Emiliana Maria Diniz Marques TEATRO DO OPRIMIDO E EDUCAÇÃO POPULAR DO CAMPO: articulações entre o pensamento e a obra de Paulo Freire e Augusto Boal, com uma experiência em Minas Gerais. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Sociedade, Educação e Formação Humana Orientador: Prof. Dr. José Pereira Peixoto Filho Belo Horizonte 2012 0 Emiliana Maria Diniz Marques TEATRO DO OPRIMIDO E EDUCAÇÃO POPULAR DO CAMPO: articulações entre o pensamento e obra de Paulo Freire e Augusto Boal com uma experiência em Minas Gerais. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Professor Doutor José P. Peixoto Filho – UEMG Orientador __________________________________________________________ Professora Doutora Silvia Balestreri Nunes – UFRS Titular __________________________________________________________ Professora Doutora Lourdes Helena da Silva – UFV Titular __________________________________________________________ Professora Doutora Vera Lúcia Britto – UEMG Titular __________________________________________________________ Professora Doutora Lana Mara de Castro Siman – UEMG Suplente _________________________________________________________ Professora Doutora Vânia Aparecida Costa – UEMG Suplente Belo Horizonte 2012 1 MARQUES, Emiliana Maria Diniz Teatro do Oprimido e Educação Popular do Campo: articulações entre o pensamento e a obra de Paulo Freire e Augusto Boal com uma experiência em Minas Gerais. Belo Horizonte: UEMG/FAE, 2012 188 p. Dissertação (mestrado) UEMG/FAE 1. Teatro do Oprimido – Educação Popular – Educação do Campo 2 Às oprimidas e oprimidos de todo o mundo. 3 AGRADECIMENTOS AGRADEÇO: À minha mãe, pela presença diária, incondicional e amor eterno. À minha família pela compreensão das minhas ausências. As minhas amigas e amigos, de perto e de longe, pela presença cotidiana ou pontual, sempre me apoiando e realimentando a esperança necessária nessa caminhada; às vezes com inserções práticas, orientando a escrita do Projeto inicial, realizando sua organização sob as normas da ABNT, promovendo as conversões em arquivo de PDF, emprestando computadores, pen-drives, impressora, oferecendo ajudas variadas, auxiliando na defesa desta dissertação e por aí vai... À Silvia, que me conduziu nos primeiros passos com o Teatro do Oprimido. Ao secretário José Júlio, pela ética profissional que me manteve no Mestrado. À CAPES, pela concessão da Bolsa de Projeto, sem a qual esta mãe pesquisadora não teria condições de concluir este trabalho. Aos colegas do Mestrado pelo conforto proporcionado, simplesmente em estarmos num mesmo barco. Ao pessoal do Observatório de Educação do Campo, pelas partilhas. Ao José Peixoto, meu orientador, por con-fiar. À Boal, Paulo Freire e meu pai (in memorian), pelas suas obras. As moradoras e moradores do município de Itatiaiuçu, participantes das oficinas e dirigentes, sem os quais este trabalho não teria se realizado. À Gizeli, por cuidar com tanto carinho da minha filha neste período. À Laura, minha filha, simplesmente por existir em minha vida! Muito obrigada! 4 Há que se aprender a tirar silêncio das coisas Quando uma coisa produz silêncio ela está pronta. Mariana Botelho Na luta de classes todas as armas são boas: pedras, noites e poemas. Núcleo de Base da Pedagogia da Terra Augusto Boal UFMG, 2005/2010 5 RESUMO Este trabalho estabelece relações entre o Teatro do Oprimido e a Educação, compreendendo algumas contribuições, limites e desafios prático-teóricos apresentados pelo método teatral, sistematizado por Augusto Boal, tendo em vista a Educação do Campo na atualidade brasileira. Abarca a origem e o desenvolvimento do Teatro do Oprimido, considerando o amplo movimento de cultura e educação popular em efervescência no Brasil dos anos de 1960 e suas aproximações com a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Analisa o atual contexto da educação no país, regulada por práticas de reforço a sociedade capitalista, dando visibilidade, porém, a ações e movimentos que se estabelecem de modo contrahegemônico nesse sistema, destacando o Movimento de Educação do Campo e suas lutas reivindicando o direito a uma educação pública, gratuita e de qualidade, pensada a partir do contexto do campo, com a participação dos seus sujeitos, vinculada a sua forma de vida, sua organização do trabalho, relação com o tempo, valores, saberes, memórias, enfim, considerando sua cultura específica e suas necessidades humanas e sociais. E compreende um relato com reflexões sobre duas experiências pedagógicas utilizando o método do Teatro do Oprimido, por meio de oficinas de Teatro-Fórum: uma realizada no interior de uma escola de Educação de Jovens e Adultos, da Rede Municipal de Educação de Itatiaiuçu, em Minas Gerais, e outra na comunidade rural de Pedras, deste mesmo município, no ano de 2011. Palavras-chave: Teatro do Oprimido; Educação do Campo; Educação Popular. 6 ABSTRACT This work establishes relationships between the Theatre of the Oppressed and Education, including some practical-theoretical contributions, limits and challenges presented by the theatrical method systematized by Augusto Boal, with a view to Rural People Education in Brazil nowadays. It covers the origin and development of Theatre of the Oppressed, considering the broad of popular culture and education associations in Brazil, in turmoil of the 1960s and their approaches to the Pedagogy of the Oppressed by Paulo Freire. Analyzes the current context of education in the country, governed by practical reinforcement of capitalist society, giving visibility, however, the actions and movements that are established so that counter-hegemonic system, highlighting the Rural People Education Movement and their struggles claiming right to public education, designed from the context of the field, with the participation of its people, linked to their way of life, its organization of work, relationship with time, values, knowledge, memories, finally considering their specific culture and its human and societal needs. It includes a report with two reflections on learning experiences using the method of the Theatre of the Oppressed, through Forum Theatre workshops: one held inside a school for Youth and Adults, in Itatiaiuçu city, in Minas Gerais, and the other on in a rural community, called Pedras, in this same city, in 2011. Keywords: Theatre of the Oppressed; Rural People Education, Popular Education. 7 LISTA DE GRÁFICOS E ESQUEMAS ESQUEMA 1: Árvore do Teatro do Oprimido ............................................................................ 39 ESQUEMA 2: Dramaturgia do Teatro Fórum ............................................................................. 70 GRÁFICO 1: Percentual de mulheres e homens no 1º Semestre ................................................ 89 GRÁFICO 2: Percentual de mulheres e homens no 2º Semestre ................................................ 89 GRÁFICO 3: Faixa etária dos participantes no 1º Semestre ....................................................... 89 GRÁFICO 4: Faixa etária dos participantes no 2º Semestre ....................................................... 89 GRÁFICO 5: Local de moradia dos participantes do 1º Semestre ............................................ 147 GRÁFICO 6: Local de moradia dos participantes do 2º Semestre ............................................ 147 8 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABCAR – Associação Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros ABL – Associação Brasileira de Lésbicas ABRAGAY – Associação Brasileira de Gays ACA – Associação de Crédito e Assistência Rural ACMST – Associação Comunitária dos Moradores de Santa Terezinha AIA – American International Association for Economic and Social Development AIDS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida AI-5 – Ato Institucional no 5 ANTRA – Associação Nacional das Transgêneros CBAR – Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações Rurais CEAA – Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos CIEPs – Centros Integrados de Educação Pública CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil CNEA – Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo CNER – Campanha Nacional de Educação Rural CNM – Confederação Nacional dos Municípios CNT – Coletivo Nacional de Transexuais CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais CPC – Centro Popular de Cultura CTO – Centro de Teatro do Oprimido CTO-Rio – Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro EDURURAL – Programa de Educação Rural 9 E.E. – Escola Estadual EJA – Educação de Jovens e Adultos E.M. – Escola Municipal FMI – Fundo Monetário Internacional FNEP – Fundo Nacional do Ensino Primário GTO – Grupo de Teatro do Oprimido IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas INEP – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LBL – Liga Brasileira de Lésbicas LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros MEB – Movimento de Educação de Base MCP – Movimento de Cultura Popular MOBRAL – Movimento Brasileiro de Educação MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra OMC – Organização Mundial do Comércio ONU – Organização das Nações Unidas PRONASEC – Programa Nacional de Ações Sócio-Educativas e Culturais para o Meio Rural PSECD – Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto PT – Partido dos Trabalhadores SOMOS – Grupo de Afirmação Homosexual SSR – Serviço Social Rural TO – Teatro do Oprimido UNE – União Nacional de Estudantes 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 13 I. A PROPOSTA DE ESTUDO ................................................................................................ 15 I.1. Trajetórias intercruzadas: a construção do objeto .......................................................... 15 I.2. Objetivos, referenciais teóricos, metodologia e desenvolvimento da pesquisa .............. 19 II. RAÍZES E ASAS DESSA HISTÓRIA ................................................................................ 25 II.1. Educação e cultura popular no Brasil de 1960 e o método Paulo Freire ...................... 25 II.2. O desenvolvimento do método do Teatro do Oprimido ................................................. 29 II.3. Relações entre a Pedagogia do Oprimido e o Teatro do Oprimido ............................... 39 III. DESCORTINANDO UMA EDUCAÇÃO NA ATUALIDADE ..................................... 47 III.1. Na contra-hegemonia do sistema .................................................................................... 47 III.2. A Educação do Campo e o Teatro do Oprimido ........................................................... 55 III.3. O Curinga, seu desenvolvimento e desdobramentos: reflexões sobre a dramaturgia do Teatro Fórum e o Professor-curinga ............................................................ 66 IV. EM CAMPO, COM O CAMPO, PELO CAMPO ........................................................... 75 IV.1. O Município, a escola e a comunidade: caracterizando os locais ................................. 75 IV.2. As contradições do processo: um olhar sobre a oficina teatral na escola .................... 80 IV.2.1 - O contato inicial e as primeiras oficinas: conhecendo o grupo ................................ 80 IV.2.2 - O desenvolvimento das oficinas: entre altos e baixos .............................................. 84 IV.2.3 - A escolha do tema gerador da peça: com poucas palavras ........................................98 IV.2.4 - As improvisações das cenas e a construção do texto: uma escrita no processo ....... 99 IV.2.5 - A cenografia, figurinos e adereços: mobilização para reconstrução ...................... 101 IV.2.6 - O Ensaio de Fórum: uma apresentação para os colegas da escola ......................... 102 IV.2.7 - A Sessão de Teatro-Fórum: atuação além dos muros da escola ............................. 107 11 IV.2.8 - O encerramento da oficina: avaliação e integração nas festividades de formatura..109 IV.3. Ampliando o olhar por meio da comunidade .............................................................. 110 IV.3.1 - O contato inicial e as primeiras oficinas: a espera pela definição do grupo .......... 110 IV.3.2 - O desenvolvimento das oficinas: processual .......................................................... 111 IV.3.3 - A escolha do tema gerador da peça: depoimentos íntimos .................................... 114 IV.3.4 - As improvisações das cenas e a construção do texto: uma escrita posterior .......... 117 IV.3.5 – A cenografia, figurinos e adereços: um processo ampliado na comunidade ......... 119 IV.3.6 - O Ensaio de Fórum: o gosto de uma primeira apresentação .................................. 122 IV.3.7 - As sessões de Teatro-Fórum: diferentes experiências ............................................ 125 IV.3.8 - O encerramento da oficina: amigo-oculto e confraternização ................................ 135 IV.4. Contrapontos e correlações entre os processos escolar e comunitário ...................... 136 IV.4.1 - Rituais e normas das instituições .............................................................................136 IV.4.2 - O currículo escolar ................................................................................................. 138 IV.4.3 - Um fórum educativo com aprendizagem por modelo ............................................ 139 IV.4.4 - Delineando limites para o Teatro do Oprimido na escola ...................................... 141 IV.4.5 - A ação da comunidade ........................................................................................... 145 V. UMA ARMA VÁLIDA: A GUISA DE CONCLUSÃO ................................................... 148 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 154 SITES ........................................................................................................................................ 159 ANEXOS .................................................................................................................................. 160 Texto da peça Foi sem querer querendo ................................................................................. 160 Texto da peça Igual à família da gente ................................................................................... 174 Versão colorida do cartaz da peça Foi sem querer querendo, impresso em camisas.......... 186 Versão em preto e branco do cartaz da peça Foi sem querer querendo............................... 187 Cartaz de divulgação da peça Igual à família da gente ......................................................... 188 12 INTRODUÇÃO Esta dissertação de Mestrado, organizada em cinco capítulos, apresenta um estudo elaborado a partir de uma pesquisa desenvolvida, ao longo de 2010 e 2011, abarcando possíveis contribuições, limites e desafios colocados pela prática do método do Teatro do Oprimido em intervenções pedagógicas escolares e comunitárias, tendo em vista a Educação do Campo no Brasil. O primeiro capítulo delineia um rápido panorama das experiências pregressas da autora com o aprendizado e a prática do Método do Teatro do Oprimido que permitiram formular as questões para esse estudo. Expõe, ainda, seus objetivos, os principais referenciais teóricos adotados, a metodologia utilizada para a pesquisa e o desenvolvimento desta, numa escola de Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Rede Municipal de Itatiaiuçu - MG, e em um povoado rural do mesmo município. O segundo capítulo compreende uma análise histórica do amplo movimento de educação e cultura popular manifesto no país na década de 1960, apresentando o período de surgimento da Filosofia Educacional de Paulo Freire e o desenvolvimento do Teatro de Augusto Boal até os dias atuais, com estabelecimento de relações entre as obras desses dois mestres, a Pedagogia do Oprimido e o Teatro do Oprimido, no que tange a educação libertadora, a conscientização dos oprimidos e a mobilização para transformação das estruturas sociais opressoras. O capítulo terceiro apresenta uma contextualização do atual momento histórico e suas interfaces com a educação, ratificando a prática do Teatro do Oprimido na contra-hegemonia das ações neoliberais do mundo ocidental capitalista. Explicita o conceito de Educação do Campo e sua proposta de escola e sociedade, ressaltando que os dados estatísticos são reveladores das desigualdades educacionais do campo em comparação com o meio urbano; a partir dessas concepções, ratifica a inserção do Teatro do Oprimido nas lutas da Educação do Campo no país. Em seguida, promove reflexões sobre o desenvolvimento do Curinga no referido método teatral, com desdobramentos sobre a dramaturgia do Teatro Fórum e o Professor-curinga. Dedicado ao trabalho de campo, o quarto capítulo revela um pouco do município, da escola e da comunidade onde foram realizadas as intervenções pedagógicas, no ano de 2011. 13 Explicita o processo de desenvolvimento das duas oficinas de Teatro do Oprimido, juntamente com os sujeitos participantes e abarca uma análise de ambas as experiências, considerando os dados coletados. O último capítulo, escrito a título de conclusão, retoma questões apresentadas ao longo texto, lançando luz aos aspectos que potencializam o Teatro do Oprimido enquanto um método útil e atual nos processos educacionais do Campo. Após a explicitação das referências bibliográficas utilizadas e sites consultados para a efetivação deste estudo, apresenta-se, em anexo, os textos das peças de Teatro-Fórum montadas nas oficinas da escola e da comunidade e, em seguida, os cartazes elaborados para divulgação das encenações de ambas as peças. 14 I. A PROPOSTA DE ESTUDO I.1. Trajetórias intercruzadas: a construção do objeto. O contato, conhecimento e trabalho com o método do Teatro do Oprimido, há mais de treze anos, em experiências variadas e sua multiplicação em processos sócio-educativos com sujeitos de instituições prisionais, comunidade pesqueira e vizinhança de aterro sanitário, no Estado do Rio de Janeiro, como também de escolas públicas da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais e das Redes Municipais das cidades de Belo Horizonte e de Contagem suscitaram muitos dos questionamentos e reflexões que culminaram neste estudo. Ao longo dessas experiências, o Teatro do Oprimido sempre se apresentou como um método artístico, político, lúdico, criativo, diversificado, passível de ser utilizado em diferentes espaços e instituições, com variados grupos de sujeitos, reconhecidos como oprimidos nas suas múltiplas relações sociais de poder. Sua prática possibilitava o conhecimento desses sujeitos e seus universos em concomitância com o autoconhecimento da autora1; descortinava mundos, lançando luz nas opressões sociais, ampliando a consciência sobre as injustiças históricas presentes na sociedade. Sua versatilidade estética ampliava os universos de pensamento, reflexão, produção artística e conhecimento, garantindo o prazer em atividades que uniam trabalho, aprendizagem e ação social de modo coletivo e indissociável. A adaptação do método aos diferentes contextos apresentados com as circunstâncias específicas de cada oficina teatral estimulava a criatividade e aguçava o interesse no seu aprofundamento teórico e desenvolvimento prático. A formação propiciada pelo Teatro do Oprimido e as experiências de multiplicação desse método em instituições como presídios, penitenciárias e comunidades variadas possibilitaram um distanciamento necessário ao estranhamento de inúmeras práticas do cotidiano escolar, em posterior atuação profissional como professora de escolas públicas na região metropolitana de Belo Horizonte. 1 Ao longo do texto há referências à autora ora como mestranda, ora como oficineira das atividades teatrais. 15 Esse estranhamento, ainda presente nos dias atuais, perpassa diversas instâncias da instituição escolar: seus espaços, arquitetura, móveis e ornamentação; seus modos de funcionamento, atividades desenvolvidas e tempo de duração; a forma como as pessoas tratam umas as outras, os assuntos das conversas, quando se falam, o que comem, vestem, enfim, como se comportam em suas diversas relações. Envolve, também, essa forma convencional de dispor uma média de trinta estudantes enfileirados, sentados atrás de suas carteiras, com um professor a frente, numa sala de aula fechada, por quatro horas diárias, cinco dias por semana, contrapondose com o recreio ou outras pouquíssimas atividades que fogem a esta rotina física. Na alfabetização de adultos, como na post-alfabetização, o domínio da linguagem oral e escrita constitui uma das dimensões do processo da expressividade. O aprendizado da leitura e da escrita, por isso mesmo, não terá significado real se faz através da repetição puramente mecânica de sílabas. Este aprendizado só é válido quando, simultaneamente com o domínio do mecanismo da formação vocabular, o educando vai percebendo o profundo sentido da linguagem. Quando vai percebendo a solidariedade que há entre a linguagem-pensamento e realidade, cuja transformação, ao exigir novas formas de compreensão, coloca também a necessidade de novas formas de expressão. (FREIRE, 1982, p.24). Essa trajetória pregressa a escolar possibilitou diferentes aprendizados condizentes com a filosofia freiriana da educação, em oposição a inúmeras práticas dos estabelecimentos escolares atuais e do modo como comunmente se estabelecem as relações entre professores e (a)lunos. Três aprendizados, em especial, marcaram a forma de agir e conceber uma relação coletiva que envolve troca de saberes, ensino e aprendizagem, sob a coordenação de uma liderança. O primeiro, na comunidade vizinha ao aterro sanitário do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias - RJ, ainda como estudante do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando o grupo de estagiários universitários retornou revoltado do primeiro encontro da oficina teatral, que estivera vazia e os participantes aparentemente pouco atentos ou engajados na proposta. O discurso dos estudantes girava em torno do desrespeito ou falta de consideração daquelas pessoas que não reconheciam a importância da atividade que lhes era proporcionada. A resposta da professora orientadora foi: “Se vocês acreditam que esta atividade é realmente importante, então provem, convençam o grupo e garantam o direito de estarem lá”. Naquele momento a professora não só relativizava a importância dada pelos estudantes a própria proposta como apontava um modo dialogado e horizontal de pautar um relacionamento. O segundo aprendizado ocorreu numa orientação dada ao grupo de oficineiros que se preparava para ministrar as oficinas teatrais no interior do sistema penitenciário. A orientação 16 sugeria nunca dizer aos participantes que eles não haviam entendido a proposta de um jogo caso este não se desenvolvesse conforme o esperado. Ao contrário, deveria se dizer: “Eu não consegui explicar direito”. Aparentemente simples, aquelas palavras invertiam o polo da relação entre oficineiro e participante, transformando o olhar sobre a própria prática do ministrante da oficina, retirando-o de um local de conhecimento absoluto para um lugar de saber a partir de relações compartilhadas. O terceiro aprendizado, presente em todas as oficinas teatrais, advinha da riqueza das expressões dos participantes, sua diversidade, criatividade, histórias que se transformavam em cena, em arte. O oficineiro atuava muito mais como um coordenador de toda aquela experiência, certamente criando junto, mas jamais poderia assumir uma autoria individual sobre o processo que era fundamentalmente coletivo. As marcas dessas experiências pregressas fizeram diferença na atuação como professora escolar, buscando sempre dialogar sobre as propostas das aulas, conquistando a adesão pelo convencimento quanto à validade de uma determinada atividade. Assumia-se a responsabilidade sobre uma orientação não compreendida e buscava-se sempre estimular os estudantes nas suas múltiplas expressões e potencialidades, motivando a criação, reflexão e pensamento em processos coletivos de aprendizagem. Em 2009, durante o Encontro Internacional de Curingas, realizado por ocasião de uma Conferência Internacional do Teatro do Oprimido, em julho, no Rio de Janeiro, uma participante de nacionalidade francesa expunha, junto aos integrantes do Grupo de Trabalho de Educação, sua crença sobre a impossibilidade de praticar Teatro do Oprimido em escolas, pelos princípios opostos que fundamentam estas duas instituições: para ela, o primeiro é voltado para a transformação e libertação humana e a segunda para a reprodução social. Percebia-se, em sua fala, a dificuldade de inserção do seu trabalho no ambiente escolar, de negociação, ocupação e conquista de espaços de atuação, além da falta de liberdade com constantes cerceamentos, por parte da direção, no desenvolvimento de suas propostas. Por outro lado, sua fala levantava questões pertinentes que mereciam ser mais bem estudadas no que tange a prática do TO em escolas, especialmente sobre os riscos de se transformá-lo em mero entretenimento, ou mesmo em arma de opressão. 17 Para uma professora do Ensino Fundamental que diariamente se indignava com situações de autoritarismo, arbitrariedade, humilhação, falta de diálogo, xingamentos, maus tratos, imposição, medo, ameaça, infantilização de adolescentes e adultos, reprovação, entre outras, presentes no ambiente escolar e, constantemente, buscava meios de transformar essas relações pautando uma escuta efetiva com estímulo ao diálogo, a autonomia estudantil, o conhecimento compartilhado como diferencial, em defesa da garantia e efetivação de uma escola pública com educação de qualidade para todas as pessoas, algumas questões se fizeram marcantes e duas perguntas principais se colocaram: É possível desenvolver Teatro do Oprimido no interior de uma instituição de controle e reprodução social? Quais os limites que se apresentam à sua prática? Salientamos que diferentes experiências foram e são desenvolvidas com Teatro do Oprimido no âmbito escolar no país, desde as primeiras práticas, na segunda metade da década de 1980, quando Boal retornou do exílio e promoveu uma capacitação para a multiplicação do método em Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs)2, no Rio de Janeiro, a convite do professor Darcy Ribeiro. Vinte anos depois, nos dois anos anteriores ao seu falecimento, seu último trabalho no âmbito de escolas públicas fora desenvolvido com a equipe do Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro (CTO-Rio)3, em parceria com o Governo Federal, com o projeto Teatro do Oprimido na Escola, em sete municípios do Rio de Janeiro, ao longo de 2007 e 2008. No âmbito acadêmico, a produção de trabalhos com base no Teatro do Oprimido vem aumentando nos últimos anos, abarcando diferentes aspectos e práticas deste método, associado à educação popular, à educação comunitária, à educação estética, à educação ambiental,à educação em direitos humanos, à educação de jovens adultos, à gestão educacional, à psicologia da educação, à formação de professores, à ações sócio-educativas, entre outros de tantas áreas. Para fins de utilização neste estudo destacamos, primeiramente, Nunes (2004) tecendo críticas à prática do Teatro do Oprimido, baseada na filosofia de Deleuze e Guattari; Pedroso (2006), revelando o TO como instrumento útil numa educação libertadora; Serpa (2006), 2 Programa Especial de Educação do Governo do Estado do Rio de janeiro, durante a gestão do governador Leonel Brizola. 3 Instituição fundada por Augusto Boal no final da década de 1980 dedicada ao estudo, desenvolvimento e multiplicação do Teatro do Oprimido. 18 discutindo a estreita relação entre teatro e educação popular; Teixeira (2007) associando o Teatro do Oprimido à Pedagogia do Oprimido, tendo por base ações sócio-educativas; Paranhos (2009) também estabelecendo relações entre as obras de Freire e Boal, com foco na formação de educadores; Cassiano (2011) discutindo o Teatro do Oprimido como metodologia para resolução não violenta de conflitos nas escolas; e Viana (2011), analisando as contribuições desse método teatral na Educação de Jovens e Adultos. A proposta inicial de pesquisa para este estudo previa a observação participante do desenvolvimento do método do Teatro do Oprimido, com estudantes do Ensino Fundamental, em uma escola pública da Rede Municipal de Belo Horizonte. No entanto, um trabalho que seria iniciado pela mestranda envolvendo a realização de uma oficina de Teatro do Oprimido, para jovens e adultos, na comunidade rural de Pedras, em Itatiaiuçu – MG, mudou o ambiente da pesquisa, inserindo os mais oprimidos entre os oprimidos da educação, na ação investigadora, uma vez que estatísticas oficiais apontam, no campo, os mais baixos índices no que tange o acesso, a permanência e a garantia dos direitos à educação em todas as regiões do Brasil. Entretanto, o interesse em investigar os desafios colocados à prática do Teatro do Oprimido no interior de uma instituição escolar impulsionou a proposta de uma segunda oficina teatral, numa escola de Ensino Fundamental com EJA. Deste modo, as duas atividades constituiriam objeto de investigação, propiciando tecer comparações e contrapontos a partir das especificidades constituintes de ambas as instituições: escola e comunidade. Assim, duas novas perguntas emergiam com destaque: Quais os desafios colocados para a prática do Teatro do Oprimido no atual contexto da Educação do Campo no Brasil? Quais as especificidades reveladas pela prática do Teatro do Oprimido numa intervenção educativa no interior de uma instituição escolar e em uma comunidade do campo? I.2. Objetivos, referenciais teóricos, metodologia e desenvolvimento da pesquisa. O principal objetivo deste estudo consistiu-se em investigar as relações do Teatro do Oprimido com a Educação Popular do Campo, buscando analisar as potencialidades, os limites e os desafios prático-teoricos apresentados pelo método do Teatro do Oprimido no contexto educacional escolar e comunitário do campo. 19 Como objetivos específicos buscou-se sistematizar as relações entre o Teatro do Oprimido de Augusto Boal e a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire; investigar as especificidades da pratica do Teatro do Oprimido na educação comunitária com pessoas jovens e adultas do campo e no interior de uma escola de EJA; e analisar as contribuições pedagógicas do Teatro do Oprimido e sua aplicabilidade em processos educativos escolares e comunitários. Para a realização deste estudo adotou-se, como principais referenciais teóricos, as obras de Augusto Boal e de Paulo Freire, considerando as estreitas relações existentes entre os paradigmas do Teatro do Oprimido e da Pedagogia do Oprimido. Para Freire (1987), do “ponto de vista crítico, é tão impossível negar a natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político” (FREIRE, 1987, p.26). Neste sentido, buscou-se desenvolver um processo de intervenção educativa com o método do Teatro do Oprimido, concebendo a educação como práxis de ação/reflexão/ação sobre o mundo, o conceito de opressão atrelado as relações sociais de poder e a prática educativa como ato coletivo de apropriação do conhecimento sistematizado e de transformação social. Se antes a transformação social era entendida de forma simplista, fazendo-se com a mudança, primeiro das consciências, como se fosse a consciência, de fato, a transformadora do real, agora a transformação social é percebida como processo histórico em que subjetividade e objetividade se prendem dialeticamente. [...] Se antes a alfabetização de adultos era tratada e realizada de forma autoritária, centrada na compreensão mágica da palavra, palavra doada pelo educador aos analfabetos; se antes os textos geralmente oferecidos como leitura aos alunos escondiam muito mais do que desvelavam a realidade, agora, pelo contrário, a alfabetização como ato de conhecimento, comol ato criador e como ato político é um esforço de leitura do mundo e da palavra. (FREIRE, 1987, p.35 - A). O mesmo pode-se afirmar quanto à pós-alfabetização, como no caso dos sujeitos participantes do processo desta pesquisa. Assim, compreendendo a realidade na relação dialética entre objetividade e subjetividade, assumiu-se o dialogo como base de relações horizontais e considerou-se tanto o pensamento simbólico quanto o pensamento sensível no processo de conhecimento. Como afirma Boal (2009), “Arte não é adorno, palavra não é absoluta, som não é ruído, e as palavras falam, convencem e dominam” (BOAL, 2009, p.22). Partiu-se do pressuposto que ser humano é ser artista, portanto, todas as pessoas podem fazer teatro e, nesse sentido, a arte contribui para a construção da cidadania, sendo cidadão aquele que transforma a sua realidade. 20 Boal insere a arte no âmbito político, reconhece o artístico inerente ao humano. Seu teatro é construído como instrumento de participação e transformação social. “Não basta produzir idéias: necessário é transformá-las em atos sociais, concretos e continuados. [...] Arte e Estética são instrumentos de libertação.” (BOAL, 2009, p. 19). O teatro de Boal é identificado, neste trabalho, com as “Epistemologias do Sul”, com os saberes produzidos e invibilizados por se oporem a colonialidade do poder, a relação de exploração e aos padrões universais do capitalismo eurocentrado. Trata-se de um método à serviço da luta de libertação dos grupos sociais oprimidos, indo contra a lógica do mercado, para a qual a dignidade e mesmo a sobrevivência do ser humano deixam de ser valor central, afirmando uma posição contrahegemônica no sentido boaventuriano do termo (Santos e Meneses, 2010), em consonância com a filosofia da educação de Paulo Freire. Em congruência com os referencias teóricos adotados, a metodologia utilizada para investigação foi a pesquisa participante, com integração da mestranda em todo o processo de desenvolvimento do método do Teatro do Oprimido. A escolha deste método científico considerou, no bojo do desenvolvimento das ciências humanas, as mudanças de paradigmas ocorridos em meados do século XX, com o enfraquecimento da perspectiva positivista de pesquisa. A proposta positivista, aplicada às ciências humanas e sociais, considerava os fatos humanos como os da natureza, passíveis, portanto, de serem observados e mensurados do mesmo modo, submetidos a procedimentos experimentais para determinação de suas causas, com total isenção ou objetividade do observador pesquisador. Na realidade, o pesquisador não pode, frente aos fatos sociais, ter essa objetividade, apagar-se desse modo. Frente aos fatos sociais, tem preferências, inclinações, interesses particulares; interessa-se por eles e os considera a partir de seu sistema de valores. [...] E é com esse preconceito que aborda seu objeto e sobre ele fará o estudo. Advinha-se, com facilidade que a informação que irá procurar e os conhecimentos que daí tirará serão subjetivos. [...] Em ciências humanas, o pesquisador é mais que um observador objetivo: é um ator aí envolvido. [...] O fato de o pesquisador em ciências humanas ser um ator que influencia seu objeto de pesquisa, e do objeto, por sua vez, ser capaz de um comportamento voluntário e consciente, conduz a uma construção do saber cuja medida do verdadeiro difere da obtida em ciências naturais. (LAVILLE e DIONNE, 1999, p.34 e 35). A pesquisa participante, a qual se refere este estudo, alinha-se a um conjunto de modelos de investigação social, originados em alguns países da América Latina, entre os anos de 1960 e 1980, e rapidamente difundido por todo o continente, agrupados sob diversas nomenclaturas 21 como “pesquisa-ação”, “pesquisa participativa”, “investigação ação participativa”, entre outras. Segundo Brandão e Borges (2007), Em sua maioria, elas serão postas em prática dentro de movimentos sociais populares emergentes ou se reconhecerão estando a serviço de tais movimentos. [...] Elas se originam e reelaboram diferentes fundamentos teóricos e diversos estilos de construção de modelos de conhecimento social através da pesquisa científica. Não existe na realidade um modelo único ou uma metodologia científica própria a todas as abordagens da pesquisa participante. [...] Entre as suas diferentes alternativas, de modo geral, as pesquisas participantes alinham-se em projetos de envolvimento e mútuo compromisso de ações sociais de vocação popular. Assim, geralmente, elas colocam face-a-face pessoas e agências sociais “eruditas” (como um sociólogo, um educador de carreira ou uma ONG de direitos humanos) e “populares” (como um indígena tarasco, um operário sindicalizado argentino, um camponês semialfabetizado do Centro-Oeste do Brasil ou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra). De um modo geral, elas partem de diferentes possibilidades de relacionamento entre os dois polos de atores sociais envolvidos, interativos e participantes. (BRANDÃO e BORGES, 2007, p.53). O método do Teatro do Oprimido surgiu no mesmo período e espaço geográfico das metodologias de pesquisa participante – 1970, na América Latina, - e tal como elas, se afirmou a serviço das causas populares pela transformação social. Constituiu-se como um método políticoteatral, que articula a análise crítica da realidade, por meios simbólicos e sensíveis de apreensão do mundo, em processos coletivos e dialogados de reflexão, conhecimento e ação social. O seu potencial pedagógico também o aproxima das pesquisas participantes que “pretendem ser instrumentos pedagógicos e dialógicos de aprendizado partilhado; possuem organicamente uma vocação educativa e, como tal, politicamente formadora”. (BRANDÃO e BORGES, 2007, p.57). Ambos os métodos do Teatro do Oprimido como das pesquisas participantes abominam a neutralidade política, pedagógica ou científica. “Deve-se reconhecer e aprender a lidar com o caráter político e ideológico de toda e qualquer atividade científica e pedagógica. A pesquisa participante deve ser praticada como um ato de compromisso de presença e de participação claro e assumido”, afirmam Brandão e Borges. “Não existe neutralidade científica em pesquisa alguma e, menos ainda, em investigações vinculadas a projetos de ação social.” (BRANDÃO e BORGES, 2007, p.55). Neste trabalho o método do Teatro do Oprimido foi desenvolvido pela mestranda pesquisadora num processo que buscou não separar nem hierarquizar sujeito pesquisador e sujeito pesquisado; ao contrário, considerou e integrou o saber popular na ação investigadora que é também ação educativa e transformadora da realidade presente. 22 Quanto mais, em uma tal forma de conceber e praticar a pesquisa, os grupos populares vão aprofundando, como sujeitos, o ato de conhecimento de si em suas relações com a realidade, tanto mais vão superando o conhecimento anterior em seus aspectos mais ingênuos. Deste modo, fazendo pesquisa, educo e estou me educando com os grupos populares [...] pesquisar e educar se identificam em um permanente e dinâmico movimento (FREIRE, P. 1990, p.36). Considerando os novos paradigmas propulsores do desenvolvimento das ciências sociais no século passado, reconhecendo suas especificidades no que se refere à observação de pessoas em ambientes naturais e nas relações que estabelecem com seus grupos, assume-se que esta pesquisa, contrária à lógica positivista de isenção em prol da objetividade científica, não é passível de reproduções, apenas de aproximações. No fundo é a realidade que importa, mas não é ela que comanda o processo de sua própria inteligibilidade. Já a sua existência independente não é senão uma questão. Ela é capaz de nos sensibilizar, ela fornece elementos que os sentidos podem captar. Eles serão percebidos, apreendidos, colocados como evidência a confirmar ou refutar formulações anteriores. O que não se pode esquecer, sob pena de mascar o processo, é que estas formulações estão presentes em todos os momentos. Elas guiam a apreensão e a interpretação. Elas fornecem os critérios, apenas em parte conscientes segundo os quais alguns aspectos ganham relevância, enquanto outros são esquecidos. (Cardoso, 1971, p.5). Os dados aqui apresentados são, portanto, frutos de escolhas próprias, objetivas e subjetivas, temporárias e em processo, relevantes em determinadas concepções, consciente de que um processo participante tem nuances variadas, das quais muitas podem fugir à percepção do observador. “Qualquer teoria científica é uma interpretação entre outras e vale pelo seu teor de diálogo, não pelo seu acúmulo de certezas.” (BRANDÃO e BORGES, 2007, p.57). O desenvolvimento deste trabalho envolveu a realização e observação participante de duas oficinas de Teatro do Oprimido ministradas no Município de Itatiauiçu – MG, sendo uma na E.M. João Marques Machado, para estudantes da EJA, e outra no Salão Comunitário Jovelina Maria de Miranda, ministrada para moradores da comunidade rural de Pedras de Itatiaiuçu. Cada oficina teve a duração de oito meses e ocorreu nos meses de maio a dezembro de 2011, com periodicidade de um encontro semanal de 3 horas e aproximadamente 18 participantes. Contemplou a montagem e apresentações de peças de Teatro-Fórum, envolvendo intervenções da platéia em cena, analisadas em suas estratégias de mudança das relações de poder para as opressões apresentadas. O Teatro-Fórum contém características que o privilegia para um trabalho com pessoas que possuem pouco ou nenhum contato com a atividade teatral, quando comparado a outras 23 modalidades do Teatro do Oprimido. Essas modalidades serão explicitadas em capítulo posterior, porém adianta-se que seu processo de montagem abarca os conceitos e prática da Estética do Oprimido, trabalhando com o som, a palavra e a imagem; perpassa os jogos e técnicas de Teatro Imagem; implica na montagem de uma peça explícita, diferentemente do Teatro Invisível; parte de histórias pessoais, contemplando a realidade imediata dos atores e não os fatos retratados na mídia, como no Teatro Jornal; não implica técnicas tão introspectivas, como o Arco-Íris do Desejo; pode se desenvolver para um Teatro-Legislativo e desdobrar-se em ações sociais concretas e continuadas. Esses foram os principais motivos de focá-lo para efeito deste estudo. Como justificativa para realização da pesquisa, apontou-se a atualidade e relevância para o campo da educação, contando com sua possível contribuição, em termos acadêmicos, ao enfocar o potencial educacional dessa metodologia político-teatral associada a pessoas jovens e adultas do campo. 24 II. RAÍZES E ASAS DESTA HISTÓRIA II.1. Educação e cultura popular no Brasil de 1960 e o método Paulo Freire A educação brasileira da década de 1960 foi marcada por intensos movimentos em prol da alfabetização das classes populares, de adultos trabalhadores de áreas urbanas e rurais, rumo à sua universalização. Tratou-se de um período que trouxe fortemente a marca da cultura popular para o âmbito da educação, sendo o seu conceito associado à consciência política e de classe, levando o homem a assumir posição de sujeito no processo histórico e de transformação social. Os anos 1960-1964 foram particularmente críticos e criativos em quase tudo. Questionaram-se todos os modos de ser brasileiro, de viver um momento da história desse país, de participar de sua cultura. Pretendeu-se um projeto que possibilitasse superar a dominação do capital sobre o trabalho e, em decorrência, reformular tudo o que dessa dominação decorre. Tudo isso – e muito mais – foi repassado e discutido em círculos cada vez mais amplos, das ligas camponesas às universidades. Dentre as formas de luta popular que surgiram naqueles anos, ou que neles conseguiram fortalecer, uma delas se chamou cultura popular; e ela subordinava outra: a educação popular. Nesse campo, tudo se refez e tudo se imaginou criar ou recriar, a partir da conscientização e da politização – ou seja, da organização das classes populares. O que se pretendia? Transformar a cultura brasileira e, através dela, pelas mãos do povo, transformar a ordem das relações de poder e a própria vida do país. Os instrumentos? Círculos de cultura, centros de cultura, praças de cultura, teatro popular, rádio, cinema, música, literatura, televisão... sindicatos, ligas... com/para/sobre o povo. Instrumentos que se convertiam em movimentos. Às vezes, os mesmos que vinham dos anos 50, como os clubes e as escolas radiofônicas, mas redefinidos, reorientados, vistos em novos horizontes, projetados em outra dimensão. (FÀVERO, 1983, P. 8 e 9). Fávero (1983) organiza diferentes documentos da década de 1960 de autores e organizações que discutem e se apropriam do conceito de cultura popular. Dentre esses documentos, o da Ação Popular assume o desafio de “fazer com que a cultura passe de arma ideológica à instrumento de promoção do homem”, “a espaço de realização do homem”. Em seu texto, define cultura popular em termos de comunicabilidade com a população, “suas significações, valores, idéias, obras, são destinadas efetivamente ao povo e respondem às suas exigências de realização humana em determinada época”. O movimento de cultura popular se converte num “movimento para a libertação do homem e só tem sentido na medida em que promover o homem não só como receptor, mas principalmente como criador de expressões culturais”. (AP/Cultura Popular, 1961). A cultura popular foi definida em termos de situação histórica das massas, consciência e ação política. “Ela é o conjunto prático teórico que co-determina, juntamente com a totalidade 25 das condições materiais objetivas, o movimento ascensional das massas em direção à conquista do poder na sociedade de classes” (ESTEVAM, 1983, p.39). Para Gullar (1983) a expressão “cultura popular”, na década de 1960, assume um sentido novo, demarcando uma posição de denúncia aos conceitos de cultura que ocultavam o caráter de classe. “O que define a cultura popular, no sentido que apreciamos aqui, é a consciência de que a cultura tanto pode ser instrumento de conservação como de transformação social” (GULLAR, 1983, p.52). A cultura popular se coloca em termos de problema e transformação social. A cultura popular na década de 1960 fora assumida ora como movimento, ora como instrumento de luta política em prol das classes populares, agregando diferentes setores e entidades político-sociais e culturais no Brasil. Não resta dúvida que, se nos mantivermos no plano do juízo estético puro e simples, jamais abarcaremos a complexidade desse fenômeno cultural em curso hoje no Brasil. É preciso não esquecer, como dissemos antes, que se trata da dramática tomada de consciência, por parte dos intelectuais, do caráter histórico, contingente, de sua atividade e do rompimento da parede que pretendia isolar os problemas culturais dos demais problemas do país. O escritor, o cineasta, o pintor, o professor, o estudante, o profissional liberal redescobrem-se como cidadãos diretamente responsáveis, como os demais trabalhadores, pela sociedade que ajudam a construir diariamente, e sobre cujo destino têm o direito e a obrigação de atuar. (GULLAR, 1983, p.51). No âmbito estudantil um consistente movimento em torno da arte com educação e mobilização popular foi desenvolvida pela União Nacional dos Estudantes (UNE), nos Centros Populares de Cultura (CPCs), inicialmente no Rio de Janeiro e, posteriormente, em outros estados do país. O Manifesto do CPC assume para seus artistas e intelectuais o caminho da “arte popular revolucionária”, com o artista se defrontando “com o fato nu da posse do poder pela classe dirigente e a conseqüente privação de poder em que se encontra o povo enquanto massa dos governados pelos outros e para os outros”. (CPC da UNE / MANIFESTO, 1961). Contestando a legitimidade e superioridade de uma arte e cultura das classes dominantes, expõe: A arte do povo e a arte popular quando consideradas de um ponto de vista cultural rigoroso dificilmente poderiam merecer a denominação de arte; por outro lado, quando consideradas do ponto de vista do CPC, de modo algum podem merecer a denominação de popular ou do povo. (CPC da UNE / MANIFESTO, 1961) 26 E afirma: “fora da arte política não há arte popular” e “não pode haver dois métodos distintos, um para o povo tomar o poder, outro para se fazer arte popular”. (CPC da UNE / MANIFESTO, 1961). Pela investigação, pela análise e o devassamento do mundo objetivo, nossa arte está em condições de transformar a consciência de nosso público e de fazer nascer no espírito do povo uma evidência radicalmente nova: a compreensão concreta do processo pelo qual a exterioridade descoisifica, a naturalidade das coisas se dissolve e se transmuta. Podemos com nossa arte ir tão longe quanto comunicar ao povo, por mil maneiras, a idéia de que as forças que o esmagam gozam apenas da aparência do em si, nada têm de uma fatalidade cega e invencível, pois são, na verdade, produtos do trabalho humano. A arte popular revolucionária aí encontra o seu eixo mestre: a transmissão do conceito de inversão da práxis, o conceito do movimento dialético segundo o qual o homem aparece como o próprio autor das condições históricas de sua existência.[...] (CPC da UNE / MANIFESTO, 1961). A campanha “De Pé no Chão Também se Aprende a ler”, desenvolvido no Rio Grande do Norte, pela prefeitura de Natal, resultado da própria evolução da rede escolar municipal, denominou de “padrões culturais alienígenas” àqueles vivenciados pela população brasileira, produzidos a partir da história de dominação colonizadora e destinados a manter o povo subserviente e passivo, admirando heróis estrangeiros, conhecendo mais a história do povo dominador que a nossa, aprendendo a admirar e servir àqueles que aparecem como os “supremos defensores dos princípios da democracia e da liberdade no mundo ocidental e cristão”. Associa, portanto, cultura popular a dupla função de promover a nossa cultura de modo que se sobreponha aos valores culturais estrangeiros e de integrar “o homem brasileiro no processo de libertação econômico-social e político-cultural”. Assume um “entrelaçamento dialético entre cultura popular e libertação nacional” (De Pé no Chão Também se Aprende a ler. Cultura Popular: tentativa de conceituação, 1961). O Movimento de Educação de Base (MEB), vinculado à Igreja Católica, caracterizou cultura popular como um fenômeno histórico surgindo em sociedades com desníveis culturais entre os grupos que a compõem; desníveis promotores de marginalização, impedindo a própria comunicação entre os diversos grupos sociais. “Cultura popular no Brasil não é um fenômeno neutro, indiferente; ao contrário, nasce do conflito e nele desemboca necessariamente”. (MEB/Cultura popular: notas para estudo, 1961). Constitui-se como um movimento estreitamente ligado à ação política, visando uma transformação estrutural da sociedade. Na prática da educação popular desenvolvida pelo MEB, entre 1961 e 1966, os chamados agentes de educação popular (técnicos, professores, monitores, animadores etc.) buscaram caracterizar os 27 componentes ideológicos das classes populares e organizar em suas elaborações, com graus variáveis de manipulação, as ideologias dominadas em suas múltiplas formas de manipulação, empregando técnicas, métodos e recursos, muitas vezes simples e artesanais, mas bastante criativos quanto à comunicação com o povo. Esses instrumentos e meios, na maioria das vezes, utilizaram a própria história e a experiência comum das pessoas envolvidas. História e experiência tais como os recursos da tradição oral de transmissão de conhecimentos, envolvidos e baseados nas relações afetivas e interpessoais que as próprias comunidades possuem e criam para suas formas de sobrevivência no dia-a-dia, por meio do trabalho, da religião, do lazer etc., permitindo maior divulgação das ideologias dominadas para setores mais amplos da sociedade, ganhando amplitude e conquistando aliados. (PEIXOTO, 2004, p. 21 e 22). Como percebemos, consolidaram-se no Brasil, no início da década de 1960, diferentes movimentos, adquirindo, em conjunto, proporções nacionais, em torno da conscientização, politização e mobilização da população, envolvendo diversas organizações e setores sociais, por meio da cultura e educação popular, buscando a transformação da estrutura de classes e da desigualdade de poder característica da sociedade brasileira. O Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife consistiu na criação de escolas para a população, aproveitando os espaços e salas de entidades esportivas, religiosas, associações de bairros. Em seu Plano de Ação para 1963, baseava-se nos pressupostos de que somente o povo poderia resolver os problemas populares, pela supressão de suas causas assentadas nas estruturas sociais vigentes, por meio da luta política sobre a realidade objetiva. Paulo Freire participou do MCP desde sua fundação. Segundo Gadotti (2006): A sociedade brasileira e latino-americana da década de 1960 pode ser considerada como o grande laboratório onde se forjou aquilo que ficou conhecido como o Método Paulo Freire. A situação de intensa mobilização política desse período teve uma importância fundamental na consolidação do pensamento de Paulo Freire, cujas origens remontam à década de 1950. (GADOTTI, 2006, p.49) Os Círculos de Cultura, a forma como neles se processava um diálogo crítico sobre as injustiças sociais, a consciência dos participantes populares sobre a realidade política do seu entorno, a visão de Freire sobre a importância de associar tais discussões num processo de alfabetização para torná-lo coletivo, criativo e transformador possibilitou-lhe a sistematização do seu método. A eficácia do método comprovada numa experiência em Angicos – RN, com a efetiva alfabetização de 300 trabalhadores em apenas 45 dias, determinaram o convite à Freire para consolidar uma proposta de alfabetização de adultos a nível nacional, no governo do Presidente 28 João Goulart. “Em 1964, estava prevista a instalação de 20 mil círculos de cultura para 2 milhões de analfabetos” (GADOTTI, 1991, p.32). A ditadura militar interrompeu todo esse movimento e Paulo Freire foi exilado, desenvolvendo seu método em outros países. Um método incrivelmente simples que busca no universo vocabular e cultural dos educandos as palavras carregadas de significados afetivos e sociais, para propiciam os temas geradores da leitura do mundo, da conscientização, da desmistificação da realidade imutável. Palavras que serão decodificadas e recodificadas no processo de alfabetização transformando-se em inúmeras outras possibilidades, à semelhança da realidade social. O grande diferencial do seu método, que traduz uma filosofia da educação, coincide alfabetização com conscientização, humanização, libertação; coisas concretizáveis apenas em comunhão, com diálogo e reconhecimento do outro como igual, na horizontalidade das relações humanas; ação que é práxis, transformação. II.2. O desenvolvimento do método do Teatro do Oprimido No Brasil da década de 1960 assistimos a uma grande mobilização por parte dos movimentos sociais e de contra-cultura, apesar dos anos ditatoriais, que tentaram emudecer e aniquilar todas as formas de contestação, questionamento ou proposta de mudança, a partir de 1964. O Teatro do Oprimido surge no final dessa década, a partir das discussões e experimentações que permeavam o Teatro de Arena, em São Paulo, opondo-se e apresentando resistência a todo aquele contexto autoritário e de censura política. Boal, juntamente com o grupo por ele dirigido naquele teatro, mesmo após a instalação da ditadura militar no país, continuaram buscando formas de se contraporem e denunciarem aquele estado de coisas, comprometidos com propostas de igualdade, justiça social e libertação humana. O Teatro de Arena surgiu no início da década de 50, ganhando importância no cenário artístico-teatral por coadunar com o movimento de cunho nacionalista, buscando valorizar a cultura nacional e retratar a arte e realidade brasileiras, com o objetivo de consolidar uma produção artístico-cultural com características nacionais, sem imitar as vanguardas artísticas ou reproduzir padrões culturais dos países desenvolvidos. Como afirma Garcia (2007): No processo de constituição do engajamento artístico nos anos1950 e 1960, o Teatro de Arena se destacou na construção da arte nacional-popular, dialogou com grupos de teatro amador e estudantil, 29 investiu na produção dramatúrgica brasileira e na formação do elenco e equipe técnica, se preocupou com a representação da realidade brasileira e realizou inúmeras atividades artístico-culturais. (GARCIA, 2007, p. 8 e 9). Importante salientar que essa mudança de padronização do repertório, firmando espetáculos de dramaturgos brasileiros, com estética própria começou a se definir na segunda metade de 1950, após adquirir sua própria sede. Data desta época a contratação de Augusto Boal, a organização do primeiro Seminário de Dramaturgia e a parceria com o Teatro Paulista do Estudante. Sua platéia, entretanto, permanecia seleta e “dentro do próprio grupo surgiu a crítica de que o Teatro de Arena não conseguia superar os limites do público e, conseqüentemente, atingir as massas”. (GARCIA, 2007, p. 9). Em sua autobiografia Boal (2000) relembra este momento: “No Arena, nós nos limitávamos a mostrar a vida pobre, como éramos capazes de entendê-la. Em cena nos vestíamos de operários e camponeses: os figurinos eram autênticos, mas não o corpo que os habitava.” (BOAL, 2000, p.177). Conta que, em todo o país, grupos de teatro abandonavam suas plateias em busca de novo público, para dialogar e conscientizar o povo. A vontade de buscar “o famoso público popular”, do qual tanto se falava, cresceu também no Arena. Foi em 1960 que Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha), Chico de Assis e outros integrantes se desligaram do Arena e constituiram, no Rio de Janeiro, o primeiro Centro Popular de Cultura (CPC), fundado em dezembro de 1961, na sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) e extinto em março de 1964. Sua proposta baseava-se na experiência do Arena, porém buscava concretizar a intenção de atingir e dialogar com o grande público, envolvendo estudantes, intelectuais e as camadas populares. A experiência do CPC se espalhou por diversas capitais brasileiras. Segundo Boal (2000): A ideia do Arena se bifurcou. Os do Rio se enturmaram com intelectuais ligados ao PC (ou não!) como Ferreira Gullar, Teresa Aragão, Carlos Estévão, Leon Hirzsman, Armando Costa, João das Neves e mais gente boa. Encontraram, na União Nacional dos Estudantes, lar acolhedor. Fundaram o Centro Popular de Cultura, de inspiração pernambucana. [...] A cisão do Arena foi fraterna, produto de divergências em nossas ideias e não de conflitos em nossos afetos. [...] Mais tarde, quando o CPC quis ter seu Seminário de Dramaturgia, foi a mim que recorreram como professor. (BOAL, 2000, p. 178 e 179). Uma crítica à atuação do CPC foi tecida por Chauí (1980) no sentido de contestar a “suposição de que o ‘povo fenomênico’ não é capaz de, sozinho, seguir a linha ‘correta’, precisando de um front cultural, constituído por aqueles que ‘optaram por ser povo’, só que mais 30 povo que o povo.” (CHAUÍ, 1980, p. 29). A autora denunciou também a correlata postura dos intelectuais que pressupunham a existência e, portanto, o alcance de uma inteligibilidade de modo homogêneo na sociedade. Boal (2000) reconheceu essa forma de pensamento e atuação nesta instituição. Afirmou: Muitos, antes de nós, que praticavam o assim chamado teatro político mensageiro, na verdade praticavam uma forma de teatro evangélico: evangelizavam, com doutrinas indiscutíveis, a palavra soberana de uma organização ou de um Partido. A grande maioria dos CPCs, a par de suas imensas virtudes jamais assas louvadas, padecia dessa doença.”(BOAL, 2000, p.177). A superação do teatro político doutrinário por um teatro de diálogo, constituiu uma forte preocupação e motivo de buscas e inquietação na vida de Boal, como será mostrado mais adiante. Boal considerou os anos de 1961 a 1964 como o período mais politizado da História do Brasil, ressaltando o efeito miraculoso da renúncia de Jânio Quadros de dinamizar a participação popular. Criado por Leonel Brizola, o movimento dos onze estendeu-se por grande parte do território nacional. Jango, o primeiro presidente de esquerda, assumiu seu cargo com uma forte pressão da população civil contra os militares avessos a sua posse, numa grande campanha pela legalidade no país. No campo, as Ligas Camponesas combatiam a escravidão e, nesse período, intensificou-se o movimento pela reforma agrária e pela educação, com o propósito de erradicar o analfabetismo brasileiro, que atingia um grande contingente de pessoas, trabalhadores dos meios urbano e rural. 1964 foi o ano do Golpe Militar, com as forças reacionárias brasileiras, apoiadas pelos Estados Unidos, impondo-se na direção da nação. No entanto, passado o susto inicial, os movimentos de resistência voltaram a se organizar. Boal (2000) relembra: “Membros do CPC da UNE [...] discutiam no Rio, como nós em São Paulo, a melhor resposta à ditadura. Nosso ponto de encontro foi o show-verdade: espetáculo no qual cantores, cantando, contariam suas histórias.” (BOAL, 2000, p.224). Do bar de Dona Zica e Cartola, no Rio de Janeiro, onde se reuniam estudantes, intelectuais e a população em geral em torno de uma boa música popular, comida brasileira e resistência política, surgiram os três nomes para o primeiro espetáculo: Nara Leão, Zé Ketti e João do Vale. “Opinião foi o primeiro protesto teatral coerente, coletivo, contra a desumana ditadura que tanta gente assassinou, torturou, tanto o povo empobreceu, tanto destruiu o que 31 antes chamávamos Pátria.” (BOAL, 2000, p. 228). Entretanto, para Boal, a estética e a forma apresentada nos shows Opinião mantinha a hierarquia teatral que segrega classes, separando palco e plateia, mantendo aquele como território sagrado, proibido para as pessoas do público. O experimento seguinte determinou uma série de espetáculos intitulada “Arena conta”. No palco foram retratadas as histórias de Zumbi, Tiradentes, Bolívar, entre outros. Arena conta Zumbi iniciou a série e formalizou o sistema coringa, o qual será explicitado mais adiante. Esses espetáculos assumiam uma narração coletiva do grupo contando a história. Os personagens eram representados por vários atores e a peça podia, a qualquer momento, ser interrompida pelo Coringa4. Este, sim, representado sempre pelo mesmo ator, exercia funções variadas no espetáculo, inclusive de comentarista, esclarecendo significados escondidos para o público. “Começo do diálogo com a platéia, que eu viria mais tarde a desenvolver plenamente com o Teatro do Oprimido.” (BOAL, 2000, p.231). Das experiências da década de 1960, Boal destacou três momentos, em especial, que o fizeram rever a proposta de um teatro político mensageiro, doutrinário, que levava uma palavra ao público sem, no entanto, os atores se implicarem, no sentido de correrem os mesmos riscos. O primeiro ocorreu após uma apresentação para camponeses no nordeste brasileiro, na qual os atores terminavam a peça cantando “A terra pertence a quem trabalha! Temos que dar nosso sangue para retomá-la dos latifundiários!” (BOAL, 2000, p.185). Um camponês chamado Virgílio convidou os atores para lutarem ao seu lado, contra os jagunços de um coronel invasor de terras. Diante da recusa dos atores o senhor concluiu, desenganado, que o único sangue a ser derramado era o deles, os camponeses. O segundo momento aconteceu no mesmo dia desta apresentação, porém, após a missa do anoitecer, quando Boal voltava a pé com o padre Batalha, para a casa paroquial onde estava alojado. Na homilia o padre falara: “Dizem que sou padre vermelho. Não é verdade: sou branco como minha batina. Mas há de chegar o dia em que minha batina e eu ficaremos vermelhos com o sangue dos latifundiários nazistas!” (BOAL, 2000, p.186). No caminho de volta o padre relatou a situação desumana dos camponeses no Brasil, muito vivendo em regime de escravidão, pois trabalhavam nos latifúndios a troco de suprimentos, gerando dívidas com os coronéis que só 4 Em seu primeiro livro, intitulado Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, Boal utiliza o termo Coringa. Posteriormente, vê-se Curinga em suas obras. Neste trabalho será utilizado Coringa para as experiências no Teatro de Arena e Curinga para o Teatro do Oprimido. 32 aumentavam. Padre Batalha afirmava que ser verdadeiramente cristão implicava em tomar partido e ele estava disposto a correr os mesmos riscos, junto com os camponeses, na luta pela reforma agrária. O terceiro episódio desenvolveu-se na apresentação da peça A greve, escrita em um Seminário de Dramaturgia, organizado por Boal, no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André - SP. “No final do Seminário cada qual tinha uma peça: a de Jurandir foi a mais elogiada. A greve contava greve acontecida na região do ABC, berço do PT. Fiquei eufórico com sua capacidade em criar personagens autênticos, como se dizia. Multidimensionais, não estruturas ocas.” (BOAL, 2000, p.193). A peça fora montada com recursos do Sindicato e encenada pelos operários. No dia da apresentação diferentes espectadores identificaram-se com os personagens mostrados no palco. Um deles, conhecido por Magro, reconheceu-se no personagem do Gordo. Porém, não admitia as palavras ditas pelo Gordo no palco e sentia a necessidade de corrigi-lo, justificando-se para os amigos da plateia. Assim, Magro invadiu a cena e, para garantir a continuidade do espetáculo, Boal propôs que ambos, o ator do personagem Gordo e o espectador Magro, atuassem em cena: o primeiro com o texto da peça, o segundo trazendo sua versão dos fatos. “Ainda não era Teatro-Fórum, mas foi um fórum dentro do teatro. [...] Em Santo André comecei a pensar em explorar essa fronteira: a verdade da ficção e a ficção da verdade.” (BOAL, 2000, p.196). Boal data o nascimento do Teatro do Oprimido no início dos anos 70, em plena a censura da ditadura, com as atividades desenvolvidas, principalmente a partir de textos jornalísticos, no Teatro de Arena. Em entrevista à revista Palavra comenta: Estava impossível trabalhar, até que em 70 nós começamos uma turnê de ‘Arena Conta Zumbi’ pelos Estados Unidos e México, estabelecendo elos pra ter apoio fora, para denunciar a ditadura. Na volta me lembrei de uma ideia que tive com o Vianinha: ler os jornais pela manhã, ensaiar as cenas à tarde e apresentar à noite. (BOAL, apud Araújo, 2000, p.100). O denominado Teatro Jornal promovia a leitura e encenação crítica desses e de outros textos a partir de diferentes técnicas que associavam o cruzamento de informações a recursos artísticos, expressivos e estéticos para atingir suas entrelinhas, indo além das aparências e ampliando seus significados, articulando-os a outros contextos e tempos históricos. 33 O Teatro Jornal é considerado a primeira modalidade teatral do conjunto de técnicas que compõem o Teatro do Oprimido, contendo seus fundamentos, propondo-se à disseminação do método, de modo que as pessoas oprimidas possam dele se apropriar para produzir suas próprias leituras, seu próprio teatro, e desenvolverem sua consciência crítica do mundo. Aqui já encontramos conceitos chaves deste teatro, de influências visivelmente marxistas: possibilitar aos oprimidos a posse dos meios de produção artística e de modo crítico, dialógico, dialético, em coletivo. “Nosso sonho era propagar as técnicas para que todos pudessem fazer teatro, usar essa linguagem tão rica para pensar o que fazer.” (BOAL, 2000, p.271). A censura, porém, especialmente após o AI-5 em 1968, tornava o teatro cada vez mais impraticável no país. Boal foi preso, torturado e seguiu exilado para a Argentina, em 1972. Lá desenvolve o Teatro Invisível, a partir de uma experiência inusitada: Iria apresentar, juntamente com o grupo de atores de um curso, uma peça na rua. O momento político já não lhe era favorável em função da situação política argentina e, percebendo que poderiam ter problemas, considerando, ainda, se tratar de uma cena passível de ocorrer de modo cotidiano, um ator sugeriu encená-la de forma “invisível”, sem explicitar o fato teatral. Deste modo, retiraram os figurinos e atuaram em um local semelhante ao cenário da cena: um restaurante. O garçom e o gerente foram substituídos pelos do próprio restaurante e, sem saberem, assumiram falas muito semelhantes ao texto da peça. “Na minha mesa, pude ver essa coisa extraordinária: a interpretação da ficção na realidade. Superposição de dois níveis do real: a realidade cotidiana e a realidade da ficção ensaiada.” (BOAL, 2000, p.293). Os clientes tomaram partido da situação e a experiência revelou-se útil para mobilização das pessoas sobre diferentes questões sociais. O Teatro do Oprimido não é um método de puro entretenimento; propõe-se a transformação da realidade, o que pressupõe a ativação das pessoas, seu posicionamento crítico, com enfrentamento das situações de opressão e injustiça social. Em sua obra, Boal considera “o teatro como arte marcial”, como intitula um de seus livros, remetendo-o a um meio de luta, sempre em prol das classes oprimidas. O Teatro do Oprimido, em todas as suas formas, busca sempre a transformação da sociedade no sentido de libertação dos oprimidos. É ação em si mesmo, e é preparação para ações futuras. “Não basta interpretar a realidade: é necessário transformá-la!” – disse Marx, com admirável simplicidade. (BOAL, 2005, p. 19). 34 No Peru, trabalhando com pessoas de diversas etnias e diferentes línguas maternas, Boal alça mão do Teatro Imagem para promover a comunicação através dos corpos e analisar as relações de poder e opressão na sociedade. Neste mesmo país, desenvolvendo teatro em uma experiência de alfabetização realizada em Chaclacayo, em 1973, formula o Teatro-Fórum. Conta Boal (1996) que trabalhava com um grupo de atores com a Dramaturgia Simultânea: a encenação retratava problemas reais relatados pelas pessoas do local e as propostas de solução eram sugeridas pelo público, porém encenadas pelos atores. Quando diferentes encenações da atriz não satisfizeram uma mulher da plateia, Boal propôs que ela mesma entrasse em cena e atuasse. Entendeu: “quando é o próprio espectador que entra em cena e realiza a ação que imagina, ele o fará de uma maneira pessoal, única e intransferível, como só ele poderá fazê-lo e nenhum artista em seu lugar”. (BOAL, 1996, p.22 - A). O Teatro-Fórum é a modalidade mais praticada do Teatro do Oprimido. Constitui-se na montagem de uma pequena peça retratando um problema da vida real dos participantes. Em cena, pelo menos um personagem oprimido e um opressor entram em conflito em prol de seus ideais. O personagem oprimido fracassa e o público é convidado a substituí-lo na peça para propor, ativamente, alternativas de solução do problema. “Nenhum teórico contemporâneo explorou as implicações políticas da relação espetáculo-platéia de maneira tão penetrante e original quanto o diretor latino-americano Augusto Boal. [...] No “teatro do oprimido”, já o espectador não delega poderes ao ator, “mas assume ele mesmo o papel do protagonista, altera a ação dramática, sugere soluções, discute projetos de mudança”. [...] A chave é o “Curinga”, figura situada entre a peça e a platéia que comenta, orienta, cria e quebra a ilusão. Age de modo oposto ao protagonista, instando o público a ver a peça com olhos críticos, em vez de tentar mergulhar emocionalmente nela”. (CARLSON, 1997 - p. 458 e 459) Em seu primeiro livro, Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, Boal introduz sua proposta: “É necessário derrubar muros! Primeiro, o espectador volta a representar, a atuar: teatro invisível, teatro foro, teatro-imagem, etc. Segundo, é necessário eliminar a propriedade privada dos personagens pelos atores individuais: Sistema Coringa” (BOAL, 2005, p.177). E relata a experiência do Arena com a rotatividade dos atores representando diferentes personagens num mesmo espetáculo, bem como promovendo o comentário da peça. O termo faz uma alusão à carta multifuncional do baralho que assume diferentes funções, conforme o jogo. Aprofundaremos as questões sobre o curinga em capítulo posterior. 35 Exilado na Europa, Boal morou primeiramente em Portugal e, em 1978, mudou-se para França, para lecionar na Sorbonne. Em Paris fundou o Centre du Théâtre de l’Opprimé. “O CTO desenvolve o método de Teatro do Oprimido, que se baseia na convicção de que o Teatro é a linguagem humana por excelência. [...] Alguns de nós “fazemos” teatro, mas todos nós “somos” teatro.” (BOAL, 1996, p. 30 - B). No Centro de Teatro do Oprimido de Paris Boal desenvolveu as técnicas do Arco-Íris do Desejo, voltadas para os chamados “tiras na cabeça”: policiais introjetados e atuantes dentro de nós. Tais técnicas podem ser utilizadas em processos terapêuticos, porém Teatro do Oprimido não é terapia. Desse modo o Arco-Íris do Desejo se demonstra extremamente útil na análise das opressões internalizadas dos atores e personagens, ajudando na revelação e compreensão de valores sociais constitutivos de determinada sociedade e que influenciam ou mesmo direcionam as ações de seus cidadãos de modo inconsciente. O conceito de cidadão para Boal é aquele que transforma a sociedade na qual vive. Após a anistia, Boal regressa ao Brasil, em 1986, atendendo ao convite de Darcy Ribeiro, na época vice-governador do Estado do Rio de Janeiro, para trabalhar nos CIEPs. Estes Centros Integrados de Educação Pública foram estruturados para abarcar cultura e educação de modo associado, buscando desfazer um erro comum nas escolas que relegam aspectos culturais a um plano secundário. Uma das respostas está no trabalho de animação cultural, que contribui para transformar a escola num espaço verdadeiramente democrático, integrando o processo educacional à vida comunitária e reunindo alunos, pais, vizinhos, artistas e professores numa dinâmica que soma a igualdade de oportunidades à consciência da desigualdade de condições. A animação cultural é desenvolvida nos CIEPs como um processo conscientizador, que resgata o mais autêntico papel político e social da escola. Tudo começa com a cultura local, suas manifestações, o fazer da comunidade, seus artistas e seu cotidiano (antes tão ausentes dos currículos escolares), que são progressivamente incorporados no dia-a-dia da escola. (RIBEIRO, 1986, p.133). Ao todo foram reunidos 35 animadores culturais dos CIEPs, “gente que, em sua maioria, nunca havia feito teatro – alguns jamais assistido a uma peça – e fizemos um intenso trabalho, mostrando nossos exercícios, jogos e técnicas de Teatro-Imagem, Teatro-Fórum e TeatroInvisível.” (BOAL, 1996, p. 31 - B). Após um mês e meio, com um repertório de cinco peças curtas abordando questões sobre moradia, desemprego, violência contra a mulher e sexual, discriminação racial, drogas, entre outras, iniciou-se uma série de apresentações nesses centros de educação. 36 Com a mudança do governo, após as eleições de 1986, o projeto de Teatro do Oprimido nos CIEPs não foi adiante. Em 1989 “um grupo de teimosos sobreviventes da experiência dos CIEPs” procurou Boal propondo a criação de um Centro de Teatro do Oprimido, no Rio de Janeiro. Assim constitui-se o CTO-Rio. “Informal, trabalhando de vez em quando: reuniões internas para estudar o “Arsenal” (conjunto de técnicas, jogos, exercícios) e trabalho externo quando se conseguisse algum contrato.” (BOAL, 1996, p. 35 - B). Em 1992 Boal foi eleito vereador no município do Rio de Janeiro e desenvolveu o Teatro Legislativo, juntando Teatro com Política, fazendo teatro como política. Sendo eleito, eu poderia contratar todos os animadores culturais do CTO para realizar nossa experiência: ir além do Teatro-Fórum e inventar o Teatro Legislativo! [...] Pela primeira vez, na história do teatro e na história da política, abria-se a possibilidade de uma companhia teatral inteira ser eleita para um parlamento. Esta proposta foi colocada com toda a honestidade para o eleitorado: todos os meus eleitores sabiam que, votando em mim, estariam votando numa proposta muito clara: unir o teatro e a política. (BOAL, 1996, p. 41 - B). Nas apresentações das peças, retratando os problemas dos grupos comunitários com os quais o CTO trabalhava, instituía-se a Sessão Solene do Teatro Legislativo. O público presente, então, escrevia propostas de leis que eram submetidas à análise de assessores jurídicos e à apreciação e votação da própria plateia. As propostas aprovadas eram reescritas em forma de Projetos de Lei e encaminhados para a votação na Câmara Municipal. Ao todo foram apresentados 33 Projetos de Lei dos quais 13 foram aprovados. Ao longo desses anos a equipe do CTO-Rio passou por várias transformações e se ampliou. Nos anos anteriores ao seu falecimento, em maio de 2009, Boal, juntamente com esta equipe, se dedicou à pesquisa sobre a Estética do Oprimido. Um de seus objetivos é ampliar a capacidade criadora dos oprimidos, possibilitando o trânsito em diferentes linguagens artísticas, favorecendo a expressividade e apropriação dos meios de produção artística. “Uma Estética Democrática, ao estimular os Oprimidos a produzirem suas obras, vai ajudá-lo a eliminar os produtos pseudoculturais que são obrigados a tragar no dia-a-dia da televisão e outros meios de comunicação de propriedade dos opressores” (BOAL, 2009, p.19). Hoje o Método do Teatro do Oprimido é praticado em dezenas de países, nos cinco continentes do planeta. É representado por uma grande árvore, numa metáfora bastante bonita, apesar de críticas referentes a esta imagem centralizadora, em oposição ao conceito de rizoma, formulado por Deleuze e Guattari, no final da década de 1970. Gallo (2003) esclarece: 37 A metáfora tradicional da estrutura do conhecimento é a arbórea: ele é tomado como uma grande árvore, cujas extensas raízes devem estar fincadas em solo firme (as premissas verdadeiras), com um tronco sólido que se ramifica em galhos e mais galhos, estendendo-se assim pelos mais diversos aspectos da realidade. [...] O paradigma arborescente implica uma hierarquização do saber, como forma de mediatizar e regular o fluxo de informações pelos caminhos internos da árvore do conhecimento. (GALLO, 2003, p.88 e 89). O rizoma, ao contrário, remete à imagem de multiplicidade, sendo irredutível à unidade; permite diferentes conexões, ao passo que o fluxo hierárquico da árvore implica uma ordem específica e encadeada de conexões. Ao rizoma, portanto, associa-se a heterogeneidade, em oposição à hierarquia das relações que implica uma forma de homogeneização. A cartografia do rizoma apresenta entradas múltiplas, assim como inúmeras linhas de fuga, apontando para novas, diferentes e insuspeitas direções. A metáfora do rizoma subverte a ordem da metáfora arbórea, tomando como imagem aquele tipo de caule radiciforme de alguns vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas em meio a pequenos bulbos armazenatícios, colocando em questão a relação intrínseca entre as várias áreas do saber, representadas cada uma delas pelas inúmeras linhas fibrosas de um rizoma, que se entrelaçam e se engalfinham formando um conjunto complexo no qual os elementos remetem necessariamente uns aos outros e mesmo para fora do próprio conjunto. Diferente da árvore, a imagem do rizoma não se presta nem a uma hierarquização nem a ser tomada como paradigma, pois nunca há um rizoma, mas rizomas; na mesma medida em que o paradigma, fechado, paraliza o penamento, o rizoma, sempre aberto, faz proliferar pensamentos. (GALLO, 2003, p.93). Enraizada no solo da Ética e da Solidariedade, a árvore do Teatro do Oprimido é alimentada pelas ciências humanas e sociais e pela filosofia. Suas raízes, o que sustenta a árvore, são compostas pela palavra, o som e a imagem. Seu tronco abarca os jogos teatrais, o Teatro Imagem e o Teatro-Fórum. Sua copa integra o Teatro Jornal, o Arco-Íris do Desejo, o Teatro Invisível e o Teatro Legislativo, sendo representada, no topo, pelas Ações Sociais Concretas e Continuadas. Um pássaro representa os praticantes multiplicadores do Método, conforme figura abaixo: 38 ESQUEMA 1: Árvore do Teatro do Oprimido Fonte: Apostila do Projeto Teatro do Oprimido de Ponto a Ponto – CTO-Rio - 2007. Sua prática tem se disseminado para diferentes espaços sociais, propiciando ações educativas, políticas, críticas, dialógicas e transformadoras em instituições prisionais, de saúde mental, escolares, grupos culturais, movimentos sociais e variadas organizações. II.3. Relações entre a Pedagogia do Oprimido e o Teatro do Oprimido Nascidos em uma mesma época, os paradigmas do teatro de Boal guardam estreitas relações com a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Este escreveu uma extensa e profunda obra, sendo o principal referencial da abordagem sócio-cultural na educação brasileira. Identificando educação com prática de liberdade, propõem uma ação integrada onde educador e educando se aventuram juntos na experiência de aprendizagem. O processo educativo se dá com relações democráticas e horizontais, com diálogo, respeito mútuo, ação conjunta e reconhecimento do saber do outro. Pronunciou, assim, uma educação libertadora em oposição à bancária, na qual o educando se converte em ser passivo no processo de aprendizagem de conteúdos pré-estabelecidos e transmitidos de modo massificador. 39 Freire concebe a educação como uma prática humanizadora, comprometida com a libertação, com ação e reflexão dos seres humanos sobre o mundo, com a finalidade de transformá-lo, e autonomia para a atuação social, numa democratização fundamental com participação de todas as pessoas em todos os níveis da sociedade. Como afirma Teixeira (2007): “Freire assume o papel de educador-educando popular, de contribuinte ativo da construção de uma sociedade menos desigual e menos injusta. Uma educação para formar cidadãos integrais e não uma educação excludente (ou sem acesso efetivo) a escola como uma educação cidadã” (Teixeira, 2007 – p. 41). Para Freire “aprender é uma descoberta criadora, com abertura ao risco e à aventura do ser, pois ensinando se aprende e aprendendo se ensina” (Freire, 1996, p.30). A educação se faz com relações horizontais, considerando o ser humano real, com diálogo que parte da interação com sua realidade. “... educador já não é aquele que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando, que ao ser educado, também educa...” (Freire, 1977, p.90). Associa a educação à experiência vivida, ao trabalho, à política; entende que os problemas da educação estão enraizados aos da sociedade. Propõe uma educação problematizadora, na qual pensamento é ação reflexiva e transformadora sobre a realidade, em contraposição à educação bancária, com conteúdos rígidos, pré-estabelecidos e impostos de forma hierárquica as/aos educandas/os. Sua prática de pesquisa não separa nem hierarquiza sujeito pesquisador de sujeito pesquisado. Ao contrário considera e integra o saber popular na ação investigadora que é também ação educadora e transformadora da realidade presente. Ambos aprendem e se transformam juntos, com a interação propiciada pela prática da pesquisa participante, de modo reflexivo sobre a realidade. Augusto Boal, por sua vez, sistematizou um método teatral dialógico, crítico, voltado para a transformação social. No Teatro do Oprimido, como já anunciamos anteriormente, o conceito de cidadania não se liga às pessoas adaptadas à sociedade e sim àquelas que a transformam. Introduz-se, deste modo, a ideia do cidadão crítico, capaz de intervir nos valores de seu tempo, refletindo sobre as práticas históricas da humanidade, denunciando as mazelas sociais e anunciando, por meio da ação transformadora, uma nova sociedade. Segundo os pressupostos do Teatro do Oprimido, essa nova sociedade se baseia na ética solidária, dialógica, comunitária. Solidariedade, diálogo, comunhão pressupõem, fundamentalmente, a existência do outro. O trabalho com Teatro do Oprimido se faz, assim, reconhecendo o outro, de modo coletivo, em meio às discussões e análises que permitem o desenvolvimento do grupo, debruçado sobre os problemas da realidade em que vivem, em vias de transformá-la. 40 Ambos, o Teatro e a Pedagogia do Oprimido, são frutos de uma mesma época, trazendo em si as concepções de educação e cultura popular geradas naquele período. Enquanto Oliveira (2005) lança luz aos atuais problemas que afligem a profissão e o profissional docente com as mudanças no campo educacional, Paranhos (2009) aposta que “a utilização das ferramentas do Teatro do Oprimido atende ao objetivo de formação de um professor autônomo, onde se torna premente um trabalho que se baseie na construção da autoimagem do professor, e que, também, possibilite a ressignificação do ato educativo” (PARANHOS, 2009, p.18). Não pretendemos neste trabalho identificar o Teatro do Oprimido com um método mágico capaz de solucionar imediatamente os complexos processos em curso na educação pública brasileira contemporânea, mas com um possível aliado, representante de uma globalização contra-hegemônica, caminhando, portanto, na contra-mão de processos sóciopolíticos, mercantis e culturais massificadores e opressores que se pretendem hegemônicos, por isso passível de promover novos olhares sobre a escola, seus sujeitos e finalidades de suas práticas. Para Boal: “Pensar é organizar o conhecimento e transformá-lo em ação...” e “Consciência é a reflexão do sujeito sobre si próprio e sobre o significado dos seus atos, não apenas sobre suas conseqüências” (BOAL, 2009, p.29-30). Uma prática extremamente arraigada no cotidiano da escola que corrobora com a regulação social e favorece os domínios de uma mentalidade de hegemonia intransitiva, imposta de cima para baixo ou do centro às periferias, é a hierarquia. A hierarquia escolar impõe uma graduação de autoridade semelhante à pirâmide de classes, com a direção no alto e fino topo, passando em sentido descendente pelos supervisores, professores, demais profissionais e estudantes - estes ocupando a mais larga base, podendo ainda ser subdivididos e graduados de acordo com sua correspondência às expectativas escolares, adquirindo maior ou menor autoridade junto aos professores conforme esta adequação. A hierarquia associa-se, também, à meritocracia escolar, com os padrões de méritos definidos prévia e exteriormente aos sujeitos, reforçando uma sociedade desigual e sem oportunidades para todos. A noção de hierarquia (saber-ignorância) é muito cara à escola capitalista. Ao contrário, Paulo Freire e Augusto Boal insistem na conectividade, na gestão coletiva do conhecimento social a ser 41 socializado de forma ascendente, na vivência da alteridade, como espaço não só de respeito do outro, mas também de se colocar no lugar dele, de representá-lo, senti-lo, valorizá-lo (GADOTTI, 2007). O Teatro do Oprimido é um dos métodos teatrais que rompe os muros hierárquicos que na nossa sociedade separa atores e platéias, funciona com base numa estrutura democrática, de diálogo e propõe um processo horizontal e coletivo para a construção dos personagens e da peça. Acredita-se que o seu desenvolvimento em meio escolar possa colocar em cheque a estrutura antidemocrática da escola, desvelando práticas opressoras cotidianas invisibilisadas e apontando caminhos mais dialogados de construção do processo de conhecimento. Nesse sentido, TeatroFórum, cuja metodologia foi desenvolvida e analisada para fins deste estudo, realiza: O encontro entre espectadores que debatem suas idéias com os atores que lhes contrapõem as suas. De certa forma, uma profanação: profana-se a cena, altar onde costumeiramente oficiam apenas os artistas. Destrói-se a peça proposta pelos artistas para, juntos, construírem outra. Teatro não didático no velho sentido da palavra e do estilo, mas pedagógico no sentido de aprendizado coletivo (Boal, 1996, p. 22 - A). Para Gadotti (2007), “O potencial pedagógico do teatro é ainda maior quando ele se torna intencionamente educador, como é o caso do Teatro do Oprimido” (GADOTTI, 2007, p.42). Paranhos (2009) traça um quadro comparativo entre essas duas propostas destacando o esfacelamento da barreira entre educador e educando, na proposta de Freire, e o esfacelamento da barreira entre espetáculo e platéia, no teatro de Boal; o papel ativo do educando que “participa tanto da pergunta quanto das possíveis respostas” na Pedagogia do Oprimido, em afinidade com os espectadores que “participam da produção, roteiro, atuação da dramaturgia e propõem e encenam soluções” no Teatro do Oprimido; a educação “como um processo que extravasa a escola e segue pela vida, em sua transformação – vocação humana de ser mais” e o espetáculo “como um processo que extravasa o teatro e segue pela vida, exigindo ações concretas em transformação da realidade” (PARANHOS, 2009, p.99). Boal parte do princípio que todo teatro é político, pois se trata de uma ação humana; assim como é política a atitude que tenta separar o teatro da política, nos induzindo ao erro. O título ‘Teatro do Oprimido’ traz essa dupla dimensão: artística (Teatro) e política (do Oprimido). O teatro é também uma arma muito eficiente, por isso “as classes dominantes permanentemente tentam apropriar-se do teatro e utilizá-lo como instrumento de dominação” (Boal, 2005, p.11). O mesmo acontece com a educação para Freire, isto é, ação essencialmente política a qual é 42 exercida nos estabelecimentos de ensino de modo opressiva, bancária, impositiva, pacificando o indivíduo em favor das classes dominantes na sociedade. Não se pode entender o pensamento pedagógico desses dois grandes mestres deslocado de um projeto social e político. A liberdade é a categoria central da pedagogia e oprimido e do teatro do oprimido. A libertação se constitui na finalidade da educação transformadora. O fim da educação será, então, libertarse da realidade opressiva e da injustiça. A educação visa à libertação, à transformação radical da realidade, para melhorá-la, para permitir que homens e mulheres sejam reconhecidos como sujeitos da história (GADOTTI, 2007, p. 43). Tanto a Pedagogia do Oprimido como o Teatro do Oprimido são dialógicos: diálogo fundamentado no reconhecimento do outro e de si, constrói-se coletivamente para denunciar as estruturas desumanizantes e anunciar a humanização da humanidade. Esse anúncio se dá conforme a práxis freiriana que é ação-reflexão sobre o mundo. Como afirma Teixeira (2007): Tanto Boal quanto Freire defende o diálogo e a cooperação entre sujeitos na busca de problematizar, compreender e transformar a realidade. Nesta direção, ambos dão a palavra ao povo, para falar sobre sua vida, como passo fundamental para o desenvolvimento da autonomia e o engajamento na transformação do mundo. Boal dá a palavra ao espectador, através do teatro viabiliza a possibilidade de relatarem as próprias vivências, desenvolverem sua autonomia, seu juízo crítico e sua responsabilidade. Freire fornece ao educando a autonomia da construção da palavra para que possa interferir e transformar o mundo, pois, ao dizer a própria palavra a pessoa inicia a construir conscientemente seus próprios caminhos (TEIXEIRA, 2007, p.123). Pensar e conhecer o mundo não são atos solitários, requerem a relação com o outro, precisam de expressão e comunicação, estabelecem-se numa dimensão dialógica, associados à transformação da sociedade para superação da opressão. “Diante dos fundamentalismos cada vez mais fortes, o diálogo já não é mais uma opção política. O diálogo é hoje um imperativo histórico e existencial. A alternativa ao diálogo é o terrorismo, a especulação da violência, é a globalização da crueldade, a guerra, o simulacro” (GADOTTI, 2007, p.43). Para precisarmos o conceito de opressão recorremos a Julian Boal, pesquisador e curinga do Teatro do Oprimido. Segundo ele, opressão não se define de maneira absoluta, precisa ser analisada no contexto social. As relações entre um homem e uma mulher, por exemplo, se estabelecem, em nossa sociedade, num contexto patriarcal; o mesmo podemos dizer sobre as relações entre brancos e negros e o racismo; ou entre patrão e empregado e o capitalismo. Tão pouco é definido apenas em termos de violência. Toda opressão é uma violência, mas nem todo ato violento é uma opressão. “Opressão é uma relação concreta entre indivíduos que fazem parte 43 de diferentes grupos sociais, relação que beneficia um grupo em detrimento do outro” (BOAL, J., 2010, p.124-125). O conceito de oprimido se contrapõe ao de vítima e de excluído. Vítima remete à falta de recurso, “como um objeto do qual devemos ter pena, sentir culpa ou remorso [...] O Tsunami fez vítimas, não oprimidos; um terremoto, uma inundação, a erupção de um vulcão fazem vítimas” (BOAL, Julián, 2010, p. 125). A palavra excluído, por sua vez, “esconde a relação causal que existe entre os privilégios de um grupo e a opressão de outro” (Boal, Julián, 2010, P.126). Outra característica desses dois termos é que eles insistem no caráter periférico, intermitente, da injustiça. A palavra opressão, ao contrário, insiste no lugar central da injustiça enquanto fundamento das nossas sociedades. Devemos reconhecer que não existe nenhum romantismo revolucionário no uso da palavra opressão. Ser oprimido é uma posição social, não é uma estratégia política. Dentro de um mesmo grupo oprimido coexistem várias estratégias. (Boal, Julián, 2010, P.126). “Nosso teatro se dedica à investigação de situações de opressão, cujo sentido aqui está intrinsecamente ligado ao de injustiça, ao de desequilíbrio de poder e de falta de equidade no acesso a recursos e oportunidades” (SANTOS, Bárbara, 2010, p.69). “Vencer uma opressão não é tarefa para um herói ou um messias; é a tarefa de coletivos, grupos, de organizações, de massas” (BOAL, Julián, 2010, p.126). A análise das opressões reclama o diálogo, o coletivo promovendo reflexões acerca do mundo em que vivemos, para analisar as relações e práticas sociais às quais estamos imersos, mas não submetidos de modo determinista, fatalista e passivo. Tanto em Boal como em Freire o contrário de opressão é a emancipação. Sua análise é práxis, é ação-reflexão transformadora, é educação emancipadora, que não se propõe apenas a vencer o opressor, mas a superar a situação de opressão. Para Boal (2009) “existem duas formas humanas de pensamento – Sensível e Simbólico e não apenas esta que se traduz em discurso verbal. São formas complementares, poderosas, e são, ambas, manipuladas e aviltadas por aqueles que impõem suas ideologias às sociedades que dominam” (BOAL, 2009, p.16). Do mesmo modo que o analfabetismo das letras é usado pelas classes dominantes “como arma de isolamento, repressão, opressão e exploração” existe o analfabetismo estético que “vulnerabiliza a cidadania, obrigando-a a obedecer mensagens imperativas da mídia, da cátedra e do palanque, do púlpito e de todos os sargentos, sem pensálas, refutá-las, sequer entendê-las” (BOAL, 2009, p.15). 44 Com a Estética do Oprimido Boal amplia o significado de ser humano. No início de sua obra afirmava que ser humano é ser teatro, inclusive no sentido das representações cotidianas, nos papéis que assumimos no nosso dia-a-dia; é teatro pela capacidade de se observar em ação, de se desdobrar e pensar o próprio pensamento no momento da ação. Em seu último livro5 Boal diz: “Ser humano é ser artista”. Em ambas as definições, entretanto, concebe o humano como ser criador e transformador de sua realidade. Seu método artístico-teatral propicia que os participantes se expressem em diversas linguagens, se reconheçam como produtores (e não apenas consumidores passivos) de arte e cultura, ressignificando o conceito de belo imposto e valorizado pela mídia. Afirmo que não existe o mais-belo e o menos-belo, conceitos criados em sociedades competitivas – hoje, neoliberais – nas quais é importante ser o primeiro, o mais rico, mais forte e melhor. Penso, ao contrário, que cada coisa, material ou imaterial, é ou não bela em função da sua qualidade de, através dos nossos sentidos, significar uma verdade, real ou imaginária, consciente ou não, dentro de condições temporais e concretas, quer nos atraia ou assuste (BOAL, 2009, p.39-40). Segundo o autor, “o ato de pensar com palavras tem início nas sensações e, sem elas, não existiria, embora delas se desprenda e se automatize até à sua mais total abstração.” (BOAL, 2009, p.27). Boal apresenta em sua obra uma “bela justificativa” para inventarmos palavras. Diz “todas as palavras que existem foram inventadas! Nenhuma existiu antes do ser humano. Somos humanos: inventemos!” (BOAL, 2009, p.79). Acrescenta: “Como a palavra não nos dá nenhuma certeza nem informação certa, temos que vê-la como se fosse imagem, ouvi-la como música, tocá-la com as mãos: sentí-la” (BOAL, 2009, p.80). Já em seu primeiro livro Boal explicita: O domínio de uma nova linguagem oferece, à pessoa que a domina, uma nova forma de conhecer a realidade, e de transmitir aos demais esse conhecimento. Cada linguagem é absolutamente insubstituível. Todas as linguagens se complementam no mais perfeito e amplo conhecimento do real. Isso é, a realidade é mais perfeita e amplamente conhecida através da soma de todas as linguagens capazes de expressá-la. (Boal, 2005, p.180). Concordamos com Boal que: “Existem saberes que só o Pensamento Simbólico pode nos dar; outros, só o Sensível é capaz de iluminar. Não podemos prescindir de nenhum dos dois” (BOAL, 2009, p.22). A educação escolar prioriza o simbólico sobre o sensível. “Da mesma 5 A Estética do Oprimido, escrito em vida, mas publicado após o seu falecimento. 45 forma que devemos aprender a ler e escrever, devemos aprender a ver e ouvir. O abandono deste ou daquele pensamento causa graves danos à expansão da personalidade” (BOAL, 2009, p.82). 46 III. DESCORTINANDO UMA EDUCAÇÃO NA ATUALIDADE III.1. Na contra-hegemonia do sistema Refletir sobre Educação na atualidade implica considerar uma gama de aspectos que abarcam desde ações no interior do Sistema de Ensino como nos diversos espaços sociais e culturais, perpassando seu histórico em contextos nacionais e internacionais, as concepções e mudanças de paradigmas na sociedade contemporânea, as políticas educacionais, os conceitos e funções da educação, suas instituições e práticas pedagógicas, bem como os sujeitos envolvidos nos diferentes processos educacionais. Vivemos em época de intensas relações transnacionais, caracterizada econômica e politicamente pela globalização dos sistemas de produção e de transferências financeiras; social e culturalmente observamos uma disseminação mundial de imagens e informações potencializadas pelas tecnologias de comunicações. A esses processos soma-se o grande fluxo de pessoas em deslocamento pelo mundo quer como turistas ou em migrações de trabalhadores ou refugiados. Esse período de intensificação dessas interações transnacionais iniciado no final do século passado vem sendo denominado por globalização, mundialização, modernidade global, sistema ou processo global, cultura de globalização, entre outros. Segundo Santos (2001) “Uma revisão dos estudos sobre os processos de globalização mostra-nos que estamos perante um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo. Por esta razão, as explicações monocausais e as interpretações monolíticas deste fenômeno parecem pouco adequadas. Acresce que a globalização das últimas três décadas, em vez de se encaixar no padrão moderno ocidental de globalização – globalização como homogeinização e uniformização – sustentado tanto por Leibniz como por Marx, tanto pelas teorias da modernização como pelas teorias do desenvolvimento dependente, parece combinar a universalização e a eliminação de fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro. Além disso, interage de modo muito diversificado com outras transformações no sistema mundial que lhe são concomitantes, tais como o aumento dramático das desigualdades entre países ricos e países pobres e, no interior de cada país, entre ricos e pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental, os conflitos étnicos, a migração internacional massiva, a emergência de novos Estados e a falência ou implosão de outros, a proliferação de guerras civis, o crime globalmente organizado, a democracia formal como condição política para a assistência internacional, etc.” (SANTOS, 2001, p. 32). 47 O autor desconstrói, portanto, a ideia da globalização como um processo linear e consensual e denuncia essa construção conceitual como um artifício ideológico para torná-la dominante e irreversível. O consenso hegemônico que confere à globalização características ideológicas dominantes no âmbito político-econômico mundial assenta-se sobre o neoliberalismo e as prescrições do chamado “Consenso de Washington”, ditado em meados dos anos de 1980, pelos países centrais, prescrevendo fortes restrições à regulação estatal sobre a economia, novos direitos de propriedade internacional para investidores estrangeiros e subordinação dos Estados nacionais às agências internacionais como o FMI, o Banco Mundial e a OMC. No domínio social, o consenso neoliberal de globalização imposto pelos países centrais aos periféricos por meio do controle sobre a dívida externa efetuado pelo Banco Mundial e FMI, sustenta que a estabilidade e o crescimento econômico se efetivam com a redução dos custos salariais, com o objetivo de impedir “o impacto inflacionário dos aumentos salariais”, determinando a redução dos direitos trabalhistas e benefícios associados ao lucro e produtividade empresariais. Subjaz a esta ideologia a adoção de medidas compensatórias contra a pobreza sem, entretanto, eliminá-la como parte substancial do processo e, portanto, justificável. Por isso Santos (2001) afirma: “A nova pobreza globalizada não resulta de falta de recursos humanos ou materiais, mas tão só do desemprego, da destruição das economias de subsistência e da minimização dos custos salariais à escala mundial” (SANTOS, 2001, p. 41). As normas e requisitos institucionais para desenvolvimento de um modelo neoliberal têm conseqüências além da regulação estatal sobre a economia, afetando a organização da sociedade como um todo. Entretanto, dado que tais mudanças ocorrem após um período de forte intervenção estatal sobre a economia e a vida social, tal retraimento não é obtido, paradoxalmente, por meio de uma forte intervenção estatal. “O Estado tem de intervir para deixar de intervir, ou seja, tem de regular a sua própria desregulação” (SANTOS, 2001, p.45). Santos demonstra que a globalização aponta para processos variados em nível econômico, político, geográfico, sócio-cultural. No âmbito cultural o termo globalização poderia ser designado por “americanização” ou “ocidentalização”, denunciando o imperialismo cultural que busca “universalizar artefatos simbólico-culturais como o individualismo, a democracia política, a racionalidade econômica, o utilitarismo, o primado do direito, o cinema, a publicidade, a televisão, a Internet, etc.” (SANTOS, 2001, p.51). 48 Por outro lado, o intenso fluxo entre fronteiras (de pessoas, idéias, informações, bens, trabalho, capital) promove hibridismos culturais plurimórficos, impedindo a denotação de uma cultura global. Aliás, cultura é justamente o campo das diferenças, “a luta contra a uniformidade”, interseções “entre o universal e o particular” (SANTOS, 2001, p.54). Como afirma Boal: “A globalização quer impor uma só maneira de ver, ouvir, sentir, gustar, pensar, fazer e ser. Mas as raízes voltam a crescer” (BOAL, 2009, p.39). E nas palavras de Munanga: ao mesmo tempo que a revolução tecnológica, a mutação do capital e o desaparecimento do estadismo, surge, no último quarto do século XX, um outro fenômeno maciço: fortes manifestações de identidades coletivas vêm desafiando a mundialização e o cosmopolitismo, em nome da singularidade cultural e do controle dos indivíduos sobre a vida e o meio ambiente. Múltiplas, extremamente diversificadas, elas tomam as formas de cada cultura e se abastecem nas fontes históricas constitutivas de cada identidade. (MUNANGA, 2002 ,p.84). Observamos, a partir da década de 1960, a intensificação de uma movimentação de caráter mais regionalista, fundamentada no reforço das sigularidades étnico-culturais em contraposição ao proposto processo de globalização que se desenhava. O suposto fim das barreiras econômicas vem acompanhado de uma dialética demarcação de espaços subjetivos que pincelaram no mapa as diversas identidades que constituem a população mundial. Os movimentos sociais da década de sessenta revelaram como os discursos universalizantes não respondiam às demandas específicas dessas identidades tão fragmentadas. Mostraram, por exemplo, que, mesmo superando a luta de classes proclamada pelos marxistas, manteríamos as bases de uma sociedade heteronormativa, racista, machista e conservadora. O feminismo trouxe para o debate político questões até então reconhecidas e tratadas como especificamente da vida privada. Os direitos reprodutivos, a sexualidade, o trabalho doméstico e a violência de gênero deixaram o espaço das quatro paredes e tornaram-se pauta pública. Adotando essa postura, o feminismo constituiu-se como um movimento de identidadeprojeto na definição de Munanga (2002), tendo em vista que colocou em cheque toda estrutura do patriarcado e propôs uma mudança radical na base de toda dinâmica social vigente até então. Hall (2001) aponta o feminismo como um dos cinco “grandes avanços na teoria social e nas ciências humanas” ocorridos na segunda metade do século XX, “cujo maior efeito, argumenta-se, foi o descentramento final do sujeito cartesiano. O feminismo faz parte daquele grupo de novos movimentos sociais”, que emergiram durante os anos sessenta e que apelava para a identidade social de seus sustentadores. Assim, o feminismo apelava às mulheres; a política 49 sexual, aos gays e lésbicas; as lutas raciais, aos negros; o movimento antibelicista aos pacifistas; e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política de identidade – pautando as singularidades existentes entre cada indivíduo (HALL, 2001, p.43-46). Os novos movimentos sociais trouxeram importantes reflexões para a educação em contraposição a um único modelo hegemônico vigente no imaginário do ideal escolar. O Movimento Negro apontou para os debates em torno do racismo e das políticas públicas de caráter afirmativo. Pautou questões como as desigualdades sociais entre negros e brancos, a saúde da população negra e o acesso da mesma à educação. Denunciou as discriminações sofridas por estudantes afro-descendentes nas escolas. Diferentes pesquisas revelaram a segregação desse grupo, percebida desde o modo de tratamento e expectativas de educadoras/es para com eles/as até os conteúdos didáticos e curriculares que tornam invisível a história e cultura negra do país. Este Movimento teve papel fundamental para a promulgação da lei nº 10.639, em 2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, excluídas das escolas sob a unicidade da história mundial européia, ou inserida apenas como fato folclórico, de forma estereotipada, com status inferior. E continua atuando na denúncia do modo como a história do negro no Brasil é retratada em termos de passividade e submissão ao branco nos textos e imagens dos livros didáticos; da forma como a estética negra permanece associada ao feio, ou no máximo ao exótico, estando ausente ou com raras aparições nas mídias televisivas e impressas; da maneira como o racismo brasileiro se processa camuflado, sob o discurso da sua inexistência, e revela-se nas estatísticas que colocam a população negra nos mais baixos patamares de acesso aos bens e serviços sociais valorizados em nossa cultura. O Movimento de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, por sua vez, denunciou a heteronormatividade imperante que produziu e reproduz o silenciamento desses grupos e promove a evasão de seus indivíduos da escola. No Brasil, sua origem foi a criação do Grupo de Afirmação Homossexual (SOMOS), em 1978, que reunia em seu círculo demandas variadas. Com o passar do tempo, o movimento foi referendando as singularidades dos diversos grupos que comportava e chegou a nossa época sob a sigla LGBT, anunciando as especificidades de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros que o compõem. 50 Apesar de se fortalecer enquanto movimento único, a organização política da comunidade GLBT é bastante plural, há organizações mistas – como é o caso da ABGLT – e específicas, como a Associação Brasileira de Gays (ABRAGAY), a Associação Brasileira de Lésbicas (ABL) e a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL). As travestis também dispõem de espaço de articulação autônomo, a Associação Nacional das Transgêneros (ANTRA), o mesmo ocorre para homens e mulheres que vivenciam a transexualidade, através da articulação do Coletivo Nacional de Transexuais (CNT). Recentemente também se articularam pessoas afrodescendentes, através da Rede Afro GLBT e jovens, através da Rede E-Jovem. (Texto-base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, 2008, p.7). A luta do movimento homossexual também alcançou novos parâmetros com implementação do Programa Brasil sem Homofobia, pelo Governo Federal, em 2005. Fundamentando-se em ações interministeriais, tem como principal objetivo desenvolver atividades de prevenção e combate a práticas e comportamentos homofóbicos na perspectiva da garantia dos direitos humanos. Outra mobilização social de fundamental importância no contexto nacional e internacional foi a das pessoas com deficiência. A princípio, essas pessoas – diagnosticadas pelo discurso médico como sujeitos que têm um déficit, uma perda, tanto na esfera orgânica quanto na psíquica - recebiam atenção das autoridades apenas de forma assistencialista. A partir da segunda metade do século XIX, foram surgindo no Brasil centros de atendimento especializado para cada tipo de deficiência que tinham um enfoque terapêutico, buscando a reabilitação do sujeito. As instituições de atendimento, entretanto, eram segregadas, recebendo pouca atenção do Estado e favorecendo o surgimento de muitas instituições particulares. As políticas e debates sobre a questão ganharam fôlego a partir da segunda metade do século XX, na perspectiva do direito e oportunidades para todos. Em 1981 a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) decretou o ano internacional das pessoas com deficiência. A partir daí, a concepção de inclusão deixou de ser baseada na homogeneização dos sujeitos segundo o modelo ocidental e apostou na convivência e no respeito à diversidade. Esse discurso é ponto central na Declaração de Salamanca elaborada na Conferência Mundial de Educação Especial, ocorrida na Espanha, 1994. A segunda metade do século XX trouxe as singularidades e, conseqüentemente, a diversidade, para a ordem do dia. As promessas de um futuro emancipatório começaram a ser enunciadas a partir de discursos que conjugavam os aspectos universalistas e as especificidades aclamadas pelos movimentos das minorias de caráter identitário. A partir desse contexto, a força e luta dos movimentos sociais impôs ao campo das Políticas Públicas a pauta da diversidade. 51 Nessa perspectiva, o caráter universalista que toda Política Pública carrega em si teve que dividir espaço com a preocupação das particularidades. É fato que não é possível implementar programas ou projetos que atendam cada cidadão em sua individualidade, todavia é indispensável que se considere as demandas apontadas por grupos identitários específicos. Cury (2008), analisando as Constituições Brasileiras, traça um panorama da aquisição dos direitos educacionais pela população, desde épocas imperiais, quando excluía negros, indígenas e pessoas de áreas pouco povoadas, até a Constituição de 1988 que universalizou o Ensino Fundamental, tornando-o dever do Estado e da Família, constituindo-o como direito subjetivo. “O texto constitucional reconhece o direito à diferença de etnia, de idade, de sexo e situações peculiares de deficiência” (CURY, 2008, p.216). O autor analisa o avanço em termos de reconhecimento de direitos, entretanto alerta sobre a distância que separa a realidade dos valores, princípios e normas constitucionais. A retração do Estado, forçosa em alguns casos, funcional noutros, não pode se efetivar em omissão diante de situações de desigualdade, disparidade, discriminação e privilégios. E nem pode exonerarse do seu papel de garantia do direito à educação como inalienável à pessoa e à sociedade. É dele, sobretudo, que a sociedade continua esperando condições para a ultrapassagem de situações de excludência, vindas do passado e aliadas a outras nascidas dos tempos presentes. (CURY, 2008, p. 219). Sobre a regulação estatal das políticas educativas, Oliveira (2005) afirma se tratar de um campo novo de estudos e busca analisar como as reformas dos sistemas educacionais que se procederam em muitos países da América Latina a partir de 1990 trouxeram conseqüências para as escolas e trabalhadores docentes no Brasil, reconhecendo a importância da escola pública como agencia estatal, presente em diferentes regiões, desde os grandes centros às periferias, nos meios urbanos e rurais e, em muitos contextos, constituindo-se como a única presença estatal junto à população. Para a autora a escola continua facilitando o processo de coesão social, contribuindo na regulação da sociedade “quer como agências formadoras de força de trabalho, quer como disciplinadores da população” (OLIVEIRA, 2005, p.764). A regulação da educação se insere entre as tensões de transformação do papel do Estado num contexto de mundialização das tecnologias de comunicação, com um modelo mercantil ascendente e disputas entre políticas educativas neoliberais e humanista-igualitárias. As políticas reguladoras associam contrapontos como autonomia financeiro-administrativa e sistemas 52 nacionais de avaliação, autonomia pedagogia e prescrição curricular, descentralização executiva e centralização no controle de resultados. A flexibilidade, a descentralização, o respeito à diferença e o reconhecimento da alteridade, elementos da retórica pós-modernista e tão presentes na nova regulação educativa que toma a escola como lócus do sistema e lugar por excelência da articulação entre o global e o local, exigem do trabalhador docente a capacidade de mobilizar-se nessas distintas dimensões. Constraditoriamente, os professores vêem-se envolvidos em uma ideologia que cultiva e valoriza a diferença, a transdiciplinaridade, o trabalho coletivo, o desenvolvimento de competências e habilidades, mas continuam a ser contratados por meio de contratos individuais de trabalho, para lecionarem disciplinas específicas e remunerados por hora-aula de 50 minutos (Oliveira, 2005, p.771). Está em curso uma transformação no papel do educador diante das variadas funções assumidas pela escola pública. As novas exigências profissionais vão além da formação para a função, obrigando o desempenho de tarefas além das educativas, relacionadas ao ato de ensinar os conteúdos disciplinares. O trabalho docente passa a se definir com atividades além da sala de aula, englobando a gestão escolar, planejamento curricular, elaboração de projetos e avaliação coletiva. “Tais exigências contribuem para um sentimento de desprofissionalização, de perda de identidade profissional, de constatação de que ensinar às vezes não é o mais importante. [...] As reformas em curso tendem a retirar desses profissionais a autonomia, entendida como condição de participar da concepção e da organização de seu trabalho”. (OLIVEIRA, 2005, p.769). A dissonância entre o discurso e as condições materiais na educação reduz o trabalho coletivo à tarefas individuais, com custos significativos ao movimento em prol da emancipação social. Afonso (2001) e Santos (2001) concebem o desenvolvimento da escola pública, laica e obrigatória como uma ação fundamental corroborndo na consolidação do Estado, que busca consolidar uma identidade nacional. Sobre a constituição dos Estados Nacionais Afonso (2001) afirma a precedência da formação do Estado em relação à Nação, sendo aquele antigo conhecido na história da humanidade e esta um advento da Modernidade, surgida no século XIX e expressa que “a articulação entre o Estado e a nação tem sido freqüentemente designado pela expressão Estado-nação, reforçando assim a idéia de uma organização tendencialmente isomórfica de território, etnia, governo e identidade nacional” (AFONSO, 2001, p.18). Para Ortiz (1999) a idéia de nação pressupõe que no âmbito de um determinado território ocorra um movimento de integração econômica (emergência de um mercado nacional), social (educação de todos os cidadãos), política (advento do ideal democrático como elemento ordenador das relações dos partidos e das classes sociais) e cultural (unificação lingüística e simbólica de seus habitantes). (ORTIZ, 1999, p.78). 53 Nesse sentido a instituição escolar assume a função de socialização. Discutir o Teatro do Oprimido neste contexto implica, inicialmente, ratificar seu papel contrário à homogenização das práticas escolares, tal qual é proposta para unificação das identidades em torno de uma nacional, pois entendemos que tal processo se deu (e continua se perpetuando) com base no ocidentalismo moderno, de hegemonia européia e estadunidense em torno de um ideário comum de nação. Como afirma Peixoto Filho (2004): A Educação é um processo que passa por uma prática que é também política, portanto integrante de todo o processo histórico da sociedade. Historicamente, a escola é um dos instrumentos utilizados pelas classes dominantes como forma de transmissão de seu saber e na formação de seus intelectuais orgânicos. Ao mesmo tempo nela se desenvolve uma prática político-ideológica voltada para a formação de uma consciência de dominação e de reprodução dos seus valores. (PEIXOTO FILHO, 2004, p. 19). Falta à educação brasileira buscar e fortalecer o que Santos (2010) denomina de Epistemologias do Sul: um vasto conjunto de conhecimentos que se assemelham por não referendar os valores do Norte hegemônico. São saberes silenciados e invisibilizados pela ordem eurocêntrica dominante por se oporem a colonialidade do poder, a relação de exploração e aos padrões universais do capitalismo eurocentrado, contrários à lógica do mercado, para a qual a dignidade e mesmo a sobrevivência do ser humano deixam de ser valor central. Silenciados também pela ciência de fundo positivista, incapaz de referendá-los por falta de métodos comprobatórios, de reconhecê-los por se autodenominar o único conhecimento verdadeiro e digno de respeito. As Epistemologias do Sul assim se denominam por tomarem por base o Sul simbólico: Sul que se opõe ao Norte dominador, Sul que se reconhece como produtor de saber, Sul que geograficamente não se situa apenas abaixo da linha do equador, mas que simboliza todos os povos dominados, subjugados, diminuídos em sua humanidade por não serem euro-ocidentais. Precisamos aprender que existe o Sul, aprender com o Sul, a partir do Sul. O Teatro do Oprimido se insere neste contexto afirmando uma posição contrahegemônica no sentido Boaventuriano do termo. Identificamos o teatro de Boal com as “Epistemologias do Sul”, com os saberes produzidos e invisibilizados por se oporem a colonialidade do poder, à relação de exploração e aos padrões universais do capitalismo eurocentrado. Trata-se de um método à serviço da luta de libertação dos grupos sociais 54 oprimidos, indo contra a lógica do mercado, para a qual a dignidade e mesmo a sobrevivência do ser humano deixam de ser valor central. Para Boaventura e Menezes (2010) o mundo não pode se contentar com breves resumos de si próprio, mesmo sabendo que a “versão completa e integral” é impossível. A energia deve concentrar-se na valorização da diversidade dos saberes para que a intencionalidade e a inteligibilidade das práticas sociais sejam a mais ampla e democrática (SANTOS e MENEZES, 2010, p. 26). Boal valoriza a pluralidade cultural; seu método garante a fala daqueles que são silenciados sensível e simbolicamente. Afirma: “Culturas são campos de batalha: temos que combater tudo que nos leve à subserviência e à passiva aceitação da opressão, em todas as culturas, inclusive nossas, naquilo que têm de ruim e perverso” (BOAL, 2009, p. 38). Nesse sentido, investigamos em nossos estudos as relações do Teatro do Oprimido com a educação, buscando compreender, em que medida, este método corrobora com uma prática democrática, fundada na equidade de direitos e na diversidade; em que medida promove a conscientização política dos participantes com engajamento em ações concretas pela transformação social. III.2. A Educação do Campo e o Teatro do Oprimido A educação rural é motivo de interesse e preocupação, desde o início do século passado no país, pelos defensores da ordem pública. Segundo Paiva (1973), essa luta uniu, inclusive, agraristas e industrialistas preocupados com a migração do meio rural e o inchaço das cidades. Em 1929, a III Conferência Nacional de Educação tratou especificamente deste assunto e, após a Revolução de 30 ela ganhou força com o apoio do governo. Para o novo governo era preciso promover a educação, sanear o interior, garantir a volta aos campos e a permanência da população no meio rural. Neste período, no entanto, a preocupação maior não é com a alfabetização da população do país, como em épocas posteriores, mas com a criação de escolas. “Quando em 1933 Vargas se manifestava contra as campanhas alfabetizadoras, o fazia em nome da educação rural.” (PAIVA, 1973, p.128). Um discurso do presidente transcrito pela autora afirma: Há profunda diferença entre ensinar a ler e educar. [...] A leitura é ponto inicial de instrução, e essa, propriamente, só é completa quando se refere à inteligência e à atividade. (...) A par da instrução, a educação: dar ao sertanejo, quase abandonado a si mesmo, a consciência de seus direitos e deveres; fortalecer-lhe a alma (...), enrijar-lhe o físico pela higiene e pelo trabalho (...) (para isso) é preciso 55 criar escolas. Não as criar, porém, segundo um modelo rígido aplicável ao país inteiro. De acordo com as tendências de seus habitantes devemos ministrar os tipos de ensino que lhes convém: nos centros urbanos, populosos e industriais – o técnico-profissional – (...); no interior – o rural e agrícola. (VARGAS, apud PAIVA, 1973, p.128). Nesse período fundaram-se diferentes associações visando o desenvolvimento da educação rural, entre elas a Sociedade Brasileira de Educação Rural, em 1937, preocupada também em estudar e difundir o folclore e as artes rurais. Os profissionais da educação debatiam os meios de difundir as escolas fixas e propiciar escolas itinerantes nos meios menos populosos, “dentro dos padrões de qualidade reivindicados pela escola renovada” (PAIVA,1973, p. 129). Cogitou-se a criação de escolas normais rurais e uma cadeira de ensino rural chegou a ser incorporada ao currículo da escola normal de Goiás. Muitas missões educacionais associavam humanitarismo, divulgação sanitária, difusão cultural com um cunho assistencialista e de modo superficial. Em Minas Gerais, por exemplo, no governo de Benedito Valadares, os vagões que transportavam equipes de profissionais para prestar assistência aos moradores das margens de linhas férreas, ficaram conhecidos como o Trem da Alegria, com ações rápidas e pontuais. O Estado Novo manteve a direção de dar ao campo as escolas de ensino elementar e, às cidades, a educação técnico-profissional. Mas a estratégia educacional, além dos objetivos de capacitação de mão-de-obra e democratização do ensino elementar, visava mais claramente a defesa da ordem social. Diminuído o prestígio dos renovadores, volta a educação a ser pensada em conexão com os demais problemas da sociedade. Antes, como instrumento para recomposição do poder político; agora, como fator capaz de contribuir para a sedimentação desse poder recomposto, como instrumento de difusão ideológica. (PAIVA, 1973, p.131). Como aparelho de difusão ideológica, a rede educacional duplicou-se entre 1932 e 1947. Qualitativamente, porém, especialmente no meio rural, configurava-se a falta de profissionais qualificados o que determinava, em muitos casos, a necessária interrupção dos estudos antes dos quatro anos previstos para o ensino elementar, por falta de professor para prosseguir. Em 1942 o VIII Congresso Brasileiro de Educação reforça a necessidade de investimentos na escolarização rural. A redemocratização anunciada em 1943 possibilitou, nos anos subsequentes, mobilizações em torno da educação de adultos. Em meados de 1947 foi lançada, pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), uma Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA), contando com recursos advindos da regulamentação do 56 Fundo Nacional do Ensino Primário (FNEP), visando preparar mão de obra alfabetizada nas cidades, penetrar no campo e integrar imigrantes e seus descendentes no sul do país. Data também de meados da década de 1940 a criação da Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações Rurais (CBAR), com objetivo de implantar projetos educacionais no meio rural, mediante a criação de Centro de Treinamentos para professores, realização de debates e seminários nas chamadas Semanas Ruralistas e implantação de Clubes Agrícolas e de Conselhos Comunitários Rurais. (LEITE, 1996). Neste período a educação foi considerada como fator de Segurança Nacional, como exigência de desenvolvimento comunitário-social e corresponsável no processo de desenvolvimento econômico do país. “Estipuladas essas bases, o Ministério da Agricultura do Brasil e a Inter-American Education Fundation Inc, representando o governo norte-americano, estabeleceram as proposições fundamentais do convênio, permitindo a criação e instalação das Missões Rurais” (LEITE, 1996, p. 66). Nesse sentido Paiva (1973) afirma sobre a CEAA: Entretanto, no momento em que a Campanha pretende aprofundar sua atuação – e após ter recebido as influências do Seminário Interamericano – ela parte para um programa de missões rurais no interior. A nova programação, entretanto, transforma-se num programa independente no qual predomina a metodologia do desenvolvimento comunitário, a ser desenvolvida no meio rural. (PAIVA, 1973, p.177). Em 1948, foi criada a Associação de Crédito e Assistência Rural (ACAR), patrocinada pela American International Association for Economic and Social Development (AIA), “embrião da Associação Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (ABCAR), que foi criada em 21 de junho de 1956 e estava ‘incumbida’ de coordenar programas de extensão e captar recursos técnicos e financeiros.” (CALAZANS, 1993, p. 23). O Programa de Extensão Rural assumia os objetivos de combater as doenças, a desnutrição, a ignorância, o isolamento social e as carências em geral atribuídas aos cidadãos do campo. Contendo características de “ensino informal (fora da escola), o trabalho extensionista se propunha como diferenciado ou até mesmo incompatível com o caráter centralizado e curricular do ensino escolar.” Sua ação centrava-se na família rural, buscando convencer seus integrantes a “usarem recursos técnicos na produção para conseguirem uma maior produtividade e consequentemente o bem-estar social.” (FONSECA, 1985, p. 91). 57 Segundo Leite (1996) o programa apresentava “um modelo de educação e de organização sócio-produtiva, que permitia a proliferação de um tipo de escolaridade informal cujos princípios perpetuavam a visão tradicional colonialista-exploratória [...] com uma rotulação liberal moderna: desenvolvimento agrário.” (LEITE, 1996, p.68). Nesse sentido, este autor denuncia o descaso governamental sobre a escolarização formal no meio rural, permitindo a ascensão de um modelo educacional informal, com o patrocínio de empresas estrangeiras de bases capitalistas, que não consideravam “a estrutura social campestre, sua organização e formas de trabalho/produção e, também, as modalidades de participação/integração do rurícola com o contexto urbano.” (LEITE, 1996, p.69). A criação da Campanha Nacional de Educação Rural (CNER), em 1952, e do Serviço Social Rural (SSR), em 1955, não trouxeram novas concepções sobre a proposta da educação rural, limitando-se a repetição de fórmulas tradicionais de dominação, com uma pedagogia extensionista, centrada na ideologia do desenvolvimento comunitário, desconsiderando as especificidades dos grupos campesinos, com suas contradições e aspectos integradores. Neste período, a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) e o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) ofereceram formação para professores leigos; no entanto, o problema da qualificação profissional persistiu nas décadas posteriores. Segundo Paiva (1973), o Censo Escolar de 1964 indicava 44,2% dos professores do ensino elementar sem qualificação para a docência. Leite (1996) considera a década de 1950 como época de crise na educação, considerando a longa discussão em torno da LDBEN (Lei no 4.024, de 20 de dezembro de 1961), que se prolongara desde 1948. No entanto, ressalta que um importante movimento de luta pelos direitos dos trabalhadores rurais ganhou força sob a liderança de Francisco Julião, além de inúmeras ações pastorais de bispos católicos engajados numa visão socialista da prática cristã. Os trabalhos das Ligas Camponesas e dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais garantiram sustentação ideológica aos movimentos de educação e cultura popular que eclodiram no início da década de 1960, entre eles o CPC e o MEB, já citados anteriormente. Nesse sentido, Paiva (1973) afirma que no período posterior ao do reconhecimento público da falência das campanhas de massa promovidas pelo Departamento Nacional de Educação (DNE) apresenta a maior mobilização em torno da educação de adultos no país. 58 As condições políticas brasileiras após o suicídio de Vargas estimulavam o livre debate de ideias e a participação política, e seus reflexos no campo educacional atingiram especialmente aquela área educativa que mais imediatamente poderia concorrer para novas mudanças no panorama político, através da formação de novos contingentes eleitorais. Durante o governo Kubitschek vive-se um período de relativa liberdade de ideias e de euforia nacionalista; a ênfase recebida pelo processo de industrialização na política econômica do governo estimula a participação dos intelectuais na teorização do “nacionalismo desenvolvimentista”. Este nacionalismo de elite da segunda metade da década dos 50, entretanto, irá se transformando à medida em que nos aproximamos dos anos 60. A partir de princípios de 1959 cresce a oposição ao governo que, em meados desse mesmo ano, rompe com o Fundo Monetário Internacional, preparando-se para enfrentar as eleições de 60 a partir de uma postura nacionalista mais aparente. Radicaliza-se progressivamente o processo político; o nacionalismo ultrapassa os limites da elite e acompanha o processo de despertamento das massas no campo e nas cidades. Levanta-se o problema do voto do analfabeto e da representatividade do sistema, em face dos elevados índices de analfabetismo que condicionava um eleitorado restrito. (PAIVA, 1973, p.203). A Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA) foi criada, em 1958, a partir de uma nova etapa na educação de adultos no país, reconhecendo a ineficácia das campanhas anteriores e levantando uma grande preocupação com os métodos. Sua importância, além da influência sobre muitos programas de educação surgidos posteriormente no país, está no anúncio de uma nova fase na história educativa: “a da tecnificação do campo da educação, não apenas no plano propriamente pedagógico, mas também no sentido mais geral, de estudo dos problemas educativos em sua ligação com a sociedade e de planejamento educacional.” (PAIVA, 1973, p.221). No início da década de 1960, como expresso no segundo capítulo deste trabalho, eclodiram os movimentos ligados à promoção da cultura e da educação popular. Mesmo antes da posse de Jânio Quadros, uma carta dirigida ao presidente eleito, datada de 11 de novembro de 1960, propunha a criação de um movimento de educação sob a responsabilidade da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o que se efetivou com o MEB. No entanto, a educação de adultos ganhou força após a conturbada posse de João Goulart, com a união da esquerda em torno das reformas de base, o fortalecimento das ideias nacionalistas em meio à efervescência político ideológica e a oposição aos militares que o consideravam um agitador dos meios operários. (Paiva, 1973). Porém, as promissoras propostas para a educação pautadas no governo Jango foram severamente interrompidas pelo Golpe de 1964. Dentre os movimentos de educação e cultura popular, o MEB (Movimento de Educação de Base) foi o único que sobreviveu, sob a pena de uma grande revisão em sua metodologia e orientação, com o 59 fechamento de muitas de suas escolas radiofônicas, extinguindo-se em 1970, incorporado ao programa nacional lançado pelo governo neste ano. No contexto da ditadura militar constatamos completo abandono do ensino formal do campo, por parte dos órgãos governamentais e também a penetração incisiva da Extensão Rural e sua ideologia, substituindo a professora leiga, despreparada, recrutada no local, pelo “técnico”e pela ëxtensionista”, cujos vencimentos eram subsidiados por entidades como a Inter-American Foundation ou pela Fundação Rockfeller. (LEITE, 1996, p.82). A lei no 5.379, de 15 de dezembro de 1967, criou o Movimento Brasileiro de Educação (MOBRAL), que se desenvolveu sem sucesso na tarefa de erradicar o analfabetismo no país. As leis no 5.540/68 e 5.692/71 refletiram a ideologia político-militar do correspondente período de suas promulgações, ao tratarem da reforma do ensino superior e da estruturação do ensino fundamental e secundarista, respectivamente. Coroando um processo que há muito vem se concretizando, a LDB/71 não conseguiu suscitar entre os educadores brasileiros e demais pessoas ligadas à educação, um questionamento ou um levantamento de propostas para a educação rural e, nem mesmo, de cogitar possíveis direcionamentos para uma política educacional destinada, exclusivamente, aos grupos campesinos. (LEITE, 1996, p. 91). O III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto (PSECD) propôs a expansão do ensino fundamental no campo e criou o Programa Nacional de Ações Sócio-Educativas e Culturais para o meio rural (PRONASEC). Nos estados nordestinos instalou-se o EDURURAL, com vigência entre 1980 a 1985. Barreto (1985) avaliou que: no nordeste, e em particular na área rural em que se situam os programas de educação rural, tem mais o objetivo de diminuir tensões sociais geradas pela pobreza no campo do que propriamente de enfrentar e resolver de modo satisfatório a questão do analfabetismo e o baixo nível de escolarização da região, ou de serem instrumentos de um modelo alternativo de desenvolvimento, tal como propugnam as teses que fundamentam os textos básicos que delineiam a atual política de ensino no país. (BARRETO, 1985, p.149). A ditadura encerrou-se em 1985, consolidando a incorporação da educação rural ao conjunto da educação brasileira, sob um planejamento geral que excluía a possibilidade de políticas específicas para os grupos campesinos. O processo cultural rural foi subordinado à cultura urbana e aos mecanismos de controle ideológico do Estado Militar. Sem alocação de recursos financeiros, materiais e humanos, as escolas rurais tornaram-se responsabilidade dos 60 seus respectivos municípios e as atividades de profissionalização atendiam as exigências do mercado urbano-industrial. A par de todo este contexto educacional no meio rural brasileiro, o Movimento de Educação do Campo se insere de modo específico nas lutas pelo direito à educação pública, gratuita e de qualidade em nosso país, pautando as demandas próprias dos povos do campo, dando visibilidade e fortalecendo seus modos de produção de vida, em processos de resistência e emancipação. Associada às organizações e aos movimentos sociais do campo, a Educação do Campo articula-se às lutas pela terra, reivindicando o direito a uma educação pensada a partir do contexto do campo, com a participação dos seus sujeitos, vinculada a sua forma de vida, sua organização do trabalho, relação com o tempo, valores, saberes, memórias, enfim, considerando sua cultura específica e suas necessidades humanas e sociais. O principal berço de origem é a luta dos trabalhadores rurais sem terra que, desde o início da década de 1980 reivindicam escola pública em cada novo acampamento ou assentamento da Reforma Agrária. A partir da segunda metade da década de 1990, notadamente o Movimento Sem Terra (MST) e, pouco mais tarde, as organizações sindicais vinculadas à Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (CONTAG), bem como outras organizações e movimentos sociais, fazem da educação escolar uma questão destacada em suas pautas. Com a entrada em cena de setores de universidades públicas, dinamizam-se ainda mais os debates acadêmicos, pesquisas e publicações, embates jurídicos e públicos, gerando-se, então, o “Movimento Nacional de Educação do Campo”. (MUNARIM, 2011, p. 10). O Movimento Nacional de Educação do Campo denuncia o descaso com a educação pública no país que se vincula a um projeto dominante de sociedade, articulado com os atuais modos de produção capitalista, que promovem a crescente e indiscriminada industrialização dos processos de produção no campo, favorecendo os latifúndios e a acentuação das desigualdades sociais, exacerba a violência e criminaliza os movimentos sociais populares. Ao denunciar esse estado de coisas, o Movimento da Educação do Campo coaduna com um projeto educacional e societário de sentido contra-hegemônico para o Brasil. O termo Educação do Campo contrapõe-se semântica e ideologicamente a Educação Rural, pautando a superação dos seus pressupostos teóricos e políticos. “Supostamente contrária à essência da Educação Rural, a nova concepção reivindica o sentido de educação universal e, ao mesmo tempo, voltada à construção de autonomia e respeito às identidades dos povos do campo.” (MUNARIM, 2011, p. 11). 61 Por isso pauta-se uma Educação do Campo e não no Campo ou para o Campo. As preposições para, no e do campo, aparentemente inocentes, na realidade expressam, na história da educação dos homens e mulheres do campo, o vetor entre processos educativos alienadores e mantenedores da ordem do capital, e processos educativos que pautam o horizonte da emancipação humana e das formas sociais que cindem o gênero humano. [...] Educação para o campo e no campo expressam as concepções e políticas do Estado, ao longo de nossa história, que se alinham à perspectiva da educação como extensão ou na perspectiva do ruralismo pedagógico. Assim, educação escolar para o campo consiste em estender modelos, conteúdos e métodos pedagógicos planejados de forma centralizada e autoritária, ignorando a especificidade e particularidade dos processos sociais produtivos, simbólicos e culturais da vida do campo. Por outro lado, educação no campo mantém o sentido extensionista e cresce-lhe a dimensão do localismo e do particularismo. Trata-se da visão de que as crianças, jovens e adultos do campo estão destinados a uma educação menor, destinada às operações simples do trabalho manual e também com a perspectiva de que permaneceriam para sempre no campo. (FRIGOTTO, 2011, p. 35). Embora o sentido da expressão no campo possa abarcar, também, o lugar de concretização desta educação, garantido o direito das pessoas ao seu acesso preferencialmente no local onde moram, sem necessidade de longos deslocamentos para onde se agrega um maior número de pessoas, normalmente, os centros urbanos dos municípios, o termo do campo compreende este significado, agregando o valor de pertencimento. “Na educação e pedagogia do campo, parte-se da particularidade e singularidade dadas pela realidade de homens e mulheres que produzem sua vida no campo.” (FRIGOTTO, 2011, p.36). Nesta nova concepção de educação o binômio campo-cidade adquire sentido de complementaridade, reconhecendo as diferenças entre esses dois meios de modo horizontal, com interdependência, uma vez que o urbano não vive sem o campo e vice-versa. A Educação do Campo contrapõe-se tanto ao ruralismo como ao urbanocentrismo, pautando o reconhecimento da diversidade, não em termos de menor ou maior valor, mas promovendo a visibilidade e fortalecendo a luta pelos direitos dos sujeitos do campo. Caldart (2008) aponta as características de negatividade, positividade e superação concernente à Educação do Campo. Negatividade no sentido dos valores associados aos seus sujeitos, concebidos como atrasados, inferiores, de segunda categoria, com direito à educação restrita ao acesso escolar, tendo seus conhecimentos desprezados como ignorância e cujo destino pode ser a miséria. A esses valores sobrepõem-se denúncia e resistência; denúncia que combina apontamentos e práticas concretas do que fazer; resistência que não é espera passiva, mas 62 positividade, com propostas para as políticas públicas, a educação, as organizações comunitárias, as escolas, a produção. A Educação do Campo enquanto superação anuncia um novo projeto para a sociedade, para a educação e para a escola, com uma nova concepção de campo e das relações deste com a cidade, na perspectiva da emancipação humana. As estatísticas oficiais confirmam a necessidade de se implementar e efetivar uma educação escolar que atenda, de fato, aos moradores do campo, garantindo seus direitos à educação. Em comparação com o meio urbano, as estatísticas do campo revelam os mais baixos índices no que tange o acesso à escola, o nivelamento série-idade, o contingente de pessoas alfabetizadas e que concluíram o ensino fundamental e médio, a qualificação dos seus profissionais. O cenário da Educação do Campo revela ainda a dificuldade quanto ao deslocamento para as escolas e um referencial urbano nos currículos e modo de funcionamento da grande maioria dos seus estabelecimentos de ensino6. As propostas metodológicas da Educação do Campo vão ao encontro da Filosofia de Educação de Paulo Freire. Para Frigotto (2011), “nenhum método pedagógico será efetivo se não atingir o mundo de preocupação, de necessidade e os saberes e experiências que as crianças, jovens e adultos trazem do aprendizado na vida para o espaço escolar.” (FRIGOTTO, 2011, p.38). E no processo de crítica à atual hegemonia cultural, o desafio “torna-se mais complexo se não nos dermos conta de que somos herdeiros de uma cultura escravocrata, autoritária e repleta de preconceitos vinculados ao núcleo constituinte das sociedades de classe”. (FRIGOTTO, 2011, p. 39). Os fundamentos do Teatro do Oprimido coadunam-se com a luta da Educação do Campo, com os oprimidos do Campo na atualidade. Seu método se revela útil, podendo contribuir, por meio do diálogo, expressividade e visibilidade artística-crítica dos temas do campesinato, para uma maior elucidação, tratamento e luta coletiva pelos interesses oprimidos, fortalecendo a politização da educação no sentido de transformação da sociedade com a superação da situação de opressão. 6 Dados estatísticos com gráficos dessas desigualdades são apresentados em Panorama da Educação do Campo. In: MUNARIM, Antônio, BELTRAME, Sônia, CONDE, Soraya e PIXER, Zilma (Orgs). Educação do Campo: reflexões e perspectivas. 2ª Ed. Editora Insular. Florianópolis, 2011. Para os dados relativos a Educação do Campo em Minas Gerais indicamos SILVA, Lurdes Helena da. Cenários da Educação no Meio Rural de Minas Gerais. Editora CRV. Curitiba, 2009. 63 Arte é forma de conhecimento, pois envolve a história, a sociedade, a vida. Não está apenas ligada a idéia de prazer estético, contemplação passiva, mas ao contrário, é dinâmica e representa trabalho já que possui forças materiais e produtivas que impulsionam as relações históricas e sociais e levam o homem à compreensão de si mesmo e da sociedade. (CAVASSIN, 2008, p.49). O Teatro do Oprimido efetiva uma educação estética, esta concebida em sentido amplo, abarcando diferentes aspectos relacionados à dimensão sensível do humano. Som, palavra e imagem articulam-se de infinitas formas, ampliando as conexões cognitivas e as possibilidades de conhecimento, especialmente por estarem implicadas num processo de criação, com aguçamento da percepção, estímulo à criatividade e reflexão sobre o mundo. “Arte é uma forma de conhecimento, portanto o artista se obriga a interpretar a realidade, tornando-a inteligível. Porém, se ao invés de fazê-lo, apenas a reproduz, não estará conhecendo nem dando a conhecer.” (BOAL, 2005, p. 261). Em primeiro lugar o teatro trabalha com a idéia de que seu essencial instrumento é o próprio ser – a pessoa. O corpo, a fala, a expressão, a consciência de si mesmo é preciso ser desenvolvida. Assim, um trabalho no teatro tem início a partir do corpo físico e todas as suas possibilidades, é ele que irá atuar não só no palco, mas em sua vida. É o seu veículo, que lhe possibilitará andar pelo mundo. O olhar volta-se para o concreto de si mesmo, a densidade do corpo, sua materialidade, como se movimenta, a função das articulações, o contato com o chão onde os pés pisam e as possibilidades desses braços que estão soltos e podem gesticular. (SERPA, 2006, p58). Criticando o uso hegemônico do teatro, que o reduz a instância única de entretenimento, e denunciando sua prática nas escolas públicas, realizado em festinhas comemorativas de datas capitalistas e religiosas como Dia das Mães, Páscoa e Natal, “para agradar pais e diretores”, Serpa (2006) pauta o teatro como instrumento educativo sob uma perspectiva crítica. As técnicas teatrais deveriam estar em sala de aula, estimulando o aluno com a vontade de aprender, desenvolvendo a capacidade criativa, o uso da palavra, da comunicação e levando o aluno a posições críticas sobre o passado e o presente, dando-lhe oportunidades de construir um futuro, consciente de suas escolhas e de seu papel na sociedade. (SERPA, 2006, p.71 e 72) Nesse sentido, a prática artístico-teatral pode inserir-se nas escolas do campo construindo alternativas para ampliar a integração da instituição à história, à vida e à cultura, sempre dinâmicas, das pessoas que lá vivem e trabalham. Em diferentes partes do mundo o Teatro do Oprimido é utilizado na luta dos povos do campo. Uma experiência com camponeses na Índia, retratada no documentário “JANA SANSCRITI: um teatro em campanha” revela um movimento com mais de vinte cinco anos de luta. Trabalhando sobre diferentes temáticas político-sociais como o direito ao voto e o povo 64 como massa de manobra político-partidária, as relações de gênero e a violência contra a mulher, o alcoolismo e o tráfico de bebidas alcoólicas nos municípios, entre outras, o Jana Sanskriti promove a formação de grupos de Teatro do Oprimido em vilarejos na índia, garantindo que a população se aproprie de meios de produção artística, de modo crítico, fortalecendo o engajamento comunitário em torno dos problemas de cada grupo oprimido e a luta por direitos na Índia. Depoimentos de integrantes deste Movimento revelam a transformação de suas vidas, mudança de valores, ampliação da visão política do mundo, iniciando com o entorno a sua volta. “Quando entrei no Jana Sanskriti eu tinha 14 anos. Eu não entendia nada de política. Só sabia que as pessoas podiam votar. Não somos de um partido, mas fazemos política. Pois toda ação realizada é ação política. A partir do momento em que temos um objetivo, toda ação é política. Qual é o meu objetivo? Que os camponeses precisam saber o que fazem.Que não devem obedecer cegamente às ordens, e não depender de ninguém. Não devem ter complexo de inferioridade. Nós lutamos contra isso.” Numa proposta diferenciada, o Grupo de Teatro do Oprimido de Maputo (GTO-Maputo), em Moçambique, utiliza há mais de dez anos, as técnicas do Teatro do Oprimido, num país onde um número superior a setenta e cinco por cento da população é de analfabetos e a contaminação pelo vírus HIV cresce diariamente. Como meio de atingir principalmente a população não alfabetizada, num programa de promoção da saúde, as peças de Teatro-fórum apresentadas discutem as relações sexuais, entre homens e mulheres, o uso de preservativo, a prática da poligamia e os meios de contaminação pelo vírus da AIDS. No Brasil, uma parceria do CTO-Rio com o MST Nacional, através do Grupo Patativa do Assaré, em 2001, propiciou uma capacitação para lideranças deste movimento. Os multiplicadores do Teatro do Oprimido oriundos desta e de outras formações atuam em acampamentos e assentamentos, formando grupos e produzindo espetáculos de Teatro-Fórum que são apresentados no campo e nos centros urbanos. Um militante do MST, historiador e multiplicador em Alagoas afirma: “Em nossa organização a arte está a serviço da luta, a arte só faz sentido se ela ressaltar o ser humano, se ela for mais um instrumento para que as pessoas se descubram protagonistas de suas vidas, ou seja, sujeitos da história”. (PEREIRA, 2008, p.47). O Teatro do Oprimido, nesta pesquisa, se insere em um município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, cuja principal atividade econômica não é agrária, ou pecuária, 65 mas mineradora. Há, portanto, uma forte marca da atuação de empresas multinacionais como empregadora de mão de obra, cuja atividade, porém, degrada o meio ambiente no considerado o quadrilátero ferrífero, que é também um quadrilátero aquífero, em Minas Gerais. No que tange à escola, Munarim (2011) esclarece: São definidas como escolas do campo não somente aquelas que têm sua sede no espaço demográfico classificado pelo IBGE como rural, mas também aquela que, mesmo situadas em perímetros considerados formalmente como urbanos, identificam-se com o campo. Em outros termos, a identidade da escola do campo é definida não exclusivamente pela sua situação especial não urbana, mas prioritariamente pela cultura, relações sociais, ambientais e de trabalho dos sujeitos do campo que a frequentam. (MUNARIM, 2011, p.12). Antes de adentrar no cenário da pesquisa, porém, para conhecer seus sujeitos e o desenvolvimento das oficinas teatrais, uma análise sobre o desenvolvimento do curinga no Teatro do Oprimido será apresentada para reflexão sobre a dramaturgia do Teatro-Fórum e considerações sobre o Professor-Curinga, tendo em vista discussões posteriores presentes neste texto. III.3. O Curinga, seu desenvolvimento e desdobramentos: reflexões sobre a dramaturgia do Teatro Fórum e o Professor-curinga. A figura do Curinga no Teatro do Oprimido tem suas origens com as experiências de Boal ainda no Teatro de Arena. Boal (2005) descreve o Sistema Coringa, iniciado na montagem de “Arena conta Zumbi”, na década de 60 e, posteriormente, em “Arena conta Tiradentes”, quando o Teatro de Arena encontrava-se na sua etapa dos musicais. “Zumbi, primeira peça da série “Arena Conta...” desordenou o teatro. Para nós, sua principal missão foi a de criar o necessário caos, antes de iniciarmos, com Tiradentes, a etapa de proposição de um novo sistema. A sadia desordem foi provocada por quatro técnicas principais...” (BOAL, 2005, p. 256). As técnicas as quais se refere Boal são: primeiro, a desvinculação ator-personagem, podendo um personagem ser representado por diversos atores na mesma peça e, de outro modo, um mesmo ator representar diferentes personagens; segundo, a narração conjunta propiciada por esse agrupamento de atores numa interpretação coletiva para contarem uma história; terceiro, o ecletismo de gênero e estilo, incluindo, no mesmo espetáculo, cenas melodramáticas e de chanchada circense, nos estilos simbolista, realista, surrealista e expressionista; e quarto, a utilização da música, introduzindo e intercalando cenas, preparando a platéia, “a curto prazo, 66 ludicamente, para receber textos simplificados que só poderão ser absolvidos dentro da experiência razão-música.” (BOAL, 2005, p. 260). O Sistema Coringa assim iniciado qualificava uma poética do oprimido, pois possibilitava a não apropriação de um personagem por parte do ator, permitindo que todos os atores representassem todos os personagens, e garantia, também, uma narração coletiva da história. Essa representação de um personagem por vários atores era assegurada por meio de uma “máscara”, não o objeto, mas um conjunto gestual associado a marcas psicofísicas e históricas que caracterizava um determinado personagem. Os atores podiam representar, indiferentemente, papéis masculinos e femininos, salvo no caso do sexo ser determinante na ação dramática. Já em “Arena conta Tiradentes” os atores assumiam funções dentro da estrutura do texto. A primeira função é protagônica, a única que vincula ator e personagem do início ao fim do espetáculo, sendo a função de protagonista desempenhada por um único ator. O protagonista assenta-se na realidade concreta, fotográfica, sob os limites de um ser humano real. A segunda função é o próprio Coringa, de realidade mágica, onisciente, polimorfo, polivalente, atuando em cena como um mestre de cerimônias, diretor de cena, contra-regra, juiz, conferencista, podendo assumir outras funções e, inclusive, substituir o protagonista, nos impedimentos deste devido sua realidade naturalista. Importante salientar que o caráter mágico do coringa deve-se à sua polivalência, à possibilidade de assumir diferentes papéis e funções, em oposição ao protagonista de realidade naturalista. Pois no que tange a análise do texto e sua revelação para a platéia, o coringa se aproxima do espectador. A camuflagem acaba criando um “tipo” de personagem, muito mais próxima dos demais personagens do que da platéia: “Coros”, “narradores”, etc., são habitantes da fábula e não da vida social dos espectadores. Propomos o Coringa contemporâneo e vizinho do expectador. Para isso, é necessário o esfriamento de suas “Explicações”; é necessário o seu afastamento dos demais personagens, é necessária a sua aproximação aos espectadores. (BOAL, 2005, p. 266). Retomando as funções da estrutura do elenco no Sistema Coringa, todos os demais atores são divididos em dois Coros, sem número fixo de personagens, cada um, no entanto, com o seu Corifeu. O coro Deuteragonista apóia o protagonista e o Antagonista se opõe a este. Há ainda a Orquestra Coral, composta por músicos que dão apoio musical ao espetáculo e cantam todos os Comentários de caráter ilusionístico ou informativo, muitas vezes em conjunto com o Corifeu. 67 Todas as Explicações que são dadas pelo Coringa, também podem se dar com o auxilio do Corifeu e da Orquestra. Além dessa estrutura de elenco, o Sistema Coringa apresenta uma estrutura de espetáculo composta por sete partes principais. São elas: Dedicatória, Explicação, Episódio, Cena, Comentário, Entrevista e Exortação. A Dedicatória ocorre sempre no início do espetáculo, podendo ser a alguém ou alguma coisa, por meio de um texto, uma canção, uma cena, ou ambos. A Explicação, quando introdutória, apresenta o espetáculo ou um fato importante do dia da apresentação; durante o espetáculo efetiva uma quebra na ação dramática, proferida em prosa pelo Coringa, como conferência. O espetáculo é dividido em Episódios, composto por cenas mais os menos interdependentes. As Cenas, de pequena magnitude, encerram em si uma variação qualitativa no desenvolvimento da ação dramática e podem ser dialogadas, cantadas ou a leitura de um poema, documento ou notícia. Os Comentários, cantados pela Orquestra, pelos Corifeus ou por ambos, em versos preferencialmente rimados, efetivam a ligação entre as cenas; podem também enunciar o tempo ou local da ação dramática. As Entrevistas condicionam-se a eventuais necessidades expositivas e, por isso, não têm posição estrutural pré-determinada. Sempre que necessário o Coringa paralisa a ação para entrevistar um determinado personagem, permitindo que ele declare seus sentimentos ou razões. Por fim, a Exortação no final do espetáculo, com declamação em prosa, canção coletiva ou ambas, na qual o Coringa estimula a platéia sobre o tema retratado na peça. Boal fundamenta o Sistema Coringa dentro das etapas de desenvolvimento do Teatro de Arena, atrelado as necessidades da sociedade da época. Para o autor, esta estrutura básica do Sistema Coringa deveria ser flexível bastante para adaptar-se à montagem de qualquer peça. “No Curinga pretende-se propor um sistema permanente de fazer teatro (estrutura de texto e estrutura de elenco) que inclua em seu bojo todos os instrumentais de todos os estilos ou gêneros”. (BOAL, 2005, p. 268). “... o sistema é permanente apenas dentro da transitoriedade das técnicas teatrais. Com ele não se pretendem soluções definitivas de problemas estáticos: pretende-se apenas tornar o teatro outra vez exeqüível em nosso país. E pretende-se continuar a pensá-lo útil”. (BOAL, 2005, p.283). 68 A dramaturgia do Teatro-Fórum, desenvolvido posteriormente por Boal e inserido no conjunto de técnicas que compõem o Teatro do Oprimido, guarda algumas semelhanças com as estruturas do Sistema Coringa. Na estrutura do elenco percebemos o Protagonista, representado por um único ator do início ao fim, atuando de modo verossímil, naturalisticamente, a semelhança de um ser humano real, sempre com a consciência de personagem, e não do ator, promovendo a empatia com a platéia. Seu figurino, no entanto, não precisa ser extremamente realista, abarcando adereços teatrais simbólicos, de proporções exageradas, que promovam magnitude em determinado aspecto relevante da caracterização daquele personagem. O Coringa mantém sua função onisciente e polivalente no espetáculo, no entanto ele não substitui nenhum outro personagem, mantendo-se como mestre de cerimônias, contra-regra, diretor, editor, conferencista, exortador. O coringa promove as explicações iniciais acerca dos propósitos do Teatro-Fórum, apresenta o espetáculo e o elenco, pode declamar uma dedicatória ou anunciar fatos que se relacionam com o tema da peça. O coringa tece os comentários, entrevista os personagens quando necessário e, ao final do espetáculo, estimula a platéia sobre o tema da peça e promove, assim, o fórum teatral. Os demais atores dividem-se nos coros de Antagonistas e Deuteragonista, que não possuem um número fixo de personagens. A função de Corifeu ganha destaque entre os antagonistas, pois o esquema básico da dramaturgia do Teatro-Fórum opõe necessariamente um Antagonista ao Protagonista. A Orquestra pode ser composta por músicos, embora muitos espetáculos não apresentem essa estrutura de modo separado, sendo as músicas cantadas e os instrumentos tocados pelos próprios atores, que assumem, portanto, a função de Orquestra. Quanto à estrutura do texto, o Teatro-Fórum pode ou não apresentar uma dedicatória inicial. As Explicações ocorrem no início do espetáculo, raramente no decorrer da peça, e comumente durante o fórum. A divisão em Episódios não se justifica, em função do tamanho das peças, geralmente curtas; o texto, porém, é dividido em Cenas que encerram, em si, pelo menos uma variação qualitativa da ação dramática. Os Comentários não fazem ligação, necessariamente, de todas as cenas da peça, mas podem estar presentes, de formas variadas, em versos rimados ou não e situando locais e tempos. As entrevistas são raras, mas podem acontecer, especialmente durante o fórum, para esclarecimentos de dúvidas sobre as razões dos 69 personagens. A Exortação acontece no final da peça e se prolonga ao longo de todo o fórum teatral. A dramaturgia do Teatro-Fórum pode ser esquematizada conforme figura abaixo: ESQUEMA 2: Dramaturgia do Teatro Fórum Fonte: Apostila do Projeto Teatro do Oprimido de Ponto a Ponto, desenvolvido pelo CTO-Rio em parceria com o Governo Federal, em 2007. A peça inicia-se com uma Contra-preparação, de sentido contrário ao desenrolar da trama. Neste momento é revelado o desejo da personagem oprimida, sua motivação. O Protagonista acredita em seus sonhos e tem confiança na sua capacidade de realizá-los. A empatia com a platéia se estabelece em função do sentido de justiça dos ideais da personagem. No desenvolvimento da Ação Dramática deflagra-se o conflito entre Protagonista e Antagonista, com seus respectivos aliados. O conflito é representado de modo objetivo, apresentando as estratégias utilizadas por ambas as personagens para consolidação dos seus ideais e expressando, assim, o desejo e a necessidade do grupo em transformar a realidade. O auge do conflito é denominado Crise Chinesa devido aos dois ideogramas chineses que, conjuntamente, representam a crise: perigo e oportunidade. Trata-se de um momento de perigo no conflito, mas também de oportunidade para as personagens. No Teatro-Fórum, porém, 70 o oprimido fracassa, desistindo de lutar pelos seus sonhos. Segue o Desenlace da peça que necessariamente termina com um final infeliz para o protagonista e seus aliados, possibilitando que o público se mobilize para entrar em cena e propor alternativas à ação. As peças de Teatro-Fórum assim constituídas recebem o nome de modelo, por se configurarem num protótipo da sociedade na qual vivemos; ou ainda contra-modelo, por apresentarem algo que não se deseja reproduzir. Embora não representado no esquema acima, muitas peças de Teatro-Fórum trazem, antes da contra-preparação, uma Contextualização, retratando a conjuntura social na qual o problema apresentado se insere, ganha amparo e sustentabilidade. A inclusão de contextualização na dramaturgia do Teatro-Fórum é um desafio estético e uma necessidade ética e política, que exige do grupo uma compreensão ampliada do problema para a preparação do modelo. Esse movimento investigativo do micro (situação particular) em direção ao macro (conjuntura social) foi definido por Boal como ASCESE, exercício fundamental tanto na preparação do modelo quanto na sessão de Fórum. Para Boal, sem ascese, o Fórum não chega a se estabelecer plenamente. (SANTOS, Bárbara, 2010, p. 70). O termo ascese, apesar de possuir um sentido religioso, no Teatro do Oprimido refere-se à idéia de ascensão, de ascender a um patamar mais elevado, de maior visão. Esse movimento de ascese busca a ampliação da consciência sobre os fatos sociais, no intuito de favorecer a transposição de uma consciência ingênua para uma consciência crítica. O debate conduzido pelo curinga durante o desenvolvimento do Fórum, portanto, deve sempre remeter e propiciar este movimento de análise do particular e do social, conjuntural. O termo Curinga, como foi dito no capítulo anterior, é uma alusão à carta do baralho que assume diferentes funções conforme o jogo. No Teatro do Oprimido ele permanece com função polivalente, sua atuação, porém, acontece não somente durante um espetáculo, mas também fora dele. Augusto Boal batizou o facilitador do teatro do Oprimido (TO) de “Curinga”: artista com função pedagógica; praticante, estudioso e pesquisador do Método. Trata-se de um especialista em processo de aprendizagem. Deve ser um conhecedor rigoroso dos fundamentos teóricos, políticos, estéticos e filosóficos do TO, que, ao mesmo tempo, é sensível às demandas da realidade, sendo capaz de reinventar o conhecido, para atender as necessidades das pessoas. Um Curinga deve ser capaz de entrar em cena e atuar, de ministrar oficinas e cursos teóricos e práticos; de organizar e coordenar grupos populares; de orientar a produção de espetáculos de Teatro-Fórum (da criação da imagem ao texto coletivo); de mediar diálogos teatrais em sessões de Fórum e de Teatro Legislativo e de estimular a efetivação de ações sociais concretas e continuadas. [...] Sua função é diversa e complexa: da identificação à representação do conflito, até as estratégias que possibilitem a transformação da 71 realidade encenada. [...] Um Curinga precisa ser especialista na diversidade, tendo formação e postura multidisciplinares, porque a Árvore do TO se alimenta dos conhecimentos humanos para promover ações concretas. Procurar saber de teatro, cultura, educação, psicologia, ecologia, economia, e do que mais for possível, associando saber a sensibilidade e bom senso, é uma atitude essencial. (Santos, Bárbara, 2008, p.75 e 76). Para possibilitar essa especialização tão diversificada, a qual requer a função do Curinga, o Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro (CTO-Rio), dirigido por Boal até o seu falecimento, aposta numa formação de longo prazo, contínua, amparada pela atuação prática e não apenas teórica, e que requer, ainda, um amadurecimento pessoal. Sua estrutura de funcionamento atualmente comporta praticantes de Teatro do Oprimido atuando como Curinga, Curinga-Assistente e Curinga-Comunitário. Os praticantes de Teatro do Oprimido são todas as pessoas envolvidas com o método, em alguma instância, seja como participante das oficinas, dos grupos comunitários e teatrais, seja como multiplicador ou Curinga. Os multiplicadores são pessoas que “utilizam o TO como instrumento de trabalho e de comunicação lúdico e eficaz em sua atuação comunitária, para dinamizá-la e diversificá-la e para ampliar o seu raio de ação”. (SANTOS, Bárbara, 2008, p.76). O Curinga-Comunitário exerce suas funções no âmbito específico do grupo ao qual está inserido, coordenando-o, ministrando jogos, assessorando os ensaios das peças e mediando os diálogos teatrais nas apresentações do grupo. Já o Curinga-Assistente assume responsabilidades específicas nas atividades práticas desenvolvidas por um Curinga, embora não tenha autonomia para conduzir todo o processo. No CTO-Rio essa experiência funciona como estratégia de formação, constituindo um estágio supervisionado. Há uma diferença entre ser Curinga e o ato de curingar, que corresponde ao desempenho de atividades como ministrar exercícios e jogos (curingar um jogo) e mediar o diálogo teatral nas sessões de Teatro-Fórum e de Teatro-Legislativo (curingar o fórum). “Curingar não transforma, necessariamente, um praticante em Curinga mesmo sendo exercício essencial para sua formação”. (SANTOS, Bárbara, 2008, p.76). O curinga exerce uma função de liderança junto aos grupos com os quais trabalha; uma liderança democrática, que requer o diálogo como base do processo de apropriação artística e leitura crítica do mundo. O método do TO cria condições para que o oprimido se aproprie dos meios de produzir teatro e assim amplie suas possibilidades de expressão. [...] O Curinga auxilia as pessoas a descobrirem suas potencialidades, a se conhecerem melhor, a 72 expressarem suas idéias e buscarem alternativas próprias. Teatro do Oprimido só pode ser apropriado por quem compartilha generosamente seu saber e sua experiência. Método que só se aprende ensinando e que só se ensina estando aberto para aprender. (SANTOS, Bárbara, 2008, p.75). Nesse sentido o Curinga exerce uma função pedagógica que o assemelha ao educador freiriano: aprendendo enquanto ensina e ensinando enquanto aprende. O Professor-Curinga agrega um valor democrático, pautado no diálogo, aos estabelecimentos de ensino que primam pela hierarquia autoritária. A sua formação generalista aponta em direção a uma escola cujos conteúdos não sejam trabalhados de modo compartimentado, com professores encerrados em uma única disciplina, a da sua formação acadêmica. Santos (2008) afirma que o Curinga não é um detentor de respostas. “Deve ser um “perguntador”. Deve ser maiêutico: formular perguntas que gerem respostas e que provoquem novas perguntas. O Curinga não persegue a resposta perfeita, estimula as respostas possíveis que desenhem a realidade desejada, para torná-la palpável”. (SANTOS, Bárbara, 2008, p.75). Entretanto, não podemos perder de vista que o Curinga é um ser humano, portanto político, que se propõe a causa de transformar a realidade no sentido de superação da organização social opressiva. Também é parte de sua função analisar, criticar, expor suas opiniões como meio de construir o diálogo e promover o debate junto ao grupo no qual atua. No fórum, utiliza-se de diferentes estratégias discursivas, reforçando falas, contrapondo argumentos, referendando situações da encenação, solicitando a opinião da platéia, entre outros, para trazer luz ao debate e contrapor argumentos contrários aos do grupo. Nunes (2004) reconhece no Curinga uma figura de poder: “A própria função do curinga, misto de psicólogo, diretor de teatro, professor e animador cultural, há que ser problematizada. O curinga é figura de autoridade! O especialismo do multiplicador!” (NUNES, 2004, p.68). Em sua análise a autora refere-se ao curinga como um porta-voz da instituição teatral, detendo em si o poder do Teatro do Oprimido que é um misto do poder do teatro com o dos multiplicadores e dinamizadores de grupo das militâncias políticas e projetos democráticos de cidadania. A autora, após relatar diversos depoimentos de experiências com o Teatro do Oprimido, praticadas por diferentes pessoas em áreas variadas, questiona se o alívio trazido com tais práticas chega a ameaçar o status quo social. 73 Paranhos (2009), por outro viés, analisa uma decisão coletiva, aprovada em uma sessão de Teatro Legislativo, realizada na I Conferência Internacional de Teatro do Oprimido, em 2009, no Rio de Janeiro. Para esse autor, a proposta de instalar câmeras nos ônibus como meio de coibir práticas racistas e/ou autoritárias dos funcionários reforçam uma sociedade de vigilância, panóptica, sem questionar justamente esse estado de coisas, num meio de transporte público onde nenhum outro passageiro da peça se manifestou contrário à atitude do motorista, somente a personagem oprimida. Algo desta conservação, segundo Nunes (2004) deve-se à forma fórum que é: a forma de domínio da consciência, onde o juízo/julgamento funciona como uma linha de segmentaridade dura (podendo flexibilizar-se, mas sem que a coisa mude de natureza). A questão parece ser a seguinte: como evitar que a clandestinidade transversalizante (visada pela sua proposta) recaia no ardil do julgamento e seja, efetivamente, abertura de mundos sensíveis capazes de mostrar quais modulações de vida intensa poderão pulsar ou já estarão pulsando aquém ou além dos juízos forenses. Igualmente, o quanto ele é capaz de perceber e não atrapalhar quando algum movimento, alguma variação se dá. (ORLANDI, apud NUNES, 2004, p. 69 e 70). Paradoxalmente, o fórum não é uma forma muito diferenciada da sala de aula quando o professor propõe numa dinâmica mais dialogada, com seminários, debates, enfim, mais “democrática”. O professor mantém-se como figura de autoridade e poder, pontuando o que convém ou não, valorando e referendando o conveniente para o assunto em pauta. O desenvolvimento do fórum de teatro, no entanto, tende a ser incomparavelmente mais dinâmico, irreverente, audacioso, imprevisível, arrojado e divertido que um fórum verbal, pela própria natureza das improvisações teatrais e, pela transgressão promovida com ingresso da pessoa em cena. O riso, o clima de irreverência, já é em si um convite para a criação e agenciamento do novo. No entanto, o curinga é determinante nesse processo, para promover questões provocadoras e ativadoras da platéia, podendo, no extremo oposto, reduzir a discussão de modo maniqueísta, retirando do debate potencialidades e riquezas plausíveis de serem investigadas com a multiplicidade da vida que se apresentada em cena e, assim, amortizar a discussão e contribuir com a reprodução social. 74 IV. EM CAMPO, NO CAMPO, PELO CAMPO IV.1. O Município, a escola e a comunidade: caracterizando os locais. O Município de Itatiaiuçu, situado na Cordilheira do Espinhaço, localiza-se na encosta da serra que leva o seu nome. Suas terras foram habitadas pelos índios Cataguás e, ainda hoje é possível encontrar, no meio rural, objetos por eles utilizados como machados de pedra, cachimbos e potes de barro. Seu nome é de origem Tupi-guarani e significa Pedra (ita) Dentada (tiaia) Grande (uçu), ou Grande Pedra Denteada7. O povoamento atual tem sua origem com as expedições Bandeirantes nos sertões em busca de ouro e pedras preciosas para a Coroa Portuguesa, no século XVII. Foi distrito criado com a grafia de Itatiaiussu, subordinado primeiramente ao município de Bonfim (em 1850) e, posteriormente, ao de Itaúna (a partir de 1901), sendo emancipado em 1962. Prefeitura Municipal de Itatiaiuçu. Casarão do período colonial. Itatiaiuçu possui 294,65km² de extensão territorial, uma população de 9.9388 habitantes, sendo 6.231 moradores da área urbana e 3.707 distribuídos nos seus oito povoados rurais. Sua principal atividade econômica é a mineração, seguida pela produção hortifrutigranjeira e pecuária de corte e leiteira. Situa-se a 70 quilômetros de Belo Horizonte, nas margens da Rodovia Fernão Dias (BR-381), que liga os Estados de Minas Gerais e São Paulo, sendo que o centro do município fica na MG-010. 7 8 Fonte: Wikipédia. Dados do IBGE, censo 2010. 75 A proximidade com a capital favorece o deslocamento de sua população para este grande centro e também para outras cidades maiores à beira da Rodovia, como Igarapé, Betim e Contagem, seja para fins de trabalho ou em busca de serviços e produtos ausentes em Itatiaiuçu. Esse trânsito de pessoas foi potencializado recentemente pela inserção geográfica do município na denominada Região Metropolitana de Belo Horizonte (ou Grande BH), adquirindo transporte metropolitano a custos mais acessíveis. Outra cidade tradicionalmente procurada pela população de Itatiaiuçu é a vizinha Itaúna (distante 32 quilômetros), para fins de saúde, lazer, compras, trabalho e também para estudos universitários. Mirante do Cristo Redentor. Igreja de São Sebastião na praça Antônio Quirino da Silva. Entre os pontos turísticos da cidade destaca-se o Mirante do Cristo Redentor, a Cachoeira dos Chaves, o Parque de Exposições João Belo de Andrade e a Praça Antônio Quirino da Silva, localizada no centro do município, em frente ao prédio sede da Prefeitura. A Escola Municipal João Marques Machado, situada no bairro Kennedy, funciona nos três turnos, sendo o matutino e o vespertino com crianças em idade de alfabetização até a quarta série e o noturno com Educação de Jovens e Adultos (EJA). É a única escola do município que oferece o Ensino Fundamental noturno, na modalidade EJA, e a prefeitura fornece transporte escolar em ônibus e/ou vans para estudantes dos povoados e distritos distantes. Esses veículos também servem aos estudantes da Escola Estadual, que cursam o Ensino Médio na modalidade regular ou EJA. Em função de obras na instituição, as aulas estão ocorrendo, temporariamente, nas instalações do Programa Saúde da família, situado no centro de Itatiaiuçu, a meio quarteirão da 76 Praça Antônio Quirino da Silva. O espaço, por isso, está bastante reduzido, mas as reformas estão previstas para terminar em outubro de 2011. À esquerda da entrada observamos o banheiro masculino de estudantes e três salas: na primeira funciona a Secretaria, com banheiro de funcionários e almoxarifado nos fundos; na segunda, a Direção, com depósito de materiais atrás e sala de Informática ao lado; a terceira é uma sala de aula. À direita funciona o Programa de Saúde, com entrada independente, anterior ao portão da escola. No corredor da entrada observamos, ainda, a caixa d’água e a janela da biblioteca no final. A biblioteca escolar está funcionando numa sala de aula com mobiliário para estudantes menores e, à noite, é utilizada como sala dos professores. Entrada da escola.. Sala de informática, ao lado da Direção. Material do teatro entre outros, na Direção. Sala da Direção com depósito no fundo. Entrada do Posto de Saúde, junto agrade. 77 No corredor ou pátio central ficam as mesas do refeitório. À esquerda estão a biblioteca, a cozinha, a dispensa e uma passagem para o corredor dos fundos, onde funcionam três salas de aulas; à direita observamos a parede do Posto de Saúde e uma escada de acesso para um estreito corredor com outras quatro salas de aula. As oficinas de teatro aconteceram na sala ao lado da Direção, onde diariamente são ministradas as aulas para os adultos em início do processo de alfabetização. A proposta desta sala surgiu em função da distância em relação às demais turmas e do tipo de atividade, bastante sonora, com exercícios e jogos corpóreo-teatrais, e foi prontamente aceita. Trata-se de uma sala com aproximadamente 28m², um quadro verde, um armário e uma estante, carteiras separadas das cadeiras, com estrutura de metal, algumas com tampo de madeira, outras de fórmica. A decoração envolve um varal com as letras do alfabeto pendurado ao longo de uma das paredes. Nos dias de oficina as duas turmas trocam de sala e afastamos as carteiras para um lado, formando um amplo círculo com as carteiras para as atividades teatrais. Corredor ou pátio central. Detalhes do final do corredor central. 78 Vista da porta da sala da oficina teatral no fundo, à direita. Sala de aula onde ocorriam as oficinas teatrais. A comunidade de Pedras de Itatiaiuçu fica próxima a BR-381, à direita da rodovia (no sentido Belo Horizonte - São Paulo, um pouco depois do distrito de Santa Teresinha de Minas, este situado nas margens da Rodovia Federal). O acesso ao centro do povoado se faz por uma estrada de terra, nas mediações do pedágio. No centro da comunidade, distante quatro quilômetros da rodovia, há uma praça com a Igreja de Santo Antônio. Ao redor de toda a praça a estrada é calçada com pedras. Na frente da Igreja, à direita, encontramos o Bar do Sr. Célio e da D. Márcia; na lateral da praça, a E.M. Arminda Evangelista Pereira, que atende estudantes de todos os níveis do ensino fundamental no período diurno, o Salão Comunitário Jovelina Maria de Miranda, que funciona como Posto de Saúde durante a semana e, acima do Salão Comunitário, uma quadra de cimento. Na parte posterior da praça está o Estádio Municipal Antônio Católico da Silva, com um campo de futebol gramado em ótimas condições. Um pouco acima, em frente à lateral do campo, uma venda. A estrada que continua sem calçamento leva à comunidade do Rio São João. 79 Lateral da Igreja, vista da frente do Salão Comunitário. Salão Comunitário Jovelina Maria de Miranda. Entrada da quadra, Salão Comunitário, Escola e Igreja. Vestiário do Estádio de futebol. A comunidade de Pedras possui diferentes representantes na Associação de Artesãos de Itatiaiuçu e, nas margens da rodovia (BR-381), nas proximidades do pedágio, é possível ver diferentes armações de pau expondo à venda as tapeçarias produzidas pelas artesãs do local. IV.2. As contradições do processo: um olhar sobre a oficina teatral na escola. IV.2.1 - O contato inicial e as primeiras oficinas: conhecendo o grupo A proposta inicial para o trabalho na escola, levada ao conhecimento da Secretaria Municipal de Educação e da Coordenação escolar, contemplava uma oficina de Teatro do Oprimido que poderia atender a diferentes públicos, entre estudantes e profissionais da EJA, e ser realizada com diversos formatos e tempo de duração, em diferentes espaços, conforme 80 conveniência para a instituição. Deveria, no entanto, haver um tempo mínimo de 40 horas para desenvolvimento do trabalho, a frequência dos encontros não poderia ser superior a semanal e, cada encontro, possuir entre duas e quatro horas de duração. O projeto de pesquisa foi aceito e o grupo de profissionais da escola optou pelo desenvolvimento do trabalho com a turma do 7º ano: a mais numerosa, com 23 estudantes inscritos e 20 freqüentes. Era predominantemente jovem, com 17 pessoas na faixa etária entre 17 e 25 anos e apenas três entre 30 e 45 anos; majoritariamente masculina, sendo 13 homens e 7 mulheres, entre elas as três mais velhas. O primeiro contato com a turma ocorreu no dia 17 de maio, terça-feira, acompanhado pela coordenadora escolar, com uma breve conversa na própria sala de aula dos estudantes para apresentação da proposta da oficina que se iniciaria na semana seguinte. O funcionamento da escola apresentava uma EJA seriada, com os estudantes agrupados por nível de conhecimento dos conteúdos escolares disciplinares e tendo acesso a progressão semestralmente. Os professores eram moradores do próprio município ou de municípios vizinhos e todos atuavam em mais de uma escola. Alguns, inclusive em três ou quatro, para compor a carga horária regulamentar. Todos com habilitação específica na área de atuação. A oficina de Teatro do Oprimido foi incorporada ao conteúdo das aulas de Português e a professora desta matéria participou de todo o processo. Inicialmente, as oficinas teatrais foram realizadas em dias diferentes a cada semana (segundo a coordenadora no noturno, para não haver prejuízo em nenhuma disciplina). Posteriormente, a pedido de alguns estudantes, foi transferido para as sextas-feiras, dia com duas aulas de Português, uma de Matemática e duas de Educação-Física. Em função do espaço da escola, as aulas de Educação Física estavam limitadas à sala de aula; havia mais aulas de matemática em outros dias; portanto, as sextas-feiras, não prejudicaria as demais disciplinas, cujas aulas eram apenas uma vez por semana. A turma apresentava diversos conflitos internos, prática de bulling, que atribuímos ao processo de constituição do masculino na sociedade, envolvendo práticas de reforço de um ideal hegemônico reafirmado com a intimidação daqueles que divergem deste padrão. Os meninos, ao competirem entre si em uma performance que lhes garanta maior proximidade da posição hegemônica, terminam por solidarizarem-se uns contra os outros no heterocentrismo em que aos homossexuais é destinado um valor inferior de pertencimento identitário na casa-dos-homens. 81 [...] A zoação serve como canal, suporte e fronteira entre os gêneros para demarcar identidades e estrategicamente tecer as diferenças entre os masculinos e os femininos. Nesse sentido, a zoação se faz entre os meninos e as meninas, mas possui níveis de tensão e ambigüidade distintos em que se gradua a homogeneidade pretendida e, em seu interior, a heterogeneíza. Entre meninos e meninas, na perspectiva inter grupos, a zoação possibilita, como já visto, reafirmar o lugar do masculino e sua ascendência sobre o feminino em um movimento no qual manifesta-se a amizade e a sedução para com as meninas. [...] Zoar serve também para os meninos, intra grupo dos homens, se afirmarem como macho e destratar a dissensão dos menos “homens” por serem efeminados... (NOGUEIRA, 2006, p. 333 e 334). As oficinas iniciavam-se com o afastamento das carteiras para os cantos da sala e posicionamento das cadeiras em círculo, tornando-a mais acessível à realização dos exercícios, dos jogos e improvisações, além de mais condizente, também, com a proposta político-dialógica e estética do Teatro do Oprimido. Tal movimento favorecia outro posicionamento físico-espacial na sala de aula: um corpo ativo, criativo, irreverente, livre da rigidez quase imóvel que prende o sujeito sentado numa cadeira, em fila, atrás das carteiras e dos colegas, numa disposição espacial controladora e hierárquica. A sala de aula, com o decorrer das atividades, foi transposta para outros espaços, por meio da realização de improvisações e ensaios nos pátios da escola. Os conceitos de Ética e de Solidariedade ganharam novo campo de discussão junto aos estudantes, por meio do método do Teatro do Oprimido. No primeiro encontro, uma técnica modelo de fórum denominada O aperto de mão9, introduziu uma discussão sobre o respeito versus a zoação nas relações. Nesta técnica, uma pessoa segue, com a mão estendida, em direção a outra. No momento de cumprimentá-la, no entanto, a pessoa dá as costas e cruza os braços, deixando a outra “sem graça”, “humilhada”, “no vácuo”, como os participantes costumam dizer. No segundo encontro, a discussão assumiu o viés das relações de gênero, com a realização da técnica Invasão de Território. De modo resumido, essa técnica se desenvolve com cinco cadeiras dispostas lado a lado num espaço vazio. Uma mulher entra e senta-se na última. Em seguida, um rapaz, observa todas as outras cadeiras vazias e senta-se ao lado da mulher. Esta se levanta e vai para a primeira cadeira. O rapaz também se levanta e, novamente, senta-se ao lado dela, na segunda cadeira. Mais uma vez a mulher troca de lugar e o homem torna a sentar-se ao seu lado. Por fim, a mulher levanta-se e vai embora. 9 A descrição desta e de outras técnicas, exercícios ou jogos teatrais desenvolvidos nas oficinas e citados neste trabalho estão disponíveis em BOAL, Augusto. 400 jogos para atores e não atores. Civilização Brasileira. Rio de janeiro, 1998. 82 A questão do bulling, especialmente no que afeta dois estudantes obesos da sala, começaram a ser analisadas na terceira oficina, após a realização da técnica modelo de fórum denominada Os quatro em marcha: quatro pessoas marcham de um lado para outro do espaço ao som de “Pom pom pom rom rom". Outra pessoa se movimenta um pouco atrás das primeiras, com um ritmo, movimento e som completamente diferente. Quando os Quatro em Marcha viram e vêem a pessoa diferente deles, a atacam cenicamente com socos no topo da cabeça, abaixandoa até o chão e seguem com o seu movimento. A pessoa levanta e segue com seu próprio ritmo por três vezes, sendo sempre atacada pelos Quatro em Marcha, até que desiste, se insere no grupo dos quatro e segue marchando com ele, ao som de “Pom pom pom rom rom”. Associada com temáticas de preconceito emergiu a discussão da discriminação racial, com reflexões a partir da expressão cabelo ruim e prosseguiu analisando os padrões de beleza impostos pela mídia e os valores culturais atribuídos aos homens e às mulheres na sociedade. Logo nas primeiras oficinas realizadas na escola a prática do Teatro do Oprimido propiciou esse questionamento abrindo possibilidades para a reconstrução da concepção que cada um tem de ser humano, associada a valores e preconceitos sociais estigmatizantes. Tornou-se comum, nos vinte ou trinta minutos finais da oficina, a inspetora, entre outras funcionárias da escola, permanecer na porta da sala assistindo às improvisações teatrais. No terceiro encontro, um pouco antes do intervalo do recreio, dois estudantes improvisaram algumas “personagens” da própria escola, entre coordenadora, inspetora e professores. Nos minutos finais deste encontro a coordenadora, juntamente com a secretária e a inspetora, solicitaram a repetição de suas imitações. Os estudantes repetiram, revelando alguns aspectos de seus comportamentos num misto de crítica e humor. Nesses três primeiros encontros realizou-se exibição de vídeos sobre o Teatro do Oprimido no Brasil e no exterior, conversou-se sobre o histórico de desenvolvimento do método, apresentaram-se seus fundamentos e realizaram-se jogos das quatro categorias de exercícios, técnicas de Teatro-Imagem e improvisações teatrais. Nem todos os jogos contaram com a concentração necessária ao seu bom desenvolvimento. As improvisações iniciais revelaram temáticas como drogas, abuso de poder e violência policial, violência doméstica e homofobia. 83 IV.2.2 - O desenvolvimento das oficinas: entre altos e baixos Viana (2011) relata uma dificuldade inicial que teve com o desenvolvimento dos jogos teatrais em oficinas com estudantes da EJA, numa escola estadual em Belo Horizonte. Não é demais reforçar que estamos tratando de jogos com adultos de EJA, público com suas particularidades e que, a todo o momento, demonstra as suas inseguranças e idiossincrasias. [...] Nesse ambiente as atividades também encontraram seus percalços. Alguns alunos e alunas, por exemplo, não compreenderam a função do jogo como elemento preparatório para a atuação dos atores e atrizes em um suposto espetáculo e, desse modo, atribuíram valor duvidoso para a atividade com jogos. [...] Isso nos obrigou a mobilizar habilidade e esforço para a condução das aulas visando possibilitar que o grupo entendesse a necessidade dos jogos. Como conseqüência, conseguimos fazer com que a maioria dos alunos aderisse à proposta. (VIANA, 2011, p. 97 e 98). No caso da escola em Itatiaiuçu, alguns jogos decorriam bem, outros encontravam resistência por parte dos estudantes. Percebia-se certo silencio no grupo, uma falta de confiança nos colegas, uma espécie de receio na realização dos jogos, talvez um medo da crítica alheia ou excesso de autocrítica. Talvez esta postura, que não era da maioria, mas “contaminava” o grupo, devesse à “escolarização” do teatro. Como as pessoas viam a oficina? Qual o sentido da proposta? Tratava-se de mais uma atividade escolar cumprida por obrigação? Qual o sentido da escola para eles? O que é positivo e negativo em todo esse contexto? Eram questões ainda em aberto e latente. No caso dos jogos, após reexplicitar sua função no Teatro do Oprimido, buscou-se uma solução compartilhando com o grupo a responsabilidade de escolher e ministrá-los, a partir do livro Jogos para atores e não-atores, do Boal. Porém, no quarto encontro, o primeiro após este combinado, dos três estudantes responsáveis pelos jogos, uma faltou, o outro não selecionou e apenas uma o ministrou. O exercício por ela selecionado foi o Dança das cadeiras, no qual cadeiras são dispostas em círculos, com os assentos virados para fora da roda, em um número inferior ao dos participantes, de modo que sempre sobra uma pessoa em pé. Ao som de uma música os participantes dançam ao redor da cadeira e buscam sentarem-se quando a música pára. A cada rodada, saem o participante que sobrou em pé e uma cadeira da roda. Para não ficar muito demorado, optou-se por retirar duas cadeiras de cada vez, assim, a cada rodada, duas pessoas sobravam em pé. A falta da música foi solucionada com o toque do pandeiro e do chocalho pelos dois estudantes que não queriam participar. Os que saíam acabavam pegando outros instrumentos e fazendo som também. Algumas vezes, no entanto, não 84 ficava evidente o final da música e as pessoas sentavam-se antes da hora. Mas estava bastante divertido e aproveitou-se para realizar um variante deste jogo no qual saem as cadeiras, mas os participantes ficam e precisam arrumar um jeito de todos se sentaram, uns sobre os outros, inclusive. Esta variante pareceu ainda mais divertida! Na seqüência, realizou-se o jogo Vampiro de Estrasburgo, em meio a uma áurea de suspense, alegando ser sexta-feira de lua cheia. Este jogo pertence a terceira categoria e é executado com os olhos fechados. Entretanto, avaliou-se que foi um pouco antecipado. A maioria dos participantes não permaneceu de olhos fechados e foram poucos os gritos de pavor e prazer exigidos pelo exercício. O jogo não funcionou. No exercício seguinte, Esculpir Imagem, solicitou-se a construção da escultura de um opressor conhecido do escultor. As esculturas seriam construídas em duplas, modulando o corpo do colega. Apareceram nas imagens o bandido e traficante de drogas, um padre ou pastor, uma pessoa arrogante e esnobe. Uma polêmica surgiu em torno da figura de uma prostituta: trata-se de uma opressora ou de uma oprimida? Aparentemente o jogo não foi bem explicado e entendido por todos. Após o intervalo, propôs-se a formação de duplas, com pessoas de confiança, para contarem, mutuamente, histórias pessoais de opressão. Não houve motivação para a atividade. Sugeriu-se, então, uma estratégia que garantia o anonimato: cada um escreveria num papel o tema que gostaria de discutir com a peça. Drogas foi o predominante, seguido por namoro, gravidez na adolescência, preconceito social, relações familiares, preconceito racial, violência contra a mulher, homossexualidade e prostituição. Assim, metade da turma foi discutir e identificar histórias sobre o tema das drogas, a outra metade sobre namoro, gravidez na adolescência e relações familiares, para montagem da peça. Com a história definida, em vez de realizar uma improvisação como nos encontros anteriores, foi solicitada a representação da história por meio da poesia, da pintura e da escultura de papel. Cada subgrupo trabalhou num local diferente, inclusive fora da sala e não houve tempo de reunir o grupo no final. Por isso a atividade terminou de modo um pouco disperso, mas foi o primeiro encontro em que absolutamente todas as pessoas participaram efetivamente, além da simples observação. 85 O quinto encontro ocorreu quinze dias após o anterior, em função do feriado de Corpus Cristi, e o grupo retomara uma postura silenciosa, de resistência, no início da oficina. As dúvidas relacionadas ao significado das atividades teatrais para os participantes retornaram. Então, foi proposta uma roda franca de conversa, na qual as pessoas poderiam perguntar e se posicionar sobre a oficina. Entretanto, intuindo que ainda não havia clima para a conversa pretendida, a ministrante da oficina se pôs na berlinda, como no jogo do Interrogatório, sentando-se numa cadeira, no meio da roda, para responder as perguntas dos estudantes. Diferentes perguntas surgiram inclusive de cunho pessoal como: “Onde você mora?”, “Onde você nasceu?”, “Você é parente da Uciara?”, “Onde você estudou?”, “Você tem filho?”, “Você é casada?”. Estas e outras perguntas foram todas respondidas, até não restarem mais dúvidas e os participantes terem as suas curiosidades satisfeitas. Depois, de volta à roda, as pessoas se posicionaram. A maioria reafirmou o interesse pelo teatro, verbalizando a vontade de participar, entretanto, foi importante ouvir àqueles com opinião contrária, descobrir seus interesses e motivações. A primeira a falar foi uma das mulheres mais velhas afirmando, categoricamente, que não queria fazer teatro, pois não estava ali para isso; o que ela gostava era de escrever. A segunda fala, de uma mulher mais nova, foi de sentido oposto, confirmando o gosto pela atividade teatral. O terceiro, um rapaz de 25 anos, disse não queria se apresentar: poderia ajudar em outras coisas, mas não como ator. E assim, cada um foi se posicionando, trazendo seus interesses em relação à cenário, figurino, maquiagem, música, arte gráfica dos cartazes e à própria encenação. Num dado momento da conversa a professora que acompanhava o processo se manifestou alegando que o teatro fazia parte das atividades de Português e seria avaliado por ela. A oficineira interveio com um misto de pergunta e afirmação: “Mas é possível realizar uma outra atividade para àqueles que não desejam participar, não é?” A professora assentiu embargada. Parecia que ela também gostava de participar do teatro, como vinha demonstrando nas oficinas. E voltando-se para o grupo a oficineira confirmou a não obrigatoriedade do teatro, a importância das pessoas participarem por prazer e quem quisesse ajudar seria muito bem vindo. Antes de sair para o intervalo, um adolescente procurou a oficineira dizendo que gostaria de participar, mas não sabia se iria continuar na turma, pois corria o risco de ser reprovado naquele semestre. Surgira ali uma primeira demanda contrária ao agrupamento seriado. A 86 oficineira se posicionou afirmando que, caso a reprovação realmente se consolidasse, eles buscariam uma maneira dele continuar participando do teatro, conversando com a coordenação e demais professores, buscando um caminho possível. Na volta do intervalo algo que surpreendeu à oficineira e à professora: duas improvisações maravilhosas, com engajamento e compromisso de todos os estudantes. Até quem falou que não queria participar na conversa anterior, atuou. E, pela primeira vez, encenaram fora da sala de aula, no pátio na entrada da escola. Para melhor atender a demanda de construção das artes dos cartazes, bem como a produção de um folheto para a peça, contendo seu histórico e ficha técnica, foi solicitada à coordenadora escolar do terceiro turno a utilização dos computadores da sala de informática, pelos estudantes que se propuseram a desempenhar tais tarefas. Devido as regras que regem o funcionamento do Laboratório de Informática na escola, exigindo a presença de um monitor, esta solicitação precisou ser feita, por escrito, para conhecimento e autorização da Secretaria Municipal de Educação; no entanto, não houve resposta. Na semana seguinte não haveria oficina em função das atividades de recuperação, destinadas aos estudantes que não conseguiram obter notas para serem aprovados e dos preparativos para a festa junina da escola. O sexto encontro ocorreu, então, no último dia de aula antes do recesso. A turma estava vazia, com apenas 8 pessoas. Conversou-se um pouco sobre o encontro anterior e as improvisações das cenas para situar dois estudantes que estiveram ausentes. Revistas e outros materiais de leitura contendo informações sobre drogas e gravidez na adolescência no Brasil foram disponibilizados para os presentes. Alguns se interessaram em ler ali mesmo, outros pediram para levar pra casa. Especulou-se como tornar aquele encontro útil e uma das propostas foi iniciar a escrita do texto da peça, sistematizando a história a partir dos dados das improvisações do encontro anterior. Porém, tal sugestão não encontrou ressonância no grupo que contrapôs solicitando jogos. “Alguém propõe algum?”, perguntou a oficineira sem resposta. “Então manda essa bola que está aí no seu pé”, falou apontando para um estudante. A turma pareceu não acreditar no que ouvia. “É sério. Vamos fazer um jogo com ela”, concluiu. 87 Afastaram-se algumas carteiras e, em círculo, começaram a rebater a bola, com o objetivo de mantê-la o maior tempo possível sem cair no chão. Diferentes regras e objetivos foram acrescentados ao longo do desenvolvimento do jogo pelos participantes, tornando a atividade sempre renovada e interessante. Dois estudantes de outra turma apareceram na porta procurando um colega, se interessaram e entraram para participar. O jogo seguiu até o intervalo da merenda. E aquele encontro encerrou-se ali. A escola estava vazia e, após o intervalo, os estudantes foram assistir a um filme prometido anteriormente pelo professor de História e que seria exibido na turma ao lado. Após o recesso de julho, os encontros teatrais reiniciaram na primeira semana de agosto. Três estudantes saíram da escola: um não se soube o motivo; o outro pediu transferência para a cidade vizinha de Itaguara, onde estava trabalhando; e a terceira não animou a ir para a escola sem a companhia do marido, que havia desistido após concluir o 5º ano, com receio de ser reprovado no semestre seguinte. Essa informação foi revelada para a oficineira num encontro em Pedras, pois o casal era daquela comunidade: “Eu senti muita dificuldade esse ano. Consegui, passei, mas preferi parar pra não reprovar. Eu não ia dar conta não. Tô com muito trabalho.” declarou. Por outro lado, dez novos estudantes ingressaram na turma aumentando significativamente o grupo, seis mulheres e quatro homens. Entre eles, dois eram repetentes da própria escola. Um, porém, rapaz de 16 anos, não continuou, comparecendo apenas na primeira semana de aula. O outro, já maior de idade, com 21 anos, afirmou algumas vezes que continuara por causa do teatro. Os outros dois eram jovens também, com 17 e 19 anos. Entre as mulheres, duas eram mais velhas, com 34 e 38 anos, as outras quatro tinham entre 17 e 22 anos. Os gráficos seguintes mostram essa mudança no perfil da turma, em relação a sexo e idade dos estudantes. 88 Sexo - 1o semestre Sexo - 2o semestre 35% Homens 46% Mulhers 65% GRÁFICO 1: Percentual de mulheres e homens no 1º Semestre. 15 a 20 anos 21 a 30 anos 20% 65% 30 a 45 anos GRÁFICO 3: Faixa etária dos participantes no 1º Semestre. Mulheres GRÁFICO 2: Percentual de mulheres e homens no 2º Semestre. Idade- 2o semestre Idade - 1o semestre 15% Homens 54% 16% 15 a 20 anos 16% 20 a 30 anos 68% 30 a 45 anos GRÁFICO 4: Faixa etária dos participantes no 2º Semestre. Com tanta gente novata e alguns antigos ausentes, houve a necessidade de explicar a proposta da oficina teatral para integrá-los na atividade. Os novos estudantes demonstraram-se animados com a ideia de fazerem teatro na escola e pareceram interessados nas temáticas escolhidas anteriormente pelo grupo, reconhecendo a existência de tais questões no município. Três jogos foram realizados com desenvoltura pelos participantes antes do intervalo. Após o intervalo, a turma foi dividida em dois grupos, conforme o tema de interesse, para improvisação das cenas. Como havia muita gente nova e mais de um mês decorrido desde a última atividade de improvisação, deixou-se que cada grupo se reorganizasse em torno das histórias sobre drogas e gravidez na adolescência a serem representadas naquele encontro. Surpreendentemente, ambas as improvisações retomaram as histórias encenadas antes do recesso 89 de julho, confirmando a identificação daquele grupo com tais temas. A professora de Português ficou admirada: “Parece que não houve mudança na oficina. Foi uma continuidade”. O encontro subsequente, na segunda semana de agosto, estava com turma cheia e, diferente do anterior, ocorreu com muita dispersão, zoação entre colegas e dificuldades no engajamento coletivo sobre a proposta teatral. Foi necessário, constantemente, parar as atividades para debater um ato de desrespeito entre colegas, uma fala preconceituosa e diversas brincadeiras de mau gosto. Na volta do intervalo também não houve concentração para construção das cenas. O clima era de constrangimento, insegurança, medo de exposição. Propôsse uma roda de conversa para avaliação da oficina. Algumas pessoas se posicionaram mostrando indignação quanto à postura de certos colegas. Uma estudante, inclusive, falou diretamente para um deles: “A gente não tem que aturar suas atitudes. Ninguém tem culpa se você brigou e quer descontar em todo mundo”. Nesse momento o rapaz, um adolescente de dezesseis anos, se retirou da sala. Antes de sair ainda deu um tapa na aba do boné de outro colega, fazendo-o cair no chão. As pessoas mostraram descontentamento com o corpo, mas ninguém foi atrás. Um estudante novo afirmou que o teatro da semana passada fora muito diferente daquele dia e foi apoiado pelos outros novatos. O encontro encerrou-se com uma mensagem positiva da oficineira, apontando a importância de se cuidar daquele espaço do teatro, das relações com as pessoas e relembrando que se tratava de um processo coletivo. Pontuou, ainda, a responsabilidade de todos naquele projeto que visava ações para muito além daquela sala de aula. Na semana seguinte o grupo estava bem mais tranquilo, concentrado e alguns integrantes com rosto envergonhado, abaixando a cabeça e esquivando o olhar diante ao da oficineira. Chegara aos seus ouvidos que a coordenadora dera uma broca nos estudantes em função do comportamento apresentado na última oficina. A oficineira apoiou seus materiais sobre a mesa e, buscando ser solidária, falou: “Fiquei sabendo que vocês levaram uma bronca por minha causa”. Alguns consentiram com a cabeça. “Mas está tudo bem?”, continuou. Todos assentiram novamente e sorriram. Entendeu-se que havia ações escolares, de segunda a sexta-feira, além das atividades da oficina, que podiam dizer respeito à sua realização e, ao mesmo tempo, ser alheio aos seus propósitos, fugindo completamente ao seu alcance. 90 Neste dia foi realizado apenas um jogo, o Círculo de nós, antes de iniciarem os trabalhos para construção da cena. O jogo foi bem sucedido, repetido e finalizado com palmas pelos participantes. Em seguida, com a turma subdividida em dois grupos, iniciaram-se os trabalhos para construção da cena, buscando uma contra preparação e definição dos conflitos entre os personagens, até a Crise Chinesa. Cada grupo trabalhava independentemente, um dentro e o outro fora da sala, sob a orientação da oficineira. Após o intervalo, durante o ensaio da contra-preparação da cena sobre gravidez, um estudante do 6º ano chegou à janela da sala para fazer a chamada e ficou observando a atividade. Além de observar, passou a dar sugestões, então foi convidado pela oficineira para entrar em cena e mostrar. Suas improvisações agradaram a todos e trouxeram ótimas contribuições as falas dos personagens. Tinha que continuar a chamada, por isso pediu licença e se retirou, mas fora convidado a voltar. Esse rapaz mais velho, por volta dos 35 a 38 anos, passou a ser um agregado do grupo, participando de diferentes ensaios e da apresentação. Era um ator “curinga” no sentido de contribuir com o grupo de diferentes maneiras, ora orientando nos ensaios, ora substituindo diferentes personagens em cena e ainda auxiliando nos preparativos da peça, sempre propositivo e pertinente com suas colocações e argumentos. Chegou a ser sugerido que auxiliasse na curingagem do Fórum, ministrando algum jogo de ativação da plateia, mas disse que preferia conhecer melhor o terreno. Neste encontro os estudantes pronunciaram o desejo de juntar as duas peças. Sugestões dessa união já haviam chegado anteriormente ao conhecimento da oficineira, mas sempre de modo individual. Neste dia, no entanto, o grupo falou coletivamente, trazendo sugestões concretas para o texto conjunto. Havia um certo receio da oficineira quanto ao funcionamento da peça longa, com duas temáticas distintas, para Fórum. Entretanto, segundo sugestão dos estudantes, a Dramaturgia do Teatro-Fórum seria garantida e, como era desejo do grupo, a decisão foi acatada. No encontro seguinte, com o texto da peça em mãos, os estudantes apontaram a necessidade que sentiam de definir um personagem para cada ator, como forma deles assumirem responsabilidade sobre o papel nos ensaios. Como no Teatro do Oprimido “o que não é 91 expressamente proibido é permitido”10, dividiu-se os papéis entre os interessados e não houve polêmica. Aparentemente todos ficaram satisfeitos com os seus personagens em cena. Entretanto, salvo raros papéis, a rotatividade dos personagens permaneceu em virtude das faltas dos estudantes nos ensaios. A protagonista e a dona do bar, por exemplo, foram representadas por atrizes diferentes no Ensaio de Fórum e na apresentação na Câmara e o mesmo aconteceu com um dos traficantes. Os dois amigos do Protagonista, por sua vez, acabaram se fundindo num único personagem devido às faltas consecutivas de um dos atores. Na semana seguinte ao feriado de Sete de Setembro, dois estudantes de 16 anos, um que assumira o personagem do rapaz envolvido com drogas e o outro o papel de pai da adolescente grávida, disseram que não participariam mais do teatro. Aquela notícia, aparentemente sem pé nem cabeça e nem propósito, parecia surreal aos ouvidos dos demais integrantes do grupo que estavam indignados com a falta de responsabilidade e senso de coletivo dos adolescentes, há menos de um mês da apresentação. Foi proposta uma roda de conversa para compreensão e resolução do problema. Naquele período de ensaio as oficinas ocorriam no pátio central da escola. Os estudantes chegavam, vestiam alguns figurinos e arrumavam o espaço com objetos indicativos do cenário. E a roda de conversa aconteceu ali mesmo, inclusive com a presença da coordenadora que, inicialmente, propôs levar os dois estudantes para um particular em sua sala, no entanto, argumentou-se que o diálogo precisava ser coletivo, pois a decisão dos rapazes afetava todo o grupo do teatro. Após alguns minutos de conversa entendeu-se o que se passava. Houve um desfile de Sete de Setembro na cidade e os estudantes foram convidados a participar como representantes da escola. Entretanto, foram poucos os estudantes presentes e a diretora escolar, em comum acordo com a coordenadora e os professores, deu uns pontos de participação para aqueles que participaram do desfile. Esses pontos incidiriam sobre todas as matérias. Os pontos eram extras, mas os dois estudantes, que estavam com pendências em algumas matérias, reclamaram por não saber que a atividade valia ponto. “Se eu soubesse que ia valer ponto eu tinha ido. Tô precisando desses pontos. Eu tinha até matado o serviço.”, argumentou um deles. A coordenadora explicou que ninguém foi informado que valeria ponto, pois essa 10 Palavras de Boal, em Oficina de Teatro-Fórum, no Centro de Teatro do Oprimido, no Rio de Janeiro. 92 decisão de gratificar os estudantes presentes no desfile surgiu após o evento. Afirmou, também, que o convite foi feito igualmente para todos os estudantes e não era para ninguém ir por interesse. Reafirmou, ainda, que os pontos eram extras e, portanto, não prejudicaria nenhum estudante ausente. “Ninguém perdeu ponto por não estar presente”, concluiu. Ao pessoal do teatro interessava saber qual a relação entre os pontos do Desfile de Sete de Setembro com a participação na peça. Entendeu-se que eles estavam utilizando as suas boas atuações no teatro como arma de negociação com a coordenação do tipo: eu não ganho os pontos, mas também não participo da atividade na qual vocês contam comigo. A professora de Português, por sua vez, lembrou que as atividades teatrais seriam avaliadas na matéria dela. Se a questão deles era por pontos, deveriam participar para serem pontuados em Português. A oficineira buscou uma síntese daquela discussão e argumentou que continuava sem entender qual a relação dos pontos do Desfile com a participação deles no teatro. Pontuou que, em sua opinião, eles precisavam assumir suas responsabilidades enquanto estudantes até para reivindicar uma escola com funcionamento diferente. Havia problemas muito maiores para serem discutidos ali e pelos quais lutarem, em vez de querer pontos extras do Desfile de Sete de Setembro. “Você, por exemplo, que é trabalhador e certamente não tem seus direitos trabalhistas garantidos, já parou pra pensar porque um litro de leite custa menos que um litro de água?” – Perguntou. O estudante confessou que nunca tinha pensado naquilo. “Mas deveria pensar”, continuou, “São questões que dizem respeito à transformação de toda uma sociedade capitalista, injusta, desigual, que favorece uns em detrimento de outros”. Um dos estudantes parecia irredutível. O outro, no final da conversa, trouxe outro discurso, alegando que queria o direito de não participar daquele ensaio. Diferentes pessoas faltavam, eram substituídas, deixaram de encenar algum dia. Aquela seria a vez dele, pois queria assistir o processo, ele que sempre esteve presente e engajado nas atividades. Esse discurso trazia um argumento interessante para reflexão no grupo em termos de compromisso versus o direito de se ausentar da atividade. De fato aquele rapaz fora sempre assíduo e compromissado com o teatro e agora mostrava para os demais como se sentia quando os outros diziam que não queriam participar em determinado dia, ou mesmo faltavam. Por outro lado, aquela atitude após toda a discussão do Sete de Setembro e há menos de um mês da apresentação não foi bem acolhida pelo grupo. 93 No final da conversa a coordenadora solicitou a presença dos dois estudantes em sua sala; depois se soube que assinaram uma ocorrência. O grupo de teatro resolveu ensaiar sem eles, fazendo um remanejamento dos atores nos personagens. Um traficante assumiu o papel do Protagonista e o rapaz do sexto ano o personagem do Pai da adolescente grávida. Um rapaz que perdera recentemente um irmão assassinado por motivos de drogas e raramente participava assumiu o personagem do traficante. Todos atuaram bem nos novos papeis. Foi um ensaio especial, com sensação de vitória. O grupo era maior que a soma – ou a subtração – das partes e, realmente, queria apresentar o teatro. O encontro seguinte foi destinado à construção dos cenários e adereços cênicos e, na oficina subsequente, os dois estudantes pediram para retornar aos ensaios, da maneira que pudessem. O grupo não apresentou objeção devolvendo-lhes, inclusive, os mesmos papéis. O grupo intitulou a peça de Foi sem querer querendo, entendendo que, tanto no caso do envolvimento com as drogas como o da gravidez há um desejo por parte das personagens envolvidas de experimentar o novo, de ter prazer, embora não desejassem as consequências advindas dos seus atos. E se autodenominou Os ousados por que... “Ah! Pela ousadia de fazer teatro!” – afirmou uma estudante. “É, nós somos ousados mesmo.” – complementou outro. No terceiro ensaio após o episódio do Sete de Setembro, alguns estudantes cobraram da oficineira uma postura mais enérgica em relação à postura de brincadeiras e desconcentração de determinados estudantes. Alegaram ainda o excesso de paciência da oficineira ao longo de todo o processo. Curioso que essa solicitação surgiu num momento coletivo de avaliação do ensaio e a oficineira perguntou: “O que vocês acham que eu deveria fazer?” “Dá uma bronca neles”, sugeriu uma estudante. “É, xinga a gente”, propôs outro se incluindo no grupo da bagunça. “É isso mesmo que vocês acham que eu deveria fazer?”, insistiu a oficineira. “É”, afirmaram alguns. A oficineira riu incrédula ante aquela proposta tão arraigada no imaginário do universo escolar e seguiu buscando apontar a incoerência daquela reivindicação num projeto que se propõe com autonomia e igualdade entre as partes. “Vocês acreditam mesmo que eu estou aqui para dar bronca em vocês? Não entenderam ainda que o esquema aqui é outro? Honestamente, quem sou eu para dar carão em qualquer um de vocês? Não tem a mínima chance disso acontecer. Um bando de marmanjos, muitos maiores de idade, trabalhadores, esperando correção 94 da professora...” Aos poucos cada um foi entendendo, revendo e mesmo rindo do próprio posicionamento anterior. A peça Foi sem querer querendo contou com uma única apresentação pública realizada na Câmara Municipal, aberta à comunidade em geral. Dez dias antes desta apresentação da peça houve uma grande faxina na escola e embelezamento de seus espaços, em virtude da visita que receberiam de Gestoras da Secretaria de Educação e Diretoras e Coordenadoras de outras escolas municipais, como atividade de um curso de formação realizado conjuntamente. Nesta faxina grande parte do material do teatro fora jogada fora, entre roupas, adereços e objetos do cenário. Só restou o carro, pois estava pendurado na parede da sala, os bonecos pertencentes aos estudantes, que não ficavam guardados na escola e algumas peças de figurino utilizadas também pelo grupo de Pedras. “Como resolver esse problema?”, pensava a oficineira; “Como contar isso para o grupo sem abalá-los?”, era sua principal questão; “Como substituir o material?”, refletia. Este não era um dia de oficina; passara na escola apenas para mostrar e distribuir os cartazes e panfletos de divulgação da peça que foram impressos. Os estudantes estavam em sala e, antes de se dirigir para lá, listou os materiais que precisariam ser repostos para tomarem uma decisão conjunta. Antes de aparecer na porta da sala, expôs apenas o cartaz, exibindo-o pela porta, sustentado pela mão. Aos poucos os estudantes foram percebendo e começaram a comentar. Era a professora de Português que estava em sala e a oficineira solicitou parte do tempo da aula para acertarem questões do teatro, o que foi concedido. Os estudantes ficaram animados com os cartazes e panfletos. Lamentaram não serem todos na versão colorida, mas entenderam a limitação financeira, uma vez que a impressão com cor custava quatro vezes mais quando comparada com a preta e branca. Por outro lado, gostaram da versão preta e branca impressa nos papéis coloridos, tendo, assim, cartazes de todas as cores que também chamavam a atenção. Passada a euforia com os cartazes e panfletos e decidida a forma de distribuição dos mesmos nos estabelecimentos públicos e comerciais da cidade, pautou-se a questão do cenário. “Pessoal, agora a gente tem um grande problema para resolver. Mas eu tenho certeza que nós vamos tirar de letra, afinal, somos ousados ou não somos?”, iniciou a oficineira. Entre falas de confirmação – “Somos!” – e questionamentos – “Que problema?” – explicou-se que grande parte do cenário havia se perdido durante a limpeza da escola. “Como?!”, “Não pode ser!” – 95 exclamavam os estudantes. “Infelizmente o material ficou do lado de fora quando limparam a biblioteca e o pessoal da manhã entendeu que era para jogar tudo fora.”, esclareceu. “Mas então eles vão ter que dá conta disso”, reivindicou um estudante. “Eu concordo que é um direito nosso cobrar esse material. Tinha, inclusive, objetos pessoais lá. Mas se a gente quiser apresentar, agora é hora de centrar forças na reconstrução do cenário. Eu já fiz uma listagem e não está difícil. O que vocês querem?”, contra argumentou a oficineira. A decisão do grupo foi pela apresentação e diferentes pessoas se responsabilizaram por trazerem objetos de casa para comporem o cenário. O fogão seria refeito na escola mesmo. Neste dia, na secretaria da escola, o clima era de tensão e correria com fechamento dos diários de classe. Averiguavam-se, nas listagens, aqueles estudantes que já estavam reprovados por falta. Um nome do 8º Ano foi citado com um número pequeno de faltas superior ao limite máximo estipulado por Lei. Uma professora pontuou que o caso dele era de reprovação por conteúdo também, pois não fizera nenhuma de suas atividades. A oficineira argumentou que no caso do teatro tratava-se de um estudante muito participativo, que assumira toda a parte musical da peça, trazia seu órgão para os ensaios e contribuiu bastante com o processo do grupo elaborando os efeitos sonoros utilizados em cena. “Em Matemática eu sei que ele também não fez nada”, disse a professora para a diretora. “E, no entanto, toca maravilhosamente, é o músico da peça; se é verdade quando dizem que música é matemática”, ressaltou a oficineira. Dois dias depois, num ensaio, soube-se que aquele estudante havia tentado suicídio. Alguns colegas mais chegados e a oficineira combinaram de ir a casa dele no final de semana. Neste dia houve uma forte chuva e somente a oficineira compareceu. Encontrou-o ainda um pouco abatido e justificou a ausência dos outros colegas. Levou um panfleto da peça e uma blusa que fora feita com a imagem da versão colorida do cartaz. Perguntou: “Então, podemos contar com você na apresentação?”. A resposta foi positiva. A oficina na escola decorreu assim: entre altos e baixos, problemas e soluções, acordos e decisões coletivas, porém, mais altos do que baixos com os diferentes impasses, constantemente dialogados e negociados no grupo. 96 Cena de ensaio: Visitas para Fernando recém-nascido. Cena de ensaio: Bia no bar e Fernando chegando de carro. Cena de ensaio: no carro, Bia com Fernando e roupa voando pela janela. Cana de ensaio: Bronca dos pais de Bia quando ela chega tarde. Cena de ensaio: Fernando experimentando drogas na balada. Cena de ensaio: Fernando na balada, um pouco antes da sua morte. 97 IV.2.3 - A escolha do tema gerador da peça: com poucas palavras O tema majoritariamente escolhido para a montagem da peça foi o uso de drogas. Esse tema surgira desde os primeiros jogos de imagens e improvisações, com força de mobilização da maior parte do grupo. Porém, ainda não havia consenso e, devido ao grande número de participantes, foi proposta a construção de uma segunda peça cujo tema selecionado foi gravidez na adolescência, abarcando, também, questões relativas a namoro e relações familiares, levantadas por alguns participantes. Ao longo do processo, no entanto, com os estudantes constantemente implicados em ambas as montagens, houve a sugestão de união das peças, tendo como elemento de integração a personagem do rapaz que se envolve com drogas e engravida a adolescente, com a qual não tem nenhum relacionamento afetivo anterior. No final da peça o rapaz é assassinado e a menina expulsa de casa pelo pai. A expressão estética e a diversidade de técnicas artísticas e teatrais disponíveis no arsenal do Teatro do Oprimido garantem uma multiplicidade de formas e meios para se colher e construir histórias que culminarão na montagem das cenas de uma peça. Algumas vezes essas histórias surgem a partir de depoimentos verbais e individuais dos participantes, mobilizando o grupo e favorecendo sua identificação com o tema apresentado. Em outras, aparecem nas improvisações teatrais e nas demais atividades estéticas, dispensando a narração pessoal, antecipando e favorecendo a explicitação de questões ainda confusas ou difíceis de serem verbalizadas. Este foi o caso do trabalho na escola, pois no penúltimo encontro antes das férias de julho, a professora participante das oficinas teatrais comentou sobre a história escolhida para a segunda peça, tratando-se de uma das estudantes do processo, grávida de um rapaz de fora, que ela pouco conhecia. A gravidez daquela adolescente ainda não era de conhecimento da sua família, tendo ela buscado apoio primeiro em seus colegas da escola e nos professores; seus familiares tomaram conhecimento do fato inicialmente por boatos na vizinhança. No segundo semestre, após a decisão de unir as histórias, revelou-se também que, à semelhança da peça, o pai do bebê da estudante estava sumido, possivelmente morto, pois sua família não sabia do seu paradeiro. Entretanto, a notícia da morte do rapaz não se confirmou. Tão 98 pouco a adolescente real fora expulsa de casa, apesar do receio que sentia do seu pai abandonar sua família. As histórias das peças, facilmente fundidas em uma única história, eram de conhecimento daquele grupo, que as improvisaram com evidencia tanto no primeiro como no segundo semestre, apesar da mudança dos seus integrantes. Para a escolha dos temas, não houve um momento coletivo de contar e compartilhar histórias pessoais, no entanto, ela estava lá, nítida, evidente, se desenvolvendo a cada dia, explícita no corpo daquela jovem de 17 anos. IV.2.4 - As improvisações das cenas e a construção do texto: uma escrita durante o processo As improvisações de ambas as histórias, tanto no final do primeiro semestre quanto no início do segundo, com a inclusão de novos estudantes, revelaram uma dramaturgia praticamente pronta. O acompanhamento atento das mesmas com escrita simultânea das falas das personagens garantiu, aproximadamente, setenta e cinco por cento do texto da peça. Os outros vinte por cento ficaram por conta dos ajustes necessários à união das peças e criação de uma contra-preparação. Os efeitos sonoros foram inseridos ao longo dos ensaios ajudando no ritmo e na ligação de algumas cenas. Foram criados por um estudante que gostava de música e levava seu órgão para a escola, ou sugeridos por outros integrantes e executados por ele. Ao longo do processo de ensaio, diferentes textos, poesias e paródias foram criados pelos participantes retratando algum momento ou aspecto da história. Duas paródias foram inseridas como música na peça. A sistematização da escrita do texto, no sentido de sua transposição para o papel, foi feita em parte pela oficineira e outra parte por dois estudantes, segundo a divisão de tarefas colocadas pelo próprio grupo, considerando os interesses de cada participante. Esses dois estudantes escreviam, transcreviam e reescreviam a história utilizando o computador da oficineira, disponibilizado para esta e outras atividades da oficina. Como afirma Freire (1987) “a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. [...] De alguma maneira, porém, podemos ir mais além e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de “escrevê-lo” e de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de 99 nossa prática consciente.” (FREIRE, 1987, p.22). O Teatro do Oprimido no interior da escola efetivou esse movimento crítico de leitura, escrita e ação consciente sobre uma dada realidade. A história inicia-se com a mãe do rapaz, Fernando, e os pais da adolescente, Bia, apresentando seus filhos recém-nascidos para visitas e falando dos sonhos que têm para os mesmos. Em seguida, aparece Fernando, já rapaz, jogando bola com os amigos, quando é abordado por uns traficantes. Fernando sai com eles, apesar da advertência dos colegas de se tratarem de “maus elementos”. Os traficantes deixam Fernando dirigir o carro rebaixado deles e o levam para um bar no distrito de Santa Terezinha. Neste bar Fernando conhece Bia que sai para dar uma volta de carro com ele. Uma das amigas de Bia lhe oferece camisinha, mas ela recusa, alegando que não vai rolar nada de mais. Bia recebe uma bronca dos pais ao chegar tarde a casa e mente para eles alegando que estava com as amigas. Fernando prolonga a noite com os traficantes e experimenta drogas numa balada. Chega com o dia amanhecendo a casa, num estado lastimável. Sua mãe, D. Cecília, tenta conversar com ele ao acordar, mas Fernando se antecipa, reconhecendo seu erro e a tranqüiliza afirmando que aquilo não irá se repetir. A mãe acredita. Fernando sai para se encontrar, novamente com os traficantes. Em outra cena, Bia, sem entusiasmo, conta para a amiga que fez sexo com Fernando na noite anterior, sem camisinha. Diante da reação acusativa da amiga Bia pede para ser abraçada. Nada é falado sobre contraceptivo de emergência ou medicação retroviral. Fernando rouba o dinheiro do cofre que a mãe economizava para pagar sua faculdade. Quando a mãe descobre, Fernando torna a mentir alegando que fez inscrições em vestibulares de diferentes faculdades, em várias cidades, Itaúna, Belo Horizonte, Viçosa, Lavras, entre outras, e ainda comprou as passagens para as viagens das provas. Cecília pede para ver as passagens, mas o filho afirma que estão com Bruno, o amigo de infância de quem Fernando se afastara em função da aproximação com os traficantes. A mãe novamente acredita no filho. Cecília se encontra com Bruno na rua e descobre toda a verdade, porém, tarde demais. Fernando furta muitos objetos em casa e quando sua mãe chega, depara com a casa arrasada. Bia confirma sua gravidez por meio de um exame de farmácia levado pela amiga e as duas partem para o centro de Itatiaiuçu a procura de Fernando. As adolescentes encontram a casa e deparam 100 com Cecília em mal estado; ao saber da gravidez, ela se enche de esperança que aquele bebê pode salvar seu filho. Saem as três em busca de Fernando. Chegam numa festa, escutam um tiro, pessoas correndo. Entram e se deparam com Fernando caído no chão, morto. Cecília fica chorando sobre o corpo do filho. As adolescentes vão embora. Bia volta para casa e, sem recurso, conta sobre a gravidez para os pais. A mãe vai a sua defesa e ambas são expulsas de casa pelo pai. Importante ressaltar que, mesmo tendo o texto escrito no meio do processo como base para os ensaios, continuou havendo espaço para improvisações e algumas expressões cômicas que funcionavam nos ensaios foram acrescentadas à peça. IV.2.5 - A cenografia, figurinos e adereços: mobilização para reconstrução A construção dos cenários e adereços cênicos ocorreu num encontro específico, após terem-se listado todos os objetos utilizados em cena pelos diversos personagens, como aqueles destinados à ornamentação dos ambientes. Os estudantes se organizaram por conta própria, distribuindo-se na realização das tarefas e demandando, junto ao almoxarifado escolar, os materiais necessários à confecção dos objetos. O cenário consistia em cinco ambientes principais: a sala da casa de Fernando, a cozinha da casa de Bia, o bar onde os dois se conhecem, o carro e o local da balada. Os três primeiros foram posicionados nas laterais e no fundo do palco, respectivamente, de modo a garantir o meio livre para extensão desses ambientes no momento de cada cena. O carro e o local da balada ficaram no fundo, num andar mais alto, aproveitando-se o corredor que dava acesso à sala da Direção e da Oficina de Teatro. Foi um cenário simples, aproveitando os materiais existentes na própria escola. A base de todos os móveis foram as carteiras e cadeiras escolares. Na sala de Cecília e Fernando três cadeiras cobertas por uma toalha bege formavam o sofá e uma carteira coberta por um lenço era a mesa onde se via uma televisão e o cofre. Os objetos eletrônicos roubados por Fernando foram dispostos, no dia do Ensaio do Fórum, no parapeito da janela da biblioteca, atrás do sofá. A cozinha da casa de Bia tinha um fogão, uma mesa e duas cadeiras. O fogão foi montado sobre uma carteira, encoberta com papel pardo; o tampo era de isopor e, as trempes e os 101 acendedores foram feitos com um papelão azul, aproveitado da embalagem das maças da merenda escolar. Sobre a mesa um forro dourado e um jarro com flores de papel crepom. Cenário: sala da casa de Cecília e Fernando. Cenário: cozinha da casa da Bia. As carteiras do balcão do bar foram cobertas com colchonetes finos e marrons. Sobre ele, uma bandeja de papelão com copos de papel pardo. Dois engradados se tornaram mesas e as cadeiras utilizadas eram pequenas, pegas na sala dos estudantes mais novos do turno da tarde. O carro, preso na grade do corredor, foi todo feito de papelão. No fundo da parede um TNT preto cobria as janelas e escurecia o ambiente da balada. Cenário: bar, carro e espaço da balada ao fundo, no alto. Para a apresentação na Câmara Municipal aproveitou-se parte do mobiliário daquele espaço para mesa da casa da Bia e balcão do bar; fez-se um novo fogão; utilizaram-se tapeçarias típicas da região, trazidas da casa, para cobrir o sofá do Fernando e mesas do bar; e pegou-se emprestada uma estante do cenário do grupo das Pedras, juntamente com os adereços. O carro permaneceu o mesmo, assim como as cadeiras da escola, embora na casa da Bia, em vez das cadeiras convencionais das salas de aula, fez-se uso de umas de madeira, existente na sala dos professores. O local da balada ficou na frente do palco, em baixo. 102 Quanto ao figurino, alguns conseguiram manter suas roupas ou arrumar outra interessante a tempo. O pai da adolescente, por exemplo, consegui uma fantasia de policial. Os traficantes, no entanto, cujas capas pretas sugeriam um misto de herói, noite e morte, teve esse figurino reduzido ao chefe do tráfico. A maioria, porém, utilizou roupas próprias. Cenário da apresentação na Câmara Municipal. Cenário da apresentação na Câmara Municipal. IV.2.6 - O Ensaio de Fórum: uma apresentação para os colegas da escola O ensaio de fórum aconteceu numa sexta-feira, dia 7 de outubro, na própria escola. Neste dia a escola estava bastante vazia em função do recesso da semana do 12 de outubro e a apresentação, prevista para a turma do sexto ano, aconteceu para todos os estudantes, com uma platéia de aproximadamente 30 pessoas. Foi uma noite cultural na escola. Antes do intervalo houve a apresentação de um Coral da cidade e, após, a apresentação teatral, que acabou tendo um tom de Sessão de Fórum. Os atores representaram com afinco e a platéia atuou com quatro intervenções: duas no papel da mãe do Fernando, uma como mãe da Bia e outra como amigo do Fernando. A primeira intervenção no papel da mãe não alterou muito esta personagem, que tentou conversar com o filho, mas num tom bastante permissivo, sem transformar a relação entre eles. A segunda, ao contrário, foi bastante enérgica, aproximou-se fisicamente do rapaz e demonstrou um misto de carinho, amor e preocupação para com o filho ao chamá-lo na responsabilidade. 103 A intervenção como mãe da Bia ocorreu na última cena, no sentido de garantir o direito de mãe e filha permanecerem em casa e propiciou algumas colocações sobre os direitos das mulheres após a Lei Maria da Penha. Por fim, o amigo do Fernando, foi mais contundente na hora de alertá-lo sobre as consequências de uma aproximação com traficantes. A cena terminou num impasse, pois o próprio personagem do Fernando ficou sem saber se ia ou não encontrar os traficantes. No final da última intervenção o espect-ator, ainda no palco, falou para o outro na plateia: “Pode vir. Não é ruim não.”, traduzindo aquele misto de medo e realização, entre outros sentimentos, envolvidos no processo de transgressão da parede invisível que tradicionalmente separa o palco da plateia. Após as intervenções, a diretora da escola teceu um comentário com misto de elogios e reclamações, cobrando dos atores, que foram “capazes de realizar um trabalho tão bonito com aquele”, a encenação dos “problemas da escola”, causados por tanta indisciplina estudantil. Inicialmente foi difícil entender a ligação entre os contextos apresentados naquela fala. A indisciplina escolar pode adquirir diferentes sentidos conforme o olhar sobre a educação, seus objetivos, funções e os respectivos papéis atribuídos aos agentes envolvidos no processo educativo, incluindo professores, estudantes, pais ou responsáveis, dirigentes escolares, entre outros. Numa concepção bancária, por exemplo, na qual o professor é o “depositante” do conhecimento pré-determinado pela cultura dominante e os estudantes meros depositários, a disciplina torna-se fundamental para o sucesso do processo de transmissão de conhecimento, sendo, assim, condição necessária para o aprendizado do aluno. Essa concepção de educação teve origem com a ideologia liberal burguesa do século XVIII, objetivando domesticar os sujeitos, tornando-os dóceis e adaptados ao mundo em que viviam, e permanece impregnada no imaginário educacional atual, sendo perpetuada de modo irrefletido na maioria das escolas brasileiras, por meio dos seus currículos, modos de funcionamento, hierarquias, relações interpessoais, organização espacial das salas de aula, avaliações e outras diferentes práticas pedagógicas. Segundo Foucault (1998): 104 A disciplina é uma técnica de exercício de poder, não inteiramente inventada, mas elaborada em seus princípios fundamentais durante o século XVIII. Historicamente as disciplinas existiam há muito tempo, na Idade Média e mesmo na Antigüidade. Os mecanismos disciplinares são, portanto, antigos, mas existiam em estado isolado, fragmentado, até os séculos XVII e XVIII, quando o poder disciplinar foi aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão dos homens (Foucault, 1998, p. 105). Os métodos disciplinares permitem o controle minucioso do corpo, por meio de instrumentos como o “olhar hierárquico” (vigilância favorecida pela organização espacial, separação e distanciamento dos indivíduos), “sansões normatizadoras” (castigos para redução dos desvios e manutenção dentro das normas estabelecidas), “exames” (com objetivos de qualificar, classificar, diferenciar, sancionar, punir), realizando a sujeição de suas forças, impondo uma relação de “docilidade-utilidade”. “A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)” (Foucault, 1997, p. 126 e 127). Como afirma Rabelo (2005) Nesse tipo de educação não há construção do conhecimento em busca da transformação e superação das dificuldades sociais; pelo contrário, com o objetivo apenas de transmitir valores e conhecimentos de forma simplificada e fragmentada, esse tipo de ensino anula o poder criativo e participativo do aluno, contribuindo para que esse não se sinta sujeito capaz de participar do processo de construção histórica. [...] Nela, a obediência e o silêncio dos alunos são aspectos importantes para garantir que os conteúdos determinados pela cultura dominante sejam transmitidos pelo professor sem interferências externas (Rabelo, 2005, p.48). Constituindo uma prática anti-dialógica, com vistas à imobilidade social, na concepção bancária de educação as manifestações dos estudantes contrárias as normas estabelecidas, práticas culturais diferentes da exigida pela escola, e mesmo reações de denúncias a essas normas, reivindicações dos estudantes por direitos e regras diferenciadas, e as resistências que ameaçam a ordem estabelecida são consideradas indisciplinas. A educação bancária foi imensamente criticada por Paulo Freire que, em contrapartida, propôs uma educação problematizadora. Nessa proposta educacional, a problematização do mundo e das relações sócio-culturais e econômicas vigentes é questão central, em prol da transformação social. Esta problematização não é unilateral, ao contrário, surge de um diálogo que é fruto e ao mesmo tempo promotor de uma reflexão crítica sobre a sociedade. O diálogo, como já foi dito, é base de relações horizontais, onde há o respeito e reconhecimento da visão de mundo do outro, de diferentes culturas. Educar é um ato de amor e educadores e educandos atuam juntos num processo ativo de conhecimento e transformação do mundo. 105 A disciplina, na concepção problematizadora, é fruto dessa relação horizontal, é comportamento ativo, atitude de compromisso com o processo educativo que é ação sobre o mundo no qual os sujeitos se inserem. A indisciplina, por sua vez, é considerada como uma forma de reação, denúncia, desinteresse ou insatisfação sobre o processo educacional, ações e/ou relações estabelecidas nesse processo. É uma fala, um sinal, uma forma de comunicação que indica ao educador a necessidade de revisão do processo – revisão esta que se dá em comunhão, com diálogo, de modo conjunto, democrático, sendo todos sujeitos e responsáveis pela educação. A fala da diretora apresentava-se, também, alheia ao contexto do Teatro do Oprimido, ao exigir, de modo imposto, um tema para a montagem da peça. Uma estudante assumiu a palavra e explicou a importância para o grupo em discutir drogas e gravidez na adolescência como um problema real do município. A diretora insistiu na questão da indisciplina escolar e a oficineira argumentou que, certamente, aquele tema atingia muito mais a ela e aos demais educadores que, propriamente, aos estudantes. “Talvez esse tema possa surgir numa oficina de teatro realizada com os professores. Esse grupo de estudantes considerou importante discutir drogas e gravidez, e não a indisciplina”, concluiu. Como sugestão para aperfeiçoamento da peça os espest-atores propuseram acelerar a transição das cenas, deixar mais evidente que o Fernando é o filho recém-nascido do início da peça e aumentar o volume de voz de alguns personagens. Ativação da platéia no Ensaio de Fórum, na escola. Início da peça: professora atuando como Cecília, a mãe do Fernando. 106 IV.2.7 - A Sessão de Teatro-Fórum: atuação além dos muros da escola A Sessão de Fórum aconteceu no dia 29 de novembro, terça-feira, na Câmara Municipal. O longo período decorrido entre esta apresentação e o Ensaio de Fórum deveu-se a contratempos diversos, desde feriados e recessos escolares, como provas e outras atividades na escola, além de uma viagem da oficineira. A plateia estava cheia, havendo a necessidade de buscar mais cadeiras no hall de entrada para garantir que todos assistissem à encenação sentados. Diferentes intervenções foram propostas naquele dia, além das experimentadas no Ensaio de Fórum, na escola. As duas primeiras transformaram o papel da Cecília, e uma delas foi bastante propositiva, não se deixando enganar facilmente pelo filho. Esta intervenção criou uma rica polêmica na plateia a respeito da confiança nas relações familiares e dos melindres e dificuldades existentes para dizer a um filho que não se confia nele. Uma intervenção como mãe da Bia trouxe à tona discussões sobre diálogo a respeito da saúde sexual entre pais e filhos, uso de preservativos e os direitos das mulheres na sociedade. Um rapaz atuou no papel do Fernando e recusou-se a experimentar a droga. Uma adolescente, no papel da Bia, também não quis sair de carro com o rapaz desconhecido, propondo que ficassem conversando ali mesmo no bar. Essas duas intervenções levantaram a discussão da vulnerabilidade não só infanto-juvenil, mas humana. Junto a ela, a noção de consequência e a importância de “se prevenir em vez de remediar”, apontando a validade de se evitar situações que tornem as pessoas mais suscetíveis a realizar ações das quais poderá se arrepender depois. Não foi uma sessão de Teatro-Legislativo, mas a sessão de Fórum ocorreu na Câmara municipal, com a presença de três vereadores da cidade. No final um espect-ator se manifestou no sentido de reivindicar ações governamentais voltadas para o tratamento de pessoas viciadas em drogas no município. Outra pessoa da plateia revelou a existência de um grupo de apoio a usuários de drogas e seus familiares, porém, de iniciativa particular, ligados à Igreja Evangélica. Essa discussão não foi adiante, pois algumas pessoas já estavam se retirando, mas levantou uma demanda da população para o Poder Publico local. Os estudantes gostaram da apresentação, embora alguns lamentassem, no final, os erros que cometeram em cena. Apontaram o interesse de se apresentarem em outros locais, mas a 107 dificuldade de tempo em função do calendário escolar e dos horários de trabalho dos atores impossibilitou tal proposta. Cena da apresentação na Câmara Municipal. Cena da apresentação na Câmara Municipal. Cena da apresentação na Câmara Municipal. Risos e aplausos da plateia. Intervenção do público em cena, na Câmara Municipal. Intervenção do público em cena, na Câmara Municipal. 108 IV.2.8 - O encerramento da oficina: avaliação e integração nas festividades de formatura O encerramento da oficina ocorreu na própria escola, com um encontro de avaliação das atividades, exibição de fotos e lembranças do processo. Todos haviam gostado da experiência e alguns demandaram o teatro na Escola Estadual, para onde a maioria seguiria para cursar o Ensino Médio, na modalidade EJA ou Regular. Foi uma conversa descontraída e um impasse girava em torno de novas apresentações, dificultada em função da agenda no final do ano escolar e do horário de trabalho dos estudantes, nos finais de semana. Também surgiu a proposta de realização de uma festa com almoço de confraternização num sítio, porém não houve consenso sobre dia, local e meios de transporte para os estudantes. Alguns alegavam que já haveria uma festa de confraternização da turma na escola, além da Missa e do Jantar de Formatura oferecidos pela escola. A oficineira foi convidada para ser madrinha da turma, juntamente com o professor de História. Aquele convite a comoveu e confirmou o estabelecimento de uma relação de confiança, respeito, aprendizagem e trocas significativas ao longo do ano. A diretora e a coordenadora escolar fizeram questão de enfatizar que a escolha da madrinha e do padrinho da turma era feito por estima e não por interesses materiais, pois era vetada a entrega de quaisquer presentes aos estudantes, além de um bombom com um cartão. No Jantar da 8ª série, realizado na escola como solenidade de Formatura, um dos estudantes afirmou para a oficineira que gostaria de tê-la apresentado para seus familiares, presentes na missa: “Eu queria que eles vissem que tem gente que confia em mim”. Festa de confraternização na escola. Missa de formatura da turma do 8º Ano. 109 IV.3. Ampliando o olhar por meio da comunidade. IV.3.1 - O contato inicial e as primeiras oficinas: a espera pela definição do grupo A oficina proposta para a comunidade de Pedras visava atender também os moradores de duas comunidades vizinhas: Medeiros e Rio São João. O contato inicial foi feito com lideranças comunitárias identificadas por meio de conversas com moradores locais, donos de estabelecimentos comerciais, dirigentes públicos e o pároco do município. Cartazes foram fixados nos armazéns, bares e portas das igrejas, além de um convite verbal feito ao final da missa nessas três comunidades, seguido pela entrega de panfletos. Em função do caráter de novidade da atividade proposta e do calendário de festas na comunidade de Pedras, optou-se por realizar os três primeiros encontros abertos aos interessados, com atividades que se encerravam no próprio dia, para simples conhecimento da proposta. Cinco moradores de Medeiros, entretanto, se fizeram presentes nos encontros iniciais, sendo quatro no primeiro e três no segundo. Eles afirmaram o interesse em permanecer, a adequação do dia e do horário escolhidos (sábado, às 19 horas), porém verbalizaram a dificuldade de locomoção e não continuaram. Os moradores do Rio São João, ao contrário, não compareceram a encontro algum. O primeiro encontro contou com apenas oito participantes. Houve uma conversa inicial sobre os objetivos da oficina e os fundamentos político-estéticos do Teatro do Oprimido. Em seguida foram realizados quatro jogos teatrais, abarcando as categorias11 “sentir tudo que se toca”, “escutar tudo que se ouve”, “ativação dos vários sentidos” e “ver tudo que se olha”. Na avaliação final os participantes destacaram a validade do encontro para se conhecerem e terem um momento divertido e diferente, pois aquela atividade de teatro ajudou a sair da rotina. Sobre os jogos, ajudaram a perceber “como a gente passa pelo mundo sem ver o que acontece, parecendo que tá cego, mecanizado mesmo”, segundo as palavras de uma participante. Na segunda oficina o público aumentou significativamente, chegando a vinte e cinco pessoas, entre participantes e observadores, de todas as idades. Essa oficina contemplou novos jogos teatrais das quatro categorias supracitadas e culminou com improvisações teatrais. Os conflitos apresentados nas cenas envolveram uma situação de bar aonde outras pessoas chegam 11 No livro Jogos para atores e não-atores Boal esclarece a importância dos exercícios e jogos no Teatro do Oprimido e os separa por categorias, conforme suas funções específicas de diminuir as distâncias entre sentir e tocar, escutar e ouvir, ver e olhar e desenvolver, concomitantemente, os vários sentidos. 110 tocando sua música bem alta e pessoas em passeata, reivindicando ao poder executivo, seus direitos básicos, especialmente de moradia. A diversão (o caráter lúdico do TO), a atividade diferenciada (o TO na comunidade) e a possibilidade de encontros com as pessoas foram os principais motivos para validarem a oficina. A terceira oficina foi exclusiva com moradores de Pedras, contando com treze participantes, número este que permaneceu mais ou menos estável até o final. As improvisações realizadas neste encontro trouxeram outras duas temáticas pertinentes para o fórum: a falsidade de amigos que falam dos outros pelas costas e criticam de modo não construtivo e as drogas no município. Neste encontro se discutiu a questão do público da oficina e houve a opção por trabalhar todo mundo junto: crianças, adolescentes, jovens, adultos... “Quem quiser!” Também foi estabelecido um calendário para o trabalho teatral ao longo do ano. Nos dois sábados subsequentes não haveria oficina em função da Quadrilha e da Festa de Santo Antônio, padroeiro da comunidade. IV.3.2 - O desenvolvimento das oficinas: processual A proposta inicial objetivava o público jovem e adulto, entretanto foi cada vez maior o número de adolescentes e mesmo de crianças que acompanhavam seus pais, sendo a maioria mães. No terceiro encontro, como foi dito, eles verbalizaram a vontade de participarem todos juntos. No quarto, a oficina tornara-se majoritariamente juvenil, com 11 adolescentes entre 12 e 17 anos, duas crianças e apenas três adultos. Indagados sobre a possível inibição adulta pela presença adolescente uma mãe foi enfática: “A gente prefere que seja pra eles, pra eles ter alguma atividade, alguma coisa pra fazer”. Em encontros anteriores a validade da oficina de Teatro do Oprimido foi destacada por adultas participantes em termos de promoção de um momento de encontro na comunidade, momento de descontração, “bom pra sair da rotina”. Além do aumento da participação de adolescentes, a oficina tornou-se majoritariamente feminina entre os integrantes adolescentes e adultos. As crianças compareciam em número aproximado de meninas e meninos e eram, conforme seus interesses, integradas as atividades, especialmente nos jogos e algumas improvisações. Em outros momentos ficavam brincando nos arredores. 111 Os exercícios e jogos teatrais eram desenvolvidos com interesse e afinco e as improvisações deles decorrentes revelavam um pouco mais sobre os universos daqueles participantes: a homofobia presente na comunidade, o alcoolismo e o uso de drogas ilícitas, fofocas e intrigas entre conhecidos e amigos, tabus e interditos sobre relações conjugais, sejam elas de casamento, namoro ou “ficar”. No quinto encontro, diversos materiais, objetos e roupas foram expostos para utilização na oficina. Cada um que chegou foi, espontaneamente, interagindo com os materiais, de modo curioso, investigativo, todos experimentando e se divertindo com as diversas imagens e possibilidades estéticas e performáticas que aqueles objetos e roupas proporcionavam. Aproveitando essa movimentação dos participantes, foi solicitado que cada um construísse um personagem. Entre personagens fantásticos, estereotipados, distantes, televisivos como Michael Jackson, baiana macumbeira, múmia, Jacques Le Clair, surgiram algumas pessoas da comunidade, inclusive três opressores: uma atendente do Posto de Saúde, uma senhora que atrapalha as festas da comunidade e um policial que abusa do poder. As imagens abaixam retratam alguns momentos desta atividade, revelando descontração, auxílio mútuo, alegria e irreverência entre os participantes. Atividade de construção de personagens. Personagens em fase de construção. 112 Personagens variados construídos pelo grupo. Personagens: Jacques Le Clair, múmia e moça de pijama. Construção da Funcionária do Posto de Saúde. Personagem misto de bahiana macumbeira com cigana cartomante. Personagem da Múmia . Personagem do Palhaço. Personagem da Travesti. 113 Uma cena improvisada ao final deste encontro retomou o tema do alcoolismo sobre outro enfoque: uma pessoa embriagada sendo furtada por um conhecido, com a mãe rezando inutilmente pela proteção do seu filho. Outra revelou intrigas e briga na organização de uma festa da comunidade. As imagens expressas nos jogos, nas técnicas de teatro imagem e nas improvisações realizadas até o momento retratavam questões como o alcoolismo, o uso de drogas ilícitas, homofobia, fofoca, entre outros. Entretanto, nenhum desses temas continha força de mobilização do grupo como um todo para a montagem da peça. É como se houvesse o reconhecimento da existência do problema na comunidade, mas faltasse uma história objetiva para concretizá-la. IV.3.3 - A escolha do tema gerador da peça: depoimentos íntimos O sétimo encontro se tornou exclusivamente adolescente e majoritariamente feminino. A ausência dos adultos da comunidade possibilitou vir à tona uma temática ainda não revelada: a dificuldade de diálogo com os pais, especialmente no que tange as questões de namoro e relacionamentos afetivo-sexuais. As improvisações deste dia trouxeram duas famílias: em ambas a dificuldade de relacionamento entre os pais. Uma enfatizou a separação do casal, outra, a saída da filha de casa culminando no envolvimento com drogas. As duas expressavam grandes dificuldades no diálogo familiar. Conversou-se sobre as imagens retratadas e, de repente, a roda de conversa se tornou bastante intimista e emotiva, com as adolescentes revelando as próprias dificuldades com o diálogo na família: a conversa das meninas com os pais é sempre mediada pelas mães, os filhos têm dificuldade de conversar sobre questões relativas à paquera e namoro, e quando há separação do casal a relação entre os pais não é boa, refletindo negativamente na convivência com os filhos. Ao final da conversa as adolescentes se mostraram aliviadas por falarem sobre aquele assunto e agradeceram pelo encontro. Enfim, eclodira um tema que sensibilizava o grupo de modo suficiente e necessário para a montagem da peça. Boal ressalta a importância da identificação das pessoas no processo de construção da peça de Teatro-Fórum. Esta identificação com o tema pode ser de três tipos: por identidade, por analogia, ou por empatia. A identidade, a mais forte delas, trata da relação direta 114 entre a vivência pessoal e o tema escolhido; a analogia, como o próprio nome diz, refere-se a histórias com situações análogas a retratada na peça; por fim, a empatia, com menor força, mas não menos necessária, trata-se da solidariedade com algo vivenciado pelo outro e reconhecido como injusto. No encontro seguinte foi proposto um trabalho estético, no qual cada participante iria contar a história da peça por meio da pintura. Neste dia havia missa antes da oficina, mas quando os adolescentes viram o salão cheio de papéis, tintas e pincéis ficaram rodeando os materiais e não foram à igreja. Foi necessário começar as atividades um pouco antes das 19 horas para dar vazão a tanta ansiedade. Os demais participantes que chegaram após a missa ingressaram na atividade, conforme exposto nas imagens seguintes. Atividade de pintura de cenas da peça. Atividade de pintura de cenas da peça. Pintura de cenas da peça utilizando materiais variados. Pintura de cenas da peça utilizando materiais variados. 115 Pintura de cenas da peça, incluindo recorte e colagem. Pintura de cenas da peça. Pintura de cenas da peça, incluindo recorte e colagem. Pintura e escultura da peça. Pintura de cenas da peça. A culminância desta atividade propiciou diferentes leituras sobre as pinturas e projeções de diferentes histórias, muitas delas próximas e relacionadas entre si. Neste dia não houve construção de imagens corporais, nem improvisação. A expressão artística propiciada pela pintura cumprira este papel. Em encontro posterior o tema se ampliou: a falta de diálogo familiar e o medo da conversa com os pais ganharam nova dimensão e conseqüência na improvisação, revelando uma gravidez na adolescência. As duas mães participantes assíduas da oficina passaram por isso, engravidando aos dezesseis anos e casando-se. Neste dia elas se colocaram a respeito, exemplificando suas opiniões com as próprias experiências. A filha de uma delas, com catorze anos e o primeiro namorado presente no encontro, exclamou: “Eu nunca soube como tinha 116 acontecido!” Neste caso, este é um exemplo das próprias atividades do Teatro do Oprimido ampliando o diálogo em família almejado pelos participantes. Nesse sentido, a oficina configurou um espaço peculiar de relacionamento familiar e comunitário, mediado pelo teatro. No final da oficina uma conversa esclareceu alguns detalhes da história da peça. Era consenso no grupo associar a falta do diálogo com a gravidez na adolescência. IV.3.4 - As improvisações das cenas e a construção do texto: uma escrita posterior O processo de construção do texto da peça na comunidade se deu em diversas etapas, com constantes ajustes e transformações, a partir de diversas improvisações. A rotatividade dos atores nos diferentes personagens sempre agregava valores, mas também transformava o contexto da história, especialmente quando determinado personagem era representado por um ator ausente que perdera os acontecimentos do encontro anterior. A rotatividade de atores nas oficinas também alterava o rumo das improvisações no sentido de quantidade e qualidade dos personagens, entre o coro de aliados do protagonista e do antagonista. O problema era proposto ao grupo: “Há uma história para ser contada, nós conhecemos essa história. Como vamos contá-la?” Ora havia duas irmãs, ora uma; em algumas improvisações contávamos com um dono de bar fofoqueiro, noutras não; as vezes aparecia também um irmão para acompanhar as meninas para a festa. Quando o grupo todo estava presente surgia uma amiga para a adolescente grávida. Certos atores demonstravam clara preferência por determinados personagens; outros personagens ainda eram alvo de disputa entre os atores. Algumas improvisações ajudavam a esclarecer o rumo da peça, outras traziam novos problemas a serem solucionados esteticamente. Qual a relação entre os diferentes personagens? As fofoqueiras são amigas da mãe? O namorado é colega de escola? Como é a relação entre mãe e pai? E deles com as filhas? Estas foram algumas perguntas que surgiram naquele momento. O processo de escrita do texto foi se dando em paralelo com as improvisações. Uma vez determinado o conflito, a gravidez da adolescente protagonista, buscou-se solucionar o roteiro da peça até este ponto e seus desdobramentos sobre como a notícia chegaria ao conhecimento do namorado e da família. A atividade de escrita, no entanto, contava com certa resistência por parte 117 dos atores que preferiam atuar. Numa atividade de sistematização do texto da peça em dupla, por exemplo, uma participante se absteve dessa função verbalizando para outra colega: “Ai! Escreve você. Eu faço isso todo dia!” As idéias propostas de forma verbal ou escritas eram improvisadas e constantemente alteradas. Entre resistências, indefinições e muitas improvisações, uma atriz num encontro determinou a direção da peça caracterizando a personagem da amiga em oposição a da protagonista e todos gostaram. Tratava-se de uma amiga ardilosa e interesseira: ao mesmo tempo em que se posicionava positivamente em relação à protagonista, também a ameaçava, pedindo favores em troca da sua lealdade. A personagem da mãe foi gradativamente se opondo a do pai: aquela de fala mais enérgica, sempre reclamando, cobrando um posicionamento do pai e este totalmente passivo e anuído, buscando evitar discussão para poder assistir sua televisão. Na família, a irmã do meio seria aliada, agindo sempre em defesa da protagonista; a mais velha, por sua vez, uma antagonista invejosa. O irmão, alvo de desejo da amiga, era um rapaz novo, com seus dezenove anos, que bebia muito. Por falta de ator, foi decidido eliminar o dono do bar. As fofocas seriam realizadas por duas fofoqueiras que, apesar de amedrontar a protagonista com suas simples presenças e comentários, de fato não passavam a diante as notícias que possuíam. As intrigas eram tecidas por elas mais no intuito de constatação das informações. O desejo da personagem protagonista, de aproximadamente 14 anos, era estudar, se formar, para depois casar. Sonho este que termina após uma gravidez indesejada, causada por uma relação sexual inesperada e desprotegida com o namorado. No desenlace da peça a protagonista vai morar com o marido na casa da sogra. Em cena aparece ela ninando a criança enquanto o marido sai para uma festa. A peça enfocou, então, a realidade de uma família composta por pai, mãe, um filho rapaz que bebe bastante e três filhas adolescentes, com pouco diálogo entre eles. A filha mais nova começa a namorar escondida e engravida. O jovem casal de namorados assume o casamento em função da gravidez e a menina vai morar na casa do marido. No final, marido sai para uma festa e a menina, ninando o bebê, impedida de sair, questiona a falta de companheirismo do marido. 118 O desenho da peça com essas personagens foi se consolidando dia após dia, ensaio após ensaio. No final do processo de ensaio todos os atores já haviam assumido um personagem próprio e, freqüentemente, descobriam uma ação diferente, uma frase nova, uma piada que se assentava na ideologia do personagem e somava na cena. O grupo constituído se autodenominou Pedra sobre Pedra e escolheu, para nomear a peça, o titulo Igual à família da gente! O texto da peça, entretanto, só foi escrito posteriormente as apresentações do grupo, como forma de registro do processo, tendo por referência as próprias encenações nas sessões de Teatro-Fórum. IV.3.5 – A cenografia, figurinos e adereços: um processo ampliado na comunidade O décimo primeiro encontro aconteceu num domingo tarde, na praça, à sombra da igreja, com materiais diversos para construção do cenário. Estouraram-se pipocas, comprou-se suco para um encontro bastante diferente dos anteriores. Duas integrantes compareceram extremamente arrumadas e não permaneceram na atividade. Outras participantes justificaram que o jogo de futebol no campo lhes era mais atraente por motivo de paquera. Uns meninos que sempre andam de bicicleta na quadra desta vez ficaram andando na praça, interessados na atividade diferenciada. Inicialmente a presença deles incomodava algumas integrantes. Foi necessário intervir, explicar que a praça era pública e, principalmente, argumentar o quanto a atividade estava causando interesse e curiosidade nos garotos. A argumentação funcionou: no final, terminaram todos comendo pipoca e bebendo suco juntos. Neste dia não foi possível terminar o cenário. No final de semana seguinte, porém, não haveria oficina em função de uma festa de 15 anos na comunidade, no sábado, e do dia dos pais no domingo. No entanto, foi decidido ensaiar no encontro seguinte para não ficarem tanto tempo sem ensaio. A construção do cenário ocorreu, então, em duas etapas e propiciou novas articulações familiares e comunitárias sob a proposta da utilização de materiais reutilizáveis e presentes na comunidade. A tia de duas adolescentes compareceu apenas para essa atividade, ensinando aos demais um meio de construção de bancos com garrafas “pet”, gerando um produto leve, fácil de transportar para as futuras apresentações em outros povoados do município. Uma estante foi reaproveitada entre o mobiliário do Posto de Saúde, que seria devolvido ao depósito da Prefeitura – e, de fato, foi devolvida após as apresentações teatrais. 119 No lado direito do palco ficava a casa da protagonista, com sala, quarto e cozinha. No canto, ao fundo, a cozinha com fogão, geladeira e mesa; na frente, o quarto das filhas com uma cômoda e um espelho. No centro a sala, representada apenas por uma estante com alguns livros, objetos variados a televisão e a poltrona do pai. As costas da estante era a frente da igreja, toda ornamentada de bandeirinhas para a festa. No lado esquerdo ficavam o bar, no fundo do palco e o quarto da criança na frente, composto por armário e berço, conforme imagens a seguir. Casa da protagonista. Frente da Igreja. 120 Quarto da criança, a esquerda e bar, no fundo. O cenário, porém, se adequava ao local da apresentação. Algumas vezes foi montado invertido, com a casa na esquerda, bar e quarto da criança na direita, para favorecer as entradas e saídas de cena. Em duas apresentações, como outro exemplo, utilizamos o mobiliário do local para representação do bar. Cenário da apresentação numa escola, com casa à esquerda. Cenário da apresentação na Câmara, com quarto no fundo. 121 Cenário da apresentação em Medeiros com bar na frente. Cenário em Ponta da Serra, com material da escola no palco. Bar do cenário utilizando o mobiliário de madeira da Câmara. Bar do cenário com mobiliário da Associação Comunitária. O figurino fugia do cotidiano por meio de adereços como coletes, chapéus e lenços, principalmente, em cores variadas. As mulheres usavam sempre saias ou vestidos e os homens calças. A saia da mãe, com tecido de chitão, se integrava ao mobiliário da casa. O pai, de pijama, chinelo e gorro estava sempre pronto para assistir televisão e dormir. Os rapazes, irmão e namorado, usavam coletes coloridos com boinas ou bonés, conforme o momento da peça. As adolescentes, com saiões ou vestidos curtos estampados, também alteravam seus adereços de acordo com as cenas. E as fofoqueiras trajavam vestido estilo antigo, com lenços na cabeça. 122 IV.3.6 - O Ensaio de Fórum: o gosto de uma primeira apresentação O chamado Ensaio de Fórum é uma prática comum entre os praticantes de Teatro do Oprimido que desenvolvem uma peça de Teatro-Fórum, realizando uma apresentação para convidados antes da sessão pública. Esta apresentação traz diferentes benefícios, permitindo um balanço geral do espetáculo, do desempenho dos atores e do ato de curingar, possibilitando, assim, eventuais ajustes na peça antes da exibição aberta ao grande público. O Ensaio de Fórum revela a coerência da peça e sua inteligibilidade junto à platéia. Tratase do primeiro contato dos atores com o público, auxiliando-os no controle de qualquer nervosismo, orientando-os em termos de projeção vocal e treinando-os nas improvisações com as intervenções dos espect-atores em cena. Permite, ainda, o treino da curingagem, com a constatação de como o público apreende e reage ao problema apresentado e praticando a argumentação junto à platéia. No caso específico da peça “Igual à família da gente”, o ensaio foi aberto à comunidade de Pedras em geral, com convite feito ao final da missa de Nossa Senhora Aparecida, com Igreja lotada. Este ensaio se configurava como uma apresentação, pois era também a despedida de um dos atores do grupo, que fazia o papel do namorado. Esse adolescente, morador da cidade de Contagem, é primo de outros atores da peça, vinha para a comunidade de Pedras em, praticamente, todos os finais de semana e participava assiduamente das oficinas teatrais. No entanto, seu transporte nos finais de semana, após aquele momento, ficaria comprometido com a venda do carro da família e seis apresentações da peça estavam previstas para o meio da semana, cinco delas em escolas, o que impossibilitaria a sua presença. O ensaio aberto aconteceu numa manhã de domingo, no dia 9 de outubro, com umas 20 pessoas, aproximadamente, entre crianças, adolescentes e adultos. Os atores desempenharam com segurança os seus papéis, souberam improvisar com tranqüilidade, solucionando os poucos momentos nos quais saíram do roteiro e se surpreenderam descobrindo humor com o riso da platéia em cenas inesperadas. Algumas vozes, no entanto, saíram um pouco baixa, mas não comprometeram o entendimento da história. 123 Os problemas levantados pela platéia enfatizavam a falta de diálogo na família; a postura do pai que consentia tudo, evitando discussões para assistir sua televisão; as atitudes da mãe de reclamação, sem se posicionar frente aos desejos dos filhos; a gravidez adolescente e a bebedeira do filho rapaz. O fórum contou com três intervenções: duas no lugar da mãe e uma substituindo a protagonista. Todas investindo no momento anterior à gravidez. Duas intervenções, em especial, marcaram os atores naquele dia. Uma ressaltava o posicionamento da protagonista junto ao namorado, afirmando que tinha necessidade de conhecê-lo primeiro, de conversar, antes de partirem para uma relação sexual. O modo tranqüilo como a espect-atriz verbalizou sobre seus sentimentos e desejos em relação a sexo causou admiração nas pessoas presentes e sua intervenção foi bastante aplaudida pela platéia e pelos atores. Outra substituíra a mãe, fazendo-a tomar as rédeas da relação familiar, sendo mais propositiva e franca na orientação dos filhos antes de saírem para a festa e se posicionando firmemente com relação à bebedeira do filho. O ensaio aberto revelou, portanto, outro foco de discussão presente na peça, ainda não percebido pelo grupo: a questão do alcoolismo. No que tange à gravidez, uma rica polêmica se instaurou na platéia, causando um debate sobre a orientação do uso de preservativos na educação sexual dos filhos. De um lado, mães argumentando a favor dessa informação; do outro, a crença de que tal orientação incentiva a prática sexual. No final, o público elogiou o trabalho, salientou a questão das vozes baixas e sugeriu uma maior ênfase no problema do alcoolismo. Os atores ficaram satisfeitos e contentes com a apresentação. Restaria, agora, resolver essas pendências e a substituição do ator para o papel do namorado. O volume das vozes foi resolvido nos ensaios. A maior ênfase no alcoolismo foi solucionada com a inclusão de um conflito entre mãe e filho, por causa da bebida, na hora de ir pra festa. A substituição do ator, por sua vez, foi tentada, primeiramente, na própria comunidade. Posteriormente, por sugestão do grupo, fez-se um convite aos atores da peça da escola. Alguns deles eram conhecidos dos atores de Pedras. O convite foi aceito por um rapaz de Santa Terezinha, distrito vizinho, que não conhecia diretamente os atores do grupo, mas tinham amigos em comum e rapidamente se integrou à equipe, desempenhando bem o papel do namorado. 124 IV.3.7 - As sessões de Teatro-Fórum: diferentes experiências A culminância de todo um processo de desmecanização corporal, análise crítica da realidade social e criação artística de uma peça de Teatro-Fórum é a sessão de Fórum, com apresentação pública da história encenada e debate sobre o problema exposto, visando sua transformação. A peça “Igual à família da gente” contou com nove apresentações, sendo quatro em escolas da Rede Municipal, uma na Escola Estadual, uma na Câmara Municipal e três em centros comunitários de distritos e povoados. A primeira apresentação foi na própria comunidade de Pedras, num sábado à noite, no dia 5 de novembro e contou com platéia cheia, havendo pessoas, inclusive, assistindo do lado de fora, através das janelas do Salão Comunitário. Nessa Sessão de Fórum quatro intervenções trouxeram diferentes propostas para o problema da gravidez. A primeira propôs uma mãe tentando conversar com os filhos na hora de ir pra festa. A platéia argumentou que tal conversa precisa ocorrer antes, com mais freqüência, e não em cima da hora de sair. A segunda apresentou uma mãe acompanhando as filhas na festa. Um senhor mais velho, avô de uma das atrizes, atuou no sentido contrário e foi categórico no papel do pai, proibindo os filhos de saírem de casa. Por último, uma intervenção como adolescente, que se recusou a ir para trás da igreja com o namorado na festa. A principal discussão na platéia, porém, girou em torna das diferenças de gênero, da necessidade de acompanhar as filhas enquanto os rapazes podem ir sozinhos, da educação e valores diferenciados para com meninos e meninas no que se refere aos cuidados com o corpo, permissão de relacionamentos sexuais e responsabilidades sobre uma eventual gravidez. Intervenção da platéia em Pedras. Intervenção da platéia em Pedras. 125 A segunda e a terceira apresentações aconteceram em escolas da Rede Municipal de Educação, uma na E.M. Raimundo Benedito de Faria, no distrito de Santa Terezinha, e outra na E.M. Dona Balbina Antunes Penido, no Povoado de Pinheiros, nos dias 8 e 9 de novembro, respectivamente, para um público majoritariamente adolescente. A platéia assumiu diferentes personagens em suas intervenções, muitas delas já apontadas na Sessão de Fórum anterior como: mãe e pai proibindo os filhos de saírem ou os acompanhado na festa; adolescente se recusando a ir para trás da igreja; e conversa entre mãe e filhas. Os adolescentes, porém, intervieram também após a ocorrência da gravidez, como mãe dando apoio para a filha; e como adolescente casada, cobrando responsabilidades do marido nos cuidados com a criança. Tanto na escola de Santa Terezinha como na de Pinheiros, uma adolescente terminou o namoro, favorecendo a discussão sobre o empoderamento feminino na sociedade. Na escola de Pinheiros, no entanto, o debate ficou um pouco prejudicado em função da acústica do pátio onde ocorreu a apresentação. Freqüentemente os espect-atores sentados no fundo solicitavam que se falasse mais alto e reclamavam da dificuldade para ouvir. A quarta apresentação ocorreu no dia 2 de dezembro, uma sexta-feira, à noite, na Câmara Municipal, no centro de Itatiaiuçu, aberta à população em geral e contou, também, com estudantes da Escola Estadual na platéia. Os adultos, porém, interviram mais que os adolescentes. Um diferencial das propostas trazidas pelo público nesta seção de Teatro-Fórum foi no final, indo marido, esposa e criança juntos para a festa. Outra intervenção alertou sobre a necessidade de contratarem uma babá para tomar conta da criança para o casal sair. Essa sugestão propiciou a discussão sobre os cuidados que requerem uma criança, desde o nascimento e ao longo de sua vida; as transformações que ela gera na vida dos pais e os custos de sua criação. 126 Ativação da plateia na Câmara Municipal. Intervenção da plateia na Câmara Municipal. Intervenção da plateia na Câmara Municipal. Intervenção da plateia na Câmara Municipal. A apresentação seguinte ocorreu no domingo à tarde, dia 4 de dezembro, no Salão Comunitário de Medeiros, um povoado rural próximo da divisa com o Município de Itaguara. A platéia era majoritariamente jovem e adulta com, aproximadamente, 30 ou 35 pessoas. As intervenções ocorreram no sentido de substituir a mãe, para dialogar com as filhas e acompanhá-las para a festa; no lugar da amiga, orientando a adolescente no momento de ir para trás da igreja; como adolescente, se posicionando diante do namorado, atrás da igreja, afirmando “Eu não vim aqui com você pra isso. Vamos voltar pra festa”; mãe acolhendo filha após a notícia da gravidez; e, por fim, como irmão, responsável pela irmã na festa, proibindo-a de sair com o namorado de perto dele. Enquanto analisava-se essa intervenção com a platéia, o espect-ator sentiu necessidade de se explicar e falou, com bastante indignação: “O irmão não pode agir assim não. É obrigação 127 dele tomar conta das irmãs”. Essa afirmação foi devolvida em forma de pergunta para a platéia, lançando luz num debate sobre a criação e os papéis direcionados para homens e mulheres na sociedade. Intervenção da plateia no Salão Comunitário de Medeiros. Intervenção da plateia no Salão Comunitário de Medeiros. Após quatro apresentações externas, os atores voltaram ao seu local de origem, com uma apresentação, no dia 7 de dezembro, quarta-feira, no Salão Comunitário, para estudantes e educadores da E.M. Arminda Evangelista Ferreira, em Pedras. A escola de Pedras atende também estudantes de outros três povoados: Biquinha de Pedras, Medeiros e Rio São João, os dois últimos cujos moradores foram convidados para participarem das oficinas teatrais que culminaram nessa peça. Muitos atores estavam ansiosos por essa apresentação para os próprios colegas. Nesta altura do processo os comentários sobre as encenações, a dispensa dos atores nos dias das apresentações e as falas dos próprios participantes a respeito do processo e dos locais que visitaram causavam interesse e curiosidade nos outros estudantes da escola. Foi um encontro com bastante público, majoritariamente adolescente e pré-adolescente e com muitas intervenções, embora grande parte dela trouxesse propostas redundantes, já apresentadas por outros espect-atores como outros personagens: Mãe ou pai proibindo de ir para a Festa; Mãe e pai acompanhando filhos na festa; amiga conversando com a adolescente, entre outras. Um diferencial foi ressaltado pelos atores e aplaudido com veemência pela platéia. Como foi dito anteriormente, o Posto de Saúde de Pedras funciona, de segunda a sexta-feira, no espaço 128 do Salão Comunitário e o seu balcão de atendimento coincide com o balcão do bar, no cenário da peça. Um estudante substituiu o namorado, foi até o balcão e pediu a atendente do Posto de Saúde uma camisinha, causando risos em todos pela sua irreverência na integração dos papéis da cena com a vida real. Enquanto todos exaltavam sua intervenção, no entanto, a funcionária do Posto contestou: “Mas não adianta procurar camisinha só na hora da festa que o Posto vai tá fechado”. Após bastantes intervenções adolescentes, quando o ritmo do Fórum já anunciava seu final, foi solicitada a intervenção de algum adulto. Os estudantes chamaram em coro por uma professora específica e um deles conduziu-a até a cena. Sua proposta foi para o personagem da mãe, conversando com as filhas sobre gravidez e orientando o filho a respeito do álcool e de drogas em geral. Cena da peça na apresentação para a escola de Pedras. Cena da peça na apresentação para a escola de Pedras. Intervenção da plateia na apresentação para a escola de Pedras. Aplausos da plateia na apresentação para a escola de Pedras. 129 Estudante conduzindo professora para a cena. Diferentes contratempos determinaram Atuação da professora em cena. algumas remarcações na agenda das apresentações escolares, especialmente provas e avaliações variadas, tanto por parte dos atores como das escolas anfitriãs. Deste modo, a última semana de espetáculos foi com agenda cheia. Deixar para depois poderia significar não apresentar em função das recuperações do final do ano, festas e férias em janeiro. A apresentação subseqüente ocorreu na E.M. Jose Antonio Ferreira, em Ponta da Serra, no dia 8, quinta-feira, pela manhã. O público não foi muito grande como nas outras escolas, pois muitos estudantes não freqüentavam mais os últimos dias do ano letivo. Por outro lado, se estivessem presentes “não daria para todos assistirem”, explicou a Diretora, devido o tamanho do pátio interno da escola. Apesar do pequeno espaço e do número reduzido de estudantes, o debate decorreu animadamente. Nesta Sessão de Fórum surgiu, novamente, a proposta do sexo seguro, com uso de camisinha. Uma professora, inclusive, assumiu o papel de namorada para negociar o uso do preservativo. Um espect-ator se destacou na platéia intervindo três vezes em cena, sempre com irreverência, descontração e comicidade, interpretando papéis masculinos e femininos. Numa delas, antecipou-se, como namorado, em assumir as responsabilidades sobre a gravidez da adolescente. “A gente vai casar. Eu fiz eu assumo. Vou lá na sua casa agora falar com seu pai”, propôs. Não houve alternativa com proposta inteiramente nova para os atores de Pedras que estavam em sua sétima apresentação, mas o evento era completamente novidade para todos na 130 escola. A Diretora, que num primeiro momento achou positiva a ausência de alguns estudantes em função do espaço, no final lamentou a falta, por não terem participado da atividade. Uma professora elogiou, apontando que há o momento de brincar e o momento de falar sério, se referindo as informações compartilhadas durante o Fórum. Trajeto de ônibus para uma Escola Municipal. Trajeto de ônibus para uma Escola Municipal. A penúltima Sessão de Fórum aconteceu no dia seguinte, sexta-feira, na E. E. Manoel Dias Correia, no centro de Itatiaiuçu. Esta apresentação mobilizava os atores de um modo especial, ao mesmo tempo em que lhes causava certa apreensão por se tratar da escola “Estadual” com os estudantes mais velhos. No entanto, as encenações anteriores, tão bem sucedidas, garantiram segurança suficiente para este novo desafio. O auditório da Escola Estadual contava com um tablado que serviu de palco para a encenação. Era o maior auditório entre as escolas já visitadas e estava cheio, com aproximadamente 100 estudantes. A professora Rosário que acompanhara as oficinas de teatro na EJA Municipal estava presente na platéia. Um dos jogos de animação da platéia realizado nessa Seção de Fórum foi o “Termômetro” ou “Gráfico da Participação”. Neste jogo os espect-atores devem movimentar-se conforme sua pré-disposição para intervir em cena. Naquele dia foi solicitado que levantassem as mãos para cima as pessoas que certamente participariam; em diagonal, aquelas que estavam na dúvida; e, para o lado, quem não interviria em cena em hipótese alguma. 131 De fato, como anunciado anteriormente pelos espect-atores, foi um fórum com poucas intervenções: apenas 3, sendo duas de estudantes e uma de professora. Algumas pessoas falavam de seus lugares, mas quando interrompidas pela curingagem solicitando que mostrassem, atuando em cena, elas se recusavam resolutas, veementes, enfáticas. As professoras tentaram desafiar alguns estudantes, argumentando sobre suas atitudes desinibidas em outras circunstâncias, mas não funcionou. Algumas questões foram levantadas com a platéia a respeito de negociação de contraceptivos entre o casal e diferenças culturais entre mulheres e homens na sociedade, principalmente, em função dessas três intervenções; mas o fórum terminou antes do esperado. Propôs-se, então um diálogo, caso a platéia quisesse fazer alguma pergunta para os atores sobre o processo teatral. A única pergunta veio da professora de português, a respeito da criação do texto do espetáculo. A atriz mãe assumiu a palavra e explicou que não havia um texto escrito; a peça se consolidara a partir de improvisações. A atriz curinga aproveitou para ressaltar a diferença entre o processo com o grupo de Pedras e o da EJA, cuja professora acompanhara, e que será explicado mais adiante. Ativação da platéia na sessão de Fórum na Escola Estadual. Cena da apresentação na Escola Estadual. 132 Cena da apresentação na Escola Estadual. Intervenção da plateia em cena na Escola Estadual. A última Seção de Fórum aconteceu no sábado à noite, dia 10 de dezembro, na Associação Comunitária de Santa Terezinha, um distrito situado na beira da BR-381. O espaço é bastante amplo, com algumas colunas no centro, o que exigiu certo cuidado no modo de organizar as cadeiras no espaço e o cenário, visando garantir uma boa visibilidade a todos. Apesar do cuidado, o público não foi numeroso. A apresentação começou com 30 minutos de atraso à espera de mais gente que, no final, não ultrapassou a quantidade de 25 pessoas. Destas, 5 eram familiares dos atores, moradores de Pedras, que foram juntos no ônibus para assistirem a última apresentação. Havia chovido naquele dia, uma chuva fraca, porém em constante vai e vem. Entre conversas com o público presente para acordar o atraso no início do espetáculo, descobriu-se a existência de um casamento no local, o que poderia afastar parte do público. Alguns atores ligaram para pessoas conhecidas, convidando-as. O grande tamanho do salão potencializava a sensação de vazio. Antes de começar, para dar ânimo ao grupo, foi recordado um conto do Eduardo Galeano denominado “A dignidade da arte” que diz: Os atores, mais numerosos que o público, trabalharam naquela noite como se estivessem vivendo a glória de uma estréia com lotação esgotada. Fizeram sua tarefa entregando-se inteiros, com tudo, com alma e vida; e foi uma maravilha. Nossos aplausos ressoaram na solidão da sala. Nós aplaudimos até esfolar as mãos. (GALEANO, 2003, p.153). A dignidade da arte se fez presente e o Fórum desenvolveu-se com diversas intervenções, por parte da pequena, mas animada platéia, disposta a debater o assunto. Ao todo foram três 133 substituições como mãe, uma como pai e duas como adolescente. Uma espect-atora, ao final da seção, falou: “Eu ficaria aqui a noite inteira”. Grupo Pedra sobre Pedra, no dia da última apresentação. Intervenção da plateia na ACMST. Concentração dos atores antes da apresentação. Intervenção da plateia na ACMST. Diferentes questões chamaram atenção dos atores nas apresentações. Ao final de cada uma delas, enquanto arrumavam o material cênico, durante as refeições nas escolas, ou mesmo no trajeto de ônibus, sempre ressaltavam algo novo que lhes chamara a atenção, com relação ao espaço físico, ao público presente ou a aspectos das intervenções e debates. Outrora riam dos próprios erros e do modo como os solucionavam. Agradou-lhes conhecer outras escolas e locais diferentes no próprio Município. Em ambas as escolas visitadas houve referências dos estudantes aos conteúdos ministrados em sala de aula sobre fecundação e métodos contraceptivos. A informação existe, mas não é reproduzida livre de vergonha, constrangimento ou zoação dos colegas. Havia entre 134 eles, também, a informação sobre distribuição gratuita de camisinha nos postos de saúde, no entanto, foram raros os adolescentes que confirmaram ter utilizado esses serviços, e sempre rapazes. Essa discussão trouxe à tona os valores relacionados à sexualidade feminina na sociedade, como às mulheres que praticam sexo, que ainda carregam conotações negativas. As seções de Teatro-Fórum promoveram, de modo participativo, o debate junto ao público presente, possibilitando discussões sobre questões relacionadas à relações de gênero, uso de contraceptivos, distribuição gratuita de camisinhas nos postos de saúde, gravidez na adolescência, papéis de homens e mulheres na sociedade e alcoolismo, principalmente. Os estudantes e profissionais da Educação presentes elogiaram as apresentações nas escolas; uma Conselheira Tutelar de Itatiaiuçu e o Presidente da Associação Comunitária de Santa Terezinha solicitaram a realização de um trabalho semelhante em suas comunidades. IV.3.8 - O encerramento da oficina: amigo-oculto e confraternização O encerramento da oficina ocorreu na quinta-feira, dia 15 de dezembro, num final de tarde, em Pedras, num sítio de um parente de alguns integrantes. Houve uma confraternização entre participantes e familiares, com churrasco e amigo-oculto, organizado de modo coletivo, com cada pessoa levando uma espécie de carne e bebidas. Os parentes do dono do sítio ficaram responsáveis pelos acompanhamentos: arroz, farofa, vinagrete, além do carvão. Foi um clima bastante festivo com gosto de festa de final de ano. A dúvida principal era se o Teatro continuaria no ano seguinte. Alguns demonstravam claro desejo em continuar. Outros, porém, eram francos ao explicitarem suas dificuldades de deslocamento e em manter o compromisso todos os sábados à noite. No momento do amigo-oculto, novos arranjos foram propostos para contemplar uma criança que, por orientação da própria mãe, havia ficado de fora do sorteio dos nomes. Um panetone levado para sobremesa entrou no círculo dos presentes abrindo um sorriso enorme no rosto daquele menino, feliz por participar junto com os outros três irmãos e também ganhar um presente. 135 A almofada de coração utilizada na peça fora sorteada entre os participantes, para a alegria da adolescente que a ganhou e desgosto daqueles que a desejavam, mas não foram contemplados com o sorteio. As fotos a seguir retratam um pouco do prazer vivenciado pelos participantes naquele encerramento. Confraternização de encerramento da oficina, em Pedras. Confraternização de encerramento da oficina, em Pedras. Amigo-oculto no encerramento da oficina, em Pedras. Amigo-oculto no encerramento da oficina, em Pedras. IV.4. Contrapontos e correlações entre os processos escolar e comunitário. IV.4.1 - Rituais e normas das instituições Indubitavelmente muitas diferenças se apresentaram na forma de inserção e desenvolvimento do Teatro do Oprimido na escola quando comparada a comunidade de 136 moradores do povoado rural. No entanto, nenhuma dessas diferenças constituiu empecilho ao desenvolvimento do TO. O contato inicial na escola, por exemplo, passou, necessariamente, pela hierarquia de poder institucional lá constituída. Não bastou falar com a coordenadora do noturno, nem mesmo com a diretora escolar, foi necessária a autorização da Secretaria de Educação para a realização do trabalho. Na comunidade, por sua vez, não havia uma pessoa responsável pela aprovação da atividade: a proposta foi comunicada a diferentes pessoas, houve o interesse por parte do coletivo de moradores na sua realização e o espaço do salão comunitário foi utilizado para o teatro. Na escola, os tramites contratuais demandaram, também, a apresentação de documentos que de algum modo oficializassem aquela relação de trabalho, como o projeto de pesquisa, por exemplo, ao passo que na comunidade a proposta foi firmada apenas verbalmente. Em ambos os locais existiam regras implícitas e explícitas para desenvolvimento das atividades. Algumas delas foram apresentadas anteriormente ao início dos trabalhos, outras surgiram no desenrolar do processo. Na escola essas regras perpassavam a hierarquia institucional, a organização dos espaços e tempos, o currículo vigente, ao conteúdo da oficina e a responsabilização sobre os estudantes. Na comunidade diziam respeito ao uso do espaço, ao conteúdo da oficina e a responsabilização sobre os participantes. Entretanto, nenhuma delas constituiu obstáculo ao desenvolvimento da oficina e aquelas que ofereciam algum tipo de prejuízo ao teatro puderam ser discutidas ou relativizadas. No que tange a realização das atividades, porém, a liberdade para se inserir ou se ausentar do processo adquiriram conotações diferentes na escola e na comunidade. Na primeira, havia um mecanismo institucional que anotava as pessoas com os corpos presentes ou ausentes, independente de sua participação efetiva nas atividades. O compromisso com o coletivo da peça, no entanto, foi exigido pelos próprios participantes pela demanda do trabalho. O mesmo aconteceu no processo comunitário, que não tinha uma cobrança oficial por presença, mas essa necessidade se apresentou com o desenvolvimento da montagem da peça. Nas apresentações externas, a burocracia escolar exigia a autorização escrita dos responsáveis pelos estudantes menores de 18 anos. Na comunidade não havia tal autorização: fazia parte da proposta apresentada verbalmente a realização de oito apresentações, cujos transportes seriam efetivados em ônibus da Prefeitura. No entanto, numa das apresentações o 137 ônibus não foi e os próprios moradores arrumaram um meio de se locomoverem, solicitando ajuda ao primo de uma das participantes, proprietário de uma Kombi. IV.4.2 - O currículo escolar A atividade com o Teatro do Oprimido possibilitou uma inserção específica em diferentes aspectos referentes ao currículo escolar. Como currículo está no centro das atividades escolares, compreendendo o conjunto de todas as experiências de conhecimento presentes numa escola e propiciadas aos estudantes, carregado de ideologia e valores repassados na instituição. O currículo, portanto, não é neutro. “O nexo íntimo e estreito entre educação e identidade social, entre escolarização e subjetividade, é assegurado precisamente pelas experiências cognitivas e afetivas corporificadas no currículo” (SILVA, 1995, p.184). Ressalta-se, com Moreira, A e Silva, T (2006) que O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal – ele tem uma história, vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação. (MOREIRA e SILVA, 2006, p.8). A disposição das cadeiras em círculo passou a ser um hábito entre os estudantes que chegavam e logo começavam a arrumá-las. No entanto, tal disposição era apenas para a oficina de teatro (ou alguma atividade específica em determinada disciplina), não configurando uma alteração permanente na escola. Ao contrário, no final das oficinas, as carteiras eram novamente arrumadas em fileiras para o turno da manhã. Outra proposta diferenciada em termos de uso dos espaços escolar ocorreu por ocasião dos ensaios, com a constante utilização do pátio. Durante o intervalo, os materiais do teatro permaneciam expostos no pátio, ao alcance da curiosidade dos outros estudantes. Além desta transposição, outra ocorreu, pontual, específica, por ocasião da apresentação na câmara municipal, ampliando na “sala de aula” para além dos muros escolares. O teatro pautou, também, demandas contrárias à seriação. A primeira, apenas anunciada, quando um estudante, com receio da reprovação e consequente mudança de turma, manifestou seu interesse em manter-se na atividade teatral. A segunda, efetivada pelo estudante do sexto 138 ano, que se retirava de sua sala de aula, conforme disponibilidade, para desenvolver o teatro com o grupo do oitavo ano. A reflexão sobre o bullying, entre outras formas de violências presentes no cotidiano social, como racismo, machismo, homofobia, ganharam campo de discussão junto aos estudantes a partir dos jogos teatrais. Outras demandas dos movimentos sociais na luta por justiça social e igualdade de direitos foram discutidas em diferentes momentos das oficinas, no processo de construção das cenas e por ocasião da recusa dos dois estudantes em permanecerem na encenação, no episódio após o Desfile de Sete de Setembro. Muitos desses temas assumiram correspondência na oficina da comunidade, por meio das atividades teatrais, que propiciaram um espaço de reflexão sobre problemas sociais que atingem diferentes sujeitos na sociedade. Os temas de ambas as peças, por exemplo, guardaram muitas semelhanças entre si, trazendo à tona a discussão das drogas, lícitas ou ilícitas, e da gravidez na adolescência. Nas Sessões de Fórum essas discussões ganharam perspectivas variadas com os diferentes públicos e suas intervenções em cena. As apresentações do grupo de Pedras nas escolas também propiciaram uma inserção diferenciada nos conteúdos curriculares escolares, incrementando o debate sobre relações de gênero, papéis de homens e mulheres na sociedade, gravidez na adolescência, uso de contraceptivos, distribuição gratuita de camisinhas nos postos de saúde e alcoolismo, principalmente, por meio de um debate cênico, teatral, que garantia uma margem de segurança, provida pelos personagens, para exposição pessoal sobre o assunto. E estudantes e professores puderam atuar juntos em cena. IV.4.3 - Um fórum educativo com aprendizagem por modelo Uma premissa para o desenvolvimento do Fórum é a não substituição dos personagens opressores, sob a pena de se produzir as chamadas soluções mágicas, que transformam o opressor automaticamente em “bonzinho”, retirando o problema de cena e destituindo o oprimido de sua causa de luta. A respeito da contradição opressores-oprimidos e sua superação, Freire (1987) afirma: “Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A 139 ordem social injusta é a fonte geradora, permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria.” (FREIRE, 1987, p.31). Uma opressão existe justamente porque há as diferenças nas relações de poder na sociedade e um opressor que obtém vantagens com uma determinada situação certamente não irá abrir mão de seu status facilmente, utilizando diversas estratégias para sua manutenção. É o oprimido que revela o opressor e precisa lutar pela superação da situação de opressão. Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe deram os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista de falsa generosidade refletida. (FREIRE, 1987, p.31 e 32). No entanto, as relações estabelecidas pelos sujeitos em suas diversas relações sociais muitas vezes não permitem falar de um opressor absoluto. No caso da maioria das personagens de ambas as peças montadas havia desejos ambíguos, conflitantes e margem para substituição, em cena, de diferentes personagens. Na peça Igual à família da gente, por exemplo, não era o desejo de absolutamente nenhuma personagem a gravidez da adolescente. No entanto, diferentes omissões oriundas do modo patriarcal, capitalista e midiático de se viver nesta sociedade propiciaram tal desdobramento para a história. O pai, símbolo de opressão do patriarcado, não se opunha ao desejo da protagonista de sair; era exatamente quem detinha a palavra final nas relações da família e consentia que os filhos fossem a festa sem maiores diálogos e orientações, sob as reclamações e descontentamentos da mãe. A maioria das intervenções ocorreu no lugar da mãe, no sentido de assumir uma postura diferente, mais firme, frente ao pai e a educação dos filhos. No entanto, algumas pessoas substituíram também o pai, revelando erros e responsabilidades daquele personagem na educação familiar. O mesmo aconteceu com o personagem do namorado adolescente, quando, sob a intervenção da plateia, se propôs, espontaneamente, a usar camisinha, antecipou-se para assumir a responsabilidade sobre a gravidez e, depois de casado, sugeriu irem todos juntos à festa ou pagar uma babá para cuidar da criança enquanto o casal saía. 140 Em maior ou menor instância, todas essas intervenções no papel do namorado continham um componente mágico, que fugia ao contexto ou a realidade do personagem da peça. No primeiro caso, porém, abriu-se um debate riquíssimo sobre a responsabilidade masculina no uso de preservativos, considerando ainda o seu custo e a distribuição gratuita nos postos de saúde, diferentemente da camisinha feminina. No segundo, possibilitou a discussão dobre confiança nos relacionamentos versus o exame de DNA. No terceiro, argumentou-se sobre os cuidados e limitações advindas da criação de uma criança. E o quarto caso lançou luz nos custos financeiros e condições emocionais desta criação. Na peça Foi sem querer querendo, por sua vez, os únicos três personagens identificados integralmente como antagonistas eram os dois traficantes, com desejo evidente de persuasão ao vício, e o pai da adolescente grávida, que era extremamente machista e grosseiro com as mulheres em cena, não dando margem à boas intenções quanto à gravidez da filha. Os demais personagens, entre mães, adolescentes e colegas aliados eram passíveis de substituição. Deste modo, com substituição de personagens variados, sem se eximir do debate sobre o patriarcado, o capitalismo e a mídia contemporânea, e mesmo correndo o risco de cair, como alerta Boal, “no teatro exemplar: uma pessoa mostrando a outra o que ela deve fazer – o velho teatro evangelista, o teatro político de antigamente” (BOAL, 2008, p.340), propiciou-se fóruns educativos, com uma aprendizagem advinda, também, pelo modelo de como um personagem específico deveria agir, pautando, porém, um novo ideal social para determinados papéis na sociedade. IV.4.4 - Delineando limites para o Teatro do Oprimido na escola Se todo teatro se propõe à apresentação num espaço para outras pessoas, o Teatro-Fórum se propõe a apresentação com debate teatral, à discussão com a comunidade, à proposição de soluções para os problemas sociais junto a outros grupos. O Teatro do Oprimido é um método de práxis, ação-reflexão-ação no mundo, e todas as suas modalidades estimulam uma postura protagônica em seus praticantes e espect-atores. Esse protagonismo se coaduna com as lutas dos movimentos sociais em prol dos direitos humanos, pois “é teatro de luta! É teatro DOS oprimidos, PARA oprimidos, SOBRE oprimidos e PELOS oprimidos, sejam eles operários, camponeses, desempregados, mulheres, negros, jovens ou velhos, portadores de deficiências 141 físicas ou mentais, enfim, todos aqueles a quem se impõe o silêncio, de quem se retira o direito à existência plena” (BOAL, 2005, p.30). Como linguagem, o TO pode estimular a discussão de qualquer tema, no qual exista um conflito claro e objetivo e o desejo e a necessidade de mudança. Na maioria absoluta dos conflitos, o diálogo é o primeiro passo para a resolução, pois aponta caminhos e alternativas. O TO não oferece soluções mágicas para problemas concretos, mas é um instrumento lúdico, criativo e eficaz de estímulo à reflexão, ao diálogo e à elaboração de propostas. O TO oferece condições para que as alternativas sejam encontradas e estímulo para que extrapolem do teatro para a vida real e se tornem fatos concretos, como no Teatro Legislativo, onde as propostas dos espectadores se transformam em projetos de lei (Disponível em http://www.ctorio.org.br/PRISOES.htm - acesso em 17/10/2011). Para ser Teatro do Oprimido sua prática não pode prescindir de seus preceitos éticos. “Fazer Teatro do oprimido já é o resultado de uma escolha ética, já significa tomar o partido dos oprimidos. Tentar transformá-lo em mero entretenimento sem conseqüências, seria desconhecêlo; transformá-lo em arma de opressão, seria traí-lo” (BOAL, 2005, p.25). Sua prática deve se dar sempre no sentido de superar as situações de injustiça e de opressão sociais; deve incentivar, portanto, a revolta dos oprimidos e não sua adaptação e passividade, combater a “invasão dos cérebros” pelas mídias que impõem autoritariamente seus valores e concepções estéticas; deve ir sempre ao encontro de valores compatíveis com a distribuição de renda, equidade de direitos, respeito às diversidades, contrário à exploração capitalista, à educação acrítica, ao preconceito, discriminação, machismo, racismo, homofobia e toda ação humana que contrariem os direitos humanos universais. Por isso, para ser praticado adequadamente, alerta Santos (2010), o Teatro do Oprimido nas escolas precisa que a participação seja voluntária, não obrigatória, e que o projeto não vise à adaptação de estudantes ao status quo pedagógico da instituição. É fundamental que exista a possibilidade de questionamento das relações de poder para que o trabalho com o TO não seja cooptado, domesticado ou transformado em trabalho didático. O TO não existe para ensinar o que seja considerado “certo” por uma elite política, econômica, social, cultural ou intelectual e, sim, para questionar a realidade, duvidar do certo, estimular reflexões e construir alternativas (SANTOS, Bárbara, 2010, p.128). Uma escola que pratica a educação bancária, autoritária, sem prática democrática e dialogada constitui uma instituição oposta à proposta do Teatro do Oprimido. Os praticantes deste método precisam estar permanentemente vigilantes para não trabalharem a favor dos ideais institucionais. “O desenvolvimento de um projeto de TO feito de forma adequada, com base nos princípios éticos, estéticos, pedagógicos, políticos e filosóficos do método, invariavelmente 142 levará ao questionamento da própria existência instituição” (SANTOS, Bárbara, 2010, p.128), com os seus mecanismos de poder e opressão. No caso desta pesquisa, percebeu-se a inserção do Teatro do Oprimido numa fronteira delicada entre a teatralização da escola e escolarização do teatro: ao mesmo tempo em que foi inserido como uma atividade escolar no conteúdo das aulas de Português, manteve-se como uma oficina independente e não obrigatória a todos os estudantes; acontecia no interior da escola, mas propunha novas forma de utilização dos seus espaços para as aulas de teatro; sua oficineira era vista como professora, mas não dava nota, não reprovava e nem xingava os estudantes; analisava a estrutura do funcionamento escolar, para posicionar-se em seu interior, ao mesmo tempo que denunciava o teatro daquela instituição, por meio da imitação de seus funcionários, por exemplo; estava sujeito as regras da instituição, porém, não se abstinha em negociá-las, conforme suas necessidades. Contudo, para não cair num equívoco maniqueísta de associar uma instituição escolar a tudo que é impositivo, autoritário e anti-democrático, é importante salientar a abertura e acolhimento por parte dos funcionários da E.M. João Marques Machado à proposta do teatro, sempre buscando atender as solicitações e proposições da oficineira e do grupo de estudantes participantes. A prática do Teatro do Oprimido na escola se inseriu nesse processo de constante construção das relações sociais, no embate cultural, com legitimação ou refutação das regras institucionais. Conceber a escola como espaço sócio-cultural privilegia a ação dos sujeitos na relação com as estruturas sociais. Nas palavras de Dyrell (2001) a instituição escolar seria resultado de um confronto de interesses: de um lado, uma organização oficial do sistema escolar, que “define conteúdos da tarefa central, atribui funções, organiza, separa e hierarquiza o espaço, a fim de diferenciar trabalhos, definindo idealmente, assim, as relações sociais”; de outro, os sujeitos – alunos, professores, funcionários, que criam uma trama própria de interrelações, fazendo da escola um processo permanente de construção social. Apreender a escola como construção social implica, assim, compreendê-la no seu fazer cotidiano, onde os sujeitos não são apenas agentes passivos diante da estrutura. Ao contrário, trata-se de uma relação em contínua construção, de conflitos e negociações em função de circunstâncias determinadas. Desta forma, o processo educativo escolar recoloca a cada instante a reprodução do velho e a possibilidade da construção do novo, e nenhum dos lados pode antecipar uma vitória completa e definitiva. Essa abordagem permite ampliar a análise educacional, na medida em que busca aprender os processos reais, cotidianos, que ocorrem no interior da escola, ao mesmo tempo que resgata o papel ativo dos sujeitos, na vida social e escolar. (Dayrell, 2001, p.137). 143 Diferentes movimentos condizentes com uma postura de autonomia e protagonismo foram percebidos no processo, desde propostas para as cenas até a negociação para apresentação da peça em outra escola, passando pela construção do cenário e iniciativas variadas no dia-a-dia para solução de problemas. Entre alguns embates, foi possível desenvolver o teatro com autonomia, efetivando na oficina um espaço de diálogo, pautado na horizontalidade das relações entre as pessoas, buscando uma ampliação da consciência crítica sobre as desigualdades sociais, bem como da intencionalidade política das ações humanas. . Uma fala da coordenadora apontou três aspectos positivos em termos escolares e educacionais que ela atribui à oficina teatral: primeiro a melhora do comportamento dos estudantes, segundo o aumento da freqüência e, terceiro, o fortalecimento das relações do próprio grupo. Acredita-se que a melhora do comportamento não esteve, neste caso, relacionada com uma submissão passiva as propostas apresentadas, pois deste modo o trabalho teatral estaria contribuindo com a manutenção da opressão social. Ao contrário, retrata a melhora na qualidade da relação entre os colegas, que no início envolvia diversas práticas de bullying e, com o processo, possibilitou um amadurecimento no sentido de ver o outro como igual, companheiro de uma caminhada na qual é importante todos chegarem juntos, a despeito dos valores preconceituosos, competitivos e desumanizantes veiculados na mídia e no sistema vigente. O aumento da frequência numa sexta-feira à noite certamente não se vinculou ao risco de reprovação por falta. O teatro indubitavelmente significou prazer no universo das atividades escolares e agregou-lhes um sentido novo ao propiciar uma investigação sensível e simbólica sobre temas da realidade imediata dos estudantes. A rotatividade ainda presente entre os participantes da oficina, no entanto, não impediu a análise da realidade social, montagem da peça sobre as temáticas de interesse dos participantes, tão pouco o trabalho com sentido coletivo. Por fim, espera-se que a coesão do grupo não se limite ao período de existência da oficina, podendo, no entanto, abarcar os propósitos desta na atuação no cotidiano de cada um. Todos tinham a consciência que, terminado aquele ano, cada qual seguiria seu rumo, conforme projetos pessoais, não mantendo o grupo e nem o teatro, apesar de algumas demandas neste 144 sentido. O que não impede futuros envolvimento em movimentos coletivos em prol da transformação social. Entre a teatralização da escola e a escolarização do teatro pulsavam vidas que garantiam e transformavam os sentidos das ações humanas no mundo. As limitações do método são as limitações do próprio ser humano, com suas capacidades de olhar e ver, ouvir e escutar, tocar e sentir, agir e transformar, engajado num processo coletivo de ampliação da consciência crítica e transformação social, envolto, porém, em suas múltiplas personalidades e contradições sociais, no entanto, passíveis de serem desveladas e mesmo reveladas a todo instante. IV.4.5 - A ação da comunidade A oficina teatral na comunidade confirmou problemas já constatados como carências ainda características do campo no Brasil, como a dificuldade de transporte e de acesso aos bens culturais, especialmente quando se trata de manifestações artísticas distintas das existentes no próprio local. Neste sentido, o trabalho com teatro veio a somar na constituição de mais um espaço cultural, educativo e de diálogo. Pessoas com diferentes idades, presentes em diferentes graus, aprenderam juntas uma nova modalidade de teatro, apropriando-se, cada qual ao seu tempo e modo, desse método artístico-político-teatral que é o Teatro do Oprimido. Uma mãe, participante em todo o processo da oficina, professora em uma escola da comunidade de Pinheiros, ao encontrar posteriormente com a oficineira relatou que assumiu uma turma bastante agitada, em 2012, e vem desenvolvendo alguns jogos praticados na oficina, obtendo bons resultados. Apesar das temáticas tão semelhantes apontadas em ambos os processos, diferenças entre os povoados e distritos de Itatiaiuçu foram reveladas no cotidiano do processo, tanto nas falas dos participantes como de modo estético. Uma oficina na qual se realizou o jogo Máquina de ritmos e movimentos constitui um bom exemplo: as imagens corporais e sons dos integrantes retrataram a comunidade de Pedras como uma grande família em festa e o centro de Itatiaiuçu com características mais próximas a uma grande cidade, movimentada, barulhenta, com pessoas e carros passando rápidos de um lado para o outro. 145 De fato a oficina de teatro aberta à comunidade, em Pedras, se configurou num espaço bastante familiar, no sentido mesmo do parentesco entre os participantes, com a presença constante de três famílias, sendo uma mãe com dois filhos, outra mãe com três, e quatro irmãos, além de duas adolescentes primas dos demais. Outros participantes que compareciam de modo mais esporádico também guardavam alguma espécie de parentesco com os frequentes. Não foi por acaso que o tema escolhido para montagem da peça e discussão nos fóruns pautasse um diálogo direto com a vida da família, levantando questões sobre os planos de um jovem casal de namorados e os desdobramentos de uma gravidez no planejamento familiar. Os tabus sobre a sexualidade, a prática de sexo seguro, os valores associados à atividade sexual de homens e mulheres e as consequências de uma gravidez na adolescência ofereceram contrapontos ricos para avançar no debate sobre as práticas sociais sexistas. O modo de retratar o contexto de ocorrência da gravidez, no entanto, guarda diferenças significativas da peça montada na escola. Na peça Igual à família da gente ela acontece a partir de um relacionamento de namoro, ao passo que, na Foi sem querer querendo, é fruto de um relacionamento casual e momentâneo. Não se trata de tomar uma situação como representativa de todas as outras, mas salientar um aspecto que pode retratar diferenças dos modos de produção de vida entre os povoados rurais e os distritos de Itatiaiuçu. Os bairros próximos ao centro e os distritos abrigam a quase totalidade dos funcionários das empresas mineradoras, majoritariamente homens, que vêm de outros municípios, por tempo esporádico, para fins de trabalho, determinando um ambiente de maior fluxo de pessoas. No período de realização das oficinas, ouviram-se referências e reclamações sobre essa presença “Tá uma homaiada nessa cidade”, ou “A gente só vê os ônibus chegando e descendo aquele bando de peão” – além de casos de crianças filhas desses trabalhadores que, ao nascerem, os pais já não estão mais na cidade. Neste caso vale ressaltar que, aproximadamente 80% dos participantes da oficina teatral na escola eram moradores de área urbana, em contraposição com os 20% da zona rural – perfil que não se alterou com a mudança do semestre, como mostram os gráficos abaixo. 146 Local de moradia - 1o semestre 21% 37% Centro e bairros vizinhos Local de moradia - 2o semestre Centro e bairros vizinhos 20% Distritos Distritos 52% 42% Povoados rurais GRÁFICO 5: Local de moradia dos participantes do 1º Semestre. 28% Povoados rurais GRÁFICO 6: Local de moradia dos participantes do 2º Semestre. Esta proporção apresenta uma diferença representativa quando comparada a população total do município: 37,3% de moradores na zona rural e 62,7% na área urbana. No entanto, nenhum dado obtido pela pesquisa pode afirmar os motivos dessas distorções percentuais. O tema do alcoolismo entre os homens perpassou a oficina e a peça, se apresentando como outro assunto digno de discussões na comunidade, necessitando, no entanto, de um tratamento mais aprofundado. As histórias dos participantes revelaram diferentes casos em suas famílias e na comunidade, relatadas sempre com dor, sofrimento e pesar. As drogas ilícitas também foram alvo de reflexão, com especial preocupação por parte dos adultos participantes, que revelaram o aprisionamento de um caminhão de crack, num sítio próximo à praça central do povoado, em 2010. Uma pesquisa realizada, em 2011, pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) apontou a presença de crack e outras drogas em 98% dos municípios brasileiros, demonstrando que esse problema atinge a quase totalidade das cidades do país, não se configurando como assunto exclusivo dos grandes centros urbanos. O Teatro do Oprimido propiciou uma instância diferenciada de diálogo na comunidade e entre as famílias participantes, recheada de prazer e arte, abrindo, porém, um leque de questões acerca dos desafios colocados para a educação do campo no país. 147 V. UMA ARMA VÁLIDA: À GUISA DE CONCLUSÃO Demonstrou-se, ao longo deste estudo, como o Teatro do Oprimido e a Pedagogia do Oprimido, obras contemporâneas, formuladas e desenvolvidas no contexto das concepções de educação e cultura popular que efervesceram no país na década de 1960, muito além da analogia de seus títulos, contemplam profundas semelhanças teóricas. O final dos anos de 1950 e, especialmente, o início da década de 1960, marcou a história da educação popular de jovens e adultos no país, abarcando inovações metodológicas e pautando a ênfase político-crítica necessária a um processo de apropriação da leitura e da escrita. Paulo Freire começou a desenvolver, nesse período, sua Filosofia da Educação, construindo um método de alfabetização de adultos, extremamente rápido e eficaz, com o diferencial de contextualizar a realidade do educando em seu processo. A educação para Freire se desenvolve coletivamente, em comunhão, com relações horizontais e transversais de troca de saberes entre educadores e educandos e a prática pedagógica é práxis, ação-reflexão-ação sobre o mundo, articulada, portanto, num processo de análise crítica e transformação da realidade social, no sentido da superação da situação de opressão. Com sua Filosofia de Educação e Método de Alfabetização de Adultos, Paulo Freire contribuiu significativamente na mudança de uma visão preconceituosa e estigmatizante que associava analfabetos a pessoas de menor valor, incapazes, ressaltando o conhecimento de mundo, contribuições nos processos de trabalho e nas esferas sociais e culturais condizente a esses sujeitos. Este período da História do Brasil é marcado, politicamente, pela renúncia de Jânio Quadros, seguida da conturbada posse de João Goulart, em 1961, sob a pressão da sociedade civil numa campanha pela legalidade no país, contrária aos militares, entre outros grupos conservadores que se opunham a posse do presidente de esquerda, por suas propostas populares, democráticas e sociais. Havia uma efervescência política, de inspirações e bases socialistas, que fortalecia os anseios de transformação no sentido de superar as injustiças e desigualdades as quais estavam submetidas a população brasileira. 148 No campo, as Ligas Camponesas e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, que se organizaram ao longo da década de 1950, pautavam os direitos dos cidadãos do campo, reivindicando terra, moradia, saúde, educação; e denunciavam o descaso governamental com a população campesina. Muitos padres e arcebispos católicos ratificavam as lutas dos camponeses, destituídos de terras próprias, trabalhando em condições escravas, vivendo de modo paupérrimo, subumano, apesar dos latifúndios improdutivos que serviam a especulação dos coronéis. Os movimentos relacionados à cultura e educação popular, que se proliferaram por todo o país, conduziam ações que vislumbravam uma conscientização da população, por meio das artes, educação e cultura, com foco nas desigualdades sociais brasileiras. A favor da erradicação do analfabetismo, universalização da educação e efetivação da reforma agrária, esses movimentos buscavam integrar a população em torno das discussões em prol da transformação social. O Movimento de Educação de Base (MEB), vinculado à esquerda da Igreja Católica, concentrava suas atividades no campo. O Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife contava com Paulo Freire à frente de suas ações e Augusto Boal articulava-se com os Centros Populares de Cultura (CPCs) da UNE, no rio de Janeiro e em outros estados brasileiros, a partir da difusão desses centros, vinculados às Uniões Estaduais dos Estudantes (UEEs). Em meados da década de 1950, Augusto Boal iniciou sua trajetória no Teatro de Arena de São Paulo, que se destacava no cenário do país por coadunar com um movimento de cunho nacionalista, propondo uma estética pautada na realidade brasileira, valorizando as produções artísticas nacionais, sem reproduzir os padrões culturais ou imitar as vanguardas artísticas dos países desenvolvidos. As inquietações de Boal acerca da separação e diferenças de poder existente entre o palco e a plateia o levaram a desenvolver e sistematizar o Teatro do Oprimido, cuja primeira modalidade, o Teatro Jornal, fora construída ainda no Teatro de Arena, no início da década de 1970. A ditadura que se instalou no Brasil em 1964 interrompeu todo esse processo de efervescência política em prol da justiça social. Acabaram-se os movimentos de educação e cultura popular, censuraram-se produções artísticas e fecharam-se teatros. Freire e Boal foram exilados, entre tantos outros que vislumbravam uma sociedade igualitária, e pagaram com tortura e morte, nas mãos dos militares. 149 No âmbito educacional, o sistema ditatorial consolidou a incorporação da educação rural ao conjunto da educação brasileira, sob um planejamento geral que excluía a possibilidade de políticas específicas para os grupos campesinos. O processo cultural rural foi subordinado à cultura urbana e aos mecanismos de controle ideológico do Estado Militar. Sem alocação de recursos financeiros, materiais e humanos, as escolas rurais tornaram-se responsabilidade dos seus respectivos municípios e as atividades de profissionalização atendiam às exigências do mercado urbano-industrial. Ao longo do período ditatorial, a Pedagogia e do Teatro do Oprimido se desenvolveram mundo a fora. Seus fundamentos afirmam o caráter político das ações de mulheres e homens em suas relações sócio-históricas na sociedade e em constante produção cultural. Ambos os métodos partem da realidade dos sujeitos envolvidos em suas ações para desenvolverem uma reflexão crítica, educativa, dialogada, horizontal, analisando as situações de opressão social e buscando caminhos para sua superação, coletivamente. Tais fundamentos coadunam com as propostas teóricas e metodológicas apresentadas pelo Movimento de Educação do Campo no país, que também assume uma posição contra hegemônica nas relações capitalistas de produção, buscando afirmar e dar visibilidade aos valores e à cultura dos sujeitos do campo, reconhecendo seus conhecimentos e modos próprios de viver, reivindicando, deste modo, uma educação com escolas e práticas educativas que atendam as especificidades dos povos do campo. Constatou-se, ao longo deste estudo, que o caráter coletivo e, por isso, também educativo do Teatro do Oprimido se revela do início ao fim de um processo de montagem e apresentação das peças de Teatro-Fórum, perpassando os exercícios de ativação dos sentidos e desmecanização corporal, os jogos de sensibilização e improvisação teatral, as técnicas de Teatro Imagem, todos eles ativando mecanismos de comunicação não verbais e estéticos, exercitando os pensamentos sensível e simbólico. A montagem da peça, efetivando um processo pedagógico, com construção das cenas, dos personagens, dos diálogos, dos cenários e adereços cênicos concretiza uma análise crítica da realidade social, revelando uma visão dos participantes sobre as relações sócio-histórico-políticoculturais nas quais estão inseridos e anunciando um desejo de mudança. As sessões de TeatroFórum culminam este processo, ampliando para mais pessoas as discussões das questões em 150 pauta, abarcando análises sobre as estratégias de poder e dominação vigente, contemplando propostas de transformação, ampliando e aprofundando a compreensão do problema. Evidenciou-se que o curinga, o professor-curinga ou o educador-curinga assume fundamental importância no processo de desenvolvimento do método, uma vez que exerce um papel de liderança junto aos grupos teatrais, podendo, com suas análises e questionamentos a respeito dos problemas sociais abordados, favorecer o processo de ascese, ou limitá-lo. Neste último caso, no entanto, a própria dinâmica dialogada, necessária ao desenvolvimento do Teatro do Oprimido, permite a exaltação de múltiplas vozes, possibilitando, com elas, novos caminhos de reflexão e ação. Em analogia com as pedagogias e práticas educativas desenvolvidas nos estabelecimentos de ensino, a analise sobre o curinga possibilitou lançar luzes na atuação de professores e demais profissionais da escola, pautando sua responsabilidade ética e política na sociedade, podendo contribuir de forma significativa para a efetivação de uma educação crítica e de uma instituição onde predomina o diálogo nas relações humanas com vistas à transformação social. Na pesquisa-participante, desenvolvida no município de Itatiaiuçu, com estudantes e educadores da EJA municipal e moradores da comunidade rural de Pedras, o trabalho com o Teatro do Oprimido propiciou a análise de parte das opressões sociais a partir das relações conflituosas entre personagens oprimidas e opressoras, criadas por meio de jogos de imagens e improvisações teatrais. Temas como gravidez na adolescência, drogas, alcoolismo, racismo, homofobia, entre outros, foram geradores de discussões verbais e produções estéticas, expressões artísticas, críticas, simbólicas e sensíveis, potencializadoras de analises e reflexões sobre a sociedade, sua organização política e relações de poder. Nas sessões de Teatro-Fórum, o problema das drogas lícitas e ilícitas como gerador de dependência química e violência foi abordado, assim como questões relativas às relações de gênero que, fruto do patriarcado sociocultural, perpetua uma diferença de poder entre homens e mulheres, determinando papéis para ambos os sexos, limitando suas expressões de modo condizente com a multiplicidade cabível e possível a todas as pessoas humanas. As discussões sobre gravidez na adolescência possibilitaram, também, discussões com informações acerca do uso de camisinha, dos tabus relacionados à sua utilização, além da sua distribuição gratuita nos postos de saúde municipais. 151 No interior da escola, a prática do Teatro do Oprimido criou instâncias de diálogos coletivos, horizontais, que questionaram o próprio funcionamento da instituição, a espacialidade das salas de aula, sua estrutura física, as formas como estabelecem suas relações curriculares, hierárquicas e de conhecimento. Sempre que surgia um impasse ou mesmo um problema na oficina, este era solucionado coletivamente, com uma conversa em roda, considerando as diferentes opiniões de todos os participantes. Em diversas ocasiões essas conversas se desenvolveram no pátio central da escola, local de circulação de pessoas e, em uma delas, contou com a participação da coordenadora, apesar de sua proposta inicial de promover uma conversa fechada, apenas com dois estudantes, na sala da coordenação. A prática do Teatro do Oprimido possibilitou, também, pautar as demandas sociais no interior da instituição escolar, abarcando conteúdos curriculares normalmente ausentes dos livros didáticos e possibilitando reflexões sobre ações concretas para superação das relações de opressão. Quando, por ocasião do ensaio aberto do Fórum a diretora questionou o conteúdo da peça, uma estudante assumiu a palavra e defendeu o grupo do teatro, ratificando suas escolhas, necessidades e opções temáticas. O desenvolvimento desta pesquisa permitiu uma aproximação do universo de Itatiaiuçu e de seus moradores, com suas relações e formas de produção de vida, nesse município tão próximo à capital. As peças montadas, tanto na escola quanto na comunidade, a partir das histórias de jovens e adultos moradores do campo, revelaram questões comuns ao ambiente urbano. Seria diferente num município distante de um grande centro? Ou exclusivamente agrário? É certo que não faz mais sentido falar em campo como um espaço único e homogêneo, mas em campos, múltiplos, diversos, com diferentes grupos sociais e apropriações destes sobre os bens culturais locais, nacionais e internacionais. Conclui-se que o Teatro do Oprimido pode se constituir como um instrumental útil associado às lutas da Educação do Campo no país: se posicionando na contra-hegemonia do sistema; vislumbrando o sonho e a utopia de uma sociedade igualitária e sem diferenças de classes; propondo o diálogo nas práticas educativas; aproximando, inserindo e valorizando a realidade das populações do campo, com seus valores, histórias e História, conhecimentos e cultura no processo educacional; pautando as demandas sociais no interior das instituições escolares e a luta pelos direitos humanos nos processos coletivos de apropriação do 152 conhecimento e transformação social, refletindo sobre ações concretas para superação das relações de opressão. Ressalta-se, por fim, como mais um elemento favorável ao Teatro do Oprimido e condizente com a Educação do Campo, a sua metodologia lúdica, política, estética, artística e teatral, que abarca processos simbólicos e sensíveis de conhecimento, integrando razão e emoção de modo indissociável, ampliando os meios de expressão e compreensão da realidade, na perspectiva da construção de um mundo mais solidário e justo. 153 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO, Almerindo Janela. Reforma do Estado e Políticas Educacionais: entre a crise do Estado-Nação e a emergência da regulação supranacional. Educação e Sociedade, ano XXII, nº75. Ago-2001. AP/Cultura Popular. In: FÁVARO, Osmar. Cultura popular e educação popular: memória dos anos 60. 2ª Ed. Graal. Rio de Janeiro, 1983. ARAÚJO, Alcione. O lavrador do mar. Revista Palavra. Ano 1, no 11, mar. Editora Gaia Ltda. Belo Horizonte, 2000. BARRETO, Elba de Sá. Política educacional e educação das populações rurais. 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AUTORIA COLETIVA DO GRUPO TEATRAL: OS OUSADOS PERSONAGENS: Bia: Adolescente que engravida Alice: Mãe da Bia Carlos: Pai da Bia Maria: Amiga da Mãe de Bia Marina: Amiga de Bia Carol: Colega de Bia Dona Flor: Dona do Bar Fernando: Adolescente que se envolve com drogas Cecília: Mãe de Fernando Célia: Amiga de Cecília Selma: Amiga de Cecília Leandro: Amigo de Fernando Bruno: Amigo de Fernando Johnny: Colega traficante de Fernando Fred: Colega traficante de Fernando Jack: Chefe do tráfico Waleska: Garota da Balada DJ Tubarão e DJ Golfinho: Músicos da Balada. CENA 1: Bia e Fernando, recém-nascidos, recebem visitas com presentes. Na casa de Fernando, visitas levam bola de futebol, cofre e pingente de ouro. Cecília: Meu filho! Mamãe está tão feliz e tem tantos planos para você! Chegam as amigas trazendo seus presentes. Efeitos sonoros: TOC TOC TOC + PORTA SE ABRINDO. 160 Célia e Selma: Ôh de casa! (E vão entrando). Cecília: Oi! Entrem! Que bom que vocês vieram. Célia: Eu trouxe uma bola pro Fernando. Para jogar com o meu filho. Os dois vão ser amigos. Cecília: Muito obrigada. Imagine o meu Fernando e o seu Bruno jogando no Cruzeiro. Que maravilha!!! Selma: Eu trouxe um cofre para você ir juntando um dinheirinho para pagar os estudos quando ele crescer. E como eu não tenho filho, e vou ser madrinha dele, trouxe esse pingente de ouro que foi do meu avô. Cecília: Selma, não tenho nem palavras para te agradecer. Muito obrigada. Na casa de Bia, uma amiga da mãe leva boneca com kit de enfermagem. Carlos: Beatriz! A que trouxe a felicidade do Papai! Ah! Minha filha! Muié, muié! Olha lá como você vai criar essa menina! Você sabe! Filha minha não é pro bico de qualquer um não. Efeitos sonoros: TOC TOC TOC + PORTA SE ABRINDO. Alice: Oi, Maria, entre. Maria: Vim conhecer a Bia. Oi, Carlos. Carlos: Olha que belezura, comadre! Puxou o pai! Maria: Eu trouxe essa boneca com kit de enfermagem. Alice: Muito obrigada. Não precisava. Carlos: Foi bom. Porque filha minha vai estudar. Estudar muito antes de namorar. Vai ser médica! E assim é bom que ela já vai treinando com a boneca. Maria: Nossa, Carlos! Deixa pelo menos a menina escolher o que vai querer ser. Carlos: Fala isso com o frouxo do seu marido. Aqui vai ser da escola pra casa. E ai dela se sair da linha. Maria: E eu posso carregar um pouquinho? Alice: Claro. Passa pra ela, bem. Carlos: Por que você é mulher. Se fosse homem eu não deixava. CENA 2: Fernando com os amigos jogando bola, chega o colega da rua. Leandro: (narrando) Gooooooool, do Fernando!!!!!! No último segundo da partida!!!!! 161 Bruno: Que jogo, hein, amigo. Hoje você arrasou!!!! Parabéns! Johnny: Fernando! Chega aí! Deixa eu te dar uma idéia. Fernando: Tô Indo. Leandro: Você conhece esse cara? Fernando: Mora lá no alto da rua. Mudou pra cá tem pouco tempo. Parece ser legal. Leandro: Sei, não. Já ouvi falar que ele se envolve com umas paradas erradas. Fernando: Acho que não. Tô indo lá! (Vai saindo) Bruno: Você vai subir com a gente? Fernando: Não. Vão indo que eu vou demorar um pouco. Saem: Fernando em direção à Johnny e seus amigos para o outro lado. Johnny: (Para Fernando) Jogou bem, cara! Fernando: Valeu! Johnny: Vão dá um role lá em Santa Terezinha? Fernando: Vamos. Nossa! Seu carro rebaixado ficou fino! Fred: “Qué” dirigir?! Fernando: Posso?! Mas eu não tenho carteira. Fred: Tem problema não. A Chave. CENA3: No bar. Atendente pergunta o que desejam e a garota com as amigas pedem cerveja. Chegam os rapazes e a garota demonstra interesse: Bia: Quem são aqueles? Marina: Sei não. Carol: A placa do carro é de Belo Horizonte. Os rapazes percebem e vão até a mesa delas. Johnny: Ali. (indicando as meninas) Tão dando mole. Vamos chegar lá? Fred: Vão vocês que eu to de boa. (saem em direção as meninas) Fernando: Oi! Eu sou Fernando. Esse é meu amigo Johnny. Podemos nos sentar? (Já sentando). 162 Johnny: Gostei de você, sabia. Marina: Leva a mal, não, mas eu tenho namorado. Fernando: (Para Bia) E você, topa dar uma volta comigo? Bia: Onde vamos? Fernando: Você que manda, gata! Bia: Vai indo que eu já vou. Fernando: (para Amigo): Chega aí! Saem Fernando e Johnny em direção à mesa de Fred. Fernando pede o carro para os amigos Fernando: Empresta o carro pra eu sair com a garota. Fred: Você não é fraco não. Leva. Mas fica me devendo essa. Fernando passa na mesa das meninas. Fernando: (Para Bia) Estou te esperando no carro. Meninas sozinhas na mesa Marina: Você sabe o que ta fazendo? Carol: Se liga! Deixa ela se divertir! Marina: Você sabe usar camisinha? Bia: Que isso! Tá pensando o que de mim. Marina: É preciso usar. Leva essa minha. Bia: Ih! Não vai ser preciso. Não vai rolar nada. Carol: Vai logo! Divirta-se!!! Bia sai. CENA 4: No carro. Fernando: Esse carro só funciona se você me der um beijo. (Se beijam e saem) Bia: Pra onde você ta me levando?! Aqui é tão escuro. Fernando: Aqui a gente pode ficar a vontade. Me beija, vai. Efeito sonoro de Música romântica. Roupas saindo pela janela do carro. Pára a música. 163 Bia: Não precisa usar camisinha? Fernando: Relaxa. Confia em mim. Tá tudo sob controle. CENA 5: Fernando deixa a menina em casa e os pais acham ruim com ela. Alice: Beatriz! O que o pessoal vai dizer de você chegando essa hora em casa?! Carlos: Quem é esse que veio te trazer?! Bia: Ninguém não, Pai. Carlos: Não mente pra mim que eu ouvi barulho de carro. Bia: Sei do carro não. Eu estava com as meninas. Alice: Que meninas? Bia: A Marina e a Carol. Carlos: Quem são essas? Duas vagabundas, aposto. Alice: Calma, bem. A Marina é filha da Comadre Ana. Carlos: Se eu souber de você aprontando um de nós dois sai dessa casa. Alice: Não fala besteira. Ela já chegou. Tá tudo bem. Vamos dormir. CENA 6: Fernando reencontra os colegas no bar e vão para uma festa! Jonny: E aí garanhão! (Fernando fica tímido). Fred: Diz aí, como foi?! Fernando: Nossa! Um sonho! Muito obrigado, cara! Valeu mesmo! Jonny: Você não viu nada. Vamos te levar pra um lugar onde tem muito mais. Fernando: (Hesitando) Acho que não vai rolar. Minha mãe... Fred: Mãe?! Você dirige meu carro, pega a mina e agora vai dar uma de filhinho de mamãe?! Vira homem, porra! Fernando: Tá certo. Vamos nessa. Johnny: É assim que se fala! A noite tá só começando!!! Urruh! Chegam na festa e CF1 pega um copo de bebida pra cada. Fred: (Entregando um comprimido para Fernando) Aqui, parceiro. Experimenta isso. 164 Johnny: (Percebendo o receio de Fernando) Pode tomar. É irado. (E toma para mostrar. Fernando toma também). Festa rolando... Fernando: (Para FC2) Pô, cara, me arruma mais um daquele. Fred: O meu já acabou. Tem que comprar. Fernando: Tô sem dinheiro. Fred: Deixa eu fazer um negócio nesse seu colar. Pega o colar de Fernando e sai em direção a Jack. Fred: Aí, parceiro. Jack: Firmeza?! Fred: A festa tá bombando. Jack: Maravilha. Fred: Consegui esse ouro pra você. É do garoto ali. Jack: (Analisando o colar): Vale. Leva esses comprimidos e depois passa lá pra buscar o seu troco. Fred: Valeu. (Sai em direção a Fernando com os comprimidos e mais bebida. Fernando toma). CENA 7: Cecília horrorizada com o estado de Fernando. Cecília rezando quando Fernando chega em casa pela manhã. Cecília: Fernando, meu filho. Onde você passou a noite? Não me avisou nada. Não atendeu ao telefone. Já ia chamar a polícia. Fernando, tonto, vai direto pro sofá Cecília: Fernando. Que estado é esse?! Você bebeu?! Fernando apaga sem responder. Cecília: Minha Nossa Senhora! O que deu nesse menino? Protegei meu filho. CENA 8: Bia conversando com Marina. Marina: Como é que foi ontem? 165 Bia: Ai! Sei lá. Foi tudo tão rápido. Marina: Tudo o quê?! Não me diga que vocês...?! Bia: (Encabulada) É. Marina: (Entusiasmada) Aiii!!! Conta! Como é que foi?! Bia: (Sem muita euforia) Uai?! Foi. Marina: (Empolgada) Gostou?! Bia: (Sem muita certeza) Gostei... Marina: Que foi? Ele te forçou? Bia: Não. Claro que não. Marina: Mas vocês usaram camisinha? Bia: Também não. Marina: (Assustada) Não?! Como não? Você é doida de transar sem camisinha?! Ainda mais com um cara que você nem conhece?! Bia: Ai, pára de me xingar. Já basta o tanto que meus pais brigaram comigo ontem. Eles só sabem me xingar, xingar, xingar. Marina: Você contou pra eles?! Bia: Claro que não. O maior carão só porque eu cheguei tarde. Me abraça, vai. Marina: (Abraçando Bia) Ô, amiga. CENA 9: Cecília conversando com Célia. Fernando acorda. Cecília varre o quintal e Célia passa na rua. Célia: Bom dia! Cecília: Ôh, Célia. Que bom te ver. Queria mesmo falar com você. Célia: Que houve? Que apavoramento é esse? Cecília: Você sabe onde os meninos estavam ontem. Fernando chegou aqui num estado deplorável. Célia: O Leandro não saiu ontem. Cecília: Tem certeza que os dois não estavam juntos?! Célia: Tenho. Leandro inclusive acordou hoje cedo e tá lá ajudando o pai a capinar o quintal. Cecília: Obrigada. Vou ter que descobrir onde esse menino passou à noite. 166 Célia sai. Fernando acorda, aproveita que a mãe está lá fora e pega dinheiro do cofre. Fernando: Bom dia mãe. Cecília: Fernando, nós precisamos conversar. Fernando: Ô, mãe. Me desculpa por ontem. Eu sei que exagerei, mas não vai acontecer de novo. Confia no seu filho. Cecília: Eu confio. Fernando vai saindo. Cecília: Já vai sair? Fernando: Só vou dar um pulo ali na praça. Cecília: Vai com Deus. CENA 10: Fernando encontra com Fred e Johnny e experimenta cocaína. Fernando: E aí, Beleza? Johnny: Fala, parceiro! Fred: Firmeza?! Fernando: (Mostrando o dinheiro que pegou no cofre) Olha o que eu arrumei! Fred: Você não é fraco, não. Johnny: Pô! Mandou muito bem! Fred: Com isso aqui dá pra eu te arrumar da boa. Experimenta isso! Prepara uma carreira de cocaína. Johnny mostra como cheira e Fernando experimenta a droga. Fred: É toda sua. Fernando cheira mais, até acabar. CENA 11: Bia suspeita que esteja grávida. Bia: Marina, eu estou desesperada. Marina: Que houve? Bia: Minha menstruação ta atrasada. Marina: Quanto tempo? Bia: Não sei, mas acho que tem quase um mês. 167 Marina: Quer fazer um teste de farmácia? Bia: Tô com medo. Marina: Eu vou pra aí. Vou comprar um teste e levo. CENA 12: Célia descobre o cofre vazio. Fernando mente. Cecilia: Fernando?! Fernando, vem aqui agora. Fernando: Que houve mãe? Cecília: Cadê o dinheiro da sua faculdade? Fernando: Fiz inscrição no vestibular de Itaúna, Brumadinho, na PUC de Betim e de Belo Horizonte. Fiz até na UFMG e na Federal de Lavras, de Uberlândia e de Viçosa. Em uma delas eu passo. Cecília: E gastou o dinheiro todo?! Fernando: É que eu comprei as passagens para Lavras, Uberlândia e Viçosa também. Cecília: E cadê as passagens?! Fernando: Estão com o Bruno. Ele que comprou pra mim Cecília: E porque você não me contou nada? Fernando: Eu queria te fazer uma surpresa. Cecília: (Abraçando Fernando) Oh! Meu filho! Como eu estou feliz! CENA 13: Bia e Marina confirmam a gravidez e vão atrás de Fernando. Bia mostra o papel para Marina. Marina: Positivo, minha amiga, você está grávida. Bia: (Chorando) E agora? O que eu vou fazer? Meu pai vai me matar. Pior: vai me expulsar de casa. Pra onde que eu vou? Eu não sei nem onde o rapaz mora. Só sei que é de Itatiaiuçu. Marina: Itatiaiuçu? Jura? Não é de Belo Horizonte? Bia: O carro era de Belo Horizonte, mas naquela noite ele falou que morava em Itatiaiuçu. Marina: Então nós vamos descobrir. Para de chorar. Enxuga este rosto. Vem, vamos. Bia: Ir pra onde?! Marina: Pra Itatiaiuçu! 168 CENA 14: Cecília encontra Bruno e descobre as mentiras de Fernando. Cecília: Ei, Bruno! Oi, Leandro! Vocês estão sumidos. Não foram mais lá em casa. Leandro: O Fernando que sumiu. Nem joga mais bola com a gente. Cecília: Deve ser o vestibular. Bruno: Uai! Ele fez vestibular? Não foi com a gente pra nenhuma prova. Cecília: Não?! Pois ele me falou que te deu dinheiro pra comprar as passagens pra Uberlândia, Lavras e Viçosa. Quando vai ser a viagem? Bruno: Dinheiro?! Viagem?! Não estou sabendo de nada. Cecília: Não?! Ele não te passou o dinheiro?! Bruno: Não. Cecília: Não pode ser. Leandro: Olha, Dona Cacília, a senhora vai me desculpar, mas está havendo algum engano. O Fernando não anda mais com a gente já faz um tempão. Cecília: Mas vocês sempre foram amigos, desde crianças! Leandro: Eu sei, mas ele está andando com uns caras aí, sei não... Cecília: Que caras? Bruno: A gente acha que eles mexem com drogas. Cecília: Drogas?! O Fernando?! Ai, meu Deus! Eu não posso acreditar! Bruno: Parece que está freqüentando umas festas estranhas... Cecília: Festa estranha... Leandro: É, dona Cecília, mas não fala nada pro Fernando que a gente te contou porque... já viu, né?! Os caras são da barra pesada. Bruno: A senhora está bem? Cecília: Estou. Eu só preciso ir pra casa. CENA 15: Fernando leva uns objetos de casa. Cecília vê a casa mexida e fica perplexa. Música “Olha o que a droga te faz” enquanto aparece Fernando se drogando, trocando a televisão por mais drogas, e o cordão de ouro. 169 Meu coração bate ligeiramente apertado, ligeiramente machucado. Você caiu tão fundo nessa ilusão. Primeira vez você bateu de frente comigo. Antes era só um menino. Agora mudou tudo de vez. Será que você pensa? Pois eu penso em você. Será que é cocaína? Tá tão difícil de saber. Oh, oh... Olha o que a droga te faz. Te deixa sem saber pra onde ir. Oh, oh... Quando a lei te pegar não tem pra onde você fugir Oh, oh... Nada será capaz de apagar esse amor em mim. CENA 16: Bia e Marina chegam à casa de Cecília. Marina: (Batendo palma) Ôh de casa?! Cecília olha pra fora. Marina: Boa tarde. É aqui que mora o Fernando? Cecília: É sim. Bia: A senhora é mãe dele? Cecília: Sou. E vocês?! Bia: A gente precisa falar com ele. Cecília: Ele não está. Querem deixar recado? Bia: Não, obrigada. Marina: Se ele não está a gente conversa com a senhora mesmo. Cecília: Por favor, entrem. As meninas entram. Cecília: Não reparem a bagunça, é que está acontecendo uma coisa horrível... Cecília começa a chorar. Bia: A senhora tá bem? Cecília: O Fernando se envolveu com drogas. Vocês têm notícias dele? Marina: Drogas?! Bia: Eu tô esperando um filho dele. Cecília: Filho?! Você ta grávida? Do meu Fernando? 170 Bia: (acenando com a cabeça) É. Cecília: O Senhor seja louvado! É essa criança que vai salvar o meu filho! Vem. Nós vamos atrás dele. Saem CENA 17: Morte de Fernando na balada. Fernando: (Desesperado) Pô, arruma mais aí, cara. Eu juro que te pago. Fred: Você está devendo muito. Não vai rolar. Fernando: Mais eu preciso. Eu preciso. Porra, Fred! Fred: Que isso, vai estressar agora?! Jack, percebendo o problema, chega perto. Jack: Tá tudo bem aí? Fernando: Tô precisando de uma pedra. Arruma aí. Jack: Sem dinheiro, nada feito. Fernando: Arruma aí, porra! Jack: Otário! Se acha muito macho. Música na Balada enquanto levam Fernando pra morte: Otário, se acha muito macho Sou eu quem te esculacho, Te faço meu escravo Você é um lixo Nem era tudo aquilo Que contava pros amigos Agora, eu destruí seu sonho de jogador Idiota inconfiante Não serva pra mandante Nem mesmo pra traficante E não se esqueça Quem não me paga tudo 171 Não vive de forma livre E logo vira um defunto Antes de eu me esquecer Todos, todos que provaram Roubaram igual você Antes de eu me esquecer Só pra você saber Todos que provaram Acabaram igual você. Atiram em Fernando (efeito sonoro de tiro). Cecília, Bia e Marina chegam à festa e veem Fernando morto. Cecília: Meu filho! O que fizeram com você! Bia põe a mão na barriga. Marina: (Para Bia) Vem. Vamos embora. Música continua: Olha os PM, olha os PM Mataram menor de idade Vão sair como inocente CENA 18: Bia, em casa, conta que está grávida. Carlos: Cadê nossa filha, mulher?! Alice: (Vendo Bia chegar) Taí. Já chegou. Carlos: (Para Bia) Onde é que você estava? Bia: Na casa do Fernando. Carlos: Quem que é esse? Vou matar esse desgraçado. Bia: Ele já ta morto. Carlos: Bão. É menos um. 172 Alice: Calma, Carlos. Olha o estado da menina. Bia: (Explode) Ele é o pai do meu filho. Carlos: (Perplexo) O quê?! Bia: É isso mesmo. Eu estou grávida! Carlos: Tá vendo no que deu você ficar batendo perna na rua? Não dá bom exemplo pra nossa filha. Taí o resultado. Lixo! Eu vou sair pra não sentar a mão em vocês, mas quando eu chegar não quero ver nem rastro de que um dia vocês tiveram nessa casa. Sai. Bia: E agora, mãe, o que nós vamos fazer? Alice: Não sei, minha filha, FIM 173 PEÇA: IGUAL À FAMÍLIA DA GENTE! GRUPO TEATRAL: PEDRA SOBRE PEDRA. PERSONAGENS: Manuela: Adolescente que engravida. Dirce: Mãe de Manuela. Romeu: Pai de Manuela. Betão: Irmão mais velho da Manuela. Bela: Irmã mais velha. Raquel: Irmã do meio. João Pedro: Namorado da Manuela. Pati: Amiga de Manuela. Laura: Fofoqueira, mãe da Pati. Lilica: Fofoqueira, tia da Pati. Kadu: Menino do recado. CENA 1: Em casa, filhas mais novas saindo para fazer trabalho escolar na casa da amiga. Dirce: (Entra varrendo a sala) Oh, meu Deus! Não agüento mais essa vida de dona de casa. Todo dia é a mesma coisa. Romeu entra, pega o controle remoto na estante, senta-se na poltrona e liga a televisão. Dirce: Ah, não. Assim não dá. Eu estava arrumando o quarto, você estava lá, eu vim pra sala e você vem atrás. Eu preciso arrumar a casa. Romeu: Ih! Vai arrumar a cozinha, vai. Não tá vendo que eu estou assistindo televisão. Entram Raquel e Manuela, cada uma pega um livro na estante. Manuela: Pai, mãe, nós estamos indo fazer trabalho na casa da Pati. Dirce: Você está ouvindo, Romeu? Por que não chamam a Pati para fazer o trabalho aqui? Manuela: Que é que tem fazer lá? Nós já combinamos. Dirce: O que você acha, Romeu? Eu não gosto desse negócio de fazer trabalho na casa dos outros. Raquel: Ih, Mãe. O trabalho vale 10 pontos. 174 Romeu: Deixa ir. Elas vão estudar. Dirce: Olha lá Romeu. Manuela e Raquel: Tchau, mãe, tchau pai. CENA 2: Manuela e Raquel encontram com Pati na rua. Raquel: (Espantada) O que você tá fazendo aqui? Manuela: A gente tá indo fazer trabalho lá na sua casa. Pati: Ih! É mesmo. Tinha esquecido. Vim comprar a mais nova coleção de esmaltes para eu arrasar na festa. Vocês vão? Manuela: Se o pai e a mãe deixarem? Raquel: Até parece que eles vão deixar. Pati: Pois eu to agarrada lá! Já comprei uma roupa bem sexy. Manuela: Até parece que sua mãe deixa você usar roupa curta. Pati: Até parece que você não me conhece. Eu vou com uma saia bem longa e lá faço ficar bem curtinha. Riem. Pati: Vamos sentar ali para tomar alguma coisa. Raquel: A gente tem que fazer o trabalho. Pati: Ah! Depois a gente faz. Sentam-se na mesa do bar. CENA 3: João Pedro pede Manuela em namoro. João Pedro: Kadu, chega aí! Kadu: Oi. João Pedro: Chama a Manuela ali pra mim que eu te dou dois reais para você comprar um picolé. Kadu: (Vai até a mesa, cutuca o ombro da Manuela e aponta para João Pedro) Joao Pedro tá te chamando. Pati: Tá de namorico, Manuela?! 175 Manuela: Ih, gente! Nada a ver. É só amizade. Pati: Amizade... Sei. Manuela: Dá licença. Eu vou ali e já volto. Sai em direção ao João Pedro. Manuela: Oi, João Pedro. João Pedro: Manuela, você quer namorar comigo? Manuela: Namorar?! Eu quero, mas não posso. João Pedro: Por que não?! Manuela: Porque eu sou muito nova. João Pedro: O que é que tem?! Eu também sou. Manuela: Eu tenho que estudar. João Pedro: Mas eu também estudo. Manuela: Mas meus pais nunca vão deixar. João Pedro: Eu peço a eles. Manuela: Tá doido? Aí eles não vão deixar nem eu sair de casa. João Pedro: A gente namora escondido. Manuela: É que minha mãe sempre falou para eu estudar, me formar para depois casa. João Pedro: E quem falou em casamento? Por enquanto a gente vai só namorar. (Entregando uma almofada de coração que estava escondida nas costas) Namora comigo? Manuela: (derretida) Tá. Eu namoro. Beijam-se atrás do coração. João Pedro sai e Manuela volta para a mesa do bar. CENA 4: Fofoca e chantagem. Entram Laura e Lilica, vão em direção à mesa das meninas. Laura: (pegando o coração da mão de Manuela) Manuela? Lilica: Tá namorando? Manuela: Ih, não é nada disso. Laura e Lilica: Sei. Pati: Mãe! Tia! O que vocês estão fazendo aqui? Lilica: Viemos te buscar. 176 Pati: Mas nós estamos discutindo um trabalho. Laura: Trabalho? Que trabalho? Raquel: (Mostrando o livro) É trabalho sim. Aqui. Laura e Lilica: Sei Manuela: Vai indo que eu não demoro. Laura: Só mais meia hora, então. Lilica: (Cutucando Manuela) Tá namorando. Laura e Lilica saem. Manuela: (Após afastamento de Laura e Lilica) Pronto. Era só o que me faltava. As duas maiores fofoqueiras daqui. Amanhã todo o mundo vai saber que eu to namorando e meus pais vão me matar. Pati: Calma que com elas eu me entendo, mas só se você me arrumar seu irmão na festa. Manuela: Mas o Betão tá namorando uma menina lá de Medeiros. Pati: Eu não sou ciumenta. Raquel: Você quer ser chifruda? Pati: Já falei que não tenho ciúmes. Manuela: Mas ele está gostando dela. Pati: Se vira. Ou então nada feito. Eu quero o Betão na minha mão. Olha ele ali. Fui. Manuela sai. CENA 5: Manuela e Raquel pedem Betão para as levarem na festa. Manuela e Raquel: Betão, Betão, leva a gente na festa da igreja? Betão: Festa que nada. Vocês querem é caçar homem. Manuela: A Pati vai e você pode ficar com ela se a gente for. Raquel: É. Ela tá super a fim de você. Betão: Então peçam de joelhos. Manuela e Raquel: (De joelhos) Leva a gente, Betão, por favor? Betão: Vai lá pedir pros pais. Se eles deixarem eu levo. Saem em direção à casa. 177 CENA 6: Em casa, autorização pra festa. Manuela e Raquel entram todas ouriçadas. Manuela e Raquel: Pai, mãe, deixa a gente ir à festa da igreja. Dirce: (Vindo da cozinha) Oi, oi. Que alvoroço é esse aí? Manuela: A gente pode ir à festa sábado? Dirce: Que festa é essa que eu não estou sabendo? Raquel: A festa da igreja, mãe. Dirce: Vocês vão rezar? Manuela: Não, mãe. A gente vai pra festa. Dirce: O que você acha, Romeu? Romeu: (Sem desviar a atenção da televisão) Por mim pode. Dirce: Ah! Romeu. Eu acho que não. As meninas são muito novas. Manuela: O Betão leva a gente. Romeu: Pronto. Elas vão com o Betão. Dirce: Ainda mais com o Betão. A Laura mais a Lilica já falaram que ele tá bebendo demais. Até aqui com a gente ele já tá bebendo. Romeu: Ele bebe porque é homem, uai. Dirce: Não sei se é uma boa idéia não. Chega Bela. Bela: (Passando em direção ao quarto) Benção, pai. Benção, mãe. Romeu e Dirce: Deus te abençoe. Romeu: Bela. Bela: Que foi, pai. Romeu: Você leva suas irmãs na festa? Bela: Posso até levar, mas tem uma condição: eu não vou ficar responsável por ninguém. Se quiserem arrumar namorado, se forem beber, eu não tenho nada com isso. Eu sou irmã mais velha, mas tenho só dezessete anos e não quero a obrigação de tomar conta de ninguém. Romeu: Suas irmãs não fazem isso não. (Para Dirce) Tá vendo, a Bela leva. Dirce: Ó, Romeu, então está sob sua responsabilidade. Por mim não iriam. Manuela e Raquel: Obrigada, pai. Saem. 178 CENA 7: Irmãs se arrumando no quarto e saindo pra festa. Bela encontra o coração. Bela: Tá explicado o motivo da festa. Manuela: Isso é de uma amiga minha que pediu para eu guardar pra ela. Bela: Pra cima de mim? Raquel: Não é dela mesmo não. Bela: Conta outra. Eu não vou tomar conta de vocês mesmo. Manuela: Vamos rápido se não o Betão não espera. Saem do quarto. Manuela e Raquel: Tchau, mãe. Tchau, pai. Bela: Benção, mãe. Benção, pai. Romeu e Dirce: Deus te abençoe. Manuela: Vamos, Betão. Dirce: Betão, não bebe. Por favor. Betão: Vou beber só água. Que passarinho não bebe. Cuida das suas irmãs. Betão: Ih, mãe. Eu bebo o quanto quiser. Não me enche. Saem. CENA 8: Fofoca na festa. Chegam Laura, Lilica e Pati. Lilica: Olha o tamanho da saia daquela menina? Isso é jeito de vir pra festa. Laura: E aquela outra ali. A blusa mais parece um sutiã. Que horror. Pati: Mãe! Tia! Não acredito que vocês já estão falando mal dos outros. Lilica: Estamos falando mal não. É só a verdade. Laura: É. Olha lá que pouca vergonha. Pati: Parem de tomar conta da vida dos outros. Laura: Estamos tomando conta não. Apenas comentando. Lilica: Falar não faz mal a ninguém. Pelo menos a mim nunca me fez. 179 Pati: Não tem jeito com vocês mesmo. Assim eu não agüento nem ficar perto. Eu vou procurar minha turma. Fui. Laura e Lilica: Vai mesmo que nós vamos rezar muito pra vocês. Pati sai inconformada em direção aos seus amigos. Laura e Lilica se ajoelham em frente à Igreja em posição de oração. CENA 9: Amigos na festa. Pati: Ei, amigas. (Insinuando-se para Betão) Oi, Betão. Betão (correspondendo) Oi, Pati. Raquel: Nossa, a festa tá demais. Manuela: Ah! Tá mais ou menos. Acho que vou ler um pouco. Bela: Nunca vi trazer livro pra festa. Que coisa mais jeca. Chega João Pedro tampando os olhos de Manuela. Manuela: Oi, João Pedro. Bela: Tá explicado aquele coração. Manuela: De repente me deu uma vontade de ir ao banheiro. Você vai comigo? João Pedro concorda. Manuela: Já volto. Saem. CENA 10: Atrás da Igreja e volta da festa. Manuela e João Pedro vão para trás da Igreja. As fofoqueiras espiam e fazem expressão de escandalizadas. O casal sai de lá arrumando a roupa, cabelos e batom. Reencontram os amigos. Bela: Nossa, que banheiro mais demorado. Raquel: Por que você tá toda desarrumada? Manuela: Vamos embora, gente. O Betão não tem mais condições de continuar na festa. Todos ajudam a carregar o Betão que está extremamente embriagado e vão para a casa. Lá chegando trombam nos móveis fazendo barulho. O pai levanta. Romeu: O que tá acontecendo? Vocês estão chegando agora? 180 Manuela: Pão. Raquel: Não. Manuela: Nós fomos comprar pão. Quem pegou o pão. Curinga: (Como narrador) Dois meses depois Manuela, novamente, sai para “comprar pão”. CENA 11: Revelando a gravidez para Pati. Manuela, se arrumando no quarto, olhando no espelho. Manuela: Ai, nenhuma roupa mais está cabendo em mim. Bela: É... Você tá engordando e enjoando. Manuela: Enjoada é você. Sai do quarto Manuela: Mãe, to indo comprar pão Dirce: Tem dinheiro na estante. Manuela: Eu to com dinheiro. Sai e encontra-se com Pati. Pati: E ai? Manuela abaixa a cabeça. Pati: Não acredito... Manuela confirma com a cabeça. Pati: Manuela?! Você ta grávida?! Manuela: To. Pati: O João Pedro já sabe? Manuela: Não. Pati: Ótimo, porque ele ta ali no bar e você vai falar pra ele agora. Vamos. Vão em direção a mesa do João Pedro. CENA 12: Revelando a gravidez para João Pedro. Pati: Oi, João Pedro. Manuela senta-se em silencio. João Pedro percebe algo diferente. 181 João Pedro: Aconteceu alguma coisa? Manuela: O dia ta frio, né?! João Pedro: Eu to com calor. Pati: Não enrola, Manuela. João Pedro: O que você ta me escondendo? Manuela: Não é nada não. Pati: Manuela, Manuela. Conta logo. João Pedro: Contar o quê? Pati: Fala, Manuela. Manuela: Eu to grávida. João Pedro assusta-se. João Pedro: E você tem certeza que o filho é meu? Pati: Você ta achando que minha amiga é piriguete, que fica com qualquer um? João Pedro: Ela anda com você. Pati: Ela só ficou com você. João Pedro: Mas foi só uma vez. Pati: Basta uma vez. Manuela: Da para parar de brigar, vocês dois, que o assunto aqui sou eu. Pati: O que você vai fazer? João Pedro: Vou sumir. Manuela e Pati: O quê?! João Pedro: Eu disse que vou assumir. Manuela e Pati: (Aliviadas) Ah!... Pati: Já sei. Domingo você vai lá na casa dela fazer o pedido do casamento. João Pedro: É claro que eu vou. Pati: Combinado, então. Manuela: Ate domingo. João Pedro: Você não vai me dar nem um beijinho? Manuela: Não. Manuela e Pati saem em direção à casa de Manuela. No caminho elas iniciam uma parlenda. Pati e Manuela: “Hoje é domingo, pé de cachimbo, o cachimbo é de ouro...” 182 Manuela: (Alto, para si própria) Coragem, Manuela. Pati: Você tem que contar. CENA 13: Contando sobre o namoro para os pais. Manuela: Mãe, pai, o meu namorado pode vir aqui em casa me pedir em namoro. Dirce: Namorado? Romeu, você está ouvindo isso? Romeu: To, to ouvindo. Dirce: Eu acho que não deve. Você ainda é muito nova. Romeu: Pelo menos tá vindo pedir. É melhor que namorar escondido. Bela: Ah! Não é justo. Eu já vou fazer 18 anos e vocês ainda não me deixaram namorar. Manuela: Eu não tenho culpa se você é encalhada. Raquel: Não atrapalha. Dirce: Mas e os estudos, Romeu? Manuela: Mãe, eu vou continuar estudando. Dirce: O que você acha, Romeu? Romeu: Por mim pode deixar vir. CENA 14: Pedido de casamento e saída de casa. Betão chega com João Pedro. Betão: Manuela, olha quem ta ai. Manuela: Mãe, pai, esse é o João Pedro. João Pedro: (Pegando na mão dos futuros sogros) Muito prazer. Raquel e Pati: Oi, João Pedro. João Pedro acena. João Pedro: Eu vim pedir a mão da Manuela em casamento. Todos se assustam. Dirce: Casamento?! Mas não era namorar? Manuela: Tem mais uma coisa. Dirce: O quer, Manuela? 183 Manuela: Eu to grávida. Dirce: O quê? Grávida? Romeu quase desmaia na poltrona. Dirce: E seus estudos, Manuela? E sua vida? Eu falei, Romeu. Não podia ter deixado essa menina sair. Isso que dá ficar andando com a filha da Lilica. Pati: Como assim? Eu não to de barriguinha não. Estou toda inteira e gostosona. Dirce: vai arrumar suas coisas que você vai morar com a sua sogra. Eu não vou olhar filho dos outros e nem quero criança chorando no meu ouvido. Romeu: É. Nessa casa você não fica mais. Todos se calam. Bela se antecipa, vai para o quarto e pega a mochila da Manuela. Manuela segue para o quarto de cabeça baixa. João Pedro espera na sala. Bela entrega a mochila pra Manuela. Bela: Isso que dá ficar indo pra trás da igreja. Manuela pega a mochila e sai. Despede dos irmãos e da amiga na sala. Os pais se recusam a abraçá-la. Sai abraçada com João Pedro que carrega a mochila pra ela. Curinga: (Como narrador) Nove meses depois. CENA 15: Na casa nova da Manuela. Bebe chorando. Manuela veste o roupão resmungando. Manuela: Calma, calma. Mamãe já vai te pegar. Não chora. (Pegando o bebe no berço) Pronto, pronto. Batem na porta. Manuela: Poder entrar. Pati: Oi, amiga! Vamos pra festa? Manuela: De que jeito? O que eu faço com isso? Pati: Deixa com sua mãe ou com a sua sogra. Manuela: Minha mãe me odeia, esqueceu? Minha sogra me detesta. Tem jeito não. Sobrou foi pra mim mesmo. Pati: O seu marido vai. Manuela: O João Pedro?! Ah! Coitado. Mas não vai mesmo. Pati: Pois eu vou me acabar. (Mexendo com o bebe) Tchau, coisa linda. Fui. 184 Entra João Pedro. João Pedro: Oi, To indo pra festa. Manuela: Ah! Mas não vai mesmo. João Pedro: Claro que vou. Por que não? Tem um tempão que eu não vejo meus amigos. Manuela: Eu também. João Pedro: E aquela que saiu daqui agora? Manuela: Eu não tenho só ela de amiga. João Pedro: Mas pelo menos viu. Manuela: E essa criança, eu fiz sozinha, por acaso? João Pedro: Claro que não. Nem tinha como. Manuela: Você vai ficar para me ajudar a tomar conta dela. João Pedro: Meu amor, ela precisa é de você agora. Manuela: Precisa do pai também. João Pedro: Eu vou poder dá peito pra ela? Manuela. Claro que não. João Pedro: Então. Manuela: Mas você não vai. João Pedro: Vou sim. Manuela: Não vai. João Pedro: Fui. FIM 185 186 187 188