Que o Verdadeiro Arminius Se Apresente! Um Estudo da Teologia de Jacobus Arminius à Luz de Seus Intérpretes Por J. Matthew Pinson ARMINIUS E SEUS INTÉRPRETES Jacobus Arminius tem sido o alvo de muita crítica e muito elogio nos últimos quatro séculos. “Arminianos” geralmente o louvam como progenitor de sua tradição teológica. Os não arminianos, principalmente os de tradição reformada-calvinista, tem-no denunciado por ter deixado a fé da Reforma. No entanto, tanto os louvores quanto as críticas têm partido de tendências partidárias e de interpretações equivocadas da teologia de Arminius. A maioria dos críticos tem retratado Arminius como um semipelagiano e um desertor da teologia reformada. A maioria dos arminianos, tanto wesleyanos como Remonstrantes, tem-no projetado com características wesleyanas ou remonstrantes, deixando de levar a sério a sua própria teologia e o contexto no qual se formou. 1 Ambas as perspectivas têm interpretado Arminius de forma equivocada, usando-o com propósitos polêmicos em vez de tentar simplesmente entendê-lo e se beneficiar de sua teologia. A teologia de Arminius tem sido interpretada de várias maneiras. Uma perspectiva o vê como um pensador de transição e que sua teologia seria uma mudança incompleta do calvinismo ao arminianismo. Um exemplo deste ponto de vista é o artigo de Frederic Platt que se encontra na Encyclopedia of Religion and Ethics (Enciclopédia de Religião e Ética): “É provável que Arminius tenha sido menos arminiano que seus seguidores, apesar de ter sido o mais notório, e foram Episcopius (seu sucessor em Leyden), Uyttenbogaert (seu grande amigo), Limborch e Grotius (todos homens de grande talento) que melhor elaboraram as suas posições e estenderam suas conclusões para assuntos que provavelmente sua morte o impediu de alcançar”. 2 Esta perspectiva vê a teologia de Arminius como um rompimento com a teologia reformada, apesar de não ter efetuado um rompimento completo e sistemático devido à sua morte prematura. Muitos pensadores reformados também veem Arminius como tendo se desviado significativamente da doutrina reformada e o apresentam como um “dissimulador esperto que secretamente ensinava doutrinas diferentes das que publicava”. 3 Um exemplo de tal opinião encontra-se na obra de Ben A. Warburton, Calvinism (Calvinismo): Conflitos graves surgiram expondo o fato de que Arminius, apesar de suas promessas [de não ensinar outra coisa a não ser o que estava contido no Catecismo de 1 Os seguidores de Arminius, os Remonstrantes, apesar de teologicamente próximos dele no início, se distanciaram cada vez mais depois de sua morte. 2 Encyclopedia of Religion and Ethics, ed. James Hastings, s.v. "Arminianism," por Frederic Platt. 3 Carl Bangs, “Arminius and the Reformation” Church History 30 (1961):156. 2 Heidelberg e na Confissão de Fé Belga], estava infectando a mente de muitos dos cidadãos. ... Não há sombra de dúvida de que Arminius foi muito astuto e igualmente desonesto. “Fazendo-se de ortodoxo entre ortodoxos, sorrateiramente promulgava opiniões com a tendência inevitável de corroer e destituir a doutrina professada e disseminar desconfiança e dissensão”. ... Koornheert havia sido aberto em sua oposição aos ensinos do calvinismo, mas Arminius agiu com traição. 4 A maioria dos escritores atribuem a Arminius ideias que somente apareceram depois dele. Muitos calvinistas fazem isto, culpando-o por tudo desde o deísmo ao universalismo. Em 1889 o historiador eclesiástico J. H. Kurtz ligou a teologia de Arminius ao latitudinarismo e ao deísmo. 5 Roger Nicole descreve Arminius como o originador do barranco escorregadio que começou com Episcopius e Limborch (que foram “infiltrados com socinianismo”) e terminou em unitarismo, universalismo e a filosofia personalista de E. S. Brightman. 6 Escritores reformados também consistentemente descrevem Arminius como semipelagiano que via a predestinação como ligada à “presciência de Deus do mérito humano”. 7 Ainda mais extremo do que isto é a afirmação de Kurtz de que Arminius “perambulou por caminhos pelagianos”. 8 Apesar de louvar Arminius, a maioria dos arminianos tem-no visto à luz da teologia remonstrante posterior ou da teologia wesleyana, descrevendo-o de forma mais semipelagiana ou sinergética. 9 A tendência da maioria dos arminianos é fazer um breve resumo biográfico de Arminius com a discussão usual de “Arminius como pai do arminianismo” e em seguida oferecer uma exposição dos cinco pontos da Remonstrância. Ou, como diz Carl Bangs, o resumo biográfico é seguido de “copiosas referências ao sucessor de Arminius, Simon Episcopius, que, apesar de ter sido em muitos aspectos discípulo fiel de Arminius, não é Arminius”. 10 Entretanto, nenhum dos retratos acima é exato. Estas interpretações somente são feitas quando os leitores trazem agendas preconcebidas às obras de Arminius. Bangs resume bem este problema: É evidente que tais relatos de Arminius pressupõem uma definição do arminianismo que não pode ser derivado do próprio Arminius. Isto significa que os autores começam com preconcepções daquilo que se espera que Arminius deveria dizer e depois quando procuram em suas obras publicadas não encontram exatamente aquilo que procuram. Demonstram impaciência e desapontamento com seu calvinismo e em seguida mudam sua pesquisa para algum período posterior quando o arminianismo passa a ser aquilo que estão procurando: um sistema não calvinista, sinergético e talvez semipelagiano... 11 4 Ben A. Warburton, Calvinism (Grand Rapids: Eerdmans, 1955), 51. J. H. Kurtz, Church History, traduzido por John MacPherson, 3 vols. (New York: Funk and Wagnalls, 1889, 3:50. 6 Roger Nicole, “The Debate over Divine Election”, Christianity Today (21 de outubro de 1959), 6. 7 Henry Bettenson, Documents of the Christian Church (New York: Oxford University Press, 1947), 376. 8 Kurtz, 3:50. 9 Veja, e.g., H. Orton Wiley, Christian Theology, 3 vols. (Kansas City, Mo .: Beacon Hill, 1958), 2:349-57. 10 Carl Bangs, "Arminius and Reformed Theology" (dissertação de Ph.D., University of Chicago, 1958), 23. 11 Ibid., 14. 5 3 Aqueles que trazem suas próprias pressuposições ao estudo de Arminius e lêem temas arminianos posteriores como se fossem parte do pensamento dele não se apercebem do fato mais importante da sua teologia: a de que ela é reformada. É um desenvolvimento da teologia reformada em vez de um desvio dela. Ao se focalizar na doutrina da predestinação de Arminius e suas diferenças tanto com o calvinismo como com o calvinismo pós-Dort, tem-se enfatizado as diferenças entre Arminius e Calvino e a tradição reformada em vez das semelhanças. Tanto arminianos como calvinistas têm pensado na teologia de Arminius essencialmente como uma reação à teologia reformada em vez de pensar nela como a teologia reformada consciente que é. 12 Wilhelm Pauck corretamente descreveu a teologia de Arminius como um desenvolvimento da teologia reformada em vez de uma polêmica contrária a ela: “De fato, há muitas tradições teológicas calvinistas. As teologias reformadas dos suíços, alemães, franceses, holandeses, escoceses, etc., não são tão uniformes quanto as teologias de vários grupos de luteranos. Os arminianos pertencem à tradição reformada tanto quanto os defensores das decisões do Sínodo de Dort”. 13 Aqueles que vêem a predestinação como o núcleo essencial da teologia reformada ou agostiniana-calvinista têm facilidade em dizer que como Arminius não articulou a predestinação da mesma maneira que Calvino o fez ele é, então, semipelagiano. Em seguida transferem seu suposto semipelagianismo para toda a teologia dele. 14 Gerações de estudiosos da teologia receberam este retrato de Arminius, mas esta abordagem é equivocada, pois deixa de considerar com seriedade a teologia de Arminius e o dispensa sem lhe dar ouvidos. A melhor maneira de compreender Arminius e beneficiar de suas contribuições sui-generis e substanciais à teologia protestante é entender o seu contexto teológico. Este contexto consistia de sua visão declarada da teologia reformada (em especial a de Calvino), suas crenças confessionais e suas obras publicadas. Se cremos que Arminius era um homem honesto (em lugar de “traidor”), veremos emergir uma imagem de Arminius que é radicalmente diferente daquelas acima. 12 Richard A. Muller argumentou que a visão de Arminius da criação e da providência e seu intelectualismo (versus voluntarismo) difere um pouco do escolasticismo reformado. Talvez isto tenha sido responsável por sua visão divergente sobre a presdestinação. Veja sua obra God, Creation, and Providence in the Thought of Jacob Arminius: Sources and Directions of Scholastic Protestantism in the Era of Early Orthodoxy (Grand Rapids: Baker, 1991). No entanto, esta observação não obscurece o fato de que (como veremos abaixo) não havia consenso sobre a predestinação dentro da Igreja Reformada da Holanda no tempo de Arminius e nem diminui a visão inerentemente reformada de Arminius quanto ao pecado original, à incapacidade humana, a natureza da satisfação penal da expiação ou da natureza imputativa da justificação. 13 Citado em Bangs, "Arminius and Reformed Theology," 25. 14 Muller (4) disse: “’Arminius’, ‘arminianismo’, ‘Dort’ e ‘TULIP’ fazem parte da linguagem do protestantismo moderno. No entanto, a fama do ponto de vista de Arminius quanto a este único tema [predestinação] somente tem servido para obscurecer os contornos gerais maiores de sua teologia e para totalmente ocultar as relações positivas que existiam entre o pensamento e o método de Arminius e a vida intelectual do protestantismo pós-reforma”. Este ensaio não tratará da doutrina de predestinação de Arminius. Seu ponto de vista é bem conhecido. Este ensaio tentará corrigir as interpretações equivocadas dos pontos de vista de Arminius quanto ao pecado original, à incapacidade humana, à natureza da expiação e à justificação. Estas doutrinas atribuídas a Arminius, tanto por calvinistas quanto por arminianos, são na verdade aquelas articuladas mais tarde pelos remonstrantes e wesleyanos (com um ponto de vista do pecado e da salvação que é mais semipelagiano, sinérgico e baseado em obras). Não há dúvida de que Arminius divergiu de Calvino quanto aos detalhes da predestinação, da graça irresistível e da perseverança dos santos (e com calvinistas posteriores quanto à extensão da expiação). No entanto, este fato não deve ser tomado como prova de que Arminius (como a maioria dos arminianos posteriores) tinha um ponto de vista fraco quanto ao pecado original e à incapacidade humana, e que tivesse uma posição governamental quanto à expiação e uma visão da perseverança baseada em obras. 4 O CONTEXTO DE ARMINIUS Uma conscientização da situação na Igreja Reformada da Holanda antes e durante a vida de Arminius ajudará muito a entender sua teologia. A maioria das interpretações se baseia em equívocos sobre a situação de Arminius. 15 Bangs menciona seis equívocos comuns entre os intérpretes de Arminius: 16 (1) que Arminius foi criado e educado entre calvinistas em um país calvinista; (2) que a sua formação nas universidades de Leiden e Basel confirmam sua aceitação do calvinismo de Genebra; (3) que, como estudante de Teodoro Beza, ele aceitou o supralapsarianismo; (4) que enquanto pastor em Amsterdã ele foi comissionado para escrever uma refutação ao humanista Dirck Coornheert que zombava do ponto de vista calvinista da eleição e disse que a doutrina do pecado original não se encontrava nas Escrituras; 17 (5) que enquanto preparava sua refutação ele mudou sua posição e desertou, aceitando o humanismo de Coornheert18 e (6) que, portanto, sua teologia era uma polêmica contra a teologia reformada. Nenhum destes pontos é verdadeiro. 19 Arminius não estava predisposto ao ponto de vista do supralapsarianismo da predestinação. Ele compartilhava o ponto de vista de numerosos teólogos e pastores reformados antes dele. Ele não foi havia sido criado em um “país calvinista”. Uma rápida olhada na Igreja Reformada do século dezesseis revelará isto. As origens da Igreja Reformada eram diversas, tanto histórica quanto teologicamente. Quando Calvino apresentou seu ponto de vista quanto à predestinação na década de 1.540, muitos dentro da Igreja Reformada tiveram uma forte reação. Quando Sabastien Castellio demonstrou desacordo com a visão de predestinação de Calvino ele foi banido de Genebra. No entanto, os reformados de Basel deram-lhe asilo e logo lhe ofereceram uma posição de professor. Dizia-se que, em Basel, “se alguém deseja menosprezar outro, chama-o de calvinista”. 20 Outro teólogo reformado que reagiu negativamente à doutrina da predestinação foi Jerome Bolsec que mudou-se para Genebra em 1.550. Quando Calvino e Beza enviaram uma lista com os erros de Bolsec às igrejas suíças, ficaram desapontados com o resultado. A igreja de Basel incentivou Calvino e Bolsec a enfatizarem suas semelhanças em vez de suas divergências. Os pastores de Bern lembraram Calvino dos muitos textos bíblicos que se referem à graça universal de Deus. Até Bullinger discordou de Calvino, apesar de que mais tarde veio a mudar de ideia. Bangs nota que os cantões de fala germânica foram os principais responsáveis pela resistência ao predestinarismo calvinista, 21 mas mesmo em Genebra existia uma resistência razoável. Uma das evidências disto está na presença do 15 As informações sobre o contexto nesta seção foram tiradas de Bangs, "Arminius and the Reformation," 15560. 16 Estes equívocos surgem do discurso fúnebre de Peter Bertius no funeral de Arminius e da obra de Caspar Brandt, Life of James Arminius (A Vida de James Arminius). 17 Bangs, "Arminius and the Reformation," 156. 18 Ibid. 19 Veja Carl Bangs, Arminius: A Study in the Dutch Reformation (Nashville: Abingdon, 1971), 141-42. 20 Bangs, "Arminius and the Reformation," 157. 21 Ibid., 158. 5 calvinista liberal, Charles Perrot, na docência da Universidade de Genebra, mesmo durante a era de Beza. “Desde o início da introdução da religião reformada nos Países Baixos”, diz Bangs, “o ponto de vista dos cantões suíços mais moderados estavam em evidência”. 22 Por causa da perseguição católica romana, o primeiro sínodo da Igreja Reformada da Holanda realizou-se na cidade de Emden (chamada posteriormente de a “Igreja Mãe de todas as Igrejas de Deus”) onde Albert Hardenberg era pastor. Hardenberg, que quanto à predestinação era mais próximo de Philip Melanchthon do que de Calvino, teve grande influência sobre os primeiros líderes na Igreja Reformada holandesa, sendo os mais notáveis Martenson e John Isbrandtson, que abertamente se opuseram à introdução da teologia de Genebra nos Países Baixos. 23 O sínodo de Emden adotou o Catecismo de Heidelberg e a Confissão de Fé Belga. Ambos documentos davam margem ao desacordo quanto à predestinação, mas alguns dos pastores que haviam recebido sua formação em Genebra iniciaram algumas tentativas para impor uma interpretação supralapsariana dos documentos. Logo surgiram dois partidos na Igreja Reformada holandesa. Aqueles menos inclinados a um ponto de vista calvinista da predestinação penderam para uma forma de erastianismo e tolerância para com os luteranos e anabatistas. Entretanto, a liderança de Genebra queria uma estrita aderência ao calvinismo e um governo de igreja presbiteriano. Acontece que os magistrados e os leigos preferiam a primeira opção, enquanto que a maioria do clero preferiu a segunda. Entretanto, um número significativo do clero permaneceu com o ponto de vista não calvinista da predestinação. Mesmo em 1.581, Jasper Koolhaes, um pastor reformado em Leiden, após ser declarado herege pelo sínodo provincial de Dort devido à sua interpretação não calvinista da predestinação, foi apoiado pelos magistrados de Leiden. 24 O sínodo provincial de Haarlem de 1.582 o excomungou, juntamente com alguns magistrados e outros pastores de Leiden. Haia, Dort e Gouda se opuseram a esta ação. O sínodo também tentou forçar as igrejas holandesas a adotarem uma rígida doutrina da predestinação, mas não obtiveram sucesso. Koolhaes continuou a escrever e foi apoiado pelos Estados da Holanda e pelos magistrados de Leiden. Um acordo entre as duas partes não foi bem sucedida. Portanto, existiam opiniões divergentes quanto à doutrina da predestinação na Igreja Reformada da Holanda quando Arminius começou a despontar como teólogo. 25 ARMINIUS, AS CONFISSÕES E CALVINO Foi dentro deste contexto que Arminius desenvolveu sua teologia reformada. Como devoto teólogo reformado holandês, Arminius foi leal aos símbolos de sua igreja: o 22 Ibid. Ibid., 159. 24 Koolhaes lecionou na Universidade de Leiden enquanto Arminius era estudante ali. O primeiro predestinatário rígido a ensinar na universidade somente o fêz após a chegada de Lambert Daneau. 25 Ibid ., 160. 23 6 Catecismo de Heidelberg e a Confissão de Fé Belga. Em inúmeras ocasiões ele reafirmou sua fidelidade a estes documentos. Sofrendo ataques do consistório de Amsterdã em 1.593, Arminius sentiu necessidade de reafirmar sua lealdade ao Catecismo e à Confissão. Repetidamente reafirmou sua lealdade, como em 1.605, quando respondeu aos delegados dos Sínodos da Holanda do Norte e do Sul. 26 Em 1.607, em uma reunião da Convenção Preparatória para o Sínodo Nacional, Arminius, juntamente com outros delegados, argumentaram que a regra de fé e prática da igreja deveria ser as Escrituras, não a Confissão ou o Catecismo, enfatizando a prioridade da Palavra de Deus acima das confissões. Arminius, juntamente com outros, sugeriu que os documentos fossem revisados pelo Sínodo para esclarecer certas doutrinas (por exemplo, o uso do plural no Catecismo quando se fala do pecado original). Isto não significava, entretanto, que Arminius discordasse de algo contido nos documentos. Arminius deixou isto claro em uma carta escrita ao Embaixador Palatino, Hyppolytus a Collibus, em 1.608: “Declaro com confiança que nunca ensinei nada, seja na igreja ou na universidade, que contradiz as sagradas escrituras que devem ser a única regra do pensamento e do falar, ou que seja contrário à Confissão Belga ou ao Catecismo de Heidelberg, que são nossos formulários de consentimento mais rígidos”. 27 Em sua Declaração de Sentimentos daquele mesmo ano, Arminius desafiou qualquer um a provar que ele tivesse dito qualquer coisa “em conflito com a Palavra de Deus ou com a Confisão das Igrejas da Holanda”. 28 Arminius viveu e morreu em completa lealdade ao Catecismo de Heidelberg e à Confissão de Fé Belga. É difícil crer que alguém mentiria consistentemente tanto em declarações públicas quanto em múltiplas obras publicadas quando teria sido mais fácil abrir uma destilaria (como o fez Koolhaes) ou entrar para uma profissão que não exigisse tanto fisicamente. Se Arminius não era um homem “desonesto”, “furtivo” e “traiçoeiro”, podemos crer com confiança que foi um defensor leal dos símbolos de sua igreja até o fim de seus dias. Tendo em vista que a maioria dos intérpretes de Arminius o tem retratado como adversário de Calvino, as afirmações de Arminius a respeito de Calvino são muito interessantes. Arminius fez menção explícita de Calvino em todas as suas obras e o citou inúmeras vezes; a maioria de forma positiva. Como exegeta e teólogo, Calvino era grandemente estimado por Arminius. O único desacordo com Calvino centrava-se nas particularidades da doutrina da predestinação. Arminius, porém, não julgava ser a predestinação o núcleo essencial da teologia reformada e nem da teologia de Calvino. Arminius expressou sua alta estima por Calvino em uma carta ao Burgomestre de Amsterdã, Sebastian Egbertszoon, em maio de 1.607. A ocasião da carta havia sido um rumor de que Arminius recomendara as palavras dos jesuítas e de Coornheert aos seus estudantes. Arminius escreve: E quanto a isto, depois da leitura das Escrituras, que eu rigorosamente inculco, e acima de qualquer outro (como toda a universidade, assim como a consciência de todos os meus colegas testificarão) recomendo a leitura dos Comentários de Calvino, a quem enalteço acima do próprio Helmichius... Pois 26 Carl Bangs, "Arminius As a Reformed Theologian”, em The Heritage of John Calvin, ed. John H. Bratt (Grand Rapids: Eerdmans, 1973), 216. 27 Citado em ibid ., 217. 28 Ibid. 7 afirmo que na interpretação das Escrituras Calvino é incomparável e que seus Comentários devem ser mais valorizados do que qualquer obra dos Pais da Igreja – tanto é que reconheço nele certo espírito de profecia que o distingue acima de outros, acima da maioria, de fato, de todos. Suas As Institutas, no que tange às coisas comuns, distribuo para leitura depois do Catecismo [de Heidelberg].... Mas aqui acrescento -- com discernimento, como devem ser lidas todas as obras dos homens. 29 Em sua Declaração de Sentimentos aos Estados da Holanda, na declaração de número nove, “A Justificação do Homem Perante Deus”, Arminius apresenta sua doutrina da justificação e depois diz, em essência, que se estiver errado, então Calvino também deve estar errado: “Qualquer interpretação que possa ser dada a estas expressões, nenhum de nossos sábios culpa Calvino ou o considera heterodoxo neste ponto; no entanto, minha opinião não é tão diferente da dele que me impeça de usar a assinatura da minha própria mão para me subscrever às coisas que ele declarou quanto a este assunto em seu terceiro livro de As Institutas; estou pronto a fazer isto a qualquer momento e dar-lhes minha total aprovação”. 30 A opinião de Arminius sobre Calvino nestes textos não parece a de um adversário, mas de alguém que tem grande respeito por Calvino e está de acordo com ele na maioria dos assuntos. É um erro exagerar a importância da doutrina de predestinação ao ponto de fazê-la a única doutrina que importa. Apesar de Arminius discordar de Calvino nesta doutrina, ele era (e acreditava ser) consistentemente reformado. Um exame do contexto histórico e teológico de Arminius, sua lealdade confessional e suas opiniões sobre Calvino ajudam muito a estabelecer a sua posição teológica. No entanto, a última corte de apelação será suas obras. Uma análise de suas obras doutrinárias mostrará que Arminius estava essencialmente de acordo com as expressões de fé agostinianas, calvinistas e reformadas. Mostrará também que em sentido algum ele pode ser descrito como semipelagiano ou sinergético, muito menos puramente pelagiano. Ao contrário, veremos que Arminius articulou a realidade do pecado original e a necessidade da graça divina tão fortemente como qualquer calvinista, embora de maneira diferente. ARMINIUS E O PECADO ORIGINAL A doutrina de Arminius quanto ao pecado original tem sido fonte de muita confusão. Às vezes ele tem sido associado com o semipelagianismo e às vezes até com pelagianismo. A maioria dos autores, tanto arminianos quanto calvinistas, têm dissociado Arminius e sua teologia da de Agostinho. No entanto, uma investigação de suas obras teológicas revela que ele tinha um ponto de vista agostiniano do pecado original. Antes de examinarmos as obras de Arminius, será benéfico investigar suas crenças 29 Citado em Bangs, "Arminius As a Reformed Theologian", 216. James Arminius, The Works of James Arminius, tradução de James Nichols and William Nichols, 2 vols. (Grand Rapids: Bake1 1986), 1:700. A doutrina de Arminius sobre a justificação será tratada mais adiante neste ensaio. 30 8 confessionais. Como indicado acima, Arminius afirmou em diversas ocasiões seu acordo com as confissões da Igreja Reformada da Holanda da época: a Confissão de Fé Belga e o Catecismo de Heidelberg. Uma olhada neste último revelará a harmatiologia reformada que caracterizava a teologia de Arminius. As perguntas sete, oito e dez do Catecismo dizem: Pergunta 07: De onde, então, procede essa corrupção da natureza humana? Resposta: Da desobediência e queda de nossos primeiros pais, Adão e Eva, no Jadim do Eden. Por isso, nossa natureza ficou de tal maneira corrompida, que todos somos concebidos e nascidos em pecado. Pergunta 08: "Estamos tão corrompidos que somos totalmente incapazes de fazer o bem e inclinados a todo mal"? Resposta: "Certamente, a não ser que sejamos regenerados pelo Espírito de Deus". Pergunta 10: Deixará Deus sem punição a desobediência e a apostasia do homem? Resposta: De maneira alguma; pois sua ira é revelada dos céus, tanto contra nossa pecaminosidade inata como contra os pecados cometidos, e há de punilos, segundo seu justo juízo, no tempo e na eternidade; como disse: "Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para praticá-las". 31 A Confissão de Fé Belga, no artigo quinze, A Doutrina do Pecado Original, diz: “Cremos que, pela desobediência de Adão, o pecado original se estendeu por todo o gênero humano. Este pecado é uma depravação de toda a natureza -- um mal herdado, que contamina até as crianças no ventre de suas mães... Portanto, rejeitamos o erro do pelagianismo, que diz que este pecado nada mais é que uma questão de imitação”. 32 Então, se Arminius estava dizendo a verdade quando disse estar de acordo com as confissões de sua igreja, podemos certamente dizer que as doutrinas do Catecismo de Heidelberg e a Confissão de Fé Belga, foram a doutrina de Arminius. Estas afirmações confessionais fornecem o contexto do que escreveu sobre a doutrina do pecado. Três obras principais de Arminius esboçam seu ponto de vista sobre o pecado original: Apology against Thirty-One Theological Articles (Apologia Contra os Trinta e Um Artigos Teológicos); 33 Public Disputations (Disputações Públicas) nos ensaios intitulados "On the First Sin of the First Man" (“Sobre o Primeiro Pecado do Primeiro Homem”) e "On Actual Sins" (“Sobre os Pecados Realmente Cometidos”) 34 e Private Disputations (Disputações Privadas), em uma disputa intitulada "On the Effects of the Sin of Our First Parents" (“Sobre os Efeitos do Pecado de Nossos Primeiros Pais”) 35. Um exame destas 31 The Constitution of the Presbyterian Church (U.S.A.), Part 1: Book of Confessions (New York: The General Assembly of the Presbyterian Church [U.S.A.], 1983), 4.005-012. 32 Ecumenical Creeds and Reformed Confessions (Grand Rapids: CRC Publications, 1987) 91. 33 Arminius, Works, 2:10-14. 34 Ibid., 2:150-61. 35 Ibid., 2:150-61. 9 três obras revelará ainda mais o ponto de vista de Arminius quanto ao pecado original. Em Apologia Contra os Trinta e Um Artigos Teológicos, Arminius apresentou argumentos contra ensinamentos que alguns indivíduos haviam atribuído a ele ou a seus colegas, mas que nem ele nem seus colegas haviam jamais ensinado. Nos ensaios sobre os artigos treze e quatorze, Arminius argumenta contra a condenação de crianças baseada no pecado original; no entanto, ele ficou bem longe de uma negação do pecado original em si e tentou defender a sua posição usando argumentos reformados. Arminius deu início ao ensaio com uma frase atribuída a Borrius, mas que, segundo Arminius, Borrius nunca a havia dito. “O pecado original não condenará ninguém. Em cada nação, todas as crianças que morrem sem (terem cometido) pecado são salvas”. 36 Arminius depois disse que Borrius negou ter alguma vez ensinado qualquer uma de tais afirmações. 37 O objetivo principal de Arminius neste ensaio foi de negar a condenação de crianças. A doutrina do pecado original e de sua imputação à raça humana eram tangenciais ao argumento, no entanto ele discutiu as duas doutrinas. Apesar de ter discordado de Agostinho quanto à condenação de crianças, concordou plenamente com ele quanto à doutrina do pecado original. Concordou com Borrius que todas as crianças “existiram em Adão e foram pela vontade dele envolvidos em pecado e culpa”. 38 Arminius argumentou que Francis Junius havia concordado com Borrius que as crianças de descrentes somente poderiam ser salvos por “Cristo e sua intervenção”. 39 Arminius apresentou seu ponto de vista sobre o pecado de maneira mais sistemática em Disputações Públicas. Ele resumiu sua doutrina do pecado original em uma seção intitulada “Os Efeitos deste Pecado”. Fica claro neste texto que Arminius era Agostiniano. Ele afirmou que a violação da lei de Deus resulta em duas punições: reactus, uma suscetibilidade a duas mortes (uma física e outra espiritual) e privatio, a retirada da justiça original do homem. 40 Arminius cria que o pecado de Adão causou morte física para toda a raça humana e morte espiritual para aqueles que não estão em Cristo. Sua posição sobre o efeito do pecado de Adão na raça humana era de que “este pecado por completo... não é peculiar aos nossos primeiros pais, mas é comum à toda a raça e a toda sua posteridade, a qual, no momento em que esse pecado foi cometido, estava em seus lombos, e que desde então descenderam deles pelo modo natural de propagação”. 41 Arminius cria que todos pecaram em Adão e são culpados em Adão, independentemente de qualquer pecado que tenham cometido. Em Disputações Privadas, Arminius ecoou os sentimentos de suas disputações públicas. Na disputa trinta e um, ele afirmou que “todos os homens que seriam propagados a partir deles [Adão e Eva] por meios naturais, se tornaram sujeitos a morte temporal e eterna e (vacui) desprovidos deste dom do Espírito Santo ou da justiça original”. 42 36 Ibid., 2:10. Ibid., 2:11. 38 Ibid., 2:12. 39 Ibid., 2:14. 40 Ibid., 2:156. 41 Ibid. Pode ser inferido por esta afirmação que Arminius aceitava (na terminologia posterior da teologia Escolástica Protestante) a teoria da relação natural da transmissão do pecado em vez de a teoria da relação federal. Em vez de Adão ter uma indicação “federal” como cabeça da raça, ele era naturalmente cabeça da raça e indivíduos são pecaminosos como consequência natural de terem estado “em Adão” ou na raça. 42 Ibid., 2:375. 37 10 Os pontos de vista de Arminius contrastam fortemente com as caricaturas padrões que se fazem dele, como se vê, por exemplo, na citação de Alan F. Johnson e Robert E. Webber: Os dogmas semipelagianos foram novamente reavivados na teologia de Jacob Arminius.... Arminius defendia que apesar de todos serem pecadores, o são não porque participaram no pecado de Adão, mas porque pecam como Adão pecou. A teoria dele, que veio a ser conhecida como depravação voluntária apropriada, é baseada no pressuposto de que cada pessoa tem um viés inato ao mal. Arminius, assim como os semipelagianos da igreja antiga, queria que a responsabilidade pelo pecado repousasse sobre o indivíduo. Esta doutrina de responsabilidade individual também se extende à salvação pessoal. 43 Um exame das crenças confessionais de Arminius e de suas obras faz com que seja impossível sustentar tais interpretações de sua doutrina de pecado original. Outro exemplo de interpretação equivocada é a de James Meeuwsen em seu artigo sobre o arminianismo em Reformed Review (Revista Reformada). 44 Meeuwsen diz que segundo o ponto de vista de Arminius do pecado original, “a unidade adâmica está destruída” e que o ponto de vista de Arminius “implica que o pecado original seja nada mais que um hábito que eventualmente foi adquirido pelo homem”. 45 Quando se lê Meeuwsen, torna-se necessário questionar se ele está realmente levando a sério a teologia de Arminius ou simplesmente lendo teólogos arminianos posteriores como se fosse a posição de Arminius. As afirmações de Meeuwsen simplesmente não podem ser sustentadas. Como podem ser reconciliadas as afirmações claras de Arminius, citadas acima, com tais reivindicações? Arminius deixa claro que seres humanos merecem o castigo de Deus (morte eterna) por causa do pecado original e da culpa original, não somente por causa de seus próprios pecados e culpa. 46 Meeuwsen também diz que Arminius nega que a humanidade seja culpada por causa do pecado de Adão. 47 No entanto, Arminius deixa claro que não. Quando questionado: “A culpa do pecado original é retirado de todos os seres humanos pelos benefícios de Cristo?” Arminius responde que a questão é “facilmente resolvida pela distinção que se deve fazer entre a solicitação, a obtenção e a aplicação dos benefícios de Cristo. Pois como a participação dos benefícios de Cristo consiste somente na fé, segue-se que, se entre os benefícios se encontra ‘livramento da culpa’, somente os crentes são libertos da culpa, já que são os únicos sobre os quais não permanece a ira de Deus”. 48 43 Alan F. Johnson e Robert E. Webber, What Christians Believe: A Biblical and Historical Summary (Grand Rapids: Zondervan, 1989), 223-24. 44 Meeuwsen se baseia muito no teólogo presbiteriano William G. T. Shedd (A History of Christian Doctrine [New York: Scribner's, 1867]), que leu Arminius equivocadamente através das lentes de Episcopius e outros teólogos remonstrantes cuja teologia diverge significativamente da de Arminius. Meeuwsen escreve: “Arminius e seus seguidores afirmam que a imputação de culpa é totalmente contrária à justiça e equidade de Deus. Shedd concordava plenamente com esta interpretação tendo parafraseado suas crenças da seguinte forma: ‘A imputação é contrária à benevolência divina, à razão e é de fato absurda e cruel’” (23). Em seguida Meeuwsen faz uma citação longa de Episcopius de meia página. Veja James Meeuwsen, "Original Arminianism and Methodistic Arminianism Compared," Reformed Review 14 (September 1960):21-36. 45 Meeuwsen, 22. 46 Arminius, Works, 2:374. 47 Meeuwsen, 23. 48 Arminius, Works, 2:65. 11 O tratamento de Arminius quanto ao pecado original e a culpa é claramente reformado. É verdade que a teologia arminiana posterior tem sido equivocadamente tomada como a própria doutrina de Arminius. Johnson, Webber e Meeuwsen tomaram uma teologia posterior como sendo a de Arminius. Somente quando isto é feito é que Arminius pode ser chamado de semipelagiano ou pelagiano em sua doutrina do pecado original. Um exame objetivo tanto das crenças confessionais de Arminius como de suas obras escritas demonstra que tais alegações não podem ser sustentadas. ARMINIUS: SOLA GRATIA E SOLA FIDE Tendo livrado Arminius das acusações de semipelagianismo no que concerne a pecaminosidade da humanidade, será benéfico examinar de que maneira ele crê que as pessoas podem ser resgatadas deste estado de pecaminosidade. Com relação a graça e fé, novamente seus intérpretes têm acusado Arminius de possuir um ponto de vista semipelagiano e sinérgico que faz da presciência divina do mérito de uma pessoa a base para a redenção, havendo um compartilhamento entre Deus e o homem na salvação. Uma rápida olhada quanto ao ponto de vista de Arminius relativo à graça, ao livre arbítrio e à incapacidade humana, seguido de um exame mais extensivo de sua doutrina de justificação pela fé, revelará a lealdade de Arminius à teologia reformada. Arminius cria que os seres humanos não têm a capacidade de buscar a Deus ou se voltar a Ele, a não ser que sejam radicalmente afetados pela sua graça. A maioria de seus intérpretes presumem (baseados no pressuposto de semipelagiano) que Arminius defendia uma doutrina de livre arbítrio que faz os indivíduos naturalmente capazes de escolherem a Deus. No entanto, a posição de Arminius quanto à liberdade humana não significa liberdade para fazer alguma coisa boa à vista de Deus ou para escolher Deus por si mesmo. Para Arminius, a liberdade básica que caracteriza a vontade humana é uma liberdade da necessidade. De fato, para Arminius, “é a própria essência da vontade. Sem ela, a vontade não seria vontade”. 49 Para alguns, isto soa como semipelagianismo. No entanto, apesar de Arminius crer que a vontade humana esteja livre da necessidade, ele afirmou de forma inequívoca que a vontade não está livre do pecado e do seu domínio: “... o livre arbítrio do homem para com o verdadeiro bem não está apenas ferido, mutilado, enfermo, distorcido ou (attenuatum) enfraquecido; mas está também (captivatum) preso, destruído e perdido; e seus poderes não estão apenas debilitados e inúteis a não ser que sejam assistidos pela graça, mas não há poder algum a não ser aquele que é gerado pela graça divina.” 50 Seres humanos decaídos não têm qualquer capacidade ou poder para se voltar para Deus por si mesmos. Arminius explicou que “a mente do homem neste estado é escuro e destituído do conhecimento salvador de Deus e, de acordo com o apóstolo, incapaz das coisas que pertencem ao Espírito de Deus”. 51 Ele passou a discutir “a total fraqueza de todos os poderes para realizar aquilo que é realmente bom e omitir a perpetração 49 Bangs, Arminius: A Study in the Dutch Reformation, 341. Arminius, Works, 2:192. 51 Ibid. 50 12 daquilo que é mal”. 52 Para Arminius, seres humanos pecaminosos possuem livre arbítrio, mas não é um livre arbítrio que tem a capacidade de fazer qualquer bem, pois está em escravidão ao pecado. 53 A graça de Deus é o único poder que pode tirar as pessoas deste estado. Arminius não era sinergista; ele não acreditava que indivíduos compartilham sua salvação com Deus. Seres humanos são salvos pela graça através da fé. Isto exclui o mérito humano de qualquer tipo. A fé que é um instrumento de justificação (não a sua base) não pode ser obtida sem a graça de Deus. Somente a graça divina concede às pessoas a capacidade de se achegar a Deus. 54 Para Arminius a graça é necessária e essencial à fé, do início ao fim. Arminius divergiu de Calvino e de muitos teólogos reformados de sua época ao afirmar que esta graça de Deus que “se manifestou salvadora a todos os homens” pode ser resistida. Arminius negou a distinção entre um chamado universal e um chamado especial. Ele insistiu que o chamado do evangelho é universal. No entanto, a graça de Deus através deste chamado pode ser e é resistido por homens e mulheres. Ele disse que “toda a controvérsia se reduz a esta pergunta: ‘A graça de Deus é uma força certa e irresistível?’... creio que muitas pessoas resistem ao Espírito Santo e rejeitam a graça que lhes é oferecida”. 55 Apesar de Arminius ter divergido de Calvino e de alguns reformados quanto aos detalhes da graça, ele ainda afirmava que a salvação é pela sola gratia. Arminius não pode ser em hipótese alguma considerado semipelagiano ou sinergista. Este fato é confirmado pela doutrina da justificação de Arminius. A justificação é outra doutrina de Arminius que é extremamente mal-entendida. Da mesma forma que as doutrinas do pecado original e da graça, sua doutrina da justificação é geralmente vista através da ótica da teologia arminiana posterior. 56 Muitos escritores reformados têm duramente criticado a soteriologia arminiana porque em geral têm se baseado na teoria de expiação governamental como articulada pelo teólogo remonstrante Hugo Grotius. 57 No entanto, se alguém lê Arminius através de Grotius, comete um equívoco. Para saber qual era a doutrina de Arminius da justificação pela fé é de grande ajuda examinar suas crenças confessionais e seus escritos. Arminius concorda com o que diz a Confissão Belga sobre a doutrina da justificação. O artigo vinte e dois, Sobre Nossa Justificação Pela Fé em Jesus Cristo, depois de afirmar que a justificação é “somente pela fé, ou fé sem obras”, diz que “não significa que a fé em si nos justifica, pois é somente um instrumento com o qual abraçamos Cristo Nossa 52 Ibid., 2:193. Millard J. Erickson repete a compreensão equivocada de que de acordo com o arminianismo a incapacidade humana na salvação “é física e intelectual, mas não volitiva”. Veja Christian Theology (Grand Rapids: Baker, 1985), 634. 54 Arminius, Works, 2:194-95. 55 Citado em Bangs, Arminius: A Study in the Dutch Reformation, 343. 56 Veja Meeuwsen, 27-28. 57 Ibid. 53 13 Justiça. Contudo, Jesus Cristo, imputando a nós todos os seus méritos e muitas obras santas feitas por nós e em nosso lugar, é a nossa Justiça”. 58 O Catecismo de Heidelberg estabelece a visão reformada da justificação pela justiça imputada de Jesus Cristo adquirida pela fé, o que é uma consequência da teoria da expiação da satisfação penal. O Catecismo declara que “é da vontade de Deus que sua justiça seja satisfeita; portanto, pagamento completo deve ser feito à sua justiça por nós mesmos ou por algum outro”. Entretanto, nós mesmos não podemos fazer este pagamento. Somente Jesus Cristo, Deus encarnado, pode fazer este pagamento por nós. Assim, ele paga a “dívida do pecado” e satisfaz os requerimentos da justiça de Deus. Quando uma pessoa tem fé em Cristo, ela é “incorporada em [Cristo] e aceita todos os seus benefícios”, está em união com Cristo, o que significa que Cristo leva seus pecados e a pessoa tem o benefício de sua justiça. 59 Ao responder a questão sessenta, o Catecismo diz ainda que “Deus, sem nenhum mérito de minha parte, de sua pura graça, me concede os benefícios da perfeita expiação de Cristo, me imputando sua justiça e santidade como se eu nunca tivesse cometido qualquer pecado ou nunca tivesse sido pecaminoso, tendo me preenchido de toda a obediência que Cristo realizou por mim, se tão somente eu aceitar tal favor com um coração confiante”. 60 Lemos na pergunta sessenta e um: Pergunta 61: "Por que afirmas que és justo somente pela fé?" Resposta: "Não porque, pela virtude e valor de minha fé agrado a Deus, mas porque somente a expiação, a justiça e a santidade de Cristo são minha justiça diante de Deus, e que exclusivamente pela fé posso recebê-la e praticá-la". 61 Esta é a mesma concepção de expiação e justificação que a da Confissão Belga. Arminius alega estar de acordo com ambos os documentos e as suas obras escritas estão em completo acordo com eles. A posição de Arminius quanto à justificação é resumida no artigo sete da disputação número dezenove da obra Disputações Públicas. Ali ele declarou que a justificação é o ato pelo qual uma pessoa “sendo colocada diante do trono da graça que é erguido em Cristo Jesus a Propiciação, é considerada e pronunciada por Deus, o justo e misericordioso Juiz, justo e digno da recompensa de justiça e de graça, não em si mesmo, mas em Cristo, de acordo com o evangelho para o louvor da justiça e graça de Deus e para a salvação da própria pessoa justificada”. 62 Justificação para Arminius é forênsica e imputativa em sua natureza. Ele havia afirmado em suas disputações sobre o pecado original que a morte espiritual eterna era a punição pelo pecado. Como os reformados, Arminius cria que Deus deve punir o pecado com morte eterna a não ser que uma pessoa cumpra o requerimento de justiça total diante dele. Ele retratou Deus 58 Reformed Confessions of the Sixteenth Century, ed. Arthur C. Cochrane (Philadelphia: Westminster, 1966), 204. Ibid., 307-8, 311-12. 60 Ibid., 314. 61 Ibid ., 315. 62 Ibid., 2:256. 59 14 como um juiz que deve sentenciar pessoas à morte eterna se não cumprirem este requerimento. De maneira tipicamente reformada, Arminius empregou a analogia do “Juiz fazendo em sua mente uma estimativa da dívida e de seu autor e, de acordo com esta estimativa, formulando um julgamento e pronunciando uma sentença”. 63 A sentença pronunciada contra o pecador que não pode cumprir os requerimentos da justiça divina é a morte eterna. Mas como ninguém possui este tipo de justiça, ela deve vir de outra pessoa. Somente pode vir de Cristo. Ele pagou a penalidade do pecado da cruz: “o preço da redenção pelos pecados através do sofrimento da punição que lhes é devida”. 64 Quando as pessoas exibem fé salvadora, entram em união com Cristo em sua morte e justiça. 65 Portanto, a justificação acontece quando Deus, como juiz, pronuncia uma pessoa justa por ter sido imputada com a justiça de Cristo, através da fé. Arminius fez uma clara distinção entre justiça imputada e justiça inerente dizendo que a justiça pela qual somos justificados não é de forma alguma inerente, ou contida dentro de nós mesmos, mas na justiça de Cristo que é “feita nossa por uma graciosa imputação”. 66 Para Arminius, esta ênfase na justiça não atenua a misericórdia de Deus, como afirmaram alguns arminianos posteriores. Deus nunca foi obrigado a oferecer Cristo para a redenção do homem. Se Deus não tivesse providenciado uma solução para a satisfação da Sua justiça (através da misericórdia), aí sim, disse Arminius, é que a humanidade seria verdadeiramente julgada desta forma severa e rígida; aqueles que estão sob a graça, através da fé, têm a justiça de Cristo graciosamente imputada, o que por sua vez os justifica diante de Deus, o Juiz. 67 Os inimigos de Arminius o haviam acusado de ensinar que não somos justificados pela imputação da justiça de Cristo, que é nossa através da fé, mas que é nossa fé propriamente dita que nos justifica. Em Apologia Contra os Trinta e Um Artigos Difamatórios, Arminius lidou com a afirmação que seus inimigos lhe haviam atribuído: “A justiça de Cristo não nos é imputada para a justiça; mas o crer (ou o ato de crer) nos justifica”. 68 A resposta de Arminius foi de que ele nunca disse que o ato de fé nos justifica. Ele sustentava que a justiça de Cristo é imputada ao crente por graciosa imputação e que nossa fé é imputada para justiça. A razão pela qual sustentava estes dois conceitos é que ele acreditava que o apóstolo Paulo sustentava ambos. Digo que reconheço que “A justiça de Cristo nos é imputada”; porque penso que a mesma ideia está contida nas palavras do Apóstolo, “Ele [Deus] o [Cristo] fez pecado por nós; para que, nele fôssemos feitos justiça de Deus”... Diz-se no terceiro versículo [de Romanos 4]: “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça”; isto é sua crença foi imputada. Portanto, meus irmãos, não ME repreendam; repreendam o APÓSTOLO. 69 63 Ibid., 2:256. Ibid., 1:419. 65 Ibid., 1:419. 66 Ibid., 2:257. 67 Ibid., 2:256-57, 406. 68 Ibid ., 2:42. 69 Ibid., 2:43-45. 64 15 Arminius achava que seus inimigos erravam em colocar os dois conceitos em oposição um ao outro, tendo em vista que o Espírito Santo não o faz. Ele argumentou que a fé não é fundamento ou base (causa meritória) da justificação, mas sim o instrumento pelo qual uma pessoa tem os méritos de Cristo imputados (a causa instrumental). 70 A fé é necessária para que a justiça de Cristo seja imputada e Arminius não via a necessidade de uma oposição entre as frases “a justiça de Cristo imputada a nós” e “fé imputada para justiça”. A visão de Arminius da justificação pela graça através da fé pela imputação do mérito de Jesus Cristo é uma posição totalmente reformada. Em outro lugar, para dirimir qualquer desentendimento, Arminius afirmou o seu total acordo com o que disse Calvino com respeito à justificação, em sua obra As Institutas. Calvino disse: Somos justificados diante de Deus apenas pela intercessão da justiça de Cristo. Isto equivale a dizer que o homem não é justo em si mesmo, mas devido à justiça de Cristo que lhe é comunicada por imputação.... Veja que a nossa justiça não está em nós mesmos, mas em Cristo, e que a possuímos apenas por sermos participantes de Cristo. De fato, com ele possuímos todas as suas riquezas. 71 Esta frase é quase idêntica a muitas declarações de Arminius sobre a justificação em Disputações Públicas. CONCLUSÃO Uma investigação dos escritos de Arminius demonstra que sua teologia deve ser absolvida de qualquer acusação de semipelagianismo, pelagianismo e sinergismo. Para Arminius, a humanidade está morta em seus delitos e pecados, culpada diante de Deus e somente pode ser salva por sola gratia e através da sola fide. Este exame do contexto histórico e teológico de Arminius na Holanda da era da reforma, sua lealdade às confissões reformadas holandesas, suas afirmações a respeito do que pensava de Calvino e, sobretudo, suas obras, têm demonstrado que a teologia essencial de Arminius com respeito ao pecado e à redenção era totalmente reformada. A maioria dos intérpretes tem-no visto através de um arminianismo posterior, que em grande parte tem demonstrado uma tendência de negar o ponto de vista reformado sobre o pecado original e a depravação total e tem aderido ao sinergismo no plano da salvação, à teoria governamental da expiação e ao perfeccionismo. Foi demonstrado que é uma irresponsabilidade simplesmente ler os temas destes arminianos posteriores e deduzir que fossem a posição de Arminius somente porque o seu nome está ligado aos sistemas teológicos arminianos. Uma análise acurada da teologia do 70 Ibid., 2:49-51. João Calvino, Institutes of the Christian Religion, ed. John T. McNeill, tradução Ford Lewis Battles, 2 vols. (Philadelphia: Westminster, 1960), 1:753. 71 16 próprio Arminius revela que era mais um desenvolvimento da teologia reformada do que um desvio dela. Publicado origianlmente em: Integrity: A Journal of Christian Thought, vol. 2, 2003, p. 121-139 Traduzido por Kenneth Eagleton. Revisão: Rejane Eagleton. Traduzido e publicado com autorização.