Organizações de Simbolismo Intensivo: O caso da Bola de Neve Autoria: Daniela Cedola Resumo Este trabalho procura analisar uma igreja neopentecostal, chamada Bola de Neve, com o intuito de obter e gerar insights sobre as organizações pós-industriais. O artigo descreve as características próprias de muitas organizações atuais, que também podem ser chamadas de “organizações de simbolismo intensivo” (Wood, 1999), e procura relacionar o chamado pósmodernismo com as religiões neopentecostais. Ao apresentar algumas características específicas da Bola de Neve, coletadas por meio do método etnográfico acrescido de entrevistas com lideranças e fiéis da igreja, o artigo procura entender fenômenos organizacionais mais amplos, como a manipulação de símbolos e o descolamento entre substância e imagem. Os resultados demonstram que características que compõem as chamadas organizações de simbolismo intensivo, como liderança simbólica, gerenciamento do sentindo, comunicação dramática, entre outras, podem ser facilmente identificadas na Bola de Neve e captam, no campo religioso, fenômenos das organizações pós-industriais em geral. Palavras-chave: neopentecostal, organizações de simbolismo intensivo, pósmodernismo Introdução Este trabalho apresenta uma investigação de campo em um tipo muito específico de organização: uma igreja. Ele foi baseado no método etnográfico, no qual o pesquisador, conforme se torna familiar e imerso em seu objeto de pesquisa, pode apreender aspectos de sua cultura e características, e assim reportá-los, por meio de descrições densas (Geertz, 1978). A igreja em questão pertence ao grupo das evangélicas neopentecostais, cuja representante mais conhecida e poderosa é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Apesar de apresentar características bastante comuns a este grupo de religiões, a Bola de Neve possui um caráter bastante peculiar, que a torna única e diferenciada, transformando-a, desta maneira, em um objeto interessante para análise. Trata-se de uma igreja ainda emergente, fundada em 1999, composta basicamente por um público jovem e de classe média. Segundo a definição de um dos líderes da mesma, “nas outras igrejas os pais levam os filhos; aqui na Bola de Neve, os filhos trazem os pais”. Entender, contextualizar e analisar o fenômeno neopentecostal é uma tarefa árdua e complexa, por se tratar de um movimento social composto de diversos atores, diferentes grupos religiosos, ideologias, informações restritas, e assim por diante. Tendo em mente esta dificuldade, este artigo não tem por pretensão exercer uma análise ampla e definitiva do neopentecostalismo ou da própria igreja que pretende estudar. A opção encontrada foi procurar entendê-lo a partir da visão de que a igreja representa uma Organização de Simbolismo Intensivo (Wood, 1999). Sob este ponto de vista, as organizações podem ser consideradas como um reflexo da época atual, na qual a tônica é dada pelo descolamento entre substância e imagem (Alvessom, 1990). O artigo organiza-se da seguinte maneira: na primeira parte oferece um referencial teórico com base na perspectiva pós-modernista e no conceito de organizações de simbolismo intensivo. Em seguida é feita a contextualização da igreja estudada, trazendo um breve histórico e perfil do neopentecostalismo no cenário religioso brasileiro. Na etapa seguinte é apresentada a metodologia de pesquisa e em seguida o caso Bola de Neve, mostrando sua história, principais características e a descrição de alguns eventos: um culto, uma reunião de “Ministério” e um encontro de “Célula”. Na seção final algumas idéias para entendimento deste fenômeno são formuladas, à luz dos conceitos adotados. Organizações pós-industriais e a análise pós-moderna A sociedade atual é representada por uma essência que reflete uma série de mudanças no antigo paradigma da modernidade. A época presente, predominantemente capitalista e economicamente globalizada, é caracterizada por diversas mudanças culturais, aumento da instabilidade e incerteza, complexidade, predomínio das comunicações de massa, surgimento de novas mídias, entre outros elementos, que embasam a tese que os tempos – e as organizações – de hoje demonstram um descolamento entre substância e imagem (Alvesson, 1990). Isto significa que a realidade passa a ser trabalhada em favor de certas impressões que se deseja criar, algo que pode ser facilmente observado na mídia de celebridades ou mesmo em organizações. Estas mudanças e a predominância do setor de serviços nas economias mais desenvolvidas forma o que hoje se conhece por organizações pós-industriais. Certas características desta pós-industrialidade, como manipulação de símbolos e informações, complexidade nas atividades e interações, descentralização de poder, criam um novo tipo de organização, também chamadas de “organizações de simbolismo intensivo” (Wood, 1999). Segundo Wood (1999, 2001), organizações de simbolismo intensivo podem ser entendidas como um tipo ideal, no sentido em que incorporam conceitos em estado puro, possibilitando assim a classificação das empresas em categorias de análise. Este tipo ideal apresenta algumas características específicas, como: a) liderança simbólica, na qual os líderes lançam mão de símbolos, metáforas, retórica e imagens, em uma forma de ação também conhecida como gerenciamento do sentido (Smircich e Morgan, 1982). Os líderes captam sentimentos da coletividade, como medos e esperanças, e os encenam para sua audiência. b) gerenciamento da impressão, entendido como comunicação e interação planejadas de forma que a audiência chegue a conclusões ou comportamentos desejados pelo emissor. c) inovações gerenciais tratadas como processos dramáticos, por meio do uso de uma comunicação dramática, que se distancia da objetividade, usa símbolos, imagens e metáforas. O uso desta forma de comunicação é feito como maneira de enfrentar barreiras à adoção de inovações. d) presença de analistas simbólicos, agentes que identificam e solucionam problemas pela manipulação de símbolos, cuja função é simplificar a realidade em imagens abstratas que possam ser comunicadas. A análise deste tipo ideal de organização torna-se possível dentro do paradigma da pósmodernidade. No campo de ciências sociais e estudos organizacionais o pós-modernismo tem sido usado para descrever o atual período social, utilizando conceitos como fragmentação, textualidade e resistência (contra formas de controle e dominação), enfatizando a natureza construída das pessoas e da realidade, assim como o caráter fluído do mundo contemporâneo (Alvesson e Deetz, 1998). Segundo revisões feitas por Alvesson e Deetz (1998), dentre as preocupações de análise no pós-modernismo estão: a centralidade do discurso, na qual o poder da linguagem é enfatizado no sentido de que esta tem capacidade de formatar tanto visões de mundo como a subjetividade dos indivíduos; a fragmentação da identidade, onde a noção de indivíduo autônomo é rejeitada em favor da idéia de que a identidade é construída por meio de discursos, por meio do ambiente social, que por si só é heterogêneo e fragmentado e conseqüentemente não permitiria uma identidade estabilizada; as incertezas da linguagem, que funcionam como um meio para espelhar a realidade e transmitir significados; a 2 impossibilidade de separar poder de conhecimento, sendo o poder algo determinado por formas de comportamento normativo e discursos que o sustentam; o simulacro em substituição ao mundo real, entendendo que os sistemas lingüísticos ou representativos são auto-referentes, em uma forma de simulação; a pesquisa como algo que visa a resistência e indeterminação, ou ainda a desconstrução, uma vez que considera as estruturas ou construções como dominação. Esta visão de mundo, que engloba os conceitos de substituição da substância pela imagem e a idéia de organizações de simbolismo intensivo, se associada à perspectiva de análise pós-moderna, pode funcionar como um bom paradigma para entendimento do fenômeno das organizações pós-industriais, e por meio dela a igreja Bola de Neve procura ser estudada. Pós-modernidade e religião Segundo Alvesson (1990), as mudanças culturais contemporâneas refletem a migração de uma unidade, com padrões culturais estáveis, para algo mais fragmentado e artificial. O momento atual da cultura é caracterizado por novas formas de socialização, uma nova psicologia das pessoas na qual a identidade humana é mais fraca e vulnerável e as barreiras entre indivíduo e ambiente são reduzidas. Estes elementos formam assim um ambiente cultural e social que parece ser bastante propício para o surgimento e consolidação de crenças religiosas como o neopentecostalismo. Estas próprias características culturais, segundo Alvesson (1990), geram uma maior receptividade dos indivíduos por imagens, e o uso tão forte que as religiões fazem destas e também de simbolismos seria mais um indício desta relação. De acordo com Campos (1997), a pós-modernidade teria trazido implicações para a religiosidade tradicional, e a partir daí é possível explicar as diferenças entre o pentecostalismo e o neopentecostalismo. A contraposição do modernismo por uma nova ordem social, caracterizada pela cultura de mídia e de massa, reordenação dos sistemas sociais, desagregação da cultura tradicional diante da globalização, descontinuidade, rompimento de fronteiras, maior individualismo, menos historicidade, entre outras características já citadas, acarretaria no aparecimento de novos movimentos religiosos no ocidente. Trata-se, segundo este autor, de uma tentativa de reordenar a vida em uma nova sociedade, que é fundamentalmente materialista. Campos (1997), entende que algumas características do neopentecostalismo seriam conseqüência das mudanças culturais citadas. Entre elas, destacam-se: a) valorização do indivíduo (sua energia e potencial) e tentativa de ligação do mesmo com o universo, quando o fiel entrega sua vida para o Espírito Santo; b) localização do transcendente dentro das pessoas: “o sagrado” não é atingido somente pelas práticas religiosas tradicionais, mas sim por meio de técnicas visando provocar êxtases e despertar nas pessoas a busca da divindade; c) rompimento do padrão ocidental e cristão sobre as expressões religiosas, abertura para influencias de outras religiões, como a umbanda. Campos (1997), ao analisar a igreja neopentecostal Universal, considera que se pode enxergar na mesma traços de uma religiosidade pós-moderna, que permite a expressão individualista e privativista da experiência religiosa. O cenário religioso do Brasil atual Segundo dados do último censo demográfico realizado pelo IBGE, de 2000, as principais religiões no Brasil podem ser divididas entre católicas, evangélicas, cristãs e grupos 3 específicos, como umbanda, candomblé, espiritismo, entre outros. A tabela a seguir apresenta uma divisão adaptada dos dados do Censo 2000, demonstrando a representatividade das religiões em relação à população brasileira: Religião Total da população Católicas 125.518.774 Evangélicas 26.184.941 Outras Cristãs 235.533 Grupos Específicos 4.850.685 Sem Religião 12.492.403 Não Determinadas 357.648 Sem Declaração 383.953 Fonte: IBGE, Censo 2000. Adaptado pela autora. Percentual 73,82% 15,40% 0,13% 2,85% 7,34% 0,21% 0,22% Cada grupo específico apresenta divisões. As igrejas evangélicas, objeto de interesse deste trabalho, são divididas pelo IBGE em basicamente duas categorias: as evangélicas de missão, entre as quais estão as luteranas, presbiterianas e metodistas, e as evangélicas de origem pentecostal, que inclui representantes como a Assembléia de Deus, Universal do Reino de Deus, Bola de Neve. As pentecostais são aquelas cujos fiéis são popularmente conhecidos como “crentes” (Campos, 1997). Em análise dos dados do último censo, Antoniazzi (2002) compara o cenário religioso apresentado nos censos de 1991 e 2000. Segundo o autor, há diminuição do percentual de católicos, de 83,8% (1991) para 73,8% (2000); o percentual de evangélicos cresce de 9,05% (1991) para 15,45% (2000); e, por fim, há aumento dos que se declaram "sem religião", que passam de 4,8% da população (1991) para 7,3% (2000). Ao analisar estes resultados, Antoniazzi (2002) observa que os dados do censo podem apontar para uma "modernização" dos hábitos da população brasileira (como também demonstram a diminuição da natalidade, aumentos dos casamentos consensuais sem legalização, aumento da escolaridade) e para um crescimento do individualismo e subjetivismo. O autor considera que muitas pessoas praticam mais de uma religião simultaneamente e que seria interessante aprofundar o questionamento sobre em que medida estaríamos diante da forma clássica do individualismo (em que o indivíduo se auto-dirige) ou diante de indivíduos que se deixam dirigir pelas modas, pelas mídias, pelo desejo de fazer o que os outros fazem, o que demonstraria a mudança na distribuição da religião. Um breve perfil e histórico do pentecostalismo no Brasil Antes de apresentar maiores detalhes sobre o pentecostalismo no Brasil, é importante caracterizá-lo. Trata-se de uma crença cujas principais diferenciações em relação ao protestantismo tradicional estão em alguns pressupostos e também em rituais, como a conversão por meio do batismo pelo “Espírito Santo”, manifestações físicas como glossolalia (falar em línguas desconhecidas) e experiências místicas. O seu movimento inicial ocorre nos Estados Unidos a partir do início do século XX. Nesta época, são chamados de pentecostais pessoas de classes sociais mais baixas que se unem a este tipo de movimento (Campos, 1997). Já o neopentecostalismo é um movimento de renovação espiritual do próprio pentecostalismo, que inclui novas características como exorcismo, cura divina, manifestação de dons espirituais, revelação divina por meio de líderes carismáticos (os pastores) e uma “teologia da prosperidade” (Campos, 1997). Ao analisar a principal representante das igrejas neopentecostais brasileiras, a Universal, Campos (1997) considera que a mesma representa um “pentecostalismo tardio”, no 4 sentido em que se adapta à lógica do mercado, modelando sua mensagem de acordo com as necessidades e desejos de um certo público, um certo nicho de pessoas insatisfeitas. Em análise sobre o protestantismo no Brasil e seu processo de imersão na cultura brasileira, Abumanssur (2002) apresenta um histórico do mesmo. Trata-se de uma religião que não possui raízes na cultura tradicional brasileira, tendo sido importada da Europa e Estados Unidos a partir do século XIX. Segundo descreve este autor, existem dois modelos para entendimento do protestantismo, sendo o primeiro aquele baseado em imigração e o segundo o de missão. O primeiro surge no país com a chegada de imigrantes europeus, e o segundo basicamente por meio de missionários americanos cujo objetivo era evangelizar a América do Sul e ali buscar novos membros para a religião. Em conjunto com este mesmo protestantismo chega ao Brasil o pentecostalismo, que é implantado no país em três etapas distintas, que são definidas como as três “ondas” (Campos, 1997). A primeira etapa de implementação do pentecostalismo no país ocorre no início do século XX, com a chegada de igrejas como a Congregação Cristã (1910) e Assembléia de Deus (1911). Estas igrejas permaneceram como as únicas pentecostais do Brasil por um período de quarenta anos, e sua característica básica era uma distinção aparente entre as outras religiões brasileiras de então: o membro deveria adotar uma postura comportamental que o diferenciasse e tornasse evidente a sua conversão. Assim aparece a vestimenta típica dos crentes (terno para homens, saia e cabelos compridos para mulheres), proibição de consumo de álcool e fumo, distância de música e televisão, entre outros (Abumanssur, 2002). A partir da década de 1950, a segunda onda do pentecostalismo se consolida, com a chegada de igrejas como a Quadrangular, Brasil para Cristo e Deus é Amor, que traziam novas atitudes, como ocupar praças públicas e programas de rádio, além de terem elegido um membro para o parlamento. Esta fase apresentou algumas novas características, precursoras do pentecostalismo da terceira fase, como exorcismos e encontros com demônios (Abumanssur, 2002). A terceira fase caracteriza o também chamado neopentecostalismo, com o aparecimento da Igreja Universal do Reino de Deus no início dos anos de 1980. Outras igrejas são representantes deste grupo, como a Renascer em Cristo, Sara nossa Terra e também a Bola de Neve. Esta “onda” é caracterizada por grupos que acreditam nos sinais do Espírito Santo, curas pela fé, falar em línguas, exorcismo, uso de talismãs abençoados, entre outros, como formas de evangelizar (Campos, 1997). Segundo a análise feita por Abumanssur (2002), as neopentecostais possuem outras características que as distanciam das outras protestantes. A crença é de que a igreja enfrenta uma “guerra espiritual” entre Deus e o Diabo e os fiéis optam por um dos lados nesta guerra. Os problemas de uma pessoa são atribuídos aos atos do demônio em sua vida. Trata-se de uma teologia da batalha espiritual e também da prosperidade, que, segundo o autor, são mais apropriadas para um público que é excluído do mercado consumidor ou sofre ameaça constante de exclusão. A igreja trata os problemas como uma etapa do jogo ou da batalha, que não teve fim ainda. Uma vez que a visão é direcionada para o presente, os fiéis acabam por ter uma motivação para investir seus recursos nesta vida, e não em uma vida melhor que poderia acontecer após a morte. Em meados da década de 1990, a terceira onda pentecostal começa mostrar sua força e seu crescimento, e a partir daí a igreja católica começa uma reação à perda de fiéis, fortalecendo o seu chamado Movimento Carismático. Neste momento é configurada uma “guerra santa” entre católicos e neopentecostais, que conta com ampla, e por vezes tendenciosa, cobertura dos meios de comunicação. A compra da Rede Record de Televisão pela Universal em 1991 marca esta fase de expansão, e há grande crescimento da presença de programas evangélicos na televisão aberta brasileira. 5 Um fato que caracteriza o cenário neopentecostal brasileiro é o grande número de novas igrejas dissidentes, como pesquisa Campos (1997). Dentre os três fundadores da Universal, apenas Edir Macedo continua na sua liderança, tendo os outros a deixado para fundar suas próprias igrejas. Esta é uma característica específica deste movimento religioso, e esta tendência parece ainda se manter. A própria Bola de Neve é uma dissidência de outra neopentecostal importante, a Renascer em Cristo. Neste momento a atenção da mídia parece ter se reduzido em relação a este fenômeno, porém sem ter cessado. As neopentecostais continuam a sua expansão, a Rede Record da Universal tem crescido sua audiência e almeja a vice-liderança na televisão brasileira. Novas igrejas continuam a surgir. Porém a “guerra santa” parece ter se abrandado. Somente uma pesquisa mais extensiva poderia dizer se o movimento neopentencostal se encontra em sua fase de maturidade ou até mesmo decadência, mas esta afirmação seria algo ainda precoce. A Bola de Neve, como uma religião ainda emergente, apresenta índices de crescimento e aumento de popularidade. Acompanhá-la ao longo do tempo, assim como a outras igrejas de sua filosofia, seria o meio de se responder a este questionamento e entender a evolução do cenário religioso brasileiro. O caso Bola de Neve Esta seção é dividida em três partes: a primeira conta com uma apresentação da metodologia adotada na pesquisa. Em seguida é apresentado um breve histórico da Bola de Neve assim como a sua estruturação atual. E, por fim, alguns eventos da igreja, observados durante a pesquisa, são descritos: um culto, uma reunião do “Ministério Nova Vida” (grupo de ajuda a dependentes de drogas) e uma reunião de “Célula” (reunião na casa de um membro da igreja). Entremeando estas descrições estão fragmentos de conversas com membros da igreja. Metodologia A escolha da igreja Bola de Neve como objeto de pesquisa se dá principalmente pelo fato de a consideramos um fenômeno extremamente rico para observação e compreensão. A curiosidade gerada por uma igreja neopentecostal focada em um público específico, assim como o seu rápido crescimento, também chamam a atenção. Um outro ponto, que reforça a curiosidade e também novidade que o tema gera, é que igrejas neopentecostais tradicionalmente são refratárias à observação exterior e também a pesquisas, conforme comenta Campos (1997). De acordo com Alvesson (1996), o critério adequado para escolha de uma situação de estudo em pesquisa organizacional é de que esta seja rica em conteúdo e toque em temas como relações hierárquicas, legitimidade, ideologia, princípios de controle, liderança, formação de grupos e concepções de racionalidade. O autor também considera que as situações estudadas devem ser algo que se possa decifrar, de forma que permitam ao pesquisador apresentá-las de tal maneira que o leitor possa tirar as suas próprias conclusões, avaliando a interpretação e conclusão do pesquisador. Desta forma, uma religião, com características tão específicas como o neopentecostalismo, constitui um objeto com recursos para fornecer muitos elementos para o entendimento de organizações em geral. O que se apresenta aqui são situações e formas de ações bastante exacerbadas e por vezes dramáticas, mas que, na sua essência, refletem em muitos aspectos e características de organizações empresariais. Para a realização desta pesquisa a metodologia adotada foi o estudo etnográfico, uma vez que se trata de uma organização única e peculiar, o que não permitiria um estudo mais 6 detalhado sem a observação in loco. Durante o período de observação tivemos a oportunidade de freqüentar cultos e eventos da igreja, realizar entrevistas semi-estruturadas com lideranças e fiéis da mesma, e também coletar material na forma de textos (folhetos, apostila, revista e conteúdo do website). O acesso aos eventos da igreja, e também às entrevistas com fiéis, foi proporcionado principalmente por dois informantes, um deles um ex-membro da igreja que nos levou ao primeiro culto e apresentou pessoas que poderiam ajudar com informações. O segundo informante, o líder “Boy”, nos proporcionou acesso aos eventos mais fechados, a diversas informações da igreja e também aos fiéis. As entrevistas não foram gravadas, de forma a preservar a espontaneidade dos informantes, e evitar maiores resistências por parte dos mesmos em falar de um assunto bastante pessoal como fé e religião. Apesar disto, pudemos perceber que algumas pessoas entrevistadas evitavam responder abertamente às perguntas feitas. As notas realizadas após as entrevistas e observação dos eventos foram imediatamente transcritas, de forma a conservar sua fidelidade. Os nomes dos fiéis citados na descrição dos eventos de Ministério e Célula foram trocados, para preservar a identidade dos mesmos. Isto é necessário já que estes eventos acontecem em uma esfera mais privada que os cultos. Enquanto estes últimos podem ser assistidos por qualquer pessoa que entre na igreja, os outros eventos são mais restritos, e assim, com a omissão dos nomes verdadeiros, evita-se a identificação de pessoas e casos específicos. A idéia deste trabalho é interpretar o material coletado sob o ponto de vista do conceito de organizações de simbolismo intensivo, adotando uma perspectiva de análise que tende ao pós-modernismo em estudos organizacionais. No entanto, como dito anteriormente, o fenômeno é bastante rico e assim permite múltiplas interpretações. Desta maneira, este artigo é uma das possíveis análises que se pode fazer do objeto, e não pretende esgotá-lo, mas sim contribuir para o entendimento dos simbolismos em organizações por meio do caso Bola de Neve. Histórico As informações sobre a fundação foram coletadas no website da igreja, e em seguida verificadas com membros da mesma. Não foi possível, porém, verificar estas informações diretamente com o fundador da igreja, uma vez que este não estava disponível para entrevistas na época da realização da pesquisa. A leitura da história da igreja conforme postada no site é bastante frutífera para o entendimento da maneira como a igreja procura criar os seus mitos, sua identidade e ainda a figura do seu pastor, que é retratado de maneira bastante mística. O fundador da Bola de Neve, Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, apresenta a sua história, que se confunde com a da igreja, a partir de um evento dramático em sua vida pessoal. “Rina”, como é conhecido, descreve que enfrentava uma overdose, misturada com hepatite, durante um carnaval em Ubatuba- SP. Neste momento de crise, segundo ele, no qual a morte estava bastante próxima, faz votos e súplicas religiosas, e assim sente uma sensação repentina de paz e o cessar da dor, o que o faz refletir sobre os fatos. Em seguida ele passa dois meses de cama, curando-se da hepatite, e ao mesmo tempo estuda a bíblia. Ao fim deste período é batizado em uma igreja evangélica. Após estes acontecimentos, Rinaldo passa a freqüentar a igreja Renascer em Cristo, uma outra instituição evangélica ascendente no Brasil, e é batizado novamente no ano de 1992. Em dezembro de 1993, Rina se une a alguns amigos e forma um grupo “para levar a palavra de Deus” a amigos, chamando o mesmo de Bola de Neve, dando a idéia de que se trata de algo que começa pequeno e pode se tornar uma avalanche. Em setembro de 1994 o 7 grupo é formalizado dentro da igreja Renascer em Cristo, e passa a realizar uma série de atividades ligadas à igreja, porém voltadas para o público jovem: eventos, atividades esportivas, evangelização, viagens em grupo. Em 1999, Rina e seu grupo percebem algumas mudanças em relação a seus líderes na Renascer e decidem realizar um trabalho independente, fundando a Igreja Evangélica Bola de Neve. O texto do website coloca que esta mudança reflete uma vontade de Deus e não algo que poderia ser controlado por este grupo. Em virtude de falta de acesso ao pastor, não foi possível verificar as reais causas desta ruptura. Neste momento inicial a Bola de Neve não conta com sede própria, e passa a realizar as suas reuniões em um galpão emprestado por um amigo. Um fato interessante é que os templos da igreja não contam com altar, mas sim um púlpito, que é formado por uma prancha de surf apoiada em duas bases. No histórico, Rina descreve que a prancha se torna o púlpito por acaso, e assim compõe a identidade da igreja. A igreja permanece tendo este local como sede durante dez meses, para depois se transferir para uma nova sede. Junto com sua história, no website ainda é possível encontrar a missão e a visão da igreja, transcritas aqui: “MISSÃO: Proporcionar resgate, libertação e restauração através da exposição e pregação da Palavra de Deus, por meio de uma visão e identidade específicas. VISÃO: Ser uma Igreja centrada em Deus, voltada para a X-Generation, com visão missionária, plantando Igrejas como a forma mais eficaz de evangelismo”. Estrutura Atual Desde o início de sua fundação até hoje a igreja apresentou um expressivo crescimento, considerando que iniciou suas atividades na forma de um grupo bastante pequeno. No segundo semestre de 2003 possuíam cerca de três mil fiéis, e sua estrutura de sedes foi ampliada. A localização das sedes é coerente com a sua proposta de incentivar esportes e buscar um público jovem: a principal delas fica localizada em São Paulo, no bairro de Perdizes, e outras unidades estão em cidades litorâneas: Boiçucanga, Peruíbe, Itanhaém, no estado de São Paulo, Itacaré – BA, Niterói-RJ, Florianópolis – SC e Laguna – SC. Segundo informações de membros da igreja, novas sedes serão abertas em breve no estado de São Paulo, nas cidades de Santos e Ubatuba. Além das sedes, a igreja estrutura-se na forma de grupos, chamados “Ministérios”, nos quais membros da Bola de Neve realizam trabalhos voluntários. A descrição dos mesmos é feita no quadro a seguir: Nome Ministério Atalaias do Nova Vida Assistência Social Departamento Infantil Atividade Acomodação dos membros e visitantes dentro do templo e patrulhamento das ruas próximas à igreja, visando segurança. Encontro semanal às segundas-feiras – trabalho de acompanhamento e auxílio à dependentes químicos, físicos ou emocionais, trabalhando também com codependentes (aqueles que convivem com dependentes). Conta com três programas: Cultos de Doação: famílias cadastradas assistem cultos e em seguida recebem cestas básicas; Casas de Recuperação: trabalho de reabilitação de dependentes químicos por meio de auxílio espiritual (Teoterapia: apresentação de condutas inspiradas pela bíblia e sua aplicação na vida dos recuperandos); Lanchão: distribuição de lanches a moradores de rua durante a madrugada. Cuidados e ensinamento bíblico para crianças de 0 a 12 anos. 8 Comunicação Pessoas que trabalham com o website, a revista Crista, cobertura de eventos e montagem de arquivos com notícias da igreja veiculadas na imprensa. Eventos Visa “expandir os meios de comunhão entre o povo de Deus”. Realiza atividades de integração e socialização entre membros e visitantes. Busca aproximar as pessoas da igreja. Fonte: Pesquisa / website Bola de Neve Outro elemento da organização da igreja são as “Células”, que consistem de reuniões semanais, sempre às quartas-feiras, realizadas na residência de um membro voluntário. O objetivo é estudar a bíblia, fazer canções de louvor a Deus e socializar os membros. A liturgia dos cultos A liturgia da Bola de Neve segue um padrão comum a outras igrejas neopentecostais. Os cultos acontecem duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e têm duração de aproximadamente três horas. O ritual acontece sempre da mesma maneira e é dividido em algumas etapas: o louvor, introdução do pastor com avisos gerais, o testemunho, coleta e consagração do dízimo, pregação, apelo, avisos finais, oração de encerramento, louvor de encerramento. A seguir a descrição completa de um culto, realizado em agosto de 2003 na sede principal em São Paulo, é apresentada. Neste evento estavam presentes entre setecentas e novecentas pessoas aproximadamente. O louvor A primeira fase de um culto é chamada “Louvor”, e tem duração de aproximadamente uma hora. Aqui ocorre a transição entre o evento social, antes do culto, no qual as pessoas se encontram, conversam, riem, olham uns aos outros, e o “início dos trabalhos”. Uma banda toca diversas músicas religiosas, enquanto as pessoas na audiência cantam, dançam, batem palmas, seguindo o ritmo. No caso da Bola de Neve, as letras das músicas são projetadas em uma tela acima do púlpito, e seu conteúdo é basicamente de adoração a Jesus, enfatizando aspectos como respeito e submissão a Jesus e à igreja. As músicas são tocadas em um ritmo crescente, iniciando em ritmo de rock e culminando na quinta música aproximadamente, quando ocorre o ápice: o pastor se junta à banda, canta em tom de voz bastante alto, exorta as pessoas a louvarem e “fala em línguas”: palavras incompreensíveis que, segundo fiéis da igreja, “demonstram a presença do Espírito Santo”. Neste clímax muitas pessoas choram e se emocionam, algumas “falam em línguas” na platéia. Após este ápice a música muda para um ritmo mais lento, e as pessoas vão se acalmando, em uma introdução à próxima etapa. Encerrada a fase de louvor, o pastor tranqüiliza as pessoas, dá alguns avisos sobre eventos, comenta alguns fatos do cotidiano, como citações da igreja na mídia, e saúda as pessoas que estão freqüentando “o Bola” , como os fiéis chamam a igreja, pela primeira vez. Após isto é iniciada a próxima etapa. O testemunho O testemunho é uma prática bastante comum adotada pelas neopentecostais em geral, e consiste na chamada de um fiel, que vai até o púlpito, para que este conte a história de sua vida. O conteúdo divide-se em antes e depois da entrada na igreja, e busca demonstrar o quanto a vida do fiel melhorou após ter feito o que os fiéis chamam de “aceitar Jesus”. O testemunho que acompanhamos foi feito por um rapaz bastante jovem, de aproximadamente vinte anos. Ele inicia sua fala contando que enfrentava problemas como falta de emprego e de dinheiro para pagar sua universidade, e também falta de significado em 9 sua vida. O jovem diz que buscava um trabalho freneticamente “enviei mais de 300 currículos para empresas” e já havia perdido a esperança. Em seguida ele conta que decide freqüentar os cultos da Bola de Neve e fazer o chamado “jejum”: fazer um pedido e abrir mão de alguma coisa para somente voltar a tê-la quando este pedido for realizado. Ele conta então que no último dia do jejum o telefone tocou e ele recebeu uma oferta de emprego que incluía também uma bolsa para a universidade. O jovem finaliza dizendo que agora possui um emprego, freqüenta a universidade, sua vida está muito melhor e ele conquistou uma outra “benção” muito importante: seus pais também estão freqüentando a igreja. A linguagem do rapaz é bastante informal e repleta de gírias, o que faz com que as pessoas riam e se divirtam durante sua apresentação. Ao final de seu depoimento ele é ovacionado pela audiência, que parece acreditar no que o jovem conta. Em um paralelo à vida nas organizações empresariais, o testemunho parece ser uma versão dos chamados “casos de sucesso”: demonstra o que se pode fazer e atingir dentro da organização quando se trabalhando da maneira adequada. No caso da igreja, esta maneira adequada é tendo fé. Em seguida o pastor Rina volta a falar, comenta o testemunho, faz alguns gracejos sobre a maneira de falar do rapaz, imitando-o, e anuncia a próxima etapa do culto. A coleta e consagração do dízimo Neste momento o pastor convida as pessoas que quiserem contribuir monetariamente a se dirigirem até o púlpito e depositarem o dinheiro em duas urnas, localizadas à direita e à esquerda do mesmo. Aproximadamente quinhentas pessoas dirigem-se até lá pelo corredor central, entre as cadeiras, colocam o dinheiro nas urnas e retiram-se por corredores laterais. Durante este momento a banda toca uma música suave, cuja letra versa sobre os sofrimentos de Jesus. A oferta do dízimo realizada na Bola de Neve é um pouco diferente da maneira realizada na Universal, conforme é possível observar na descrição feita por Campos (1997). Enquanto na Universal os pastores são incentivados a coletar o maior montante de dinheiro possível, e o valor que cada um oferece é observado, na Bola de Neve as pessoas colocam o dinheiro em urnas e, desta forma, não é possível saber o quanto cada um está oferecendo. Tivemos a chance de observar o interior das urnas, onde foram vistas notas de um e dez reais em sua maioria. Conversando com fiéis pudemos saber que de fato a grande maioria dos freqüentadores oferece o dízimo à igreja. Segundo comentam, dar um montante de dez porcento da renda representa muito pouco perto do que podem conseguir tendo fé e sendo agraciados por Deus. Não há questionamentos sobre como e quando este retorno viria, o que é inerente a esta ação é uma crença de que de fato Deus irá reconhecer o ato na forma de recompensas posteriores. Não foi possível verificar os métodos que a igreja adota para fazer com que o fiel acredite que de fato a doação do dízimo trará retorno, porém trata-se de algo que a grande maioria dos fiéis faz. Desta forma, não oferecer o dinheiro caracterizaria um comportamento desviante por parte do fiel. Assim que todas as pessoas oferecem suas contribuições e retornam aos seus lugares, Rina faz a “consagração do dízimo”: pede que todos fiquem em pé, levantem a mão direita e faz uma oração pedindo que Deus abençoe o dinheiro e as mãos das pessoas na platéia, dizendo que “o dinheiro é usado para que o bom trabalho da igreja possa ser realizado”. A Pregação e O Apelo 10 Este é o momento mais calmo do culto, pelo menos de início, no qual são feitas a leitura e interpretação de trechos da bíblia. A pregação é feita normalmente pelo pastor ou por “presbíteros”: pessoas treinadas especificamente para realizar a pregação, entre outras atividades. No culto que acompanhamos a pregadora foi a “presbítera” Priscila, irmã do pastor Rinaldo. A jovem presbítera inicia pregação pedindo que todos abram suas bíblias em uma passagem especifica. Praticamente todas as pessoas portam a bíblia e acompanham a leitura. Após dez minutos de leitura, Priscila passa a fazer a sua própria interpretação da passagem lida, traduzindo a mesma para uma linguagem mais simples e informal. Ela fala muitas gírias, interpreta as vozes dos personagens da história, e usa muitas metáforas, movendo-se bastante pelo palco durante a apresentação. Priscila também fala bastante alto, por vezes gritando, e em seguida diminui o volume e intensidade da fala, em um movimento cíclico. Sua entonação e ritmo são muito envolventes: na platéia as pessoas parecem muito concentradas, não falam, não levantam de suas cadeiras. Todos os olhares estão voltados para ela. Priscila dá exemplos da vida comum das pessoas. Ao citar as dificuldades do personagem da passagem lida, compara aos problemas da vida cotidiana dos fiéis, como, por exemplo, falta de dinheiro. A platéia a aplaude várias vezes, em diversos momentos. A pregação, assim como o louvor, também se desenvolve em ritmo e intensidades crescentes, conforme a fala de Priscila vai se tornando mais rápida e intensa. Quase ao fim da apresentação de Priscila o pastor Rina se une a ela e começa a falar muito alto e com intensidade. Ambos dizem palavras ininteligíveis (falam em línguas) e uma música começa a tocar. Este é um momento impressionante, Rina parece estar fora de si, falando sem parar e de forma rítmica. As pessoas estão novamente em pé e muitas delas choram copiosamente, levantam as mãos, mexem o corpo. O momento lembra uma imagem de transe coletivo. A pregadora algumas vezes pede que as pessoas levantem as mãos, coloquem-nas sobre a cabeça, os olhos, ouvidos e a boca, enquanto fala diferentes mensagens relacionadas ao movimento feito. A pregação atinge seu ponto máximo quando a audiência, já muito excitada e perturbada, é convidada por Rina a “se entregar para Jesus”. É o que chamam de “o Apelo”. Rina grita: “Se você quer dar sua vida para Jesus, levante sua mão!”. É um momento bastante forte e marcante, sendo o apelo algo próximo de uma ordem de comando. Parece ser difícil para uma pessoa que freqüenta os cultos algumas vezes resistir a este apelo, já que ele ocorre de maneira que poderia até ser chamada de indutiva, dada a sua força. Porém, somente algumas pessoas levantam a mão, o que sabemos depois que são apenas aquelas que estão atendendo a este apelo de entrega pela primeira vez. Após o apelo, o pastor acalma a platéia e dá novos avisos. Por fim, finaliza o culto com a oração “Pai Nosso”, que todos acompanham em voz alta. A banda toca uma última música, chamada “louvor final”. As pessoas ainda permanecem na igreja por aproximadamente dez minutos, algumas conversam, riem, cumprimentam-se, e em seguida todos se dispersam. Uma reunião de Ministério Acompanhamos uma reunião do “Ministério Nova Vida”. O objetivo deste é realizar trabalho direcionado a dependentes tanto químicos como emocionais, conforme comenta nosso informante. O evento, que acontece todas as segundas-feiras à noite, tem duração de três horas, a partir das vinte horas. Ele é aberto a familiares e amigos, e diferentes tipos de 11 vícios podem ser tratados. A observação nos leva a concluir de que se trata de um grupo de auto-ajuda e também ajuda mútua. O encontro acontece na sede principal da igreja, em um mezanino. Aproximadamente trinta pessoas, composta de homens e mulheres em proporção equivalente, a maioria delas aparentemente entre vinte e trinta anos, participam da reunião. Três destas pessoas são os mediadores: Dora, a esposa do pastor fundador da igreja, Geraldo, um ex-viciado em drogas que se recuperou dentro da Bola de Neve, e “Boy” um líder de célula e também coordenador de atividades no ministério Nova Vida. Boy, assim como Dora, conta que também é exviciado em drogas. O evento se inicia com todas as pessoas reunidas formando um círculo, sentadas em cadeiras, e são cantados alguns “louvores”. A letra das músicas fala de cura e alívio, uso de máscaras (falsidade), valor das pessoas. Quase todos cantam de olhos fechados, balançam o corpo, e algumas pessoas choram. Um rapaz toca violão durante as músicas, e após o fim das mesmas continua tocando o instrumento em um volume baixo. Após os louvores Dora faz uma oração, falando dos poderes de cura de Deus, e enquanto ela fala as pessoas olham para o chão, parecendo refletir. Fala também sobre uso de drogas, em como se curar, e ainda algumas pessoas choram. Um dos rapazes presentes está bastante agitado, batendo palmas a todo instante e enxugando o suor da testa. Sua figura destoa dos demais por demonstrar muita ansiedade. A linguagem de Dora é metafórica. Boy também fala junto com Dora, comenta que o grupo já tem dois anos, e fala sobre as etapas do tratamento do viciado, que é proposto em uma técnica de “doze passos”. Repete várias vezes que as pessoas ali têm “defeito de caráter”, e que a proposta é mudar isto. Após seus comentários, Boy passa a ler um trecho da bíblia, ao qual os presentes acompanham, e faz interpretações e comentários sobre como se curar, explicando como funciona o grupo. Dora dá o seu “testemunho”, contando que sofrera uma overdose: “Senti o meu espírito saindo do meu corpo e muitos demônios em volta... eu vi, não sou louca... senti depois a minha língua enrolar, mas Deus me salvou”. Dora comenta que as pessoas podem se salvar, “mas Deus não é mágico, ele precisa de cinqüenta porcento da nossa parte”. Em seguida o grupo é dividido em três: para uma das salas dirigem-se os codependentes (pessoas que convivem com dependentes), junto com Dora; os outros dois grupos permanecem na mesma sala, sendo um deles liderado por Geraldo e o outro por Boy. No grupo de Boy, o primeiro comentário é de que chegou a hora dos testemunhos, na qual cada um poderá partilhar seus problemas, pois “dor partilhada é dor dividida”. Boy diz que nada do que é falado ali deverá ser comentado fora daquela roda. Ele volta a falar do processo de cura, sobre os males das drogas, e comenta: “já vi aidético se curar e já vi paralítico andar, mas para alguém se curar aqui precisa colaborar”. As pessoas não parecem duvidar do que ele fala. Os métodos usados lembram os utilizados pelos Alcoólicos Anônimos, onde a idéia de evitar o vício “só por hoje” é repetida. Boy comenta novamente historias de problemas como ciúmes e alcoolismo. Dá exemplos de sua vida pessoal, e afirma que Deus os resolveu. Em seguida algumas pessoas apresentam seus testemunhos: uma garota que quer parar de usar drogas, uma mulher, mãe de um jovem freqüentador da igreja, que acha que era alcoólatra, uma mulher que sente ciúmes do namorado com uma outra freqüentadora da igreja, um rapaz que deseja parar de fumar, uma jovem que não se interessa pelos rapazes. Durante cada testemunho o líder faz comentários, sugere formas de ação e ilustra com casos de sua vida pessoal, sempre relacionados com o problema da pessoa em questão. Assim, ele informa como se livrou do alcoolismo, como deixou de fumar, como curou os ciúmes que sentia de sua mulher, e assim por diante. 12 É interessante observar que no discurso do líder todos os motivadores para os problemas são chamados de demônios, e a única saída para eles é Deus. Ele não faz qualquer referência à vontade própria, mostrando que tanto o problema, como a resolução do mesmo, depende de forças exteriores. Além disto, ao comentar seus casos pessoais, que de certa maneira são semelhantes aos apresentados pelos fiéis, reflete a sua audiência e cria uma aproximação: todos ali têm problemas, complicações, mas podem livrar-se deles. Ele também enfatiza o quanto está bem, e as pessoas parecem de fato admirá-lo. Após os testemunhos Boy encerra o encontro, dizendo que não há mais tempo. Ainda fornece algumas recomendações finais e pede que todos retornem na próxima reunião. Todos se levantam, formam um círculo e fazem uma oração. Em seguida despedem-se com beijos e frases de “Deus te abençoe”. Ao fim do encontro perguntamos ao líder se há algum tipo de orientação externa para a condução deste encontro de auto-ajuda. Ele diz que foram treinados por psicólogos. Recebemos também uma apostila com toda a metodologia dos “doze passos”. Nela há diversas informações, entre elas dicas de alimentação para viciados, orações e frases dizendo que o vício era causado por falta de Deus. Um encontro de Célula As células são um outro tipo de evento da igreja, que visa reunir os fiéis na casa de um voluntário. Elas acontecem simultaneamente em vários pontos da cidade, todas às quartasfeiras a partir das vinte horas. Nas outras cidades na qual a Bola de Neve possui templos também são realizados os encontros. A célula que tivemos oportunidade de freqüentar fica no bairro de Moema, na residência da fiel “Carla”. Novamente o líder é Boy, que define o encontro como uma “reunião para fazer o louvor, ler a bíblia e estudar”. O apartamento de Carla é bastante grande e bem decorado, e vinte pessoas, sendo seis homens, estão sentadas em cadeiras e nos sofás da sala, formando um círculo. A maioria das pessoas é jovem, de menos de trinta anos de idade, porém estão presentes cinco mulheres um pouco mais velhas, mães de alguns dos jovens. O evento inicia com o grupo fazendo uma oração, agradecendo a Deus. O líder fala para todos se concentrarem na presença de Deus, fecha os olhos e fala um texto no qual pede perdão diversas vezes, citando vários tipos de pecados. É um momento muito dramático. Sua voz vai diminuindo e ele faz uma evocação para Deus “fazer a sua obra”. Em seguida um rapaz começa a tocar um violão, e todos cantam as músicas, sabendo as letras de memória. Durante a música algumas pessoas fazem comentários, como “Deus, estamos aqui, em espírito e verdade te adoramos”, incentivando os outros a louvarem mais. A dona da casa se deita no chão e parece bastante alterada com a música, canta de olhos fechados, esconde a cabeça, chora, fala algumas palavras incompreensíveis. Por alguns momentos tivemos a impressão de que se tratava de uma demonstração um tanto teatral. Todos estão de olhos fechados, cantando. Durante toda a música pessoas falam palavras como “graças a Deus”. A música é encerrada e Boy começa a falar. Em primeiro lugar nos apresenta para as outras pessoas, e somos obrigados a explicar a razão de nossa presença no encontro. As pessoas nos observam, mas não fazem qualquer comentário. Em seguida inicia a leitura da bíblia, que todos acompanham. Boy interpreta a passagem lida, e comenta um caso de uma vizinha sua cuja opinião sobre evangélicos foi modificada. Outras pessoas falam sobre casos semelhantes, e comentários são de que “Deus agiu no coração destas pessoas”. Em seguida, assim como nos outros eventos, chega o momento do testemunho. Uma garota começa a falar sobre os problemas que enfrenta na vida, que sua mãe é “mãe de santo”, que perdeu o namorado, mas que após começar a freqüentar a igreja sua vida mudou 13 drasticamente, já que agora ela tem paz. Assim que ela termina, Boy dá alguns conselhos. Um outro garoto resolve dar o testemunho, e conta que estava na rua quando “Deus me falou para eu abordar o mendigo”. Ele o faz, conversa com o homem, fala de Deus, e, segundo conta, o mendigo responde que “Deus não vai me calçar”. Então o jovem conta que resolve doar as suas meias para o mendigo, e o mesmo fica bastante feliz e diz que vai procurar uma igreja. As pessoas aplaudem e comentam o fato. Denis, o marido de Carla, também faz um testemunho sobre um momento no qual falou de Deus para um amigo seu: “Deus me disse para eu falar de Jesus para ele, e meu amigo ouviu tudo”. As pessoas ali se referem a Deus de uma maneira bastante próxima, quase “íntima”. Após os testemunhos e comentários do grupo sobre os mesmos, chega o momento da “caixinha de pedidos”. Boy explica que se trata e um momento de fé, as pessoas escrevem pedidos e colocam nesta caixa, que ficará com o grupo, cuja responsabilidade é orar para que os pedidos se realizem. Neste momento todos se levantam e formam um círculo, e começam a orar novamente, em voz alta. Ao finalizarem todos se cumprimentam com beijos e abraços e desejos de “Deus te abençoe”. Após isto uma refeição é servida, e todos bebem refrigerantes e comem sanduíches, conversando informalmente. Aos poucos as pessoas vão indo embora, aproximadamente às onze horas da noite. O evento da célula, assim como os outros encontros da igreja, acontece de forma ritualística. As alterações de um dia para outro estão no tipo de testemunhos e também na passagem bíblica lida. Porém a dinâmica é sempre igual. Neste momento foi possível observar melhor como funciona a vida social dos membros da igreja. Os líderes das células e membros mais atuantes nas atividades sociais da Bola de Neve são geralmente jovens casais. O pastor incentiva os casamentos, e conforme as mulheres presentes comentam, e o período médio de namoro é bastante curto: dois a seis meses antes do casamento, para casais que se conheceram dentro da Bola de Neve. A própria célula é um evento social, e após as orações finais as pessoas adotaram uma postura mais informal, como em uma festa. As mulheres conversavam separadamente dos homens e foi possível observar que as líderes casadas formavam um grupo à parte das outras pessoas na sala. Durante o evento de Célula existiram alguns momentos de tensão, com o líder nos pedindo para orar com o grupo, e perguntando se queríamos que o grupo orasse por nós, se não acreditávamos no poder da fé “dos crentes”. Após o encontro, ao conversarmos com as líderes, também ouvimos comentários no sentindo de que nossa conversão estaria próxima, pois o chamado de Deus era irresistível, conforme comentavam. Este tipo de comentários aparentou ser uma pressão forte para que fizéssemos parte do grupo, e gerou um certo desconforto. Um dos objetivos dos membros da igreja é trazer novos fiéis para a mesma, e qualquer pessoa presente parece ser vista por eles como um potencial futuro membro. Isto ocorre da mesma maneira nas organizações empresariais, onde todos podem ser clientes em potencial. Considerações Finais e Limitações do Estudo Uma característica bastante marcante dos membros da igreja é o linguajar. Existe um jargão próprio dos neopentecostais que, segundo um membro da igreja, é o “crentês”. A característica específica da Bola de Neve neste sentido é que as pessoas misturam o “crentês”com muitas gírias. A igreja focaliza muito bem sua audiência, realizando muitos eventos voltados para jovens, como festas e shows, vendendo na loja da igreja artigos para prática de surf e skate, além da própria aparência física dos líderes da igreja: jovens, bronzeados, usando roupas esportivas. A mensagem implícita é de que todos ali praticam esportes e não têm o perfil do “crente” tradicional, de terno e classe social baixa. 14 Apesar desta distinção na imagem, as características da liturgia, a estruturação em ministérios e o próprio linguajar “crentês”, refletem uma igreja neopentecostal tradicional. Os cultos, por exemplo, são bastante parecidos com os da Universal ou mesmo Renascer, mudando apenas o estilo dos participantes. Outra característica é o conservadorismo nas atitudes, como casamentos em curto espaço de tempo, proibição de bebida e fumo e repúdio ao homossexualismo. Assim, pode-se dizer que se trata de uma diferenciação na forma, na aparência, porém o conceito de religião e filosofia é o mesmo. Um outro ponto observado é a proximidade que as pessoas afirmam ter com o divino. Frases como “Deus me falou”, “Deus quis assim”, “Deus mudou minha vida” são constantemente ouvidas. As motivações na vida, dentro da realidade na igreja, são guiadas por figuras de Deus e do Diabo. As ações consideradas ruins são motivadas pelos demônios, e os sucessos são “obra de Deus”. Questionamentos contra esta expressão da realidade são considerados uma ofensa, sendo reprimidos fortemente. Um ex-membro da igreja comenta: “se você questionar o pastor desafiando o que ele fala, ele vai te perguntar: você está a serviço de quem? Referindo-se ao demônio”. Um paralelo a isto nas organizações empresariais é a justificativa de que a hierarquia faz com que pessoas tomem certas atitudes e também de que não se deve questioná-la. Ao entender a Bola de Neve como uma organização de simbolismo intensivo, podemos encontrar referências na mesma dos principais elementos que caracterizam este tipo ideal. A liderança simbólica, conforme descrita anteriormente, é exercida durante a maior parte do tempo, porém o culto representa o seu momento máximo (apesar de acontecer também nas reuniões de ministérios e células). Ali os pastores podem falar em palavras genéricas sobre os anseios e dúvidas que rondam os membros da igreja. Os testemunhos pessoais dos líderes, como tendo sido pessoas que também tiveram problemas, mas foram curados pela fé, captam os anseios do público, que muitas vezes freqüentam a igreja na esperança de resolver angústias pessoais. Segundo um dos líderes comenta, “as pessoas buscam a igreja na hora do desespero”. Nestes eventos pode-se observar que o sentido da realidade de um membro da igreja é guiado pelas suas lideranças, que representam diretamente Deus. A interpretação da bíblia é feita toda por eles, e nem sempre a palavra que está escrita é interpretada literalmente. Os pastores falam metaforicamente muitas vezes e traduzem a linguagem formal para algo mais simples e compreensível para a audiência. A questão da imagem e também do gerenciamento da impressão é algo que se pode observar, principalmente nos cultos, que acontecem de forma ritualística, estruturados sempre da mesma maneira. São bastante envolventes e todos podem ver e ser vistos. Os líderes, quando no palco, controlam as emoções da platéia, tendo o poder de incitar o choro e acalmar o ânimo geral. Além disto, todo o histórico da igreja e de seus fundadores é amplamente divulgado e repetido em muitas histórias, o que gera uma proximidade com os fiéis. Há grande ênfase nas pequenas conquistas de novos membros, como os testemunhos das células podem demonstrar: o fato de o integrante da igreja ter simplesmente falado sobre Jesus com outra pessoa significa uma vitória, como se novas pessoas estivessem prestes a serem conquistadas para a igreja. Um evento simples transforma-se assim em um acontecimento. Também não é possível afirmar se a emotividade demonstrada pelas pessoas durante os eventos, principalmente pelos líderes, é fruto de uma crença verdadeira ou de uma impressão de envolvimento que se deseja criar. As dramatizações, as fortes emoções, são onipresentes. A comunicação é extremamente dramática e às vezes teatral. As pessoas choram durante os eventos, demonstram seus sentimentos, os pregadores gritam e depois sussurram, a linguagem é repleta de metáforas. Além disto, a motivação para grande parte das ações é justificada como sendo algo que parte de fora, por meio de Deus. Assim, alguns fatos ou ações dentro da igreja são apresentados como sendo vontade divina, e não ações racionais em função de certos benefícios. Desta 15 forma, por meio desta justificativa, as resistências são facilmente quebradas, uma vez que se trata de uma autoridade inquestionável. A análise apresentada neste trabalho sobre o fenômeno Bola de Neve lança mão de um paradigma específico, ou ainda, de um tipo ideal que são as organizações de simbolismo intensivo. Desta forma, o estudo é limitado a este tipo de visão que pretendeu adotar. Além disto, entre outras limitações, estão a impossibilidade de se realizar um estudo etnográfico mais extenso, tendo acesso a outros tipos de eventos (como, por exemplo, o curso que a igreja ministra para formar novos líderes) e uma convivência com fiéis por um período maior. Certamente uma imersão mais profunda traria novos elementos para análise, assim como desvendaria algumas das características observadas. Como sugestão final, consideramos que na interpretação deste fenômeno outras formas de reflexão, não necessariamente regidas por um paradigma, poderiam ser adotadas, uma vez que se este é um fenômeno social extremamente interessante, rico em conteúdo e por vezes surpreendente. Bibliografia ABUMANSSUR, Edin Sued. 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