo Goldvarb, alguns fatores merecem destaque: (a) a posição do Tema na sentença, que está relacionada com a definitude, visto que os temas definidos (que favorecem o verbo ser) vêm normalmente à esquerda do verbo; (b) o presente do indicativo, que levou à expansão de haver ao longo dos séculos; e (c) Temas cujo traço semântico é [abstrato]. A importância desses resultados está no sentido de que podemos chegar à conclusão de que ser e haver não demonstram ser itens funcionalmente idênticos, não estando sujeitos ao Blocking Effect 25. Dessa forma, quanto aos fatores intralinguísticos analisados, concluímos que o fato de o verbo haver ter substituído o verbo ser na expressão de existência não quer dizer necessariamente que essa mudança seja reflexo de ‘competição de gramáticas’; podemos afirmar com certeza que haver acabou ocupando todos os espaços de ser, o que 25 KROCH (1994: 8) cita casos de formas que coexistem estavelmente nas línguas devido a não serem funcionalmente idênticas (serem quase-duplos), como no inglês antigo, “shined” (transitivo/causativo) vs. “shone” (intransitivo), assim como o caso interessante da distinção entre formas verbais sintéticas e analíticas do islandês - as primeiras ocorrem com as pessoas cuja flexão número-pessoal é capaz de identificar/ licenciar pro e as últimas com a terceira pessoa, consistindo numa diferença no conteúdo do núcleo funcional . Essas duas variantes não poderiam coexistir, porque diferem somente em um traço morfossintático e não no significado, todavia coexistem. Isso porque o Blocking Effect deve respeitar o fato de que classes formais morfológicas são ubíquas e estáveis na língua. Não nos parece ser isso o que acontece no português, quando ser concorda com o Tema no plural e haver não concorda (ambos ocorrem com argumentos plurais); por exemplo, não há casos em que ser acontece somente com argumentos no plural e haver, somente com argumentos no singular ou em que ser ocorre somente com argumentos com traço [+humano], de um lado, e haver, com argumentos com traço [abstrato], de outro, ou, ainda, em que ser ocorre no passado e haver, no presente etc. 285 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico o tornou obsoleto e ‘bloqueado’. Contudo, a análise pautada somente em fatores intralinguísticos não pode ser conclusiva para constatar-se se as mudanças envolvendo verbos existenciais e possessivos são reflexo de ‘competição de gramáticas’, daí passarmos à análise das motivações sociolinguísticas na próxima seção. Conforme afirmado na introdução, KROCH (1994:1-2) se vale do Blocking Effect (ARONOFF, 1976) para invalidar a ocorrência de doublets nas línguas. Logo, no caso da presença de doublets em uma dada língua, o Blocking Effect “entra em ação”, eliminando uma das formas26. Todavia, isso não exclui a possibilidade de que duplos ocorram nas línguas. Logo, uma forma encontrada por KROCH (1994:6) para explicar esse fato sem invalidar o princípio do Blocking Effect, é atribuir aos duplos uma origem sociolinguística: Doublets arise through dialect and language contact and compete in usage until one or other form wins out. Due to their sociolinguistic origins, the two forms often appear in different registers, styles, or social dialects; but they can only coexist stably in the speech community if they differentiate in meaning, thereby ceasing to be doublets. Speakers learn either one or the other form in the course of basic language acquisition, but not both. Later in life, on exposure to a wider range of language, they may hear and come to recognize the competing form, which for them has the status of a foreign element. They may borrow this foreign form into their own speech and writing for its sociolinguistic value or even just because Em seu trabalho sobre mudança sintática, KROCH (1994) propõe que formas inovadoras vão expulsando as formas antigas na língua ao longo dos séculos, e que a forma inovadora é encontrada em diferentes frequências em diferentes contextos, e, o mais importante, que a taxa com que a nova forma substitui a antiga é a mesma em todos eles. Esses são os fundamentos do que KROCH (1989) denomina ‘Efeito da Taxa Constante’. Para confirmar esse efeito, o autor se vale de análise probabilística, que não será possível empregarmos em nossa análise, por não dispormos de dados suficientes a serem submetidos a esse tratamento estatístico. 26 286 Elisângela Gonçalves it is frequent in their language environment. Over time, however, as dialects and registers level out through prolonged contact, the doublets tend to disappear. Contudo, como o próprio KROCH (1994:5) já assinalou, não consiste numa tarefa fácil para o linguista (nem assim o deve ser, como bem pontua o autor), mostrar que uma variação ou mudança linguística se dá entre opções gramaticalmente incompatíveis, refletindo, assim, competição entre gramáticas27: The difficulty introduced by the possibility of Grammar competition is not for the learner but for the linguist, for whom a methodological question arises; namely, how to know when grammar competition should be invoked and when failure to find a unified analysis means only that more research is needed […] Analisar o passado com o olhar do presente é uma tarefa um tanto melindrosa, pois o linguista, além de não dispor de intuição linguística para analisar a língua falada na época, nem sempre conta com informações relativas aos textos analisados, como data e local de nascimento do autor, e local onde passou os primeiros anos de sua vida, dados importantes para sabermos sob que condições se deu sua formação (aquisição) linguística. 27 No Curso Diachronic Syntax: statistical fingerprints of grammar change, realizado no XX Congresso da Associação Brasileira de Linguística em fevereiro de 2011, na Universidade Federal do Paraná, Kroch ressaltou que alguns linguistas têm considerado fácil mostrar que a variação ou a mudança envolvendo um dado fenômeno linguístico não reflete competição de gramáticas; logo, não tendo sido motivadas por fatores externos à língua. Para ele, no entanto, constitui uma tarefa difícil para esses linguistas comprovarem que as motivações da mudança foram intralinguísticas e não sociolinguísticas, já que o analista poderá (a) estar diante de “maus dados” (o que vamos discutir na próxima seção sobre os dados de que dispomos), o que poderá levá-lo a uma má interpretação dos mesmos ou (b) estar usando um arcabouço metodológico inadequado para o tipo de análise a que se propõe. 287 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico Aqui se coloca outro desafio para o linguista: Como comprovar que as causas das mudanças estudadas são sociolinguísticas diante dos dados de que dispomos? Pensando primeiramente sobre o grupo de fatores extralinguísticos gêneros textuais, algumas questões se colocam: (1) Analisando o gênero textual (documentos notariais, textos narrativos e textos dissertativos, seria adequado assumirmos a postura adotada em trabalhos sobre o português atual, tomando, por exemplo, os textos narrativos como mais próximos da oralidade? Para tanto, seria necessária uma pesquisa acurada sobre os gêneros textuais no português medieval, o que consistiria em outro trabalho, não sendo o foco desta pesquisa; (2) Como se caracterizava a linguagem falada retratada nas narrativas analisadas – estava ou não voltada para o padrão linguístico da época? A princípio, nossa resposta seria afirmativa, visto que as crônicas versam sobre feitos dos reis (nobres) e contam histórias sobre a vida de santos cujos personagens ou eram pessoas da própria nobreza e do clérigo ou a eles ligados. Entretanto, como discutiremos a seguir, é necessária uma reflexão sobre o que consistia no padrão linguístico nos períodos antigo, médio e clássico (somente o século XVI), tendo em vista que a preocupação dos escritores nessa época era com a formação do português enquanto uma língua independente28 (cf. ILARI & BASSO, 2006). (3) Como lidar com problemas relacionados à coleta de dados disponíveis, quando esses são ‘limitados’? Em nosso caso, por exemplo, encontramos basicamente textos narrativos na segunda metade do século XVI (contando com documentos notariais apenas na primeira metade desse século)29. Ilza Ribeiro sugere que uma solução para esse problema seria pensar em textos que eram escritos para serem lidos para o público e textos escritos no sentido estrito. 29 Ressaltamos que, ao considerarmos especificamente o grupo de fatores gênero textual, deixamos os dados desse século fora da rodada no Goldvarb. 28 288 Elisângela Gonçalves Considerando que a mudança estudada provavelmente tenha sido motivada por fatores sociolinguísticos, assim como outras ocorridas nesse período, buscamos informações relativas, ao menos, ao local onde os textos foram escritos, já que não dispomos de muitas informações sobre os autores, de modo a verificarmos se era possível contrapor diferenças linguísticas em termos de região geográfica, por exemplo. Mas praticamente todos os textos foram escritos por escritores que viviam em Lisboa. Ainda, como saber se viveram sua infância em Lisboa (eis outro ‘complicador’)? Uma alternativa encontrada foi buscarmos informações sobre o contexto sociocultural que envolve tanto o latim vulgar quanto o português dos períodos antigo e médio (veja comentários sobre os verbos ser e haver no latim na introdução deste texto). Pensando sobre a noção de prestígio que uma forma linguística possui junto à sociedade, bem como sobre o fato de que o latim clássico se opunha ao latim vulgar, que era o vernáculo, ou seja, “o aprendizado que se dá, por assimilação espontânea e inconsciente, no ambiente em que as pessoas são criadas” em contraposição a “tudo aquilo que é transmitido através da escola” (ILARI & BASSO, 2006:15), podemos concluir que ser pode ser tida como a variedade de prestígio, por ser uma variação do verbo esse do latim clássico30. Ademais, o fato de a Sociolinguística, normalmente, tomar a forma mais antiga como a que goza de maior prestígio na sociedade vem corroborar nossa afirmação, pois o verbo ser é a forma mais conservadora. ILARI & BASSO (2006:17) ainda registram que o latim vulgar foi uma variedade de latim principalmente falada, a mesma que os soldados e comerciantes romanos levaram às regiões conquistadas durante a formação do 30 Contudo, isso não é via de regra, haja vista o clássico trabalho de LABOV (1963) sobre o dialeto de Martha’s Vineyard, em que falantes rurais (pescadores) favorecem a forma não-padrão como uma maneira de reagirem à ‘invasão’ dos veranistas por meio de uma demarcação linguística. 289 Império que foi passando de geração em geração sem ser ensinada formalmente. Dá-se o contrário com o latim literário, que “foi criado pelo esforço consciente de várias gerações de escritores e tinha fins estéticos”, sendo “uma forte referência cultural” (ILARI & BASSO, 2006:17). Somado a isso está o fato de o latim vulgar ter se fragmentado devido às invasões ‘bárbaras’, resultando nas línguas românicas. Todavia, a fragmentação do latim vulgar não se deveu somente a causas externas, mas também a causas internas, tais como o despovoamento do império romano em decorrência das guerras civis, das constantes invasões bárbaras, bem como de uma terrível epidemia de peste que durou mais de quinze anos dizimando milhões de cidadãos romanos; o empobrecimento da população, “incompatível com os altos impostos cobrados para a manutenção do fausto da corte imperial” (BASSETO, 2001:139); a decadência militar, com a redução do efetivo, o que forçou os imperadores a buscar reforços entre os bárbaros, ocasionando a sua presença em todo o império, consistindo no que se tem chamado “invasão pacífica”. Quanto ao padrão linguístico retratado nos textos do português antigo e médio, também não se pode precisar como ele era estabelecido, já que, conforme ILARI & BASSO (2006:22), no século XIII, por exemplo, os documentos notariais (escrituras de cartório relativas a demandas, heranças e doações) adotavam a fala corrente, o que constituía um problema para os escribas medievais, por falta de uma padronização. Com relação ao português, considerando que fatores externos influenciam a história interna da língua, CASTRO (2006) cita como fatores que podem ter influenciado as mudanças linguísticas que marcaram o português médio, entre outras: (a) as obras dos filhos de D. João I; (b) assim como as de seu pai, escritor; (c) a influência de seu avô, que, apesar de não ter influenciado na literatura, trouxe para Elisângela Gonçalves Portugal técnicas novas de vencer batalhas aos castelhanos; e (d) de seu trisavô, Afonso III, que transferiu a sede do poder de Guimarães para Lisboa (cf.: MESSNER, 1983, 2002). Ainda, com o advento da dinastia de Avis, Lisboa se converteu no modelo a ser seguido por todos; e, linguisticamente, o eixo Lisboa-Coimbra se tornou o centro do domínio da língua portuguesa, segundo TEYSSIER (1982). Sabemos que, de acordo com estudiosos históricos, muitas mudanças linguísticas culminaram no século XVI, que consistiu num período de efervescência cultural e artística em Portugal, sendo “apontado como o século de ouro na literatura portuguesa” (ILARI & BASSO, 2006:28), “um período de forte preocupação com a língua portuguesa”, na tentativa de fixá-la (ILARI & BASSO, 2006:28). Nesse período, foram suprimidas muitas formas e construções encontradas no período arcaico, de acordo com ILARI & BASSO (2006:29); também se buscou “enriquecer a língua através de uma convivência íntima com o latim clássico”. Diante dessas colocações, que fizemos questão de citar na íntegra, talvez possamos concluir que as formas linguísticas adotadas deveriam refletir o que a sociedade (ou a elite social, econômica) tomava como culturalmente melhor. Em suma, encontramo-nos diante de duas situações: (a) de um lado, a análise dos fatores extralinguísticos não é suficiente para afirmarmos que as causas das mudanças foram sociolinguísticas; logo, não temos como falar em ‘competição de gramáticas’. Isso nos conduz à mesma conclusão a que chegamos na análise dos fatores intralinguísticos: de que não estamos diante de ‘competição de gramáticas’, tratandose de mudanças cujas motivações foram intralinguísticas – haver foi ‘invadindo’ os contextos ocupados por ser, em decorrência da alteração na configuração dos traços que compunham essas formas verbais, conforme discutido na seção 4 deste trabalho; (b) por outro lado, tendo em conta que as mudanças aqui estudadas, envolvendo verbos existenciais e possessivos, ocorreram no mesmo período em que se deram tantas outras, motivadas, segundo CASTRO (2006), por fatores 291 Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português: Um estudo Diacrônico externos, conforme discutido, poderíamos concluir que tais mudanças consistem em reflexos de ‘competição’ entre gramáticas. Diante desse quadro, é necessário ressaltarmos que este trabalho longe de pretender ser conclusivo, propôs-se a discutir os desafios do linguista que trabalha com dados históricos ao analisar a gramática internalizada do falante refletida nos dados por ele escritos. Conclusões Através da análise de textos escritos em Português Arcaico e Médio, esperamos ter mostrado que: (a) ser e haver existenciais não consistiam em dois itens funcionalmente idênticos, logo, não se pode falar em ‘competição de gramáticas’, o que foi demonstrado através da análise de fatores condicionadores intra e extralinguísticos: a mudança é decorrente exclusivamente de fatores de ordem intralinguística; (b) são vários os desafios que se colocam ao linguista histórico que toma como base pressupostos teóricos que se pautam na intuição linguística do falante para lidar com (analisar) dados de épocas passadas, o que torna a análise ainda mais instigante e crítica. Referências ARONOFF, M. 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Acesso em: 23 out. 2012. 299 ILUSÃO GRAMATICAL E FALIBILIDADE SELETIVA NO PROCESSAMENTO DE LACUNAS NÃO PREENCHIDAS EM PORTUGUÊS BRASILEIRO1 Marcus MAIA Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Amanda MOURA Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Fernando Lúcio de OLIVEIRA Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) RESUMO Toma-se o efeito da lacuna preenchida como diagnóstico para estudar o comportamento do processador sintático ou parser diante de lacunas não preenchidas e de lacunas inexistentes, através de um experimento de leitura automonitorada de construções-QU. Os resultados detectaram a atuação estrutural rápida do parser e também sua falibilidade diante de nomes em função de adjunto, mas não diante de advérbios. A ilusão gramatical obtida com base em verbos transitivos não se instancia, no entanto, em construções com verbos intransitivos, indicando sensibilidade do parser à informação sobre a grade de subcategorização dos verbos. Os resultados off-line motivam uma discussão sobre efeitos do tipo good-enough. ABSTRACT The filled gap effect is taken as baseline to study the behavior of the parser in the processing of non filled gaps and nonexistent gaps through a self-paced reading experiment targeting wh-questions. Results indicate the rapid structural action of the parser and its fallibility in Uma primeira versão desta pesquisa foi apresentada pelo primeiro autor em mesa-redonda, no II Encontro Internacional de Psicolinguística, realizado pelo GT de Psicolinguística da ANPOLL, na UFPB, em João Pessoa, entre os dias 30 de setembro e 5 de outubro de 2013. Os autores agradecem pelos comentários recebidos de membros da mesa e demais participantes do evento. 1 © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 301-324, jan./jun. 2014 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro the processing of names in the function of adjuncts but not in the processing of adverbs. A similar effect is not instantiated in constructions with intransitive verbs, suggesting a sensitivity of the parser to subcategorization information. Off-line results motivate a discussion of goodenough effects. PALAVRAS-CHAVE Construções-QU. Efeito da Lacuna Preenchida. Processamento de frases. Hipótese GoodEnough. Ilusão gramatical. Informação sobre transitividade. KEYWORDS Filled Gap Effect. Good-Enough Hypothesis. Grammatical illusion. Sentence Processing. Transitivity effects. WH-constructions. Introdução Este trabalho utiliza o chamado efeito da lacuna preenchida (ELP) como diagnóstico para investigar a atuação do processador sintático ou parser , na análise de construções em que o processador poderia apresentar falibilidade seletiva na compreensão de frases em português brasileiro (PB). Através de um experimento de leitura automonitorada não cumulativa, estuda-se a sensibilidade do processador sintático diante de informações tais como a categoria gramatical dos itens em estruturação e a grade de subcategorização dos verbos, discutindo também o impacto dessas informações na fase interpretativa da compreensão de frases. O trabalho é organizado da seguinte forma. Na seção 1, apresentamse o Efeito da Lacuna Preenchida, os conceitos de ilusão gramatical e de falibilidade seletiva, a questão do acesso à grade de subcategorização dos verbos e a hipótese Good-Enough. Na seção 2, apresenta-se o experimento de leitura automonitorada e, na última seção, elaboram-se as conclusões do estudo. 302 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira 1 Os efeitos da lacuna preenchida, da lacuna não preenchida, da lacuna inexistente e a hipótese GoodEnough 1.1 O Efeito da Lacuna Preenchida (ELP) O ELP tem sido detectado em diferentes línguas, desde os trabalhos seminais de CRAIN & FODOR (1985) e de STOWE (1986). Em PB, MAIA (a aparecer) apresenta resultados de experimentos de rastreamento ocular e de leitura automonitorada em que se compara o processamento de perguntas interrogativas-QU, tais como (1) e (2), abaixo: (1) Que livro o professor escreveu sem ler a tese antes? (2) Que livro o professor escreveu a tese sem ler antes? O tempo médio de leitura ou de fixação ocular do constituinte “a tese” é significativamente mais alto na frase (2) do que na frase (1), evidenciando a ocorrência do ELP em PB. O sintagma-QU “que livro”, deslocado para posição sintática na periferia esquerda da oração, conforme análise clássica na teoria gerativa (cf. CHOMSKY, 1977), torna-se, no dizer de CLIFTON & FRAZIER (1989), um “antecedente ativo” em busca de posição sintática vazia (lacuna ou gap) em que possa ser interpretado, já que a posição não argumental, em que se encontra no início da frase, não lhe atribui nem Caso e nem papel temático. Em conformidade com os princípios de economia que presidem a sua atuação, o processador deve postular uma lacuna “como primeiro recurso”, ou seja, deve tentar identificar a primeira posição possível em que a lacuna para interpretar o sintagma-QU deslocado pode ser postulada, ranqueando-se a probabilidade de postular a lacuna como maior do que a probabilidade de identificar, naquela posição, 303 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro um sintagma lexical. Assim, na frase (1), a lacuna é postulada logo na posição de complemento do verbo “escrever”, resolvendo-se ali a cadeia dependencial-QU, sem qualquer problema. Na frase (2), no entanto, ao utilizar a mesma estratégia de lacuna como primeiro recurso, o parser se depara com a posição de complemento do verbo “escrever” preenchida pelo constituinte “a tese”. Ocorre, então, o ELP – a decisão de análise default do parser é frustrada e precisa ser revista, devendo-se postular a lacuna, neste caso, após o segundo verbo da frase, o verbo “ler”, para se poder chegar, assim, à interpretação adequada. Conforme demonstrado em MAIA (a aparecer), tanto o efeito surpresa, quanto a reanálise podem ser inferidos através dos maiores tempos de leitura e de fixação que o constituinte “a tese” preenchendo a primeira lacuna disponível em (2) apresenta, em comparação à sua posição não problemática em (1). O ELP, epifenômeno do Princípio do Antecedente Ativo (cf. CLIFTON & FRAZIER, 1989) tem sido avaliado desde STOWE (1986) como indicador da realidade psicológica do contexto sintático, fornecendo suporte em favor da hipótese de que as condições gramaticais, como proposto em WAGERS & PHILLIPS (2009), mais do que meramente respeitadas na compreensão em tempo real, são, de fato condutores ativos da estruturação de representações linguísticas. 1.2 Ilusão Gramatical e Falibilidade Seletiva Revendo a literatura psicolinguística relevante para uma avaliação da eficácia da implementação on-line de diferentes condições gramaticais, uma questão central para se pensar a relação gramática x processamento, PHILLIPS et alii (2011) identificam o que chamam de um perfil surpreendentemente desigual (a strikingly uneven profile). De um lado, construções que envolvem princípios da Teoria da Vinculação ou condições de ilha, em contextos de dependência do tipo do ELP, têm encontrado, de modo geral, bastante sucesso no seu estabelecimento pelas pesquisas psicolinguísticas que aferem a sua implementação on304 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira line. De outro lado, construções que envolvem, por exemplo, relações de concordância, Caso, polaridade negativa, apontam para uma maior vulnerabilidade do processador à interferências e à “ilusões gramaticais”, caracterizando o que os autores chamam de falibilidade seletiva do parser. Segundo os autores, tal como o estudo das ilusões de ótica foi importante para o estudo da percepção visual, o estudo de tais ilusões gramaticais forneceria uma ferramenta valiosa para se compreender “como os falantes codificam e navegam representações linguísticas complexas em tempo real.”2 No presente artigo, fazemos a hipótese de que, mesmo no âmbito de uma construção menos vulnerável à falibilidade, tal como a construção ELP que, conforme revisto em MAIA (a aparecer), tem sido demonstrada com sucesso em diferentes línguas, através de diferentes técnicas experimentais, pode-se formular contextos sintáticos indutores de ilusão gramatical em que o parser pode vir a demonstrar falibilidade. Por exemplo, pode-se supor que um parser, funcionando nos termos de um modelo do tipo syntax-first, tal como a Teoria do Garden-Path (cf. FRAZIER & FODOR, 1978; FRAZIER 1979; FRAZIER & RAYNER, 1982), sendo, portanto, capaz de identificar cedo e rapidamente, no curso temporal de sua ação na compreensão de frases, a categoria gramatical dos constituintes em análise, deveria distinguir com precisão um nome (N) de um advérbio (Adv). Nesse sentido, o presente estudo coloca em questão se um tal parser, guiado por um princípio estrutural como o do “antecedente ativo”, poderia cometer um equívoco de análise motivado por ilusão gramatical, apondo na estrutura em construção um SN adjunto como se fosse, preferencialmente, um SN argumento. Esta presunção se justifica, já que uma Estratégia de Preferência por Argumento tem sido identificada em funcionamento na análise de outras 2 Just as the study of optical illusions has played an important role in the study of visual perception, the parser’s highly selective vulnerability to interference and ‘grammatical illusions’ provides a valuable tool for understanding how speakers encode and navigate complex linguistic representations in real time (cf. PHILLIPS et alii 2011, p. 153). 305 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro construções (cf. ABNEY, 1989; MAIA, 2010). Entretanto, perguntamonos, crucialmente, se uma tal falibilidade seria seletiva, só ocorrendo no caso de nomes em função adverbial, mas nunca no caso de advérbios reais. Para testar esta hipótese, desenvolveu-se um estudo de leitura automonitorada em que frases como as exemplificadas abaixo foram lidas com o objetivo de se tentar testar as seguintes hipóteses: (i) o parser poderia sofrer uma ilusão gramatical, apondo, inicialmente, um N pósverbal, em função adverbial, como, por exemplo, dias da semana (terça, quarta, quinta, sexta)3 como se fosse um complemento, tomando-o, equivocadamente, como um preenchedor de lacuna. Neste caso, se esta hipótese for verdadeira, o constituinte “terça”, contíguo ao verbo, em (3), deveria apresentar tempos de leitura médios mais elevados do que o constituinte “terça”, em (4), em posição distante do verbo. Impulsionado pela busca de lacuna como primeiro recurso, o parser seria iludido por um efeito ELP falso - um nome contíguo ao verbo e à sua lacuna, ainda que este nome fosse, de fato, um adjunto e não um argumento, não estando, portanto, a lacuna efetivamente preenchida; (ii) o parser não deveria sofrer a mesma ilusão se, ao invés de um N, o item contíguo ao verbo fosse, de fato, da categoria gramatical advérbio (Adv). Neste caso, a ser esta hipótese verdadeira, a previsão para as frases (3) e (4) não deveria se instanciar em (5) e (6) em que o constituinte “ontem”, um advérbio real e não um nome em função adverbial, não levaria o parser à ilusão gramatical de postulá-lo como um preenchedor de lacuna em (5). Assim, os tempos médios de leitura de “ontem” deveriam ser basicamente os mesmos tanto em (5), em que está contíguo ao verbo e sua lacuna, quanto em (6), em que está em posição distante. 3 Note-se que, embora tais itens sejam primariamente numerais ordinais, seu emprego como formas extensas ou abreviadas dos dias da semana os caracteriza claramente como nomes. ( e.g. As sextas / sextas-feiras são sempre animadas no clube por causa das festas). 306 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira (3) (4) Que rede o pescador usou terça sem lançar com força na praia? Que rede o pescador usou sem lançar com força terça na praia? (5) Que rede o pescador usou ontem sem lançar com força na praia? (6) Que rede o pescador usou sem lançar com força ontem na praia? A falibilidade do parser seria portanto seletiva – falharia diante de um N em função adverbial, mas não diante de um Adv. 1.3 O Parser acessa logo a transitividade verbal? Além dessa questão relacionada à informação categorial dos itens gramaticais em estruturação sintática, o presente trabalho também explora uma questão adicional: o parser poderia se equivocar, apresentando ilusão gramatical e falibilidade seletiva similares ao que se hipotetizou acima, no caso de verbos intransitivos? Neste caso, ao invés de postular um preenchedor ilusório de lacuna real, como se pretende obter para os nomes, nos exemplos acima, o parser postularia um preenchedor ilusório de lacuna inexistente, como se depreende dos exemplos a seguir, construídos com o verbo intransitivo “cair”: (7) Que rede o pescador caiu terça ao lançar com força na praia? (8) Que rede o pescador caiu ao lançar com força terça na praia? (9) Que rede o pescador caiu ontem ao lançar com força na praia? 307 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro (10) Que rede o pescador caiu ao lançar com força ontem na praia? Naturalmente, o que está em jogo aqui é a importante questão sobre as informações a que o parser teria acesso durante a fase inicial do processamento. Se o parser tiver acesso imediato à grade argumental do verbo, identificando-o como intransitivo, não seria lícito se esperar que postulasse lacuna para interpretar o QU inicial após um verbo como “cair” que, de fato, não projeta posição de complemento. Neste caso, os tempos médios de leitura dos itens críticos (em negrito) não deveria diferir, estejam eles contíguos ou distantes, sejam eles N ou Adv, pela simples razão de que a lacuna como primeiro recurso só seria encontrada após o segundo verbo destas frases (lançar), já que um verbo intransitivo não projeta posição sintática de complemento. A pesquisa sobre o papel da estrutura argumental dos verbos no processamento de frases vem motivando um debate intenso pelo menos desde meados da década de 80, dividindo os modelos de processamento de frases em dois grandes grupos. De um lado, os modelos mais estruturais (e.g. FRAZIER, 1989) propõem que os processos sintáticos e semânticos constituam módulos separados, serialmente ordenados em uma arquitetura que prevê que um processador sintático autônomo forneça informações estruturais para um componente interpretativo que não influencia as decisões de parsing do componente sintático. De outro lado, outros modelos “baseados em restrições” preveem um acesso mais imediato a informações lexicais, tais como a grade de subcategorização dos verbos (e.g., MacDONALD, PEARLMUTTER, & SEIDENBERG, 1994; McRAE, SPIVEY-KNOWLTON, & TANENHAUS, 1998). Mais recentemente, STAUB (2007) reporta estudos de rastreamento ocular em que as restrições de subcategorização impostas pelo verbo foram utilizadas para descartar o posicionamento de um objeto direto depois de um verbo crítico. Os resultados dos experimentos sugerem que o parser não colocaria uma lacuna de objeto direto depois de um verbo 308 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira intransitivo, não ignorando, portanto, as restrições de subcategorização impostas pelo verbo. 1.4 A Hipótese Good-Enough Finalmente, há um quadro teórico que já tem sido explorado em trabalhos anteriores sobre o processamento de frases em PB e que também pode ser de relevo no presente estudo. Trata-se da Hipótese Good-Enough. CHRISTIANSON et alii.(2001), FERREIRA et alii (2002), estudos também replicados, em parte, através de testes de compreensão de frases equivalentes em português do Brasil por RIBEIRO (2008), além de também discutidos em MAIA (2013), têm demonstrado que a interpretação de frases nem sempre é plenamente articulada, podendo resultar em representações semânticas imprecisas, incompatíveis com o valor de verdade do input. MAIA (a aparecer) detectou a existência de efeito do tipo good-enough, em construções ELP, nas respostas a perguntas como, por exemplo, “O que o professor escreveu? (A) o livro (B) a tese”, formuladas após a leitura de frases como (1) e (2), acima. O maior índice de erros verificados no teste de rastreamento ocular na resposta a esta pergunta após a frase (2), em que se registra o ELP, do que na frase (1), não problemática, atesta que a disrupção da análise sintática decorrente do ELP persiste para a fase interpretativa, produzindo interpretações com maior grau de imprecisão, embora, em princípio, a estrutura deva ter sido reanalisada durante o processamento on-line, como evidenciado pelo padrão de movimento ocular regressivo e pelos maiores tempos de fixação obtidos nas áreas críticas das frases do tipo ELP. 2 Experimento de Leitura automonitorada Este experimento objetiva investigar se o efeito da lacuna preenchida (ELP) em construções interrogativas-QU ocorreria mesmo em casos em que a lacuna não está preenchida ou mesmo é inexistente, manipulandose como fatores a grade argumental do verbo, a natureza do adjunto, 309 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro que poderia ser constituído por advérbios reais (ontem, aqui) ou por nomes em função adverbial (terça, quinta) e também a posição desses constituintes. Dessa forma, as variáveis independentes do experimento foram as seguintes: (1) a transitividade do verbo (Transitivo ou Intransitivo), (2) a categoria gramatical do adjunto (Nomes ou Advérbios), e (3) a posição do adjunto (Contíguo ou Distante). O cruzamento dessas variáveis gera um design 2x2x2, produzindo as 8 condições experimentais exemplificadas no quadro a seguir, em que também se indica, através de barras oblíquas, os segmentos em que se dividiram as frases, destacando-se em negrito os segmentos críticos em cada condição, além de se apresentar, também, exemplos das respectivas declarativas finais, a serem avaliadas pelos sujeitos como medida off-line: FIGURA 1: Exemplo de conjunto experimental com nomes 310 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira FIGURA 2: Exemplo de conjuntos experimental com advérbios. A tarefa experimental consistiu na leitura automonitorada de perguntas-QU divididas, cada uma, em sete segmentos, seguidas de uma afirmação final sobre a frase, conforme exemplificado acima. As variáveis dependentes foram a medida on-line dada pelos tempos médios de leitura dos segmentos críticos (em negrito, nos exemplos) e a medida off-line, aferida pelos índices de resposta na tarefa de avaliação das declarativas finais4. As hipóteses explicitadas na introdução do artigo nos levaram às seguintes previsões de resultados. Em primeiro lugar, prevê-se que haveria um aumento nos tempos médios de leitura nos segmentos críticos das frases na condição CTN em comparação aos das frases na condição DTN. Identificando a categoria gramatical “nome” do constituinte imediatamente contíguo ao primeiro verbo da sentença, o parser seria levado à ilusão de postular, em um primeiro momento, esse nome como um possível preenchedor da lacuna, entrando em uma espécie de garden-path motivado pelo efeito da lacuna preenchida 4 Os tempos médios de resposta foram computados, mas não apresentaram diferenças significativas relevantes e não são reportados. 311 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro (ELP). Justifica-se, dessa forma, a previsão de que o nome contíguo ao verbo apresente latências mais elevadas do que o nome distante, pois haveria na condição com nome contíguo um efeito surpresa, além de reanálise. Por outro lado, prevê-se que não haveria diferença significativa nos segmentos críticos nas condições CTAdv e DTAdv. O parser teria acesso rápido à informação sobre a categoria gramatical do adjunto, identificando-a como advérbio e, dessa forma, não cometeria a ilusão gramatical de analisá-lo como um possível falso preenchedor da lacuna pós-verbal que o antecede. Por isso, não haveria razão para que as latências do advérbio contíguo ao verbo diferissem das latências do advérbio distante. Em resumo, essa diferença entre advérbios reais e nomes em função adverbial ocorreria porque o parser poderia sofrer uma “ilusão gramatical”, postulando que o nome em função adverbial fosse um preenchedor de lacuna, o que não ocorreria com o advérbio real, caracterizando-se, assim, um caso de falibilidade seletiva do parser, no processamento de uma construção com um ELP ilusório. Prevê-se ainda que, se o parser não tiver acesso à grade argumental do verbo, deveriam encontrar-se maiores latências nos segmentos críticos das frases na condição CIN do que nas da condição DIN, de modo semelhante ao que se prevê para as condições com verbos transitivos, conforme descrito no parágrafo anterior. Não sendo capaz de acessar a informação sobre a transitividade verbal rapidamente, o parser postularia uma lacuna para analisar o sintagma-QU inicial mesmo após um verbo intransitivo. Dessa forma o nome em função adverbial imediatamente contíguo ao verbo também seria tomado como um preenchedor da lacuna, tendo seus tempos médios de leitura mais elevados do que os nomes distantes. Como se pressupõe que o parser tenha acesso imediato à categoria gramatical dos itens em estruturação sintática, não se esperam diferenças de latências na leitura dos advérbios reais entre as condições CIAdv e DIAdv. 312 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira Quanto às variáveis dependentes off-line, prevê-se maior índice de erros nas condições em que o nome está contíguo ao verbo, seja ele transitivo ou intransitivo, uma vez que já se obteve em MAIA (a aparecer) evidências para a persistência do ELP na fase final, integrativa, do processo de compreensão de frases, evidenciando, como analisado naquele estudo, efeito do tipo good-enough. 2.1 Método Participantes: Participaram 24 sujeitos, sendo eles 20 mulheres e 4 homens, 6 em cada versão, todos estudantes de graduação de Letras da UFRJ, com visão normal ou corrigida. Material: Foram utilizados 16 conjuntos de frases, como exemplificado nas figuras 1 e 2. As frases foram organizadas de modo que cada sujeito fosse exposto a todas as condições experimentais, mas a apenas uma de quatro versões de cada conjunto de frases, caracterizando um desenho em quadrado latino. Em cada versão, foram acrescentadas 32 frases distratoras, apresentadas randomicamente entre as sentenças experimentais, pelo programa Psyscope. Os nomes e advérbios, sempre constituídos por itens com duas sílabas, ocupavam o segmento 4 quando contíguos ao verbo e o segmento 6, quando distantes, tanto nas condições transitivas, quanto nas intransitivas. O segmento 7 era constituído por um Sintagma Preposicional, com a função de protetor, encerrando a sentença. Procedimento: Os sujeitos foram testados no Laboratório de Psicolinguística Experimental da Faculdade de Letras da UFRJ (LAPEX-UFRJ), em 313 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro equipamento iMac CORE i5, 4GB RAM, 500GB HD, com tela de 21 polegadas, rodando o programa Psyscope (build 57), no sistema operacional X (Leopard). Devidamente orientado, o participante pressionava a barra de espaço na leitura de cada segmento. Ao final da leitura de cada frase, aparecia em outra tela uma declarativa final em cor diferente (azul) da cor dos segmentos das frases, devendo o sujeito pressionar rapidamente uma tecla correspondente à palavra SIM ou outra correspondente à palavra NÃO, de acordo com a resposta que achasse mais adequada. Antes de iniciar o experimento, os participante passavam por uma prática de duas frases, sob a observação do pesquisador, que lhes indicava ajustes, quando necessário, garantindo, assim, a eficácia da tarefa. Após esta etapa, o pesquisador se retirava da sala e o participante dava início à realização do experimento. Cada sessão experimental durava em torno de vinte minutos. 2.2 Resultados e Discussão Os tempos médios de leitura de cada um dos segmentos das oito condições experimentais são apresentados nos gráficos 1 e 2 e também nas tabelas 1 e 2, abaixo. Esses resultados foram analisados através de uma análise de variância (ANOVA) por sujeitos, tomando-se como medidas within subjects a categoria gramatical do adjunto (Nome x Advérbio), sua posição (Contíguo x Distante) em relação ao verbo e a transitividade do verbo (Transitivo x Intransitivo), em um design fatorial 2x2x2. O resultado da ANOVA indicou um efeito principal altamente significativo do fator “categoria gramatical” (F(1,47) = 9,27 p<0,003813), além de efeitos principais significativos tanto do fator “posição” (F(1,47) = 6.62 p<0.013312), quanto do fator “transitividade” (F(1,47) = 4.22 p<0.045555). 314 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira GRÁFICO 1: Tempos médios de leitura dos segmentos em cada condição experimental com nomes TABELA 1: Tempos médios de leitura dos segmentos em cada condição experimental com nomes CTN CIN DTN DIN Seg1 Seg 2 Seg 3 Seg 4 Seg 5 Seg 6 Seg 7 604,4 642,4 617,5 618,6 617 616,5 550,5 607,6 566,1 585,8 553,5 557,3 664,1 618,6 556,6 704,4 624,5 618,6 581,6 661,5 642,3 600,3 483,1 584,2 731,2 604,5 574,1 638,1 GRÁFICO 2: Tempos médios de leitura dos segmentos em cada condição experimental com advérbios 315 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro TABELA 2 – Tempos médios de leitura dos segmentos em cada condição experimental com advérbios Seg1 CTAdv 660,7 CIAdv 504,6 DTAdv 582 DIAdv 639 Seg 2 618,7 593,4 585,3 599,1 Seg 3 568,4 548,2 532,4 564,1 Seg 4 588,4 609,9 606,6 677,8 Seg 5 586,4 639,7 610,8 652,5 Seg 6 605,2 561,2 577,7 633,5 Seg 7 617,8 757,6 704,4 640,7 Também houve diferença significativa na interação Categoria Gramatical x Transitividade (F(1,47) = 6.67 p<0.012976) e Posição x Transitividade (F(1,47) = 5.71 p<0.020915). Entretanto, não houve diferença significativa na interação Categoria Gramatical x Posição (F(1,47) = 0.240 p<0.626646) e na interação Categoria Gramatical x Posição x Transitividade (F(1,47) = 2.81 p<0.100122). Também foram realizados testes-t com os cruzamentos relevantes. Cruzaram-se o tempo médio de leitura do segmento 4 (664 ms) na condição CTN e o segmento 6 (483ms) na condição DTN, obtendo-se o resultado significativo, apontando para a direção esperada (t(47)=3.00 p< 0.0043), a saber, os tempos médios de leitura do nome contíguo ao verbo transitivo são significativamente mais elevados do que os tempos de leitura do mesmo conjunto de nomes quando estavam em posição distante do verbo, evidenciando a existência do ELP em cenário de ilusão gramatical, conforme previsto. Fazendo o mesmo tipo de análise, focalizando, agora, as condições com os advérbios reais, cruzaram-se o tempo médio de leitura do segmento 4 na condição CTAdv, que foi lido em 588,4 ms e o segmento 6 na condição DTAdv, lido em 577,7 ms, não se obtendo resultado significativo, em conformidade com as previsões (t(47)=1.61 p< 0.1140). O advérbio contíguo é lido, portanto, em tempos fundamentalmente semelhantes aos tempos do advérbio distante. Resultado semelhante foi encontrado mesmo para os nomes, nos cruzamentos das condições em 316 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira que o verbo era intransitivo. Cruzando-se os tempos médios de leitura do segmento 4 da condição CIN (618,6 ms) com o os tempos médios de leitura do segmento 6 da condição DIN (584,2 ms), não se obteve resultado significativo, como indicado no teste-t (t(47)=1.19 p< 0.2391), o que evidencia que as latências nas posições contígua e distante do verbo intransitivo são indistintas. Da mesma forma, quando cruzados o segmento 4 da condição CIAdv (609,9 ms) com o segmento 6 da condição DIAdv (633,5 ms), também não se obteve nenhum resultado significativo, o que apontou para a direção já esperada, (t(47)=1.23 p< 0.2248). Esses resultados sugerem, portanto, acesso rápido do parser à informação sobre a grade argumental do verbo, permitindo qua a lacuna não seja postulada após os verbos intransitivos, e evitando, assim, a ilusão gramatical que se verificou no caso de verbos transitivos. Os resultados das medidas off-line relativas aos índices de acerto, estão expressos nos Gráficos 3 e 4, que indicam os percentuais de acertos nas respostas às sentenças declarativas finais das condições com nomes e advérbios, respectivamente. Analisando o Gráfico 3, observam-se índices de acertos significativamente mais elevados na condição em que o nome está distante do verbo transitivo do que na condição em que o nome está contíguo ao verbo (X2=5,5, p=0,01). Esta diferença indica persistência da ilusão gramatical verificada na medida on-line, demonstrando efeito good-enough, uma vez que os sujeitos equivocam-se mais na interpretação das frases em que os nomes se encontram na posição de preenchedor ilusório da lacuna, justamente as mesmas em que apresentaram maior dificuldade de leitura, na medida on-line. Observe-se, em contraste, que o mesmo não se instancia nas condições com advérbios reais nas condições com verbos transitivos. Os índices de acerto obtidos para os advérbios contíguos a verbos transitivos não é significativamente diferente do que se obteve para os advérbios distantes (X2=0,47, p=0,49). Por outro lado, nas condições com verbos intransitivos, não se observam diferenças nos percentuais de acerto, seja com nomes (X2=0.05, p=0,82), seja com 317 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro advérbios (X2=1,35, p=0,24), confirmando o que já se verificara nas medidas on-line, a saber, os verbos intransitivos, detectados cedo pelo parser, não o levam à postulação ilusória da lacuna e, consequentemente, não apresentam o perfil de acertos diferenciados entre as condições contígua e distante, observado para os nomes após verbos transitivos. A diferença significativa entre o índice de acertos mais elevados obtido para os nomes contíguos a verbos intransitivos do que para os nomes contíguos a verbos transitivos (X2=4,5, p=0,03) é evidência adicional em favor do achado de que a ilusão da lacuna preenchida, só ocorrendo depois de verbos transitivos, não persiste na interpretação de verbos intransitivos. GRÁFICO 3: Percentuais de acerto das declarativas finais das condições com nomes 318 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira GRÁFICO 4: Percentuais de acerto das declarativas finais das condições com advérbios Conclusões Os resultados expostos acima precisam ser avaliados, tendo em vista as questões teóricas que fornecem os quadros de referência da presente pesquisa, que foram apresentados na introdução do artigo. Em primeiro lugar, é importante destacar que a ilusão da lacuna preenchida que leva o parser à falibilidade seletiva, já que se equivoca, analisando adjuntos nucleados por nomes – mas não por advérbios – como sendo argumentos preenchedores de lacuna, é reveladora de que o processador é estruturalmente ativo na satisfação de condições gramaticais em tempo real. A busca ativa pela satisfação imediata das condições gramaticais de licenciamento de um sintagma-QU em posição A-barra, na periferia esquerda da sentença, parece ser um algoritmo determinístico cuja automaticidade pode levar a falências de análise, como parece ter sido o caso no experimento de leitura automonitorada reportado na seção anterior. Esta falência, como se viu, é, no entanto, seletiva, modulada 319 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro pela informação imediatamente disponível sobre a categoria gramatical do item em estruturação no processamento da frase. Naturalmente, um tal procedimento acomoda-se adequadamente nos termos de teorias de processamento mais estruturais, como a Teoria do GardenPath (e.g., FRAZIER, 1979, 1987;), que propõe que, em um primeiro estágio, a informação sobre a categoria gramatical é acessada rápida e prioritariamente na análise serial e incremental da estrutura sintática. Por outro lado, no entanto, os resultados obtidos no experimento, relativos à manipulação do fator transitividade verbal, sugerem que, além da informação categorial, a informação sobre a grade de subcategorização do verbo também parece ser acessada cedo pelo processador. Se, como vimos, o parser pode se iludir postulando um nome em adjunção ao verbo como um falso preenchedor de lacuna não preenchida, o parser não se ilude, no entanto, diante de uma lacuna inexistente, como é o caso de verbos intransitivos. Em outras palavras, a análise de fundo estritamente estrutural do Princípio do Antecedente Ativo poderia ser sensível à informação sobre a grade de subcategorização do verbo. Ora, o acesso imediato a informações de base lexical, como a informação sobre a transitividade verbal, tem sido proposto no âmbito das chamadas teorias de “satisfação de condições ou de restrições” (e.g., MacDONALD, PEARLMUTTER, & SEIDENBERG, 1994; McRAE, SPIVEY-KNOWLTON, & TANENHAUS, 1998), que se opõem tradicionalmente, na literatura de Processamento de Frases, a teorias de base mais estritamente estrutural como a Teoria do GardenPath, em cujo quadro o Princípio do Antecedente Ativo e o Efeito da Lacuna Preenchida têm sido formulados. A questão que naturalmente se colocaria, então, na interpretação dos achados reportados no presente artigo seria a de se saber se os mesmos aduziriam evidência contrária aos modelos mais estruturais e em favor dos modelos de satisfação de condições. Questão similar foi discutida por STAUB (2007), que apresenta resultados de experimento de rastreamento ocular de frases do 320 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira tipo “antecedente-lacuna” (filler-gap), identificando o acesso rápido pelo processador justamente à informação sobre a intransitividade verbal. A conclusão de Staub sobre a questão parece-nos pertinente também no caso dos achados do presente artigo: Embora a teoria do garden-path não esteja comprometida com a proposta de que o parser ignora a informação sobre a subcategorização, a possibilidade de que o parser aplique suas preferências estruturais sem levar essa informação em conta é consistente com a teoria (...) Em suma, se a informação de subcategorização restringir a análise estrutural inicial do parser, isto é consistente com (uma versão de) a teoria do garden-path, bem como com a posição de satisfação de condições; contudo se o parser ignorar inicialmente a informação de subcategorização verbal, isto é consistente somente com a teoria do gardenpath5. Por outro lado, tentando ir além da postura conciliatória de Staub, parece-nos legítimo refletir sobre uma circunstância interessante que vem à luz, comparando-se as informações acessíveis e não acessiveis ao parser. Como vimos, um processador maximamente comprometido com a satisfação de condições gramaticais seria capaz de acessar rapidamente não só a categoria gramatical dos itens em estruturação, mas também a grade de subcategorização dos verbos. Trata-se esta última, no entanto, de uma informação de base lexical, sem dúvida, mas na interface sintaxe/semântica. Em contraste, conforme demonstrado em MAIA 5 Although the garden path theory is not committed to the claim that the parser ignores subcategorization information, the possibility that the parser applies its structural preferences without taking this information into account is consistent with the theory. (…) In sum, if verbal subcategorization information constrains the parser’s initial structural analysis, this is consistent with (a version of) the garden path theory, as well as with the constraint satisfaction position; however, if the parser initially ignores verbal subcategorization information, this is consistent only with the garden-path theory (STAUB, 2007, p. 551) 321 Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em Português Brasileiro (a aparecer), uma inadequação de base puramente semântica (ou semântico/pragmática) não seria suficiente para evitar o ELP (e.g. Que livro o professor cozinhou a tese sem ler antes?). Constata-se, portanto, a existência de prioridade de acesso da sintaxe sobre a semântica. Assim, a ideia motriz dos modelos syntax-first poderia ainda ser preservada, já que no caso de uma informação de interface sintaxe/semântica há acesso rápido do parser, ao contrário do que se dá com respeito a uma informação apenas semântica. Finalmente, cabe ainda uma reflexão sobre o efeito good-enough registrado na medida off-line do experimento de leitura automonitorada reportado no presente artigo. Seria de se esperar que, após a reanálise do falso ELP em que o parser entrou, diante de um nome contíguo ao verbo e à lacuna, a interpretação final pudesse recuperar o valor de verdade da frase. Entretanto, como exposto na seção de resultados, o percentual menor de acertos na avaliação da afirmativa após cada frase lida deuse, justamente, na condição em que o nome gera a ilusão gramatical de que estaria preenchendo a lacuna contígua, levando o parser a falhar em sua análise inicial da estrutura. Esta disrupção no parsing interfere, portanto, na fase integrativa do processo de compreensão de frases, demonstrando, mais uma vez, que a interpretação final nem sempre é plenamente articulada e especificada. Referências ABNEY, S. A computational model of human parsing. Journal of Psycholinguistic Research. 1989, 18(1), p. 129–144. CHOMSKY, Noam. On Wh-Movement. In Peter Culicover, Thomas Wasow, and Adrian Akmajian, eds., Formal Syntax. New York: Academic Press. 1997, p. 71-132. 322 Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira CLIFTON, C. & FRAZIER, L. Comprehending sentences with long-distance dependencies. In TANENHAUS, M.K. & CARLSON, G. (Eds.), Linguistic structure in language Processing. Dordrecht: Kluwer Academic Press. 1989. CHRISTIANSON, K.; HOLLINGWORTH, A.; HALLIWELL, J.; FERREIRA, F. Thematic roles assigned along the garden-path linger. Cognitive Psychology. 2001, 42, p. 368-407. CRAIN, S & FODOR JD. How can grammars help parsers? 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Runner (ed.), Experiments at the Interfaces, Syntax & Semantics. 2011, vol. 37, p. 153-186. Bingley, UK: Emerald Publications. RIBEIRO, Antonio J. C. A abordagem Good-Enough e o processamento de frases do português do Brasil. Veredas (UFJF Online). 2008, 12 (2):62-75. STAUB, A. The parser doesn’t ignore transitivity, after all. Journal of Experimental Psychology: Learning, Memory, and Cognition. 2007, vol. 33, nº. 3, p. 550–569. STOWE, Laurie. Parsing wh–constructions: evidence for on–line gap location. Language and Cognitive Processes 1. 1986, p. 227–46.3 WAGERS, W. & PHILLIPS, C. Multiple dependencies and the role of the grammar in real-time comprehension. 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Observamos que a identidade do jornalista é construída em torno da ideia de liberdade de informação e de expressão. Além desse aspecto, nos enunciados, o mito do “dom”, como algo inato e/ou adquirido pela experiência no exercício da profissão, também produz efeitos sobre essa identidade. 1 A presente pesquisa contou com o apoio do Programa de Bolsas Ibero-Americanas para Jovens Professores e Pesquisadores Santander Universidades. 2 Doutorando em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP – campus Araraquara). Atualmente, docente e coordenador dos cursos de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo e Publicidade e Propaganda, do Centro Universitário Cesumar (UniCesumar). 3 Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP – campus Araraquara). Atualmente, docente no Programa de Pós-Graduação em Letras (Mestrado e Doutorado) da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e coordenador do GEF - Grupo de Estudos Foucaultianos da UEM © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 325-347, jan./jun. 2014 A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as Práticas Discursivas Midiáticas ABSTRACT Based on the French Discourse Analysis (AD), especially on Michel Foucault’s theoretical presuppositions, current essay analyzes the materialization of media discursive practices which give identity to the journalist as a subject. Then, we analyzed enunciation sequences in articles published by the magazine Veja, entitled Quality without diploma. The discursive event of such production is investigated within the context of the voting held at the Brazilian Federal Court of Justice on the 17th June 2009 which ruled on the non-obligatory of a journalist university diploma to warrant the profession. We observe that the journalists’ identity is built on notions of the freedom of speech and of the press. Further, in the enunciations, the ‘ability myth’, as an innate and/or acquired factor received through experience in the exercise of the profession, also produces effects on identity. PALAVRAS-CHAVE Acontecimento discursivo. Análise de discurso. Identidade. Jornalista. KEYWORDS Discursive event. Discourse analysis. Identity. Journalist. Introdução A relação indissociável entre esses dois campos – saber e poder – regula sobremodo os regimes de verdade em nossa sociedade, ou seja, aquilo que poderá ser dito e, mais ainda, aquilo que “pode” e “deve” ser dito para ser aceito como verdadeiro. Afinal, a verdade nada mais é que uma construção sócio-histórica regulada pelos sujeitos no e pelo discurso. É pelo discurso, assim, que a sociedade se constitui, que o homem se (re)constrói, que relações entre os sujeitos e deles com a sociedade são firmadas. Desse entendimento, depreende-se que o discurso é, antes de tudo, uma “prática” exercida nas mais ínfimas relações humanas, mas também do sujeito com o próprio objeto. 326 Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro Considerando a importância do estudo do discurso para que se compreenda a relação entre sujeito e história, amparamo-nos na Análise de Discurso (AD) de linha francesa, com especial atenção aos pressupostos do teórico e filósofo francês Michel Foucault. O que almejamos é, retomando as palavras de FOUCAULT (2010, p. 49), descrever determinados tipos de discurso que “podem ser observados em uma cultura e as condições históricas, as condições econômicas, as condições políticas de seu aparecimento e de sua formação”. Assim, neste artigo, analisamos como se materializam práticas discursiva midiáticas que, ao mesmo tempo, objetivam e subjetivam o sujeito jornalista, após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), impingindo-lhe identidade(s). Selecionamos como corpus para análise a revista Veja, especificamente o editorial Qualidade sem diploma, de 24 de junho de 2009. Para tanto, tomamos o seguinte acontecimento discursivo que delimita nossa pesquisa: em 17 de junho de 2009, por oito votos a um, ou seja, pela grande maioria dos votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o diploma de jornalismo não era mais requisito obrigatório para o exercício da profissão. Tratamos este fato como um acontecimento discursivo por fugir à estrutura da história e romper com a “rede causal” até então estabelecida, apresentando-se como algo único, por vezes inesperado (POSSENTI, 2006). Os enunciados midiáticos analisados neste estudo, bem como aqueles aqui não abarcados, que surgiram a posteriori, só foram possíveis por causa desse acontecimento singular. O caráter de “acontecimento” dado à decisão do STF se deve ao fato, também, de nem toda a sociedade estar ciente de que havia uma discussão no país referente à (não) obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista. Em decorrência dessa votação, especialmente a mídia se voltou para o assunto e a informação se propagou a um número expressivo de pessoas. Houve repercussão. Enfim, o acontecimento virou especial e, a partir dele, produziu-se uma série de discursos referentes ao 327 A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as Práticas Discursivas Midiáticas fato em si. Posteriormente, esse acontecimento foi tema de reportagens, artigos de opinião, declarações, matérias especiais e charges por parte de diversos veículos de comunicação e motivo de debates, levantes e protestos. Foi tão somente por conta desse fato que discursos puderam ser formulados e circulados, produzidos e veiculados. 1 Algumas reflexões sobre/para uma abordagem foucaultiana Se é fato que poderíamos dizer que Michel Foucault não foi propriamente um analista do discurso, suas obras e, consequentemente, as abordagens, noções e implicações presentes nos estudos do filósofo contribuíram sobremaneira para as pesquisas sobre o discurso. Vemos desenhar-se, assim, um cenário marcado por um ir-e-vir constante por parte de estudiosos da corrente da Análise de Discurso (AD) francesa às obras de Foucault, para subtrair dele reflexões e questionamentos que, notoriamente, ajudam na construção de uma base teórico-metodológica de adentramento no corpus de maneira discursiva. Inseridos nessa vertente teórico-metodológica, nosso trabalho se concentra em duas grandes noções foucaultianas: saber e poder. Os saberes existentes em nossa sociedade são construídos pelo/no discurso e, consequentemente, mantêm uma íntima relação com os regimes de poder instaurados e exercidos nessa sociedade. FOUCAULT (2008b) explicita que saber e poder não podem ser pensados separadamente, pois são interdependentes. Da mesma forma que os saberes instauram e/ou modificam os poderes exercidos socialmente, as práticas de poder também podem instaurar/modificar os saberes existentes. Assim, adentrar os caminhos propostos na arqueogenealogia foucaultiana (relação saber/poder) em consonância com os estudos da Análise de Discurso (AD) francesa acarreta problematizações acerca de diferentes conceitos, tais como história, memória, discurso, sujeito, e algumas implicações decorrentes deles. 328 Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro Dessa forma, observamos a cisão que a Arqueologia, proposta por Foucault, impõe à História das Ideias: distanciando-se dos postulados e procedimentos dessa disciplina ligada à análise tradicional da história – fixada em bases sólidas denominadas gênese, continuidade e totalização – a Arqueologia busca uma nova forma, inteiramente diferente, de fazer história daquilo que os homens disseram. Consequentemente, o trato dado ao “discurso” na Arqueologia será totalmente diverso do comumente feito na História das Ideias, pois o abandona enquanto “documento”, signo transparente, para tratá-lo como “monumento”, ao considerar sua opacidade importuna. A Arqueologia – longe de determinar e dar prioridade entre o que seria um enunciado novo ou não – busca revelar a regularidade de dada prática discursiva. Ao compreender como as práticas discursivas midiáticas objetivam/subjetivam o sujeito jornalista, é preciso de antemão buscar regularidades que apontem para esse processo de objetivação/ subjetivação. É também a partir dessa concepção do que é a Arqueologia que não nos empenharemos em descobrir um pseudoenunciado fundador, as invenções ou o momento primeiro em que alguém julgou estar certo de determinada verdade. Como alerta FOUCAULT (2008a), isso nada mais é do que um mito: o de que podemos reconstituir a origem dos discursos e de que somos também a origem de nossos discursos. Assim, pelo caminho da Arqueologia, tratamos os discursos em sua especificidade, levantando regras que os regem, indo até a exterioridade para compreender melhor uma maneira de descrevê-los e interpretálos. A Arqueologia procura definir os “discursos” enquanto “práticas” sujeitas às regras em vez de definir pensamentos, representações, imagens e temas ocultados ou manifestados nos discursos. O discurso não é tratado como “documento”, signo transparente, mas, devido à sua opacidade importuna, deve ser tratado como “monumento”, de modo a reencontrar a “profundidade essencial”. A Arqueologia não é uma disciplina interpretativa: não busca mais o “outro discurso” oculto. “Recusa-se a ser alegórica” (FOUCAULT, 2008a, p.157). 329 A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as Práticas Discursivas Midiáticas A Arqueologia abre mão da soberania da “obra”, assim como do momento em que se desvinculou do horizonte anônimo. A “obra” não lhe é pertinente, nem mesmo em seus pontos de contato com o contexto global e as redes de causalidade que a regem. Desvincula-se do momento de encontro entre o social e o individual. Em contramedida, perscruta regras de práticas discursivas que atravessam as obras individuais e muitas vezes as regem inteiramente (ou só parcialmente), de modo a não permitir que nada lhes escape. Questiona-se o sujeito criador enquanto responsável por determinada obra e, consequentemente, por seu princípio organizador. Ainda, a Arqueologia abandona a reconstituição do que foi almejado, intencionado, pensado pelos homens no momento em que proferiram o discurso. Recusa a simbiose identitária entre autor e obra, na qual o pensamento fica alojado e próximo de si, onde a linguagem ainda não rumou para a dispersão espacial e sucessiva do discurso. Dessa forma, ela não busca repetir o “já dito”, nem reencontrar sua identidade; muito menos busca a “luz longínqua” e “precária” da origem do dizer. A Arqueologia é nada mais nada menos que uma reescrita: “na forma mantida da exterioridade, uma transformação regulada do que já foi escrito. Não é o retorno ao próprio segredo da origem; é a descrição sistemática de um discurso-objeto” (FOUCAULT, 2008a, p.158). Dentro desse empreendimento, FOUCAULT (2008ª, p.133) irá denominar discurso como: [...] um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva; [...] é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. Como propõe FOUCAULT (2008a), o discurso não é algo meramente repetível e seu aparecimento não poderia ser facilmente assinalado na história. O discurso é uma “prática”, um “fragmento de 330 Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro história”, unidade e mesmo descontinuidade nessa própria história. É essa história que impõe os limites, os recortes, as transformações e os modos específicos da temporalidade do discurso, portanto não se trata de marcar seu surgimento abrupto no interior das cumplicidades do tempo. Frente a esse entendimento, podemos afirmar que os enunciados por nós analisados se constituem em práticas discursivas, pois constroem um discurso, um regime de verdades sobre a figura do jornalista. Foram os discursos a respeito da figura do jornalismo que possibilitaram, por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de dispensar o diploma como requisito obrigatório para o exercício do jornalismo; ou seja, é o discurso realmente exercido como uma “prática”. Desta forma, não se trata de buscar a origem, a gênese de um discurso, mas descrever (interrogando) o que já foi dito, a função enunciativa que está se exercendo, a formação discursiva da qual pertence, o sistema geral do arquivo do qual faz parte, pois “a arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo” (FOUCAULT, 2008a, p. 49). 2 A relação indissociável entre saber e poder Quando pensamos a mídia como uma esfera produtora e disseminadora de informação, não corremos o risco quando a julgamos uma esfera que em nossa sociedade produz o saber, mas em que o poder é exercido também. Afinal, nos perguntamos: “quem tem o direito de falar na mídia?”. Sabemos que não é qualquer um que a qualquer momento pode fazer isso. Assim, trazer a discussão realizada por Foucault sobre o poder é, antes de tudo, uma forma de ressaltar quanto o exercício do poder, vinculado aos discursos que se originaram após a decisão judicial do STF, incide diretamente sobre os sujeitos. Podemos verificar isso no momento em que observamos que, a partir dessa decisão – que é 331 A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as Práticas Discursivas Midiáticas também uma forma de exercício do poder – pessoas outras que não aquelas portadoras de diploma na área começaram a atuar na atividade de jornalista, que muitos cursos de Jornalismo no Brasil estão revendo suas matrizes curriculares e que muitos sujeitos estão abandonando ou mesmo não mais se matriculando nesse curso etc. Ao considerar a discussão sobre saber e poder em Foucault, compreendemos que o sujeito passa a ser objetivado por “práticas divergentes”, dividido no interior de si mesmo e submetido a regimes e técnicas disciplinares (GREGOLIN, 2006). Todavia, ressaltamos que a questão do poder em Foucault está desarticulada da concepção do poder isolado somente nas macroestruturas da sociedade; ao contrário, o poder é exercido e está disperso nas mais ínfimas relações humanas. Além de esse poder ser “micro”, espalhado em todas as relações da sociedade, ele é, principalmente, produtor de saber. De acordo com MACHADO (2008), não há em Foucault algo unitário e global chamado poder, mas “formas díspares, heterogêneas, em constante transformação” (MACHADO, 2008, p. 10); em vez de ser uma “coisa”, um “objeto natural”, o poder deve ser compreendido como uma “prática social”, construída historicamente. Desta forma, deve-se observar como o poder se exerce “concretamente e em detalhe, com sua especificidade, suas técnicas e suas táticas” (FOUCAULT, 2008b, p. 06), atentando-se às “malhas mais finas da rede do poder”, no funcionamento geral de suas engrenagens, não somente à sua significação econômica. Distante da dicotomia do poder em um nível macro ou micro, o poder deve ser observado nas formas mais regionais e concretas, atingindo materialmente a vida dos sujeitos, no nível do “próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micropoder ou subpoder” (MACHADO, 2008, p. 12). Esse entendimento irá refletirse tanto no espaço da análise como no nível em que ela se efetua, uma vez que os procedimentos técnicos de poder incidem num controle 332 Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro minucioso e detalhado no corpo, nos gestos, atitudes, comportamentos, discursos, etc. MACHADO (2008) pondera que, ao poder somente opressor que atinge os cidadãos, impondo limites, castigando, oprimindo, Foucault acrescenta uma “concepção positiva”, produtiva, transformadora, que busca dissociar dominação e repressão. De acordo com o autor, longe de dizer que o poder exclui, reprime, recalca, censura, abstrai, mascara, fazse necessário compreender que o poder “produz o real; produz domínios de objetos e rituais de verdade” (MACHADO, 2008, p. 16). Em vez de alvejar o corpo humano e supliciá-lo, mutilá-lo, cumpre aprimorá-lo, adestrá-lo. De acordo com o autor, trata-se de observar que todo saber tem sua origem em relações de poder: saber e poder estão intrinsecamente ligados. Toda constituição de um campo de saber está ligada a relações de poder; assim como novas relações de poder são construídas a partir de um campo do saber: “todo ponto de exercício de poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber” (MACHADO, 2008, p. 21). 3 A subjetivação do jornalista em um editorial da revista Veja Considerando as reflexões de Foucault sobre sujeito, história, discurso, saber e poder, selecionamos para nossa análise o editorial Qualidade sem diploma, de 24 de junho de 2009, da revista Veja. Utilizamos como critério de seleção, material jornalístico publicado logo quando da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e que, de uma forma ou de outra, tratariam de assuntos correlacionados – enunciados posteriores ao acontecimento, mas que só foram possíveis por sua irrupção. Para princípio de análise, é preciso se atentar que Veja é uma revista de circulação semanal há mais de 40 anos no mercado; é publicada pela Editora Abril com tiragem superior a um milhão de exemplares, atingindo 8.774.000 leitores. O preço de capa da publicação é de R$ 8,90. O perfil 333 A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as Práticas Discursivas Midiáticas do leitor da revista é composto de 47% de leitores do sexo masculino e 53% do sexo feminino. Do total, 46% são da “classe B”, 28% da “classe A”, 23% da “classe C”, 3% da “classe D” e 0% da “classe E”. O Sudeste é a região com mais leitores (58%), seguido pelo Sul (15%), Nordeste (14%), Centro-Oeste (9%) e Norte (4%). A faixa etária dos leitores de Veja é de 25 a 34 anos (22%), acima de 50 anos (22%), entre 35 a 44 anos (21%), 20 a 24 anos (12%), 15 a 19 anos (10%), 45 a 49 anos (9%) e 10 a 14 anos (3%) (VEJA, 2010). Assim, no presente enunciado (editorial), buscamos interrogar: como se materializam as práticas discursivas midiáticas que, ao mesmo tempo, objetivam e subjetivam o profissional jornalista? Este se torna tanto o “objeto” de que se fala quanto o “sujeito” que é caracterizado, ao qual lhe impinge uma identidade: delimita-se, circunscreve-se o sujeito por meio de práticas discursivas. Ao atentar para a posição sujeito em relação ao enunciado enquadrado no gênero editorial, é preciso lembrar que não se trata da opinião de um autor, mas da opinião oficial da empresa jornalística diante de um fato de grande repercussão (MARQUES DE MELO, 1994). Assim, por não ter um único autor responsável, o editorial não é assinado, sendo de inteira responsabilidade da instituição jornalística. Como alerta FOUCAULT (2009), a produção do discurso e a vontade de verdade apoiam-se sobre um suporte institucional que legitima e, consequentemente, autoriza o sujeito a profererir/produzir determinado discurso. Destarte, ao tratarmos da posição sujeito não é possível desvinculá-lo da instituição dentro da qual o enunciado emerge. Em decorrência disso, o indivíduo responsável por formalmente produzir esses enunciados, seja do editorial seja das matérias jornalísticas, não pode dizer qualquer coisa a respeito de um assunto a seu bel prazer, afinal esse sujeito é atravessado pelos sentidos da instituição de onde fala e para quem fala. FOUCAULT (2009, p.09) chama-nos a atenção para tal fato: “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa”. 334 Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro Para MARQUES DE MELO (1994), embora estejam formalmente dirigidos à opinião pública, os editoriais estabelecem uma forte relação dialógica com o Estado. Neste sentido, a empresa jornalística procura apontar ao Estado a maneira como os assuntos de caráter público deveriam ser tratados, orientados. Ademais, como se trata da revista Veja, todo e qualquer sujeito para escrever esse editorial (enunciado) deve estar alinhado à política editorial dessa empresa jornalística. É a legitimação conferida ao sujeito editorialista pela própria instituição que permite a produção de construções como a que apresentamos abaixo. São afirmações imperiosas que refletem a opinião da empresa jornalística, de modo que só podem ser produzidas com sua autorização. O princípio da interdição está marcado fortemente: (1) “[...] a exigência [do diploma] teve o seu ridículo exposto por uma comparação brilhante de Gilmar Mendes [grifos nossos]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009. ) (2) “Ao defender o fim dessa excrescência, o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, disse que ela atentava contra a liberdade de expressão garantida pela Constituição Federal a todos os cidadãos [grifos nossos]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009. ) A fala jornalística do editorial, consequentemente, não pode vir de alguém qualquer: há traços que definem o funcionamento desse espaço em relação a toda a sociedade. Esse espaço já é (re)conhecido e deve ser ocupado pelo sujeito de direito, responsável por articulálo, reivindicando para si o poder de exprimir a opinião sobre um fato de grande repercussão em nome de um veículo jornalístico. Vemos desenhar-se a “posição sujeito”, outra modalidade enunciativa proposta por FOUCAULT (2008a), muito próxima a esse status do sujeito que 335 A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as Práticas Discursivas Midiáticas fala. A posição sujeito – aquela que qualquer indivíduo pode ocupar na rede de informações – do editorialista é a daquele que pode e deve emitir uma opinião coadunada com a da empresa jornalística, como podemos observar em sequências enunciativas do corpus, do qual são destacadas as seguintes: (3) “Poderão ganhar também as faculdades de jornalismo, que terão de rever currículos, a fim de formar alunos mais bem preparados para uma competição que se afigura mais dura [grifo nosso]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009.) (4) “Qualidade sem diploma” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009.) Os excertos manifestam afirmações categóricas que representam a opinião da empresa jornalística. Os verbos utilizados não abrem margem para dúvida, constroem o texto de forma que a “verdade” ali colocada é a única possível. Para a revista Veja, é “certo” que as faculdades de comunicação “terão” de rever seus currículos, não é uma possibilidade; trata-se de algo já dado como certo. A própria afirmação expressa no título do editorial de Veja “Qualidade sem diploma” (excerto 4) direciona para essa construção típica dos editorais de fugir do campo das “possibilidades” em proveito das “certezas” e das “afirmações”. Observamos, assim, no corpus analisado, uma (re)citação de tantos outros enunciados coexistentes no mesmo campo associado. Vislumbramos que o enunciado analisado está imerso num campo associado, em que uma memória discursiva está a todo o momento operando uma série de enunciados relativos à definição do que é a prática jornalística, aos princípios que regem a profissão, ao modo como se configura e se constrói uma matéria jornalística (notícia, reportagem, entrevista, artigo, editorial etc.), como observamos no seguinte trecho: 336 Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro (5) “O fim da obrigatoriedade alinha o Brasil com as nações onde o jornalismo abriga, sem embaraços de nenhuma espécie, todos aqueles que encontraram no ambiente dos meios de comunicação a melhor maneira de dividir o que aprenderam nos campos da economia, da ciência, do direito, das artes, da moda e do esporte [grifos nossos]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009.) Dessa forma, o jornalista é caracterizado como aquele que procura “dividir” o conhecimento adquirido em algum curso superior (excerto 5) e aquele que se dedica à liberdade de expressão e de informação. Esses sentidos, presentes na memória social, são resgatados para caracterizar a prática jornalística, o jornalismo e o profissional jornalista. Vemos também uma memória ser reativada quanto à (não) necessidade de formação em curso superior para a investidura em determinada profissão (ressaltamos que não são apenas os enunciados relativos ao campo do jornalismo que reverberam, mas entra em pauta também a necessidade de diploma para tantas outras profissões, como médico, advogado, engenheiro etc.), como se pode visualizar nos seguintes recortes: (6) (7) “A obrigatoriedade do diploma foi impingida em 1969, auge do regime de exceção instalado cinco anos antes, não para melhorar o jornalismo brasileiro, mas para controlar o acesso às redações de repórteres, editores e fotógrafos que eram considerados ameaçadores aos generais [grifos nossos]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009.) “Além de ferir o direito constitucional, já que impedia pessoas formadas apenas em outra área de manifestar 337 A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as Práticas Discursivas Midiáticas seu conhecimento e pensamento por meio da atividade jornalística, a exigência teve seu ridículo exposto [...] [grifos nossos” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº 25, 24 jun. 2009.) Diante de alguns dos trechos que remetem à (não) necessidade do diploma, é possível observar que vão sendo resgatadas informações que buscam justificar, ou não, a exigência de diploma para o exercício da profissão jornalista. Constrói-se um discurso segundo o qual o diploma, por ter sido estabelecido como obrigatório na época do regime militar, não melhora a prática jornalística (excerto 6). Também é possível observar nos enunciados analisados princípios éticos e morais que um profissional – no caso, o jornalista - deve seguir e respeitar. A partir do momento em que se questiona a necessidade de diploma para o exercício da profissão, resvala-se num campo discursivo que procura definir/caracterizar o “bom” profissional, estabelecendo funções, preceitos e práticas que devem ser seguidos, como se verifica no seguinte recorte: (8) “‘Os jornalistas são aquelas pessoas que se dedicam profissionalmente ao exercício pleno da liberdade de expressão [...]’, afirmou o ministro” [grifos nossos] (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº 25, 24 jun. 2009.) Uma regularidade se apresenta: especificamente para os casos de jornalistas, relativiza-se a formação em ensino superior para o exercício da profissão. O jornalista é então caracterizado como alguém que não precisa do diploma para exercer a profissão com qualidade; logo, desvincula-se a profissão, como também o profissional, de um documento regulatório. Podemos visualizar essa regularidade, também, no seguinte excerto: 338 Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro (9) “Dessa forma, ganham em qualidade redações, leitores e espectadores [grifos nossos]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009. ) Observamos a presença e o uso constante de verbos e adjetivos nos editorais, principalmente pelo fato de essa construção ser própria do gênero. No início do texto da revista Veja lemos: (10) “O Supremo Tribunal Federal varreu da legislação brasileira mais uma herança da ditadura militar: a obrigatoriedade do diploma de jornalista para quem exerce a profissão [grifo nosso]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009. ) Entre os sentidos do verbo “varrer” está o de limpar, remover sujeira de algum lugar; ou seja, a exigência do diploma de jornalista seria algo sujo a ser varrido da legislação. Assim também, conforme posto no próprio texto, tal exigência é vista como uma “excrescência”, algo “ridículo”, reafirmando o sentido produzido de que exigir o diploma seria um tumor, uma aberração, algo em demasia que deveria ser extirpado. Como forma de marcar a autoridade e, também, o caráter de “verdade” construído pelo próprio texto, o editorial traz a posição do relator do caso, o ministro Gilmar Mendes, que se coaduna com a posição das empresas jornalísticas, configurando em um “apagamento” de tantas outras vozes, principalmente antagônicas à da opinião expressa no editorial, para que essa adquira o sentido de verdade irrefutável: (11) “Ao defender o fim dessa excrescência, o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, disse que ela atentava [...]”(Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº 25, 24 jun. 2009. 339 A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as Práticas Discursivas Midiáticas A fala do relator do caso, o ministro Gilmar Mendes, ressoa no enunciado, ao contrário dos votos dos outros ministros, que aparecem timidamente. Assim, o voto de Mendes passa a representar a instituição STF, como se recaísse sobre ele a decisão tomada por essa esfera jurídica, e, a partir de então, passa a ser retomado, transformado, remorado e apropriado pelo discurso da mídia, ecoando o que “foi dito”. Dessa forma, o editorial de Veja traz, primeiramente, a seguinte citação direta do ministro Gilmar Mendes: (12) “Os jornalistas são aquelas pessoas que se dedicam profissionalmente ao exercício pleno da liberdade de expressão. O jornalismo e a liberdade de expressão, portanto, são atividades imbricadas por sua própria natureza e não podem ser pensados e tratados de forma separada [grifos nossos]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009. ) Observamos a importância que a mídia confere ao retomar a fala do ministro, na qual se correlaciona o jornalismo com a liberdade de expressão e de informação. Conforme expõe FOUCAULT (2007, p.59, 61) em As palavras e as coisas: [...] as coisas e as palavras vão separar-se [...] porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem terreno e sem promessa. Destarte, as palavras não carregam em si o sentido, como se fossem simplesmente utilizadas e empregadas pelos homens. As palavras só fazem sentido por meio da relação do sujeito com seu objeto, dos valores, características, classificações, etc. que sujeito impõe ao objeto. 340 Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro É dessa forma que se constrói o discurso de que jornalismo é sinônimo de liberdade de expressão, de que não há outra forma de se pensar tal atividade; fundem-se de tal forma “as palavras” às “coisas” que se impõe uma barreira à produção de quaisquer outros sentidos para tais palavras. Uma memória discursiva – tudo aquilo dito alhures – referente ao jornalismo é ativada, de forma que se lhe impõe como uma prática da verdade, objetiva, isenta, na qual a opinião deve ser deliberadamente colocada em espaços próprios com argumentações que a justifiquem. Diante disso, vemos mais uma vez a identidade do jornalista ser desenhada pelo/no discurso e, como ratifica HALL (2009), é-lhe colocada uma característica intrínseca, de modo que não poderia ser outra, ou ser diferente. O sujeito jornalista, obrigatoriamente, tem de estar atrelado às noções de liberdade de expressão e de informação. Se para ser jornalista é preciso defender tais liberdades, e se essas liberdades são cerceadas ao se exigir o diploma, um discurso é forjado nesse instante: todo jornalista deveria ser contra a exigência do diploma para o exercício da profissão. O jornalista passa a ser objetivado e subjetivado nesse momento por tais práticas midiáticas: ser jornalista é ser um sujeito que luta e defende a liberdade de expressão e de informação. Além dessa comparação, observamos outra regularidade no enunciado analisado – a necessidade de ligar a necessidade do diploma com o regime militar implantado no país – como ilustra o trecho a seguir: (13) “A obrigatoriedade do diploma foi impingida em 1969, auge do regime de exceção instalado cinco anos antes, não para melhorar o jornalismo brasileiro, mas para controlar o acesso às redações de repórteres, editores e fotógrafos que eram considerados ameaçadores aos generais” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº 25, 24 jun. 2009.) 341 A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as Práticas Discursivas Midiáticas Identificamos que se faz necessário no discurso construído “colar” o “regime ditatorial” vivido no país à “lei” criada pelos políticos da época, de forma que tudo que é produto dessa fusão só pode trazer prejuízo à sociedade. Liga-se a falta de liberdade de expressão à obrigatoriedade do diploma e, ainda, ao regime militar. É necessário haver essa relação para o sentido de que a exigência do diploma só pode ser algo negativo. O reforço em somente tratar do regime ditatorial vivido no Brasil apaga outros discursos vigentes à época. Conforme expõe LAGE (2002), nas décadas de 1910 e 1920 começaram a surgir as assessorias de imprensa de caráter profissional, em substituição às até então chamadas assessorias de comunicação ou de relações públicas, que estavam preocupadas principalmente com a publicidade. Nesse novo momento vivido no país, em que o jornalista era uma figura cada vez mais distante da do corretor de anúncios, explica o autor, começa a ser intensificada a procura por qualificação profissional em nível superior para o jornalismo, na busca por erradicar distorções nas informações jornalísticas, tão comuns na época. ZUCULOTO (2002) vai ao encontro do exposto por LAGE (2002) quando explica que já no I Congresso Brasileiro de Jornalistas, realizado no Rio de Janeiro em 1918, reivindicava-se uma determinação que estabelecesse curso superior específico para a formação do profissional jornalista. Para ZUCULOTO (2002, p.40), naquele evento a “categoria expressava claramente sua preocupação com uma formação de qualidade, manifestando a necessidade de ensino superior para o jornalismo”. Vêse que esse outro discurso vigente à época é silenciado e apagado no editorial analisado, que procura somente estabelecer a relação entre o regime militar e a falta de liberdade de expressão, para assim justificar a extinção da obrigatoriedade do diploma. Verificamos que essa “colagem” continua presente no texto de Veja, como se vê adiante: 342 Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro (14) “Com a redemocratização do país, a norma passou a servir de instrumento de pressão política de sindicatos sobre jornais, revistas e emissoras independentes” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº 25, 24 jun. 2009.) A exigência do diploma seria algo “antidemocrático” e, dessa forma, não condizente com o atual processo de democracia vivido pela sociedade. Colocamos em questionamento a expressão “instrumento de pressão”. Após esse enunciado, o editorial não dá qualquer explicação referente ao que entende por “pressão”, que poderia ser interpretada como sinônimo de “fiscalização”, de “questionamento” ao que até então estava sendo produzido pelas empresas jornalísticas. Entre os sentidos possíveis de serem produzidos está o de que ser “cobrado” não é algo tão bom, como também não o é o de ser pressionado a ter jornalistas com diploma. Conclusão Nessa relação entre o sujeito (jornalista) e o objeto (informação), reforça-se a ideia de que seria incoerente o primeiro lutar pela obrigatoriedade do diploma, uma vez que esta cerceia a liberdade de expressão e de opinião e, mais do que isso, é fruto do regime de ditadura militar instaurado no país à época; logo, constrói-se a identidade de um jornalista que não deve ser a favor da obrigatoriedade do diploma, pois tal para bem exercer tal profissão, mais do que formação superior, exigese a predisposição ou a experiência. Observamos que para ocorrer esse processo de subjetivação é necessário, ao mesmo tempo, o silenciamento de tantos outros discursos que veem na figura do jornalista um profissional que precisa de uma graduação específica para o bom exercício da profissão (outro processo de subjetivação). A mídia precisa, nesse processo de construção de identidade, reforçar algumas características e apagar tantas outras. 343 A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as Práticas Discursivas Midiáticas Constata-se que os indivíduos estão sujeitados ao discurso, devendo assumi-lo, posicionando-se e sendo posicionados pelas mais diferentes esferas de nossa sociedade. Esse processo engloba as relações de identificação e de representação criadas pela instância produtora do discurso sobre os sujeitos objetos de tais práticas de subjetivação, no caso, os jornalistas. Como explicam FERNANDES e ALVES JÚNIOR (2008), o sujeito está imerso num processo constante de subjetivação, que lhe constrói identidades. Dado o caráter móvel da identidade, ressaltamos que toda construção identitária está sujeita à historicização. Conforme expõe HALL (2009), é justamente pelo fato de as identidades do jornalista serem construídas no interior do discurso que as compreendemos como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, por formações, estratégias, iniciativas e práticas discursivas específicas. Longe de ser algo que tudo agregue, envolva, acolha, a identidade é marcada fortemente por modalidades de poder que excluem, evitam, segregam. A construção identitária de um jornalista, que deve lutar pela liberdade de expressão e de informação, ser contrário à exigência do diploma, ser ético, responsável, ter conhecimento que justifique o exercício da profissão, não consegue acolher todos os sujeitos que se inscrevam na identidade de jornalista. Vislumbramos que o discurso midiático é um indício de que a construção da identidade é um ato de poder, como aponta HALL (2009). Dessa forma, com base em FOUCAULT (2008a), concluímos que a construção da identidade do jornalista sem diploma está inserida numa dada ordem discursiva, com determinadas condições de possibilidade para seu aparecimento. Condições históricas e sociais possibilitam que em nossa época tais práticas discursivas identitárias se exerçam e outras não. Julgamos, então, que é a partir de nosso acontecimento discursivo – decisão do STF – que tal(is) identidade(s) do jornalista pode(m) ser construída(s) e reportada(s) ao custo do silenciamento de 344 Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro outras e concomitantemente a outras. São tais práticas discursivas que determinam o modo como os sujeitos jornalistas veem a si e ao outro e as formas de exercício de determinado governo sobre si e sobre o outro (NAVARRO, 2008). Referências BAUMAN, Zygmunt. 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From the explanation of some theories of language, we seek to question it’s validity as an explanation for clothes and costume universe and presents another perspective based on the French Discourse Analisys to deal with the complexity and elusiveness of the object. PALAVRAS-CHAVE Discurso. Linguagem. Moda. Roupas. KEYWORDS Clothes. Discourse. Fashion. Language. © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 349-370, jan./jun. 2014 Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda Introdução O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível Oscar Wilde O mundo social é um lugar de corpos vestidos ou, no mínimo, adornados. A nudez pura e simples, sem nada que a disfarce, é quase sempre inadequada para as culturas ocidentais, mesmo em situações em que o corpo, ou parte dele, possa ser exposto. Na praia, na piscina, na rua ou mesmo em casa, corpos em exibição são suscetíveis de serem vestidos, logo o corpo social é sempre embelezado e decorado para darlhe uma certa ordenação simbólica e/ou social. Nesse contexto, dada a importância que as roupas assumem, não é difícil notar afirmações variadas sobre o seu significado e, principalmente, sobre o fato de que elas falam ou transmitem informações a respeito dos sujeitos que as utilizam. Dentre os inúmeros dizeres que buscam explicações sobre as roupas, um dos mais correntes é o que afirma serem elas não apenas uma forma de proteção do corpo ou um simples adorno, mas uma tradução de estados de espírito e/ou mesmo de identidades pessoais: “Por milhares de anos os seres humanos têm se comunicado na linguagem das roupas. [...] Quando nos conhecermos e conversarmos já teremos falado um com o outro em uma língua mais antiga e universal.” (LURIE 1997: 19). Isso aponta para a existência de uma formulação amplamente aceita – e (re)produzida, seja nos círculos cotidianos ou mesmo nos meios acadêmicos –, de que as roupas falam, traduzem-se como uma espécie de linguagem. Ao escolher uma roupa antes de sair de casa, não estamos apenas optando pelo conforto, pela praticidade ou pela segurança que ela possa vir a nos oferecer. A roupa nos define, diz aos outros quem somos, o que 350 Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa queremos, o que pensamos e até o que gostaríamos de ser [...], a roupa não é só uma espécie de auto-satisfação, mas também algo que expressa a forma como o mundo nos vê e a forma como vemos o mundo. (BRAGA 2005: 225). Em textos diversos, a exemplo do trecho anteriormente exposto, notam-se passagens significativas quanto a um modo de perceber/ entender as roupas como elementos que dizem algo sobre quem as utiliza, deixando transparecer uma concepção que as trata como uma forma de linguagem. Isso nos leva a questionar: mas o que exatamente significa dizer que as roupas dizem coisas ou expressam algo sobre quem as usa? Que implicações teriam a afirmação de que (as roupas) são um tipo de linguagem? Se, de fato, elas falam ou expressam o que seus usuários estão pensando e sentindo, faz-se necessário colocar tal postulado em suspenso, questionar em que medida isso se traduz como algo verdadeiro e que concepção de linguagem subjaz a um postulado dessa natureza. Se existe a possibilidade de se expressar estados e pensamentos por meio do que se está vestindo, isso pode ser constatado no mais rotineiro ato da vida de um ser humano no interior de um sistema social qualquer. Logo, o que se pretende discutir por meio deste trabalho é em que medida tal “fato” é algo característico do próprio vestuário ou se é uma convenção, ou mesmo um construto. Pautando-se nos postulados da Análise do Discurso (AD), este artigo busca respostas a certas indagações que poderiam ser assim delineadas: É fato que as roupas dizem algo sobre quem as utiliza? Se comunicam algo, de onde viria essa produção de sentido? De que modo o dispositivo teórico da AD se configuraria como um “arsenal” apropriado a ser aplicado ao universo das roupas ou a um possível discurso sobre elas? 351 Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda 1 Da (im)produtividade entre certas teorias de lingua(gem) e o universo das roupas Historicamente, e isso já não é novidade, a linguagem humana, materializada por meio de diferentes línguas, tem sido concebida a partir de pontos de vista diferentes e divergentes. Esses variados pontos de vista poderiam ser sintetizados, de acordo com GERALDI (2001), em três principais concepções: como representação ou “espelho” do mundo e do pensamento, como instrumento ou “ferramenta” de comunicação e como forma ou “lugar” de ação/interação entre sujeitos. Como um desdobramento desta última, poderíamos acrescentar ainda a noção advinda da AD que toma a linguagem como opaca, lugar de equívocos, de rupturas: “É porque a língua é sujeita ao equívoco [...] que o sujeito, ao significar, se significa. Por isso, dizemos que a incompletude é a condição da linguagem: nem os sujeitos nem os sentidos, logo, nem o discurso, já estão prontos e acabados” (ORLANDI 2010: 37). Pensar sobre essas concepções torna-se importante na medida em que delimitam a maneira de se olhar sobre o objeto lingua(gem), já que “longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto” (SAUSSURE 1996: 15). Assim sendo, em cada uma dessas três dimensões, importa perceber o tratamento dado tanto à questão da referência quanto à do sujeito, uma vez que esses elementos são responsáveis, em grande parte, pelos rumos de cada uma das abordagens e, consequentemente, das verdades produzidas para/por elas. No que diz respeito às roupas e indumentárias, a primeira dessas concepções associam-nas a um sistema regido por regras e leis, atribuindo, dessa forma, produtividade e regularidade a tais objetos. É o que se depreende de passagens como esta extraída da obra Sistema da Moda: 352 Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa Para além dos vocábulos que o compõem, todo enunciado da revista, portanto, constitui um sistema de significações, composto de um significante, de termos discretos, materiais, enumeráveis e visíveis – o vestuário –, e um significado imaterial, que, segundo o caso, é o mundo ou a Moda; em conformidade com a nomenclatura saussuriana, chamaremos de signo a correlação de dois termos: significante indumentário e significado mundano ou de Moda. (BARTHES 2009: 52). Pautada principalmente nos postulados saussureanos, essa concepção aproxima o universo de roupas do universo da língua, tomando-o como um sistema ordenado e regular. Tudo é explicado com base na noção de signo linguístico, que, segundo esse ponto de vista, constitui-se pela dualidade significante/significado, da qual se exclui sua relação com o que lhe é exterior. Dessa acepção, conhecida pela alcunha de estruturalismo, tem-se uma estrutura sem sujeito e um deslocamento da noção de referência: “O primeiro momento, o da linguística estrutural, para a qual os sentidos existem de maneira imanente ao sistema, permanece despreocupado com o referente lingüístico. Nem mesmo se fala em ‘referência’ e ‘referentes’” (CARDOSO 2003: 3). Dito de outra maneira, ao aproximar as roupas da concepção estruturalista da lingua(gem), orienta-se o olhar para uma certa interpretação, engessadora de seus sentidos: as roupas, como parte de um sistema, é analisada/estudada apenas por meio de seus próprios elementos, constituídos no interior do sistema. Trata-se, como se pode perceber, de um ponto de vista abstrato, idealista sobre a linguagem e o significado, o que leva a uma explicação de igual teor acerca das roupas e da moda. Quanto à segunda concepção, de uma maneira geral, as teorias da comunicação representam-na de forma inconteste, tomando a língua como um código capaz de transmitir informações entre emissor e 353 Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda receptor. Transportada para o universo do vestuário, essa ideia vê nas roupas um meio de comunicação ou uma forma de expressão: “A moda é de fato uma forma de expressão não verbal. Ou seja, usar alguma coisa sobre o corpo é comunicar-se sem verbalizar, é dizer algo sem que se emita uma única palavra.” (BRAGA 2005: 225). Amplamente difundida e aceita como explicação acerca da dinâmica das roupas e da moda, tal concepção enseja alguns apontamentos. Aqui também se faz necessário voltar atenção à questão da referência, uma vez que, preocupados com a ‘função referencial’, os teóricos dessa área não estavam interessados na relação entre língua e realidade, mas voltavam-se, sobretudo, para a mensagem que se orientava para o contexto ou referente. Talvez por razões inerentes ao próprio arcabouço teórico, o fato é que essa concepção deixa transparecer uma abordagem simplista acerca da referência, bem como certa desconsideração à noção de sujeito, o qual é visto a partir do par emissor-receptor, encarregados de enviar/receber e codificar/decodificar a mensagem: “os conceitos [...] constituem a mensagem, que se orienta para o contexto ou ‘referente’, transmitindo conteúdo intelectual, quando o emissor e o receptor são capazes de, respectivamente codificá-la e decodificá-la pela sua experiência de falante, ou conhecimento do código.” (CARDOSO 2003: 31). Ao buscar uma aproximação entre essa teoria e o complexo universo de roupas e indumentárias, surgem alguns percalços. Primeiro, porque não se trata apenas de transmitir/receber informações, como se a mensagem fosse fruto de uma série quase mecânica de atos e seu objetivo último fosse informar. A linguagem serve para comunicar, mas também serve para não comunicar. Além disso, emissor e receptor estão envolvidos em uma atividade, realizando ao mesmo tempo o processo de significação, que não é, definitivamente, um ato mecânico realizado de forma estanque. 354 Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa Desse modo, diremos que não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação. (ORLANDI 2010: 21). Como se pode deduzir, nenhuma dessas concepções conseguiu lidar com tal problemática, apresentando uma teoria capaz de lidar com os sentidos “em pleno voo”; ao contrário, muitas delas fomentaram novos e complexos dilemas. Daí que, representando outra concepção de linguagem, que passa necessariamente pela interação, mas inscrevendo-a na história, outra disciplina surge no cenário europeu na segunda metade do século XX, denominada Análise do Discurso, com o objetivo de compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, marcada pela opacidade e equivocidade, constituindo, assim, como seu nome aponta, um novo objeto de estudo: o discurso. Assim como a língua, as roupas agrupam, incluem, mas também excluem, separam, distanciam: como a língua, elas são lugar também da contradição. 2 Um outro horizonte de base interpretativa: a Análise de Discurso Francesa Constituindo-se, talvez, como uma espécie de anverso das noções usuais relativas ao sujeito e à referência, as ideias de Michel Foucault aparecem no cenário da Análise do Discurso, revolucionando a já revolucionária disciplina arquitetada por Michel Pêcheux. Apesar de não ter como seu propósito fazer esse tipo de análise, as contribuições de Foucault foram decisivas para a AD de orientação francesa, pois, ao buscar entender o funcionamento das práticas discursivas, ele abordou questões relativas ao saber, ao poder e, principalmente, ao sujeito. 355 Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda É preciso que se diga, primeiramente, que, em M. Foucault, mais precisamente em sua concepção de discurso, esse “conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação” (FOUCAULT 2009: 122), o uso da lingua(gem) passa a ser mais que a produção de sequências verbais/não-verbais: trata-se, antes, de criar uma situação na qual essa produção não será senão uma prática dentre um número ilimitado de outras práticas. Isso leva, certamente, a algumas consequências, inclusive ao deslocamento do próprio estatuto atribuído, por alguns, à AD de não pertencer ao núcleo rígido da Linguística. Quanto a isso, é pertinente retomar esta passagem d’ Arqueologia do Saber: É evidente que os enunciados não existem no sentido em que uma língua existe e, com ela, um conjunto de signos definidos por seus traços oposicionais e suas regras de utilização; a língua, na verdade, jamais se apresenta em si mesma e em sua totalidade; só poderia sê-lo de uma forma secundária e pelo expediente de uma descrição que a tomaria por objeto; os signos que constituem seus elementos são formas que se impõem aos enunciados e que os regem do interior. Se não houvesse enunciados, a língua não existiria; mas nenhum enunciado é indispensável à existência da língua. (FOUCAULT 2009: 96). Nesse trecho, o filósofo francês afirma, frise-se bem, que os signos “são formas que se impõem aos enunciados”, o que leva a, no mínimo, dois desdobramentos. Se, em BARTHES (2009: 14), tem-se que “é preciso inverter a formulação de Saussure e afirmar que a semiologia é que é uma parte da linguística”, em consonância com as teorias foucaultianas, não se trata de saber se a AD faz ou não parte da Linguística, mas que esta deve algo de muito valioso à perspectiva apresentada pela Análise do Discurso, uma vez que só há língua, porque há um discurso que a sustenta: 356 Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa “Foucault inverte os níveis consagrados de análise e de sustentação epistemológica da linguística: não se vai da frase gramatical ao ato de discurso, pois é enquanto discurso que uma frase ganha estatuto de frase gramatical.” (ARAÚJO 2004: 219). Pode-se ir ainda mais longe, e dizer que “a Análise do Discurso relaciona-se com a Linguística de forma problemática, isto é, lhe coloca problemas.” (GREGOLIN 2003b: 2) ou, dito de outra forma, a AD apresenta problematizações à Linguística, “interpelando-a pela historicidade que ela apaga” (ORLANDI 2010: 16), contribuindo com suas transformações. Por outro lado, a noção de lingua(gem) subjacente a essa noção não poderia atrelar-se ao conceito de verdade, quer dizer, não haveria de um lado palavras e, de outro lado, as coisas, tomadas como entes verdadeiros em si próprios. Analisando os saberes possíveis de uma época, FOUCAULT (2009) comprova que tais conceitos são mutáveis à medida que o discurso filosófico e/ou científico que lhes servem de suporte também o são. Daí que, para o arqueólogo/genealogista, a questão que, de fato, interessa é como pode um determinado enunciado ter surgido, justamente ele, e não outro em seu lugar? Descrevendo enunciados, o analista busca, assim, unir lingua(gem) e história, pois “trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, [...] de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado” (FOUCAULT 2009: 31). Sendo o enunciado da ordem do acontecimento, interessa, pois, saber como determinada episteme recorta e designa seus objetos de estudo em dada época: As condições para que apareça um objeto de discurso, as condições históricas para que se possa dele dizer algo [...] são numerosas e pesadas. O que significa que não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época. [...] Ele [o objeto] existe sob as condições positivas de um feixe 357 Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda complexo de relações. Estas relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistemas de norma, técnicas, tipos de classificação [...]. Elas não definem sua constituição interna, mas o que lhes permite aparecer. (FOUCAULT 2009: 50). Feitas essas observações, abre-se caminho para o questionamento acerca do que representaria o objetivo central de toda a busca de Michel Foucault, de sua arquegenealogia. Segundo as palavras do pensador francês, seu propósito “foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” (FOUCAULT 2010: 273). Fundamental para a AD, a noção de sujeito vem ocupando o centro das atenções e sendo alvo de reformulações ou refinamentos em sua trajetória. Inicialmente tido como assujeitado, de acordo com a noção pecheutiana, ele seria tomado ou atravessado pelos discursos, uma vez que “quem de fato fala é uma instituição, ou uma teoria, ou uma ideologia.” (POSSENTI apud MUSSALIN 2001: 133). Se o que há são enunciados, quem seria, então, responsável por esses enunciados ou quem seria o sujeito de um enunciado? De acordo com Possenti (2009: 74), “O eu, para Benveniste. Uma forma sujeito, para Foucault”. Situando, pois, o sujeito como o tema geral de suas pesquisas, Foucault trata-o como uma função, não totalmente livre, pois que condicionado pelas coerções que sofre da formação discursiva de onde enuncia. O sujeito do enunciado é uma função determinada, mas não forçosamente a mesma de um enunciado a outro; na medida em que é uma função vazia, podendo ser exercida por indivíduos, até certo ponto, indiferentes, quando chegam a formular o mesmo enunciado; e na medida em que um único e mesmo indivíduo pode 358 Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa ocupar, alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes posições e assumir o papel de diferentes sujeitos. (FOUCAULT 2009:105). Não existindo o sujeito como uma essência psicológica, de onde emanaria toda e qualquer decisão, mas “um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos” (FOUCAULT 2009: 61), entra em cena, pois, a objetivação e, consequentemente, a sua subjetivação. Na chamada Idade Moderna, no mundo ocidental, podem ser observadas práticas, isto é, mecanismos e processos de constituição desse homem que nele habita: um homem que fala, trabalha e vive, segundo o filósofo francês. Dessa forma, os processos, quer de objetivação, quer de subjetivação, constituem procedimentos que, agindo conjuntamente, determinam a constituição do indivíduo moderno. Os primeiros fazem parte dos estudos em que Foucault se dedica a mostrar as “práticas que de dentro da nossa cultura tendem a fazer do homem um objeto”, ou seja, os estudos que mostram como, a partir dos mecanismos disciplinares, foi possível constituir o indivíduo moderno: um objeto dócil e útil. Os segundos, por sua vez, localizam-se no âmbito dos trabalhos em que Foucault procura compreender as práticas que, também de dentro da nossa cultura, fazem do homem um sujeito, ou seja, aquelas que constituem o indivíduo moderno, sendo ele sujeito preso a uma identidade que lhe é atribuída como própria. (FONSECA 2003: 25). Paralelamente à noção de sujeito, a noção de referente, com Foucault, sofrerá um deslocamento: de referente passa-se a falar em referencial. Por meio da função enunciativa, ao invés de relacionar palavra e coisa, lança-se mão de um referencial, algo bastante diverso da noção de referente para a gramática e para a lógica. O enunciado, dessa forma, não se reporta a um 359 Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda indivíduo ou a um objeto específico, mas a outro enunciado, sendo sua especificidade advinda de seu referencial, da disposição de um domínio associado, do revestimento de uma materialidade específica. Em outras palavras, isso equivaleria a dizer que o espaço discursivo é anterior ao espaço lógico e linguístico. “É no interior de uma relação enunciativa bem determinada e bem estabilizada que a relação de uma frase com o seu sentido pode ser assinalada.” (FOUCAULT 2009: 102). Daí que não existem enunciados livres, neutros e inteligíveis por eles mesmos; o que há são enunciados que se prendem a outros, numa cadeia tal que o sentido ou a suposta referência se dá por meio dessa interdependência. Mas, por que falar de tudo isso? Por que trazer à tona todo esse arsenal de ideias, teorias e conceitos que dizem respeito à lingua(gem) humana? O que isso teria a ver com o universo de roupas e indumentárias? É imperativo que se saiba que, se foram aproximados universos que parecem, num primeiro momento, tão distantes, é porque isso nos leva a pensar que, muito provavelmente, no tocante às roupas ou aos seus supostos significados, as formas usuais utilizadas para compreendê-las não demonstram pertinência suficiente para captá-las em sua complexidade, necessitando, pois, lançar mão de uma disciplina interpretativa mais condizente com um objeto de tal dimensão. Nesse horizonte de incertezas e complexidades, a Análise do Discurso configura-se como um campo de estudo bastante produtivo para essa empreitada “na medida em que toma como objetos de estudos a produção de efeitos de sentido, realizada por sujeitos sociais, que usam a materialidade da linguagem e estão inseridos na história.” (GREGOLIN 2007: 13). Isto quer dizer que a AD francesa parece ser mais condizente para lidar com tal problemática exatamente por oferecer ferramentas para a análise de acontecimentos discursivos, sejam eles políticos, midiáticos ou, neste caso, aqueles relacionados à moda/à indumentária. 360 Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa 3 Se é verdade que as roupas falam, de onde emanariam os sentidos que elas produzem? Sabe-se, com a AD francesa, que os sentidos não são um dado empírico situado no mundo pronto para ser apontado por uma linguagem transparente. Os sentidos são construídos e, nesse caso, seria mais apropriado falar em efeitos de sentido, uma vez que é da relação entre o linguístico e o histórico que eles emergem, isto é, o discurso “implica que não se trata necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B mas, de modo mais geral, de um ‘efeito de sentido’ entre os pontos A e B” (PÊCHEUX 2010: 81). Isso quer dizer que, para que um determinado vestuário possa ser apontado como significando X ou Y, há que se buscar os sentidos instaurados por uma teia de relações que envolve discurso, história e memória. A apreensão de tais relações proporciona o entendimento da emergência de certos significados e não de outros, isto é, o aparecimento de uns em detrimento (ou silenciamento) de outros, pois, de acordo com GREGOLIN (2007: 15), “Silenciamento e exposição são duas estratégias que controlam os sentidos e as verdades.” Mas onde estão situados esses efeitos de sentido e de onde eles se originam? Pelo próprio conceito de efeito, deduz-se que não são préexistentes, mas derivariam de algo que os sustenta. Os efeitos de sentido, embora concretizados nos textos, sejam eles verbais ou não, que circulam socialmente, são possibilitados pelos discursos, ou mais precisamente, por meio do interdiscurso, dessa teia que liga um enunciado a outro, já que as formações discursivas de onde emergem são perpassadas por outras formações. Como o (inter)discurso não é transparente, segue-se que não é possível apreender a grandeza e/ou extensão de significados ou perceber todas as possibilidades de sentido produzidas nas práticas sociais. Logo, a coerência aparente e perceptível de cada discurso é um dado ilusório, um efeito de construção do próprio discurso: “o sujeito pode interpretar apenas alguns dos fios que se destacam das teias de sentidos que invadem o campo do real social.” (GREGOLIN 2007: 16). 361 Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda Para que se perceba como isso ocorre, tomemos, como exemplo da produção de sentidos, um texto publicitário, que anuncia uma marca de jeans, extraído da revista Veja de maio de 2006. Visto sob a ótica do acontecimento discursivo, faz-se necessário lembrar que os discursos materializados em textos da mídia são por si só um acontecimento, uma vez que os suportes midiáticos produzem todo um processo de espetacularização desses discursos: “A mídia, ao mesmo tempo em que trabalha discursivamente para produzir o acontecimento, lhe dá visibilidade, espetacularidade.” Além do mais “produz sentidos por meio de um insistente retorno de figuras, de sínteses-narrativas, de representações que constituem o imaginário social” (GREGOLIN 2003a: 96). Na edição de 22 de março de 2006, a revista Veja estampa em duas de suas páginas iniciais o anúncio de uma marca de roupas. Esse texto publicitário constitui-se de uma cena que se passa num ambiente clean, sugerindo uma realidade imaginariamente/virtualmente limpa e, à exceção de alguns elementos verbais (nome da marca anunciante, p. ex.), todo o restante se traduz por elementos imagéticos. No centro da cena, há uma luta/oposição entre dois jovens (uma moça e um rapaz) vestindo, cada um, apenas uma calça jeans e dois homens de meia idade vestindo terno. Os que vestem terno carregam dinheiro nos bolsos e em malas, além de – “detalhe” importante – terem os ternos sujos de lama; essa vestimenta evoca, dadas as circunstâncias e a rede de enunciados que se constitui em torno dela, a classe dos políticos, uma vez que, ao se relacionar com os outros elementos da cena, o enunciado se insere no interior da história e retoma outros enunciados que o constituem, como os referentes ao episódio amplamente conhecido e já instaurado na memória denominado “mensalão”. Os que usam jeans aparentam ser jovens, com corpos saudáveis e limpos – como igualmente é clara a lavagem do jeans –, trajam apenas calça (a sugestão é de que sejam da marca anunciante) e, numa atitude cujo efeito de sentido aponta para certa moralização, combatem com 362 Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa seus golpes e sua flexibilidade os “sujos”/corruptos/fora de forma, que carregam dinheiro nos bolsos e malas. Cabe ressaltar que a associação do valor juventude à mercadoria é algo significativo, pois tende a torná-la atraente não apenas à geração jovem, mas também ao público adulto, dado que envolve, além de outros, padrões de beleza difundidos em nossa cultura, “reforçando desse modo a ideia de juventude não mais como categoria de idade e sim como norma de vida.” (SOARES 2011: 81). É nesse sentido que VINCENT-RICARD (2008: 155) afirma: “Hoje a moda é como um caleidoscópio no qual os looks dos jovens [...] se sucedem a um ritmo alucinante, trazendo um sentimento de vertigem e irrealidade.” Trata-se, como já foi dito, de entender por que determinado enunciado irrompeu e não outro em seu lugar, ou ainda por que tal sentido e não outro(s) emergiu(ram) dessa rede de relações. De acordo com Michel Foucault (2009: 31-32, grifo nosso), o enunciado é [...] um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória [...]; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação; finalmente, porque está ligado [...] a enunciados que o precedem e o seguem. Assim sendo, os sentidos, repita-se, emergem desse entrecruzamento entre diferentes enunciados, se produzem no cruzamento entre uma atualidade e uma memória. Não se trata de uma memória individual, que o indivíduo tem do passado, mas de uma memória discursiva (COURTINE 2009). A memória discursiva leva a estabelecer relações também com outros dizeres, acionando uma cadeia de sentido construída a partir do 363 Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda interdiscurso1: “não há um único enunciado que não retome outros e com eles dialogue; não há um único enunciado sem margens, pois ele será sempre povoado por outros enunciados. Os sentidos acontecem, portanto, em uma dispersão.” (GREGOLIN 2003a: 5). No texto em questão, percebe-se a ação dessa rede constitutiva de sentidos, através de certas atualizações, como, por exemplo, pela retomada de cenas de lutas características do cinema de ação. Pautado num já-dito, o referencial desses enunciados recupera todo um arsenal de cenas de combate de títulos diversos e, em especial, as de “Matrix”, trilogia dirigida pelos irmãos Wachowsky no início dos anos 2000. Ambientado num futuro próximo, no qual a humanidade estaria à mercê das máquinas, o enredo atualiza, no plano da ação, cenas de lutas de filmes do tipo kung-fu e retrata a saga dos humanos para se verem livres do aprisionamento virtual a que teriam sido submetidos. Transportados para o plano do anúncio em análise, há, portanto, um jogo (ou um combate) por meio do qual opera uma atualização desses vários fragmentos dispersos, centrando-os em uma única cena através da qual se (re)afirma a imagem de uma juventude combativa, que luta contra o mal instalado no campo das práticas políticas. Essa imagem, por sua vez, também não é nova, mas se insere numa rede de outros eventos já constitutivos de uma memória discursiva, ocorridos ao longo das últimas décadas, dentre os quais se destacam o Maio de 68, as lutas contra a ditadura e as marchas contra a corrupção na retomada da democracia, como o movimento dos caras-pintadas. Sendo assim, o texto em questão dialoga discursivamente com inúmeros outros ou, sendo mais preciso, há, pois, entre as imagens, um trabalho de retomadas e reconfigurações que atuam sobre os sentidos, já que “não há imagem que não faça ressurgir em nós outras imagens, 1 Segundo Orlandi (2010: 31), há uma aproximação entre memória e interdiscurso: “A memória [...] tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva.” 364 Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa quer essas imagens tenham sido já vistas ou simplesmente imaginadas” (COURTINE 2011: 160). Um exemplar com o qual se pode instaurar um diálogo2 é o texto publicitário Passeata, criado pela agência W/Brasil, emblemático para a geração jovem da década de 1980. Na propaganda Passeata, há a simulação de um confronto entre dezenas de jovens, usando jeans, e a polícia. Ao desafiar a polícia com palavras e gestos obscenos, o confronto transforma-se em perseguição. Entre correria, jatos d’água, tropeços, tombos, revistas e detenções, o jeans aparece envolvendo e protegendo essa massa de jovens que tem “o poder de transformar o mundo”. À medida que as ações vão ocorrendo ao longo da peça publicitária, a locução que as acompanha, ironicamente, afirma: “Staroup sofre um processo especial de lavagem. Staroup é resistente. E tem caimento perfeito. Staroup passa pelo mais rigoroso controle de qualidade. E dá total liberdade a seus movimentos. Staroup. O mais testado. O mais procurado. Se não for Staroup, proteste.” Emerge, assim, dessas relações a (re)afirmação de uma imagem de juventude e, concomitantemente, a do jeans como símbolo de liberdade e rebeldia. A publicidade parece retomar e explorar essa ideia, revivendo a máxima ‘liberdade é uma calça velha, azul e desbotada’, construindo sentidos por meio de uma rede discursiva que, num percurso que vai do cinema à propaganda, das práticas cotidianas ao que jornais/revistas publicam, acaba por objetivar e, consequentemente, subjetivar jovens como indivíduos, ou quem sabe mesmo heróis, que lutam contra o establishment. A bem de uma possível verdade, tudo isso não passaria de ilusão de liberdade, pois, segundo GREGOLIN (2003a: 108), 2 A esse diálogo, COURTINE (2011, p. 160) dá o nome de intericonicidade: “A intericonicidade supõe, portanto, dar um tratamento discursivo às imagens, supõe considerar as relações entre imagens que produzem os sentidos: imagens exteriores ao sujeito, como quando uma imagem pode ser inscrita em uma série de imagens, uma arqueologia, de modo semelhante ao enunciado em uma rede de formulações, em Foucault; mas também imagens internas, que supõem a consideração de todo conjunto da memória da imagem no indivíduo e talvez também os sonhos, as imagens vistas, esquecidas, ressurgidas ou fantasiadas que frequentam o imaginário.” 365 Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda [...] na era da informação ininterrupta e em tempo real, as técnicas de disciplina e vigilância são sofisticadas a ponto de exigirem reordenamentos discursivos, a fim de criarem a ilusão de liberdade. São novas formas de apelo e de constituição do imaginário social em que a própria resistência se transforma em mercadoria a ser insistentemente (re)produzida e transformada em discurso, neutralizado seu potencial de subversão. Naturalizando a resistência, forja-se um consenso que, dialeticamente, destrói a rede de contra-discurso. De acordo com FOUCAULT (2007), os ditos são rebeldes a interesses, entram na ordem das contestações e das lutas, tornamse temas de rivalidade. Esses mesmos enunciados, por meio de uma memória discursiva, colocam-se em contato e em confronto com outros enunciados, permitindo afirmar que o universo de roupas e indumentárias não compõem uma unidade homogênea, mas um campo discursivo inevitavelmente constituído por discursos heterogêneos que, dentre outras coisas, falam, sobretudo, de sujeitos e, ao fazê-lo, acabam por constituí-los: Embora o sujeito encontre na moda um variado cardápio de estilos, roupas; a necessidade de estar inserido em um grupo social o coloca sob o efeito de coerções, delimitações e regras bem marcadas, que, por sua vez, o conecta a uma identidade. (PRADO 2006: 15). Na esteira do pensamento foucaultiano, o que se pode observar é que os enunciados são postos sempre em contato com outros, por meio de uma extensa rede discursiva, contato esse que possibilita a emergência de sentidos que podem ser traduzidos como uma rede de nós, num 366 Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa paradoxo que envolve dispersão e unidade, apagamento e atualização, comprovando que existe menos transparência nas formas de apreensão da realidade do que se possa conceber. Sendo assim, o fato de uma calça jeans significar liberdade ou rebeldia ou um terno significar formalidade ou seriedade, isso deve ser entendido menos como um dado natural do que aquilo que foi possibilitado por essa rede discursiva na qual esses enunciados estão inseridos. Considerações finais Como se pode notar, as roupas são sim um elemento forte da nossa cultura material. Nas relações com o mundo, elas ajudam a construir sentido/significação, além de representações sobre aspectos relativos à identidade pessoal e social. Entretanto, para além de posicionamentos de ordem sociológica ou antropológica, ou de considerações pautadas em teorias de horizonte restrito, é necessário que se entenda que a criação/utilização de certas peças e sua transformação em algo utilizável, desejável ou ainda objeto de controvérsia, portadoras de determinados significados e instauradoras de representações, se dá pela obediência a certas regras, regras essas advindas, antes de tudo, das relações discursivas possibilitadas por meio do interdiscurso ou da memória discursiva a que estão submetidos os enunciados. O que se pretendeu, ao longo deste artigo, foi demonstrar que não há como desconsiderar as relações, seja entre o linguístico e o histórico, entre o discurso e o interdiscurso, entre a atualidade e a memória, sob pena de limitar o entendimento, a compreensão do fenômeno. Se for verdade, pois, que estamos longe de dar à roupa o lugar que lhe cabe, tanto dentro da integração como na contestação sociais (MONNEYRON 2007), isso se deve muito provavelmente a escolhas teóricas ou conceituais limitadas, não suficientes para lidar com tal complexidade por desconsiderar os embates discursivos que permeiam o problema. 367 Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda Recolocar a roupa (e a moda) no centro de uma interrogação discursiva significa, então, extraí-las da banalidade em que geralmente são submetidas e considerá-las ao mesmo tempo produtora e também produto de um processo que se dá entre atualizações e esquecimentos, distanciamentos e aproximações, história e linguagem. Significa considerar, como diz WILDE (2006: 25), em O Retrato de Dorian Gray, que “o verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível”, e em seguida dedicar-se a pensar na roupa não mais como portadora de sentidos pré-existentes ou como elemento secundário, incidental, mas como um objeto simbólico que produz sentidos, “investido de significância para e por sujeitos” (ORLANDI 2010: 26). Significa, em resumo, entender esses elementos como da ordem do discurso, possivelmente um discurso da moda, e, ampliando o pensamento de Foucault, considerar o homem na modernidade como um homem que vive, fala, trabalha e se veste. Referências ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. BARTHES, Roland. Sistema da moda. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BRAGA, João. Como saber o que vestir. In: PINSKY, Jaime (Org.). Cultura e Elegância. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2005. p. 225-229. 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A análise fundamenta-se nos estudos de LAKOFF (1987) e LAKOFF E JOHNSON (1980) e tem como foco as preposições espaciais up e down, apresentadas por esquemas imagéticos e que exercem um papel importante para a interpretação dos phrasal verbs. ABSTRACT Since phrasal verbs have been considered for foreign language students a challenge in the learning process, this study takes into account, by cognitive semantic perspective, the verbparticle construction. The purpose is to check its peculiarities regarding to metaphoric extentions. This analysis is based on LAKOFF (1987) and LAKOFF E JOHNSON (1980) studies, besides to focus the spacial prepositions ‘up’ and ‘down’ presented by schematic images prosecuting an important role about phrasal verbs interpretation. PALAVRAS-CHAVE Extensões metafóricas. Phrasal verbs. Semântica cognitiva. KEYWORDS Cognitive semantic. Metaphoric extentions. Phrasal verbs. © Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 371-384, jan./jun. 2014 Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas Introdução Considerando as propriedades linguísticas que os Phrasal Verbs1 apresentam, em especial as de ordem semântica e metafórica, bem como a consequente dificuldade no âmbito do ensino de LE, busca-se pela abordagem semântica cognitiva suporte para explicar a semântica dos PVs, mais precisamente de suas partículas. Dessa forma, o presente artigo limita-se à análise de LAKOFF (1987) e LAKOFF E JOHNSON (1980) no que diz respeito às partículas espaciais UP e DOWN. Neste sentido, busca-se, por meio de esquemas imagéticos, (i) analisar as propriedades metafóricas dos PVs e (ii) verificar como as metáforas ocorrem e/ou se caracterizam, além de (iii) verificar a correlação metáfora-experiência corporificada. PVs, também conhecidos como verb-particle constructions, multimodal verbs ou ainda two-part verbs têm sido considerados problemáticos para os aprendizes de LE. Essa problematização se dá por envolver aspectos complexos, tanto sintáticos quanto semânticos. Seu significado sucede na construção de mais de uma palavra, verbo mais partícula(s). A partícula refere-se à uma preposição ou advérbio, já que tanto um quanto outro, além do verbo, podem contribuir com o significado de um PV. Logo, para o desenvolvimento deste estudo e atingir os objetivos traçados, o presente artigo apresenta fundamentação teórica, visando sustentar as abordagens feitas e dividido em (2.1) ‘Semântica Cognitiva e os PVs’, (2.1.1) ‘Um parecer geral da semântica cognitiva’, (2.1.1.1) ‘Esquemas Imagéticos’ e (2.1.2) ‘A metaforicidade dos PVs’. A partir disso, considera-se a ‘Metodologia e Análise’ e por conseguinte a ‘Discussão sobre a análise e considerações finais’ e ‘Referências bibliográficas’. 1 Phrasal Verbs serão tratados pela sigla ‘PVs’ ou ‘PV’, quando no singular. 372 Samanta Kélly Menocin Pierozan 1 Fundamentação teórica A preocupação inicial deste estudo era encontrar uma teoria que desse conta dos aspectos que envolvem os PVs, para então compreender como o fenômeno ocorre. Sendo assim, verificou-se na Linguística Cognitiva o suporte necessário por uma perspectiva não modular e ressaltar princípios cognitivos da linguagem, reunindo abordagens que compartilham hipóteses centrais, além de detalhar suas particularidades no que tange à linguagem humana. Para tratar, mais especificamente, da semântica e metaforicidade dos PVs, faz-se necessário uma visão linguística enciclopédica2. Assim, a LC, por meio da semântica cognitiva e sustentando-se nos estudo teóricos de LAKOFF (1987) e LAKOFF E JOHNSON (1980), passa a dar o suporte necessário às investigações do presente estudo. Num primeiro momento, ou ainda, na sua origem, as preposições eram utilizadas para demonstrar noções espaciais entre entes físicos. Porém, percebe-se que elas transcendem estas entidades, uma vez que a experiência física e espacial esteja corporificada. Assim, nota-se a relação dos PVs, mais precisamente das suas partículas, com esquemas imagéticos, que são representações conceptuais abstratas derivadas da nossa interação diária e do mundo que nos cerca (EVANS E GREEN, 2006, p. 176). LINDNER (1981), LAKOFF (1987), RUDZKA-OSTYN (2003) E TYLER E EVANS (2003) concordam que o significado de um PV vai do concreto ao abstrato e que a metáfora serve como um link entre eles. Por esta perspectiva, a pragmática e a semântica não podem ser distinguidas, pois há um contexto que influencia na definição de uma palavra. A linguística enciclopédica abrange o conhecimento enciclopédico, que é o conhecimento de mundo, extralinguístico. Por este viés, o conhecimento é estruturado, o que fornece o acesso necessário ao inventário do conhecimento – para EVANS E GREEN (2006, p. 216) refere-se a um sistema estruturado de conhecimento, organizado como uma rede, onde nem todos os aspectos associados a uma única palavra tem o mesmo valor. 2 373 Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas 2 Semântica Cognitiva e os PVs 2.1 Um parecer geral da semântica cognitiva Neste capítulo a semântica será vista pela abordagem semântica cognitiva, uma ramificação da Linguística Cognitiva (LC), que assume a linguagem como uma faculdade mental e que as habilidades linguísticas são sustentadas por formas especiais de conhecimento (SAEED, 2003, p. 342). Considerando FERRARI (2011, p. 13), a expressão ‘linguística cognitiva’ circulava no meio linguístico desde 1960, porém foi por volta de 1980 que o termo passou a vigorar. Inicialmente, o termo ‘LC’ foi adotado por George Lakoff, Ronald Langacker, Leonard Talmy, Charles Fillmore e Gilles Fauconnier, um grupo de estudiosos que buscavam uma teoria que sustentasse as relações entre sintaxe e semântica, ao mesmo tempo que considerasse as relações entre forma e significado e se afastasse da perspectiva modular proposta pelo gerativismo. Consequentemente, surge a semântica cognitiva em reação à visão objetivista de mundo, uma vez que linguistas cognitivos viam o significado linguístico como uma manifestação da estrutura conceptual que, de modo geral, são muito diferentes da visão tradicional. Os sistemas conceptuais são organizados por categorias3 das quais nossos pensamentos as envolvem; funcionam na base da projeção, dominando conceitos mais abstratos a partir de noções mais concretas. Essa nova visão, oposta à tradicional/objetivista, fundamenta-se na experiência corporificada, a qual considera aspectos imaginativos da razão como a metáfora, a metonímia e imagens mentais. Alguns princípios caracterizam a abordagem semântica cognitiva, entre eles: (i) a estrutura conceptual é corporificada, ou seja, a natureza 3 Para ROSCH (apud LAKOFF, 1987, p.7), as categorias, no geral, apresentam exemplos prototípicos e que todas as capacidades, especificamente humanas, desempenham um papel importante na categorização. “Categorias são categorias de coisas [...] Nós temos categorias para todas as coisas que podemos pensar. Mudar um conceito de categoria é mudar nossa compreensão de mundo” (LAKOFF, 1987, p. 9). 374 Samanta Kélly Menocin Pierozan da organização conceptual emerge da experiência corpórea, (ii) a estrutura semântica é uma estrutura conceptual, uma vez que a estrutura semântica4 é comparada a conceitos, (iii) a representação do significado é enciclopédica, pois unidades linguísticas são vistas como pontos de acesso do conhecimento em relação a um determinado conceito e (iv) a construção do significado é conceptual, sendo que esta comparação é possível em virtude do processo dinâmico no qual os itens lexicais são o ponto de partida para a construção de um nível conceitual (LAKOFF, 1987; EVANS E GREEN, 2006). O conhecimento em si é organizado em estruturas armazenadas na memória de longo prazo, nomeado por FILLMORE (1982) e LAKOFF (1987) modelos cognitivos idealizados, ou MCIs. É da organização que provém as estruturas das categorias, bem como os efeitos prototípicos. Cada MCI refere-se a uma estrutura complexa no qual envolve (i) estrutura proposicional (frames de Fillmore), (ii) estruturas de imagem esquemática (gramática cognitiva de Langacker), (iii) mapas metafóricos e (iv) mapas metonímicos (descritos por Lakoff e Johnson) (LAKOFF, 1987, p.68). Dessa forma, “o conhecimento é possível, pelo menos parcialmente, por causa das categorias da mente que se ajustam às categorias do mundo” (p. 297). Sendo assim, passo a explorar um pouco sobre as estruturas de esquemas imagéticos (ou estruturas de imagem esquemática), bem como a metaforicidade dos PVs, já que estes parecem explicar os fenômenos que circundam os PVs. 2.1.1 Esquemas imagéticos Esquemas imagéticos são vistos como representações conceptuais relativamente abstratas que surgem diretamente de nossa interação diária e do mundo que nos cerca (EVANS E GREEN, 2006, p. 176). Por sua vez, EVANS E GREEN (2006, p.164) definem estrutura semântica como o significado convencionalmente associado a outras palavras e outras unidades linguísticas. 4 375 Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas não é abordado como uma estrutura inata do conhecimento, pois deriva da experiência sensorial perceptual (audição, tato, visão, movimento) e é pré-conceitual na sua origem, ou seja, são os primeiros conceitos a emergirem na mente humana, ancorado na experiência corpórea do homem no espaço físico. O que os faz ‘conceptuais’ e não puramente ‘perceptuais’ é pelo fato de prover conceitos conscientemente acessíveis. Considerando LAKOFF (1987, p. 454), um esquema pode ser visto como um protótipo generativo, que gera, aproxima e se enquadra a princípios gerais, definindo o grau dos membros constituintes. Esquemas de imagens consistem de padrões que se dão por instâncias repetidas da experiência corporificada. De modo geral, representam padrões esquemáticos que refletem domínios, como é o caso do CONTÊINER e TRAJETÓRIA, entre outros. Refletir domínios quer dizer sustentar projeções entre domínios conceptuais, característicos do uso metafórico e metonímico. Pensando na aplicabilidade dos PVs, vale salientar a análise de BRUGMAN (1981, apud LAKOFF, 1987, p.454) a qual apresenta níveis de estruturas prototípicas para algumas preposições, desenvolvendo um estudo específico para a preposição over; que por sua vez envolve (i) a estrutura radial das categorias de esquemas, onde cada esquema é visto como membro de determinada categoria e (ii) a estrutura generativa da categoria de cenas e imagens, definida por esquemas individuais. Desse modo, faz-se notável que este é o caminho, ou pelo menos um dos caminhos, para explicar o fenômeno ‘phrasal verbs’, podendo refletir sobre suas propriedades gerais e identificar preceitos relacionados. Além disso, por meio da teoria abordada, pode-se averiguar a relação existente entre esquemas imagéticos e metaforicidade; esquemas imagéticos e modelos metafóricos são necessários para representar o significado das expressões - os sentidos de cada expressão forma uma categoria estruturada radialmente, com um membro central e conexões definidas por transformações de esquemas imagéticos e metáforas (LINDER, 376 Samanta Kélly Menocin Pierozan 1981, HAWKINS, 1984, BRUGMAN, 1981, apud LAKOFF, 1987, p. 460). 2.1.2. A metaforicidade dos PVs Por meio da LC é possível identificar significados prototípicos e verificar como os significados adicionais são extensões metafóricas do sentido básico; pesquisas como as de LAKOFF E JOHNSON (1980) foram pioneiras ao considerar a metáfora no discurso do dia-a-dia. A aplicabilidade dessa abordagem em relação ao estudo das preposições vale também para TYLER E EVANS (2003). Para compreender o que vem a ser a metaforicidade dos PVs fazse necessário destacar alguns conceitos, como é o caso da ‘metáfora estrutural’, onde um conceito é estruturado metaforicamente em termos de um outro. Entretanto, há um outro tipo de conceito metafórico que organiza todo um sistema de conceitos no que diz respeito a outros, conhecido por ‘metáfora orientacional’. Este último fornece as orientações espaciais a um conceito e fundamenta-se na experiência física e cultural, podendo variar de uma cultura à outra (LAKOFF E JOHNSON, 1980, p. 14). Sendo assim, toma-se como exemplo MORE IS UP / LESS IS DOWN: ‘The number of books printed each year keeps going up’ e ‘The amount of artistic activity in this state has gone down in the past year’. Com base na experiência física, se adicionarmos mais de uma substância ou objeto físico a um contêiner ou pilha, o nível cresce – por meia desta experiência, já corporificada5, que é torna possível compreender o significados dos PVs dos exemplos dados. Além do que já foi reportado acima, a relação metáfora-coerência cultural merece ser salientada neste estudo. Tendo como exemplo UP5 “Each of us is a container, with a bounding surface and an in-out orientation. We project our own in-out orientation onto other physical objects that are bounded by sufaces” (Lakoff & Johnson, 1980, p. 29) - Esta citação permite compreender um pouco mais do que se trata a ‘experiência corporificada’. 377 Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas DOWN, consideremos alguns valores culturais da sociedade, embutidos na cultura de um povo, que são coerentes à metáfora (p. 22): “Mais é melhor” é coerente com ‘MORE IS UP’ e ‘GOOD IS UP’, porém “menos é melhor” não é coerente; “Maior é melhor” é coerente com ‘MORE IS UP’ e ‘GOOD IS UP’, porém “menor é melhor” não é coerente; “O futuro será melhor” é coerente com ‘THE FUTURE IS UP’ e ‘GOOD IS UP’, porém “o futuro será pior” não é; “Haverá mais no futuro” é coerente com ‘MORE IS UP’ e ‘THE FUTURE IS UP’; “Teu status deveria ser mais alto no futuro” é coerente com ‘HIGH STATUS IS UP’ e ‘THE FUTURE IS UP’. As metáforas, de acordo com LAKOFF E JOHNSON (1980, p. 46), estruturam em parte nossos conceitos diários e esta estrutura é refletida em nossa linguagem literal. Expressões da língua inglesa são literais ou idiomáticas, enquadrando-se às metáforas e parte da fala cotidiana das pessoas. Alguns exemplos: TEORIAS (e ARGUMENTOS) SÃO CONSTRUÇÕES: “We need some more facts or the argument will fall apart”. IDEIAS SÃO ALIMENTOS: “Having children eats up a loto f a family’s income”. Com relação à vida e à morte IDEIAS SÃO ORGANISMOS, tanto PESSOAS quanto PLANTAS. IDEIAS SÃO PESSOAS: “His ideas will live on forever”. IDEIAS SÃO PLANTAS: “Mathematics has many branches”. A partir dos exemplos fornecidos, verifica-se que muitos PVs são usados metaforicamente, tanto por parte do verbo quanto por parte da partícula. RUDZKA-OSTYN (2003, p.3) afirma que saber o significado do verbo e o significado espacial da partícula torna a interpretação de um PV mais fácil, mas não o suficiente. Entretanto, mesmo os significados mais abstratos apresentam uma relação como significado espacial original. 378 Samanta Kélly Menocin Pierozan No inglês, o significado literal de advérbios e preposições referemse às noções espaciais. Apesar de poucas línguas conterem PVs, algumas metáforas ocorrem em quase todas as línguas como por exemplo a noção de ‘alto e baixo’, a qual apresenta uma metáfora conceptual6 de quantidade ou poder/status. LAKOFF E JOHNSON (1980) argumentam que muitas das metáforas conceptuais se dão por experiências humanas básicas – experiências corporificadas, interações com o meio físico e cultural. A propósito, KÖVECSES (2005, p. 14 apud KOVÁCS, p.144) destaca que na visão cognitivista a metáfora é uma propriedade indispensável do pensamento e conceptualização humana, ou seja, a língua é metafórica e expressa alto nível de abstrações baseando-se no concreto e entidades físicas. Sendo assim, nosso sistema conceptual é metaforicamente estruturado e definido (LAKOFF, 1980; LAKOFF E JOHNSON, 1987; KÖVECSES, 2005). 3 Metodologia e análise Com o propósito de averiguar as extensões metafóricas que envolvem os PVs, suas propriedades metafóricas e como as metáforas ocorrem e/ ou se caracterizam, busca-se analisar alguns PVs através de esquemas imagéticos. Neste sentido, este estudo apresenta algumas construções contendo as partículas de sentido espacial UP e DOWN. Por conseguinte, busca-se averiguar as propriedades metafóricas dos PVs. Up e down, num sentido literal, descrevem movimentos em relação à uma posição mais elevada, já no sentido metafórico, por exemplo, referese ao crescimento/aumento de tamanhos, números ou força. A Teoria da Metáfora Conceptual, apresentada primeiramente por Lakoff e Johnson em Metaphors We Live By (1980) pressupõe, basicamente, que a metáfora não é um recurso simplesmente estilístico da linguagem, mas que o pensamento em si é metafórico por natureza (Evans, 2007, p.33-35). Sistematicamente inferimos padrões de um domínio conceptual para outro domínio conceptual, essa correspondência entre domínios é chamado de mapeamento metafórico (Lakoff e Johnson, 1980, p.246). 6 379 Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas Logo, tendo em vista a importância dos estudos de LAKOFF E JOHNSON (1980) quanto a análise das partículas envolvidas, faz-se necessário examiná-las para só após discutirmos sobre o fenômeno. 3.1 Análise de Lakoff e Johnson: Metáforas orientacionais Para os autores, orientações espaciais emergem do fato do corpo humano existir num meio físico. A partir disso, as metáforas orientacionais fornecem um conceito à orientação espacial. Neste sentido, faz-se alusão a como os conceitos metafóricos emergem da experiência física e cultural. Abaixo são demonstradas as metáforas conceptuais sugeridas pelos autores na obra Metaphors We Live By (p. 15-17), bem como sua base empírica - seja ela física ou social. Além disso, há a explanação de exemplos relacionados às metáforas, os quais apresentam PVs7. FELIZ É UP; TRISTE É DOWN – ‘This chocolate cheers me up’ Base física: Postura de desânimo acompanha tristeza e depressão, postura ereta acompanha estado emocional positivo. CONSCIENTE É UP; INCONSCIENTE É DOWN – ‘Wake up’ Base física: Humanos e a maioria dos outros mamíferos dormem deitados e ao acordarem levantam-se. SAÚDE E VIDA SÃO UP; DOENÇA E MORTE SÃO DOWN – ‘He came down with the flu’ Base física: Doenças sérias nos forçam a deitar-se fisicamente. Quando você está morto, você está fisicamente pra baixo. Alguns dos exemplos são propostos por Lakoff e Johnson (1980), outros são elaborados por mim. 7 380 Samanta Kélly Menocin Pierozan TER CONTROLE OU FORÇA É UP; ESTAR SUJEITO AO CONTROLE OR FORÇA É DOWN – ‘The illness is not going to keep him down’ Base física: O tamanho físico tipicamente correlaciona com força física e o vencedor num luta está geralmente no topo. MAIS É UP; MENOS É DOWN – ‘Buldings are going up all over the city’ Base física: Adicionar mais de uma substância ou objetos físicos a um contêiner ou pilha, o nível se eleva. EVENTOS FUTUROS PREVISÍVEIS SÃO UP - ‘What’s coming up this week?’ Base física: Normalmente olhamos na direção em que nos movemos (à frente, para o futuro). Quando um objeto aborda uma pessoa (ou viceversa) o objeto parece ser maior. Desde que a superfície seja percebida como fixa, o topo do objeto parece mover-se acima do campo de visão da pessoa. ALTO STATUS É UP; BAIXO STATUS É DOWN – ‘He’s putting up the price again’ Base física e social: Status é correlacionado com poder (social) e poder (físico) é UP. GOOD IS UP; BAD IS DOWN – ‘Things are looking up’ Base física para bem-estar pessoal: Felicidade, saúde, vida e controle – coisas que caracterizam o que é bom para uma pessoa – são todas UP. VIRTUDE É UP; DEPRAVAÇÃO É DOWN – ‘Be warm, or your relationship will break down’ Base física e social: BOM É UP para uma pessoa, juntamente com a metáfora SOCIEDADE É UMA PESSOA – logo, ser virtuoso é agir 381 Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas de acordo com os padrões da sociedade/pessoas que mantém o bem estar. VIRTUDE É UP porque ações virtuosas correlacionam com o bem estar social do ponto de vista da sociedade/pessoas. Desde que metáforas com base social são culturais, é o ponto de vista da sociedade/ pessoas que são considerados. 4 Discussão sobre a análise e considerações finais A partir da análise de LAKOFF E JOHNSON (idem) averiguouse que os conceitos acima envolvem uma metáfora, ou mais, numa configuração espacial, apresentando coerência orientacional no que tange outras metáforas. A coerência é proveniente dos valores culturais embutidos na sociedade. Além disso, verifica-se que as metáforas baseiam-se na experiência física e cultural que atribuem às suas extensões e facilitam a compreensão de conceitos; mesmo porque uma metáfora, considerada principal, pode prover outras e estender seu significado, diversificando ou não de uma cultura para outra. Por conseguinte, verifica-se que há um real envolvimento de esquemas imagéticos em relação aos PVs evidenciando que a experiência é corporificada e promovendo a interpretação dos mesmos por meio de projeções metafóricas que partem de um domínio ESPACIAL (concreto) para um mais abstrato. Por exemplo: MAIS É UP/MENONS É DOWN conta com a projeção de um domínio fonte, VERTICALIDADE, a um domínio alvo, QUANTIDADE. Neste sentido, de acordo com LAKOFF (1987, p.276), um domínio fonte só funciona como uma metáfora se puder ser compreendido independentemente dela; neste caso, VERTICALIDADE refere-se à estrutura esquemática de CIMA-BAIXO (UP-DOWN) vinculada a noção de gravidade. Além disso, faz-se possível compreender QUANTIDADE por meio da VERTICALIDADE devido à correlação entre ambos, motivada pelo funcionamento físico. Entretanto, vale salientar que apesar de haver 382 Samanta Kélly Menocin Pierozan diversas correlações estruturais consequentes da experiência corpórea, não são todas que motivam metáforas8. Nas palavras de LAKOFF (1980, p. 275), “esquemas imagéticos fornecem evidências importantes para conceitos abstratos que emergem de instâncias da experiência corpórea e projeções metafóricas de um domínio concreto para um abstrato”. Todavia, a língua em si é metafórica e expressa alto nível de abstração, baseando no concreto e entidades físicas, ou seja, na experiência corporificada, o que possibilita interpretar os PVs a partir da semântica envolvida. Referências FERRARI, Lilian. Introdução à Linguística Cognitiva. São Paulo: Editora Contexto, 2011. KOVÁCS, Éva. The Traditional Vs. Cognitive Approach to English Phrasal Verbs. [200-] Disponível em: < http://www.uni-miskolc. hu/~philos/2011_tom_XVI_1/141.pdf>. Acesso em: 16 de janeiro, 2014. KÖVECSES, Zoltán. A metafora. Gyakorlati bevezetés a kognitiv metaforaelméletbe. Budapest: Typotex, 2005, 14; 32-45. LAKOFF, George. Women, Fire, and Dangerous Things. Chicago: The University of Chicago Press, 1987 [1990]. ______; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1980 [2003]. Uma metáfora motivada refere-se a possibilidade de pareamento do domínio fonte para o alvo com base na experiência (LAKOFF, 1987, 178). 8 383 Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas LINDNER, Susan. A lexico-semantic analysis of verb-particle constructions with UP and OUT. 260p. Tese de Doutorado. Universidade da Califórnia, San Diego, 1981. RUDZKA-OSTYN, Brygida. Word power: Phrasal Verbs and Compounds. The Hague: Mouton de Gruyter, 2003, 2. SAEED, John. Semantics. 2.ed. Oxford:Blackwell, 2003. TYLER, Andrea; EVANS, Vyvyan. The Semantics of English Prepositions: Spatial scenes, meaning and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. VYVYAN, Evans; GREEN, Melanie. Cognitive Linguistics: an introduction. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd, 2006. 384 REVISTA DA ABRALIN – INFORMAÇÕES AOS AUTORES A Revista da ABRALIN publica trabalhos pertencentes aos seguintes gêneros: a) Artigos – Textos contendo análise, reflexão e conclusão sobre temas academicos ou profissionais; b) Resenhas – Textos contendo o registro e a crítica de obras, livros, teses, monografias, etc., publicadas recentemente; c) Retrospectivas – Textos contendo histórico analítico e crítico de teorias ou escolas de pensamento linguístico; d) Questões e problemas; e) Debates. Formatação - Pede-se que os autores dêem aos originais a serem avaliados uma formatação próxima da formatação final da revista. Para esse fim, eles poderão valer-se tanto das Normas para a preparação de originais, quanto do “boneco” montado pela equipe editorial. Acesse esses dois recursos neste mesmo site. Importante: ao submeter seu artigo, lembre-se que ele será processado por um profissional. Por essa razão, a revista não aceita arquivos em PDF. Submissão – A submissão de artigo à Revista da ABRALIN é feita através do Serviço Eletrônico de Revistas da Universidade Federal do Paraná www.ser.ufpr.br. Como etapa prévia à submissão propriamente dita de trabalhos, o SER exige que os autores se cadastrem no sistema, fornecendo informações básicas que serão utilizadas, essencialmente, para efeito de contato. As instruções que seguem procuram ajudar os autores a realizar a contento essas duas etapas. Para cadastrar-se, acesse o site www.ser.ufpr.br e siga o caminho Capa > Usuário > Cadastrar. O próprio sistema explica a você o que deve fazer a cada passo. Ao cadastrar-se como usuário, você define para você mesma um login e uma senha, que deverão ser lembrados. 385 Para submeter um artigo, siga os seguintes passos: 1. Entre no site do SER, www.ser.ufpr.br 2. Digite nos dois espaços no alto à direita o seu login e a sua senha./ O sistema manda você para a “Página do Usuário”. 3. Estando na Página do Usuário, clique à esquerda em AUTOR / O sistema manda a você uma tela intitulada “Submissões ativas”. 4. Estando em “Submissões ativas”, clique em CLIQUE AQUI PARA INICIAR OS CINCO PASSOS DO PROCESSO DE SUBMISSÃO”. 5. O sistema manda a você a tela PASSO 1 - INICIAR A SUBMISSÃO. Daí para frente, é só seguir as instruções. Avaliação – A avaliação dos trabalhos submetidos depende da aprovação por dois membros do Conselho Editorial (veja a composição do Conselho Editorial no site do SER). Publicação – A revista da Abralin foi publicada inicialmente em versão impressa (O ISSN dessa versão era 1678-1805) Desde 2011, a Revista da ABRALIN é uma somente publicação eletrônica (ISSN 2178-7603 ). Acesso aos trabalhos já publicados Em maio de 2013, começou a postagem da coleção da revista junto ao SER-UFPr. O link http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/abralin/ issue/archive dá acesso aos números já postados. A expectativa é tornar acessíveis através desse endereço toda a coleção já publicada, inclusive os números especiais (que reúnem trabalhos apresentados em congressos). Também serão disponibilizados os Boletins, que foram por muito tempo a única publicação da Associação Brasileira de Linguística. 386