JOÃO CARDOSO: dos Contos gauchescos para a História A. F. Monquelat* Valdinei Marcolla** “Vancê nunca ouviu falar do João Cardoso?... Não?... É pena. O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo da Maria Gomes; bom velho, muito estimado, mas chalrador como trinta e que dava um dente por dois dedos de prosa, e mui amigo de novidades.” Vancê agora lembrou? Pois bem, é sobre este João Cardoso, que Simões Lopes Neto eternizou através de um de seus contos, “O Mate do João Cardoso”, que pedimos licença para falar. O nome por inteiro deste “bom velho” era João Cardoso da Silva. Foi um sujeito importante, dono de muitos escravos e senhor de muitas terras, que viveu lá para os lados da Forqueta Grande do Piratini. Dizem que ainda hoje há vestígios, naquelas bandas, do “Rancherio do João Cardoso”. Houve também por lá, em algum lugar de suas terras, o “Paço Geral do João Cardoso”; mas desse, não sobrou rastro. “Também... naquele tempo não havia jornais, e o que se ouvia e se contava ia de boca em boca, de ouvido para ouvido”; menos mal, podia não ter sobrado história alguma sobre o mate que não vinha: “Oh crioulo, olha o mate!”. Enquanto o mate não vem, vamos aproveitar para falarmos um pouco sobre o João Cardoso na história do Continente. * Pesquisador. Dentre os livros publicados pelo autor destacam-se: MONQUELAT, A. F.; MARCOLA, V. O processo de urbanização de Pelotas e a fazenda do arroio Moreira. Pelotas: UFPEL, 2010; e Desfazendo mitos. Notas à história do Continente de São Pedro. Pelotas: Livraria Mundial, 2012. ** Doutor em Educação pela UFPel. A primeira vez que topamos com o nome de João Cardoso foi quando de nosso trabalho sobre o Povoamento de Pelotas, onde, ao escrevermos sobre a história da Sesmaria do Forte de São Gonçalo, dissemos a certa altura: “Por informação do Sargento-mor Francisco Pires Cazado, consta-nos estar o Suplicante estabelecido por compra que fez dos ditos campos, ou por lhe tocar como ajuste de uma Sociedade que teve com João Cardoso”. A informação prestada pelo sargento-mor Francisco Pires Cazado (marido de Mariana Eufrásia da Silveira), atendia ao pedido da Câmara de Porto Alegre, cujo propósito era o de satisfazer a ordem do Vice-rei, que, por sua vez, pretendia atender ao pedido de Sesmaria requerido pelo charqueador Teodósio Pereira Jacome, o qual informara ao Vice-rei, quando da solicitação, “que a ele, suplicante, concederam uns campos de que se acha de posse, e neles fazendo suas charqueadas”. Embora nossas atenções estivessem voltadas para o sesmeiro charqueador Teodósio Jacome, não pudemos, em vista do nome de João Cardoso, deixar de fazer um comentário: “Bem que este João Cardoso poderia ser o João Cardoso do Simões Lopes Neto”. “Oh! Crioulo!... olha esse mate, diabo!” Logo a seguir, e ainda no mesmo trabalho, transcrevemos um texto que a certa altura diz que: “Outro despacho semelhante aos estabelecidos, e do mesmo Marechal Governador, mas também dos dois campos circunvizinhos, pertencentes ao Suplicante, apegando-se a uma posse que teve, por licença do mesmo Marechal Governador, para xarquiar duas mil reses com seu Sócio João Cardoso da Silva”; se, por um lado, acrescentamos ao nome de João Cardoso, o “da Silva”, por outro, perdemos o rastro do João Cardoso. Daí, resolvemos reler o conto de João Simões Lopes Neto, e lá estava uma pista: “O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo da Maria Gomes”. Ora, no Rio Grande do Sul se dava o nome de Passo ao lugar onde se atravessa um rio; passagem, e o nosso João Cardoso da Silva andou charqueando com seu sócio, Teodósio Pereira Jacome, nos campos da região do Forte de São Gonçalo, “que partem pelo Norte com o rio Piratini”; e como ainda hoje é sabido que o Passo da Maria Gomes é lá para as bandas de Piratini, descobríssemos nós quem era a Maria Gomes, e estaríamos novamente nas pegadas do João Cardoso. Bem, mas quem era Maria Gomes? A mulher do Gomes? A filha do Gomes? A viúva do Gomes? Uma dateira? Uma sesmeira? Pergunta daqui... indaga dali... chegamos a uma história de que a tal Maria Gomes, mulher do Manoel Gomes, indo banhar-se no tal Passo, morreu afogada. A partir desta história, saímos atrás do Manoel Gomes; e descobrimos que lá por aqueles meios, havia ele comprado uns campos do capitão José de Azevedo Marques, que dos tais campos tinha apenas a concessão e posse. Esses campos, concedidos pelo Governador do Continente, José Marcelino de Figueiredo, eram sitos junto ao Serro Pelado, dividindo-se pelo Norte com os campos do capitão 242 Simão Soares da Silva; e pelo Sul, com os do tenente-coronel Manoel Marques de Souza; pelo Leste, com os de Luiz Marques; e pelo Oeste, com o rio Piratini; os quais, “teriam pouco mais de uma légua de frente e duas de fundo”. Querendo legalizar tal compra, solicitou Manoel José Gomes, depois de cumprir as formalidades, sua Carta de Sesmaria a Dom José de Castro, Conde de Rezende e Vice-rei do Estado do Brasil, que a concedeu aos sete dias do mês de fevereiro do ano de 1794. Até aí, o rastro esquentou. Faltava saber se a mulher do Gomes se chamava Maria. Prosseguimos na busca, e ficamos sabendo que a mulher do Manoel José Gomes era Rosa Maria da Silva. Fosse ela Maria Rosa da Silva, ficaria mais provável ser ela a própria. Uma porque era Maria; e outra, por ser a mulher do Gomes e por isso a chamarem de Maria Gomes; mas não era. Quem sabe, então, fosse a filha do Manoel Gomes, a tal de Maria Gomes? Verificamos os nomes dos filhos do Manoel José Gomes, e chegamos a estes que aí vão: Joaquim José Gomes (casado com Maria Delfina); João José Gomes (casado com Joana Maria); Luzia Cipriana Gomes e Maria do Rosário. E então, qual delas teria dado nome ao Passo? Na dúvida, procuramos saber se por lá vivera uma outra Maria Gomes. Fizemos uma varredura geral pela circunvizinhança e encontramos um outro sesmeiro, de nome José Rodrigues de Carvalho, que por volta de 1792 havia solicitado, por Carta de Sesmaria, “uns campos, que se achavam devolutos, da parte Meridional do rio Piratini, que tinham légua e meia de testada, sendo está testada no mesmo rio Piratini; e três léguas de fundo; dividindose pelo Norte com o mesmo rio; pelo Sul, com o arroio da Palma; pelo Leste, com os campos do capitão Francisco Corrêa Pinto; e pelo Oeste com os campos de Manoel Fernandes de Melo”, ao Vice-rei, que lhe fez passar a Carta aos seis dias do mês de agosto de 1800. “Oh! crioulo, olha esse mate!” Ao final dos Autos de Medição e demarcação dos campos concedidos ao sesmeiro José Rodrigues de Carvalho, havia um mapa, no qual o Piloto apontou, dentre outros pontos, dois Passos entre “a Forqueta dos Piratinis”, que eram o “Paço Geral do Manoel José [Gomes]”, e o “Paço Geral de João Cardoso”. Ué! perdemos o passo do Passo da Maria Gomes, para encontrar o Passo do João Cardoso; mas, antes de segui-lo, é preciso dizer que o nome da mulher do sesmeiro José Rodrigues de Carvalho era Germana Maria Gomes. Agora nos indagamos: qual deles deu origem ao Passo da Maria Gomes? O “Paço Geral de Manoel José”? Ou o “Paço Geral de João Cardoso”? Agora leitor, dê licença que precisamos ter dois dedos de prosa e tentar tomarmos um amargo com o “bom velho [e] muito estimado João Cardoso”. 243 Já que não tínhamos ressábio algum e queríamos que o homem falasse como trinta ou mais, nosso interesse é que a prosa se estendesse e corresse no tempo, “como água de sanga cheia”. – Bueno seu João Cardoso, e quais são as novidades? Primeiro ficamos sabendo que os campos, de sua propriedade, não eram apenas os campos compreendidos em uma única Sesmaria, e sim formados por quatro sesmarias. – Oigalê! Quer dizer então que o senhor, seu João Cardoso, recebeu quatro graças; e isso era possível, seu João Cardoso? Dentre os papéis, havia um em que ele dizia nunca ter alcançado a graça de uma única braça durante toda a sua vida e que todos os seus campos, os adquirira por compra. “Oh! crioulo! Traz mate!” O primeiro deles, o comprara de um sujeito chamado Joaquim José da Rocha e de sua mulher, Ana Tereza das Chagas, através de Afonso Pereira Chaves. O preço pago pela Sesmaria foi o de “cincoenta mil réis em fazenda seca, pelos seus preços ordinários” e o documento, um recibo particular de venda, foi assinado pelo casal de vendedores, aos “vinte e seis de julho de mil setecentos e oitenta e três”, na Vila de Nossa Senhora dos Anjos. E, a rogo de Ana Tereza das Chagas, assinou José Ignacio da Costa. Logo abaixo do papel de venda, havia um “Pertence esta data de terras a João Cardoso da Silva, por compra que da mesma fiz para o dito, por ordem antecipada para o fazer; e, por verdade, passo o presente por mim feito e assinado. Arroio Grande, 17 de dezembro de 1783. Afonso Pereira Chaves”. A Sesmaria de Joaquim José da Rocha Em requerimento encaminhado ao governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, disse Joaquim José da Rocha, que ele, Suplicante, serviu a “Sua Majestade dezoito anos no Regimento de Dragões e Infantaria Ligeira, onde teve baixa; e, presentemente, se acha com obrigação de mulher, três filhos, dois escravos, algumas reses e animais cavalares, vivendo à mercê, por não ter porção de terras aonde se estabeleça; e, como na Forqueta grande dos Piratinis, logo adiante do Serro Pelado, onde se acham terras devolutas, pede a Vossa Senhoria seja servido conceder-lhe três léguas de terreno, no mesmo sítio, dividindo-se com o torrão, que requer José Luiz da Cunha [...]”. Aos vinte dias do mês de dezembro de 1780, o Governador pediu que o Coronel Comandante da Fronteira desse Informe sobre o requerido. O Informe dado por Rafael Pinto Bandeira, Coronel Comandante da Fronteira, no mesmo dia 20, foi o de que as terras pretendidas, “se acham devolutas”. 244 Em vista do informado, despachou o Governador dizendo que; “Concedo ao Suplicante, sem prejuízo de terceiro, légua e meia de comprido e uma légua de largo no terreno que aponta, com declaração de que, este despacho, só terá vigor não se apresentando outro meu mais antigo, que confira o mesmo terreno. Vila do Rio Grande de São Pedro, 29 de dezembro de mil setecentos e oitenta. Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara”. A Sesmaria de Antônio Inácio Rodrigues Cordova A segunda das sesmarias adquiridas por João Cardoso foi comprada do tenente Ignácio Cordova e sua mulher Josefa Joaquina da Cunha, também por instrumento particular de compra passado de próprio punho do vendedor, onde este diz que, “é verdade que tenho vendido ao Sr. João Cardoso da Silva umas terras, que tenho na Forqueta grande dos rios Piratinis, que compreendem o equivalente de três léguas de comprido e uma de largo; e se dividem por um e outro Piratini até onde se juntam; e pelo lado oposto, se dividem com terras que o mesmo Sr. João Cardoso comprou de José Luiz da Cunha, como melhor se declara na Certidão da Medição; [...], cuja venda temos feito pelo preço de vinte e seis dobles e meio [dobles ou dobrões, era uma antiga moeda de ouro, que valia vinte e quatro mil e quinhentos réis], cuja quantia recebi ao fazer deste [...]. Vila do Rio Grande de São Pedro, 26 de março de 1786. Ignacio Roiz Cordova; Josefa Joaquina da Cunha e, como testemunha, José Batista de Carvalho”. Meses depois da compra, João Cardoso da Silva requereu ao Provedor da Fazenda Real, dizendo que era preciso que o Escrivão lhe passasse por Certidão “o teor do despacho que o tenente Antônio Inácio Rodrigues Cordova obteve, pelo qual se lhe conferiu uma Sesmaria ou Data de terras na Orqueta Grande, entre os dois Piratinis [...]”. Atendendo ao pedido de João Cardoso e despacho do Provedor da Fazenda Real, Domingos de Lima Veiga, Escrivão da Fazenda Real e Matrícula de Guerra da Capitania de São Pedro do Rio Grande, através da Certidão lavrada em Porto Alegre aos 26 dias do mês de novembro de mil setecentos e oitenta e seis, verificou ter certificado que, “revendo os títulos de terras, que se acham nesta Provedoria, pertencentes ao Distrito do Serro Pelado, entre eles se acha o que o Suplicante pede por Certidão, o qual é de teor seguinte: [...]”. Dizia o alferes de Infantaria, Antônio Inácio Rodrigues Cordova, que ele, Suplicante, servia Sua Majestade há dezoito anos e que, presentemente, se achava com obrigação de mulher, alguns escravos e com possibilidades para comprar alguns animais; e, para efeito de melhor poder se estabelecer, pedia que “Vossa Senhoria” fosse servido em conceder-lhe três léguas de terreno da Forqueta grande dos rios Piratinis, no princípio dela, que se achava légua e meia adiante do Serro Pelado. Para melhor atender ao pedido do Alferes, o Governador solicitou, aos vinte dias do mês de dezembro de 1780, que o Comandante da Fronteira, “viesse com o seu informe”. 245 Informou o Coronel Comandante, Rafael Pinto Bandeira, no mesmo dia 20, desde a Vila do Rio Grande, que os campos de que tratava o pedido do alferes Cordova, “se acham devolutos”. Diante do Informe recebido, o governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara decidiu conceder ao Suplicante, “sem prejuízo de terceiro, três léguas de comprido e uma de largo no terreno que aponta”, ressalvando que aquela concessão só teria validade não se apresentando outro despacho dele “mais antigo” que tratasse do mesmo terreno, ficando o Suplicante obrigado a requerer Sesmaria na forma das Reais Ordens. O despacho do governador foi datado em vinte e nove de dezembro de 1780, na Vila do Rio Grande. Nessa altura o leitor deve estar achando que este assunto – “está como o mate do João Cardoso!”; mas é preciso um pouco mais de paciência porque as novidades são muitas e a nós pouco está importando que a galinha tenha já lambido e relambido a orelha. “Oh! crioulo, olha esse mate!” Pegamos o documento de compra da terceira Sesmaria do “seu João Cardoso”; e, dada a clareza e uniformidade da letra, resolvemos transcrevê-lo na íntegra: “Por este, por mim feito e assinado, digo eu, Joze Luiz da Cunha e minha mulher Thereza Ignacia de Jesus, que é verdade que tenho vendido ao Sr. João Cardoso da Silva, umas terras que tenho na Forqueta dos rios Piratinis, que compreendem o equivalente de duas léguas de comprido e uma de largo, e dividem-se pelo lado da mesma Forqueta, com terras que o dito Sr. João Cardoso comprou ao tenente Antônio Inácio; e, pelos mais lados, dividem com terras de João Pereira Chaves, cujas terras houve por Data concedida pela Sr. Brigadeiro Governador deste Continente, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, como consta dos títulos que, com esta, junto entregamos; cuja venda tenho feito ao dito Sr. João Cardoso, por preço de noventa e seis mil réis, que nós aceitamos; a qual quantia recebi ao fazer desta, e dela me dou por inteiramente pago e satisfeito. E, da mesma sorte, lhe faço entrega das ditas terras para que as possua e logre como suas próprias que são e ficam sendo de hoje para todo o sempre, em virtude da presente venda, que quero tenha o seu devido efeito, sem embargo de não ser feita por escritura pública, por não haver aqui Tabelião, a qual me obrigo a fazer-lhe, todas as vezes que houver comodidade para isso; e, para firmeza do que lhe passei esta, por mim feita e assinada, por minha mulher e pelas testemunhas que abaixo vão assinados. Cadeia do Rio de Janeiro, 20 de junho de 1786”. A Sesmaria de José Luís da Cunha Por volta de dezembro de 1780, José Luís da Cunha, mestre carpinteiro, morador da Vila de Porto Alegre, encaminhou requerimento ao Governador da Capitania, dizendo que ele, Suplicante, possuía animais vacuns e cavalares e não tinha 246 campos onde os pudesse criar; e, “porque se acha campos devolutos na Forqueta grande dos Piratinis, logo adiante do Serro Pelado”, pretendia ele, Suplicante, que “V. Senhoria lhe concedesse o terreno de uma Sesmaria, que compreende três léguas de comprido e uma de largo. O Suplicante é criador, tem treze filhos e filhas e tem escravos. Serve a Sua Majestade há trinta e dois anos, acompanhou ao Sr. Conde de Bobadela na Expedição das Missões e, até o presente, não tem obtido graça alguma de terras pelo que, se faz digno do que requer”. José Luís da Cunha encerrava o pedido dizendo que o terreno por ele requerido dividia-se “com o terreno que pede José Ignacio da Costa”. Ao pedido de José Luís da Cunha, o Governador, desde a Vila do Rio Grande, aos 20 dias do mês de dezembro de 1780, solicitou que o Coronel Comandante da Fronteira, apresentasse o seu Informe. No mesmo dia 20, Rafael Pinto Bandeira, Coronel Comandante, também desde a Vila do Rio Grande, respondeu informando que, “os campos de que trata este requerimento estão devolutos”; diante disso, disse o Governador em seu despacho que: “Concedo ao Suplicante, sem prejuízo de terceiro, duas léguas de comprido e uma de largo nos terrenos que aponta, com declaração que este despacho só terá vigor não se apresentando outro meu mais antigo, que confira o mesmo terreno; sendo o Suplicante obrigado a requerer Sesmaria, no termo das Reais Ordens. Vila de São Pedro, 20 de dezembro de 1780. Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara”. “Oh! crioulo! ... olha esse mate!” Antes de darmos continuidade a este trabalho, queremos trazer algumas questões que nos despertaram a atenção, quando da paleografia dos documentos de concessão e compras feitas pelo “seu João Cardoso”. Deve ter percebido o leitor que os pedidos feitos por Antônio Inácio Rodrigues Cordova, Joaquim José da Rocha e José Luís da Cunha, foram feitos e tiveram seus despachos no mesmo dia, ou seja, dia 20 de dezembro de 1780. A letra do requerimento de José Luís da Cunha é a mesma letra do despacho (Informe) dado por Rafael Pinto Bandeira; e a informação que o tenente Antônio Inácio Rodrigues de Cordova dá, quando da venda feita a João Cardoso, em 26 de março de 1786, quando se refere ao confrontante, diz que “pelo lado oposto, se dividem com terras, que o mesmo Sr. João Cardoso comprou de José Luís da Cunha [...]”; a compra das terras de José Luís da Cunha foi feita em 20 de junho de 1786; portanto, Cordova sabia antecipadamente o que, pelo menos documentalmente, não havia acontecido. Estranho, não? Um outro fato é a rapidez com que foram despachados os requerimentos, e todos no mesmo dia; quando, a praxe, era a de verificar, in loco, as afirmações feitas pelo Suplicante, o que não foi feito; pois, Rafael Pinto Bandeira estava em Rio Grande no dia, que é o dia em que deu os Informes. 247 Bem, mas vejamos alguns procedimentos tomados pela comprador João Cardoso da Silva, quanto às suas Sesmarias. Em dezembro de 1785, João Cardoso requereu ao Brigadeiro Governador, que este permitisse e concedesse licença do tenente de Infantaria, Antônio Inácio Rodrigues Cordova, para que fizesse a medição e demarcação das cinco léguas de terreno na Forqueta grande dos Piratinis, uma légua mais ou menos de distância do Serro Pelado, para que, com “mais clareza das suas extremas e rumos pudesse tirar Carta de Sesmaria, na capital do Rio de Janeiro”. Solicitou, também, que o ereo João Pereira Chaves fosse notificado para presenciar a medição, à vista dos documentos e títulos dos terrenos, que o Suplicante, no ato da medição, apresentaria. O Brigadeiro Governador, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, desde o Rio Grande, aos 28 de dezembro de 1785, despachou dizendo que “Convenho no que o Suplicante pretende”. Vimos que o pedido para medir e demarcar os campos de João Cardoso indicavam o nome do tenente Antônio Inácio Rodrigues Cordova para tal ato; e este, era um dos que haviam vendido campos para ele, João Cardoso; outro detalhe que nos despertou a atenção foi o de estar anexado ao processo do pedido da Carta de Sesmaria a medição realizada pelo Tenente, com a data de 20 de novembro de 1785; portanto, um mês e oito dias antes do Governador ter concordado com o que pedira João Cardoso. Prosseguindo no intento de requerer sua Carta de Sesmaria, em petição encaminhada ao Vice-rei, “Diz João Cardoso da Silva, morador no Continente do Rio Grande, que ele é senhor de um terreno com cinco léguas de fundo e uma légua de comprido, em frente, pouco mais ou menos, do lugar chamado de Forqueta grande dos Piratinis; [cujas terras] se dividem por um lado com Manoel José Gomes; por outro, com Balthazar José; por outro, com Manoel Fernandes de Melo; [e que estas suas terras], já se acham medidas e as houve por compra que delas fez a Antonio Ignacio Rodrigues Cordova, a José Luís da Cunha e a Joaquim José da Rocha, como tudo consta dos documentos juntos; e, nessas terras, tem o Suplicante suas criações; e que, para melhor estabelecimento, pede a V. Exª., se digne mandar lhe passar Sesmaria das ditas terras. Espera Real Mercê”. O despacho do Vice-rei, ao pedido, foi o de que o Governador do Rio Grande desse o seu Informe, ouvindo por escrito a Câmara e o Provedor da Fazenda Real. Tal despacho tem a data de 11 de fevereiro de 1791. Atendendo a ordem do Vice-rei, pediu o Governador que o Senado da Câmara e o Provedor da Fazenda Real do Continente dessem os seus informes a respeito. A solicitação estava datada desde o “Povo de São João Batista, 1º de junho de 1791”, com a rubrica de Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara. O Senado da Câmara, em Porto Alegre, aos 11 de abril de 1792, informou ao Governador que, segundo o tenente José Joaquim de Oliveira, constava-lhes, que o Suplicante havia povoado os ditos campos, por compra que deles fizera. 248 Já o Provedor da Fazenda Real, Ignacio Ozorio Vieira, além do já informado pela Câmara, acrescentou, em 19 de setembro de 1792, “que o Suplicante está estabelecido nas terras de que faz menção a Petição retro, e as têm povoado com animais e demais benfeitorias”. De posse dos Informes da Câmara e do Provedor da Fazenda, responde o Governador Sebastião da Câmara ao Vice-rei, Conde de Rezende, nos seguintes termos: “Sendo V. Exª. servido ouvir-me sobre o requerimento junto, em que João Cardoso da Silva pretende obter, por Sesmaria, um ou mais terrenos que possui a título de compras, tenho a honra de informar a V. EXª., que assim, por esta razão, como pela de existir o dito terreno, ou terrenos, dentro dos limites desta Fronteira, posto que não compreenda mais de quatro léguas e meia de extensão, me persuado ser o próprio requerimento fundado em justiça; e, como tal, digno de que V. Exª. lhe defira, concedendo ao mencionado João Cardoso da Silva, com as seguintes confrontações: uns campos, onde se acha estabelecido, sitos na Forqueta grande dos Piratinis que, pelo Norte, se dividem dos campos de Manoel José Gomes, e Balthazar José, pelo rio Piratini menor e o Arroio da Fazenda; pelo Leste, com a dita Forqueta grande, e uma porção do rio Piratini maior, dividindo com Manoel Fernandes de Melo; pelo Sul, com o mesmo Piratini e o Arroio Tamanduá, confrontando com terras de Pedro Chaves; e, por fim, pelo Oeste, com João Pereira Chaves, por duas vertentes que baixam do alto de um rodeio antigo, meia milha a Noroeste de uns pedregais, ou asperezas, e deságuam nos ditos dois Arroios, cujos campos, compreendem três léguas de comprido e uma e meia de largo. [...]. Rio Grande, 22 de julho de 1793. Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara”. Em face da resposta e sugestão do Governador do Continente, o Vice-rei, o Conde de Rezende, ordenou o “Passe Carta na forma que aponta o Governador do Rio Grande. Rio, 7 de outubro de 1793. Conde de Rezende”. E assim sendo e com as mesmas confrontações e dimensões indicadas pelo Governador, foi passado Carta de Sesmaria a João Cardoso da Silva, com “três léguas de comprido e uma e meia de largo”, aos vinte e três dias de outubro de 1793; Carta esta, registrada no Livro 65, que serve de “Registro Geral desta Secretaria de Estado, a fls. 15 verso. Rio, 12 de outubro de 1793. José Pereira Leão, Oficial Maior da Secretaria”. A quarta, e última das áreas adquiridas por João Cardoso da Silva, foi a comprada de José Inácio da Costa e sua mulher, Antonia Joaquina de Jesus, os quais, por instrumento particular de venda, disseram ser senhores e possuidores de uma “Fazenda de campos”, sita na Forqueta do Piratini, com as divisas declaradas na Carta de Sesmaria, “que me concedeu o Vice-rei do Estado [...] e, com todas as benfeitorias, na forma que possuímos, fazendo esta venda, como, com efeito vendidos temos, de hoje para todo o sempre, por nós e nossos herdeiros, ao Sr. João Cardoso da Silva, por preço e quantia contratados e justo de duzentos mil réis, que recebemos presentemente, e que ficamos pagos e satisfeitos, pelo qual, damos plena e geral quitação [...]; e, para a inteira validade deste papel particular de venda, que valerá como Escritura Pública, a qual não passamos por 249 estarmos longe do Cartório, que fica a mais de nove léguas [...], estando desta forma o dito comprador empossado, tanto na posse real e atual como corporal, sem oposição alguma, ficando desta forma por feita, firme e valiosa a sobredita venda, à vista das testemunhas abaixo assinadas. Bom Retiro de Santo Antônio, 20 de janeiro de 1796. José Inácio da Costa; Antonia Joaquina de Jesus; José Balthazar; Luiz Antônio Dias e Domingos Machado de Morais”. A Sesmaria de José Inácio da Costa, que havia povoado uns campos na Forqueta do Piratini, “com licença do Brigadeiro Governador atual, os quais terão légua e meia de frente e duas de fundos; pelo Norte, partem com campos de José Luís [da Cunha]; pelo Sul, com o capitão Antônio Ferreira da Silva; e pelo Este, com Joaquim José Rocha, em os quais campos tem o Suplicante mais de seiscentos animais vacuns e cavalares, lavouras e escravos, [...]”; foi concedida, depois de cumpridas as formalidades legais, aos 13 dias do mês de abril de 1790, sendo a Carta de Sesmaria, assinada pelo Conde de Resende, datada de 15 de setembro de 1790; e “Registrada no Livro 40, que serve de Registro Geral nesta Secretaria do Estado, a fls. 38”. Nova medição e demarcação das terras de João Cardoso Reconhecendo ter havido algumas falhas na medição anterior de suas terras, peticiona João Cardoso, em meados de novembro de 1810, ao Juiz das Sesmarias, pedindolhe que proceda nova medição e demarcação da “fazenda denominada da Forqueta grande, entre os dois Piratinis, para bem da confirmação da sua Sesmaria”. Pediu, ainda, que o Juiz determinasse o dia e mandasse notificar aos ereos e mais partes interessadas, sob pena de revelia. “Distribuída e autuada, proceda-se na medição requerida com o Piloto e o Ajudante da corda do Juízo; e, para se dar início, designo o dia 26 do corrente mês (de novembro) citando-se os ereos e partes interessadas, para comparecerem com seus documentos, sob pena de revelia”, foi o conteúdo do despacho dado ao pedido de João Cardoso. A seguir, pelo meirinho José da Cunha Pereira, foram notificados: Afonso Pereira Chaves e sua mulher, Ana Gertrudes Alváres Pereira; o alferes Bernardo Dias de Castro e sua mulher, Isabel Alváres; Francisca Ignacia de Jesus; Francisco das Chagas e sua mulher, Perpétua Maria; José Rodrigues de Carvalho e sua mulher, Germana Maria; foram citados também, pelo Meirinho, os seguintes agregados de João Cardoso da Silva: Pedro Dias de Oliveira e sua mulher, Ana Maria; Martinho Pais de Oliveira e sua mulher, Catarina “de tal”; Antônio Soares e sua mulher, que se deram por informados de todo o conteúdo do despacho do Juiz, aos 24 de novembro de 1810. “Oh! crioulo, olha esse mate!”, que as visitas estão chegando, diabo. O TERMO DA AGULHA Aos vinte e seis dias do mês de novembro de 1810, nos campos de João Cardoso da Silva, denominados da Forqueta grande dos Piratinis; e, sendo aí, onde se 250 achava o Juiz das Sesmarias, Henrique da Silva Loureiro, com ele Escrivão do seu cargo, adiante nomeado e demais Oficiais do Juízo, mandou ao piloto José de Lemos Dourado Vizeo, que bem e verdadeiramente, debaixo do seu ofício, declarasse se a Agulha com a qual pretendia medir os campos do Autor estava boa, bem zerada e capaz de procurar as direções necessárias, ao que, satisfeito pelo Piloto, foi lavrado o Termo da Agulha. O TERMO DA CORDA “[...], mandou vir o Ajudante da corda, Manoel Antônio da Costa Rocha, e pediu que este, debaixo do seu cargo e perante aos demais Oficiais, medisse a corda com que pretendia proceder a medição, declarando suas braças e qualidade, ao que, trazendo a corda perante todos, a mediram e acharam ter cinquenta braças dez palmos craveiros, cada braça; e, ser a corda de algodão encascado [...]”. A MEDIÇÃO “[...]; e, sendo aí, no lugar da barra de uma sanga, que deságua no arroio do Meio, onde faz divisa com Afonso Pereira Chaves e seu sócio, Bernardo Dias de Castro [proprietários da fazenda do Espírito Santo], pelo autor, João Cardoso da Silva, foi dito ao Juiz, que visto terem sido citados todos os ereos confinantes, bem como todos os seus agregados, que desse início à Medição, apregoando a todos os presentes, se aquela medição judicial prejudicaria a algum dos presentes; tendo sido, pelo Porteiro, na forma do costume, chamados os ereos, estes não ofereceram dúvida alguma, ao que o Juiz mandou levantar no dito lugar da Sanga uma baliza de pedra tosca, que tem no seu comprimento quatro palmos, e de largo um e meio; e dali, mandou o Juiz que dessem início à medição pela costa do arroio do Meio; e sentando o Piloto a agulha, na barra da Sanga, soltou ao rumo de Susudoeste pela costa do arroio do Meio, e, por ali, se mediram cento e quinze braças [...]; e daí, compareceu a viúva Francisca Maria, agregada do Autor, e por ela foi dito ao Juiz que, em virtude de ter sido notificada, tinha a declarar que ali nada tinha de seu, e que plantava a favor do Autor, [...]; e aí, mandou o Juiz parar a medição, por não haver mais tempo [...]”. SEGUNDO DIA DA MEDIÇÃO Aos vinte e oito dias do mês de novembro de 1810, onde se achava o Juiz das Sesmarias, Henrique da Silva Loureiro, mandou que continuasse a medição; “e sentando o Piloto a agulha [...]; até o passo geral da Forqueta grande dos Piratinis; [...], a Norte, quarta de Noroeste, noventa e duas braças até um rancho, que disseram ser do agregado Martinho Pais de Oliveira, o qual, por ter sido notificado, compareceu diante do Juiz e disse que nada ali era seu, e que plantava a favor do autor, João Cardoso da Silva, à vista do que mandou o Juiz prosseguir na medição; [...]; Nordeste, quarta de Norte, seiscentas braças, e ali compareceu Pedro Dias, e perguntado [...]; respondeu que nada ali tinha, senão enquanto o Autor lhe fizesse favor; pois, estava plantando por obséquio dele, Autor, [...]; e o dito Juiz mandou parar a medição, dando-a por finda e me mandou lavrar este Termo, no qual assinou com o Piloto, Ajudante da corda, partes e testemunhas; e eu, Bento Rodrigues Seixas, Escrivão das Sesmarias, o escrevi”. TERMO DE DECLARAÇÃO DO PILOTO Aos vinte e nove dias do mês de novembro de 1810, [...], pelo piloto José de 251 Lemos Dourado Vizeo, foi dito ao Juiz que os campos do autor, João Cardoso da Silva, que ele havia medido, tinham de área superficial, conforme as bases e pontos tomados, constantes destes Autos, trinta e cinco centos, noventa e sete mil duzentas e noventa braças superficiais e que essa irregularidade do terreno e elevação das lombas correspondiam aproximadamente a quatro léguas e meia quadradas, conforme o mapa que apresentava e que as terras se dividem pelo Norte, com o arroio Tamanduá, ou Lageado, e parte do Piratini maior, que divide as terras de Francisco das Chagas e as de dona Francisca Ignacia de Jesus e seus herdeiros; e pelo Leste, com a Forqueta do Piratini maior, que divide as terras de João Rodrigues de Carvalho e de João de Jesus Maria; e pelo Oeste, com a coxilha geral, onde nascem duas sangas; uma, para o Norte, chamada de Rodeio velho, que deságua no arroio do Meio; e a outra, para o Sul, chamada de o Passo da Cruz, que nasce do alto da coxilha do mesmo Rodeio velho, e deságua no Tamanduá, que dividem as terras de Afonso Pereira Chaves e seu sócio, Bernardo Dias de Castro; e, mais não disse e nem declarou [...]”. A SENTENÇA DO JUIZ DAS SESMARIAS “Vistos estes Autos de Medição, a requerimento de João Cardoso da Silva, e etcétera: dos mesmos se mostra ter-se praticado a dita Medição com as solenidades de Direito, e sem prejuízo de terceiro nem oposição alguma e dentro das divisas materiais e confrontações expressadas na Sesmaria transcrita no documento a folhas quatro, achando-se a área que denota o Piloto na declaração a folhas treze, de trinta e cinco centos, noventa e sete mil duzentas e noventa braças superficiais que, atendendo a irregularidade do terreno e elevação das lombas, correspondem a quatro léguas e meia quadradas cada uma; vindo assim a exceder a légua de frente e três de fundos, que permite o Foral das Sesmarias; portanto, julgo firme e procedente a mesma Medição, na parte que corresponde à extensão de uma légua de frente contra três de fundos, conforme o Foral; e, as sobras, sem impedimento para o Autor poder requerer a Sua Alteza Real, a ampliação e confirmação, se o mesmo Real Senhor for servido, visto que na Sesmaria se acha concedido légua e meia de frente com três de fundos, que excede ainda ao terreno medido, estando todo aproveitado com gados e lavouras, pelo Autor. Pague o mesmo as Custas ex causa e ao Piloto, distinguindo no Mapa, com uma linha em direção do lugar do marco do peão ao Piratini maior pelo lado oposto à situação das casas do Autor, à excessão do terreno equivalente à légua de frente e três de fundos e as sobras; para perfeito conhecimento e indicação dos mencionados terrenos. Porto Alegre, 16 de janeiro de 1811. Henrique da Silva Loureiro”. Vimos que um dos notificados para assistir a medição requerida por João Cardoso era Pedro Dias de Oliveira; e que este, por sua vez respondeu, quando perguntado pelo Juiz que procedeu a medição, “que nada ali tinha, senão enquanto o Autor lhe fizesse favor; pois, estava plantando por obséquio dele, Autor”. Bem, depois do ato de medição e visto que as terras de João Cardoso eram maiores do que o “permitido” pelo Foral das Sesmarias, tratou o agregado Pedro Dias de Oliveira, dizendo-se casado, morador no Continente e alegando não ter terras onde pudesse empregar-se na lavoura e criação de gados, daí ter-se agregado à “Estância de João Cardoso da Silva, na Forqueta grande do Piratini, estabelecido em terras, “que o mesmo então chamava de suas; porém, passando o dito João Cardoso a fazer 252 medir a referida Estância, no ano próximo passado de 1810, para obter a confirmação de seu título”, foi visto que o campo tinha quatro léguas e meia quadradas, por cujo motivo, o Juiz das Sesmarias, que procedeu a medição, “mandou, em sua Sentença, que o Piloto distinguisse no Mapa, por uma linha de divisão, a légua e meia de sobras, seguindo o rumo competente do Marco que serviu de peão, em direção ao rio Piratini, apartando o terreno correspondente a uma légua de frente com três de fundos, o que tão somente julgou, por Sentença, pertencer ao Sesmeiro, ficando assim o estabelecimento do Suplicante fora desse indicado terreno; e porque o Suplicante nunca teve por graça terra alguma, e nem as possui, tendo possibilidades e escravos para as cultivar e aproveitar aquelas sobras; e em nada é prejudicado o Sesmeiro, por se achar inteirado e completo do terreno, segundo o seu Título e o Foral; sendo outrossim, solteiro e de idade decrépita”, recorria a V. Exª., para que se dignasse conceder aquelas sobras indicadas de légua e meia quadrada, cada uma, na estância denominada da Forqueta grande do Piratini, principiando no Marco do peão de João Cardoso, que era no arroio chamado do Meio, onde dividia com a estância do Espírito Santo, pertencente a Afonso Pereira Chaves e Bernardo Dias de Castro, à extrema destes e o arroio do Tamanduá, que divisava com a Estância dos herdeiros e a viúva de Manoel Gonçalves da Silveira, até encontrar o Piratini, descendo por este, “até a linha de divisão que deve ser lançada, para separação das ditas sobras [...]”. Aos 31 de outubro de 1811, o Vice-rei, quanto ao pedido de Pedro Dias de Oliveira, despachou dizendo que a solicitação deveria ser feita ao Governador da Capitania do Rio Grande. Nem bem terminado o pleito judicial travado com Pedro Dias de Oliveira, no qual João Cardoso teve seus direitos garantidos, eis que surge em suas terras, sem darlhe tempo para gritar, “Oh! crioulo, olha esse mate!”, a indesejável visita do alferes Jacinto Jorge de Campos, que vai logo atestando que, “em observância do Despacho retro do Ilmo. Exmo. Sr. Marquês de Alegrete, Governador e Capitão General desta Capitania, em nomeação que tive do Coronel Comandante Interino da Fronteira, Teles José de Matos Pereira e Castro, em Ofício com data de 10 de agosto do presente ano, passei no lugar denominado Forqueta dos Piratinis, onde se acha sita a estância do Juiz das Sesmarias, Francisco de Souza Maia, sendo presentes os ereos confinantes Afonso Pereira Chaves e João Cardoso da Silva, lhes fiz ver bem e claramente o Título de Concessão, que das mencionadas terras tem o dito Francisco de Souza Maia, conforme ato de 13 de agosto de 1814, assinado pelo Ilmo. Exmo. Sr. Dom Diogo de Souza, e dei posse a Francisco de Souza Maia, Juiz das Sesmarias desta Fronteira, das terras concedidas na Carta de Sesmaria, com as divisas que compreendem do Marco do peão do ereo João Cardoso, no arroio do Meio, onde se divide com o ereo Afonso Pereira Chaves e o arroio Tamanduá, que divide a estância do falecido Manoel Gonçalves e tem contrário o Piratini; e descendo por este a encontrar com a linha de divisão e separação das terras do mesmo ereo, João Cardoso. E, por ser verdade, passei a presente que assinei com as testemunhas abaixo. Forqueta do Piratini, 20 de agosto de 1815”. A seguir, estavam as assinaturas de Jacinto Jorge de Campos; Afonso Pereira Chaves; João Cardoso da Silva; o tabelião, Joaquim José de Castro Campelo; João de Castro do Canto e Melo; Maurício Inácio da Silveira e José Maria Jorge. 253 Dois dias após a visita do Alferes, João Cardoso vai até a Vila do Rio Grande; e lá, no escritório do tabelião Joaquim José de Oliveira Borges, faz a entrega de uma petição, pedindo ao Tabelião que a aceitasse e autuasse, para “efeito de se prosseguir na assinatura do Termo de Reclamação e Protesto”; ao que, estando a Petição com o devido despacho, e sido encaminhada pelo Distribuidor do Juízo, a “aceitei e autuei, cujo conteúdo, é o que adiante se segue: Diz João Cardoso da Silva que, sendo na tarde do dia de sábado último, dezenove do corrente mês de agosto, se apresentou ao Suplicante em sua Fazenda da Forqueta grande do Piratini, quatorze léguas distante desta Vila, um Alferes do Regimento da Ilha de Santa Catarina, cujo nome o Suplicante ignora, apresentando um papel, sem lhe dizer nem dar ocasião de ver o que continha, nem ao que se dirigia, e ordenou ao Suplicante que o assinasse, apontando que assim o determinava o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Marquês, Governador e Capitão General; e, deste modo, extorquiu do Suplicante a assinatura no dito papel, que realmente não sabia o que continha, de maneira que, só depois de assinado é que se lhe indicou ser uma posse, que se dava, sem dizer qual parte da Fazenda [...]. E porque, não convindo, como desde já protesta o Suplicante, não convir com o dito papel, nem na posse ou qualquer outro ato, que por ele se haja dado ou celebrado; requer o Suplicante a Vossa Mercê, se sirva mandar que, distribuída e autuada, esta, se lhe tome Termo de Reclamação e Protesto, que faz contra o referido papel, assinatura e efeito a que se dirija, para que, em tempo algum ou por nenhum outro modo o prejudique; e que, tomado o dito Termo, com o competente número de testemunhas, se julgue por Sentença; e, julgado que seja, se dê ao Suplicante os instrumentos que por qualquer via lhe cumpra pedir. Pede Vossa Mercê, Senhor Juiz Ordinário, seja servido assim o deferir-lhe, e receberá mercê”. Serviram de testemunhas, Francisco Gonçalves Ferreira e João Francisco A. Chaves. A SENTENÇA “Aos vinte e seis dias do mês de agosto de 1815, nesta Vila de São Pedro do Rio Grande, em meu Escritório, por parte do Juiz Ordinário, capitão José Tomás da Silva, me foram dados estes Autos, com a sua sentença retro-Julgo, por Sentença, o Termo de Reclamação e Protesto, a folhas dois verso, dado o direito de qualquer parte; e mando se dê o Instrumento requerido pelo Suplicante, que pagará as custas. E eu, Joaquim José de Oliveira Borges, Tabelião, o escrevi.” “Oh! crioulo, olha esse mate!” A concessão das “sobras” a Francisco de Souza Maia As chamadas “sobras” da Sesmaria de João Cardoso, que sobras não eram, pois as havia adquirido por compra feita ao sesmeiro anterior, foram concedidas ao juiz Francisco de Souza Maia, em 13 de agosto de 1814, por Dom Diogo de Souza que, “achando-se na Fronteira do Rio Grande uns campos pertencentes a João Cardoso da Silva, entre a Forqueta grande do Piratini e os arroios Tamanduá e o do Meio, há sobras nas quais possa estabelecer uma Fazenda de criar 254 gados, pedindo-me lhas concedesse por Sesmaria, para possuí-las com legítimo Título; e, atendendo ao seu requerimento, as diligências do Estilo, a que se procedeu, informação da Câmara respectiva mais a do Doutor Ouvidor Geral da Comarca e o Desembargador Procurador da Fazenda Real desta Capitania, aos quais não se ofereceu dúvida alguma, hei por bem, em conformidade [...]”. Aos 6 dias do mês de junho de 1815, o Juiz das Sesmarias da Vila do Rio Grande, Francisco de Souza Maia, peticiona ao Governador, dizendo que tendo obtido a graça, por Sesmaria, do Exmo. Governador antecessor, das sobras da estância de João Cardoso da Silva, conhecidas pela medição que dessa se fez, conforme Carta de Sesmaria que anexava, queria entrar na posse das ditas terras como proprietário, “o que já não tem feito, por não dever ser Juiz em causa própria e pelas ocupações do seu emprego”; por isso, requeria, em vista do título incluso, que lhe mandasse dar posse delas, não havendo outro embaraço, a não ser o de que, no futuro, não dissessem que o fez valendo-se de sua jurisdição; portanto, pedia que o Governador fosse servido mandar que o Comandante da Vila ou do Distrito desse posse ao Suplicante; daí ter ocorrido a visita do Alferes as terras de João Cardoso. As ações e a grande revelação feita por João Cardoso quanto à Indústria Saladeiril O passo seguinte de João Cardoso, depois de ter lavrado o seu protesto, foi o de peticionar ao Vice-rei, dizendo que na conformidade das régias determinações de S. A. Real, pela Mesa do Desembargo do Passo, “tenho a expor a V. Exª., para ser presente ao mesmo Real Senhor, pelo dito Régio Tribunal, que os campos que fazem objeto da Petição de Francisco de Souza Maia, me pertencem diretamente pelo legítimo Título de domínio e posse em que deles me acho, desde antes de 1793, em cujo ano, fazendo ver ao Ilmo. e Exmo. Vice-rei, que então era, o havê-los comprado, a vista do que, se me passou Carta de Sesmaria deles, constante dos documentos de nos 1 e 2, em virtude da qual, foram medidos e demarcados judicialmente; e assim, se me deu posse no mesmo ano, como se vê dos ditos documentos; depois do que, para evitar dúvidas e pleitos com José Inácio da Costa, que tinha uma Sesmaria debaixo das mesmas confrontações, fiz-lhe compra dela em 1796, como se mostra dos mesmos documentos; sem, contudo, aumentar a extensão do meu prédio, já medido e demarcado. De então para cá, me conservei sempre pacificamente na referida posse e domínio, sem a mínima contradição, até o ano de 1810, em que apareceu o Juiz das Sesmarias, Henrique da Silva Louzada, o qual, ou por abusar da minha rusticidade e singeleza, ou pelo que quer que fosse, procedeu a uma nova medição nos mesmos campos; e apesar de reconhecer que não havia mais campos do que aqueles que rezavam no meu referido Título de Sesmaria, e que os tinha todos aproveitados com gados e lavouras; por mero arbítrio seu, mandou fazer-lhe uma divisão, separando o que excedia, com uma légua de frente e três de fundos, para o lado em que havia um agregado meu, Pedro Dias de Oliveira, para cuja parte ficou uma légua de largo com outra e meia de comprido, que é o mesmo que, indevidamente, veio a obter por Sesmaria, no ínterim em que eu solicitava a confirmação do total daquela mesma Sesmaria, e que promovia 255 um pleito contra o mesmo Pedro Dias, para o expulsar, como, com efeito o expulsei dali, por verdade de uma Sentença proferida com pleno conhecimento de causa; e que, à vista dos documentos que apresentei em juízo, e das provas testemunhais, constantes do documento de nº 3, se reconheceu e julgou judicialmente o meu direito de domínio e posse, o que não podia e nem poderá jamais ser nociva aquela medição, sinistramente feita e apoiada pela insubsistente sentença proferida por aquele Juízo das Sesmarias, a qual, aparece inserta nos documentos de nos 1 e 2 e que, com sólidos fundamentos ficou destruída, pela que se proferiu contra o dito Pedro Dias, confirmando e destituindo ao seu inteiro vigor e devido cumprimento, a que se pronunciou sobre a primeira medição feita em 1793, como se vê dos mesmos documentos, sendo de notar que, assim como à capa da arguida 2ª. medição, quis o tal Pedro Dias levantasse com a mesma propriedade; assim, também pode o Suplicante conseguir a sua Sesmaria, a cuja essa predicam, e aos seus efeitos me opus, pelos restritos meios que se me patentearam, como se mostra no referido 2º documento, logo no seu princípio, mostrando-se pelo de nº 4, que sendo eu constrangido militarmente a prestar a minha assinatura, a uma posse, que por esse meio se deu ao Suplicante [Francisco de Souza Maia], e que logo a reclamei pelo judicial, único meio e legítimo, protestando contra a mesma posse, e quaisquer efeitos que pudesse vir a ter. A dizer o Suplicante [Maia], em sua petição, que está fazendo medir a dita sua Sesmaria, é uma falsidade escandalosíssima, com a qual, denodadamente se propôs a enganar a S. A. Real, pois não consta, nem ele jamais mostrará com verdade, ter dado sobre isso um só passo pelos campos, que o mesmo Real Senhor tem ordenado suas previdencíssimas Leis, contra a expressa determinação das quais tem só cuidado em meter-se de posse dos terrenos em que está por um meio ilegítimo, e até clandestino, postergado a dúvida forma estabelecida nas mesmas Leis, que ele desconhece ou pretende conculcar. Nem é menos falsidade que dissesse que eu agora ando requerendo as mesmas terras já concedidas a ele; porquanto, o que diligencio é unicamente a régia confirmação da mesma Sesmaria antiga, já verificada nos próprios terrenos, que os tenho, por compras de um conjunto ainda maior, e que não se preencheu, por não haver no lugar a extensão correspondente às mesmas compras, por cujo meio é que tenho feito o meu estabelecimento; pois, que nunca tive concessão alguma por graça, sendo eu, um dos mais antigos colonos deste Continente; e o primeiro que nele, à minha custa, erigi Fábrica de Carnes de charque, que tanto tem cooperado para o seu aumento; [grifos nossos] tendo-me oferecido e ido pessoalmente em defesa da Fronteira, com gente minha, montada, armada e municiada, também à minha custa; tendo, de mais a mais, soldados militares, com grande dispêndio meu, e tendo dado, também, gratuitamente, um grande número de cavalos mansos, bestas e bois; assim como, uma avultada contribuição pecuniária, para suprir as precisões do Estado e defesa da Coroa, como se mostra do documento de nº 5, cujo original tenho remetido para a Corte, para ser apresentado a S. A. Real, em requerimento que faço sobre este mesmo objeto, de cuja verdade, também pode V. Exª. se informar aqui por quaisquer pessoas fidedignas, e que tenham juízo de o saber. 256 À vista pois do que venho de expor, confio que V. Exª. se persuadirá e confirmará perante o mesmo Augusto Senhor, que a Petição do Suplicante é tão capciosa, como falta de circunspecção; e que, por isso, deve ser desatendida. É o quanto, por hora, se me oferece a dizer. Rio Grande, 10 de janeiro de 1816 - João Cardoso da Silva”. Na petição encaminhada ao Vice-rei, disse João Cardoso ser “um dos colonos mais antigos deste Continente”; tal afirmação deve ser entendida como um dos colonos mais antigos, a partir da retomada da região (1776); mas, o mais importante, é a afirmação feita quanto a ter sido ele o “primeiro que nele (Continente), à minha custa, erigi Fábrica de Carnes de charque”. Vejamos o que mais tem João Cardoso para nos dizer sobre este seu pioneirismo na indústria saladeiril do Continente do Rio Grande. “Oh crioulo, olha o mate!” Em correspondência enviada ao Comandante da Fronteira do Rio Grande, Manoel Marques de Souza, com o propósito de o mesmo atestar suas atividades no Continente, disse João Cardoso que, sendo senhor e possuidor de uma estância no Piratini, com quatro léguas e meia de extensão, que houve por compras feitas de maior computo, o que não pôde se concretizar, por não haver terreno que preenchesse tal, como aconteceu também a outros vizinhos; acontece que, tendo Francisco da Silva Maia alcançado obter subrepticiamente Sesmaria de légua e meia de campos, que pediu por devolutos, dentro dos limites do Suplicante, e querendo verificar a referida concessão, sem proceder medição e demarcação judicial determinada pelas Leis do Reino, sem a qual, e sem aceitação e cabal convencimento do Suplicante, nunca podia e nem devia entrar na posse dos mesmos campos; pôde obter, que contra toda a Lei e Direito, se lhe fosse dar posse por um Oficial militar, pelo qual, sendo o Suplicante constrangido a assinar um papel, que devia respeitar a mesma posse, que apenas se inculcava ser por determinação superior, imediatamente veio a esta Vila, reclamar, como com efeito reclamou perante as justiças de S. A. Real, a assinatura que tinha prestado, protestando contra ela, contra a tal posse e contra toda e qualquer nota que se lhe fosse prejudicial, como se mostra do documento junto. “Depois do que, aconteceu também, que indo o Suplicado fazer ali um pequeno rancho, e aparecendo o dito logo derrubado, passou a fazer, ao Ilmo. e Exmo Sr. Marquês Governador e Capitão General, uma petição toda capciosa, queixandose ele, que não tendo o Suplicado feito oposição à dita posse, e, certo dela, passara a arrasar o tal rancho, que apelida de casa: e, pretendendo comprovar isto, com uma atestação de um Sargento-mor, Comandante do Distrito; e com uma inquirição de títulos, ordenada por V. Exª; tudo de desvanece, e não pode produzir efeito algum contra o Suplicante; pois, mostrando-se pelo referido documento, o ter-se logo oposto na expressada posse e assinatura, protestando contra uma e outra causa, pela melhor forma de direito; e, sendo bem notório, que o Comandante do respectivo Distrito não é o indicado Sargento-mor; mas, 257 sim o Capitão, ou Tenente Romão Garcia; é, igualmente, bem sabido por todos que o querem saber, que conforme as Leis e Direito do Reino, todas as testemunhas que são originadas contra alguma parte, sem esta ser ouvida, nenhuma prova fazem; e, ainda que fosse verdade ter sido o Suplicante quem arrasou ou quem mandou arrasar o dito rancho, não faria nisto, se não o que justamente lhe é permitido pelo Soberano que, pelas suas Leis, é expressamente outorgado aos seus vassalos, a faculdade [...]. E, como sendo cometida a V. Exª. a execução do referido despacho, não é o caso de tanta urgência, que se lhe dê o respectivo cumprimento, sem se atender a quaisquer legítimos obstáculos que ocorram: requer o Suplicante, que a bem da justiça e equidade, como é de presumir, queira sempre proceder o mesmo Ilmo. e Exmo. Senhor, digne-se V. Exª. fazer tornar à sua respeitável presença a petição do Suplicado, como esta do Suplicante e seu anexo; para que, à vista do exposto, haja o dito Senhor de deliberar, com mais cabal conhecimento da causa: ficando, no entanto, suspensa a referida execução, por não se dar perigo nem prejuízo algum na demora; e, dignando-se também V. Exª., informar ao mesmo Senhor, [“Oh! crioulo!... olha esse mate, diabo!”, que as novidades estão chegando], que o Suplicante é um vassalo benemérito, pelos bons serviços que tem prestado a S. A. Real; que não tem outras terras, senão aquelas quatro léguas e meia compradas; e que é um dos mais antigos colonos deste Continente, que em grande parte lhe deu o seu aumento e auge em que se encontra, por ter sido ele, [João Cardoso], o primeiro que instituiu, aqui, a fábrica de carnes de charque, dando aos demais as idéias e noções necessárias para o [desenvolvimento] de um ramo tão vantajoso ao Estado e bem comum, o que é bem conhecido por V. Exª.; e não deixará de fazer ao Suplicante digno de contemplação do Ilmo. e Exmo. Sr. Marquês Governador e Capitão General. E R. Mercê. João Cardoso da Silva” (grifos nossos). A resposta do Comandante da Fronteira a João Cardoso da Silva “Não estou autorizado para tomar conhecimento de pleitos litigiosos, e nem para infringir ordens superiores; as quais, devo fazer executar. Não terei dúvida a atestar o que relata o Suplicante, por ser verdade; e, acrescentarei ainda mais, que no ano da guerra de mil oitocentos e um com os confinantes espanhóis; foi, sem ser chamado, armado, montado e municiado; levando seis dos seus dependentes da mesma sorte, a unirem-se à Coluna que defendia a entrada do Exército dos inimigos, pelo Jaguarão; conservando efetivamente, até levar-se o dito Exército; porém, presentemente, deve executar as determinações do Ilmo. Exmo. Senhor Marquês Governador e Capitão General. Rio Grande, 20 de janeiro de 1816. Manoel Marques de Souza.” João Cardoso, não satisfeito com a resposta dada ao seu pedido, peticiona novamente ao Marques de Souza, dizendo que, a bem de sua justiça, e para instruir requerimento que tem a fazer, necessita que se lhe faça a graça de atestar, se era ou não verdade, “que ele é um dos mais antigos colonos existentes 258 nesta Capitania; que foi o primeiro que estabeleceu aqui a fábrica de charques, trazendo, para isso, mestres à sua custa, no ano de 1780; que na guerra de 1801, sendo esta Fronteira atacada por um exército espanhol, voluntária e imediatamente se incorporou o Suplicante às nossas tropas, montado, armado e municiado, com seis pessoas, dos seus dependentes, igualmente prontos e à custa [do Suplicante] com os quais se conservou efetivamente no nosso Exército, até o fim da Campanha; que fardou, à sua custa, doze soldados da Tropa de Linha, no que, despendeu trezentos e oitenta e nove mil réis; que deu gratuitamente para o Real Serviço trinta cavalos; que, para uma contribuição voluntária, erigida por Sua Alteza Real, entrou o Suplicante com quinhentos e tantos mil réis, em uma Letra, que lhe devia a Real Fazenda; que, ultimamente, para a Campanha do Exército Pacificador, contribuiu também com uma avultada porção de animais vacuns e cavalares; e que nunca houve concessão alguma de terras, por graça; nem alguma outra mercê, de maneira que os campos que possui, na extensão de quatro léguas e meia, todos houve por compra que fez de um conjunto maior, que não veio a verificar-se na sua totalidade, por faltar terreno, em que se inteirasse, como tem acontecido a outros vizinhos; o que é tudo notório a V. Exª., de quem, por isso, se implora e espera a graça da Atestação, que se precisa para, autenticamente, mostrar a verdade de todo o expendido. E. R. Mercê. João Cardoso da Silva” (grifos nossos). Nova resposta de Manoel Marques de Souza Manoel Marques de Souza, Comendador da Ordem de São Bento de Aviz; tenente-coronel dos Exércitos de Sua Alteza Real e Comandante da Fronteira do Rio Grande do Sul: “Atesto ser verdade muito exata o quanto relatou o Suplicante João Cardoso da Silva, umas coisas por ser eu o encarregado; e outras, presenciado. Passo o referido, na verdade, o que assino; e, para constar, mandei passar a presente, indo por mim, somente, assinado e selado com o Sinete das minhas armas. Rio Grande de São Pedro, 23 de janeiro de 1816. Manoel Marques de Souza”. Após a assinatura de Marques de Souza, havia uma nota com o seguinte teor: “A respeito dos trinta animais vacuns e cavalares, que o Suplicante indica ter dado para o Exército Pacificador, sei que os deu; mas, não a quantidade de cavalos e bois; o que deve declarar quem os recebeu. Souza”. Diante das ações tomadas por João Cardoso, a Provisão para medir e demarcar as “sobras” concedidas a Francisco de Souza Maia foi suspensa diante da dúvida surgida no Escrivão da Câmara, que peticionou ao Vice-rei informando que, dado o fato de não terem retornado os documentos da Capitania do Rio Grande, dentre eles o que deveria ouvir a João Cardoso; portanto, “parece-me haver alguma subrepção neste último requerimento [o de Maia], sobre o qual, V. Majestade decidirá o que lhe parecer. Rio, 1º de agosto de 1816. Bernardo José de Souza Lobato”. Dado vistas ao Procurador da Coroa, disse este que a dúvida do Escrivão era procedente, “e deve esperar-se pela Informação”. 259 Sabedor do ocorrido, Maia peticiona dizendo-se informado da suspensão da Provisão e argumenta, “que sem medir e demarcar, por tratar-se de questão sobre terras e sobre sobejos delas, cuja quantidade, só a medição determina”. Mas não obteve êxito e o processo se arrasta, pelo menos até o ano de 1819 quando, aos 15 dias de julho, o Procurador da Coroa, diante de nova petição de Maia, dá o seguinte despacho: “Deve o Suplicante esperar a decisão da controvérsia, que versa entre ele e João Cardoso da Silva, acerca da Sesmaria de que se trata, e que por despacho desta Mesa, se mandou remeter ao Juízo dos Feitos da Coroa e Fazenda, para nele se discutir e decidir legalmente. Deve-se, outrossim, remeter ao mesmo Juízo dos Feitos da Coroa, o requerimento e mais papéis juntos de Bernardo Dias de Castro, como herdeiro e testamenteiro do sobredito João Cardoso da Silva, os quais fazem parte daqueles outros já remetidos, para se unirem a eles e auxiliarem a justiça na decisão, que sobre este negócio se houver de proferir naquele Juízo”. Como se pode ver, João Cardoso morreu sem saber da sentença final; tampouco nós conseguimos apurar se foi ela favorável ou não a João Cardoso. Bernardo Dias de Castro, herdeiro, lindeiro e testamenteiro de João Cardoso era seu sobrinho. João Cardoso partiu, com certeza sabendo que a Justiça, já naquela época era coisa tardia, demorada, maçante, embrulhona, tal qual a fama de seu mate. “O mate do João Cardoso”. “Oh! crioulo!... olha esse mate, diabo!” REFERÊNCIAS Documentos de Arquivos Os documentos citados nos diferentes artigos, cuja grafia atualizamos, extraímos em diversos arquivos sul-americanos e europeus: Arquivo Geral das Índias, Espanha Archivo General de la Nación, Argentina Biblioteca Nacional, Brasil Arquivo Público Mineiro, Brasil Arquivo Público do Rio Grande do Sul, Brasil Biblioteca Nacional, Portugal Arquivo da Torre do Tombo, Portugal Arquivo Histórico Ultramarino, Portugal Arquivo Nacional, Brasil 260 Textos Manuscritos DOCUMENTAÇÃO do Processo de Litígio entre João Cardoso da Silva e Francisco de Sousa Maia no rio Piratini no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1780/1816. REQUERIMENTO de José Rodrigues de Carvalho, solicitando confirmação de carta de sesmaria de terras no Rio Piratini no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1792/1820. REQUERIMENTO de Manuel José Gomes, solicitando demarcação de terras de carta de sesmaria de terras no Rio Piratini – Serro Pelado no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1816. REQUERIMENTO de Afonso Pereira Chaves e Bernardo Dias de Castro, solicitando confirmação de carta de sesmaria de terras que foram de João Pereira Chaves e Luís de Souza denominada Fazenda Espírito Santo na Forqueta Grande do Piratini no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1812/1816. REQUERIMENTO de Manuel José Gomes e Joaquim José Gomes, solicitando confirmação de carta de sesmaria de terras no Rio Piratini – Serro Pelado no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1791/1816. REQUERIMENTO de José Luis da Cunha, solicitando confirmação de carta de sesmaria de terras no Forqueta dos Piratinis – Distrito do Serro Pelado no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1809. REQUERIMENTO do capitão da Cavalaria Auxiliar da Fronteira do Rio Grande, Francisco Correia Pinto, ao príncipe regente [D. João], solicitando confirmação de carta de sesmaria de campos do outro lado do rio Piratini, na capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul. 1807. REQUERIMENTO de Jerônimo Muniz à rainha [D. Maria I], solicitando confirmação carta de sesmaria de terras no Rio Piratini no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1790/93. REQUERIMENTO de João Cardoso da Silva, solicitando confirmação de carta de sesmaria de terras que foram de José Luis da Cunha, Joaquim José da Rocha e Antônio Inácio Rodrigues Córdova na Forqueta Grande do Piratini no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1785/93. REQUERIMENTO de Teodósio Pereira Jacome à rainha [D. Maria I], solicitando confirmação de carta de sesmaria de terras nos Campos do Forte de São Gonçalo no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1790/91. REQUERIMENTO do capitão da Cavalaria Auxiliar da Fronteira do Rio Grande, Antônio Ferreira da Silva à rainha [D. Maria I], solicitando confirmação de carta de sesmaria de terras no Rio Piratini no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1789/90. REQUERIMENTO de João Pereira Chaves, solicitando confirmação de carta de sesmaria de terras no Rio Piratini no Continente do Rio Grande de São Pedro. 1789/90. 261 Bibliografia: ANDRADE, Antônio Sampaio. Dicionário corográfico de Portugal contemporâneo. Porto: Livraria Figueirinhas, 1944. ARQUIVO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL. Revista do Museo e Achivo Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do Globo, n. 23, junho, 1930. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Vocabulário geográfico do estado do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do IBGE, 1950. LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos e lendas do sul. Porto Alegre: L&PM, 2010. MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. O povoamento de Pelotas. vol. I e II. (inédito). _________. Apontamentos para uma história do charque no Continente de São Pedro do Sul. (inédito). _________. Desfazendo mitos (notas à historia do Continente de São Pedro). Pelotas: Livraria Mundial, 2012. _________. O processo de urbanização de Pelotas e a Fazenda do Arroio Moreira. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010(a). _________. O desbravamento do Sul e a ocupação castelhana. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010(b). OSÓRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2007. _________; BERWANGER, Ana Regina; SOUZA, Susana B. de. Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes à capitania do Rio Grande do Sul existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa. Porto Alegre: IFCH/UFRGS/ CORAG. 2001. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da língua portugueza. 8ª ed. Revista e melhorada, vol. I e II, Rio de Janeiro: Empresa litteraria Fluminense, 1889/91. 262 Mapa dos campos de José Rodrigues de Carvalho, sitos na margem meridional da forqueta dos Piratinis. No mapa, o asterisco [*] assinala o Passo Geral de João Cardoso. 263