REVISTA DA
ABRALIN
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA
R454
Revista da Abralin / Associação Brasileira de Linguística.
Vol. I, n. 1 (junho 2002) - . - São Carlos, SP: UFSCar, 2014.
Volume XIII, n.1 (jan./jun. 2014)
Semestral
ISSN 2178-7603
1. Linguística - Periódicos. 2. Gramática comparada e geral.
3. Palavra - Linguística. I. Universidade Federal de São Carlos.
II. Associação Brasileira de Linguística. III. Título.
CDD: 415
Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB 9/1548
REVISTA DA
ABRALIN
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA
ISSN 2178-7603
REVISTA DA ABRALIN
VOLUME XIII
NÚMERO 1
JAN./JUN. DE 2014
REVISTA DA
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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA
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NOTA DO EDITOR
É com muita alegria que disponibilizamos ao público leitor, sobretudo,
o interessado em questões, que dizem cientificamente a linguagem nos
seus mais diversos sistemas significantes, mais uma edição semestral
online da Revista da Associação Brasileira de Linguística – ABRALIN.
Essa Edição, a 2014/01, referente ao período de janeiro a junho
de 2014, traz catorze artigos de pesquisadores, ligados a diferentes
universidades brasileiras e estrangeira, que, tomando distintos objetos
linguageiros de pesquisa, analisando-os e/ou teorizando-os, se inscrevem
nos mais variados domínios e escolas das ciências da linguagem,
praticadas em solo brasílico e francês.
Pelo muito que fez pela linguística do/no Brasil, essa edição é justa e
carinhosamente dedicada ao Professor Doutor Dercir Pedro de Oliveira,
falecido em janeiro último em Mato Grosso do Sul. Além de ser um
pesquisador brilhante com inúmeros artigos e livros publicados e teses
e dissertações orientadas nos domínios da sociolinguística e da sintaxe,
Dercir foi Diretor do Campus da UFMS em Três Lagoas e também PróReitor de Pesquisa e Pós-Graduação na mesma instituição. A partida
do bom e velho Mestre Dercir deixou a voz de fazer nascimentos da
linguística brasileira afônica. Na sua casa sobre orvalhos, esse linguista
pantaneiro, que desde muito cedo viu que podia fazer peraltagens com as
teorias linguísticas continuará a ser o fazedor de amanhecer de sempre.
Gostaríamos de agradecer a todas as pessoas que de uma maneira
ou de outra e a seu modo contribuíram para a efetivação de mais essa
edição. Sem esse apoio a Revista não seria publicada.
Roberto Leiser Baronas (UFSCar)
SUMÁRIO
ARTIGOS
SEXO E LINGUAGEM: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS SABATINAS DOS
MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JOAQUIM BARBOSA
E ROSA WEBER.............................................. ................................................................... 13
Thais Aranda Barrozo - Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Vanderci de Andrade Aguilera - Universidade Estadual de Londrina (UEL)
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA ESCOLA: RESULTADOS DE UM PROJETO ......39
Joyce Elaine de Almeida Baronas - Universidade Estadual de Londrina (UEL)
SOBREASSEVERAÇÕES NA MÍDIA ONLINE: ARTICULAÇÃO DE
CONCEITOS EMERGENTES E ESTABILIZADOS ............................................... 63
André William Alves de Assis - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - POSLIN
Sonia Aparecida Lopes Benites - Universidade Estadual de Maringá (UEM)
GÊNEROS E GRAMÁTICA NO ARTIGO PRIMEIRO DA DECLARAÇÃO
UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS............................. .................................. 85
Simon Bouquet - Université Paris Quest
O QUE ORIGINA A VARIAÇÃO DA ALTERNÂNCIA CAUSATIVA?
UMA COMPARAÇÃO ENTRE O DÂW (FAMÍLIA NADAHUP) E O
PORTUGUÊS BRASILEIRO ....................................................................... .................119
Janayna Carvalho - Universidade de São Paulo (USP)
Jéssica C. Costa - Universidade de São Paulo (USP)
ANÁLISE SEMÂNTICA DO PREFIXO RE EM VERBOS DE PORTUGUÊS
BRASILEIRO............................................. .........................................................................155
Leitícia Lucinda Meirelles - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Márcia Cançado - Universidade Federeal de Minas Gerais (UFMG
ALFABETIZAÇÃO APÓS O ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990:
A QUESTÃO DO “Y” E DO “W”. ...............................................................................181
Celso Ferrarezi Júnior - Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL)
Cláudia Teles - Faculdade de Ciências da Administração e de Tecnologia de Rondônia (FATEC-RO)
Iara Maria Teles - Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
LINGUAGEM E PRÁTICAS IDENTITÁRIAS .........................................................203
Nádia Gadelha - Universidade Federal do Ceará (UFC- PG)
ATRIBUIÇÃO DE POSTURA EPISTÊMICA ÀS FRASES CONDICIONAIS
EM FUNÇÃO DE GÊNERO, IDADE E ESCOLARIDADE ............................. ..235
Gilberto Gomes - Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)
Priscila Mattos Monken - Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)
SUBSTITUIÇÃO DE SER POR HAVER NAS CONSTRUÇÕES EXISTENTES
DO PORTUGUÊS: UM ESTUDO DIACRÔNICO .................................................257
Elisângela Gonçalves - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
ILUSÃO GRAMATICAL E FALIBILIDADE SELETIVA NO
PROCESSAMENTO DE LACUNAS NÃO PREENCHIDAS EM
PORTUGUÊS BRASILEIRO .........................................................................................301
Marcus Maia - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Amanda Moura - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Fernando Lúcio de Oliveira - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DO JORNALISMO EM UM EDITORIAL
DA REVISTA VEJA: REFLEXÕES SOBRE AS PRÁTICAS DISCURSIVAS
MIDIÁTICAS ....................................................................................................................325
Vinícius Durval Dorne - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)-PG
Pedro Navarro - Universidade Estadual de Maringá (UEM)
DA LINGUAGEM DAS ROUPAS AO DISCURSO DA MODA ............................349
Humberto Pires da Paixão - Universidade Federal de Goiás (UFG)- PG
Kátia Menezes de Sousa - Universidade Federal de Goiás (UFG)
INTERPRETANDO PHRASAL VERBS A PARTIR DAS EXTENSÕES
METAFÓRICAS DAS PARTÍCULAS...........................................................................371
Samanta Kélly Menoncin Pierozan - Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
ARTIGOS
SEXO E LINGUAGEM: UMA ANÁLISE A PARTIR
DAS SABATINAS DOS MINISTROS DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL JOAQUIM BARBOSA E ROSA
WEBER
SEX AND LANGUAGE: AN ANALYSIS FROM THE
OFFICIAL INQUIRIES OF SUPREME COURT
MINISTERS JOAQUIM BARBOSA AND ROSA WEBER
Thais Aranda BARROZO
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Vanderci de Andrade AGUILERA
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
RESUMO
O trabalho analisa a variação linguística decorrente da variável sexo em indivíduos ocupantes
de cargos de Ministro do Supremo Tribunal Federal, hierarquia máxima na estrutura do
Poder Judiciário brasileiro. Tem por objeto o estudo da fala espontânea dos Ministros Joaquim
Benedito Barbosa Gomes e Rosa Maria Weber Candiota da Rosa por ocasião de suas
sabatinas pelo Senado Federal, como requisito à nomeação para os cargos de Ministro da
Suprema Corte. Com base em critérios e princípios da pesquisa sociolinguística quantitativa
Laboviana, foram identificadas marcas de fala dos sujeitos investigados que realçam traços
distintivos entre a linguagem masculina e a feminina.
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 13-38, jan./jun. 2014
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
ABSTRACT
This work analyzes the linguistic variation stemming from the variable sex in individuals
who occupy the position of ministers at the Justice Supreme Court, the highest position in
the Brazilian Judiciary Power. Its object of study is the spontaneous speech by Ministers
Joaquim Benedito Barbosa Gomes and Rosa Maria Weber Candiota da Rosa, during
their official inquiry by the Federal Senate as a requisite for the nomination to the position
of Ministers of the Supreme Court. Based on criteria and principles from the Labovian
quantitative sociolinguistic research, markers were identified in the subjects’ speech which
highlight distinctive features between male and female language.
PALAVRAS-CHAVE
Variação linguística. Variável sexo. Ministros do Supremo Tribunal Federal.
KEYWORDS
Linguistic variation. Variable sex. Ministers of the Justice Supreme Court.
Introdução
A pesquisa sobre a linguagem, voltada para a influência da variável
sexo, tem interessado dialetólogos e sociolinguistas, por ser um dos
fatores socioculturais, ao lado da escolaridade e da idade do falante, que
pode levar à variação e à mudança linguísticas.
Os estudos sociolinguísticos da variável sexo ganham relevo com
as pesquisas realizadas por Labov e, não raras vezes, partem da análise
comparativa dos resultados por ele obtidos na investigação de marcas
características da fala de mulheres, distinguindo-as entre aquelas que
vivem no campo e as que vivem nas cidades.
O presente trabalho tem por foco a análise da linguagem de falantes
que ocupam cargos de Ministro de Estado e que compõem a alta cúpula
do Poder Judiciário brasileiro, e se fundamenta em resultados obtidos
por meio de pesquisa sociolinguística na observação da fala de homens
e mulheres que ocupam o mesmo espaço urbano e sociocultural.
14
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
Pretende-se, pois, analisar essas principais distinções a partir das
transcrições das sabatinas dos Ministros Joaquim Barbosa e Rosa Weber
pelo Senado Federal, como requisito às suas respectivas nomeações ao
cargo de Ministros do Supremo Tribunal Federal.
A partir da constatação de uso da norma oral culta, são identificadas
as principais marcas de fala que distinguem as linguagens masculina
e feminina, identificando os fatores sociais e o ambiente linguístico
condicionantes.
A metodologia variacionista levou em conta, na análise dos
resultados, apenas a variável sexo, demonstrando que as marcas de fala
se fazem presentes mesmo para os ocupantes de cargos na alta cúpula do
Poder Judiciário, a despeito da equivalência de padrão social, econômico,
educacional e cultural dos informantes investigados.
1 Linguagem feminina e masculina: principais traços
distintivos
A partir da observação de que as diferenças linguísticas entre
os sexos existem nas mais variadas línguas do mundo, estudiosos da
dialetologia há algum tempo ocupam-se da análise das divergências entre
as falas feminina e masculina, estudos esses que ganharam muito em
sistematização e evolução metodológica na segunda metade do século
XX com o surgimento da sociolinguística, definida “como el estudio del
linguaje en su contexto social” (LOZANO DOMINGO, 2005, p.76).
O surgimento da sociolinguística é apontado, assim, como fator
de relevância para que os dialetólogos passassem a dar maior atenção
às mulheres enquanto falantes dialetais. A partir das investigações de
William Labov na década de sessenta, a análise da variável sexo torna-se
imprescindível nas pesquisas sociolinguísticas, reveladoras de resultados
confiáveis sobre os principais traços distintivos entre as falas feminina e
masculina (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 52).
15
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
Segundo Malcom Coulthard (1991, p. 8), tal qual se observa quanto
à variação dialetal regional, as diferenças linguísticas observadas nas
falas do homem e da mulher permitem afirmar a existência de um
dialeto próprio do feminino e outro do masculino. E, considerando essa
estreita relação entre linguagem e sexo, o fenômeno linguístico pode
ser observado por diferentes vieses, desde a variação fonética, lexical,
morfológica, sintática e, até mesmo, pelo modo de interação social.
Na sequência, os principais traços distintivos das linguagens feminina
e masculina.
1.1 Linguagem de prestígio: autocorreção, ultracorreção e
insegurança linguística
Os principais resultados obtidos a partir da observação da fala de
mulheres que viviam no espaço urbano apontaram pelo uso de linguagem
prestigiosa (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 140) pela ocorrência
de ultracorreção, autocorreção e insegurança linguística (GARCÍA
MOUTON, 2000, p. 52).
Segundo Labov (1972, p. 123), a hipercorreção (ultracorreção) é
o fenômeno decorrente de uma pressão social verticalizada de cima
para baixo (social pressures from above), que se revela como um processo
de correção social aplicada a formas individuais de linguagem. Na
hipercorreção os falantes de classes sociais menos favorecidas buscam
alcançar maior status social utilizando-se de expressões que acreditam
corretas ou formalmente mais apropriadas, porém utilizando a correção
de forma exagerada (LABOV, 1972, p. 126).
O fenômeno é facilmente observável na sociedade brasileira. Como
dito por Possenti (2012):
Os exemplos mais claros, no campo das línguas, são
do tipo dizer “telha” por “teia” (de aranha), já que se
descobriu que a “teia” que cobre a casa é “telha” e não
“teia”. É, portanto, um tipo de generalização, que consiste
16
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
em aplicar mais ou menos cegamente a mesma regra a
todos os contextos iguais ou semelhantes: se uma “pia” é
“pilha” e se uma “fia” e “filha”, então todas devem ser. É
por isso que se acaba falando, querendo acertar, da “pilha
branca” do banheiro. Um dos melhores casos eu ouvi da
boca de um pedreiro, que sugeriu colocar “vitror” num
certo lugar da casa. O raciocínio dele é óbvio: se “dotô”
é “do(u)tor”, então “vitrô” é “vitror”.
A autocorreção, de sua vez, ocorre quando o falante procede à
correção de sua própria fala ao perceber que esta foi mal utilizada, ou seja,
quando constata que sua linguagem falada se distanciou da linguagem
padrão normativa e, espontaneamente, procede à sua imediata correção.
A insegurança linguística, fruto do papel social de subordinação
de longa data experimentado pela mulher, a faz buscar prestígio e
reconhecimento no grupo em que está inserida por meio de uso de
linguajar prestigioso em detrimento de estilos estigmatizados, gerando
uma variante linguística muito característica. Mulheres pertencentes a
classes socioeconômicas menos favorecidas tendem, normalmente,
a copiar modelos de fala das classes econômicas mais privilegiadas,
orientadas por um sentimento de integração e pertencimento a este
grupo social.
Para García Mouton (2000, p. 53), o uso da linguagem de prestígio
confere à mulher um aval social quanto ao seu comportamento e, por
vezes, até mesmo a eleva a um melhor status ao copiar um estilo de fala
(e também de moda, de roupa, de cabelo, de postura etc.) de um nível
social superior ao seu, pelo qual busca ser socialmente identificada.
Em contrapartida, os resultados obtidos a partir de pesquisas
sociolinguísticas revelam uma maior segurança linguística do homem,
fruto da sua posição social privilegiada, que o liberta de pressões sociais
impositivas de um “falar bem”. O valor social do uso da linguagem de
prestígio não é para o homem o mesmo que para mulher.
17
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
Em verdade, para o homem, o uso da linguagem não normativa, em
muitas situações, acaba recebendo um reforço social positivo, eis que
socialmente interpretada como um traço de sua masculinidade (GARCÍA
MOUTON, 2000, p. 52). Como dito por Lozano Domingo (2005, p. 42),
homens não privilegiam o uso de uma linguagem prestigiosa, pois que
“La pronunciación no estándar tiene connotaciones de masculinidade
que hacen a los varones inclinarse por elas”.
Observa-se, assim, o homem, de modo geral, menos preocupado
com o uso de uma linguagem prestigiosa e até mesmo mais autorizado
socialmente ao uso de um linguajar rude, utilizando, com maior
frequência, gírias e palavrões.
Interessante destacar, quanto a esse tópico, que estudos realizados
com crianças de 6 anos de idade revelaram que também o linguajar
infantil reproduz essa dicotomia entre feminino/prestígio e masculino/
estigma (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 41).
Assim, não restam dúvidas de que as investigações sociolinguísticas
apresentam resultados confiáveis que permitem afirmar não só que
mulheres e homens usam diferentes linguagens no seu processo
comunicacional, mas também que mulheres falam melhor que homens,
aqui dito melhor em razão do valor social atribuído à aproximação da fala
feminina à linguagem normativa padrão.
1.2 Estereótipos, instruções de uso e marcas de fala
Os estudos sociolinguísticos evidenciam, também, que o
comportamento linguístico feminino e masculino guarda estreita relação
com crenças e atitudes relacionadas às tradições socioculturais do grupo
em que inseridos. Como exemplo, tem-se o acima exposto quanto ao uso
de uma linguagem de prestígio, de muito maior valor social à mulher do
que ao homem, criando uma verdadeira identidade aos sexos, reforçada
social e culturalmente.
18
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
Como já dito, o uso pelo homem de um linguajar rude, agressivo e
não muito comprometido com a linguagem padrão normativa encontra
respaldo numa crença social de que tais características revelam traços
de masculinidade ao falante, enquanto que se reconhece traço de
feminilidade ao uso de uma linguagem mais delicada, próxima daquela
utilizada por falantes pertencentes a altas classes sociais.
Ao par disso tudo, observam-se muitos estereótipos - positivos e
negativos - relacionados ao comportamento linguístico de homens e
mulheres, cumprindo, antes de prosseguir no estudo, fazer a necessária
distinção entre estereótipos e marcas de fala. Como bem explicado por
García Mouton (2000, p. 59), os primeiros nada mais são do que supostos
traços de fala, enquanto que os segundos os traços reais, devidamente
comprovados, da fala feminina ou masculina. Vejamos uns e outros.
1.2.1 Estereótipos
Em diversas sociedades observa-se que, com maior frequência, os
estereótipos negativos relacionam-se à linguagem feminina, sendo um
dos mais comuns aquele, reflexo de uma consciência coletiva, fundado
na ideia de que a mulher fala demais, do qual derivam as depreciações
atribuídas a esse “mau comportamento” feminino. Em reforço, muitos
se apegam até mesmo a ensinamentos bíblicos para enaltecer a sabedoria
da mulher que usa de sua fala de maneira comedida1.
Para os antropólogos, tais estereótipos servem para proteger uma
ordem social patriarcal estabelecida, impedindo que a mulher se utilize
de sua fala para sair do lugar de subjugação em que socialmente foi
colocada. Por essa razão os contos, os provérbios e as tradições religiosas
elogiam a sabedoria da mulher discreta e calada (GARCÍA MOUTON,
2000, p. 61).
Em Provérbios 31:26, a mulher virtuosa é descrita como aquela que “Abre a sua boca com sabedoria,
e a lei da beneficência está na sua língua”. Disponível em http://www.bibliaonline.com.br/acf/
pv/31, acesso em 01/07/2013.
1
19
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
Veja, como exemplo, o texto atual divulgado na internet sob o título
A mulher segundo o coração de Deus, de autoria do Bispo Edir Macedo
(2013), que revela como a sociedade é ainda machista e encontra eco
para enaltecer a mulher que contém a sua fala:
“A mulher sábia se mantém calada. Não é você
que vai dirigir a igreja. Ela é conduzida pelo próprio
Deus. Se a mulher é sábia, temente a Deus, sabe se
posicionar no seu lugar. Ela cuida da casa, não o marido.
Ela educa seus filhos; lhes ensina o que devem fazer; tem
autoridade sobre eles, dentro de casa. Na igreja, todavia,
a autoridade pertence ao marido, que está no altar, tendo
mais sensibilidade para ouvir a voz de Deus.
A esposa de bispo, ou do pastor, se mantém
numa posição bem discreta, tal qual mulher sábia
e sensata, falando o necessário. Vejam por exemplo
a minha esposa Ester. Ela nunca se envolveu na igreja.
Não a vemos pregando ou tomando decisões.
É preciso tomar muito cuidado com a língua. A
Bíblia diz, no livro de Tiago, que todos tropeçamos em
muitas coisas; se alguém não tropeça no falar, é perfeito
varão, capaz de refrear também todo o seu corpo. Com
raras exceções, a mulher fala demais. Muitas não
ganham seus maridos para Jesus por causa dessa
insensatez. São egoístas, porque não querem ouvir;
só falar. Graças a Deus a minha esposa fala pouco.
(destacamos)
Esses estereótipos, sem dúvida, influenciam nas crenças e posturas
linguísticas, sobressaindo a imagem negativa que a sociedade guarda da
mulher que fala, que manifesta suas opiniões, em oposição à valorização
do homem que expressa suas ideias e que se impõe socialmente por sua
fala.
20
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
Ressalta-se, contudo, que também em sentido inverso o estereótipo
pode ser observado quando se aponta que homens são frios, pouco
comunicativos ou mesmo inexpressivos, em contraposição às mulheres
que, com maior facilidade, expressam suas emoções. Tais estereótipos,
contudo, não os desqualificam, já que esses traços linguísticos são
tomados como marca de sua virilidade, francamente almejada, aprovada
e apoiada nos contextos sociais.
É bem verdade que mulheres são mais verbais que homens e que
meninas desenvolvem sua habilidade comunicacional mais precocemente
que meninos (COULTHARD, 19991, p. 46). Muito provavelmente,
por essa razão, é que a imagem da mulher “faladeira” é reproduzida
socialmente ao longo dos tempos, até mesmo pelas próprias mulheres.
Nada obstante, investigações sociolinguísticas realizadas nos Estados
Unidos, na Inglaterra, e até mesmo no Brasil, revelam que em várias
situações homens falam muito mais que mulheres, e por mais tempo
(COULTHARD, 1991, p. 47), o que autoriza concluir que o senso
comum de que homens são calados e mulheres faladeiras constitui mero
estereótipo, que se fará muito mais presente quão mais machista seja a
sociedade de que façam parte os falantes, não podendo ser apontada
como marca de fala dos gêneros.
1.2.2 Instruções de Uso
Como visto, a língua é mais que mero instrumento de comunicação e
de interação: é instrumento de controle social. Desse modo, quanto mais
machista for uma sociedade, mais visíveis serão as distinções observadas
no processo educacional de homens e mulheres, no intuito de moldar
socialmente o seu comportamento verbal, reforçando a estrutura de
poder masculino e subordinação feminina.
Quanto às mulheres, as instruções de uso relacionam-se diretamente
com os estereótipos acima tratados, conduzindo a uma subjugação social
da mulher por meio da linguagem. As instruções rumam no sentido de
21
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
que a mulher fale pouco, fale bem, tenha uma fala suave, utilize-se mais
de sugestões do que de ordens, não grite, não interrompa, não pergunte
diretamente, dentre várias outras (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 63).
Portanto, como regra geral, o que se observa é uma expectativa
da sociedade de que a mulher, em suas relações sociais e pessoais,
seja expressiva e dócil ao falar. Se assim não proceder, ainda que não
haja sanção social ostensiva, facilmente surgirá um estranhamento do
grupo social quanto a essa postura diferenciada (quando mulheres usam
expressões grosseiras, palavrões etc.).
De sua vez, as instruções de uso dadas ao homem são diametralmente
opostas àquelas dadas às mulheres, reforçando-se socialmente
comportamentos como o de falar de maneira forte, firme e direta, de
dar ordens, de ter a primeira e a última palavra, chegando-se mesmo
a exigência social de que “fale como homem” (GARCÍA MOUTON,
2000, p. 64).
Convém ressaltar, ainda, que, por essa razão, é consensual que
mulheres são mais polidas que homens ao falar. Esta ideia, contudo, foi
confirmada apenas em parte por pesquisa sociolinguística narrada por
Coulthard (1991, p. 56-57), realizada na Bélgica e no Brasil, que revelou
que tanto homens como mulheres são mais polidos ao falar quando se
dirigem a homens, e menos quando se dirigem a mulheres, constandose, enfim, que apenas em interação mista é que mulheres são, em geral,
mais polidas que homens.
1.2.3 Marcas de Fala
As principais marcas de fala que identificam o gênero vão desde as
diferentes entonações utilizadas pelo homem e pela mulher em seu falar,
passando pelos diversos estilos interativos, bem como pela variação de
tópicos e especialização lexical.
Quanto ao tom da fala, homens e mulheres são culturalmente
influenciados a utilizar uma entonação que os distinga (homens/grave;
22
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
mulheres/agudo), na busca de maior aceitação do grupo social (GARCÍA
MOUTON, 2000, p. 66).
A linguagem feminina é igualmente caracterizada por um maior
número de variações de entonação. Elas entremeiam suas conversas com
sorrisos e utilizam gestual que transmita receptividade a seu interlocutor
(GARCÍA MOUTON, 2000, p. 74). Isso se dá porque, como regra geral,
a mulher comunica-se com vistas a estabelecer ou manter suas relações
sociais, estreitando os laços com seu interlocutor. Daí dizer-se que a
linguagem feminina é cooperativa (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 177).
O homem, de sua vez, em seu processo comunicativo, busca uma
troca de informações com seu interlocutor e tende a firmar suas opiniões
pessoais sobre determinado tema, no intuito de que estas prevaleçam
sobre aquelas de seu interlocutor. Sua linguagem caracteriza-se, assim,
como competitiva (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 177).
Mulheres, ao contrário dos homens, nessa tentativa de criar
vínculos com o interlocutor permeiam sua fala de respostas mínimas
(HIRSCHMANN apud LOZANO DOMINGO, 2005, p. 178) de apoio
(sim, hãhã, humm), que demonstram sua concordância com a fala do
interlocutor, utilizando-se até de gestuais com essa finalidade, tais como
balançar a cabeça afirmativamente, firmar o olhar naquele que fala etc.
Tais posturas são bem menos visíveis em falantes do sexo masculino.
Ainda no que concerne aos diferentes estilos de interação verbal,
é possível observar que a linguagem feminina comporta verdadeiras
estratégias para cativar seu interlocutor, como, por exemplo, ao optar
pelo uso de expressões que podem levar a supor uma insegurança na
linguagem por preferir o uso de sugestões, em vez de ordens e comandos,
com a adoção de uma fala indireta, exatamente ao contrário do que
fazem os homens (GARCÍA MOUTON, 2000, p. 74-75).
Incluem-se nesse contexto as expressões pragmáticas - tais como
sabe, bem, acredito que, uma espécie de, quero dizer -, utilizadas com frequência
por mulheres, adotando uma estratégia de fala menos incisiva em relação
à expressão de suas opiniões pessoais, deixando em aberto mais opções
23
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
de interpretação e interação a seu interlocutor, postura esta também
socialmente reconhecida como mais polida (LOZANO DOMINGO,
2005, p. 181).
Essa postura cooperativa, menos impositiva, leva as mulheres, com
bem maior frequência que homens, a fazerem citações ou referências
a opiniões de outras pessoas, no intuito de mostrar a seu interlocutor
que já obtivera o aval de um terceiro quanto ao tópico objeto de sua
fala, como verdadeira estratégia para evitar a rejeição de sua ideia pelo
interlocutor, ou, em último caso, de não sofrer uma rejeição pessoal se
a sua ideia não for aceita pelo interlocutor, haja vista tê-la atribuído a
outrem (COULTHARD, 1991, p. 49).
As mulheres também utilizam mais os eufemismos (sobremaneira
quando precisam contornar alguns temas “tabus”), um linguajar mais
infantilizado, o diminutivo, os superlativos, os de vocativos carinhosos
(querido, meu amor), até mesmo porque a sociedade lhe valora positivamente
uma melhor expressão de suas emoções e da afetividade (LOZANO
DOMINGO, 2005, p. 70-73).
Outra observação em relação ao comportamento verbal feminino
é que, nesse papel convergente, a mulher formula perguntas no intuito
de envolver o seu interlocutor no diálogo (COULTHARD, 1991,
p. 49), postura essa que, contudo, não é sempre bem recebida e/ou
compreendida por homens, que se sentem invadidos e incomodados
com essa suposta intromissão (LOZANO DOMINGO, 2005, p. 180).
Destaque-se, ainda, que, contrariando os estereótipos negativos
quanto à linguagem feminina, as pesquisas revelam que homens, em
interação mista, respeitam muito menos os turnos de fala do que as
mulheres, procedendo a recorrentes interrupções e/ou sobreposições
na fala feminina, o que representa uma violação pelo homem do direito
de falar da mulher (COULTHARD, 1991, p. 52). Mulheres, como já
apontado, quando intervêm na fala de seu interlocutor, fazem-no com
o intuito de completar seu discurso, numa postura cooperativa, mas não
com o intuito de interrompê-lo ou de desrespeitar o seu direito de fala
24
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
(GARCÍA MOUTON, 2000, p. 76-77).
Quanto à variação de tópicos e especialização do léxico, ambas relacionamse à divergência de campos de interesses entre homens e mulheres.
Como assinalado por Jenny Coates (apud COULTHARD, 1991, p. 53),
“os homens falam de esportes, política, carros e mulheres, enquanto
as mulheres falam de roupas, comida, casa, crianças e homens”.
Consequentemente, considerando que homens e mulheres, regra geral,
não possuem os mesmos campos de interesse, não falam sobre os
mesmos temas, produzindo, assim, diferentes marcas em seus léxicos2.
E não só isso. Em interação mista, alguns tópicos femininos chegam
a ser evitados, e são os homens que acabam definindo os tópicos das
conversas e dominando a conversa, utilizando muito mais o tempo de
fala (COULTHARD, 1991, p. 53-54). Ou seja, num grupo de homens
e mulheres, é bem mais comum e provável que a conversa tenha por
objeto assuntos relacionados a esporte, política e carros, e não roupas,
comida, casa e crianças. Coulthard (1991, p. 55) chega mesmo a apontar
especial característica da sociedade brasileira que, em ocasiões públicas,
homens e mulheres frequentemente segregam-se, colocando em
questão se essa divisão se dá por diferença de interesse nos tópicos de
conversação (e, assim, por consentimento mútuo), ou para permitir que
homens conversem apenas sobre os tópicos de seu interesse, excluindo
as mulheres de sua roda de conversas.
O que se revela, conforme apontado por García Mouton (2000, p.
78), é que quem tem o poder faz uso tranquilo da palavra, com a calma
e tempo necessários para expor suas ideias, enquanto que os que não
o tem não só têm pouco tempo para expressá-las, como tentam usar o
pouco tempo que têm para nele tentar transmitir o máximo possível de
informações a seu interlocutor.
2
Como exemplo é possível citar que mulheres incluem em sua fala termos referentes aos
diferentes tons da mesma cor (rosa, rosa bebê, rosa choque, rosa chiclete, rosa antigo, nude etc.),
e a facilidade do homem de falar com precisão sobre os diferentes dribles de futebol (drible
tradicional, drible de auto passe, roleta, bicicleta, chicote, croquete etc.).
25
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
2 Metodologia
As hipóteses preliminares desse trabalho foram levantadas a partir da
análise das sabatinas realizadas pelo Senado Federal quando da indicação
do então Procurador da República, Joaquim Benedito Barbosa Gomes,
e da Ministra do Tribunal Superior do Trabalho, Rosa Maria Weber
Candiota da Rosa, ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal,
órgão máximo na estrutura do Poder Judiciário nacional.
A escolha dos Ministros justifica-se pelo escopo de analisar a variável
sexo na fala de Ministros ocupantes da alta cúpula do Poder Judiciário.
Destaque-se ainda, que ambos os informantes representam minorias
naquela Corte Suprema. Ele foi o primeiro negro indicado ao cargo de
Ministro do STF, indicação esta feita pelo Presidente Luiz Inácio Lula
da Silva. Ela, a única mulher até então indicada pela Presidente Dilma
Roussef ao cargo3. Esse fato é, todavia, ora aqui narrado apenas a título
de curiosidade, já que não levado em conta na análise de dados.
As sabatinas foram realizadas em duas partes: a) a primeira,
consistente na exposição pelos informantes de sua apresentação ao
Senado Federal, tendo-lhes sido concedida a palavra para uso livre
por 20 minutos, prorrogáveis por mais 10; e b) a segunda, em que os
Ministros responderam livremente aos questionamentos formulados
pelos Senadores Federais.
Considerando que, na primeira etapa da sabatina, os informantes
puderam tecer suas considerações a partir de notas escritas previamente
elaboradas, uma melhor análise da fala espontânea dos informantes é
observada na segunda etapa das sabatinas (apresentação de respostas
livres às questões formuladas pelos Senadores Federais), razão pela qual
a presente pesquisa teve seu corpus constituído pela análise dessa segunda
3
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao longo de seus dois mandatos (2003-2010) indicou
e nomeou oito ministros ao Supremo Tribunal Federal. A Presidente Dilma Roussef, com
mandato iniciado em 2011, nomeou, até o mês de junho de 2013, quatro ministros ao mesmo
Tribunal. Esses dados estão disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/ministro/
ministro.asp?periodo=stf&tipo=quadro. Acesso em 10 de junho de 2013.
26
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
parte das transcrições das sabatinas dos informantes previamente
selecionados.
As transcrições das sabatinas encontravam-se disponíveis na internet,
tendo sido a dele disponibilizada na página do Senador Paulo Paim4 e a
dela no site Conjur – Consultor Jurídico5. O corpus referente à entrevista
do informante homem partiu de uma análise de 7.196 palavras, contra
14.802 palavras contidas no corpus da entrevista da informante mulher.
Convém ressaltar, no entanto, que a sabatina do Ministro Joaquim
Barbosa foi realizada em 25 de maio de 2003, com 03h32min de duração,
com início próximo das 10h30min e encerrada às 14h02min. A da
Ministra Rosa Weber, de sua vez, teve duração de 6h21min, iniciando-se
às 09h39min e finalizando às 16h10min do dia 06 de dezembro de 2011.
Ambos os informantes, à época de suas sabatinas, já eram ocupantes
de cargos públicos da carreira jurídica (ele, Procurador da República; ela,
Ministra do Superior Tribunal de Justiça) e, ainda, detentores de notável
saber jurídico nos termos da exigência constitucional para alçamento
ao cargo de Ministros do Supremo Tribunal Federal6, sendo possível
afirmar uma equivalência entre os informantes quanto a seu grau de
instrução, não se atribuindo, assim, a esse fator as variantes linguísticas
observadas.
Quando da coleta de dados, ele contava 49 anos e ela 63. Logo, a
partir de dados do IBGE, o informante homem estava na faixa entre 4549 anos (adulto, portanto), e a informante mulher na faixa entre 60-64
anos (início da terceira idade). A despeito desse fato, a variável idade não
foi analisada no presente trabalho, que teve por foco apenas a variável
sexo.
Disponível em http://www.senadorpaim.com.br/uploads/downloads/arquivos/9a3b
748ac4a8748f47c6f645dc5d710d.pdf.
5
Disponível em http://www.conjur.com.br/2011-dez-08/leia-transcricao-completasabatina-ministra-rosa-maria-weber.
4
6
CF/88. Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre
cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber
jurídico e reputação ilibada (destaques não constantes do texto original).
27
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
Acresça-se, ainda, que as sabatinas foram realizadas por Senadores
da República de ambos os sexos e, ainda que os questionamentos
tenham sido majoritariamente apresentados por investigadores homens,
considerou-se na análise de dados coletados que em ambas as entrevistas
houve interação mista.
A análise quantitativa foi feita com a utilização do programa Lexico 3,
da Université de la Sorbonne Nouvelle - Paris 3, em versão disponibilizada
gratuitamente para download na internet7, com seleção dos fatores
relacionados às principais distinções de marcas de fala que caracterizam
a variação linguística em razão do sexo do falante, procedendo-se, em
sequência, à análise comparativa entre os fatores observados.
3 Análise de dados
Antes de adentrar em qualquer discussão quanto aos dados
levantados, convém destacar que tamanha diferença numérica quanto
aos termos analisados nos corpora investigados não é elemento suficiente
para qualquer tentativa de atribuir validade ao estereótipo de que
mulheres falam demais, ou que falam mais que homens. Afinal, como
demonstrado no item relativo à metodologia, a sabatina da Ministra
Rosa Weber durou praticamente o dobro do tempo daquela do Ministro
Joaquim Barbosa, justificando, assim, a diferença quanto ao número de
palavras nas falas de um e outro.
Ressalve-se, também, que, em razão da análise ter partido das
transcrições das sabatinas disponibilizadas em texto na internet, não foi
possível qualquer observação quanto a eventuais diferenças de entonação
e/ou gestuais pelos informantes ao longo das entrevistas.
Iniciando a discussão dos resultados a partir da observação do uso
de linguagem prestigiosa pelos informantes, a pesquisa revelou que
ambos os informantes utilizaram em suas sabatinas a linguagem culta,
7
Disponível em http://www.tal.univ-paris3.fr/lexico/.
28
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
muito provavelmente por sua posição social8, nível educacional/cultural
elevados e pela formalidade de que se revestia o evento, requisito a suas
nomeações aos cargos de Ministros do STF.
Nesse sentido, convém destacar o uso por ambos os informantes do
pronome de tratamento Excelência (ora no singular, ora no plural) para
se dirigirem aos Senadores da República. A despeito do uso frequente
pelos informantes, observou-se que a informante mulher socorreu-se
mais vezes ao uso do pronome em questão, conforme se vê do quadro
abaixo, o que revela que, também, a adoção por ela de uma postura mais
formal do que a dele ele em interação mista:
TABELA 1: Uso do pronome de tratamento Excelência pelo falante.
Excelência
Excelências
Total
Joaquim Barbosa
Rosa Weber
22
4
58
26
26
84
Essa conclusão é, ainda, corroborada, pelo fato de que a informante
mulher também utilizou com mais frequência que o informante homem
algumas expressões de polidez em suas manifestações.
O quadro a seguir representa o uso pelos informantes dos termos
agradeço, por favor, obrigado e obrigada, perdoe e perdão, ao longo das sabatinas:
Os cargos ocupados pelos informantes compõem a alta cúpula do Poder Judiciário. Ele,
inclusive, foi nomeado, em 2012, ao cargo de Presidente do Supremo Tribunal Federal,
autoridade máxima na estrutura do Judiciário, em equivalência de hierarquia com o Presidente
da República, autoridade máxima do Executivo, considerando a divisão tripartite do poder no
Estado brasileiro.
8
29
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
TABELA 2: Expressões denotadoras de polidez na fala.
Agradeço
Por favor
Obrigada
Obrigado
Perdoe(m)
Perdão
Escusas
Total
Joaquim Barbosa
Rosa Weber
1
0
0
2
0
0
1
4
16
3
6
1
4
4
1
35
O uso das expressões na forma acima não só espelham as instruções
de uso socialmente recebidas por mulheres para que sejam mais polidas
e delicadas em seu falar, como trazem à tona a insegurança linguística
reveladora de submissão social observada na sua reiterada postura de
agradecimento pela oportunidade de fala, ou até mesmo de desculpas
ao expressar seus sentimentos ou ao não se sentir capaz de atender à
expectativa de seu interlocutor quanto à expressão de suas opiniões9.
O informante homem, em contraposição, revelou-se de forma mais
assertiva em seus questionamentos públicos, e muito menos preocupado
em se desculpar perante seus interlocutores ou mesmo em agradecer
pela oportunidade de ser sabatinado pelos Senadores da República.
Observou-se, também, no que toca a seus diferentes estilos
interativos, que a informante mulher utilizou-se de uma linguagem mais
cooperativa, convergente, em oposição à linguagem competitiva do
informante homem.
Veja-se, por exemplo, que a informante mulher socorreu-se, por
várias vezes, ao uso de citações ou referências em sua fala. O fator
considerado de destaque na pesquisa, nesse aspecto, foi a constatação
9
O contexto do uso de expressões de desculpas foram os seguintes: “perdoem-me, gosto de poesia”;
“perdoem-me, mas realmente não teria agora condições de emitir cum muita tranquilidade uma opinião mais
assertiva”; “perdoe-me Senador se eu não consegui atender todos os questionamentos”; “perdoe Senador, ah, eu
não estou encontrando aqui”.
30
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
de que a informante mulher com muito maior frequência fundamentou
suas falas em textos de lei ou da própria Constituição Federal, invocando
os artigos da norma jurídica com vistas a fundamentar as opiniões
expressadas perante os Senadores da República.
TABELA 3: Uso de referências a normas jurídicas.
Artigo
Artigos
Constituição
Lei
Total
Joaquim Barbosa
2
1
8
11
22
Rosa Weber
37
2
63
43
143
Essa postura da informante mulher justifica-se, muito provavelmente,
no intuito de demonstrar a seus interlocutores que as ideias e opiniões
por ela expressadas não eram infundadas, haja vista que se baseavam
em normas jurídicas, sobremaneira na Constituição Federal, norma de
hierarquia máxima na estrutura legislativa brasileira, pelo que mereciam
ser referendadas por aqueles que a sabatinavam.
Observou-se, ainda, que os dois informantes investigados utilizaram
em suas respostas a estratégia de fala consistente na formulação de
perguntas, no intuito de envolver o seu interlocutor no diálogo, conforme
demonstrado a seguir:
TABELA 4: Uso de perguntas como estratégia de interação.
Perguntas entremeadas às respostas
Joaquim Barbosa
Rosa Weber
17
37
Nesse aspecto, muito embora os resultados sejam superiores para
a informante mulher, a diferença numérica não parece significativa o
suficiente para que se possa atribuir esse traço como distintivo de
31
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
marca de fala em razão do gênero, tendo em vista que a sabatina da
informante mulher durou o dobro do tempo que aquela do informante
homem, tendo os fatores sido identificados nos corpora guardando,
aproximadamente, essa mesma proporção.
No entanto, no que se refere ao uso de respostas mínimas de apoio,
com o escopo de estreitar vínculos comunicacionais com o interlocutor,
essas, ainda que em pequeno número, foram utilizadas pela informante
mulher (isso...; exatamente), e em momento algum utilizadas pelo
informante homem, conforme retratado na tabela abaixo:
TABELA 5: Uso de respostas mínimas de apoio.
Isso
Exatamente
Total
Joaquim Barbosa
0
0
Rosa Weber
0
3
2
1
Os turnos de fala não puderam ser objeto de análise no presente
estudo, posto que o procedimento adotado nas sabatinas impediu que
essas figuras se fizessem presentes, já que os entrevistadores faziam seus
questionamentos em bloco, dando-se a palavra aos investigados após,
para que apresentassem suas respostas.
Muito embora a postura dos entrevistadores não tenha sido objeto
do presente trabalho, uma especial circunstância merece ser destacada
quanto à interação entre os entrevistadores e os sabatinados, que,
inclusive, justifica o fato de a sabatina da informante mulher durasse o
dobro do tempo daquela do investigado homem.
O informante homem foi sabatinado por 15 Senadores da
República10 (uma mulher e 14 homens). Desse total, apenas nove
Senador Demóstenes Torres, Senador Pedro Simon, Senador Antônio Carlos
Magalhães, Senador Eduardo Suplicy, Senador Tião Viana, Senadora Serys Slhessarenko,
Senador Rodolpho Tourinho, Senador Juvêncio da Fonseca, Senador Sérgio Cabral,
Senador Hélio Costa, Senador Antônio Carlos Valadares, Senador João Capiberibe,
Senador Paulo Paim, Senador Romero Jucá e Senador Renan Calheiros.
10
32
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
Senadores efetivamente dirigiram perguntas ao sabatinado (aí incluída
a entrevistadora mulher), e os demais se limitaram a tecer elogios e
parabenizações ao sabatinado pela indicação ao cargo. Ao final da
sabatina, a votação redundou na aprovação do nome do informante
homem ao cargo, em votação unânime (21 Senadores votaram).
Já a informante mulher foi sabatinada por 18 Senadores11 (duas
mulheres e 16 homens), e à exceção de dois entrevistadores homens,
todos os demais 16 Senadores efetivamente formularam perguntas à
sabatinada, o que exigiu do Presidente da Sessão fixar limite de tempo
para as perguntas. Em algumas oportunidades a informante mal teve
tempo e condições de tomar nota das perguntas formuladas, necessitando
da ajuda dos entrevistadores para retomá-las quando da apresentação de
suas respostas.
Além do que, o Senador Demóstenes Torres, que muito pouco
perguntou ao sabatinar Joaquim Barbosa, após exaustivamente questionar
Rosa Weber, insistiu em retomar a palavra para novas perguntas ao final
dos trabalhos, extenuando a informante mulher de tal forma que, ao
final, se reservou o direito de escolher apenas algumas das questões para
responder.
Essa situação toda levou dois Senadores da República a colocar
em relevo que aquela fora, sem dúvida, a mais longa sabatina por eles
presenciada.
Ao final, a aprovação do nome da informante para o cargo se deu
por maioria, obtendo 19 favoráveis e três contra a sua nomeação.
Tais circunstâncias revelam que os entrevistadores homens se
sentiram à vontade para formular muito mais questões à informante
mulher, colocando em xeque suas ideias e opiniões, diferentemente do
Senadora Marta Suplicy, Senador Luiz Henrique, Senador Ricardo Ferraço, Senador
Marcelo Crivella, Senador Álvaro Dias, Senador Valdir Raupp, Senador Pedro Taques,
Senador Demóstenes Torres, Senador Aloysio Nunes Ferreira, Senador Renan
Calheiros, Senador Pedro Simon, Senadora Marinor Brito, Senador Eduardo Suplicy,
Senador Antônio Carlos Valadares, Senador Aécio Neves, Senador Sérgio Petecão,
Senador Inácio Arruda, Senador Vicentinho Alves.
11
33
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
observado quando em interação com o informante homem, que foi
pouco perguntado (sua sabatina durou pouco mais de três horas), muito
elogiado e, ao final, teve seu nome aprovado por unanimidade. Ela, por
sua vez, teve que responder a esses questionamentos por mais de seis
exaustivas horas e, ao final, não obteve o voto de todos os presentes,
tendo sua indicação sido aprovada por maioria.
Essa observação foi aqui tecida apenas em relação aos entrevistadores
homens, tendo em vista ter-se observado que as entrevistadoras
mulheres, em ambas as ocasiões, fizeram questionamentos concisos,
sem se observar qualquer distinção significativa em suas posturas fosse
o sabatinado homem ou mulher.
Tais observações confirmam que homens tendem a uma postura de
não contestar com tanta veemência outros homens, não os colocando
em xeque como o fazem quando em interação comunicacional com
mulheres, e que têm maior facilidade em ratificar as opiniões de outro
homem, em atitude gregária.
Feitas essas considerações, afasta-se definitivamente o estereótipo de
que mulheres falam mais que homens.
Voltando à análise dos estilos interativos, os resultados apontam à
informante mulher o uso mais frequente de expressões pragmáticas que
supõem uma insegurança linguística, como por exemplo, digo, parece, acho,
entendo, dentre outras. Observe:
TABELA 6: Uso de expressões reveladoras de insegurança linguística.
Digo
Parece
Acho
Entendo
Acredito
Creio
Total
Joaquim Barbosa
0
2
5
2
2
2
Rosa Weber
11
56
34
12
8
14
22
0
0
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
Observa-se que tais expressões são também utilizadas pelo
informante homem, mas em menor frequência, à exceção das expressões
acredito e creio, pouco utilizadas por ele e sem qualquer uso por ela.
Por fim, cumpre destacar que o estudo revelou maior expressividade
da informante mulher em relação a sentimentos e emoções, utilizando os
termos orgulho, angústia, preocupação e coração como a seguir demonstrado:
TABELA 7: Expressões de sentimento e/ou afetividade.
Orgulho
Angústia
Preocupação
Coração
Total
Joaquim Barbosa
0
0
2
0
Rosa Weber
2
21
8
6
5
2
Como última observação, convém destacar o uso da palavra candente
pela informante mulher (o item foi repetido por sete vezes em sua fala,
sendo três no singular e quatro no plural), indicando não só o uso de
adjetivos intensos, mas de linguagem prestigiosa e pouco usual.
Esclareça-se, em conclusão, que a análise de dados coletados não
focou na variação de tópico entre os informantes e a conseguinte
especialização do léxico12, em razão da escolha dos temas debatidos
ter sido feita pelos próprios entrevistadores, condutores das sabatinas,
direcionando, assim, a fala dos informantes investigados.
Conclusão
Confirmando-se, em sua maioria, as hipóteses levantadas ao início
do trabalho de que homens e mulheres efetivamente falam variedades
distintas, e que existem marcas de fala específicas que caracterizam uma
Observou-se na leitura das transcrições, por exemplo, que a informante mulher abordou temas
relativos à família e ao casamento, o que não fez o informante homem.
12
35
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
linguagem e outra, conclui-se que os fatores linguísticos que condicionam
a variação em razão do sexo do falante incidem mesmo entre os falantes
de alto grau de instrução, que exercem a mesma atividade profissional e
que ocupam cargos na alta cúpula do Poder Judiciário brasileiro, que lhe
conferem, assim, status social e poder.
Muito provavelmente em razão dessas particularidades que envolvem
os falantes investigados - grau de instrução, posição profissional e social
-, ambos utilizam a linguagem culta, muito próxima da norma padrão.
Todavia, a despeito da aparente isonomia existente entre os Ministros
Joaquim Barbosa e Rosa Weber, constatou-se que pressões socioculturais
moldaram o comportamento verbal de ambos, produzindo variação
linguística característica, tão estudada por dialetólogos e sociolinguistas.
A conclusão se funda, em síntese, nas seguintes tendências e posturas
observadas na fala espontânea dos Ministros investigados:
a)
b)
c)
ambos trataram seus interlocutores utilizando o pronome de
tratamento Excelência, observando-se, contudo, em relação à
fala da Ministra Rosa Weber o uso mais frequente do pronome
em análise, bem como de outras expressões de polidez,
caracterizando, assim, uma linguagem mais prestigiosa em
comparação àquela do Ministro Joaquim Barbosa;
a Ministra Rosa Weber revelou maior insegurança linguística em
suas respostas, evidenciada pelas várias citações e referências
a texto de lei ou da Constituição Federal no intuito de
fundamentar suas opiniões, bem como em seu estilo interativo,
com o uso de expressões tendentes a cativar o apoio de seu
interlocutor, dando-lhe liberdade para interpretar e adotar
suas próprias posições quanto às ideias por ela expressadas;
também se observou em relação à Ministra Rosa Weber o
uso de respostas mínimas de apoio, revelando uma fala mais
cooperativa, em contraposição à fala mais assertiva e direta do
Ministro Joaquim Barbosa;
36
Thais Aranda Barrozo e Vanderci de Andrade Aguilera
d)
a Ministra Rosa Weber também utilizou com mais frequência
e facilidade expressões relativas a seus sentimentos e emoções,
nada se observando, nesse aspecto, quanto ao Ministro
Joaquim Barbosa.
A pesquisa revelou, ainda, que os dois Ministros investigados
utilizaram em suas respostas a estratégia de fala consistente na formulação
de perguntas, no intuito de envolver o seu interlocutor no diálogo. Não
foi possível, assim, afirmar uma distinção da marca de fala feminina e
masculina nesse aspecto.
A partir dos resultados obtidos, é possível afirmar que, com a
evolução social e a maior participação da mulher na vida política e social,
a linguagem feminina começa a se apresentar um pouco mais próxima
da do homem. Mas apenas isso: “um pouco mais próxima”, haja vista
as tantas divergências apontadas, todas, certamente, condicionadas à
variável sexo.
Afinal, o estudo revelou que as pressões sociais e culturais continuam
a moldar o comportamento verbal feminino e masculino de forma tal,
mesmo entre falantes de status social equivalente (como se viu entre os
Ministros sabatinados), não parecendo correto dizer que, nos dias atuais,
homens e mulheres ocupam espaços públicos em igualdade de condições
e de oportunidades de fala para expressar suas ideias.
E não há dúvidas de que quanto maiores forem as variações e
variedades linguísticas observadas em razão do sexo do falante, mais
indicativos teremos de que a sociedade ainda caminha a passos largos
na evolução em direção a uma sociedade justa, fraterna e solidária, em
que não haja espaços para os estigmas. Enfim, que homens e mulheres
tenham igualdade de condições para exprimir suas ideias, rechaçando-se,
em definitivo, a subjugação da fala feminina.
37
Sexo e Linguagem: Uma Análise a Partir das Sabatinas dos Ministros do Supremo tribunal Federal
Joaquim Barbosa e Rosa Weber
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
COULTHARD, Malcom. Linguagem e sexo. Trad. Carmen Rosa
Caldas-Coulthard. São Paulo: Ática, 1991.
GARCÍA MOUTON, Pilar. Cómo hablan las mujeres. Madrid: Arco
Libros, 2000.
LABOV, William. Sociolinguistic patterns. 11ª ed. University of
Pennsylvania Press Inc., 1972. Disponível em http://books.google.com.br/
books, acesso em 29 de junho de 2013.
LOZANO DOMINGO, Irene. Lenguaje feminino, linguaje
masculino. ¿Condiciona nuestro sexo la forma de hablar? Madrid:
Minerva Ediciones, 2005.
MACEDO, Edir. A mulher segundo o coração de Deus. Disponível
em
http://www.arcauniversal.com/mundocristao/noticias/a-mulher-segundo-ocoracao-de-deus-11281.html, acesso em 01 de julho de 2013.
POSSENTI, Sírio. Hipercorreção. Disponível em http://terramagazine.
terra.com.br/blogdosirio/blog/2012/06/07/hipercorrecao/, acesso em 29 de
junho de 2013.
38
VARIAÇÃO
LINGUÍSTICA
NA
RESULTADOS DE UM PROJETO
ESCOLA:
(LINGUISTIC VARIATION IN SCHOOL: RESULTS
OF A PROJECT)
Joyce Elaine de ALMEIDA BARONAS
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
RESUMO
O presente estudo objetiva apresentar resultados de um projeto de pesquisa “Variação
linguística na escola: propostas didáticas”, vinculado ao Departamento de Letras Vernáculas
e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina. Nesta pesquisa, serão apresentados
os primeiros estudos desenvolvidos no projeto, com a análise de dois corpora (i) documentos
oficiais que regem o ensino da língua portuguesa no Paraná, (ii) coleções de livros didáticos
utilizados nas escolas do Paraná. Tal análise objetiva verificar o alcance dos estudos sobre
a variação da língua, veiculados no ambiente acadêmico, no meio escolar, com o propósito de
colaborar para a efetiva concretização de uma pedagogia da variação.
ABSTRACT
The present study aims to present the results of a research project “Change language in school:
didactic proposals”, linked to the Department of Classical and Vernacular Literature from
the State University of Londrina. In this study, we present the first studies developed in the
project, with the analysis of two corpora (i) the official documents governing the teaching
of Portuguese in Paraná, (ii) collections of textbooks used in the schools of Paraná. This
analysis aims to verify the scope of studies on language variation, served in the academic
environment, at school, in order to contribute to the effective implementation of a pedagogy
of variation.
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 39-62, jan./jun. 2014
Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto
PALAVRAS-CHAVE
ensino de Língua Portuguesa; variação linguística; normas
KEYWORDS
teaching of Portuguese language, linguistic variation; norms
Apresentação
A variação linguística constitui um fenômeno natural em qualquer
língua, entretanto tal fato não é compreendido pela grande maioria
da população brasileira que acredita ser a língua do Brasil um objeto
homogêneo, inflexível. Tal fato é comentado por Faraco, ao propor a
ideia de uma pedagogia da variação:
Se, como resultado da intervenção dos linguistas,
o tema da variação acabou incorporado pelo discurso
pedagógico, podemos dizer que não conseguimos ainda
construir uma pedagogia adequada a essa área. Talvez
porque não tenhamos ainda, como sociedade, discutido
suficientemente, no espaço público, nossa heterogênea
realidade linguística, nem a violência simbólica que a
atravessa. (FARACO, 2008, p.177)
No meio escolar, na maioria das vezes, a diversidade da língua é
também ignorada, pois falta preparo teórico-metodológico para o
professor lidar com um fenômeno comum, entretanto incompreendido
pela sociedade. Dada tal situação, é crucial uma alteração na tarefa do
profissional que lida didaticamente com a língua portuguesa no Brasil,
uma vez que os estudos sobre a diversidade linguística brasileira já
avançaram consideravelmente. Pensando no distanciamento entre a
40
Joyce Elaine de Almeida Baronas
realidade social e os avanços empreendidos no meio acadêmico, pode-se
firmar a necessidade da implantação da pedagogia da variação, proposta
por Faraco:
... cabe reiterar que nosso grande desafio, neste
início de século e milênio, é reunir esforços para
construir uma pedagogia da variação linguística que não
escamoteie a realidade linguística do país (reconheça-o
como multilíngue e dê destaque crítico à variação
social do português); não dê um tratamento anedótico
ou estereotipado aos fenômenos da variação; localize
adequadamente os fatos da norma culta/ comum/
‘standard’ no quadro amplo da variação e no contexto das
práticas sociais que a pressupõem; abandone criticamente
o cultivo da norma-padrão; estimule a percepção do
potencial estilístico e retórico dos fenômenos da variação
(FARACO, 2008, p.180)
Este texto pretende, pois, apresentar uma pesquisa que objetiva
fornecer subsídios aos professores de Língua Portuguesa a partir
da elaboração de propostas adequadas ao estudo da língua em suas
diversificadas matizes. Trata-se de busca de uma melhor compreensão da
língua portuguesa abrangendo as variadas normas presentes no país, ou
seja, o trato da linguagem numa perspectiva sociolinguística. Espera-se,
com este estudo, levar ao professor, ferramentas úteis para o trabalho com
a língua de forma consciente e inovadora, no sentido de romper com o
preconceito linguístico e de conceber a linguagem como forma interação
social, abordando não só a norma padrão, mas também as variedades
linguísticas. Tal proposta se dará a partir de estudos desenvolvidos no
projeto de pesquisa “Variação linguística na escola: propostas didáticas”,
vinculado ao Departamento de Letras Vernáculas da Universidade
Estadual de Londrina, no qual se unem docentes e discentes do curso de
41
Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto
Letras, além de professores da rede estadual do Paraná, a fim de pensar
o ensino de língua portuguesa atual. Desta forma, serão apresentados,
nesta pesquisa, os primeiros estudos desenvolvidos no projeto citado,
apresentando análise de dois corpora, a saber: (i) documentos que regem
o ensino da língua portuguesa, evidenciando em que sentido a variação
faz parte de tais textos normativos, (ii) 15 coleções de livros didáticos
aprovadas pelo Plano Nacional do Livro Didático. Tais análises se deram
no sentido de colaborar para uma nova abordagem da língua na escola,
sob a perspectiva da diversidade linguística.
1 Pressupostos teóricos
Nesta seção, apresentam-se algumas discussões de pesquisadores
renomados sobre questões relacionadas à língua e ao fenômeno da
variação.
1.1 Normas
A língua portuguesa do Brasil apresenta diversas normas, apesar
disso, a sociedade em geral, distante dos estudos linguísticos, apresenta
uma busca incessante de uma língua única, invariável, ou seja, a norma
padrão expressa na gramática normativa. Segundo Castilho (2002),
existem três tipos de norma: a norma objetiva, a norma subjetiva e a
norma prescritiva.
A norma objetiva, também chamada de padrão real, é a linguagem
praticada pela classe social de prestígio, ou seja, pela classe culta,
escolarizada. O segundo tipo de norma, a norma subjetiva considerada
padrão ideal de linguagem é a atitude que o falante assume perante a
norma objetiva em situações em que a comunidade linguística exige
maior cuidado com a linguagem. Já a norma prescritiva é a combinação
da norma objetiva com a norma subjetiva, em que são ensinados os usos
42
Joyce Elaine de Almeida Baronas
linguísticos de uma classe de prestígio considerados mais adequados
a cada situação e mais bem identificados com o ideal de perfeição
linguística.
De acordo com Faraco (2002), a norma pode ser considerada um
fator de identificação sociocultural. Diante disso a norma culta da língua
se destaca por ser a utilizada pelos grupos que controlam o poder social.
O autor esclarece a distinção entre norma culta e norma padrão, já que
essas costumam ser confundidas, inclusive no meio acadêmico.
Segundo Faraco (2002), norma culta é a norma linguística praticada
em determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau de
formalidade) por aqueles grupos sociais mais relacionados com a língua
escrita, enquanto a norma padrão são as formas contidas e prescritas
pelas gramáticas normativas.
Por esse padrão ter tido origem de um modelo lusitano praticado
por alguns escritores portugueses, não há muita relação entre a norma
padrão e o uso; desta forma, o distanciamento entre a norma padrão e a
realidade linguística brasileira dificultam a assimilação de tal norma por
uma grande parcela da população do país.
Na sociedade brasileira, podem-se constatar empiricamente variadas
normas, visto que constituem possibilidades adequadas a determinados
contextos, assim há a “norma da casa”, a “norma do emprego”, a “norma
dos amigos”, e assim por diante. Pensando desta forma, pode-se associar
o conceito de norma à variação, dado que cada norma constitui uma
variedade; desse modo, a norma padrão constitui uma entre as diversas
variedades do português do Brasil.
1.2 Variação linguística
A linguagem é, por natureza, um objeto sujeito a alterações, por
ser uma parte constitutiva do ser humano e da cultura na qual este se
insere. Ora, se o homem está sempre evoluindo, mudando sua aparência,
suas ideias, seus valores, bem como a sociedade na qual este se inscreve,
43
Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto
é perfeitamente normal haver variações e mudanças linguísticas. Os
estudos de Labov (1962) apontam que a variação linguística é natural,
é essencial à linguagem humana, desta forma o que exigiria explicação
seria a ausência da variação na linguagem e não a sua presença. Meillet
já apontava, no início do século passado, em 1906, o fato social como
motivação fundamental para ocorrerem alterações linguísticas: “Por ser
a língua um fato social resulta que a linguística é uma ciência social,
e o único elemento variável ao qual se pode recorrer para dar conta
da variação linguística é a mudança social” (MEILLET apud CALVET,
2002, p. 16).
A variação da língua ocorre devido a fatores linguísticos ou
extralinguísticos, de forma que os primeiros se dão pela própria natureza
linguística e os segundos, por motivos externos à língua. Em relação aos
fatores extralinguísticos, Camacho (1988) propõe uma sistematização
apontando a classificação: variação histórica, geográfica, social e
estilística. O autor ressalta que tal classificação proposta não se dá de
forma estanque, ou seja, muitas vezes uma variação ocorre devido a mais
de um fator, como o social e o geográfico, por exemplo. Já Castilho
(2010) apresenta outra proposta de classificação, a saber: variação
geográfica, variação sociocultural, variação individual, variação de canal
e variação temática. A seguir, busca-se correlacionar as propostas de
Camacho (1988) e de Castilho (2010)
A variação histórica resulta das mudanças naturais consequentes da
evolução temporal. Moda, decoração, conceitos de beleza constituem
costumes que variam conforme o tempo; isto porque a sociedade
evolui e altera sua forma de agir, de pensar e de conceber seus padrões
de beleza e de normalidade. Assim também acontece com a língua,
formas linguísticas consideradas comuns em determinada época não
o são em outra. Daí o que se entende por arcaísmos e neologismos,
de forma que as primeiras constituem formas desatualizadas, não mais
utilizadas pela maioria da comunidade, enquanto que as segundas, novas,
inovadoras. Conforme aponta Camacho (1988, p.30), “podem conviver
44
Joyce Elaine de Almeida Baronas
no mesmo plano temporal variantes em desuso com suas respectivas
substitutas, estritas, porém a alguns poucos falantes de idade avançada
que, paralelamente à evolução dos usos e costumes, mantêm formas de
expressão adotadas como prestigiosas pela norma pedagógica ou social
de décadas atrás”.
Cabe ressaltar que este tipo de variação evidencia a intrínseca relação
existente entre língua e sociedade; ora, se a sociedade evolui, muda com o
passar do tempo, nada mais do que natural do que a mudança linguística,
dado que o ser humano se constitui pela linguagem.
A variação geográfica resulta da forma linguística comum a uma
região. A língua portuguesa falada em diferentes países constitui exemplo
interessante deste tipo de variação, pois se diferencia nos diversos países
em que é falada, chegando a ser classificada, por alguns pesquisadores,
como outra língua, como no caso no Brasil em que se nomeia “português
brasileiro”. Camacho ressalta que o limite geográfico de uma comunidade
linguística muitas vezes não coincide com os limites políticos; segundo
o autor, “tais limites são relativamente fixados, porque graduais, e se às
vezes a rotulação de determinado falar regional corresponde aos limites
políticos, será por necessidade prática.” (CAMACHO, 1988, p.31-32)
Castilho (2010, p.198), afirma ser a variação geográfica a mais
perceptível: Quando começamos a conversar com alguém, logo percebemos se ele
é ou não originário de nossa região. O autor ainda salienta que a visibilidade
deste tipo de variação fez surgir a Dialetologia; pode-se afirmar aqui
a importância dos estudos dialetológicos no Brasil, que conta com
pesquisadores renomados, os quais contribuem para a descrição do
português brasileiro.
A variação social resulta da diferença entre setores socioculturais da
comunidade, o que implica diferenças etárias, sexuais e socioculturais.
Em relação à diferença entre faixas etárias distintas, pode-se visualizar
com ênfase a linguagem dos adolescentes e a dos idosos. A adolescência
constitui uma fase importantíssima para o indivíduo, em que o adolescente,
ansioso pela marcação de identidade, define formas linguísticas próprias
45
Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto
que o diferem dos demais. Já os idosos, também marcam sua identidade
pelas formas próprias de sua época e pelo cuidado com a língua, forma
de demarcar a cautela do homem já vivido e experiente. A diferença
sexual se identifica também na linguagem, sendo mais comuns formas
delicadas, com predomínio de diminutivo na fala feminina. Já a questão
sociocultural implica diferenças entre classes sociais, fator de suma
importância para a abordagem na escola, uma vez que diferenças
características de determinados extratos sociais resultam barreiras
sociais, inclusive no âmbito linguístico. Tais questões são relativas ao
prestígio às formas características de determinados grupos, conforme
aponta Camacho (1988, p.33):
A divisão de uma comunidade em setores sociais não
significa que o intercâmbio linguístico entre indivíduos
de distintos estratos seja prejudicado por dificuldades
de compreensão, como poderia ocorrer entre duas
comunidades regionais. Significa, antes, que o uso de
certas variantes é indício, numa sociedade estratificada,
do nível sócio-econômico e cultural de seus membros e,
portanto, indício de alto ou baixo grau de prestígio
Em sua classificação, Castilho (2010, p.204) apresenta uma
delimitação, apontando a variação sociocultural, considerando as
variáveis: (i) falante não escolarizado e (ii) falante escolarizado. Para o autor
(2010, p.204), analfabetos e falantes escolarizados não falam exatamente da mesma
forma. Assim, Castilho afirma ser comum a variedade culta para pessoas
escolarizadas enquanto que a variedade popular caracteriza o falar dos
não escolarizados.
Já em relação aos fatores etário e sexual, Castilho (2010) propõe outro
tipo de classificação denominada variação individual. Em relação à idade,
o autor afirma: sabe-se que velhos falam como se falava antes, e jovens acolhem as
mudanças na língua que foram generalizadas posteriormente (CASTILHO, 2010,
46
Joyce Elaine de Almeida Baronas
p.212). Já, em relação ao sexo, o autor aponta uma questão relacionada
à própria estrutura da língua portuguesa, visto que não se identificam
diferenças estruturais caso o falante seja homem ou mulher, como
ocorre no japonês, por exemplo.
A variação estilística, proposta por Camacho (1998), se compõe das
diferentes maneiras de se manifestar linguisticamente diante de situações
formais e informais, daí a necessidade de adequação ao ambiente. Tratase de um tipo muito importante para a abordagem em sala de aula,
pois neste tópico é possível ensinar ao aluno a possibilidade de utilizar
formas coloquiais e a necessidade de aprender formas mais elaboradas,
devido à situação interativa. Cabe ressaltar que, para Castilho (2010), as
diferenças de registro resultantes da situação se incluem no tipo por ele
denominado variação individual.
Castilho (2010, p.211) ainda aponta a variação de canal: A comunicação
linguística pode ocorrer em presença do interlocutor, quando falamos, ou na sua
ausência, quando escrevemos. Assim o autor propõe a variação entre a
língua falada e a língua escrita. Em relação à variação de canal, Ilari e
Basso (2006) propõem outra denominação: variação diamésica. Segundo
os autores, a variação diamésica compreende, antes de mais nada, as profundas
diferenças entre a língua falada e a língua escrita. (ILARI; BASSO, 2006, p.181).
Cabe ressaltar que tal classificação se estende, para os pesquisadores,
para a variação entre os gêneros discursivos.
Castilho (2010) ainda aponta a classificação temática que diz respeito
ao modo como se trata determinado assunto. Segundo o pesquisador:
Podemos falar de assuntos do dia a dia, e teremos o ‘português corrente’. Podemos
falar de assuntos especializados, e aí teremos o ‘português técnico’. Assim, o autor
afirma que tais variedades distinguem a linguagem do cidadão comum da
linguagem dos cientistas, dos clérigos, dos políticos etc. (CASTILHO, 2010, p.223)
Tais classificações são de grande relevância para o profissional que
se dedica a estudar o fenômeno da variação, uma vez que propiciam
visualizar a amplitude que o constitui.
47
Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto
1.3 Oralidade e escrita
É possível abordar, conforme aponta Marcuschi (2001), eventos
de oralidade e de escrita como um contínuo, em que se identificam
determinados gêneros. Desta forma, há gêneros que se encaixariam num
pólo de maior oralidade, como uma conversa informal, por exemplo,
enquanto outros se enquadrariam num pólo mais apropriado para eventos
da escrita, como um artigo científico. Corroborando com as ideias de
Marcuschi (2001), Bortoni-Ricardo (2004) apresenta uma proposta de
contínuos de oralidade e escrita para os eventos comunicativos, havendo
também pólos de maior predominância ou da oralidade ou da escrita.
Cabe ressaltar a não correlação: escrita-formalidade, oralidadeinformalidade, visto que do mesmo modo, podemos aplicar a proposta
dos contínuos para os níveis de formalidade, tanto nos gêneros
orais, como nos escritos. Apesar disso, é fato natural a associação da
formalidade ao texto escrito devido à própria história da escrita na
vida do ser humano. Ora, uma criança, até a educação formal escolar,
pratica anos eventos orais livres de padronização, enquanto que, ao
adentrar o meio escolar, insere-se na necessidade de padronização do
texto escrito. Além disso, ressalta-se a diferença quantitativa em relação
à produtividade de textos escritos, pois um profissional que não tem a
escrita como profissão, raramente se depara com eventos de escrita, e
quando isto ocorre, em geral devem ser produzidos na norma-padrão,
pois constituem gêneros que se caracterizam pela formalidade, como
é o caso de requerimentos, procurações, ofícios, etc. Nesse sentido, é
papel do professor de língua portuguesa, levar o aluno ao contato com
diversos gêneros orais e escritos, propiciando a percepção da adequação
da linguagem a cada evento de comunicação.
Ressalta-se ainda a interferência da variação própria da situação de
oralidade para a de escrita, e, como afirma Cagliari (1992, p.124), “a
variação linguística, característica inerente a toda e qualquer língua do
mundo, pode constituir um grande problema para quem está adquirindo
48
Joyce Elaine de Almeida Baronas
o sistema da escrita.” Isto porque o aluno pode transpor as variantes
distantes da norma para o texto escrito. Em outro estudo, o autor ainda
aponta que “o erro mais comum dos alunos é caracterizado por uma
transcrição fonética da própria fala” (CAGLIARI, 1992, p.138).
2 Sobre o projeto Variação linguística na escola
O projeto “Variação linguística na escola: propostas didáticas”
constitui uma investigação de natureza teórico-metodológica sobre
o atual sistema de ensino da língua portuguesa nas escolas do Paraná,
incluindo documentos oficiais de ensino, livros didáticos e atuação
profissional, a fim de averiguar até que ponto os estudos sociolinguístico
estão efetivamente presentes no dia-a-dia da escola. Pretende-se, neste
projeto, verificar se ocorre a abordagem da variação linguística nos
manuais didáticos utilizados no Paraná, e, em caso positivo, como isso
se dá. A partir dos dados obtidos, objetiva-se propor atividades sobre
a variação pouco contempladas nos atuais manuais e que merecem
atenção. Com isso, espera-se colaborar para a divulgação dos estudos
sociolinguísticos e a extinção do tão arraigado preconceito linguístico
presente em nossa sociedade. Para tal tarefa, professores da rede
estadual, docentes e discentes do curso de Letras da Universidade
Estadual de Londrina se reúnem para estudar questões sobre a língua e
analisar documentos oficias de ensino e manuais didáticos para, a partir
deste estudo sistematizado, elaborar novas propostas de ensino da língua
que contemplem a variação. No presente artigo serão apresentadas (i) a
análise dos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio e os Parâmetros
Curriculares do Ensino Fundamental; (ii) a análise de 11 coleções de
livros didáticos utilizadas no Paraná.
49
Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto
3 Análise dos corpora
Nesta seção serão apresentas análises de dois corpora: (i) documentos
oficiais de ensino, (ii) manuais didáticos do ensino fundamental e médio.
3.1 Análise dos documentos
Os Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental apresentam
uma orientação sobre o trabalho com a variação linguística na escola.
Apresentam-se, a seguir, trechos do documento em que se evidencia tal
afirmação:
Entre as críticas mais frequentes que se faziam ao
ensino tradicional destacavam-se: a excessiva valorização
da gramática normativa e a insistência nas regras de
exceção, com o consequente preconceito contra as
formas de oralidade e as variedades não-padrão;(...) É
neste período que ganha espaço um conjunto de teses
que passam a ser incorporadas e admitidas, pelo menos
em teoria, por instâncias públicas oficiais. A divulgação
dessas teses desencadeou um esforço de revisão das
práticas de ensino da língua, na direção de orientá-las
para a ressignificação da noção de erro, para a admissão
das variedades linguísticas próprias dos alunos, muitas
delas marcadas pelo estigma social, e para a valorização
das hipóteses linguísticas elaboradas pelos alunos no
processo de reflexão sobre a linguagem e para o trabalho
com textos reais, ao invés de textos especialmente
construídos para o aprendizado da escrita. (BRASIL,
1998, p.18)
50
Joyce Elaine de Almeida Baronas
Pode-se contatar, nesta citação, a necessidade do trabalho com
a variação linguística, implicando necessariamente uma melhoria na
qualidade do ensino da língua no período atual. No documento em
análise, identifica-se ainda um item “Implicações da questão da variação
linguística para a prática pedagógica” (BRASIL, 1998, p. 29), em
que se discorre sobre a necessidade da abordagem da língua em sua
diversidade. Além disso, nas “Orientações didáticas específicas para
alguns conteúdos” (BRASIL, 1998, p.81-83), há uma seção específica
intitulada “Variação linguística”.
Tais apontamentos mostram a aceitação e a crença por parte dos
responsáveis pelos documentos do ensino fundamental da necessidade
da abordagem da variação linguística no ambiente escolar.
Já nos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, os apontamentos
sobre variação linguística não se dão com tanta ênfase, o foco se dá mais
diretamente no que diz respeito à linguagem e identidade. Isto talvez se
deva ao fato de estar subentendido que o trabalho sobre variação seja
bem realizado já no ensino fundamental, conforme as indicações dos
documentos direcionados a tal fase.
No item “Competências e habilidades” (BRASIL, 2000, p.19),
verifica-se o subitem “Considerar a Língua Portuguesa como fonte
de legitimação de acordos e condutas sociais e como representação
simbólica de experiências humanas manifestas nas formas de sentir,
pensar e agir na vida social” (BRASIL, 2000 p.20) em que consta a
seguinte afirmação:
Dar espaço para a verbalização da representação
social e cultural é um grande passo para a sistematização
da identidade de grupos que sofrem de deslegitimação
social. Aprender a conviver com as diferenças, reconhecêlas como legítimas e saber defendê-las em espaço público
fará com que o aluno reconstrua a auto-estima. (BRASIL,
2000, p.20)
51
Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto
É possível verificar, nesta citação, a importância atribuída à
identidade e às diferenças, o que implica, em se tratando de linguagem,
a valorização também da variação linguística, dado que tal fenômeno
constitui instrumento de identidade e de consequente marcação de
diferença social.
Ainda neste item constata-se o seguinte apontamento:
A escola não pode garantir o uso da linguagem fora
do seu espaço, mas deve garantir tal exercício de uso
amplo no seu espaço, como forma de instrumentalizar
o aluno para o seu desempenho social. Armá-lo para
poder competir em situação de igualdade com aqueles
que julgam ter o domínio social da língua” (BRASIL,
2000, p.22)
Pode-se evidenciar, nesta afirmação, as ideias apontadas por Gnerre
(1985) em que o autor afirma a necessidade de a escola proporcionar
ao aluno o acesso à norma culta e à norma padrão a fim de que ele
possa utilizá-las nas situações em que são necessárias. Tal formação é
de suma importância haja vista o estigma que carregam as variedades do
português distantes da norma, de forma que os falantes dessas variedades
são considerados incultos, ignorantes, sendo desprezados socialmente
pelos que dominam a norma de prestígio.
Com base nos dados identificados nesta análise, pode-se afirmar um
avanço em relação à situação de ensino se comparada a anos anteriores,
uma vez que a sugestão da necessidade da abordagem da variação
linguística se faz presente tanto nos Parâmetros do Ensino Fundamental
como nos documentos do Ensino Médio. A seguir, apresenta-se a análise
dos manuais didáticos do Paraná.
52
Joyce Elaine de Almeida Baronas
3.2 Análise dos manuais didáticos
Nesta seção, pretende-se apresentar uma análise quantitativa da
abordagem da variação linguística nos livros didáticos utilizados no
Paraná até 2012. Cabe ressaltar que foram aprovadas 16 coleções pelo
Plano Nacional do Livro Didático, entretanto, para a presente pesquisa
foi possível analisar 15 coleções, uma coleção é indisponível, visto que
nem mesmo as escolas de Londrina a possuíam. Desta forma, foram
analisadas 15 coleções, buscando identificar quais tipos de variação são
contempladas por ano a fim de traçar um panorama geral. Para a análise
em questão, utilizou-se a proposta de Camacho que classifica a variação
em quatro tipos: geográfica, estilística, histórica e social; optou-se por
esta classificação pelo aspecto téorico-prático desta classificação, ou seja,
trata-se de uma proposta viável para análise, o que não desmerece as
demais classificações de outros autores. Cabe ainda ressaltar que, para a
busca de cientificidade do presente trabalho, os manuais analisados são
nomeados pelos numerais de 1 a 15. Assim, foram elaboradas 4 tabelas
correspondentes aos quatro tipos de variação proposta por Camacho
(1988) com a análise quantitativa da abordagem da variação da língua.
Seguem tabelas com a análise, para posterior discussão:
TABELA 1: Presença da variação estilística
Variação
estilística
1
6º ano
X
7º ano
8º ano
9º ano
2
X
X
X
3
4
5
6
7
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
TOTAL: 44 ocorrências/ 73,3 %
53
8
9
10
X
X
X
X
X
11
12
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
13
14
X
X
X
X
X
X
X
X
15
X
Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto
TABELA 2: Presença da variação geográfica
Variação
geográfica
1
2
6º ano
X
7º ano
X
3
4
X
8º ano
X
9º ano
X
X
5
6
7
8
9
10
11
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
12
13
14
X
X
X
X
X
15
X
TOTAL: 30 ocorrências/ 50%
TABELA 3: Presença da variação social
Variação
social
1
2
3
6º ano
X
7º ano
4
5
X
X
X
8º ano
X
X
9º ano
6
7
X
X
8
9
10
X
X
11
X
X
X
13
14
X
X
X
X
X
X
X
12
X
X
X
15
X
X
X
X
14
15
TOTAL: 27 ocorrências/ 45%
TABELA 4: Presença da variação histórica
Variação
histórica
1
6º ano
X
2
3
4
5
6
7
X
X
8
7º ano
X
X
X
8º ano
X
X
X
9º ano
X
X
X
X
9
10
11
12
X
X
13
X
X
X
X
TOTAL: 19 ocorrências/ 31,6 %
Com base nos dados gerais das tabelas, é possível constatar os
seguintes resultados: a variação estilística é a mais contemplada entre
as coleções, pois entre os 60 manuais, ela se constata em 44, ou seja, há
73,3 por cento de ocorrências (Tabela 1). A variação regional é abordada
em metade dos livros analisados, pois, dos 60, está presente em 30 livros
(Tabela 2). Já a variação social e a histórica são as menos abordadas; a
54
Joyce Elaine de Almeida Baronas
variação social se evidencia em 27 manuais, totalizando 45 por cento
(Tabela 3) e a variação histórica se identifica em 19 manuais, resultando
31,6 por cento (Tabela 4).
FIGURA 01: Porcentagem dos tipos de variação presentes nos
manuais didáticos
Tais dados numéricos permitem afirmar que a variação histórica é
pouco contemplada nesses manuais, o que se explica pela própria área
em que se insere tal tipo de variação: a Linguística Histórica, que exige
do profissional que se interesse por caminhar nesta perspectiva, um
conhecimento muito vasto e uma formação acadêmica diferenciada,
uma vez que noções a respeito de língua latina, diacronia e história são
cruciais para tal formação.
A variação social também é pouco abordada nas coleções, fato
que pode ser explicado também pela área de estudo, a qual envolve
questões polêmicas, relacionadas ao preconceito linguístico. É fato que
a sociedade ainda desconhece e, consequentemente, despreza os estudos
desenvolvidos no ambiente acadêmico sobre língua e preconceito, de
forma que, para o meio social, ensinar língua significa ensinar regras
gramaticais, como se a norma padrão fosse algo concreto e realizável,
ou seja, prevalece ainda a “pureza da Língua”, contemplada por Otávo
Bilac ao falar sobre “a Flor do Lácio”. Ressalta-se ainda que a atitude
55
Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto
da sociedade atual ainda reflete a atitude da sociedade brasileira em
sua colonização quando o ideal lusitano prevalecia, ou seja, a elite
brasileira rejeitava a “língua de preto”, almejava a uma sociedade
branca, europeizada. Tais afirmações são apontadas por Faraco (2008)
ao comentar a atitude da elite brasileira no período da colonização:
Por trás da atitude excessivamente conservadora dessa elite letrada,
além de uma herança da pesada tradição normativa dos países de línguas
latinas, estava seu desejo de viver num país branco e europeu, o que fazia
lamentar o caráter multirracial e mestiço do nosso país (aspirando, de
modo explícito até a década de 1930, a um ‘embranquecimento da raça’);
e, no caso da língua, a fazia reagir sistematicamente a tudo aquilo que
nos diferenciasse do modelo linguístico lusitano por ela escolhido para
padronizar a fala e a escrita no Brasil. (FARACO, 2008, p.79)
Pode-se, pois, relacionar a atitude da elite letrada comentada por
Faraco com a elite brasileira, havendo muitos resquícios daquela busca
de um padrão lusitano e “puro”.
Já em relação às séries, pode-se evidenciar que a variação da língua
tem pouca evidência nos anos finais do ensino fundamental, pois três
coleções não tratam de nenhum tipo de variação no nono ano e sete
coleções tratam apenas de um tipo de variação no último ano. Tais dados
indicam que a maioria dos profissionais que produziram os manuais
didáticos acredita ser desnecessário trabalhar a variação linguística no
final do ensino fundamental, fato curioso e preocupante uma vez que
tal atitude pode resultar da pouca importância destinada ao assunto,
ou seja, é possível que se julgue o tema da variação linguística menos
importante do que outros mais relacionados à noção de “pureza da
Língua”. Além disso, a ausência do enfoque à variação linguística no
final do ensino fundamental pode ainda resultar da crença de que esse
tipo de conhecimento não será objeto de cobrança em vestibulares,
Enem, etc.
56
Joyce Elaine de Almeida Baronas
Em relação à qualidade da abordagem identificada nos manuais
analisados, pode-se afirmar novamente a necessidade da aplicação, no
ambiente escolar, dos estudos realizados nas universidades, visto que
há muitas pesquisas voltadas para a variação linguística que poderiam
muito auxiliar professores de ensino fundamental e médio na tarefa de
abordar a língua em sua diversidade. Tal fato se constata, por exemplo,
nas atividades encontradas sobre a variação histórica; como já pontuado,
pouco há sobre tal variação nos manuais analisados e, quando isto se
dá, a maioria dos livros traz o mesmo texto: “Antigamente”, de Carlos
Drummond de Andrade. Ressalta-se que não se objetiva criticar tal
texto, trata-se, é claro, de uma obra muito interessante, rico em termos
arcaicos, o que se questiona é a raridade de exemplos oferecidos para
os leitores dos manuais didáticos. Novamente tal fato se dá pela própria
formação dos autores dos manuais, pois a área da diacronia é pouco
aprofundada durante a maioria dos cursos de graduação, somente
quem se aventura por tal área em pesquisas posteriores, teria melhores
condições de oferecer possibilidades diversificadas sobre os estudos
antigos, como por exemplo, manuscritos de séculos anteriores, jornais
antigos, cartas etc.
Em relação à variação geográfica, reafirma-se um distanciamento
entre a escola e a universidade, pois a maioria trata o fenômeno da
variação regional sem fundamentação teórica, com fontes pouco seguras,
como glossários regionais não fundamentados em estudos linguísticos.
A abordagem deste tipo de variação também poderia ser muita mais
enriquecida pelos estudos acadêmicos haja vista o intenso trabalho
realizado por dialetólogos brasileiros na tarefa de registrar a língua do
Brasil no projeto ALIB – Atlas Linguístico do Brasil, além dos atlas
regionais já concluídos.
Em relação à variação social, a maioria traz a diferença entre faixa
etária, havendo poucas atividades destinadas à questão cultural, o
que implica necessariamente comentários a respeito do preconceito
57
Variação Linguística na Escola: Resultado de um Projeto
linguístico. Trata-se de um tema bastante polêmico, difícil de ser abordado
sem correr o risco de ser mal interpretado pela sociedade, mas que
merece sim ser estudado, havendo, pois, a necessidade de profissionais
que se aventurem a realizar tal atividade.
Pode-se reafirmar, com base nas constatações apresentadas, a
necessidade de uma maior proximidade entre escola e universidade a fim
de que a prática escolar seja enriquecida e que a escola seja competente
na tarefa de abordar a variação língua.
Considerações
O estudo sobre variação linguística nos bancos acadêmicos já é
bastante profícuo, no entanto ainda urge sua presença nos bancos
escolares, uma vez que a academia não pode se dissociar da prática
educacional, principalmente nos cursos de licenciatura, com é o caso do
curso de Letras.
O presente trabalho busca, pois, indicar a importância da pesquisa
sobre a variação linguística, implementada no ambiente escolar e, para
isto, foram analisados documentos oficiais de ensino e manuais didáticos
utilizados nas escolas paranaenses.
Em relação aos Parâmetros Curriculares, tanto do ensino
fundamental como do ensino médio, pode-se afirmar que já há uma
conscientização da necessidade da abordagem da variação linguística na
escola, fator de suma importância, uma vez que tais documentos podem
alterar a atual sistema de ensino. Cabe ressaltar que o que se evidencia
nos PCNs, necessariamente, não se vê na prática, entretanto já há um
avanço considerável em relação a épocas anteriores em que se abominava
o fenômeno da variação.
Já, em relação à análise quantitativa da abordagem da variação
linguística nos manuais didáticos, foi possível verificar que a variação
é abordada, mas tal fato ainda carece de mais atenção, uma vez que se
58
Joyce Elaine de Almeida Baronas
identificaram lacunas, como, por exemplo, a escassez da abordagem de
determinado tipo de variação _ a histórica _ como também a pouca
atenção dada ao fenômeno da variação da língua no nono ano.
A análise qualitativa das atividades oferecidas pelos manuais didáticos
permitiu constatar a distância entre a escola e a universidade, visto que
a riqueza dos estudos já realizados no meio acadêmico não presencia os
manuais didáticos.
As análises realizadas no presente estudo se deram com a finalidade
de verificar como as ideias sobre o fenômeno da variação se propagaram
no ambiente escolar. A proposta não é criticar a situação atual de ensino,
mas verificar lacunas existentes para que se busquem esforços no sentido
de preenchê-las. Tal tarefa é fundamental para concretizar a proposta da
pedagogia da variação linguística no Brasil.
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62
SOBREASSEVERACÕES NA MÍDIA ONLINE:
ARTICULAÇÃO DE CONCEITOS EMERGENTES E
ESTABILIZADOS
SURASSERTION ON THE ONLINE MEDIA:
ARTICULATIONS
OF
EMERGING
AND
ESTABLISHED CONCEPTS
André William Alves de ASSIS
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)/POSLIN
Sonia Aparecida Lopes BENITES
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
RESUMO
A circulação de notícias online, produto de uma sofisticada e heterogênea maquinaria
midiática, impõe novas problemáticas para os estudos discursivos, em um momento em que
as limitações de tempo e espaço são cada vez mais diluídas socialmente. Uma delas é o fio
condutor deste artigo, que objetiva elencar reflexões sobre relatos de falas que compõem o
gênero notícia online, provenientes de retomadas de sobreasseverações. Estas, de acordo com
Maingueneau, referem-se ao destaque de trechos efetuado pelo próprio locutor do texto-fonte
em seu discurso, geralmente sob forma de pequenas-frases. Para este artigo, selecionamos como
corpus um debate político-televisivo do segundo turno das eleições de 2010 para presidência
do Brasil, e notícias online que são construídas com recortes de falas dos atores envolvidos
nos debates. Foi possível articular, no percurso de análise, o conceito de sobreasseveração
com novas e antigas problemáticas, como a heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade
mostrada, o silenciamento, a citação e as aforizações, todas constitutivas das sobreasseverações
e indispensáveis para compreender o funcionamento das notícias online construídas sobre
relatos de falas.
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 63-84, jan./jun. 2014
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
ABSTRACT
The online spread of news, a product of sophisticated and heterogeneous social medium
machinery, imposes new issues in discourse studies at a moment in which the limits of time and
space are socially more and more diluted. One issue foregrounds current research that aims at
listing considerations on discourse reports that make up the online news genre originating from
reiterated surassertions. According to Maingueneau, they refer to the underlining of speech
under the form of small phrases. The corpus of current essay is a TV political debate during
the second round of the 2010 Brazilian presidential election and the online news built from
sections of the speeches of agents involved in the debate. The concept of surassertion could be
articulated with old and new issues such as constitutive heterogeneity and shown heterogeneity,
silencing, quoting and aphorisms, which are all constitutive of surassertions. In fact, they
are indispensable to understand the functioning of online news constructed on speech reports.
PALAVRAS-CHAVE
Sobreasseveração, citação, notícias online, mídia.
KEYWORDS
Surassertion, quotes, online news, social media.
Considerações iniciais
Uma contínua retomada de dizeres é característica do funcionamento
de grande número de notícias que atribuem uma fala a outrem.
Compreender essas retomadas implica considerar uma sofisticada
maquinaria midiático-discursiva em cujo funcionamento intervêm
fatores e atores diversos, sistemicamente inter-relacionados e envolvidos
na obtenção, triagem, interpretação e circulação das informações. Tratase de um processo similar ao da cadeia detectada por Salgado (2011, p.
22), na chamada Lei do Livro, que trata da autoria, edição, distribuição,
comercialização e difusão do livro. E, tal como aquela, “envolve
coletivos complexos, etapas distintas de trabalho, uma diversidade de
colaborações” (idem).
64
André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites
Produto dessa maquinaria, as notícias calcadas em relatos de fala
fazem emergir antigas questões que se problematizam em torno de
citações1, heterogeneidade constitutiva e mostrada, tópicos já há certo
tempo abordados por diversos pesquisadores, dentre os quais destacamos
Authier-Revuz (1982, 1990, 2004), que ancora seus estudos na concepção
do duplo dialogismo bakhtiniano e na abordagem psicanalítica do sujeito.
Essa maquinaria também faz emergir problemáticas não abordadas
nas primeiras fases da Análise do Discurso. Exemplo disso são as
sobreasseverações, as cenas da enunciação, o ethos discursivo, as
aforizações e as pequenas frases, conceitos desenvolvidos e articulados
por Dominique Maingueneau, nas três últimas décadas, com o objetivo
de compor um corpo teórico que permita abordar o aparecimento e a
circulação de uma grande diversidade de materiais linguísticos, dentre os
quais destacamos a notícia online, objeto deste artigo.
Com o objetivo de observar o funcionamento da maquinaria
discursiva que produz notícias online baseadas em relatos de fala,
abordamos os enunciados destacados, focalizando as noções de
sobreasseveração e aforização. Em um primeiro momento, aproximamos
essas noções das de heterogeneidade constitutiva e mostrada, enfatizando
as não-coincidências do dizer; em seguida, aproximamos citações
e sobreasseverações da questão do silenciamento, que, ao lado da
inclusão de informações, funciona como manobra discursiva da referida
maquinaria midiática. Ao final, apresentamos nossas considerações
finais.
1 Sobreasseverações e aforizações: o percurso das
citações
Uma das temáticas recorrentes na obra recente de Maingueneau
tem sido a questão da destacabilidade enunciativa de algumas frases,
Neste artigo, utilizamos o termo “citação” como sinônimo do fenômeno de retomada de
enunciados sobreasseverados.
1
65
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
propiciada por algumas características formais da enunciação: “são
curtas, bem estruturadas, de modo a impressionar, a serem facilmente
memorizáveis e reutilizáveis”; são, além disso, “pronunciadas com
o ethos enfático conveniente” e generalizações “que enunciam um
sentido completo”. (2008, pp. 74-77). Para tratar convenientemente da
destacabilidade e de suas interfaces, aí incluída a sobreasseveração, nosso
interesse maior, necessitamos evocar os regimes enunciativos propostos
por Maingueneau (2010, p. 13), apresentados no esquema abaixo:
FIGURA 1: Enunciações aforizante e textualizante.
De acordo com a figura 1, são dois os regimes enunciativos:
o aforizante e o textualizante. No regime aforizante inserem-se os
enunciados naturalmente destacados (slogans, ditados e provérbios, por
exemplo) e os enunciados retirados de textos e utilizados sob a forma de
citação (os destacados de um texto). A enunciação aforizante caracterizase por pretender “exprimir o pensamento de seu locutor, aquém de
qualquer jogo de linguagem: nem resposta, nem argumentação, nem
narração, mas pensamento, dito, tese, proposição, afirmação soberana...”
(MAINGUENEAU, 2010, p. 14). Sinteticamente, podemos afirmar
que, enquanto resposta, a argumentação e a narração são casos de
regime textualizante, as enunciações destacadas caracterizam-se como
aforizações.
66
André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites
Há situações em que o próprio locutor do texto-fonte marca um
trecho como destacável, seja com o auxílio de um conector, seja com
uma reformulação (“dito de outra forma”, “em suma”), seja por meio
de uma generalização ou por sua localização em final de texto ou de
parágrafo. Temos nesses exemplos o que Maingueneau (2008, 2010)
denomina sobreasseveração.
No procedimento de retomada de enunciados, o discurso direto é
bastante empregado. Contudo, ele não é uma transcrição autêntica, mas
consiste tão somente em uma simulação, em um diálogo construído
a partir de um registro. Nesse processo de retomada de falas, pode
acontecer de o lugar de sobreasseverador ser imputado ao locutor do
texto-fonte, à sua revelia, conforme esclarece Maingueneau (2012), em
uma obra ainda inédita no Brasil:
Como nada impede que se destaque de um texto uma
sequência que não foi sobreasseverada, os locutores
dos textos-fonte se encontram frequentemente como
sobreasseveradores involuntários de enunciados que
não proferiram como tal. Uma responsabilidade tanto
mais problemática quando a análise mesmo superficial
mostra que o enunciado destacado raramente é idêntico
à sequência a que deveria corresponder no texto-fonte.
(MAINGUENEAU, 2012, p. 19, tradução nossa2)
O fenômeno da citação que emerge desse processo de retomada das
sobreasseverações já foi tratado, de maneiras variadas, por consagrados
estudos que versam sobre discurso relatado, discurso direto, entre outros.
“Dès lors que rien n’empêche de détacher d’un texte une séquence qui n’a pas été
surassertée, les locuteurs des textes sources se retrouvent constamment surasserteurs
involontaires d’énoncés qu’ils n’ont pas posés comme tels. Une responsabilité d’autant
plus problématique que l’examen le plus superficiel montre que l’énoncé détaché est
rarement identique à la séquence à laquelle il est censé correspondre dans le texte
source.”.
2
67
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
Por isso, com o intuito de dar algum tipo de contribuição, propomo-nos
pensar a configuração discursiva da retomada da sobreasseveração, a
partir dos desdobramentos da Análise do Discurso (AD), que concebem:
a) a língua como constitutivamente opaca e polissêmica e não como
transparente; b) os sujeitos como clivados, e não unos; c) os textos como
marcados pela heterogeneidade e pela alteridade constitutivas de todos
os dizeres; d) a interpretação como um trabalho, já que as palavras não
têm sentidos unívocos.
2 A citação: um caso de heterogeneidade mostrada
Authier-Revuz (1982) fundamenta seu conceito de heterogeneidade
discursiva nos estudos de Bakhtin sobre o dialogismo e na abordagem
psicanalítica do sujeito. Para a autora, o discurso é heterogêneo uma
vez que é “constitutivamente atravessado pelos ‘outros discursos’ e
pelo ‘discurso do Outro’. O outro não é um objeto (exterior; do qual
se fala) mas uma condição (constitutiva, pela qual se fala)” (AUTHIERREVUZ, 1982, p. 140).
A heterogeneidade constitutiva deve-se ao fato de que o outro “é
sempre onipresente e está em toda a parte” (AUTHIER-REVUZ, 2004,
p. 21). Nesse sentido, o discurso é sempre heterogêneo porque comporta,
constitutivamente no seu interior, outros discursos. Graças à ilusão que
o caracteriza, o sujeito discursivo julga-se fonte primeira de seu discurso.
Ele tem a ilusão de que seu discurso é homogêneo, não identificando a
presença do “discurso do Outro” e dos “outros discursos” na construção
do “seu”. Embora a percepção da heterogeneidade constitutiva seja
ignorada pelo sujeito, que não tem consciência dessa alteridade, há
situações em que esta é percebida e dada a perceber.
Nesses casos, por meio de marcas da presença do outro no discurso,
opera-se a separação entre o que o sujeito diz e o que o outro diz. Tratase dos casos de heterogeneidade mostrada, que pode ser: i.) marcada,
68
André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites
isto é, visível na materialidade linguística, como acontece com o uso das
aspas nas notícias online, em que “o locutor dá lugar explicitamente ao
discurso de um outro em seu próprio discurso” (AUTHIER-REVUZ,
2004, p. 12), instituindo, ao mesmo tempo, todo o restante do discurso
como emanando dele próprio; ii.) não marcada, ou seja, não evidenciada
na ordem do discurso, como nas situações de ironia e de discurso
indireto livre.
Percebemos, dessa forma, que as situações em que o sujeito constata
a presença do outro em seu discurso e, mais que isso, deseja dar a
conhecê-la, como nos casos de heterogeneidade mostrada, servem para
confirmar mais a ilusão de que todo o restante do discurso emana dele
próprio. Em outras palavras, ao mostrar que a presença do outro está
em um trecho, o locutor “afirma” que os lugares não mostrados lhe
pertencem.
Uma das formas de mostrar (e marcar) a presença do outro em um
discurso é atribuir a fala a outrem. Há notícias que são quase inteiramente
construídas por relatos de fala. É o caso das notícias online que nos
servem de corpus, que relatam o debate político eleitoral entre Dilma
Rousseff e José Serra, veiculado pela emissora BAND, no segundo
turno das eleições de 2010. Esses relatos possuem características
formais específicas, conforme se trate de discurso direto (provocando
um efeito de teatralização de uma enunciação), ou de discurso indireto
(com efeitos de interpretação).
No processo de seleção, recorte, produção e circulação da notícia,
o discurso direto é um recurso bastante utilizado, uma vez que seu uso
está relacionado a três necessidades da maquinaria midiática: i.) criar
autenticidade, o efeito de sentido de que aquela é a exata transcrição da
fala do outro; ii.) distanciar-se ou aproximar-se, na medida em que pode
evidenciar uma aceitação ou recusa em relação ao dizer; iii.) mostrarse objetivo, isento (MAINGUENEAU, 2011, p.142). Em decorrência
disso, o aspeamento que acompanha o discurso direto
69
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
[...] nunca é neutro, mas implica uma tomada
estratégica de posição face ao discurso relatado, resultante
na aprovação do dito, na sua ridicularizarão ou na sua
negação; [permite ao locutor que cita...] resguardarse, protegendo de polêmicas porque ‘foi o outro quem
disse’, [ou ...] expor-se a elas, pelo enquadramento
do pronunciamento alheio numa sequência textualargumentativa que lhe é sutil ou declaradamente
divergente ou convergente. (BENITES, 2002, p. 61,
inserção nossa)
Os três aspectos levantados por Maingueneau (2011) permitem-nos
observar o recurso de utilização das aspas como manobra relacionada
ao uso do discurso direto, que opera “um distanciamento muito variável
entre o locutor citante o locutor citado” (BENITES, 2002, p. 57). O
uso do discurso direto é uma maneira hábil de dizer o que se pensa sem
necessariamente se responsabilizar pelo dizer. A utilização das aspas é
a forma de inserção do discurso direto mais frequente na mídia e nas
notícias online, mas o recorte de um discurso pode também ser marcado
pelo uso de itálico e travessão.
3 A sobreasseveração em circulação: heterogeneidade
constitutiva com ares de mostrada
Os conceitos de sobreasseveração e aforização, brevemente
expostos anteriormente, começaram ser delineados por Maingueneau
(2008) na obra “Cenas da Enunciação”, em um texto em que o autor
parece estar construindo o raciocínio, elaborando a “teoria”. No último
parágrafo do texto, ele chama a atenção para a distinção entre a lógica da
sobreasseveração e a lógica da aforização:
70
André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites
Parece-nos preferível não confundir uma lógica de
sobreasseveração - que faz aparecer uma sequência sobre
um fundo textual - e uma lógica de aforização (para ser
exato, um destaque aforizante), que implica um tipo de
enunciação totalmente diferente, uma outra figura do
enunciador e do coenunciador, do estatuto pragmático
do enunciado. (MAINGUENEAU, 2008, p. 92, grifos do
autor)
Segundo o autor, a sobreasseveração decorre do destacamento
realizado pelo próprio locutor do texto-fonte, por meio de recursos
coesivos, posicionais, sintetizadores ou reformuladores. Dependendo de
sua circulação, esse elemento destacável pode tornar-se, posteriormente,
destacado, isto é, um trecho destacado pelo autor de determinado texto
pode vir a se tornar um dito ou uma frase feita.
Tomemos um exemplo de nosso corpus. Em um debate com
seu adversário, José Serra, ao responder uma pergunta sobre a
descriminalização do aborto, a candidata Dilma Rousseff afirmou ao final
de sua argumentação: “Entre prender e atender, eu fico com atender”.
Como locutora do texto-fonte, a debatedora marcou esse trecho como
destacável (por seu caráter generalizante e sintetizador de uma posição,
e pela posição final no texto). Ao cunhar essa “pequena frase”, um
enunciado de fácil circulação, ela antecipou um destacamento, e, assim,
produziu uma sobreasseveração. A depender de suas condições de
circulação, essa sobreasseveração poderia vir a passar de um enunciado
destacável para destacado e transformar-se em uma palavra de ordem,
um dito.
A circulação dessa sobreasseveração traz à tona outras questões
discursivas: a) em um posicionamento (aqui entendido como sinônimo de
formação discursiva) ligado aos direitos das mulheres, a sobreasseveradora
71
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
Dilma (não o sujeito empírico) da frase “Entre prender e atender, eu fico
com atender” apresenta-se como alguém favorável à vida. Dessa forma,
essa sobreasseveração pode ter como paráfrases: “Não se deve colocar
em risco a vida da mulher”; “A mulher tem direito de optar entre ter
filhos ou não e escolher o melhor momento para fazê-lo”; “O fato de o
aborto ser considerado crime marginaliza a mulher, levando-a a praticar
o ato sem as mínimas condições de higiene e sem assistência, o que
resulta em morte”, etc.; b) em um posicionamento discursivo ligado ao
campo religioso, a sobreasseveradora será vista como alguém que atenta
contra a vida, pois serão evocadas questões de outro caráter, como:
“Onde fica o direito à vida do bebê?”; “Quem é essa mulher desumana
que não reconhece os direitos do feto, que ignora que a vida tem início
na concepção?”.
Maingueneau (2008, p. 83) assevera que a sobreasseveração é “muito
presente nas mídias contemporâneas”, e relaciona-a ao fenômeno das
pequenas frases, que ele define como “enunciados curtos que, durante
um curto período de tempo, vão ser intensamente retomados nos
programas de informação”. Conforme o autor, não é possível definir
se essas ‘pequenas frases’ são assim porque os locutores dos textos de
origem as quiseram assim, isto é, destacáveis, destinadas à retomada
pelas mídias, ou se são os jornalistas que as dizem dessa forma para
legitimar seu dizer.
Sobre o processo de produção de uma notícia que relata falas
incidem diversas ações empíricas que modificam e afastam o recorte
de fala de sua fonte. Porém, na circulação discursiva das notícias, o
sobreasseverador é posto assinando a fala que se destacou do texto. Essa
imagem discursiva pode vir a ser assumida ou contestada, conforme o
locutor-fonte concorde que ele seja aquele sobreasseverador ou afirme
que não foi aquilo que falou. Trata-se, mais uma vez, de uma questão de
circulação.
72
André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites
É bastante comum que a autonomização da sobreasseveração frente
ao texto de origem promova “uma transformação do enunciado, ou de
um ou de outro de seus parâmetros enunciativos, quando ele passa ao
paratexto” (MAINGUENEAU, 2008, p. 83). Mesmo nos casos em que
os enunciados “mantêm um elo com um texto de origem” (os chamados
destacamentos fracos), não existe, necessariamente, fidelidade do texto
relatado com o discurso de origem, o que confirma os resultados dos
numerosos estudos sobre o discurso direto, que mostram seu caráter
de simulação e a intervenção da máquina midiático-discursiva. Essas
transformações devem-se ao posicionamento do veículo e consistem,
muitas vezes, em manobras de eliminação de modulações, que reforçam
“a autonomia e o caráter lapidar do enunciado”, possibilitando sua
sobreasseveração (MAINGUENEAU, 2008, p. 86).
Essas manobras discursivas não podem ser atribuídas a um agente
específico, uma vez que a produção da notícia é uma atividade conjunta.
Trata-se de uma elaboração da maquinaria midiático-discursiva, grande
organismo que envolve diferentes atores e processos, peças constitutivas
de uma engrenagem, cada qual com uma finalidade específica na
manutenção e propagação de práticas discursivas. Dessa forma, a
circulação da sobreasseveração constitui um caso de heterogeneidade
constitutiva que se apresenta como heterogeneidade mostrada.
4 Sobreasseverações, citações e silenciamento
No funcionamento de sobreasseverações e citações, observamos
que a maquinaria midiática, em suas práticas discursivas, realiza opções
que ora envolvem o silenciamento de enunciados, ora submetem as
sobreasseverações a manobras diversas, como inclusão, modificação,
exclusão e/ou apagamento de partes do enunciado. Neste artigo,
trataremos com mais vagar das manobras de apagamento e de
inclusões justificadas pelas coerções da maquinaria e indiciadoras do
posicionamento do veículo de comunicação.
73
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
Partimos do princípio de que o silêncio é fundador, ou seja, que o
silêncio é aquele que “existe nas palavras, que significa o não-dito e que
dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar”
(ORLANDI, 2010, p. 24), portanto mesmo em inclusões, alterações/
modificações e exclusões podemos falar em silenciamentos, manobras
que são atreladas às retomadas de fala.
É importante ressaltar que “sem considerar a historicidade do
texto, os processos de construção dos efeitos de sentidos, é impossível
compreender o silêncio” (ORLANDI, 2010, p. 45); só é possível
observá-lo pelos efeitos que ele produz, e pelos diferentes modos de
significar nesses textos, pelas falhas que ele apresenta, pelos traços e
pistas deixados ao longo dos discursos. Nessa linha de raciocínio, “[...]
o sentido é sempre produzido de um lugar, a partir de uma posição
do sujeito – ao dizer, ele estará, necessariamente, não dizendo ‘outros’
sentidos. Isso produz um recorte necessário no sentido” (ORLANDI,
2010, p. 53), recorte que observamos como operado por uma tomada de
posição, um posicionamento pelo produtor da notícia, que se apresenta
em forma de retomadas de sobreasseverações nas notícias geralmente
publicadas em veículos impressos e digitais.
Descontextualizados, os recortes de falas que compreendem as
notícias online podem assumir sentidos diferentes, ser utilizados como
mecanismos de produção de sentidos. Alguns mecanismos frasais são
lembrados por Orlandi (2010) como os responsáveis por atribuir ao
silêncio uma identidade positiva. A autora elenca a elipse, a reticência, a
descontinuidade temática, a subdeterminação semântica e a preterição.
Acrescentamos a essa lista aqueles que se relacionam de perto à
retomada das sobreasseverações, com destaque ao aspeamento que
produz no texto um efeito de verdade nas sobreasseverações fortes, em
que o leitor não tem acesso ao texto fonte. O uso das aspas em textos
sobreasseverados atribui pelo menos dois sentidos diferentes: o efeito
de recorte literal de um texto fonte e o de distanciamento em torno do
que é dito. Maingueneau (2008, p. 91) reforça essa ideia ao afirmar que
74
André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites
a sobreasseveração, qualquer que seja a modalidade,
implica uma figura de enunciador que não apenas diz,
mas que mostra que diz o que diz, e presume-se que
o que ele diz condensa uma mensagem forte, induz a
uma tomada de posição exemplar. A sobreasseveração
estabelece uma asserção que leva a uma responsabilidade
diante do mundo.
A utilização das aspas que proporciona o silenciamento e a produção
de sentidos se apresenta como mecanismo que afasta o apagamento de
imparcialidade em relação à notícia veiculada. Atribuir o dizer ao outro é
um procedimento muito recorrente em textos da maquinaria midiática,
como podemos perceber nas notícias online de nosso corpus e na maior
parte de revistas e jornais em circulação.
A sobreasseveração vinculada à maquinaria de produção de notícia
online manifesta/operacionaliza mecanismos de silenciamento, o que
evidencia a incompletude constitutiva da linguagem. Por isso, para se
compreender o funcionamento das sobreasseverações retomadas em
citações nas notícias online, também é necessário compreender o silêncio,
atribuindo-lhe estatuto de sentido, presente tanto na ausência quanto na
presença de palavras, no distanciamento de sua fonte de origem, no dito e
no não-dito dos discursos, o que nos permite observar a sobreasseveração
também em seu caráter histórico. Os movimentos da seleção, do recorte
e da circulação a que as sobreasseverações são submetidas contemplam
sentidos envoltos em silêncio: ao mesmo tempo em que a alteração de um
enunciado marca um posicionamento, também silencia posicionamentos
diferentes, contrastantes, inadequados, desnecessários.
75
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
5 Manobras da maquinaria midiática na produção de
notícias online
5.1 Silenciamento: omissão/exclusão de sentidos
Levantamos neste trabalho a discussão em torno do funcionamento
do silenciamento como prática da maquinaria de produção de notícia
online. Para que um jornal selecione um recorte do debate televisivo
e o coloque em evidência nas notícias, deve operar um movimento
pragmático de escolha daquilo que convém ao jornal ser evidenciado,
são as coerções da máquina midiática. Uma das características bastante
recorrentes no processo que compreende a saída da sobreasseveração
para figurar na composição de notícias online em forma de citação se dá
pela omissão ou exclusão de palavras.
A própria seleção de uma porção da fala de atores políticos no debate
político-televisivo já opera o apagamento de um contexto maior, de uma
porção maior de texto, de um sentido mais amplo. Esse apagamento
pode se evidenciar por uma exclusão, uma ação de “jogar para fora”
da notícia aquilo que não convém ou não pode ser dito, característica
essa relacionada com o movimento pragmático de retirar da fala do ator
político aquilo que não pode ser dito dentro da notícia daquele veículo
de informação. Essas ações cumprem um papel pragmático-discursivo
de adequação ao posicionamento, de escolha, de recorte, de pôr em
evidência um e não outro enunciado. Vejamos alguns exemplos em que
esses apagamentos se processam:
(1)
José Serra: você disse com clareza no debate na FOLHA,
na UOL, que era a favor da liberação do aborto, depois diz o
contrário. (BAND)
UOL: Na questão do aborto, você disse isso no debate da
Folha, no UOL, que era a favor do aborto.
76
André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites
(2)
Dilma Rousseff: E aí o que aconteceu, há hoje uma denúncia
em que você, o Juiz te denunciou e você hoje é réu por calúnia,
pelo crime de calúnia e difamação. (BAND)
Veja: “Você precisa ter cuidado para não ter mil caras, está
sendo processado por calúnia.”
No exemplo da retomada da fala elaborada por UOL, em (1),
podemos observar que há o apagamento da sequência “depois diz o
contrário”, que se refere a Dilma, em forma de crítica, por ela não se
posicionar claramente em relação ao aborto. Reconhecemos que as
notícias sofrem coerções de conteúdos, muitas vezes devido à velocidade
entre o acontecimento e sua publicização na web, que pode acabar
impondo cortes a fim de, rapidamente, por a notícia em circulação.
Contudo, é difícil acreditar que esse apagamento ocorra por acaso ou
se deva às coerções do gênero relacionadas ao trabalho do jornalista
propriamente dito.
Quando o site retoma a fala de Serra, ao dizer que Dilma Rousseff é
a favor do aborto, e omite “depois diz o contrário”, parece-nos que esse
apagamento deixa de comprometer a candidata como uma pessoa que se
diz a favor em um momento e contra em outro. Assim, não caracteriza
Dilma como contraditória, sentido produzido pela fala de José Serra.
Para todo político, é muito importante ter uma posição que não evidencie
desvios de conduta, de moral; o ethos de “virtude” (CHARAUDEAU,
2006, p. 122) seria abalado se a candidata se posicionasse de formas
diferentes, em momentos diferentes.
Em (2), também se opera um apagamento quando VEJA exclui da
lista de crimes de Serra, levantados por Dilma, a “difamação”. Em termos
jurídicos há diferença entre calúnia e difamação. Embora ambas estejam
muito próximas, de acordo com Gonçalves (1999), a calúnia consiste
em atribuir, falsamente, a uma pessoa a prática de um ato criminoso. Já
77
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
a difamação consiste em atribuir a alguém um fato que seja desonroso,
que ofenda a reputação de alguém.
Nesse sentido, os apagamentos de “difamação” e do autor da
denúncia, o Juiz, provocam relevantes efeitos de sentido, por dois
motivos: porque “difamação” e “calúnia” são termos jurídicos que não
representam um único tipo de crime; porque ser acusado por calúnia
e difamação por seu oponente político poderia ser, de certa forma,
aceitável dentro de uma disputa política. Mas, ser acusado por um Juiz
tem um peso maior, em termos de argumentação, se pensarmos que
o Juiz, autoridade em direito, conhecedor das leis, é quem irá julgar o
candidato que teria caluniado e difamado outrem. Aparentemente,
ser denunciado por um Juiz implica estar direcionado à condenação.
Esses sentidos, apagados pelos recortes operados por VEJA, parecem
coadunar-se com a posição política da revista.
O apagamento que levantamos neste tópico não diz respeito somente
a exclusões de trechos ou palavras. As retomadas das sobreasseverações,
em forma de citações, em si já são evidências de silenciamentos que
produzem sentidos. O processo de destextualização já é, em parte,
responsável por esse apagamento, pois quem seleciona um texto o faz de
um lugar discursivo, para expor aquilo que convém a seu posicionamento.
A manobra de apagamento operacionaliza, ainda, outros mecanismos
de silenciamento, como podemos observar nos exemplos (1) e (2), em
que há o apagamento de trechos ou de palavras, o que nos permite
compreender que o silêncio funciona de maneiras diferentes nos
diferentes processos de recorte, seleção e circulação de discursos.
A manobra de omitir ou de apagar parte ou partes do texto destacado
está presente em quase todos os exemplos levantados no corpus. São mais
do que adequações entre as modalidades da fala e da escrita, indo além
do uso do discurso direto e das aspas. Como foi possível observar nos
exemplos (1) e (2), essas retomadas de fala são tomadas de posição que,
pelo uso dessas manobras, operam um direcionamento pragmático de
sentidos dentro do texto.
78
André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites
5.2 Ampliação ou inclusão de informações
Por ampliação compreendemos uma ação metadiscursiva que resulta
em amplificação de sentido, isto é, o dizer é intensificado a ponto de
alterar o sentido do discurso. Essa é uma manobra que tem a intenção de
chamar a atenção ou direcionar a compreensão do interlocutor, o leitor.
Vejamos o exemplo a seguir:
(3)
Dilma Rousseff: Você [Serra] regulamentou, até eu concordo
com a regulamentação, porque eu sou contra tratar a questão
das mulheres, das duas mulheres que morrem por dia, ou
um dia sim um dia não, por aborto, como uma questão de
polícia. (BAND, grifos nossos)
Carta Capital: Desde o início da polêmica, Serra vem
dizendo que Dilma defende o aborto, mas a candidata insistiu
e mostrou que ela defende é que ele deixe de ser considerado
crime, pois coloca milhares de mulheres pobres sob risco de
morte. “Concordo com a regulamentação (feita por Serra, em
1988). São milhares de mulheres que praticam aborto em
condições precárias (a cada ano).” (grifos nossos)
Em relação aos grifos, no exemplo (3) podemos observar que a fala
de Dilma Rousseff no debate da BAND traz à luz a discussão em torno
das mulheres que morrem por praticarem abortos. Em seu discurso,
a candidata afirma que são “duas mulheres que morrem por dia” em
consequência do aborto. Em seguida, especifica que essas mortes
ocorrem “um dia sim um dia não”. Mesmo parecendo contraditório, ela
menciona em sua fala que são duas mulheres que morrem por dia ou ainda
que duas mulheres morrem em um dia e no outro não morre nenhuma,
e assim sucessivamente. Na notícia online, CARTA CAPITAL informa
ao leitor que são “milhares de mulheres que praticam aborto”. Nessa
79
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
alteração enunciativa, ocorre uma ampliação de uma ou duas “mulheres
que morrem por dia”, na fala de Dilma, para “milhares” no relato de
CARTA CAPITAL. O referente também é modificado, deixando de
ser “mulheres que morrem” e passando a ser “mulheres que praticam
aborto”, mudança que certamente resulta em um número bem maior.
Essa mudança de sujeitos dá maior amplitude ao problema do aborto
porque evidencia outros índices, altera a informação apresentada pela
candidata, sem deixar de responsabilizá-la pela fala. As aspas cumprem
esse papel de atribuir a Dilma o dizer.
A ampliação aí ocorrida é notável. Se fizermos um cálculo da
quantidade de mulheres a que Dilma se refere, duas, não chegaremos ao
total de “milhares” de CARTA CAPITAL. Ainda que considerássemos
duas mulheres, dia sim e dia não, ou mesmo duas diariamente não
chegaríamos sequer a um milhar, quantidade distante da apresentada
pela revista. Há neste exemplo pelo menos três manobras discursivas,
funcionando simultaneamente:
•
a de ampliação do referente, uma vez que há uma diferença
quantitativa em relação aos referentes dos dois discursos;
•
a de alteração da mensagem informada, que pode remeter a um
outro dado estatístico, uma vez que CARTA CAPITAL não traz
a quantidade de mulheres que morrem por causa do aborto, e
sim a quantidade de mulheres que praticam o aborto;
•
o uso das aspas para marcar o discurso direto, isentando a revista
da responsabilidade sobre o que é dito.
Essa relação entre a quantidade de pessoas que praticam o aborto
e a quantidade de pessoas que morrem por praticá-lo não nos parece
80
André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites
simétrica (todas as mulheres que praticam aborto morrem?). Mas, a
informação da revista pode direcionar o leitor à interpretação de que
todas as mulheres que praticam o aborto, em situações precárias, morrem.
O emprego do verbo “praticar” denota certa recorrência e liberdade
em relação à escolha de abortar ou não, ao mesmo tempo em que
evidencia uma repetição dessa prática na sociedade. Durante toda sua
campanha, Dilma sofreu muitas críticas relacionadas a essa temática.
Por esse motivo, o verbo “praticar”, de certa forma, retoma o sentido
de facilitação ao procedimento de aborto que faz parte da memória do
eleitorado, assim como o sentido envolto ao discurso de aceitação por
parte da candidata que se mostra, na fala, favorável à regulamentação
dessa prática. “Praticar” é um verbo de ação e, inserido dentro do discurso
de Dilma, como foi possível observar em (3), evidencia em CARTA
CAPITAL um sujeito que deixa de ser passivo, alguém que sofre por
causa do aborto, e passa a ser ativo, que “pratica” a ação. Transformase numa relação de causa (apontada por Carta Capital) a consequência
(apresentada por Dilma Rousseff), evidenciada, respectivamente, por
uma contradição entre um sofrer (a morte) e um agir em relação ao
aborto.
A fala de Dilma possibilita a interpretação de que a mulher sofre
por consequência do aborto; já em CARTA CAPITAL a mulher é a
responsável pelo aborto porque é ela quem o pratica. A amplificação
dos dados dá outra dimensão ao problema, intensifica-o de tal modo
que a situação sai de duas por ano, como exposto na fala de Dilma, para
milhares ao ano, na notícia da revista.
Da mesma forma que ampliaram o referente em (3), também os
veículos inserem informações que vão além de adequação entre as
modalidades falada e escrita. No mesmo exemplo, podemos observar
na fala da candidata que as mulheres que morrem por aborto não são
especificadas, (trata-se simplesmente “das mulheres que morrem”).
CARTA CAPITAL inclui o adjetivo “pobres” à informação, afastando
81
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
a possibilidade de mulheres ricas ou mulheres de outra classe social
também correrem esse risco.
O sentido da fala de Dilma é alterado por essa informação que
delimita e especifica quem são as mulheres que morrem por consequência
do aborto. No decorrer da pesquisa, percebemos diversos indícios de
que CARTA CAPITAL tendeu em favor da eleição de Dilma Rousseff.
Nesse sentido, vemos que a especificação das mulheres por CARTA
CAPITAL está relacionada ao discurso do PT, voltado aos mais pobres,
ou seja, ao posicionamento político do jornal.
Considerações finais
Foi possível observar no decorrer das reflexões aqui empreendidas
que a retomada de enunciados sobreasseverados é parte do mecanismo
de uma sofisticada, complexa e heterogênea maquinaria midiáticodiscursiva, que produz e põe em circulação notícias online. Ocorre,
nesse processo, a articulação do conceito de sobreasseveração com
novas e antigas problemáticas, tais como a heterogeneidade constitutiva
e a heterogeneidade mostrada, o discurso relatado, o silenciamento e
as aforizações. Todos esses elementos estão envolvidos no processo
de seleção, recorte, produção e circulação da notícia, e exercem um
importante papel no efeito de autenticidade, distanciamento ou
aproximação do dizer e na objetividade pretendida pela maquinaria
midiática.
Observamos que tanto manobras que silenciam e excluem quanto
manobras que ampliam o dizer sobreasseverado pelos candidatos são
comuns e recorrentes na composição das notícias e indispensáveis para
compreender o funcionamento das notícias online construídas sobre relatos
de fala. Acreditamos ter deixado claro que as manobras discursivas que
incidem sobre a construção da notícia online estão ancoradas na contínua
retomada de dizeres que envolve as heterogeneidades constitutiva
82
André William de Alves dr Assis e Sonia Aparecida Lopes Benites
e mostrada. As alterações nas retomadas de sobreasseverações que
compõem as notícias online se manifestam como manobras discursivas
dessa sofisticada maquinaria midiática que envolve o complexo processo
de produção onde intervêm fatores e atores diversos.
Referências
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Heterogeneité Constituvive: élements pour une approache de l’autre
dans le discours. DRLAV Revue de linguistique. Paris, Centre de
Recherche de l’Université de Paris VIII, 26, 1982.
__________. Heterogeneidade(s) Enunciativas. Trad. Celene M. Cruz e
João Wanderley Geraldi. Cadernos de Estudos Linguísticos, n. 19, p.
25-42, Jul/dez, 1990.
__________. Entre a Transparência e a Opacidade. Um Estudo
Enunciativo do Sentido. Tradução de E. Lemos. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004.
BENITES. Sonia. A. L. Contando e fazendo história: a citação no
discurso jornalístico. São Paulo: Arte e Ciência; Assis: Núcleo Editorial
Proleitura, 2002.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. Trad. Fabiana Komesu e
Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2006.
GONÇALVES, Victor Eduardo. Direito Penal: dos Crimes Contra a
Pessoa. São Paulo: Saraiva, 1999.
MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. São Paulo:
Parábola, 2008.
___________. Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo:
Parábola, 2010.
83
Sobreasseverações na Mídia ONLINE: Articulações de Conceitos Emergentes e Estabilizados
___________. Análise de Textos de Comunicação. 6. ed. São Paulo:
Cortez, 2011.
___________.Les prhases sans texte. Paris: Armand Colin, 2012.
ORLANDI, Eni Pucineli. As formas de silêncio. Campinas:
UNICAMP, 2010.
SALGADO, Luciana Salazar. Ritos genéticos editoriais: autoria e
textualização. São Paulo: Annablube; FAPESP, 2011.
84
GENRES ET GRAMMAIRE DANS L’ARTICLE
PREMIER DE LA DÉCLARATION UNIVERSELLE
DES DROITS DE L’HOMME
Simon Bouquet
Université Paris Ouest - C.N.R.S. ITEM – C.N.R.S. MoDyCo
A quoi aspirent les innombrables et différentes
cultures? Elles aspirent, à partir des données largement
différentes de leur expérience historique, anthropologique
si l’on veut, elles aspirent à quelque chose, vous l’appelez
transcendance, c’est un terme qui me convient tout à
fait. C’est l’aspiration vers qui me parait la chose à détecter.
(Stéphane Hessel (in Bouquet et Hessel, 2012)
Il y faut mieux qu’une connaissance. Il y faut une
poétique de cela qui advient sans cesse autour de nous.
Edouard Glissant et Patrice Chamoiseau, L’intraitable beauté du
monde.
RESUMO
Este artigo inicialmente apresenta de forma sucinta a epistemologia néo-saussuriana, que se
pode designar como uma linguística da interpretação, fundada principalmente com base no
manuscrito Da dupla essência da linguagem de Ferdinand de Saussure. Em seguida, aplicase essa epistemologia a uma análise semântica do artigo primeiro da Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 85-118, jan./jun. 2014
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
RÉSUMÉ
Cet article présente succinctement l’épistémologie néo-saussurienne de ce
qu’on peut appeler une linguistique de l’interprétation – fondée notamment sur le
manuscrit retrouvé De l’essence double du langage de Ferdinand de Saussure – et
l’application de cette épistémologie à l’analyse sémantique partielle de l’article
premier de la Déclaration universelle des droits de l’homme.
PALAVRAS-CHAVE
epistemologia néo-saussuriana; linguística da interpretação e Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
MOTS-CLÉS
épistémologie néo-saussurienne; linguistique de l’interprétation et Déclaration universelle des
droits de l’homme.
Introduction
Notre propos, ici, est de montrer comment l’épistémologie
saussurienne – ou, pour mieux dire, l’épistémologie néo-saussurienne – est
un cadre permettant l’analyse de la relation entre genres et grammaire.
Néo-saussurienne, cette épistémologie n’est pas fondée sur le Cours
de linguistique générale mais sur les textes saussuriens originaux1. Elle
s’oppose d’ailleurs diamétralement au célèbre Cours, en postulant trois
thèses liées: (1) la thèse que la description des objets de langue est
intégralement concevable sur une base sémiotique2; (2) la thèse que cette
base sémiotique peut être étendue à la description des objets de parole ;
(3) la thèse que l’objet essentiel de la linguistique peut être vu, sur cette
double base, comme la description de l’articulation inséparable des objets de
Notamment De l’essence double du langage (in Saussure, 2002)
Cette thèse, regardant la phonologie et la syntaxe, n’est pas postulée par le Cours, contrairement
aux textes originaux.
1
2
86
Simon Bouquet
langue et des objets de parole3. Une telle compréhension de la perspective
scientifique saussurienne, ayant pour conséquence de dessiner les lignes
d’une refondation herméneutique de la science du langage, y projette
aussi l’épistémologie d’une linguistique des genres.
Dans une première partie, nous exposerons cette épistémologie en
la résumant dans un ensemble de principes qui la sous-tend4. Dans un
second temps, nous illustrerons son application à l’analyse sémantique
partielle de l’article premier de la Déclaration universelle des droits de
l’homme (1948).
1 Une épistémologie néo-saussurienne pour une
linguistique des genres
1.1 Principe de scientificité
Le principe de scientificité, déterminant le caractère proprement
épistémologique du programme saussurien, est simple: il postule que
la linguistique est une science exacte. En cela, elle doit satisfaire aux critères
de scientificité qui sont ceux des sciences exactes: (1) la littéralisation
(désignation algébrique de ses objets); (2) la formalisation (écriture
formelle de ses lois); (3) la falsifiabilité (caractère réfutable de ces lois).
C’est en analysant comment la grammaire comparée – science du son
– satisfait à ces trois critères généraux, et en étendant ceux-ci à une
linguistique du sens, que Saussure pose ce principe de scientificité, dont
le critère de littéralisation est garanti par un principe distinct: le principe
de différentialité (cf. infra, 1.6.).
Cette troisième thèse est énoncée ainsi dans De l’essence double du langage: «Sémiologie =
morphologie, grammaire, syntaxe, synonymie, rhétorique, stylistique, lexicologie, etc., le tout étant
inséparable» (Saussure, 2002, p. 45). Elle contredit le postulat, fameux mais apocryphe, concluant
le Cours de linguistique générale: «La linguistique a pour unique et véritable objet la langue envisagée
en elle-même et pour elle-même».
4
Pour un exposé plus détaillé des présents principes, cf. Bouquet, 2012.
3
87
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
1.2 Principe d’empiricité
Science exacte, la linguistique s’applique nécessairement à un
objet empirique. En tant que tel, cet objet devra: (1) s’inscrire dans un
dispositif d’observation au sein d’une triade observateur/observatoire/
objet observable; (2) être doté de coordonnées spatio-temporelles. L’audace de
l’épistémologie saussurienne est de postuler un tel principe, connexe au
principe de scientificité, relativement à un objet d’esprit5.
Ce principe d’empiricité est opérant car le dispositif d’observation
propre à la linguistique est le suivant: (a) l’observateur est un sujet parlant
– ou, plus précisément, l’esprit d’un sujet parlant –; (b) l’observatoire est,
semblablement, l’esprit de ce sujet parlant – doué de sa compétence
de locuteur d’une langue, ainsi que de l’aptitude, pouvant être dite
métalinguistique, à observer un fait langagier –; (c) l’objet observable est
une séquence de langage, prenant également place, à fin d’observation,
dans l’esprit de ce sujet parlant. Quant aux coordonnées spatiotemporelles assignables à la séquence de langage analysée – c’est-à-dire
quant à l’attestation du fait actuel de l’existence spatio-temporelle de cette
séquence de langage – elles ne peuvent être rapportées qu’à l’évènement
de son interprétation6 (par opposition à l’événement de la production de
cette séquence – largement opaque au dispositif d’observation décrit,
regardant les unités de signifié). C’est d’un tel dispositif et de telles
coordonnées spatio-temporelles que relève l’observation d’une séquence
de langage analysée, par exemple, dans une publication scientifique de
C’est parce qu’elle définit comme objet d’esprit le phonème – unité bien identifiable du
signifiant et objet d’une science exacte (la grammaire comparée) – et parce qu’elle conçoit, au
plan du sens, les unités du signifié comme relevant de correspondances terme à terme avec des
compositions d’unités de signifiant, que cette épistémologie, déliant l’analyse du sens de toute
référence à un référent tiers, peut postuler qu’un objet d’esprit est passible d’une science exacte.
– Dans la terminologie de son époque, Saussure qualifie l’objet de la linguistique comme «un
objet de nature concrète bien que purement spirituel» (CLG/E 1.44.263, cours de linguistique
générale de 1910-1911 – Saussure 1968, p. 44)
6
Interprétation doit s’entendre ici dans son sens technique en linguistique : comme désignant le
fait immédiat de la compréhension (par opposition à la non-compréhension) – fait dont répond
par ailleurs le principe de sémioticité (cf. infra).
5
88
Simon Bouquet
linguistique: cette séquence existe d’abord dans l’esprit de l’auteur de
cette publication; ultérieurement, elle existe dans l’esprit de chacun
de ses lecteurs. On pourrait juger cette caractérisation du dispositif
trop générale car valant pour toutes les sciences; elle s’avère pourtant
spécifique sur un point déterminant: dans la généralité des sciences
exactes, l’objet observé par l’esprit de l’observateur existe aussi hors de
l’espace de l’esprit; ce n’est pas le cas en linguistique.
Le principe d’empiricité ainsi défini implique que l’analyse est
reproductible. Et que la linguistique qui l’adopte est par définition une
linguistique de l’interprétation.
1.3 Principe de sémioticité
Le principe de sémioticité, définissant la nature des objets observables,
permet leur identification et leur classification. Selon ce principe, les
objets observables sont exclusivement des signes. La notion de «signe» désigne
la conjonction de deux éléments distincts: un signifiant et un signifié –
cette définition d’un signe biface est donnée par Saussure relativement
à la langue; elle se laisse étendre à la parole (cf. infra, 1.5. Principe
d’herméneuticité). Les signes sont stabilisés par leur appartenance à un
système; celui-ci est saisi par le point de vue synchronique, considérant
la coexistence, dans l’esprit d’un sujet parlant, de tous les signes (actuels
ou virtuels) ressortissant à la compétence linguistique de ce sujet7.
Homogènes quant à leur caractère biface et quant à leur caractère
compositionnel (cf. infra, 1.4.) les signes de langue appartiennent à
trois espèces compositionnelles : celle du phonème (unité minimale de
signifiant) et de ses composés ; celle du morphème (unité minimale de
signifié) et de ses composés; celle de la position syntaxique et de ses
composés8. Ces trois espèces englobent l’intégralité des objets pouvant
7
La langue est «un système de signes totalement indépendant de ce qui l’a préparé et tel qu’il
existe dans l’esprit des sujets parlants» (De l’essence double… in Saussure, 2002, p. 43)
8
Dressant la liste de «toute espèce de signe existant dans le langage», Saussure écrit: «1° le signe
vocal de tout ordre: signe complet tel qu’un mot, ou un pronom, signe complémentaire comme
89
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
être décrits par des grammaires de langue. Ainsi toute grammaire de
langue est-elle une grammaire sémiotique9. (La pertinence d’une
description sémiotique de la langue est confirmée par le fait que l’espèce
compositionnelle des signes se combine avec leur mode de signification
dans la typologie fondamentale icône/indice/symbole de C. S. Peirce.
Ainsi, par exemple, des valeurs de sens prises par des phonèmes, dans
la poésie par exemple, relèvent-elles de l’iconicité ; ainsi, la catégorie
grammaticale générale de l’anaphore correspond-elle à une indexicalité
intra-segmentale, et la catégorie de la deixis à une indexicalité extrasegmentale.)
1.4 Principe de compositionalité
Le principe de compositionalité pose que la linéarité d’une séquence
de langage, analysée comme la composition de signifiants de langue,
conjugue deux types d’articulation:
(1) une articulation interne à chacune des trois espèces compositionnelles (phonème,
morphème, position syntaxique) – articulation dans laquelle, semblablement,
les unités sémiotiques minimales de chaque espèce compositionnelle
se composent en plexus d’unités de la même espèce (ainsi, au palier
phonologique, l’unité phonème se compose dans le plexus syllabe qui se
compose lui-même dans le plexus polysyllabe; au palier morphologique,
l’unité morphème se compose dans des plexus polymorphémiques; au
palier syntaxique, le principe chomskyen de «fusion» n’est autre que
celui de la composition d’unités sémiotiques syntaxiques dans des plexus
sémiotiques syntaxiques);
un suffixe ou une racine, signe dénué de toute signification complète ni complémentaire comme
un “son” déterminé de langue ; ou [2°] signe non vocal comme “le fait de placer tel signe devant
tel autre” (…)» (De l’essence double… in Saussure, 2002, p. 48). Cette conception d’une sémioticité
transversale aux niveaux phonologique, morphologique, lexicologique et syntaxique a échappé
aux rédacteurs du Cours de linguistique générale.
9
«Grammatical = significatif = ressortissant à un système de signes = synchronique ipso facto»
(CLG/E 1.304.2128, cours de linguistique générale de 1909-10 – Saussure 1968, p. 304).
90
Simon Bouquet
(2) une articulation des espèces compositionnelles entre elles – articulation
dans laquelle les plexus maximaux de chaque espèce compositionnelle
constituent l’unité minimale du palier compositionnel supérieur (ainsi:
un plexus maximal de phonèmes constitue l’unité minimale du palier
du morphème; un plexus maximal de morphèmes constitue l’unité
minimale du palier de la position syntaxique).
1.5 Principe d’herméneuticité
Pour autant, l’interprétation d’une séquence de langage par un sujet
parlant n’est pas le simple produit d’une computation ressortissant au
principe de compositionalité. L’interprétation linguistique – et donc sa
description par une linguistique de l’interprétation – fait intervenir un
autre principe: le principe d’herméneuticité. Ce principe stipule que,
dans toute séquence de langage, la valeur des signes de langue (phonèmes, morphèmes,
positions syntaxiques) est déterminée par la valeur d’un signe global (ou «signe de
parole») attaché à la totalité de cette séquence – le signifié de ce signe global
devant s’entendre non comme la somme des signifiés de langue de la
séquence de langage analysée, mais comme un (ou plusieurs) trait(s) de
sens spécifique(s) s’étendant à l’intégralité de cette séquence.
Le terme de genre – bien établi dans les traditions de la rhétorique
et de la théorie littéraire – est précisément employé par Schleiermacher
pour désigner l’objet «globalité» dans la détermination du local par le
global. Il peut s’entendre, regardant une linguistique de l’interprétation,
dans une acception très générale: comme une appellation intuitive
pour désigner un détermination globale du sens – sous forme de traits
globaux de sens – ainsi qu’on l’a défini, pouvant être posé relativement à
tout texte écrit ou oral. De fait, la notion de «signe global» correspond
aussi assez bien à ce que Wittgenstein désigne comme jeux de langage
(en postulant un primat de ces derniers sur la détermination logique du
sens). A ces notions philosophiques et de théorie littéraire font écho des
objets conceptuels plus ou moins intuitifs, familiers à diverses approches
91
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
d’analyse textuelle ou discursive contemporaines, mais souffrant d’un
déficit épistémologique: discours, type, mode, champ générique, sousgenre, registre, domaine, niveau, isotopie, thème, etc.
L’innovation épistémologique néo-saussurienne, en l’occurrence,
consiste à reconcevoir dans une logique sémiotique le thème herméneutique
de la détermination du local par le global. Une telle reconception
sémiotique donne forme à l’articulation inséparable, requise par Saussure,
de la linguistique de la langue et de la linguistique de la parole: en posant
la notion de «signe global», il devient possible de traiter les signifiés de
langue et les signifiés de parole selon une grammaire homogène (cf.
infra, 1.6. Principe de différentialité) et, partant, de formuler des lois qui
décrivent le sens, satisfaisant au principe de scientificité (cf. infra, 1.7.
Protocole méthodologique).
1.6 Principe de différentialité
Du postulat de la coexistence synchronique des signes dans
l’esprit des sujets parlants, Saussure tire pour conséquence une thèse
ontologique qui a marqué l’histoire des sciences humaines: les signes du
langage n’ont pas d’identité propre; interdépendants au sein d’un système, ce sont des
entités purement différentielles. Le principe épistémologique de différentialité
est l’expression de cette thèse. Il stipule que la valeur des signes linguistiques
peut être désignée sur la seule base de cette différence et de cette interdépendance
systémique.10
Ce principe de différentialité suffit à poser un critère de littéralisation
– premier critère du principe de scientificité – propre à la linguistique:
la littéralisation (ou grammaire) de la valeur des signes sera la littéralisation de leur
différence. (Cette littéralisation prendra, par définition, la forme d’une
algèbre du type suivant: soit un corpus de signes a, b, c, d; la valeur du
10
«Les objets [que la linguistique] a devant elle n’ont jamais de réalité en soi, ou à part des autres
objets à considérer; n’ont absolument aucun substratum à leur existence hors de leur différence
ou en DES différences de toute espèce que l’esprit trouve moyen d’attacher à LA différence
fondamentale (…)» (De l’essence double… in Saussure, 2002, p. 65)
92
Simon Bouquet
signe a dans le corpus est littéralisée11: {~b, ~c, ~d}; celle du signe b:
{~a, ~c, ~d}, etc. – ce principe s’appliquant en général, à un type de
signes, ou à toute sous-catégorie ou corpus de signes.). En cela que cette
littéralisation s’étend aux signes de langue et aux signes de parole de
manière homogène – c’est-à-dire: sous une forme algébrique homogène
–ce principe de différentialité sous-tend également la possibilité de
l’écriture formelle de lois – conformément au deuxième critère du
principe de scientificité –, ces lois conjuguant inséparablement, en
l’occurrence, le point de vue d’une linguistique de la langue et celui d’une
linguistique de la parole (cf. infra, Protocole méthodologique).
1.7 Protocole méthodologique (principe de légalité)
Aux principes épistémologiques qui ont été énumérés, répond un
protocole méthodologique, définissant la forme générale que prendront
les lois d’une linguistique de l’interprétation. Ce principe de légalité
peut s’énoncer ainsi: pour décrire le sens d’une séquence de langage quelconque,
la linguistique de l’interprétation opposera cette séquence à une séquence homonyme
et décrira, sous la forme de lois littéralisées et formalisées, les corrélations entre
niveau sémiotique global et niveau sémiotique local, spécifiques à chacune de ces deux
séquences homonymes et déterminant leur différence d’interprétation. 12
Le signe ‘~’ signifie ici «n’est pas».
Concrètement, l’écriture d’une loi de corrélation dans ce cadre méthodologique suppose un
corpus d’interprétation et un corpus de grammaires. Le corpus d’interprétation est composé
des deux séquences de langage homonymes (c’est-à-dire: de deux séquences auxquelles un
sujet-interprète reconnait, pour un même signifiant, deux sens différents – le rôle joué par
l’homonymie tient ici essentiellement au fait que, la loi de corrélation posant, au plan du signifié
global et du signifié local, une corrélation de deux variables, cette loi requiert l’assise d’une
constante: c’est, au plan du signifiant, le segment phonologique, fondement de l’homonymie, qui
remplit cette fonction). Le corpus de grammaires (autrement dit: de littéralisations différentielles
ad hoc) comprend: (a) une grammaire différentielle de la valeur dans ce corpus d’interprétation des
signifiés locaux variant pour chacune des deux séquences; (b) une grammaire différentielle de la
valeur dans ce corpus d’interprétation des signifiés globaux de ces deux séquences.
Sur ces bases, seront opérées les littéralisations et les formalisations suivantes. Soient deux
séquences de langage homonymes [SQ1] et [SQ2]; autrement dit, deux segments phonologiques
(notés [SgPHO]) interprétés comme phonologiquement identiques: [SgPHO(SQ1)] =
[SgPHO(SQ2)], et dont le sens (noté [Sé]), conçu selon un simple jugement de différence, est
interprété comme non identique: [Sé(SQ1)] ≠ [Sé(SQ2)]. Soit le signifié global (noté [SéGL]) de
11
12
93
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Le caractère réfutable des lois ainsi définies – troisième critère
du principe de scientificité – tient à des tests qui peuvent être réalisés
par (sur) des sujets parlants. Ces tests impliquent: (1) un jugement de
différence portant sur le sens global des deux séquences considérées
(test propre à confirmer que les littéralisations grammaticales du signe
global ont un objet réel); (2) un jugement d’acceptabilité relatif à des
procédures de substitution mettant en évidence les sens différentiels des
signes locaux analysés dans chacune des séquences (test confirmant que
les grammaires littéralisant ces sens différentiels ont un objet réel).
On peut tenir que ce protocole méthodologique permet la description
du sens la plus fine possible, et qu’en cela il confirme l’efficace des
principes épistémologiques d’une linguistique néo-saussurienne de
l’interprétation et sa valeur de modèle épistémologique pour une
linguistique des genres.
2 Analyse semantique partielle de l’article premier de la
Déclaration universelle des droits de l’homme13
La Déclaration universelle des droits de l’homme (ci-après DUDH)
est un objet d’analyse particulièrement digne d’intérêt, pour deux raisons
liées: 1° c’est un texte constituant14 par excellence, qui crée en outre un
genre singulier (en cela même qu’il se présente – par son titre et par
chacune de ces deux séquences, représenté par un trait différentiel (TrSéGL…): [SéGL(SQ1)]
≠ [SéGL(SQ2)]; [TrSéGL(SQ1): +X] / [TrSéGL(SQ2): -X]. Soit le signifié d’un signe local
(noté [SéLOs]), dont le signifiant appartient à l’homonymie de ces deux textes (phonème(s) –
exceptionnellement –, morphème, plexus de morphèmes ou structure syntaxique); ce signifié,
affecté d’une variation dans chacune des deux séquences, sera représenté par un trait différentiel
(TrSéLOs…): [SéLOs(SQ1)] ≠ [SéLOs(SQ2)]; [TrSéLOs(SQ1): +a] / [TrSéLOs(SQ2): -a]. La loi
d’interprétation consistera à établir simultanément les deux corrélations suivantes: [TrSéGL(SQ1):
+X] => [TrSéLOs(SQ1): +a] /[TrSéGL(SQ2): -X] => [TrSéLOs(SQ2): -a].
13
Cette section reprend les éléments d’un article paru dans un ouvrage collectif sous la direction
de D. Leeman (Leeman, 2011). Je remercie Danielle Leeman pour ses conseils amicaux lors de
l’écriture de cette section.
14
Sur la notion de «discours constituant», cf. Cossuta et Maingueneau, 1995.
94
Simon Bouquet
sa forme générale – comme un texte juridique, tout en se définissant,
dans son préambule, de manière fort peu juridique comme «un idéal
commun à atteindre progressivement»15); 2° son universalité fait l’objet
de controverses quelque peu enlisées depuis des décennies (la question
irrésolue étant: «La Déclaration de 1948 peut-elle, en elle-même, être tenue
pour un texte universel; ou: ne le peut-elle pas, en cela qu’elle est inscrite
dans une tradition de pensée marquée du sceau de l’Occident?»)16. Or,
c’est précisément sur la base de ces deux particularités que peut se fonder
une analyse interprétative différentielle, qui procèdera de l’hypothèse
suivante: si l’argumentation théorique de l’universalité semble souvent
vouée à une impasse, c’est parce que cette argumentation ne tient
généralement compte 1° ni du fait sémantique que la DUDH se comprend
différemment selon qu’on la lit comme un texte légal ou comme un
texte éthique, 2° ni du fait sémantique que la DUDH peut également se
comprendre différemment dans des contextes culturels divers.
2.1 La DUDH dans les genres «légal» et «éthique»:
sémantique des verbes de l’article premier
L’analyse interprétative, on l’a dit, consiste à établir des corrélations
entre des signifiés globaux différentiels (signifiés de genres) et des
signifiés locaux (signifiés attachés, en l’occurrence, à des morphèmes)
variant dans chacun des genres concernés. On appliquera cette méthode
à l’article 1 de la DUDH:
[Première proposition] Tous les êtres humains naissent libres et égaux
en dignité et en droits. [Deuxième proposition] Ils sont doués de raison et de
conscience [Troisième proposition] et doivent agir les uns envers les autres dans
un esprit de fraternité.
«L’Assemblée Générale proclame la présente Déclaration universelle des droits de l’homme
comme l’idéal commun à atteindre par tous les peuples et toutes les nations (…) [pour que ceuxci s’efforcent] d’en assurer par des mesures progressives (…) la reconnaissance et l’application
universelles et effectives (…)» (DUDH, Préambule)
16
Cf. Bouquet, 2011.
15
95
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Une analyse complète de cet article montrerait que verbes, noms
et adjectifs font l’objet d’actualisations sémantiques distinctes dans les
genres «loi» et «éthique». La place manquant pour développer une telle
analyse, on se contentera de l’illustrer tout d’abord sur le verbe naissent,
puis sur les autres verbes conjugués de cet article 1, dont on examinera
successivement la valeur du morphème de conjugaison (présent de
l’indicatif) dite encore valeur flexionnelle, et la valeur du morphème radical,
dite ici valeur lexicale.
2.1.1 Signifiés globaux
On posera donc formellement, correspondant à la séquence des
mots de l’article 1, l’existence de deux textes homonymes:
1° un texte légal, dont le signifié global sera noté par le trait [+LOI]
(notation différentielle équivalant au trait [– ETHIQUE]);
2° un texte énonçant un idéal éthique, dont le signifié global sera noté par
le trait [+ETHIQUE] (notation équivalant au trait [–LOI]).
Cette grammaire différentielle de genres, construite ad hoc, selon
les principes épistémologiques d’une linguistique de l’interprétation,
– c’est-à-dire construite relativement au seul corpus constitué par les
deux textes homonymes considérés –, sténographie une réalité sociale
facilement identifiable.
Le texte légal a pour source une autorité politique, édictant les lois
régissant la vie collective, dont la non-observance est normalement
passible de sanctions. Il s’agit d’un texte «injonctif» (un ordre),
«déontique» (on doit se plier à cet ordre), à valeur future puisqu’il vaut
à partir du moment où il est énoncé (c’est ce que l’on peut appeler sa
«valeur performative»). Ainsi, par exemple, l’Article 3 de la loi du 10
août 2007 relative à l’autonomie des universités – «Les établissements
déterminent par délibérations statutaires du conseil d’administration
(...)» – s’applique-t-il à partir du moment où ce texte est adopté.
96
Simon Bouquet
Le texte éthique, quant à lui, définit, de manière spéculative,
des comportements humains comme positifs ou négatifs – des
comportements considérés comme tels par une morale, par une autorité
religieuse (parlant éventuellement au nom d’une divinité), voire par
une coutume – sans pour autant qu’une sanction légale ne soit prévue
en cas de comportement non conforme (ainsi, par exemple, le code
déontologique du fonctionnaire). Quand bien même il ne formule
nullement des lois au sens juridique du terme, le genre éthique présente
volontiers ses règles de conduite comme éternelles et universelles : «Il se
faut entraider, c’est la loi de nature» (La Fontaine).
Pour autant, insistons sur ce point, l’analyse ne se fondera ici
– ni sur une théorie objective des genres de textes (l’opposition trait
[+LOI] / [+ETHIQUE] ne valant, comme on l’a signalé, que pour le corpus
considéré)
– ni sur une conception de ce que doit être l’interprétation de la
DUDH ou sur quelque théorie des fondements du droit, mais sur une
observation de ce qu’elle peut être (autrement dit, sur une observation
des variations de sens possibles de deux textes homonymes, ces variations
étant, dans la perspective d’une linguistique de l’interprétation, la seule
réalité pouvant faire l’objet d’une écriture de lois et d’une vérification
expérimentale).
2.1.2 Corrélations entre les signifiés globaux et la valeur
flexionnelle du verbe naissent
Afin de rendre compte de la corrélation entre les valeurs des signifiés
globaux, qu’on vient de poser formellement, et la valeur flexionnelle
(c’est-à-dire la valeur du temps «présent») du verbe naissent, la double loi
suivante peut être formulée, dans laquelle les notations différentielles de
valeurs locales doivent également être considérées comme ad hoc, c’est-àdire relatives au corpus des deux textes homonymes considérés:
97
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
[+LOI] => [+performatif légal]
[+ÉTHIQUE] => [+vérité générale]
En effet, le genre noté [+LOI] actualise une valeur du temps «présent»
du verbe naissent qui peut être notée [+performatif légal] (ou [–vérité
générale]): conformément au genre juridique, ce présent peut être tenu
pour un performatif (énoncer une loi est ce qui lui donne «force de
loi»), contenant les valeurs injonctive et déontique qui ont été évoquées.
Un test de commutation permet d’attester de cette valeur: de même
que, dans l’exemple proposé plus haut, la formule «Les établissements
déterminent, par délibérations statutaires du conseil d’administration (...)»
peut être remplacée salva congruitate par «Les établissements détermineront,
par délibérations statutaires du conseil d’administration (...)», de même,
dans l’interprétation «légale» de la DUDH, il est possible de remplacer le
présent par un futur : Tous les êtres humains naitront libres et égaux en dignité
et en droits.
Dans le genre noté [+ETHIQUE], le présent de naissent prend une
valeur différente de la précédente. Cette valeur, bien reconnue par la
tradition grammaticale comme celle du «présent de vérité générale», sera
donc notée [+vérité générale] (ou [–performatif légal]); elle confère ici
à la DUDH le sens d’un constat: «il est de fait que les hommes naissent
libres et égaux»17. Un test vérifie cette valeur: de même qu’un présent de
vérité générale comme celui de la phrase Les baleines sont des mammifères
ou comme celui de la fable citée ne peut être remplacé salva congruitate par
un futur (on n’aura pas: Les baleines *seront des mammifères ou Il se *faudra
entraider, c’est la loi de nature), de même Tous les êtres humains *naitront libres
et égaux en dignité et en droits est incompatible avec le genre [+ÉTHIQUE].
L’éthique est en effet interprétable comme l’énonciation d’une vérité générale – qu’elle
constate ou qu’elle recherche. Elle s’oppose en cela au texte de loi ou, en tout cas, au caractère
performatif de celui-ci, à l’aune duquel l’énonciation légale, si elle a le pouvoir de faire advenir
une contrainte, n’a pas le pouvoir de faire advenir une vérité.
17
98
Simon Bouquet
2.1.3 Corrélations entre les signifiés globaux et la valeur lexicale
du verbe naissent
Regardant maintenant la valeur lexicale du verbe naissent, la double
corrélation suivante entre signifié global et signifié local peut être posée:
[+LOI] => [+qualité originaire]
[+ÉTHIQUE] => [+destinée]
Dans le genre [+LOI], en effet, la valeur lexicale du verbe naissent –
considérée dans sa construction syntaxique naître X, comme déterminant
l’adjectif ou le substantif attribut – peut être notée [+qualité originaire]
(ou [–destinée]). Cette valeur est celle que prend le verbe naître dans
des énoncés comme Il est né aveugle. Elle implique que l’adjectif ou le
substantif attribut dénote «une qualité possédée, à sa naissance, par un
être vivant ». Référant à un fait objectif et daté, et non à une destinée,
l’existence de cette valeur différentielle dans la langue est attestée par un
test négatif, vérifiant que le terme X ne peut pas être remplacé par pour
être X: de même qu’on n’aura pas, salva congruitate, *Il est né pour être aveugle,
on n’aura pas, dans le genre [+LOI], *Tous les êtres humains naissent pour être
libres et égaux en dignité et en droits.
Dans le genre [+ETHIQUE], la valeur lexicale du verbe naissent –
envisagée semblablement pour la construction naître X – sera notée
[+destinée] (ou [–qualité originaire]). Cette valeur est celle que prend
ce verbe dans des tours comme Il est né poète18. Quant à la qualité
attribuée par l’adjectif ou par le substantif, elle ne se réfère pas à un fait
objectif et daté, mais au contraire à un destin et/ou à la clairvoyance
de dispositions particulières. Un test positif répond de cette valeur: le
terme X dépendant du verbe naître peut être remplacé par pour être X;
Cette valeur se retrouve dans la construction prépositionnelle de naître avec pour : L’homme est
né pour le bonheur.
18
99
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
c’est ainsi que, salva congruitate , on pourra dire Il est né pour être poète et,
dans le genre [+ÉTHIQUE] de la DUDH, Tous les êtres humains naissent pour
être libres et égaux en dignité et en droits.19
2.1.4 Isotopies différentielles et valeurs des verbes de l’article 1
Des traits sémantiques transversaux qu’on peut désigner par le terme
d’isotopie20, propres à chacun des deux genres considérés, lient entre elles
la valeur flexionnelle et la valeur lexicale du verbe naissent:
– dans le genre «légal» une isotopie pouvant être notée [+OBJECTIVITÉ]
(ou [–SPÉCULATIVITÉ]) répond du fait qu’une loi, en ce qu’elle est arbitraire
et sui-référente, énonce une proposition objective, incontestable; cette
isotopie sous-tend la composition de la valeur flexionnelle [+performatif
légal] du verbe naissent (l’acte performatif de promulguer une loi est luimême un acte objectif, incontestable) avec sa valeur lexicale [+qualité
originaire] (une qualité originaire est fait objectif, incontestable);
– dans le genre «éthique», une isotopie pouvant être notée
[+SPÉCULATIVITÉ] (ou [–OBJECTIVITÉ]) s’accorde avec le fait qu’une
proposition éthique, comme toute «vérité générale», ne possède pas le
caractère arbitraire d’une loi: au contraire, spéculative, elle est motivée
(par une représentation, un raisonnement, des expérimentations, etc.)
et peut, eu égard à son caractère motivé, être reconnue, ou discutée, ou
contestée, etc.; cette isotopie [+SPÉCULATIVITÉ] sous-tend la composition
Si la distinction des valeurs [+qualité originaire] et [+destinée] se fonde ici sur un sens «propre»
de la première et un sens «figuré» de la seconde, l’important, pour l’analyse, est que le test de
commutation fait apparaître ces valeurs comme synchroniquement opposées. – Par ailleurs, l’emploi
du verbe naître, dans la construction naître X, semble plus courant à la fin du XVIII° siècle
que de nos jours. Or, la Déclaration de 1948, dans son article 1, réécrit le premier article de la
Déclaration des droits de l’homme et du citoyen de 1789: Les hommes naissent et demeurent libres et
égaux en droits. Il est possible que la DUDH, par sa notoriété, ait contribué à maintenir un tour
déclinant et qu’elle lui ait en outre conféré, dans son contexte, un sens quelque peu hiératique – à
la fois figé et incertain – susceptible de faire obstacle à la conscience des différences virtuelles,
qu’on vient d’analyser, de ses signifiés locaux.
20
Ce terme est utilisé par A.-J. Greimas et F. Rastier, qui nomment également classèmes ces traits
communs. Je le leur emprunte ici pour désigner, de manière générale, des traits relatifs à un
signifié global.
19
100
Simon Bouquet
de la valeur flexionnelle [+vérité générale] du verbe naissent (objet d’une
pensée spéculative) avec sa valeur lexicale [+destinée] (la destinée d’un
individu, ou celle de l’espèce humaine, est un objet conceptuel spéculatif).
Les isotopies différentielles [+OBJECTIVITÉ] et [+SPÉCULATIVITÉ]
mises en évidence quant au verbe naissent lient semblablement la valeur
flexionnelle et la valeur lexicale des deux autres verbes conjugués de
l’article 1.
Quant au groupe verbal sont doués21,
– dans le genre «légal», l’isotopie [+OBJECTIVITÉ] sous-tend la
composition de la valeur flexionnelle [+performatif légal] de ce groupe
verbal avec une valeur lexicale [–agent implicite] – cette dernière,
«adjectivale», correspondant à un emploi de doués constatant un fait
sans se préoccuper de sa genèse (comme dans la phrase cet espace est
doué de profondeur22); l’objectivité de la performativité légale de la DUDH
s’accorde ici avec le caractère constatif (objectif) des qualités légiférées ;
on peut en outre considérer que, ce texte se bornant à signifier une vérité
générale («les êtres humains sont doués de raison et de conscience, c’est
ainsi»), la valeur performative de sont doués revient à l’institutionnalisation
légale de cette vérité générale – et le test du remplacement par un futur,
attestant la valeur flexionnelle, prendra ce fait en considération: «ils seront
considérés/reconnus comme doués...»);
– dans le genre «éthique», l’isotopie [+SPÉCULATIVITÉ] sous-tend la
composition de la valeur flexionnelle [+vérité générale] de ce groupe
verbal avec une valeur lexicale [+agent implicite] cette dernière étant une
valeur «verbale» de doués, héritant par connotation23, contrairement à la
valeur «adjectivale» du genre «éthique», de la structure argumentale du
verbe douer à la voie passive – qui implique l’existence d’un complément
21
On ici considère sont doués à parité avec une forme verbale dans la mesure où le verbe sont est,
sémantiquement, un simple «support d’attribut». (Par ailleurs, on simplifie l’analyse en la limitant
au cas où les propositions contenant les verbes sont doués et doivent sont interprétées comme des
propositions sémantiquement indépendantes.)
22
ou «Le benzole est doué de propriétés antidétonantes», TLF, p. 466
23
On pourrait encore parler, à ce propos, de valeur afférente (cf. note infra).
101
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
d’agent, demeurant implicite en l’occurrence: «les êtres humains ont été
doués de raison et de conscience (par un «agent»), c’est pourquoi ils sont
doués de raison et de conscience».
Quant au verbe doivent,
– dans le genre «légal», l’isotopie [+OBJECTIVITÉ] sous-tend la
composition de la valeur flexionnelle [+performatif légal] de ce verbe
avec une valeur lexicale [+impératif légal] (ou [– impératif moral]) ;
dans le genre «légal» en effet, la valeur déontique juridique portée par le
temps verbal «présent» spécifie une valeur déontique non spécifiquement
juridique portée par le radical de ce même verbe (c’est-à-dire son sens
lexical d’auxiliaire modal) – le test de cette transformation étant que le
présent de doivent peut, ici, être remplacé salva congruitate par un futur;
– dans le genre «éthique», l’isotopie [+SPÉCULATIVITÉ] sous-tend la
composition de la valeur flexionnelle [+vérité générale] de doivent avec
une valeur lexicale [+impératif moral] (ou [–impératif légal]): dans le
genre «éthique» en effet, cette valeur lexicale est celle d’un déontique
ordinaire, non spécifiquement juridique – le test de cette valeur étant que
le présent ne peut pas, ici, être remplacé par un futur.
2.1.5 Le genre «éthique» s’oppose au genre «légal» par une
ouverture de son sens
L’ensemble des analyses qui précèdent concourt à montrer que le
signifié global [+ETHIQUE] détermine un sens plus «ouvert» que le signifié
global [+LOI]. Cette «ouverture» peut être remarquée:
– quant à la valeur flexionnelle (présent) des trois verbes conjugués
de l’article 1: la valeur [+vérité générale] du genre «éthique», non
performative et prêtant à discussion, est plus ouverte que la valeur du
genre «légal», performative et ne prêtant pas à discussion en tant que
telle;
– quant à la valeur lexicale [+destinée] du verbe naissent: celle-ci réfère
dans le genre «éthique» à une qualification plus ouverte – parce que
102
Simon Bouquet
moins certaine – que son opposée qui dans le genre «légal» ne désigne
qu’une qualité originaire objectivée;
– quant à la valeur lexicale [+agent implicite] du groupe sont doués:
référant dans le genre «éthique» à l’existence possible d’une cause – non
explicitement déterminée – des qualités prédiquées, cette valeur est
plus ouverte que la valeur opposée dans le genre «légal» qui exclut cette
référence;
– quant à la valeur lexicale [+impératif moral] du verbe doivent: cette
valeur, dans le genre «éthique», est plus ouverte – quant à la définition
de l’impératif moral, auquel elle renvoie ici encore de manière non
explicitement déterminée – que son opposée référant à un impératif
légal parfaitement déterminé en tant que tel.
Si l’on analysait les valeurs des noms et des adjectifs de l’article
1, il apparaitrait que ces deux isotopies différentielles sont également
agissantes pour la quasi totalité d’entre eux, et que leur sens est,
semblablement, plus «ouvert» lorsqu’il est déterminé par le signifié global
[+ETHIQUE] que lorsqu’il est déterminé par le signifié global [+LOI].
Ce que ces analyses mettent clairement en lumière, c’est que la
DUDH interprétée comme une loi n’est pas, sémantiquement, le même
texte que la DUDH interprétée comme un idéal éthique. Ce faisant,
ces analyses suggèrent qu’une réflexion sur l’universalité ou la nonuniversalité de la Déclaration de 1948 ne saurait faire l’économie d’un
examen préalable du problème d’interprétation soulevé – par un texte
qui se présente lui-même, assez paradoxalement, comme un idéal éthique
énoncé sous forme de loi. De fait, toute réflexion sur l’universalité ou la
non-universalité qui ne serait pas attentive à la sémantique de la DUDH
risquerait de ne pas porter sur un objet réel.
103
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
2.1.6 Deux hypothèses relatives à la plasticité sémantique du
genre «éthique»
La linguistique de l’interprétation ne permet pas seulement d’attirer
l’attention sur la pluralité possible des significations de la Déclaration
de 1948. Cette linguistique peut également, par des analyses plus fines,
contribuer à éclairer la question évoquée en introduction «La DUDH
est-elle légitimement universelle, ou est-elle entachée d’ethnocentrisme?»
– en disqualifiant cette question pour la remplacer par une autre: «Quelles
sont les conditions d’interprétation selon lesquelles la DUDH peut être
comprise (ou non) comme universelle?».
Le fil conducteur propre à guider cette investigation sera fourni par
l’analyse des isotopies différentielles (supra, 2.1.4.) établissant que le genre
«éthique» détermine un sens plus ouvert que le genre « loi». En effet,
ce phénomène, qui peut être également qualifié de plasticité sémantique du
genre «éthique», est propre à inspirer deux hypothèses:
1° l’hypothèse que cette plasticité sous-tend la possibilité que la
DUDH s’interprète différemment en fonction d’arrière-plans culturels
distincts;
2° l’hypothèse que cette plasticité sous-tend également,
conjointement, la possibilité d’une interprétation «non universelle» de la
DUDH et celle de son interprétation «universelle».
Ces hypothèses ne sont pas des spéculations métaphysiques : portant
sur les conditions matérielles de l’interprétation du texte, elles doivent
pouvoir être confirmées par l’analyse – c’est-à-dire par l’établissement de
lois de corrélation entre signifiés globaux et signifiés locaux. Dans cette
perspective, ces deux hypothèses pourront être examinées sur la base
de deux subdivisions du signifié global [+ETHIQUE] (ces subdivisions
s’entendant toujours, pour satisfaire au principe de différentialité,
comme des bipartitions oppositives):
1° sa subdivision par des traits différentiels successifs répondant de
divers arrière-plans culturels;
104
Simon Bouquet
2° sa subdivision par des traits différentiels propres à rendre compte
du caractère «universel» ou «non universel» de l’interprétation de la
DUDH.
2.2 Plasticité du genre «éthique» et diversité des arrièreplans culturels
2.2.1 Valeurs locales et valeurs globales
Alors que ce sont des valeurs locales inhérentes qui ont été captées
dans l’opposition des genres «loi» et «éthique» – c’est-à-dire: des valeurs
inscrites («dénotées») dans le système différentiel de la langue –, il n’en
ira pas de même pour les valeurs locales liées aux arrière-plans culturels
de la DUDH. L’analyse identifiera cette fois, quant aux signifiés locaux,
des valeurs afférentes – c’est-à-dire: des valeurs «connotées», ressortissant
à d’autres normes que celles du système de la langue24. Lesdites valeurs
afférentes, également différentielles, ne se composent pas moins avec les
valeurs inhérentes des unités linguistiques auxquelles elles sont liées. Pour
faire apparaître cette composition, les analyses qui suivent s’appliqueront
aux mêmes objets que les précédentes: les morphèmes flexionnels et les
morphèmes lexicaux des trois verbes conjugués de l’article 1.
Regardant le genre (la valeur globale) lié à un contexte culturel, on
choisira, pour donner un exemple simple de ces analyses «culturelles»,
deux subdivisions successives du genre noté [+ETHIQUE]
– la première subdivision divisera ce genre en deux genres, notés
[+RELIGION] et [–RELIGION]; par «éthique religieuse» ([+ETHIQUE,
+RELIGION]), on entendra une pensée morale se posant comme
dépendante d’un fait culturel dit religion, répondant d’un ensemble de
croyances, de dogmes, de pratiques et de textes ; par «éthique non
religieuse» ([+ETHIQUE, –RELIGION]), on entendra une pensée morale se
Notre distinction sémantique inhérence/afférence s’inspire de celle de F. Rastier (cf. par exemple:
Rastier, Cavazza et Abeillé, 1994, p. 53).
24
105
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
posant comme indépendante du fait culturel dit religion;
– la seconde subdivision, subséquente à la précédente, divisera le
genre «éthique religieuse» en deux genres notés [+CRÉATIONNISTE] et
[–CRÉATIONNISTE]; par «éthique religieuse créationniste» ([+ETHIQUE,
+RELIGION, +CRÉATIONNISTE]), on entendra que cette éthique est attachée
à une religion posant un acte créateur à l’origine du cosmos, de la terre,
de l’homme, etc. (par exemple: les monothéismes judaïque, chrétien
ou islamique); par «éthique religieuse non créationniste» ([+ETHIQUE,
+RELIGION, –CRÉATIONNISTE]), on entendra que cette éthique est attachée
à une religion ne posant pas d’acte créateur à l’origine du cosmos, de la
terre, de l’homme, etc. (par exemple: le bouddhisme).
2.2.2 Exemples de corrélations déterminées par les genres
«éthique religieuse» et «éthique non religieuse»
Les lois de corrélation différentielles des signifiés globaux [+ETHIQUE,
+RELIGION] et [+ETHIQUE, –RELIGION] avec les signifiés locaux des verbes
conjugués de l’article 1 décriront la composition des valeurs locales
inhérentes du genre «éthique» (valeurs analysées supra, section 2) avec
des valeurs afférentes propres aux genres «éthique religieuse» ou «éthique
non religieuse».
(1) Verbes naissent, sont (doués) et doivent: la valeur flexionnelle inhérente
[+vérité générale] se compose
– dans le genre «éthique religieuse», avec la valeur flexionnelle
afférente [+référée à une religion] (les trois propositions de l’article 1
énoncent «une vérité référée à une religion»);
– dans le genre «éthique non religieuse», avec la valeur flexionnelle
afférente [–référée à une religion] (les trois propositions de l’article 1
énoncent «une vérité non référée à une religion»).
(2) Verbe naissent: la valeur lexicale inhérente [+destinée] se compose
– dans le genre «éthique religieuse», avec la valeur lexicale afférente
[+référée à une religion]25 (la première proposition de l’article 1 concerne
La Déclaration d’indépendance des Etats-Unis (1776) – ancêtre de la Déclaration des droits de
l’homme et du citoyen (1789) et de la DUDH – énonçait: «Tous les hommes sont créés égaux».
25
106
Simon Bouquet
«une destinée elle-même référée à une religion»);
– dans le genre «éthique non religieuse», avec la valeur lexicale
afférente [–référée à une religion] (la première proposition de l’article 1
concerne «une destinée non référée à une religion»).
(3) Groupe verbal sont doués: la valeur lexicale inhérente [+agent
implicite] se compose
– dans le genre «éthique religieuse» avec la valeur lexicale afférente
[+(agent) défini par une religion] (la deuxième proposition de l’article 1
concerne «des qualités octroyées par un agent défini par une religion»)26
– dans le genre «éthique non religieuse», avec la valeur lexicale
afférente [–(agent) défini par une religion] (la deuxième proposition de
l’article 1 concerne «des qualités non octroyées par un agent défini par
une religion»).
(4) Verbe doivent: la valeur lexicale inhérente [+impératif moral] se
compose
– dans le genre «éthique religieuse», avec la valeur lexicale afférente
[+énoncé par une religion] (la troisième proposition de l’article 1
«concerne un impératif moral énoncé par une religion»);
– dans le genre «éthique non religieuse», avec la valeur lexicale
afférente [–énoncé par une religion] (la troisième proposition de l’article
1 «concerne un impératif moral non énoncé par une religion»).
2.2.3 Exemples de corrélations déterminées par les genres
«éthique religieuse créationniste» et «éthique religieuse
non créationniste»
Les lois de corrélation différentielles des signifiés globaux [+ETHIQUE,
+RELIGION, +CRÉATIONNISTE] et [+ETHIQUE, +RELIGION, –CRÉATIONNISTE]
avec les signifiés locaux des mêmes verbes décriront la composition des
valeurs locales inhérentes et afférentes du genre «éthique religieuse »
(valeurs analysées supra, 2.2.2.) avec des valeurs afférentes propres aux
Dans la Déclaration d’indépendance des Etats-Unis, l’emploi de sont doués appartient
explicitement à ce genre: «tous les hommes (…) sont doués par le Créateur de certains droits inaliénables».
26
107
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
subdivisions «créationniste» ou « non créationniste».
(1) Verbes naissent, sont (doués) et doivent: les valeurs flexionnelles
inhérente [+vérité générale] et afférente [+référée à une religion] se
composent
– dans le genre «créationniste», avec la valeur lexicale afférente
[+créationniste] (la première proposition de l’article 1 concerne «une
vérité référée à une religion créationniste»);
– dans le genre «non créationniste», avec la valeur lexicale afférente
[–créationniste] (la première proposition de l’article 1 concerne «une
vérité référée à une religion non créationniste»).
(2) Verbe naissent: les valeur lexicales inhérente [+destinée] et
afférente [+référée à une religion] se composent
– dans le genre «créationniste», avec la valeur lexicale afférente
[+dessein d’un Créateur] (la première proposition de l’article 1 concerne
«une destinée référée à une religion qui la conçoit comme le dessein d’un
Créateur»).
– dans le genre «non créationniste», avec la valeur lexicale afférente
[–dessein d’un Créateur] (la première proposition de l’article 1 concerne
«une destinée référée à une religion qui ne la conçoit pas comme le
dessein d’un Créateur»).
(3) Groupe verbal sont doués: les valeurs lexicales inhérente [+agent
implicite] et afférente [+défini par une religion] se composent
– dans le genre «créationniste», avec la valeur lexicale afférente
[+Créateur] (la deuxième proposition de l’article 1 concerne «des
qualités octroyées par un agent défini par une religion comme étant un
Créateur»);
– dans le genre «non créationniste », avec la valeur lexicale afférente
[–Créateur] (la deuxième proposition de l’article 1 concerne «des qualités
octroyées par un agent défini par une religion non comme n’étant pas
un Créateur27»).
Dans le bouddhisme, cet agent sera une «loi de causalité», étendue ou non, suivant les écoles,
à des mondes supranormaux.
27
108
Simon Bouquet
(4) Verbe doivent: les valeurs lexicales inhérente [+impératif moral] et
afférente [+énoncé par une religion] se composent
– dans le genre «créationniste», avec la valeur lexicale afférente
[+dessein d’un Créateur] (la troisième proposition de l’article 1 concerne
«un impératif moral énoncé par une religion et reflétant le dessein d’un
Créateur»);
– dans le genre «non créationniste», avec la valeur lexicale afférente
[–dessein d’un Créateur] (la troisième proposition de l’article 1 concerne
«un impératif moral énoncé par une religion, et ne reflétant pas le dessein
d’un Créateur»).
2.2.4 Spécificité de la plasticité «culturelle»
Notre première hypothèse sur la plasticité du genre «éthique»,
supposant une multiplication des interprétations de la DUDH selon ses
arrière-plans culturels, se trouve confirmée par les corrélations qu’on
vient de décrire.
Sur la base de ces exemples, on peut également définir, relativement
à ce cas particulier des subdivisions «culturelles» du genre «éthique», le principe
fonctionnel de ce que nous nommons plasticité sémantique. Cette plasticité
obéit aux critères spécifiques suivants:
1° le signifié global «éthique» de la DUDH se laisse aisément
subdiviser en de multiples sous-genres;
2° ces sous-genres sont en nombre indéterminé (et ils ne revêtent
aucune valeur absolue: ainsi, au lieu des sous-genres proposés cidessus, il aurait été parfaitement possible de subdiviser le signifié global
[+RELIGION] en [+THEISME] / [–THEISME], puis le signifié global [+THEISME]
en [+MONOTHEISME] / [–MONOTHEISME], etc.);
3° les valeurs des signifiés locaux, dans tous les cas analysés ici, sont
des valeurs afférentes.
En outre, une conclusion s’impose: nos analyses d’interprétations
multiples correspondant aux sous-genres «culturels» ne sauraient gager
une interprétation «universelle» de la DUDH. Mettant en lumière des
109
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
valeurs oppositives qui sont par définition sémantiquement exclusives les unes
des autres, ces analyses attestent au contraire, de facto, des interprétations
propres à une culture, et en cela «non universelles»28.
2.3 Plasticité du genre «éthique» et question de l’universalité
2.3.1 Signifié global: la dichotomie statique/dynamique
Notre seconde hypothèse – supposant une plasticité sémantique
propre à générer conjointement, dans le genre «éthique» de la DUDH,
une interprétation «non universelle» et une interprétation «universelle»
– ne saurait être argumentée sur la base du principe de plasticité
«culturelle» puisque celui-ci ne sous-tend a priori, comme on l’a vu,
que des interprétations «non universelles». Cette seconde hypothèse
doit donc s’étayer d’un principe de plasticité distinct, dont les critères
programmatiques suivants peuvent être posés:
1° l’opposition «non universel» / «universel» sera captée par une
unique subdivision de signifié global (ou genre);
2° cette subdivision devra se combiner avec celles des multiples
genres «culturels»;
3° la détermination des signes locaux par le signifié global « universel »
devra consister en une neutralisation des valeurs oppositives attachées
aux genres «non universels» régissant ces mêmes signes locaux.
Il se trouve que la réflexion développée par Henri Bergson dans
Les deux sources de la morale et de la religion (Bergson, 1932), reprise par
Karl Popper dans La société ouverte et ses ennemis (Popper, 1945), est en
Certes, on peut argumenter que, se prêtant à ces multiples interprétations « culturelles », la
DUDH est susceptible de jouer un rôle médiateur entre ces interprétations lorsqu’elle suscite
des afférences sémantiques similaires ; mais ce rôle, s’il est lié à une illusoire « présomption
d’universalité », peut tout aussi bien occasionner des malentendus – pouvant porter, par exemple,
sur des conceptions incompatibles de l’éthique (ou de la loi sous-tendue par cette éthique), ou
encore sur des représentations divergentes des concepts attachés à des mots comme dignité,
liberté, arbitraire, etc.
28
110
Simon Bouquet
mesure de donner un contenu intuitif à ces critères programmatiques.
La philosophie sociale bergsonienne, en effet, caractérise toute
pensée éthique comme découlant de deux «sources» antagoniques et
complémentaires:
– une «source» dite statique – ou encore institutionnelle –, d’où procède
une organisation de pensée close (une pensée incarnée dans des institutions
et exclusivement vouée à la conservation du statu quo d’un groupe social);
– une «source» dite dynamique – ou encore mystique (ce concept
ne s’entendant pas comme limité au fait religieux) –, produisant une
organisation de pensée ouverte (une pensée incarnée par des «sages» et
liée, au contraire de la précédente, à un «élan créateur» compatible avec
des valeurs plus universelles).
Alors que nous avons utilisé jusqu’ici le terme d’universel sans en
problématiser la signification – nous référant simplement au fait que
ce terme figure dans le titre de la Déclaration et qu’il est au centre de
nombreux débats –, la dichotomie bergsonienne permet de préciser la
dualité non universel / universel sur laquelle porte notre seconde hypothèse.
En effet, noter cette dualité par les signifiés globaux [+STATIQUE]
(équivalent de [–DYNAMIQUE]) et [+DYNAMIQUE] (équivalent de [–
STATIQUE]) présente les avantages suivants:
– le trait [+STATIQUE] rendra compte de l’interprétation «culturelle»
de la DUDH telle que nous l’avons analysée (supra, 2.2.), déterminant
des valeurs «non universelles» opposées, exclusives les unes des autres:
il s’agira, en l’occurrence, d’une interprétation conceptuellement figée,
objectivée par une tradition culturelle, et vouée à la conservation d’un
statu quo social;
– le trait [+DYNAMIQUE] permettra de capter un autre aspect de
l’interprétation de la DUDH (dont notre analyse n’a jusqu’ici pas rendu
compte), susceptible de se greffer sur n’importe quelle interprétation
«statique»: il s’agira d’une interprétation conceptuellement «ouverte»,
correspondant à une «expérience de pensée» subjective (ce que Bergson
111
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
nomme mystique), et visant une transformation éthique, un devenir (ce
qu’on peut appeler transcendance). De fait, cette interprétation «dynamique»
ne produira pas un sens universel en soi: ce sera plutôt un sens constitué de
telle sorte que sa visée puisse être tenue pour l’objet possible d’une unanimité.
En bref, alors que l’interprétation «statique», dans ses subdivisions
«culturelles», rendra compte de divergences de pensée, l’interprétation
«dynamique» rendra compte, sur la base d’une plasticité sémantique, d’une
convergence possible de pensée. Ces deux interprétations antagonistes
– une doxa et une mystique – n’en seront pas moins complémentaires
l’une de l’autre, en cela que, si l’immanence statique est bien distincte
de la transcendance dynamique, la seconde n’en repose pas moins,
chronologiquement et logiquement, sur la première.
Tout ceci, de nouveau, n’est pas pure spéculation métaphysique mais
élaboration d’une hypothèse propre à être avérée par l’analyse
interprétative.
2.3.2 L’interprétation «dynamique» comme neutralisation
des oppositions de l’interprétation «statique»
La préséance chronologique et logique de l’interprétation «statique»
sur l’interprétation «dynamique», qu’on vient de postuler, implique,
en termes sémantiques, de poser le «sens ouvert» de l’interprétation
«dynamique» comme une neutralisation des oppositions de l’interprétation
«statique». Pour illustrer par quelques exemples comment le signifié
global [+DYNAMIQUE] peut neutraliser les oppositions de valeurs locales
déterminées par le signifié global [+STATIQUE], on reprendra l’analyse
menée plus haut sur les genres notés [+ETHIQUE, +RELIGION] et
[+ETHIQUE, –RELIGION], en poursuivant la subdivision de chacun de ces
signifiés globaux par la dualité [+STATIQUE] / [+DYNAMIQUE].
(1) Verbes naissent, sont (doués) et doivent – composition des valeurs
flexionnelles inhérente [+vérité générale] et afférentes [+référée à une
religion] ou [–référée à une religion] (ainsi que toutes leurs subdivisions
possibles):
112
Simon Bouquet
– dans l’interprétation «statique», ces valeurs se composent avec une
valeur afférente [+sens fermé] (les trois propositions de l’article 1 réfèrent
à une vérité close, objectivée dans une pensée instituée, conservatrice
d’un statu quo social);
– dans l’interprétation «dynamique», ces valeurs se composent avec
une valeur afférente [+sens ouvert] (les trois propositions de l’article 1
réfèrent à une vérité ouverte, relevant d’une expérience de pensée de
type mystique (au sens de Bergson) et d’une visée unanime possible29 –
cette vérité étant, de ce fait, à la fois distincte et non exclusive de celle de
l’interprétation «statique»).
Ces traits afférents [+sens fermé] et [+sens ouvert] de la flexion
des trois verbes se composeront, par isotopie, avec les compositions des
valeurs lexicales desdits verbes.
(2) Verbe naissent – composition des valeurs lexicales inhérente
[+destinée] et afférentes [+référée à une religion] ou [–référée à une
religion] (ainsi que leurs subdivisions):
– dans l’interprétation «statique», ces valeurs se composent avec la
valeur afférente [+sens fermé] (la «destinée» humaine est une notion
close, objectivée dans une pensée instituée, et conservatrice de statu quo);
– dans l’interprétation «dynamique», ces valeurs se composent avec
la valeur afférente [+sens ouvert] (la « destinée » humaine est une notion
ouverte, appartenant à une expérience de pensée subjective – dans laquelle
elle peut prendre un sens transcendant, non attaché exclusivement à une
pensée instituée, sans pour autant exclure aucune pensée instituée).
(3) Groupe verbal sont doués – composition des valeurs lexicales
inhérente [+agent implicite] et afférentes [+défini par une religion] ou
[–défini par une religion] (ainsi que leurs subdivisions):
– dans l’interprétation «statique», ces valeurs se composent avec
la valeur afférente [+sens fermé] (connotant un «agent» identifié dans
29
L’«ouverture», ici, ne renvoie pas à une relativité de cette interprétation mais au fait qu’elle
reflète le dynamisme d’une expérience et un devenir de pensée. Cette valeur flexionnelle
s’attachant à une «vérité heuristique» conditionne, comme on le verra, les valeurs lexicales.
113
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
des institutions de pensée, religieuses ou non religieuses – par exemple:
Jéhovah, Dieu ou Allah, dans les dogmes judaïque, chrétien ou islamique;
dans un dogme athée, l’évolution per se);
– dans l’interprétation «dynamique», ces valeurs se composent avec
la valeur afférente [+sens ouvert] (l’agent implicite de la deuxième
proposition de l’article 1 est un principe non objectivable, qui excède le
pensable; dans cette interprétation la valeur [+défini par une religion],
par exemple, cesse d’être exclusive de son opposée, et inversement).
(4) Verbe doivent – composition des valeurs lexicales inhérente
[+impératif moral] et afférentes [+énoncé par une religion] ou [–énoncé
par une religion] (ainsi que leurs subdivisions):
– dans l’interprétation «statique», ces valeurs se composent avec la
valeur afférente [+sens fermé] (l’impératif moral est figé, objectivé dans
une pensée instituée, conservateur de statu quo);
– dans l’interprétation «dynamique», ces valeurs se composent avec
la valeur afférente [+sens ouvert] (l’impératif moral est ouvert, nourri
par une expérience de pensée subjective dans laquelle il peut devenir
l’objet d’une visée unanime).
Comme on en a fait l’hypothèse, l’interprétation «dynamique» atteste
bien, sur la base d’une plasticité sémantique, une convergence possible de
pensée – là où l’interprétation «statique» et ses subdivisions «culturelles»
attestaient des divergences. La plasticité «dynamique», ainsi qu’on l’a
vu, neutralise les divergences de l’interprétation «statique»; elle ne les
abolit pas pour autant puisque, d’une part, la convergence requiert ici
le point de départ des divergences et que, d’autre part, sa neutralisation
n’est pas une suppression mais une sorte de «mise entre parenthèses»
heuristique au service d’une interprétation transcendante. (Le paradoxe
de l’universalité, conçue comme interprétation «dynamique», est que
l’éthique de la DUDH est d’autant plus pensable comme «universelle»
que, sur le fondement d’un sens ouvert, elle est propre à accueillir les
différences culturelles sans rien niveler de ces différences.30)
«Il faudra la diversité dont nous avons tant besoin. Une des valeurs cibles de la spiritualité
commune, c’est la préservation la diversité.» (S. Hessel, in Bouquet et Hessel, 2012, p. 12)
30
114
Simon Bouquet
Finalement, le concept de transcendance, dans l’usage que nous en
avons fait, réfère à la qualité d’un type particulier de plasticité sémantique,
rien de plus. Il en va de même du qualificatif bergsonien de mystique
attribué ici à l’éthique. Et, dans cette perspective, le «sens ouvert» d’une
interprétation éthique «dynamique» est comparable au «sens ouvert»
en poésie. Cette parenté est attestée par un fait remarquable: de même
qu’un texte poétique, traduit dans une langue quelconque, perd des
particularités de sa langue originaire mais conserve intact son caractère
voire sa force de poéticité, de même un texte comme la DUDH dans
son interprétation «éthique» peut être traduit dans toutes les langues et
compris dans toutes les cultures en conservant intact un caractère et une
force d’éthicité.
2.4 Enjeux d’une sémantique des droits de l’homme
Les analyses présentées ici ne font qu’esquisser une sémantique de la
DUDH. Elles n’en laissent pas moins entrevoir que cette sémantique est
probablement en mesure de clarifier et de soutenir deux enjeux sociopolitiques:
1° combattre et disqualifier les instrumentalisations de la DUDH;
2° éclairer la compréhension du rôle pouvant être joué par l’unanimité
dans le domaine de la gouvernance mondiale.
2.4.1 Combattre les instrumentalisations de la DUDH
L’instrumentalisation politicienne de la DUDH consiste notamment
à clamer son universalité, ou au contraire à contester celle-ci, dans le
but de servir des intérêts hégémonistes ou totalitaires. Ces manœuvres
ont en commun une réification du sens: qu’elles s’en prévalent ou qu’elles
l’attaquent, elles conçoivent la DUDH comme univoque – comme
pourvue d’un sens existant en lui-même et par lui-même.
L’analyse d’une linguistique de l’interprétation fait voler en éclats
cette réification du sens. Dissipant l’illusion d’un texte univoque
115
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
et montrant que le sens de la Déclaration n’est pas figé en lui-même
mais produit par des interprétations multiples, elle invalide aussi bien
la thèse d’une pseudo-universalité insoucieuse des diversités culturelles
que la thèse d’une pseudo-non-universalité réfractaire à toute visée
convergente. Ainsi, la sémantique de la DUDH disqualifie-t-elle par
avance l’instrumentalisation hégémoniste ou totalitariste. L’approche
sémantique peut également servir à faire la part entre les diverses lectures
et les instrumentalisations possibles de textes comme la Charte africaine
des droits de l’homme et des peuples (1981), la Déclaration islamique
universelle des droits de l’homme (1981) ou la Déclaration de Bangkok
(1993) – des textes qui se prêtent à être interprétés tout autant dans un
genre «statique» que dans un genre «dynamique». Et cette approche vaut
semblablement, a priori, pour tout texte à venir.
En résumé, l’approche sémantique permet de dénoncer les
instrumentalisations de la DUDH et des textes de sa parenté, en analysant
ces instrumentalisations comme reposant sur une interprétation
« tatique» ad hoc.
2.4.2 Eclairer la perspective de l’unanimité dans une gouvernance
mondiale
L’analyse de l’interprétation « dynamique » permet, quant à elle,
d’accréditer une lecture de la DUDH pouvant être effectivement
dite universelle. Il est toutefois plus clair de qualifier cette lecture de
possiblement unanime car, comme on l’a vu (supra, 2.3.2.), elle se soutient
d’un processus interprétatif gageant une unanimité possible et non un
sens ordinaire; en d’autres termes, ce n’est pas la DUDH en tant que
sens établi qui a la qualité d’ «universalité» ou de transcendance, mais une
interprétation de la DUDH en tant qu’aspiration31. L’enjeu d’identifier
une telle sémantique est d’importance, en cela qu’il y va de la mise en
Si l’unanimité peut être ainsi posée à la base de l’analyse sémantique «dynamique» de la DUDH,
elle est aussi sa fondation historique, sous la forme minimale du vote sans opposition des Etats
membres de l’ONU qui l’a instituée le 10 décembre 1948.
31
116
Simon Bouquet
évidence d’une lecture unanime possible d’un texte fondateur de l’ONU,
tout autant que de la conception d’une transcendance compatible avec
la diversité culturelle.
Mais l’analyse de l’interprétation «dynamique» de la DUDH
peut également jouer un rôle critique au regard des institutions de
l’ONU32. En effet, mettant en lumière les conditions interprétatives de
l’unanimité possible, et posant ces dernières comme fondatrices du fait
même de l’unanimité possible, cette analyse montre que l’unanimité
interprétative n’est accessible qu’au prix de l’organisation de pensée que
Bergson nomme, techniquement, mystique – correspondant, dans une
terminologie sémantique, à une ouverture du sens. De cette organisation
de pensée, les institutions de l’ONU peuvent-elles être les garantes,
tant pour interpréter la DUDH et les textes de sa parenté, que pour
éventuellement les compléter et les adapter au cours du temps? Dans une
perspective bergsonienne, la réponse semble être non, car l’interprétation
ressortissant au genre «dynamique» ne peut, selon la définition même de
ce genre, être gagée sur des institutions: cette interprétation et ses valeurs
sont gagées, par définition, sur la dimension «mystique» de traditions
humaines de réflexion, de spiritualité, de sagesse. Aussi semblerait-il
qu’une articulation reste à trouver entre le gage institutionnel et un gage
«mystique» de la DUDH. Une articulation dont l’analyse sémantique
pourrait stimuler, à sa manière, la compréhension.
Bibliographie
BERGSON, H. Les deux sources de la morale et de la religion,
Paris, Presses universitaires de France, 1932.
«Je pense que nous avons besoin d’une réflexion approfondie sur la légitimité des institutions
qui s’inspirent peut-être vaguement de la Déclaration universelle mais qui se sont beaucoup
différenciées.» (S. Hessel, in Bouquet et Hessel, 2012, p. 12)
32
117
Gêneros e Gramática no Artigo Primeiro da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
BOUQUET, S. «Da una epistemologia neosaussuriana della
linguistica alla questione dell’universalità dei diritti dell’uomo»,
Saussure, Quaderni di Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, Catania,
Bonanno Editore, 2011.
BOUQUET, S. «Principes d’une linguistique de l’interprétation.
Une épistémologie néosaussurienne», L’apport des manuscrits de
Ferdinand de Saussure, Langages, n° 185, p. 21-33, 2012.
BOUQUET, S. et Hessel, S. «Pour une linguistique des droits
de l’homme» (entretien de Stéphane Hessel avec Simon Bouquet,
Collegium International, 22 février 2010), Texto! Revue électronique de
l’Institut Ferdinand de Saussure, vol. XVII, p. 1-12, 2012.
COSSUTA, F. et Maingueneau, D. «L’analyse des discours
constituants», Les analyses du discours en France, Langages, n° 117, p. 112125, 1995.
LEEMAN, D. (dir.) L’interculturel en entreprise: quelles formations?
Aspects civilisationnels, économiques, historiques, juridiques, linguistiques, Limoges,
Lambert-Lucas, 2011.
POPPER, K. The Open Society and Its Enemies, London, Routledge,
1945.
RASTIER, F., Cavazza, M., Abeillé, A. Sémantique pour l’analyse,
Paris, Masson, 1994.
SAUSSURE (de), F. Cours de linguistique générale, édition critique
par R. Engler, Wiesbaden, Otto Harrassowitz, 1968.
SAUSSURE (de), F. Ecrits de linguistique générale, édités par S.
Bouquet et R. Engler, Paris, «Bibliothèque de Philosophie», Gallimard,
2002.
118
O QUE ORIGINA A VARIAÇÃO DA ALTERNÂNCIA
CAUSATIVA? UMA COMPARAÇÃO ENTRE O
DÂW (FAMÍLIA NADAHUP) E O PORTUGUÊS
BRASILEIRO
Janayna CARVALHO
Universidade de São Paulo (USP)1
Jéssica C. COSTA
Universidade de São Paulo (USP)2
RESUMO
Aplicamos dois modelos sintáticos para a alternância causativa, quais sejam, a Sintaxe
Lexical, de Hale & Keyser (2002) e a Morfologia Distribuída, representada por vários
autores, ao estudo de duas línguas brasileiras, Dâw, uma língua indígena brasileira da
família Nadahup, e o português brasileiro. Com base nas ferramentas analíticas
oferecidas por esses modelos, argumentamos que a variação da alternância causativa nas
línguas se dá por dois motivos: (a) a disponibilidade de um tipo de raiz em uma dada língua;
(b) variação de núcleos funcionais. Teoricamente, almejamos comprovar que abordagens
sintáticas são mais vantajosas por lidarem com primitivos da construção da palavra e da
sentença e, assim, capturarem pontos contrastantes em duas ou mais línguas que são o lócus
de variação com relação a um fenômeno.
Doutoranda em Linguística Geral no Departamento de Linguística da Universidade de
São Paulo – DL-USP. Bolsista CNPq (Processos: 229746/2013-6 e 142048/2012-7). E-mail:
[email protected]/ [email protected]. A autora agradece sua orientadora, Ana
Paula Scher (USP), pelas inúmeras discussões sobre o tema
2
Doutoranda em Linguística Geral no Departamento de Linguística da Universidade de São
Paulo – DL-USP. A autora desenvolveu a pesquisa sobre a língua Dâw durante o curso de
mestrado, período em foi bolsista FAPESP (Processo: 2011/16168-2). E-mail: jessica.cc@usp.
br. A autora agradece sua orientadora, Luciana Storto (USP), pelas inúmeras discussões sobre
o tema.
1
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 119-154, jan./jun. 2014
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
ABSTRACT
We use two syntactic models for causative alternation, namely Lexical Syntax, proposed by
Hale & Keyser (2002) and Distributed Morphology, proposed and developed by several
authors, and we apply each of them to two Brazilian languages, namely Dâw, an indigenous
language from the Nadahup family, and Brazilian Portuguese. These models offer tools for
us to argue that the variation in causative alternation is due to the following factors: (a)
the availability of a specific kind of root in a given language; (b) variability of functional
projections. From a theoretical point of view, we pursue to comprove that syntactical approaches
are empirical better, given the fact that the attention addressed to primitive blocks for words
and sentences in these models makes it possible to capture different ways of building syntactic
structure. This is crucial for our analysis since we defend that the primitives for words and
sentences are the locus to the contrasting behaviors for the same phenomena in the languages
under comparison.
PALAVRAS-CHAVE
Alternância Causativa. Língua Dâw. Português Brasileiro.
KEYWORDS
Brasilian Portuguese. Causative Alternantion. Dâw language.
Introdução
Neste trabalho, examinamos a alternância causativa à luz de dois
modelos construcionistas3, a saber, a Sintaxe Lexical e a Morfologia
Distribuída. O primeiro modelo é aplicado com mais minúcias ao exame
Abordagens em que a estrutura argumental é construída com expedientes sintáticos, assim
condições de localidade e licenciamento também se aplicam à formação de verbos, o que muitas
vezes explica a gramaticalidade ou não de um verbo em uma dada construção. Essa ideia se
apresenta de forma especialmente clara em Hale & Keyser (1993). Remetemos o leitor a este
trabalho para detalhamento.
3
120
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
da língua Dâw e o segundo ao português brasileiro (doravante PB)4.
A alternância causativa pode ser definida como a possibilidade de
um verbo figurar em duas sentenças diferentes, uma transitiva e outra
intransitiva, as quais têm em comum a mudança de estado do argumento
interno. Observe os exemplos da alternância causativa com o verbo
quebrar no português brasileiro no inglês e na língua Dâw (família
Nadahup):
(1)
a.
b.
João quebrou o prato. (sentença causativa)5
O prato quebrou.
(sentença inacusativa)
(2)
a.
b.
John broke the vase.
The vase broke.
(sentença causativa)
(sentença inacusativa).
(3)
a.
Mateus
pêt
bee
Mateus quebrar
pau
‘Mateus quebrou o pau’
(sentença causativa)
b.
(COSTA, 2014b:15)
(sentença inacusativa)
Bee
pêt
pau
quebrar
‘O pau quebrou’
(COSTA 2014b:15)
Esses exemplos evidenciam alguma uniformidade do fenômeno
em tela em línguas pertencentes a famílias linguísticas distintas. Isso
sugere que a alternância causativa tem uma relativa independência das
4
Cada uma dessas aplicações resulta do trabalho individual das autoras e este trabalho é uma
síntese conjunta do poder explanatório de abordagens sintáticas.
5
Uma possível objeção para a nomenclatura usada pode ser a de que ‘sentença inacusativa’
reflete uma caracterização sintática do fenômeno, visto que os verbos intransitivos são
classificados como inacusativos ou inergativos em virtude de seu comportamento sintático, e
sentença causativa reflete uma classificação semântica. Essa seria uma objeção pertinente, mas,
ainda assim, escolhemos manter essa nomenclatura porque é a mais neutra tanto para o leitor
leigo quanto para o leitor já familiarizado com o estudo de alternâncias verbais.
121
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
características de cada língua. O estudo de HASPELMATH (1993) sobre
esse tipo de alternância corrobora essa hipótese. Nele, o autor observa
a alternância de 31 verbos em 21 línguas e estabelece uma classificação
para elas. Abaixo, encontra-se a tabela com os dados de alternância do
verbo quebrar nessas 21 línguas, codificada com as siglas (A), (S), (L),
(E), (C) que indicam, na terminologia do autor, a direção da alternância.
Por exemplo, quando a inacusativa é marcada morfologicamente, ela é
derivada da causativa, nesse caso, a alternância seria anticausativa (A).
Quando a causativa é marcada morfologicamente, ela é tida como
derivada da sentença inacusativa. Nesse caso, a alternância é causativa
(C). As alternâncias lábil (L), supletiva (S) e equipolente (E) seriam nãodirecionadas, uma vez que não há marcas morfológicas na alternância
lábil (veja, por exemplo, o dado do inglês) e as raízes verbais são
diferentes na alternância supletiva (há vários exemplos para morrer/
matar abaixo). Por fim, na alternância equipolente, os dois membros da
alternância têm morfologia característica (georgiano, entre outras línguas
no quadro abaixo). Seguindo essa perspectiva icônica para a alternância
- isto é, o par da alternância que tem mais morfologia é derivado de um
mais básico -, essas alternâncias não-direcionadas se caracterizariam pela
independência de formação dos dois membros da alternância.
TABELA 1: Dados de alternância do verbo quebrar em 21 línguas
segundo Haspelmath (1993)
Língua
Árabe
Armênio
Inglês
Finlandês
Francês
Georgiano
Formas do verbo quebrar Forma do(s) verbos
morrer/matar
nas línguas
in-kasara/kasara (A)
maata/qatala (S)
spa-n-el/mer-n-el (S)
Ǯard-v-el/Ǯard-el(A)
break/break (L)
die/kill (S)
murt-ua/murtaa (A)
kuolla/tappaa (S)
se briser/briser (A)
mourur/tuer (S)
i-mt’vreva/a-mt’vrevs (E)
mo-k’vdeba/mo-k’lavs (S)
122
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
Alemão
zerbrechen (L)
sterben/töten (S)
Grego moderno 1) spázo (L)
pethéno/skotóno (S)
2) tsakísome/tsakízo (A)
Hebraico
ni-šbar/šavar (A)
mat/he-mit (C)
Hindi-Urdu
tuut-naa/tor-naa (E)
mar-naa/maar-naa (A)
Húngaro
össze-tör-ik/ *ossze-tör (A) meg-hal/meg-öl (S)
Indonésio
patah/me-matah-kan (C)
mati/me-mati-kan (C)
Japonês
or-e-ru/or-u; war-e-ru/war-u sin-u/koros-u (S)
(A)
Lezguiano
xu-n (L)
q’i-n (L)
Lituano
lüz-ti/lauz-ti (E)
užmuš-ti/mir-ti (S)
Mongolês
xuga-r-ax-/xuga-l-ax;
üx-ex/al-ax (S)
xemx-r-ex/xemx-l-ex (E)
Romeno
se rupe/rupe (A)
muri/ucide (S)
Russo
lomat’-sja/lomat’ (A)
umeret’/ubit’ (S)
Swahili
vunj-ik-a/vunj-a (A)
fa/ua (S)
Turco
kir-il-mak/kir-mak (A)
öl-mek/öl-dür-mek (C)
Udmurt (?)
tija-sky-ny/tija-ny (A)
kuly-ny/viv-ny (S)
Legenda: A= altern â ncia anticausativa; C=altern â ncia causativa;
E= alternância equipolente; L=alternância lábil; S=alternância supletiva.
Vimos que, em todas as línguas pesquisadas por HASPELMATH
(op.cit.), o verbo quebrar alterna, corroborando a ideia de que a alternância
causativa parece ser um fenômeno estável através das línguas. A variação
de classificação que observamos está relacionada com os expedientes
morfológicos disponíveis para as línguas, algo bastante relevante para a
alternância, conforme se verá na seção 4 de análise.
Entretanto, quando nos atentamos para dados de alternância com
os verbos morrer/matar, há maior variação. Na maioria das línguas, a
alternância encontrada com esses verbos é a supletiva. Nesse tipo de
alternância, como falamos, a raiz verbal não é a mesma, portanto não
123
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
há derivação, no sentido estrito. Desse modo, esse conjunto diverge da
uniformidade que encontramos para as alternâncias com quebrar. Por
que isso acontece? Para verbos como matar e morrer, acreditamos que
uma explicação plausível seria tão somente opções idiossincráticas das
línguas, ou seja, a possibilidade de morrer e matar alternarem ocorre se
a língua engloba essas duas codificações distintas de eventos em um
só signo. Se forem signos diferentes em uma mesma língua, é muito
provável que morrer e matar não sejam tidos como verbos alternantes.
Não obstante, não acreditamos que todos os casos de variação
de alternância em uma perspectiva translinguística estejam ligados a
idiossincrasias. É exatamente o que a comparação da língua Dâw com o
PB intenta mostrar. Na exposição a seguir, defendemos que as variações
de alternância estão ligadas a dois fatores: i) ao número de raízes e
núcleos funcionais, que realizam expedientes morfológicos, da língua;
ii) à compatibilidade entre os núcleos funcionais disponíveis e as raízes.
Para exemplificar a importância desses dois fatores, tomemos uma
língua hipotética X. Se essa língua hipotética não possui expedientes
morfológicos que restrinjam as alternâncias da língua, espera-se que
mais verbos alternem em comparação com uma língua que tenha o
mesmo inventário de raízes e um ou mais expedientes morfológicos
para alternância causativa que imponham restrições ao licenciamento de
raízes. Isto é ilustrado abaixo.
FIGURA 1: Licenciamento de raízes em uma língua hipotética X
124
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
FIGURA 2: Licenciamento de raízes em uma língua hipotética Y
Em suma, é o balanço entre essas duas entidades – raízes e expedientes
morfológicos - que determinará a maior ou menor possibilidade de
alternância. Neste artigo, defendemos essa ideia com base no exame
dessas duas línguas brasileiras.
Este artigo está organizado da seguinte maneira: na seção 1,
apresentamos brevemente algumas abordagens sintáticas que analisam
a estrutura argumental e as alternâncias causativas. Mostramos que as
abordagens sintáticas são mais vantajosas em relação às abordagens
lexicais por lidarem com primitivos teóricos possíveis de serem checados
nas línguas de modo geral, chegando, assim, a uma generalização
teoricamente mais abrangente; na seção 2, apresentaremos os dados
acerca da alternância causativa na língua Dâw e no PB; na seção 3,
esboçamos uma análise comparativa entre a alternância discutida acerca
das duas línguas supracitadas; na seção 4, apresentamos uma síntese do
trabalho e algumas considerações finais sobre a questão discutida.
1 Abordagens sintáticas para a estrutura argumental
1.1 Por que abordagens sintáticas?
Um dos grandes trabalhos motivadores para o estudo das alternâncias
verbais é o estudo de LEVIN (1993), em que foram discriminados vários
tipos de alternância, com base em um grande inventário de verbos do
125
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
inglês. Esse trabalho está entre os muitos6 que instauraram a tradição
de se estudar a estrutura argumental com base em propriedades verbais
que projetariam a estrutura sintática a partir da estrutura argumental
‘cunhada’ nos verbos. Atualmente, mesmo que as propostas lexicalistas
tenham se diversificado bastante (RAMCHAND, 2008), ainda há bastante
peso em uma estrutura argumental da raiz nessas abordagens, como se
vê em RAPPAPORT-HOVAV & LEVIN (2012). As autoras postulam
duas condições que visam descrever as possibilidades de alternância dos
verbos. São elas:
 Condição de causação direta: um único argumento que acompanha a
raiz pode ser expresso em uma sentença com um verbo transitivo
se o sujeito representa a causa direta da eventualidade expressa
pelo verbo e seu argumento. (RAPPAPORT-HOVAV &LEVIN,
2012, nossa tradução)7.
 Condição de continência apropriada: Quando a mudança de estado
é apropriadamente contida dentro de um ato causador, o
argumento representando esse ato deve ser expresso na mesma
sentença que o verbo descrevendo a mudança de estado.
(RAPPAPORT-HOVAV& LEVIN, 2012, nossa tradução)8.
Se esses fatores se aplicam translinguisticamente, seria esperado
que verbos em Dâw como rõ ‘queimar’ e beg ‘clarear’ alternassem, já que
na contraparte transitiva desses verbos em português, por exemplo, o
sujeito pode representar a causa direta da mudança de estado. Observe
os exemplos abaixo que corroboram essa ideia:
Dependendo da visão, a hipótese lexicalista tem seu ‘’pronunciamento’’ com o trabalho de
CHOMSKY, 1970. Ver MARANTZ, 1997 para uma revisita a esse trabalho e uma reinterpretação
de CHOMSKY (op.cit.)
7
No original: “The Direct Causation Condition: A single argument root may be expressed
in a sentence with a transitive verb if the subject represents a direct cause of the eventuality
expressed by the root and its argument.
8
No original: “The Proper Containment Condition: When a change of state is properly contained
within a causing act, the argument representing that act must be expressed in the same clause as
the verb describing the change of state.”
6
126
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
(4)
João queimou o papel com um isqueiro.
(5)
Maria clareou os cabelos com um pincel.
Os exemplos em (4) e (5) deixam claro que esses verbos atendem à
condição de causação direta em PB; em Dâw, todavia, os mesmos verbos
só são causativizados com a inserção de um auxiliar causativo específico,
dôo.
(6)
Tir dôo rõ
mãam-ʉ̃ʉy’
3PS CAUS queimar
feijão-MDO
‘Ele fez o feijão queimar/Ele queimou o feijão’
(COSTA, 2014b:29)
(7)
Woor dôo
beg
yun
Tukano CAUS
clarear roupa
‘O Tukano fez a roupa clarear/O Tukano clareou a roupa’
(COSTA, 2014b:29)
Tendo em vista o contraste entre essas duas línguas, acreditamos
que explicações que decomponham mais o sentido dos elementos
formadores das sentenças sejam mais interessantes. Essas explicações
formam as abordagens sintáticas e sintático-lexicais (também chamadas
de construcionistas) para a explicação do comportamento dos verbos
em alternância. Nessas abordagens, não se ignora um fato empírico
como o aludido na citação de RAPPAPORT-HOVAV & LEVIN (op.
cit) de que alguns verbos, obrigatoriamente, aparecerão em sentenças
transitivas e com causas diretas como argumento externo. Entretanto,
se o argumento externo é o último estágio de formação de um verbo
deve haver algum ingrediente semântico ou sintático que licencie a
concatenação de uma causa direta. Então a causa9, como argumento
9
Estamos usando neste trecho a nomenclatura das autoras, que se refere à causa como algo
que “desencadeia o evento”. Esse desencadeador não tem de ser, necessariamente, um DP com
papel temático causa.
127
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
externo, não é um primitivo, mas um produto de uma configuração
sintática e sua interpretação semântica.
Tendo em vista, então, a atenção aos blocos formadores do verbo
e de suas estruturas sintáticas compatíveis, acreditamos que essas
abordagens são as mais compatíveis para a pergunta que dá título a
este texto. Passamos a apresentar as abordagens de que fazemos uso,
quais sejam, HALE & KEYSER (2002), na seção 1.2, e a Morfologia
Distribuída (doravante, MD), na seção 1.3.
1.2 Breve apresentação da teoria de HALE & KEYSER (2002)
Para HALE & KEYSER (2002), a estrutura argumental é a
configuração sintática projetada por um item lexical. Ela é determinada
pelas configurações sintáticas geradas pela relação entre núcleo (item
lexical) e argumento(s). A estrutura argumental dos verbos é formada,
basicamente, por quatro tipos de estrutura:
 Monádica: o núcleo projeta apenas um complemento e nenhum
especificador.
 Diádica básica: o núcleo projeta um complemento e um
especificador.
 Diádica composta: o núcleo projeta apenas um especificador e
não um complemento. Este último argumento é gerado somente
por composição com outro núcleo.
 Atômica: o núcleo
especificador.
não projeta nem complemento, nem
Passemos à exposição e motivação das estruturas na ordem em que
foram elencadas acima.
A estrutura monádica é formada por dois elementos: uma raiz (R) e
um núcleo verbal (V).
128
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
(8)
O núcleo verbal possui apenas um complemento (a raiz) e não projeta
um especificador. A natureza dessa raiz, na maior parte dos casos, é
um nome (NP), que não projeta nem especificador, nem complemento.
Verbos denominais, como cough ‘tossir’ e dance ‘dançar’, são exemplos
de verbos com esse tipo de estrutura. Em um primeiro momento, cough
é gerado como um nome, na posição de raiz. O núcleo verbal, nesses
casos, está vazio. Para se tornar um verbo, a matriz fonológica do nome
passa para a posição estrutural de núcleo verbal por meio de um processo
chamado de conflation.
 Conflation: processo no qual a matriz fonológica do
complemento do núcleo é introduzida na matriz fonológica
vazia do núcleo que seleciona o complemento10.
(Adaptado de HALE & KEYSER, 2002: 12)
Desse modo, depois de transferir a matriz fonológica do complemento
nominal para o núcleo verbal, gera-se um verbo sintético que não
projeta um especificador. Verbos inergativos e transitivos com esse tipo
de estrutura são comumente encontrados nas línguas do mundo. Uma
característica importante desses tipos de verbos é a impossibilidade de
sofrerem a alternância causativa, como se vê abaixo:
(9)
a.
The children laughed
A criança riu
No original: Conflation is restricted to the process according to which the phonological matrix
of the head of a complement C is introduced into the empty phonological matrix of the head
that selects (and is accordingly sister to) C.
10
129
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
b.
*The clown laughed the children
*O palhaço riu a criança
(HALE & KEYSER, 2002:14)
A alternância apresentada acima é do tipo causativo-inacusativa,
na qual o sujeito do par intransitivo passa a ser objeto na sentença
transitivada. Verbos intransitivos com estrutura monádica não podem
ser transitivizados automaticamente, pois verbos desse tipo não
projetam argumentos internos. Portanto, esses verbos não participam
dessa alternância, o que explica a agramaticalidade de (9a) e (9b).
O segundo tipo de formação verbal elencado é a estrutura diádica
básica. Abaixo, observamos sua estrutura:
(10)
Nessa estrutura, a preposição é o núcleo que projeta dois argumentos:
um especificador (DP) e um complemento (DP). A preposição
especifica uma relação (que pode ser espacial, temporal, entre outras)
entre duas entidades ou eventos. Isso define, para os autores, o caráter
predicador da preposição, que, sendo núcleo, requer tanto especificador
quanto complemento, diferentemente de nomes (que não requerem
nenhum argumento) e adjetivos (que requerem apenas um argumento,
o especificador).
Para a formação do predicado verbal, é necessário que a estrutura
diádica básica seja encaixada a uma estrutura monádica, que a toma
como complemento, como é observado em (11).
130
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
(11)
(HALE & KEYSER, 2002:24)
Por fim, A estrutura diádica composta possui a seguinte estrutura:
(12)
Verbos com esse tipo estrutural possuem um especificador interno
que é exigido semanticamente pela raiz (complemento do núcleo verbal11,
isto é, V na estrutura) e é projetado pelo núcleo verbal. Na sintaxe, esse
especificador sobe para o Spec de IP para receber caso e configura-se
como o sujeito, se a sentença for inacusativa. Verbos desse tipo podem
sofrer alternância causativo-incoativa por meio de um processo de
transitivização simples, ou automática.
O núcleo V tem como complemento uma raiz de natureza adjetival,
que possui propriedades predicadoras e requer semanticamente um
especificador, justamente pelo fato de ter características adjetivais.
Em HALLE &KEYSER (2002), complementos são especificadores internos, por isso os dois
termos são usados como sinônimos ao explorarmos as estruturas relevantes.
11
131
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
Compare o comportamento contrastante de, por um lado, amarelo e
bonito, que precisam modificar um nome (casaco amarelo e homem bonito) e
nomes como pulo e estudo que fazem sentido por si só.
Assim, na estrutura diádica composta, a raiz adjetival, por meio de
conflation, passa a ocupar a posição de núcleo verbal V (fonologicamente
nulo e que recebe a matriz fonológica do adjetivo) tornando-se um verbo.
Esse núcleo verbal projeta uma estrutura que recebe o especificador
projetado pela raiz da estrutura. Desse modo, é o complemento (i.e.,
raiz adjetiva) que tem a propriedade de requerer um especificador. Essa
estrutura é chamada de composta, pois a projeção do especificador
interno depende de dois núcleos, a raiz, que o requer semanticamente,
e núcleo verbal, que fornece uma estrutura para a projeção desse
especificador.
1.3 Estrutura argumental em MD
1.3.1 A Morfologia Distribuída
A Morfologia Distribuída (doravante, MD) é um dos
desenvolvimentos da Gramática Gerativa e oferece uma proposta
alternativa para o modelo de arquitetura da gramática assumido por essa
corrente teórica. Seu grande diferencial é não tratar o léxico como um
componente de idiossincrasias e de elementos indivisíveis.
Na MD, não existe um componente lexical que alimenta a sintaxe.
Em vez do léxico, existem três listas que têm as informações antes
atribuídas ao componente lexical da gramática. Não há diferença entre a
formação de palavras ou de sentenças, já que são necessárias as mesmas
operações para a produção desses dois tipos de estruturas: move e merge.
Portanto, este é um modelo que se mostra pertinente na exploração de
questões morfossintáticas, como é o caso do objeto de estudo deste
trabalho. Com o esquema do modelo de gramática da MD apresentado
abaixo, podemos explicar melhor suas propriedades:
132
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
FIGURA 3: Arquitetura da Gramática na Morfologia Distribuída12
No modelo proposto pela MD, há três listas. A Lista 1, que contém
traços gramaticais abstratos universais, além de raízes. A Lista 2 contém
os expoentes fonológicos para as raízes que, uma vez manipuladas pela
sintaxe, transformam-se em palavras, e morfemas funcionais abstratos,
além de regras para sua inserção. A Lista 3, por fim, chamada de
Enciclopédia, lista os significados especiais. Por exemplo, na sentença
João é um gato, a interpretação de que João é uma pessoa bonita e não um tipo
de animal felino é dada pela Lista 3.
O módulo morfológico, presente após a derivação sintática, é o
responsável por uma série de ajustes morfêmicos. Isso, argumentam
HALLE E MARANTZ (1993), é o fator responsável para que não haja
isomorfia entre sintaxe e fonologia, já que, nesse módulo da gramática,
12
Figura adaptada e traduzida por Paula R. G. Armelin a partir de SIDDIQI (2009, p. 14).
133
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
traços podem ser apagados (empobrecimento), concatenados (merge),
fundidos (fusão) ou separados (fissão). Algumas máximas importantes
para esse modelo de gramática são:
 As raízes são acategoriais. Assim, a partir de uma mesma raiz,
como estud-, por exemplo, pode-se formar, por sua concatenação
com um morfema categorial n, o nome estudante ou, por sua
concatenação com um morfema categorial a, o adjetivo estudioso
ou, ainda, por concatenação dessa raiz com o morfema categorial
v o verbo estudar. Como as palavras podem mudar de classe de
acordo com o contexto sintático, postular raízes acategoriais
que são concatenadas com um morfema funcional durante a
derivação é uma das vantagens da MD.
 Não são necessárias regras de ligação entre o léxico e a sintaxe,
uma vez que, na teoria, o único componente gerativo é a sintaxe e
as palavras são formadas pelos mesmos processos que sentenças.
Palavras, assim como sentenças, são constituídas por morfemas
lexicais e funcionais. Nesse modelo, estrutura argumental não é
um produto do léxico e todas as alternâncias são tratadas como
produtos de concatenação sintática.
 Estrutura sintática hierárquica em toda a derivação: para a MD,
os mesmos processos que ocorrem para a formação de sentenças
são aplicáveis na formação de palavras.
1.3.2 Estrutura argumental na MD
As abordagens para a estrutura argumental em MD são um tanto
dispersas e há várias correntes que não necessariamente se excluem.
Todas partilham a ideia de que há raízes acategoriais, como exposto na
seção 1.3.1.
Com SCHER, MEDEIROS & MINUSSI (2010) e MARANTZ
(2013), assumimos que as raízes são licenciadas em estruturas sintáticas.
Há, pelo menos, duas posições em que elas podem ocorrer: elas podem
se concatenar diretamente ao v (vezinho), funcionando como uma
134
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
espécie de advérbio de modo e raízes que se concatenam mais abaixo
à estrutura e, quando categorizadas, podem expressar resultado da ação
do verbo (incluem-se nessa última categoria muitas raízes que, quando
categorizadas, participarão da alternância causativo-incoativa).
FIGURA 4: Concatenação de raízes
Nesse paradigma teórico, o significado de uma dada estrutura é dado
por três fatores:
 Voice, a projeção funcional que introduz o argumento externo
(KRATZER (1994));
 vP, que introduz a eventualidade;
 Raízes, que podem ser de vários tipos.
Esses três ingredientes, em suas mais diferentes combinações,
devem refletir a variedade de codificação de eventos que há nas línguas
do mundo. Para dar um exemplo útil à argumentação que será feita para
o PB abaixo, ALEXIADOU, ANAGNOSTOPOLOU & SCHAEFER
(2006) propõem que a estrutura de sentenças inacusativas alternantes
pode ser de dois modos13:
As estruturas árboreas em (13) e (14) estão ligeiramente diferentes das apresentadas em
Alexiadou, ANAGNOSTOPOLOU & SCHAEFER (2006). Nas nossas representações, VP
corresponde a √RootP dos autores.
13
135
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
(13) Inacusativos com VoiceP:
(14) Inacusativos sem VoiceP:
O primeiro tipo é o encontrado em línguas com morfologia nas
inacusativas. Essa morfologia não é considerada pelos autores como
marca de um núcleo funcional (ver discussão sobre isso na seção 3). Nas
línguas que possuem esse expediente, a morfologia que é concatenada
em VoiceP é categorizada sintaticamente, porque ocupa uma posição
sintática dedicada, mas não semanticamente, já que essas formas não
recebem papel temático porque não são interpretadas como entidades
no mundo. O segundo tipo de inacusativos, ilustrado em (14), é aquele
presente em línguas como o inglês, na qual as sentenças inacusativas não
têm morfologia.
A existência ou não de morfologia em inacusativas e a relação desse
fenômeno morfológico com os verbos que alternam ou não em uma
dada língua pode ser bem tratado nesse paradigma, visto que esses três
elementos são tomados como os formadores do significado verbal e
podem sofrer variações nas línguas.
136
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
2 Alternância causativa nas línguas em análise
Feita a introdução dessas teorias, passemos a explorar a alternância
causativa nas duas línguas em análise.
Cada uma das abordagens sintáticas tratadas neste artigo fará uso
dos seguintes instrumentos para derivar a alternância causativa:
 HALE & KEYSER (2002): raízes, com propriedade adjetival14,
que predicam um argumento interno e conflation15;
 MD: compatibilidade entre raízes e estrutura sintática. Se
compatíveis, as raízes são licenciadas em determinadas estruturas.
Ainda, as estruturas podem variar de língua para língua em
virtude dos expedientes morfológicos das línguas.
2.1 Alternância causativa em Dâw
A língua Dâw é falada por uma tribo de nome homônimo que vive
na comunidade Waruá, no estado do Amazonas. Segundo MARTINS
(2004), primeira pesquisadora a estudar a língua e autora da primeira
gramática Dâw, essa língua se apresenta, tipologicamente, como isolanteanalítica com poucos processos de sufixação e nenhum de prefixação;
além disso, seu léxico é predominantemente monossilábico.
Ainda de acordo com MARTINS (2004), a alternância causativa teria
reflexos nas mudanças tonais dos predicados verbais intransitivos. De
acordo com a autora, verbos intransitivos são transitivizados por um
morfema tonal descendente (H͡L)16. Para a autora, esse processo também
estaria condicionado a restrições fonotáticas específicas da língua, como
Isso não quer dizer que essas raízes sejam adjetivos. Significa dizer que elas têm alguma
propriedade de medida/ escala, que é o que caracteriza os verbos da alternância causativa e
também caracteriza os adjetivos.
15
Conflation não é exatamente um instrumento para derivar a alternância causativa, mas ele deriva
as estruturas de modo geral. A raiz que predica um argumento interno (ou seja, a raiz com
propriedades adjetivais) é mais responsável pela alternância do que a operação de conflation em si.
16
Tom alto e baixo (high e low).
14
137
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
ensurdecimento da coda silábica, entre outros17.
Fruto de um trabalho de campo realizado em julho de 2013 junto à
comunidade Dâw os trabalhos de COSTA (2014a) e STORTO, COSTA
& ANDRADE (manuscrito) analisaram a alternância causativa e seus
reflexos nas mudanças tonais de 21 verbos intransitivos, a saber: rôd –
sair, ‘ãa – dormir, çeeb – mudar, ‘ʉb – acordar, beg – clarear, rõ – queimar,
pêg-saak – crescer , çom – banhar, win – trabalhar , nõx - cair , kog’õogn –
desmaiar, baax – aparecer, kʉ̃m – afundar , pôw’ – boiar, wʉʉd ‘chegar’,
baad ‘virar’, ‘eed ‘virar’, bâar ‘derramar’, xop ‘secar’, pô ‘abrir’.
A análise dos dados coletados evidenciou que o sistema tonal em
Dâw é previsível na sentença, ou seja, o tom não está ligado a um tipo
específico de sentença. Logo, não pode ser tomado como evidência da
alternância de verbos. Desse modo, em linhas gerais, no nível fonológico,
os itens lexicais que compõem as sentenças são divididos em frases
fonológicas que são formadas por segmentos tonais previsíveis, isto
é: (L H) e (L L H). Esses padrões são formas default e podem sofrer
variações de contorno tonal.
Diante dessas descobertas, COSTA (2014a) reavalia o processo
de transitivização em Dâw e afirma que esse processo não condiciona
mudança tonal dos verbos intransitivos, contrariando, desse modo, a
hipótese de MARTINS (2004).
Abaixo, apresentamos um exemplo de alternância causativa em Dâw
no qual mostramos que os verbos da construção inacusativa (15a), e da
construção causativa (15b) possuem o mesmo padrão tonal.
(15) a)
Mãam
xop
(L
H)
machado
secar
‘O machado secou’
(COSTA, 2014b:24)
Para a autora, o tom descendente transitivador, quando integrado aos verbos monossilábicos
com a estrutura silábica CVC e coda desvozeada, seria pronunciado como tom ascendente
(LH͡),pois palavras com coda surda não podem ter tom descendente (só ascendente ou neutro).
17
138
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
b)
Tir
xop
mãam
(L
L
HL)
3PS
secar machado
‘Ele secou o machado’
(COSTA, 2014b:24)
Desse modo, COSTA (2014a) assume que a alternância causativa
apresentada acima é do tipo lábil. A mesma forma verbal é usada tanto na
construção causativa quanto na construção inacusativa, sem o acréscimo
de morfologia, o tipo (L) em HASPELMATH (op.cit.).
A alternância acima exemplificada foi testada com 21 verbos
intransitivos. Apenas 7 deles alternaram entre uma forma inacusativa
e causativa. Eles são: pêt ‘quebrar’, wʉʉd ‘chegar’, baad ‘virar’,‘eed ‘virar’,
bâar ‘derramar’, xop ‘secar’, pô ‘abrir’. Os outros 14 verbos intransitivos
testados não alternaram livremente entre as formas inacusativa e causativa
como foi observado com os 7 verbos supracitados. A causativização
desses verbos pode ocorrer somente por meio da inserção de um auxiliar
causativizador do tipo fazer em PB que em Dâw realiza-se como dôo. Na
sintaxe, esse causativizador é concatenado acima do verbo substantivo
da sentença. Neste trabalho, vamos nos deter apenas na alternância do
tipo lábil.
A escolha dos predicados verbais testados teve como objetivo a seleção
de verbos que de acordo com a literatura (HALE & KEYSER 2002,
HASPELMATH op.cit, entre outros) são prototipicamente alternantes
(mudar, clarear, queimar, aparecer, afundar, boiar, virar, derramar, secar e abrir) e
não-alternantes (sair, dormir, acordar, crescer, banhar, trabalhar, cair, desmaiar).
O último grupo configurou-se como um grupo de controle, pois, por
mais que nas línguas, de modo geral, esses predicados não alternam
livremente entre uma forma inacusativa e causativa, testamo-los na
língua Dâw de forma a constatar se essa língua em questão também
segue o mesmo padrão de outras línguas já estudadas no que se refere à
alternância desses predicados especificamente.
139
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
Dessa forma, COSTA (2014a) identifica duas subclasses de verbos
intransitivos em Dâw:
 Subclasse dos verbos alternantes: 33% dos verbos elicitados:
wʉʉd chegar, baad ‘virar’,‘eed ‘virar’, bâar ‘derramar’, pêt ‘quebrar’,
xop ‘secar’ e pô ‘abrir’. Esses verbos alternaram entre a forma
intransitiva e causativa sem morfologia específica que marque
aumento de valência ou sem a inserção de um causativizador
acima do VP. A semântica desses verbos é de mudança de estado
no caso de verbos como pêt ‘quebrar’ e ‘xop ‘secar’, e de mudança
de lugar no caso de verbos como wʉʉd ‘mudar’ e baad e ‘eed ‘virar’.
 Subclasse dos verbos não-alternantes: 66% dos verbos
elicitados: rôd ‘sair’, ‘ãa ‘dormir’, çeeb ‘mudar’, ‘ʉb ‘acordar’,
beg ‘clarear’, rõ ‘queimar’, pêg-saak ‘crescer’, çom ‘banhar’, win
‘trabalhar’, nõx ‘cair’, kog’õogn ‘desmaiar’, baax ‘aparecer’, kʉ̃m
‘afundar’, pôw’ ‘boiar’. Esses verbos foram causativizados apenas
por meio da inserção do causativizador dôo.18
2.1.1 A subclasse dos verbos alternantes
Segundo COSTA (2014a), cada uma das subclasses de verbos
intransitivos apresentada caracteriza-se por um tipo específico de
estrutura argumental que lhes capacita, ou não, a alternar entre uma
forma intransitiva e causativa sem a inserção de um causativizador ou
um morfema de aumento de valência.
Como vimos na seção 1.2, para HALE & KEYSER (2002), verbos
alternantes possuem estrutura diádica composta, formada por núcleo,
raiz (complemento do núcleo) e especificador interno (sujeito do verbo
na sentença intransitiva e objeto na sentença causativa). Os verbos
intransitivos alternantes em Dâw estão configurados em uma estrutura
como essa. Assim, na construção inacusativa, o complemento do verbo
é o especificador interno do predicado. Esse predicado é formado por
18
Nesse artigo, não abordaremos essa subclasse verbal.
140
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
meio de conflation entre raiz e núcleo verbal. Na construção causativa
(formada pela concatenação de duas estruturas: a diádica composta e
a monádica, que está acima daquela), a matriz fonológica do verbo é
movida para o núcleo da estrutura monádica. O especificador interno
da estrutura diádica composta permanece in situ, ocupando a posição de
objeto da sentença.
Abaixo, as estruturas inacusativa e causativa dos verbos em Dâw
propostas por COSTA (2014a) são apresentadas e ilustram a alternância
com o verbo xop (secar).
•
Alternância causativo-incoativa
(16) a)
yun
xop
roupa secar
‘A roupa secou’
(COSTA, 2014a:146)
b)
Tir
xop
yun
3PS secar roupa
‘Ele secou a roupa’
(COSTA, 2014a:146)
•
Estrutura intransitiva
(17) Pré-conflation
(18)
141
Pós-conflation
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
•
Estrutura transitiva
(19) Pré-conflation
(20)
Pós-conflation
Cabe ressaltar que o sujeito da sentença transitiva, ou seja, o
argumento externo tir ‘ele’, é gerado apenas na sintaxe, não na estrutura
argumental. Para os autores, o sujeito é estruturalmente um adjunto do
VP.
2.2 Alternância causativa no português brasileiro
O PB, assim como as demais línguas românicas e muitas outras do
Tronco Indo-Europeu, pode apresentar uma morfologia específica nas
sentenças inacusativas. O exemplo (1), acima, retomado como (27),
poderia se manifestar da seguinte forma na língua em tela:
(27) O João quebrou o prato.
O prato se quebrou.
Para muitos autores (BURZIO, 1986; LEVIN &RAPAPPORT, 1995;
CHIERCHIA, 2004), tal distribuição é um marcador de valência, que
indica, por exemplo, a ordem da derivação. Os três autores acima tomam
a sentença causativa como básica e a inacusativa como contraparte
derivada. Há uma série de testes que podem mostrar que esse não é o
caso. Se essa morfologia das anticausativas for simplesmente um afixo
sintático, não se espera que ela tenha efeitos de interpretação, o que os
dados abaixo sugerem ser o caso.
142
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
(28) #A porta se abriu, mas não está completamente aberta.
A porta abriu, mas não está completamente aberta.
(29) A porta fechou rápido.
#A porta se fechou rápido
(NEGRÃO & VIOTTI, 2008)
Outro argumento para que essa morfologia não seja vista como
fruto de uma redução lexical é o fato de que ela não está disponível para
todos os verbos alternantes. Verbos alternantes como aumentar e afundar,
por exemplo, não aparecem com essa morfologia quando alternam
nem os deadjetivais, que são tidos por alguns trabalhos como os verbos
alternantes por excelência.
(30) O navio (*se) afundou19.
(31) O número de senadores (*se) aumentou.
(32) A banana (*se) amarelou20.
Tanto essa incompatibilidade de alguns verbos alternantes ocorrerem
com essa morfologia quanto a possibilidade de uma língua perder ou
ganhar essas marcas colocam em xeque a crença de que essa morfologia é
fruto da redução lexical. Essa argumentação também vale para propostas
sintáticas de que a morfologia da inacusativa é a lexicalização de uma
categoria funcional como VoiceP [-ativo] (ver, por exemplo, LABELLE
Essa sentença fica mais aceitável se a interpretação for reflexiva, se possível.
Alguém poderia dizer que uma sentença como João se emudeceu é possível e o verbo presente
nessa sentença é deadjetival. De fato, tanto João emudeceu quanto João se emudeceu são possíveis e,
no último caso, há uma leitura disponível que parece divergir da disponível para anticausativas
com morfologia reflexiva: em João se emudeceu, o participante João, deliberadamente, quis ficar
mudo. Em João emudeceu, esse não precisa ser o caso.
19
20
143
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
& DORON, 2010).21 Os mesmos problemas – disponibilidade dessa
morfologia com alguns verbos, e com outros não, e a possibilidade de
essas marcas serem, diacronicamente, perdidas e adquiridas, ficam sem
resposta22 .
Uma questão que chama a atenção é o fato de marcas como essas
estarem disponíveis em línguas que têm mais possibilidade de ter formas
dependentes do verbo – afixos pronominais, afixos gramaticais e clíticos
(CARVALHO & LAZZARINI-CYRINO, 2013). Línguas que não têm
essa capacidade não possuem, geralmente, morfologia na anticausativa.
Essa correlação não se sustentaria, mais uma vez, em uma visão que veja
essa morfologia como fruto de redução lexical ou como uma categoria
funcional.
Levando essa argumentação em conta, seguimos aqui a proposta de
SCHAEFER (2008) de que essa morfologia é um expletivo sintático. A
estrutura para uma sentença como O prato se quebrou é a seguinte:
(33)
O fato de essa categoria ser pobre em termos de traços-phi23 – isto
A categoria funcional que introduz argumentos externos. Para fundamentação dessa categoria,
ver KRATZER (1996).
22
Para uma exploração diacrônica dessa morfologia no grego e no inglês, ver LAVIDAS (2010).
23
Traços-phi são traços de gênero, número e pessoa (ver CHOMSKY, 2001, entre outros). Uma
categoria pode ser phi-completa, o que significa que tem todos esses traços ou phi-incompleta,
ela porta só alguns deles.
21
144
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
é, ela ter menos traços-phi do que nos, a(s) e outros clíticos – demonstra
que não há conteúdo suficiente para que ela seja interpretada como um
constituinte passível de receber papel temático. Dito de outra forma: essa
pouca especificação garante que ela não receba qualquer interpretação.
Dessa forma, esse clítico é análogo a pronomes plenos expletivos como
it e il, eminglês e francês respectivamente, que satisfazem tão somente
um requerimento sintático, mas não têm participação na construção do
evento.
A estrutura para verbos que apresentam essa morfologia nas
anticausativas foi esboçada acima, com base no trabalho de SCHAEFER
(2008). Naturalmente, as línguas que não têm essa morfologia não
poderão ter a mesma estrutura. Essas línguas só terão até o nível vP nas
anticausativas. Uma sentença como O prato quebrou terá, então, a seguinte
estrutura:
(34)
É de conhecimento geral que o PB tem perdido essa morfologia
de inacusativas e seu padrão de alternância, que era (33) em sincronias
anteriores, tem passado, gradualmente, a ser o de (34), ver discussão em
(CHAGAS (2000) E RIBEIRO (2011), entre outros). Essa mudança no
padrão de alternância sinaliza outra relação entre a raiz do verbo e os
núcleos funcionais. Isso vai ser mais detalhado abaixo.
145
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
3 Comparando a alternância causativa em Dâw e PB
Com a análise aqui proposta, pretendemos mostrar que a alternância
causativa é guiada por fatores sintáticos e sua variedade está ligada a
fatores internos à língua. Por exemplo, se uma língua tem um núcleo
funcional que impõe restrições aos membros da alternância causativa,
menos verbos alternariam, porque menos seriam compatíveis com a
estrutura da língua. Nas figuras (1) e (2), demos um exemplo abstrato
sobre isso. Agora, vamos usar o PB para ilustrar esse caso. Veja um
exemplo da alternância com um expediente morfológico que impõe
restrições (comparar com a figura 1):
(35)
Em um sistema em que esse núcleo funcional não é mais projetado,
mais verbos podem fazer parte dessa alternância, desde que eles sejam
compatíveis com a mudança de estado (ou afetação) compatível com
vP24. Veja um exemplo abaixo e compare com a Figura 2.
Há outras abordagens para o estatuto categorial dessas sentenças, as quais não discutiremos
aqui porque tal discussão foge dos objetivos deste artigo. O leitor interessado deve consultar,
por exemplo, Negrão e Viotti (2008, 2010) e Cyrino (2007, 2013). Nossa proposta, embora
divirja em alguns pontos de implementação, se assemelha às análises de Cyrino por julgar que tais
construções são possíveis em virtude da perda do se (Cyrino, 2007) e de uma semelhança com a
estrutura de sentenças inacusativas (Cyrino, 2013).
24
146
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
(36)
Todavia, uma análise como essa para os dados do PB poderia entrar
em choque com a análise dada para a língua Dâw. Acreditamos que esse
não é o caso. Com essa mudança no sistema de anticausativas, o PB perdeu
um núcleo funcional em anticausativas por ter perdido o item lexical que
era concatenado a ele. Sendo o PB uma língua com grande quantidade
de raízes compatíveis com uma estrutura de mudança de estado (cf.
CANÇADO, GODOY & AMARAL, 2013 para um levantamento
exaustivo de verbos), isso aumentou a alternância causativa.
O Dâw, por outro lado, não poderia ser o mesmo tipo de língua.
Os resultados do trabalho feito em campo por COSTA (2014a) levam
a crer que a língua possui poucas raízes compatíveis com mudança de
estado (daí resulta a pouca produtividade de alternância nessa língua) e
poucas raízes, de um modo geral, compatíveis com conflation em algumas
eventualidades, e a falta de alguns núcleos funcionais. Cada um desses
dois tipos de situação será exemplificado abaixo.
3.1 Falta de alguns núcleos funcionais em Dâw: a inexistência
de passivas
Para evidenciar o argumento que esboçamos no final da seção anterior,
é interessante observar que a pouca produtividade de alternâncias não é
restrita à alternância causativa. A formação de passivas na língua não é
possível25. No lugar dessa construção sintática, dois tipos de sentenças
O teste de elicitação foi organizado da seguinte forma:
Oferecemos um contexto situacional e solicitamos aos falantes a tradução de sentenças de PB
para Dâw com a seguinte estrutura:
(i) X foi cortado, mordido, comido
Exemplo de contexto situacional utilizado:
25
147
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
foram produzidas na elicitação de dados: uma sentença inacusativa
(37b); ii) uma sentença com sujeito genérico (38b). (37a) e (38a) são as
contrapartes transitivas das sentenças em (b).
(37) a)
b)
(38) a)
Dâw xut
rõk
tor-ʉ̃ʉy’
gente macho cortar porco-MDO
‘O homem cortou o porco
(COSTA, 2014a:181)
Tor
rõk
yed.
porco cortar ASPC
‘O porco cortou/O porco já cortou’
(COSTA, 2014a:181)
Dâw xut
wây
pũug.
gente macho ver
porco
‘O homem viu o porco espinho’
(COSTA, 2014a:183)
“Eu e um homem fomos para a mata e matamos um porco. Deixei o porco na casa do homem e
da esposa dele. No dia seguinte, fui à casa dele e vi que o porco foi cortado”.
O objetivo do teste foi elicitar construções passivas de verbos transitivos acompanhadas de um
contexto em que há um agente ou causa não explícito(a). Neste teste, especificamente, os falantes
não aceitaram a inserção de um adjunto como ‘agente da passiva’ nas construções elicitadas. Na
visão de Baker, Roberts and Johson (1989), a morfologia participial da passiva está em uma
cadeia com o agente da passiva, em uma estrutura que se assemelha ao fenômeno ‘redobro de
clítico’. Portanto, a impossibilidade de concatenar um agente da passiva nessas estruturas pode
ser analisada como a inexistência de um elemento como o partícipio, que tenha recebido o papel
temático externo. Assim, se tais construções não mostram os efeitos de um agente implícito, elas
não podem ser analisadas como passivas. Um fato que corrobora essa hipótese é a produção
da sentença (i) por um dos informantes e a impossibilidade, atestada pelo mesmo falante, de
concatenação de um agente da passiva.
i)
Tor
rõk
rãm
porco
cortar
ir
‘O porco foi cortar’
Dada a hipótese acima sobre o papel do agente da passiva, julgamos que esse dado é uma
párafrase da estrutura da voz passiva existente no português brasileiro, ou seja, ‘sujeito +
auxiliar + verbo’. Outras sentenças produzidas pelos informantes quando lhes foi oferecido esse
contexto estão em (37b) e (38b).
148
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
b)
Dâw wây
pũug
gente ver
porco
‘Alguém viu o porco’
(COSTA, 2014a:183)
Como sabemos, a formação de passivas depende de formas fracas
ligadas ao verbo (particípio ou clíticos). Se a língua não dispõe dessas
formas e, consequentemente, da projeção funcional em que essas
formas são concatenadas, como PartP, por exemplo, a passiva não é uma
eventualidade disponível.
3.2 Raízes incompatíveis com conflation
COSTA (2014a) afirma que em Dâw não há uma classe de verbos
deadjetivais derivada morfologicamente como vemos em línguas como
o PB (curto (adjetivo), encurtar (verbo)) e uma escala menor no inglês (red
(adjetivo), redden (verbo)), mas construções analíticas na qual o adjetivo
não é verbalizado, mas é complemento da cópula rãm ‘ficar’. Dessa
forma, em Dâw, os verbos intransitivos “deadjetivais” possuem uma
semântica estativa e não alternam.
(39) a)
b)
weed
çii
rãm
comida
azeda ficar
‘A comida azedou’
*yu’
sol
çii
azedou
rãm
ficar
(COSTA, 2014a:137)
weed
comida
(COSTA, 2014a:137)
A autora ainda afirma que a restrição de alternância deve-se à
estrutura argumental desses tipos verbais. Desse modo, sequências
formadas por um verbo auxiliar e um adjetivo são formadas por uma
149
O que Origina a Variação da Alternativa Causativa? Uma Comparação Entre o Dâw (Família
Nadahup) e o Português Brasileiro
construção diádica composta, na qual o núcleo verbal é preenchido
por uma cópula que toma como complemento um adjetivo. O núcleo
não sofre conflation com seu complemento, pois esse processo só ocorre
quando o núcleo verbal é vazio, ou afixal26, e recebe a matriz fonológica
do seu complemento. Caso esse núcleo seja fonologicamente pleno,
ou seja, possua uma matriz fonológica, não ocorre conflation, como é
observado em Dâw.
A impossibilidade desses verbos alternarem é explicada, pois não
há conflation do núcleo verbal e de seu complemento (o adjetivo), o que
cancela a derivação do verbo. O que emerge dessa comparação entre o
Dâw e o PB está sumarizado no quadro abaixo.
TABELA 2: Síntese
Elemento
Raízes de mudança de estado ou
afetação
Conflation com V
Morfologia em inacusativas
PB
Dâw
Muitas
Poucas
Sim
Têm desaparecido
Em poucos casos
Não há
Os elementos explorados na tabela deixam claro que o PB não têm
mecanismos que impediriam a alternância de ser tão produtiva, como
foi descrito aqui. Como mencionado, essa língua possui muitas raízes
de mudança de estado ou afetação, por outro lado, não há um verbo
que impeça a operação conflation em estruturas diádicas compostas e
a morfologia em inacusativas que, claramente, faz a seleção de alguns
verbos com as quais pode se compor (o número de senadores (*se)
aumentou)) é quase inexistente atualmente.
O Dâw também não possui morfologia em sentenças inacusativas, o
que poderia nos levar a prever que a alternância seria bastante difundida
nessa língua também. Todavia, a falta desse elemento não favorece a
Para HALE & KEYSER (2002), afixos possuem uma característica fonológica ‘defeituosa’,
por isso permitem conflation.
26
150
Janayna Carvalho e Jéssica C. Costa
alternância porque elementos mais baixos do que ele já são restritivos para
a alternância. Há raízes que não fazem conflation com V, portanto não há
alternância, vide o exemplo de verbos deadjetivais. Além disso o número
de raízes elegível para entrar na alternância é pequeno, presumivelmente
porque várias raízes da língua não atendem ao requerimento semântico
da construção inacusativa.
Conclusão
Neste artigo, mostramos que, apesar da aparente uniformidade da
alternância causativa, os verbos que alternam em uma dada língua estão
condicionados a propriedades das línguas, mais notadamente, a tipos de
raízes e núcleos funcionais de que as línguas dispõem. Ilustramos isso
com dois casos. O PB perdeu o expediente morfológico de um núcleo
funcional que restringia a alternância causativa – só verbos com causa
e agente como argumento externo eram licenciados nessa estrutura acarretando uma generalização de verbos alternantes. A língua Dâw
parece ter comportamente oposto, ela apresenta raízes defectivas em
alguns contextos e falta de núcleos funcionais defectivos que permitiram
conflation.
Em um nível empírico, esse trabalho corrobora a ideia de que a
alternância causativa e os fenômenos de estrutura argumental, de um
modo geral, estão relacionados à configuração dos primitivos nas línguas.
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154
ANÁLISE SEMÂNTICA DO PREFIXO RE- EM
VERBOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Letícia Lucinda MEIRELLES1
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Márcia CANÇADO2
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
RESUMO
Através de um vasto levantamento de verbos do português brasileiro, fizemos uma análise
detalhada do prefixo re- com ideia de repetição, a fim de delimitarmos o seu funcionamento.
Mostramos que a ocorrência desse prefixo não é restrita por classes verbais específicas, como
afirmam alguns autores, mas que ele ocorre preferencialmente com verbos que denotam o
aspecto lexical de accomplishment e achievement, podendo também ocorrer com alguns verbos
de atividade, desde que esses estejam ligados a VPs télicos e reversíveis. Ainda mostramos
que, contrariamente ao que foi proposto por alguns autores, o escopo do prefixo re- não é
sobre os subeventos de um verbo, uma vez que verbos monoeventivos também apresentam
ambiguidade com a adição do prefixo.
ABSTRACT
Through a vast survey of verbs in Brazilian Portuguese, we have completed a detailed
analysis of the “re-” prefix conveying the idea of repetition, with the intent of delimiting
how it works. We demonstrate that the occurrence of this prefix is not restricted to a specific
group of verbal classes, as some authors have noted; however, it occurs preferably with verbs
that describe the lexical aspect of accomplishment and achievement. But it can also occur with
verbs of activity connected to telic and reversible VP’s. We also demonstrate that the scope of
the “re-” prefix is not related to the subevents of a verb, as is proposed by some authors, as
the monoeventive verbs also present ambiguity through the prefix.
1
2
A autora agradece o suporte financeiro da FAPEMIG (Bolsa IC)
A autora agradece o suporte financeiro do CNPq (Bolsa PQ) e FAPEMIG (Bolsa PPM).
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 155-180, jan./jun. 2014
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
PALAVRAS- CHAVE
Aspecto Lexical. Classes Verbais. Prefixação. Telicidade.
KEYWORDS
Verbal Classes. Lexical Aspect. Prefixation. Telicity.
Introdução
Nas Gramáticas Tradicionais, a partícula re- é tratada como um
prefixo de origem latina que carrega o sentido de repetição, sendo o
conceito de prefixo definido como um elemento que toma um radical
como base para formar novas palavras. Porém, ao analisarmos mais
atentamente os verbos que se iniciam com esse prefixo, podemos
perceber que nem sempre o re- vem aglutinado a um radical verbal, ou
seja, nem sempre parece funcionar como um caso de prefixação, como
ocorre em recuar, rechear e redigir. Além disso, apesar de grande parte dos
verbos que começam com o prefixo re- apresentar a ideia de repetição,
como em reabastecer, reabrir, reafirmar, existem outros que não apresentam
tal sentido, como em reagir, reclamar, recorrer, etc.
Assim, o presente artigo pretende apresentar uma análise mais
detalhada sobre o funcionamento da partícula re- como prefixo
que se aglutina a verbos do português brasileiro, doravante PB, e
suas contribuições semânticas, mas focaremos nossa atenção mais
especificamente nos verbos em que o re- apresenta a ideia de repetição.
É importante ressaltar que aquilo que estamos chamando de “ideia
de repetição” diz respeito a verbos em que o re- possui o mesmo
significado que a locução adverbial de novo, não estando incluído nesse
grupo palavras como, por exemplo, recortar e remexer, uma vez que essas
dão ideia de iteratividade, movimento contínuo.
156
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
Na seção 1, fazemos uma breve descrição sobre os grupos de
verbos que apresentam o prefixo; na 2, mostramos que o re- não é
sensível a uma análise por classes verbais semânticas, ao contrário do
que propõem Marantz (2007), Oliveira (2009) e Medeiros (2012); na
3, apresentamos a proposta de Dowty (1979) sobre o funcionamento
do prefixo em inglês e analisamos a proposta de Dowty (1979) nos
dados do PB; na seção 4, mostramos o papel que a telicidade exerce
sobre o prefixo re-, baseadas nas propostas de Smith (1997) e mostramos
como a propriedade da reversibilidade (Lieber, 2004) pode ser útil para
a explicação do funcionamento do re-; e na seção 5, concluímos o artigo.
1 Grupos verbais com o prefixo re- no PB
Usando o Dicionário Gramatical de Verbos do Português Contemporâneo do
Brasil (Borba, 1990), fizemos um amplo e meticuloso levantamento de
todos os verbos que se iniciam com o prefixo re-, no PB. Construímos
sentenças com esses verbos, que passaram por julgamentos de
aceitabilidade feitos através dos exemplos de Borba (1990), da nossa
intuição de falantes e de buscas no site Google. Também foram aplicados
testes semânticos e sintáticos, como os testes aspectuais retirados de
Dowty (1979) e a participação em alternâncias verbais, para podermos
fazer uma ampla radiografia do funcionamento do prefixo estudado.
Ao todo foram selecionados 321 verbos que foram divididos em quatro
grupos distintos, segundo o tipo de ocorrência do re-.
Primeiramente, temos um grupo composto por verbos em que não
há a ideia de repetição e em que o re- não se une a um verbo primitivo.
Fazem parte dessa classe 127 verbos, tais como rebelar, receber, recepcionar,
redimir, regar, etc. Vejamos que não há, pelo menos sincronicamente, um
radical verbal primitivo e que esses verbos não podem ser interpretados
como realizar uma ação novamente, ou seja, receber, por exemplo, não é
*ceber de novo.
157
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
O segundo grupo é composto por verbos em que não há a ideia de
repetição, entretanto há um verbo primitivo ao qual o re- se une. Fazem
parte desse grupo 61 verbos, como reagir, rebater, recompensar, recorrer,
reclamar etc. Notemos que, apesar de os verbos agir, bater, compensar, correr
e clamar existirem sem a presença do prefixo, quando unidos a esse,
nenhum deles denota a ideia de repetição.
O terceiro grupo é composto de verbos em que há a ideia de
repetição, entretanto não usamos os verbos primitivos nas mesmas
construções. Foram encontrados 14 verbos desse tipo, como recapitular,
retocar, retornar, entre outros. Observemos que apesar de podermos falar
algo como eu recapitulei toda minha vida, dificilmente realizaremos a mesma
sentença com o verbo capitular: ? eu capitulei toda minha vida. O mesmo
ocorre com os outros verbos: Ana retocou a maquiagem / ? Ana tocou a
maquiagem, a revista retornou às bancas/ ? a revista tornou às bancas.
As três classes acima foram ilustradas brevemente com o intuito
de realizarmos uma descrição do funcionamento do prefixo no PB.
Entretanto, será o quarto grupo, o nosso objeto de estudo. Esse grupo é
composto por verbos em que o re- se une a um radical verbal primitivo,
equivalendo semanticamente à expressão adverbial de novo. Vejamos
alguns exemplos:
(1)
O João reabasteceu o carro.
(2)
O mecânico realinhou o pneu do carro.
(3)
O técnico reconfigurou o computador.
(4)
O presidente redemocratizou o país.
Em (1), temos o verbo abastecer acrescido do prefixo re-, que forma
um verbo composto interpretado como abastecer de novo; em (2), o verbo
alinhar, acrescido do prefixo re-, com o sentido de alinhar o pneu do carro
158
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
de novo; em (3), o verbo configurar, acrescido do prefixo re-, significando
configurar o computador de novo; e em (4), o verbo democratizar, acrescido do
prefixo re-, com o sentido de democratizar o país de novo. Fazem parte desse
grupo 119 verbos3.
2 O prefixo re- e as classes verbais
Começaremos nossa análise, utilizando algumas propostas sobre o
re-, já apontadas na literatura. Alguns autores afirmam que a ocorrência
do prefixo re- está restrita a determinadas classes semânticas de verbos.
Por exemplo, Oliveira (2009), baseada em Marantz (2007), afirma que,
no caso dos verbos transitivos, “o re- descreve a recorrência da mudança
de estado sofrida pelo sintagma determinante que complementa o
verbo”. Assim, para que o prefixo re- possa ocorrer, o verbo ao qual ele
será unido tem que selecionar sintaticamente um DP e semanticamente
um evento de mudança de estado. Também Medeiros (2012), em sua
análise sobre o re- no PB, propõe que tal prefixo ocorre em “predicados
que incluam um estado decorrente de um evento”, gerando a repetição
do mesmo. Portanto, a proposta dos autores é que a inserção do prefixo
re- é sensível às classes semânticas dos verbos, mais especificamente, é
sensível a verbos que denotem uma mudança de estado. Entretanto, o
que exatamente seja uma mudança de estado não fica muito claro. Por
exemplo, Medeiros (2012) argumenta, já identificando o problema dessa
classificação, que reler e reempurrar poderiam ser tipos de mudança de
estado. No caso de uma sentença como Ana reempurrou o carrinho do bebê,
podemos imaginar que há um estado pressuposto, o local prévio onde
o carrinho estava e para o qual foi “reempurrado”. Já no caso de reler,
é possível que haja algum tipo de conceptualização na qual, após uma
leitura, o objeto lido passe a ser, também, uma entidade da vida mental
do leitor, uma representação ou interpretação nova do livro.
3
Para uma maior clareza da descrição, anexamos esses dados em um apêndice final.
159
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
Assumir uma definição de mudança de estado de tamanha
abrangência parece-nos enfraquecer a generalização proposta, pois será
possível colocar muitos verbos dentro desses limites que não aceitarão
o prefixo re-. Por exemplo, peguemos aleatoriamente três verbos como
amadurecer, apodrecer, cegar. Seguindo essa linha de análise, poderíamos
propor que a fruta madura, a fruta podre ou a pessoa cega mudaram
de estados; contudo, parecem-nos bastante duvidosos (e não constam
de dicionários) os verbos *reamadurecer, *reapodrecer e *recegar. Portanto,
para verificar se realmente uma afirmação como essa se sustenta, um
primeiro passo é propor uma definição exata do que seja uma mudança
de estado.
Para tentar clarear essa noção, vamos usar uma análise semântica
mais fina, baseada na linguagem de decomposição em predicados
primitivos, proposta por Cançado, Godoy e Amaral (2013). As autoras
propõem em seu trabalho que existem verbos que denotam mudança,
mas que essas podem ser de quatro tipos, e não somente mudança de
estado. E que especificar essas mudanças é relevante para uma série de
propriedades da sintaxe. Para tal afirmação, elas se valem de uma ampla
classificação de 862 verbos do PB, divididos em quatro classes, de acordo
com suas especificidades semânticas e seus comportamentos sintáticos,
que denotam algum tipo de mudança, incluindo aí os que denotam uma
mudança de estado.
A primeira classe é a que elas denominam “classe de verbos de
mudança de estado”. Os verbos pertencentes a essa classe acarretam
o sentido de become ADJ (definição também dada por Parsons, 1990) e
aceitam a alternância causativo-incoativa com ou sem o clítico se, como
pode ser visto em (5):
(5)
a.
b.
c.
A soprano quebrou a jarra de cristal
A jarra de cristal ficou quebrada. (become ADJ)
A jarra de cristal (se) quebrou. (alternância causativoincoativa)
160
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
Analisemos os exemplos dados por Medeiros (2012) e por Oliveira
(2009) no âmbito dessa definição. Se os verbos que dão origem aos
verbos com prefixo re- denotam uma mudança de estado, eles teriam
que se comportar da mesma maneira que os verbos em (5):
(6)
a.
O menino leu o livro.
b. *O livro ficou lido. (become ADJ)
c. *O livro (se) leu.
(7)
a.
b.
c.
O garçom reconduziu a dama até a mesa.
*A dama ficou conduzida.
*A dama (se) conduziu até a mesa. (agramatical na leitura
incoativa)
Através das sentenças em (6) e (7), vemos que os exemplos dados
pelos autores não se sustentam em uma análise mais rigorosa. E, além
do mais, fica fácil mostrar que mesmo alguns verbos típicos de mudança
de estado não aceitam a hipótese da mudança de estado como restrição
à ocorrência do re- :
(8)
*A soprano requebrou a taça de cristal.
Se ignorarmos esse contra exemplo e afrouxarmos a hipótese para
que verbos que denotam uma mudança qualquer (de lugar, de posse, etc)
aceitem tal prefixação, ainda assim podemos mostrar que, na realidade, a
prefixação com re- não é sensível às classes verbais.
Cançado, Godoy e Amaral (2013) propõem como outras três classes
de mudança, a dos verbos de mudança de estado locativo, a dos verbos
de mudança de lugar (location) e a dos verbos de mudança de posse
(locatum). Os verbos de mudança de estado locativo acarretam ficar em
um estado em um determinado lugar, são estritamente agentivos e não
realizam a alternância incoativa:
161
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
(9)
a.
b.
c.
A Maria abrigou o idoso no asilo.
O idoso ficou abrigado no asilo.
*O idoso (se) abrigou no asilo. (agramatical na leitura
incoativa)
(10) a.
b.
c.
Os guerreiros asilaram a Helena no território troiano.
A Helena ficou asilada no território troiano.
*A Helena (se) asilou no território troiano. (agramatical
na leitura incoativa)
Já os verbos de mudança de lugar acarretam que a entidade denotada
pelo argumento interno do verbo passa a ficar em um determinado lugar,
aceitando apenas um agente como argumento externo e não realizando
a alternância incoativa:
(11) a.
b.
c.
O soldado crucificou o ladrão.
O ladrão ficou na cruz.
*O ladrão (se) crucificou. (agramatical na leitura
incoativa)
(12) a.
b.
c.
O médico hospitalizou a paciente.
A paciente ficou no hospital.
*A paciente (se) hospitalizou. (agramatical na leitura
incoativa)
Por fim, os verbos de mudança de posse acarretam que a entidade
denotada pelo argumento interno verbal passar a ser provida de alguma
coisa, aceitando também apenas um agente como argumento externo e
não realizando a alternância incoativa:
(13) a.
b.
c.
O guarda algemou o prisioneiro.
O prisioneiro ficou com algema.
*O prisioneiro (se) algemou. (agramatical na leitura
incoativa)
162
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
(14) a.
b.
c.
O menino açucarou o café.
O café ficou com açúcar.
*O café (se) açucarou.
Retomando os exemplos das classes acima, mostramos abaixo que
a ocorrência do prefixo re- não está restrita ao tipo de classe semântica
do verbo ao qual ele se une, de modo que nas três classes, pode ou não
existir exemplos com re-:
(15) a.
b.
A Maria reabrigou o idoso no asilo.
?Os guerreiros reasilaram a Helena no território troiano.
(16) a.
b.
*O soldado recrucificou o ladrão.
O médico ?reospitalizou a paciente.
(17) a.
b.
O guarda ?realgemou o prisioneiro.
*O menino reaçucarou o café.
Portanto, concluímos que denotar uma mudança de estado ou uma
mudança qualquer não é uma restrição ao verbo aceitar a prefixação com
re-. Com isso, vamos buscar uma resposta em outro nível de análise.
3 A análise de Dowty (1979) para re- no inglês
Para Dowty (1979), o significado do prefixo re-, em inglês, parece ser
o mesmo do advérbio again (de novo), que é analisado por McCawley
(1971; 1973) e Morgan (1969) como sendo um advérbio ambíguo. Dowty
(1979) propõe que tal ambiguidade pode ser descrita em termos de duas
leituras: uma externa e outra interna. De acordo com o autor, em verbos
que denotam o aspecto lexical de accomplishment4, como é o caso de fechar,
4
Vendler (1967) propõe a existência de quatro classes aspectuais do tipo lexical: atividades,
estados, achievements e accomplishments. Estes últimos são verbos que indicam uma ação que se
desenvolve no tempo, denotando um ponto de culminação e o ponto final.
163
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
apenas a leitura interna é acarretada, enquanto a outra constitui uma
implicatura. Em uma sentença como O João fechou a porta de novo, a leitura
externa corresponde ao fato de o próprio João ter feito a ação de fechar
a porta mais de uma vez; já a leitura interna acarreta apenas que a porta
já estava fechada em uma situação anterior, sem a necessidade de ter sido
o João quem a fechou.
Entretanto, Dowty (1979) nos mostra que a ambiguidade para
sentenças modificadas pelo advérbio de novo é puramente estrutural, uma
vez que se colocarmos o advérbio no início da sentença, não há mais
dupla interpretação:
(18) De novo, o João fechou a porta.
Ao proferirmos a sentença em (18), só podemos interpretar que o
João já havia fechado a porta anteriormente e teve que fechá-la de novo,
ou seja, a leitura externa é a única presente.
Diferentemente, sentenças com o prefixo re- não podem ser tratadas
como casos de ambiguidade estrutural, uma vez que a posição do
mesmo é fixa. Assim, de acordo com Dowty (1979), o prefixo re- ocorre
preferencialmente com verbos de accomplishment e achievement5, acarretando
que o resultado ou estado final destes é verdade pela segunda vez, mas
não significando necessariamente que toda a ação expressa pelo radical
verbal primitivo ao qual o re- se une tenha ocorrido mais de uma vez.
Vejamos o seguinte exemplo:
(19) O presidente Eurácio redemocratizou o país.
A sentença em (19) acarreta apenas que o país já havia sido
democrático em um momento anterior e esse acarretamento é aquilo
que Dowty (1979) chama de leitura interna. A leitura externa de que
Verbos de achievement são monoeventivos e télicos, descrevendo eventos que não se desenvolvem
no tempo, ou seja, que são pontuais.
5
164
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
o próprio presidente Eurácio democratizou o país mais de uma vez é
uma implicatura, ou seja, não é acarretada pela sentença. Isso é fácil de
perceber quando dizemos uma sentença do tipo:
(20) O presidente Eurácio redemocratizou o país, que já havia sido
democratizado por Lucas há 10 anos atrás.
Portanto, temos que, para o inglês, o re- ocorre com verbos de
accomplishment e achievement, apresentando como acarretamento aquilo
que Dowty (1979) chama de leitura interna e como implicatura, a leitura
externa. Vejamos agora se o mesmo funciona para o português brasileiro.
3.1 A análise de Dowty (1979) e os dados do PB
Apesar de Oliveira (2009) e Medeiros (2012) também se valerem da
análise de Dowty (1979), os autores associam as restrições propostas por
esse último à propriedade de mudança de estado. No entanto, como já
comprovamos, essa restrição não se sustenta. Ainda, Oliveira (2009) e
Medeiros (2012) ilustram suas propostas com poucos exemplos, o que
leva a uma limitada descrição da língua. O que faremos é uma análise mais
ampla das propriedades semânticas de aspecto lexical para os nossos
dados, fazendo com isso, também, uma descrição mais minuciosa do
fenômeno, e constatando se realmente elas são restritivas às ocorrências
com prefixo re- no PB.
Aplicamos aos nossos dados, os testes de aspecto lexical propostos
por Dowty (1979). Como resultado tivemos que, dos 119 verbos
analisados, 104 denotam o aspecto lexical de accomplishment e 15 denotam
o de achievement. Vejamos alguns exemplos desses testes.
Verbos de accomplishment, quando postos no progressivo, acarretam
que a ação expressa pelo verbo ainda não ocorreu, enquanto verbos de
achievement nos dão ideia de iminência6:
Realçamos que estamos utilizando o verbo sem o prefixo re-, pois a afirmação a ser
testada é a de que o prefixo em questão ocorre com verbos que são de accomplishment
e achievement
6
165
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
(21) a.
b.
Carlos reformulou o trabalho.
Se Carlos estava formulando o trabalho, então Carlos
não reformulou o trabalho.
(22) a.
b.
O guarda capturou o prisioneiro fugitivo.
O guarda estava capturando o prisioneiro fugitivo.
(expressa iminência)
Verbos de accomplishment e achievement aceitam o advérbio temporal
em x tempo:
(23) Carlos formulou o trabalho em duas horas.
(24) O guarda capturou o prisioneiro fugitivo em poucos instantes.
Verbos de accomplishment, quando combinados com o advérbio quase,
formam uma sentença ambígua, indicando que o verbo possui mais de
evento. O mesmo não ocorre para verbos de achievement:
(25) Se Carlos quase formulou o trabalho ou ele nem começou a
formular, ou começou e parou a ação no meio.
(26) Se o guarda quase capturou o prisioneiro fugitivo, então ele
não o capturou.
No entanto, é importante mencionar que, apesar de o re- ocorrer
apenas com verbos de accomplishment e achievement, nem todos os verbos
que denotam accomplishment e achievement podem ocorrer com o prefixo,
como podemos ver nas sentenças a seguir:
(27) *Ana requebrou o vaso.
166
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
(28) *João rechegou na festa.
Em relação às leituras interna e externa, Oliveira (2009) e Medeiros
(2012) concordam com Dowty (1979), afirmando que, em PB, o prefixo
re- acarreta apenas a leitura interna nos verbos de accomplishment, ou seja,
tem escopo apenas sobre o segundo subevento dos mesmos:
(29) Carlos reformulou o trabalho.
A sentença em (29) só acarreta que o trabalho já havia sido formulado
anteriormente. A leitura de que o próprio Carlos o formulou mais de
uma vez é uma implicatura.
No entanto, não estamos certas de o prefixo re- ter escopo somente
sobre os subeventos de um verbo, como afirmam Dowty (1979), para
o inglês, e Oliveira (2009) e Medeiros (2012) para o português. Verbos
de achievement são monoeventivos, portanto não se esperaria que
apresentassem ambiguidade com o prefixo, já que essa é gerada pelo
fato de o re- poder ter escopo sobre o primeiro ou o segundo subevento
dos verbos de accomplishment. Vejamos o exemplo:
(30) O guarda Leopoldo recapturou o assaltante.
O verbo capturar é um verbo de achievement que tem sua
monoeventividade confirmada através de sua combinação com o
advérbio quase (26). No entanto, quando combinado com o prefixo re-,
esse verbo apresenta uma ambiguidade que pode ser descrita da seguinte
forma:
(31)
a.
O guarda Leopoldo recapturou o assaltante que já havia
sido capturado pelo soldado Lucas em um momento
anterior.
b. O próprio guarda Leopoldo capturou o assaltante mais
de uma vez.
167
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
O mesmo tipo de ambiguidade ocorre para outros verbos de
achievement que são transitivos, como é o caso de recomeçar:
(32) a.
b.
c.
Pedro recomeçou o trabalho.
Pedro recomeçou o trabalho que Ana já havia começado
antes.
O próprio Pedro começou o trabalho mais de uma vez.
Já o mesmo não ocorre para verbos de achievement intransitivos, como
podemos observar em (33):
(33) O relógio reapareceu.
Notemos que esta sentença não é ambígua e isso ocorre devido ao
fato de reaparecer ser um verbo intransitivo.
Com isso, nos parece que, na verdade, o prefixo re- tem escopo sobre
outro tipo de estrutura, e não sobre subeventos. Verbos transitivos,
quando combinados com o prefixo re-, apresentam duas leituras. Podemos
dizer que apenas a leitura interna é um acarretamento, enquanto a leitura
externa é uma implicatura.
Nossa análise encontra respaldo quando vemos que o mesmo ocorre
com o advérbio de novo. Esse, por sua vez, é tido na literatura como
ambíguo (McCawley, 1971, 1973; Morgan, 1969; Dowty, 1979), sendo
utilizado como forma de atestar a presença de mais de um evento em
determinados verbos (von Stechow, 1995, 1996). Porém, tendo o mesmo
significado que o prefixo re-, o advérbio de novo não mede o número de
eventos de um verbo, pois assim como o prefixo, tem escopo sobre
outras estruturas, e não sobre seus subeventos. Isso explica porque
certos verbos de atividade que são monoeventivos, como é o caso de
martelar, por exemplo, formam sentenças ambíguas quando combinados
com o advérbio de novo:
168
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
(34) O médico martelou o joelho do paciente de novo.
A sentença em (34) apresenta duas leituras: uma de que o próprio
médico martelou o joelho do paciente mais de uma vez, ou de que o
médico martelou o joelho do paciente que já havia sido martelado por
outra pessoa, como podemos ver na sentença a seguir:
(35) O médico martelou o joelho do paciente que já havia sido
martelado por uma enfermeira a poucos minutos atrás.
Feitas essas considerações, concluímos até aqui que o prefixo re-,
em PB, ocorre com verbos de accomplishment e achievement, concordando
assim com as análises de Dowty (1979) para o inglês e Oliveira (2009) e
Medeiros (2012) para o PB. Porém, ao contrário do que apontam esses
autores, o escopo do prefixo não é sobre os subeventos de verbos de
accomplishment, mas sobre algum outro tipo de estrutura de verbos que
denotam accomplishment e achievement. Entretanto, só com essas restrições,
ainda não podemos fazer uma generalização que abarque todos os
exemplos com re-, como mostramos em (27) e (28) e outros exemplos
ao longo do artigo.
4 A telicidade e os dados do PB
Até este ponto da nossa análise, vimos que o prefixo re- não é sensível
às classes verbais, e mais especificamente aos verbos de mudança de
estado, mas sim ao aspecto lexical, de modo que este ocorre apenas
com verbos que denotem accomplishment e achievement. No entanto, Smith
(1997) aponta para o fato de o prefixo re- poder ocorrer com verbos
de atividade, desde que eles denotem um evento télico7. A autora dá o
seguinte exemplo:
Segundo Rothstein (2004), ser um evento télico é ser um evento que tem um ponto final ou
uma meta a ser alcançada.
7
169
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
(36) a.
b.
*They redanced.
eles redançaram
They redanced the second number.
eles redançaram o segundo número
Constatamos também, para o PB, que certos verbos de atividade,
quando inseridos em sentenças que denotam telicidade, podem ocorrer
com o prefixo re-, como em reescrever, reler e repensar. Vejamos o exemplo
a seguir:
(37) a.
b.
c.
d.
Henrique escreveu a carta.
Henrique reescreveu a carta.
Henrique escreveu o dia todo.
*Henrique reescreveu o dia todo.
Em (37), podemos observar que o verbo escrever só aceita o prefixo
re-, quando se encontra em situações télicas. O mesmo ocorre para reler
e repensar em sentenças do tipo:
(38) a.
b.
Gisela releu o livro.
*Gisela releu a noite toda.
(39) a.
b.
Beto repensou o assunto.
*Beto repensou a noite toda.
Baseadas nesses exemplos, e assumindo que verbos que denotam
accomplishments e achievements são télicos, poderíamos propor, mais
genericamente, que a telicidade seria a maior restrição para a prefixação
com re-.
170
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
Entretanto, constatamos ainda, para alguns exemplos do PB, que
a telicidade sozinha não explica o funcionamento do re-, uma vez que
temos outros verbos de atividade que não aceitam o prefixo, mesmo
quando se encontram em sentenças que denotam eventos télicos:
(40) a.
b.
Xuxa nadou 3 Km.
*Xuxa renadou 3 km.
(41) a.
b.
Rômulo correu 18 km.
*Rômulo recorreu 18 km.
A nossa explicação para tal fato é que, como Amaral (2013) propõe,
nadar 3 km e correr 18 km não constituem propriamente um VP. As
expressões 3 km e 18 km, segundo a autora, não são objetos de nadar e
correr, mas sim adjuntos dos mesmos, ou seja, esses verbos não aceitam
uma leitura de accomplishment, como acontece com escrever, ler e pensar.
Notemos ainda, que nadar e correr não apresentam ambiguidade quando
combinados com o advérbio quase:
(42) Xuxa quase nadou 3 km.
(43) Rômulo quase correu 18 km.
Nas sentenças acima só temos a leitura de que a ação não foi
terminada, ou seja, de que Xuxa parou de nadar antes de completar 3
km e de que Rômulo parou de correr antes de completar 18 km.
Como as expressões 3 km e 18 km são adjuntos e não argumentos,
os exemplos em (40) e (41) não constituem VPs télicos e, por isso, não
aceitam o prefixo re-. Assim, a melhor explicação para a ocorrência do
re-, com ideia de repetição é assumir que o prefixo ocorre apenas em
verbos que possuem o aspecto lexical de accomplishment ou achievement, ou
em VPs télicos que possam ter uma leitura de accomplishment.
171
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
No entanto, ainda há verbos de achievement que não aceitam o prefixo
re-, como *rechegar e *reexplodir.
4.1 A propriedade semântica da reversibilidade
Lieber (2004) mostra que há verbos de achievement e, consequentemente,
télicos que não aceitam o prefixo re-, como: *reexplodir e *rechegar . Para
essa autora, isso ocorre pois o re- adere a verbos que tenham um
resultado reversível, o que justifica porque não podemos *reexplodir uma
mesma bomba ou *rechegar em uma festa, por exemplo.
Essa restrição é capaz de explicar algumas agramaticalidades.
Retomemos os verbos amadurecer, apodrecer e cegar. Todos os três são
verbos de mudança de estado que podem denotar achievement ou
accomplishment e, portanto, são télicos.
(43) a.
b.
c.
d.
O calor amadureceu a fruta. (accomplishment)
A fruta amadureceu. (achievement)
*O calor reamadureceu a fruta.
*A fruta reamadureceu.
(44) a.
b.
c.
d.
O calor apodreceu a fruta. (accomplishment)
A fruta apodreceu. (achievement)
*O calor reapodreceu a fruta.
*A fruta reapodreceu.
(45) a.
b.
c.
d.
A doença cegou o João. (accomplishment)
O João (se) cegou com a doença. (achievement)
* A doença recegou o João.
* O João (se) recegou com a doença.
172
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
No entanto, como vimos nenhum deles aceita o prefixo re(*reamadurecer, *reapodrecer, * recegar). Com a proposta de Lieber
(2004), podemos explicar isso, baseadas no fato de que nenhum desses
verbos possui um resultado reversível, ou seja, não tem como fazer com
que uma fruta, já madura ou podre, reverta seu processo para que possa
amadurecer ou apodrecer de novo. Da mesma forma, não tem como
fazer com que uma pessoa que esteja permanentemente cega volte a
enxergar para que possa ficar cega novamente.
Contudo, o problema é que ainda há uma série de verbos que têm o
aspecto lexical de accomplishment ou achievement, e que possuem resultado
reversível, mas que, ainda assim, não foram encontradas ocorrências dos
mesmos com o re-:
(46) ?João reapagou a luz do quarto.
(47) ?O gás tóxico reasfixiou o fugitivo.
(48) ?O diretor da faculdade reburocratizou a Pós-Graduação.
(49) ?O vírus recorrompeu o arquivo.
Notemos que todos os verbos de (46) a (49), apesar de serem
interpretáveis, não são encontrados ou usados no PB. Também
colocaríamos nessa lista os verbos conhecidos como psicológicos,
embora Medeiros (2012) assuma que tais verbos aceitam a prefixação
com re-. Não nos parece usuais ocorrências como ?repreocupar, ?reaborrecer,
?reirritar etc, apesar de serem verbos que denotam accomplishment e de
terem uma natureza reversível.
Com isso, concluímos que, embora haja algumas restrições para o
uso do prefixo re-, como as de ser um verbo que tenha o aspecto lexical
ou se encontre em um VP que apresente uma leitura de accomplishment
173
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
ou achievemente, apresentando um resultado reversível, o funcionamento
de tal prefixo não pode ser totalmente explicado pelas mesmas. Isso nos
mostra que há ainda uma série de idiossincrasias e outras questões, que
não são de ordem semântica, envolvidas nesse fenômeno de prefixação.
Considerações finais
O trabalho aqui desenvolvido teve como objetivo fazer uma análise
detalhada acerca do funcionamento do prefixo re- com ideia de repetição
a fim de se tentar descobrir a que grupo de verbos esse pode se aderir
para formar palavras derivadas. Ao todo, foram 119 verbos analisados.
Mostramos, primeiramente, através da proposta de Cançado, Godoy
e Amaral (2013) para as classes verbais do PB, que o prefixo re- não é
sensível à classificação semântica dos verbos que denotam mudança de
estado, contrariamente as análises de Oliveira (2009) e Medeiros (2012).
Entretanto, concordamos com os autores no que diz respeito ao fato de,
em PB, o re- ter preferência por verbos de accomplishment e achievement.
Porém, diferentemente de Dowty (1979), Oliveira (2009) e
Medeiros (2012), mostramos que o prefixo re- não tem escopo sobre
os subeventos dos verbos de accomplishment, mas sim sobre algum outro
tipo de estrutura, uma vez que verbos de achievement transitivos também
apresentam ambiguidade quando combinados com o re-.
Ainda chamamos atenção para o fato de que uma análise que tente
explicar as ocorrências do prefixo re- através da telicidade (Smith, 1997)
não se sustenta, pois há verbos que, mesmo quando inseridos em
sentenças télicas, não aceitam o re, como *renadar, *recorrer e *redançar.
Também mostramos que a proposta de Lieber (2004) a cerca da
propriedade da reversibilidade pode ser útil na tentativa de se explicar
porque certos verbos de accomplishment e achievement não aceitam o prefixo,
como *reamadurecer, *rechegar, *reapodrecer, *recegar e *reexplodir.
174
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
Por fim, concluímos que, apesar de haver algumas restrições para o
uso do de prefixo re-, como as de ser um verbo que tenha o aspecto lexical
ou se encontre em um VP que apresente uma leitura de accomplishment
ou achievement, apresentando um resultado reversível, o funcionamento
tal prefixo não pode ser totalmente explicado pelas mesmas, de modo
que outras questões, não semânticas, parecem estar envolvidas nesse
processo de prefixação.
Referências
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lexical dos verbos. 2013. Dissertação (Mestrado em Estudos
Linguísticos) – Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte, 2013.
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português contemporâneo do Brasil. Editora Unesp, São Paulo, 1990.
CANÇADO, M.; GODOY, L.; AMARAL, L. Catálogo de verbos do
português brasileiro: classificação verbal segundo a decomposição
de predicados. Parte I - Verbos de mudança, Editora UFMG, Belo
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Montague’s PTQ. Dordrecht: Reidel, 1979.
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MEDEIROS, A. B. de. Considerações sobre o prefix re-. Alfa, São
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MORGAN, Jerry L. On the treatment of presupposition in
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– 77.
OLIVEIRA, Solange Mendes. Aspectos da derivação prefixal e
sufixal no português do Brasil. 2009. Tese de doutorado. UFSC,
Florianópolis, 2009.
PARSONS, T. Events in the semantics of English. Cambridge (MA):
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ROTHSTEIN, Susan. Structuring events: a study in the semantics of
lexical aspect. Oxford: Blackwell Publishing, 2004.
SMITH, C. The Parameter of Aspect. Kluwer Academic Press, 1997.
VENDLER, Zeno. Linguistics in Philosophy. Ithaca, NY: Cornell
University Press, 1967.
VON STECHOW, A. On the Proper Treatment of Tense. In SALT
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______The different readings of wieder “again”: A structural
account, Journal of Semantics, 1996, v.13, p. 87-138.
176
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
Apêndice
Verbos em que o prefixo re- equivale ao advérbio de novo:
1. Reabastecer
2. Reabrir
3. Reacender
4. Reacomodar
5. Reacostumar
6. Readaptar
7. Readmitir
8. Readormecer
9. Readquirir
10. Readmitir
11. Readquirir
12. Reafirmar
13. Reagrupar
14. Reajustar
15. Realimentar
16. Realinhar
17. Realocar
18. Reanimar
19. Reaparecer
20. Reaparelhar
21. Reapossar
22. Reaprender
23. Reapresentar
24. Reaproximar
25. Rearmar
26. Rearrumar
27. Reassumir
28. Reatiçar
29. Reativar
30. Reatualizar
O João reabasteceu o carro.
Bruno reabriu a loja.
Marcelo reacendeu a churrasqueira.
Maria reacomodou o móvel na sala.
Pedro reacostumou o filho a levantar cedo.
O mecânico readaptou a peça ao motor.
A empresa readmitiu o funcionário.
A avó readormeceu o bebê.
Ana readquiriu o apartamento.
A empresa readmitiu o funcionário.
Ana readquiriu o apartamento.
João reafirmou a verdade.
A professora reagrupou a turma.
Blenda reajustou o relógio.
A mãe realimentou o bebê.
O mecânico realinhou o pneu do carro
O reitor realocou a verba do orçamento.
A chegada de Oscar reanimou a festa.
O fantasma reapareceu para a garota.
Josué reaparelhou seu carro.
O índio reapossou sua terra.
O menino reaprendeu a jogar futebol.
Maria reapresentou o trabalho.
Ana reaproximou o móvel à parede.
O escoteiro rearmou a barraca no rio.
A cabeleireira rearrumou a noiva.
Benedita reassumiu o cargo da empresa.
O vento reatiçou o fogo na plantação.
Maurício reativou a empresa.
Ricardo reatualizou o estoque.
177
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
31. Reavaliar
32. Reavisar
33. Rebatizar
34. Rebobinar
35. Recair
36. Recapear
37. Recapturar
38. Recarregar
39. Recodificar
40. Recolocar
41. Recomeçar
42. Recompor
43. Recomprar
44. Reconciliar
45. Reconduzir
46. Recondicionar
47. Reconfigurar
48. Reconquistar
49. Reconsiderar
50. Reconsolidar
51. Reconstruir
52. Recontar
53. Recriar
54. Redefinir
55. Redemocratizar
56. Redescobrir
57. Redimensionar
58. Redirecionar
59. Redistribuir
60. Redividir
61. Redobrar
62. Reduplicar
63. Reeditar
64. Reeducar
O corretor reavaliou a casa.
Marcos reavisou Carlos da reunião.
Bruna rebatizou o filho adotivo de Carlos.
O pai rebobinou a fita.
Ana recaiu em tristeza. (metafórico)
O governo federal recapeou a estrada.
A polícia recapturou o bandido.
Juliana recarregou o celular.
João Paulo recodificou toda a mercadoria.
Beatriz recolocou o fone no gancho.
Marina recomeçou o trabalho.
O flautista recompôs a música.
Pedro recomprou o mesmo carro
A mãe reconciliou os filhos.
O garçom reconduziu a dama até a mesa.
Bento recondicionou o alto falante a falar.
Bento reconfigurou seu computador.
Gisela reconquistou o papel de atriz.
Henrique reconsiderou sua decisão.
Lula reconsolidou o Brasil.
O povo reconstruiu a cidade.
O menino recontou todo o dinheiro.
O artista recriou o quadro.
A mãe redefiniu a posição dos móveis.
O presidente redemocratizou o país.
Isadora redescobriu sua beleza.
O engenheiro redimensionou a maquete.
O piloto redirecionou o avião.
O pai redistribuiu a terra (entre os filhos).
A professora redividiu a tarefa.
A empregada redobrou a roupa.
Dilma reduplicou o preço da gasolina.
A editora reeditou o livro.
Carolina reeducou sua alimentação.
178
Letícia Lucinda Meirelles e Márcia Cançado
65. Reelaborar
66. Reeleger
67. Reembarcar
68. Reemitir
69. Reempossar:
70. Reimprimir
71. Reencarnar
72. Reencontrar
73. Reenrolar
74. Reensinar
75. Reequipar
76. Reerguer
77. Reescrever
78. Reestabilizar
79. Reestudar
80. Reexaminar
81. Refazer
82. Reflorescer
83. Reformular
84. Reintegrar
85. Reinterpretar
86. Reinaugurar
87. Reingressar
88. Reiniciar
89. Reinstalar
90. Reinstaurar
91. Reinventar
92. Relançar
93. Reler
94. Religar
95. Remarcar
96. Remodelar
97. Remontar
98. Renascer
Marcos reelaborou o projeto.
A população reelegeu Lula.
Luma reembarcou no navio.
Sara reemitiu a nota fiscal.
Carlos (se) reempossou da terra.
Larissa reimprimiu o documento.
A alma de Bruna reencarnou.
Carlos reencontrou Ana um ano depois.
Lucas reenrolou a fita.
O professor reensinou a matéria.
A mãe reequipou a casa com coisas novas.
O pedreiro reergueu o muro.
Sara reescreveu a carta para o pai.
Lula reestabilizou a economia do país.
O aluno reestudou toda a matéria.
O médico reexaminou o paciente.
Beto refez o trabalho.
A planta refloresceu com a chuva.
Luiz reformulou o projeto
A Febem reintegrou o menor à sociedade.
Joana reinterpretou o papel de Madalena.
Amélia reinaugurou o restaurante.
Betânia reingressou na faculdade.
O técnico reiniciou o computador.
O menino reinstalou o jogo no laptop.
O pai reinstaurou a paz na casa.
Platão reinventou a retórica de Aristóteles.
Araújo relançou a moda hippie no Brasil.
Mariana releu o livro.
Bruna religou a TV.
Márcia remarcou o encontro com Letícia.
Fabiana remodelou a jarra de barro.
A criança remontou a maquete.
A fênix renasceu das próprias cinzas.
179
Análise Semântica do Prefixo RE - Em Verbos do Português Brasileiro
99. Renegociar
100. Reocupar
101. Reordenar
102. Reorganizar
103. Reorientar
104. Repassar
105. Repavimentar
106. Repensar
107. Repintar
108. Replantar
109. Repor
110. Repovoar
111. Republicar
112. Requentar
113. Reestabelecer
114. Retomar
115. Revalidar
116. Revender
117. Rever
118. Reviver
119. Reunificar
Os comerciantes renegociaram o preço.
Luiz XV reocupou o trono.
A professora reordenou as crianças na fila.
Rianny reorganizou seu quarto.
O cientista reorientou o satélite.
O ator repassou o texto.
A prefeitura repavimentou a rua da cidade.
Miriam repensou o assunto.
O pintor repintou o quadro.
Fabiana replantou a árvore de maçã.
Marcela repôs o estoque da dispensa.
Noé repovoou a Terra (após o dilúvio).
A editora republicou o livro.
A mãe requentou o café.
O diretor reestabeleceu o nome da escola.
Os republicanos retomaram o poder.
Lívia revalidou o contrato.
Rodrigo revendeu a casa.
Miriam reviu o trabalho.
Laura reviveu a mesma história da mãe.
O governo reunificou a Alemanha.
180
ALFABETIZAÇÃO APÓS O ACORDO ORTOGRÁFICO
DE 19901: A QUESTÃO DO ‘Y’ E DO ‘W’
Celso FERRAREZI JUNIOR
Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL)
Cláudia TELES
Faculdade de Ciências da Administração e de Tecnologia de Rondônia
(FATEC-RO)
Iara Maria TELES
Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
RESUMO
Com a introdução das letras y, k e w ao nosso alfabeto, pelo Acordo Ortográfico de 1990,
muitos alfabetizadores têm ficado em dúvida sobre a classificação de y e w como vogais ou
consoantes. O principal objetivo deste artigo é esclarecer essa questão, partindo de princípios
fonéticos, fonológicos e pedagógicos, deixando claro que, na nossa língua, continuamos tendo
sete vogais orais [ ↄ].
ABSTRACT
With the introduction of the letters y, k and w to our alphabet, by the Ortographic Settlement
of 1990, many literacy tutors have been having doubts about the classification of y and was
vowels or consonants. The main objective of this article is to clarify that question, based on
phonetic, phonologic and pedagogical principles, making it clear that, in our language, we still
have seven oral vowels [ↄ].
O Acordo ortográfico de 1990 começou a valer no país a partir de 1º de janeiro de 2009, após a
assinatura dos Decretos Presidenciais de números 6.583, 6.584 e 6.585 do ano de 2008.
1
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 181-201, jan./jun. 2014
Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’
PALAVRAS-CHAVE
Alfabetização. Acordo ortográfico. Classificação do Y e W.
KEYWORDS
Ortographic Settlement. Classification of Y and W.
Introdução
A associação dos sons com os símbolos escritos que os representam
na grafia nunca foi tarefa fácil na alfabetização. A criança, quando chega
à escola, hoje por volta dos quatro anos, nas classes que antecedem
a alfabetização propriamente dita, já conhece os sons de sua língua
materna e, com eles, já se comunica perfeitamente com o mundo. Ela se
expressa usando todos os sons da língua com a entonação adequada, de
forma que os que a cercam a compreendem e isso, por si só, demonstra
que, nessa fase, a criança já não apresenta qualquer problema grave em
relação ao uso e à compreensão dos sons de sua língua materna.
Então, por que ela deve ser submetida a um processo de alfabetização?
Porque seu processo de comunicação e expressão ainda ocorre
basicamente na forma oral, o que não basta para se comunicar de forma
satisfatória com seu mundo próximo ou distante em uma sociedade
letrada. Nesse ambiente letrado, a escrita e a leitura complementam as
possibilidades de comunicação da criança.
Entretanto, o que se tem visto – ultimamente, de forma mais acentuada
- é uma grande confusão no processo de ensino da leitura e da escrita.
Há um patente desconhecimento dos processos envolvidos nesse ensino
e um decorrente emaranhar de conceitos e métodos que enlouquecem
as crianças mais do que as orientam. É preciso que os profissionais
que trabalham com a formação da criança na área da comunicação e
expressão, sobretudo o alfabetizador, que é o responsável pela base da
182
Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles
pirâmide nessa área, tenham conhecimentos sólidos de Fonética, parte
da Linguística que trata do estudo dos sons, tão necessários para se
distinguir: 1. letra (grafema); 2. som (fone) e 3. fonema.
Nosso principal objetivo, neste artigo, é tentar esclarecer um
questionamento que tem sido feito por alguns alfabetizadores sobre
a classificação de ‘y’ e ‘w’ como vogais ou consoantes, em virtude de
essas letras terem, juntamente com o ‘k’, retornado ao nosso alfabeto
após o Acordo Ortográfico de 1990. Achamos interessante reproduzir o
questionamento de uma professora alfabetizadora2:
“Dia desses, meu aluno M. de 7 anos perguntou:” ‘Profe’,
Y é vogal ou consoante? Porque ele tem som de I né? Então
é vogal?” Boa pergunta do M... eu nunca tinha parado para
pensar!!! Eu apenas inclui as letras na faixa do alfabeto, mas
quando as crianças foram avançando para hipóteses silábicoalfabéticas e a noção de sílaba (formada por duas ou mais
letras) foi construída a dúvida que me pareceu muuuuito
natural. ... Agora eu tenho outra dúvida: como vou apresentar
as vogais para as crianças? A, E, I, O, U, Y e (às vezes) W???”
Passos e Silva (2010, p.10)3, no livro Língua Portuguesa – 1º Ano
do Ensino Fundamental, apresentam seis vogais em português: a,
e, i, o, u, y. Se o ‘y’ está sendo considerado como vogal, então, o ‘w’
também não o deverá ser?
Para melhor compreensão da noção de vogal, necessário se faz
abordar, antes, alguns conceitos tais como grafema, fone e fonema,
cinco ou sete vogais orais e hiatos ou ditongos4. Vamos a eles.
www.google.com.br/fonetica/vogais. Acesso em 11/05/2012.
PASSOS, Célia e SILVA, Zeneide, Língua Portuguesa – 1º ano Ensino fundamental, 2.ed.. São
Paulo: IBEP, 2010.
4
FERRAREZI Jr., C.; TELES, I.M. Gramática do Brasileiro. São Paulo: Editora Globo, 2006
2
3
183
Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’
1 Grafema, fone ou fonema?
A abordagem sobre Fonética que normalmente é feita na educação
básica brasileira deixa margem a uma conceituação confusa sobre as
noções de grafema, de fone e de fonema. Em função da complexidade
do tema, obviamente, não se abordam noções de Fonêmica nos níveis
iniciais de ensino e, por isso, fala-se de fonema como se esse fosse
um termo genérico. Ao se fazer os clássicos exercícios para distinguir
grafemas de fonemas (quantas letras e quantos fonemas há na palavra
‘carro’, por exemplo?), não é feita uma preparação oral que permita ao
aluno compreender, realmente, o que está fazendo, além de se considerar
variações de alguns sons, às vezes, como se fossem fonemas. O aluno
que aprende mecanicamente essas noções fará confusões entre grafema
e fonema, o que o levará, certamente, a cometer, entre outros, erros de
separação silábica, por exemplo, quando estiver separando dígrafos.
Esclareçamos: a Fonética e a Fonologia são áreas da Linguística,
estudo científico da linguagem como meio de comunicação, e ambas
têm como objeto de estudo os sons da linguagem. No entanto, enquanto
a Fonética, de modo geral, preocupa-se com a produção dos sons (ou
seja, a forma como são realizados) e com a estrutura física desse sons, à
Fonologia interessa saber se esses sons são distintivos ou não, se exercem
uma função na linguagem.
Por exemplo, conhecemos as diferentes maneiras de se pronunciar
os dois grafemas ‘r’ da palavra ‘carro’: uns têm uma pronúncia mais
anterior (região alveolar), outros uma mais posterior (região velar), ou
mais posterior ainda (regiões uvular e faringal), mas sempre o falante do
brasileiro saberá que se trata da palavra ‘carro’ e não de ‘caro’. Apesar
das diferentes realizações dos dois (alveolar  velar  uvular
 glotal )5, objeto de estudo da Fonética, temos um só fonema
5
A escrita fonética dos sons se faz entre [ ] e a fonológica entre / /; não confundir com a escrita
ortográfica que se faz com grafemas. Assim: carro (grafemas), (sons ou fones) e//
(fonemas). Para as transcrições, utilizamos o Alfabeto Fonético Internacional (AFI).
184
Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles
/r/ ou, conforme Cagliari (1997, pp. 14, 37 e 38)6, /x/ para o dialeto
paulista, objeto de estudo da Fonologia.
Os sons descritos pela Fonética, seu objeto de estudo, e que
variam de sujeito a sujeito conforme fatores diversos – linguísticos e
paralinguísticos – são chamados fones.
Necessário se faz, no entanto, estabelecer um sistema para a língua
que seja significativo, distintivo. Aí começa a construção da dimensão
fonológica da língua (que vai determinar, pela prova de comutação, o
sistema fonêmico da língua, mais econômico que seu sistema fonético),
que é objeto de estudo da Fonologia. Pela prova de comutação
(alternação de fones em um mesmo contexto), é verificado se uma
alteração no significante (sequência de fones) resulta ou não em uma
alteração no sentido. Assim, por exemplo, se falarmos ‘teto’ 
sabemos que não estamos falando de ‘neto’  ou de  Nos
três significantes temos o mesmo contexto   ; como alteramos a
palavra com a alternância dos fones    , obtivemos, neste caso,
sentidos diferentes; por isso, esses fones são fonemas //,// e /f/. Já
no caso de ‘carro’, quer falemos  [x [ o , sabemos tratar-se
de um mesmo objeto, pois houve alterações na forma de pronúncia do
som, mas o sentido não foi alterado. Temos para ‘carro’, então, vários
fones que são alofones ou variantes entre si de um só fonema, o //. O
falante do brasileiro sabe quando se trata de ‘carro’ (por exemplo, com
sentido de ‘automóvel’) e quando se trata de ‘caro’ (por exemplo, com
sentido de ‘algo de preço elevado’) pela distinção que ele é capaz de fazer
entre os fonemas.
Temos, então, que os fones (sons) que têm valor distintivo na
língua são chamados fonemas.
No exemplo dos dois ‘r’, podemos deduzir que o sistema fonêmico
da língua é mais econômico que o fonético, pois, para um só fonema
/r/, vimos quatro realizações (quatro sons) diferentes. A título de
CAGLIARI, L. C. (1997). Análise fonológica. Introdução à teoria e à prática com especial destaque para o
modelo fonêmico. Campinas: Edição do Autor. Série Linguística Vol.1.
6
185
Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’
informação, o sistema fonêmico do brasileiro é composto de 28
fonemas (21 consoantes – dentre as quais 2 aproximantes [j e [w,
tradicionalmente conhecidas como semivogais – e 07 vogais)7 ou de 33
se forem consideradas 5 vogais nasais.
Vejamos alguns exemplos para diferenciar grafemas de fones e de
fonemas:
Grafemas
(escrita alfabética)
Fones
Fonemas
chácara

//
tira
 
//
digo

//
quilo

//
cara

//
Wilson
õ]7a
/N/
Wudson
õ
/N/
Walkyria ou Valquiria
ɐ]
//
Yara ou Iara
ɐ]
//
Kalyl ou Kalil ou Calil

//
Vamos observar que ocorrem variações na forma como o som
relacionado a cada grafema é pronunciado em diferentes regiões do
Brasil, embora nada sobre isso seja dito aos pequeninos no processo
de alfabetização. Vejamos as duas variações para as palavras ´tira´ e
´digo´: na Paraíba, o ´t´ e o ´d´ têm uma pronúncia apicodental [,[
(a constrição é causada pelo contato da ponta da língua contra os
Cada língua tem um sistema fonêmico próprio. Como exemplos, citamos o francês com 36
fonemas, o espanhol com 24, o espanhol da América com 22, o italiano com 30, o inglês com
44, o holandês e o alemão com 36
7a
Adotamos, neste artigo, a transcrição mais simples das vogais nasais, ressaltando que não é a
única.
7
186
Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles
incisivos superiores), enquanto, nas outras regiões, fala-se uma africada
  (o som sai com chiado). Tomamos, como exemplo, a variação
da pronúncia dessas consoantes antes da vogal [i], mas é necessário
esclarecer que, na Paraíba, tem-se essa pronúncia apicodental antes de
todas as vogais, caracterizando-se como uma variação regional. Outro
exemplo de variação regional da pronúncia dessas consoantes é o caso
de Cáceres, Mato Grosso, onde se pronuncia uma africada   antes
de todas as vogais. Assim, por exemplo, em vez de  ´dado´, temos
em vez de ẽ ´dente´, temos ẽ em vez de 
´dedo´, temos Mas, atenção: nos outros estados, pronunciase um som alveolar   antes das demais vogais (a constrição é
causada pelo contato da lâmina da língua contra a linha dos alvéolos),
caracterizando-se como uma distribuição complementar, ou seja, é uma
variação contextual e não regional. Assim, antes de  temos   
e, antes das demais vogais, temos   .
Isso observado, nosso interesse mais direto deve ser: como trabalhar
com os alunos quando o nível de ensino não permitir entrar nesses
detalhes? Para não se incorrer em erros, falando-se em fonema como
se esse fosse um termo genérico, como dissemos no início, julgamos ser
preferível falar em “sons” em vez de “fonemas” no Ensino Fundamental
e “fones” e “fonemas” nos outros níveis de ensino.
2 Cinco ou sete vogais orais?
Se é constatado que temos um sistema vocálico composto de sete
vogais em posição tônica – ↄ(ppa, pla, p]la,
pla, pↄlo, p-lo, pla) – que se reduz a cinco em posição átona
pretônica –     (polticagem, m[e]tralhar, m[a]traca, m[o]
lhado, [u]rubu) –, a quatro em posição átona postônica não-final – 
 (polít[i]ca, paralelepíp[e]do, parágr[a]fo, íd[u]lo) – e, até mesmo, a
três em posição átona final –  (beb, cas, bol) –, então,
por que iniciar a alfabetização dizendo que temos cinco vogais?
187
Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’
Aqui, os professores deveriam falar em sons ao invés de falar em
vogais como se elas fossem ‘letras’. É absolutamente indispensável
que o professor alfabetizador8 entenda que nosso sistema de escrita
é ortográfico e não fonético-alfabético. O que isso significa? Significa que,
em um sistema fonético-alfabético, haverá apenas um símbolo (letra/
grafema) relacionado a cada som. Em um sistema assim, ‘b’ com ‘e’ dá
‘bé’ e ponto final. Em um sistema ortográfico como o nosso, a coisa
é bem diferente: ‘b’ com ‘e’ pode dar ‘bé’ (bela) , ‘bê’ (bebê”)
, ‘bi’ (bebe) . Então, quando eu falo para o aluno que “há
cinco vogais na língua”, pensando que meu sistema de escrita é fonéticoalfabético, eu o levo a entender que só “há cinco sons de vogais” porque
eu só mostro para ele cinco letras (a, e, i, o, u) que eu, equivocadamente,
chamei de “vogais” e isso está muito errado!
Nosso sistema, diferentemente, é ortográfico. Isso significa que há
uma forma correta (ortográfica) de escrever as palavras e que essa forma
de escrever não corresponde à pronúncia das palavras na oralidade.
Assim, o que eu deveria lhe mostrar é que há cinco letras9 que podem
ser usadas para os sons de vogais, pois uma vogal é um som e não uma letra. Mas
o sistema tradicional de alfabetização, que inclui os chamados métodos
fônicos, tem confundido isso de forma drástica! Como eu posso ensinar
um sistema ortográfico por um método fônico? Não dá! Depois os
alunos ficam fazendo “transcrição fonética” na hora de escrever (e saem
coisas como caza, tanbein, caxoro, mãi, naum, muinto) e os professores que
os ensinaram uma “pseudotranscrição fonética” como forma de escrita
ficam inconformados.
Por isso é que sempre defendemos a ideia de que, nos cursos de Licenciatura em Pedagogia,
deveria ser dada mais ênfase, nas grades curriculares, ao ensino da Fonética, pois um só semestre
de Linguística e de Língua Portuguesa, como na maioria dos casos, não é suficiente, pelo
contrário, pode até gerar mais dúvidas ao alfabetizador pela falta de tempo para esclarecer temas
pilares.
9
ou 7, depois do Acordo Ortográfico que devolveu “y” e “w” ao alfabeto, ou ainda, mais,
dependendo de nossa análise da pronúncia das palavras, já que em “canal” o som do “l” é
igual ao som do “u” em “pau”, em muitas regiões do país. Então, nesse caso, o “l” teria que ser
ensinado como uma “letra vogal”?
8
188
Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles
Quando conversamos sobre as vogais com eles, os professores,
normalmente, insistem na pretensa característica fonética do sistema e
nos respondem: “Ora, temos sete sons representados por cinco letras
que recebem o acento agudo para indicar os sons abertos”. E ficam
sem resposta quando lhes perguntamos como explicar o fato de termos
sons abertos que são representados por letras sem acento agudo, como
em ‘pele’  e ‘polo’ ↄ, por exemplo. Ou seja, fazem uma
confusão entre grafemas e sons. Por que não dizer que temos vários
sons de vogais representados, na escrita, por menos letras, ou seja, que
temos mais sons do que letras em nossa escrita?
De modo geral, com quem temos conversado em nossa caminhada,
fica claro que o receio de mudar se deve ao fato de que serão questionados
pela família do aluno ou pelo corpo técnico da escola. A nosso ver, isso já
deveria merecer um tratamento mais correto da parte dos alfabetizadores.
3 Hiatos ou ditongos?
Por que importa falarmos em hiatos (ocorrência de duas vogais
próximas na palavra, que se separam na pronunciação, ou seja, ficam em
sílabas diferentes (saúde ) ou ditongos (ocorrência de uma vogal
e uma semivogal que são pronunciadas conjuntamente, na mesma sílaba
(pai [pai]) aqui? Devido à classificação dos grafemas ‘y’ e ‘w’ como vogais
ou consoantes, problema que vem surgindo para os alfabetizadores,
como já dissemos no início deste artigo.
É importante observar que, como um mesmo som pode ser
representado por vários grafemas (como vimos em 1), com a reinclusão
das letras ‘y’ e ‘w’ em nossa grafia, pelo último Acordo Ortográfico,
as vogais (fonemas) ‘i’ e ‘u’ passam a poder, ‘oficialmente’10, ser
representadas, pelos grafemas ‘i’ ou ’y’ e ‘u’ ou ‘w’, dependendo da
ortografia da palavra.
Falamos aqui de “oficialmente” porque, na prática, essa representação nunca deixou de
existir. Nomes como Kátia, Yvone, Yara, Wellington e Washington sempre foram aceitos como
tendo grafias válidas, e as crianças nunca deixaram de os registrar assim por falta de um acordo
ortográfico que o autorizasse.
10
189
Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’
Assim, temos Wilson õ, Wudson õ Walkyria ou
Valquíria , Yara ou Iara  (alguns consideram hiato
)  Kalyl ou Kalil ou Calil . Observe-se que o grafema
‘l’ também é representado pelo som [w], ou seja, soa como “u” (com
exceção do Rio Grande do Sul onde é pronunciado como ‘l’ mesmo
). Ainda mais alguns exemplos: em ‘whisky’ , o grafema
‘w’ soa como [u], mas, como se trata de um ditongo, foneticamente,
temos a aproximante [w] e, fonologicamente, a semiconsoante /w/. Já
está lexicalizada a forma ‘uísque’, mas é a mesma representação fonética
com ditongo, apesar de alguns estudiosos considerarem aí a existência
de um hiato . Em ‘hobby’ ↄ, temos o grafema ‘y’ que soa
como a vogal [i], núcleo silábico. Em ‘byroniano’  ,
temos o grafema ‘y’ soando em um ditongo.
Os sons [j] e [w] entram na composição dos ditongos e dos tritongos
como semivogais ou semiconsoantes, dependendo da estrutura da língua.
No caso do português brasileiro, como semiconsoantes, pois, em uma
comutação, alternam com consoantes. Por exemplo, no contexto ,
podemos formar as palavras ‘Mara’ , ‘para’  e ‘Yara’ 
, além de outras mais. Em , temos um ditongo, portanto, duas
sílabas, se bem que, para alguns, é um tritongo . Apesar de serem
sons muito parecidos com os das vogais respectivas, se diferenciam por
um tempo de emissão mais curto e rápido. Nunca serão vogais, pois o
ápice da sílaba é sempre uma vogal, e tão somente uma.
É frequente a dificuldade da maioria dos alunos, até mesmo de
adultos, para distinguir ditongos de hiatos, e nem estamos falando aqui
de ditongos crescentes e decrescentes.
Essa questão simples, mas tornada complicada, sem entrar no
mérito sobre ditongos verdadeiros e falsos, será facilmente resolvida se
os professores levarem em conta que os sons, antes de qualquer coisa,
devem ser pronunciados. Quando se faz uma abordagem oral correta
da pronúncia das palavras, ou seja, uma prática oral em sala de aula, o
problema desaparece.
190
Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles
É necessário dar mais atenção ao fato de que, quando os alunos
pronunciam, percebem a diferença entre hiato e ditongo e, quando sentem
a intensidade mais forte ou mais fraca do início do ditongo, facilmente
deduzem qual é o crescente ou o decrescente, sem ter necessidade de
decorar, sem compreender, a fatigante lista dos ditos ditongos. Aliás,
parece que os normativistas são fascinados por listas prontas... Pode-se,
até mesmo, associar a representação Vv para os ditongos decrescentes
e vVpara os crescentes. Assim, na palavra ‘pai’ temos , ou seja,
Vv, e, em ´quase´, temos , ou seja, vV. É claro que, nas séries
iniciais, o professor não deverá ter a preocupação de ensinar aos alunos a
diferença entre ditongo, tritongo, hiato, ditongo crescente e decrescente,
entre outros aspectos da fonologia da língua; afinal, o enfoque nesse
período deve estar nas quatro habilidades básicas da comunicação: ler,
escrever, ouvir e falar. Mas, quando o tema vier a ser introduzido, em
séries mais avançadas, esses aspectos que abordamos aqui não devem
passar sem relevo.
Façamos, portanto, um exercício clássico para distinguir letras
e fonemas, pois é assim que aparece nos manuais de alfabetização.
Iremos um pouco mais adiante, porém, verificando como ele deveria
ser respondido com base na moderna visão fonético-fonológica sobre
a língua:
Em ‘chaleira’, temos:
a.
oito letras (ou grafemas);
b.
sete sons (ou fones) [];
c.
sete fonemas //;
d.
três sílabas fonéticas e três sílabas gráficas [] e ‘chalei-ra’, respectivamente;
e.
três consoantes [] e não quatro (há 1 dígrafo “ch”);
f.
uma semiconsoante [] (aproximante é o termo fonético) e
g.
três vogais, considerando-se a repetição do ‘a’, [a, e, a].
191
Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’
Para o aluno não confundir pensando que a letra ‘i’ é vogal, teríamos
que fazê-lo pronunciar e perceber que ‘ei’ é um só som longo, parte
de uma sílaba, e não ‘e’ e ‘i’, separadamente, pois aí seria hiato e não
ditongo.
Agora, a pergunta focal aqui é: um aluno de 4, 5 ou 6 anos, em
fase de alfabetização, precisa saber tudo isso? É evidente que não! Mas
seu professor precisa! É muito importante que o professor alfabetizador
consiga diferenciar esses fenômenos, separar claramente cada um,
compreender a diferença entre um sistema de alfabetização fonéticoalfabético e um sistema ortográfico para saber como lidar com cada um
deles no processo de ensino e conseguir discernir as dificuldades de seus
alunos na aprendizagem.
Concluindo, temos que registrar que, em nossa caminhada
pedagógica, observamos que a maioria dos professores de português
brasileiro não sabe o porquê do estudo de ditongos e hiatos, não o
associam à separação silábica, não dominam os fundamentos do sistema
de escrita de nossa língua. Isso se reflete, inelutavelmente, no ensino da
escrita e da leitura para os menores.
4 O Acordo Ortográfico (1990) e as letras reintroduzidas.
Pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), as letras ‘k’,
‘w’ e ‘y’ são usadas em antropônimos e antropônimos estrangeiros e seus
derivados (Franklin, frankliniano, Darwin, darwinismo, Taylor, taylorista,
Wilson, Yara), topônimos e topônimos estrangeiros e seus derivados
(Kuwait, Kuwaitiano) e em siglas e símbolos (TWA, kg – quilograma, kW
– kilowatt, yd – jarda).
Com a volta dessas três letras ou grafemas ‘k’, ‘w’ e ‘y’ (optamos
aqui, por questões fonológicas, não empregar o termo consoante), em
nossa ortografia, devemos nos lembrar que, em um sistema ortográfico
como o nosso, são apenas mais uma opção para representar sons como
192
Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles
o produzido pelos grafemas ‘qu’ em quilômetro, o som ‘u’ em Wilson e
o som ‘i’ em Yara ou Iara, por exemplo.
É exatamente o mesmo que acontece com alguns sons consonantais
que são representados por várias letras (grafemas)11. Vejamos os
exemplos seguintes:
REPRESENTAÇÃO
Letra
Som
Fonema
GRAFEMÁTICA
EXEMPLOS DE
(SÍMBOLOS PARA
COMO FICAM
ESSES SONS COM
ESCRITAS AS
BASE NA ORTOGRAFIA
PALAVRAS
DA LÍNGUA)
c
[s] (CE)
g (gê)
[ g ]
(GUE) /g/
j (jota)
k
r (erre)
[] (JE)
/s/
/Z/
[k] (CA) /k/
[r]
(RRE)
/r/
c (antes de “e”, “i”)
ç (antes de “a”, “o”,
“u”)
g (antes de“a”,“o”,
“u”)
gu (antes de “e”, “i”)
j (antes de todas as
vogais)
g (antes de “e”, “i”)
c (antes de “a”, “o”,
“u”)
c (antes de outro
grafema)
qu (antes de “e”, “i”)
r (inicial de sílaba)
r (acompanhado de
outro grafema)
cerca, cimento
cabeça,
paçoca,
açúcar
galo, gota, gula
guerra, guitarra
já. jeca, jiló, jota,
jumento
gente, gilete
casa, conto, locutor
cravo, claro
questão, quilo
rua, rato, honra
carro, carne, porta
No anexo a este artigo, há um quadro da relação letra, som, fonema, representação grafemática
e exemplos de todas as letras do alfabeto para conhecimento dos alfabetizadores, não devendo
ser usado com os alunos para não os confundir.
11
193
Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’
s(esse)
x (xis)
z (zê)
[s] (CE)
[]
(XE)
[s] (CE)
[z] (ZE)
/s/
/S/
/s/
/z/
s (inicial de sílaba
ou seguido de outro
grafema)
x
ch
x em casos especiais
sapólio, falso, passo,
cônscio,
consciência
xícara, xarope, caixa
charque, chuveiro
aproximar, próximo
z
s (entre vogais)
zero, zebra
casa, rosa
exemplo, executar,
exército
x (em casos especiais)
A professora que teve problema com seu aluno M., de sete
anos (relatado no início deste artigo), após consultas feitas em blogs
pedagógicos, chegou à seguinte conclusão12:
Seguindo os princípios fonético-fonológicos, Y é uma
VOGAL, pois é um fonema pronunciado com a passagem
livre do ar pela boca. O K é uma CONSOANTE,
pois precisa de uma vogal para formar sílabas e ser
pronunciada. Já o W é VOGAL ou CONSOANTE,
dependendo do uso. Fica assim: com som de V, quando
proveniente do alemão (como Wagner), com som de U,
quando de origem inglesa (caso de web).
Sobre essa conclusão, é necessário reforçar que ela está errada! Nem
‘Y’ é vogal, nem ‘K’ é consoante, nem ‘W’ é vogal ou consoante. ‘Vogal’ e
‘consoante’ são especificações taxonômicas de ‘sons’ e não de ‘letras’. ‘Y’,
‘K’ e ‘W’ são apenas letras ou, mais tecnicamente, ‘grafemas’, que podem
ser utilizados para representar ora sons vocálicos, ora sons consonantais,
como ocorre com as demais letras do sistema do português brasileiro de
escrita, sendo que isso varia de um sistema de escrita para outro. Veja:
12
www.google.com.br/fonetica/vogais. Acesso em 11/05/2012.
194
Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles
uma vogal [a] será uma vogal [a] em qualquer sistema linguístico em que
ela ocorra no mundo. A letra ‘a’ pode ter valores diferentes em sistemas
de escrita diferentes. Conhecer claramente essa diferença é essencial para
quem alfabetiza.
É óbvio que há grafemas da escrita do português brasileiro que
se especializaram em sons vocálicos (como o ‘a’), e outros que se
especializaram em sons consonantais (como o ‘r’), mas também há
outros que ora são vocálicos (ou semivocálicos, ou semiconsonantais,
conforme a estrutura da língua) ora consonantais (como o “l”, que pode
ter som de [w] – como em “final” - e o “m” que pode ter som do [w] dos
ditongos nasais - como em “correram”, por exemplo).
Assim, o que o alfabetizador deve mesmo reforçar com seus alunos
é o fato de que, em um sistema de escrita como o nosso, uma mesma
letra pode servir a muitas finalidades. Por isso, devemos aprender como
as palavras são escritas, já sabendo que serão pronunciadas de formas
diferentes, em diferentes partes de nosso imenso país, utilizando-se
economicamente uns poucos símbolos para a grande quantidade de
sons que a língua possui. E isso muito mais com a preocupação de que o
aluno aprenda a ler e escrever com qualidade, do que com a “decoreba”
de classificações e nomes que não lhe dizem nada.
Conclusão
Por tudo que expusemos neste artigo - e como dissemos no início - é
preciso que os profissionais que trabalham com a formação da criança
na área da comunicação e expressão, sobretudo o alfabetizador, revejam
seus conceitos de grafema, som ou fone, fonemas, vogais e consoantes,
encontros e separações vocálicas, entre outros.
Queremos enfatizar que é preciso separar os diferentes níveis de
análise: grafemática, fonética e fonológica, pois, assim procedendo,
o alfabetizador não terá mais problemas em relação à classificação de
195
Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’
‘y’ e ‘w’. Temos visto que alguns estudiosos e autores de livros estão
misturando esses níveis de análise.
Antes de se adotar um manual de alfabetização, seria interessante que
a coordenação pedagógica das escolas, juntamente com os professores da
área de Comunicação e Expressão, fizessem uma boa análise do capítulo
em que são utilizados conceitos de Fonética, pois tudo o que se ensina
no início da alfabetização exercerá influência sobre todo o processo da
aprendizagem.
Assim, fica claro que, na nossa língua, continuamos tendo sete
vogais orais [ ↄ ], que elas podem ser nasalizadas (com ou
sem o uso de diacrítico próprio (~) na escrita) e que também ocorrem
semiconsoantes13 ([] e [w]) quando, na escrita, aparecerem duas letras
na mesma sílaba, o que resulta, na fala, em ditongos que são formados
de uma vogal (ápice silábico) e uma semiconsoante, devido à estrutura
do português, ou em tritongos, como já explicamos no item três deste
artigo.
Para toda essa diversidade, a escrita conta hoje com poucas letras e
outros símbolos (diacríticos). Veja o que usamos:
a. a, e, i, o, u, y e w para representar as vogais e as semiconsoantes,
conforme o caso;
b. os diacríticos (^, ´, ~) para indicar certas modificações nos sons
dessas vogais e semiconsoantes, mas apenas em alguns casos previstos
na ortografia, já que o uso de diacríticos é próprio da ortografia e
c. letras como “m” e “n” para indicar nasalizações em alguns casos
previstos na ortografia, como em ‘antes’ [] e ‘ambas’ [˚].
Ou seja: como se trata de um sistema ortográfico, cumpre saber,
caso a caso, como a palavra será representada, sem qualquer garantia de
pronúncia idêntica por parte dos falantes.
13
Por força do hábito, continua-se falando em encontros vocálicos e semivogais.
196
Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles
Referências
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Vocabulário Ortográfico
da Língua Portuguesa. 5ª ed., Rio de Janeiro: Global Editora. 2009.
CAGLIARI, L. C. Análise fonológica. Introdução à teoria e à prática
com especial destaque para o modelo fonêmico. Campinas: Edição
do Autor. Série Linguística Vol.1. 1997.
FERRAREZI JR., Celso. Discutindo Linguagem com Professores
de Português. São Paulo: Terceira Margem, 2000.
FERRAREZI JR., Celso. Ensinar o Brasileiro: Respostas a 50
perguntas de professores de língua materna. São Paulo: Parábola,
2008.
FERRAREZI JR., Celso e TELES, Iara Maria. Gramática do Brasileiro.
São Paulo: Editora Globo, 2006.
PASSOS, Célia e SILVA, Zeneide, Língua Portuguesa – 1º ano Ensino
fundamental, 2.ed.. São Paulo: IBEP, 2010.
197
Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’
Anexo
Relação letra, som, fonema, representação grafemática e exemplos
REPRESENTAÇÃO
GRAFEMÁTICA
LETRAS
(grafemas)
SOM
(fone)
FONEMA
(SÍMBOLOS PARA
EXEMPLOS DE COMO
ESSES SONS
FICAM ESCRITAS AS
COM BASE NA
PALAVRAS
ORTOGRAFIA DA
a
b
[a]
[b]
/a/
/b/
c
[s]
/s/
[d] ou
d
[d]
/d/
[d]
e
f
[e]
/e/
[]
[f]
//
/f/
LÍNGUA)
a
b
c (antes de “e”,
“i”)
ç (antes de “a”,
“o”, u”)
d (antes de “a”,
“e”, “o”, “u”)
d (falar
paraibano antes
de todas as
vogais)
d (antes de “i” e
falar de Cáceres
MT antes de
todas as vogais)
e
abóbora
bonita
cerca, cimento
cabeça, paçoca,
açúcar
dado, dedo, Duda
dia
elefante
e, é
pele, Pelé,
f
faca
198
Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles
[g] ou
g
/g/
[]
h
i
--[i]
-/i/
j
[]
//
k
l
[k]
/k/
[l]
(lh)
/l/
[u] ou [l]
m
n
(nh)
o
p
[λ]
[m]
[n]
[]
[]
[o]
[ↄ]
[p]
/λ/
/m/
/n/
//
/o/
/ↄ/
/p/
[k] ou
q
/k/
[c]
g (antes
de“a”,“o”, “u”)
gu (antes de “e”,
“i”)
h
i
j (antes de todas
as vogais)
g (antes de “e”,
“i”)
c (antes de “a”,
“o”, “u”)
c (antes de
outro grafema)
l (início de
sílaba)
Em final de
sílaba, gaúchos
pronunciam “l”
lh
m
n
filho, afilhado
camada
nadar
nh
montanha, manha
ng
canga, manga
o
o, ó
p
qu (antes de
“a”,”o”)
qu (antes de
“e”, “i”)
maroto, roto
polo, paletó
paletó
quadrado,
quociente,
199
galo, gota, gula
guerra, guitarra
homem
igreja
já. jeca, jiló, jota,
jumento
gente, gilete
casa, conto, locutor
cravo, claro
lado, calado
mel, Sílvia
questão, quilo,
Alfabetização Após o Acordo Ortográfico de 1990: A Questão do ‘Y’ e do ‘W’
r
[r]ou
[x ou
[ ou
[h
/r/
r (inicial de
rua, rato, honra
sílaba)
r (acompanhado
de outro
carro, carne, porta
grafema)
[]
//
r (entre vogais)
u
[u]
/u/
s (inicial de
sílaba ou
seguido de
outro grafema)
t (antes de “a”,
“e”, “o”, “u”)
t (falar
paraibano antes
de todas s
vogais)
t (antes de “i” e
falar de Cáceres
MT antes de
todas s vogais)
u
v
[v]
/v/
v
s
[s]
/s/
[t] ou
[t]
t
/t/
[t]
[u]
/w/
[v]
/v/
w
w (em ditongos,
tritongos,
nomes
estrangeiros e
nomes próprios)
w (palavras
estrangeiras e
nomes próprios)
200
cara, arapuca
sapólio, falso, passo,
cônscio, consciência
tatu, totó, teu
tia
uva
Valter, Vilson,
cavalo
Kuwait, Kuwaitiano,
Wilson,
Walter, Darwin,
darwiniano
Celso Ferrarezi Júnior, Cláudia Teles e Iara Maria Teles
[]
//
[s]
/s/
x
/i/
y
[i]
/j/
z
26
[z]
37
considerando
as variações
mais comuns
/z/
x
ch
x em casos
especiais
y (em núcleo
silábico)
y (em ditongos,
tritongos,
nomes
estrangeiros e
nomes próprios)
z
s (entre vogais)
x (em casos
especiais)
28
201
xícara, xarope, caixa
charque, chuveiro
aproximar, próximo
Walkyria, Kalyl ,
hoby
Yara, yawalapiti,
byroniano
zebra, zarpar, Izabel
casa, Isabel
exemplo, executar
LINGUAGEM E PRÁTICAS IDENTITÁRIAS
Nádia GADELHA
Universidade Federal do Ceará (UFC)
RESUMO
No presente trabalho, apresento a dialética do discurso, segundo FAIRCLOUGH (2003),
relacionando discurso, identidade e representações com a práxis social da medicina. Este
estudo é situado na prática de pesquisa etnográfico-discursiva sobre o discurso médico-paciente
(MAGALHÃES, 2000). Os dados analisados apontam para as práticas identitárias de
médicos e médicas e revelam profissionais compromissados com as tecnologias da medicina
tecnicista no cenário contemporâneo global. As identidades médicas sugerem agonística,
resistência, luta e tentativas de superação dos limites da arte de curar, processo pautado por
muitas dificuldades de gestão e de recursos no contexto político e social, historicamente situado
da saúde pública no Nordeste do Brasil.
ABSTRACT
In this paper, I
present the dialectics of discourse, according to FAIRCLOUGH
(2003), relating discourse, identity and representations with the praxis of social medicine.
This study is situated in the practice of discursive ethnographic research on doctor-patient
discourse (MAGALHÃES, 2000). The analyzed data point to the identity practices
of physicians and medical professionals committed to reveal the technologies of medicine
technicist contemporary global scenario. The identities suggest agonistic medical, resistance,
struggle and attempts to overcome the limits of the art of healing, a process marked by
many difficulties and management of resources in the social and political context, historically
situated public health in the Northeast of Brazil
PALAVRAS-CHAVE
Análise de Discurso Crítica. Discurso Médico. Etnografia. Identidades.
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 203-233, jan./jun. 2014
Linguagem e Práticas Identitárias
KEYWORDS
Critical Discourse Analysis. Medical discourse. Ethnography. Identities.
Introdução
No contexto da práxis hospitalar, identidades médicas sinalizam
aspectos importantes da prática social da saúde pública marcada por
fortes mecanismos discursivos políticos de desrespeito à saúde das
populações atendidas. No Brasil, falar de saúde é trazer ao debate o
respeito aos princípios paradigmáticos do Sistema Único de Saúde –
SUS e suas garantias nas prestações de assistência médica de qualidade
aos usuários-cidadãos do SUS.
Neste artigo, examino as vozes médicas de um cotidiano hospitalar
situado em um município no Nordeste do Brasil, local historicamente
lembrado como uma região de intensas desigualdades sociais. Situadas
nessa complexidade histórica, as vozes médicas podem ser entendidas
como protagonistas da vida e da morte.
Este trabalho é parte de minha pesquisa de doutoramento que tem
como objeto o estudo do discurso médico-paciente (MAGALHÃES,
2000), apresentando como suporte constitutivo a práxis médica no
contexto de atenção às demandas populacionais SUS-dependentes,
em sua grande maioria pessoas pobres, impossibilitadas de adquirirem
planos privados de saúde. Nesse contexto, a assistência médica passa por
inúmeras dificuldades e restrições nas coberturas de tais demandas, quer
do ponto de vista da atenção primária de saúde, quer secundária ou de
alta complexidade.
Apresento uma análise discursiva das identidades médicas, tomando
como referencial teórico metodológico a Análise de Discurso Crítica
- ADC (FAIRCLOUGH, 2003) e a etnografia discursiva no âmbito
do discurso médico-paciente segundo Magalhães (2000), situado no
campo dos estudos de linguagem e sociedade. O objetivo é analisar
204
Nádia Gadelha
os dois significados do discurso segundo Fairclough (2003), que se
mostram centrais para a pesquisa etnográfico-discursiva: representação
e identificação. As práticas identitárias estudadas no âmbito da ADC
estão relacionadas a discursos (FAIRCLOUGH, 2003). A análise
desses significados segue a orientação de Fairclough (2003, p.106):
“identificar as principais partes do mundo (incluindo áreas da vida
social) representadas”. A representação e a identificação são investigadas
mediante entrevistas, observação e notas de campo.
Proponho contribuir para o debate político e ético da saúde pública,
e da práxis da medicina no Nordeste do Brasil sob as novas demandas do
discurso da humanização da saúde.
Este artigo está organizado em quatro seções. Na primeira, abordo o
referencial teórico que orienta a análise. Na segunda, abordo o referencial
teórico-metodológico prático que orienta a minha análise discursiva. A
terceira seção desenvolve a análise discursiva e a quarta apresenta os
relatos etnográficos. Concluo o trabalho com algumas inquietações e
incompletudes.
1 ADC e pressupostos teóricos-metodológicos
A ADC é uma epistemologia linguística contemporânea constituída
de uma heterogeneidade de abordagens e epistemologias críticas que
compartilham princípios comuns, sobre os quais esclarece seu foco:
analisar discursos incidindo uma crítica filosófica/científica sobre
eventos /contingências sociais sob os quais os sujeitos e sua relação
natureza/sociedade estabelecem e estabilizam instituições, valores e
práticas sociais.
Tais características são apontadas como um campo (in )disciplinar
aberto à reflexão teórica e epistemológica que atende às características
de cada objeto de pesquisa a ser empreendido pelos pesquisadores em
ADC. Para compreender que o mundo social e suas racionalidades
205
Linguagem e Práticas Identitárias
não são imediatamente acessíveis, é necessária uma abordagem
epistemológica multidimensional capaz de investigar a relação entre
práticas, eventos, discursos, identidades e relações sociais, nos termos
uma relação dialética (FAIRCLOUGH, 2003).
Os discursos são os modos particulares de representar que,
identificam a si mesmos, aos outros e a aspectos do mundo por meio
de estilos – tipos de linguagem usados por uma categoria particular
de pessoas que constroem a sua identidade. Dessa maneira, acionam
a linguagem na vida social, ligando-se, por sua vez, a três principais
significados do discurso – acional, representacional e identificacional
(FAIRCLOUGH, 2003).
Fairclough (2003) apresenta a dialética do discurso de forte
ancoragem marxista. Uma linguística que dialoga com a sociedade não
pode desvincular-se dessa epistemologia basilar para os estudos críticos.
A ADC encarna seu compromisso político de articulação dos estudos da
linguagem com as demandas da sociedade, as injustiças sociais e a luta
pela dignidade humana.
Um humanismo marxista instaurado no final do século IX surge
como um divisor de águas na história recente do ocidente, trazendo ao
debate a necessidade de se opor contra as formas clássicas de opressão que
fizeram Karl Marx recriar as utopias de mudança e transformação social
num mundo até então dominado pelas práticas sociais do capitalismo
liberal, uma intensa e complexa rede de construções ideológicas, políticas
e econômicas tão bem resenhados no O Capital, 1867.
Fairclough retoma o marxismo, ancora-o na linguística pós-moderna
e acena que a linguística deve dialogar, ensejar possibilidades de lutar,
superar os cenários políticos de injustiças mantidos e realimentados nos
discursos e suas instituições magnas do conhecimento: ciência, religião,
economia. A ‘ordem do discurso’ mantém e realimenta ‘representações,
ações e estilos’, quer nas instituições, quer na criação e manutenção
de práticas identitárias (FOUCAULT, 1996; FAIRCLOUGH, 2001;
MAGALHÃES, 2000).
206
Nádia Gadelha
A dialética é a construção filosófica que emerge dessa dinâmica
entre natureza, sujeitos e práticas sociais. Não é um aspecto isolado ou
determinístico de leis causais no âmbito das leis naturais, biológicas,
ou no âmbito das leis da sociedade, tais como o pensamento clássico
sociológico profundamente influenciado por uma física social, mas
sim uma contingência determinada pelos discursos e seus sistemas
de concepções epistemológicas a dominar a ordem do discurso das
instituições sociais.
Fairclough (2003) sugere que a representação tem a ver com
conhecimentos e por meio deles o controle sobre as coisas; a ação está
relacionada, de modo genérico, com a relação com os outros, mas também
com a ação sobre os outros, e com o poder dialeticamente relacionado.
Representações particulares (discursos) podem desempenhar de modo
particular ações e relações (gêneros), e apontar modos de identificação
(estilos).
Por isso, uma dialética do discurso marxista, segundo Fairclough
(2003), é fundamental para entender como esse processo
contingencialmente se organiza em momentos as três principais
maneiras em que o discurso figura como prática social: como modos de
agir (gêneros), como modos de representar (discursos) e como modos
de ser (estilos), ou seja, a relação do texto com o evento; com o mundo;
e com as pessoas envolvidas no evento. Fairclough, em vez de falar
das funções da linguagem, opta por falar sobre os três principais tipos
de significações: Ação, Representação e Identificação (FAIRCLOUGH,
2003, p. 27).
O discurso figura de três principais maneiras na prática social: como
modos de agir (gênero), como modos de representar (discursos) e como
modos de ser ( estilos) (FAIRCLOUGH, 2003, p. 26). A Representação
corresponde à função ideacional de Halliday (2004). Ação é a função
interpessoal (modos de interagir). Uma ação implica uma relação
social: “relação entre textos, eventos, práticas e estruturas sociais”
(FARCLOUGH, 2003, p. 27).
207
Linguagem e Práticas Identitárias
Para Fairclough, há uma sobredeterminação da linguagem por
outros elementos sociais nas ordens do discurso: a organização e o
controle social da variação linguística e seus elementos (discursos,
gêneros, estilos) são correspondentemente, categorias não puramente
linguísticas mas que fazem o corte através da divisão entre linguagem e
não linguagem, entre o discursivo e o não discursivo (FARCLOUGH,
2003, pp. 24.25).
1.1 A Representação dos Atores Sociais
A análise de textos sob uma perspectiva representacional é dialogada
pela ADC com a Teoria dos Atores Sociais, de Van Leeuwen que propõe
a análise de eventos sociais e sua relação com práticas sociais, linguagem e
cultura. Nesse processo dialético, o significado representacional emerge
em cada produção de contextos situados historicamente. Van Leeuwen
esboça “um inventário sócio-semântico dos modos pelos quais os atores
sociais podem ser representados, e dessa forma uma análise de discurso
das representações sociais pode estabelecer a relevância sociológica e
crítica” de eventos e práticas sociais (VAN LEEUWEN, 1997, p. 169).
Discursos não podem ser analisados apenas sob os limites formais
da linguística sem uma relação com o contexto cultural e sociológico
“em contextos institucionais específicos que têm relações específicas
com as práticas sociais e das quais produzem representações” (VAN
LEEUWEN, 1997, p. 172).
Para atender aos propósitos deste artigo, do inventário sociosemântico
de Van Leeuwen escolhemos a categoria Identificação que mais se presta à
análise dos significados representacionais das identidades médicas.
A Identificação ocorre quando os atores sociais são definidos, não
em termos daquilo que fazem, mas em termos daquilo que, mais ou
menos permanentemente, ou inevitavelmente, são. Distingue três tipos:
classificação, identificação relacional e identificação física. No que diz
respeito à classificação, os atores sociais são referidos em termos das
208
Nádia Gadelha
principais categorias através das quais uma dada sociedade ou instituição
diferencia classes de pessoas (VAN LEEUWEN, 1997, p. 202).
A Identificação é um comprometimento profissional devido – um
comprometimento ético. Fairclough (2003, p. 17) propõe: “focalizar a
análise de textos na interação de Ação, Representação e Identificação traz
uma perspectiva social para o âmago do texto, para o seu mais afinado
detalhe”, pois são dialeticamente relacionados. E as representações
particulares são os discursos que podem desempenhar de modo particular
Ações e Relações (gêneros) e apontar (estilos). O estilo tanto pode ser
individual, como coletivo referente ao contexto discursivo profissional.
Fairclough destaca para a análise de eventos sociais formas de ação,
pessoas (com crenças, desejos, valores, histórias); relações sociais, formas
institucionais; objetos; meios (tecnologias); tempos e espaços; linguagem
(e outros tipos de semioses) (FAIRCLOUGH, 2003, p. 135).
1.2 Identidades e humanização da práxis médica
O nascimento da humanização da prática médica, fruto da arte e da
técnica advindas da racionalidade científica, tem como pano de fundo
as rupturas primeiras das cosmogonias do Olimpo e o surgimento das
cosmologias da razão e do logos, na constituição racional do que são o ser,
as coisas, a origem, a causa e as transformações no mundo. A prática da
medicina nasce filosófica e essa relação funda as bases das indagações
sobre o ser da saúde e da doença, estabelecendo um diálogo com as
cosmologias da ordem do mundo. A desordem do mundo é gerativa
das doenças de corpos desequilibrados com o cosmos – uma leitura
humana da doença e que requererá aptidões técnicas da arte de curar,
produzidas pelas conquistas da racionalidade, dispensando oráculos,
deuses e sacerdotes mágicos e feiticeiros.
Com o desenvolvimento da racionalidade médica e suas rupturas
com o sagrado, as identidades médicas requereram o mais alto nível
de domínio da arte e técnica de curar, conferindo ao médico um papel
209
Linguagem e Práticas Identitárias
social dotado de um poder sobrehumano, engendrando identidades
inspiradoras de poder, salvação. Nessa interação, mantém a polifonia das
ancestralidades religiosas e mágicas. Dessa força polifônica (BAKHTIN,
2008), resgatamos a complexidade híbrida do ser humano com seu
passado ancestral e mítico (JUNG, 2008).
O discurso da humanização na arte de curar, é o genial esforço
filosófico e posteriormente científico, que coloca, nas mãos humanas,
os domínios da razão autônoma nos polos diferenciados da vida e da
morte. Uma práxis humanizada da medicina é celebrada atualmente
como uma relação dialógica e interativa possível, responsiva às demandas
dos pacientes e com finalidades terapêuticas resolutivas. Porém, no
contexto do atendimento médico a pessoas pobres, são comuns,
queixas e reclamações das populações pela negação e dificuldades
desses encaminhamentos. Uma medicina relacional é aquela que mais
os pacientes precisam; “uma qualidade de presença, sua humanidade,
uma medicina mais à altura do homem, atenta antes ao doente do que
à doença” (LE BRETON, 2011, pp.341, 342). Essa medicina vem
afrontando a ordem discursiva da medicina1 e favorecendo novas
abordagens de sua práxis social.
No Brasil, o discurso da humanização da práxis médica assume
conotações prescritivas políticas e éticas como uma proposta que se
aproxima das concepções filosóficas do SUS, em busca de uma pragmática
da atenção às demandas de saúde de forma resolutiva e solidária. A saúde
como parte de um processo na dinâmica social alcança um olhar clínico
1
A ordem discursiva da medicina contemporânea sustentada no modelo mecanicista cartesiano,
com base na física clássica, na bioquímica , biologia molecular vem sendo discutida desde
a década de 1970 do século XX, como um paradigma não responsivo aos novos conceitos
de saúde e doença. Novos paradigmas da doença para além do modelo biomédico reclamam
a formulação desse conceito clássico para um novo enfoque crítico e dialético da doença e
da saúde. Contudo, apesar das discussões e destaques epistemológicos importantes da saúde
entendida não como ausência de doenças e sim como um processo biológico, psicológico e
social, a formação médica no mundo ocidental ainda é predominante e rigorosamente cartesiana
e suas práticas tecnológicas cada vez mais se distanciam do paradigma dialético da doença no
qual o diálogo ocupa um lugar de destaque nas redes de assistência e solidariedade.
210
Nádia Gadelha
não só sobre o corpo biológico separado de suas interações complexas
com o ambiente social, cultural, politico e econômico.
A humanização da práxis médica é um processo que exige identidades
médicas com alcance de amplo espectro sobre corpos que eventualmente
estão com ausência de doenças, mas buscam ajuda médica. Nesse abismo,
necessário se faz o diálogo solidário, pois “o doente não é somente um
corpo que precisa ser consertado” (LE BRETON, 2011, p. 290).
Mas como identidades médicas no cenário de pesquisa são
autorrepresentadas num hospital público? E como se relacionam com o
discurso da humanização da práxis médica?
2 Metodologia
Este artigo é parte de uma abordagem de estudos etnográficos sobre
o qual elaboro minha tese de doutoramento. A pesquisa2 etnográfica
foi realizada no período de 2010 a 2012 num hospital de atenção
secundária da rede pública do Sistema Único de Saúde (SUS), no Estado
do Ceará- Brasil. Para os objetivos deste artigo, analiso entrevistas com
três médicos e três médicas no cotidiano profissional do hospital e
realizo a triangulação com duas notas de campos colhidos na observação
participante.
Etnografia e ADC dialogam no sentido de compreender como
textos são dotados de significados construídos em interação real com o
campo, laboratório vivo de produção de sentidos. Os juízos cognitivos
(representações) de ações (juízos éticos e políticos) estão situados nos
discursos como constituintes e constitutivos das práticas sociais.
A análise de discursos de práticas sociais contextuais é internamente
dinâmica, num espaço de intensas inter-relações (HARVEY, 2013) com
sistemas culturais, simbólicos, linguagens e ordens do discurso sob os
O Projeto de Pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal
do Ceará de acordo com a Resolução 199/96 do Conselho Nacional de Saúde das
2
Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos.
211
Linguagem e Práticas Identitárias
quais a práxis médica transitou e transita ao longo de sua constituição
como prática social, científica e suas funções em nossa sociedade.
3 Análise discursiva
Apresento, na Tabela 1, excertos (respostas de uma seção de
entrevista) de relatos de médicos em que, fiz a seguinte pergunta: “Que é
ser médico para você? O objetivo da pergunta norteadora foi o de identificar
identidades profissionais e discursos. As entrevistas que compõem o
conjunto de dados gerados da tese não estão transcritas na íntegra nesse
artigo. Selecionei 1 pergunta que considero responsiva aos interesses
desse trabalho. A convenção da transcrição adotada é a de Magalhães
(2000, pp. 15,16,17,18) como no exemplo a seguir:
Nádia: O que é ser médico (a) para você?
Médico: Olha, especificamente, aqui no Maranguape, ser médico é
ter que estar preparado para enfrentar uma série de desafios que de forma
geral desencanta o sonho inicial de ser médico. A gente assim que se
forma acha que vai encontrar o hospital dos sonhos, tecnologias, tudo de
acordo com o que a gente aprende. Depois, a gente vai descobrindo que
a realidade da medicina na saúde pública nega em muito tudo que nossa
formação ao longo de 6 anos, e bota mais aí 4 anos de especialização, e aí
a gente tem que virar santo, fazer milagres, sem esquecermos que fomos
preparados para desenvolver protocolos científicos de alta tecnologia.
Aqui como em muitos hospitais das regiões pobres no Brasil, a gente
tem que reinventar a vida, não tem como seguir protocolos, a gente vai
driblando as dificuldades e esperar em muitas ocasiões um milagre, pois
de um modo geral, falta quase tudo (Médica C).
A abordagem dialética, segundo Fairclough (2003), considera Ações
e suas relações sociais, Identificação de pessoas, Representação do
mundo, Discursos (gêneros, discursos, estilos). “Textos não são apenas
efeitos de estruturas linguísticas e de ordens do discurso, são também
212
Nádia Gadelha
efeitos de outras estruturas sociais, e de práticas sociais em todos os
aspectos, de maneira que se torna difícil separar os fatores que modelam
textos” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 25).
É preciso enfatizar que as estruturas sociais sob as quais a práxis social
da medicina é situada manifestam-se no evento de atendimento médico.
Neste trabalho, o evento pertence a um hospital público. As relações
externas de textos incluem suas relações com outros elementos de
eventos sociais (mais abstratamente, práticas sociais e estruturas sociais).
A análise desses outros elementos de eventos sociais inclui como eles
figuram em Ações, Identificações, e Representações (FAIRCLOUGH,
2003, p. 36).
A análise interdiscursiva da articulação dos textos vai considerar a
posição de Fairclough (3003, p. 124) que vê discursos como modos de
representar aspectos do mundo – os processos, as relações e estruturas
do mundo material, o mundo mental dos pensamentos, as crenças, e
assim por diante, e o mundo social.
Os aspectos particulares do mundo são representados pelos
diferentes discursos que são diferentes perspectivas do mundo, e elas
estão associadas às diferentes relações que as pessoas têm com o mundo,
suas identidades sociais, pessoais e as relações sociais com outras pessoas
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 124).
3.1 Identidades
São três as formas de construção de identidades sugeridas por Castells
(1999, p. 24); Identidade Legitimadora; a Identidade de Resistência e a
Identidade de Projeto.
A identidade legitimadora é introduzida pelas instituições
dominantes. Já a identidades de resistência é criada por quem está em
posição de trincheiras e a Identidade de projeto redefine posições e, ao
fazê-lo, busca a transformação das estruturas sociais.
A identidade agonística é compreendida a partir de reflexões sobre a
213
Linguagem e Práticas Identitárias
luta travada pelos médicos e médicas no âmbito de sua práxis na saúde
pública. A agonística é um termo utilizado pelos pré-socráticos e, na
modernidade, passa a ser utilizado por Nietzsche (1998) realçada na obra:
Assim falou Zaratustra, 1892. A agonística preconiza a constante superação
de forças entre os atores sociais, tendo como meta o desenvolvimento de
obras que possibilitem a afirmação da excelência humana e a superação
de uma visão de mundo pessimista, decadente, em prol da afirmação
da beleza e da glória, tornando-se, consequentemente, um dos grandes
conceitos relativos à criação de valores afirmativos da vida através da
vida através da interação de forças que garantam a vitória contra a inércia
e a fraqueza dos instintos vitais (BITTENCOURT, 2011).
O agon é uma luta na qual não há trégua nem fim. “Como é preciso
que a luta perdure, para que as diferentes forças da vida se manifestem
os lutadores não podem chegar a um acordo, o que seria uma trégua, e
nenhum deles pode ser aniquilado pelo outro, o que significaria o fim do
combate” (MOSÉ, 2011, p. 86). Dessa forma, vejo no cotidiano médico
na saúde pública uma luta sem fim na qual a finitude, a morte, o colapso
da existência quer aniquilar a esperança, a vida, momentaneamente
transferida para as mãos dos médicos e médicas.
Como toda hegemonia é relativa, as construções identitárias são
possíveis de mudanças pela dinâmica das interações dialéticas capazes de
criar e mudar coisas. Por isso, as identidades tratadas estarem relacionadas
a contextos específicos e situados em práticas sociais (FAIRCLOUGH,
2003). Todas essas nomeações apresentam-se como identidades culturais
profissionais, sociais, que são constituídas de um conceito carregado de
poder simbólico, jurídico e social.
TABELA 1: Dialética do discurso
Significado
Representacional
Estilos (significado identificacional)
“Que é ser médico para você?”
214
Nádia Gadelha
Discurso belicista
Discurso
especialista
Discurso ético e
político
Discurso
da globalização
Nós somos uma infantaria, estamos na linha de frente,
é guerra, é guerra. Eu acho que o serviço público de
saúde ele é mal, é, é questão de gestão mesmo. Porque
eu acho que recurso tem, sabe. É gestão mesmo. E a
gente tá aqui na ponta como aquela coisa da infantaria,
né. Agente vai enfrentar isso tudo. É uma, é uma, é
uma guerra. É uma guerra. (Ex 1. Médico A).
O piloto de avião, que sabe lidar com o avião. É uma
capacidade que ele adquiriu durante a vida, né. De
formação. De resolver um problema. Assim como
você, na sua profissão. Resolver um problema, né, uma
situação. Ou o, o piloto de avião, que sabe lidar com o
avião, conduzir de um lugar pro outro e às vezes numa
situação crítica, conduzir pra sair do, da, da situação de
perigo, né. Na verdade é uma formação profissional,
né. (Ex2. Médico B)
Eu sou uma médica responsável, faço o meu sonho
falar alto. Atendo os pacientes, direitinho. Faço
história, prontuário, etc. (Ex3. Médica A)
A gente tá no serviço público de terceiro mundo,
com informações de primeiro mundo. Que a internet
é uma coisa, eu acho a internet fantástica. É de
primeiro mundo. E as pessoas tão tendo acesso à
isso aí. Seja da classe B, C, D, E, F, G, H, enfim, eu
acho. Tá disseminado, e, e, é, o saber tá disseminado.
Quando às vezes eu vou, vou, vou atender uma pessoa
com artrose, ela já sabe de tudo pela internet mais
do que eu. Quer dizer, aquela coisa de você ser, ser
questionado sobre o seu saber, é o tempo todo. Quer
dizer, eu tenho o tempo todo eu to estudando sobre
o que é aquilo. Tá entendendo. Então eu tenho que
resolver o problema da pessoa que a pessoa sabe.(Ex5.
Médico C)
215
Linguagem e Práticas Identitárias
Discursos
Apontados
em
estilos
(significados
(significados
identificacionais)
representacionais)
Não somos deuses, apenas entendemos muito bem a
Identidade de
vida, e a morte. É. O médico ele tem, ele é pra ter
Legitimação
capacidade de, de resolver uma situação, às vezes
crítica. Ás vezes simples que vai tirar a pessoa duma
condição de risco, né. Um risco ou iminente ou um
risco potencial, né. Que pode culminar com um
desfecho fatal, né. (Ex6.Médico C)
[....]Depois de vinte pessoas você não tem mais como
raciocinar no sentido de, o problema é esse. Mas eu
gosto de conversar. Mas o que cansa é a quantidade,
é o que limita. E você depois de vinte pessoas, num
raciocina mais muita coisa não. Sabia disso? Cê se
cansa. Cê sabe que é uma troca de energia, né. A
Identidade de
pessoa tá ali transmitindo energia. E às vezes a pessoa,
resistência
por não..., voltando aqui à questão do conhecimento,
por não entender que é uma questão emocional, [...sai
lá fora e diz assim: “Ah. Esse médico só quer conversa.
Que conversa é essa.” [...não passou um remédio pra
mim. Você tem que conversar e passar remédio. (Ex7.
Médico B)
216
Nádia Gadelha
Identidade de
projeto
Identidade
agonística
Discurso ético e
político
O médico tem um compromisso social. É que ele lida
com a coisa mais iminente, né. Ou , a coisa mais, é,
angustiante, né. Que é a situação crítica, né. Diante
da situação crítica, iminente que pode complicar
e o paciente vir a morrer, é o médico que está mais
preparado para administrar esse processo. Como uma
autodefesa, né., como gostaria de fazer, mas é que
falta tudo, falta às vezes o básico, uma simples bala
de oxigênio. Tem paciente que tá com AVC e precisa
de UTI, a gente sabe que não tem leito, o paciente
poderia evoluir bem se tivesse numa UTI, mas ele aqui
sem os cuidados intensivos, esperando uma vaga vai
afundando, afundando e morre. E isso não é só aqui,
é no Brasil inteiro. É preciso mudar essa situação e
a culpa é do Estado, o Estado tem que assumir seu
papel que está na Constituição, né. Saúde um direito
de todos e um dever do Estado. (Ex8.Médica C)
Está provado que o médico morre sete anos mais cedo
que a população normal. devido a tanto é... Sacrifício
noites mal dormidas. Estresse durante o trabalho
diário. Mas não desisto! Amo ser médico, amo a
medicina!(Ex10. Médico B)
Imagina qual a angústia maior? Essa madrugada peguei
uma mulher parindo, o bebê prematuro, precisa de
cuidados mais especializados. Chamei o pediatra, mas
faltava o básico para reanimar a criança. A mãe olha
pra gente e diz: e aí Dr. Meu bebê? tá bem? E muitas
vezes dói muito em mim diante dessas expectativas:
principalmente quando a gente tem cientificamente
condições técnicas de reanimação, de tentativa, quero
dizer de salvar. Mas na hora o carrinho de reanimação
estava sem as drogas, sem os recursos enfim... A
frustração é grande, e dizer pra mulher que o bebê
morreu é pior ainda (Ex11.Médica A).
217
Linguagem e Práticas Identitárias
Os excertos no Quadro 1 apresentam como os significados
da linguagem elaboram representações, identificações e ações.
Complementando com a Representação de Atores Sociais de van
Leeuwen (1997), podemos propor que os atores sociais médicos estão
situados sob forte dispositivo coletivo da práxis identitária médica como
instituição política num mais alto nível de abstração e relação com os
princípios ontológicos da medicina.
As identidades médicas diferenciam-se no contexto geral das demais
profissões por lidar com a morte: “é apenas o médico que está mais preparado
para administrar esse processo” (Médica C). Por meio das representações
mentais, sentimentos de insatisfação em relação ao contexto da
saúde pública e suas múltiplas facetas de deficiência e negação dos
princípios constitucionais do Sistema Único da Saúde (SUS), aflora
um comprometimento ético em favorecer a defesa da vida, pois tantos
médicos como pacientes passam no evento consulta por situações críticas
complicadas do ponto de vista dos recursos institucionais e políticos que
garantam assistências devidas.
Os relatos médicos apontam precariedade da assistência na
saúde pública, comprometendo a saúde e a vida das populações.
No (ex.11. a médica C) por meio do processo material atribui-se um
papel ativo, como assinala Van Leewen (1997, p. 187): “A ativação
ocorre quando os atores sociais são representados como forças ativas e
dinâmicas numa atividade”.
A ação e interação no evento assistencial médico revelam
comprometimento nesse “estado de guerra, nesse campo de luta” que dialoga
com ciência e ficção. Os médicos e médicas recorrem muito ao uso
de metáforas (Participantes), o que indica como a superação do caos da
saúde publica pode ser enfrentada como algo mágico, extraordinário,
surreal, que naquele estado de intensas precarizações e riscos de vida
pouco irá depender do apoio gestor e político. As Circunstâncias estão
nos marcadores de tempo, como por exemplo, no relato do médico
218
Nádia Gadelha
transcrito: [...] “ a guerra não acaba nunca”, ou nesse outro excerto: “ A
frustração é grande, e dizer pra mulher que o bebe morreu é pior ainda”.
O dialogismo (BAKHTIN, 2008) está marcado pela presença do
passado, e perspectivas de futuros, sonhos e esperanças: “Eu sou médica,
sou a voz da esperança” (Médica C). A oração enseja nesse dialogismo o
retorno à profissão médica que desde seu passado fundador surge como
prática social garantidora de muitas das mais extraordinárias conquistas
epistemológicas do mundo: vencer a morte. Quando a médica dialoga
com a esperança, remete para o futuro, arrimo e conforto que sustentam
corretamente o percurso do desenvolvimento da práxis médica, e arte de
curar como suportes indispensáveis à vida.
Faircloug (2003) vê textos como as três principais maneiras em que
o discurso figura como parte da prática social: modos de agir, modos de
representar e modos de ser. Portanto, o texto tem uma relação dialética
com o evento e com a complexidade do mundo e sua realidade social.
Fairclough opta, assim, pelas significações e não funções, e considera
que os principais tipos de significação textual são ação, representação
e identificação simultaneamente nos textos (FAIRCLOUGH, 2003, p.
27). Cada um desses significados no evento discursivo consulta médica
reunidos num mesmo contexto tem intensa interrelação internamente;
portanto, estão dialeticamente situados.
Esse nível de análise social dos textos localiza as relações sociais, as
práticas sociais, os modos de produção dos valores, a reprodução da vida
cotidiana e as concepções mentais do mundo. Uma totalidade histórica,
aberta, tensionada pelas relações de poder, controle, pelos sistemas de
conhecimentos que são estabilizados e mantêm a ordem do discurso.
Contudo, “todos esses elementos se desenvolvem em conjunto e estão
sujeitos a renovações e transformações perpétuas como momentos
dinâmicos no interior totalidade, momentos que se codesenvolvem de
modo aberto, dialético”(HARVEY, 2013. p.193). Dessa forma, a situação
de precarização da prática médica é atrelada ao descaso institucional e
político da saúde pública.
219
Linguagem e Práticas Identitárias
Entremeada em nosso contexto geopolítico sob o discurso da
globalização, emerge um processo de geração de informações que
desperta a preocupação de um dos médicos do hospital de Maranguape
com informações das patologias advindas do “primeiro mundo”.
Quando às vezes eu vou, vou, vou atender uma pessoa com artrose,
ela já sabe de tudo pela internet mais do que eu. Quer dizer, aquela coisa
de você ser, ser questionado sobre o seu saber, é o tempo todo. Quer
dizer, eu tenho o tempo todo eu to estudando sobre o que é aquilo. Tá
entendendo. Então eu tenho que resolver o problema da pessoa que a
pessoa sabe (Médico C).
O texto do Médico C traz ao debate discursivo as relações de poder
e saber (FOUCAULT, 1996) que remetem ao contexto tradicional das
identidades médicas simbolicamente detentoras das grandes funções
da medicina em nossa sociedade. “A medicina, funciona como prática
individualista de tête-à-tête, de diálogo médico-doente, como dizem,
e no segredo” (FOUCAULT, 2011, p. 304). Foucault questiona o
funcionamento do poder e saber em todas as instituições políticas,
de Estado, e o funcionamento exercido sobre os indivíduos em seus
comportamentos cotidianos e até mesmo em seus próprios corpos.
“Vivemos imersos na rede política de poder, e ele é que está sendo
questionado” (FOUCAULT, 2011, p.310). Nada tem mais poder sobre
os corpos do que a práxis médica quer do ponto de vista judiciário,
moral ou científico.
A interdiscursividade apresenta discursos e estilos, os quais
são articulados e conectados com práticas, e estruturas sociais que
alcançam um arcabouço conceitual complexo situadas num historicismo
emergente, dialético. Nossa relação com a natureza, as tecnologias, as
relações sociais, as concepções mentais, os processos laborais, nossos
sistemas de produção, nossas concepções do mundo, as tecnologias
que empregamos e como conduzimos nossa vida cotidiana constituem
uma totalidade e que funcionam em interação mútua (HARVEY,
2013, p. 191). Fairclough (2003) considera que entender as estruturas
220
Nádia Gadelha
sociais e a realidade social dialeticamente é essencial para entender a
intensa interrelação presente na construção de discursos, de ações, de
concepções mentais (representações) e identidades.
Diferentes discursos são diferentes perspectivas de mundo associadas
a diferentes relações que as pessoas estabelecem com o mundo e que
dependem de suas posições no mundo e das relações que estabelecem
com outras pessoas (FAIRCLOUGH, 2003), competindo, cooperando,
ou dominando. Fairclough (2003) sugere que discursos são distinguidos
tanto pelos modos de representar quanto pela relação com outros
elementos sociais. Os modos de representação em termos de traços
linguísticos podem realizar um discurso do vocabulário, pois discursos
nomeia ou lexicalizam o mundo de modos particulares (FAIRCLOUGH,
2003, p. 129).
Nos dados desta pesquisa a interdiscursividade está caracterizada
em 4 discursos: 1. O discurso belicista; 2. o discurso especialista; 3. O
discurso ético político e 4. O discurso da globalização.
1. O discurso belicista está na metáfora da guerra como capaz de
sustentar e derivar metáforas correlacionadas e justificar as práticas
sociais da medicina no hospital sob intensos conflitos e tensões que
se conflagram na difícil luta de preservar a vida, sobretudo diante das
condições que respondam aos desafios dessa luta, dessa guerra. E como
toda guerra, há vencedores e perdedores, mortos e feridos, heróis que
conseguem sobreviver, e os que sucumbem diante do inimigo.
2. O discurso especializado profissional enfatiza sua episteme
autonomizada como fundamental para a garantia da vida dos pacientes e
legitima-se como responsável pela saúde da população estabelecida tanto
de forma individual como social. Percebe-se que que há um diálogo
entre os polos individuais e coletivos da prática da medicina que absorve
as nuanças de sua ação política e institucional.
3. O discurso ético político se sobrepõe às práticas sociais das
tecnologias e abordagens dos diversos profissionais estabelecidas nos
domínios teóricos e científicos legais. As virtudes são enfatizadas,
221
Linguagem e Práticas Identitárias
resgatando o caráter ético do agir sobre a vida, sem deixar de realçar
a lógica conceitual tecnicista-biologista para enfatizar o compromisso
com as angústias iminentes.
O discurso ético hibridiza-se com o discurso do poder médico
como estatuto apto e especializado que incide para as expectativas de
perigo iminente e potencial que ronda a prática médica em seu cotidiano
de atendimento profissional. O discurso político resgata o papel
constitucional do Estado brasileiro que coloca a saúde como direito do
cidadão e dever do Estado.
4. O discurso da globalização identifica o contexto da modernidade
tardia, e os dispositivos tecnológicos da internet que está integralmente
em todas as circunstâncias cotidianas da organização social sob a
estruturação dos sistemas globais (GIDDENS, 2002).
O significado ideacional e o estilo constituem os aspectos discursivos
de identidades, que se relacionam dialeticamente (FAIRCLOUGH,
2003). As identidades pressupõem a representação, em termos de
presunção, acerca do que é.
O significado representacional das identidades pode ser analisado
com as categorizações de funcionalidade e de identificação. “A identificação
ocorre quando os atores sociais são definidos, não em termos daquilo que
fazem, mas em termos daquilo que, mais ou menos permanentemente,
ou inevitavelmente são” (VAN LEEUWEN 1997, p. 202).
Dos excertos do Quadro 1 destacamos os relatos de médicos, em
que os atores sociais referem-se à identificação de si interrelacionada à
práxis social da medicina.
(i) O médico tem um compromisso social. Do profissional médico,
né.. Pro médico em geral, é diferente. É que ele lida com a coisa mais
iminente, né. Ou, a coisa mais, é, angustiante, né. Que é a situação crítica,
né. Diante da situação crítica, iminente que pode complicar e o paciente
vir a morrer, é o médico que está mais preparado para administrar esse
processo.
222
Nádia Gadelha
(ii) Eu sou uma médica responsável, faço o meu sonho falar alto.
Atendo os pacientes, direitinho. Faço história, prontuário.
(iii) Está provado que o médico morre sete anos mais cedo que a
população normal. Devido a tanto é... Sacrifício, noites mal dormidas.
Estresse durante o trabalho diário. Mas não desisto! Amo ser médico,
amo a medicina!
(iiii) Sou médico, sou a voz da esperança.
Por meio das representações mentais, aflora um comprometimento
ético em favorecer a defesa da vida, pois tantos médicos como pacientes
passam no evento consulta por situações críticas complicadas do ponto
de vista dos recursos institucionais e políticos que garantam assistência
devidas.
Castells (1999, p. 22) entende por identidade “ o processo de
construção de significado com base e um atributo cultura, ou ainda, um
conjunto de atributos culturais interrelacionado (s) qual (ais) prevalece
(m) sobre outras formas de significado”. No âmbito da medicina, as
identidades se confundem com papeis sociais, no cenário da saúde
pública (SARANGI, 2010).
As habilidades médicas, o campo especialista do conhecimento
científico das patologias, e como intervir nestas, o poder que emana
desse saber constrói identidades metaforizadas, tal como o piloto de
avião que tem a perícia de manobrar o voo e não causar o desastre.
Castells (1999) adverte que a identidade coletiva é construída sob
determinantes simbólicos de seu significado para aqueles que com ela se
identificam ou delas se excluem (CASTELLS, 1999, p. 24).
Na prática médica, há representações discursivas do mundo material
e da própria prática (reflexividade). A práxis social da medicina é
referenciada como complexa, e limitada no âmbito da saúde pública que
no Brasil cobre as necessidades das precarizadas populações pobres e
SUS dependentes.
223
Fairclough (2003) considera que entender as estruturas sociais
e a realidade social dialeticamente é essencial para entender a intensa
interrelação presente na construção de discursos, de ações, de concepções
mentais (representações) e identidades. A médica por meio do processo
material atribui-se um papel ativo, como assinala van Leewen (1997, p.
187): “ A ativação ocorre quando os atores sociais são representados
como forças ativas e dinâmicas numa atividade”. A ação e interação no
evento assistencial médico revelam comprometimento nesse “estado de
guerra, nesse campo de luta” que dialoga com ciência e ficção.
Por meio dos processos mentais, com sentimentos de insatisfação
em relação ao contexto da saúde pública e suas múltiplas facetas de
deficiência e negação com os princípios constitucionais do Sistema
Único de Saúde no Brasil SUS- aflora um comprometimento ético em
favorecer a defesa da vida, pois tanto médicos como pacientes passam
nesse evento por situações críticas complicadas do ponto de vista dos
recursos institucionais e políticos que garantam assistências devidas.
Na prática médica, há representações discursivas do mundo
material e da própria prática (reflexividade). A práxis social da medicina
é referenciada como complexa e limitada no âmbito da saúde pública
que no Brasil cobre as necessidades das precarizadas populações pobres
e SUS dependentes. A interdiscursividade apresentam discursos e
estilos, os quais são articulados e conectados com práticas, e estruturas
sociais que alcançam um arcabouço dialético conceitual complexo. As
identidades médicas apontam a precariedade da assistência médica na
saúde pública comprometendo a saúde e a vida das populações.
Assim cá estou, lutando, brigando pela pessoa que vai ter filho,
brigando e quase como um mágico driblando as dificuldades, correndo
pro um lado, pro outro, me dividindo em dez, nessas enfermarias, que
parece mais um campo de luta, de guerra. (Ex11.Médica C)
Nós somos uma infantaria. (Ex1.Médico A)
Nádia Gadelha
A médica por meio do processo material atribui-se um papel ativo,
como assinala van Leeuwen (1997, p. 187) “A ativação ocorre quando os
atores sociais são representados como forças ativas e dinâmicas numa
atividade”. Ação e interação no evento assistencial médico revelam
comprometimento nesse “estado de guerra, nesse campo de luta” que
dialoga com ciência e ficção.
Os médicos e médicas recorrem ao uso de metáforas (Participantes),
o que indica como a superação do caos da saúde pública pode ser
enfrentada como algo mágico, extraordinário, surreal, que naquele
estado de intensas precarizações e riscos de vida pouco irá depender do
apoio gestor e político. As Circunstâncias estão nos marcadores de tempo,
como por exemplo, no relato do médico transcrito: [...] “a guerra não acaba
nunca”, ou nesse outro excerto: “A frustração é grande, e dizer pra mulher que
o bebe morreu é pior ainda”.
Esse nível de análise social dos textos localiza as relações sociais, as
práticas sociais, os modos de produção dos valores, a reprodução da vida
cotidiana e as concepções mentais do mundo. Uma totalidade histórica,
aberta, tensionada pelas relações de poder, controle, pelos sistemas de
conhecimentos que são estabilizados e mantêm a ordem do discurso.
Contudo, “todos esses elementos se desenvolvem em conjunto e estão
sujeitos a renovações e transformações perpétuas como momentos
dinâmicos no interior totalidade, momentos que se codesenvolvem de
modo aberto, dialético”(HARVEY, 2013. p.193). Dessa forma, a situação
de precarização da prática médica é atrelada ao descaso institucional e
político.
4 Relatos etnográficos
Nota de campo 1: Lute, lute, meu rapaz. Dra. Clarissa319 horas do
dia 14 de abril de 2010.
Desde as 17h, aguardo poder conversar com a médica plantonista.
3
Nomes fictícios.
225
Linguagem e Práticas Identitárias
Está no final de 12 horas de plantão. Mas interrompe o inicio de nossa
conversa a chegada de um novo caso na emergência. Acidentado de
moto, paciente jovem, muito grave, com politraumatismo. Os primeiros
procedimentos são para estabilizar o paciente. O paciente tem uma
parada cardíaca. O carro de assistência da parada está com o ambur
quebrado. A jovem médica faz todos os esforços manuais, inclusive
com a respiração boca a boca para salva a vida do paciente, fazendo os
procedimentos de ressuscitação manual, sem o auxílio das tecnologias
disponíveis do respirador artificial que está quebrado. O paciente deve
ser transferido para Fortaleza. Acompanho na ambulância a médica.
Segue 1 enfermeira, e 1 auxiliar. São 45 minutos de muito estress a
caminho de Fortaleza, para o Frotão4. No caminho, paciente tem nova
parada. É reanimando boca a boca. Mantém-se respondendo para alegria
de todos nós. Descemos no Frotão e o paciente é levado para a sala de
ressuscitação. Todos os procedimentos tecnológicos são instalados e o
mesmo fica no respirador. A médica, toda ensanguentada, olha para o
homem no leito já estabilizado hemodinamicamente, em coma, e esta
lhe diz: Pronto rapaz. Fiz minha parte, agora é sua vez de lutar, lute, viu,
lute... Consegui, consegui trazê-lo vivo. Lute, lute, resista! Seu, colega
médico da sala de ressuscitação parabeniza-a pelo esforço inaudito de
tê-lo mantido vivo apenas com os recursos da força humana da colega
médica. Saímos e a médica, atenciosa, me pede desculpas por termos
interrompido nossa entrevista.
Médicas e médicos revelam a complexidade de uma agonística que
situa os polos extremos da problematização da prática profissional
em situações críticas, enfrentando contextos adversos, frustrantes,
vitoriosos, frágeis, que se metamorfoseiam em fênix, superam e voam ao
infinito. Por este motivo, age-se sob a tutela de relações de poderes que
geram manifestações das práticas sociais em agonística reveladora do
4
“Frotão”: referência ao Hospital Instituto Dr. José Frota hiperônimo Frotão, unidade central de
alta complexidade, o maior hospital em traumas do Norte e Nordeste. Nos distritos e regionais
de Fortaleza ficam os seus hipônimos: “frotinhas”, mini hospitais de médica complexidade.
226
Nádia Gadelha
jogo que inverte, desloca e transforma estas relações. Nesse jogo, estaria
o cansaço, o estress médico, a desorganização do sistema de saúde, a
ineficiência das políticas de saúde, enfim, a vasta rede de complexidades
funcionais da saúde pública, cenário das práticas sociais. A luta agonística
institui o profissionalismo técnico científico sobre agentes sociais,
que incorporam práticas identitárias especialistas com tal habilidade,
que apaga as evidências, os resíduos que subjazem às emoções, aos
sentimentos, ou demais estereótipos culturais que demarcariam posições
de gênero em polos diferenciados.
A seguir, a vivência médica integrada ao sensível, ao belo e à
agonística.
Nota de campo 2
Ela me dizia: Não me deixe morrer, Dr. Victor5. Eu quero terminar
meus estudo e ser médica, médica pediatra. São 19 e 30 minutos. Como
não teve tempo durante o plantão1 de ser entrevistado, combinamos Dr.
Victor e eu, que logo após o plantão nos encontraríamos na pracinha
em frente ao hospital, na barraquinha de D. Emília com direito a milho
assado, e depois um picolé de seriguela:
- Por onde você quer que eu comece Nádia?
- Fale-me do mais belo momento de seu dia hoje.
- Ok.
Nesse momento estavam os pratinhos abarrotados de mugunzá. Dr.
Victor para, se revela pensativo, respira, morde os lábios e diz:
- Vou lhe contar o que ocorreu hoje comigo. Foi uma experiência
muito bela, tão bela e paradoxalmente muito dolorosa: Fui atender a
uma ocorrência lá na estrada que vai pro Maracanaú. Um caminhão
carro forte atropelou três crianças. São três irmãos. Dois iam na garupa
da irmã mais velha, 14 anos, que os conduzia para a escola. As duas
crianças estavam sem grandes gravidades. A ambulância os conduziu pro
hospital, mas a garota de 14 anos estava presa nas ferragens, e enquanto
Os nomes dos sujeitos são fictícios de acordo com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional
de Saúde que rege a Pesquisa com Seres Humanos no Brasil.
5
227
Linguagem e Práticas Identitárias
os bombeiros estavam à caminho, tive que tentar estabilizar a paciente,
que até então estava orientada, consciente. Apesar das pernas e braços
muito machucados. Eu suspeitei de comprometimentos mais severos.
Ajoelhado ao seu lado auscultei o tórax e identifiquei complicações
pulmonares. Fazendo os primeiros procedimentos, ela repete o meu
nome.
- Dr. Victor.
- Respondo:
- oi, estou aqui pra lhe ajudar.
- Sei. Mas tenho um pedido.
- Qual seu nome?
- Rosa.
- Sim, Rosa, qual o pedido?
- Prometa pra mim que eu não vou morrer, viu. Eu quero terminar
meus estudo e ser médica, médica pediatra.
- Sim, é muito bom cuidar das crianças, né?
- Vou ajudar você ficar bem. Mas ela insistia.
- Mas eu não quero morrer, e tem mais, amanhã é meu aniversário
de 15 anos.
- Tá bem vamos comemorar né? Mas observava que a paciente
estava afundando. A levamos para o Frotão. No meio da viagem uma
parada. Reanimei, ela acordou, olhou nos meus olhos:
- Dr.Victor, nunca irei esquecer-me de você.
Retornei ao plantão e ligaram pra mim avisando que a pobrezinha
entrou em óbito.
- Tô triste, esse é o lado ruim da questão. E amanhã, na casa dela, os
15 anos, o sonho de ser médica...
- Por quê? me pergunto, porque a vida faz dessas coisas com a gente
né?. Sou médico, todos os dias vejo acidentados, pacientes morrerem,
mas não dá pra não sofrer quando a injustiça não tem explicação. O
mundo é injusto. Sim... E respondendo sua pergunta: o mais belo
momento do meu dia hoje foi ter a certeza que lutei, fiz tudo que estava
228
Nádia Gadelha
ao meu alcance, fiz tudo, e que o sonho de Rosa irá vigiar meus dias e nunca mais
esquecerei. “não me deixe morrer”.
Identidades médicas são constituídas de semioses em tênues
demarcações e fronteiras entre deuses e humanos. Ser médico ou médica,
para além de uma profissão, é missão, precisa de juramentos e rituais
de sustentabilidade desse poder simbólico. curar, vencer e insurgir-se
contra a violência da morte irá reconstituir na arte médica a constituição
de um lugar no mundo transitado por poucos.
Conclusões
A representação das práticas identitárias médicas estudadas
no âmbito da ADC está dialeticamente relacionada a discursos,
representações e ações (estilos) (FAIRCLOUGH, 2003). Tal arcabouço
dialético analisado pela ADC alcança o discurso médico como parte de
complexos momentos da prática social da medicina em nossa sociedade,
na elucidação de problemas de saúde tidos como partes das estruturas
sociais, políticas e culturais, constituindo representações, ações-estilos e
identidades profissionais médicas.
Não é possível compreender a identidades na forma de uma unidade,
dotada de uma significação última. As identidades de médicos e médicas
se remodelam em jogo, e como tal, não obedecem nem a uma destinação,
nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta.
A agonística (um dos murmúrios identitários vibrando neste trabalho)
traz ao jogo as forças que têm como tarefa as resistências, positivas,
afirmativas da vida, incentivando a luta, a aceitação da imprevisibilidade,
como forma de criação e de permanente superação.
O discurso da humanização da práxis médica, de acordo com o
dialogismo (BAKHTIN, 2008), participa de uma isomorfia intensa com
os problemas éticos e políticos suscitados pelos sujeitos, em correlacionar
o descaso e a gestão da saúde pública que favorece a má prestação dos
serviços assistenciais médicos à população atendida pelo SUS.
229
Linguagem e Práticas Identitárias
O discurso da humanização carrega polifonicamente residualidades
de uma medicina nascente com as rupturas das cosmogonias em favor
da supremacia da racionalidade e da técnica. A humanização valoriza
antes o aspecto técnico do ofício médico na arte de curar e isola o que
discursivamente hoje opera em termos de uma prática médica dialógica
e comunicacional menos assimétrica entre médicos e pacientes. Nesse
aspecto, médicos apresentam identidades de isolamento em relação aos
pacientes. Encorajar o paciente a interrogar sobre suas doenças, e mesmo
trazer ao espaço da consulta a democratização dos esclarecimentos
pertinentes às suas patologias e às intervenções científicas, parece
assustar.
A medicina entendida pelos participantes deste estudo é revelada
como supervalorizada em seus aspectos técnicos. Como afirma Foucault
(1996, 2011), trata-se da escolha de um olhar, de uma moral que ilumina
o ato médico em nome de suas conquistas e eficácias científicas, que
trata uma doença, não um doente, um sujeito inscrito em uma trajetória
social e individual (LE BRETON, 2011).
Nos relatos etnográficos, encontramos novos enunciados da
humanização voltada para o paciente, revelando identidades médicas
que falam de um lugar hoje cartografado por angústias, limites diante
do poder técnico- simbólico da arte de curar e salvar. Esses enunciados,
incorporam a destreza de um piloto de avião, encaram a morte e a vida
marcadas pelas interfaces entre ciência e ética, numa racionalidade da
ação, com articulações complexas, dotadas de um sentido marcado por
um discurso médico que se hibridiza entre ciência, fé, e espiritualidade.
Na fase de transição epistemológica em que vivemos, o conhecimento
das coisas necessita de reflexões para além dos modelos cognitivos
científicos que iluminaram o conhecimento moderno. Incompletudes,
inquietações são as marcas de nossa transição epistemológica em crise
do paradigma científico e a abertura para um novo modo de buscar
traduzir inteligibilidades. O desafio de trabalhos futuros, é transitar sobre
230
Nádia Gadelha
percursos possíveis em busca de novos debates sobre a práxis social da
medicina e as exigências de novas leituras da humanização da arte de
curar na saúde pública.
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233
ATRIBUIÇÃO DE POSTURA EPISTÊMICA ÀS
FRASES CONDICIONAIS EM FUNÇÃO DE
GÊNERO, IDADE E ESCOLARIDADE
Gilberto GOMES
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)
Priscila Mattos MONKEN
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)
RESUMO
A atribuição de postura epistêmica às frases condicionais, em função do gênero, da faixa
etária e do nível de escolaridade, foi estudada através da parafraseabilidade diferencial de
se por caso ou por já que. Foram usadas frases condicionais com verbo no indicativo,
apresentadas em contexto indefinido, ou precedidas de contextos indutores de atribuição de
postura epistêmica positiva ou neutra. Os resultados mostraram uma maior tendência dos
homens a atribuírem postura epistêmica positiva ao enunciador de tais condicionais e maior
tendência dos mais jovens e dos menos letrados a desconsiderarem o contexto fornecido.
ABSTRACT
The attribution of epistemic stance to conditional sentences in speakers of Brazilian
Portuguese, as a function of gender, age and level of schooling, was studied by the differential
paraphrasability of se (if) by caso (in case) or já que (since). Conditional sentences with
verb in the indicative were used, either presented in an indefinite context or preceded by a
context inducing the attribution of either positive or neutral epistemic stance. It was found
that men presented greater tendency to attribute positive epistemic stance to the utterer of such
conditionals and that younger and less schooled subjects presented a greater tendency to ignore
the provided context.
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 235-255, jan./jun. 2014
Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero,
Idade e Escolaridade
PALAVRAS-CHAVE
Condicionais. Postura epistêmica. Parafraseabilidade.
KEYWORDS
Conditionals. Epistemic stance. Paraphrasability.
Introdução
O conceito de postura epistêmica foi introduzido por FILLMORE
(1990: 142), que propôs que o falante pode ter três relações epistêmicas
com o mundo representado por uma frase condicional, encarando-o seja
como o mundo real, seja como um mundo diferente do real, seja, por
fim, como um mundo que ele não sabe se corresponde ou não ao mundo
real. Essas três formas de posicionar-se epistemicamente em relação à
situação representada pela condicional correspondem, respectivamente,
às posturas positiva, negativa e neutra.
As três frases condicionais seguintes exemplificam, respectivamente,
as três posturas epistêmicas:
(1) Se ele é quem ele é, não podíamos esperar outra coisa.
(2)
Se ele tivesse caráter, não teria feito o que fez.
(3)
Se ele tiver oportunidade, fará a mesma coisa de novo.
Na frase condicional (1), o conteúdo da oração condicional (se ele
é...), proposto como condição suficiente para a validade da conclusão
apresentada na apódose, é afirmado na mesma frase, através da oração
quem ele é. Fica evidente, portanto, a postura epistêmica positiva do
falante em relação ao conteúdo da prótase. Na frase (2), atribui-se
naturalmente ao falante a postura epistêmica negativa, ou seja, a crença
de que o homem de quem ele fala não tem caráter. Já na frase (3) a
postura é neutra, pois o falante não sabe se aquele de quem fala terá ou
236
Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken
não oportunidade de fazer novamente o mesmo.
Ao discutir a postura epistêmica, Dancygier e Sweetser (2005: 45-46)
exemplificam a postura positiva com uma frase com a conjunção when
(quando) e as posturas neutra e negativa com frases com if (se). “Ifclauses (...) are presented as non-positively viewed: the speaker does not
commit to a fully positive stance toward this material” (DANCYGIER;
SWEETSER, 2005: 48).1 Ao introduzir since (já que) em sua discussão,
as autoras afirmam categoricamente: “since adopts a positive
epistemic stance towards its complement clause, while if does not”
(DANCYGIER; SWEETSER, 2005: p. 49).2 HARDER (1966) também
nega a possibilidade da postura epistêmica positiva em condicionais.
GOMES (2008), por outro lado, dá vários exemplos em que if ou se
são usados com postura epistêmica positiva e podem ser parafraseados
por since ou já que. SCHWENTER (1999) também fornece inúmeros
exemplos atestados de condicionais com if (em inglês) ou si (em espanhol)
em que o falante se identifica com a verdade da prótase. TAYLOR (1997:
301) igualmente reconhece a possibilidade das três posturas epistêmicas
nas condicionais:
In a factual conditional, the content of the if-clause
is presumed to be the case, whilst in a counterfactual
the content of the if-clause is taken to be contrary to
fact. Between these categories stand the hypothetical
conditionals, in which the content of the if-clause is
entertained as a possibility, neither in accordance with
reality, nor necessarily inconsistent with it. 3
Traduzindo: “Orações com if [se] (…) se apresentam como não positivamente vistas: o falante
não se compromete com uma postura plenamente positiva face a esse material”.
2
Traduzindo: “since [já que] adota uma postura epistêmica positiva em relação a sua oração
complementar, enquanto que if [se] não o faz”.
3
“Numa condicional factual, presume-se que o conteúdo da oração com if [se] seja verdadeiro,
enquanto que, numa contrafactual, o conteúdo da oração com if [se] é considerado como sendo
contrário aos fatos. Entre essas categorias, situam-se as condicionais hipotéticas, nas quais o
conteúdo da oração com if [se] é considerado como uma possibilidade, nem de acordo com a
realidade, nem necessariamente inconsistente com ela.”
1
237
Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero,
Idade e Escolaridade
LEÃO (1961, p. 31-32) discute as frases condicionais do tipo realis,
envolvendo fatos cuja realidade é reconhecida. Vincula tais condicionais
ao uso do indicativo. Devemos observar, entretanto, que, embora o
indicativo seja obrigatório em tais casos, ele também pode ser usado em
condicionais com postura epistêmica neutra, envolvendo condições cuja
realidade é apenas suposta. A nomenclatura empregada pelos autores é
também variável, pois COSTA (1997, p. 27) inclui os casos de incerteza
quanto à realidade do antecedente dentro do irrealis, enquanto LEÃO
(1961, p. 31-32) usa esse termo para condicionais que envolvem uma
“condição contrária à realidade”.
Relevante para nossa pesquisa é a observação de NEVES (2000, p.
848), de que a conjunção se admite formas verbais tanto do indicativo
quanto do subjuntivo, enquanto que caso ocorre só com o subjuntivo,
e já que exclusivamente com o indicativo. É natural associarmos estas
duas últimas conjunções às posturas epistêmicas neutra e positiva,
respectivamente, já que o subjuntivo é o modo verbal da dúvida e o
indicativo o da certeza. Já o se admite ambas as posssibilidades, sendo
pertinente notar que, embora a gramática normativa preconize o uso do
futuro do subjuntivo nos casos de incerteza (postura epistêmica neutra),
na realidade o indicativo é muitas vezes usado em tais casos, mesmo na
literatura culta. Assim temos que se com indicativo pode indicar postura
epistêmica positiva ou neutra, enquanto que com futuro do subjuntivo
indica postura neutra (e com imperfeito do subjuntivo, postura negativa).
Quanto à especificidade das conjunções, autores como GARCIA
(2000), NEVES (2000), LUFT (2002) e AZEREDO (2008) não atribuem
à locução já que um papel condicional, mas apenas causal. Por outro lado,
BECHARA (2003, p. 325) observa: “já, que tem valor originário temporal,
ao unir-se ao que na fórmula já que, passa a uma interpretação causal ou
condicional”. A questão terminológica e classificatória, entretanto, nos
parece menos importante que a funcional. Mesmo que se classifique já
que sempre como causal, forçoso é reconhecer que em muitos casos
pode ser usada para parafrasear se. Deveríamos nesses casos classificar se
238
Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken
também como causal? Ou admitir que, em tais paráfrases, há uma ligeira
alteração de sentido, passando de um sentido ainda condicional (embora
com postura epistêmica positiva) do se para um sentido puramente causal
do já que?
Essas questões não nos parecem tão importantes, pois, como
observa Ferrari, “a relação entre a palavra e o mundo é mediada pela
cognição. [...] Sob essa perspectiva, as palavras não contêm significados,
mas orientam a construção do sentido” (FERRARI, 2011, p. 14). Dessa
forma, a postura epistêmica do falante não está rigidamente codificada
na conjunção escolhida, nem na forma verbal empregada, embora estas
sejam recursos que o falante utiliza, em conjunto com fatores lexicais e
contextuais, para comunicá-la. O ouvinte ou leitor, por sua vez, atribuirá
àquele que enuncia a frase condicional uma postura epistêmica – que
pode, aliás, não ser a mesma intencionada por este último –, através de
seus próprios processos cognitivos, construindo-a a partir de todos os
indícios presentes na frase e no contexto em que ela ocorre.
Quanto ao uso de paráfrases para a elucidação do significado,
acreditamos que ele se torna útil quando há a possibilidade de estabelecer
o que chamamos de parafraseabilidade diferencial, o que ocorre quando
a possibilidade de uma paráfrase exclui a possibilidade de outra, e viceversa. Se, em determinado contexto, a palavra A pode ser parafraseada
por B, mas não por C e, em outro contexto, a mesma palavra A pode
ser parafraseada por C, mas não por B, então podemos concluir que
A, nos dois contextos, participa da construção de dois significados
diferentes para a frase na qual se insere. Note-se que situamos a
diferença de significado no nível da frase, não no nível da própria
palavra. Consideremos o exemplo (1), acima. Podemos parafrasear Se ele
é por Já que ele é, mas não por Caso ele seja. Já no exemplo (3), ao contrário,
podemos parafrasear Se ele tiver por Caso ele tenha, mas não por Já que ele
terá. Os exemplos são ainda mais eloquentes quando a mesma frase, em
contextos diferentes, admite e exclui paráfrases opostas (como veremos
em frases usadas em nossa pesquisa).
239
Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero,
Idade e Escolaridade
A possibilidade de paráfrase de se por já que ou caso, em função da
postura epistêmica positiva ou neutra, respectivamente, foi por nós
estudada em pesquisa empírica que integrou a dissertação de um dos
autores (MONKEN, 2009). A metodologia e parte dos resultados dessa
pesquisa foram apresentados e discutidos em outro artigo (GOMES
& MONKEN, 2011). Nela, as mesmas frases condicionais com a
conjunção se e verbo no indicativo foram apresentadas aos sujeitos em
três condições: a) isoladamente (contexto indefinido); b) precedidas de
uma frase que afirmava o conteúdo de sua prótase (contexto indutor
de certeza); c) precedidas de uma frase que apresentava esse conteúdo
como algo incerto (contexto indutor de incerteza).
Com contexto indutor de incerteza, houve uma clara preferência
pela paráfrase com caso, enquanto que, com contexto indutor de certeza,
os sujeitos tenderam também nitidamente a escolher a paráfrase com
já que. No caso do contexto indefinido, cerca de metade dos sujeitos
deu às frases condicionais apresentadas (com se e verbo da prótase no
indicativo) uma interpretação compatível com a paráfrase com caso e a
outra metade as interpretou de forma compatível com a paráfrase com
já que (GOMES e MONKEN, 2011). Verificou-se, assim, a polissemia
das construções condicionais com se e verbo no indicativo, as quais se
prestam tanto à postura epistêmica neutra, quanto à positiva.
Foram confirmadas, dessa forma, as seguintes hipóteses de nosso
artigo anterior:
1.
2.
Em contexto indefinido, uma condicional com se e indicativo
na prótase poderá ser interpretada como apresentando postura
epistêmica positiva ou neutra e os sujeitos poderão preferir ou
a paráfrase com já que ou a com caso.
Em contexto indutor de certeza, uma condicional com se e
indicativo na prótase tende a ser interpretada como exibindo
postura epistêmica positiva, preferindo os sujeitos a paráfrase
com já que.
240
Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken
3.
Em contexto indutor de incerteza, uma condicional com se
e indicativo ou futuro do subjuntivo na prótase tende a ser
interpretada como apresentando postura epistêmica neutra,
preferindo os sujeitos a paráfrase com caso.
O objetivo do presente artigo é estudar a influência do gênero
(masculino ou feminino) dos sujeitos, da sua faixa etária e do seu nível de
escolaridade sobre a preferência pela paráfrase com caso ou com já que.
Haveria maior tendência de um dos gêneros a interpretar uma condicional
como apresentando postura epistêmica positiva e a escolher, portanto, a
paráfrase com já que – e, complementarmente, maior tendência do outro
gênero à interpretação de postura epistêmica neutra e à consequente
escolha da paráfrase com caso? Podemos imaginar que isso poderia
ocorrer, seja em decorrência de fatores biológicos, seja em função de
fatores socioculturais, atuando sobre os processos cognitivos. Caso a
resposta a essa pergunta se mostrasse positiva, qual dos gêneros teria
mais afinidade com qual interpretação? Como poderíamos interpretar
a preferência observada? Além disso, haveria maior tendência de um
dos gêneros a aceitar, e do outro a rejeitar, a influência do contexto
fornecido?
As mesmas perguntas se colocam em relação às variáveis faixa etária
e nível de escolaridade. Podemos supor que a idade afete o processo de
interpretação das frases condicionais. Isso poderia ocorrer, por um lado,
em função da evolução da língua, ou seja, de uma alteração semântica
diacrônica. LABOV (1972), no plano da fonologia, fez estudos em
que a linguagem de diversas faixas etárias aparece como evidência de
diferentes estágios da evolução da língua. Podemos considerar que,
quando temos um processo de variação, os jovens e as pessoas mais
velhas apresentam um comportamento linguístico semelhante. Quando
se trata de um processo de mudança linguística, as formas inovadoras
serão mais frequentes em jovens e decairão à medida que aumenta a
faixa etária dos informantes.
241
Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero,
Idade e Escolaridade
Por outro lado, podemos supor que, em relação a certos aspectos
da linguagem, as diferenças no uso da linguagem entre diferentes faixas
etárias se devam a características psicológicas ou socioculturais das
mesmas. Isso significa que, em relação a esses aspectos, os idosos não
usam a linguagem hoje do mesmo modo como a usavam quando jovens,
assim como os jovens de hoje usarão a linguagem de modo diferente,
quando forem idosos. Tal condição contrasta com a estabilidade do uso
da linguagem pelo mesmo sujeito, suposta na proposta que infere uma
evolução a partir das diferenças de uso entre faixas etárias.
Em relação à escolaridade, podemos supor que o maior ou menor
contato com a norma culta e a maior ou menor pressão social no
sentido do uso da mesma levem a diferentes interpretações, em função
dos usos consagrados por essa norma. Quanto mais elevado for o nível
de escolaridade, mais frequentes deverão ser as respostas condizentes
com os padrões estruturais e semânticos estabelecidos pela gramática
tradicional estudada nas escolas e praticada no ambiente escolar e
acadêmico. Além disso, podemos também supor que diferentes níveis
de escolaridade correspondam a maior ou menor desenvolvimento de
processos cognitivos envolvidos na análise e interpretação do sentido de
frases escritas fornecidas numa pesquisa como esta e, ainda, uma maior
ou menor capacidade de ater-se à tarefa cognitiva solicitada e analisar
objetivamente os dados fornecidos em questões escritas.
2 Metodologia4
Elaboramos um formulário com 27 itens. Em todos eles, o sujeito
devia escolher, para uma frase condicional apresentada no enunciado,
uma (e apenas uma) entre duas paráfrases apresentadas, uma com caso
e a outra com já que. Nos 9 primeiros itens, a frase era apresentada
Para conveniência do leitor, apresentamos aqui uma nova descricão da metodologia, já exposta
no artigo anteriormente citado (GOMES; MONKEN, 2011).
4
242
Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken
isoladamente, ou seja, fora de qualquer contexto. Todas as 9 frases do
enunciado foram formuladas usando formas do indicativo na prótase.
Nos 18 itens restantes, em ordem variável, as mesmas frases apareciam
precedidas de outra, que ou afirmava a verdade da prótase da condicional
(contexto indutor de certeza), ou apresentava o conteúdo desta como
algo incerto, através do uso de talvez, não sei se ou outras expressões
indicativas de dúvida (contexto indutor de incerteza). Em alguns dos
itens com contexto indutor de incerteza, achamos mais natural trocar o
tempo verbal da prótase, no enunciado, para o futuro do subjuntivo. As
formas verbais usadas nas paráfrases foram as exigidas pela gramática,
ou seja, formas do indicativo nas paráfrases com já que e do presente ou
do pretérito perfeito do subjuntivo nas com caso.
A título ilustrativo, reproduzimos aqui os itens 8, 17 e 25:
8-
Se você recebeu a carta, não deveria ter alegado o contrário.
( ) Caso você tenha recebido a carta, não deveria ter alegado
o contrário.
( ) Já que você recebeu a carta, não deveria ter alegado o
contrário.
17 - Você recebeu a carta. E se recebeu, não deveria ter alegado o
contrário.
( ) Você recebeu a carta. E já que recebeu, não deveria ter
alegado o contrário.
( ) Você recebeu a carta. E caso tenha recebido, não deveria
ter alegado o contrário.
25 - Não sei se você recebeu a carta. Se recebeu, não deveria ter
alegado o contrário.
( ) Não sei se você recebeu a carta. Caso tenha recebido,
não deveria ter alegado o contrário.
( ) Não sei se você recebeu a carta. Já que recebeu, não
deveria ter alegado o contrário.
243
Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero,
Idade e Escolaridade
Alguns itens apresentavam a paráfrase com caso em primeiro lugar,
outros a apresentavam em segundo lugar. Em estudo preliminar, não
houve influência dessa ordem sobre os resultados e, por isso, não
levamos em conta essa variável.
Ao término do formulário, fazíamos um inventário em que
perguntávamos a respeito de algumas opções assinaladas pelos
informantes. Essas perguntas se referiam às respostas que contrariavam
o previsto por nossas hipóteses. Por exemplo, nos itens 17 e 25
reproduzidas acima, esperávamos que a primeira opção fosse marcada.
Quando a segunda era a escolhida, perguntávamos sobre as razões do
entrevistado para tal.
Alguns entrevistados, ao serem questionados sobre sua escolha,
mudavam a paráfrase escolhida. Isso era por nós registrado, mas só
computamos em nosso estudo estatístico as primeiras respostas, já
que a mudança poderia ter sido motivada exclusivamente por nosso
questionamento.
Foram entrevistados 137 sujeitos, dos quais 76 mulheres e 61
homens. 53 sujeitos (26 mulheres e 27 homens) estavam na faixa etária
de 14-25 anos; 48 sujeitos (28 mulheres e 20 homens) estavam na faixa
etária de 26-49 anos e 36 sujeitos (22 mulheres e 14 homens) tinham
50 anos ou mais. Quanto à escolaridade, 39 sujeitos (22 mulheres e 17
homens) tinham o ensino fundamental completo ou incompleto (EF);
63 sujeitos (34 mulheres e 29 homens) tinham o ensino médio completo
ou incompleto (EM); e 35 sujeitos (20 mulheres e 15 homens) tinham
ensino superior completo ou incompleto (ES). As entrevistas ocorreram
em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro.
O método do qui-quadrado foi usado no tratamento estatístico
dos dados (COSTA NETO, 2005: 137-140, 248). Este método
permite identificar as diferenças de frequência que são estatisticamente
significativas das que não o são, levando em conta o número de
observações feitas. Além da análise quantitativa, os resultados foram
também investigados qualitativamente.
244
Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken
3 Resultados quantitativos
As tabelas com os números de sujeitos que optaram por caso ou já
que em cada item, nas duas categorias de gênero, nas três faixas etárias
e nos três níveis de escolaridade, assim como as tabelas de contingência
e os cálculos do qui-quadrado, podem ser encontrados em MONKEN
(2009). Lembremos que, como há só duas alternativas de resposta
mutuamente excludentes, sendo obrigatória a escolha de uma delas, a
porcentagem de uma resposta é sempre o complemento (100% – x%)
da porcentagem da outra.
Como exposto e discutido em artigo anterior (GOMES &
MONKEN, 2011), nos itens com contexto indefinido, houve, no total
dos sujeitos, 51% de respostas caso (e, portanto, 49% de respostas já que).
Nos itens com contexto indutor de certeza, houve 70% de respostas já
que e naqueles com contexto indutor de incerteza, 71% de respostas caso.
A diferença observada entre os contextos de certeza e de incerteza foi
significativa, pelo teste do qui-quadrado, no nível de 0,001 (GOMES &
MONKEN, 2011).
3.1 Gênero
Quanto ao gênero, os resultados obtidos são apresentados na tabela
a seguir.
TABELA 1: Porcentagem da escolha da paráfrase com caso, em função
do gênero do sujeito
Mulheres
% Caso
53%
55%
32%
72%
Total
Contexto Indefinido
Contexto Indutor de Certeza
Contexto Indutor de Incerteza
245
Homens
% Caso
48%
47%
27%
70%
Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero,
Idade e Escolaridade
Observa-se que, no contexto indefinido, houve 55% de respostas
caso entre as mulheres e 47% entre os homens. Essa diferença foi
significativa, pelo teste do qui-quadrado, no nível de 0,005. No contexto
indutor de certeza, as respostas já que atingiram 68% de entre mulheres
e 73% entre os homens. No contexto indutor de incerteza, houve
72% de respostas caso entre mulheres e 70% entre os homens. Essas
duas últimas diferenças entre homens e mulheres não se mostraram
estatisticamente significativas, no nível de 0,05. Entretanto, apresentam
a mesma tendência observada no contexto indefinido, ou seja, maior
frequência de já que entre os homens e maior frequência de caso entre
as mulheres, nos dois contextos. Além disso, quando os três contextos
foram avaliados conjuntamente, a diferença entre homens e mulheres
mostrou-se estatisticamente significativa, no nível de 0,005.
Esses resultados mostram que as mulheres tendem mais do que
os homens à atribuição de postura epistêmica neutra (indicada pelas
respostas caso) e, correspondentemente, os homens mais do que as
mulheres à atribuição de postura epistêmica positiva (indicada pelas
respostas já que). Essa diferença, apesar de estatisticamente significativa,
não é grande, entretanto, limitando-se a cinco pontos percentuais no
total dos itens.
Além da maior ou menor tendência a atribuir ao falante uma
postura epistêmica neutra ou positiva, em qualquer dos três contextos,
outro aspecto a considerar é a maior ou menor tendência a seguir ou a
desconsiderar o contexto fornecido, de certeza ou de incerteza, nessa
atribuição de postura epistêmica.
Nas 76 mulheres pesquisadas, houve 955 respostas concordantes
com o contexto fornecido (490 respostas caso com contexto de incerteza
e 465 respostas já que com contexto de certeza), contra 413 respostas
discordantes do contexto fornecido (194 já que com contexto de incerteza
e 219 caso com contexto de certeza), num total de 1.368 respostas a
itens com contexto. Isso corresponde a uma porcentagem de 70% de
respostas concordantes com o contexto fornecido.
246
Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken
Nos 61 homens, houve 787 respostas concordantes com o contexto
fornecido (387 respostas caso com contexto de incerteza e 400 respostas
já que com contexto de certeza), contra 311 respostas discordantes do
contexto fornecido (162 já que com contexto de incerteza e 149 caso com
contexto de certeza), num total de 1.098 respostas a itens com contexto.
Isso corresponde a uma porcentagem de 72% de respostas concordantes
com o contexto fornecido.
A pequena diferença entre os dois sexos quanto à frequência de
respostas concordantes e discordantes não se mostrou estatisticamente
significativa. Também não foi significativa a diferença entre os dois
contextos fornecidos quanto à frequência de respostas concordantes e
discordantes dadas pelo conjunto de homens e mulheres. Conclui-se que
os contextos fornecidos influenciam igualmente os dois sexos, e que
essa influência manifesta-se com a mesma intensidade nos contextos
indutores de certeza e de incerteza.
3.2 Idade
Em relação à idade, a tabela a seguir indica as porcentagens de
respostas por faixa etária.
TABELA 2: Porcentagem da escolha da paráfrase com caso, em função
da faixa etária.
14-25
% Caso
51%
53%
37%
63%
Total
Contexto Indefinido
Contexto Indutor de Certeza
Contexto Indutor de Incerteza
247
26-49
% Caso
50%
49%
29%
72%
≥50
% Caso
52%
52%
20%
83%
Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero,
Idade e Escolaridade
Observa-se que, tanto no total, como no contexto indefinido, as
frequências de ambas as respostas situam-se em torno de 50%, nas três
faixas etárias. As pequenas diferenças registradas não são estatisticamente
significativas. Isso indica que nenhuma das faixas etárias tem maior
tendência a fazer uma atribuição de postura epistêmica positiva ou neutra,
com a consequente preferência pelas paráfrases com os conectores caso
ou já que, respectivamente.
Com contexto indutor de incerteza, entretanto, a frequência da
resposta caso aumenta com a faixa etária, assim como, com contexto
indutor de certeza, a frequência da resposta já que aumenta com a faixa
etária. A diferença entre as faixas etárias, em ambos os contextos, foi
estatisticamente significativa, no nível de 0,001. Na faixa mais jovem,
de 14-25 anos, a concordância com ambos os contextos é de 63%,
enquanto que na faixa mais idosa, de ≥50 anos, ela é de 80% e 83% para
os contextos de certeza e de incerteza, respectivamente.
Esses resultados mostram que, com o aumento da idade, aumenta
a concordância das respostas com o contexto indutor fornecido.
Os jovens são mais refratários à influência do contexto fornecido,
parecendo pautarem-se mais pelo contexto imaginativamente criado
por eles mesmos, ainda que este esteja em contradição com o contexto
fornecido.
3.3 Escolaridade
A tabela 3 apresenta os resultados quanto à escolaridade:
248
Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken
TABELA 3: Porcentagem da escolha da paráfrase com caso, em função
do nível de escolaridade.
Total
Contexto Indefinido
Contexto Indutor de Certeza
Contexto Indutor de Incerteza
EF
% Caso
51%
54%
33%
67%
EM
% Caso
51%
51%
33%
68%
ES
% Caso
50%
49%
21%
81%
Pode-se observar que, no total dos contextos, as diferenças entre os
níveis de escolaridade, em relação à frequência das paráfrases escolhidas,
são mínimas, não atingindo qualquer significância estatística. No contexto
indefinido, as diferenças observadas também não são estatisticamente
significativas. Entretanto, no contexto de incerteza, a frequência de
respostas caso aumenta com o aumento no nível de escolaridade mais
altos. Essa diferença entre os três níveis é estatisticamente significativa,
no nível de 0,001. Os números mostram que essa diferença se dá mais
acentuadamente entre os dois primeiros níveis, tomados em conjunto,
e o nível superior. De forma semelhante, no contexto de certeza,
embora a porcentagem de já que esteja empatada, em 67%, entre os dois
primeiros níveis de escolaridade, ela sobe para 79% no terceiro nível, e
essa diferença é estatisticamente significativa, no nível de 0,001.
Estes resultados, similares aos obtidos em relação à faixa etária,
mostram que o nível de escolaridade não se relaciona a qualquer
preferência por uma das paráfrases, por si mesma, mas que os níveis de
escolaridade superiores correlacionam-se com uma maior concordância
da paráfrase escolhida com o contexto fornecido. Na faixa EF, a
concordância é de 67% com os dois contextos, enquanto que na faixa
ES ela é de 79% e 81% para os contextos de certeza e de incerteza,
respectivamente.
249
Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero,
Idade e Escolaridade
3.4 Escolaridade e faixa etária
Combinando os resultados de faixa etária e de escolaridade,
verificamos que o subgrupo que deve apresentar a maior concordância
com o contexto fornecido é o de sujeitos com ≥50 anos e nível de
escolaridade superior. Por outro lado, o subgrupo que deve apresentar
a menor concordância é o de sujeitos de 14 a 25 anos com ensino
fundamental completo ou incompleto. Tabulando os resultados desses
subgrupos (Tabela 4), verificamos que o primeiro apresentou 87% e 88%
de concordância com os contextos indutores de certeza e de incerteza,
respectivamente, enquanto que o segundo apresentou apenas 57% e 53%
de concordância em relação aos mesmos contextos, respectivamente.
(Essa diferença também é estatisticamente significativa, no nível de
0,001.)
TABELA 4: Porcentagem da escolha da paráfrases com caso, por
sujeitos com 14-25 a. e EM versus sujeitos com ≥50 a. e
ES.
14-25 EF
% Caso
51%
56%
43%
53%
Total
Contexto Indefinido
Contexto Indutor de Certeza
Contexto Indutor de Incerteza
≥50 ES
% Caso
50%
49%
13%
88%
4 Resultados qualitativos e discussão geral dos
resultados
Como vimos, as mulheres tendem mais que os homens a interpretarem
as condicionais com se e verbo no indicativo como expressando postura
epistêmica neutra (parafraseável com caso). Isso pode significar que as
mulheres convivem melhor com uma situação de dúvida, e os homens
250
Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken
preferem as situações de certeza. Reconhecemos que esta inferência é
especulativa, pois não dispomos de dados que a sustentem diretamente.
Entretanto, observamos em nossos resultados uma diferença entre os
gêneros, e não podemos nos furtar a tentar propor uma interpretação para
ela. Admitindo-se tal diferença entre os gêneros quanto à preferência pela
certeza e à capacidade de conviver com a dúvida, talvez isso reflita uma
definição mais tradicional de papéis de gênero na cidade pesquisada, em
que cabe ao homem maior assertividade e à mulher maior flexibilidade.
Seria interessante verificar se a mesma tendência apareceria em uma
cidade mais cosmopolita, já mais liberta dessa visão tradicional sobre os
papéis de gênero. Por outro lado, a idade e a escolaridade não afetaram
a postura epistêmica atribuída ao enunciador de tais condicionais, em si
mesmas.
Foi interessante notar a presença de uma exceção a esse padrão
de diferenciação de gêneros, nos itens 12 e 20 do formulário. O item
12 tinha o enunciado: Talvez tenha pedra nesse arroz. Se tiver pedra, tem que
catar.5 Neste item, a frequência de respostas caso foi aproximadamente
a mesma em homens e mulheres (77% contra 74%). Já o item 20, com
contexto indutor de certeza, dizia: Esse arroz está com pedra. Se tem pedra,
tem que catar. Aqui, o padrão habitual inverteu-se, com as respostas caso
em 16% das mulheres contra 30% nos homens. Parece que, em relação
a esse conteúdo específico, muitas mulheres aceitaram prontamente
como um fato a presença de pedras no arroz, seja diante da afirmação
desse fato, seja diante da mera menção de sua possibilidade. Talvez
isso tenha acontecido devido a maior familiaridade delas com situações
semelhantes, ou maior aceitação da tarefa necessária de catar as pedras.
Curiosamente, entretanto, o item que apresentava o mesmo conteúdo em
contexto indefinido (item 4: Se tem pedra nesse arroz, tem que catar primeiro)
Reconhecemos que é mais frequente o feijão ter pedras do que o arroz e que a situação mais
típica é a de catar pedras no feijão. Teria sido mais adequado, portanto, termos usado o feijão
em nosso exemplo, mas só nos demos conta disso a posteriori. Acreditamos que isso não invalida
esse item de nosso formulário, entretanto, pois o arroz também pode ter pedras e a situação é
facilmente compreensível.
5
251
Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero,
Idade e Escolaridade
apresentou o padrão habitual, com respostas caso mais frequentes nas
mulheres que nos homens (51% contra 36%).
Notemos que as respostas discordantes do contexto fornecido
implicam uma rejeição ou desconsideração da postura epistêmica induzida
pelo mesmo. Para tentar explicar esse fato, temos que recorrer a uma
análise qualitativa dos resultados. Uma explicação para isso, que apareceu
muitas vezes em nosso inventário, é a de os sujeitos interpretarem as duas
frases desses itens como um diálogo. Assim, no item 12, por exemplo,
uma mulher pode ter interpretado que, se alguém diz Talvez tenha pedra
nesse arroz, deve ter uma razão para fazê-lo, e que portanto outra pessoa
pode responder Já que tem pedra, tem que catar, tomando como fato o que
a primeira sugeriu. Duas pessoas não precisam tem a mesma postura
epistêmica, o que justificaria a aparente inconsistência da resposta. Já no
item 20, diante da frase Esse arroz está com pedra, um homem que não faz
serviços de cozinha pode pensar que isso não lhe diz respeito, que não
quer saber disso, e se identificar com uma outra pessoa imaginada que
responderia: Caso tenha pedra, tem que catar, tratando a presença de pedras
no arroz como mera possibilidade. Vale registrar a explicação de um
homem para sua resposta discordante no item 20: “Parece ter, e quando
tem, tem que catar”. Apesar da afirmação Esse arroz está com pedra, ele
aceita apenas que o arroz parece ter pedras.
Vimos também que os contextos fornecidos influenciam igualmente
os dois gêneros. As diferentes faixas etárias e os diferentes níveis de
escolaridade, por outro lado, apresentam diferentes graus de sensibilidade
à influência do contexto fornecido. Os mais jovens e menos letrados
mostraram-se menos sensíveis à influência dos contextos fornecidos.
Novamente, para tentar explicar essa diferença, devemos recorrer aos
resultados qualitativos de nossa pesquisa. Ao serem indagados sobre
as razões de suas respostas discordantes, os mais jovens e menos
escolarizados deixavam claro que prendiam-se mais a um contexto por
eles mesmos imaginado, do que ao contexto fornecido. Isso pode indicar
252
Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken
que estes dão curso mais livre à sua imaginação, enquanto os mais velhos
e mais instruídos estão mais habituados a adaptar-se à informação
fornecida.
Por outro lado, não encontramos qualquer efeito da idade sobre a
atribuição de postura epistêmica em si, independente da influência do
contexto fornecido. Em outras palavras, não houve maior ou menor
tendência a atribuir a postura epistêmica positiva ou neutra a uma
frase condicional, em função da idade, seja nas frases com contexto
indeterminado, seja no conjunto dos três contextos. Isso significa
que não houve evidência favorável a qualquer hipótese relativa a uma
evolução da língua no que diz respeito à atribuição de postura epistêmica,
nem evidência favorável a uma diferença psicológica ou sociocultural
das faixas etárias quanto à mesma atribuição (hipóteses que havíamos
levantado em nosso planejamento de pesquisa).
De forma semelhante, não encontramos também qualquer efeito
da escolaridade sobre a própria atribuição de postura epistêmica,
independente da influência do contexto. Em outras palavras, a
escolaridade não causou maior ou menor tendência a atribuir a postura
epistêmica positiva ou neutra a uma frase condicional nas frases com
contexto indeterminado, ou no conjunto dos três contextos.
No plano metodológico, verificamos que a parafraseabilidade
diferencial mostrou-se um instrumento útil para estudar a postura
epistêmica atribuída aos enunciadores de frases condicionais, bem
como as diferenças nessa atribuição e na consideração dos contextos
fornecidos, em diferentes grupos de falantes6.
6
Priscila Mattos Monken teve bolsa de mestrado da FAPERJ durante esta pesquisa. Agradecemos
a André Fernandes Meirelles e a Nilson Sérgio Peres Stahl pela ajuda na análise estatística dos
resultados.
253
Atribuições de Postura Epistêmica às frases Condicionais em Função de Gênero,
Idade e Escolaridade
Referências
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254
Gilberto Gomes e Priscila Mattos Monken
GOMES, Gilberto & MONKEN, Priscila Mattos. Postura epistêmica
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MONKEN, Priscila Mattos. Análise semântico-pragmática do
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NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português.
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1997. p.2 89-306.
255
SUBSTITUIÇÃO DE SER POR HAVER NAS
CONSTRUÇÕES EXISTENCIAIS DO PORTUGUÊS:
UM ESTUDO DIACRÔNICO
Elisângela GONÇALVES
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
RESUMO
Este trabalho se volta para o estudo de mudanças que envolvem construções existenciais e
possessivas no período que compreende os séculos XIII a XVI1/2, trazendo a contribuição
Seguindo CASTRO (2006), tomamos como português arcaico o período entre os séculos XIII
e a primeira metade do século XIV. Já o português médio é um período de transição entre o
português arcaico e o português clássico (período fronteiriço entre os séculos XIV e XV); o
período entre os séculos XVI e XVII, por sua vez, é conhecido como português clássico. Essa
visão é compartilhada por MAIA (1995) e BECHARA (1991). CARDEIRA (2005), ao contrário,
define esse ponto de vista como “enganador”, considerando o português médio como um
período crítico, fundamental na história da língua portuguesa. CASTRO (2006, p. 150) cita “duas
simétricas ‘franjas de separação’: uma coincidindo com a segunda metade do séc. XIV [...] e outra
franja de igual duração, esta sim assegurando uma certa forma de transição entre o português
médio e o português clássico, que CARDEIRA caracteriza como um patamar de estabilização.
Depois disso, virá o Português Clássico. Pensando nessa noção do português médio como período
de transição, Charlotte Galves sugeriu que nossa visão de competição de gramáticas parece ser
muito permeada pela noção moderna de norma. Assim, poderíamos pensar na existência de duas
normas e a substituição de uma pela outra. A língua portuguesa inicial (a do norte - o galegoportuguês) vai ser substituída por um novo dialeto, o de Lisboa a partir do século XIV. Segundo
SILVA NETO (1961), trata-se de uma língua comum, nascida do contato de dialetos na grande
cidade. MATTOS E SILVA (1994) chama de português arcaico o período que vai do século XII
ao XIV).
2
GALVES, NAMIUTI & SOUSA (2006) consideram que o surgimento de uma nova gramática
parte do processo de aquisição da língua, o que faz com que levem em conta na periodização a
data de nascimento do autor e não a data de escrita do texto (havendo divergências da proposta
de periodização por elas apresentada em relação à proposta tradicional), embora também tomem
o português médio como um período fronteiriço entre os séculos XIV e XV. As autoras verificam
dois pontos de inflexão (correspondentes ao surgimento de novas gramáticas) na periodização
da história da língua portuguesa: “a fronteira entre os séculos 14-15, e o início do século 18” (p.
51). Apesar de compartilharmos desse ponto de vista, não pudemos fazer nossa análise com base
na data de nascimento do autor, visto (1) a impossibilidade de precisarmos, em muitos casos,
qual é o autor do texto; (2) a falta de informações de qualquer tipo sobre o autor, em outros
casos.
1
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 257-299, jan./jun. 2014
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
de analisar tais mudanças sob uma perspectiva formal, tentando mostrar como se caracteriza
a estrutura sintática das orações existenciais com os verbos ser e haver ao longo do tempo.
Insere-se numa linha de pesquisa que parte do pressuposto de que as chamadas construções
locativas (locativas, possessivas e existenciais) provêm de uma mesma estrutura subjacente
(cf. LYONS, 1968; CLARK, 1978; BENVENISTE, 1976; FREEZE, 1992;
KAYNE, 2006). Buscaremos explicar essas mudanças com base na noção de “competição
de gramáticas” (KROCH, 1994). Tentaremos, todavia, adequar essa noção à de que
haver seria derivado de ser por meio de movimento e incorporação (conforme proposta de
FREEZE, 1992), pautando-nos num modelo não-lexicalista, como o da Morfologia
Distribuída (HALLE & MARANTZ, 1993), segundo a qual os itens funcionais não
vêm “prontos” do léxico, mas são obtidos por meio da combinação de traços no decorrer
da derivação sintática. Este consistirá no diferencial desta pesquisa em relação a outras já
desenvolvidas sobre as mudanças envolvendo esses verbos na história do português.
ABSTRACT
This paper studies existential and possessive changes in 13th to 16th centuries, contributing
to the analysis of those changes under a formal perspective, aiming to show the syntactic
structure feature of existential constructions with the verbs “ser” and “haver” over time. It
follows a line of research that considers the so called locative constructions (locative, possessive
and existential) have the same subjacent structure (cf. LYONS, 1968; CLARK, 1978;
BENVENISTE, 1976; FREEZE, 1992; KAYNE, 2006). We intend to explain
such changes based on the notion of “grammar competition” (KROCH, 1994). Otherwise,
we will try to accommodate this notion to that according to the verb “haver” would be
formed by movement and incorporation (according to FREEZE, 1992), based on a nonlexicalist model, Distributed Morphology (HALLE & MARANTZ, 1993), according
to functional itens are obtained by features matching during syntactic derivation. This is
the point that differs this research from others which study changes related to those verbs in
Portuguese history.
PALAVRAS-CHAVE
Construções Existenciais. Mudança. Português. Teoria Gerativa. Verbo Haver. Verbo Ser.
258
Elisângela Gonçalves
KEYWORDS
Change. Existential Constructions. Generative Theory. Portuguese. Verb “Haver”. Verb
“Ser”.
Introdução
As construções existenciais têm sido foco de pesquisa de muitos
investigadores, sincrônica ou diacronicamente. Vários estudos têm
se voltado para a relação entre os verbos que compõem construções
possessivas e existenciais3. Isso porque, conforme alguns estudiosos,
essas construções possuem uma mesma estrutura subjacente (cf. LYONS,
1968; CLARK, 1978; BENVENISTE, 1976; FREEZE, 1992; KAYNE,
2006). Algumas pesquisas sobre o português tratam do percurso histórico
dos verbos ser, estar, haver e ter, mostrando a interrelação entre eles na
substituição de um pelo outro num dado padrão sentencial, tais como
as de MATTOS E SILVA (1995, 1996, 1997, 2002a, 2002b), RIBEIRO
(1996) e AVELAR (2004, 2006a, 2006b, 2007). Esses trabalhos leva
em conta o fato de os verbos serem intercambiáveis na realização de
diferentes funções, como a de auxiliares, possessivos e existenciais.
MATTOS E SILVA (1995) relata que a variação entre as formas seer
e habēre em construções existenciais já era verificada no latim vulgar,
representadas pelo verbo esse no latim clássico, no qual, habere estava em
competição com tenere em construções possessivas nos séculos IV e V.
No latim vulgar, aver começou a perder os significados do verbo habere
(do latim clássico: possuir, obter, manter, reter, segurar, conter, deter, entre
outros), que passaram ao domínio do verbo teer, restringindo-se somente
ao significado de possuir4. Isso nos mostra que essas não consistem em
mudanças iniciadas no português, mas numa “herança” latina. No
3
Quero agradecer às professoras Charlotte Galves, Ilza Ribeiro e Evani Viotti, que contribuíram
para a elaboração deste trabalho.
4
Segundo MATTOS E SILVA (1995), no português arcaico, por outro lado, haver ainda ocorre
com esses significados.
259
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
português histórico, de acordo com MATTOS E SILVA (1995, 1996,
1997, 2002a, 2002b), haver-existencial sobrepõe-se a ser-existencial no século
XV ((1a) e (1b), respectivamente), e ter-possessivo, a princípio usado na
expressão de posse circunstancial, prevalece sobre haver-possessivo em
todos os contextos de posse na metade do século XVI (seguem em (2a)
e (2b), respectivamente, sentenças com ter e haver possessivos). O verbo seer
ainda variava com star nas construções locativas/situativas e construções
copulares transitórias, como pode ser visto nas sentenças em (3a) e (3b),
funções que passaram a ser exercidas somente por estar no século XVI.
Nesse século, a autora registra um contexto em que o verbo ter parece
admitir tanto a interpretação de posse quanto a de existência, conforme (4).
(1) a.
En hua abadia huu tesoureiro avia.
b. non foi quem podesse (MATTOS E SILVA, 1997:262)
(2) a.
Que os çegos a nam tenham, ainda que ouçam cousas de
que se possa haver.
b. E estas meas voages l, m, r, se chamam líquidas e
houveram este nome açerca dos latinos. (MATTOS E SILVA,
2002b:128)
(3) a. Este rey dom Afonso, seendo en Castella en este nono anno
do seu reinado[...] (Crônica de Afonso X, Séc. XIV. Fonte:
CIPM)
b. [...] e todas aquelas cousas que Deus mi deu em poder
sten em paz e em folgãcia. (MATTOS E SILVA, 2002a:105)
(4) [...] se metiam [eles] em almaadias duas ou três que hy
tiinhan
[...] (MATTOS E SILVA, 1996:187)
De acordo com RIBEIRO (1996), o emprego existencial de aver se
inicia no Português Arcaico, já que, no latim clássico, as existenciais eram
realizadas por esse. Segue em (5) sentenças existenciais com os verbos
ter, haver e ser, retiradas por RIBEIRO (1996:373) do Índice Analítico do
Vocabulário de Os Lusíadas
260
Elisângela Gonçalves
(5)
a. .......... e assim caminha
Para a povoação, que perto tinha (Lus. V, 29)
b. Que aqui gente de Cristo não havia (Lus. I, 102)
c.
Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha (Lus. III, 23)
Menciona o fato de, no Português Arcaico, o verbo ser fazer parte
das construções locativas ao lado de estar, que prevaleceu nessas
construções. Ressalta o fato de, nas existenciais, ser e haver possuírem
um traço locativo, próprio das construções locativas. Foi justamente a
perda desse traço que fez com que ser deixasse de ser verbo existencial
e auxiliar temporal (segundo RIBEIRO, o traço locativo era responsável
pela caracterização de um verbo ser ou não auxiliar em português) 5.
Ainda, “ser caracteriza-se no PA sempre como um auxiliar verbal,
nas perifrásticas passivas e ativas, e nas construções existenciais e
locativas. No PB contemporâneo conserva só o seu estatuto de
auxiliar nas perífrases passivas” (RIBEIRO, 1996:377, grifo nosso).
Assumindo a hipótese da existência de um paradigma locativo
envolvendo sentenças locativas, possessivas e existenciais, AVELAR
(2004) propõe que ter-existencial é formado pelo complexo de traços v+T
no componente morfológico. A esse complexo são associados outros,
de modo a obterem-se os demais verbos. Assim sendo, v+T+D leva
à obtenção de estar; somando-se Top a esse complexo (v+T+D+Top),
gera-se o verbo copulativo ser; o complexo v+T+D+C forma o que se
tem denominado na literatura terceira cópula (cf. KATO, 2007). Enquanto
MATTOS E SILVA e RIBEIRO afirmam a inexistência de ser-existencial
no PB, AVELAR não menciona a possibilidade de tais construções nessa
variedade do português6.
RIBEIRO (2006, 1996:361) mostra, ainda, que os verbos que compõem as sentenças existenciais
são os mesmos que compõem os tempos compostos. Esses verbos possuem em comum o fato
de se caracterizarem “como verbos auxiliares, não atribuidores de papel temático”.
6
Em sua tese de Doutorado, Gonçalves (2013) analisou sentenças existenciais com o verbo ser
no Português Brasileiro Contemporâneo, com base em dados orais de falantes de Vitória da
Conquista e Salvador, ambas cidades da Bahia, e de Campinas-SP e São Paulo (capital).
5
261
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
Neste trabalho, vamos nos centrar nas sentenças existenciais
construídas com ser e haver, conforme os exemplos a seguir.
(6)
a.
b.
c.
[...] djzendo q(ue) era uerdade q(ue) antre elles fora
(con)tenda. (Textos notariais in Clíticos da História do
Português, Séc. XV. Fonte: CIPM)
Titolo p(ri)m(eyr)o q(ue) fala das leys e som XIX leys
en este titolo. (Alphonse X, Primeyra Partida, Séc. XIV.
Fonte: CIPM)
[...] diz a Sancta Escriptura que nõ é huu mayor enmigo
ca aquel que dana a boa fama do outro. (Afonso X, Foro
Real, 1280(?). Fonte: CIPM)
Mostramos no par de sentenças em (7) abaixo que o verbo ser ocorre
em contexto análogo ao que ocorre o verbo haver, sem que haja aparente
prejuízo ou alteração de sentido.
(7)
a.
b.
Falando primeiro da soberva que procede da presunçom
e desejo de propria vantagem, em ella sam tres partes.
(Leal Conselheiro, Séc. XIV. Fonte: CIPM)
Do entendimento nosso, segundo minha declaraçom, ha
VII partes. (Leal Conselheiro, Séc. XIV.Fonte: CIPM)
Tomaremos como base nesta análise o Blocking Effect (Aronoff 1976),
princípio a que KROCH (1994) recorre para analisar fenômenos de
variação e mudança linguísticas. KROCH (1994:1-2) concebe os doublets
(duplos) como reflexos de ‘competição de gramáticas’, dado que, de
acordo com o Blocking Effect, os “doublets are always reflections of unstable
competition between mutually exclusive grammatical options”. Nossa
abordagem se pautará, entretanto, numa perspectiva não-lexicalista,
da Morfologia Distribuída, conforme proposto por EMBICK (2007),
262
Elisângela Gonçalves
que discorda dessa visão “tradicional” de blocking effect, argumentando
que, na formação dos comparativos e superlativos do inglês, por
exemplo, a forma sintética smarter não bloqueia a forma analítica *more
smart – formas analíticas são disponíveis em outros contextos, como
more intelligent. Casos como esse não envolvem bloqueio baseado em
competição entre palavras ou entre palavras e sintagmas (isso já fora
notado por DI SCIULLO & WILLIAMS (1987). Ao contrário, efeitos
de bloqueio se limitam a efeitos de mecanismos distintos, como (1)
Inserção Vocabular em um determinado morfema, e (2) operação de
processos combinatórios (EMBICK, 2007:1). O seu trabalho examina
a formação dessas estruturas, buscando mostrar como é possível dar
conta de efeitos de bloqueio em uma abordagem que envolve sintaxe e
morfologia.
Segundo o autor,
[…] competition is restricted to one aspect of the
derivation of complex forms, namely the consideration
of the phonological form of single nodes (morphemes).
There is no competition at the level of outputs, so that
larger objects like “words” do not compete with one
another. Consider, for example, tak-en versus *tak-ed.
Tak-en exists only as the result of a particular derivation,
and has no independent existence on a list like the VI
that inserts -(e)n in certain participial structures does.
*Tak-ed is not derived at all; i.e. it could only exist if the
grammar were altered.
[…] There is therefore no sense in which intelligenter
and more intelligent exist on lists that are consulted for
insertion, nor does the grammar generate both intelligenter
and more intelligent and select a winner. Rather, the syntax
and PF generate a structure which, after Vocabulary
Insertion, receives the phonological form of more
intelligent. (EMBICK, 2007:6-7)
263
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
Também assumimos nesta pesquisa pressupostos minimalistas da
Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1995).
Temos por objetivo: (a) demonstrar quando o verbo haver, que
expressava posse, passou a designar existência, substituindo ser como
verbo existencial canônico do português; (b) mostrar sintaticamente
(estruturalmente) quais complexos de traços licenciam a obtenção do
verbo ser-existencial em oposição ao verbo haver-existencial, o que distingue
este trabalho de outros, como o de MATTOS E SILVA (1989, 1994,
1996, 1997, 2002) e RIBEIRO (1996), seguindo a linha de trabalhos
que consideram que o verbo de posse/existência é resultado de uma
derivação sintática e que são obtidos a partir de uma base comum; e (c)
verificar se essa substituição de ser por haver na expressão de existência é
ou não decorrente da ação do Blocking Effect nos moldes aqui assumidos
(conforme explicitado acima).
Analisamos textos dos séculos XIII-XVI, provenientes do Corpus
Informatizado do Português Medieval (CIPM7)e do Corpus Tycho Brahe8 9 . Foram
coletados 601 dados10 (204 sentenças existenciais e 397 possessivas) que
foram submetidos ao Goldvarb 2001, programa usado como ferramenta
metodológica, que, por meio de tratamento estatístico/probabilístico,
aponta os fatores mais importantes para a ocorrência de uma dada
variável dependente11. Considerando que estamos analisando a aplicação
O CIPM conta com a organização de uma equipe do Centro de Lingüística da Universidade
Nova de Lisboa dirigida pela professora Maria Francisca Xavier e sob a assessoria de Anthony
Kroch (Universidade da Pensilvânia) e Stephen Parkinson (Universidade de Oxford). Encontramse nos materiais já digitalizados em seu acervo documentos produzidos nas regiões de Portugal
e Galícia entre os séculos XII e XVI (textos notariais, crônicas e cantigas).
8
Procuramos analisar os dados, considerando (a) os séculos divididos por quinquênios; e (b)
os textos divididos de acordo com os seguintes gêneros textuais: documentos notariais, textos
narrativos e textos dissertativos. Todavia isso não foi possível no século XIII, devido à reduzida
quantidade de dados, tampouco no XVI, visto que, na segunda metade desse século, não
encontramos documentos notariais nem textos dissertativos.
9
As referências desses textos constam no final deste artigo.
10
Conforme ocorre nos dados analisados por MATTOS E SILVA (2002b), nesta pesquisa
também são poucas as ocorrências de construções existenciais nos textos.
11
De acordo com MOLLICA (1992: 10), “a variação lingüística constitui fenômeno universal e
pressupõe a existência de formas lingüísticas alternativas denominadas variantes”, que, por sua
7
264
Elisângela Gonçalves
de construções existenciais com o verbo haver em oposição às existenciais
com o verbo ser, nas rodadas desse Programa, estão sendo levados em
conta os valores percentuais e pesos relativos referentes às existenciais
com o verbo haver. O programa atribuiu o input de 0.750 à aplicação da
regra, ou seja, às ocorrências de existenciais com o verbo haver, o que
significa que, no corpus como um todo, levando-se em consideração todos
os grupos de fatores, a ocorrência do verbo haver foi qualitativamente
mais importante que a de ser.
Dividimos este trabalho em duas etapas. Na primeira, apresentamos
(na seção 2) propostas, dentro do arcabouço gerativista, que abordam
a relação entre construções existenciais e possessivas, considerando o
fato de ambas serem provenientes de uma mesma base estrutural. A
seção seguinte se estrutura da seguinte forma: (a) em uma primeira
fase, analisamos quantitativamente os dados, com base em fatores
condicionadores intra e extralinguísticos, observando a variação/
mudança que envolvem os verbos ser e haver nas construções existenciais
(e, por necessidade, voltando-nos para a substituição de haver por ter na
expressão de posse); (b) em uma segunda fase, procedemos à análise
qualitativa dos dados, apresentando hipóteses em termos teóricos para o
fato de o verbo haver ter passado de possessivo a existencial, ocupando
o lugar do verbo ser. Na segunda etapa, na seção 4, apresentamos, em
linhas gerais, a proposta de ‘competição de gramáticas’ (KROCH,
1994), discutindo os ‘desafios’ que se coloca ao linguista histórico, ao
lidar com dados de épocas passadas, para mostrar que a variação ou
mudança linguística observada nos textos escritos se dá entre opções
gramaticalmente incompatíveis, refletindo, assim, competição entre
gramáticas.
vez, consistem em formas alternativas que representam um fenômeno em variação, conhecido
como variável dependente. Um exemplo de variável lingüística (ou fenômeno variável) dado
pela autora é a concordância entre o verbo e o sujeito, que “se realiza através de duas variantes,
duas alternativas possíveis e semanticamente equivalentes: a marca de concordância no verbo ou
a ausência da marca de concordância” (p. 11). A concepção de variável dependente provém do
fato de que o uso das variantes é condicionado por grupos de fatores (variáveis independentes)
sociais ou estruturais.
265
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
1 Relação entre construções existenciais e construções
possessivas
Se tomarmos como verdadeira a hipótese de que construções
possessivas, existenciais (e copulativas) provêm de uma mesma estrutura
subjacente, uma estrutura inerentemente locativa construída a partir de
um verbo copulativo (LYONS, 1968; CLARK, 1978; BENVENISTE,
1976; FREEZE, 1992; KAYNE, 2006), acreditamos que poderemos
explicar melhor as mudanças envolvendo os verbos ser e haver existenciais
na história do português.
FREEZE (1992:565), numa perspectiva gerativista, propõe que
construções locativas, como em (8b), existenciais, (8c), e possessivas, em (8d’)
abaixo, são geradas de uma única estrutura subjacente em torno de um
verbo copulativo, em que a preposição é o núcleo do sintagma predicativo,
como demonstrado com exemplos do russo12. Os movimentos a partir
dos quais essas construções são formadas se baseiam na definitude do
Tema: (i) um Tema definido é movido para o início da sentença (posição
de sujeito, [Spec,IP]), gerando um predicado locativo, (8b); (ii) um Tema
indefinido permanece in situ e o sintagma preposicionado se move para a
posição de sujeito, o que leva à obtenção de dois padrões sentenciais: (iia)
o existencial, quando o locativo possui o traço [-humano], (8c); (iib) e o
possessivo, quando o locativo tem, preferencialmente, o traço [+humano],
(8d) e (8d’).
Essa estrutura é composta por uma cópula, um Tema e um locativo; os dois últimos gerados
dentro do Sintagma Preposicionado (PP).
12
266
Elisângela Gonçalves
Para as línguas românicas, FREEZE (1992:566) prevê uma
arquitetura diferente da apresentada acima, que conta com a presença
do que ele chama proforma (clítico locativo y), conforme representado em
(9) a seguir, com um exemplo do francês:
267
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
Para esse autor, a proforma nessas línguas não ocupa a posição de
sujeito, visto no francês essa posição ser ocupada pelo quase-argumento
il (expletivo nos termos de CHOMSKY, 1995, conforme mostraremos
adiante). Propõe, assim, que a proforma é uma realização do traço de
Infl em PF (Forma Fonológica), sendo lexicalmente inseparável de AGR
(concordância) e/ou TNS (tempo), mas nunca adjacente ao sintagma
locativo, além de ter uma relação de precedência estreita com este
(evidências do seu caráter locativo).
Com relação às possessivas, a sua unidade com as existenciais é evidenciada
em línguas como o hindi, em que ambos os padrões sentenciais
apresentam os mesmos constituintes na mesma ordem, como podemos
ver em (10). Conforme afirmado acima, é o traço [±humano] que
diferencia possessivas de existenciais.
268
Elisângela Gonçalves
(10) Hindi:
a.
kamree-ẽẽ
aadmii hai.
room.OBL-in man
COP.3sg.PRES
LOC]
‘There is a man in the room.’
b.
larkee-kee
paas
kuttaa hai.
boy.OBL-GEN proximity dog
COP.3sg.PRES
[+LOC]
‘The boy has a dog.’ (lit. ‘By the boy is a dog.’) (FREEZE,
1992:567)
que se refere à forma verbal empregada nas possessivas, em algumas
línguas, como o português, o possuidor, que é gerado dentro do sintagma
preposicionado (PP), se move para a posição de sujeito e a preposição
(P), núcleo do PP, permanece in situ, adjacente a I, obtendo-se a forma
está com, conforme (11) a seguir. Quanto ao verbo ter (assim como o verbo
inglês have), o autor propõe que este é obtido por meio da incorporação
da preposição (P) a Infl, segundo o exemplo em (12).
(11) O menino está com fome.
(12) O menino tem fome. (FREEZE, 1992:567)
KAYNE (2006:16) se baseia na proposta de FREEZE (1992) e
SZABOLCSI (1983, 1994) de que as possessivas são originadas a partir
das existenciais. Demonstra a equivalência entre as mesmas apontando a
possibilidade de o clítico ci, constituinte que está presente nas existenciais,
ocorrer em sentenças possessivas em alguns dialetos do italiano, como
em (13) abaixo.
(13) Gianni c’ha una sorella. (‘G ci has a sister’) (KAYNE, 2006:16)
269
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
A derivação das possessivas segue a das existenciais pelo fato de
seu verbo tomar um único argumento (a despeito da possibilidade de
adicionar-se um locativo):
(14) ...[ci una sorella di Gianni]indef.DP... --> raising of ‘una sorella di
Gianni’
...[una sorella di Gianni]i...[ci ti]... --> merger of V
...è [una sorella di Gianni]i...[ci ti]... --> remnant movement
...[ci ti]k è [una sorella di Gianni]i...tk...
C’è una sorella di Gianni... (‘there is a sister of G...’) (KAYNE,
2006:17)
Até o ponto a que se chegou na derivação acima, obtém-se uma
sentença existencial, ‘C’è una sorella di Gianni...’ (‘there is a sister of
G...’). Seguindo a derivação, o possuidor Gianni é movido de dentro do
sintagma ‘una sorella di Gianni’ para a posição de sujeito, obtendo-se
uma sentença possessiva.
(15) ...[ci ti]k ha [una sorella Gianni]i...tk... --> raising of the
possessor
...Giannim [ci ti]k ha [una sorella tm]i...tk... (KAYNE, 2006:17)
Para KAYNE, as existenciais de todas as línguas românicas possuem,
na posição de sujeito, tanto clíticos locativos, do tipo do y (considerados
pelo autor como um ‘modificadores dêiticos’, na medida em que é gerado
juntamente com o DP a que modifica dentro de uma small clause)13 quanto
um quase-argumento, como il (ambos do francês). Tanto o clítico como
o quase-argumento poderão ser nulos em algumas línguas.
13
O foco de seu texto é discutir o papel desses constituintes nas sentenças existenciais e
possessivas das línguas românicas, e demonstrar que esses não são, de fato, expletivos: y, hi, ci
são modificadores dêiticos que são gerados junto com o associado (a que modificam) e il é um
quase-argumento.
270
Elisângela Gonçalves
Consideraremos em nossa análise as hipóteses de FREEZE (1992) e
KAYNE (2006) de que clíticos locativos (ou, apenas, locativos) e quaseargumentos entram na composição das sentenças existenciais das línguas
românicas (numa maneira a ser explicitada), discutindo o seu papel na
formação das existenciais com os verbos ser e haver, bem como a de que
as construções possessivas são geradas a partir das existenciais.
2 Substituição de ser por haver nas construções
existenciais
2.1 Variação entre ser e haver existenciais – condicionadores
extralinguísticos
Na Tabela 1 abaixo, podemos ver que o verbo ser é mais representativo
que haver nas construções existenciais no século XIII, conforme
demonstra o peso relativo que as construções com ser apresentam nesse
período: 0.823. A situação mantém-se assim até a primeira metade
do século seguinte, em que o peso relativo aponta o fato de esse
período ainda favorecer o emprego de ser-existencial (0.648). Observase, entretanto, uma mudança de comportamento quanto ao emprego
das existenciais no terceiro período (1350-1399), cujo peso relativo de
0.614 leva ao uso de haver. A partir de então, todos os pesos relativos
dos séculos seguintes favorecem a ocorrência das existenciais com esse
verbo, até que, na segunda metade do século XVI, haver já substitui
por completo o verbo ser nesse tipo de construção. O que podemos
notar na Tabela 1 é que nem sempre peso relativo e valores percentuais
“caminham juntos”. Isso pode ser observado no período de 1300-1349,
em que, embora os percentuais de ocorrências de haver sejam superiores
aos de ser (respectivamente, 59% e 41%), em termos de peso relativo,
esse período é selecionado como significativo para a ocorrência de ser-
271
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
existencial, ou seja, esse fator, considerado com os demais fatores (sejam
linguísticos ou extralinguísticos), está favorecendo o emprego de ser nas
existenciais.
TABELA 1: Verbo Ser Existencial, de acordo com o Século
SÉCULO
Ser
Haver
VERBO
N
T
( %)
p. r.
N
T
( %)
p. r.
XIII
23
39
59
0.823
16
39
41
0.177
1300-1349
16
39
41
0.648
23
39
59
0.352
1350-1399
16
37
43,2
0.386
21
37
56,8
0.614
1400-1449
6
21
28,6
0.139
15
21
71,4
0.861
1450-1499
6
17
35,3
0.264
11
17
64,7
0.736
1500-1549
4
16
25
0.338
12
16
75
0.662
Quanto às construções possessivas, haver se mantém como verbo
possessivo canônico do português até a segunda metade do século XIV,
entre os períodos 1 a 3 (como indicado tanto em termos percentuais,
respectivamente, 78,4%, 66,7%, 77,2%, quanto em pesos relativos
(respectivamente, 0.805, 0.670, 0.828)). Entretanto, considerando o
peso relativo, verificamos uma variação entre os empregos de ambos
os verbos na primeira metade do século XV, o que é muito significativo
considerando o ponto de vista de GALVES, NAMIUTI & SOUSA
(2006) de que, num processo de mudança, deve-se olhar para o momento
inicial (de surgimento das novas formas), não para quando a mudança
já está concluída. Nossos resultados condizem com o que apontam as
autoras, isto é, com o fato de um período de inflexão na história da
língua portuguesa ser a fronteira entre o século XIV e o XV. A virada
se dá no período seguinte (1450-1499), em que o verbo ter é favorecido
por peso relativo de 0.809, ocorrendo o mesmo no século seguinte
272
Elisângela Gonçalves
(peso relativo de 0.888), até que não encontramos nos dados nenhuma
ocorrência de haver-possessivo na segunda metade do século XVI. Esses
resultados podem ser conferidos na Tabela 2 a seguir.
TABELA 2: Verbo Haver Possessivo, de acordo com o Século
SÉCULO
Haver
VERBO
Ter
N
T
( %)
p. r.
N
T
( %)
p. r.
XIII
105
134
78,4
0.805
29
134
21,6
0.195
1300-1349
46
69
66,7
0.670
23
69
33,3
0.330
1350-1399
61
79
77,2
0.828
18
79
22,8
0.172
1400-1449
62
100
62
0.586
38
100
38
0.414
1450-1499
16
95
16,8
0.191
79
95
83,2
0.809
1500-1549
11
126
8,7
0.112
115
126
91,3
0.888
Concluímos que, à medida que o verbo haver vai espraiando seu
uso entre as construções existenciais, vai perdendo seu uso entre as
possessivas. Em termos de progressão, observamos que a expansão do
verbo haver-existencial se dá mais rapidamente que a do verbo ter-possessivo,
pois as ocorrências com o primeiro já superam as construções com serexistencial no terceiro período, enquanto as construções com ter-possessivo só
ganham projeção sobre as construções com haver-possessivo no período 5.
Na próxima seção, tentaremos explicar, em termos teóricos, o que
motivou essas mudanças.
Outro fator relevante é o gênero textual14: documentos notariais, textos
narrativos (crônicas) e textos dissertativos (normas sobre a conduta,
comportamento a ser adotado na vida em sociedade).
De modo a obtermos alguma indicação sobre a dinâmica da
mudança, decidimos cruzar o grupo de fatores gênero textual com século.
14
Não entraremos no mérito da terminologia ‘gêneros textuais’, deixando de lado o fato de que,
segundo algumas teorias voltadas para a análise textual, documentos notariais não consistiriam
num gênero textual, por exemplo.
273
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
Para a análise desses grupos, tivemos que descartar os dados do século
XVI, já que, na primeira metade desse século, não foram encontrados
textos dissertativos e, na segunda, só encontramos textos do gênero
narrativo, o que poderia comprometer a análise. Como podemos ver na
Tabela 3 abaixo, no século XIII, o verbo ser-existencial era mais usado que
haver tanto nos documentos notariais, com 86% de ocorrências, quanto
nos textos dissertativos, com 60%. Ambos os verbos variam nos textos
narrativos, em que ser apresenta percentual de 52% e haver, de 48%.
Todavia, é neste tipo de texto que haver começara a ter maior projeção
nas construções existenciais nos séculos posteriores. Na primeira metade
do século XIV, ser continua a se destacar nos documentos notariais, com
67%, enquanto haver vai ganhando espaço nas narrações, com 65%,
bem como nos textos dissertativos, em que varia com haver, cada um
apresentando 50% de ocorrências. No segundo quinquênio desse século,
justamente quando haver se sobrepõe a ser nas existenciais, conforme
demonstramos na Tabela 1, o emprego de haver se sobressai ao de ser nos
documentos notariais, com 67%, e nas narrações chega a 100%. Ambos
continuam a variar nas dissertações: ser com 54% e haver com 46%.
O mesmo quadro se delineia no período de 1400-1449, em que haver
alcança 100% de ocorrências tanto nos documentos notariais quanto
nas narrações, variando com ser nos textos dissertativos, com 54% para
46% de ser. Os resultados obtidos na segunda metade do século XV são
curiosos e não encontramos uma explicação para eles, pois ser apresenta
67% de ocorrências nos documentos notariais e varia com haver nas
narrações, com 50%; haver predomina nas dissertações, com 88%.
274
Elisângela Gonçalves
TABELA 3: Verbo Haver Existencial, de acordo com o Gênero Textual
e o Século15
GÊNERO
SÉCULO
DOCUMENTO
NOTARIAL
SER
HAVER
NARRAÇÃO
SER
DISSERTAÇÃO
HAVER
SER
HAVER
n.
%
n.
%
n.
%
n.
%
n.
%
n.
%
III
6
86
1
14
14
52
13
48
3
60
2
40
1300-1349
4
67
2
33
11
35
20
65
1
50
1
50
1350-1399
1
33
2
67
0
0
6
100
15
54
13
46
1400-1449
0
0
1
100
0
0
7
100
6
46
7
54
1450-1499
2
67
1
33
3
50
3
50
1
12
7
88
Os dados acima nos mostram que os textos narrativos são a porta de
entrada para o verbo haver-existencial, enquanto os dissertativos consistem
no contexto de resistência para ser.
Também, a fim de observarmos a dinâmica da mudança, analisamos,
Tabela 4 a seguir, como se comporta o grupo de fatores Definitude do
Tema ao longo do tempo, constatando que o verbo haver já se destaca
com DPs indefinidos desde o século XIII, com 62%, com os quais
sempre mantém percentuais superiores aos de ser; a partir da primeira
metade do século XIV, sobressai-se a ser, de um modo geral, com 75%.
Ao contrário, nunca obtém percentuais elevados com temas definidos.
A segunda metade desse século chama a atenção pelo fato de haver e ser
variarem com todos os tipos de DPs.
Se observarmos atentamente, há uma diferença significativa quanto à quantidade de dados com
haver existencial, pois nesta tabela estes totalizam 98 (sendo que no cômputo total as ocorrências
com haver existencial somam 219). Isso se explica devido a alguns fatores terem sido excluídos,
como, por exemplo, os dados do século XVI, pelo fato de contarmos essencialmente com textos
narrativos nesse período.
15
275
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
TABELA 4: Verbo Haver Existencial, de acordo com a Definitude do
Tema e o Século16
DEFINITUDE
INDEFINIDO
BARE NOUN16a
SER
SER
DEFINIDO
SÉCULO
HAVER
HAVER
SER
HAVER
n.
%
n.
%
n.
%
n.
%
n.
%
n.
%
III
5
38
8
62
3
75
1
25
2
67
1
33
1300-1349
1
8
11
92
1
25
3
75
6
100
0
0
1350-1399
8
42
11
58
2
50
2
50
1
50
1
50
1400-1449
1
14
6
86
0
0
4
100
4
100
0
0
1450-1499
1
12
7
88
1
33
2
67
1
50
1
50
Os grupos de fatores sociolinguísticos serão de suma importância na
discussão a ser estabelecida na seção 4, quando abordaremos a variação e
a mudança linguísticas com base na noção de ‘competição de gramáticas’,
segundo KROCH (1994).
Assim como ocorreu na Tabela 2, nesses resultados não está representado o total de ocorrências
nem do verbo haver (148 de 219 ocorrências) nem do verbo ser (41 de 71 ocorrências). Isso se
deve à exclusão de alguns fatores que não apresentam variação: no grupo de fatores concordância,
por exemplo, houve 100% de concordância com ser e 0%, com haver.
16a
Em termos de definitude, os bare nouns estão sendo analisados como indefinidos em
oposição aos DPs definidos, mesmo quando possuem uma leitura genérica, como no caso de
“Lá não tinha nada [...] Ali era mato”. A distinção entre indefinidos e bare nouns se justifica por
fatores morfossintáticos: se se trata de um DP introduzido, por exemplo, pelos quantificadores
um e muito, no primeiro caso, ou se se trata de um NP (o caso dos bare). Remetemos os leitores
a SCHMITT, Cristina; MUNN, Alan. Against the Nominal Mapping Parameter: bare nouns
in Brazilian Portuguese. Proceedings of Nels 29, 1999; CHENG, Lisa Lai-Shen; SYBESMA,
Rint. Bare and not-so-bare nouns and the structure of NP. Linguistic Inquiry 30:509-542, 1999;
CHIERCHIA, Gennaro. Reference to kinds across languages. Natural Language Semantics 6,
339-405, 1998.
16
276
Elisângela Gonçalves
2.2 Variação entre ser e haver existenciais – condicionadores
intralinguísticos
Foram selecionados como significativos para a ocorrência de ser e
haver existenciais os grupos de fatores intralinguísticos: (1) definitude do
Tema; e (2) realização do pronome hy17 18.
Quanto à Definitude do Tema, haver é favorecido por temas indefinidos,
com peso relativo de 0.596 (exemplo em (16)); ser, por outro lado,
ocorre preferencialmente com temas definidos, apresentando 0.941 de
peso relativo, conforme exemplo em (17). Esses resultados podem ser
conferidos na Tabela 4 abaixo. Ressaltamos que, em termos teóricos,
para um gerativista, quando se fala em “preferencialmente”, está-se
querendo apontar para o fato de que, na gramática internalizada do
falante, a estrutura própria para a ocorrência de ser-existencial era aquela
em que este seleciona como complemento um DP [+definido], embora
possa ocorrer com DPs indefinidos e bare nouns em dados contextos.
O fato de acontecer com menor ou maior peso relativo diz respeito ao
reflexo da gramática do falante (fator interno) nos textos produzidos por
ele (fatores externos).
Tomando como variável dependente a especificidade do verbo nas existenciais (ser/haver),
consideramos os seguintes fatores intralinguísticos que poderão nos levar a capturar o
comportamento das construções existenciais: (a) a definitude do Tema (se definido, indefinido,
bare noun); (b) a posição ocupada pelo Tema na sentença (se à esquerda ou à direita do verbo); (c) o
conteúdo nocional do Tema (se [+animado], [inanimado material], [evento], [abstrato]). Ainda, a fim
de verificarmos se fatores de natureza morfológica poderiam estar favorecendo o emprego de
ser ou de haver, adicionamos à análise os grupos de fatores tempo e modo verbais e concordância entre o
verbo e o Tema. Incluímos também o grupo de fatores realização do pronome locativo hy, pelo fato de
a presença desse locativo com o verbo haver (mas não com ser) chamar a atenção nas construções
existenciais. Voltando-nos para a análise da mudança de haver de verbo possessivo a existencial,
observamos o estatuto do argumento interno (se argumental ou quase-argumental (expletivo)),
tomando como variável dependente o padrão sentencial em que ocorre o verbo haver (possessivas/
existenciais). Nesta seção, priorizaremos os grupos de fatores selecionados como significativos
pelo Goldvarb.
18
O leitor constatará, ao longo deste texto, que são utilizadas diferentes grafias para o clítico
locativo, tais como hi, hy, i, y.
17
277
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
(16)
a.
Avya hi muytos mouros vezinhos acerca da cidade (Crônica de
D. Afonso, Séc. XIV. Fonte: CIPM)
a.
O primeiro Hercoles foy em [o] tempo de Moyses, pero
que naceu ante que elle, e este fez muytos grandes e bõõs
feytos pero nom som contados ẽ estas estorias. (Crônica
Geral de Espanha, Séc. XIV. Fonte: CIPM)
(17)
TABELA 5: Verbo Haver Existencial, de acordo com a definitude do
Tema
Definitude do Tema
N
Definido
T
( %)
p. r.
4
19
21,1
0,059
Indefinido
108
127
85
0,596
Nome nu
36
43
83,7
0,517
O grupo de fatores que considera a posição do Tema na sentença,
embora não selecionado como significativo pelo Goldvarb, nos diz muito
sobre os resultados obtidos, visto que está relacionado com a definitude do
Tema, pois os temas definidos normalmente se encontram à esquerda do
verbo (cf. exemplo em (17) acima), o que confirma o que vários estudos
têm apontado: a “rejeição” de temas pós-verbais definidos em sentenças
existenciais (cf. FREEZE, 1992; BELLETTI, 1998; entre outros)19.
Assim, quando o Tema é definido, uma estratégia seria a de deslocá-lo
para uma posição externa à sentença20.
Uma exceção são as sentenças em que ocorrem os chamados contextos de lista, conforme
numa sentença como “Tem o pai do Aroldo querendo uma vaga no Conselho de Pais”, ou seja, o
pai do Aroldo faz parte de um grupo que inclui outros pais que querem fazer parte do Conselho.
20
Vale ressaltarmos que são muito escassas as ocorrências de existenciais com temas definidos
em nossos dados.
19
278
Elisângela Gonçalves
Os pesos relativos referentes à realização do pronome hy demonstram
que o uso de haver é condicionado pela realização desse elemento (0.733),
enquanto ser apresenta uma única construção com hy (com peso relativo
de 0.267), conforme exemplos em, respectivamente, (18a) e (18b). Os
resultados referentes ao verbo haver se encontram na Tabela 5 abaixo.
(18)
a. E ainda ha hy outra maior cousa q(ue) os leigos q(ue) [...]
(Alphonse X, Primeyra Partida, Séc. XIV. Fonte: CIPM)
b. [...] e out(ro)ssy os beens q(ue) hy som e q(ue) podẽ seer.
(Alphonse X, Primeyra Partida, Séc. XIV. Fonte: CIPM)
TABELA 6: Construções existenciais com o verbo haver, de acordo
com a presença do locativo hy
N
Locativo hy
T
( %)
p. r.
Presença
22
35
62,9
0,733
Ausência
197
484
40,7
0,482
Quanto ao grupo de fatores Concordância entre o verbo e o Tema,
verificamos 100% de concordância com ser, conforme exemplo em (19)
a seguir, e 0% de concordância com haver, como em (21). Esse grupo
de fatores não foi selecionado pelo Goldvarb, não sendo obtidos pesos
relativos, visto que esse Programa não procede a rodadas em que não
há variação: nessa situação, aconteceram casos categóricos de realização
de concordância com ser e nenhum caso com haver. Esses resultados são
muito interessantes para a hipótese aqui desenvolvida, a ser apresentada
na próxima seção, pois correlacionamos o fator concordância ao tipo de
clítico locativo/quase-argumento que licencia cada verbo existencial (ser
e haver).
(19) a. Titolo #VIº da pẽedença q(ue) he o #IIIº sacram(ẽ)to e p(or)
q(ue) ha assy nome e som q(ua)rẽeta e hũa leis. (Alphonse X,
Primeyra Partida, séc. XIV. Fonte: CIPM)
279
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
(20) Capitollo primeiro Das partes do nosso entendimento. Do
entendimento nosso, segundo minha declaraçom, ha #VII
partes. (Leal Conselheiro, séc. XV. Fonte: CIPM)
Na seção 4, analisaremos a importância dos resultados quantitativos
para as mudanças aqui estudadas.
3 Mudanças envolvendo verbos existenciais e
possessivos no português medieval – propostas de
análise
Conforme pôde ser visto na seção 3.1, foi no século XVI que o
verbo haver se fixou como verbo existencial canônico do português.
Neste tópico, apresentaremos hipóteses para as causas que podem ter
levado haver a migrar dos contextos possessivos para os existenciais,
tomando o posto de ser como verbo existencial.
Partimos nossa análise de um fator que chamou a atenção nas
construções existenciais com haver, que é a realização do pronome hy.
Como notado por FREEZE (1991) e KAYNE (2006), é próprio
das línguas românicas a presença de um clítico locativo em construções
existenciais, conforme os seguintes exemplos retirados de FREEZE
(1992:567-568):
(21) French:
a.
Il y a deux enfants dans l’auto.
it p has two children in the car.
‘There are two children in the car.’
Italian:
b. Non ci sono uomini in casa.
NEG p are men in house
‘There are no men in the house.’
Catalan:
280
Elisângela Gonçalves
c.
No hi ha peix al menu
d’avui.
NEG p have fish on.the menu of.today
‘Isn’t there fish on today’s menu?’
KAYNE (2006) ressalta o fato de que o português e o espanhol
contemporâneos, apesar de não apresentarem uma contraparte visível do
y francês (com exceção do tempo presente no espanhol: Hay gente en el
pasillo), devem dispor de uma versão nula desse elemento. Acreditamos
que os resultados desta pesquisa corroboram a sua afirmação, já que,
no português antigo, encontramos vestígios da presença de tal locativo
nas existenciais do português, evidenciando a sua realização fonológica
(hy e suas variantes hi, y...) nas sentenças com o verbo haver, o que
aproxima o português de suas irmãs. As existenciais com ser, por sua
vez, contariam com um locativo do tipo do ci italiano, só que nulo, como
argumentaremos a seguir.
Podemos observar nas sentenças existenciais em (21a) e (21c) acima,
respectivamente do francês e do catalão, que, quando o verbo realizado
é haver, o locativo que ocorre com ele é do tipo do y/hi. Quando se
trata do verbo ser, como no italiano (21b), o locativo é ci. Outro ponto
relevante é que no italiano é ativada a concordância entre o verbo ser e o
tema, enquanto, no francês e no catalão, não ocorre concordância. Esse
fator também é atestado nos resultados apresentados na seção 3.2 deste
trabalho, visto que com ser é verificado 100% de concordância com o
tema, enquanto com haver, 0%. Observamos, desse modo, que o fator
concordância está relacionado ao tipo de clítico locativo que ocorre com o
verbo existencial.
Mas essa não é toda a história. Ainda, para KAYNE, assim como o
francês apresenta il na posição de sujeito das suas existenciais, as demais
línguas românicas também contam com um sujeito quase-argumental
(nos termos de CHOMSKY, 1981), só que na sua versão nula.
281
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
Quanto ao argumento que ocorre na posição de sujeito das
construções existenciais, recorremos à distinção feita por CHOMSKY
(1995) entre “expletivos puros”, do tipo de there do inglês (que não
possui traços- φ nem traço de Caso) e expletivos com Caso e traços-φ
(categorias quase-argumentais (CHOMSKY, 1981)), it do inglês e il do
francês21.
Os “expletivos” (puros e quase-argumentais) possuem estreita relação
com os clíticos locativos do tipo de y, hi, ci. Logo, quando o pronome
locativo é do tipo de ci, um expletivo puro aparece na posição de sujeito.
Trazendo para a discussão os pressupostos assumidos por CHOMSKY
(1995) quanto à checagem de traços, podemos afirmar que, nesse caso,
numa sentença, como em (22) a seguir, T, uma sonda com traços-φ que
precisam ser valorados, procura um elemento que possua esses traços
valorados com que possa combinar os seus, encontrando o DP (Tema).
Assim, T, além de valorar os traços-φ, compartilha com o tema o traço
de Caso nominativo. Contudo, ainda resta um traço de T a ser valorado,
o traço EPP. Esse traço exige a presença de um elemento em [Spec,TP],
que, conforme vemos em (22), não se trata do tema, que permanece em
posição pós-verbal; logo, o traço EPP só poderá ser satisfeito por um
expletivo puro, que não possui traços-φ nem traço de Caso22. Quando
o locativo é do tipo de hy,23 por seu turno, como em (23) abaixo, é um
quase-argumento (pro quase-argumental) que ocupa a posição de sujeito
no Sintagma Verbal/Small Clause, com o qual T valorará traços-φ e traço
de Caso, bem como traço EPP. Nessa situação, o tema portará Caso
Uma distinção básica estabelecida por CHOMSKY (1981) para caracterizar expletivos (em
oposição a argumentos plenos) é o fato de estes não receberem papel-temático.
22
Atribui-se normalmente a inserção do quase-argumento (expletivo puro, no inglês) em
[Spec,TP] a casos em que o tema é pós-verbal, pois, quando este se encontra antes do verbo,
valora o traço EPP de T. Para nós, não haveria a necessidade da ativação de dois mecanismos
distintos para a obtenção de sentenças existenciais com DP pós ou pré-verbal – em ambos
os casos, o quase-argumento estará ocupando a posição [Spec,TP]; assim, quando o Tema se
encontrar à direita na sentença estará na periferia de CP, na posição de tópico ou foco – o Caso
nominativo será valorado com o DP in situ.
23
Os clíticos locativos ci e hy só portam traço [locativo], valorado por T.
21
282
Elisângela Gonçalves
inerente partitivo. O clítico locativo ( e hy), que é gerado junto com o
DP (dentro de uma Small Clause) se adjunge a T, conforme demonstrado
nos esquemas abaixo.
(22) [ TP e proexpletivo-puro [T’ -loc+som+T [DP -loc [q(ua)rẽeta e
hũa leis [+nom,+φ]]]]] (Alphonse X, Primeyra Partida, séc. XIV.
Fonte: CIPM)
(23) [TP proquase-argumental [+nom,+φ]
[T’hy+a+T [DP hy [muytos
mouros...]]]] (Crônica de D. Afonso, Capítulo II – Século XIV.
Fonte: CIPM)
A partir do que é afirmado acima, podemos tentar uma explicação
para a passagem de haver de possessivo a existencial.
Consideramos que a presença de hy acarreta uma mudança de estatuto
do verbo haver: enquanto nas construções de posse, haver contava com
um sujeito argumental pleno, portador de traço geralmente [+humano],
haver existencial ocorre com um sujeito quase-argumental (do tipo do il
francês, só que nulo24, segundo FREEZE (1992) e KAYNE (2006)). Em
(24), apresentamos a configuração para uma sentença possessiva e, em
(25), para uma existencial, chamando a atenção para o constituinte que
ocupa a posição de sujeito em cada uma delas [Spec,IP/TP]. Estamos
seguindo as configurações propostas por FREEZE (1992), apresentadas
na Seção 2.
24
No Português Europeu Contemporâneo, são encontradas construções existenciais com
o pronome “ele” na posição de sujeito, num emprego análogo ao do il francês, conforme
demonstrado nestas sentenças:
(i)
a. Afinal o que importa não é ser novo e galante // - ele há tanta maneira de compor uma
estante! (Mário Cesariny 1945-6, 1991: 14)
b. Ele há espadilha no mar. (Vila Praia de Âncora, CORDIAL VPA53)
c. É a estrela da manhã (...) e há a estrela... Bom, ele há várias estrelas, não é?(Nisa,
CORDIAL AAL92)
d. Ele há o sete-estrelas, há o cacheiro. (Nisa, CORDIAL AAL93) (CARRILHO, 2001: 3)
283
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
(24) [IP [P’ Ihesu Cristo]i [I’ á
d’omen e Deus] [P’ ti]]]]
[PP en sy [NP duas naturas
(25) [IP pro [I’ avya hi [PP hi [muitos mouros]
[P’ acerca da cidade]]]]]
Como estamos associando concordância e Caso, justificamos o
fato de T não tomar como alvo muitos mouros, com que, inclusive, não
concorda em número, porque está concordando com pro.
Passemos agora ao segundo ponto a ser analisado nesta seção: o
fator que fez com que ser perdesse o posto de verbo existencial canônico
do português. Assumimos aqui a proposta de RIBEIRO (1996) de que
esse verbo portava traço [locativo], o qual perdeu, deixando de poder ser
licenciado entre as existenciais. Conforme registrado na introdução deste
trabalho, ao mesmo tempo em que ser era empregado em construções
existenciais, também o era em construções locativas/situativas e
copulares transitórias (ao lado de estar, sendo suplantado por este no
século XVI). As existenciais e as locativas/situativas têm em comum o
fato de ocorrem com constituintes que envolvem a noção de locação,
daí sustentarmos nossa proposta de que o verbo ser, nesses padrões
sentenciais, possui um traço [locativo]. A partir de quando ser perdeu esse
traço, deixou de ser licenciado entre as existenciais e locativas. Adotamos
a visão de FREEZE (1992) de que o clítico locativo (proforma, em seus
termos) consiste na realização fonológica do traço [locativo] do verbo
existencial, que pode ser nulo.
Tendo discutido quando e como se deu a “migração” de haver das
construções possessivas para as existenciais, substituindo ser, vamos nos
voltar para o nosso segundo objetivo: mostrar se essa mudança refletida
nos textos escritos resultou de ‘competição de gramáticas’.
284
Elisângela Gonçalves
4 Variação e mudança linguísticas à luz da noção de
‘competição de gramáticas’
Tratando inicialmente dos fatores intralinguísticos, vimos, conforme
análise desenvolvida na Seção 3.2, que foram selecionados como
condicionadores do uso de ser/haver a definitude do Tema (haver ocorre
preferencialmente com temas indefinidos e ser, com definidos) e a
realização do pronome hy (que acontece quase exclusivamente com haver).
Ainda, apesar de não terem sido selecionados pelo Goldvarb,
alguns fatores merecem destaque: (a) a posição do Tema na sentença, que
está relacionada com a definitude, visto que os temas definidos (que
favorecem o verbo ser) vêm normalmente à esquerda do verbo; (b) o
presente do indicativo, que levou à expansão de haver ao longo dos séculos;
e (c) Temas cujo traço semântico é [abstrato]. A importância desses resultados
está no sentido de que podemos chegar à conclusão de que ser e haver não
demonstram ser itens funcionalmente idênticos, não estando sujeitos ao
Blocking Effect 25.
Dessa forma, quanto aos fatores intralinguísticos analisados,
concluímos que o fato de o verbo haver ter substituído o verbo ser
na expressão de existência não quer dizer necessariamente que essa
mudança seja reflexo de ‘competição de gramáticas’; podemos afirmar
com certeza que haver acabou ocupando todos os espaços de ser, o que
25
KROCH (1994: 8) cita casos de formas que coexistem estavelmente nas línguas devido a
não serem funcionalmente idênticas (serem quase-duplos), como no inglês antigo, “shined”
(transitivo/causativo) vs. “shone” (intransitivo), assim como o caso interessante da distinção
entre formas verbais sintéticas e analíticas do islandês - as primeiras ocorrem com as pessoas cuja
flexão número-pessoal é capaz de identificar/ licenciar pro e as últimas com a terceira pessoa,
consistindo numa diferença no conteúdo do núcleo funcional . Essas duas variantes não poderiam
coexistir, porque diferem somente em um traço morfossintático e não no significado, todavia
coexistem. Isso porque o Blocking Effect deve respeitar o fato de que classes formais morfológicas
são ubíquas e estáveis na língua. Não nos parece ser isso o que acontece no português, quando
ser concorda com o Tema no plural e haver não concorda (ambos ocorrem com argumentos
plurais); por exemplo, não há casos em que ser acontece somente com argumentos no plural e
haver, somente com argumentos no singular ou em que ser ocorre somente com argumentos com
traço [+humano], de um lado, e haver, com argumentos com traço [abstrato], de outro, ou, ainda,
em que ser ocorre no passado e haver, no presente etc.
285
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
o tornou obsoleto e ‘bloqueado’. Contudo, a análise pautada somente
em fatores intralinguísticos não pode ser conclusiva para constatar-se se
as mudanças envolvendo verbos existenciais e possessivos são reflexo
de ‘competição de gramáticas’, daí passarmos à análise das motivações
sociolinguísticas na próxima seção.
Conforme afirmado na introdução, KROCH (1994:1-2) se vale do
Blocking Effect (ARONOFF, 1976) para invalidar a ocorrência de doublets
nas línguas. Logo, no caso da presença de doublets em uma dada língua, o
Blocking Effect “entra em ação”, eliminando uma das formas26.
Todavia, isso não exclui a possibilidade de que duplos ocorram
nas línguas. Logo, uma forma encontrada por KROCH (1994:6) para
explicar esse fato sem invalidar o princípio do Blocking Effect, é atribuir
aos duplos uma origem sociolinguística:
Doublets arise through dialect and language contact
and compete in usage until one or other form wins out.
Due to their sociolinguistic origins, the two forms often
appear in different registers, styles, or social dialects; but
they can only coexist stably in the speech community
if they differentiate in meaning, thereby ceasing to be
doublets. Speakers learn either one or the other form in
the course of basic language acquisition, but not both.
Later in life, on exposure to a wider range of language,
they may hear and come to recognize the competing form,
which for them has the status of a foreign element. They
may borrow this foreign form into their own speech and
writing for its sociolinguistic value or even just because
Em seu trabalho sobre mudança sintática, KROCH (1994) propõe que formas inovadoras
vão expulsando as formas antigas na língua ao longo dos séculos, e que a forma inovadora é
encontrada em diferentes frequências em diferentes contextos, e, o mais importante, que a taxa
com que a nova forma substitui a antiga é a mesma em todos eles. Esses são os fundamentos do
que KROCH (1989) denomina ‘Efeito da Taxa Constante’. Para confirmar esse efeito, o autor
se vale de análise probabilística, que não será possível empregarmos em nossa análise, por não
dispormos de dados suficientes a serem submetidos a esse tratamento estatístico.
26
286
Elisângela Gonçalves
it is frequent in their language environment. Over time,
however, as dialects and registers level out through
prolonged contact, the doublets tend to disappear.
Contudo, como o próprio KROCH (1994:5) já assinalou, não consiste
numa tarefa fácil para o linguista (nem assim o deve ser, como bem
pontua o autor), mostrar que uma variação ou mudança linguística
se dá entre opções gramaticalmente incompatíveis, refletindo, assim,
competição entre gramáticas27:
The difficulty introduced by the possibility of
Grammar competition is not for the learner but for the
linguist, for whom a methodological question arises;
namely, how to know when grammar competition should
be invoked and when failure to find a unified analysis
means only that more research is needed […]
Analisar o passado com o olhar do presente é uma tarefa um tanto
melindrosa, pois o linguista, além de não dispor de intuição linguística
para analisar a língua falada na época, nem sempre conta com informações
relativas aos textos analisados, como data e local de nascimento do autor,
e local onde passou os primeiros anos de sua vida, dados importantes
para sabermos sob que condições se deu sua formação (aquisição)
linguística.
27
No Curso Diachronic Syntax: statistical fingerprints of grammar change, realizado no XX Congresso
da Associação Brasileira de Linguística em fevereiro de 2011, na Universidade Federal do Paraná,
Kroch ressaltou que alguns linguistas têm considerado fácil mostrar que a variação ou a mudança
envolvendo um dado fenômeno linguístico não reflete competição de gramáticas; logo, não
tendo sido motivadas por fatores externos à língua. Para ele, no entanto, constitui uma tarefa
difícil para esses linguistas comprovarem que as motivações da mudança foram intralinguísticas
e não sociolinguísticas, já que o analista poderá (a) estar diante de “maus dados” (o que vamos
discutir na próxima seção sobre os dados de que dispomos), o que poderá levá-lo a uma má
interpretação dos mesmos ou (b) estar usando um arcabouço metodológico inadequado para o
tipo de análise a que se propõe.
287
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
Aqui se coloca outro desafio para o linguista: Como comprovar que
as causas das mudanças estudadas são sociolinguísticas diante dos dados
de que dispomos?
Pensando primeiramente sobre o grupo de fatores extralinguísticos
gêneros textuais, algumas questões se colocam:
(1) Analisando o gênero textual (documentos notariais, textos
narrativos e textos dissertativos, seria adequado assumirmos a postura
adotada em trabalhos sobre o português atual, tomando, por exemplo,
os textos narrativos como mais próximos da oralidade? Para tanto, seria
necessária uma pesquisa acurada sobre os gêneros textuais no português
medieval, o que consistiria em outro trabalho, não sendo o foco desta
pesquisa;
(2) Como se caracterizava a linguagem falada retratada nas narrativas
analisadas – estava ou não voltada para o padrão linguístico da época? A
princípio, nossa resposta seria afirmativa, visto que as crônicas versam
sobre feitos dos reis (nobres) e contam histórias sobre a vida de santos
cujos personagens ou eram pessoas da própria nobreza e do clérigo
ou a eles ligados. Entretanto, como discutiremos a seguir, é necessária
uma reflexão sobre o que consistia no padrão linguístico nos períodos
antigo, médio e clássico (somente o século XVI), tendo em vista que
a preocupação dos escritores nessa época era com a formação do
português enquanto uma língua independente28 (cf. ILARI & BASSO,
2006).
(3) Como lidar com problemas relacionados à coleta de dados
disponíveis, quando esses são ‘limitados’?
Em nosso caso, por exemplo, encontramos basicamente textos
narrativos na segunda metade do século XVI (contando com documentos
notariais apenas na primeira metade desse século)29.
Ilza Ribeiro sugere que uma solução para esse problema seria pensar em textos que eram
escritos para serem lidos para o público e textos escritos no sentido estrito.
29
Ressaltamos que, ao considerarmos especificamente o grupo de fatores gênero textual, deixamos
os dados desse século fora da rodada no Goldvarb.
28
288
Elisângela Gonçalves
Considerando que a mudança estudada provavelmente tenha sido
motivada por fatores sociolinguísticos, assim como outras ocorridas
nesse período, buscamos informações relativas, ao menos, ao local onde
os textos foram escritos, já que não dispomos de muitas informações
sobre os autores, de modo a verificarmos se era possível contrapor
diferenças linguísticas em termos de região geográfica, por exemplo.
Mas praticamente todos os textos foram escritos por escritores que
viviam em Lisboa. Ainda, como saber se viveram sua infância em Lisboa
(eis outro ‘complicador’)?
Uma alternativa encontrada foi buscarmos informações sobre
o contexto sociocultural que envolve tanto o latim vulgar quanto o
português dos períodos antigo e médio (veja comentários sobre os
verbos ser e haver no latim na introdução deste texto).
Pensando sobre a noção de prestígio que uma forma linguística
possui junto à sociedade, bem como sobre o fato de que o latim clássico
se opunha ao latim vulgar, que era o vernáculo, ou seja, “o aprendizado
que se dá, por assimilação espontânea e inconsciente, no ambiente em
que as pessoas são criadas” em contraposição a “tudo aquilo que é
transmitido através da escola” (ILARI & BASSO, 2006:15), podemos
concluir que ser pode ser tida como a variedade de prestígio, por ser
uma variação do verbo esse do latim clássico30. Ademais, o fato de a
Sociolinguística, normalmente, tomar a forma mais antiga como a que
goza de maior prestígio na sociedade vem corroborar nossa afirmação,
pois o verbo ser é a forma mais conservadora.
ILARI & BASSO (2006:17) ainda registram que
o latim vulgar foi uma variedade de latim principalmente
falada, a mesma que os soldados e comerciantes romanos
levaram às regiões conquistadas durante a formação do
30
Contudo, isso não é via de regra, haja vista o clássico trabalho de LABOV (1963) sobre o dialeto
de Martha’s Vineyard, em que falantes rurais (pescadores) favorecem a forma não-padrão como
uma maneira de reagirem à ‘invasão’ dos veranistas por meio de uma demarcação linguística.
289
Império que foi passando de geração em geração sem ser
ensinada formalmente.
Dá-se o contrário com o latim literário, que “foi criado pelo esforço
consciente de várias gerações de escritores e tinha fins estéticos”, sendo
“uma forte referência cultural” (ILARI & BASSO, 2006:17).
Somado a isso está o fato de o latim vulgar ter se fragmentado
devido às invasões ‘bárbaras’, resultando nas línguas românicas.
Todavia, a fragmentação do latim vulgar não se deveu somente a causas
externas, mas também a causas internas, tais como o despovoamento
do império romano em decorrência das guerras civis, das constantes
invasões bárbaras, bem como de uma terrível epidemia de peste que
durou mais de quinze anos dizimando milhões de cidadãos romanos; o
empobrecimento da população, “incompatível com os altos impostos
cobrados para a manutenção do fausto da corte imperial” (BASSETO,
2001:139); a decadência militar, com a redução do efetivo, o que forçou
os imperadores a buscar reforços entre os bárbaros, ocasionando a
sua presença em todo o império, consistindo no que se tem chamado
“invasão pacífica”.
Quanto ao padrão linguístico retratado nos textos do português
antigo e médio, também não se pode precisar como ele era estabelecido,
já que, conforme ILARI & BASSO (2006:22), no século XIII, por
exemplo, os documentos notariais (escrituras de cartório relativas a
demandas, heranças e doações) adotavam a fala corrente, o que constituía
um problema para os escribas medievais, por falta de uma padronização.
Com relação ao português, considerando que fatores externos
influenciam a história interna da língua, CASTRO (2006) cita como
fatores que podem ter influenciado as mudanças linguísticas que
marcaram o português médio, entre outras: (a) as obras dos filhos de
D. João I; (b) assim como as de seu pai, escritor; (c) a influência de
seu avô, que, apesar de não ter influenciado na literatura, trouxe para
Elisângela Gonçalves
Portugal técnicas novas de vencer batalhas aos castelhanos; e (d) de seu
trisavô, Afonso III, que transferiu a sede do poder de Guimarães para
Lisboa (cf.: MESSNER, 1983, 2002). Ainda, com o advento da dinastia
de Avis, Lisboa se converteu no modelo a ser seguido por todos; e,
linguisticamente, o eixo Lisboa-Coimbra se tornou o centro do domínio
da língua portuguesa, segundo TEYSSIER (1982).
Sabemos que, de acordo com estudiosos históricos, muitas mudanças
linguísticas culminaram no século XVI, que consistiu num período de
efervescência cultural e artística em Portugal, sendo “apontado como o
século de ouro na literatura portuguesa” (ILARI & BASSO, 2006:28),
“um período de forte preocupação com a língua portuguesa”, na tentativa
de fixá-la (ILARI & BASSO, 2006:28). Nesse período, foram suprimidas
muitas formas e construções encontradas no período arcaico, de acordo
com ILARI & BASSO (2006:29); também se buscou “enriquecer a língua
através de uma convivência íntima com o latim clássico”. Diante dessas
colocações, que fizemos questão de citar na íntegra, talvez possamos
concluir que as formas linguísticas adotadas deveriam refletir o que a
sociedade (ou a elite social, econômica) tomava como culturalmente
melhor.
Em suma, encontramo-nos diante de duas situações: (a) de um lado,
a análise dos fatores extralinguísticos não é suficiente para afirmarmos
que as causas das mudanças foram sociolinguísticas; logo, não temos
como falar em ‘competição de gramáticas’. Isso nos conduz à mesma
conclusão a que chegamos na análise dos fatores intralinguísticos:
de que não estamos diante de ‘competição de gramáticas’, tratandose de mudanças cujas motivações foram intralinguísticas – haver foi
‘invadindo’ os contextos ocupados por ser, em decorrência da alteração
na configuração dos traços que compunham essas formas verbais,
conforme discutido na seção 4 deste trabalho; (b) por outro lado,
tendo em conta que as mudanças aqui estudadas, envolvendo verbos
existenciais e possessivos, ocorreram no mesmo período em que se
deram tantas outras, motivadas, segundo CASTRO (2006), por fatores
291
Substituição de SER por HAVER nas Construções existenciais do Português:
Um estudo Diacrônico
externos, conforme discutido, poderíamos concluir que tais mudanças
consistem em reflexos de ‘competição’ entre gramáticas.
Diante desse quadro, é necessário ressaltarmos que este trabalho
longe de pretender ser conclusivo, propôs-se a discutir os desafios do
linguista que trabalha com dados históricos ao analisar a gramática
internalizada do falante refletida nos dados por ele escritos.
Conclusões
Através da análise de textos escritos em Português Arcaico e Médio,
esperamos ter mostrado que:
(a) ser e haver existenciais não consistiam em dois itens funcionalmente
idênticos, logo, não se pode falar em ‘competição de gramáticas’, o que
foi demonstrado através da análise de fatores condicionadores intra e
extralinguísticos: a mudança é decorrente exclusivamente de fatores de
ordem intralinguística;
(b) são vários os desafios que se colocam ao linguista histórico
que toma como base pressupostos teóricos que se pautam na intuição
linguística do falante para lidar com (analisar) dados de épocas passadas,
o que torna a análise ainda mais instigante e crítica.
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299
ILUSÃO GRAMATICAL E FALIBILIDADE SELETIVA
NO PROCESSAMENTO DE LACUNAS NÃO
PREENCHIDAS EM PORTUGUÊS BRASILEIRO1
Marcus MAIA
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Amanda MOURA
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Fernando Lúcio de OLIVEIRA
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
RESUMO
Toma-se o efeito da lacuna preenchida como diagnóstico para estudar o comportamento do
processador sintático ou parser diante de lacunas não preenchidas e de lacunas inexistentes,
através de um experimento de leitura automonitorada de construções-QU. Os resultados
detectaram a atuação estrutural rápida do parser e também sua falibilidade diante de nomes
em função de adjunto, mas não diante de advérbios. A ilusão gramatical obtida com base
em verbos transitivos não se instancia, no entanto, em construções com verbos intransitivos,
indicando sensibilidade do parser à informação sobre a grade de subcategorização dos verbos.
Os resultados off-line motivam uma discussão sobre efeitos do tipo good-enough.
ABSTRACT
The filled gap effect is taken as baseline to study the behavior of the parser in the processing
of non filled gaps and nonexistent gaps through a self-paced reading experiment targeting
wh-questions. Results indicate the rapid structural action of the parser and its fallibility in
Uma primeira versão desta pesquisa foi apresentada pelo primeiro autor em mesa-redonda,
no II Encontro Internacional de Psicolinguística, realizado pelo GT de Psicolinguística da
ANPOLL, na UFPB, em João Pessoa, entre os dias 30 de setembro e 5 de outubro de 2013. Os
autores agradecem pelos comentários recebidos de membros da mesa e demais participantes do
evento.
1
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 301-324, jan./jun. 2014
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
the processing of names in the function of adjuncts but not in the processing of adverbs. A
similar effect is not instantiated in constructions with intransitive verbs, suggesting a sensitivity
of the parser to subcategorization information. Off-line results motivate a discussion of goodenough effects.
PALAVRAS-CHAVE
Construções-QU. Efeito da Lacuna Preenchida. Processamento de frases. Hipótese GoodEnough. Ilusão gramatical. Informação sobre transitividade.
KEYWORDS
Filled Gap Effect. Good-Enough Hypothesis. Grammatical illusion. Sentence Processing.
Transitivity effects. WH-constructions.
Introdução
Este trabalho utiliza o chamado efeito da lacuna preenchida (ELP)
como diagnóstico para investigar a atuação do processador sintático
ou parser , na análise de construções em que o processador poderia
apresentar falibilidade seletiva na compreensão de frases em português
brasileiro (PB). Através de um experimento de leitura automonitorada não
cumulativa, estuda-se a sensibilidade do processador sintático diante de
informações tais como a categoria gramatical dos itens em estruturação
e a grade de subcategorização dos verbos, discutindo também o impacto
dessas informações na fase interpretativa da compreensão de frases.
O trabalho é organizado da seguinte forma. Na seção 1, apresentamse o Efeito da Lacuna Preenchida, os conceitos de ilusão gramatical e de
falibilidade seletiva, a questão do acesso à grade de subcategorização dos
verbos e a hipótese Good-Enough. Na seção 2, apresenta-se o experimento
de leitura automonitorada e, na última seção, elaboram-se as conclusões
do estudo.
302
Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira
1 Os efeitos da lacuna preenchida, da lacuna não
preenchida, da lacuna inexistente e a hipótese GoodEnough
1.1 O Efeito da Lacuna Preenchida (ELP)
O ELP tem sido detectado em diferentes línguas, desde os trabalhos
seminais de CRAIN & FODOR (1985) e de STOWE (1986). Em PB,
MAIA (a aparecer) apresenta resultados de experimentos de rastreamento
ocular e de leitura automonitorada em que se compara o processamento
de perguntas interrogativas-QU, tais como (1) e (2), abaixo:
(1)
Que livro o professor escreveu sem ler a tese antes?
(2)
Que livro o professor escreveu a tese sem ler antes?
O tempo médio de leitura ou de fixação ocular do constituinte “a
tese” é significativamente mais alto na frase (2) do que na frase (1),
evidenciando a ocorrência do ELP em PB. O sintagma-QU “que
livro”, deslocado para posição sintática na periferia esquerda da
oração, conforme análise clássica na teoria gerativa (cf. CHOMSKY,
1977), torna-se, no dizer de CLIFTON & FRAZIER (1989), um
“antecedente ativo” em busca de posição sintática vazia (lacuna ou gap)
em que possa ser interpretado, já que a posição não argumental, em
que se encontra no início da frase, não lhe atribui nem Caso e nem
papel temático. Em conformidade com os princípios de economia que
presidem a sua atuação, o processador deve postular uma lacuna “como
primeiro recurso”, ou seja, deve tentar identificar a primeira posição
possível em que a lacuna para interpretar o sintagma-QU deslocado
pode ser postulada, ranqueando-se a probabilidade de postular a lacuna
como maior do que a probabilidade de identificar, naquela posição,
303
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
um sintagma lexical. Assim, na frase (1), a lacuna é postulada logo na
posição de complemento do verbo “escrever”, resolvendo-se ali a cadeia
dependencial-QU, sem qualquer problema. Na frase (2), no entanto, ao
utilizar a mesma estratégia de lacuna como primeiro recurso, o parser se
depara com a posição de complemento do verbo “escrever” preenchida
pelo constituinte “a tese”. Ocorre, então, o ELP – a decisão de análise
default do parser é frustrada e precisa ser revista, devendo-se postular a
lacuna, neste caso, após o segundo verbo da frase, o verbo “ler”, para se
poder chegar, assim, à interpretação adequada. Conforme demonstrado
em MAIA (a aparecer), tanto o efeito surpresa, quanto a reanálise podem
ser inferidos através dos maiores tempos de leitura e de fixação que o
constituinte “a tese” preenchendo a primeira lacuna disponível em (2)
apresenta, em comparação à sua posição não problemática em (1). O
ELP, epifenômeno do Princípio do Antecedente Ativo (cf. CLIFTON
& FRAZIER, 1989) tem sido avaliado desde STOWE (1986) como
indicador da realidade psicológica do contexto sintático, fornecendo
suporte em favor da hipótese de que as condições gramaticais, como
proposto em WAGERS & PHILLIPS (2009), mais do que meramente
respeitadas na compreensão em tempo real, são, de fato condutores
ativos da estruturação de representações linguísticas.
1.2 Ilusão Gramatical e Falibilidade Seletiva
Revendo a literatura psicolinguística relevante para uma avaliação da
eficácia da implementação on-line de diferentes condições gramaticais,
uma questão central para se pensar a relação gramática x processamento,
PHILLIPS et alii (2011) identificam o que chamam de um perfil
surpreendentemente desigual (a strikingly uneven profile). De um lado,
construções que envolvem princípios da Teoria da Vinculação ou
condições de ilha, em contextos de dependência do tipo do ELP, têm
encontrado, de modo geral, bastante sucesso no seu estabelecimento
pelas pesquisas psicolinguísticas que aferem a sua implementação on304
Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira
line. De outro lado, construções que envolvem, por exemplo, relações
de concordância, Caso, polaridade negativa, apontam para uma maior
vulnerabilidade do processador à interferências e à “ilusões gramaticais”,
caracterizando o que os autores chamam de falibilidade seletiva do parser.
Segundo os autores, tal como o estudo das ilusões de ótica foi importante
para o estudo da percepção visual, o estudo de tais ilusões gramaticais
forneceria uma ferramenta valiosa para se compreender “como os
falantes codificam e navegam representações linguísticas complexas em
tempo real.”2
No presente artigo, fazemos a hipótese de que, mesmo no âmbito
de uma construção menos vulnerável à falibilidade, tal como a
construção ELP que, conforme revisto em MAIA (a aparecer), tem sido
demonstrada com sucesso em diferentes línguas, através de diferentes
técnicas experimentais, pode-se formular contextos sintáticos indutores
de ilusão gramatical em que o parser pode vir a demonstrar falibilidade.
Por exemplo, pode-se supor que um parser, funcionando nos termos de
um modelo do tipo syntax-first, tal como a Teoria do Garden-Path (cf.
FRAZIER & FODOR, 1978; FRAZIER 1979; FRAZIER & RAYNER,
1982), sendo, portanto, capaz de identificar cedo e rapidamente, no
curso temporal de sua ação na compreensão de frases, a categoria
gramatical dos constituintes em análise, deveria distinguir com precisão
um nome (N) de um advérbio (Adv). Nesse sentido, o presente estudo
coloca em questão se um tal parser, guiado por um princípio estrutural
como o do “antecedente ativo”, poderia cometer um equívoco de análise
motivado por ilusão gramatical, apondo na estrutura em construção
um SN adjunto como se fosse, preferencialmente, um SN argumento.
Esta presunção se justifica, já que uma Estratégia de Preferência por
Argumento tem sido identificada em funcionamento na análise de outras
2
Just as the study of optical illusions has played an important role in the study of visual perception, the parser’s highly selective vulnerability to interference and ‘grammatical illusions’ provides
a valuable tool for understanding how speakers encode and navigate complex linguistic representations in real time (cf. PHILLIPS et alii 2011, p. 153).
305
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
construções (cf. ABNEY, 1989; MAIA, 2010). Entretanto, perguntamonos, crucialmente, se uma tal falibilidade seria seletiva, só ocorrendo no
caso de nomes em função adverbial, mas nunca no caso de advérbios
reais.
Para testar esta hipótese, desenvolveu-se um estudo de leitura
automonitorada em que frases como as exemplificadas abaixo foram
lidas com o objetivo de se tentar testar as seguintes hipóteses: (i) o parser
poderia sofrer uma ilusão gramatical, apondo, inicialmente, um N pósverbal, em função adverbial, como, por exemplo, dias da semana (terça,
quarta, quinta, sexta)3 como se fosse um complemento, tomando-o,
equivocadamente, como um preenchedor de lacuna. Neste caso, se esta
hipótese for verdadeira, o constituinte “terça”, contíguo ao verbo, em
(3), deveria apresentar tempos de leitura médios mais elevados do que o
constituinte “terça”, em (4), em posição distante do verbo. Impulsionado
pela busca de lacuna como primeiro recurso, o parser seria iludido por
um efeito ELP falso - um nome contíguo ao verbo e à sua lacuna, ainda
que este nome fosse, de fato, um adjunto e não um argumento, não
estando, portanto, a lacuna efetivamente preenchida; (ii) o parser não
deveria sofrer a mesma ilusão se, ao invés de um N, o item contíguo
ao verbo fosse, de fato, da categoria gramatical advérbio (Adv). Neste
caso, a ser esta hipótese verdadeira, a previsão para as frases (3) e (4)
não deveria se instanciar em (5) e (6) em que o constituinte “ontem”,
um advérbio real e não um nome em função adverbial, não levaria o
parser à ilusão gramatical de postulá-lo como um preenchedor de lacuna
em (5). Assim, os tempos médios de leitura de “ontem” deveriam ser
basicamente os mesmos tanto em (5), em que está contíguo ao verbo e
sua lacuna, quanto em (6), em que está em posição distante.
3
Note-se que, embora tais itens sejam primariamente numerais ordinais, seu emprego como
formas extensas ou abreviadas dos dias da semana os caracteriza claramente como nomes. ( e.g.
As sextas / sextas-feiras são sempre animadas no clube por causa das festas).
306
Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira
(3)
(4)
Que rede o pescador usou terça sem lançar com força na
praia?
Que rede o pescador usou sem lançar com força terça na
praia?
(5)
Que rede o pescador usou ontem sem lançar com força na
praia?
(6)
Que rede o pescador usou sem lançar com força ontem na
praia?
A falibilidade do parser seria portanto seletiva – falharia diante de um
N em função adverbial, mas não diante de um Adv.
1.3 O Parser acessa logo a transitividade verbal?
Além dessa questão relacionada à informação categorial dos itens
gramaticais em estruturação sintática, o presente trabalho também
explora uma questão adicional: o parser poderia se equivocar, apresentando
ilusão gramatical e falibilidade seletiva similares ao que se hipotetizou
acima, no caso de verbos intransitivos? Neste caso, ao invés de postular
um preenchedor ilusório de lacuna real, como se pretende obter para
os nomes, nos exemplos acima, o parser postularia um preenchedor
ilusório de lacuna inexistente, como se depreende dos exemplos a seguir,
construídos com o verbo intransitivo “cair”:
(7)
Que rede o pescador caiu terça ao lançar com força na praia?
(8)
Que rede o pescador caiu ao lançar com força terça na praia?
(9)
Que rede o pescador caiu ontem ao lançar com força na
praia?
307
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
(10) Que rede o pescador caiu ao lançar com força ontem na
praia?
Naturalmente, o que está em jogo aqui é a importante questão
sobre as informações a que o parser teria acesso durante a fase inicial do
processamento. Se o parser tiver acesso imediato à grade argumental do
verbo, identificando-o como intransitivo, não seria lícito se esperar que
postulasse lacuna para interpretar o QU inicial após um verbo como
“cair” que, de fato, não projeta posição de complemento. Neste caso,
os tempos médios de leitura dos itens críticos (em negrito) não deveria
diferir, estejam eles contíguos ou distantes, sejam eles N ou Adv, pela
simples razão de que a lacuna como primeiro recurso só seria encontrada
após o segundo verbo destas frases (lançar), já que um verbo intransitivo
não projeta posição sintática de complemento.
A pesquisa sobre o papel da estrutura argumental dos verbos no
processamento de frases vem motivando um debate intenso pelo menos
desde meados da década de 80, dividindo os modelos de processamento
de frases em dois grandes grupos. De um lado, os modelos mais
estruturais (e.g. FRAZIER, 1989) propõem que os processos sintáticos
e semânticos constituam módulos separados, serialmente ordenados
em uma arquitetura que prevê que um processador sintático autônomo
forneça informações estruturais para um componente interpretativo que
não influencia as decisões de parsing do componente sintático. De outro
lado, outros modelos “baseados em restrições” preveem um acesso mais
imediato a informações lexicais, tais como a grade de subcategorização
dos verbos (e.g., MacDONALD, PEARLMUTTER, & SEIDENBERG,
1994; McRAE, SPIVEY-KNOWLTON, & TANENHAUS, 1998). Mais
recentemente, STAUB (2007) reporta estudos de rastreamento ocular
em que as restrições de subcategorização impostas pelo verbo foram
utilizadas para descartar o posicionamento de um objeto direto depois
de um verbo crítico. Os resultados dos experimentos sugerem que o
parser não colocaria uma lacuna de objeto direto depois de um verbo
308
Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira
intransitivo, não ignorando, portanto, as restrições de subcategorização
impostas pelo verbo.
1.4 A Hipótese Good-Enough
Finalmente, há um quadro teórico que já tem sido explorado em
trabalhos anteriores sobre o processamento de frases em PB e que
também pode ser de relevo no presente estudo. Trata-se da Hipótese
Good-Enough. CHRISTIANSON et alii.(2001), FERREIRA et alii (2002),
estudos também replicados, em parte, através de testes de compreensão
de frases equivalentes em português do Brasil por RIBEIRO (2008),
além de também discutidos em MAIA (2013), têm demonstrado que a
interpretação de frases nem sempre é plenamente articulada, podendo
resultar em representações semânticas imprecisas, incompatíveis com o
valor de verdade do input. MAIA (a aparecer) detectou a existência de
efeito do tipo good-enough, em construções ELP, nas respostas a perguntas
como, por exemplo, “O que o professor escreveu? (A) o livro (B) a tese”,
formuladas após a leitura de frases como (1) e (2), acima. O maior índice
de erros verificados no teste de rastreamento ocular na resposta a esta
pergunta após a frase (2), em que se registra o ELP, do que na frase (1),
não problemática, atesta que a disrupção da análise sintática decorrente
do ELP persiste para a fase interpretativa, produzindo interpretações
com maior grau de imprecisão, embora, em princípio, a estrutura deva
ter sido reanalisada durante o processamento on-line, como evidenciado
pelo padrão de movimento ocular regressivo e pelos maiores tempos de
fixação obtidos nas áreas críticas das frases do tipo ELP.
2 Experimento de Leitura automonitorada
Este experimento objetiva investigar se o efeito da lacuna preenchida
(ELP) em construções interrogativas-QU ocorreria mesmo em casos em
que a lacuna não está preenchida ou mesmo é inexistente, manipulandose como fatores a grade argumental do verbo, a natureza do adjunto,
309
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
que poderia ser constituído por advérbios reais (ontem, aqui) ou por
nomes em função adverbial (terça, quinta) e também a posição desses
constituintes. Dessa forma, as variáveis independentes do experimento
foram as seguintes: (1) a transitividade do verbo (Transitivo ou
Intransitivo), (2) a categoria gramatical do adjunto (Nomes ou
Advérbios), e (3) a posição do adjunto (Contíguo ou Distante). O
cruzamento dessas variáveis gera um design 2x2x2, produzindo as 8
condições experimentais exemplificadas no quadro a seguir, em que
também se indica, através de barras oblíquas, os segmentos em que se
dividiram as frases, destacando-se em negrito os segmentos críticos em
cada condição, além de se apresentar, também, exemplos das respectivas
declarativas finais, a serem avaliadas pelos sujeitos como medida off-line:
FIGURA 1: Exemplo de conjunto experimental com nomes
310
Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira
FIGURA 2: Exemplo de conjuntos experimental com advérbios.
A tarefa experimental consistiu na leitura automonitorada de
perguntas-QU divididas, cada uma, em sete segmentos, seguidas de
uma afirmação final sobre a frase, conforme exemplificado acima.
As variáveis dependentes foram a medida on-line dada pelos tempos
médios de leitura dos segmentos críticos (em negrito, nos exemplos) e
a medida off-line, aferida pelos índices de resposta na tarefa de avaliação
das declarativas finais4. As hipóteses explicitadas na introdução do artigo
nos levaram às seguintes previsões de resultados. Em primeiro lugar,
prevê-se que haveria um aumento nos tempos médios de leitura nos
segmentos críticos das frases na condição CTN em comparação aos das
frases na condição DTN. Identificando a categoria gramatical “nome”
do constituinte imediatamente contíguo ao primeiro verbo da sentença,
o parser seria levado à ilusão de postular, em um primeiro momento,
esse nome como um possível preenchedor da lacuna, entrando em
uma espécie de garden-path motivado pelo efeito da lacuna preenchida
4
Os tempos médios de resposta foram computados, mas não apresentaram diferenças significativas relevantes e não são reportados.
311
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
(ELP). Justifica-se, dessa forma, a previsão de que o nome contíguo
ao verbo apresente latências mais elevadas do que o nome distante,
pois haveria na condição com nome contíguo um efeito surpresa,
além de reanálise. Por outro lado, prevê-se que não haveria diferença
significativa nos segmentos críticos nas condições CTAdv e DTAdv. O
parser teria acesso rápido à informação sobre a categoria gramatical do
adjunto, identificando-a como advérbio e, dessa forma, não cometeria a
ilusão gramatical de analisá-lo como um possível falso preenchedor da
lacuna pós-verbal que o antecede. Por isso, não haveria razão para que
as latências do advérbio contíguo ao verbo diferissem das latências do
advérbio distante.
Em resumo, essa diferença entre advérbios reais e nomes em função
adverbial ocorreria porque o parser poderia sofrer uma “ilusão gramatical”,
postulando que o nome em função adverbial fosse um preenchedor de
lacuna, o que não ocorreria com o advérbio real, caracterizando-se,
assim, um caso de falibilidade seletiva do parser, no processamento de
uma construção com um ELP ilusório.
Prevê-se ainda que, se o parser não tiver acesso à grade argumental do
verbo, deveriam encontrar-se maiores latências nos segmentos críticos
das frases na condição CIN do que nas da condição DIN, de modo
semelhante ao que se prevê para as condições com verbos transitivos,
conforme descrito no parágrafo anterior. Não sendo capaz de acessar a
informação sobre a transitividade verbal rapidamente, o parser postularia
uma lacuna para analisar o sintagma-QU inicial mesmo após um verbo
intransitivo. Dessa forma o nome em função adverbial imediatamente
contíguo ao verbo também seria tomado como um preenchedor da
lacuna, tendo seus tempos médios de leitura mais elevados do que os
nomes distantes. Como se pressupõe que o parser tenha acesso imediato
à categoria gramatical dos itens em estruturação sintática, não se esperam
diferenças de latências na leitura dos advérbios reais entre as condições
CIAdv e DIAdv.
312
Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira
Quanto às variáveis dependentes off-line, prevê-se maior índice
de erros nas condições em que o nome está contíguo ao verbo, seja
ele transitivo ou intransitivo, uma vez que já se obteve em MAIA (a
aparecer) evidências para a persistência do ELP na fase final, integrativa,
do processo de compreensão de frases, evidenciando, como analisado
naquele estudo, efeito do tipo good-enough.
2.1 Método
Participantes:
Participaram 24 sujeitos, sendo eles 20 mulheres e 4 homens, 6 em
cada versão, todos estudantes de graduação de Letras da UFRJ, com
visão normal ou corrigida.
Material:
Foram utilizados 16 conjuntos de frases, como exemplificado nas
figuras 1 e 2. As frases foram organizadas de modo que cada sujeito
fosse exposto a todas as condições experimentais, mas a apenas uma
de quatro versões de cada conjunto de frases, caracterizando um
desenho em quadrado latino. Em cada versão, foram acrescentadas
32 frases distratoras, apresentadas randomicamente entre as sentenças
experimentais, pelo programa Psyscope. Os nomes e advérbios,
sempre constituídos por itens com duas sílabas, ocupavam o segmento
4 quando contíguos ao verbo e o segmento 6, quando distantes, tanto
nas condições transitivas, quanto nas intransitivas. O segmento 7 era
constituído por um Sintagma Preposicional, com a função de protetor,
encerrando a sentença.
Procedimento:
Os sujeitos foram testados no Laboratório de Psicolinguística
Experimental da Faculdade de Letras da UFRJ (LAPEX-UFRJ), em
313
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
equipamento iMac CORE i5, 4GB RAM, 500GB HD, com tela de 21
polegadas, rodando o programa Psyscope (build 57), no sistema operacional
X (Leopard). Devidamente orientado, o participante pressionava a barra
de espaço na leitura de cada segmento. Ao final da leitura de cada frase,
aparecia em outra tela uma declarativa final em cor diferente (azul) da cor
dos segmentos das frases, devendo o sujeito pressionar rapidamente uma
tecla correspondente à palavra SIM ou outra correspondente à palavra
NÃO, de acordo com a resposta que achasse mais adequada. Antes
de iniciar o experimento, os participante passavam por uma prática de
duas frases, sob a observação do pesquisador, que lhes indicava ajustes,
quando necessário, garantindo, assim, a eficácia da tarefa. Após esta
etapa, o pesquisador se retirava da sala e o participante dava início à
realização do experimento. Cada sessão experimental durava em torno
de vinte minutos.
2.2 Resultados e Discussão
Os tempos médios de leitura de cada um dos segmentos das oito
condições experimentais são apresentados nos gráficos 1 e 2 e também
nas tabelas 1 e 2, abaixo. Esses resultados foram analisados através de uma
análise de variância (ANOVA) por sujeitos, tomando-se como medidas
within subjects a categoria gramatical do adjunto (Nome x Advérbio), sua
posição (Contíguo x Distante) em relação ao verbo e a transitividade
do verbo (Transitivo x Intransitivo), em um design fatorial 2x2x2. O
resultado da ANOVA indicou um efeito principal altamente significativo
do fator “categoria gramatical” (F(1,47) = 9,27 p<0,003813), além de
efeitos principais significativos tanto do fator “posição” (F(1,47) =
6.62 p<0.013312), quanto do fator “transitividade” (F(1,47) = 4.22
p<0.045555).
314
Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira
GRÁFICO 1: Tempos médios de leitura dos segmentos em cada
condição experimental com nomes
TABELA 1: Tempos médios de leitura dos segmentos em cada
condição experimental com nomes
CTN
CIN
DTN
DIN
Seg1
Seg 2
Seg 3
Seg 4
Seg 5
Seg 6
Seg 7
604,4
642,4
617,5
618,6
617
616,5
550,5
607,6
566,1
585,8
553,5
557,3
664,1
618,6
556,6
704,4
624,5
618,6
581,6
661,5
642,3
600,3
483,1
584,2
731,2
604,5
574,1
638,1
GRÁFICO 2: Tempos médios de leitura dos segmentos em cada
condição experimental com advérbios
315
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
TABELA 2 – Tempos médios de leitura dos segmentos em cada condição
experimental com advérbios
Seg1
CTAdv 660,7
CIAdv 504,6
DTAdv 582
DIAdv 639
Seg 2
618,7
593,4
585,3
599,1
Seg 3
568,4
548,2
532,4
564,1
Seg 4
588,4
609,9
606,6
677,8
Seg 5
586,4
639,7
610,8
652,5
Seg 6
605,2
561,2
577,7
633,5
Seg 7
617,8
757,6
704,4
640,7
Também houve diferença significativa na interação Categoria
Gramatical x Transitividade (F(1,47) = 6.67 p<0.012976) e Posição
x Transitividade (F(1,47) = 5.71 p<0.020915). Entretanto, não houve
diferença significativa na interação Categoria Gramatical x Posição
(F(1,47) = 0.240 p<0.626646) e na interação Categoria Gramatical x
Posição x Transitividade (F(1,47) = 2.81 p<0.100122). Também foram
realizados testes-t com os cruzamentos relevantes. Cruzaram-se o tempo
médio de leitura do segmento 4 (664 ms) na condição CTN e o segmento
6 (483ms) na condição DTN, obtendo-se o resultado significativo,
apontando para a direção esperada (t(47)=3.00 p< 0.0043), a saber, os
tempos médios de leitura do nome contíguo ao verbo transitivo são
significativamente mais elevados do que os tempos de leitura do mesmo
conjunto de nomes quando estavam em posição distante do verbo,
evidenciando a existência do ELP em cenário de ilusão gramatical,
conforme previsto.
Fazendo o mesmo tipo de análise, focalizando, agora, as condições
com os advérbios reais, cruzaram-se o tempo médio de leitura do
segmento 4 na condição CTAdv, que foi lido em 588,4 ms e o segmento
6 na condição DTAdv, lido em 577,7 ms, não se obtendo resultado
significativo, em conformidade com as previsões (t(47)=1.61 p< 0.1140).
O advérbio contíguo é lido, portanto, em tempos fundamentalmente
semelhantes aos tempos do advérbio distante. Resultado semelhante foi
encontrado mesmo para os nomes, nos cruzamentos das condições em
316
Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira
que o verbo era intransitivo. Cruzando-se os tempos médios de leitura
do segmento 4 da condição CIN (618,6 ms) com o os tempos médios
de leitura do segmento 6 da condição DIN (584,2 ms), não se obteve
resultado significativo, como indicado no teste-t (t(47)=1.19 p< 0.2391),
o que evidencia que as latências nas posições contígua e distante do
verbo intransitivo são indistintas. Da mesma forma, quando cruzados
o segmento 4 da condição CIAdv (609,9 ms) com o segmento 6 da
condição DIAdv (633,5 ms), também não se obteve nenhum resultado
significativo, o que apontou para a direção já esperada, (t(47)=1.23 p<
0.2248). Esses resultados sugerem, portanto, acesso rápido do parser à
informação sobre a grade argumental do verbo, permitindo qua a lacuna
não seja postulada após os verbos intransitivos, e evitando, assim, a
ilusão gramatical que se verificou no caso de verbos transitivos.
Os resultados das medidas off-line relativas aos índices de acerto, estão
expressos nos Gráficos 3 e 4, que indicam os percentuais de acertos nas
respostas às sentenças declarativas finais das condições com nomes e
advérbios, respectivamente. Analisando o Gráfico 3, observam-se índices
de acertos significativamente mais elevados na condição em que o nome
está distante do verbo transitivo do que na condição em que o nome está
contíguo ao verbo (X2=5,5, p=0,01). Esta diferença indica persistência
da ilusão gramatical verificada na medida on-line, demonstrando efeito
good-enough, uma vez que os sujeitos equivocam-se mais na interpretação
das frases em que os nomes se encontram na posição de preenchedor
ilusório da lacuna, justamente as mesmas em que apresentaram maior
dificuldade de leitura, na medida on-line. Observe-se, em contraste, que o
mesmo não se instancia nas condições com advérbios reais nas condições
com verbos transitivos. Os índices de acerto obtidos para os advérbios
contíguos a verbos transitivos não é significativamente diferente do que
se obteve para os advérbios distantes (X2=0,47, p=0,49). Por outro lado,
nas condições com verbos intransitivos, não se observam diferenças
nos percentuais de acerto, seja com nomes (X2=0.05, p=0,82), seja com
317
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
advérbios (X2=1,35, p=0,24), confirmando o que já se verificara nas
medidas on-line, a saber, os verbos intransitivos, detectados cedo pelo
parser, não o levam à postulação ilusória da lacuna e, consequentemente,
não apresentam o perfil de acertos diferenciados entre as condições
contígua e distante, observado para os nomes após verbos transitivos.
A diferença significativa entre o índice de acertos mais elevados obtido
para os nomes contíguos a verbos intransitivos do que para os nomes
contíguos a verbos transitivos (X2=4,5, p=0,03) é evidência adicional
em favor do achado de que a ilusão da lacuna preenchida, só ocorrendo
depois de verbos transitivos, não persiste na interpretação de verbos
intransitivos.
GRÁFICO 3: Percentuais de acerto das declarativas finais das condições
com nomes
318
Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira
GRÁFICO 4: Percentuais de acerto das declarativas finais das condições
com advérbios
Conclusões
Os resultados expostos acima precisam ser avaliados, tendo em
vista as questões teóricas que fornecem os quadros de referência da
presente pesquisa, que foram apresentados na introdução do artigo. Em
primeiro lugar, é importante destacar que a ilusão da lacuna preenchida
que leva o parser à falibilidade seletiva, já que se equivoca, analisando
adjuntos nucleados por nomes – mas não por advérbios – como sendo
argumentos preenchedores de lacuna, é reveladora de que o processador
é estruturalmente ativo na satisfação de condições gramaticais em tempo
real. A busca ativa pela satisfação imediata das condições gramaticais de
licenciamento de um sintagma-QU em posição A-barra, na periferia
esquerda da sentença, parece ser um algoritmo determinístico cuja
automaticidade pode levar a falências de análise, como parece ter sido
o caso no experimento de leitura automonitorada reportado na seção
anterior. Esta falência, como se viu, é, no entanto, seletiva, modulada
319
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
pela informação imediatamente disponível sobre a categoria gramatical
do item em estruturação no processamento da frase. Naturalmente,
um tal procedimento acomoda-se adequadamente nos termos de
teorias de processamento mais estruturais, como a Teoria do GardenPath (e.g., FRAZIER, 1979, 1987;), que propõe que, em um primeiro
estágio, a informação sobre a categoria gramatical é acessada rápida e
prioritariamente na análise serial e incremental da estrutura sintática.
Por outro lado, no entanto, os resultados obtidos no experimento,
relativos à manipulação do fator transitividade verbal, sugerem que, além
da informação categorial, a informação sobre a grade de subcategorização
do verbo também parece ser acessada cedo pelo processador. Se, como
vimos, o parser pode se iludir postulando um nome em adjunção ao
verbo como um falso preenchedor de lacuna não preenchida, o parser
não se ilude, no entanto, diante de uma lacuna inexistente, como é o
caso de verbos intransitivos. Em outras palavras, a análise de fundo
estritamente estrutural do Princípio do Antecedente Ativo poderia
ser sensível à informação sobre a grade de subcategorização do
verbo. Ora, o acesso imediato a informações de base lexical, como a
informação sobre a transitividade verbal, tem sido proposto no âmbito
das chamadas teorias de “satisfação de condições ou de restrições”
(e.g., MacDONALD, PEARLMUTTER, & SEIDENBERG, 1994;
McRAE, SPIVEY-KNOWLTON, & TANENHAUS, 1998), que se
opõem tradicionalmente, na literatura de Processamento de Frases, a
teorias de base mais estritamente estrutural como a Teoria do GardenPath, em cujo quadro o Princípio do Antecedente Ativo e o Efeito da
Lacuna Preenchida têm sido formulados. A questão que naturalmente se
colocaria, então, na interpretação dos achados reportados no presente
artigo seria a de se saber se os mesmos aduziriam evidência contrária
aos modelos mais estruturais e em favor dos modelos de satisfação
de condições. Questão similar foi discutida por STAUB (2007), que
apresenta resultados de experimento de rastreamento ocular de frases do
320
Marcus Maia, Amanda Moura e Fernando Lúcio de Oliveira
tipo “antecedente-lacuna” (filler-gap), identificando o acesso rápido pelo
processador justamente à informação sobre a intransitividade verbal. A
conclusão de Staub sobre a questão parece-nos pertinente também no
caso dos achados do presente artigo:
Embora a teoria do garden-path não esteja comprometida
com a proposta de que o parser ignora a informação
sobre a subcategorização, a possibilidade de que o parser
aplique suas preferências estruturais sem levar essa
informação em conta é consistente com a teoria (...) Em
suma, se a informação de subcategorização restringir a
análise estrutural inicial do parser, isto é consistente com
(uma versão de) a teoria do garden-path, bem como com
a posição de satisfação de condições; contudo se o parser
ignorar inicialmente a informação de subcategorização
verbal, isto é consistente somente com a teoria do gardenpath5.
Por outro lado, tentando ir além da postura conciliatória de Staub,
parece-nos legítimo refletir sobre uma circunstância interessante que
vem à luz, comparando-se as informações acessíveis e não acessiveis ao
parser. Como vimos, um processador maximamente comprometido com
a satisfação de condições gramaticais seria capaz de acessar rapidamente
não só a categoria gramatical dos itens em estruturação, mas também a
grade de subcategorização dos verbos. Trata-se esta última, no entanto,
de uma informação de base lexical, sem dúvida, mas na interface
sintaxe/semântica. Em contraste, conforme demonstrado em MAIA
5
Although the garden path theory is not committed to the claim that the parser ignores
subcategorization information, the possibility that the parser applies its structural preferences
without taking this information into account is consistent with the theory. (…) In sum, if verbal
subcategorization information constrains the parser’s initial structural analysis, this is consistent
with (a version of) the garden path theory, as well as with the constraint satisfaction position;
however, if the parser initially ignores verbal subcategorization information, this is consistent
only with the garden-path theory (STAUB, 2007, p. 551)
321
Ilusão Grmatical e Falibilidade Seletiva no Processamento de Lacunas Não Preenchidas em
Português Brasileiro
(a aparecer), uma inadequação de base puramente semântica (ou
semântico/pragmática) não seria suficiente para evitar o ELP (e.g. Que
livro o professor cozinhou a tese sem ler antes?). Constata-se, portanto,
a existência de prioridade de acesso da sintaxe sobre a semântica. Assim,
a ideia motriz dos modelos syntax-first poderia ainda ser preservada,
já que no caso de uma informação de interface sintaxe/semântica há
acesso rápido do parser, ao contrário do que se dá com respeito a uma
informação apenas semântica.
Finalmente, cabe ainda uma reflexão sobre o efeito good-enough
registrado na medida off-line do experimento de leitura automonitorada
reportado no presente artigo. Seria de se esperar que, após a reanálise do
falso ELP em que o parser entrou, diante de um nome contíguo ao verbo
e à lacuna, a interpretação final pudesse recuperar o valor de verdade da
frase. Entretanto, como exposto na seção de resultados, o percentual
menor de acertos na avaliação da afirmativa após cada frase lida deuse, justamente, na condição em que o nome gera a ilusão gramatical
de que estaria preenchendo a lacuna contígua, levando o parser a falhar
em sua análise inicial da estrutura. Esta disrupção no parsing interfere,
portanto, na fase integrativa do processo de compreensão de frases,
demonstrando, mais uma vez, que a interpretação final nem sempre é
plenamente articulada e especificada.
Referências
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324
A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DO JORNALISTA
EM UM EDITORIAL DA REVISTA VEJA: REFLEXÕES
SOBRE AS PRÁTICAS DISCURSIVAS MIDIÁTICAS1
Vinícius Durval DORNE2
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Pedro NAVARRO3
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
RESUMO
A partir da Análise de Discurso de linha francesa (AD), especialmente dos pressupostos
teóricos desenvolvidos por Michel Foucault,neste artigo, buscamos compreender como se
materializam as práticas discursivas midiáticas que produzem identidades do sujeito
jornalista. Para tanto, analisamos algumas sequências enunciativas presentes em uma
matéria produzida pela revista Veja, intitulada Qualidade sem diploma. Considera-se como
acontecimento discursivo dessa produção a votação do Supremo Tribunal Federal, realizada
em 17 de junho de 2009, que decidiu pela não obrigatoriedade do diploma de Jornalismo
para o exercício da profissão. Observamos que a identidade do jornalista é construída em
torno da ideia de liberdade de informação e de expressão. Além desse aspecto, nos enunciados,
o mito do “dom”, como algo inato e/ou adquirido pela experiência no exercício da profissão,
também produz efeitos sobre essa identidade.
1
A presente pesquisa contou com o apoio do Programa de Bolsas Ibero-Americanas para Jovens
Professores e Pesquisadores Santander Universidades.
2
Doutorando em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista “Júlio
Mesquita Filho” (UNESP – campus Araraquara). Atualmente, docente e coordenador dos
cursos de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo e Publicidade e Propaganda, do
Centro Universitário Cesumar (UniCesumar).
3
Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita
Filho” (UNESP – campus Araraquara). Atualmente, docente no Programa de Pós-Graduação
em Letras (Mestrado e Doutorado) da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e coordenador
do GEF - Grupo de Estudos Foucaultianos da UEM
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 325-347, jan./jun. 2014
A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as
Práticas Discursivas Midiáticas
ABSTRACT
Based on the French Discourse Analysis (AD), especially on Michel Foucault’s theoretical
presuppositions, current essay analyzes the materialization of media discursive practices which
give identity to the journalist as a subject. Then, we analyzed enunciation sequences in articles
published by the magazine Veja, entitled Quality without diploma. The discursive event of
such production is investigated within the context of the voting held at the Brazilian Federal
Court of Justice on the 17th June 2009 which ruled on the non-obligatory of a journalist
university diploma to warrant the profession. We observe that the journalists’ identity is built
on notions of the freedom of speech and of the press. Further, in the enunciations, the ‘ability
myth’, as an innate and/or acquired factor received through experience in the exercise of the
profession, also produces effects on identity.
PALAVRAS-CHAVE
Acontecimento discursivo. Análise de discurso. Identidade. Jornalista.
KEYWORDS
Discursive event. Discourse analysis. Identity. Journalist.
Introdução
A relação indissociável entre esses dois campos – saber e poder –
regula sobremodo os regimes de verdade em nossa sociedade, ou seja,
aquilo que poderá ser dito e, mais ainda, aquilo que “pode” e “deve” ser
dito para ser aceito como verdadeiro. Afinal, a verdade nada mais é que
uma construção sócio-histórica regulada pelos sujeitos no e pelo discurso.
É pelo discurso, assim, que a sociedade se constitui, que o homem
se (re)constrói, que relações entre os sujeitos e deles com a sociedade
são firmadas. Desse entendimento, depreende-se que o discurso é, antes
de tudo, uma “prática” exercida nas mais ínfimas relações humanas, mas
também do sujeito com o próprio objeto.
326
Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro
Considerando a importância do estudo do discurso para que
se compreenda a relação entre sujeito e história, amparamo-nos na
Análise de Discurso (AD) de linha francesa, com especial atenção aos
pressupostos do teórico e filósofo francês Michel Foucault. O que
almejamos é, retomando as palavras de FOUCAULT (2010, p. 49),
descrever determinados tipos de discurso que “podem ser observados
em uma cultura e as condições históricas, as condições econômicas, as
condições políticas de seu aparecimento e de sua formação”.
Assim, neste artigo, analisamos como se materializam práticas
discursiva midiáticas que, ao mesmo tempo, objetivam e subjetivam o
sujeito jornalista, após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF),
impingindo-lhe identidade(s). Selecionamos como corpus para análise a
revista Veja, especificamente o editorial Qualidade sem diploma, de 24 de
junho de 2009. Para tanto, tomamos o seguinte acontecimento discursivo
que delimita nossa pesquisa: em 17 de junho de 2009, por oito votos a
um, ou seja, pela grande maioria dos votos, o Supremo Tribunal Federal
(STF) decidiu que o diploma de jornalismo não era mais requisito
obrigatório para o exercício da profissão.
Tratamos este fato como um acontecimento discursivo por fugir à
estrutura da história e romper com a “rede causal” até então estabelecida,
apresentando-se como algo único, por vezes inesperado (POSSENTI,
2006). Os enunciados midiáticos analisados neste estudo, bem como
aqueles aqui não abarcados, que surgiram a posteriori, só foram possíveis
por causa desse acontecimento singular.
O caráter de “acontecimento” dado à decisão do STF se deve ao fato,
também, de nem toda a sociedade estar ciente de que havia uma discussão
no país referente à (não) obrigatoriedade do diploma para o exercício da
profissão de jornalista. Em decorrência dessa votação, especialmente a
mídia se voltou para o assunto e a informação se propagou a um número
expressivo de pessoas. Houve repercussão. Enfim, o acontecimento virou
especial e, a partir dele, produziu-se uma série de discursos referentes ao
327
A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as
Práticas Discursivas Midiáticas
fato em si. Posteriormente, esse acontecimento foi tema de reportagens,
artigos de opinião, declarações, matérias especiais e charges por parte
de diversos veículos de comunicação e motivo de debates, levantes e
protestos. Foi tão somente por conta desse fato que discursos puderam
ser formulados e circulados, produzidos e veiculados.
1 Algumas reflexões sobre/para uma abordagem
foucaultiana
Se é fato que poderíamos dizer que Michel Foucault não foi
propriamente um analista do discurso, suas obras e, consequentemente,
as abordagens, noções e implicações presentes nos estudos do filósofo
contribuíram sobremaneira para as pesquisas sobre o discurso. Vemos
desenhar-se, assim, um cenário marcado por um ir-e-vir constante por
parte de estudiosos da corrente da Análise de Discurso (AD) francesa às
obras de Foucault, para subtrair dele reflexões e questionamentos que,
notoriamente, ajudam na construção de uma base teórico-metodológica
de adentramento no corpus de maneira discursiva.
Inseridos nessa vertente teórico-metodológica, nosso trabalho se
concentra em duas grandes noções foucaultianas: saber e poder. Os
saberes existentes em nossa sociedade são construídos pelo/no discurso
e, consequentemente, mantêm uma íntima relação com os regimes de
poder instaurados e exercidos nessa sociedade. FOUCAULT (2008b)
explicita que saber e poder não podem ser pensados separadamente,
pois são interdependentes. Da mesma forma que os saberes instauram
e/ou modificam os poderes exercidos socialmente, as práticas de poder
também podem instaurar/modificar os saberes existentes. Assim,
adentrar os caminhos propostos na arqueogenealogia foucaultiana
(relação saber/poder) em consonância com os estudos da Análise de
Discurso (AD) francesa acarreta problematizações acerca de diferentes
conceitos, tais como história, memória, discurso, sujeito, e algumas
implicações decorrentes deles.
328
Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro
Dessa forma, observamos a cisão que a Arqueologia, proposta por
Foucault, impõe à História das Ideias: distanciando-se dos postulados e
procedimentos dessa disciplina ligada à análise tradicional da história –
fixada em bases sólidas denominadas gênese, continuidade e totalização
– a Arqueologia busca uma nova forma, inteiramente diferente, de
fazer história daquilo que os homens disseram. Consequentemente, o
trato dado ao “discurso” na Arqueologia será totalmente diverso do
comumente feito na História das Ideias, pois o abandona enquanto
“documento”, signo transparente, para tratá-lo como “monumento”, ao
considerar sua opacidade importuna.
A Arqueologia – longe de determinar e dar prioridade entre o que
seria um enunciado novo ou não – busca revelar a regularidade de
dada prática discursiva. Ao compreender como as práticas discursivas
midiáticas objetivam/subjetivam o sujeito jornalista, é preciso de antemão
buscar regularidades que apontem para esse processo de objetivação/
subjetivação. É também a partir dessa concepção do que é a Arqueologia
que não nos empenharemos em descobrir um pseudoenunciado
fundador, as invenções ou o momento primeiro em que alguém julgou
estar certo de determinada verdade. Como alerta FOUCAULT (2008a),
isso nada mais é do que um mito: o de que podemos reconstituir a origem
dos discursos e de que somos também a origem de nossos discursos.
Assim, pelo caminho da Arqueologia, tratamos os discursos em sua
especificidade, levantando regras que os regem, indo até a exterioridade
para compreender melhor uma maneira de descrevê-los e interpretálos. A Arqueologia procura definir os “discursos” enquanto “práticas”
sujeitas às regras em vez de definir pensamentos, representações,
imagens e temas ocultados ou manifestados nos discursos. O discurso
não é tratado como “documento”, signo transparente, mas, devido à
sua opacidade importuna, deve ser tratado como “monumento”, de
modo a reencontrar a “profundidade essencial”. A Arqueologia não é
uma disciplina interpretativa: não busca mais o “outro discurso” oculto.
“Recusa-se a ser alegórica” (FOUCAULT, 2008a, p.157).
329
A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as
Práticas Discursivas Midiáticas
A Arqueologia abre mão da soberania da “obra”, assim como do
momento em que se desvinculou do horizonte anônimo. A “obra” não
lhe é pertinente, nem mesmo em seus pontos de contato com o contexto
global e as redes de causalidade que a regem. Desvincula-se do momento
de encontro entre o social e o individual. Em contramedida, perscruta
regras de práticas discursivas que atravessam as obras individuais e
muitas vezes as regem inteiramente (ou só parcialmente), de modo a
não permitir que nada lhes escape. Questiona-se o sujeito criador
enquanto responsável por determinada obra e, consequentemente, por
seu princípio organizador.
Ainda, a Arqueologia abandona a reconstituição do que foi almejado,
intencionado, pensado pelos homens no momento em que proferiram
o discurso. Recusa a simbiose identitária entre autor e obra, na qual o
pensamento fica alojado e próximo de si, onde a linguagem ainda não
rumou para a dispersão espacial e sucessiva do discurso. Dessa forma,
ela não busca repetir o “já dito”, nem reencontrar sua identidade;
muito menos busca a “luz longínqua” e “precária” da origem do dizer.
A Arqueologia é nada mais nada menos que uma reescrita: “na forma
mantida da exterioridade, uma transformação regulada do que já foi
escrito. Não é o retorno ao próprio segredo da origem; é a descrição
sistemática de um discurso-objeto” (FOUCAULT, 2008a, p.158).
Dentro desse empreendimento, FOUCAULT (2008ª, p.133) irá
denominar discurso como:
[...] um conjunto de enunciados, na medida em que se
apóiem na mesma formação discursiva; [...] é constituído
de um número limitado de enunciados para os quais
podemos definir um conjunto de condições de existência.
Como propõe FOUCAULT (2008a), o discurso não é algo
meramente repetível e seu aparecimento não poderia ser facilmente
assinalado na história. O discurso é uma “prática”, um “fragmento de
330
Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro
história”, unidade e mesmo descontinuidade nessa própria história. É
essa história que impõe os limites, os recortes, as transformações e os
modos específicos da temporalidade do discurso, portanto não se trata
de marcar seu surgimento abrupto no interior das cumplicidades do
tempo.
Frente a esse entendimento, podemos afirmar que os enunciados por
nós analisados se constituem em práticas discursivas, pois constroem
um discurso, um regime de verdades sobre a figura do jornalista. Foram
os discursos a respeito da figura do jornalismo que possibilitaram, por
exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de dispensar o
diploma como requisito obrigatório para o exercício do jornalismo; ou
seja, é o discurso realmente exercido como uma “prática”.
Desta forma, não se trata de buscar a origem, a gênese de um discurso,
mas descrever (interrogando) o que já foi dito, a função enunciativa que
está se exercendo, a formação discursiva da qual pertence, o sistema geral
do arquivo do qual faz parte, pois “a arqueologia descreve os discursos
como práticas especificadas no elemento do arquivo” (FOUCAULT,
2008a, p. 49).
2 A relação indissociável entre saber e poder
Quando pensamos a mídia como uma esfera produtora e
disseminadora de informação, não corremos o risco quando a julgamos
uma esfera que em nossa sociedade produz o saber, mas em que o poder é
exercido também. Afinal, nos perguntamos: “quem tem o direito de falar
na mídia?”. Sabemos que não é qualquer um que a qualquer momento
pode fazer isso. Assim, trazer a discussão realizada por Foucault sobre
o poder é, antes de tudo, uma forma de ressaltar quanto o exercício do
poder, vinculado aos discursos que se originaram após a decisão judicial
do STF, incide diretamente sobre os sujeitos. Podemos verificar isso
no momento em que observamos que, a partir dessa decisão – que é
331
A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as
Práticas Discursivas Midiáticas
também uma forma de exercício do poder – pessoas outras que não
aquelas portadoras de diploma na área começaram a atuar na atividade
de jornalista, que muitos cursos de Jornalismo no Brasil estão revendo
suas matrizes curriculares e que muitos sujeitos estão abandonando ou
mesmo não mais se matriculando nesse curso etc.
Ao considerar a discussão sobre saber e poder em Foucault,
compreendemos que o sujeito passa a ser objetivado por “práticas
divergentes”, dividido no interior de si mesmo e submetido a regimes e
técnicas disciplinares (GREGOLIN, 2006). Todavia, ressaltamos que a
questão do poder em Foucault está desarticulada da concepção do poder
isolado somente nas macroestruturas da sociedade; ao contrário, o poder
é exercido e está disperso nas mais ínfimas relações humanas. Além de
esse poder ser “micro”, espalhado em todas as relações da sociedade,
ele é, principalmente, produtor de saber. De acordo com MACHADO
(2008), não há em Foucault algo unitário e global chamado poder,
mas “formas díspares, heterogêneas, em constante transformação”
(MACHADO, 2008, p. 10); em vez de ser uma “coisa”, um “objeto
natural”, o poder deve ser compreendido como uma “prática social”,
construída historicamente.
Desta forma, deve-se observar como o poder se exerce
“concretamente e em detalhe, com sua especificidade, suas técnicas e
suas táticas” (FOUCAULT, 2008b, p. 06), atentando-se às “malhas mais
finas da rede do poder”, no funcionamento geral de suas engrenagens,
não somente à sua significação econômica. Distante da dicotomia do
poder em um nível macro ou micro, o poder deve ser observado nas
formas mais regionais e concretas, atingindo materialmente a vida dos
sujeitos, no nível do “próprio corpo social, e não acima dele, penetrando
na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micropoder
ou subpoder” (MACHADO, 2008, p. 12). Esse entendimento irá refletirse tanto no espaço da análise como no nível em que ela se efetua, uma
vez que os procedimentos técnicos de poder incidem num controle
332
Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro
minucioso e detalhado no corpo, nos gestos, atitudes, comportamentos,
discursos, etc.
MACHADO (2008) pondera que, ao poder somente opressor que
atinge os cidadãos, impondo limites, castigando, oprimindo, Foucault
acrescenta uma “concepção positiva”, produtiva, transformadora, que
busca dissociar dominação e repressão. De acordo com o autor, longe de
dizer que o poder exclui, reprime, recalca, censura, abstrai, mascara, fazse necessário compreender que o poder “produz o real; produz domínios
de objetos e rituais de verdade” (MACHADO, 2008, p. 16). Em vez
de alvejar o corpo humano e supliciá-lo, mutilá-lo, cumpre aprimorá-lo,
adestrá-lo. De acordo com o autor, trata-se de observar que todo saber
tem sua origem em relações de poder: saber e poder estão intrinsecamente
ligados. Toda constituição de um campo de saber está ligada a relações
de poder; assim como novas relações de poder são construídas a partir
de um campo do saber: “todo ponto de exercício de poder é, ao mesmo
tempo, um lugar de formação de saber” (MACHADO, 2008, p. 21).
3 A subjetivação do jornalista em um editorial da revista
Veja
Considerando as reflexões de Foucault sobre sujeito, história,
discurso, saber e poder, selecionamos para nossa análise o editorial
Qualidade sem diploma, de 24 de junho de 2009, da revista Veja. Utilizamos
como critério de seleção, material jornalístico publicado logo quando da
decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e que, de uma forma ou de
outra, tratariam de assuntos correlacionados – enunciados posteriores
ao acontecimento, mas que só foram possíveis por sua irrupção.
Para princípio de análise, é preciso se atentar que Veja é uma revista
de circulação semanal há mais de 40 anos no mercado; é publicada pela
Editora Abril com tiragem superior a um milhão de exemplares, atingindo
8.774.000 leitores. O preço de capa da publicação é de R$ 8,90. O perfil
333
A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as
Práticas Discursivas Midiáticas
do leitor da revista é composto de 47% de leitores do sexo masculino e
53% do sexo feminino. Do total, 46% são da “classe B”, 28% da “classe
A”, 23% da “classe C”, 3% da “classe D” e 0% da “classe E”. O Sudeste
é a região com mais leitores (58%), seguido pelo Sul (15%), Nordeste
(14%), Centro-Oeste (9%) e Norte (4%). A faixa etária dos leitores de
Veja é de 25 a 34 anos (22%), acima de 50 anos (22%), entre 35 a 44 anos
(21%), 20 a 24 anos (12%), 15 a 19 anos (10%), 45 a 49 anos (9%) e 10
a 14 anos (3%) (VEJA, 2010).
Assim, no presente enunciado (editorial), buscamos interrogar:
como se materializam as práticas discursivas midiáticas que, ao mesmo
tempo, objetivam e subjetivam o profissional jornalista? Este se torna
tanto o “objeto” de que se fala quanto o “sujeito” que é caracterizado, ao
qual lhe impinge uma identidade: delimita-se, circunscreve-se o sujeito
por meio de práticas discursivas.
Ao atentar para a posição sujeito em relação ao enunciado enquadrado
no gênero editorial, é preciso lembrar que não se trata da opinião de um
autor, mas da opinião oficial da empresa jornalística diante de um fato de
grande repercussão (MARQUES DE MELO, 1994). Assim, por não ter
um único autor responsável, o editorial não é assinado, sendo de inteira
responsabilidade da instituição jornalística. Como alerta FOUCAULT
(2009), a produção do discurso e a vontade de verdade apoiam-se sobre
um suporte institucional que legitima e, consequentemente, autoriza
o sujeito a profererir/produzir determinado discurso. Destarte, ao
tratarmos da posição sujeito não é possível desvinculá-lo da instituição
dentro da qual o enunciado emerge.
Em decorrência disso, o indivíduo responsável por formalmente
produzir esses enunciados, seja do editorial seja das matérias jornalísticas,
não pode dizer qualquer coisa a respeito de um assunto a seu bel prazer,
afinal esse sujeito é atravessado pelos sentidos da instituição de onde fala
e para quem fala. FOUCAULT (2009, p.09) chama-nos a atenção para
tal fato: “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se
pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim,
não pode falar de qualquer coisa”.
334
Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro
Para MARQUES DE MELO (1994), embora estejam formalmente
dirigidos à opinião pública, os editoriais estabelecem uma forte relação
dialógica com o Estado. Neste sentido, a empresa jornalística procura
apontar ao Estado a maneira como os assuntos de caráter público
deveriam ser tratados, orientados. Ademais, como se trata da revista
Veja, todo e qualquer sujeito para escrever esse editorial (enunciado)
deve estar alinhado à política editorial dessa empresa jornalística.
É a legitimação conferida ao sujeito editorialista pela própria
instituição que permite a produção de construções como a que
apresentamos abaixo. São afirmações imperiosas que refletem a opinião
da empresa jornalística, de modo que só podem ser produzidas com sua
autorização. O princípio da interdição está marcado fortemente:
(1)
“[...] a exigência [do diploma] teve o seu ridículo exposto
por uma comparação brilhante de Gilmar Mendes [grifos
nossos]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed.
2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009. )
(2)
“Ao defender o fim dessa excrescência, o relator do caso,
ministro Gilmar Mendes, disse que ela atentava contra a
liberdade de expressão garantida pela Constituição Federal a
todos os cidadãos [grifos nossos]” (Qualidade sem diploma.
[Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009. )
A fala jornalística do editorial, consequentemente, não pode vir
de alguém qualquer: há traços que definem o funcionamento desse
espaço em relação a toda a sociedade. Esse espaço já é (re)conhecido
e deve ser ocupado pelo sujeito de direito, responsável por articulálo, reivindicando para si o poder de exprimir a opinião sobre um fato
de grande repercussão em nome de um veículo jornalístico. Vemos
desenhar-se a “posição sujeito”, outra modalidade enunciativa proposta
por FOUCAULT (2008a), muito próxima a esse status do sujeito que
335
A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as
Práticas Discursivas Midiáticas
fala. A posição sujeito – aquela que qualquer indivíduo pode ocupar na
rede de informações – do editorialista é a daquele que pode e deve emitir
uma opinião coadunada com a da empresa jornalística, como podemos
observar em sequências enunciativas do corpus, do qual são destacadas
as seguintes:
(3)
“Poderão ganhar também as faculdades de jornalismo, que
terão de rever currículos, a fim de formar alunos mais bem
preparados para uma competição que se afigura mais dura
[grifo nosso]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja,
ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009.)
(4)
“Qualidade sem diploma” (Qualidade sem diploma. [Carta ao
leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009.)
Os excertos manifestam afirmações categóricas que representam a
opinião da empresa jornalística. Os verbos utilizados não abrem margem
para dúvida, constroem o texto de forma que a “verdade” ali colocada
é a única possível. Para a revista Veja, é “certo” que as faculdades de
comunicação “terão” de rever seus currículos, não é uma possibilidade;
trata-se de algo já dado como certo. A própria afirmação expressa
no título do editorial de Veja “Qualidade sem diploma” (excerto 4)
direciona para essa construção típica dos editorais de fugir do campo
das “possibilidades” em proveito das “certezas” e das “afirmações”.
Observamos, assim, no corpus analisado, uma (re)citação de
tantos outros enunciados coexistentes no mesmo campo associado.
Vislumbramos que o enunciado analisado está imerso num campo
associado, em que uma memória discursiva está a todo o momento
operando uma série de enunciados relativos à definição do que é a
prática jornalística, aos princípios que regem a profissão, ao modo como
se configura e se constrói uma matéria jornalística (notícia, reportagem,
entrevista, artigo, editorial etc.), como observamos no seguinte trecho:
336
Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro
(5)
“O fim da obrigatoriedade alinha o Brasil com as nações
onde o jornalismo abriga, sem embaraços de nenhuma
espécie, todos aqueles que encontraram no ambiente dos
meios de comunicação a melhor maneira de dividir o que
aprenderam nos campos da economia, da ciência, do direito,
das artes, da moda e do esporte [grifos nossos]” (Qualidade
sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24
jun. 2009.)
Dessa forma, o jornalista é caracterizado como aquele que procura
“dividir” o conhecimento adquirido em algum curso superior (excerto 5)
e aquele que se dedica à liberdade de expressão e de informação. Esses
sentidos, presentes na memória social, são resgatados para caracterizar a
prática jornalística, o jornalismo e o profissional jornalista.
Vemos também uma memória ser reativada quanto à (não)
necessidade de formação em curso superior para a investidura em
determinada profissão (ressaltamos que não são apenas os enunciados
relativos ao campo do jornalismo que reverberam, mas entra em pauta
também a necessidade de diploma para tantas outras profissões, como
médico, advogado, engenheiro etc.), como se pode visualizar nos
seguintes recortes:
(6)
(7)
“A obrigatoriedade do diploma foi impingida em 1969,
auge do regime de exceção instalado cinco anos antes, não
para melhorar o jornalismo brasileiro, mas para controlar
o acesso às redações de repórteres, editores e fotógrafos que
eram considerados ameaçadores aos generais [grifos nossos]”
(Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano
42, nº25, 24 jun. 2009.)
“Além de ferir o direito constitucional, já que impedia
pessoas formadas apenas em outra área de manifestar
337
A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as
Práticas Discursivas Midiáticas
seu conhecimento e pensamento por meio da atividade
jornalística, a exigência teve seu ridículo exposto [...] [grifos
nossos” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed.
2118, ano 42, nº 25, 24 jun. 2009.)
Diante de alguns dos trechos que remetem à (não) necessidade do
diploma, é possível observar que vão sendo resgatadas informações que
buscam justificar, ou não, a exigência de diploma para o exercício da
profissão jornalista. Constrói-se um discurso segundo o qual o diploma,
por ter sido estabelecido como obrigatório na época do regime militar,
não melhora a prática jornalística (excerto 6).
Também é possível observar nos enunciados analisados princípios
éticos e morais que um profissional – no caso, o jornalista - deve seguir
e respeitar. A partir do momento em que se questiona a necessidade de
diploma para o exercício da profissão, resvala-se num campo discursivo
que procura definir/caracterizar o “bom” profissional, estabelecendo
funções, preceitos e práticas que devem ser seguidos, como se verifica
no seguinte recorte:
(8)
“‘Os jornalistas são aquelas pessoas que se dedicam
profissionalmente ao exercício pleno da liberdade de
expressão [...]’, afirmou o ministro” [grifos nossos] (Qualidade
sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº 25, 24
jun. 2009.)
Uma regularidade se apresenta: especificamente para os casos de jornalistas,
relativiza-se a formação em ensino superior para o exercício da profissão. O
jornalista é então caracterizado como alguém que não precisa do diploma
para exercer a profissão com qualidade; logo, desvincula-se a profissão,
como também o profissional, de um documento regulatório. Podemos
visualizar essa regularidade, também, no seguinte excerto:
338
Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro
(9)
“Dessa forma, ganham em qualidade redações, leitores e
espectadores [grifos nossos]” (Qualidade sem diploma. [Carta
ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009. )
Observamos a presença e o uso constante de verbos e adjetivos nos
editorais, principalmente pelo fato de essa construção ser própria do
gênero. No início do texto da revista Veja lemos:
(10) “O Supremo Tribunal Federal varreu da legislação brasileira
mais uma herança da ditadura militar: a obrigatoriedade do
diploma de jornalista para quem exerce a profissão [grifo
nosso]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed.
2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009. )
Entre os sentidos do verbo “varrer” está o de limpar, remover
sujeira de algum lugar; ou seja, a exigência do diploma de jornalista seria
algo sujo a ser varrido da legislação. Assim também, conforme posto
no próprio texto, tal exigência é vista como uma “excrescência”, algo
“ridículo”, reafirmando o sentido produzido de que exigir o diploma seria
um tumor, uma aberração, algo em demasia que deveria ser extirpado.
Como forma de marcar a autoridade e, também, o caráter de
“verdade” construído pelo próprio texto, o editorial traz a posição
do relator do caso, o ministro Gilmar Mendes, que se coaduna com a
posição das empresas jornalísticas, configurando em um “apagamento”
de tantas outras vozes, principalmente antagônicas à da opinião expressa
no editorial, para que essa adquira o sentido de verdade irrefutável:
(11) “Ao defender o fim dessa excrescência, o relator do caso,
ministro Gilmar Mendes, disse que ela atentava [...]”(Qualidade
sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº 25, 24
jun. 2009.
339
A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as
Práticas Discursivas Midiáticas
A fala do relator do caso, o ministro Gilmar Mendes, ressoa no
enunciado, ao contrário dos votos dos outros ministros, que aparecem
timidamente. Assim, o voto de Mendes passa a representar a instituição
STF, como se recaísse sobre ele a decisão tomada por essa esfera jurídica,
e, a partir de então, passa a ser retomado, transformado, remorado e
apropriado pelo discurso da mídia, ecoando o que “foi dito”.
Dessa forma, o editorial de Veja traz, primeiramente, a seguinte
citação direta do ministro Gilmar Mendes:
(12) “Os jornalistas são aquelas pessoas que se dedicam
profissionalmente ao exercício pleno da liberdade de
expressão. O jornalismo e a liberdade de expressão, portanto,
são atividades imbricadas por sua própria natureza e não
podem ser pensados e tratados de forma separada [grifos
nossos]” (Qualidade sem diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed.
2118, ano 42, nº25, 24 jun. 2009. )
Observamos a importância que a mídia confere ao retomar a fala
do ministro, na qual se correlaciona o jornalismo com a liberdade de
expressão e de informação. Conforme expõe FOUCAULT (2007, p.59,
61) em As palavras e as coisas:
[...] as coisas e as palavras vão separar-se [...] porque agora
não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial,
pela qual se achava fundado e limitado o movimento
infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer
sem começo, sem terreno e sem promessa.
Destarte, as palavras não carregam em si o sentido, como se fossem
simplesmente utilizadas e empregadas pelos homens. As palavras
só fazem sentido por meio da relação do sujeito com seu objeto, dos
valores, características, classificações, etc. que sujeito impõe ao objeto.
340
Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro
É dessa forma que se constrói o discurso de que jornalismo é sinônimo
de liberdade de expressão, de que não há outra forma de se pensar
tal atividade; fundem-se de tal forma “as palavras” às “coisas” que se
impõe uma barreira à produção de quaisquer outros sentidos para tais
palavras. Uma memória discursiva – tudo aquilo dito alhures – referente
ao jornalismo é ativada, de forma que se lhe impõe como uma prática
da verdade, objetiva, isenta, na qual a opinião deve ser deliberadamente
colocada em espaços próprios com argumentações que a justifiquem.
Diante disso, vemos mais uma vez a identidade do jornalista ser
desenhada pelo/no discurso e, como ratifica HALL (2009), é-lhe colocada
uma característica intrínseca, de modo que não poderia ser outra, ou ser
diferente. O sujeito jornalista, obrigatoriamente, tem de estar atrelado às
noções de liberdade de expressão e de informação. Se para ser jornalista
é preciso defender tais liberdades, e se essas liberdades são cerceadas ao
se exigir o diploma, um discurso é forjado nesse instante: todo jornalista
deveria ser contra a exigência do diploma para o exercício da profissão.
O jornalista passa a ser objetivado e subjetivado nesse momento por tais
práticas midiáticas: ser jornalista é ser um sujeito que luta e defende a liberdade de
expressão e de informação.
Além dessa comparação, observamos outra regularidade no
enunciado analisado – a necessidade de ligar a necessidade do diploma com o
regime militar implantado no país – como ilustra o trecho a seguir:
(13) “A obrigatoriedade do diploma foi impingida em 1969, auge
do regime de exceção instalado cinco anos antes, não para
melhorar o jornalismo brasileiro, mas para controlar o acesso
às redações de repórteres, editores e fotógrafos que eram
considerados ameaçadores aos generais” (Qualidade sem
diploma. [Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº 25, 24 jun.
2009.)
341
A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as
Práticas Discursivas Midiáticas
Identificamos que se faz necessário no discurso construído “colar” o
“regime ditatorial” vivido no país à “lei” criada pelos políticos da época,
de forma que tudo que é produto dessa fusão só pode trazer prejuízo à
sociedade. Liga-se a falta de liberdade de expressão à obrigatoriedade do
diploma e, ainda, ao regime militar. É necessário haver essa relação para
o sentido de que a exigência do diploma só pode ser algo negativo.
O reforço em somente tratar do regime ditatorial vivido no Brasil
apaga outros discursos vigentes à época. Conforme expõe LAGE
(2002), nas décadas de 1910 e 1920 começaram a surgir as assessorias
de imprensa de caráter profissional, em substituição às até então
chamadas assessorias de comunicação ou de relações públicas, que
estavam preocupadas principalmente com a publicidade. Nesse novo
momento vivido no país, em que o jornalista era uma figura cada vez
mais distante da do corretor de anúncios, explica o autor, começa a ser
intensificada a procura por qualificação profissional em nível superior
para o jornalismo, na busca por erradicar distorções nas informações
jornalísticas, tão comuns na época.
ZUCULOTO (2002) vai ao encontro do exposto por LAGE (2002)
quando explica que já no I Congresso Brasileiro de Jornalistas, realizado
no Rio de Janeiro em 1918, reivindicava-se uma determinação que
estabelecesse curso superior específico para a formação do profissional
jornalista. Para ZUCULOTO (2002, p.40), naquele evento a “categoria
expressava claramente sua preocupação com uma formação de qualidade,
manifestando a necessidade de ensino superior para o jornalismo”. Vêse que esse outro discurso vigente à época é silenciado e apagado no
editorial analisado, que procura somente estabelecer a relação entre o
regime militar e a falta de liberdade de expressão, para assim justificar a
extinção da obrigatoriedade do diploma.
Verificamos que essa “colagem” continua presente no texto de Veja,
como se vê adiante:
342
Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro
(14) “Com a redemocratização do país, a norma passou a servir de
instrumento de pressão política de sindicatos sobre jornais,
revistas e emissoras independentes” (Qualidade sem diploma.
[Carta ao leitor]. Veja, ed. 2118, ano 42, nº 25, 24 jun. 2009.)
A exigência do diploma seria algo “antidemocrático” e, dessa
forma, não condizente com o atual processo de democracia vivido pela
sociedade. Colocamos em questionamento a expressão “instrumento de
pressão”. Após esse enunciado, o editorial não dá qualquer explicação
referente ao que entende por “pressão”, que poderia ser interpretada
como sinônimo de “fiscalização”, de “questionamento” ao que até então
estava sendo produzido pelas empresas jornalísticas. Entre os sentidos
possíveis de serem produzidos está o de que ser “cobrado” não é algo
tão bom, como também não o é o de ser pressionado a ter jornalistas
com diploma.
Conclusão
Nessa relação entre o sujeito (jornalista) e o objeto (informação),
reforça-se a ideia de que seria incoerente o primeiro lutar pela
obrigatoriedade do diploma, uma vez que esta cerceia a liberdade de
expressão e de opinião e, mais do que isso, é fruto do regime de ditadura
militar instaurado no país à época; logo, constrói-se a identidade de um
jornalista que não deve ser a favor da obrigatoriedade do diploma, pois
tal para bem exercer tal profissão, mais do que formação superior, exigese a predisposição ou a experiência.
Observamos que para ocorrer esse processo de subjetivação é
necessário, ao mesmo tempo, o silenciamento de tantos outros discursos
que veem na figura do jornalista um profissional que precisa de uma
graduação específica para o bom exercício da profissão (outro processo
de subjetivação). A mídia precisa, nesse processo de construção de
identidade, reforçar algumas características e apagar tantas outras.
343
A Construção Identitária do Jornalismo em um Editorial da Revista Veja: Reflexões Sobre as
Práticas Discursivas Midiáticas
Constata-se que os indivíduos estão sujeitados ao discurso, devendo
assumi-lo, posicionando-se e sendo posicionados pelas mais diferentes
esferas de nossa sociedade. Esse processo engloba as relações de
identificação e de representação criadas pela instância produtora do
discurso sobre os sujeitos objetos de tais práticas de subjetivação, no
caso, os jornalistas. Como explicam FERNANDES e ALVES JÚNIOR
(2008), o sujeito está imerso num processo constante de subjetivação,
que lhe constrói identidades.
Dado o caráter móvel da identidade, ressaltamos que toda construção
identitária está sujeita à historicização. Conforme expõe HALL (2009),
é justamente pelo fato de as identidades do jornalista serem construídas
no interior do discurso que as compreendemos como produzidas em
locais históricos e institucionais específicos, por formações, estratégias,
iniciativas e práticas discursivas específicas.
Longe de ser algo que tudo agregue, envolva, acolha, a identidade
é marcada fortemente por modalidades de poder que excluem, evitam,
segregam. A construção identitária de um jornalista, que deve lutar
pela liberdade de expressão e de informação, ser contrário à exigência
do diploma, ser ético, responsável, ter conhecimento que justifique o
exercício da profissão, não consegue acolher todos os sujeitos que se
inscrevam na identidade de jornalista. Vislumbramos que o discurso
midiático é um indício de que a construção da identidade é um ato de
poder, como aponta HALL (2009).
Dessa forma, com base em FOUCAULT (2008a), concluímos que a
construção da identidade do jornalista sem diploma está inserida numa
dada ordem discursiva, com determinadas condições de possibilidade
para seu aparecimento. Condições históricas e sociais possibilitam
que em nossa época tais práticas discursivas identitárias se exerçam
e outras não. Julgamos, então, que é a partir de nosso acontecimento
discursivo – decisão do STF – que tal(is) identidade(s) do jornalista
pode(m) ser construída(s) e reportada(s) ao custo do silenciamento de
344
Vinícius Durval Dorne e Pedro Navarro
outras e concomitantemente a outras. São tais práticas discursivas que
determinam o modo como os sujeitos jornalistas veem a si e ao outro e
as formas de exercício de determinado governo sobre si e sobre o outro
(NAVARRO, 2008).
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345
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347
DA LINGUAGEM DAS ROUPAS AO DISCURSO DA
MODA
Humberto Pires da PAIXÃO
Universidade Federal de Goiás (UFG)
Kátia Menezes de SOUSA
Universidade Federal de Goiás (UFG)
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo principal refletir sobre certas noções utilizadas para
apreender o significado das roupas, especialmente aquelas que as tomam como uma
linguagem. Partindo da exposição de algumas teorias de lingua(gem), busca-se questionar a
validade da utilização destas como explicação para o universo das roupas e indumentárias e
apresentar, a seguir, uma perspectiva pautada na Análise do Discurso francesa para lidar
com a complexidade e fugacidade de tal objeto.
ABSTRACT
This article aims to reflect on certain notions used to describe the meaning of clothes, especially
those which take them as a language. From the explanation of some theories of language, we
seek to question it’s validity as an explanation for clothes and costume universe and presents
another perspective based on the French Discourse Analisys to deal with the complexity and
elusiveness of the object.
PALAVRAS-CHAVE
Discurso. Linguagem. Moda. Roupas.
KEYWORDS
Clothes. Discourse. Fashion. Language.
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 349-370, jan./jun. 2014
Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
Introdução
O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível
Oscar Wilde
O mundo social é um lugar de corpos vestidos ou, no mínimo,
adornados. A nudez pura e simples, sem nada que a disfarce, é quase
sempre inadequada para as culturas ocidentais, mesmo em situações em
que o corpo, ou parte dele, possa ser exposto. Na praia, na piscina, na
rua ou mesmo em casa, corpos em exibição são suscetíveis de serem
vestidos, logo o corpo social é sempre embelezado e decorado para darlhe uma certa ordenação simbólica e/ou social. Nesse contexto, dada
a importância que as roupas assumem, não é difícil notar afirmações
variadas sobre o seu significado e, principalmente, sobre o fato de que
elas falam ou transmitem informações a respeito dos sujeitos que as
utilizam.
Dentre os inúmeros dizeres que buscam explicações sobre as roupas,
um dos mais correntes é o que afirma serem elas não apenas uma forma
de proteção do corpo ou um simples adorno, mas uma tradução de
estados de espírito e/ou mesmo de identidades pessoais: “Por milhares
de anos os seres humanos têm se comunicado na linguagem das roupas.
[...] Quando nos conhecermos e conversarmos já teremos falado um
com o outro em uma língua mais antiga e universal.” (LURIE 1997:
19). Isso aponta para a existência de uma formulação amplamente aceita
– e (re)produzida, seja nos círculos cotidianos ou mesmo nos meios
acadêmicos –, de que as roupas falam, traduzem-se como uma espécie
de linguagem.
Ao escolher uma roupa antes de sair de casa, não
estamos apenas optando pelo conforto, pela praticidade
ou pela segurança que ela possa vir a nos oferecer. A
roupa nos define, diz aos outros quem somos, o que
350
Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa
queremos, o que pensamos e até o que gostaríamos de
ser [...], a roupa não é só uma espécie de auto-satisfação,
mas também algo que expressa a forma como o mundo
nos vê e a forma como vemos o mundo. (BRAGA 2005:
225).
Em textos diversos, a exemplo do trecho anteriormente exposto,
notam-se passagens significativas quanto a um modo de perceber/
entender as roupas como elementos que dizem algo sobre quem as
utiliza, deixando transparecer uma concepção que as trata como uma
forma de linguagem. Isso nos leva a questionar: mas o que exatamente
significa dizer que as roupas dizem coisas ou expressam algo sobre
quem as usa? Que implicações teriam a afirmação de que (as roupas)
são um tipo de linguagem? Se, de fato, elas falam ou expressam o que
seus usuários estão pensando e sentindo, faz-se necessário colocar tal
postulado em suspenso, questionar em que medida isso se traduz como
algo verdadeiro e que concepção de linguagem subjaz a um postulado
dessa natureza.
Se existe a possibilidade de se expressar estados e pensamentos
por meio do que se está vestindo, isso pode ser constatado no mais
rotineiro ato da vida de um ser humano no interior de um sistema social
qualquer. Logo, o que se pretende discutir por meio deste trabalho é em
que medida tal “fato” é algo característico do próprio vestuário ou se é
uma convenção, ou mesmo um construto. Pautando-se nos postulados
da Análise do Discurso (AD), este artigo busca respostas a certas
indagações que poderiam ser assim delineadas: É fato que as roupas
dizem algo sobre quem as utiliza? Se comunicam algo, de onde viria
essa produção de sentido? De que modo o dispositivo teórico da AD se
configuraria como um “arsenal” apropriado a ser aplicado ao universo
das roupas ou a um possível discurso sobre elas?
351
Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
1 Da (im)produtividade entre certas teorias de
lingua(gem) e o universo das roupas
Historicamente, e isso já não é novidade, a linguagem humana,
materializada por meio de diferentes línguas, tem sido concebida a partir
de pontos de vista diferentes e divergentes. Esses variados pontos de
vista poderiam ser sintetizados, de acordo com GERALDI (2001), em
três principais concepções: como representação ou “espelho” do mundo
e do pensamento, como instrumento ou “ferramenta” de comunicação
e como forma ou “lugar” de ação/interação entre sujeitos. Como um
desdobramento desta última, poderíamos acrescentar ainda a noção
advinda da AD que toma a linguagem como opaca, lugar de equívocos,
de rupturas: “É porque a língua é sujeita ao equívoco [...] que o sujeito,
ao significar, se significa. Por isso, dizemos que a incompletude é a
condição da linguagem: nem os sujeitos nem os sentidos, logo, nem o
discurso, já estão prontos e acabados” (ORLANDI 2010: 37).
Pensar sobre essas concepções torna-se importante na medida em
que delimitam a maneira de se olhar sobre o objeto lingua(gem), já que
“longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o
ponto de vista que cria o objeto” (SAUSSURE 1996: 15). Assim sendo,
em cada uma dessas três dimensões, importa perceber o tratamento
dado tanto à questão da referência quanto à do sujeito, uma vez que
esses elementos são responsáveis, em grande parte, pelos rumos de cada
uma das abordagens e, consequentemente, das verdades produzidas
para/por elas.
No que diz respeito às roupas e indumentárias, a primeira dessas
concepções associam-nas a um sistema regido por regras e leis,
atribuindo, dessa forma, produtividade e regularidade a tais objetos. É
o que se depreende de passagens como esta extraída da obra Sistema da
Moda:
352
Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa
Para além dos vocábulos que o compõem, todo
enunciado da revista, portanto, constitui um sistema de
significações, composto de um significante, de termos
discretos, materiais, enumeráveis e visíveis – o vestuário
–, e um significado imaterial, que, segundo o caso, é o
mundo ou a Moda; em conformidade com a nomenclatura
saussuriana, chamaremos de signo a correlação de dois
termos: significante indumentário e significado mundano
ou de Moda. (BARTHES 2009: 52).
Pautada principalmente nos postulados saussureanos, essa concepção
aproxima o universo de roupas do universo da língua, tomando-o como
um sistema ordenado e regular. Tudo é explicado com base na noção
de signo linguístico, que, segundo esse ponto de vista, constitui-se pela
dualidade significante/significado, da qual se exclui sua relação com o que
lhe é exterior. Dessa acepção, conhecida pela alcunha de estruturalismo,
tem-se uma estrutura sem sujeito e um deslocamento da noção de
referência: “O primeiro momento, o da linguística estrutural, para a
qual os sentidos existem de maneira imanente ao sistema, permanece
despreocupado com o referente lingüístico. Nem mesmo se fala em
‘referência’ e ‘referentes’” (CARDOSO 2003: 3). Dito de outra maneira,
ao aproximar as roupas da concepção estruturalista da lingua(gem),
orienta-se o olhar para uma certa interpretação, engessadora de seus
sentidos: as roupas, como parte de um sistema, é analisada/estudada
apenas por meio de seus próprios elementos, constituídos no interior do
sistema. Trata-se, como se pode perceber, de um ponto de vista abstrato,
idealista sobre a linguagem e o significado, o que leva a uma explicação
de igual teor acerca das roupas e da moda.
Quanto à segunda concepção, de uma maneira geral, as teorias da
comunicação representam-na de forma inconteste, tomando a língua
como um código capaz de transmitir informações entre emissor e
353
Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
receptor. Transportada para o universo do vestuário, essa ideia vê nas
roupas um meio de comunicação ou uma forma de expressão: “A moda
é de fato uma forma de expressão não verbal. Ou seja, usar alguma coisa
sobre o corpo é comunicar-se sem verbalizar, é dizer algo sem que se
emita uma única palavra.” (BRAGA 2005: 225). Amplamente difundida
e aceita como explicação acerca da dinâmica das roupas e da moda, tal
concepção enseja alguns apontamentos.
Aqui também se faz necessário voltar atenção à questão da referência,
uma vez que, preocupados com a ‘função referencial’, os teóricos dessa
área não estavam interessados na relação entre língua e realidade, mas
voltavam-se, sobretudo, para a mensagem que se orientava para o
contexto ou referente. Talvez por razões inerentes ao próprio arcabouço
teórico, o fato é que essa concepção deixa transparecer uma abordagem
simplista acerca da referência, bem como certa desconsideração à noção
de sujeito, o qual é visto a partir do par emissor-receptor, encarregados
de enviar/receber e codificar/decodificar a mensagem: “os conceitos [...]
constituem a mensagem, que se orienta para o contexto ou ‘referente’,
transmitindo conteúdo intelectual, quando o emissor e o receptor
são capazes de, respectivamente codificá-la e decodificá-la pela sua
experiência de falante, ou conhecimento do código.” (CARDOSO 2003:
31).
Ao buscar uma aproximação entre essa teoria e o complexo
universo de roupas e indumentárias, surgem alguns percalços. Primeiro,
porque não se trata apenas de transmitir/receber informações, como
se a mensagem fosse fruto de uma série quase mecânica de atos e seu
objetivo último fosse informar. A linguagem serve para comunicar, mas
também serve para não comunicar. Além disso, emissor e receptor estão
envolvidos em uma atividade, realizando ao mesmo tempo o processo
de significação, que não é, definitivamente, um ato mecânico realizado
de forma estanque.
354
Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa
Desse modo, diremos que não se trata de transmissão
de informação apenas, pois, no funcionamento da
linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos
afetados pela língua e pela história, temos um complexo
processo de constituição desses sujeitos e produção de
sentidos e não meramente transmissão de informação.
(ORLANDI 2010: 21).
Como se pode deduzir, nenhuma dessas concepções conseguiu
lidar com tal problemática, apresentando uma teoria capaz de lidar com
os sentidos “em pleno voo”; ao contrário, muitas delas fomentaram
novos e complexos dilemas. Daí que, representando outra concepção de
linguagem, que passa necessariamente pela interação, mas inscrevendo-a
na história, outra disciplina surge no cenário europeu na segunda metade
do século XX, denominada Análise do Discurso, com o objetivo de
compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico,
parte do trabalho social geral, marcada pela opacidade e equivocidade,
constituindo, assim, como seu nome aponta, um novo objeto de estudo:
o discurso. Assim como a língua, as roupas agrupam, incluem, mas
também excluem, separam, distanciam: como a língua, elas são lugar
também da contradição.
2 Um outro horizonte de base interpretativa: a Análise
de Discurso Francesa
Constituindo-se, talvez, como uma espécie de anverso das noções
usuais relativas ao sujeito e à referência, as ideias de Michel Foucault
aparecem no cenário da Análise do Discurso, revolucionando a já
revolucionária disciplina arquitetada por Michel Pêcheux. Apesar de
não ter como seu propósito fazer esse tipo de análise, as contribuições
de Foucault foram decisivas para a AD de orientação francesa, pois, ao
buscar entender o funcionamento das práticas discursivas, ele abordou
questões relativas ao saber, ao poder e, principalmente, ao sujeito.
355
Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
É preciso que se diga, primeiramente, que, em M. Foucault, mais
precisamente em sua concepção de discurso, esse “conjunto de enunciados
que se apoia em um mesmo sistema de formação” (FOUCAULT 2009:
122), o uso da lingua(gem) passa a ser mais que a produção de sequências
verbais/não-verbais: trata-se, antes, de criar uma situação na qual essa
produção não será senão uma prática dentre um número ilimitado de
outras práticas. Isso leva, certamente, a algumas consequências, inclusive
ao deslocamento do próprio estatuto atribuído, por alguns, à AD de não
pertencer ao núcleo rígido da Linguística. Quanto a isso, é pertinente
retomar esta passagem d’ Arqueologia do Saber:
É evidente que os enunciados não existem no sentido
em que uma língua existe e, com ela, um conjunto de
signos definidos por seus traços oposicionais e suas regras
de utilização; a língua, na verdade, jamais se apresenta em
si mesma e em sua totalidade; só poderia sê-lo de uma
forma secundária e pelo expediente de uma descrição
que a tomaria por objeto; os signos que constituem seus
elementos são formas que se impõem aos enunciados e
que os regem do interior. Se não houvesse enunciados,
a língua não existiria; mas nenhum enunciado é
indispensável à existência da língua. (FOUCAULT 2009:
96).
Nesse trecho, o filósofo francês afirma, frise-se bem, que os signos
“são formas que se impõem aos enunciados”, o que leva a, no mínimo,
dois desdobramentos. Se, em BARTHES (2009: 14), tem-se que “é preciso
inverter a formulação de Saussure e afirmar que a semiologia é que é uma
parte da linguística”, em consonância com as teorias foucaultianas, não
se trata de saber se a AD faz ou não parte da Linguística, mas que esta
deve algo de muito valioso à perspectiva apresentada pela Análise do
Discurso, uma vez que só há língua, porque há um discurso que a sustenta:
356
Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa
“Foucault inverte os níveis consagrados de análise e de sustentação
epistemológica da linguística: não se vai da frase gramatical ao ato de
discurso, pois é enquanto discurso que uma frase ganha estatuto de frase
gramatical.” (ARAÚJO 2004: 219). Pode-se ir ainda mais longe, e dizer
que “a Análise do Discurso relaciona-se com a Linguística de forma
problemática, isto é, lhe coloca problemas.” (GREGOLIN 2003b: 2)
ou, dito de outra forma, a AD apresenta problematizações à Linguística,
“interpelando-a pela historicidade que ela apaga” (ORLANDI 2010: 16),
contribuindo com suas transformações.
Por outro lado, a noção de lingua(gem) subjacente a essa noção
não poderia atrelar-se ao conceito de verdade, quer dizer, não haveria
de um lado palavras e, de outro lado, as coisas, tomadas como entes
verdadeiros em si próprios. Analisando os saberes possíveis de uma
época, FOUCAULT (2009) comprova que tais conceitos são mutáveis
à medida que o discurso filosófico e/ou científico que lhes servem de
suporte também o são. Daí que, para o arqueólogo/genealogista, a
questão que, de fato, interessa é como pode um determinado enunciado
ter surgido, justamente ele, e não outro em seu lugar? Descrevendo
enunciados, o analista busca, assim, unir lingua(gem) e história, pois
“trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade
de sua situação; de determinar as condições de sua existência, [...] de
estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode
estar ligado” (FOUCAULT 2009: 31). Sendo o enunciado da ordem
do acontecimento, interessa, pois, saber como determinada episteme
recorta e designa seus objetos de estudo em dada época:
As condições para que apareça um objeto de discurso,
as condições históricas para que se possa dele dizer algo
[...] são numerosas e pesadas. O que significa que não se
pode falar de qualquer coisa em qualquer época. [...] Ele
[o objeto] existe sob as condições positivas de um feixe
357
Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
complexo de relações. Estas relações são estabelecidas
entre instituições, processos econômicos e sociais, formas
de comportamento, sistemas de norma, técnicas, tipos
de classificação [...]. Elas não definem sua constituição
interna, mas o que lhes permite aparecer. (FOUCAULT
2009: 50).
Feitas essas observações, abre-se caminho para o questionamento
acerca do que representaria o objetivo central de toda a busca de Michel
Foucault, de sua arquegenealogia. Segundo as palavras do pensador
francês, seu propósito “foi criar uma história dos diferentes modos
pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos”
(FOUCAULT 2010: 273). Fundamental para a AD, a noção de sujeito
vem ocupando o centro das atenções e sendo alvo de reformulações
ou refinamentos em sua trajetória. Inicialmente tido como assujeitado,
de acordo com a noção pecheutiana, ele seria tomado ou atravessado
pelos discursos, uma vez que “quem de fato fala é uma instituição, ou
uma teoria, ou uma ideologia.” (POSSENTI apud MUSSALIN 2001:
133). Se o que há são enunciados, quem seria, então, responsável por
esses enunciados ou quem seria o sujeito de um enunciado? De acordo
com Possenti (2009: 74), “O eu, para Benveniste. Uma forma sujeito,
para Foucault”. Situando, pois, o sujeito como o tema geral de suas
pesquisas, Foucault trata-o como uma função, não totalmente livre, pois
que condicionado pelas coerções que sofre da formação discursiva de
onde enuncia.
O sujeito do enunciado é uma função determinada,
mas não forçosamente a mesma de um enunciado a
outro; na medida em que é uma função vazia, podendo
ser exercida por indivíduos, até certo ponto, indiferentes,
quando chegam a formular o mesmo enunciado; e na
medida em que um único e mesmo indivíduo pode
358
Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa
ocupar, alternadamente, em uma série de enunciados,
diferentes posições e assumir o papel de diferentes
sujeitos. (FOUCAULT 2009:105).
Não existindo o sujeito como uma essência psicológica, de onde
emanaria toda e qualquer decisão, mas “um espaço de exterioridade
em que se desenvolve uma rede de lugares distintos” (FOUCAULT
2009: 61), entra em cena, pois, a objetivação e, consequentemente, a
sua subjetivação. Na chamada Idade Moderna, no mundo ocidental,
podem ser observadas práticas, isto é, mecanismos e processos de
constituição desse homem que nele habita: um homem que fala, trabalha
e vive, segundo o filósofo francês. Dessa forma, os processos, quer de
objetivação, quer de subjetivação, constituem procedimentos que, agindo
conjuntamente, determinam a constituição do indivíduo moderno.
Os primeiros fazem parte dos estudos em que
Foucault se dedica a mostrar as “práticas que de dentro
da nossa cultura tendem a fazer do homem um objeto”,
ou seja, os estudos que mostram como, a partir dos
mecanismos disciplinares, foi possível constituir o
indivíduo moderno: um objeto dócil e útil. Os segundos,
por sua vez, localizam-se no âmbito dos trabalhos em
que Foucault procura compreender as práticas que,
também de dentro da nossa cultura, fazem do homem
um sujeito, ou seja, aquelas que constituem o indivíduo
moderno, sendo ele sujeito preso a uma identidade que
lhe é atribuída como própria. (FONSECA 2003: 25).
Paralelamente à noção de sujeito, a noção de referente, com Foucault,
sofrerá um deslocamento: de referente passa-se a falar em referencial. Por
meio da função enunciativa, ao invés de relacionar palavra e coisa, lança-se
mão de um referencial, algo bastante diverso da noção de referente para a
gramática e para a lógica. O enunciado, dessa forma, não se reporta a um
359
Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
indivíduo ou a um objeto específico, mas a outro enunciado, sendo sua
especificidade advinda de seu referencial, da disposição de um domínio
associado, do revestimento de uma materialidade específica. Em outras
palavras, isso equivaleria a dizer que o espaço discursivo é anterior ao
espaço lógico e linguístico. “É no interior de uma relação enunciativa
bem determinada e bem estabilizada que a relação de uma frase com
o seu sentido pode ser assinalada.” (FOUCAULT 2009: 102). Daí que
não existem enunciados livres, neutros e inteligíveis por eles mesmos; o
que há são enunciados que se prendem a outros, numa cadeia tal que o
sentido ou a suposta referência se dá por meio dessa interdependência.
Mas, por que falar de tudo isso? Por que trazer à tona todo esse
arsenal de ideias, teorias e conceitos que dizem respeito à lingua(gem)
humana? O que isso teria a ver com o universo de roupas e
indumentárias? É imperativo que se saiba que, se foram aproximados
universos que parecem, num primeiro momento, tão distantes, é porque
isso nos leva a pensar que, muito provavelmente, no tocante às roupas
ou aos seus supostos significados, as formas usuais utilizadas para
compreendê-las não demonstram pertinência suficiente para captá-las
em sua complexidade, necessitando, pois, lançar mão de uma disciplina
interpretativa mais condizente com um objeto de tal dimensão.
Nesse horizonte de incertezas e complexidades, a Análise do
Discurso configura-se como um campo de estudo bastante produtivo
para essa empreitada “na medida em que toma como objetos de estudos
a produção de efeitos de sentido, realizada por sujeitos sociais, que usam a
materialidade da linguagem e estão inseridos na história.” (GREGOLIN
2007: 13). Isto quer dizer que a AD francesa parece ser mais condizente
para lidar com tal problemática exatamente por oferecer ferramentas
para a análise de acontecimentos discursivos, sejam eles políticos,
midiáticos ou, neste caso, aqueles relacionados à moda/à indumentária.
360
Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa
3 Se é verdade que as roupas falam, de onde emanariam
os sentidos que elas produzem?
Sabe-se, com a AD francesa, que os sentidos não são um dado
empírico situado no mundo pronto para ser apontado por uma linguagem
transparente. Os sentidos são construídos e, nesse caso, seria mais
apropriado falar em efeitos de sentido, uma vez que é da relação entre
o linguístico e o histórico que eles emergem, isto é, o discurso “implica
que não se trata necessariamente de uma transmissão de informação
entre A e B mas, de modo mais geral, de um ‘efeito de sentido’ entre os
pontos A e B” (PÊCHEUX 2010: 81). Isso quer dizer que, para que um
determinado vestuário possa ser apontado como significando X ou Y, há
que se buscar os sentidos instaurados por uma teia de relações que envolve
discurso, história e memória. A apreensão de tais relações proporciona
o entendimento da emergência de certos significados e não de outros,
isto é, o aparecimento de uns em detrimento (ou silenciamento) de
outros, pois, de acordo com GREGOLIN (2007: 15), “Silenciamento e
exposição são duas estratégias que controlam os sentidos e as verdades.”
Mas onde estão situados esses efeitos de sentido e de onde eles se
originam? Pelo próprio conceito de efeito, deduz-se que não são préexistentes, mas derivariam de algo que os sustenta. Os efeitos de sentido,
embora concretizados nos textos, sejam eles verbais ou não, que circulam
socialmente, são possibilitados pelos discursos, ou mais precisamente,
por meio do interdiscurso, dessa teia que liga um enunciado a outro,
já que as formações discursivas de onde emergem são perpassadas por
outras formações. Como o (inter)discurso não é transparente, segue-se
que não é possível apreender a grandeza e/ou extensão de significados
ou perceber todas as possibilidades de sentido produzidas nas práticas
sociais. Logo, a coerência aparente e perceptível de cada discurso é um
dado ilusório, um efeito de construção do próprio discurso: “o sujeito
pode interpretar apenas alguns dos fios que se destacam das teias de
sentidos que invadem o campo do real social.” (GREGOLIN 2007: 16).
361
Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
Para que se perceba como isso ocorre, tomemos, como exemplo
da produção de sentidos, um texto publicitário, que anuncia uma marca
de jeans, extraído da revista Veja de maio de 2006. Visto sob a ótica
do acontecimento discursivo, faz-se necessário lembrar que os discursos
materializados em textos da mídia são por si só um acontecimento,
uma vez que os suportes midiáticos produzem todo um processo de
espetacularização desses discursos: “A mídia, ao mesmo tempo em
que trabalha discursivamente para produzir o acontecimento, lhe dá
visibilidade, espetacularidade.” Além do mais “produz sentidos por
meio de um insistente retorno de figuras, de sínteses-narrativas, de
representações que constituem o imaginário social” (GREGOLIN
2003a: 96).
Na edição de 22 de março de 2006, a revista Veja estampa em
duas de suas páginas iniciais o anúncio de uma marca de roupas. Esse
texto publicitário constitui-se de uma cena que se passa num ambiente
clean, sugerindo uma realidade imaginariamente/virtualmente limpa e,
à exceção de alguns elementos verbais (nome da marca anunciante, p.
ex.), todo o restante se traduz por elementos imagéticos. No centro da
cena, há uma luta/oposição entre dois jovens (uma moça e um rapaz)
vestindo, cada um, apenas uma calça jeans e dois homens de meia idade
vestindo terno. Os que vestem terno carregam dinheiro nos bolsos e em
malas, além de – “detalhe” importante – terem os ternos sujos de lama;
essa vestimenta evoca, dadas as circunstâncias e a rede de enunciados
que se constitui em torno dela, a classe dos políticos, uma vez que, ao
se relacionar com os outros elementos da cena, o enunciado se insere
no interior da história e retoma outros enunciados que o constituem,
como os referentes ao episódio amplamente conhecido e já instaurado
na memória denominado “mensalão”.
Os que usam jeans aparentam ser jovens, com corpos saudáveis e
limpos – como igualmente é clara a lavagem do jeans –, trajam apenas
calça (a sugestão é de que sejam da marca anunciante) e, numa atitude
cujo efeito de sentido aponta para certa moralização, combatem com
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Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa
seus golpes e sua flexibilidade os “sujos”/corruptos/fora de forma, que
carregam dinheiro nos bolsos e malas. Cabe ressaltar que a associação
do valor juventude à mercadoria é algo significativo, pois tende a torná-la
atraente não apenas à geração jovem, mas também ao público adulto,
dado que envolve, além de outros, padrões de beleza difundidos em
nossa cultura, “reforçando desse modo a ideia de juventude não mais
como categoria de idade e sim como norma de vida.” (SOARES 2011:
81). É nesse sentido que VINCENT-RICARD (2008: 155) afirma:
“Hoje a moda é como um caleidoscópio no qual os looks dos jovens [...]
se sucedem a um ritmo alucinante, trazendo um sentimento de vertigem
e irrealidade.”
Trata-se, como já foi dito, de entender por que determinado
enunciado irrompeu e não outro em seu lugar, ou ainda por que tal
sentido e não outro(s) emergiu(ram) dessa rede de relações. De acordo
com Michel Foucault (2009: 31-32, grifo nosso), o enunciado é
[...] um acontecimento estranho, por certo: inicialmente
porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à
articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre
para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma
memória [...]; em seguida, porque é único como todo
acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à
reativação; finalmente, porque está ligado [...] a enunciados
que o precedem e o seguem.
Assim sendo, os sentidos, repita-se, emergem desse entrecruzamento
entre diferentes enunciados, se produzem no cruzamento entre uma
atualidade e uma memória. Não se trata de uma memória individual, que o
indivíduo tem do passado, mas de uma memória discursiva (COURTINE
2009). A memória discursiva leva a estabelecer relações também com
outros dizeres, acionando uma cadeia de sentido construída a partir do
363
Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
interdiscurso1: “não há um único enunciado que não retome outros e
com eles dialogue; não há um único enunciado sem margens, pois ele
será sempre povoado por outros enunciados. Os sentidos acontecem,
portanto, em uma dispersão.” (GREGOLIN 2003a: 5).
No texto em questão, percebe-se a ação dessa rede constitutiva
de sentidos, através de certas atualizações, como, por exemplo, pela
retomada de cenas de lutas características do cinema de ação. Pautado
num já-dito, o referencial desses enunciados recupera todo um arsenal
de cenas de combate de títulos diversos e, em especial, as de “Matrix”,
trilogia dirigida pelos irmãos Wachowsky no início dos anos 2000.
Ambientado num futuro próximo, no qual a humanidade estaria
à mercê das máquinas, o enredo atualiza, no plano da ação, cenas de
lutas de filmes do tipo kung-fu e retrata a saga dos humanos para se
verem livres do aprisionamento virtual a que teriam sido submetidos.
Transportados para o plano do anúncio em análise, há, portanto, um
jogo (ou um combate) por meio do qual opera uma atualização desses
vários fragmentos dispersos, centrando-os em uma única cena através
da qual se (re)afirma a imagem de uma juventude combativa, que luta
contra o mal instalado no campo das práticas políticas. Essa imagem,
por sua vez, também não é nova, mas se insere numa rede de outros
eventos já constitutivos de uma memória discursiva, ocorridos ao longo
das últimas décadas, dentre os quais se destacam o Maio de 68, as lutas
contra a ditadura e as marchas contra a corrupção na retomada da
democracia, como o movimento dos caras-pintadas.
Sendo assim, o texto em questão dialoga discursivamente com
inúmeros outros ou, sendo mais preciso, há, pois, entre as imagens, um
trabalho de retomadas e reconfigurações que atuam sobre os sentidos,
já que “não há imagem que não faça ressurgir em nós outras imagens,
1
Segundo Orlandi (2010: 31), há uma aproximação entre memória e interdiscurso: “A memória
[...] tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva,
ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar,
independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva.”
364
Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa
quer essas imagens tenham sido já vistas ou simplesmente imaginadas”
(COURTINE 2011: 160).
Um exemplar com o qual se pode instaurar um diálogo2 é o texto
publicitário Passeata, criado pela agência W/Brasil, emblemático para
a geração jovem da década de 1980. Na propaganda Passeata, há a
simulação de um confronto entre dezenas de jovens, usando jeans, e a
polícia. Ao desafiar a polícia com palavras e gestos obscenos, o confronto
transforma-se em perseguição. Entre correria, jatos d’água, tropeços,
tombos, revistas e detenções, o jeans aparece envolvendo e protegendo
essa massa de jovens que tem “o poder de transformar o mundo”. À
medida que as ações vão ocorrendo ao longo da peça publicitária, a
locução que as acompanha, ironicamente, afirma: “Staroup sofre um
processo especial de lavagem. Staroup é resistente. E tem caimento
perfeito. Staroup passa pelo mais rigoroso controle de qualidade. E dá
total liberdade a seus movimentos. Staroup. O mais testado. O mais
procurado. Se não for Staroup, proteste.”
Emerge, assim, dessas relações a (re)afirmação de uma imagem de
juventude e, concomitantemente, a do jeans como símbolo de liberdade
e rebeldia. A publicidade parece retomar e explorar essa ideia, revivendo
a máxima ‘liberdade é uma calça velha, azul e desbotada’, construindo
sentidos por meio de uma rede discursiva que, num percurso que vai
do cinema à propaganda, das práticas cotidianas ao que jornais/revistas
publicam, acaba por objetivar e, consequentemente, subjetivar jovens
como indivíduos, ou quem sabe mesmo heróis, que lutam contra o
establishment. A bem de uma possível verdade, tudo isso não passaria de
ilusão de liberdade, pois, segundo GREGOLIN (2003a: 108),
2
A esse diálogo, COURTINE (2011, p. 160) dá o nome de intericonicidade: “A intericonicidade
supõe, portanto, dar um tratamento discursivo às imagens, supõe considerar as relações entre
imagens que produzem os sentidos: imagens exteriores ao sujeito, como quando uma imagem
pode ser inscrita em uma série de imagens, uma arqueologia, de modo semelhante ao enunciado
em uma rede de formulações, em Foucault; mas também imagens internas, que supõem a
consideração de todo conjunto da memória da imagem no indivíduo e talvez também os sonhos,
as imagens vistas, esquecidas, ressurgidas ou fantasiadas que frequentam o imaginário.”
365
Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
[...] na era da informação ininterrupta e em tempo real,
as técnicas de disciplina e vigilância são sofisticadas a
ponto de exigirem reordenamentos discursivos, a fim
de criarem a ilusão de liberdade. São novas formas de
apelo e de constituição do imaginário social em que
a própria resistência se transforma em mercadoria
a ser insistentemente (re)produzida e transformada
em discurso, neutralizado seu potencial de subversão.
Naturalizando a resistência, forja-se um consenso que,
dialeticamente, destrói a rede de contra-discurso.
De acordo com FOUCAULT (2007), os ditos são rebeldes a
interesses, entram na ordem das contestações e das lutas, tornamse temas de rivalidade. Esses mesmos enunciados, por meio de uma
memória discursiva, colocam-se em contato e em confronto com
outros enunciados, permitindo afirmar que o universo de roupas e
indumentárias não compõem uma unidade homogênea, mas um campo
discursivo inevitavelmente constituído por discursos heterogêneos que,
dentre outras coisas, falam, sobretudo, de sujeitos e, ao fazê-lo, acabam
por constituí-los:
Embora o sujeito encontre na moda um variado
cardápio de estilos, roupas; a necessidade de estar
inserido em um grupo social o coloca sob o efeito de
coerções, delimitações e regras bem marcadas, que, por
sua vez, o conecta a uma identidade. (PRADO 2006: 15).
Na esteira do pensamento foucaultiano, o que se pode observar é
que os enunciados são postos sempre em contato com outros, por meio
de uma extensa rede discursiva, contato esse que possibilita a emergência
de sentidos que podem ser traduzidos como uma rede de nós, num
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Humberto Pires da Paixão e Kátia Menezes de Sousa
paradoxo que envolve dispersão e unidade, apagamento e atualização,
comprovando que existe menos transparência nas formas de apreensão
da realidade do que se possa conceber. Sendo assim, o fato de uma calça
jeans significar liberdade ou rebeldia ou um terno significar formalidade
ou seriedade, isso deve ser entendido menos como um dado natural do
que aquilo que foi possibilitado por essa rede discursiva na qual esses
enunciados estão inseridos.
Considerações finais
Como se pode notar, as roupas são sim um elemento forte da nossa
cultura material. Nas relações com o mundo, elas ajudam a construir
sentido/significação, além de representações sobre aspectos relativos à
identidade pessoal e social. Entretanto, para além de posicionamentos
de ordem sociológica ou antropológica, ou de considerações pautadas
em teorias de horizonte restrito, é necessário que se entenda que a
criação/utilização de certas peças e sua transformação em algo utilizável,
desejável ou ainda objeto de controvérsia, portadoras de determinados
significados e instauradoras de representações, se dá pela obediência a
certas regras, regras essas advindas, antes de tudo, das relações discursivas
possibilitadas por meio do interdiscurso ou da memória discursiva a que
estão submetidos os enunciados.
O que se pretendeu, ao longo deste artigo, foi demonstrar que não
há como desconsiderar as relações, seja entre o linguístico e o histórico,
entre o discurso e o interdiscurso, entre a atualidade e a memória, sob pena
de limitar o entendimento, a compreensão do fenômeno. Se for verdade,
pois, que estamos longe de dar à roupa o lugar que lhe cabe, tanto dentro
da integração como na contestação sociais (MONNEYRON 2007), isso
se deve muito provavelmente a escolhas teóricas ou conceituais limitadas,
não suficientes para lidar com tal complexidade por desconsiderar os
embates discursivos que permeiam o problema.
367
Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
Recolocar a roupa (e a moda) no centro de uma interrogação
discursiva significa, então, extraí-las da banalidade em que geralmente
são submetidas e considerá-las ao mesmo tempo produtora e também
produto de um processo que se dá entre atualizações e esquecimentos,
distanciamentos e aproximações, história e linguagem. Significa
considerar, como diz WILDE (2006: 25), em O Retrato de Dorian Gray,
que “o verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível”, e em
seguida dedicar-se a pensar na roupa não mais como portadora de sentidos
pré-existentes ou como elemento secundário, incidental, mas como um
objeto simbólico que produz sentidos, “investido de significância para
e por sujeitos” (ORLANDI 2010: 26). Significa, em resumo, entender
esses elementos como da ordem do discurso, possivelmente um discurso
da moda, e, ampliando o pensamento de Foucault, considerar o homem
na modernidade como um homem que vive, fala, trabalha e se veste.
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Da Linguagem das Roupas ao Discurso da Moda
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370
INTERPRETANDO PHRASAL VERBS A PARTIR DAS
EXTENSÕES METAFÓRICAS DAS PARTÍCULAS
Samanta Kélly Menoncin PIEROZAN
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
RESUMO
Uma vez que os phrasal verbs são considerados pelos estudantes de língua
estrangeira um desafio no processo de aprendizagem, considera-se neste
estudo o fenômeno ‘construção verbo-partícula’ pelo viés da semântica cognitiva. O
propósito é verificar suas peculiaridades no que tange às extensões metafóricas. A análise
fundamenta-se nos estudos de LAKOFF (1987) e LAKOFF E JOHNSON (1980) e
tem como foco as preposições espaciais up e down, apresentadas por esquemas imagéticos e que
exercem um papel importante para a interpretação dos phrasal verbs.
ABSTRACT
Since phrasal verbs have been considered for foreign language students a challenge in the
learning process, this study takes into account, by cognitive semantic perspective, the verbparticle construction. The purpose is to check its peculiarities regarding to metaphoric
extentions. This analysis is based on LAKOFF (1987) and LAKOFF E JOHNSON
(1980) studies, besides to focus the spacial prepositions ‘up’ and ‘down’ presented by schematic
images prosecuting an important role about phrasal verbs interpretation.
PALAVRAS-CHAVE
Extensões metafóricas. Phrasal verbs. Semântica cognitiva.
KEYWORDS
Cognitive semantic. Metaphoric extentions. Phrasal verbs.
© Revista da ABRALIN, v.13, n.1, p. 371-384, jan./jun. 2014
Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas
Introdução
Considerando as propriedades linguísticas que os Phrasal Verbs1
apresentam, em especial as de ordem semântica e metafórica, bem como
a consequente dificuldade no âmbito do ensino de LE, busca-se pela
abordagem semântica cognitiva suporte para explicar a semântica dos
PVs, mais precisamente de suas partículas. Dessa forma, o presente artigo
limita-se à análise de LAKOFF (1987) e LAKOFF E JOHNSON (1980)
no que diz respeito às partículas espaciais UP e DOWN. Neste sentido,
busca-se, por meio de esquemas imagéticos, (i) analisar as propriedades
metafóricas dos PVs e (ii) verificar como as metáforas ocorrem e/ou
se caracterizam, além de (iii) verificar a correlação metáfora-experiência
corporificada.
PVs, também conhecidos como verb-particle constructions, multimodal
verbs ou ainda two-part verbs têm sido considerados problemáticos para
os aprendizes de LE. Essa problematização se dá por envolver aspectos
complexos, tanto sintáticos quanto semânticos. Seu significado sucede na
construção de mais de uma palavra, verbo mais partícula(s). A partícula
refere-se à uma preposição ou advérbio, já que tanto um quanto outro,
além do verbo, podem contribuir com o significado de um PV.
Logo, para o desenvolvimento deste estudo e atingir os objetivos
traçados, o presente artigo apresenta fundamentação teórica, visando
sustentar as abordagens feitas e dividido em (2.1) ‘Semântica Cognitiva
e os PVs’, (2.1.1) ‘Um parecer geral da semântica cognitiva’, (2.1.1.1)
‘Esquemas Imagéticos’ e (2.1.2) ‘A metaforicidade dos PVs’. A partir disso,
considera-se a ‘Metodologia e Análise’ e por conseguinte a ‘Discussão
sobre a análise e considerações finais’ e ‘Referências bibliográficas’.
1
Phrasal Verbs serão tratados pela sigla ‘PVs’ ou ‘PV’, quando no singular.
372
Samanta Kélly Menocin Pierozan
1 Fundamentação teórica
A preocupação inicial deste estudo era encontrar uma teoria que
desse conta dos aspectos que envolvem os PVs, para então compreender
como o fenômeno ocorre. Sendo assim, verificou-se na Linguística
Cognitiva o suporte necessário por uma perspectiva não modular e
ressaltar princípios cognitivos da linguagem, reunindo abordagens que
compartilham hipóteses centrais, além de detalhar suas particularidades
no que tange à linguagem humana.
Para tratar, mais especificamente, da semântica e metaforicidade dos
PVs, faz-se necessário uma visão linguística enciclopédica2. Assim, a LC,
por meio da semântica cognitiva e sustentando-se nos estudo teóricos
de LAKOFF (1987) e LAKOFF E JOHNSON (1980), passa a dar o
suporte necessário às investigações do presente estudo.
Num primeiro momento, ou ainda, na sua origem, as preposições
eram utilizadas para demonstrar noções espaciais entre entes físicos.
Porém, percebe-se que elas transcendem estas entidades, uma vez que a
experiência física e espacial esteja corporificada.
Assim, nota-se a relação dos PVs, mais precisamente das suas
partículas, com esquemas imagéticos, que são representações conceptuais
abstratas derivadas da nossa interação diária e do mundo que nos cerca
(EVANS E GREEN, 2006, p. 176). LINDNER (1981), LAKOFF (1987),
RUDZKA-OSTYN (2003) E TYLER E EVANS (2003) concordam
que o significado de um PV vai do concreto ao abstrato e que a metáfora
serve como um link entre eles.
Por esta perspectiva, a pragmática e a semântica não podem ser distinguidas, pois há um
contexto que influencia na definição de uma palavra. A linguística enciclopédica abrange o
conhecimento enciclopédico, que é o conhecimento de mundo, extralinguístico. Por este viés, o
conhecimento é estruturado, o que fornece o acesso necessário ao inventário do conhecimento
– para EVANS E GREEN (2006, p. 216) refere-se a um sistema estruturado de conhecimento,
organizado como uma rede, onde nem todos os aspectos associados a uma única palavra tem o
mesmo valor.
2
373
Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas
2 Semântica Cognitiva e os PVs
2.1 Um parecer geral da semântica cognitiva
Neste capítulo a semântica será vista pela abordagem semântica
cognitiva, uma ramificação da Linguística Cognitiva (LC), que assume a
linguagem como uma faculdade mental e que as habilidades linguísticas
são sustentadas por formas especiais de conhecimento (SAEED, 2003,
p. 342). Considerando FERRARI (2011, p. 13), a expressão ‘linguística
cognitiva’ circulava no meio linguístico desde 1960, porém foi por volta
de 1980 que o termo passou a vigorar. Inicialmente, o termo ‘LC’ foi
adotado por George Lakoff, Ronald Langacker, Leonard Talmy, Charles
Fillmore e Gilles Fauconnier, um grupo de estudiosos que buscavam
uma teoria que sustentasse as relações entre sintaxe e semântica, ao
mesmo tempo que considerasse as relações entre forma e significado e
se afastasse da perspectiva modular proposta pelo gerativismo.
Consequentemente, surge a semântica cognitiva em reação à
visão objetivista de mundo, uma vez que linguistas cognitivos viam o
significado linguístico como uma manifestação da estrutura conceptual
que, de modo geral, são muito diferentes da visão tradicional. Os
sistemas conceptuais são organizados por categorias3 das quais nossos
pensamentos as envolvem; funcionam na base da projeção, dominando
conceitos mais abstratos a partir de noções mais concretas. Essa nova
visão, oposta à tradicional/objetivista, fundamenta-se na experiência
corporificada, a qual considera aspectos imaginativos da razão como a
metáfora, a metonímia e imagens mentais.
Alguns princípios caracterizam a abordagem semântica cognitiva,
entre eles: (i) a estrutura conceptual é corporificada, ou seja, a natureza
3
Para ROSCH (apud LAKOFF, 1987, p.7), as categorias, no geral, apresentam exemplos prototípicos e
que todas as capacidades, especificamente humanas, desempenham um papel importante na categorização.
“Categorias são categorias de coisas [...] Nós temos categorias para todas as coisas que podemos pensar.
Mudar um conceito de categoria é mudar nossa compreensão de mundo” (LAKOFF, 1987, p. 9).
374
Samanta Kélly Menocin Pierozan
da organização conceptual emerge da experiência corpórea, (ii) a
estrutura semântica é uma estrutura conceptual, uma vez que a estrutura
semântica4 é comparada a conceitos, (iii) a representação do significado
é enciclopédica, pois unidades linguísticas são vistas como pontos de
acesso do conhecimento em relação a um determinado conceito e (iv)
a construção do significado é conceptual, sendo que esta comparação é
possível em virtude do processo dinâmico no qual os itens lexicais são
o ponto de partida para a construção de um nível conceitual (LAKOFF,
1987; EVANS E GREEN, 2006).
O conhecimento em si é organizado em estruturas armazenadas na
memória de longo prazo, nomeado por FILLMORE (1982) e LAKOFF
(1987) modelos cognitivos idealizados, ou MCIs. É da organização que
provém as estruturas das categorias, bem como os efeitos prototípicos.
Cada MCI refere-se a uma estrutura complexa no qual envolve (i)
estrutura proposicional (frames de Fillmore), (ii) estruturas de imagem
esquemática (gramática cognitiva de Langacker), (iii) mapas metafóricos
e (iv) mapas metonímicos (descritos por Lakoff e Johnson) (LAKOFF,
1987, p.68). Dessa forma, “o conhecimento é possível, pelo menos
parcialmente, por causa das categorias da mente que se ajustam às
categorias do mundo” (p. 297).
Sendo assim, passo a explorar um pouco sobre as estruturas de
esquemas imagéticos (ou estruturas de imagem esquemática), bem como
a metaforicidade dos PVs, já que estes parecem explicar os fenômenos
que circundam os PVs.
2.1.1 Esquemas imagéticos
Esquemas imagéticos são vistos como representações conceptuais
relativamente abstratas que surgem diretamente de nossa interação diária
e do mundo que nos cerca (EVANS E GREEN, 2006, p. 176). Por sua vez,
EVANS E GREEN (2006, p.164) definem estrutura semântica como o significado
convencionalmente associado a outras palavras e outras unidades linguísticas.
4
375
Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas
não é abordado como uma estrutura inata do conhecimento, pois deriva
da experiência sensorial perceptual (audição, tato, visão, movimento)
e é pré-conceitual na sua origem, ou seja, são os primeiros conceitos
a emergirem na mente humana, ancorado na experiência corpórea do
homem no espaço físico. O que os faz ‘conceptuais’ e não puramente
‘perceptuais’ é pelo fato de prover conceitos conscientemente acessíveis.
Considerando LAKOFF (1987, p. 454), um esquema pode ser visto
como um protótipo generativo, que gera, aproxima e se enquadra a
princípios gerais, definindo o grau dos membros constituintes. Esquemas
de imagens consistem de padrões que se dão por instâncias repetidas
da experiência corporificada. De modo geral, representam padrões
esquemáticos que refletem domínios, como é o caso do CONTÊINER
e TRAJETÓRIA, entre outros. Refletir domínios quer dizer sustentar
projeções entre domínios conceptuais, característicos do uso metafórico
e metonímico.
Pensando na aplicabilidade dos PVs, vale salientar a análise de
BRUGMAN (1981, apud LAKOFF, 1987, p.454) a qual apresenta níveis
de estruturas prototípicas para algumas preposições, desenvolvendo um
estudo específico para a preposição over; que por sua vez envolve (i) a
estrutura radial das categorias de esquemas, onde cada esquema é visto
como membro de determinada categoria e (ii) a estrutura generativa da
categoria de cenas e imagens, definida por esquemas individuais.
Desse modo, faz-se notável que este é o caminho, ou pelo menos um
dos caminhos, para explicar o fenômeno ‘phrasal verbs’, podendo refletir
sobre suas propriedades gerais e identificar preceitos relacionados. Além
disso, por meio da teoria abordada, pode-se averiguar a relação existente
entre esquemas imagéticos e metaforicidade; esquemas imagéticos e
modelos metafóricos são necessários para representar o significado
das expressões - os sentidos de cada expressão forma uma categoria
estruturada radialmente, com um membro central e conexões definidas
por transformações de esquemas imagéticos e metáforas (LINDER,
376
Samanta Kélly Menocin Pierozan
1981, HAWKINS, 1984, BRUGMAN, 1981, apud LAKOFF, 1987, p.
460).
2.1.2. A metaforicidade dos PVs
Por meio da LC é possível identificar significados prototípicos e
verificar como os significados adicionais são extensões metafóricas do
sentido básico; pesquisas como as de LAKOFF E JOHNSON (1980)
foram pioneiras ao considerar a metáfora no discurso do dia-a-dia. A
aplicabilidade dessa abordagem em relação ao estudo das preposições
vale também para TYLER E EVANS (2003).
Para compreender o que vem a ser a metaforicidade dos PVs fazse necessário destacar alguns conceitos, como é o caso da ‘metáfora
estrutural’, onde um conceito é estruturado metaforicamente em termos
de um outro. Entretanto, há um outro tipo de conceito metafórico
que organiza todo um sistema de conceitos no que diz respeito a
outros, conhecido por ‘metáfora orientacional’. Este último fornece
as orientações espaciais a um conceito e fundamenta-se na experiência
física e cultural, podendo variar de uma cultura à outra (LAKOFF E
JOHNSON, 1980, p. 14).
Sendo assim, toma-se como exemplo MORE IS UP / LESS IS
DOWN: ‘The number of books printed each year keeps going up’ e ‘The amount
of artistic activity in this state has gone down in the past year’. Com base na
experiência física, se adicionarmos mais de uma substância ou objeto
físico a um contêiner ou pilha, o nível cresce – por meia desta experiência,
já corporificada5, que é torna possível compreender o significados dos
PVs dos exemplos dados.
Além do que já foi reportado acima, a relação metáfora-coerência
cultural merece ser salientada neste estudo. Tendo como exemplo UP5
“Each of us is a container, with a bounding surface and an in-out orientation. We project
our own in-out orientation onto other physical objects that are bounded by sufaces” (Lakoff
& Johnson, 1980, p. 29) - Esta citação permite compreender um pouco mais do que se trata a
‘experiência corporificada’.
377
Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas
DOWN, consideremos alguns valores culturais da sociedade, embutidos
na cultura de um povo, que são coerentes à metáfora (p. 22):
“Mais é melhor” é coerente com ‘MORE IS UP’ e ‘GOOD IS UP’,
porém “menos é melhor” não é coerente;
“Maior é melhor” é coerente com ‘MORE IS UP’ e ‘GOOD IS UP’,
porém “menor é melhor” não é coerente;
“O futuro será melhor” é coerente com ‘THE FUTURE IS UP’ e
‘GOOD IS UP’, porém “o futuro será pior” não é;
“Haverá mais no futuro” é coerente com ‘MORE IS UP’ e ‘THE
FUTURE IS UP’;
“Teu status deveria ser mais alto no futuro” é coerente com ‘HIGH
STATUS IS UP’ e ‘THE FUTURE IS UP’.
As metáforas, de acordo com LAKOFF E JOHNSON (1980,
p. 46), estruturam em parte nossos conceitos diários e esta estrutura é
refletida em nossa linguagem literal. Expressões da língua inglesa são
literais ou idiomáticas, enquadrando-se às metáforas e parte da fala
cotidiana das pessoas. Alguns exemplos:
TEORIAS (e ARGUMENTOS) SÃO CONSTRUÇÕES:
“We need some more facts or the argument will fall apart”.
IDEIAS SÃO ALIMENTOS: “Having children eats up a loto f
a family’s income”.
Com relação à vida e à morte IDEIAS SÃO ORGANISMOS,
tanto PESSOAS quanto PLANTAS.
IDEIAS SÃO PESSOAS: “His ideas will live on forever”.
IDEIAS SÃO PLANTAS: “Mathematics has many branches”.
A partir dos exemplos fornecidos, verifica-se que muitos PVs são
usados metaforicamente, tanto por parte do verbo quanto por parte da
partícula. RUDZKA-OSTYN (2003, p.3) afirma que saber o significado
do verbo e o significado espacial da partícula torna a interpretação de um
PV mais fácil, mas não o suficiente. Entretanto, mesmo os significados
mais abstratos apresentam uma relação como significado espacial
original.
378
Samanta Kélly Menocin Pierozan
No inglês, o significado literal de advérbios e preposições referemse às noções espaciais. Apesar de poucas línguas conterem PVs,
algumas metáforas ocorrem em quase todas as línguas como por
exemplo a noção de ‘alto e baixo’, a qual apresenta uma metáfora
conceptual6 de quantidade ou poder/status. LAKOFF E JOHNSON
(1980) argumentam que muitas das metáforas conceptuais se dão por
experiências humanas básicas – experiências corporificadas, interações
com o meio físico e cultural. A propósito, KÖVECSES (2005, p. 14
apud KOVÁCS, p.144) destaca que na visão cognitivista a metáfora é
uma propriedade indispensável do pensamento e conceptualização
humana, ou seja, a língua é metafórica e expressa alto nível de abstrações
baseando-se no concreto e entidades físicas. Sendo assim, nosso sistema
conceptual é metaforicamente estruturado e definido (LAKOFF, 1980;
LAKOFF E JOHNSON, 1987; KÖVECSES, 2005).
3 Metodologia e análise
Com o propósito de averiguar as extensões metafóricas que envolvem
os PVs, suas propriedades metafóricas e como as metáforas ocorrem e/
ou se caracterizam, busca-se analisar alguns PVs através de esquemas
imagéticos. Neste sentido, este estudo apresenta algumas construções
contendo as partículas de sentido espacial UP e DOWN.
Por conseguinte, busca-se averiguar as propriedades metafóricas dos
PVs. Up e down, num sentido literal, descrevem movimentos em relação à
uma posição mais elevada, já no sentido metafórico, por exemplo, referese ao crescimento/aumento de tamanhos, números ou força.
A Teoria da Metáfora Conceptual, apresentada primeiramente por Lakoff e Johnson
em Metaphors We Live By (1980) pressupõe, basicamente, que a metáfora não é um recurso
simplesmente estilístico da linguagem, mas que o pensamento em si é metafórico por natureza
(Evans, 2007, p.33-35). Sistematicamente inferimos padrões de um domínio conceptual para
outro domínio conceptual, essa correspondência entre domínios é chamado de mapeamento
metafórico (Lakoff e Johnson, 1980, p.246).
6
379
Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas
Logo, tendo em vista a importância dos estudos de LAKOFF E
JOHNSON (1980) quanto a análise das partículas envolvidas, faz-se
necessário examiná-las para só após discutirmos sobre o fenômeno.
3.1 Análise de Lakoff e Johnson: Metáforas orientacionais
Para os autores, orientações espaciais emergem do fato do corpo
humano existir num meio físico. A partir disso, as metáforas orientacionais
fornecem um conceito à orientação espacial. Neste sentido, faz-se
alusão a como os conceitos metafóricos emergem da experiência física
e cultural.
Abaixo são demonstradas as metáforas conceptuais sugeridas
pelos autores na obra Metaphors We Live By (p. 15-17), bem como sua
base empírica - seja ela física ou social. Além disso, há a explanação de
exemplos relacionados às metáforas, os quais apresentam PVs7.
FELIZ É UP; TRISTE É DOWN – ‘This chocolate cheers me up’
Base física: Postura de desânimo acompanha tristeza e depressão,
postura ereta acompanha estado emocional positivo.
CONSCIENTE É UP; INCONSCIENTE É DOWN – ‘Wake up’
Base física: Humanos e a maioria dos outros mamíferos dormem
deitados e ao acordarem levantam-se.
SAÚDE E VIDA SÃO UP; DOENÇA E MORTE SÃO DOWN –
‘He came down with the flu’
Base física: Doenças sérias nos forçam a deitar-se fisicamente.
Quando você está morto, você está fisicamente pra baixo.
Alguns dos exemplos são propostos por Lakoff e Johnson (1980), outros são elaborados por
mim.
7
380
Samanta Kélly Menocin Pierozan
TER CONTROLE OU FORÇA É UP; ESTAR SUJEITO AO
CONTROLE OR FORÇA É DOWN – ‘The illness is not going to keep
him down’
Base física: O tamanho físico tipicamente correlaciona com força
física e o vencedor num luta está geralmente no topo.
MAIS É UP; MENOS É DOWN – ‘Buldings are going up all over the city’
Base física: Adicionar mais de uma substância ou objetos físicos a
um contêiner ou pilha, o nível se eleva.
EVENTOS FUTUROS PREVISÍVEIS SÃO UP - ‘What’s coming
up this week?’
Base física: Normalmente olhamos na direção em que nos movemos
(à frente, para o futuro). Quando um objeto aborda uma pessoa (ou viceversa) o objeto parece ser maior. Desde que a superfície seja percebida
como fixa, o topo do objeto parece mover-se acima do campo de visão
da pessoa.
ALTO STATUS É UP; BAIXO STATUS É DOWN – ‘He’s putting
up the price again’
Base física e social: Status é correlacionado com poder (social) e
poder (físico) é UP.
GOOD IS UP; BAD IS DOWN – ‘Things are looking up’
Base física para bem-estar pessoal: Felicidade, saúde, vida e controle
– coisas que caracterizam o que é bom para uma pessoa – são todas UP.
VIRTUDE É UP; DEPRAVAÇÃO É DOWN – ‘Be warm, or your
relationship will break down’
Base física e social: BOM É UP para uma pessoa, juntamente com
a metáfora SOCIEDADE É UMA PESSOA – logo, ser virtuoso é agir
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Interpretando Phrasal Verbs a Partir das Extensões Metafóricas das Partículas
de acordo com os padrões da sociedade/pessoas que mantém o bem
estar. VIRTUDE É UP porque ações virtuosas correlacionam com o
bem estar social do ponto de vista da sociedade/pessoas. Desde que
metáforas com base social são culturais, é o ponto de vista da sociedade/
pessoas que são considerados.
4 Discussão sobre a análise e considerações finais
A partir da análise de LAKOFF E JOHNSON (idem) averiguouse que os conceitos acima envolvem uma metáfora, ou mais, numa
configuração espacial, apresentando coerência orientacional no que
tange outras metáforas. A coerência é proveniente dos valores culturais
embutidos na sociedade. Além disso, verifica-se que as metáforas
baseiam-se na experiência física e cultural que atribuem às suas extensões
e facilitam a compreensão de conceitos; mesmo porque uma metáfora,
considerada principal, pode prover outras e estender seu significado,
diversificando ou não de uma cultura para outra.
Por conseguinte, verifica-se que há um real envolvimento de
esquemas imagéticos em relação aos PVs evidenciando que a experiência
é corporificada e promovendo a interpretação dos mesmos por meio de
projeções metafóricas que partem de um domínio ESPACIAL (concreto)
para um mais abstrato. Por exemplo: MAIS É UP/MENONS É DOWN
conta com a projeção de um domínio fonte, VERTICALIDADE,
a um domínio alvo, QUANTIDADE. Neste sentido, de acordo
com LAKOFF (1987, p.276), um domínio fonte só funciona como
uma metáfora se puder ser compreendido independentemente dela;
neste caso, VERTICALIDADE refere-se à estrutura esquemática de
CIMA-BAIXO (UP-DOWN) vinculada a noção de gravidade. Além
disso, faz-se possível compreender QUANTIDADE por meio da
VERTICALIDADE devido à correlação entre ambos, motivada pelo
funcionamento físico. Entretanto, vale salientar que apesar de haver
382
Samanta Kélly Menocin Pierozan
diversas correlações estruturais consequentes da experiência corpórea,
não são todas que motivam metáforas8.
Nas palavras de LAKOFF (1980, p. 275), “esquemas imagéticos
fornecem evidências importantes para conceitos abstratos que emergem
de instâncias da experiência corpórea e projeções metafóricas de um
domínio concreto para um abstrato”.
Todavia, a língua em si é metafórica e expressa alto nível de abstração,
baseando no concreto e entidades físicas, ou seja, na experiência
corporificada, o que possibilita interpretar os PVs a partir da semântica
envolvida.
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SUBMISSÃO. Daí para frente, é só seguir as instruções.
Avaliação – A avaliação dos trabalhos submetidos depende da aprovação
por dois membros do Conselho Editorial (veja a composição do Conselho
Editorial no site do SER).
Publicação – A revista da Abralin foi publicada inicialmente em versão
impressa (O ISSN dessa versão era 1678-1805)
Desde 2011, a Revista da ABRALIN é uma somente publicação eletrônica
(ISSN 2178-7603 ).
Acesso aos trabalhos já publicados
Em maio de 2013, começou a postagem da coleção da revista junto
ao SER-UFPr. O link http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/abralin/
issue/archive dá acesso aos números já postados. A expectativa é tornar
acessíveis através desse endereço toda a coleção já publicada, inclusive os
números especiais (que reúnem trabalhos apresentados em congressos).
Também serão disponibilizados os Boletins, que foram por muito tempo
a única publicação da Associação Brasileira de Linguística.
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2014 - Vol. 13 - Nº 1