CO 61: A Geometria Descritiva como “ciência acessória” na Academia Imperial de Belas Artes Thiago Maciel de Oliveira Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira - UERJ [email protected] Marcel A R Almeida Pemat-UFRJ [email protected] RESUMO A Geometria Descritiva (GD) é uma disciplina que surge no fim do século XVIII a partir das lições de Gaspard Monge em instituições de ensino francesas. Tendo como precursores textos escritos para profissionais de áreas como a arquitetura e a estereotomia, consolida-se como método geral para a solução gráfica de problemas envolvendo figuras espaciais. No Brasil, implantação do ensino da GD deve-se à chegada de Dom João VI, em 1808. A criação da Academia Real Militar demandou a tradução do livro de Monge para o português, tarefa cumprida por José Vitorino dos Santos e Souza, primeiro lente de GD da Academia. Além disso, a missão francesa de 1816, chefiada por Joachim Lebreton a convite de D. João VI, originou a Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), instituição destinada à formação de artistas e arquitetos. O artigo tenciona expor a gradativa introdução da disciplina Geometria Descritiva na formação de artistas pela AIBA a partir da análise dos regulamentos de 1855 e de 1890. A partir desta análise verificou-se que a disciplina, cujo conteúdo era ensinado na cadeira de matemáticas aplicadas, assumiu caráter “acessório” para fornecer os “elementos indispensáveis ao artista” e que somente a partir de 1890 a GD constitui-se como disciplina independente nessa instituição. A gradativa ampliação do espaço ocupado pela Geometria Descritiva entre as cadeiras da AIBA (e posteriormente da ENBA) se dá em consequência de reformas educacionais mais amplas ocorridas no país. No período imperial, a busca pela industrialização no governo de Dom Pedro II leva à necessidade de formação técnica. A reforma de 1855 da AIBA vislumbra contribuir com tal tipo de formação e a Geometria Descritiva cumpre o papel de “ciência acessória”, termo usado no próprio texto do regulamento para designar as áreas que deveriam apoiar o ofício dos profissionais formados pela Academia. Já no período republicano, a introdução do ensino de desenho nas escolas primárias e secundárias levou à necessidade de suprir as escolas com professores. A criação da cadeira de Geometria Descritiva como uma disciplina independente amplia seu espaço dentro da ENBA visando à formação de professores de desenho. Os regulamentos considerados nesse artigo mostram, também, a proximidade que a Geometria Descritiva manteve com a formação de arquitetos pela AIBA. As cadeiras relacionadas à matemática estavam primordialmente vinculadas ao curso de arquitetura, de modo que é possível inferir que, no âmbito da AIBA, a Geometria Descritiva articulou conhecimentos teóricos e práticos. Palavras-Chave: Geometria Descritiva, Perspectiva, Academia Imperial de Belas Artes. 1) Introdução A Geometria Descritiva (GD) é uma disciplina que surge no fim do século XVIII a partir das lições de Gaspard Monge em instituições de ensino francesas1. Tendo como precursores textos escritos para profissionais de áreas como a arquitetura e a estereotomia (SAKAROVITCH, 1998), consolida-se como método geral para a solução gráfica de problemas envolvendo figuras espaciais no trabalho de Monge. Segundo Sakarovitch (1998, p.265), a GD insere-se na esfera da ciência e constitui uma linguagem universal científica, além de constituir uma disciplina no coração da articulação teoria/prática. Trata-se de um método gráfico universal porque permite a descoberta de formas sem a necessidade de uma representação mental prévia. Além disso, estabelece aliança entre os saberes teóricos e práticos, pois seu produto final é um documento gráfico, cuja produção exige a “correção do pensamento e a precisão do traçado”2. No Brasil, implantação do ensino da GD deve-se à chegada de Dom João VI, em 1808. A Carta Régia de 4 de dezembro de 1810 instituiu os objetivos e a regulamentação para a criação da Academia Real Militar. Para Gani (2004, p.86), “a Geometria Descritiva aparece como disciplina do segundo ano” da Academia e “os professores deveriam preparar um compêndio para seu curso, de sua própria autoria, ou fazer a tradução de um livro estrangeiro consagrado”. O texto indicado na Carta Régia era o de Monge e sua tradução para o português foi feita pelo primeiro lente dessa disciplina na Academia, José Vitorino dos Santos e Souza. José Vitorino era brasileiro, graduado pela Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra e 2º tenente do Real Corpo de Engenheiros. Foi o primeiro lente 1 Entre as instituições francesas de atuação de Monge, destacam-se a Ecole du génie de Mézières, a Ecole centrale des travaux publics, a Ecole normale de l'an III e a Ecole politechnique. Nesta, Monge foi figura importante para sua fundação. Sobre a biografia de Monge, ver Sakarovitch (1998), Taton (1951), Gani (2004) e Miranda (2001). 2 Segundo Sakarovitch (1998, p.273), “la géométrie descriptive, ne se réduit donc pas pour autant à l'expression de raisonnements abstraits, et éxige, de manière intrinsèque, la production d'un document graphique à la qualité duquel concourent, de façon inséparable, la justesse du raisonnement et la précision du trait.” 2 dessa disciplina na Academia Real Militar3 e traduziu o texto de Monge para sua utilização nas aulas da Academia (GANI, 2004). Sobre sua contribuição ao produzir tal texto, Vitorino afirma que seu desejo era cooperar para levantar o imperio das sciencias, e das bellas artes, em hum novo mundo, que oferece muitos recursos naturaes para a applicação das mesmas a indústria, e aos melhoramentos das artes, que são as molas da grande machina social. (SOUSA, 1812, p.xix) A Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) tem origem na missão francesa de 1816, chefiada por Joachim Lebreton a convite de D. João VI. O decreto de 12 de agosto de 1816 cria a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, instituição destinada à formação de artistas e arquitetos. Durante o século XIX, é possível distinguir três períodos no desenvolvimento da AIBA. O primeiro engloba sua criação e perpassa os governos de D. João VI e de D. Pedro I. O segundo, um período de consolidação, corresponde ao 2º império sob D. Pedro II. O terceiro, no início do período republicano, inclui a expansão de seus cursos e programas, principalmente o Curso de Arquitetura. A instituição recebeu as denominações Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, Academia de Artes e Academia Imperial de Belas Artes. Os regulamentos de 1855 e de 1890 são oriundos de duas importantes reformas na AIBA, conduzidas por Manuel Araújo Porto Alegre (1855) e Benjamin Constant (1890). A partir da análise desses regulamentos, verifica-se que a GD assume um caráter “acessório” nesta instituição e verifica-se que a disciplina, cujo conteúdo era ensinado na cadeira de matemáticas aplicadas, servia primordialmente para fornecer os “elementos indispensáveis ao artista”4. No âmbito da AIBA, a GD serviu primordialmente à técnica, vinculando-se fundamentalmente ao curso de arquitetura. É somente a partir de 1890, com a criação da cadeira de Geometria Descritiva, Perspectiva e Sombras, que a GD constitui-se como disciplina independente nessa instituição. 3 A Academia iniciou suas atividades em 1811 e teve como referência, na constituição de suas normas, regulamentos e programas para as disciplinas, a École Polytechnique de Paris (VALENTE, 1999, p.93). 4 Brasil. Decreto n. 1603 de 14 de maio, 1855. Art.40. 3 2) Desenvolvimento Félix Émile Taunay, sucedeu, em 1834, o pintor português Henrique José da Silva, primeiro diretor da Academia, empossado no lugar de Joachim Lebreton, morto antes de a instituição entrar efetivamente em funcionamento, em 1826. A gestão de Taunay abarcou, cronologicamente, todo o período da Regência (1831 - 1840) e uma década inteira do Segundo Reinado, terminando em 1954. Entre suas contribuições, inaugurou as Exposições Gerais de Belas Artes e instituiu os prêmios de viagem ao exterior, ações que contribuíram para aumentar a projeção da AIBA no contexto cultural do país. Assim, Félix Émile Taunay contribuiu para a consolidação institucional da AIBA e pode-se considerá-lo como elemento de transição, tanto pelas inovações promovidas, quanto pelo fato de seu sucessor na direção da Academia, Manuel de Araújo Porto Alegre, ter sido o primeiro brasileiro a ocupar o cargo. O sucessor de Taunay na direção da Academia foi o brasileiro Manuel Araújo Porto 5 Alegre que assumiu o cargo em 1854, promovendo uma reforma na instituição em 1855. Tal reforma inseriu-se em um contexto mais amplo de reformas educacionais do Império, a chamada “Reforma Pedreira” (SQUEFF, 2000). Para Squeff (2000), além da formação de artistas “aptos a contribuir com imagens e monumentos para a nação que se consolidava sob o reinado de D. Pedro II”, Araújo Porto Alegre acrescentaria a tarefa suplementar de instruir artífices e operários, incluindo, assim, o ensino técnico na AIBA. Na reforma de 1855, a Academia ficou organizada em cinco seções: Arquitetura, Escultura, Pintura, Ciências Acessórias e Música6. Entre as chamadas “ciências acessórias” 7 , estava a de matemáticas aplicadas, cadeira cujos professores deveriam ensinar “todos os elementos indispensáveis ao Artista” 8. Os professores eram responsáveis por ensinar a estereotomia, a trigonometria aplicada ao levantamento de plantas e nivelamento de 5 Araújo Porto Alegre foi aluno de Jean-Baptiste Debret na AIBA. Acompanhou Debret em seu retorno à França em 1831, matriculando-se na École National Supérieur des Beaux-Arts em Paris. Ao retornar ao Brasil em 1837, assume a cadeira de pintura histórica na Academia, cargo anteriormente ocupado por Debret (BUENO e SANTOS, 2013). 6 Brasil. Decreto n. 1603 de 14 de maio, 1855. Art.3. 7 Idem. Art. 4. As ciências acessórias eram Matemáticas Aplicadas, Anatomia e Fisiologia das paixões, Histórias das Artes, Estética e Arqueologia. 8 Idem. Art.40. 4 terrenos9, além da perspectiva e teoria das sombras10. Havia, ainda, um curso de desenho geométrico, de responsabilidade da seção de Arquitetura, que tinha por objetivo complementar a cadeira de matemáticas através do ensino do desenho linear e apresentar aplicações especiais do desenho à indústria, conforme a profissão ou destino dos alunos11. Na reforma de 1890, conduzida por Benjamin Constant, a AIBA passa a ter denominação Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Benjamin Constant foi chefe do Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, criado pelo governo provisório com o Decreto nº. 346 de 19 de abril de 1890 (DAZZI, 2013) e conduziu a primeira reforma educacional do período republicano. Quanto à estrutura, a ENBA oferecia um curso geral, com duração de três anos, e cursos especiais de pintura, escultura, arquitetura e gravura, também com duração de três anos12. Entre as cadeiras oferecidas pela Escola13, tem-se Desenho Linear, no 1º ano; Geometria Descritiva e seus respectivos trabalhos gráficos, no 2º ano; Perspectiva e Sombras e seus respectivos trabalhos gráficos, no 3º ano. Do pessoal docente, consta um professor de geometria descritiva, perspectiva e sombras14. Dessa forma, fica criada a cadeira de Geometria Descritiva na ENBA, cujo conteúdo era antes parte da cadeira de matemáticas aplicadas. Além disso, o curso de arquitetura apresentava, entre suas cadeiras, noções de topografia - plantas e desenhos topográficos, estereotomia e desenho de arquitetura - trabalhos práticos - plantas e projetos. A ENBA estruturava-se em seções, sendo a 3ª seção responsável pelas cadeiras de geometria descritiva, perspectiva e sombras, cálculo e mecânica, materiais de construção, resistência dos materiais, tecnologia das profissões, plantas e desenhos topográficos. À 4ª seção cabiam as cadeiras de arquitetura, estereotomia, desenho de arquitetura, trabalhos 9 Idem. Art.41. Idem. Art.47 e 48. 11 Idem. Art.18. 12 Brasil. Decreto n. 983 de 8 de novembro de 1890. Art.3. 13 Idem. Art. 3. 14 Idem. Art. 17. 10 5 práticos, plantas e projetos. Já a 5ª seção era responsável pelas cadeiras de desenho figurado, desenho geométrico, elementos de arquitetura e desenho elementar de ornatos15. Pelo Decreto n. 981, assinado por Benjamin Constant, ficou instituído o ensino de desenho em todos os níveis da educação. Para Dazzi (2013, p.28), “a introdução do ensino de desenho em todas as séries que compunham os currículos dos ensinos primário e secundário e do curso normal, para além de outras explicações, fazia parte da própria filosofia positivista”. Além disso, a introdução do ensino de desenho permitiu a atuação de artistas vinculados à ENBA em escolas públicas e privadas. 3) Conclusão A análise dos regulamentos da AIBA de 1855 e de 1890 mostra uma gradativa ampliação do espaço ocupado pela Geometria Descritiva entre as cadeiras da AIBA (e posteriormente da ENBA). É possível inferir que tal fato se dá em consequência de reformas educacionais mais amplas ocorridas no país. No período imperial, a busca pela industrialização no governo de Dom Pedro II leva à necessidade de formação técnica. A reforma de 1855 da AIBA vislumbra contribuir com tal tipo de formação e a Geometria Descritiva, como parte da disciplina de matemáticas aplicadas, cumpre o papel de “ciência acessória”, termo usado no próprio texto do regulamento para designar as áreas que deveriam apoiar o ofício dos profissionais formados pela Academia. Já no período republicano, a introdução do ensino de desenho nas escolas primárias e secundárias levou à necessidade de suprir as escolas com professores, “professores esses que soubessem passar para os alunos aquilo que se desejava” (DAZZI, 2013, p.29). A criação da cadeira de Geometria Descritiva como uma disciplina independente amplia seu espaço dentro da ENBA visando à formação de professores de desenho. Os regulamentos considerados nesse artigo mostram, também, a proximidade que a Geometria Descritiva manteve com a formação de arquitetos pela AIBA. As cadeiras relacionadas à matemática estavam primordialmente vinculadas ao curso de arquitetura, de modo que é possível inferir que, no âmbito da AIBA, a Geometria Descritiva articulou conhecimentos teóricos e práticos. 15 Idem. Art.6. 6 Referências BUENO, M.; SANTOS, N. P. A Reforma de 1854 na Academia Imperial das Belas Artes: Formando Artistas para Auxiliar a Técnica e a Ciência. Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Org.), Livro de Anais (ISSN 2176-1248), Scientiarum Historia VI - 6º Congresso de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia. Rio de Janeiro: HCTE/UFRJ, 2013. DAZZI, C. “Pai e construtor da arte brasileira” - A Academia das Belas Artes na reforma da educação promovida por Benjamin Constant em 1890/1891. Revista Digital do Laboratório de Artes Visuais, n. 10, p. 19 - 37, 2013. GANI, D. C. As lições de Gaspard Monge e o ensino subseqüente da Geometria Descritiva. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 2004. Dissertação de mestrado. MIRANDA, H. O. O Ensino da Geometria Descritiva no Brasil: Da Academia Real Militar à Escola Politécnica do Rio de Janeiro. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 2001. Dissertação de mestrado. SAKAROVITCH, J. Epures d'architecture: De la coupe des pierres a la géométrie descriptive XVI - XIX siécles. Basel: Birkhäuser, 1998. SQUEFF, L. C. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857) e a constituição do espaço social do artista. Cadernos Cedes, n.51, nov, 2000. SOUSA, J. V. S. Elementos de Geometria Descriptiva... Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1812. TATON, R. L'Oeuvre scientifique de Monge. Paris: Presses Universitaires de France, 1951. VALENTE, W. R. Uma história da matemática escolar no Brasil. São Paulo: Annablume, 1999. 7