Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico
para o Turismo de Base
Comunitária
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Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ
Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia – COPPE
Programa de Engenharia de Produção - PEP
Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social - LTDS
EQUIPE:
Roberto dos Santos Bartholo Jr.
Coordenador
Arminda Campos
Ivan Bursztyn
Marisa Egrejas
Robson Pereira de Lima
Pesquisadores
Janeiro de 2011
CONTATO:
LABORATÓRIO DE TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO SOCIAL
Cidade Universitária, Centro de Tecnologia, Bloco F, Sala 123
Rio de Janeiro – RJ – CEP: 21941-972 – C. Postal: 68507
http://www.ltds.ufrj.br
[email protected]
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Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
SUMÁRIO
Apresentação ...................................................................................................................................... 01
Introdução ........................................................................................................................................... 02
Aportes metodológicos ...................................................................................................................... 04
Referenciais ........................................................................................................................................ 05
Enfoque dos órgãos públicos ............................................................................................................ 06
Interseções .......................................................................................................................................... 07
TBC e as relações de poder ........................................................................................................ 07
TBC e a sustentabilidade ............................................................................................................. 10
TBC e a solidariedade .................................................................................................................. 12
O TBC situado ............................................................................................................................... 13
Potencial econômico do TBC ...................................................................................................... 14
O turismo como indústria ............................................................................................................ 15
Redes sociais e o TBC ................................................................................................................. 16
Tecnologias e o TBC .................................................................................................................... 18
Desenvolvimento humano e o TBC ............................................................................................ 19
Relações dialógicas no TBC ....................................................................................................... 19
Aportes educacionais e o TBC ................................................................................................... 20
Considerações Finais ......................................................................................................................... 22
Referências bibliográficas ................................................................................................................. 24
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Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
APRESENTAÇÃO
Este relatório atende à solicitação de Apoio à Pesquisa – APQ1, apresentada à Faperj em 30 de julho
de 2009 1 , que teve como objetivo a formulação de marco referencial teórico referido a experiências
realizadas por meio de workshop virtual com pesquisadores do Instituto Virtual de Turismo – IVT, com
a finalidade de fornecer subsídio para o enquadramento de iniciativas de turismo de base comunitária.
1
A proposta inicial sofreu reajustes em 27 de outubro de 2009 em virtude da redução do orçamento.
11
Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
INTRODUÇÃO
O tema Turismo de Base Comunitária há quase uma década tem merecido atenção do Laboratório de
Tecnologia e Desenvolvimento Social – LTDS e do Instituto Virtual de Turismo – IVT. Neste período,
vem consolidando a visão de ser este um importante instrumento de política de desenvolvimento
situado com foco na geração de oportunidades de renda e emprego e ampliação da inclusão social.
Ao longo deste tempo, o acompanhamento e a avaliação das experiências tradicionais de turismo
demonstram que nem sempre ele está associado ao desenvolvimento das localidades onde se
estabelece apesar de seu significativo crescimento ano a ano e do notável aumento das receitas
provocado por ele. Observa-se também que órgãos oficiais e instituições de pesquisa do setor vêm
mostrando crescente preocupação com as questões econômicas, sociais e ambientais em virtude dos
significativos impactos, geralmente aliados ao turismo de massa.
Ao mesmo tempo, nota-se o reconhecimento de pesquisadores e de órgãos governamentais e nãogovernamentais de que, aqui e acolá emergem mudanças de comportamentos e atitudes em
comunidades ou grupos que se organizam proativamente em empreendimentos cooperativos e
associativos de modo que a própria comunidade mantenha o controle efetivo da terra e das atividades
econômicas e culturais associadas ao turismo (CORIOLANO, 2006).
Nestes casos, a comunidade é sujeito de seu próprio avanço, participando desde a concepção do
turismo até seu desenvolvimento e gestão, considerando a complexidade, a diversidade e as
realidades locais (ZAUOAL, 2008), apontando para o que se convencionou chamar hoje de
sustentabilidade, ou turismo sustentável. Ou seja, um turismo que vise à geração de impactos
favoráveis nas dimensões econômica e social e que esteja em harmonia com o meio ambiente e com
as culturas locais. A essas experiências vem sendo atribuído genericamente o título de Turismo de
Base Comunitária (TBC).
No entanto, apesar de podermos observar um crescimento significativo de atividades turísticas deste
último tipo em comunidades de diferentes configurações, no meio acadêmico não há uma única
definição conceitual específica amplamente aceita que defina o TBC ainda que demonstrem
similaridades de princípios antropológicos, sociológicos, econômicos, políticos, históricos, psicológicos
e ambientais.
Entendemos que o TBC pode representar uma oportunidade para o desenvolvimento do turismo no
Brasil. Suas especificidades podem ajudar a aliar conservação ambiental e valorização cultural em
comunidades espalhadas por todo o território nacional, apresentando ao mundo e aos próprios
brasileiros uma diversidade de brasis conhecida por poucos. A diversificação na oferta de
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Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
possibilidades de práticas turísticas no Brasil, além de dinamizar o turismo doméstico local e regional,
contribui para que os turistas estrangeiros passem mais tempo no país.
Assim, visando o preenchimento desta lacuna, o LTDS/IVT, apoiado pela FAPERJ, oferece aos
pesquisadores, acadêmicos, órgãos governamentais e não-governamentais, um marco referencial
baseado em seus estudos teóricos, em experiências no campo. Baseia-se ainda no workshop virtual
(parte deste projeto) e em quatro teses desenvolvidas por seus pesquisadores (duas já qualificadas e
duas em andamento), na intenção de colaborar com os especialistas e com o desenvolvimento de
políticas públicas para o setor, contribuindo para o fortalecimento e para a consolidação da atividade
turística sustentável no país.
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Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
APORTES METODOLÓGICOS
A aproximação da universidade na estruturação e implementação de iniciativas de TBC representa
uma rica oportunidade para o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas, bem como podem
possibilitar o enriquecimento e alargamento das fronteiras do conhecimento por parte dos atores
envolvidos em sua prática. A universidade pode ser também uma importante parceira na melhoria da
qualidade dos produtos e serviços ofertados pelas iniciativas de TBC, uma das principais carências da
atividade.
O objetivo geral do projeto apresentado à FAPERJ pode ser sintetizado pela intenção de contribuir
para a consolidação e o fortalecimento de empreendimentos turísticos de base comunitária, por meio
da sistematização de informações que venham a possibilitar o planejamento de uma oficina de design
de serviços turísticos de base comunitária. O objetivo específico do projeto correspondeu à formulação
de marco referencial teórico para enquadrar iniciativas de turismo de base comunitária, com referência
a experiências concretas.
Para dar conta destes propósitos, foram realizadas pesquisas teóricas e discussão por meio virtual
com pesquisadores do Instituto Virtual de Turismo que atuam no campo e que estão desenvolvendo
suas Teses e Dissertações na área do Turismo de Base Comunitária.
Por fim, foi produzido este relatório, buscando estabelecer marcos referenciais teóricos que possam
ser utilizados como suportes às ações acima descritas.
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Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
REFERENCIAIS
A falta de unanimidade quanto ao significado de turismo de base comunitária nos relatórios técnicos
das instituições promotoras ou em publicações acadêmicas, não é a única imprecisão observada. A
este, somam-se termos como comunidade, tipos de turismo, entre outros implicados na definição do
primeiro, o que leva a esta grande diversidade de sentidos e dificuldade de definição.
Teoricamente, diversos autores procuraram abordar a relação entre o turismo e as comunidades locais
receptoras. Mitchell & Reid (2001) estudaram a integração da comunidade de Ilha Tequile, no Peru, no
processo de planejamento, desenvolvimento e gestão do TBC. Horn & Simons (2002) tratam
comparativamente da relação do turismo com comunidades tradicionais na Nova Zelândia. Tosun
(2006), estudando um caso na Turquia, aborda o sentido da participação comunitária no planejamento
e desenvolvimento do turismo. Rugendyke & Thi Son (2005) estudaram no Vietnam a substituição das
atividades agrárias tradicionais pelo turismo de natureza relacionado às unidades de conservação.
Koster & Randal (2005) usam indicadores para avaliação do desenvolvimento econômico de
comunidades no Canadá que estão envolvidas com turismo. Mansfeld & Jonas (2006) tratam da
capacidade de carga cultural em uma comunidade judaica que trabalham com turismo em um Kibutz
de Israel.
No Brasil, os estudos teóricos ainda são insuficientes, apesar de sua ampliação nos últimos anos e do
demonstrado interesse do setor público representados pelos apoios a algumas iniciativas e fomentos
advindos dos Ministérios do Meio Ambiente (MMA), do Desenvolvimento Agrário (MDA) e, mais
recentemente, do Turismo (MTur).
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Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
ENFOQUE DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS
O MMA, por meio de ações isoladas, vem apoiando iniciativas de turismo em comunidades residentes
no interior ou no entorno de unidades de conservação que são foco de sua atuação. A principal fonte
de fomento tem sido o Subprograma Projetos Demonstrativos (PDA), realizado no âmbito do Programa
Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais (PPG7), voltado principalmente para ações na
Amazônia e na Mata Atlântica. O PDA inseriu em seu edital para apoio a projetos uma linha temática
dedicada ao “uso sustentável dos recursos naturais por meio do ecoturismo em áreas de relevância
ambiental” (MMA, 2006).
Já o Ministério do Turismo, somente em 2008 passou a promover o desenvolvimento do turismo de
base comunitária no país, com o lançamento do Edital 01/2008 voltado para a seleção de propostas de
projetos para apoio às iniciativas de turismo de base comunitária. Com isso, o MTur deu um passo
importantíssimo para o reconhecimento e fortalecimento de iniciativas até então marginalizadas pelas
políticas públicas do setor.
O volume inicial de propostas superou todas as expectativas dos coordenadores do MTur. Foram
recebidas mais de 500 propostas de projetos, provenientes das cinco macro-regiões. As regiões
Sudeste (34%), Sul (23%) e Nordeste (22%) foram as que mais enviaram propostas, totalizando 80%
dos projetos recebidos. Observou-se uma grande variedade de instituições proponentes: poderes
públicos, municipal e estadual, organização sem fins lucrativos de naturezas diversas, como ONGs,
fundações e instituições de ensino superior, além de associações, cooperativas e diversas outras
entidades comunitárias.
Segundo o Mtur, dentre os critérios de avaliação das propostas foram priorizadas as que apresentaram
experiências anteriores com TBC com recorte territorial bem definido, foco em grupos organizados já
relacionados ao turismo e participação da comunidade local, seja como proponente, seja como
parceiro, com o intuito de privilegiar o fomento ao desenvolvimento local (Silva, Ramiro & Teixeira,
2009).
De acordo com as linhas temáticas de fomento, os projetos selecionados apontaram a ênfase nas
atividades de planejamento estratégico participativo e mobilização das populações locais; em
treinamentos e capacitações; no fomento e suporte a redes de turismo solidário; na melhoria da
qualidade de produtos e serviços turísticos; no marketing, promoção e comercialização; e ainda na
realização de eventos, seminários e participação em feiras do setor. No entanto, a análise atenta sobre
as propostas selecionadas para apoio financeiro do MTur não nos fornece parâmetros claros que
sejam por si sós capazes de definir o TBC no Brasil.
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Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
INTERSEÇÕES
A extensão geográfica e a diversidade de experiências encontradas no país também colaboram para a
amplitude conceitual do TBC uma vez que este é usado para tratar de contextos tão diversos e
diferentes quanto comunidades urbanas e rurais, podendo estar referido às populações tradicionais ou
a amálgamas sociais compostos pelos movimentos migratórios e processos de exclusão
socioeconômicos, entre outros.
Em função disso, termos como turismo comunitário, turismo de base local e ecoturismo comunitário
que os autores referenciados aqui adotam como termos representativos de suas perspectivas teóricas
serão tratados nesse relatório como conceitos que apresentam grande interseção de princípios, mas
que podem ter ou não o mesmo significado.
Neste sentido, procuramos delimitar as interseções de princípios e conceitos, revelados pelas
pesquisas teóricas, pesquisas de campo e vivências locais que evidenciam as propostas de
desenvolvimento social e do seu local de vida, o sentido de pertencimento do ser humano, a
capacidade dos membros de comunidades participarem dos processos de tomada de decisão por meio
de seu empoderamento político, a importância do exercício do diálogo para o estabelecimento de
relações humanas que condicionem contextos sociais mais justos e equivalentes e questões que
dizem respeito à liberdade de agir e de imaginar do ser humano.
TBC e as relações de poder
Para analisar este ponto, tomamos o trabalho de Maurieen Reed (1997) que sugere a abordagem das
relações de poder a partir de três arenas políticas: 1) desenvolvimento comunitário; 2) alocação de
recursos; e 3) da maneira pela qual esse processo deve ser estruturado e organizado.
“Um processo de planejamento do turismo de base comunitária é um exemplo de um
mecanismo mais formal para o aproveitamento da opinião dos cidadãos sobre questões de
desenvolvimento. A sua introdução pode fornecer um espaço para expressar novos,
potencialmente competitivos, interesses no processo, substância e/ou agentes de
desenvolvimento local. Por conseguinte, as tentativas de realizar planejamento de base
comunitária em um contexto de turismo emergente estão sujeitas à expressão das relações
de poder nas diferentes arenas políticas.” (REED, 1997, p. 573)
No trabalho de Reed (1997), poder é definido de forma generalizada como a capacidade de alguém
impor sua vontade ou realizar alguma ação de seu interesse. A partir desta conceituação, Reed (1997,
p. 569), assume que, em contextos em que as atividades turísticas são fragmentadas e os interesses
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Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
coletivos não são bem definidos, a identificação dos representantes comunitários legítimos torna-se
uma tarefa árdua.
Podemos observar que as questões intrínsecas às relações de poder apresentam-se com destaque
em definições de TBC de algumas ONGs, como na World Wild Found (WWF-International), em que
enfatiza o controle e o envolvimento na gestão e no desenvolvimento de projetos de ecoturismo:
“a form of ecotourism where the local community has substantial control over, and involvement
in, its development and management, and a major proportion of the benefits remain within the
community.” (WWF-International 2001: 2)
Na definição da WWF-International que nos serve de exemplo, o enfoque econômico é claro e
incorpora a dimensão da participação direta das populações locais envolvidas com a atividade turística
nos empreendimentos procurando garantir que os benefícios econômicos gerados permaneçam na
comunidade visitada.
A mesma preocupação pode ser encontrada nas definições de TBC no contexto Africano, que tratam
da capacitação das comunidades locais para a participarem no planejamento, decisão e execução das
atividades turísticas:
“To empower local communities in sustainable development through small-scale tourism and
handcraft enterprises, also known as Community Tourism. Community Tourism aims at
involving the local people in the planning, decision-making and implementation of tourism
development activities. This form of tourism assures that the benefits stay as much as possible
in the local community.” (UCOTA, Uganda Community Tourism Association) 2
“Tourism in which a significant number of local people are involved in providing services to
tourists and the tourism industry, and in which local people have meaningful ownership, power
and participation in the various tourism and related enterprises. Community-based tourism
should offer some form of benefits to local people not directly involved in the tourist
enterprises, for example through improved education or infrastructure.” The KwaZulu-Natal
Tourism Authority (2002)
Na primeira, a Uganda Community Tourism Association incorpora em sua definição um papel ativo das
comunidades locais no planejamento, tomada de decisões e operação do turismo. Na segunda, a
KwaZulu-Natal Tourism Authority da África do Sul, observamos um aspecto muito importante para o
TBC, a saber, o benefício para a população local que não esta diretamente envolvida com o turismo,
por meio de melhorias na infraestrutura e na educação, por exemplo.
Com base no que Reed chamou de “sinais de justaposição na arena política organizacional” (REED,
1997, p. 584-586), reconhecemos um aspecto comum às iniciativas de TBC que tem implicações na
estruturação e na organização do seu processo de planejamento; trata-se da capacidade de serem
criados novos modos de organização e desenvolvimento no âmbito comunitário. Essa perspectiva
inovadora traz no seu bojo a ampliação da participação dos agentes comunitários nos processos de
2
Extraído de www.ucota.or.ug
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Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
tomada de decisão que, por outro lado, aumenta a tensão entre essa nova liderança e os detentores
dos modelos tradicionais de planejamento.
Ainda neste ponto, a análise de Trevor Sofield (2003, pp. 100-101) sobre empoderamento e
desenvolvimento do turismo chama a atenção para o empenho significativo de especialistas em
turismo em induzir algumas comunidades a aceitarem os pseudo-benefícios do turismo enquanto, por
outro lado, é despendido pouco esforço para o empoderamento delas para que possam fazer suas
próprias escolhas e decidirem, por exemplo, se querem ou não se envolver no desenvolvimento de
empreendimentos turísticos.
De acordo com Blackstock (2005), nas análises existentes sobre este ponto, relativiza-se ou não é
levado em conta o interesse de agentes externos em impor e em conduzir, de forma disfarçada, o
desenvolvimento das atividades turísticas por meio de mecanismos de cooptação do controle
comunitário. Nas palavras da autora:
“O paradigma do TBC é funcional, que se destina a identificar potenciais problemas e superálos antes que a indústria do turismo seja afetada por reações adversas locais. A comunidade
é cooptada para apoiar o turismo através de uma ilusão de partilha de poder, mas ela não tem
capacidade para rejeitar o turismo como uma opção de desenvolvimento.” (BLACKSTOCK,
2005, p. 41)
Isto permite o reconhecimento das dificuldades de se verificar uma participação equivalente dos
cidadãos num processo de tomada de decisão em função dos diferentes níveis, tipos e formas de
exercício de poder. Além da grande responsabilidade que as instâncias de governo têm por tal questão
por fazerem uso de seu poder para tomar decisões e manipular informações que poderiam apontar
implicações do desenvolvimento das atividades turísticas em comunidades.
Outro exemplo que pode nos servir para analisar a ligação entre as relações de poder e o turismo de
base comunitária é o apontado por Murray Simpson (2008), que faz diferença entre as Iniciativas
Turísticas de Benefício Comunitário (ITBC) e o conceito adotado por Lea (1988) Scheyvens (1999),
Suansri (2003) e pelo World Wildlife Fund (2001) para TBC.
No primeiro, a participação dos membros de uma comunidade nos projetos é condicionada pela
atuação de organizações, que, em última instância controlam recursos e exercício de poder e
influência em uma comunidade. Diferencia-se do TBC pelo nível e intensidade de envolvimento dos
agentes comunitários no desenvolvimento do projeto.
Um aspecto passível de críticas na proposição de ITBCs, em relação aos princípios que reconhecemos
necessários para a realização do TBC, é o distanciamento dos agentes comunitários dos processos de
tomada de decisão na medida em que esses são de domínio das organizações proponentes dos
projetos, e esse fato fragiliza significativamente o amadurecimento político da comunidade.
Na perspectiva das ITBCs as comunidades assumem o papel de stakeholders e são reconhecidas por
governos, organizações não-governamentais e empresas privadas como uma parte importante no
processo de desenvolvimento turístico, mas que não devem deter o controle dos empreendimentos e
99
Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
nem dos recursos necessários para a implementação das iniciativas turísticas. Ou seja, contraria a
definição aqui pretendida de TBC em que reconhecemos a importância e o necessário
comprometimento da comunidade em qualquer proposta de desenvolvimento de iniciativas turísticas
que venham implicar em alterações na sua forma de vida.
Nossa posição defende que o processo de empoderamento comunitário deve atender às necessidades
de desenvolvimento do indivíduo, das instituições locais de interesse público e da comunidade por
meio do exercício da liberdade, da autonomia e da soberania, sendo essas condições básicas para o
desenvolvimento do TBC.
Dessa forma, considerando as diversas possibilidades de relação de poder nas diferentes
comunidades, observamos que não há um modelo de planejamento único que possa ser adotado em
diferentes contextos comunitários, aplicado automaticamente em outro. Além disso, consideramos
ainda que um empoderamento que privilegia e potencializa o exercício de poder tradicional de uma
comunidade pode não ser suficiente para garantir um turismo comunitário equivalente e justo.
Julgamos ser necessária a atenção para transformações dos mecanismos de poder tradicionais que,
ao contrário de proporcionarem o desenvolvimento social requerido pelas comunidades, podem estar
apenas mantendo as posições político-institucionais que garantem aos detentores tradicionais do
poder a manutenção do seu domínio sobre a comunidade.
Outro ponto que nos parece importante ser destacado, e que foi evidenciado por Blackstock no citado
livro, diz respeito ao recorrente enfoque de TBC que privilegia os interesses e os desejos de turistas de
uma classe social com significativo poder de compra em detrimento de classes menos favorecidas; ou
seja, o TBC situa os agentes comunitários apenas do lado da oferta de bens e serviços, extraindo
deles as oportunidades de viverem a experiência de serem eles os visitantes.
TBC e a sustentabilidade
A questão ambiental é de extrema importância para o desenvolvimento do turismo. O discurso
hegemônico aponta o turismo como uma das principais formas de revalorização da natureza, utilizando
os recursos naturais preservados como ativos econômicos. Porém, inúmeros são os casos onde o
crescimento da atividade foi responsável por grandes crimes contra o meio ambiente. Analisando as
iniciativas apoiadas pelo MTur, vemos que 54% dos projetos são realizados no interior ou no entorno
de áreas protegidas.
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) define duas grandes tipologias de unidades
de conservação: as de proteção integral, como parques e reservas biológicas, e as de uso sustentável,
como reservas de desenvolvimento sustentável ou reservas extrativistas. Nas primeiras, o uso dos
recursos naturais é muito restrito e não é permitida a moradia de populações em seu interior; já nas de
uso sustentável é permitida a moradia e o exercício de atividades econômicas em seu interior, desde
que sejam realizadas com planejamento e respeito ao meio ambiente.
Isso se reflete na proporção de projetos de TBC apoiados pelo MTur: 56% estão no interior ou em
áreas de influência de unidades de conservação de uso sustentável. As restrições impostas pelo
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Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
SNUC limitam, mas não impedem o uso racional dos recursos naturais, como nos mostram os outros
46% dos projetos. Em zonas rurais ou até mesmo nos centros urbanos.
Observamos, ainda, a escassez de políticas e de uma legislação que atendam as singularidades das
atividades turísticas de base comunitária em áreas protegidas no Brasil. Embora haja um sistema que
defina regras e normas de uso de unidades de conservação (SNUC), persistem focos de tensão entre
comunidades que habitam áreas transformadas em unidades de conservação por afetarem atividades
tradicionais. A exemplo disso, a construção de canoas de troncos de madeiras nobres por caiçaras que
tinham a pesca artesanal como uma das suas principais atividades.
As questões cultural e ambiental também são relevantes quando analisamos as experiências de TBC
no Brasil. Não se trata apenas de suas expressões relacionadas às lutas sociais. Existe uma forte
relação entre TBC e populações tradicionais e entre TBC e áreas protegidas, sejam elas de proteção
integral (como os parques) ou de uso sustentável (como as reservas de desenvolvimento sustentável).
Para analisar as relações entre o turismo e a sustentabilidade, abordaremos a seguir os trabalhos de
Regina Scheyvens (1999) e de Lisa Hiwasaki (2006) que tratam do desenvolvimento do turismo de
base comunitária, em localidades com potencial para o ecoturismo, condicionado ao empoderamento
comunitário.
Hiwasaki (2006, p. 677) define TBC como um conjunto de atividades que devem objetivar,
primeiramente, a capacitação dos membros comunitários e a apropriação de meios de produção e de
consumo que se dará por meio do empoderamento da comunidade local e da participação ampliada
desses agentes no planejamento e na gestão das atividades turísticas. Em segundo lugar, as
atividades devem proporcionar a conservação dos recursos naturais e/ou culturais da localidade e do
seu entorno, seguidas de ações que potencializem o desenvolvimento econômico e social na área
protegida e ao seu redor e, por fim, que privilegiem um fluxo de visitantes que se comprometam com
as questões sociais e ambientais do local.
Essa definição converge em vários aspectos com os princípios que reconhecemos necessários para o
desenvolvimento do TBC. Entretanto, mais uma vez, sugerimos cautela na perspectiva da conservação
dos recursos culturais, já que uma simples ampliação da participação dos membros comunitários nos
processos de tomada de decisão poderia implicar em uma alteração na cultura de algumas
comunidades.
Outro elemento que julgamos ainda incipiente na maioria das experiências comunitárias, mas relevante
em nossa definição de TBC, é a formação de instituições que atendam a características
antropológicas, sociais e políticas de uma determinada comunidade como um meio de resistir à
instalação de organizações externas constituídas a partir de outro arranjo de interesses que podem
potencializar a resistência da população local e a intensificação de conflitos.
“A comunidade local precisa ser empoderada para decidir quais os tipos de oferta turística e
de programas de conservação do meio-ambiente que querem que sejam desenvolvidos em
suas respectivas comunidades, e como os custos e benefícios do turismo devem ser
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Relatório técnico-científico
Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
compartilhados entre os diferentes atores.” (AKAMA, 1996, p. 573 apud SCHEYVENS, 1999,
p. 246)
O empoderamento social nessa perspectiva se dá na medida em que as ações individuais e coletivas
tiverem como finalidade o desenvolvimento comunitário por meio da estruturação de empreendimentos
turísticos de sucesso e de instituições que tenham impactos sociais positivos, como escolas e
estradas.
E, o empoderamento político de uma comunidade envolvida com o ecoturismo requer a estruturação
de fóruns de discussão comunitários onde são apresentadas e debatidas as necessidades e os
interesses de cada grupo social e, em especial, dos grupos minoritários e marginalizados. No caso de
iniciativas turísticas desenvolvidas em Unidades de Conservação, a atuação de cada grupo social
comunitário em conselhos consultivos ou deliberativos, confirma e fortalece esse tipo de
empoderamento.
TBC e a solidariedade
A abordagem apresentada aqui sobre empoderamento comunitário apresenta-se para nós como um
condicionante para um desenvolvimento de ações planejadas para o TBC por meio de processos
colaborativos.
“Colaboração para o planejamento do TBC é um processo de tomada de decisão conjunta
entre autônomos, as partes interessadas principais de uma interorganização, a comunidade
para resolver problemas de planejamento do seu domínio e/ou para gerir questões
relacionadas ao planejamento e ao desenvolvimento desse domínio.” (Jamal & Getz, 1995, p.
188)
No Brasil, essas definições e conceitos incorporam ainda a noção de empreendimentos comunitários e
o intercâmbio intercultural, como vemos a seguir:
“Toda forma de organização empresarial sustentado na propriedade do território e da
autogestão dos recursos comunitários e particulares com praticas democráticas e solidárias
no trabalho e na distribuição dos benefícios gerados através da prestação de serviços visando
o encontro cultural com os visitantes” (TURISOL 2008)
“O turismo de base comunitária é aquele no qual, as populações locais possuem o controle
efetivo sobre o seu desenvolvimento e gestão, está baseado na gestão comunitária ou familiar
das infra-estruturas e serviços turísticos, no respeito ao meio ambiente, na valorização da
cultura local e na economia solidária” (TUCUN 2008)
Também no contexto das experiências brasileiras o caráter da solidariedade é muito marcante. Isso se
expressa de diversas formas: desde a solidariedade interna na comunidade, com a organização de
empreendimentos coletivos, até a solidariedade entre as experiências, com a organização de redes de
iniciativas que se ajudam mutuamente.
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Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
Há que se ressaltar, no entanto, a diferença existente entre solidariedade e assistencialismo. Este
último pode ser encontrado em diversas experiências do TBC, como por exemplo, nas propostas do
grupo Pro-Poor Tourism, que reúne três importantes institutos de pesquisa em turismo: o International
Centre for Responsible Tourism (ICRT), o International Institute for Environment and Development
(IIED) e o Overseas Development Institute (ODI). Uma análise mais atenta de seus projetos nos
permite dizer que se dedica a ajudar povos menos favorecidos economicamente por meio de
programas de voluntariado, buscando proporcionar um maior contato entre os ricos e pobres do
mundo, de modo a gerar renda a partir do turismo para as populações locais.
“Community-based tourism initiatives aim to increase local people's involvement in tourism.
These are one useful component of Pro-Poor Tourism. But Pro-Poor Tourism involves more
than a community focus – it requires mechanisms to unlock opportunities for the poor at all
levels and scales of operation.” (Pro-poor tourism research group) 3
O TBC situado
Uma das referências mais importante para este relatório é o economista marroquino Hassan Zaoual.
Em um trabalho recente, o autor desenvolve uma argumentação com base na teoria dos sítios
simbólicos de pertencimento (ZAOUAL, 2003; 2006) sobre a tendência de crise no turismo de massa
contemporâneo e argumenta em favor do que designa como turismo situado (ZAOUAL, 2008).
Zaoual evidencia a complexidade das relações sociais quando tratadas a partir dos valores éticos e
simbólicos sustentados pelo homo situs. O homo situs é intérprete da situação, de modo imediato e ao
longo da dinâmica cotidiana; ele é o ser humano social, que pensa e age em dada situação e reflete o
significado do momento, com toda experiência do passado e com toda responsabilidade da mudança
que se impõe. Dessa forma, o conceito de ser humano reflete em sua conduta a cada situação que
vivencia no seu contexto de vida real; ele é capaz de incorporar e enriquecer o tipo idealizado do homo
oeconomicus. (ZAOUAL, 2003, pp. 29-30)
A Teoria dos Sítios Simbólicos de Pertencimento vislumbra uma perspectiva inovadora por reconhecer
a possibilidade de serem elaboradas e implementadas iniciativas diversas de desenvolvimento social
que tomem como valor mais alto os vínculos dos cidadãos com seus territórios, seus espaços de vida.
Segundo Zaoual (2003, pp. 54-55), o conceito de sítio é flexível e pode ser aplicado em múltiplas
escalas e organizações – localidade, bairro, cidade, região, país, tribo, etnia, comunidade tradicional,
profissão, empresa, organização etc -, que podem se combinar e formar um macrosítio, que é uma
constituição orgânica de diversos sítios. Portanto, o sítio integra, assimila e se integra à possíveis
influências do mundo externo.
A demanda pelo turismo contemporâneo está atrelada a uma exigência variável e variada. Exigência
pela qualidade cultural e ambiental. O homogêneo, o degradado, a relação mediada exclusivamente
pelo poder de compra está dando lugar às relações autênticas, às possibilidades de intercâmbio
cultural, de troca de referências e de experiências.
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Extraído do website www.propoortourism.org.uk
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Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
A teoria dos sítios pode ser analisada a partir da percepção dos limites do paradigma hegemônico da
ciência econômica já que ela ressalta os valores de ordem simbólica, cultural e política para as
proposições de desenvolvimento social situado, em detrimento da exclusividade dos valores mercantis
que pautam as relações de troca no mercado de bens e serviços. As diretrizes originadas a partir
dessa teoria são definidas por meio do diálogo dos agentes pertencentes aos sítios simbólicos de
pertencimento. Ou seja, Zaoual (2008, p.2) propõe que esses agentes e as diversas dimensões da
vida humana, e não apenas a dimensão econômica, estejam no centro das atenções para quaisquer
propostas de conhecimento e intervenção na realidade.
A perspectiva do ser humano situado aponta uma crítica aos recortes disciplinares e sugere a atenção
acadêmica por uma plasticidade cognitiva, transdisciplinar, intercultural e capaz de tratar da
diversidade de situações concretas com as quais se depara nas abordagens sobre a vida humana.
Às formas de propriedade e modo de gestão dos empreendimentos nas iniciativas pesquisadas é
diverso, confirmando o que Zaoual (2006) argumenta sobre a diversidade de soluções existentes nas
economias locais, em que as relações simbólicas permeiam as econômicas e vice-versa,
configurando-se assim iniciativas enraizadas, típicas dos sítios simbólicos de pertencimento.
O TBC pensado a partir dessa teoria requer o exercício de dinâmicas sociais que privilegiam princípios
como os de reciprocidade em detrimento das relações estritas de troca por equivalência de valores
mercantis, como é instituído pelo mercado de bens e serviços do capitalismo contemporâneo. Tais
dinâmicas embora requeiram reciprocidade desobrigam o ser humano de corresponder um favor ou
um ato de doação em tempo e modo estabelecidos a priori.
Com base nesses princípios reconhecemos a possibilidade de desenvolvimento de atividades
turísticas em comunidades que detêm aspectos singulares e que vivem sob a iminência constante de
ser afetadas com a presença do agente externo, o turista, que da sua parte se depara com um meio
estranho e detentor de uma história, costumes, tradições e crenças que estabelecem limites a sua
influência.
Essa teoria aponta elementos que configuram princípios de um TBC por salientar a perspectiva de um
desenvolvimento sócio-econômico que não se restringe a uma divisão institucionalizada dos ganhos
oriundos do mercado concorrencial de bens e serviços. E, para isso, faz-se imprescindível o
estabelecimento de diálogos com o homo situs para o detalhamento do conceito de desenvolvimento
que ele valoriza e que tipo de mercado ele se reconhece pertencente.
Portanto, podemos afirmar que para o desenvolvimento do TBC os agentes das comunidades devem
ser reconhecidos como homo situs numa tentativa de romper o racionalismo do homo oeconomicus e
de desafiar a complexidade do seu contexto de vida que, por um lado, exige uma atenção e cautela
ampliadas para as decisões assumidas mais, por outro, amplia significativamente as possibilidades de
inovar e potencializar modos singulares de desenvolvimento sócio-econômico.
Potencial econômico do TBC
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Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
Os aspectos econômicos são considerados em duas perspectivas. A primeira diz respeito aos
benefícios financeiros diretos gerados pela atividade turística. Como em muitas das definições
apresentadas anteriormente, almeja-se que não haja fuga de capital, ou seja, que os recursos
permaneçam nas comunidades. A segunda perspectiva vai ao encontro dos princípios da economia
solidária. Busca-se uma forte articulação entre as iniciativas que praticam o TBC com as redes
estabelecidas de comércio justo.
Segundo alguns autores, arranjos produtivos locais podem dinamizar e enriquecer a economia de
determinadas localidades por meio de produção e venda de produtos artesanais aos turistas. Jeffrey
Cohen (2001) trata deste enfoque a partir de um exemplo de modelo de desenvolvimento sócioeconômico do turismo em comunidade indígena (Zapoteca), promovido por meio de atividade produtiva
gerando renda e lucro; mas reconhece que esse modelo implica na fragilização das relações sociais de
parentesco em favor das relações de negócio. E reconhece os riscos de adoção de projetos e
programas de incentivo à atividade econômica em comunidades locais, apontando que:
Críticas sobre o desenvolvimento de comunidade local para o turismo sugerem que as
estruturas dos projetos são muito homogêneas e deturpam, ou ignoram, a diversidade da
economia local e, em segundo lugar, que os membros mais pobres da comunidade são
ignorados por tais projetos depois de terem sido implementados. (COHEN, 2001, p. 389)
Dessa forma, Cohen aponta que, embora o turismo tenha um grande potencial para o desenvolvimento
de comunidades, o caso de Oaxaca deixa claro os desafios de tal perspectiva por meio do modelo
econômico adotado. Ou seja, o desenvolvimento do turismo de base comunitária não deve se pautar
pela inclusão dos membros comunitários nos projetos baseados no modelo convencional de
crescimento econômico.
Nos casos pesquisados a noção de coletivo é preponderante. Em alguns deles, os empreendimentos
são comunitários e geridos por cooperativas. Em outros, prevalece a organização familiar. Na maior
parte, os empreendimentos ou cooperativas já estão legalmente instituídos ou em fase de legalização,
no entanto, o Brasil não possui um arcabouço legal que ampare as economias comunitárias, como
hoje já é reconhecido em países estrangeiros, como é o caso da Bolívia (BOLIVIA, 2006).
Em nossa perspectiva conceitual de TBC entendemos a economia solidária como mais um meio, ou
uma ferramenta, que potencializará algumas formas de organização e de relação social, em que a
produção e o consumo de bens e serviços poderão ocorrer de maneira inovadora e criativa para
colocar em xeque alguns princípios econômicos clássicos como, por exemplo, a formação de preços.
Dessa forma, o TBC configura-se num potencial arranjo de atividades econômicas que podem ser
exploradas a partir do envolvimento e da participação dos agentes comunitários para a definição dos
modos de operação de tais atividades.
O turismo como indústria
Kirsty Blackstock (2005) faz uma análise crítica sobre o TBC apontando a tendência dos estudiosos
em fazerem abordagens funcionais do envolvimento comunitário no processo de desenvolvimento das
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Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
iniciativas de TBC, da visão simplificadora e homogeneizante que se estabelece sobre uma
comunidade e, também, da fragilidade estrutural, que tem implicações diretas sobre o domínio
comunitário das atividades turísticas.
No estudo realizado pela autora acerca do trabalho de Hall (1996) que aborda o TBC como tema, ela
tece importantes considerações sobre o que é comumente chamado de “indústria turística”. Segundo
Blackstock, a vinculação das iniciativas de TBC aos princípios industriais que predominaram no último
século termina por valorizar a produção e a reprodução de bens e serviços padronizados em
proporções de tempo cada vez menores; ou seja, conduzem as práticas do turismo à produção em
massa, à potencialização produtiva do “mais do mesmo”, levando ao desprezo pela diversidade e pelo
grande potencial inovador das comunidades detentoras de rico acervo histórico, cultural e artístico.
Como já ficou claro, nossa posição valoriza o turismo situado, o lugar do encontro. O sítio, onde se
recebe e é recebido, possui uma especialidade real, histórica e culturalmente construída. Diferente dos
espaços turísticos produzidos, os sítios para serem percebidos como turísticos, antes de tudo são
reconhecidos pelos próprios residentes; uma auto-identificação típica do sentido de comunidade
(BAUMAN, 2003). Cheio de significados próprios, valorizados pela comunidade, e que se coloca
disponível para o intercâmbio.
Não comercializam o que os turistas desejam; disponibilizam o que entendem ser valoroso, em termos
culturais e ambientais. O intercâmbio, as relações são o princípio fundamental do TBC. Assim como
quem busca, está aberto a se adaptar e valorizar os códigos dos lugares visitados. Trata-se, portanto
de um turismo que tem nas relações de hospitalidade a principal motivação.
No entanto, é importante ressaltar que estas opções não excluem o contrato formalizado entre as
partes. Mas é necessário compreender que, neste caso, as relações econômicas são enriquecidas por
outras relações que ultrapassam a racionalidade do lucro imediato.
Redes sociais e o TBC
Conforme Lashley e Morrison (2004), são vários os sentidos da hospitalidade. Trata-se de um termo
polissêmico, todavia, nos dias atuais vem sendo representado por duas vertentes. Uma ligada aos
serviços dirigidos aos viajantes, tais como hospedagem, transporte, alimentação e entretenimento.
Refere-se, portanto, a gestão de serviços com finalidade lucrativa.
A outra vertente dedica-se a compreensão da hospitalidade como um tipo de relação humana de
acolhimento, em que as explicações são tratadas pela filosofia (DERRIDA, 1987; LEVINAS, 1983),
pela literatura (MONTANDON, 2004), pela antropologia (MAUSS, 2003), pela geografia (GOTMAN,
2001; RAFESTIN, 1997), entre outros campos do conhecimento.
As relações de reciprocidade são uma condição necessária – embora não sejam suficientes – para o
desenvolvimento do TBC. Larissa Lomnitz (2009) aborda a organicidade de redes sociais
fundamentadas nas relações de poder e na cultura de cada região e traça importantes considerações
sobre a implicação da solidariedade, da lealdade e da confiança nas atividades informais, que
associamos ao TBC.
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“A sobrevivência é a chave para entender o setor informal. As redes sociais são os
mecanismos amortecedores para enfrentar os problemas tais como falta de vencimentos
permanentes, a carência de serviço de segurança social, enfrentar emergências e o temor de
ser detido devido à prática de atividades ilegais. A confiança é a base de intercâmbio e,
quando as instituições não oferecem garantias para uma estabilidade necessária, surgem,
então, as relações pessoais”. (LOMNITZ, 2009, p. 216)
Apesar de a autora tratar sobre os contextos sociais urbanos, da mesma forma, nossas experiências
em relação ao TBC apontam para a existência da necessidade de relações de troca nas comunidades
que desenvolvem atividades turísticas na intenção de reduzir a escassez de bens e serviços que não
são ofertados por diversos motivos: desinteresse de empresários, ausência do estado, inviabilidade
estrutural de empreendimentos etc.
Grande parte das atividades de TBC pertence ao setor informal e, assim sendo, atividades econômicas
são potencializadas a partir de hábitos tradicionais que, embora não desprezem a competitividade,
realizam as operações de troca em um mercado não regulado. Ou, conforme Lomnitz,
“a economia informal e as redes sociais de reciprocidade baseadas na ajuda mútua e na
confiança constituem, na era global, estratégias fundamentais de sobrevivência para uma
grande parte da população mundial” (2009, p. 31).
Outro aspecto está relacionado à atuação de mulheres nas organizações informais de produção devido
à disponibilidade de um contingente significativo com baixa qualificação e a procura de atividades de
melhor remuneração (Lomnitz, 2009, pp. 202-203).
Estes pontos sintonizam as idéias de Lomnitz às de Zaoual, uma vez que os intercâmbios informais
encontrados nas experiências de TBC contrariam a racionalidade econômica e desprezam o lucro
financeiro em prol de valores tais como apoio político, novos conhecimentos, registros culturais,
interlocução com agentes externos, etc., ampliando e fortalecendo os laços de suas redes sociais.
Por outro lado, quando o intercâmbio recíproco despreza os elementos tradicionais e simbólicos da
dinâmica social de uma determinada comunidade, a relação de reciprocidade tende a se transformar
numa relação de mercado. (LOMNITZ, 2009, pp. 45-46)
Cabe ressaltar que, no âmbito do TBC, as relações de intercâmbio informais são baseadas na
racionalidade situada apontada por Zaoual (2003, p. 58) e atendem a dinâmica apontada por Lomnitz
(2009, p. 51): “Não existem relações de intercâmbio que sejam idênticas ou que permaneçam
invariáveis no tempo, porque a relação se modifica pelo próprio intercâmbio”.
A reciprocidade que reconhecemos ser um condicionante para o desenvolvimento do TBC se
sobrepõem ao intercâmbio de mercadorias porque nela são frequentes as doações e os recebimentos
de serviços que requerem uma outra lógica valorativa para sua compensação; essa lógica não se
baseia necessariamente na definição de valores igualitários e no uso de um meio de troca. Outro fator
a ser considerado nas relações de reciprocidade do TBC é que, diferente de uma relação de troca que
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se encerra ao ser realizada, ela sustenta por tempo indeterminado os vínculos de confiança e
solidariedade entre os agentes.
Portanto, o intercâmbio informal exercido nas comunidades consideradas nesse estudo, atende aos
princípios de solidariedade que cada uma delas valoriza e, através de redes sociais, constitui
mecanismos que compensam as falhas da lei de oferta e procura estruturante da cultura empresarial
dominante no mundo dos negócios.
Tecnologias e o TBC
Para tratar de tecnologias, recorremos ao trabalho de Ivan Illich (1976), que amplia o conceito para
além do restrito mundo da informática ou dos aparatos eletrônicos, abrangendo os meios usados com
a finalidade de transformar a relação entre o ser humano e seu contexto social, incluindo o que chama
de “ferramentas para a convivencialidade”, presentes nos contextos comunitários com potencial para o
desenvolvimento do turismo.
Segundo seu pensamento, as técnicas e as metodologias não podem se sobrepor à autonomia do ser
humano, não podem tornar o ser humano estritamente dependente, nem para o seu domínio nem para
sua servidão, e tais ferramentas devem potencializar a sua ação e sua liberdade. Portanto:
“O ser humano precisa de uma ferramenta com a qual trabalhe, e não de instrumentos que
trabalhem em seu lugar. Precisa de uma tecnologia que tire o melhor partido da energia e da
imaginação pessoais, não de uma tecnologia que o avassale e o programe.” Illich (1976, p.
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O pensamento de Illich nos serve como alerta para os riscos do uso de critérios de produtividade
industriais para contextos que requerem a supremacia da dimensão comunitária. A convivencialidade
exige espontaneidade do comprometimento de cada agente com uma inovação constante das relações
sociais no seu meio. Ou seja, “A produtividade conjuga-se em termos de ter, a convivencialidade em
termos de ser”. (ILLICH, 1976, p. 37)
Baseados em suas teorias, defendemos que o campo potencial de desenvolvimento do TBC deve
garantir espaços para a geração de ferramentas que sejam enraizadas nas culturas locais sem
desprezar o universo tecnológico disponível no mundo contemporâneo.
“Devemos construir – e, graças aos progressos científicos, podemos fazê-lo – uma sociedade
pós-industrial onde o exercício da criatividade de uma pessoa nunca imponha a outra um
trabalho, um conhecimento ou um consumo obrigatório. Na era da tecnologia científica,
somente uma estrutura convivencial da ferramenta pode conjugar a sobrevivência e a
equidade”. (ILLICH, p. 28)
Portanto, o desenvolvimento com equidade e justiça do TBC deve ser elaborado e implementado em
atendimento aos fins estabelecidos pelos membros comunitários e, nesse processo, a liberdade
humana deve ser preservada como forma de incremento da criatividade e da inovação em oposição às
formas coletivas de organização que prezam pela uniformização dos ideais e pela dependência do ser
humano como, por exemplo, os sindicatos e as organizações não governamentais.
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Desenvolvimento humano e o TBC
Os trabalhos que abordam o desenvolvimento social a partir de atividades turísticas tratam a
perspectiva do ser humano de forma superficial e, em geral, restringem a idéia de desenvolvimento
humano aos resultados sócio-econômicos decorrentes dos empreendimentos no campo do turismo.
A autora Luzia Coriolano (2003) defende que um arranjo institucional local bem estruturado é capaz de
viabilizar o desenvolvimento de membros comunitários por meio da atuação destes nos espaços
públicos de convivência e de tomada de decisão. Nas palavras da autora:
“Voltar o desenvolvimento para a escala humana e o turismo para benefício local significa
adotar políticas que possam ocasionar trabalho e ocupação para todos, tanto quanto atuar no
campo da proteção social, e de programas emergenciais quando necessários; mas requer,
sobretudo, o ser humano no centro do poder, de forma que possa promover a sua realização.”
(CORIOLANO, 2003, p. 30)
Essa afirmativa nos permite compreender que o turismo de base local pode atender aos imperativos do
mundo do trabalho e às expectativas de bem-estar social sem incorrer na submissão incondicional dos
princípios econômicos da geração de lucro e do consumo de bens e serviços. Entretanto, sua
colocação apresenta um aspecto frágil que diz respeito ao “ser humano no centro do poder”.
Ou seja, em nossa interpretação, reconhecer o ser humano nessa condição não é suficiente para se
vislumbrar um contexto que minimize a injustiça e as desigualdades sociais.
A atuação do ser humano como protagonista no desenvolvimento da vida comunitária se dá por meio
da liberdade de participar espontaneamente dos processos de tomada de decisão, que implica na sua
responsabilização pelo cenário futuro desenhado e definido como objetivo a ser alcançado. Esse
exercício desejado e difundido numa comunidade resulta no fortalecimento político e institucional do
grupo social.
Relações dialógicas no TBC
O reconhecimento da importância do diálogo para o desenvolvimento do TBC foi tratado no trabalho
Simone Rocha (2003) em que as iniciativas turísticas da Prainha do Canto Verde, no Ceará, foram
tratadas como um caso de referência para o estudo desse tipo de turismo. Em seu trabalho, a autora
aponta o exercício de princípios cooperativos e colaborativos e a sinalização de interesses políticos e
sociais como condutas que condicionam as possibilidades de afirmação da identidade comunitária no
processo de desenvolvimento do turismo para atender às necessidades locais e evitar as práticas
predatórias. (ROCHA, 2003, p. 44)
O turismo vivenciado em comunidades tem em sua essência o que a autora chamou de “ecoturismo
comunitário” (ROCHA, 2003, p. 51), uma associação indissolúvel de fatores culturais com elementos
do ambiente que se expressa na relação entre visitante e anfitriões. Ou seja, uma relação de
proximidade em que a população local se beneficia da sua permeabilidade para incorporar na sua
cultura os elementos que ela identifica como fatores de enriquecimento cultural.
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Por outro lado, a aproximação de visitantes de diferentes origens também pode proporcionar à
comunidade receptora um enriquecimento de sua cultura mais também uma vulnerabilização quando
mal assimilada pela população mais jovem.
Numa perspectiva antropológica filosófica, Rocha (2003) refere-se ao trabalho de Bartholo (2002) 4
para tratar do TBC como um conjunto de ações que requerem uma conduta ética e que privilegiam os
aspectos culturais de comunidades sem anular os aspectos econômicos, desde que esses sejam
fundamentados em valores humanitários e culturais.
Os autores abordam as questões comunitárias inspirados pelo pensador Martin Buber 5 que condiciona
a constituição de uma comunidade no exercício das relações pessoais que ele chamou de Eu-Tu, sem
desconsiderar os elementos técnicos, os interesses e a afirmação de poderes presentes no contexto
comunitário.
O vínculo político da comunidade com o mundo se constitui por meio das respostas que ela dará ao
universo maior em que está inserida. De forma análoga, cada membro comunitário se relaciona com
seu grupo não como um indivíduo, mas, sim como parte de um grande organismo no qual pode
estabelecer relações diretas com diferentes entes. Nessa perspectiva, a comunidade deve ser capaz
de criar novos modos de vida que atendam às expectativas endógenas e anulem as forças externas na
medida em que estas não atendam suas necessidades e desejos.
Portanto, cabe à comunidade decidir que turismo pretende desenvolver em seu meio, quais são os
caminhos a serem seguidos para o desenvolvimento dessa atividade, quais os mecanismos e os
instrumentos que ela escolherá para percorrer tais caminhos, quais elementos está disposta a
negociar, em fim, atuar como soberana para o desenvolvimento do seu meio de vida.
Devemos reconhecer que o desenvolvimento desse processo está longe de ser trivial já que, para
garantir um contexto legitimamente buberiano, há a necessidade de se garantir que a comunidade lide
com a existência de uma pluralidade de idéias e com uma diversidade de possibilidades de interações
interpessoais que, por um lado, complexificam o desenvolvimento do turismo em seu meio, mas, por
outro, amplia as chances desse ser um caminho seguro para o desenvolvimento social e comunitário já
que esse processo se constitui também numa aprendizagem libertária, que potencializa a pluralidade,
a criatividade e as opções integração social sem anular a responsabilidade de cada um sobre os
impactos de suas decisões na comunidade. (ROCHA, 2003, p. 78)
Portanto, a perspectiva apontada por Rocha (2003), fundamentada em Buber, viola as fronteiras
sociológicas para afirmar o sentido de comunidade como um compromisso a ser pactuado entre
turistas e anfitriões e vivido por meio de relações de diálogo, como um caminho de enriquecimento
humano considerando que “não é negada a possibilidade de interferência entre as culturas, mas que
ela aconteça em equidade na afirmação de identidades.” (ROCHA, 2003, p. 79)
4 Nos rastros da razão solidária: saberes e poderes entre Maquiavel e Buber. In: Bartholo Jr. R. S. Passagens – ensaios entre
teologia e filosofia, 2002, Rio de Janeiro: Garamond, pp. 121-134.
5 Filósofo, escritor e pedagogo de origem austríaca que na primeira metade do Século XX dedicou-se aos estudos de
diferentes áreas do conhecimento – filosofia, filologia, germanística, filologia clássica, história da literatura, psiquiatria e
economia. Sua perspectiva filosófica deu ênfase à necessidade do exercício do diálogo e da comunicação como condição de
existência do ente humano. A obra prima de Buber, Eu e Tu, publicada em 1923, consolidou toda sua filosofia ensaiada nos
outros escritos seus.
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Aportes educacionais e o TBC
A partir das perspectivas apresentadas até o momento, podemos inferir sobre a importância do
desenvolvimento de aportes educativos que sensibilizem as novas gerações para a inovação e a
criação de uma economia fundada em princípios mais humanísticos e menos mercantilistas,
privilegiando a solidariedade e a diversificação de formas de organização de trabalho. Além disso, que
proporcione e valorize o aprendizado pelo diálogo nos processos coletivos de negociação e de tomada
de decisão.
Em favor desta posição, contamos com o trabalho de Coriolano (2003) para quem o desenvolvimento
do TBC passa necessariamente pelo aprimoramento e pela ampliação dos processos educacionais
que reconhecem o ser humano como protagonista do seu processo de aprendizagem. Isso implica em
analisar cautelosamente as propostas pedagógicas apresentadas por especialistas em educação e o
potencial educacional que o contexto de vida real proporciona ao ser humano por meio do
conhecimento tácito.
Engrossa essa perspectiva o trabalho de Rocha (2003), que, observando a necessidade do exercício
de princípios cooperativos e colaborativos que fundamentam a identidade comunitária no
desenvolvimento do turismo para atender às necessidades locais, torna-se precípuo o aprimoramento
de processos educacionais que elejam o ser humano como protagonista. Na teoria de Zaoual (2003,
2006 e 2008), esse enriquecimento educacional converge para os interesses dos sítios em que os
membros de comunidades atuam como protagonistas nos processos de tomada de decisão.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, o turismo de base comunitária (TBC) apresenta uma diversidade de definições, conceitos
e abordagens. No entanto, fica clara a sua aproximação com o que Zaoual (2006) chama de processos
situados de desenvolvimento. O desenvolvimento baseado nos recursos materiais e imateriais
disponíveis no sítio, tendo como protagonistas as comunidades locais. Essa pode ser destacada como
a principal característica do TBC no contexto nacional.
A diversidade de histórias, personagens, paisagens e contextos culturais têm influencia direta nos
produtos e serviços ofertados aos visitantes. Os serviços turísticos ofertados em iniciativas de base
comunitária têm seu diferencial na qualidade das relações interpessoais estabelecidas entre os
visitantes e a comunidade local. O Design de Serviços, apoiado numa perspectiva que dá centralidade
às relações interpessoais, diferentemente de outras abordagens que privilegiam aspectos estritamente
comerciais, pode ser uma importante ferramenta para a consolidação e fortalecimento de
empreendimentos turísticos de base comunitária no Brasil.
A organização dos arranjos produtivos socialmente inovadores de base comunitária num sistema em
rede pode potencializar benefícios, revitalizando o tecido social e o meio ambiente em nível local. Mas
não apenas isso. Ela também pode oferecer ensinamentos e condições propícias para "re-aplicar"
experiências em novos contextos e situações.
Nos últimos anos, vimos que o poder público passou a promover algumas ações focadas no
desenvolvimento e consolidação de iniciativas de TBC. As ações governamentais são extremamente
importantes, não apenas pelo aporte de recursos financeiros, mas também pela legitimidade e
visibilidade dadas aos projetos. No entanto, cabe ressaltar que, o aumento da escala de apoio a
determinados empreendimentos pode representar ameaça às atividades, pois podem alterar-lhes a
proporção em que as iniciativas comunitárias acontecem, colocando-as a perder. Vale chamar a
atenção também para o risco de homogeneização dos apoios a partir de experiências exitosas. Ou
ainda, notar para não correr o risco de apoiar muitos casos semelhantes, privilegiando projetos locais
funcionais como se fossem modelos de excelência a serem reaplicados em outras comunidades.
No Brasil, vivemos hoje um momento especial no que diz respeito ao turismo. A captação dos dois
maiores eventos esportivos, a Copa do Mundo FIFA em 2014 e as Olimpíadas de 2016, colocaram o
país na mídia mundial. Os olhares do mundo estão voltados para o Brasil e, com isso, temos a
oportunidade de nos beneficiarmos com um aumento significativo dos fluxos turísticos. No entanto,
experiências do passado nos mostram que para que haja efetivamente um maior benefício para as
comunidades receptoras, o turismo deve ser planejado e gerido de modo a não considerar apenas o
lucro imediato de alguns empresários do setor.
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Parte desse processo de planejamento diz respeito ao perfil do turista que queremos receber. Por
muitos anos, o marketing do turismo brasileiro promoveu as belezas naturais do nosso país e,
principalmente, a conhecida hospitalidade de nosso povo, expressa pelo modo irreverente e despojado
com que levamos a vida. Porém, o sentido de hospitalidade foi deturpado e o que vimos foi uma super
exploração de um imaginário coletivo onde o Brasil é visto como a terra dos prazeres sem limites.
Como consequência, por décadas recebemos turistas de todo o mundo interessados exclusivamente
em aproveitar de forma superficial nossos atrativos, naturais ou humanos. Este modelo de turismo,
comumente conhecido como Turismo de Sol e Mar (ou Sun, Send and Sea), trouxe consigo impactos
sócio-ambientais negativos irreversíveis, como a ocupação desordenada de ecossistemas frágeis
(como dunas, mangues etc.), o crescimento da exploração sexual de crianças e adolescentes, a
especulação imobiliária, a pressão sobre as comunidades tradicionais costeiras, dentre outros.
Escolhas erradas, por parte dos gestores públicos, aliadas à falta de comprometimento por parte dos
turistas com o local visitado, fizeram com que os recursos investidos no setor agravassem ainda mais
as desigualdades em nosso país.
Hoje, temos a oportunidade de reverter esse quadro. Vemos uma mudança significativa nas
campanhas publicitárias oficiais do Governo. A diversidade cultural (gastronomia, artesanato, folclore,
festas regionais, etc.) e natural (praias, cachoeiras, montanhas, florestas, etc.), passam a ser
valorizadas e começam a ser comercializados produtos turísticos apoiados em elementos
genuinamente brasileiros.
Para que essa postura comercial reverta em benefícios reais para as comunidades locais, muita coisa
ainda precisa ser realizada em termos de planejamento e gestão do turismo na escala local, regional e
nacional. Mas se focarmos nossas ações em um mercado mais responsável, podemos ganhar um
grande aliado: o turista.
O turista responsável exige, além da qualidade do produto ou serviço, a qualidade do destino. Desse
modo, aspectos sociais e ambientais passam a ser considerados como centrais na escolha de uma
viagem. O turista responsável não quer que sua opção de lazer seja um vetor de insustentabilidade
para o lugar visitado. Pelo contrário, ele quer, mesmo em seu momento de descanso, contribuir para
melhorar o mundo onde vive.
É importante considerar as possibilidades de inserção de iniciativas de turismo de base comunitária
nesse tipo de planejamento, pelas potencialidades que apresenta para a consideração de questões
como sustentabilidade, partilha de benefícios gerados pelo turismo, participação de comunidades
receptoras no planejamento e no monitoramento das atividades turísticas num sítio tornado destino
receptivo.
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Marco referencial teórico para o Turismo de Base Comunitária
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