A ARTICULAÇÃO DOS PROGRAMAS DE COMBATE À POBREZA COM A ESCOLA
Gisele C. Costa1
Introdução
Com as conseqüências sociais provocadas pela a aplicação dos programas de ajustes
estruturais na América Latina, os programas de transferência de renda passaram a ser
condicionantes necessários entre os países da região e as agências internacionais que
administram a relação econômica entre o centro do capitalismo e sua periferia. Desde a
década de 1990 pelo menos 85% dos vinte países latino americanos aplicaram ou aplicam
programas de transferência de renda focalizados em grupos e subgrupos sociais considerados
mais pobres. Nos últimos doze anos a crescente presença dos programas de transferência de
renda na América Latina coincidiu com a ascensão dos governos de Frente Popular, o que
coloca em discussão as táticas utilizadas por esses governos como mediadoras na relação
simultânea com a classe trabalhadora e com as instituições financeiras internacionais que
fiscalizam e impõem programas sociais que vão ao encontro dos interesses da burguesia
nacional e internacional.
Nesse período histórico de retirada de direitos trabalhistas e revisão do que venha a ser
direitos sociais na América do Sul, a vinculação dos programas de transferência de renda
condicionada com a educação, nos remete às indagações: Qual o papel que a educação
cumpre nesse contexto? Quais são os objetivos de sua junção ao chamado combate à
pobreza?
O objetivo do presente trabalho é apresentar um estudo introdutório dos atuais
programas de transferência de renda condicionada sul-americanas e seu vínculo com a
educação, tendo como objeto o programa boliviano Bono Juancito Pinto e o programa
brasileiro Bolsa Família, com vistas a contribuir para a elucidação do seguinte
questionamento: são políticas neoliberais re-significadas pelos governos de esquerda? Ou
1
Graduanda do curso de pedagogia da Universidade Estadual Paulista – Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (Unesp – Campus Bauru – São Paulo – Brasil). Integrante do grupo de pesquisa “América
Latina e Marx: Movimentos Sociais, Partidos, Estado e Cultura” – CNPq. Desenvolve pesquisa sobre a área de
Educação no atual quadro político sul-americano.
políticas progressistas que visam romper com a estrutura secular de pobreza, ignorância e
exploração da classe trabalhadora?
Nossa hipótese é que as políticas focais sul-americanas, na educação, cumprem dupla
função: Em médio prazo garantir certificação de formação de mão-de-obra com um nível
mínimo necessário para o seu aproveitamento pelo capital enquanto exército de reserva na sua
característica flutuante e, sincronicamente contribuir enquanto parte dos novos direitos sociais
focalizados para a compensação da política de retirada de direitos ligados ao trabalho formal.
Nesse sentido, o serviço escolar estaria socializado com crianças e jovens provenientes
do estrato mais pauperizado da classe trabalhadora, mas o conhecimento produzido pelo
gênero humano, mesmo que fragmentado, estaria privatizado, no sentido de ser negado para
esses sujeitos, num cenário em que se aprofunda a mudança do caráter social da escola.
Esse trabalho analisa, portanto, os programas de transferência de renda condicionada
aplicados nesse período histórico, com ênfase no movimento de ruptura e continuidade
praticado pelos governos de Frente Popular no Brasil e na Bolívia, manifestado por um lado
pela manutenção do Estado Mínimo e por outro lado no permanente diálogo com e controle
da classe trabalhadora, intermediado entre outros, pelos programas sociais focalizados em
diversos setores da sociedade civil, em especial o Programa Bolsa Família e Bono Juancito
Pinto.
A seção 2 faz uma breve historicidade de como se deu o processo de teorização e
aplicação dos chamados programas de combate à pobreza dentro do Estado Democrático de
Direito, com a descrição dos programas Bono Juancito Pinto e Bolsa Família. A parte a seguir
analisa as articulações políticas que transformou educação em serviço educacional para
atender as necessidades do capital, entre elas a vinculação da escola com os programas de
transferência de renda. São tratadas na seção 4 as determinações que permitem as Frentes
Populares no Brasil e na Bolívia de produzir e reproduzir os programas de combate à
pobreza.
Gênese dos programas de combate à pobreza
A crise do capital materializada nos anos de 1970 proporcionou na América Latina o
aumento da dívida externa junto aos credores internacionais e contribui indiretamente, na
década seguinte, para o enfraquecimento dos regimes ditatoriais que já eram alvos de críticas
provenientes de diversos setores da sociedade civil.
A retomada do Estado Democrático de Direito com eleições diretas e multipartidárias
na América do Sul pode ser compreendida no contexto das mudanças de caráter global que
ocorreram na esfera econômica, política e social, que se anunciaram no final da década de
1970 e se estenderam até o final dos anos oitenta. A crise do modelo econômico keynesiano,
em 1973, que combinou baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação nos
principais países do centro do capitalismo, possibilitou a implementação do Estado mínimo
defendido pelos teóricos da Escola de Chicago (ANDERSON, 1996 p. 9.). Sincronizada à
crise do modelo de Bem Estar, destacou-se no âmbito político a derrocada dos Estados
operários burocratizados do leste europeu, e o fim da bipolaridade entre os dois blocos que
hegemonizavam a política mundial.
No contexto de liberalização econômica e queda dos regimes ditatoriais, a democracia
representativa passou a ser teorizada e defendida, por meio dos organismos internacionais e
pelos países centrais, como o regime político mais avançado a ser implementado, visto que as
pressões populares por liberdades democráticas e contra os efeitos da crise econômica tanto
no leste europeu como na América do Sul desgastaram os regimes stalinistas e os governos
militares sul-americanos. O sufrágio universal foi apresentado, nesse período histórico citado,
como a alternativa que diluiria os antagonismos entre capital e trabalho, com vistas a atenuar
as lutas pela emancipação da classe trabalhadora, na medida em que todos passam a ser
tratados como cidadãos, e podem participar dos rumos do país, por meio do voto. Então os
direitos políticos manifestaram-se como a solução para o problema da desigualdade social,
pois torna todos iguais perante o poder executivo, legislativo e judiciário, independentemente
de sua origem de classe. Todavia, as pressões populares que conseguiram debilitar até
sucumbir os regimes militares latino-americanos foram canalizadas para as vias institucionais
do Estado Democrático de Direito que manteve o modelo econômico neoliberal.
O aprofundamento do Estado mínimo expôs as debilidades da democracia liberal, por
meio das políticas aplicadas pelos governantes eleitos, os quais mediante o estatuto jurídico
de representantes do conjunto dos cidadãos em maioria, implementaram as propostas do
Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial. Assim orientados e supervisionados pelas
agências internacionais, os países sul-americanos promoveram os ajustes estruturais.
(CHOSSUDOVSKY, 1999 p.26.).
As implicações sociais que foram geradas pela reforma macroeconômica que tinha por
meta privatizar as empresas estatais, mercantilizar a educação e saúde e, flexibilizar os
contratos de trabalho para cumprir os compromissos da dívida externa, agravaram a
desigualdade secular entre a massa trabalhadora e as elites latino americanas. Os conflitos
sociais iniciados em 1989 pela revolta popular em Caracas contra o programa de ajuste
estrutural já demonstravam que as recomendações do Fundo Monetário Internacional e Banco
Mundial, também resultariam no acirramento da luta de classes na região.
Para evitar que as conseqüências da política austera e da reestruturação produtiva
transformassem-se em ameaças ao projeto de Estado Mínimo, imprescindível para o capital
em seu estágio de crise, ou que as revoltas populares fossem canalizadas pelas organizações
classistas que se baseassem programaticamente na ruptura com o modelo econômico e com o
sistema capitalista, as próprias agências internacionais que supervisionavam os programas de
ajustes estruturais, desde o final dos anos oitenta idealizaram e condicionaram sua relação
econômica com os países periféricos com a aplicação de programas de combate à pobreza:
Desde o final dos anos 80, a “diminuição da pobreza” tornou-se uma condicionante
dos acordos de empréstimos do Banco Mundial. Ela está subjacente ao objetivo do
serviço da dívida: a “redução sustentável da pobreza”, sob o domínio das instituições de
Bretton Woods, implica cortes nos orçamentos do setor social e o redirecionamento das
despesas, segundo um critério seletivo e simbólico “a favor dos pobres”. O Fundo Social
de Emergência (FSE) estabelecido (segundo o modelo Bolívia - Gana) oferece
supostamente um mecanismo flexível para “administrar a pobreza”, enquanto, ao mesmo
tempo, desmantela as finanças públicas do Estado. Os pobres são definidos nesse
esquema como “grupos-alvos”.
O FSE exige uma abordagem de “engenharia social”, um esquema político para
“administrar a pobreza” e aliviar a inquietação social a um custo mínimo para os
credores. Os chamados “programas com metas estabelecidas” destinados a “ajudar
pobres”, combinados com a “recuperação do custo” e a “privatização” dos serviços de
saúde e educação, são considerados um meio “mais eficiente” de liberar programas
sociais. (CHOSSUDOVSKY, 1999 p.58).
Como cumprimento das condicionalidades impostas pelas agências internacionais para
o refinanciamento da dívida externa e com o público-alvo definido, na década de 1990 os
governos conservadores da América Latina aplicaram programas de transferência de renda
condicionada, não autóctones em termos de idealização, focalizando suas ações nos grupos
classificados como extremamente pobres e pobres. 2
Na América do Sul destacaram-se dois programas de transferência de renda articulados
com a educação: O Programa Bolsa Escola no Brasil, executado pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso e o Programa Bono Esperanza, na Bolívia, implementado na cidade de El
Alto na região de La Paz, pelo governo conservador de José Luís Paredes, em 2004. Com a
ascensão da Frente Popular, esses programas foram redimensionados, deixando de serem
2
A classificação de pobres e extremamente pobres é feita com base arbitrária do Banco Mundial que considera
extremamente pobres pessoas que sobrevivem com menos de US$ 1,25 ou pobres aquelas que sobrevivem com
esse valor, sendo que os indivíduos que ultrapassam esse valor (US$ 1,25) são consideradas não-pobres.
programas governamentais para tornarem-se uma política de Estado, assumindo a forma de
focalização: O Programa Bono Juancito Pinto, na Bolívia e o Programa Bolsa Família no
Brasil. Esses programas são convergentes na população-alvo que atingem e nos objetivos
formais que apresentam, eles consistem em transferência de renda com condicionalidades
para que as famílias economicamente mais vulneráveis matriculem e mantenham seus filhos
na escola e desse modo o Estado consiga diminuir a evasão escolar. O Programa Bolsa
Família foi sancionado pela lei federal 10.836/2004 e oferece uma ajuda financeira que varia
de 22 a 200 reais para famílias com renda per capita de até 140 reais e que possuam crianças
e adolescentes de até 15 anos, jovens de 16 a 17 anos ou pessoa de qualquer idade na extrema
pobreza (BRASIL, 2004). Já o programa boliviano Bono Juancito Pinto originado pelo
decreto nº. 28889/2006, durante a primeira gestão do presidente Evo Morales, beneficia
anualmente com 200 bolivianos (U$ 28,25) núcleos familiares com crianças no 1º a 8º grau
primário e estudantes de educação especial, independentemente da idade. (BOLÍVIA, 2006).
PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA
Elegibilidade
Valor
Condicionalidades
Escolares
Família com renda per
R$ 68,00 mensais
Não precisa ter crianças ou
adolescentes na escola
capita de até R$ 70,00
Famílias com renda per
R$ 22,00 mensais. Cada
Freqüência escolar mínima de
capita de até R$ 140,00
família pode ter até três
85% da criança e adolescente.
com crianças e adolescente
benefícios, ou seja, R$
de até 15 anos
66,00.
Famílias do programa que
R$ 33,00 mensais. Cada
Freqüência escolar mínima de
tenham adolescentes de 16
Família pode ter até dois
75% do adolescente
a 17 anos freqüentando a
benefícios, ou seja, R$
escola
66,00.
Fonte: Ministério do desenvolvimento social e combate à fome
PROGRAMA BONO JUANCITO PINTO
Elegibilidade
Valor
Condicionantes
escolares
Crianças de 1º a 8º grau
primário matriculadas em
B$
200,00
bolivianos
anuais.
Crianças freqüentar
regularmente a escola
escolas públicas
Fonte: Ministerio de Planificación del Desarrollo-Bolívia
O Combate à pobreza articulado com a freqüência escolar
No Estado democrático burguês, os direitos têm uma abrangência mais extensa, em que
a população alvo é o conjunto dos cidadãos. Diversamente, os serviços podem ser privados ou
públicos, sempre com distribuição focalizada à população alvo especifica, no primeiro tipo,
para os que tem poder aquisitivo para adquiri-los e, no segundo, para os contingentes
populacionais em maior vulnerabilidade e que se constituem em potencial ameaça à coesão
social, seja pela via da delinqüência, ou por meio dos movimentos sociais classistas.
Se, no período do Estado de Bem Estar, os direitos eram distribuídos a partir da
condição de trabalhadores assalariado, na conjuntura neoliberal os direitos sociais, ora
convertidos em serviços, são distribuídos aos contingentes de trabalhadores que se
concentram, em sua maioria, no mercado informal com proventos muito abaixo do salário
mínimo. Essa diferenciação entre dois modelos econômicos de Estado burguês se explica pela
estratificação da classe assalariada em pobres e extremamente pobres e reflete nas práticas
sociais intermediada pelas políticas públicas no setor educacional.
Ao condicionar o beneficio monetário à freqüência escolar do beneficiado, os
programas Bono Juancito Pinto e Bolsa Família se propõem a reduzir a evasão escolar
provocada, entre outros, pelo trabalho infantil, assim ao receber o beneficio em dinheiro, as
famílias devem encaminhar regularmente seus filhos à escola. Esse condicionante coloca para
as instituições escolares duas tarefas: Formar e sustentar capital humano e, fazer com que os
indivíduos rompam com o ciclo de ignorância e miséria que receberam como herança das
gerações pregressas em seu ambiente parental:
(...) A partir de outra perspectiva, o conceito amplo de redes de segurança é definida
pela gestão social do risco. Nesse sentido, argumenta-se que quando o risco se torna um
fato, as pessoas afetadas vão comprometer sua segurança ou até mesmo se sentir
compelidas pelas circunstancias a sacrificar a capacidade futura de suas famílias. Por
conseguinte, é necessário prever tais contingências, criando mecanismos para ajudar a
reduzir a vulnerabilidade de determinados grupos sociais e preservar o capital humano e
social. (CEPAL, 2009, p.24).
O vínculo das instituições escolares com o combate à pobreza via programas de
transferência de renda resgata para o âmbito educacional a teoria de Theodoro Schutz que
sustenta que a educação é o elemento mais importante para o desenvolvimento econômico
geral e individual. Essa teoria ficou conhecida como teoria do capital humano:
A idéia-chave é de que a um acréscimo marginal de instrução, treinamento e
educação, corresponde um acréscimo marginal de capacidade de produção. Ou seja, a
idéia de capital humano é uma “quantidade” ou grau de educação e de qualificação,
tomado como indicativo de um determinado volume de conhecimentos, habilidades e
atitudes adquiridas, que funcionam como potencializadoras da capacidade de trabalho e
de produção. Desta suposição deriva-se que o investimento em capital humano é um dos
mais rentáveis, tanto no plano geral do desenvolvimento das nações, quanto no plano da
mobilidade individual. (FRIGOTTO, 1995 p.41).
Se no período pós Segunda Guerra Mundial, a teoria de Schutz já era passível de crítica
por impor à educação um caráter economicista filiado exclusivamente às demandas do capital
e uma perspectiva ahistórica na qual o saber escolar é responsável pela mobilidade social e
individual sem a presença do conflito entre as classes, no período da década de 1990 e anos
2000 a teoria do capital humano se mostra mais insustentável, sobretudo, pelos
desdobramentos que os ajustes estruturais tiveram no setor educacional.
A proposta do Bono Juancito Pinto de formar capital humano via transferência de renda
condicionada com a freqüência escolar ou mesmo a proposta aparente do Bolsa Família de
permitir que setores pauperizados exerçam o direito social ligado ao saber se mostram
inviável pelas características que a própria escola apresenta desde a implementação do Estado
mínimo.
As reformas macroeconômicas que foram aplicadas na América Latina articularem-se
no setor educacional pelos ajustes promovidos, por meio, do Consenso de Washington e
baseou-se em dois vertes: desvincular cada vez mais a educação do âmbito estatal,
transformando-a de direito social universal em serviço educacional individualizado,
possibilitando a mercantilização do saber escolar e no âmbito da jurisdição descentralizar o
financiamento e centralizar os planejamentos em esfera federal. (GENTILI, 1998 p. 25).
A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO)
colocou-se como órgão mentor das táticas que deveriam ser adotada pelos governos
neoliberais para atender as exigências das agências internacionais e com a aparência de
discurso tecnocrático apresentou-se justificativas baseadas n a “falta de eficiência” estatal
para financiar e administrar o setor:
(...) A comissão Internacional da UNESCO como porta-voz do neoliberalismo do
século XXI formula um conjunto de recomendações, estratégias e táticas, para impor a
contra-reforma, sobre a dupla base de governos fortes e regras acordadas em um contexto
de “participação democrática”. A UNESCO recomenda aos políticos e aos governos que
tomem decisões sobre a educação e definam estratégias que incluam a demanda, a
avaliação, a descentralização, a autonomia, a necessidade de uma regulamentação do
sistema, as limitações financeiras e a implementação das novas tecnologias”. (VERGEL,
2008 p.70).
Para os ideólogos da reforma educacional, as instituições escolares eram vítimas da má
gestão do Estado interventor que não aplicou a eficiência da competitividade na educação,
deriva-se dessa justificativa a necessidade de transferência da educação para o mercado,
deixando de ser um direito social de abrangência universal para focalizar-se, em dois grupos:
os que podem adquirir no setor privado, ou setores mais pobres incluídos na escola pública
também mercantilizada. No início dos anos noventa verificou-se nas instituições escolares o
esvaziamento de conteúdo, a educação alicerçou-se na pedagogia das competências, na qual o
professor transformou-se em técnico para desenvolver as habilidades necessárias no discente
para que esse último atenda os imediatismos do capital, o que não significa sobrevivência
empregatícia num mercado de trabalho cada vez mais volúvel. Para tanto foi preciso acabar
com o que os liberais categorizaram como educação conteudista. Nessa mesma linha, a
meritocracia passou a mediar à relação do Estado com os educadores, e as conseqüências
dessa mediação verificou-se nos vencimentos do corpo docente e na redução dos quadros de
educadores contratados, uma vez que para a lógica liberal, a crise na educação é um problema
de gestão, visto que não é a falta de investimento, mas a má administração dos recursos, para
os teóricos neoliberal-tecnocráticos a ausência de docentes é inverídica, o verdadeiro
problema baseia-se na falta de capacitação desses profissionais.
Os desdobramentos do Estado Mínimo na educação dos países latino-americanos
materializaram-se como concepção de educação mínima, baseada em manter as instituições e
esvaziar o conteúdo pedagógico. (PERRENOUD, 2001 pp. 8-12). As mudanças que se
manifestaram na educação agravaram a desigualdade social e a exploração da classe
proprietária dos meios de produção sobre a classe produtora, já que o espaço oficial de
socialização do saber – a escola- sofreu bruto avanço do capital e os alunos proletários foram
privados dos saberes mais elementares, que nos marcos do capitalismo são indispensáveis à
aquisição de contrato de trabalho não precarizado. De modo, que a freqüência escolar já não
garante às crianças e jovens da classe trabalhadora a certeza de uma vida adulta como
assalariado formal.
A crise que se encontra a escola pública no Brasil se expressa nos dados referentes ao
analfabetismo funcional. Cerca de 87,7 % dos analfabetos entre 7 e 14 anos freqüentam a
escola. (FERNANDES NETO, 2009 p. 36). Esses dados demonstram que apesar das crianças
e jovens brasileiros estarem freqüentando mais as instituições escolares devido ao Programa
Bolsa Família, com uma diferença percentual de 3,6 pontos de presença a mais que os alunos
não–beneficiários, essa situação não se reflete em aprendizagem já que na progressão do
ensino os beneficiários têm 3,5 pontos percentuais a menos de aprovação em comparação com
os não-beneficiários. (COUTINHO & SANTANA, 2008 p. 34).
Na Bolívia as seqüelas da política de Estado mínimo na educação foram provocadas,
sobretudo, pela lei 1565 de junho de 1994, que implementou a descentralização
(municipalização do ensino), além de aplicar a lógica de mercado, por meio, daquilo que os
legisladores neoliberais chamaram de qualidade de educativa , que constitui, entre outros, em
aumentar a oferta do serviço educacional para os que pudessem adquirir-lo e criar redes
assistenciais voltadas para os menos favorecidos. (IMEM, 2010 p.7).
A vitória eleitoral do partido Movimento ao Socialismo (MAS) não resolveu
substancialmente os problemas enfrentados pelo setor educacional boliviano. A lei
educacional 070 aprovada em dezembro de 2010 pelo governo Morales, intitulada como
Nueva Ley de Educación “Avelino Siñani - Elizardo Perez” coloca-se mais como um projeto
de diálogo com as bases sociais do governo, em especial com os setores ligados aos povos
originários, que uma resposta às reivindicações dos trabalhadores em geral 3. Verifica-se na
redação da lei educacional do governo do MAS um conteúdo mais etnocêntrico que classista,
de modo que admite-se na nova legislação o ensino privado, e a focalização, justificando
implicitamente a aplicação de programas como o Bono Juancito Pinto e explicitamente
permite a divisão de classes no Estado Plurinacional da Bolívia. (Bolívia, 2010).
Observa-se que o modelo de escola condicionado para crianças e jovens pobres, via
Bono Juancito e Bolsa Família, não cria capital humano em seu sentido clássico e tampouco
diminui o contingente de mão-de-obra reserva, uma vez esse modelo de escola corresponde
3
O projeto inicial da Lei Avelino Siñani-Elizardo Perez apresentado pelo governo Morales em 2006, objetivava
a permanência da descentralização do ensino implementada em 1994. O rechaço docente a essa posição, em
especial dos docentes da área urbana forçou o governo a recuar. No entanto alguns setores ligados a
Confederación de Trabajadores de Educación Urbana de Bolívia (CTEUB) e pelos docentes da Federación de
Maestros Urbanos de La Paz argumentam que a nova lei não apresenta avanço qualitativo, por manter a
educação privada e consequentemente aceitar a divisão de classes na sociedade boliviana.
aos anseios do período histórico presente, no qual os níveis salariais e ampliação dos postos
de trabalho estão determinados pela mundialização do capital e consequentemente pela
mundialização do exercito de reserva que permite que o capital transnacional se desloque
para regiões onde o custo do capital variável possibilita maior extra de mais-valia.
Frentes populares: a produção e reprodução dos programas de combate à pobreza
Durante a década de noventa, o cenário de desemprego e miséria se agravou em todo
subcontinente, nesse período dos cerca de 530 milhões de latino-americanos, 200 milhões
eram considerados pobres e 80 milhões não tinham acesso a alimentos básicos de
sobrevivência. (COGGIOLA, 2010 p.35). No início dos anos 2000 a crise social também
significou conflitos sociais causados, sobretudo, pelos anos ininterruptos de privatização das
empresas estatais, arrochamento salarial, cortes de verbas em áreas sociais e fechamento de
postos de trabalho. Na Argentina o desemprego chegou a 20% e o subemprego a 40 %
somente no ano de 2002. (ITURBE, 2003 p.60). Nesse cenário de luta de classes, as massas
populares, com destaque para a América Andina (Equador e Bolívia) provocaram um
processo de crise institucional com insurreições abertas. No Brasil e no Uruguai, embora o
descontentamento dos assalariados, desempregados e dos movimentos sociais não tenham
causado crises anti-sistêmicas, os efeitos sociais dos ajustes estruturais colocaram esses países
no quadro da crise do modelo neoliberal.
Esse panorama de acirramento dos conflitos classistas produziu o ressurgimento das
Frentes Populares na América Latina, ainda que o desenvolvimento tenham sido desigual
entre elas, sendo que algumas apareceram com fruto direto de processos revolucionários que
desarticularam momentaneamente as instituições do Estado Democrático de Direito e outras
como composições entre antigos grupos dominantes com direções majoritárias dos
trabalhadores.
A característica histórica dos governos de Frente Popular é a conciliação de classe que
os partidos, centrais sindicais e movimentos populares fazem com setores importantes da
burguesia, ao ocupar ministérios e um lugar predominante na configuração parlamentar de um
país. Apoiados nas organizações sindicais e populares conciliatórias, esses governos não são
incompatíveis com o modo de produção capitalista e buscam, sobretudo, desviar qualquer
mobilização proletária que ultrapasse os limites do regime e do modo de produção capitalista,
ou seja, qualquer mobilização que questione a propriedade privada. (CAPA, 1993 p.63).
Os diversos governos de Frente Popular que emergiram na América Latina nos últimos
doze anos aplicaram ou aplicam programas de transferência de renda 4. Todavia, pelas
semelhanças de propostas e execução do programa Bolsa Família e Bono Juancito Pinto, nos
deteremos no frentepopulismo brasileiro e boliviano.
Com o objetivo central de manter a ordem econômica do capital internacional e,
simultaneamente ter sustentabilidade política nas organizações sindicais e populares, os
governos de esquerda não objetivaram romper com o bloco político e econômico que
hegemonizam o poder, mas aplicou uma forma de governabilidade que não ameaçasse a
ordem institucional e econômica vigorante, cristalizou-se então, um pacto social entre
representantes formais dos trabalhadores e setores burgueses de grande expressão para a que
manutenção dos ajustes não desencadeasse confrontos entre classes.
Os governos frente populistas que ascenderam não se diferenciaram substancialmente
dos governos tradicionalmente conservadores que governaram da América do Sul, deram
continuidade às políticas macroeconômicas provenientes das agências internacionais criadas
pelo acordo de Bretton Woods, assim mantiveram a mercantilização dos serviços públicos,
não expropriaram o capital privado e em termos salariais mantiveram a política de arrocho.
No entanto, se mostraram peculiares as táticas adotadas pelos governos de Frente Popular
para a continuidade das mesmas diretrizes econômicas e sociais que as precederam e, sejam
eles originados de confrontos diretos entre classes, como na Venezuela, Bolívia e Equador, ou
ainda na modalidade preventiva como os governos brasileiro e uruguaio, recorreram à política
focal teorizada pelo Banco Mundial para obterem equilíbrio econômico, político e social.
Com base nos programas compensatórios, que não são contraditórios aos ajustes estruturais,
mas sim parte deles, foram implementadas políticas focalizadas em quase todas as áreas
sociais:
(...) Essa nova maioria sul-americana conduz a um consenso político em torno de
programas de combate à pobreza. Governos e oposições, da esquerda à direita, tornam-se
signatários desse compromisso renovado, reorientando seu cálculo estratégico não mais
exclusivamente para políticas universalistas de saúde, educação e previdenciária, mas,
sobretudo, para políticas dirigidas aos mais pobres, com focos e autorias bastante claros.
São estes agora os setores em efervescência social, nem sempre tão organizados como no
passado, porém, sob os quais repousam as chances de popularidade governamental, de
confiança nas instituições e, em última análise, de reprodução da legitimidade do regime
democrático. (COUTINHO E SANT`ANNA, 2008 p.27)
4
Uma das características comum nos novos governos de Frente Popular na América Latina é a aplicação dos
programas de combate à pobreza. Na Argentina se aplica o programa Plan Familias, no Uruguai o programa
Ingresso Ciudadano, na Venezuela o programa Missiones, no Paraguai o programa Tekoporã e no Equador o
programa B. de desarrollo solidario.
As determinações que possibilitam a implementação do programa Bono Juancito Pinto e
Bolsa Família, são históricas, mas ao mesmo tempo conjunturais. São históricas por trazerem
elementos seculares e são conjunturais pelo limite estrutural que os programas de
transferência de renda e os governos que os aplicam têm dentro da dinâmica da luta de
classes. A base material que consolidou nos governos frentepopulistas, os programas
compensatórios, foi o tripé formado pela pobreza cristalizada durante décadas entre os
trabalhadores latino-americanos, o crescimento econômico mundial que possibilitou a
máquina pública desloca-se recursos para a área social e o aparelhamento das organizações
classistas que passaram a defender com a propaganda oficial, os programas de transferência
de renda condicionada junto ao trabalhadores.
O cenário onde se instalaram os programas Juancito Pinto e Bolsa Família é
convergente pela miséria secular que se cristalizou durante o período colonial e republicano
na Bolívia e no Brasil. A pobreza caracterizada também pelas questões raciais se reproduziu
nesses países pela divisão internacional do trabalho e o lugar que a América Latina
historicamente teve no desenvolvimento do capitalismo. Assim, verifica-se que os programas
de combate à pobreza encontram razão de ser pelo próprio infortúnio que o capitalismo
causou aos trabalhadores boliviano e brasileiro. Calcula-se que atualmente o Brasil tenha
cerca de 64 milhões de pessoas são pobres e, na Bolívia dos 9,3 milhões de habitantes, 7,9
milhões de pessoas que não tem acesso a condições básicas de sobrevivência. (CEPAL, 2010
p.13).
Esse quadro de pobreza que poderia se transformar em situações limites forçou os
organismos institucionais do capital a planejar e supervisionar a administração da miséria. De
modo que, ainda nos anos noventa e início dos anos 2000, os governos tradicionalmente
neoliberais da Bolívia e do Brasil aplicaram programas de transferência de renda
condicionada que foram redimensionados posteriormente pelas Frentes Populares – Governo
Morales na Bolívia e Governo Lula no Brasil.
É importante destacar que os governos latino-americanos caracterizados como Frente
Popular ao assimilar a política de combate à pobreza, não estão sendo originais em termos de
governos conciliatórios que aplicam programas de transferência de renda. Na França, durante
o governo de Frente Popular de François Miterrand (Partido Socialista) em 1988, instituiu-se
o programa Renda Mínima de Inserção (RMI) que consistia em benefício monetário para toda
pessoa de 25 anos ou mais, cuja renda não atingisse 2.600 francos (cerca de 500 dólares
naquele período).
Apresenta-se como outro aspecto relevante na análise da reprodução dos programas de
combate à pobreza pelas Frentes Populares atuais, o crescimento econômico mundial que
permitiu que esses governos aplicassem políticas sociais paralelas aos programas de
transferência de renda condicionada, que têm impacto imediato no cotidiano dos
trabalhadores mais pauperizados. Ao contrário dos governos tradicionalmente de direita, as
Frentes Populares no Brasil e na Bolívia não executaram os programas de combate à pobreza
de forma isolada. O governo Lula e o Governo Morales criaram uma gama de programas
sociais que atingissem os trabalhadores em diversas áreas, sem que a política econômica fosse
alterada. Na Bolívia, além do Bono Juancito Pinto, o governo do MAS criou também o Renta
Dignidad para pessoas pobres com mais de 60 anos e o Bono Juana Azurduy para ajudar
mulheres grávidas.(RADHUBER, 2010 p.113-114). No Brasil o Bolsa Família pertence ao
programa Fome Zero que articula os programas Aquisição de Alimentos, Restaurantes
Populares, distribuição de cestas básicas para comunidades indígenas, quilombolas e os
atingidos por barragens, além do programa de criação de cisternas nos municípios do
Nordeste. (COGGIOLA, 2010 p.43). Essa política resultou, entre outros, em respaldo eleitoral
para o bloco político que compõe a Frente Popular. Entre 2003 e o ano de 2010, o governo
federal destinou aos Estados do Ceará e Pernambuco mais de 10 bilhões de reais em beneficio
distribuído pelo Bolsa Família, atendendo cerca de 2 milhões de famílias. Nesses Estados na
eleição presidencial de 2006, Lula recebeu respectivamente no segundo turno 75% e 82% dos
votos válidos. (BRASIL, 2010).
Pela característica das Frentes Populares de aparelhar as direções dos movimentos
populares, centrais sindicais e partidos políticos, a relação das organizações classistas se
alteraram com a política dos programas de transferência de renda. No Brasil, as críticas que as
organizações dirigiam ao programa Bolsa Escola, pejorativamente chamado de Bolsa Esmola
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, se transformaram em apoio com a
ascensão do governo do Partido dos Trabalhadores em 2003, com a eleição de Luiz Inácio
Lula da Silva e a aplicação do Programa Bolsa Família:
“Defendemos todas as políticas públicas que contribuam para resolver os problemas
emergenciais das famílias de trabalhadores pobres do campo e da cidade, como a cesta
básica e o programa Bolsa Família.”. 5
5
Declaração do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, 06 de julho de 2009. Disponível in:
www.mst.org.br , acessado no dia: 20 de janeiro de 2011.
Essa institucionalização dos movimentos populares não se explica somente pelo caráter
ideológico de seus programas que se propõem a administrar o capital. A base de
sustentabilidade que as direções classistas dão à Frente Popular justifica-se, também pela
relação material que o aparato estatal estabelece com os movimentos. O programa Bolsa
Família, por exemplo, cadastrou cerca de 226 mil famílias acampadas, sendo a grande maioria
pertencente ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Observa-se ainda,
que durante o primeiro mandato do governo Lula o número de famílias que ocuparam terras
no Brasil caiu de 65.552, em 2003, para 44.364, em 2006. (COGGIOLA, 2010 p.46).
Na Bolívia a posição das direções majoritárias diante do governo Morales não difere
dos movimentos sociais brasileiros diante do Partido dos Trabalhadores. Na aprovação da
nova lei educacional boliviana que admite focalização para os alunos menos favorecidos, a
direção majoritária dos docentes apoiou o governo. 6
A capitulação das organizações de esquerda diante das Frentes Populares coloca-se
como legitimação da política de continuidade dos ajustes estruturais, já que o Bolsa Família e
o Bono Juancito Pinto são coerentes com o Estado mínimo e com o modo de produção
capitalista, e não propostas alternativas a eles. A posição política dos dirigentes de alguns
setores do movimento operários e social, juntamente com a política de compensação aplicada
pelas Frentes Populares, via máquina pública, desarticula os trabalhadores em suas
reivindicações que não estão atreladas ao aparato do Estado e que ultrapassam os limites dos
programas sociais compensatórios.
Conclusões
A escola burguesa na sua vertente neoliberal articulada com os programas
compensatórios cumpre o papel de certificar minimamente os indivíduos que potencialmente
comporão as fileiras de desempregados, visto que pelos próprios critérios de benefícios desses
programas, o público alvo é composto em sua maioria por núcleos primários desassistidos
pelo emprego formal.
Ainda que esse certificado signifique para o aluno, letramento e não alfabetização ou o
inverso, para o capital essa certificação é importante para impor o valor da força de trabalho,
já que o exército de mão-de-obra reserva deve apresentar requisitos mínimos para ser
6
O dirigente da Confederación de Maestros Urbanos, Federico Pinaya declarou que a lei tem seus méritos por
incluir educação técnica e tecnológica e não só produtiva. Declaração feita ao jornal boliviano El Deber em 20
de dezembro de 2010. Disponível in: www.eldeber.com.bo acessado no dia: 10/01/2011.
eventualmente aproveitado. Não por acaso que entre os Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio para ser atingidos até 2015 está a conclusão do ciclo básico e ensino fundamental em
todos os países em desenvolvimento, assim como a criação de programas de transferência de
renda para viabilizar esse objetivo. (PNUD, 2000).
Nessa relação escola / combate á pobreza, o caráter social da escola tende a se
transformar e aumentar a crise de identidade social que as instituições educacionais vêm
sofrendo por décadas seguidas. Por ser espaço concebido como indispensável para a
socialização de conhecimento produzido pelo gênero humano e intermediador das práticas
sociais, a instituição escolar pública, gratuita e laica tornou-se, ao longo da história e dos
conflitos de classes, direito incondicional de todos em quase todas as cartas magnas de
diversos Estados, no entanto a filiação crescente da escola com os programas de transferência
de renda, muda seu caráter de direito social incondicional para condicionador de acesso a
novos direitos, direitos focalizados que já não são direitos trabalhistas, mas que estão
garantidos pela miséria de toda ordem, originada, por meio, do desemprego ou precarização
do trabalho, além de aprofundar o processo de desescolarização da escola que já não tem
como central o desenvolvimento mínimo das faculdades mentais e físicas dos indivíduos, mas
que terminam por perpetuar a miséria intelectual que é inerente à divisão social do trabalho.
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