Francisco Elias
EU
TU
ELES
Em Memória de Pedro Elias e Josina
N
a poeira do tempo, este livro descreve o status de vida
de uma família de quatorze filhos, relatando a
inteligência evolutiva do grupo familiar, desde o seu
princípio. Procurando demonstrar que a evolução sempre
premia os esforços. E também, para desmentir a convicção até
então generalizada de que, vivendo em dificuldades, as
gerações descendentes devam ser obrigatoriamente,
vitimadas pela fórmula infame da decadência, como se vê nos
tempos desta redação, nas favelas das grandes cidades. Tidas
como criadouro de parias da sociedade. Tomara que no futuro
distante, em que você lê este livro, a sociedade civil
organizada tenha eliminado o jugo da miséria entre os seres
humanos.A julgar pelas enormes diferenças existenciais, tanto
do ponto de vista cultural dos nossos descendentes, como da
evolução das possibilidades econômicas de vários deles e de
suas famílias, é de se prever que no futuro, e quanto mais longe
mais provável, viver em equilíbrio venha ser um exercício de
muito valor para a raça humana, em exemplos de vida que
devam ser copiados e repetidos incessantemente por todas as
células das famílias, seja qual for o seu modelo de então.
Que Deus abençoe a todos os que lerão este livro
de memórias. Que possam nortear suas vidas
pela busca do bem comum.
Que em seus corações haja sempre espaço,
para repartir entre si seus valores mais evolutivos.
Como sua herança abençoada para continuar
Francisco nasceu em 06
de abril de 1941.
Domingo de Ramos. Ao
chegar a vida adulta
acreditava ser um bom
sinal, a sua data de
nascimento. Seria por
natureza uma pessoa do
bem. Com suas leituras
no mais diverso
compêndio de
conhecimentos que os
livros lhe podiam
oferecer, orientou sua
formação intelectual
acreditando na boa
orientação dos filhos, no
trabalho e no empenho
pelo sucesso
profissional, muito
embora fosse
desapegado ao dinheiro.
Após os 50 anos, depois
de muito ler sobre
psicologia e toda sorte
de romances, de
clássicos como “Dom
Casmurro” - Machado
de Assis aos poemas de
Augusto dos Anjos, e
obras psicografadas por
Chico Xavier, o espírita
de Congonhas do
Campo e Uberaba, sua
terapia literária passou a
ser a Neurolingüística.
Uma ciência da
modernidade de então,
que lida com o
comportamento
psicológico, chegando,
em algumas ocasiões, a
ministrar treinamento a
profissionais de venda.
Sua trajetória foi
incansável na busca do
conhecimento.
Adotou com certo rigor
até religioso, a máxima
deixada por Sócrates
como legado para a
humanidade; “A única
coisa que sei, é que
nada sei”.
Se houvesse cursado
uma escola superior,
Filosofia ou Letras,
certamente teria sido um
escritor. Este livro foi
sua única experiência
como escriba. Idéia que
acalentava desde muito
tempo.
Por isso pede desculpas
pelas falhas cometidas.
E certamente foram
muitas. Mas o que
escreveu, o fez com o
coração, visando apenas
deixar esse histórico
para as gerações
vindouras de seus
descendentes
ÍNDICE
03 - Olhei para trás...
05 - 1940 - O ano da graça
08 - O ambiente rural
11 - A chegada do primogênito
15 - Jibóia tenta engulir o bebê
17 - Uma luz sobrenatural
21 - Fojos de preás
23 - Fisgada de Cascavel na lata
26 - Tem passarinhos no arrozal
27 - Inspiração para produzir telhas
36 - Uma Jararaca na Caieira
38 - As emoções de um Chevrolet
40 - Uma Seriema no cardápio.
42 - Palmatória na Cartilha do ABC
45 - A raposa e os melões
48 - Uma tragédia de domingo
50 - A pegadinha do circo
52 - Uma gaita para um artista
55 - Acidente de foice
58 - Mudança de vida no caminho
64 - O orifício do Tatú
65 - Aprendendo a tirar enxú
70 - Casca de ovo para os ossos
72 - Pedrinho bota fogo no pasto
73 - Mudança para o Pai Bastião
74 - A lição das moedas
77 - O vovô Bobôco em famíli
78 - Comércio de fumo
85 - Leite queimado é remédio
86 - Mudança para a cidade
87 - Admoestação à base cacete
88 - A revelação do rádio
88 - A experiência da morte
89 - A diversão do circo
92 - O comércio de fumo prospera
93 - Francisco descobre o cinema
95 - Morre o vovô Chico Elias
96 - Choque elétrico
98 - A diarréia do primo Jaci
100 - D. Iracema e a prova de
redação
102 - A primeira namorada
106 - Uma triste decepção
108 - Casa nova para a família
109 - O primeiro rádio de mesa
109 - O primeiro carnaval
111 - Hormônios da puberdade
112 - O locutor do S.P.V.S.
113 - Sexo aos 15 anos
118 - O violão e as serestas
121 - O vovô Bobôco adoece
Francisco vai para a Marinha
129-Um cantor de rádio
131-Primeiro convite para o rádio
133-Nasce um sanfoneiro
135-Tio Elias morre na ponte Seridó
138-Vovô Bobôco em fase terminal
141-Nasce o Conjunto s
Cataguases
143-Show com Bienvenido Granda
145-Técnico em telefone
146-Experiência com para-normal
149-Tocando para JK dançar
151-Francisco é expulso de casa
152-O começo na Rádio Rural
154-Uma certa Vitória na sua vida
155-Uma luz chamada Padre Itan
162-Madre Superiora e a serenata
166-Nely Padilha no seu caminho
185-Sai Nely, entra Luzinete
192-Sofrimento de Nely e sua mãe
195-Visita a família de Nely no Rio
206-Ameças de um pistoleiro
209-A conquista do rádio em Natal
210-Sandra é o nome dela
212-Aprendizado literário continua
218-Casamento com Sandra
222-A primeira agência publicitária
225-Deus fala através de uma
lavadeira
227-Convite para Recife
232-A grande chance na televisão
234-Descobrindo a missão espírita
235-Os bastidores da televisão
242-Pre-coma alcoólico
251-Experiência fora do corpo
253-A experiência de Carmem Tovar
259-O aborto de Divalda
262-A vinda de Ramatís
264-Gêmeos: uma experiência
estra-sensorial
268-Descobertas com a ufologia
269-Natal inesquecível em
Campinas
270-Surge uma rosa em seu
caminho
277-A visita de Pedro Elias em Recife
287-Grande trauma com o irmão
Jasiel
296-Revelações para Jasiel no
Centro Espírita
303-Emoções de um amigo de
infância
304-O almoço de Dona Iracima
315-Experiência vivida na AMORC
319-Rose também sofre aborto
321-Experiência para-normal no Lar
de Ita
324-Revelações de encarnação em
1694
333-Sandra e Rose: em outras vida
334-Avistamento de nave
extraterrestre
337-Ramatís leva Sandra ao entro
Espírita
Centro Espírita
346-Vitória é vitoriosa no Acre.
349-Curso de pilotagem aeronáutica
361-Construindo um avião KRII
369-Discursando para o Presidente
Nakamura
371-Seu destino aponta para Maceió
376-Rose também vai para Maceió
383-Primeira tentativa de separação
385-Uma lavadeira revela a
existência de Rose
391-O mercado publicitário de
Maceió
395-Experiência para-normal em São
Paulo
402-De Trigueirinho a Shirley MacLane
e Andrija Puharich
407-Pouso de emergência em Sta.
Luzia
415-Judeus em terras do Seridó
420-As Bodas de Ouro de Pedro e
Josina
422-Pedro Elias e sua viagem de
avião
427-Jesus Cristo perdeu o controle
do mundo!
428-PedroElias e Fidel Castro
429-Casamentos em Maceió
431-Fenômeno da premonição
432-Outro sonho para-normal
436-Experiência com a
Neurolinguística
437-Revelações de Shirley MacLane
438-Declínio na publicidade
441-Experiência Chico Xavier
445-Uma voz ao telefone
458-Retornando a Recife
461-A separação definitiva
466-Elieuza: Sua nova parceira em
Recife
470-Mais uma premonição: uma
menina
472-Retorno definitivo para Natal
474-A charada do empresário
judeu
477-A zanga dePedro Elias com
Vilma de Farias
478-Pedro Elias deixa esta vida
Francisco Araújo da Costa
Aos meus filhos:
Elissandra, Eliana e Ramatís
Aos meus netos:
Arthur, Gabriel, Elissa, Victor e Rodrigo.
E aos meus irmãos:
Malvina, Lurdes, Pedro, Josafá, Jasiel (In Memorium),
Marina, José, Marluce, Mônica, Marlene, Johnny e
Francksvictor.
Eles foram a inspiração com a qual este livro foi possível
se materializar.
Edição Revizada
Jan/2007
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
lhei para trás... e vi meus avós, vi meus pais... e imaginei
outros predecessores que não conhecí, de nossa imensa
árvore genealógica. Guardando referência apenas, com os
ecos de memória obtidos no Museu do Homem do Nordeste, em
Recife, que descreve a origem das famílias Araújo, Costa, Elias e
Batista, trazidas de além mar em náus portuguesas, na maioria dos
casos, em jovens militares da Coroa, vindos para desbravar os
nossos sertões. E das histórias de meu avô materno, Francisco
Batista, o Chico Bobôco, informando que sua bisavó, uma cabocla
braba, havia sido capturada à casco de cavalo, pelos tais militares das
milícias portuguesas nas terras do Seridó. E vi em cada um de nossos
antepassados até esta geração, histórias de vida e de sacrifícios. Mas
acima de tudo, vi neles, a coragem de fazer sua própria história.
Deixando marcas. Que são como sinais pelo caminho. O longo
caminho dos que seguem destemidos, preenchendo páginas de
exemplos fecundos, amparados pelo carisma da fé.
E como o tempo seria generoso! Se nos permitisse saber os detalhes
mais expressivos da vida de cada um deles, materialidos em suor,
lágrimas e sorrisos. Pois assim é a vida. Preenchida nesses três
elementos humanos. Suor, lágrimas e sorrisos! O suor da labuta para
nos fortalecer a têmpera. As lágrimas para nos ensinar, (pois só
aprendemos com a dor), enquanto com o sorriso, apenas nos
divertimos.
Então olho para o futuro... E vejo, na distância dos tempos mortos,
uma coluna infindável de bravos caminhantes. Uma perfeita
progressão geométrica molecular, reproduzida incessantemente
entre homens e mulheres, que eternizam em seus cromossomos, a
chama de vida que alimenta sonhos e esperanças. Pois é pelos
sonhos que o mundo não perde as esperanças.
Alguns diríam que se trata de uma auto-biografia.
2
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Mas, por um exercício literário menos enfadonho, imaginemos
personagens! Todos reais! Eles nos ajudarão nessa tarefa. Teremos
então, algo parecido com um romance.
Sem pretensão de ofender os verdadeiros escritores. DIVÍRTA-SE!
Estas páginas foram escritas para você. No presente e no futuro.
Mas o autor tem um apelo a fazer. É parte do propósito deste livro:
leia e passe-o adiante, a um outro descendente ou companheiro de
sua jornada de vida.
Com carinho:
Aos que já se foram e aos que ainda virão. Para que nossos
descendentes, possam olhar o passado com a dignidade de quem se
movimenta, como espermatozóides, cada um recebendo o bastão
Para continuar a caminhada, como se fosse-mos todos participantes
de uma imensa maratona. A grande maratona da vida. Em que cada
um deve dar o melhor de sí.
Francisco Araújo da Costa
O Chico Elias
3
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
M
il novecentos e quarenta. O ano da graça em que o padre
abençoa o casamento de Pedro Elias da Costa e Josina
Júlia de Araújo. Ele, filho de Francisco Elias da Costa e
Regina e ela, filha de Francisco Batista de Araújo (o Bobôco como
era conhecido) e Josefa. Ambas famílias originárias das raízes
portuguesas nas terras do Seridó. As milícias a serviço da Coroa de
Portugal ha tempos haviam se embrenhado nos sertões do Seridó
também a procura de ouro e outras riquezas para engordar o baú dos
poderosos Reis de Portugal. Era do interesse lusitano que as terras
do Brasil fossem devidamente ocupadas por sangue português, com
sobrenome registrado, inclusive. Inicialmente em livros da Comarca
e da igreja na hora do batismo, posteriormente, em cartório. O que
favorecia o reconhecimento do domínio português sobre o país.
Então, qualquer filho que nascia do contato desses militares com as
mulheres nativas da região, algumas autênticas caboclas brabas
capturadas a casco de cavalo, as crianças eram registradas levando o
sobrenome de seu pai português.
Centenas de anos mais tarde, seria fundado em Recife o Museu do
Homem do Nordeste, com um largo estudo sobre o tema. O garoto
Francisco ainda vai passar pela história viva conhecendo esses fatos,
em visita que fará no futuro ao Museu, tendo acesso a esses e a outros
dados interessantes.
Mas por enquanto, ele é apenas um projeto na mente dos nubentes
Pedro Elias e Josina. Seria o primeiro, de uma fila bem grande.
Casar e ter filhos. Muitos, se possível. Era de praxe nesse tempo.
Independentemente do grau de dificuldades financeiras. O Brasil
precisava ser povoado. Suas dimensões imensas refletem essa
necessidade.
4
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
cultura vigente estimula na sociedade esse instrumento de
brasilidade. Ter muitos filhos. Ha famílias com mais de
trinta. Às vezes, de mulheres diferentes. Uma notoriedade!
Para o sujeito que exibia uma fileira de muitos filhos. Mas na
verdade, uma insensatez governamental, em estimular essa cultura,
já que o próprio Governo pouco ou nada contribuía para minorar o
sofrimento de tanta gente.
As famílias pobres ficam à mercê da própria sorte. Se a família se
estabelece em algum lugar no campo, onde ha um patrão dono do
sítio ou fazenda com um coração humanitário, o sofrimento é
minorado.
Caso contrário, é uma espécie de escravidão branca. Todos vítimas
das circunstâncias. Pedro Elias e Josina acabam de se casar. Mais
uma família a entrar nessa roda do destino. Destino cruel. Onde ha
mais sofrimento e dores do que alegrias. Mas é na própria pele que
aprendemos as mais significativas lições de vida. É da própria
natureza humana. Só aprendemos algo com a dor. A emoção do
sorriso é fútil. Logo desaparece. A sensação da dor fica. Como um
aviso em nossas mentes.Assim é a vida.
Pedro Elias e Josina vão experimentar muitas dores. E suas imagens
ficarão como um troféu para orgulho de seus descendentes. Dois
vencedores. Exemplos em carne. A sua lembrança é também uma
homenagem a todas as famílias pobres, que como eles, construíram
suas vidas pisando o cascalho do sofrimento e das vicissitudes. Eles
irão em frente apesar de tudo. Porque sempre acreditaram que é sua
missão, contribuir para construir um Brasil de luta e de vitórias.
Alimentam um modelo simplório. Mas muito real. Ainda nos
tempos atuais em que você lê este livro. - Não se devem criar filhos
como batata solta na areia do rio! - Ensinavam eles. Mas os tempos
5
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
mudam. E corrompem todos os princípios de honradez
estabelecidos. O que era verdade deixa de ser. A mentira muito
repetida vira verdade. São máculas. Que a sociedade moderna
processa, alimenta-se delas e depois cospe fora. Como se não lhe
pertencesse. O escárnio dos escarros da podridão dos costumes
corrompidos ao longo dos tempos. Transformando todos em vítimas
do medonho poder de poucos sobre a ignorância de muitos. Que a
infelicitada política desses tempos mantém, com mão de ferro, para
seu próprio interesse.
A ciência se esforça. Mas seus melhores resultados nunca chega
para todos. Os ímpios do poder não permitem.
A massa ignara deve permanecer na escuridão para que alguns
poucos brilhem em suas falácias. Eu me envergonho das obras
humanas do meu tempo.
Por isso, diante de quadros tão revoltosos, rendo homenagens a
Pedro Elias e Josina. E agradeço a Deus haver nascido deles para
poder contar essa história. De honradez e trabalho. De inteligência
cognitiva e de fé na providência divina. De força de vontade e de
compromisso familiar. Para a continuidade de sua perpetuidade
cromossômica.
Já ha alguém a caminho. Vire a página que Francisco já está
chegando!
Pedro Elias havia se entendido com o agricultor Ezequiel Elpídio,
informando que iria se casar e que precisava de uma casa para morar.
Se o Ezequiel estivesse interessado em receber mais um morador no
seu sítio, era ali que ele gostaria de começar sua vida.
Os proprietários dos sítios e fazendas têm todo interesse em acolher
novas famílias, desde que tenham uma boa procedência. E Pedro
Elias, filho do velho Chico Elias, é uma ótima referência.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Conhecidos em boa reputação pelo trabalho. Os patrões têm horror
de gente preguiçosa. Não à toa. Todos os moradores e suas famílias
recebem uma casa para morar e terras delimitadas para o plantio.
Mas a colheita de tudo que plantam é pelo regime meio-a-meio com
o patrão. É o regime de meeiros como se diz. Uma divisão cruel. Se
ha inverno e o plantio dá uma boa colheita, dividem ao meio. Se o
inverno fracassa e não colhem nada, até o custo das sementes fica
como débito para abater no ano seguinte. É um regime barra pesada.
Mas é o costume. Pelo menos em terras do Seridó.
O algodão é o principal produto da agricultura. Ezequiel tem coração
mais humanitário e as coisas se ajeitam melhor. Em outros sítios pela
redondeza, o pobre trabalhador rural sofre muito. Mas não ha como
mudar isso. Pelo menos da noite para o dia. A sua vida é um eterno
sacrifício. O que se pode fazer?
Por isso todo cuidado é pouco ao escolher onde se vai morar. Desde
os pais dos pais de Pedro Elias, até onde ele sabia, vinha sendo assim.
O êxodo para os grandes centros no Sul, como São Paulo, está
apenas começando. Muito poucos se encorajam para essa jornada.
Fala-se que as terras do Sul são maravilhosas. Não ha seca. Mas o
desconhecido sempre assombra. E a maioria ainda prefere pagar o
preço do trabalho insalubre e pouco rentável para tentar a vida ali
mesmo. Sempre a espera que Deus dê bom tempo. Coragem para
trabalhar é o maior qualificativo de Pedro Elias. No que dependesse
de seus braços e pernas, sua família não passaria necessidade.
Estão morando no sítio Riacho do Meio. Uma casa humilíssima.
Apenas uma sala com piso e paredes de tijolos. Um estreito corredor
em chão de terra batida. O quarto do casal em taipa (varas de madeira
entrelaçadas e revestidas com barro).
7
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Um outro aposento menor também de taipa, que serve como
despensa onde ha um pequeno paiol de alvenaria no meio dele, para
guardar grãos enterrados em areia trazida do riacho. É uma forma
rudimentar, de origem indígena, para conservar os grãos ao ataque
dos gorgulhos e outros micro-organismos que ao longo do tempo
perfuram os grãos. Basicamente de feijão e de milho. Tudo
misturado.
Na hora de por na panela para cozinhar, muitas vezes as mulheres só
lavam bem as sementes e cozinham tudo junto. Mas todos sabemos
do enorme potencial energético do feijão e do milho na alimentação
humana.
A cozinha, contém um fogão de alvenaria com o respectivo forno
para assados e bolos, e o girau dos mantimentos. É uma peça feita de
varas de madeira com tiras bem amarradas e penduradas nos caibros
do teto por quatro pedaços de corda. As cordas contêm rodelas de
cabaço colocadas a certa altura, para evitar que os ratos vindos do
teto cheguem até o girau. Nesse girau são colocadas as carnes
salgadas, sempre cobertas com um pano, rapaduras, usadas no arroz
doce, na torrefação do café, nos bolos, nos ponches... Nesse tempo
não se conhece ainda as geladeiras. Portanto, o termo refrescos ainda
não é conhecido. No girau ainda se colocam vasilhames com
manteiga, leite para coalhar, nata de leite, queijos, doces e tudo mais
que precisa ficar fora do alcance dos gatos e qualquer outro animal
da casa . Precisa ficar a uns dois metros do piso. Na verdade o tal
girau, se assim se pode dizer, é também parte da mobília. Igualmente
simplória. Duas redes. Uma cama de engradado (Varas de madeira
entrelaçadas, com pés fincados no chão e um colchão de chita,
recheado de capim bem fino e macio).
Uma mesa de madeira, bem rústica. Quatro tamboretes (pequenos
bancos de madeira sem encosto com o assento em couro). Um
8
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
balaio. Uma arupemba, de palha trançada para peneirar os grãos que
vão para a panela e coar o milho da pamonha.
Um pilão e um caco (tigela) de barro para torrar café. Dois potes. Um
com água de beber. Bem fria. Colocado num dos cantos da sala
coberto com um pano bem limpo e um prato de ágata com copos de
alumínio em cima. E outro pote na cozinha com a água para
cozinhar. Um galão com duas latas de querosene para conduzir água
do açude ou da cacimba para casa.
Um pequeno baú de madeira onde Josina coloca as roupas limpas e
engomadas. Um ferro de engomar, feito de ferro fundido, aquecido
com brasas, desses bem antigos, com um furo na parte traseira para
soprar as brasas, com muito cuidado para não queimar a roupa do
casal. Sapatos ainda não tinham. Sandálias bem fortes. Com solado
de pneu de caminhão.
A sandália de Josina é bem mais delicada. Com solado de couro. Ha
também os chinelos de couro bem simples, Também muito comuns.
imitando as atuais sandálias havaianas, que nesse tempo ainda não
saíram do Havaí.
No mais, é um burro de carga com sua cangalha, um par de urus,
feitos de couro cru, para transportar desde crianças a tudo que se
quiser. Feijão, milho, batata doce, frutas, produtos comprados na
feira da cidade, e tudo que vem das plantações passa pelo lombo do
burro nesses urus. Algumas vezes usam-se uns caixotes de madeira
com alças de corda presos à cangalha. Outras vezes usam-se um
equipamento de carga chamado “cambito”. Muito simples. Quatro
peças de madeira em V, duas de cada lado, presas à cangalha do
animal. Muito apropriado para transportar cargas de capim, até o
curral, pegado com a casa. Ali ha uma vaquinha de leite. Presente do
seu Ezequiel assim que soube que seria o padrinho do primeiro filho
do casal.
9
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
U
ma inovação, que ainda não ha na casa primária de Pedro e
Josina, é um par de barris, feito de madeira, muito útil para
transportar água no lombo do animal. Só bem mais tarde
esse apetrecho vai fazer parte dos utensílios da casa. Algumas
ferramentas, machado, foice, uma boa enxada, uma espingarda de
socar. Um banco de madeira para sentar embaixo da latada, em frente
a casa. O gato Mourisco e um cachorro vira-lata. Isso é tudo.
Os dias passam rápido. O inverno foi promissor e ha muito trabalho
nos roçados. A plantação cresce bonita. Após o jantar os dois
conversam. A gravidez de Josina, esperando o primeiro filho já está
bem acentuada. Pedro sugere:
- Ô Josina! Vamos tomar o Ezequiel e dona Gizélia como padrinhos
dessa criança? O que você acha?
Ela concorda. É um costume da época. Oferecer um filho como
afilhado ao patrão podia garantir pelo menos o interesse dele em
ajudar a criar a criança.
Os futuros padrinhos ao saberem da escolha ficam muito honrados. Logo o primeiro filho! Com muito gosto! - Afirma Ezequiel. A dona
Gizélia logo oferece peças do enxoval do bebê e todos se divertem
com a breve chegada da criança, que certamente vai dar alegria para
todos.
Chega o fim de semana com uma grande novidade já esperada. Após
o jantar estão todos na sala. Conversa vai, conversa vem...
- De amanhã não passa! - Diz a comadre Regina.
- O quê, mamãe? - Pergunta Pedro. A sogra de Josina, está lá para
cuidar dela no seu primeiro resguardo.
- Eu tô falando aqui pra Josina! Acho que essa criança vai nascer
esse fim de semana!
10
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Será? - Pergunta ele. O primeiro filho é sempre uma expectativa
especial. Não só para os pais. Mas para todos os que estão mais
próximos. E a sogra Regina tem bastante experiência. Já teve vários
filhos. Cinco ou Seis.
Noite de sábado para domingo. É um dia especial para qualquer
criança vir ao mundo. É Domingo de Ramos. Logo nas primeiras
horas da madrugada Josina inicia o trabalho de parto.
- Pedro! Corre e vai buscar a parteira! Josina vai ter nenêm. Vá e
volte depressa! - Recomenda dona Regina. Pedro Elias cela o
jumento e sai a galope à procurar da parteira. Só pensa no tempo que
vai demorar. Dá uns dez quilômetros. E na volta ainda tem que trazer
a parteira na garupa do jumento. Espera Francisco!
Espera que a parteira já está vindo!As contrações uterinas estão cada
vez mais próximas. Ha qualquer momento a criança vai nascer.
Graças a Deus a parteira chega a tempo. Dona Regina já mantinha
água vervendo no fogão. Daí ha minutos ouve-se o choro do bebê! O
primogênito da família. Quatro horas da manhã. Uma bela hora pra
nascer. Quase junto com o nascer do sol.
Ao som do cantar do galo chega Francisco em 6 de abril de 1941.
- Que beleza, Josina! É um menino! - Informa a parteira.
Daí por diante, a qualquer hora chegam familiares para beber o mijo
do menino. Um costume sertanejo. Tomar o licor, feito de milho. O
aluá. Que já havia sido providenciado com antecedência.
Como toda mãe de primeira viagem, Josina experimentou suas
provações maternais. Mas está feliz. Seu primeiro filho já está no
colo. E é homem. Isso é uma bênção! Dizem alguns.
- E o nome?
- Vai se chamar Francisco! - Esclarece logo o pai.
11
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- O avô materno é Francisco! O avô paterno é Francisco! Então vai
se chamar Francisco também!
Assim Pedro Elias e Josina homenageiam os dois avôs. E ninguém
tem nada a reclamar.
Parto de parteira interiorana. Que sabia o ofício por pura
experiência. Ha muitas delas nesse tempo. Médico obstetra era coisa
de cidade grande.
Dias depois foi o batizado. Na igreja de Santana, em Caicó. O
compadre Ezequiel e a comadre Gizélia agora fazem parte da
família. São os padrinhos de Francisco. Uma criança saudável. Vai
crescer num ambiente paupérrimo, como tantas outras. O Leônidas,
por exemplo. Filho de seu Aparício e dona Tereza, também
moradores do sítio Riacho do Meio. Leônidas será mais tarde o
amigo de infância de Francisco, convivendo ali no mesmo ambiente
do sítio.
Ambos quase da mesma idade. E dezenas de anos depois, motivo de
forte emoção. O tempo se encarregará de mostrar, que nos tornamos
o que somos, nem sempre por nossa livre escolha. Quando um dia,
anos depois, Pedro Elias conduz sua família para a cidade, deixando
definitivamente o jugo da escravidão branca do trabalho braçal e
doloroso no campo, levará consigo a imensa vontade de fazer
história para sua família.
Talvez motivado por alguma ajuda espiritual. Quem sabe, de seu
anjo de guarda. Para tomar decisões que resultariam em profundas e
crescentes transformações em torno de sua prole.
Como veremos mais tarde no exemplo de Leônidas, somos sem
dúvida, resultado do meio em que vivemos. Da forma como
12
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
aceitamos ou não o chamado para alcançar o desconhecido. Como
ouvimos ou não a nossa própria intuição, que parece vir até nós
como veículo de comunicação subliminar, manifestado em cada um
de nós pela vontade do Criador.
É imprescindível observar que Pedro Elias sempre foi ligado em
suas orações. Por inúmeras vezes se verá ele à noite sentado na cama
ou na rede para dormir, cobrir-se com o lençol até o pescoço e fazer
suas orações silenciosas. É seu jeito de conversar com Deus. E Deus
parece Ouvi-lo. Como escuta a todos nós. Para ter saído de onde
saiu, conduzir sua família para a cidade. Acreditar no porvir. Ter
merecido receber a ajuda inestimável da companheira valorosa que
é sua esposa Josina, na imensa tarefa de equilibrar as temperanças na
educação dos filhos. Sem dúvida há neles um grande merecimento.
Pedro Elias será sempre um homem de atitudes brutalizadas. Um ser
humano desaculturado lutando com todas as forças para se fazer
domar. E também para dominar. Esse fora o estilo que herdara de
seus ancestrais. Cometendo inúmeros erros de ignorância. E quem
não erra que atire a primeira pedra... Mas coube tanto a ele quanto a
Josina, o mérito extraordinário de vislumbrar as responsabilidades
para com seus filhos. Crescei e multiplicai. Isso eles atenderão
plenamente. Desordenadamente. Quase irresponsavelmente, não
fosse a sua mais completa ignorância em torno do assunto. Mas sem
faltar com a orientação e o desejo mais forte, que todos os seus filhos
se encaminhem bem na vida. Honrar pai e mãe. É essa a grande
dívida existencial que todos os seus filhos lhes devem. Por mérito e
merecimento. Eles são vencedores. Fizeram por merecer. Deus dá o
frio conforme o cobertor. É máxima que ninguém desacredita.
Porquê estão ali? Edificando uma família com tão grandiosos
sacrifícios? Bem! Isso é coisa que só Deus sabe. A cada um,
conforme as suas obras. E Pedro e Josina estão construindo uma
13
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
obra extraordinária. Gerar e criar quatorze filhos. Num ambiente de
inúmeras dificuldades. Como isso está sendo possível? Que energia
sublimada está orientando suas vidas?
Algo terrível acaba de acontecer na família. Não exatamente na de
Pedro. Mas na de seu pai. Sua mãe morreu. Enforcada. Dizem
alguns, que traumatizada por maus tratos do esposo. Mas há também
quem afirme que ela não vinha raciocinando muito bem. Talvez
sofresse algum tipo de fraqueza mental.
O Fato consternou profundamente toda a família. Ela fora
encontrada pendurada numa árvore próximo de sua casa. Morreu
deixando dois filhos ainda menores. Chiquinha, já uma mocinha de
12 anos e Elias, ainda bem pequeno com apenas quatro anos. Agora
todos estão vivendo juntamente com Pedro e Josina.
Já se passou seis meses do nascimento de Francisco. Josina já
engravidou outra vez. À noite todos estão dormindo. O vovô Chico
Elias, Chiquinha e Elias estão deitados na sala em suas redes. No
quarto dormem Pedro e Josina na cama e o bebê Francisco numa
redinha pequena próximo deles. Dormem no escuro. A iluminação
noturna é feita com as lamparinas a pavio e querosene. Ha uma sobre
uma cadeira perto da cama, mas está apagada.
Pedro acorda ouvindo um chiado esquisito dentro do quarto.
Desperta a esposa dizendo:
- Estou escutando o chiado de uma cobra aqui dentro do quarto!
Tem uma cascavel aqui dentro! - Uma tribulação para eles. Tateando
no escuro ele procura alcançar a lamparina. Acha primeiro a caixa de
fósforo. Risca um e acende a luz. Estão petrificados! Ha uma cobra
pendurada sobre a rede do bebê, com o rabo enrolado no caibro do
teto. Não é uma cascavel! É uma jibóia. Cobra de veada, como
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
chama o pessoal do campo. Imediatamente se levantam. Enquanto
Josina afasta o punho da rede do bebê Pedro bate na cobra com um
cabo de vassoura. O ofídio despenca do teto caindo no chão. O
barulho já acordou todo mundo.
- O que foi isso? - Pergunta o vovô Chico Elias.
- Uma cobra! Aqui no quarto! Quase alcançou o menino dentro da
rede. Ela tinha a boca escancarada. Graças a Deus o tamanho dela
não deu para alcançar o menino! Se não tinha comido ele!... Explica estarrecido Pedro.
Uma experiência terrível. Ha muitas locas de pedras nas cercanias
da casa e as cobras estão sempre por perto. Depois de acalmados os
ânimos, eles voltam a dormir. Com a luz acesa! Claro! Menos
Josina. Esta noite ela não dorme mais. Seus nervos estão à flor da
pele. Por mais que tente não consegue. Dizem que onde há uma
cobra a sua companheira anda por perto. Ela continua muito
assustada. Não quer mais surpresas. Fica acordada zelando pelo
bebê até amanhecer o dia.
As cobras vão estar freqüentemente no caminho de Francisco. Viver
ali, naquele ambiente rural tão desprovido é uma ótima
oportunidade para a Lei das possibilidades. A jibóia mede sete
palmos e meio. De manhã logo cedo Pedro Elias abre ela pela barriga
para tirar-lhe o couro e esticar no sol para secar. O couro é muito
procurado na cidade. Ha pessoas que compram e pagam bem. O
couro é utilizado para fazer bolsas e sapatos das madames. Coisa
chique. Pelo menos o dinheiro da feira está garantido! - Pensa Pedro
Elias enquanto esfola a jibóia.
O menino cresce saudável. Já se passou três anos de seu aprendizado
naquele ambiente rural. Observando e aprendendo.
O próximo momento de extrema dificuldade para Josina, já bastante
grávida do segundo filho, que virá a ser a galega Malvina, é um
15
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
capítulo extraordinário. Ha muitas raposas pela redondeza. E
algumas ficam atacadas de raiva. Indo pelo caminho na direção do
açude, Josina se depara com uma delas. A raposa investe sobre ela
arreganhando os dentes tentando mordê-la. Josina está passsada de
mêdo tentando se esquivar com aquela barriga enorme. Mas
consegue apanhar um pedaço de pau e enfrenta corajosamente a
raposa, matando-a a pauladas.
Malvina viria a ser uma pessoa de personalidade bem forte e as
vezes bem enérgica. Daí as gozações que no futuro vão lhe fazer os
familiares. Até mesmo sua mãe Josina, que garante: - Você é assim
tão nervosa por causa da raposa!
Há sempre um primeiro dia, no existencial de uma criança, em que
ela, de repente percebe que sua mente está iniciando um processo
diferente, catalogando a partir de então, os acontecimentos
relevantes de sua vida. Algo soou como um chamado para a mente
infantil do pequeno Francisco! Como se lhe dissessem:
- Hei! A partir de agora você tem uma nova tarefa. Vai guardar em
sua memória todos os fatos dignos de registro de sua vida. Divirtase! Que vai ser algo bastante emocionante...
A emoção estaria exatamente na diversão em catalogar cada fato
novo. Descobrir as nuances de cada acontecimento.
Ser tocado ou marcado em seu subconsciente com fatos cuja
lembrança permanecerá para sempre. Francisco já tem agora quatro
anos de idade. Dorme em sua rede junto à porta de entrada da sala.
Outras pessoas também dormem ali na sala. As crianças, com seus
respectivos pinicos embaixo das redes. Para o caso de urinarem
dormindo (Ver cenas do DVD). Francisco também costuma não
acordar nem pra fazer xixi. Mas esta noite algum muito diferente o
desperta. Seria sua primeira experiência extra-sensorial. De repente
16
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
ele abre os olhos! Como se tivesse sido tocado por um chamado. E
vê! Para seu espanto infantil, uma luz redonda, azulada, do diâmetro
de uma xícara, tremulando na parede, dois palmos acima do punho
de sua rede. Suavemente a luz vai descendo em direção ao punho da
rede dele. Ele imagina que a luz vai chegar até ele vindo pela rede.
Assusta-se e grita com dificuldade pela mãe.
Alíngua meio grossa dificulta, mas ele consegue gritar.
-MÃM-M-M-MÃE!... MÃM-M-M-MÃE!... - Dona Josina no quarto
ao lado desperta e vai até a sala com a lamparina na mão.
Quando Francisco chama pela mãe percebe que a luz para de descer.
À medida que a luz da lamparina vai iluminando a sala a luz azul vai
desaparecendo na parede. Ele está em estado de choque.
- Que foi! Meu filho! Você teve um pesadelo?
- Uma luz mamãe! Ali na parede! Vinha descendo pra minha rede!
- Que luz, meu filho! Não tem luz nenhuma na parede!
- Ela foi se embora mamãe! Tava ali! Ali! -Apontando para a parede.
- Não meu filho! É a luz da lua que entra pelas brechas da telha! Não
é nada não! Fique sossegado! Pode dormir! Eu vou deixar a
lamparina acesa aqui na sala! Viu! Pode dormir!
Fica ali um pouco junto a ele balançando a rede, depois volta ao seu
quarto. Por um bom tempo Francisco ainda permanece acordado.
Vez em quando ele entreabre um olho observando a parede a sua
frente, pronto para gritar de novo se a tal luz voltar a aparecer. Aos
poucos ele adormece. O assunto foi esquecido. Menos para
Francisco. Que guardaria na lembrança para sempre aquela luz
azulada na parede.
Anos mais tarde, já um rapaz, residindo na cidade, Francisco se
esclarece com sua mãe sobre aquele episódio da luz na parede e ela
confirma, que realmente não poderia ser luz da lua pela brecha da
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
telha, pois não havia lua naquela noite. Por não obter uma esplicação
lógica, resolvera esquecer o assunto. Então Francisco sabia, de
certeza, que alguma coisa muito estranha havia lhe ocorrido naquela
noite.
O dia seguinte após o episódio, é de bastante reflexão para ele, que
não consegue afastar de sua mente a imagem daquela luz azulada.
Todos já se levantaram, mas ele ainda permanece em sua rede.
Seis horas da manhã. Uma manhã úmida de inverno, com os
preparativos de seu pai e seu avô paterno amolando as enxadas para
irem ao plantio roçar o milho e o feijão, que brotam verdejantes com
promessas de uma ótima colheita.
O rec.. rec. do amolar das enxadas e o cheiro do café fumegante
arrancam Francisco de sua rede, onde cochilava, indo até o terreno
na parte de trás da humilde casa, juntando-se ao grupo. Pelo aspecto
da moradia, vê-se que se trata de uma família bastante humilde,
como tantas que habitam os sertões naqueles idos de 1945. - Vá
jogar fora o seu pinico de mijo! - Ouve-se a voz de Josina enquanto à
beira do fogão vira umas tapiocas que está preparando no caco de
barro.
Quase sempre, todos trabalham em torno de um pequeno açude, uma
pequena barragem para as vazantes de plantio de batata doce, arroz,
algumas frutas e o capim para alimentar os animais. O plantio maior
é feito nas margens do açude. Quando cheio, o panorama é bonito. E
aquela manhã está linda. Um festival de patos, marrecos, garças,
socós, jaçanãs e tudo quanto são aves, com suas algazarras
protegendo os ninhos sobre o capim das águas do açude.
Bem no meio do açude, uma imensa mangueira totalmente rodeada
de água. Para colher umas mangas maduras o jeito seria nadar até
ela. É mas, em certa ocasião poucos dias atrás, Francisco,
acompanhado da tia Chiquinha e do tio Elias, também ainda bem
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
jovens e imberbes, víram-se às voltas com uma jibóia que decidiu
colher os ovos dos marrecos pelo meio do capim sobre a água. Eles
nadam exatamente procurando os ninhos das marrecas para pegar os
ovos. A jibóia havia chegado primeiro. Aliás, as cobras sempre
estarão rodando o pequeno Francisco. Foi um tremendo alvoroço!
Nada pra cá, nada pra lá! Para fugirem da grande cobra que estava
muito nervosa com as visitas inesperadas.
Portanto, ir à mangueira pegar umas mangas, e sozinho!... Essa idéia
não agradava o garoto Francisco, que de cócoras, saborea o seu café
matinal com beijú. Um tipo de tapioca endurecida, assada no forno à
lenha, feita de farinha de madioca ralada. O vovô Chico Elias tira-o
de seus pensamentos.
- Meu filho, eu já amolei uma enxada pequena pra você. Vai conosco
para o roçado?
- Vou sim, vovô!
- Mas olha! Cuidado para a enxada não cortar os seus pés. Ouviu
bem?
- Sim, vovô.
- Esse menino não tem idade para pegar em enxada, compadre
Chico! - Alerta a mãe de Francisco.
- Ô comadre Josina! Ele fica todo dia lá no roçado querendo
arrastar uma enxada grande! Então eu providenciei uma pequena
pra ele. Não se preocupe! Eu ficarei com cuidado nele. Ele só quer se
divertir!...Tomara que não me corte os pés de melancia!... Resmunga o vovô.
- Pois sim!... (resmunga também ela).
As primeiras horas da manhã sempre oferecem um espetáculo
deslumbrante ao se chegar ao roçado. Sob uma árvore frondosa são
colocados os objetos de trabalho, incluindo os mantimentos para a
gostosa panela de rubacão, uma mistura de feijão, arroz e carnes pra
19
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
cozinhar todo junto, um pote de barro com água dormida bem fria e
demais apetrechos.
A primeira tarefa de Francisco é colher lenha para queimar na
trempe de pedra e cozinhar a panela do almoço. Seu pai, logo colhe
uma bela melancia madura e coloca na sombra da árvore para
degustarem após o almoço. Panela no fogo e começa então o
exercício da enxada, prolongando-se até as 11 horas, quando alguém
bate no ferro da enxada avisando que o almoço está pronto.
- Cuidado! Pra não deixar a panela queimar! - Lembra seu Pedro.
Tem que se mexer de vez em quando. E se o caldo baixa muito, pegase um caneco de água no pote e coloca-se na panela. O caneco é uma
obra de imaginação! Uma quenga de coco aberta no meio. Furada de
um lado a outro nas bordas, e um pau enfiado pelo meio. Serve
também de concha para se retirar a comida da panela.
Ali do lado, o saco com um pouco de farinha. E se ha carne assada, é
colocada dentro da farinha, evitando-se os insetos.
Nesse tempo é assim: almoço às 11 horas, jantar às 5 da tarde e uma
ceia, geralmente de coalhada com rapadura raspada lá pelas 7 da
noite. Só quem puxou enxada horas a fio sabe quanta energia pode
ser gasta.
No roçado, às 04h00 da tarde é hora de retirada. Um banho na
cacimba do riacho próximo e voltam todos para casa. Não sem antes
verificar os fojos (apetrecho montado com lata de querosene
enterrada no chão entre as pedras). Três deles foram montados
estrategicamente nas grotas do serrote a caminho de casa. Sempre
havia uns preás ou mocós caídos nas armadilhas. Esse horário da
tardinha é o mais propício para iscar os fojos novamente, colocandose rama de batata doce e pedaços de frutas, muito apreciadas pelos
pequenos roedores.
20
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Vovô! Corre aqui! O fojo ta cheio de preá!... - Grita Francisco.
O menino está eufórico. Nunca havia visto tantos preás numa só
armadilha. - Eita! Meu filho! Amanhã vamos ter um torrado de preá
no almoço!
Afaste-se! Deixe-me abrir o fojo. Suba ali naquela pedra. Fique com
cuidado! Onde tem muito preá, sempre tem uma cobra por perto
atraída pelos guinchos deles!...
Mas inda não é dessa vez que Francisco viverá a grande aventura de
matar uma cobra.
Retirar os preás de dentro do fojo é tarefa para especialista. Mas
parece bem simples. Com uma forquilha de madeira com a ponta em
Y o vovô entreabre o fojo lentamente...
Logo o primeiro roedor mostra a cabeça na tentativa de cair fora. É
então preso pela forquilha e com a mão o vovô segura o bicho pelo
couro do pescoço, colocando-o em frente ao rosto lhe diz:
- Hei! Camaradinha?!... Parece que logo mais você vai para a
panela!... - Abre um saco de pano, desses de farinha, que sempre
leva às costas e joga o preá dentro, vivo.
Francisco, que assiste ao espetáculo bastante entusiasmado logo
pergunta:
- Vovô! Não vai matar ele?
- Não, meu filho! Ainda não! Vamos torcer o pescoço dele só em
casa. Para abrir e salgar logo. Não pode ficar morto muito tempo
antes de se tratar (tirar a vísceras).
Um por um, seis preás vão sendo colocados no saco.
O pai, Pedro Elias, por sua vez, colhe uma braçada de ração para os
animais. Não muito. Só o burro Carrité, animal perigosamente
arisco que dá coices no vento, um vaquinha no curral com um
bezerro, para suprir a família com alguns litros de leite diariamente.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
coalhada farta está garantida todas as noites. As vezes,
acompanhada de um pedaço de carne assada que sobrou do
almoço. Desde que o inverno fosse bom. Caso contrário não
haveria ração para alimentar os animais.
A infância de Francisco, ali no sítio é tranqüila. Um ambiente
bucólico. Na companhia do tio-irmão Elias, apenas três anos mais
velho e a irmã Malvina, um ano mais moça, além da tia Chiquinha, já
uma mocinha com seus quinze ou dezesseis anos.
À noite, principalmente quando ha uma bonita lua Cheia, as
palestras correm soltas no terreiro da casa, enquanto as crianças
brincam de esconde-esconde cobertas com um lençol, simulando
almas do outro mundo.
No dia seguinte, 05h00 da manhã, seu Pedro levanta, pega o galão e
sai apressado. O sol ainda nem nasceu. Ele vai pelo caminho na
direção do riacho. Uma vereda estreita. O capim verde do pasto com
cerca de um metro de altura preenche um lado e outro do caminho.
Segura pelos ombros duas latas de querosene penduradas por
cordas, em um pau curvado.
Ele vai à cacimba do riacho como faz todos os dias logo cedinho
obter água para as tarefas da cozinha de Josina. Ao passar ao lado do
serrote próximo com as latas roçando sobre o capim, ouve a fisgada
na lata. E o chiado do maracá da cascavel e se assusta! Agradece a
Deus não ter sido alcançado pela cobra, e continua seu caminho. Na
volta, ele passa pelo local cheio de reservas e cuidados. Quantos
perigos aquele homem enfrentou para constituir sua família naquele
lugar!...
Em poucos minutos o dia já amanheceu e a passarada alegra a
manhã.
22
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O tio Elias e Francisco são incumbidos de ir verificar os fojos, à
procura de preás ou mocós que houvesse caído nas armadilhas.
- Cuidado com as cobras! Tem algumas delas por aí! - Alerta seu
Pedro. E tem mesmo. Outra cascavel aguarda por eles. Que
experiência!
Normalmente, os fojos são abertos empurrando-se uma pequena
vara sobre a tampa de madeira, entreabrindo-se uma pequena brecha
para ver se ha preás e mocós capturados.
Na primeira armadilha, apenas um preá. Francisco abre o saco e o tio
Elias joga-o dentro. - Feche bem a boca do saco pra ele não sair! Recomenda ele. Na Segunda armadilha não havia nada. No terceiro
fojo, o tio Elias leva um tremendo susto! Ao pressionar a tábua para
baixo eles ouvem nitidamente o chiado do maracá da cascavel. Solta
rapidamente a vara:
- Ih! Rapaz! Tem uma cascavel aqui dentro da lata. Mas nós vamos
pegar ela! - Como sempre conduzia uma foice, foi a uma árvore
próxima e cortou uma vara maior com uma forquilha em V.
Aproxima-se de Francisco e dá as instruções:
- Olha! Você vai enfiar a sua vara bem devagarinho na brecha da
tábua! A cobra vai botar a cabeça pra fora tentando sair! Aí eu
cravo a forquilha no pescoço dela prendendo no chão e você bate
com o pau na cabeça dela até matar! Certo?
Francisco acena com a cabeça que sim.
- Você tá com medo?
- Tô!
- Não tenha medo! Assim que ela botar a cabeça do lado de fora eu
prendo ela com a forquilha! Não tem perigo não!
E assim é feito. Tão logo se abriu uma pequena abertura na tábua o
primeiro que pulou foi um preá embrenhando-se no mato. A
cascavel trata de escapar, mas o gancho do Elias estava esperando
por ela.
23
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
P
resa pelo pescoço ela joga todo o corpo para fora se enrolando
na vara do Elias com aquele chiado infernal do maracá. - Vai
Chico! Bate na cabeça dela com a vara!
Francisco passado de medo, batia mais nas pedras do que na cobra
sem conseguir abatê-la.
- Me dê a foice! - Pede o tio Elias. E fazendo toda força para não tirar
a forquilha do pescoço da cobra, foi se aproximando até poder
alcançá-la com a foice desferindo-lhe uma forte pancada na cabeça.
A cobra então amolece o corpo soltando-se da vara e despencando
no chão.
Mais umas duas pancadas com a vara na cabeça dela e a peleja estava
terminada. Nesse dia não deu para conseguir um bom torrado de
preá. Mas a feira da semana estava garantida.
Enrolaram a cobra na vara, colocando as estremidades nos ombros e
vão se aproximando de casa. Os adultos estão ainda amolando as
enxadas.
- Menino, mas o que é isso? - Pergunta seu Pedro.
- Uma cascavel! Estava dentro do fojo! Deu trabalho, mas nós
conseguimos matá-la! - Esclarece o tio Elias. Seu Pedro logo a abre a
cobra pela barriga esfolando e tirando o coro. Sete palmos e meio. E
exclama animado:
- Eita! Que o dinheiro da feira tá garantido!... - Verificou então que
havia três preás na barriga da cobra. Engolidos por inteiro. O que
fugiu certamente ela estava guardando para comer depois.
Passado o período de inverno seguem-se as plantações de arroz,
melões, jerimuns, batata doce, feijão e outras plantações nas
varzantes do açude. Período em que as águas já baixaram bastante
descobrindo uma terra escura e úmida própria para esse cultivo.
A colheita do arroz enseja muitas travessuras das crianças,
24
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
incumbidas de espantar os pássaros que aos bandos infestam o
plantio de arroz.
Francisco e Malvina, ainda bem pequena, têm a tarefa de espantálos.
As aves de arribação também já chegaram para comer o arroz ainda
nos pendões. No caso delas ha um atenuante. Às dezenas elas são
capturadas em arapucas, armadilhas que o vovô Elias faz, trançando
gravetos de árvores. Um punhado de grãos de arroz é colocado sob a
arapuca, armada com uma espécie de gatilho feito com um cordão
preso ao chão. As aves vão bicar os grãos sob a arapuca até que uma
delas solta o cordão e a arapuca despenca sobre elas. É comum
capturar até vinte arrribaçãs numa só arapuca. Isso dá um belo
almoço de torrado para a família inteira.
Lá pelo final da última década antes da virada do ano 2000, a caça
dessas aves estará totalmente proibida, para evitar o seu completo
desaparecimento. Mas ha alguns caçadores renitentes que, fornecem
às escondidas para pessoas de total confiança, alguns pares.
Arribaçãs e preás.
Os manos Jonny Costa e Franksvictor costumam estocar no freezer
dúzias deles, para oferecer aos familiares visitantes, em julho, na
Festa de Santana.
- Olhe! Não diga a ninguem não! Mas passa lá em casa hoje, que
vamos comer um torrado de preá e arribaçã!
É um convite e tanto!
Mas voltemos ao arrozal de seu Pedro nos idos de 1945.
- Vocês deixem de brincadeira e prestem atenção nos passarinhos
que estão devorando o arroz!!! Ralha ele. Francisco e Malvina,
correm um pouco espantando os pássaros, mas logo voltam às
brincadeiras de esconde-esconde por dentro do arrozal, esquecendo-
25
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
se dos passarinhos. Sabe como são desligadas as crianças. Até que
seu Pedro armado de uns gravetos de jurema grita:
- Venham cá!
- Seu Pedro, não bata nas crianças! Apela o preto Mane Pedro, que
ajuda na tarefa de bater o arroz.
Ha um grande monte de palha de arroz já batido, ao lado. Lá vem
Francisco e Malvina já protegendo a bunda com as mãos, pois
sabiam que ganhariam umas boas bordoadas. Francisco é sempre o
primeiro. Enquanto isso, Malvina, chorando e totalmente vermelha
pelo sol na pele corre na direção do monte de palha de arroz e tenta
subir. Imaginando que o pai não lhe alcançaria naquela altura. Uns
três metros. Mas a palha de arroz escorrega. Já quase alcançando o
topo ela desliza voltando até o chão, para seu desespero. Ela tenta
novamente. E chora cada vez mais, sempre que escorrega até
embaixo. Lá se vai ela arrastando-se para subir o monte de palha de
arroz mais uma vez. Desta vez ela consegue.
É uma cena pitoresca. Uma pequena criança muito loira e queimada
de sol, trepada num monte de palha de arroz.
Chorando descontroladamente. O pai já terminou de admoestar
Francisco e agora vai em sua direção.
- Desça já daí!...
Ele está muito bravo. Mas Malvina decidiu que aquele não era um
bom dia para levar uma surra. E se mantém no topo. O pai faz
mensão de arrastá-la lá de cima. Ela então mais depressa do que
rapidamente, desliza para o chão pelo outro lado e corre em direção
de casa. Seu Pedro fica só olhando. É até hilariante aquela cena. O
preto Mané Pedro ri à gargalhadas tirando Pedro do sério.
- Mas que galega danada! - Exclama ele, rindo gostosamente.
Seu Pedro deixa a surra de Malvina para depois e volta ao trabalho.
26
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Francisco agora, amargando as bordoadas que levou deseja também
ser um passarinho e voar para bem longe dali.
A água do açude está recuando cada vez mais. Seu Pedro, com sua
astúcia natural, observa a lama do açude. Amassa o barro com a mão
e curioso pergunta:
-Ô Mane Pedro! Será que esse barro dá uma telha boa? Ou tijolo?
- Quem sabe, seu Pedro... É capaz de dar!...
-Mas será que tem barro bastante? Ou será que cavando vai dar
logo na areia?
- A gente só sabe cavando, né seu Pedro!
- Pois é! Vamos cavar um poço bem aqui, pra ver a profundidade da
camada de barro.
- E seu Ezequiel? Será que vai deixar a gente fazer a telha?
- Eu vou conversar com ele. Certamente ele vai querer dividir o
lucro. Mas vamos primeiro ver se o barro presta.
Inspiração! Intuição! Extraordinárias ferramentas que o Criador
deixou em cada um de nós, para nos ser útil em momentos de
necessidade. Infelizmente, bem poucos entre os seres humanos têm
dado a devida atenção a esses predicados naturais.
Logo cavam um poço de 1 metro de profundidade mais ou menos e
vêem que a camada de barro com uma liga de primeira qualidade
para produzir telhas e tijolos, é bastante profunda.
Amente de seu Pedro fervilha enchendo-se de expectativa. E faz
muito sentido! Caicó, a cidade próxima, cresce a olhos vistos. Vai
precisar de muita telha e tijolos para tanta construção.
- Mané! Vamos vender telhas e tijolos lá em Caicó! Você vai ver. Eu
conheço umas pessoas lá que constroem casas. Cumpadre Miguel,
27
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
meu irmão, é um. E isso aqui vai dar uma telha de primeira! Se Deus
quiser vai dar certo!
Logo descobrem outra alternativa com o poço. A água! Água para
trabalhar o barro!
Nem precisariam usar a água do açude, que já está bem pouca. Já se
vê até os peixes com a cabeça fora da água tentando absorver o
oxigênio.
Além do mais, essa nova atividade será a salvação para seu Pedro. O
compadre Ezequiel agora só deixa plantar capim na área restante do
açude, para garantir a alimentação dos animais do seu curral. Na casa
da fazendo eles fazem queijo de manteiga e manteiga de garrafa, que
ele vende na cidade.
É nesse período a única fonte de renda para manter o sítio.
Cheios de esperança eles retiram o barro, improvisam umas formas
de madeira apropriadas para fazer telhas e, literalmente botam a mão
na massa.
Após secarem umas dez telhas, improvisam um pequeno forno de
tijolos e colocam as telhas para queimar. Queimou a noite toda. Após
um dia esfriando do calor, eles retiram das cinzas as dez telhas
lindíssimas, vermelhas, e duríssimas. Pedro Elias improvisa vários
testes. Precisa saber a resistência das telhas. Algo que seria “um teste
de resistência”. Pendura a telha com uma das mãos e com a outra
bate nela com um pedaço de madeira. O ruído que se escuta é algo
próximo do som de um metal.
- Mané Pedro, eu não lhe disse! - Pedro Elias está exaltado. - Olha,
Mane! Até hoje eu ainda não tinha visto uma telha tão resistente.
Mané Pedro sorri até pelo seu olho esquerdo coberto de catarata.
- É mesmo, seu Pedro, deu uma telha ispiciá!
28
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Vamos fazer outro teste Mane!
E colocando a telha no chão duro, com as bordas para cima, convoca
Mane Pedro para a nova experiência.
- Mané, suba nas bordas da telha pra ver se ela agüenta! Mané subiu
e achou graça novamente. A telha não se rompeu. Mané Pedro não é
alto, mas pesa em torno de uns setenta quilos.
Repetem o teste com duas outras telhas e o resultado foi idêntico.
Tão empolgados com os testes, até esqueceram do almoço. Já vai lá
pelas doze e trinta quando rompe o som do búzio pelos cercados
adjacentes, chamando para o almoço.
Ha um em casa, feito de chifre de boi, que usam para chamar alguém.
O vovô Chico Elias é um exímio tocador de búzio.
- Vamos almoçar! Vamos almoçar!
Apressa Pedro Elias bastante contente.
- Depois do almoço você vai comigo lá na casa da fazenda subir
nessa telha pra cumpadre Ezequiel ver o que nós fizemos!
O compadre Ezequiel Elpídeo, proprietário do sítio Riacho do Meio,
é homem de sorriso largo, brincalhão e têmpera de otimista. Tinha de
ser o primeiro a saber do grande achado.
- O que tanto vocês estavam fazendo que perderam a hora do
almoço?
Pergunta Josina.
- Mulher! Estamos feitos! Conseguimos fazer telhas da melhor
qualidade com aquele barro do açude. Daqui ha pouco vamos à
Casa da Fazenda conversar com o cumpadre Ezequiel e mostrar a
ele!
Ela também se enche de novas esperanças. Sabe o que significa uma
nova alternativa para ganhar algum dinheiro nesses tempos difíceis.
29
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
S
entam e almoçam fartamente, tocados por uma alegria nunca
vista antes. O feijão verde temperado com nata do leite nunca
esteve tão delicioso.
Uma banda de preá assado para cada um e algumas arribaçãs
torradas dão o tom da maravilhosa iguaria desse almoço até certo
ponto festivo.
Ha algo novo no ar. Prenunciando sucesso e realização pessoal. É
isso que sentem as pessoas que detonam algum processo criativo.
Elas se enchem de uma nova energia.
E naquele caso, certamente a inspiração de seu Pedro para produzir
telhas e tijolos com aquele barro, teria vindo de cima. Quem sabe,
suas orações haviam alcançado alguma resposta. Sua idéia já está
materializada ali. Naquelas telhas lindas. E resistentes. Vamos ver o
que o compadre Ezequiel acha! - Pensa ele enquanto almoça.
Após almoçarem Pedro Elias enrola três telhas num papel grosso e
se dirige com Mané Pedro para a casa da Fazenda, distante uns mil e
quinhentos metros.
A tarde está muito quente. O pouco vento que sopra traz um bafo
quente. Mas à sombra, o descanso na rede é muito apreciado após o
almoço.
Na casa da Fazenda um empregado está colocando uma cangalha no
jumento para ir pegar o capim no açude e trazer para alimentar as
vacas logo mais à tardinha. O pequeno chapéu de coro na cabeça,
uma camisa bem rota e calça cortada até o joelho, o rudaque como
chamam, dão-lhe bem a imagem de um Jeca Tatú, uma figura que
Francisco tem no seu livro de escola.
Ali no sitio o homem é conhecido como o vaqueiro, a pessoa que
cuida do gado. Alimenta os animais, aparta os bezerros, tira o leite
das vacas. E ainda faz o queijo no tacho de cobre.
30
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
o longe vê-se alguns redemoinhos que se formam
levantando poeira do chão. Os cercados estão secos. Só
gravetos de árvores ressequidas. Nenhuma folha ou sombra.
A não ser em árvores de raizes bem profundas e resistentes, como a
mangueira velha lá do açude e os pés de bananeira por traz da parede
do açude.
É preciso andar-se com um chapéu na cabeça. O sol queima tudo. A
pele de seu Pedro já está muito manchada pela ação do sol.
Ao chegarem o compadre Ezequiel descansa do almoço cochilando
numa rede no alpendre.
- Boa tarde, cumpadre Ezequiel!
- Boa tarde compadre Pedro! O que os traz aqui?
- Cumpadre, se sente pra ver uma coisa que eu lhe trouxe! - E abre o
pacote mostrando as belas telhas.
- Compadre Pedro onde conseguiu essas telhas?
- Eu fiz cumpadre! Cavei um buraco na lama do açude e o barro lá é
de primeira!
E pendurando a telha bate nela com a junta do dedo produzindo
aquele som metalizado.
- Danou-se! Compadre Pedro! Parece até ferro! Deixe-me ver! - O
compadre Ezequiel examina a telha bem devagar... E acrescenta:
- Mas compadre Pedro você é um danado! Não é que conseguiu uma
telha danada de bonita!...
- Você ainda não viu tudo cumpadre! - Mané suba aqui nessa
telha!...
Manuel Pedro não se fez de rogado. Subiu na telha e balançou o
corpo pra lá e prá cá. Confirmando a experiência anterior.
- Exelente compadre Pedro! A telha é realmente muito boa! Mas
como você descobriu que o barro do açude seria tão bom?
31
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Ora, cumpadre! Eu fiquei pensando... O que é que eu vou fazer
para dar de comer a minha família, se a gente não consegue plantar
mais nada... Lá em casa só tem umas 3 cúias de feijão e um paiol de
batata no pé da parede. E se a seca durar muito tempo? O que vamos
fazer?
Seu Pedro esquecera de que Deus sempre dá o frio conforme o
cobertor. E Ele nunca abandona os seus.
- Mas compadre Pedro o que é que tá faltando para se produzir
telhas aquí no sítio.
- Preciso da sua autorização cumpadre! E quero saber como é que
vamos dividir o dinheiro das vendas. Você acha que se consegue
vender as telhas lá na cidade?
- Com toda certeza, compadre! O Nezinho Vicente precisa de muita
telha para o monte de casas que está fazendo em Caicó! Vou acertar
com ele o preço e depois eu lhe digo! Mas vá logo preparando um
galpão pra gente montar a estrutura. Amanhã mesmo eu vou a
cidade e a tardinha lhe dou notícia!
Gizélia! - Ele chama a esposa: - Venha ver o que compadre Pedro
fez! Mande fazer ai um cafezinho pra gente!
- Boa tarte compadre Pedro! Boa tarde seu Manuel!
Francisco toma-lhe a benção. A sua madrinha é um exemplo de
senhora educada e muito cordial. Afagando o afilhado ela também
admira a criação de compadre Pedro.
- Que maravilha! Compadre Pedro! Não sabia que você era também
um artesão! - Virando-se para o esposo ela pergunta: - Vocês vão
produzir telhas aqui no sítio?
- Telhas e tijolos também! - Responde animado o compadre
Ezequiel. - Assim me garante o compadre Pedro.
O cafezinho já está chegando.
- Meu filho! Amanhã de manhã venha pra cá para ajudar a raspar o
32
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
tacho, viu! - Diz ela para Francisco.
Raspar o tacho é retirar a borra do queijo pregado ao fundo do tacho.
É delicioso.
Na manhã seguinte Francisco vai lá, sem falta. Ele adora a raspa do
queijo e ela sabe disso.
- Pois então tá combinado! Sendo assim eu já vou cuidando de
arrumar tudo por lá!
Dizendo isso seu Pedro se despede, agradece pelo cafezinho
delicioso e volta com Mané Pedro. No caminho de volta a prosa dos
dois é uma só:
- Você viu seu Pedro! Como seu Ezequiel arregalou os olhos quando
viu a telha?
- Mas ora, Mané! A nossa idéia chegou bem na hora!
Ele viu logo que vai ter muito lucro!
Menos de vinte e quatro horas após o compadre Ezequiel trouxe a
resposta. Ninguém nunca soube quanto ele cobrou pelas telhas em
Caicó, mas seu Pedro iria ganhar um tostão por cada telha (algo hoje
em torno de dez centavos). Não era muito. Mas a alegria de seu
Pedro, por ver que a idéia dava certo encobria a sensação de perda.
Não demora muito e a olaria do Riacho do Meio já está produzindo
também excelentes tijolos.
Os pedidos continuam aumentando. Agora podia vir seca como
viesse! Aquele buraco de lama iria salvar a família de seu Pedro.
Com a total ausência de rádio (televisão nem pensar naquele tempo),
a família de seu Pedro Elias só aumentava.
Agora já ha mais duas outras crianças na casa. E haja tijolos e telhas.
Além da montagem do galpão com estacas de madeira e cobertura
33
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
de palha de coqueiro, as bancadas de madeira para estender as
grades com as formas também de mandeira, que servem para moldar
o barro, ha agora um obstáculo exigindo ainda mais esforços de seu
Pedro. Faz-se necessário abrir uma picada no mato. Improvisar uma
trilha como estrada rudimentar para que um caminhão possa passar.
A picada teria uns três quilômetros até alcançar a estrada que passa
nas redondezas. Seu Pedro e Mané Pedro se embrenham no mato
com machados e foices. Em pouco mais de uma semana a picada
está aberta. Dá para passar um caminhão, para poder retirar a
produção e levar para a cidade.
Mas na mente de Pedro Elias, isso é apenas um detalhe. Logo
caminhões e caminhões estariam transitando pela estrada
rudimentar. Ele é só otimismo. Um homem cheio de coragem e
obstinação pode realizar coisas aparentemente impossíveis. Só
precisa de uma boa motivação.
E isso ele transpira de sobra, em suor e dores pelo corpo. Músculos
jovens, mas cansados e moídos de tanta carga de trabalho em
excesso. Mas é preciso. É urgente. Nada vai impedí-lo.
Asalvação da família está naquela iniciativa pioneira e corajosa. O
compadre Ezequiel aparece por lá certo dia para ver como andam as
coisas.
- E aí compadre Pedro! Como vai a estrada?
- Tamos quase terminando compadre! Pra semana o caminhão já
vai poder encostar!
- Mas, e a telha? Ainda está crua, não é?
- Vamos aproveitar essa madeira que cortamos aqui na picada
cumpadre! Esta semana já começaremos a queima da caieira!- (Um
amontoado de tijolos em forma de grande forno em pirâmide, dentro
do qual as telhas são empilhadas e queimadas com muita lenha).
34
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
grande fornalha mede aproximadamente quatro metros por
cinco, por uns dois de altura, em duas camadas.Ao seu redor
ha pequenas entradas rente ao solo, por onde o fogo é
alimentado com a madeira. A caieira queima uma noite inteira até
que as telhas ou os tijolos fiquem em brasa. O jumento Carrité nunca
trabalhou tanto, transportando toda a madeira até o local da caieira.
E chega a grande noite!
Aprimeira queimada!
É um acontecimento festivo. São oitocentas telhas para queimar.
Francisco exulta. Ha algo para se comemorar. Nunca tinha visto a
queima de uma caieira. À noite, sob o pé do velho Juazeiro, próximo
ao grande forno, todos se reunem para acender o fogaréu.
Francisco e o tio Elias levaram suas redes que armaram nos galhos
do juazeiro. Vão dormir a noite ali. Não perderiam por nada aquele
acontecimento.
O cachorro está latindo ao longe. Deve ter acuado alguma caça. Mas
esta noite, quem está ligando para os latidos de Tubarão! O fogaréu
da queimada é a grande atração.
Um pote de barro com água fria e canecas de alumínio foi colocado
no tronco do Juazeiro. E também uma garrafa de Chica Boa embaixo
do pote. Mané Pedro é muito chegado a ela. É a pinga de sucesso na
época. Chica Boa adorna o rótulo da garrafa com um corpo
escultural e um braçado de cana de açúcar no ombro.
O sorriso dela deixa Francisco pensativo: Como é que fazem isso!...
Como desenham ela?...
O marketing boca-a-boca já é muito praticado nesse tempo,
principalmente numa cidade interiorana e sub-desenvolvida como
Caicó.
As coisas acontecem a partir de certas iniciativas. Principalmente se
35
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
o propagandista desfruta de boa credibilidade. E isso o compadre
Ezequiel tem de sobra na cidade. Já se encarregara de andar pela
cidade com uma telha embaixo do braço, batendo com a junta dos
dedos para que todos ouvissem o tom parecido com metal.
Alardeando e divulgando para quem quizesse ouvir, ele avisava que
logo os caminhões estariam descarregando em Caicó a melhor telha
e tijolo que jamais haviam sido fabricados antes no Seridó. A
produção virá do seu sítio Riacho do Meio. O compadre Nezinho
Vicente já aguarda com muita espectativa o primeiro caminhão de
telhas.
Noite de escuridão sem luar. Céu coberto de estrelas. Redes armadas
embaixo do juazeiro e o fogaréu da caieira queimando a noite toda as
telhas colocadas lá dentro.
A lenha é freqüentemente enfiada nas aberturas para alimentar o
fogo.
Aquilo é um espetáculo diferente e inusitado para o menino
Francisco, que da sua rede juntamente com o tio Elias assistia o
trabalho dos homens. Vez em quando, eles vêm até o juazeiro
cumprimentar a Chica Boa. O preto Mané Pedro é o mais
interessado.
Bebem para combater o sono enquanto alimentam a caieira com a
lenha. Não podem dormir. Na manhã seguinte, só fumaça. A caieira
havia sido cozinhada ao sabor das chamas da jurema e do pereiro.
Agora é esperar três dias até tudo aquilo esfriar, para poder retirar as
telhas e arrumar tudo num canto.
O caminhão virá na segunda-feira para transportar a primeira
carrada de telhas para a cidade. - Vai dar um bom dinheiro!... - Pensa
seu Pedro. - Mas , ô com os diabos!... Só um tostão cada telha!... É
muito pouco!... - Mas vamos em frente! - Continua ele com Chica
36
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Boa assanhando seus pensamentos.
Manhã do terceiro dia. Chega então o momento de retirar todas as
cinzas e entulhos que restam dentro da caieira. As bocas das entradas
são bem pequenas. Ha alguns amontoados de cinzas em recantos
internos daqueles espaços exíguos.
Olhando-se pelas portinholas da caieira só se via montes de cinzas lá
dentro. Seu Pedro tenta retirá-las com enxadas colocadas em varas
compridas. Mas ha pequenos montes de cinza em locais
inacessíveis. Para um garoto, até que seria fácil entrar pela
portinhola e arrastar as cinzas até perto da boca de saída.
Seu Pedro então requisita o garoto Francisco que sempre estava por
perto, para penetrar pelo buraco daquela câmara e ajudar a puxar as
cinzas para perto da saída.
Seu Pedro lhe entrega uma enxada pequena com instruções para ele
puxar as cinzas. E lá se foi o menino Francisco caieira a dentro. De
início, estranhou o forte odor de queimado exalando das cinzas. Ao
puxar a enxada para perto de seus pés, Francisco dá um pulo para traz
com um grito de terror, batendo com a cabeça no teto, que ali dentro é
bem baixo. Ele precisa permanecer curvado.
Papai! Papai! Tem uma cobra aqui!...
Seu Pedro assusta-se igualmente pelo lado de fora.
Abaixa-se colocando a cabeça na portinhola:
- Onde, meu filho? Cadê? - E logo avista a peçonhenta Jararaca de
bote armado pronta para atacar o menino.
São momentos de tremenda angústia e sofrimento para seu Pedro. E
de grande susto para o menino, que de tanto medo, está semiparalisado. O espaço interno não lhe permite levantar-se totalmente.
Sua cabeça encosta no teto.
- Recue meu filho! Afaste-se! Venha depressa caminhando junto à
37
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
parede para cá! Depressa, meu filho! E logo alcança os braços do
menino, puxando-o para fora todo sujo de cinzas.
Até o momento de se ver fora da caieira, era como se a mente de
Francisco tivesse paralisado.
Ele só consegue ver a imagem da cobra se enroscando e aprontando
o bote na sua direção. Voltou à realidade ao ver seu pai ajoelhado
com as mãos postas para cima, rogando a Deus.
- Ah meu Pai do Céu! O que eu fui fazer com meu filho!
Perdão, meu Deus! Perdão! Nunca mais eu vou cometer um erro
desses!...
Mane Pedro aproxima-se trazendo um galão de água para a olaria.
Não está entendo aquilo.
- Seu Pedro, o que foi que houve!...
- Mane! Pelo amor de Deus! A cobra quase mordeu o menino ali
dentro da caieira!
- Mas como foi isso, seu Pedro?
Enquanto explica, seu Pedro foi pegando uma vara comprida e,
aproximando-se da boca da caieira... - Uma Jararaca, criatura! Tá
lá dentro! Vamos matar essa condenada! E partiu para a ação
arrastando a cobra para fora, esmagando a cabeça dela em seguida
ainda cheio de pavor misturado com raiva.
De fato as cobras gostam de um pouco de calor. E as cinzas ainda
mornas naquela manhã, era um bom lugar para elas.
- Tome, mô fio! Um copinho de água! Você se assustou muito? Oferece Mane Pedro. O menino só confirma acenando a cabeça.
Aprimeira carrada de telha já está pronta. Tudo arrumado em fileiras
aguardando o caminhão que virá transportar para a cidade.
38
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
compadre Ezequiel já está nervoso. Os clientes exigem a
entrega das telhas. E na manhã da segunda-feira seguinte o
caminhão chega para transportar o primeiro carregamento.
Um Chevrolet GMC com boléia de madeira, aberta. Apenas um
banco estofado, uma cobertura com dois antebraços, um de cada
lado, parecendo mais um sofá com cobertura.
O cheiro da gasolina! Que cheiro interessante! Penetrando pelo nariz
de Francisco que se delicia com aquela sensação diferente! É
impressionante, como o odor das coisas diferentes afetam o olfato
das pessoas que habitam o campo. Principalmente as crianças.
Acostumadas ao aroma das plantas, das flores silvestres, dos
animais. Cheiro de caminhão, óleo queimado misturado ao odor da
gasolina, isso é muito novo para o nariz do garoto Francisco. E a
boléia do caminhão! Uma coisa do outro mundo! O volante, a
alavanca de marchas, os pedais, aqueles botões pretos, tudo é
novidade para ele.
- Pode sentar na boléia! Mas não toque em nada, certo! Recomenda o motorista. Francisco então se delicia. Senta no banco.
Ha se o banco da latada lá de casa fosse macio assim!... Examina ele
apalpando o estofado do banco da boleia do caminhão. Examina
todas aquelas coisas. Desce um pouco. Vai lá na frente examinar
aquelas bolas de vidro. São os faróis. Como será que acende eles?
Uma tremenda diversão.
O coração de Francisco está aos pulos. Ao se aproximar da casa o
motorista havia buzinado: Bi Bit! Francisco se perguntava: Como
será que ele faz para tocar a buzina? Tudo é muito fantástico para ele.
E aquele cheiro especial!... A única vez que estivera antes perto de
um automóvel foi lá na estrada de Jucurutu. Do outro lado do sítio.
Estrada de piçarro de pedras.
39
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
ão ha asfalto nesse tempo. Passou uma baratinha preta pela
estrada. Francisco nunca havia visto aquele bicho. E
desabalou-se na carreira enquanto o automóvel passava a
toda velocidade. Que a se julgar hoje, não deveria ser mais que 30 ou
40 quilômetros por hora. E agora ali estava ele! Sentado na boleia do
caminhão, curtindo aquela emoção misturada com cheiro de
gasolina. Uma maravilha!
Dias depois, o motorista que já observara o grande interesse de
Francisco pelo caminhão, lhe dá uma carona, não mais que uns
quinhentos metros pela estrada da picada.
Foi fantástico. Ver o chão passando ao seu lado. Os rastros dos pneus
pela estrada.
- Gostou Chico? - Pergunta o tio Elias.
- Gostei! Mas fiquei meio tonto! - Todos riem da sua ingenuidade.
O trabalho continua duro na olaria. De quinze em quinze dias ha uma
queimada da caieira.
E uma Chica Boa por perto, para deslumbramento de Mané Pedro. O
vovô Chico Elias também é chegado. Toma lá os seus goles. Tem dia
de sábado que ele vem da feira capengando.
- Compadre Chico hoje vem por cima! - Comenta Josina ao vê-lo se
aproximar com o saco nas costas, como sempre, alegrando as
crianças com os pães que traz da cidade.
Quase um ano já se passou. Após tanto trabalho e uma renda tão
minguada pela produção das telhas, Pedro Elias vai conversar com o
compadre Ezequiel tentando melhorar o pagamento. Mas foi em
vão. Não conseguiu o aumento tão desejado. Embora todo mundo na
cidade não poupe elogios à qualidade das telhas e tijolos que eram
feitos na olaria do Riacho do Meio. O mérito era todo dele. E saía
40
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
ganhando tão pouco. Do que recebe ainda tem que pagar a seu
ajudante Mané Pedro.
Como tudo que fazemos na vida, depois de passado o
deslumbramento, vem a realidade. E a sensação não é nada boa.
Outro dia na feira haviam-lhe informado que a telha era comprada
por três tostões à unidade. Isso o deixou um tanto desolado. Por isso
foi conversar sobre um reajustamento mais uma vez com o
compadre Ezequiel. Não havia jeito. O homem não cedia nada.
Então Pedro Elias cai na real. Acha que o que está recebendo não é
justo. É uma sensação dolorosa. Mas é verdade. Todo o trabalho é
dele. E de Mané Pedro. E às vezes até das crianças também. A
situação está ficando insustentável. Até quando iria se manter, isso
ele não sabia. Mas já não era mais possível fazer o trabalho com a
mesma vontade e obstinação.
Pedro Elias foi ficando amargo. Vez ou outra desabafa a situação em
casa. Um acidente de foice mais tarde o levaria a cidade, onde na
farmácia, passando para comprar remédio, receberia um convite
irrecusável, que a seu ver iria mudar completamente a situação. Mas
a vida tinha de continuar.
- Tenha paciência homem! -Aconselha Josina.
Outra vez a família está vivendo um período de muita carência. É
final de um verão muito seco. Ainda não ha expectativas
promissoras para o próximo inverno.
Após o almoço, Francisco apura o ouvido. Está escutando um som
estranho vindo dos cercados.
- Vovô o que é aquilo? - Pergunta ao vovô Pai Chico Elias.
- É a Seriema meu Filho! É um pássaro grande. - Francisco ainda
não conhece a Seriema. O vovô explica: - É quase do tamanho de um
peru! Com as canelas bem compridas! Ela não voa. Mas corre como
41
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
uma condenada! Nem os cachorros a pegam na carreira. Elas estão
por aí, fazendo seus ninhos no chão. As cobras que vão tentar comer
os seus ovos, elas matam. São umas danadas!
Mais tarde, lá pelas três e meia da tarde, como freqüentemente
ocorre nesses períodos de dificuldade, Pedro Elias carrega a
espingarda de soca bucha.
Pega o bisaco no qual leva reservatórios de chifre de boi, com
pólvora e chumbo para recarregar a espingarda e se embrenha pelo
cercado. Vai tentar matar uns mocós nas cercas de pedra. Precisa
providenciar a mistura de carne para o almoço do dia seguinte.
Batata doce, cuscuz de milho, arroz de leite e farinha, isso tinha em
casa. Mas precisava um pouco de carne. Qualquer coisa. Desde
arribaçã assada ou torrada, um preá ou mocó torrado no toucinho,
qualquer coisa que conseguisse seria o complemento para o almoço.
Ao longe, escuta-se os tiros da espingarda. São umas cinco e meia da
tarde. O pai de Francisco está de volta.
Trás algo grande pendurado na mão. É uma das tais seriemas. Havia
conseguindo a mistura de carne suficiente para dois almoços.
Francisco fica observando a mãe despenar a seriema. Sem as penas,
era pouco maior que um frango.
- Mamãe! As penas dela são cinza! - O menino Francisco está cheio
de curiosidade.
- É para elas se camuflarem dentro do mato seco meu filho! Assim
elas se escondem das raposas!
Aleve menção da raposa já deixa Francisco arrepiado.
Até as galinhas do terreiro de Josina vez ou outra são ameaçadas por
elas. A seca da região afeta também a fome dos animais. Faz parte do
ciclo da natureza.
42
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A vida do trabalhador do campo no Nordeste sempre foi assim. De
muito sofrimento. Como um parto que nunca termina. Alguns
momentos de alegria de vez em quando, mas no geral, é mais
sofrimento.Ainda hoje deve perdurar esse condicionamento.
Os pais de Francisco vêem sua família crescer, e junto, vêem os
problemas. Embora pessoas muito simples, ele principalmente,
semi-analfabeto, imaginam que deva haver um jeito de conduzir
seus filhos para um rumo melhor.
Enquanto ainda bem pequenos, Josina se encarrega de lhes ensinar o
alfabeto (a famosa cartilha de ABC), e contas de somar e diminuir.
Isso ela dá conta. Não quer ver seus filhos crescendo analfabetos.
Quando um deles já consegue escrever o seu nome todo, é uma
festa. Uma comemoração. Mas... A injusta palmatória ainda reina
absoluta nesse tempo. Sabe como é! Costume é costume.
As escolas desse tempo usam a palmatória. Um instrumento de
repreensão aos alunos.
Ela é vista como um grande aliado da professora para manter a
mente das crianças fixas nas tarefas escolares. Escreveu não leu, o
pau comeu! Deve vir daí esse adágio tão popular. E na escola de
Josina, uma vez ou outra, muito a seu contragosto é aplicada. Não
haveria de ser diferente. Principalmente porque, mesmo contando
com a ajuda da tia Chiquinha, ainda mocinha, haviam tarefas da
casa que Josina precisa dar conta. Passa a lição, a criançada fica
na sala estudando, incluindo alguns poucos filhos de outros
agricultores que moram por perto, enquanto ela se ausenta um
pouco para cuidar de seus afazeres.
E aí, já viu! Quatro ou cinco crianças numa sala... Um quadro negro
pendurado na parede com as lições... O quadro é mesmo preto, feito
de um material betumoso e duro, circulado com tariscas de
madeira. Escreve-se nele com umas pedras moles e cinzentas
43
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
colhidas no tabuleiro que substituem o giz. Um pequeno apagador,
completa o quadro.
Nos armadores de rede nas paredes, chapéus pendurados, das
crianças, para se protegerem do sol. Ha até merenda escolar. Um
pedaço de rapadura, uma batata assada, um taco de jerimum
caboclo, daqueles bem durinhos, um pedaço de bolo de fubá...
Merenda que cada um traz e entrega a dona Josina. Ela guarda as
merendas no girau da cozinha, para a hora do lanche.
Menino! Isso é um belo de um convite para travessuras mais
atiradas.
Certo dia, a galega Malvina, já com seus três anos de sapecagens
resolve fazer uma visita às merendas, surrupiando o lanche de uma
das crianças.
Um transtorno para dona Josina na hora de distribuir amerenda.
Obrigando-a a providenciar um lanche mais suculento para aquela
criança, que transtornada se derrama em lágrimas prometendo que
vai contar tudo à MAMÃE! Quando chegar em casa.
Não precisa raciocinar muito para perceber que hoje, após as
crianças saírem, a galega vai receber um corretivo de palmatória.
Como assim é.
- Ai ai ai! Ai ai ai! Ai ai ai!
- Você ainda vai mexer nos lanches das crianças?
- Não mamãe! Não vou mais não!... Vou mais não!... Ai ai ai! Ai ai
ai!...
A galega parece uma pimenta de tão vermelha, chorando e
amargando as bordoadas que acaba de levar.
Malvina é realmente muito impossível, (quando se queria dizer
impulsiva).
E ai! de quem esboçasse um sorriso quando outra criança apanhava
de palmatória.
44
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Levaria o dobro de bolos na palma da mão. E se tentasse correr, ia na
bunda mesmo.
A temida palmatória é pesada. Tem crianças que se urinam ao
experimentá-la a primeira vez.
A palmatória ainda fará outros capítulos, como veremos mais
adiante. É uma dureza! Sempre fica lá no quadro negro escrito: Três
bolos de palmatória para quem não fizer o dever da aula.
Palmatória para quem cochilar, para quem fizer arruaça, bater em
outra criança, e vários ETCs. A Palmatória é então, um recurso
exemplar apoiado pelas escolas oficiais e até pelos próprios pais das
crianças. Elas não têm mesmo para quem apelar. Alguns pais até
ameaçam: - Se apanhar na escola apanha em casa de novo quando
chegar! Alguns anos depois a palmatória será abolida de vez pelo
Ministério da Educação. E até proibida. Mas por enquanto, essa é a
prática primitiva na educação das crianças.
Nós somos produto natural daquilo para o qual fomos treinados. Não
é isso que ensinam os estudiosos da natureza humana? Pois estou
fortemente estimulado a pensar que ha algo errado no modelo de
montagem do arquétipo da família moderna, agora nesses tempos de
início de um novo milênio. (Ano de 2006).
Friso isso porque imagino pessoas à frente de nosso tempo atual,
nossos descendentes. Em que tipo de sociedade viverão? Quais os
novos modelos intelectuais para o equilíbrio da sociedade de então?
Como viverão as famílias? Como serão educados os seus filhos?
Quais fatores da vida moderna estarão influenciando diretamente a
cultura dos povos. Quais as transformações decorrentes? Pois é justo
presumir que o empenho da humanidade continuará, para melhor.
Então é importante se saber as diferenças obtidas desde os primeiros
passos.
45
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
onsideremos que, estudar nosso passado é um exercício de
cidadania. Vejo atualmente uma sociedade doente. De
muitos males. Os mais sofisticados. Frutos de muitas
tendências decadentes e estímulos errôneos recebidos.
Ouço pessoas dizerem, que o afã do consumismo está produzindo
parias numa sociedade desorganizada, em que os bandidos
trancafiados nas prisões, fazem ali seus escritórios de atuação a
serviço do crime organizado mantendo refém essa mesma sociedade
desorganizada. Certos ou errados, modernos ou ultrapassados, esses
modelos escrevem coisas no espírito humano como cartilhas de
aprendizado. Como clichês que serão reproduzidos e reproduzidos
incessantemente.Tão duramente quanto aquelas palmatórias do
passado remoto. Ou até bem pior. Resta avaliar qual modelo produz
um desajuste maior.
A cada instante a célula mãe se deteriora cada vez mais. Empolgome nesses pensamentos porque sei que meu tempo não irá muito
longe. Não alcançarei em vida, tão significativas transformações
sociais. Resta a esperança de que elas ocorram.
Para bom aproveitamento de nossa decendência genealógica.
Torcemos por eles, vivendo em um planeta melhor no futuro.
Repetimos o que ouvimos de nossos pais e avós: - Tem nada não meu
filho! No futuro o mundo vai ser melhor!
As gerações estão crescendo nesses idos de 1945, estruturadas
psicologicamente ouvindo os pais, professores, estudiosos,
especialistas, políticos, religiosos, todos, em várias épocas
diferentes, dizerem que um dia tudo irá melhorar. Vejo meu pai
exclamar coisas assim.
Como o vejo, no ocaso de sua vida, repetindo as mesmas coisas.
Assim como vejo minha mãe ainda viva neste 2006 para nossa
46
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
alegria, aos oitenta e quatro anos de idade, ainda lúcida, acreditando
em coisas das quais muitos nem se lembram mais. Estou vendo eles
passando, assim como eu também vou passar, sem que surja a
solução definitiva de estabilidade da raça humana.
Para os filhos de Pedro e Josina houve muitas transformações. Este
que escreve é um exemplo. Mas quantas outras famílias sucubiram
na tarefa de orientar o progresso de seus filhos! O mundo, a
modernidade, a falta de educação e cultura lhes tem cobrado um
preço muito alto.
Enquanto isso, o vovô Chico Elias, encarregado de cuidar das
plantações de fruta e batata doce nas margens do açude, está às voltas
com um problema. Os melões estão amadurecendo. Grandes e
cheirosos. Mas as pestes das raposas estão lhe dando a maior dor de
cabeça.
À noite, elas procuram os melões mais maduros e comem um pedaço
do fundo. Deixando lá o resto imprestável. Já é a terceira vez que
acontece isso e o pai Chico Elias chega para o almoço com os nervos
à flor da pele:
- Raposas dos trezentos diabos!
- Que foi, papai? - Pergunta seu Pedro.
- As pestes estão devorando os melões todas as noites! E escolhem os
melhores! Os maduros e cheirosos! O desgraçado desse cachorro
nem toma conhecimento delas!
Esbraveja ele. Claro. As plantações estavam abaixo da casa, a favor
do vento. À noite o cachorro não tinha como farejar o odor das
raposas. A não ser que o vento mudasse direção. Então o preto Mané
Pedro apresenta uma sugestão:
- Ô seu Chico! Eu acho que sei como o senhor pode resolver essa
questão com as raposas!... - Diz isso rindo gostosamente.
47
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
a verdade está curtindo a raiva do seu Chico Elias. Que
reconhecidamente, não gosta nem um pouco de preto. De
fato ele é um racista confesso. Faz questão de afirmar: Negro não presta!
Mas o Mané Pedro, ele tolera. Faz de conta que não, mas percebe-se
que ele gosta de Mané. Deve ter herdado de seus ancestrais
portugueses esse ranço pela negritude.
Mané Pedro seguramente, é o único preto com quem ele se relaciona
razoavelmente bem. Mas fala com desdém:
- Diga lá Mané Pedro! Que solução milagroooosa é essa?
- Seu Chico! - Continua falando mansamente Mané Pedro. - É muito
fácil! O senhor corta uma vara de bambu bem comprida! Enterra
ela no chão! Dobra a ponta e arma uma armadilha com uma laçada
de corda abraçando o melão! Mas não corte o melão! Deixe ele
inteiro!
Vovô Chico Elias fica olhando um pouco admirado para Mané
Pedro. Em seguida, vira-se para as pessoas presentes e devolve
carregando na ironia:
- Não é que o negro pensa?... E você já viu isso funcionar, Mané
Pedro?
- Já! Seu Chico! Eu lhe mostro como fazer!
O preto é mesmo uma doçura de pessoa. Por isso todos os netos de
vovô Chico Elias gostam tanto dele.
Mas tarde, sem Mané por perto, Josina comenta:
- Mas compadre Chico! O Mané Pedro é uma pessoa tão bondosa!
Por quê o senhor fala assim com ele? - Rindo de soslaio o vovô
responde:
-Minha comadre! Tá certo que Mané Pedro é um preto de alma
branca! Mas preto é preto! A gente tem que andar com eles com um
48
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
pé atrás!
O vovô também é uma vítima do preconceito arraigado ha séculos.
Da intolerança da cultura ancestral, vinda de portugal juntamente
com os negros escravos trazidos em porões de navios negreiros. Ele
só reproduz essa herança maldita.
Logo cedo vovô Chico Elias vai procurar uma boa vara de bambu E à
tarde, Mané Pedro, voltando da olaria vai lá ajudá-lo a montar a
geringonça para capturar a raposa ladrona. Mané Pedro é um
bonachão. Está sempre rindo. Não guarda rancor de ninguém. Nunca
se viu ele com semblante raivoso. Ajuda o vovô Chico Elias a
enterrar a vara, ensinando com grande paciência como preparar o
laço da corda abraçando o melão. Tudo preparado! À noite após o
jantar as conversas giram em torno da captura das raposas. No plural,
claro. Não se sabia quantas estavam visitando a plantação de melões.
Odia amanhece. Logo depois de uma xícara de café, seu Chico se
dirige ao local da armadilha. Dessa vez o cachorro também engrossa
a fila que segue seu Chico.
As crianças se divertem na maior expectativa.
De longe, todos já avistam a mesura. Ha realmente uma raposa
pendurada na vara. O cachorro logo chega ao local ladrando
ferozmente. Seu Chico, que já conduzia sua foice, cortou um bom
ramo de pereiro e se aproxima para saudar a raposa.
- Cala a boca! Seu gôzo! - Ralha ele com o cachorro.
- Bom dia camarada raposa! Como passou a noite? - A raposa lhe
arreganha os dentes. Pendurada na vara a uns dois metros do solo.
- Segurem esse cachorro! - Grita seu Chico. E se dirigindo a Mané
Pedro ele solicita muito amavalmente:
- Mané! Empurre a vara baixando um pouco essa safada!
Feito isso, seu Chico aplica-lhe a maior surra de cipó de pereiro que
49
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
uma raposa já levou até então por aquelas redondezas.
Ficou bastante suado de vergar o ramo no espinhaço da raposa. Mas
agora sua expressão é de total satisfação.
Depois de muito apanhar a raposa já não reage. Mané afrouxa a
corda e ela cai mole ao chão, toda moída com a surra que levou.
Para finalizar a exibição, que muito diverte as crianças, seu Chico dá
o golpe de misericórdia com o olho da enxada na cabeça dela.
Outras armadilhas foram montadas nas noites seguintes. Mas
felizmente, aquela era a única que vinha comendo os melões de seu
Chico Elias.
Por vários dias a surra da raposa foi o assunto das conversas entre
os moradores do sítio.
No Domingo seguinte acontece uma tragédia para Francisco. O
jumento Carrité, animal de cangalha e de cela da casa, sempre foi
muito arisco. Montar nele não era fácil. A não ser Pedro Elias, que
havia amansado o animal na porrada.
Por motivo desconhecido, no Domingo ele resolveu celar o animal
para mandar o seu irmão Elias e Francisco lá na casa de compadre
Chico Bobôco, seu sogro, que mora lá pras bandas da Serra de São
Bernardo.
Aperta bem a correia da cela com o jumento dando coices. Ha dois
caminhos pela parte traseira da casa. Um que leva ao açude e outro
que vai na direção da barragem, por onde eles deverão seguir.
Segura o cabresto do burro e manda Elias montar.
O jumento já reclama se mostrando muito inquieto. Em seguida
alguém levanta Francisco e coloca-o na garupa do animal.
- Segure bem na cintura de Elias! - Orienta Pedro Elias. - E você
Elias, mantenha o cabresto bem puxado! Não afroxe a rédea! O
burro tem que andar com rédea curta! - Solta o cabresto e dá um tapa
nas ancas do Carrité.
50
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
lguém já viu um jumento doido? Alí está um. Carrité
aprumou o fucinho na direção do açude e dispara correndo
loucamente, peidando e dando coices no vento.
No terceiro peido, Francisco despenca de cima da garupa caindo
frouxamente sobre uma touceira de milho seco.
Bem no tronco do pé de milho ele encontra uma pedra, batendo nela
com o braço esquerdo, quebrando a munheca.
Chegando ao açude o jumento Carrité dá meia-volta e dispara
rertornando para casa. Passa em frente às pessoas com orelhas
murchas tomando o outro caminho na maior disparada. Pedro Elias
grita para o irmão:
- ELIAS! SEGURE O CABRESTO!
- EU NÃO AAAACHO! - Responde ele em total aflição, aos
solavancos, tentando não se soltar da cela do animal que prosegue
sua trajetória louca dando coices ao vento e peidos enormes.
Claro! A segurança falava mais alto. Elias já havia soltado o cabresto
há muito tempo, deixando o jumento correr de rédea solta,
agarrando-se à lua da cela tentando não cair também. Por sorte, um
quilômetro depois ha um riacho com água e Carrité riscou! Só foi o
tempo de Elias saltar no chão. Daí ha pouco chega em casa de volta
puxando o Carrité pelo cabresto.
Francisco, a essa altura, chorando sem controle, acaba de ser retirado
do tronco do pé de milho e levado para casa para encanar o braço.
- Quebrou o osso do braço! - Diz o vovô após um breve exame. Alguém me arranje duas tariscas de taquari (lascas feitas de casca
de bambu seco, bastante resistentes).
Manda providenciar um emplastro caseiro, besunta o braço do
menino, enrola com um pedaço de pano, põe uma tarisca de cada
lado e enrola o braço com outro pano apertando bem forte.
- Ta pronto! Comadre Josina faça uma tipóia pra colocar no pescoço
51
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
dele e segurar o braço! E você, meu filho! Tenha todo cuidado com
esse braço para as tariscas não saírem do lugar! Daqui ha um mês
esse braço tá novinho em folha!
Manda providenciar chá de casca de Aroeira para o menino tomar
duas vezes por dia. Vai ajudar a colar o osso. Diz ele. Enfermaria
rural. Isso é bastante praticado nesse tempo, utilizando-se os
remédios caseiros.
Atal viagem foi imediatamente cancelada. Esse não seria um bom
jeito de começar o Domingo.
Oh! Tempo! Oh! Vida sofrida de lavradores! Oh! Infância
sacrificada!...
As crianças também pagam seu preço. Vivendo em grande
simpliscidade, com brinquedos toscos. Ossos de animais são seus
carrinhos puxados por um cordão. Bonecas de pano que Josina
mesma faz para as meninas!...
Quando se vê as crianças dos dias atuais, destroçando seus
brinquedos caríssimos, tem-se a impressão que elas não estão sendo
suficientemente bem educadas.
Mais um fim de ano está chegando. Dezembro de 1947. Como
sempre aos sábados os adultos estão indo à feira na cidade. Uma
experiência inusitada vai ser oferecida ao vovô Chico Elias.
Ha um circo armado na cidade. E este é um divertimento espetacular
para os caicoenses. Lazer e diversão para todos, a preços módicos.
O Ezequiel Elpídio, muito brincalhão e gozador, gosta de se divertir
com a ingenuidade dos outros. Resolve pregar uma peça no vovô
Chico Elias. Convída-o para ir assistir o circo. Aos sábados o circo
realiza espetáculos também à tarde. Claro! Para receber o pessoal
que mora no meio rural e que está na cidade por conta da feira. O
vovô nunca havia assistido um espetáculo circense em toda a sua
vida.
52
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Vamos seu Chico! Eu pago sua entrada! - Insiste Ezequiel. O vovô
Chico Elias, cheio de curiosidade, resolve aceitar.
Longe de saber a prezepada que Ezequiel está engendrando para ele.
Jamais se separa de seu saco de pano que conduz sempre no ombro,
mesmo quando está vazio. Fosse a onde fosse. Seu saco ia junto.
Principalmente à cidade nos dias de feira. E lá se foram ao circo.
Chegando lá Ezequiel ausentou-se um pouco.
- Eu volto já! - Disse ele. - Vou comprar os ingressos!
O vovô fica ali parado aguardando em frente ao circo, observando o
ruge ruge de gente se espremendo numa fila para entrar. Já são 15h00
e o espetáculo já vai começar, pois termina às 16h30. O vovô
observa tudo com curiosidade. Ezequiel combina então com o
homem da portaria para não deixar o velho entrar com o saco. Manda
o homem esconder o saco para provocar uma confusão na saída.
- Está aqui os ingressos! Vamos entrar! - E se aproximam da entrada.
- Desculpe Senhor! Mas não pode entrar no circo com esse saco!
- Como não pode? - Responde curioso o vovô.
- Não pode, senhor! O senhor deixa o saco aqui comigo e pega na
saída.
- É! Chico Elias! Entrega o saco pra ele! Na saída a gente pega! Diz Ezequiel. O vovô então atende a imposição e entrega o saco ao
homem.
- Cuidado viu! Aí tem uns brinquedos dos meus netos!
- Sim senhor! Pode ficar tranqüilo! - E os dois entram no circo.
Terminado o espetáculo, muita diversão, muitas risadas, a multidão
se dirige rápido para a saída. O portão de entrada está escancarado
com toda aquela gente querendo sair ao mesmo tempo.
Vovô Chico Elias vai sendo cuspido para fora espremido na
multidão e tenta enxergar o tal homem com quem deixou o seu saco e
já desesperado não o encontra. Demonstrando todo
53
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
descontentamento ele pergunta:
- Ezequiel! Cadê o homem com o meu saco?
- Não sei Chico Elias! Estou procurando ele, mas não acho!
O vovô não se contém e então barre a quenga, como se diz nesse
tempo, quando alguém está muito irado. Bradando no ar a sua
bengala, da qual também nunca se separa, ele grita estridentemente
no meio daquela multidão:
- Apareça! Seu desgraçado! Com o meu saco! Apareça! Se não eu
vou quebrá-lo de cacete!...
Ezequiel está rindo às gargalhadas e o homem do circo, já
preocupado com aquela propaganda negativa aproxima-se
devolvendo-lhe o saco.
- Está aqui, senhor! Aqui está! É que eu estava lá atrás e não vi o
senhor!
Ao receber seu saco e examinar se os brinquedos todos estão lá
dentro, o vovô joga o saco nas costas e dirige aquele olhar 49 muito
irado na direção de Ezequiel, e muito desconfiado desabafa:
- Isso é prezepada sua! Seu cachorro! - Retirando-se, pegando o
caminho na direção do sítio. Ezequiel está morrendo de rir. É o seu
patrão. Mas o velho Chico Elias não tem papas na língua. Fosse
quem fosse. Lhe desagradou! Recebia desaforo.
À tardinha todos estão de volta ao sítio. O último a chegar é sempre o
Pai Chico Elias. Que anda mais devagar carregando o peso de seus
mais de setenta anos. Trazendo alguns pães para a diversão das
crianças, que o aguardam ansiosas. Basta um grito dele lá do
caminho aproximando-se da casa e a criançada dispara na carreira
cercando o vovô para receberem os pães doces mão de onça.
Desta vez ele traz também algo diferente. São pequenos presentes de
Natal!
54
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
As meninas ganham bonecas de louça. Pedrinho ganha um
estilingue. Agora as rolinhas da redondeza vão saber o que é bom!...
Francisco também ganha um presente. A Marina e o Josafá ainda são
muito pequenos. Ela apenas se arrasta pelo chão. Ele ainda bebê de
colo.
- Meu filho, venha cá! - O vovô chama Francisco e senta com ele no
banco de madeira no terreiro da casa. - Abra seu presente! - O
menino abre o pequeno pacote enrolado com um papel de bolinhas
coloridas. E retira um pequeno realejo. Uma gaita de uns oito
centímetros apenas.
- Você sabe o que é isso? - O menino abana a cabeça afirmando que
não.
- É um realejo meu filho! Uma gaita de tocar. É assim!
E pegando a gaita sopra nela ensinando a Francisco como é que se
toca o instrumento. Soprando para fora e aspirando.
- Ta vendo, meu filho! Soprando para fora é um tom. Para dentro é
outro! Tome, tente!
Francisco fica encantado com aquele presente.
O primeiro presente de Natal em sua vida até então. Pedro Elias, por
sua vez, tinha alguma habilidade com gaitas de boca. Vez por outra
tocava alguma coisa na gaita. Francisco se diverte em seu
aprendizado autodidata. Fon fon prá cá! Fon fon pra lá! Continua ele.
À todo momento está soprando e se divertindo com sua gaita.
O ano novo começa com boas chuvas. Já se passaram dois meses e o
período agora é de roçar o mato para deixar os pés de feijão, milho,
melancia e melão crescerem em terreno limpo. Todos os dias, seu
Pedro, o vovô Chico Elias e o preto Mané Pedro se dirigem ao
trabalho no roçado, que não fica muito distante da casa. Ao meio-dia
retornam para o almoço. Só pela manhã. À tarde eles trabalham na
55
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
olaria. Seu Pedro está pensando em abrir o mato numa área mais
próxima de casa para plantar outro roçado.
Assim, sendo pertinho de casa ficaria melhor para o vovô cuidar
dele. Enquanto eles se dedicariam por mais tempo ao trabalho na
olaria.
Os homens se aproximam trazendo suas enxadas para amolar. O
vovô vem à frente. Francisco está sentado no banco de madeira
tocando as primeiras notas de uma música que ouve muito os adultos
cantarem. É o grande sucesso musical da época. Asa Branca, do Luiz
Gonzaga, que já despontava fazendo sucesso. Sem rádio por ali, as
pessoas aprendem as músicas ouvindo outras pessoas cantarem.
Vovô Chico Elias aproxima-se de Francisco e pára perguntando:
- Meu filho! Isso é a Asa Branca? Você ta tocando a Asa Branca?
O repentino interesse do vovô na sua música deixa Francisco meio
tímido. Ele se remexe no banco meio encabulado. Até parece que
está fazendo uma coisa errada. Será? Pelo jeito da interpelação do
vovô! Mas ele está é muito surpreso com a façanha do neto. Só faz
dois meses que dera a gaita pra ele!
- Vamos meu filho! Toque! - O menino rindo sem jeito não consegue
tocar. Seu pai aproxima-se na companhia de Mané Pedro
perguntando:
- O que foi? Ele tava tocando?
- Tava, sim! - Insiste o vovô: - Vamos meu filho! Toque a Asa Branca!
E francisco, nada. O vovô então fala sério. As crianças sabiam
quando ele falava sério pelo jeito do olho arregalado.
- Isso não é brincadeira! Toque! Você estava tocando a Asa Branca,
que eu ouvi!...
Francisco então leva o vovô a sério e toca desajeitadamente
solfejando as notas da música. Pouca coisa. Mas o suficiente para se
56
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
ouvir que era realmente a Asa Branca. O vovô escora-se no cabo da
enxada para ouví-lo. Víra-se para os demais e exclama com certo ar
de orgulho:
- Esse meu filho, um dia ainda vai ser artista!
Provavelmente, sua intuição lhe fala bem alto nesse momento. Não
viveria para alcançar o neto artista. Mas estava vaticinando o futuro
profissional de Francisco. Um tocador de sanfona razoável, como
veremos mais tarde, bem como outras atuações artísticas com as
quais pontuaria sua vida profissional futura.
Toda sua trajetória artística está começando ali. Com uma gaita de
boca simplória e infantil. Seria obra do acaso? Esse meu filho ainda
vai ser artista! A frase fica-lhe gravada no subconsciente com
bastante nitidez, pois embora não soubesse do que se tratava,
observou o ar de satisfação nos adultos, que riam com a observação
do vovô a seu respeito.
Ou seria a Inteligência Suprema lhe mandando um recado através de
seu avô? Quem sabe!...
Mas algo interessante realmente aconteceu ali naquele momento,
marcando o destino desse menino para sempre.
O tempo se encarregaria de lhe revelar conhecimentos e vivências
extraordinárias.
Três décadas depois ele vai ter oportunidade de lembrar aquele
momento e o vaticínio de seu avô.
Pena que pouco tempo depois a gaita se quebrou, encerrando a
experiência musical de Francisco. Por enquanto. Ha sem dúvida,
uma energia musical em torno desse menino. Provavelmente
influenciando seu espírito nesse caminho.
Sua mãe Josina tem um canto muito afinado. Até mesmo o vovô
57
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Chico Elias, quando tenta embalar os netos, com uma música muito
esquesita. Canta ele: “Meu amor morreu de bexiga, foi enterado num
buraco de formiga!” Ou uma outra que fazia as crianças darem
risadas: “Raposa magra do .. franzido! Rouba galinha, come
escondido!”
Uma tarde Pedro Elias dá instruções a Mané Pedro para continuar o
trabalho na olaria enquanto ele vai abrir o mato ali próximo de casa
com um machado e a foice abrindo espaço para o novo roçado.
Define uma área e trabalha lá cortando os troncos de jurema, pereiro
e do mufumbo, para depois botar fogo no pasto seco. Isso é comum
para preparar a terra para o plantio. O inverno está prometendo
muito. Dois dias de trabalho serão suficientes para preparar o novo
roçado.
Pedro Elias tem pressa. Vai cortando na foice os galhos mais finos e
derrubando os troncos com o machado. Está muito suado. O sol está
quente.
Esse é mais um trabalho árduo cujo produto terá que dividir meio a
meio com o patrão. Francisco vai arrastando os galhos cortados e
amontoando numa coivara (monte de galhos). De repente, um
acidente!
Trabalhando freneticamente seu Pedro se desconcentra um pouco. A
foice resvala no galho seco e atinge seu braço esquerdo em cheio.
Corta a carne descascando até o osso.
O sangue jorra. Francisco tem só seis anos e se vê agora diante de um
quadro dantesco. Sofre vendo seu pai todo ensangüentado.
- Meu filho fique aí juntando esses galhos já cortados que eu vou
rápido lá na cidade para fazer um curativo nesse braço! - E
segurando o braço com a outra mão, o sangue pingando, afasta-se
indo na direção da casa que fica a uns 300 metros. Tão logo ele saiu
Francisco solta livremente seu choro reprimido.
Chora por pena do pai. Chora de medo. Não consegue concatenar as
58
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
idéias. Nunca tinha visto tanto sangue assim numa pessoa. Seu pai
podia morrer? Todos os pensamentos mais desencontrados lhe
atingiram em cheio naquele momento. Aos poucos foi se acalmando.
Observando que daí ha pouco ia anoitecer, talvez umas cinco e meia
da tarde, lembrou das raposas e guaxinins e teve medo.
E como é costume seu nessas situações, abre uma animada conversa
com alguém invisível, existente apenas na sua imaginação.
Assim acredita que as raposas não se aproximarão. Talvez
pensassem que havia mais gente com ele.
Era isso! Conversou e conversou! Trocou idéias!
De repente um ruído estranho atinge em cheio os seus ouvidos. Parou
o que estava fazendo e apurou o ouvido... O ruído se repetiu! Agora
mais perto! Parecia o rasgo do gato maracajá. Um felino pouco maior
que um gato. O gato do mato como diziam. Diferente dos bichanos
comuns, eles têm pontinhas nas orelhas. Francisco treme de medo.Aí
não mais conversa. Salta numa desabalada carreira para casa
gritando a todos pulmões:
- Mamãe! Mamãe! Mamãe me acuda! - Josina sai rápido na porta da
cozinha exclamando assustada:
- O que é isso menino! O que foi! - Francisco corre os 300 metros em
tempo recorde. Tremendo de medo agarra-se a sua mãe.
- Um gato maracajá, mamãe! Queria me pegar! Queria me pegar! Continua chorando agarrado a saia da mãe, que tenta acalmá-lo.
Levantando a vista Josina vê o compadre Ezequiel que se aproxima
pelo caminho rindo gostosamente.
- Compadre Ezequiel, você ainda ri dessa situação!...
- Reage ela.
- Comadre! Fui eu quem assustei o menino! Não imaginei que ele ia
ter tanto medo. - E continua rindo da situação.
- Mas compadre, você quase mata esse menino de susto. Até eu! -
59
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Ainda estou aqui com o coração na boca!
Pensei que algum bicho tivesse atacado ele!...
O compadre Ezequiel desculpa-se e é convidado a entrar.
- Chiquinha! Bote aí o café no fogo para o compadre Ezequiel
tomar!
- Quero mesmo, comadre! Mas me traga primeiro um copo de água.
Por favor!
-Tome a bênção a seu padrinho, Francisco! - Diz ela afastando-se
para pegar o copo de água.
- Sente aí, compadre!
O compadre Ezequiel abençoa o menino e pisca-lhe o olho dando a
ele uma bonita moeda de quinhentos réis. O Réis é a moeda desse
tempo. Quinhentos réis seria igual a 50 centavos de qualquer moeda.
Senta numa espreguiçadeira para tomar o café. Um tipo de cadeira
de balanço rudimentar feita com hastes de madeira e uma tira de
tecido de rede presa no meio.
- Cadê o compadre Pedro, comadre? - Pergunta ele devolvendo o
copo.
- Foi a cidade fazer um curativo num braço. Quase decepa o braço
com um golpe de foice cortando lenha lá no roçado que ele está
abrindo. Um horror, compadre! O osso ficou de fora!
- Cortou o osso?
- Não sei, compadre. Mas perdeu muito sangue! Enrolei o braço dele
numa toalha, ele selou o burro e foi lá na cidade para o Cícero da
Usina fazer um curativo.
- Puxa vida! Que coisa! Será que quebrou o osso do braço? Sem
dúvida o compadre Ezequiel já imaginava o quanto isso atrapalharia
os trabalhos lá na olaria.
- Mas pra quê ele foi abrir esse roçado, comadre!
- Quer fazer o roçado aqui pertinho de casa. Assim a gente pode
cuidar da lavoura enquanto ele trabalha na olaria. O compadre
60
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Chico vai nos ajudar a cuidar do roçado!
- Pois é, comadre! Logo agora, que eu vim aqui para avisar a ele que
recebi uma nova encomenda de dois caminhões de telha e três de
tijolos. Acho que o Mané Pedro sozinho não vai dar conta do
serviço! Vou esperar por ele pra gente ver o que se pode fazer! Continuaram palestrando.
Enquanto isso, lá na cidade está se desenhando um quadro
inesperado.
Pedro Elias após receber o curativo da costura do braço foi até a
farmácia de Chico Medeiros comprar uns comprimidos para
acalmar a dor.
Ao entrar na farmácia encontra Chico Medeiros conversando com
seu irmão Honório, que vinha a ser o administrador do sítio da Velha
Iria, sua mãe viúva, após a morte do velho Honório, pai.
- Ah! Pedro Elias! Como vai? - Após cumprimentos de praxe o
Honório dá o tom da conversa:
- Pedro Elias eu tenho uma proposta pra lhe fazer!
- Ah, é?
- É você quem está fazendo as telhas e os tijolos lá no Riacho do
Meio, não é?
- É sim! Eu e Mané Pedro!
- Mas que telhas boas e bem feitas! Você sabia que lá no nosso sítio,
vizinho ao Riacho do Meio, nós temos um barro igualsinho aquele
que vocês têm lá?
- E é? - Pergunta surpreso Pedro Elias.
- Eu lhe ofereço 2 tostões por cada telha e tijolo que você fizer! Você
quer ir morar lá no nosso sítio?
Ele analisa a situação por um instante, tentando compreender o que
está acontecendo, depois responde:
61
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Mas Honório! É preciso montar toda uma estrutura! A olaria, as
bancadas de madeira para se trabalhar em pé. Água perto para
amolecer o barro. Vai precisar de lenha para queimar nas caieiras!
E casa? Casa pra morar! Vocês têm tudo isso lá?
- Não se preocupe! Tem até estrada já pronta! Só falta montar a
olaria e você escolher o local onde quer construir a casa. Eu boto
todo o material que vai precisar para construir a olaria e a casa! O
que você me diz?
Já recebendo o medicamento que pediu e ainda pensativo, Pedro
Elias responde:
- É Honório! Eu vou pensar e sábado eu venho para a feira e lhe dou
a resposta!
- Mas não demore Pedro! Se você não quiser a proposta eu vou
colocar outra pessoa no seu lugar! Eu tenho pressa!
- Tá certo! Sábado eu lhe dou a resposta! - E dando boa tarde Pedro
Elias se retira montando no burro e seguindo para casa.
Parecia que estava voando. Sua mente explodia de pensamentos.
Parece que as coisas iriam mudar sua vida. Será que o barro que ele
falou era mesmo bom? Precisava testar. Mandaria Mané Pedro lá
pegar um pouco do barro.
Tinha que fazer isso na surdina. Sem o compadre Ezequiel saber.
Não desejava provocar sua raiva com isso. Trotando no burro
rapidamente logo chega em casa.
- Pronto, compadre! Ele está chegando! - Diz Josina. Ezequiel
levanta-se da cadeira e vai ao encontro de Pedro Elias.
-Mas compadre Pedro! Que desastre foi esse? Quebrou o osso do
braço?
- Graças a Deus não, compadre! A foice resvalou no osso! Só cortou
a carne! - Trazia o braço todo envolto em gazes e esparadrapos. Teria
62
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
que voltar ao enfermeiro no próximo sábado para refazer o curativo.
- Aquele Cícero da Usina é mesmo um carniceiro, compadre!
Costurou isso cru! Disse que não tinha anestesia. Mas passou uns
comprimidos e eu fui lá na farmácia e comprei. Já tomei um e a dor
tá passando!
Essa passada na farmácia do Chico Medeiros havia sido
providencial.
- Compadre Pedro e agora? Quanto tempo você acha que vai passar
sem poder trabalhar na olaria? Isso aí, - observando o braço dele vai demorar pelo menos uns dois meses, hein!
- Acho que sim, compadre!
- Pois é uma pena! Eu vim aqui exatamente pra lhe avisar que recebi
uma nova encomenda de dois caminhões de telha e três de tijolos. O
Mané Pedro não pode dar conta do recado sozinho! Vai?
- É! É muito trabalho pra ele só!
Acho que temos um problema! E tem outra coisa compadre! Que eu
preciso lhe dizer! Recebi hoje um convite de Honório, para ir morar
lá no Pai Bastião e fazer telhas por lá! Ele vai me pagar dois tostões
por cada telha e tijolo! - Pego de surpresa o compadre Ezequiel
pergunta:
- E você vai compadre?
- Vou sim, compadre! Dois tostões é o dobro do que você me paga!
Eu já acertei tudo com ele! - Pressiona seu Pedro. Na expectativa de
que o compadre Ezequiel resolva lhe pagar a mesma coisa. Mas o
Ezequiel já está ferido em sua personalidade e colocando o chapéu
na cabeça adverte taxativamente:
- Pois compadre Pedro! Esse foi o pior negócio que você já fez em
sua vida! Aquela gente não presta!
- Boa tarde comadre Josina! Obrigado pelo café! Eu já me vou! Até
logo compadre Pedro! - E se retira imediatamente deixando Pedro
Elias com a boca seca. Sem possibilidade de contra-argumentar.
63
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Pedro Elias mostra-se pensativo. Josina argumenta:
- Isso vai dar certo?
- Agora não tem jeito! Você viu a reação dele! Eu pensei que ele ia
resolver me pagar a mesma coisa! Agora! O jeito é topar a proposta
do Honório!... Deus é que sabe!
Ao fim da tarde o pai Chico Elias chega da varzante de frutas e
recebe a comunicação. Ouve em silêncio e depois considera:
- O Ezequiel está com razão! Aquela gente do velho Honório não
presta! Mas o que tá feito, remediado está! Seja lá o que Deus
quiser! Não ha como voltar atrás!
Dois dias depois já é o sábado. Pedro Elias não tem alternativa. E
procura o Honório para confirmar a resposta. Feitos todos os acertos,
as obras da olaria seriam iniciadas imediatamente, assim como a
construção da nova casa para sua a família.
Pelo menos ele vai ter a casa que sempre sonhou. Com um alpendre,
uma sala grande, dois quartos, uma cozinha ampla com fogão novo,
uma despensa maior onde também seriam armazenados os grãos que
fossem colhidos, já que Pedro Elias também vai ter seu roçado para
plantar sua roça de subsistência uma e varzante na área do açude. As
promessas do Honório são maravilhosas. Resta apenas a
desconfiança de que tudo não ocorra conforme o prometido. O vovô
Chico Elias tem lá suas dúvidas.
Àtardinha está em casa de volta da feira. Mas se mantem pensativo e
um pouco reservado. Como se estivesse apreensivo.
Esta é uma noite de lua cheia. Algo que alegra por demais as pessoas
do campo. É sempre motivo de descontração. Mas nem mesmo
Mané Pedro divertindo as crianças no terreiro da casa, sob a luz do
luar, com a sua dança de côco de roda, tira seu Pedro dos seus
64
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
pensamentos pesarosos. Uma mudança radical é sempre motivo de
muita reflexão na vida de qualquer pessoa. Imagine-se ele, que não
estava acostumado a decisões tão repentinas.
Alheias aos problemas dos adultos as crianças se divertem com
Mané Pedro dançando no terreiro da casa, rodopiando e estalando as
sandálias de couro cru nos calcanhares. O mano Pedro Elias Filho,
então com três anos de idade, se deslumbra com a dança de Mané
Pedro. Viria, anos mais tarde, a ser um autêntico imitador de Mané
Pedro.
A figura daquele preto brincalhão se fixaria em sua mente infantil
para toda a vida. Os dois meses seguintes, enquanto se recuperava do
acidente com a foice, seria o tempo de preparar tudo no sítio do
Honório para a mudança. Pedro Elias mandou Mané Pedro pegar um
pouco do barro lá e fizeram teste com algumas telhas e tijolos. De
fato, o barro também era muito bom.
Logo ele foi ao sítio do Honório escolher o local onde queria que a
nova casa da família fosse construída. A casa dos seus sonhos.
Incluindo um curral ao lado.
Do acerto no acerto também constava uma vaca de leite para
alimentar melhor as crianças. A casa seria uma beleza. Tudo de
alvenaria. Chega de casa de taipa! Pensa ele.
Em frente à casa um juazeiro frondoso.
Um roçado para plantar e uma varzante na vargem do açude eram
imprescindíveis. Os pensamentos vinham em turbilhões na mente de
seu Pedro. Mais uma vez, entre tantas outras, aquela noite ele rezou a
Deus e a Virgem Maria, pedindo proteção para sua família.
O dia seguinte vai ser mais uma vez doloroso para Francisco.
65
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
H
a tempos Pedro Elias conseguiu um outro jumento para
ajudar nas tarefas de transporte.
E uma vez por semana Francisco e Elias levam os animais à tardinha
para dar um banho e escovar o pelo dos animais lá na cacimba do
riacho. Ha uma lata na cacimba e uma cuia, usados para o banho,
inclusive dos animais.
Depois os dois voltam para casa montados em pelo nos animais. Para
não cair trançam as pernas prendendo-se por baixo do animal.
Enquanto subiam o morro na direção de casa não dava para o burro
correr ladeira a cima.
Terminada a subida o jumento dispara num galope apressado e
sacolejando sobre o animal Francisco vai deslizando, deslizando
pendendo o corpo para debaixo dele.
O pelo molhado propiciou que deslizasse tão desajeitadamente. E
agora? Vai se mantendo como pode galopando por baixo do animal.
A sua cabeça de vez enquanto arrasta no chão. Ele se curva para
frente tentanto evitar se machucar. Suas forças vao se esvaindo e o
burro não para a corrida. Francisco bate então com a cabeça numa
pedra e o mundo parece mudar de cor. Ele se solta no chão. O burro
prossegue na corrida. O mundo está todo vermelho. Francisco está
banhado de sangue. O tio Elias que vem atrás pára e levanta
Francisco colocando-o sobre o outro jumento e leva-o para casa.
Um desastre. O menino tem um corte profundo no coco da cabeça.
Após lavar e limpar todo o sangue Josina passa álcool na cabeça dele
e cobre o ferimento com pó de café.
Isso mesmo. Pó de café. Era o cicatrizante mais utilizado até então.
Por uma razão óbvia. O pó de café pode estancar o sangue facilitando
a coagulação no local. Essa prática era largamente utilizada.
- Como se foi lá? - Quiz saber o vovô Chico Elias, sobre o acerto de
66
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Pedro com Honório.
- Ficou tudo acertado! Esses dois meses vão ser de preparativos
para montagem da olaria e construção da casa! Vamos nos mudar
para o Pai Bastião. É o jeito!
Ha também um pequeno tear em casa. Entre outras coisas, a
inteligência operacional do casal Pedro e Josina parece não conhecer
limites. Conseguiram um tear e agora eles mesmos tecem as redes da
família. Agora já são seis filhos. Ha necessidade de mais redes.
Comprar é caro.
Eles resolvem tecer as redes. Fazem isso à noite, aproveitando o
período em que não há mais milho ou feijão seco para debulhar. Para
as crianças até o tear é diversão.
Pela manhã, uma novidade! A visita do tio Jaconías, irmão de Josina.
Vem para procurar enxús. Já se sabia que no sítio havia muito mel de
enxús para colher. E ele faz isso como ninguém.
De longe o cachorro já late ferozmente.
- Prendam o cachorro! - Grita ele.
Tubarão é um cachorro bom de caça, muito feroz quando se tratava
de estranhos aproximando-se da casa. Era também uma segurança
para Josina sempre que os homens estavam longe no trabalho.
O compadre Ezequiel já tinha experimentado a ferocidade de
Tubarão.
Os ciganos, que vez por outra apareciam nos sítios tentando arrancar
alguma coisa daquela gente pobre, ali eles não encostavam. Tubarão
botava todos pra correr.
Cachorro na coleira e bem amarrado, o tio Jaconías então se
aproxima. Trazia também o seu cachorro. Queria aproximar os dois
animais para que juntos pudessem participar de uma grande caçada
67
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
noturna que estava planejando realizar ali no Riacho do Meio.
Sabia-se que também existia muita caça, entre Tacacá, cujo fedor do
mijo embebeda os cachorros, Tatu Verdadeiro, que ao se socar num
buraco no chão acuado pelos cachorros dá o maior trabalho para ser
retirado. Um torrado de Peba Verdadeiro bem gordo é uma farra
imperdível. E o tio Jaconías adora essas caçadas. Explica para as
crianças como arrancar um Tatú do buraco:
- Primeiro, os cachorros acuam indicando o buraco do Tatu. Em
seguida derrama-se uma lada de água no buraco! Se não fizer isso o
Tatu crava as unhas na terra e não ha força que arranque ele de lá.
Tóra-se o rabo dele mas o bicho não sái. Então, com a água dentro
do buraco ele não consegue fixar as unhas na terra.
- Mas se não tiver água? - Pergunta uma das crianças.
- Bom, aí! O jeito é apelar para a ignorância!
- Como assim!
- Segura-se o bicho pelo rabo, e isso tem que ser rápido, porque ele
continua cavando dentro do buraco para se enterrar mais fundo,
enfía-se o dedo indicador no orifício dele, aí ele afrouxa-se todo e
então é só puxar pelo rabo que ele sái.
-Quá quá quá quá!
Riem todos. Crianças e adultos. Esse tio Jaconías tem cada uma!...
Permanece alguns dias com a família, tempo suficiente para ensinar
os meninos como tirar os enxús carregados de favos de mel.
O tempo das flores já havia acabado. O pólem estava armazenado no
mel dos enxús. Só precisava encontrá-los pelo serrado a fora.
Os dois cachorros se mantinam amarrados distantes um do outro se
estranhando a toda hora, mas aos poucos foram se acostumando e
dois dias depois já estavam se cheirando e tolerando a presença do
outro. Era isso que o tio Jaconias esperava.
68
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
À
tarde ele saiu com os meninos Francisco e Elias para encontrar
os enxús. Meia hora de caminhada por entre o serrado e logo
encontram um belo enxú.
- Olha lá! - Mostra o tio Jaconias. - Prestem atenção!
Diz ele enfiando o dedo indicador na boca e levantando o braço.
- Isso é pra você sentir no dedo a direção que o vento está vindo. Por
quê? Ha, Ha! - Brinca ele. - Você não pode se aproximar do enxú a
favor do vento. Se as abelhas sentirem o seu odor elas vêm em cima
de você! É a defesa delas! Então, sabendo a direção do vento você se
aproxima do enxú pela parte de baixo! Contra o vento! Aí você pode
chegar bem perto.
Peguem ali algumas bostas de gado secas e tragam aqui! - Logo os
meninos trouxeram uma porção de fezes de gado seca. Tudo foi
amontoado no chão e ele bota fogo.
Quando a fumaça já é bastante ele ensina:
- Peguem! Cada um de vocês uma bosta acesa e soprem para
fumaçar bastante! Só assim você pode ir para a parte a favor do
vento. As abelhas não se aproximarão de você. A fumaça embebeda
elas e as espanta. Elas irão se agrupar num desses galhos de árvore
aqui por perto. Vamos lá?
E vão se aproximando mais e mais do enxú. As abelhas vão saindo
todas e se agrupando numa árvore próxima. Chegando enfim ao
enxú, o tio Jaconias corta com a foice a touceira de mato inteira que
prende o enxú. Uma bola grande cinzenta, parecendo um cupim.
Bota o enxú inteiro na cabeça.
- Vamos embora! - E caminham para casa.
- Tio! E as abelhas?
- Elas vão fazer um outro enxú por ai.
69
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Chegando a casa as outras crianças se animam.
- Tragam ai um baláio! - Solicita ele. E vai abrindo as capas do enxú
e colocando dentro do baláio com os favos de mel para cima.
- Não comam agora! Mel de abelha quente dá uma dor de barriga
danada! E é danado pra soltar traque!
(Peidar).Tem que deixar esfriar! - Insiste ele.
O enxú é bem grande. Quase enche o baláio. As crianças se
acocoram ao redor do baláio colocado à sombra da latada e
permanecem anciosas.
- Tio! Já podemos comer?
- Ainda não! Tem que esperar uma hora! Até o mel esfriar!
É o tempo em que os adultos chegam do trabalho e agora todos
degustam saborosamente as capas de enxú cheias de mel.
- Tio! Porque é que o enxú é cinzento?
- Ih! Agora você tocou num assunto proibido! - E explica enquanto
as crianças riem parecendo não entender a piada.
- As abelhas fazem essas capas com casca de árvore seca e...
também... com bosta de gado seca!
- Éca! Tio! Bosta de gado?
- É sim! Mas não se preocupem! As abelhas sabem como trabalhar o
material até transformar nessas capas. Vejam como são limpas!
Você só sente o sabor do mel, não é? Basta chupar o mel e cuspir
fora os casulos mastigados
De fato, as abelhas são muito limpas. Processam o esterco seco de
vaca de tal forma que retira completamente qualquer outro sabor.
- Quem dera, você fosse tão limpo como as abelhas! - Ressalta ele.
70
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
D
aí ha pouco a grande lua cheia desponta no horizonte. A
noite vai ser de grande caçada. Os cachorros já estão
apaziguados. Depois do jantar, aquela coalhada gostosa
adoçada com raspa de rapadura, os homens saem com os cachorros
para a caçada. Francisco e Elias vão junto.
Chegando ao riacho próximo a cacimba, todos sentam na areia fria e
ficam conversando sob o luar enquanto os dois cachorros se
embrenham no mato farejando bicho. Não demora mais que quinze
minutos e eles acuam uma caça. Estão latindo ferozmente a uns
quinhentos metros dali!
- Tão rápido assim! Pode ser um Tatu! - Diz o tio Jaconías por cima
da sua experiência de caçador.
Tragam a lata com água! Vocês dois fiquem aqui! É perigoso
criança entrar no mato de noite! Voltamos já! - Pegam a lata com
água e caminham apressadamente na direção em que os cachorros
estão latindo.
Elias e Francisco deitam ali de costas na areia do riacho e esperam,
olhando a lua magnífica e conversando lorota, aguardando o retorno
dos homens. Dai ha pouco adormecem.
Não deu outra! Era mesmo um Tatu Verdadeiro! Enfiado no buraco.
Com a água ele saiu fácil. Imediatamente os cachorros já estavam
acuando outro bicho numa loca de pedra. Desta vez era uma Tacacá
(ou Tacáca, como dizem eles). O cachorro parte em cima dela,
recebe a chicotada de mijo fedorento no focinho e volta grunhindo e
chorando. O outro cachorro então ataca e é recebido da mesma
forma. O tio Jaconías é realmente um caçador experiente. Pega a
espingarda e orienta um dos acompanhantes:
- Pegue a lanterna! Foque na direção dela! - E atirou bem na cabeça
da Tacacá. Os meninos então acordam assustados com o tiro da
espingarda no meio da noite.
71
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Por hoje está bom! - diz ele. E todos voltam para casa. A caçada não
demorou mais que uma hora. Rendeu dois torrados especiais: um de
Tatu ( o Peba) e outro de Tacacá.
Um mês após, o cachorro Tubarão ainda fede. Sua amizade com
Francisco é bem chegada. Mas no momento isso é impossível.
Balançando o rabo Tubarão se aproxima mas o menino reage: - Sái
pra lá bicho fedorento! Você só fede a Tacáca!...
O sabor do Tatu é bem apreciado. Francisco já conhecia. Mas a
Tacáca, é a primeira vez que vai comer. O almoço do segundo dia.
Um belo torrado de Tacáca. Torrada na tigela de barro, temperada
com toucinho de porco e as verduras da horta caseira que ha na
margem do açude.
Não é fácil para Francisco absorver o sabor da carne da Tacáca.
Parece gosto de carne queimada. Mas ha um jeito especial no trato
do animal para evitar que a carne fique imprestável. Eles tiram
primeiro uma glândula que o animal desenvolve em seu corpo. E
assim, o gosto da carne é tolerável. Mas só depois de uns quinze
minutos, vendo todos comerem a Tacáca, Francisco consegue
digerí-la.
Após comer, tem-se que escovar bem a boca, do contrário
permanece impregnado o odor da Tacáca. E o primeiro arroto,
ninguém fica por perto. Uma bufa, então! É gás metano em alta
concentração.
Teju, Tacacá, Tatu Verdadeiro, Preá e Mocó, tudo era comestível. Só
dependia do jeito de preparar.
E nisso dona Josina é uma especialista.
Na casa de seu Pedro só não se come cobra. Embora haja quem
72
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
garanta que basta cortar um palmo antes da cabeça da cobra e pode
comer. Sem problema. Mesmo as venenosas. Mané Pedro afirma
conhecer alguém que comia cobra. Tem gosto de peixe. Garante ele.
E uma galinha de capoeira torrada? Ah! Isso sim! Quem comeu as
que Josina prepara jamais esquece.
Um dia após, chegando ao roçado o Pai Chico Elias diz ao filho
Pedro:
- Vou plantar fumo aqui nessa baixa, meu filho!
- Fumo, papai? E dá? - Isso era algo que seu Pedro nunca havia
plantado.
- Vai dar, sim! Sábado em Caicó em consegui umas sementes de
fumo! E vou fazer fumo aqui! - E de fato, o fumo floresceu muito bem
naquele chão, sem adubos, sem nada. Mas tinha que colher rápido
para botar as folhas a secar ao sol. O inverno ia acabar logo e o fumo
morreria no pé. O vovô Chico Elias tinha alguma experiência nisso.
Dias depois consegue enrolar as folhas secas de fumo produzindo
uma corda de fumo fina. Um fumo bem forte.
Sentíu-se um vencedor. Seu cachimbo ia queimar um bom fumo,
produzido por ele mesmo. Não precisaria mais comprar fumo na
cidade. Dona Josina é quem tinha o que reclamar. Principalmente
quando estava gestante. Mulher grávida costuma abusar de certas
coisas com muita facilidade. Era o antojo, como diziam. E o
cachimbo do vovô era uma delas.
- Ô compadre Chico! O sarro desse seu cachimbo ta insuportável! Desabafa ela. Ele compreende e promete:
- Tem nada não, comadre! Amanhã eu vou limpar ele. - Claro que
esquecia e não limpava. E no dia seguinte o fedor do sarro está pior.
A mamãe Josina está muito preocupada com outro problema. O
73
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
menino Pedrinho anda caindo das pernas. Uma fraqueza danada
atacou o menino.
Ele tem dificuldade até pra se manter em pé. Está emagrecendo a
olhos vistos. Perdeu completamente o apetite. Um transtorno de
saúde. Ela comenta durante o almoço bastante apreensiva:
- Eu não sei o que esse menino tem! Está doente! Na maior fraqueza!
Agora de manhã andava fraquejando das pernas aqui dentro de
casa! Acho que temos de levar ele lá na farmácia de seu Zezinho pra
ver se descobre o que ele tem!
No sábado seguinte Pedrinho é levado à cidade. Enquanto Pedro
Elias compra as coisas da feira Josina vai à farmácia com o menino.
E explica ao farmacêutico Zezinho o que está acontecendo. Ele
examina o menino cuidadosamente. Olha nas pálpebras dele, toma o
pulso e perguntou:
- Ele tem tido febre?
- Às vezes! Mas é coisa pouca! Logo passa!
- Teve gripe?
- Não! Só não se alimenta direito. Não tem apetite!
- Esse menino tem é fraqueza!
- A senhora vai levar uma Emulsão de Stotch - Um fortificante muito
famoso da época feito com óleo de Pirarucu - Um vidro de Biotônico
Fontoura, e vai fazer o seguinte! Tem ovos de galinha na sua casa?
- Tem sim! Bastante! Eu sempre tenho galinha pondo ovos lá em
casa!
- Pois bem! Lave as cascas bem lavadas e bote no sol para secar!
Depois machuque no pilão até fazer um pó bem fino! E coloque uma
colher de chá em cada prato de comida dele. É para ajudar na
calcificação dos ossos! Depois de dois meses ele vai estar bom!
Volte com ele aqui!
74
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
ra! Mas que solução interessante! A consulta, não precisava
pagar. Era só comprar o remédio na própria farmácia do seu
Zezinho. Ele deve ter salvado muita gente por aqueles
tempos. Como já vimos antes, a assistência médica na Caicó de
então era muito deficiente.
E é com essa medicação, mais o pó das cascas de ovo capoeira que o
mano Pedrinho se recupera plenamente, voltando às suas freqüentes
travessuras cheio de vivacidade.
Dava para perceber que ele voltara ao normal. O fortificante do óleo
de Pirarucu tinha lá seu gosto muito ruim. Pedrinho só tomava
debaixo de chinela. Mas se recuperou totalmente.
Prova disso é que uns dois meses depois, com o pasto já seco, uma
tarde, enquanto todos conversavam na sala dando acabamento em
umas redes, Pedrinho pega a caixa de fósforos na cozinha e se dirige
ao cercado próximo da casa riscando um fósforo e botando fogo no
capim.
-Corre! Madrinha Josina! Pedim botou fogo no pasto! - Grita a tia
Chiquinha. Todos vão ajudar a apagar o fogo jogando baldes de
água. Enquanto Josina se lamenta:
- Meu Deus do céu! Ô menino danado!... Peraí safado, que você me
paga! - Vai lá dentro de casa e traz a dita cuja palmatória para aplicar
um corretivo no Pedrinho, que pelo visto, já está totalmente
recuperado da fraqueza.
Estão os dois correndo ao redor de um pé de mufumbo. Josina com a
barriga já bem grande grávida do próximo filho. Pedrinho na frente e
Josina atrás. Pega, mas não pega! Todo mundo assistindo a
presepada. Com os cabelos louros, tipo escovinha, molhados de
75
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
suor, a mão de Josina pega, mas escorrega. Também pudera! Ela
corre com dificuldade coitada, arrastando uma barriga imensa, já
grávida de uns sete meses. Mas Pedrinho tropeça e cai. Aí ela chega
junto! E aplíca-lhe uma admoestação razoável! Inesquecível!
- Você vai levar mais cinco bolachadas pelo que me fez correr, seu
safado! - E tome palmatória. - Cuidado madrinha Josina! É capaz
da senhora perder esse menino! Olhe o estado da sua gravidez!
Lembrou muito bem a tia Chiquinha, vindo em socorro do Pedrinho.
Chega o dia da mudança para o sítio Pai Bastião. O compadre
Ezequiel ficara desgostoso com a atitude do compadre Pedro. Não
apareceu mais por lá. Dois jumentos. Bastaria dar duas viagens e
toda a mudança será transportada. Só não foi o bichano Mourisco.
Não houve quem fizesse ele se mudar para a casa nova que ficava
distante uns três quilômetros. O sítio Pai Bastião é pegado ao Riacho
do Meio.
Levado no colo de Francisco, o gato anoiteceu e não amanheceu.
Claro que Pedro Elias precisava ir lá se despedir do compadre
Ezequiel e agradecer o apoio que recebeu dele.
O compadre Ezequiel se mostrou naturalmente frio, demonstrando
sua insatisfação, mas ia fazer o quê? Não era homem afeito a
amenidades em se tratando de negócios. O Mané Pedro continuaria
no Riacho do Meio até finalizar os últimos trabalhos que faltava para
queimar as últimas telhas e tijolos que haviam feito.
No Pai Bastião tudo é novidade. Casa nova. Uma nova olaria. Uma
varzante também para plantar alguma coisa no açude, que aliás, é
maior do que o do Riacho do Meio.
Quase diariamente o vovô Chico Elias ainda vai ao Riacho do Meio
continuar a colheita de frutas, feijão e batata que ainda havia na
76
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
plantação do açude.
No dia seguinte Francisco vai com ele.Ao passarem diante da casa lá
está Mourisco trepado na comeeira miando desoladamente. Por
mais que Francisco o chame ele não desce. Não morreria de fome.
Naqueles serrotes e na cerca de pedra ali próximo ha muita lagartixa
e até preás que ele comeria. O adeus do bichano é definitivo. Muito
apegado aos animais, Francisco sente tristeza pela falta de
Mourisco. Anos depois, em suas leituras, Francisco descobrirá que
os gatos não adotam as pessoas, mas as casas onde vivem.
A olaria do Pai Bastião vai ser montada a toque de caixa. Algum
tempo depois Mané Pedro também veio para ajudar na mão de obra.
Vem o próximo ano e com ele um inverno promissor. Escolhida a
área para plantio do roçado nas terras de cima do açude, logo pai
Chico Elias tratou de plantar feijão, milho, fava, frutas, e tudo que
pudesse colher ali, com a ajuda dos meninos Elias e Francisco e de
vez em quando, seu Pedro também e Mané Pedro vêm ajudar no
trabalho de limpar com enxada. O plantio floresce lindamente com
tudo muito verde.Aterra também é boa.
À tardinha, já em casa, lá pelas 17h00, (todos voltam para casa nesse
horário para jantar), o vovô conversa com Francisco no alpendre da
casa.
- Meu filho! Ta vendo essa prata de um cruzado! Um cruzado era 25
centavos de um réis.
- Eu lhe dou essa prata pra você ir lá no roçada me trazer a enxada
que eu esqueci para eu amolar ela de manhã! Eu deixei lá embaixo
do pé de Trapiá. Você vai? - Ora! Por aquela prata Francisco faria
qualquer coisa. Um cruzado compra dez pães.
- Vou sim, vovô!
- Então vá! Mas volte logo que já vai anoitecer! - Francisco estica as
77
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
canelas na carreira para chegar logo ao roçado. Para um adulto não é
muito longe. No máximo uns 800 metros. Mas para uma criança
como ele, é uma boa tirada. Ainda na ida, pelo meio do caminho, ele
lembra que tem medo de raposa e guaxinim. Parou! Resfolegando de
cansaço. Apura o ouvido, mas só ouve as cigarras cantando e o arrufo
de alguma coruja. Apressa o passo em direção ao roçado. Chegando
ao pé de Trapiá lá está a enxada encostada. Botou no ombro e
depressa toma o caminho de volta. Como é pesada essa enxada! Não
dá para correr com ela. Anda o mais rápido que pode e antes do sol se
por chega a casa.
- Muito bem, meu filho! - E o vovô Chico Elias lhe entrega a prata de
um cruzado. Já velhinha e encardida. Que ele guarda com muito
zelo.
Na feira do sábado seguinte ele estará cheio da grana.
Na sexta-feira seguinte, pai Chico Elias vai conversar com Francisco
mais uma vez. - Meu filho, quer ganhar outra prata daquela?
- Quero vovô! - Responde de pronto ele. - Ta vendo esse saquinho? É um saquinho de pano com um cordão na boca para puxar e fechar.
Continua ele:
- Quero que você me corte esse pedaço de fumo bem cortadinho, e
bote nesse saquinho para eu já ter o fumo pronto para encher o
cachimbo. Certo?
- Sim vovô!
- Bem cortadinho! Certo? Mas cuidado para não cortar os dedos
que a faca é amolada!
Isso é tarefa que Francisco dá conta rapidamente. Sem o menor
esforço. Menos de meia-hora e ele traz o saquinho com o fumo
cortado. O vovô examina o conteúdo:
- Ta bom! Muito bom! - E piscando-lhe o olho, entrega a Francisco
78
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
outra moeda de um cruzado. Esta bem novinha. Brilha ao sol.
Francisco guarda junto com a outra. E se diverte colocando as
moedas na palma da mão. Fica admirando com satisfação aquilo que
é fruto de seu trabalho.
No dia seguinte é novamente sábado e todos vão à cidade para a
feira. Francisco vai junto. Ele e Malvina. Os adultos vão
caminhando e o jumento leva dois caixotes pendurados na cangalha.
Um de cada lado. Para trazer as compras da feira. São caixotes
estreitos. Mas cabe as crianças. Uma de cada lado. Na volta, com as
compras nos caixões eles viriam, uma sentado na cangalha e outra na
garupa do burro.
Chegam à cidade. Tão logo Francisco desce do burro vai logo à
mercearia que tem numa esquina da rua São José, próximo à casa do
tio José Tibúrcio onde eles deixam o burro amarrado.
Francisco vai à venda interessado nos bolos e pães. E compra
bastante. Quase não come no almoço. O estômago está cheio de pão
doce e de bolos, broas, etc.
Àtardinha estão de volta ao sítio. Vovô Chico Elias havia observado
que Francisco trazia um pacote de pães da feira, que certamente
guardou em casa para comer depois.
Após o jantar, todos estão sentados no alpendre da casa proseando,
então o pai Chico Elias pergunta a Francisco:
- Meu filho hoje comprou pão à vontade, não foi? - Francisco
confirmou que sim. Ele então interpela:
- Gastou o dinheiro todo? - O garoto responde que não.
- Então! Só gastou uma das moedas que ganhou? - O menino
confirma que sim.
- E a outra?
- Ta guardada lá dentro!
- Vá buscar para eu ver! - Francisco entra e volta em seguida com a
79
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
prata na mão e entrega ao vovô.
Pai Chico Elias abre um sorriso significativo e exclama para os
demais ali presentes, com ar de satisfação:
- Vejam vocês! Esta semana eu fiz uma experiência com este menino!
- Que experiência, papai? - Pergunta seu Pedro curioso.
- Eu dei a ele uma tarefa difícil, para ir já à tardinha lá no roçado
buscar a minha enxada e paguei a ele com essa prata velha, de um
cruzado! No dia seguinte, eu lhe dei outra prata no mesmo valor só
pra ele me cortar o fumo do cachimbo! Uma prata bem novinha! E o
que eu vejo aqui? Ele bem que podia ter guardado a prata novinha e
brilhante! E gastado a velha! Vocês percebem? Mas ele gastou
aquela prata que não deu muito trabalho para ganhar! E guardou a
prata que deu mais trabalho pra ganhar! O que isso quer dizer? Todos ficaram em silêncio, e ele concluiu: - Nós só guardamos
aquilo que nos dá trabalho ganhar! É isso mesmo, meu filho! Você ta
certo! - Disse ele afagando a cabeça do menino.
Pai Chico Elias era também um psicólogo nato. Tinha lá suas
dificuldades temperamentais, mas em matéria de experiência de
vida tinha muito que ensinar. Mesmo não sendo uma pessoa de
elevado grau de instrução educacional.
De onde ele trazia no seu espírito esse tipo de conhecimento? É um
caso para se pensar.
Enganam-se aqueles que vêem nas pessoas simples do campo
apenas seres de mentes limitadas e ignorantes. Muitas delas trazem
consigo um aprendizado que bem se poderia definir como - histórico
de inteligência cromossômica. Isso estaria em consonância com a
teoria de Charles Darwin sobre a propagação das espécies? Ou
vamos ter de aceitar a teoria da reencarnação?
Não demorou muito, e o vovô Chico Elias adoeceu, sofrendo de algo
que mais tarde se confirmaria como câncer de garganta. Herança
maldita do seu cachimbo de fumo. Acamou-se de tal forma que já
não pode mais dar conta dos trabalhos no roçado e na varzante.
80
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
ada é por acaso. Certo? Bem por esse período, o vovô
materno Chico Bobôco vive uma crise de separação de sua
esposa Josefa, cujo relacionamento doloroso já amargavam
ha bastante tempo. Com os filhos já adultos e criados ele vai então
para a companhia de Josina e Pedro Elias.
Sua presença é muito bem vinda. Estava na incumbência cármica de
Pedro Elias, cuidar de seu pai já velho e de seu sogro também, ambos
até a morte.
O Padim Bobôco, um carequinha entroncado, de olhos azuis e pele
bronzeada, também de origem européia, de temperamento dócil,
claro, veio para cuidar do plantio e das colheitas, enquanto Pedro
Elias, Mané Pedro e os meninos maiores tocam o trabalho na olaria.
A tia Chiquinha já havia casado com Luiz, um rapaz também da roça
daquelas redondezas. O compadre Chico Elias permanece em casa
acamado em sua rede amargando sua doença.
Mas é impossível deixar de lado o miserável do cachimbo de fumo.
O câncer a cada dia se agravava mais.
Enquanto isso, Pedro Elias começa a amargar as primeiras
decepções com o novo patrão Honório. As telhas e tijolos são
entregues. Honório manda pegar em caminhões que levam para a
cidade onde ele vende. Recebe o dinheiro, mas freqüentemente não
repassa para Pedro Elias o seu pagamento.
Cada caminhão com cerca de três mil telhas dá em média dois mil
réis de pagamento para Pedro Elias. Isso é o dinheiro de uma boa
feira mensal para a família. Mas sem receber o dinheiro direitinho,
vez por outra ele se afoba com as dificuldades para pagar a seu
ajudante Mané Pedro, que pacientemente suporta as dificuldades,
compreendendo o problema.
Num momento de certa tensão Pedro Elias desabafa em casa:
- Bem que o compadre Ezequiel me disse! Essa família do velho
81
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Honório (o patriarca) não presta!
E continua amargando suas dificuldades de recebimento do dinheiro
por um bom tempo.
Certo dia na feira da cidade, conversando com o irmão mais velho
Miguel Elias, que então já se firmava como o principal comerciante
de fumo da região do Seridó, desabafa mais uma vez. Conta para o
irmão sobre as dificuldades que está passando e a decepção que está
sofrendo. O problema está ficando insustentável.
- Compadre Miguel eu já não sei mais o que fazer! Tenho sofrido o
pão que o diabo amassou nas mãos de Honório! Ele nunca me paga
direito!
Também estava escrito no carma da família que o irmão Miguel
Elias, um homem duro de atitudes, mas igualmente brando de
coração, seria o porto seguro para os demais irmãos. Tem um
aguçado tino comercial.
- Ô compadre Pedro! - Era assim que todos eles se tratavam entre si.
Como compadres. - Você sabe ler, escrever e contar, não sabe?
- Compadre, eu leio! Devagarinho, mas leio! Escrevo errado, mas
escrevo! E contar... eu sei somar e diminuir! Por quê?
- Você se atreve a vender fumo?
- Acho que sim!
- Pois então eu acho que vamos dar uma solução ao seu problema.
Vá jantar lá em casa hoje pra gente conversar.
Pedro Elias não voltou logo para o sítio. A feira termina por volta das
quatro da tarde e ele foi para casa do compadre Miguel esperar por
ele. Miguel Elias já havia encaminhado o outro irmão Cícero Elias
no comércio de fumo. Eram pequenas mesas de madeira colocadas
dentro do mercado público de Caicó, com uma roda de fumo preto de
82
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
corda, geralmente enrolado numa esteira. Uma pequena tábua de
cortar fumo para os clientes experimentarem, uma faca bem
amolada e uma balança para pesar o fumo. É vendido em pedaços. O
preço é por quilo. O comércio é promissor.
Após o jantar sentam na calçada e o irmão Miguel expõe:
- Eu já estou comprando fumo que vem do Brejo, em Campina
Grande, compadre Pedro! Compro muito fumo! Fumo de boa
qualidade! Se você quiser vou arranjar na Prefeitura autorização
para mais uma banca de fumo, lá no mercado pra você! Eu forneço o
fumo! Você vende e a gente separa uma parte do dinheiro pra você!
Aos poucos você vai fazendo a sua freguesia! Quer tentar?
- Acho que sim, compadre!
- Logo no começo não vai atrapalhar nada pra você lá no sítio! Você
continua na olaria e no sábado vem pra cá! Vamos fazer uma
experiência! Eu acho que vai dar certo! Depois você decide se
mudar pra cá para a cidade de vez! Vai ser melhor para as crianças!
Elas estão estudando?
- Estão, sim! Lá na escola de Nininha de Aparício, no Riacho do
Meio. É longe! Elas vão no jumento!
- Mas estão estudando! As menorzinhas Josina está desarnando elas
em casa mesmo, estudando as primeiras letras.
- Aqui na cidade vai ser bem melhor! Tem o grupo escolar! Uma
escola melhor! Tamos acertados?
- Tamos sim, compadre!
- Pois então pode vir sábado que já podemos começar!
Pedro Elias volta para o sítio esta noite com o espírito renovado. Já
passa das oito da noite e ele segue pelo caminho trotando o burro
Carrité, sob o manto de estrelas no céu, vislumbrando uma luz no fim
do túnel. Seus pensamentos lhe mostram novos sonhos. Novas
83
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
possibilidades. Novas realizações. Com a ajuda de Cumpade Miguel
eu agora me aprumo! - Vai pensando ele.
- Onde você estava, criatura? Que demorou tanto? Pensamos que
tinha acontecido alguma coisa! - Pergunta Josina.
- E aconteceu, mesmo! Acho que outra vez a nossa vida vai mudar!...
E conta sobre a conversa com o compadre Miguel.
A princípio Josina fica meio apreensiva. Aquele era um salto bem
maior. E se não desse certo?
Ela não tem qualquer noção das peculiaridades e possibilidades do
comércio. Pedro nunca tinha vendido nada. A sua resistência àquela
idéia é natural. O novo lhe assusta. O tempo se encarregará de
tranqüilizá-la. Os resultados falarão por si mesmos. Durante um
certo período é assim que Pedro Elias inicia sua nova jornada de
vida.
Agora como comerciante de fumo. A cada semana as vendas
melhoram mais. Ele anima-se cada vez mais. Todo fim de feira
presta contas ao compadre Miguel e recebe o que lhe cabe. Algo em
torno de 10% sobre as vendas do fumo. Não é muito inicialmente,
mas é uma grande promessa. Já podia levar para casa todo sábado,
um corte de tecido novo para a mulher, para os meninos.
Logo Josina se anima com a compra de uma máquina de costura
nova. Ela mesma costura a roupa da família. Se ha uma mulher
corajosa e participativa ela se chama Josina.
Aos poucos vai se convencendo de que a família deve se transferir
para a cidade. O que mais a anima é a possibilidade de estudo melhor
para as crianças. Ela sonha em ver todos os filhos crescidos e bem
desenvolvidos na escola. Seus filhos seriam pessoas diferentes. Não
sofreriam as dificuldades que ela e o marido vêm atravessando. E
todo o tempo Deus sempre está nas orações do casal.
E ELE responde. Coisas incríveis estão acontecendo na
84
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
transformação desta família. Até que enfim, tudo irá melhorar. Suas
preces estão sendo ouvidas.
No dia seguinte, um domingo, uma bela galinha torrada está na mesa
para o almoço, acompanhada de arroz de leite e feijão verde com
manteiga. Feijão verde colhido ali mesmo na varzante.
O dia todo a conversa gira em torno da eminente mudança para a
cidade. Não dá para agüentar por muito mais tempo os maus tratos
financeiros que o Honório vem aplicando na negociação acertada
sobre a produção da olaria. E Pedro Elias não é homem de mendigar
a ninguém seus próprios direitos. Trabalha arduamente com muito
afinco para cumprir com suas obrigações, mas ali no Pai Bastião o
retorno está sendo muito sofrido. E ele vai dar um basta nisso.
Ultimamente, não fosse o dinheiro que está ganhando com a venda
de fumo na cidade, o aperto já seria bem grande. Eles estão lá no
alpendre após o almoço balançando nas redes. A tarde como de
costume está quente. Não venta nada. As árvores mais parecem
umas pinturas. Um sol escaldante. O cochilo após o almoço é
indispensável.
- Cumpadre Pedro, quer dizer que o negócio do fumo ta indo bem,
não é? - Indaga o vovô Bobôco.
- Ta, cumpadre Chico! A cada semana a freguesia ta aumentando
mais! Estou muito animado! Compadre Miguel me disse que já ta na
hora da gente se mudar para a cidade. Tem uma casa da mulher dele
na beira do rio de Seridó que vai desocupar daqui a uns dois meses e
a gente já vai se mudar pra lá.
- Se Deus quiser, antes do fim do ano já estaremos na cidade!
- E a olaria como vai ficar? - Quis saber Mané Pedro.
- Bem, Mané! Se você quiser continuar trabalhando para o
Honório, você continua lá. Mas quando faltar quinze dias pra gente
se mudar para a cidade eu vou avisar a ele que não vou pegar mais
encomenda de telha.
85
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Mas tem a colheita da varzante também, né cumpadre Pedro? Acrescenta o Bobôco.
- É compadre Chico! Quando a gente for para a cidade eu vou ter
que trabalhar também lá no armazém de cumpadre Miguel
preparando o fumo para fazer as bolas. O senhor continua vindo
aqui toda semana para terminar de colher as batatas, as frutas e o
feijão, ainda tem?
- Tem sim cumpadre!
- Então é isso aí! Vamos colher tudo que nos pertence e sair das
terras desse desgraçado. - Sentenciou ele. Pedro está decidido. O
futuro da sua família está é na cidade.
O vovô Chico Elias por sua vez, continua acamado com o
agravamento constante da sua doença. No prazo estimado de dois
meses, Pedro Elias informa ao Honório que vai se mudar para a
cidade.
- Mas, e a olaria, Pedro?
- Aí você faça o que quiser! Você não disse antes que se eu não viesse
pra cá tinha uma outra pessoa que você ia colocar no meu lugar?
Pois então! O Mané Pedro pode ficar aí também. Mas eu vou com
minha família para a cidade. Você tem esses quinze dias para
acertar minhas contas!
Conversa agora com Honório é apenas o estritamente necessário.
Pedro já vinha com ele atravessado na garganta ha algum tempo.
Até o peixe do açude, para melhorar o cardápio da família, o Honório
havia proibido pescar. Se era inverno e o açude se enchia de
marrecos, era proibido caçar de espingarda.
Para seu Pedro a xícara da tolerância havia esborrado. Fez o
comunicado e se foi.
86
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E
sta semana que começava tem novidades. O vovô Chico
Bobôco informou haver descoberto um cortiço de abelha
Rainha num tronco de Pau D’arco próximo ao caminho para
o roçado.
- E será que tem mel compadre Chico? - Indaga Pedro.
- Tem sim compadre! Eu bati ontem no tronco da madeira e bateu
fofo. Aquilo ta cheio de mel!
- Pois então vamos tirar logo antes que Honório também proíba!
Ha na casa um pequeno fole manual feito de couro, com uma ponta
em forma de cano e dois cabos paralelos de madeira que são
acionados fechando e abrindo. Próprio para soprar o braseiro que o
Pai Chico Elias costumava usar para fundir e moldar alguns
utensílios de ferro. Como seu machado, por exemplo. Ou uma boa
foice. Conseguia na cidade um pedaço de ferro de mola de
caminhão, que destemperava no fogo de brasas, batendo com a
marreta até forjar o machado ou a foice, de vez em quando enfiando
o metal em brasa num tonel d'agua para obter a têmpera ideal.
Inúmeros conhecimentos tinha o Pai Chico Elias. O fole também era
utilizado para aplicar formicidas contra as formigas de roça, que
tanto prejuízo causavam às lavouras. Com o tal fole o Padim Bobôco
bombeou fumaça para dentro do cortiço, cujo único buraco de
entrada e saída das abelhas ficava aos uns quatro palmos acima do
solo no tronco do Pau D’arco.
Embriagadas pela fumaça elas abandonavam o cortiço. Com um
corte no tronco da madeira pôde-se ver então como era o cortiço. Foi
uma revelação interessante para o menino Francisco.
Ainda com medo de ser picado pelas abelhas, mas com a curiosidade
aguçada, ele se aproxima do avô que está aparando o mel em uma
bacia. O corte na madeira atingiu também o saco de cera dentro do
oco da árvore, no qual as abelhas depositavam o mel.
87
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
D
iferentemente dos enxús, não havia capas. Só o mel dentro
daquela panela de cêra. E uma borra amarela vedando as
concavidades externas. Uma borra azedinha! Muito
gostosa. Que o vovô recomenda:
- Coma! Meu Filho! Isso é muito bom para sua saúde.
Sem dúvida. Aquela borra amarela é a própolis, também produzida
pelas abelhas. Com ela o cortiço fica totalmente protegido de
qualquer ação de micróbios e bactérias. A própolis tem inclusive,
ação medicinal como antibiótico natural.
Quem ensinou isso às abelhas? Era uma pergunta que o vovô
Bobôco questionava. Ninguém saberia responder.
Mel de excelente qualidade. A abelha Rainha não é outra se não a
famosa abelha Jandaíra, atualmente extinta, pela ação das abelhas
africanas. Ali está. Um balde de uns cinco litros cheio de mel,
amarelinho e de sabor inconfundível.
É comum se comprar na cidade litros de vidro cheio de querosene
para as lamparinas. Haviam alguns vazios, enfiados com a boca para
baixo nos galhos da cerca atrás de casa. Ia precisar de uma certa
técnica para limpar aquelas garrafas a fim de colocar nelas o mel.
Mas pra tudo Josina tinha uma solução.
Para retirar o odor do querosene, ela coloca água quente na garrafa,
espreme espuma de sabão dentro, acrescentando um punhado de
areia bem grossa trazida do riacho. Tampa a garrafa com uma cortiça
e balança, balança... até o sabão agir bastante. Depois lava a garrafa e
põe de boca para baixo para secar. Nenhum cheiro de querosene.
Que interessante! Francisco confere cheirando a boca da garrafa.
88
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
s garrafas são enchidas de mel e bem tampadas com
cortiças. Para ajudar a curar tosse e gripe das crianças, o mel
é um santo remédio. Com ele Josina também faz lambedor.
Um melaço grosso em que mistura o mel de abelha com sumo de
hortelã, chá de raiz de fedegoso, casca de limão fervida, e outras
ervas.
Leite queimado! É outro remédio caseiro desse tempo. Um
preparado que ela faz para provocar expectoração nas crianças
gripadas. Logo nas primeiras chuvas do inverno a Jurema floresce. O
odor das flores da jurema e o contato com a terra quente
repentinamente molhada por um barrufo de chuva fina, é gripe na
certa.
Os remédios caseiros ajudam muito. O leite queimado é um
preparado diferente. Tem um gosto de coisa queimada realmente.
Mas com um pouco de açúcar, Francisco até que gosta.
- Vá lá no tabuleiro e me traga três pedrinhas arredondadas, bem
lisinhas! - Solicita Josina.
Francisco vai rondar ali por perto no cercado e logo encontra no
riacho seco mais próximo as tais pedrinhas roliças.
Josina lava as pedras e as coloca dentro do leite de vaca para ferver.
Deixa ferver bastante. Depois acrescenta algumas folhas de hortelã.
E ferve mais um pouco. O leite fica meio esverdeado. Mas o sabor é
muito bom. Francisco descobrirá anos depois que isso é uma receita
indígena. Um tremendo fortificante. Dizem que a fervura extrai das
pedras o potencial energético, como fortificante. Assim acreditavam
os índios. Crença indígena ou não, o fato é que o leite queimado tem
se mostrado muito eficiente na recuperação das crianças
enfraquecidas pela gripe.
89
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
hega então, o dia da mudança para a cidade. - Eu vou lá na
cidade pintar a casa! Você já vai arrumando as coisas que
amanhã a gente se muda! - Informa Pedro Elias.
Francisco vai junto ajudar o pai. Afinal também está cheio de
curiosidade para conhecer a nova casa na cidade.
Pintar casa naquele tempo era simplesmente passar um vassourão
pelas paredes com cal. O que era providencial. Pois a cal tem a
propriedade de exterminar todo tipo de micro-organismos, aranhas,
percevejos, etc. Casa que, como a maioria delas na cidade, não é
forrada.
Tem só o telhado por sobre as ripas e caibros. Uma sala, um corredor,
dois quartos, a cozinha, e um muro bem grande.
Logo atrás do muro ha um monturo na beira do rio. Um local onde o
povo despeja lixo. É um local muito fétido. Sempre visitado por
uma nuvem de urubus.
Espaçoso, o muro tem um local para amarrar o jumento e onde
colocar capim para ele. No rio ha algumas cacimbas, onde as
mulheres pegam água e lavam roupa nas pedras. Ha bastante capim
também. O burro estará bem abastecido. Afinal, é só descer para o
leito do rio e cortar o capim. Tudo foi logo bem avaliado pelo pai de
Francisco.
A vida ali não seria tão difícil. Será bem melhor do que no sítio.
Inicialmente, o compadre Miguel lhe oferece a casa sem pagar
aluguel.
- Até construírmos uma casa pra sua família! Compadre Pedro! Assegura o tio Miguel. Mas isso é para depois. Agora é cuidar da
mudança.
Limparam bem a casa e ao final do dia montam no burro e retornam
90
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
ao sítio.
- Ta tudo pronto! - Informa Pedro. Vamos aproveitar que amanhã é
quinta-feira e vamos fazer a mudança. Sábado, se Deus quiser, eu já
quero estar morando lá, para ir à feira!
Todos se animam com as novas perspectivas. As crianças são as
mais empolgadas.
As aulas já vão começar! - Assim que chegar na cidade, sua primeira
providência será matricular Francisco, Malvina e Maria de Lurdes
no Grupo Escolar! Josina! Os outros ainda são pequenos irão para
a escola depois!
Pedro jantou e aquela noite vai dormir acalentando novos sonhos. É
um momento novo na vida de todos, a mulher Josina e aquela fila de
filhos.
Logo cedo, Pedro mantém o burro Carrité amarrado a uma estaca
forte de madeira no oitão da casa. O mano Pedrinho, está sentado ali
ao lado na calçada alta do alpendre, balançando as pernas magras,
acompanhando as tarefas do pai, que aperta a cangalha no lombo do
burro para os trabalhos com a mudança dos cacarecos.
Aperta fortemente a cinta da cangalha por baixo da barriga do
animal, mas o próprio na está muito satisfeito com aqueles apertos.
O burro dá alguns coices e masca agitando a cabeça demonstrando
que está com más intenções.
Pedrinho ri gostosamente observando aquela cena. Enquanto seu
Pedro ralha com o burro e aperta mais a cinta. Carrité então
descarrega seu descontentamento repentinamente com uma
tremenda mordida no ombro de Pedrinho, levantando-o
bruscamente. O menino cai desastrosamente no chão gemendo e
chorando de dor. Triste momento para o burro Carrité. Que diga-se
de passagem, ha muito demonstrava ter os tutanos atrofiados graças
as pauladas que já havia levado de Pedro Elias.
91
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
P
edrinho é o filho querido de seu Pedro. Afinal ele tem o seu
nome. Surpreendido pela ação do animal e cheio de ira, Pedro
Elias arranca a estaca do chão com as próprias mãos e começa
a bater na cabeça do animal, que fica rodando comum peru pelo
terreiro debaixo das bordoadas.
- Homem de Deus! Você mata esse burro! - Chega gritando Josina. Você quer matar o outro!
O jumento fica assim... Meu lelé... Com a cabeça quase encostada no
chão... Parecendo que vai desabar. Seu Pedro se dá conta da sua
brutalidade e para de bater no animal.
- Esse diabo mordeu o menino! - Parece que vai morrer! - Também
pudera! O tratamento que recebia de seu Pedro não era dos melhores.
- E agora criatura! Como vamos transportar a mudança? - Indaga
ela muito aflita. Mas aos poucos conseguem transportar a mudança.
Na cidade tudo é novidade. Francisco agora já tem 12 anos. Ontem
ouviu o rádio pela primeira vez. Um vizinho tem um. A janela estava
aberta e Francisco aproximou-se ouvindo a voz do cantor. O Rádio
anunciou a próxima música. E falava num tal de Getúlio Vargas.
É o início da década de cinqüenta. Mas estavam falando nele.
As músicas! Que coisa espetacular! Um tal de Augusto Calheiros
canta no rádio. Um outro se chama Vicente Celestino. Tem uma
música curiosa! Ele parecia cantar bêbado. O Ébrio - é o nome da
música.
Quanta emoção Francisco sentirá pouco tempo depois por causa
disso!
Várias outras vezes esteve naquela janela, como um espectador
cativo. Sempre que o rádio tocava alto e ele estivesse desocupado.
92
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
É
um divertimento diferente de tudo que já havia experimentado
antes. Um rádio é muito caro. Seu Pedro ainda não podia ter um
deles em casa. Mais tarde, quem sabe...
Ao chegarem à cidade, com tudo já em seu devido lugar, Josina traz
nos braços um novo bebê de poucos meses. É Marlene. Pouco tempo
depois a menina adoece, vindo a falecer em poucas semanas. De
coqueluche. Nesse tempo, devido aos parcos serviços assistenciais
de saúde, morre muita criança de coqueluche. E o bebê se foi.
Esse primeiro enfrentamento com a morte e a perda de um ente
querido afeta bastante Francisco. Ele ainda não tinha vivido essa
experiência. Mas superaria logo esse problema psicológico. A
cidade oferece uma infinidade de novas emoções.
A primeira coisa que lhe chama a atenção, aliás, já observara isso
antes, desde quando vinha às vezes nos dias de feira, é o cheiro da
cidade. Um cheiro diferente!Ativo!
O odor da cal nas paredes, tudo tem cheiro diferente. Uma sensação
parecida com aquela do cheiro de caminhão lá no Riacho do Meio.
Outra vez o seu olfato acostumado aos odores do campo, está
precisando de readaptação.
Próximo a casa na beira do rio Seridó ha um pequeno campo de
pelada de futebol. Poucas casas nas proximidades. É ali que armam
os circos que chegam à cidade.Acabavam de montar um no local. É o
circo do Alegria! Esta manhã estavam subindo o mastro para segurar
a lona do circo. Alegria é um mágico, dono do circo, com alguns
lances interessantes pelas cidades que visita, como forma de
divulgação do circo. Veremos isso daqui ha pouco. A casa de
Francisco é bem próximo dali.
93
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
tardinha o circo forma uma comitiva e desfilam pelas ruas
principais da cidade, puxando um camelo, um elefante e um
leão numa jaula sobre um caminhão. De vez em quando
alguém vai lá e cutuca o leão, que insatisfeito, urra e arreganha os
dentes mentirosamente. As crianças apreciam esse cortejo,
inicialmente guardando uma certa distância.
E comentam nas esquinas:
À
- E se aquele leão se soltar!...
Outro caminhão conduz uma bola de ferro trançado bem grande. O
globo da morte.
No mesmo caminhão vão também belas moças em roupas sumárias
de trapezistas, acenando para o povo que se posta nas calçadas.
Lá na frente da comitiva, um carro pequeno com uma boca de altofalante, conduzido por dois palhaços. Um grita no microfone e o
outro responde:
- HOJE TEM ESPETÁCULO?
- TEM SIM SENHOR!
- ÀS 8 HORAS DANOITE?
- TEM SIM SENHOR!
Ha também um sujeito que caminha conduzindo um macaco pela
coleira. A molecada se diverte com a passagem do macaco que lhes
cumprimenta dando-lhes o dedo. Devia ter sido treinado para aquela
função publicitária. Pois o efeito é incrível! Todo mundo se diverte
com o macaco esticando o dedo para os meninos. Mas não faz isso
para os adultos. Só para os moleques.
E assim continua aquele cortejo pela cidade. A molequeira
acompanha aos montes. Francisco vai junto. E agora, já sem muito
94
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
medo do leão os meninos até já chegam perto da jaula.
- Olha os quiba dele! - Diz um colega de Francisco. A diversão é
total. Passando a idéia de que melhor ainda seria ver o espetáculo
logo mais à noite.
- Mamãe! Disseram lá no circo que estão comprando gato! Eles
pagam dez tostões por um gato!
- Pra quê? Menino?
- Sei não! Mamãe!
- Mas você não está pensando em vender o gato daqui de casa não?
- Não mamãe!
Josina vai especular na vizinhança e descobre que os gatos que estão
comprando é para alimentar um leão que tem no circo.
- Você não vá se meter com essa história de caçar gato por aí não!
Viu!
- Mas eles compram também muito quiabo Mamãe!
- E leão como quiabo! Menino!
- Não mamãe! Disseram que é para os trapezistas ficarem com as
juntas bem moles!
Francisco e as irmãs Malvina e Maria de Lurdes, vão todos os dias
para a escola no Grupo Escolar Senador Guerra. Uma instituição
educacional mantida pela Prefeitura, com um apreciável
qualificativo em seu corpo docente.
As melhores professoras de Caicó, pois quase não havia professor no
curso primário, estão ensinando ali. Dona Calpúrnia, Dona Iracema
Trintade, Dona Beatriz, Dona Dorinha, Dona Iluminata e várias
outras professoras de excelente nível.
Tudo é muito novo para as crianças. O ambiente das salas de aula é
95
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
estimulante. A convivência com muitas outras crianças, tudo é muito
inovador. Ainda havia a tal palmatória. Mas logo Francisco
observou um detalhe: a palmatória da sua sala de aula é bem leve. No
primeiro dia de aula ele aproveita um momento na hora do recreio
em que todos estão fora da classe e pega na palmatória. Puxa como é
leve! Nem parece aquela lá de casa feita de pereiro e bem pesada!
Mesmo assim, faria tudo para não passar pela vergonha de apanhar
de palmatória na frente de todo mundo. Estudava já no terceiro ano
primário. Imagine! Um rapazinho! Levando bolos de palmatória! Eu
não! Pensava ele.
Pouco tempo depois, as palmatórias serão abolidas completamente
das escolas.
Além do mais, tinha as fortes observações dos pais em casa:
Vocês estudem! Não brinquem! Ali naquela escola não se paga
nada! Mas quem levar pau (não passar de ano), não fica mais na
escola! Entenderam?
Claro que as crianças haviam entendido. Estudariam bastante.
Dividindo bem o tempo de seus dias entre a escola, as lições de casa e
uma nova atividade que acabava de surgir.
O comércio de fumo prospera. Durante a semana Pedro e o tio Cícero
trabalham no armazém preparando o mel queimado para as bolas de
fumo. Todos estão satisfeitos. Mas o tio Miguel não. Ele está sempre
buscando inovar, com a sagacidade de seu espírito empreendedor.
-Cumpadre Pedro! - Conversa animado o tio Miguel lá no armazém
de fumo.
- Eu vou aumentar a fabricação de cigarros de fumo empacotados.
Vejo que tem muita gente que só procura pelos cigarros já prontos!
Estou pensando em a gente botar os meninos, os meus, os seus, e
algumas pessoas mais que quiserem trabalhar nisso, para fabricar
96
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
os cigarros. Isso vai dar um dinheirinho para os meninos! O que
você acha?
- Ta certo, cumpadre! Eu concordo! Menino tem que tá sempre bem
ocupado! Se não sai por aí fazendo o que não deve!
Essa foi uma decisão muito bem pensada e recebida. Todos os
meninos da família, mais alguns adultos da vizinhança têm agora um
jeito de ganhar uns trocados. Francisco e o tio Elias animam-se
bastante com a idéia. Uns trocados para o cinema, o circo, etc.,
estava garantido.
O tio Miguel fornece o fumo já moído, papel de enrolar os cigarros e
papel almaço, mais grosso, às vezes até revistas velhas, para enrolar
maços de 20 cigarros.
Pela manhã, a fabricação de cigarros e à tarde, os estudos no grupo
escolar, incluindo o tio Elias, que também foi matriculado. À noite,
os deveres de casa trazidos da escola.
Realmente não ha tempo de sobra para criança andar por ai fazendo
travessuras. Sábado e domingo aí bem, são dias de folga. Podem se
divertir um pouco.
Mas saindo de casa com hora marcada para voltar. E não voltando, já
sabem! Vai ter surra esperando.
Uma noite de sábado, Francisco sai e não volta cedo. Pedro Elias
chega em casa pelas onze horas e ele não está. O pai fica esperando
com a corda na mão. Francisco, maroto, desconfia, pois a luz da
lamparina está acesa. E não entra em casa. A porta da frente ficava
encostada. E espera lá fora no maior silêncio até a lamparina apagar.
Quem sabe, ele não vai me bater. E silenciosamente entra para
dormir.
Pela manhã logo cedinho Francisco acorda debaixo de lamboradas
por baixo da rede. Que susto tremendo! Seu Pedro baixa-lhe a corda
97
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
lembrando que ele tinha de chegar em casa cedo!
Foi um jeito muito ruim de despertar. Ainda bem que o tecido da rede
amortecia um pouco. Mas a surra ficou para a história. Essas coisas
aconteciam enquanto as demais crianças observavam. A experiência
valia para todos. Um apanhava. Os outros aprendiam. É uma escola
muito prática. E funcionava.
A família cresce. Agora já são oito filhos. Crescem também as
responsabilidades e preocupações de Pedro e Josina.
Novamente é noite de sábado. Hoje Francisco vai ao cinema pela
primeira vez. Já ganhou alguns trocados com a fabricação de
cigarros, que o tio Miguel paga por semana. O tio Elias já havia
assistido alguns filmes e agora leva Francisco para conhecer o
cinema. Cinema de seu Clóvis. Um comerciante de tecidos da
cidade, que entre outras coisas, abriu o primeiro cinema de Caicó.
Cinema em preto e branco. Uma máquina de projeção grandona,
com uma luz azulada muito forte. Que depois alguém explicou: é um
carvão que queima com eletricidade produzindo aquela claridade
necessária para a projeção do filme na tela..
E ha um modo especial de avisar a hora dos filmes. O cinema tem
uma sirene. Ela toca três vezes. 18h15. 18h30 e 18h45. Às 19h00
começa a exibição do filme. Por sinal, ha dois tipos de sirenes
noturnas na cidade: a do cinema e a do motor de luz.
A energia elétrica da cidade nesse tempo é fornecida por um motor a
óleo bem grande. Mantido pela Prefeitura. Mas as luzes apagam as
23h00 todos os dias.
Também com um aviso prévio de quinze minutos através de uma
estridente sirene, para toda a cidade ouvir. É necessário economizar
o óleo. Diziam lá na Prefeitura. Por isto o cinema termina às 22h00.A
energia de PauloAfonso só chegaria anos mais tarde.
98
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco está empolgado. Entra no cinema junto com o tio
Elias e procuram um lugar bem no meio, nas cadeiras de
madeira, com encosto.
O filme é exatamente - O Ébrio. Aquele da música que Francisco
ouvio outro dia pelo rádio do vizinho.
Que emoção! Antes do filme tem um jornal na tela. Mostra cenas de
um jogo de futebol no Maracanã. Algumas cenas de acontecimentos
políticos e em seguida começa o filme.
- Olha lá! É o Vicente Celestino! - Diz Francisco em voz alta
cutucando o tio Elias. Recebe vindo lá de trás um fortíssimo
PSSSSSSIIIIIU! O tio Elias lhe explica ao pé do ouvido:
- É proibido falar alto no cinema!
É mesmo o Vicente Celestino na tela! Que coisa fantástica!
O cinema passou a ser então o seu passa-tempo preferido. Seriados
de Rock Lane (Roque Lane como se dizia), O Zorro, Opalon
Cassidy, Roy Rodgers, filmes engraçados com O Gordo e o Magro,
Cantinflas, Charles Chaplin, e os musicais e chanchadas do cinema
brasileiro produzidos pelaAtlântida Cinematográfica.
O cinema é a porta de entrada para a civilização. As moças se
deliciam aprendendo a beijar vendo os artistas dos filmes em seus
colóquios amorosos. Algumas suspiravam só de ver as cenas
amorosas.
Outras mais afoitas até batiam palmas.
Um verdadeiro orgasmo visual para as moiçolas desse tempo.
99
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
contece então, a segunda experiência dolorosa de Francisco
com a morte. Morre o querido vovô Chico Elias. Seu câncer
de carganta se transformara num sofrimento atroz. Ha
meses ele padece prostado em uma cama. Já quase não fala mais.
Uma noite, Francisco dorme. O vovô está muito mal! Ouviu alguém
falar isso quando ia se deitar. Acorda de madrugada com sua mãe à
beira de sua rede lhe chamando:
- Francisco! Acorde! Francisco! Acorde! Meu filho!
- Ham!... Que foi?
- Levante meu filho! Seu avô acaba de falecer!
Anotícia entrou como uma bomba pelos seus ouvidos.
- O vovô morreu?- Sim! Meu filho! - Diz ela com lágrimas nos olhos:
- Vamos lá no quarto dele! Todos estão lá!
Todos, a quem ela se refere, são os filhos e filhas de vovô Chico Elias
que estão ali reunidos, orando, assistindo os seus últimos momentos.
Todos choram. É um momento muito triste. Francisco olha o avô
estirado em sua cama, muito magro, a boca ainda semi-aberta. Teve
vontade de abraçá-lo. Mas lembra que sua mãe dizia: - Não pode
chegar muito perto de seu avô! Ele está com uma doença muito
ruim! Que pega!
O que sabiam as pessoas desse tempo, é que o câncer era uma doença
muito contagiosa também com o contato físico. Ele se conteve. E
como os demais presentes, apenas contempla o defunto. Pensa nele.
Nos muitos momentos que teve com ele. De quanto ele lhe era
importante. E também sofre por saber que nunca mais ele estará
aqui. Depois de alguns momentos ainda chorando, Josina o leva de
volta para se deitar.
- Tente dormir meu filho! Só lhe acordei porque sei que você gostava
muito dele! E ele de você também! Sossegue! Vá dormir!
No dia seguinte, durante o café da manhã, Francisco escuta de um
dos familiares presentes uma informação interessante:
100
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Você viu?
- Como foi mesmo? - Pergunta alguém que havia chegado após a sua
morte.
- Estávamos todos rezando! De repente ele fechou a mão e com o
dedo apontava para a mão fechada! Ninguém entendia o que ele
queria dizer! O coitado não conseguia mais falar! Então Rita disse:
- Papai está morrendo! Ele está pedindo uma vela! Assim que
botaram a vela na mão dele, ele morreu!...
Francisco havia perdido este momento. Quando chegou ao quarto do
avô ele já estava morto.
Passam-se vários dias até ele superar definitivamente a ausência do
querido avô. É sua segunda experiência dolorosa com a perda de um
ente querido.
Dessa vez ainda mais forte.Afinal convivera muito na companhia do
avô Chico Elias. Mas teve que se superar, também desta vez.
Os estudos, o trabalho com os cigarros e o cinema, aos poucos foram
lhe tirando o peso daquela perda, voltando à normalidade.Assimilou
muito os conselhos da mãe quando o via triste:
- Meu filho! Não pense na morte de seu avô! Todos nós um dia vamos
morrer! Isso é certo!
Francisco vai passar agora por uma outra experiência que o marcará
para sempre.
Aos onze anos ainda brinca de esconde-esconde com alguns
amiguinhos que conheceu na escola. À noite está com dois deles
brincando no coreto da Pracinha. Vestindo apenas um calção, muito
suado de tanto correr, ele se posta em cima do coreto da praça que
tem duas asas laterais, embaixo das quais estão várias mesas de um
bar. Algumas pessoas bebem nas mesas. Ha um banco com dois
namorados logo abaixo de onde ele se encontra. Ali, de cócoras,
Francisco observa os transeuntes tentando se esconder dos amigos
101
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
que o procuram. Ele está tentando não ser visto por eles.
Ha dois fios elétricos descendo de um poste próximo, prendendo-se
à ponta da asa do coreto bem à sua frente, numa haste de ferro com as
pontas dobradas para cima. A altura até o solo é de uns 3m. A queda
de uma criança daquela altura poderia machucá-la bastante. Com as
mãos sobre os joelhos ele observa.
O amigo Mané Golinha que já o localizara vem sorrateiramente por
trás e simula que vai empurrá-lo para cair embaixo. Instintivamente
Francisco se agarra à única coisa que está à seu alcance. Os fios
elétricos. Fios de um tipo antigo. Recoberto com borracha, que à
ação do sol, resseca e descasca em vários lugares perdendo o
isolamento.
Francisco recebe a tremenda carga elétrica com um forte impacto.
Tremendo-se todo, agarrado aos fios, seus pés descalços molhados
de suor vão deslizando lentamente para a ponta da asa. O amigo
assustado corre para trás descendo às pressas a escadaria do coreto
gritando e dizendo que o amigo está levando um choque lá em cima
do coreto.
Francisco tenta chamar os namorados que estão logo abaixo, mas
sua língua começa a enrolar para trás e ele não consegue gritar. Esta é
uma situação muito crítica para uma criança.
Num esforço tremendo para raciocinar ele pensa: - Tenho que
empurrar os pés na haste de ferro e me jogar para trás! Consegue,
enfim! E se estatela caindo de costas sobre o coreto. Fica ali meio
desacordado com o corpo todo semi-adormecido e trêmulo, mas aos
poucos vai voltando ao normal, quando chegam algumas pessoas
para socorrê-lo. Oferecem-lhe um copo de água e cinco minutos
depois ele já está em condições de caminhar tropegamente para casa.
Sentindo-se muito abatido logo ele adormece.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
a manhã seguinte desperta sentindo um certo ardor na mão
esquerda. E observa que o dedo mindinho da mão esquerda
está encurvado, preso por uma crosta escura, resultado da
queimadura que sofreu preso ao fio elétrico.
Mostra para sua mãe. Josina examina perguntando curiosa o que foi
aquilo e ele então conta o acidente da noite anterior.
Ela o leva à farmácia, onde lhe recomendam usar uma pomada no
dedo e freqüentemente, várias vezes ao dia, esfregar bastante o dedo
tentando estirá-lo.
- Com o tempo o dedo vai voltar ao normal! - Diz o farmacêutico.
De fato, uns dois meses depois a crosta escura já se soltou e o dedo de
Francisco está voltando ao normal. Trinta anos depois esse episódio
vai ser lembrado em um consultório médico, quando Francisco vai
obter respostas bem convincentes, mais uma vez, de que
coincidências não existem. Veremos isso mais tarde, em 1980.
A vida na cidade corre tranqüila. Os primeiros meses foram de
adaptação. Viver na cidade, cercado de gente, o ambiente escolar,
tudo exige transformações. Algumas interferindo na formação da
personalidade das crianças vindas da vivência bucólica do sítio.
O odor de esterco dos animais, das plantas, dos bichos, está sendo
substituído pela fuligem da cidade, a fumaça dos automóveis e tudo
que caracteriza o odor comum das cidades.
Estamos vivendo uma festiva noite de fim de ano. Onze horas da
noite. Muita gente indo em direção à igreja de Santana assistir a
missa do Galo.
A cidade infelizmente está às escuras. Após as 23h00, mesmo em
data tão significativa, o motor de luz já tinha sido desligado.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
o centro da cidade próximo ao velho mercado público estão
vários caminhões parados com inúmeros montes de frutas.
Abacaxis, melancias, melões, laranjas e toda sorte de frutas
e verduras ali postas aguardando o dia amanhecer, o sábado, dia de
feira.
Francisco caminha por ali com o primo Jaci, o filho mais velho do tio
Miguel, então com uns 15 anos. Jaci, um rapazola muito endiabrado,
ressentindo-se de um certo desarranjo intestinal, está procurando um
lugar mais afastado e escuro para atender suas necessidades
fisiológicas.
- Chico! Vamos ali naquela rua escura entre aqueles caminhões que
eu tô com necessidade!... - Francisco o acompanha e fica na esquina
próxima, aguardando no escuro. Por medida de segurança, Jaci
resolve subir em um pé de fícos frondoso ali existente. Arreia a calça
e se ajeita nas galhas para cumprir a sua premente necessidade.
Enquanto isso Francisco vê passar um casal de namorados, que vão
se escorar bem embaixo da árvore onde Jaci está trepado.
Sem nada poder fazer, pois não podia avisar que havia alguém em
cima da árvore com tal propósito.
Jaci de fato, está muito atingido com uma certa diarréia. E naquela
situação, sem puder voltar atrás, ele tenta fazer pontaria de cima do
galho para livrar o casal, mas infelizmente só consegue livrar a
moça. E para surpresa do bem intencionado namorado, ele derrama a
sua necessidade exatamente caindo sobre o ombro do rapaz.
Ao sentir o impacto do dejeto mole, o moço se assusta exclamando:
- O que é isso? - Passando a mão ele percebe e esclama enraivecido: E é merda!
Jaci, que já subiu a calça pula embaixo tentando se desculpar.
- Eu só queria fazer um medo a vocês! - E antes que o rapaz possa
reagir ele desaparece numa tremenda carreira rua acima seguido por
Francisco, que quase não consegue correr de tanto rir. Correm certos
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
de que naquela escuridão toda, não serão localizados.
E se vão, deixando para traz o infeliz casal de namorados tentando se
recompor, sabe-se lá de que forma.
No Grupo Escolar estão começando as provas de fim de ano.
Francisco se mantém com notas muito boas. Principalmente em
português. Tem uma facilidade muito fluente para redação. As
professoras são muito exigentes. E muito eficientes. Nesse tempo é
obrigatório o estudo de uma língua alternativa. Inglês, Francês ou
Latim. Quem não consegue aprender com elas não aprende com
mais ninguém.
Prova de redação. Dona Iracema Trindade, como todas as
professoras, leva para casa as provas dos alunos para examinar e por
a nota.
Ela acaba de entrar na sala de aula com um braçado de provas
embaixo do braço e coloca sobre o seu bureau. Os alunos que
mantinham a algazarra, imediatamente silenciam. A professora
cumprimenta a todos.
- Agora vamos ver como é que a porca torce o rabo! - Dona Iracema,
apesar de severa na tarefa do ensino, é muito espirituosa. E
completa: - Quem vai passar de ano em português! E quem não
estudou e vai levar!... Levanta o braço solicitando resposta da classe
inteira:
- PAAAU! - Respondem em coro todos os alunos. Quebrando o gelo
do momento, pois ha muita expectativa entre os alunos sobre suas
notas, o que é natural.
São provas classificatórias para passar de ano. Ela chama cada um
pelo nome, diz a sua nota e lhe entrega a prova. As notas serão
conhecidas por toda a classe. É uma humilhação pública para os que
obtiveram as menores notas. Os primeiros a ser chamados. As
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
melhores notas estão lá embaixo, na pilha de provas. Faltando
apenas dez provas para serem entregues, é lógico que a expectativa
cresce bastante. Agora vai-se conhecer os dez melhores alunos
daquele ano em português.
Francisco ainda não havia sido chamado. Portanto, está entre os dez.
É o que ele deduz. E isso o deixa muito contente. - Agora! - Diz ela. Na medida em que eu for chamando esses dez nomes, quero que
vocês todos prestem uma homenagem a esses alunos! Batendo
palmas para eles! Eles merecem! Concordam!
- SIMMM! - Responde em coro toda a classe. Dona Iracema também
é uma psicóloga nata. Tem atitudes educacionais muito à frente do
seu tempo. Aquela homenagem improvisada representa muito não
só para os dez melhores da classe, mas também como exemplo, para
estimular os demais estudantes.
Um por um vai chamando os homenageados: 8,0! 8,5! 8,7! 8,8! - A
cada um Francisco pensa: Agora sou eu! - 8,9! 9,0! 9,2! 9,5! 9,8! Francisco já está completamente vermelho de tanta emoção. Sua
prova é a última!
- A este aluno eu faço questão de dar NOTA 10! - Diz dona Iracema
com empolgação. Foi a melhor prova de redação deste ano letivo!
Esse aluno poderá ser no futuro um grande jornalista! Pois escreve
com uma facilidade notória! Por favor! Batam palmas para
Francisco Araújo da Costa!
- UUUUUUU!!! - Acompanhado de muitas palmas, Francisco
experimenta pela primeira vez na vida a emoção de ser
homenageado. Sua auto-estima deve estar a mil nesse momento.Ele
caminha na direção da professora para receber a sua prova.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
oincidências existem? Ou são conseqüências? Anos depois
Francisco terá oportunidade de agradecer a ela toda aquela
empolgação.
Dona Iracema demonstrava que qualquer pessoa pode usar a sua
capacidade premonitiva.
Algumas pessoas estão marcando a vida do jovem Francisco e dona
Iracema, sem dúvida é uma delas. O jornalista se revelará anos mais
tarde, em rádio e televisão.
O fim de semana está agitado na cidade. São os festejos de São
Sebastião, padroeiro dos motoristas. Ha uma procissão com muitos
automóveis e caminhões num buzinaço pela cidade conduzindo a
imagem de São Sebastião até a beira do Rio Seridó, lá pela altura do
Poço de Santana. A partir dali, vão a pé pelo leito do rio, depois
subindo a ladeira que leva à Capela de São Sebastião em cima dos
serrotes de pedra. Francisco também vai na procissão. Todo faceiro
exibe sua roupa nova que a mamãe Josina acabou de costurar. Uma
calça comprida de brim azul e uma camisa de linho amarela. Sua
primeira camisa de linho. Está se sentido um daqueles artistas que
aparece nos filmes.
Ali próximo sobem também algumas mocinhas. Entre elas ha uma
bem bonita. De vez em quando ela atira um olhar comprometedor
para Francisco, e lhe oferece um sorriso matreiro. Ele aníma-se todo.
A menina está querendo namorar ele? Será? Mas logo ela desaparece
na multidão puxada pelas coleguinhas.
Após a procissão, que se encerrou com uma missa campal em frente
à capelinha, todos iniciam a descida. Francisco e a mocinha ainda
flertam mais uma vez quando se reencontram na descida.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
omo da vez anterior ela some com as amigas por entre os
transeuntes. Francisco volta para casa. Já está anoitecendo.
Leva consigo aquela sensação maravilhosa de vitória. O
primeiro flerte realmente confirmado. Afinal ela riu para ele de
novo. Mas não diria nada ao tio Elias. Ia tentar encontrá-la outra vez.
Quem sabe, iniciar um namoro. Então diria a ele que tinha uma
namorada. Mais tarde, quando se deitou para dormir ficou curtindo a
lembrança da imagem dela bastante tempo. E ensaiava em sua mente
o que devia dizer a ela se a encontrasse de novo.
- Você tem namorado? Quer namorar comigo? E se ela tivesse
namorado? Não. Não devia ter. Se não, não tinha olhado para ele
daquele jeito e seu sorriso dizia tudo. Naquela noite adormeceu
embalando esse sonho. A primeira namorada! E como ela era
bonita!...
O próximo sábado é dia de ir ao cinema. Com seus trocados no bolso
Francisco dirige-se à Pracinha. O tio Elias havia tomado outro rumo.
Já tinha uma namorada fixa e saiu para se encontrar com ela.
Ao chegar à Pracinha Francisco logo vê um pequeno aglomerado de
jovens conversando alegremente.
Mocinhas e rapazes estão na maior animação. Chegando mais perto
Francisco descobre! Ali está ela! A menina linda que viu na
procissão!
Aproximando-se bastante deixou que ela também o visse. Ela
pareceu ficar bem alegre quando o viu. Ele vai à bilheteria e compra
o seu ingresso para o cinema. Volta e senta no canteiro da praça ali
em frente. Os rapazes e as moças estão bem próximos. Um pouco
depois a sirene toca a última chamada e todos se apressam para
entrar no cinema. Francisco também.
A menina procura ficar sempre perto dele na entrada. Todos entram.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E ela segue sempre próximo a ele. Vai sentar numa das filas de
cadeiras e ela vai junto seguida de suas amigas.
Francisco senta. Ela passa em frente a ele entre os bancos, bem
próximo para sentar na cadeira à sua esquerda. Ao passar tão junto
Francisco sente o cheiro gostoso do corpo dela.
Perfumado com Alfazema. É delicioso o cheiro dela. As amigas
passam em seguida e sentam após a cadeira dela. Não se
cumprimentam. Se quer, uma palavra. Mas por quê ela veio sentar
ali junto a ele?
Ainda está meio paralisado de emoção, pensando o que deveria
conversar com ela, quando a luz apaga e a exibição começa na tela.
Todos no cinema silenciam para assistir o filme.
Depois dos trailers começa o filme. E os dois ali. Nenhuma palavra
entre sí. Francisco ainda pensa: o que eu devo dizer primeiro?
Quando o braço dela encosta-se ao dele no antebraço da cadeira. E
agora? Francisco desliza o braço um pouquinho sentindo o contato
da pele dela. Uma delícia! Seu coração está aos pulos.
Sente que o rosto está quente. Que emoção sensacional! Depois de
alguns momentos ele resolve fazer um teste e simulando conversar
com alguém à sua frente retira o braço.
Dai a instantes, quando recoloca o braço na cadeira não encontra
mais o dela. Aguarda alguns minutos, que lhe parecem uma
eternidade, mas ela não retorna o braço àquela posição. Ele vê dois
filmes ao mesmo tempo. Um na tela do cinema e outro em sua mente.
Enquanto Rock Lane corre na tela em seu cavalo pelos prados do
faroeste americano, Francisco imagina outra cena em sua mente. Ela
abraçada a ele.Aquele perfume! È demais!
Mas não tem mais o contato físico do braço dela. Por certo ela
pensou que ele não quer nada com ela! Como eu sou idiota! Pensa.
Pra quê eu fui retirar o meu braço da cadeira!... Procura relaxar um
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
pouco e permanece apenas sentindo o cheiro maravilhoso dos
cabelos dela quando balança a cabeça conversando com uma das
amigas. E faz isso constantemente, como se soubesse o quanto ele
está afetado pelo seu perfume. Parece se divertir provocando ele.
Concentrado no filme Francisco quase já esquecera o braço dela.
De repente! Ela encosta seu braço novamente no dele. Um momento
de susto com um tiroteio na tela.
O mocinho caiu do cavalo e todos se assustam imaginando que Rock
Lane foi ferido.
Dai por diante não desgrudam mais os braços na cadeira. Outro susto
mais tarde! E ela agarra-se ao braço de Francisco. Aos poucos ela
desliza o braço deixando a mão dela sobre a dele. Ele vira então o
braço deixando que a mão dela caia na mão dele. Entrelaça os dedos
dela. Ela aceita o carinho e aperta também a mão dele. Ele olha para
ela. Ela está fixa na tela e não olha para ele. É como se já fossem
namorados há um século.
As mãos se acariciam infindávelmente. Os dedos se apertam
levemente. Um responde ao carinho do outro. Para quê palavras? As
mãos falam por si mesmas! Isso é namoro! Pensa Francisco. Assim
permanecem naquele idílio mudo até o filme terminar.
O tio Elias, três anos mais velho já faz sucesso com as moças. Ele é
seu espelho. Mas não contaria nada a ele ainda. Ía esperar que o
namoro com aquela menina se confirmasse mesmo. Depois falaria
para ele que tinha uma namorada. Sonha rápido demais com essa
possibilidade.
Aprimeira namorada! Puxa! Que legal! Que emoção diferente!
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
s luzes acendem e todos se levantam. Ela imediatamente
solta a mão dele. As amigas recomeçam na algazarra e
empurra-empurra. Todos se dirigem à saída do cinema.
Estão caminhando para a saida atraz dele.
Ao chegarem à calçada, antes que Francisco pense o que vai falar
com ela a menina se afasta junto com as amigas e vai embora. Sem se
quer olhar para trás. Francisco permanece ali por alguns instantes,
entre pensativo e surpreso. - Mas é assim que se começa a namorar?
Não está entendo direito o que se passa. Por quê ela não lhe disse
nada na saída? Nem uma promessa de se reencontrarem depois! Ia
ter que aguardar o próximo encontro casual com ela para esclarecer
aquela situação.
Provavelmente será ali mesmo na pracinha um outro dia qualquer.
No Grupo Escolar não a encontra. Nunca tinha a visto por lá. A não
ser que estudasse em outro horário. À tarde talvez. Vai ao carro de
pipocas. Compra um saquinho e se dirige para casa. Daqui ha pouco
a luz da cidade vai apagar. A sirene do motor de luz já tocou avisando
que faltam quinze minutos.
A próxima semana segue repleta de pensamentos nela. Nem o seu
nome ele sabe! Na quinta-feira Francisco resolve dar uma passada lá
na Pracinha. Quem sabe... Nada! A menina sumiu. Na sexta-feira ele
passa por lá novamente. Ha um serviço de alto-falante na esquina da
Pracinha que toca todas as noites até as 21h00. Se pelo menos
soubesse o nome dela até que botaria um anúncio oferecendo uma
música a ela. Quem sabe ela apareceria... Esperou. Mas ela não
apareceu. Chegou até a ver algumas daquelas suas amigas. Tem
vontade de perguntar por ela, mas a timidez o impede.
Amanhã é sábado e certamente ele vai poder reencontrá-la
111
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
novamente no cinema. Vai esclarecer de uma vez. Se estivesse na
companhia das amigas ele se aproximaria dela e falaria: - Podemos
conversar um pouco? - Ela certamente diria que sim e sentariam ali
no canteiro da praça para entabular uma conversação de namoro.
Botar os pontos nos ís. Se ela quizesse namorar ele, tudo bem. Se não
quizesse, também se esclareceria de uma vez. Não ia ficar naquela
incerteza, até certo ponto dolorosa.
No primeiro toque da sirene às 18h15 Francisco já está se arrumando
para sair.
- Volte cedo! -Recomenda a mãe.
E lá se vai ele para a Pracinha cheio de espectativas. Hoje tinha que
saber o nome dela. Ao se aproximar do cinema logo pôde ver o grupo
de rapazes e moças tagarelando e comendo pipocas. O que viu,
deixa-o paralisado!Amenina tinha um namorado!
Estava abraçada a ele divertindo-se com os demais. Ainda bem que
ela não o vira. Sentou-se ali mesmo de costas, do outro lado do
canteiro da praça. Seus pensamentos e as emoções fervilhavam.
Que decepção! Como poude acreditar nela? Que leviana!... Não
conseguiu entrar no cinema.
Dai ha pouco toca a última chamada da sirene e todos entram no
cinema. Ele fica lá fora. Dirige-se ao bar no coreto da Pracinha da
Liberdade. Senta em uma mesa e pede um refrigerante. Nem a CocaCola baixa a temperatura de seu cérebro.
Aguardaria o filme terminar. Ainda quer vê-la pela última vez. Daria
um jeito de ela o ver. Passaria bem por perto. Queria olhá-la nos
olhos. Precisava transmitir a ela nem que fosse com um olhar o seu
descontentamento e decepção.
A espera é terrível. O tempo parece se arrastar. Nada pode tirá-lo
daqueles pensamentos doídos. Sente-se traído. Como ela foi capaz
112
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
de segurar a mão dele com tanto carinho, demonstrando afeto, e trair
os seus sentimentos daquela maneira! Se já tinha um namorado, por
quê se aproximou dele? Por quê lhe provocara daquele jeito.
Relembrou tudo. Desde o dia em que a viu pela primeira vez na
procissão de São Sebastião semanas antes. Ela parecia tão doce. Tão
meiga. Embora demonstrasse uma certa frivolidade. Se ele fosse
mais experiente teria reconhecido a sua personalidade fútil. O fato é
que o havia ferido bem no peito. Com uma flechada certeira. De
propósito! Por quê? Ele não consegue entender. É assim tão difícil
entender as mulheres? Seriam elas todas iguais? Todas fúteis? Todas
maquiavélicas?
Enfim, o cinema se abre. O filme acabou.
Todos agora estão saindo. Como de costume, os mais jovens se
aglutinam junto ao carrinho de pipocas. E ela está lá no meio deles de
mãos dadas com o namorado. Um rapaz da sociedade. Devia ser
filho de gente rica.
Francisco se aproxima. Passa bem em frente aos dois. Olha bem
direto nos olhos dela. Ela o vê. Fica ligeiramente paralisada mas logo
em seguida continua se divertindo com os amigos, parecendo que
nem o vira. Como se nada tivesse acontecido.
Esse é um momento muito difícil para o jovem Francisco entender.
Mas o que se passa em seu interior é algo psicologicamente muito
forte. Um sentimento que vai marcar dai por diante a sua vida de uma
forma muito inusitada. Armou-se dentro dele, como que uma trava,
de auto-defesa. Algo que seu ego gritaria por vários anos seguidos:
nunca se apaixone por uma mulher!
Quanta experiência ele vai viver com as mulheres, escorado nesse
sentimento incomum e inexplicável. Algo gerido apenas em seu
113
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
subconsciente. Vai ler muito sobre psicologia alguns anos após, mas
nunca foi levado ao esclarecimento sobre isso. Somente décadas
depois, já após seus quarenta anos ele vai poder compreender tudo.
- Compadre Pedro! Eu tenho outro armazém aqui na rua São José e
acho que podemos construir sua casa lá! Vamos construir sua casa e
depois você vai me pagando aos poucos!
O tio Miguel Elias mais uma vez dava sinais de sua extraordinária
personalidade, tentando ajudar ao irmão que se esforça e vê sua
família crescer mais e mais.
Nesse tempo ninguém pensa em praticar algum tipo de contenção
para evitar filhos. Nem os Governos atuam em torno disso. O fator
populacional ainda é uma necessidade. O Brasil ainda tem menos de
cém milhões de habitantes. Um após o outro a fila vai aumentando
(ver foto Caicó 1954) na familia de Pedro e Josina.
Combinados os detalhes para o trabalho em regime de mutirão,
iniciaram-se os trabalhos de construção da casa n° 553 da rua São
José. Francisco ganha uma tarefa peculiar.
Éele quem transporta a água para a construção da casa, em dois
barris num jumento. Água transportada do Rio Barra Nova, que fica
nas proximidades.
A mudança para a nova casa foi um acontecimento e tanto. Casa com
cheiro de nova. Portas e janelas pintadas com tinta a óleo. Uma
calçada, uma pequena área de entrada, uma sala, outra sala, dois
quartos, uma terceira sala de refeições, uma cozinha, um banheiro
externo interligado à cozinha, e um pequeno muro onde armazena-se
a lenha para o fogão.
Pouco tempo depois seu Pedro já pôde comprar o primeiro rádio de
mesa da família. Um rádio da marca ABC, com um olho mágico
esverdeado no centro, que oscila com a mudança das estações.
114
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
gora a família já podia acompanhar as notícias pelo rádio. A
cultura da comunicação começa a entrar na casa de Pedro
Elias pelas ondas do rádio. Ele próprio, passa horas ao pé do
rádio, procurando no dial onde ouvesse uma rádio tocando as
músicas deAugusto Calheiros, seu grande ídolo.
É Carnaval de 1954. Francisco tem agora 14 anos. Sábado de Zé
Pereira. A cidade está um burburinho só. 09h00 da manhã e o Bloco
dos Sujos já está nas ruas.
Debaixo do maior temporal. Poucas vezes Caicó recebeu o
beneplácito das chuvas tão fortes já em pleno mês de Fevereiro. Mas
este sábado de Zé Pereira ficaria na história. Uma chuva torrencial
cobre a cidade. Francisco se desgarra do bloco de carnaval,
preferindo tomar banho de bicas. Descalço, só de calção, aproveita
para se lavar da sujeira de tinta e talco que passaram no seu corpo.
Está embaixo da bica bem na esquina da São José com Av. Seridó. Os
trovões ecoam fortemente. O próximo vem anunciado por um forte
relâmpago que cai ali por perto em algum para-raios. Francisco é
atingido em cheio com a imensa claridade do relâmpago, se
desequilibra
escorregando na água e cai na calçada. Levanta-se atordoado e
pensa: - Escapei por pouco! - E resolve ir para casa. Recebeu o
relâmpago como um aviso.
Mesmo com muita chuva o domingo de Carnaval está movimentado
com muito barulho pela cidade. O dia está nublado, mas agora não
chove mais. Anunciam que vai ter baile de carnaval à noite no Clube
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
dos Morenos. Tem muito lança-perfume de alumínio, da marca
Odoro sendo vendida pelas esquinas. Bôlo-Bôlo, o mais conhecido
engraxate da cidade anda com várias delas embaixo do braço,
vendendo pelas ruas. Não é proibido cheirar lança perfume. Embora
ainda de menor idade, Francisco compra um lança-perfume. E à
tarde, bem no cruzamento de ruas próximo de sua casa, resolve
tomar o primeiro porre. Cheira o lenço molhado e em alguns
segundos o mundo desaparece sob seus pés. Corpo totalmente
adormecido, ele cai no chão de terra molhada, no meio da rua. Ainda
bem que nesse tempo o trânsito de automóveis em Caicó ainda é bem
pequeno.
Desperta momentos depois ainda zonzo. Sua primeira preocupação
foi se certificar de que o lança-perfume ainda está na sua mão.
Logo mais à noite, seu primeiro baile de carnaval no Clube dos
Morenos está sendo muito divertido. Escorado numa das paredes do
salão de baile, toma seus porres de lança-perfume, cheirando mais
moderadamente.
Aos poucos o som da orquestra ia sumindo e então ele vai
escorregando na parede até ficar de cócoras. Pelo menos ninguém
lhe pisa em cima, naquela posição. Um porre mais demorado, e
quando retorna a si, tinham levado o lança-perfume. Para quem já
tinha experimentado até queda na rua, as experiências daquele dia já
eram suficientes. Resolve parar com os porres.
A fabricação de cigarros continua por mais algum tempo, mas
depois recrudesce. Francisco agora só tem a atividade na escola.
Seus 14 anos de idade pedem uma ocupação extra. Seu Pedro então
consegue uma vaga para ele na oficina de seu Joaquim Poroca, bem
em frente a sua casa, para ajudar na fabricação de carrocerias de
caminhão, onde será aproveitado nos trabalhos de pintura com tinta
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
a óleo a base de pincel. Ali também pode continuar ganhando seus
trocados.
Hormônios à flor da pele empurram Francisco para as mocinhas da
redondeza. Aprendendo a correr de bicicleta, depois dos primeiros
tombos agora ele se exibe passando várias vezes em frente a casa de
Edite de Beréu, que reside no quarteirão próximo. Ela é sua nova
paixão. Mas ha um problema entre os dois. Dizem que ela é
apaixonada pelo jovem Ciduca, locutor da Difusora. Mas Francisco
se sente muito atraído por ela. Ainda mais agora, com os festejos dos
cordões azul e encarnado, angariando fundos para a igreja. O palco
dos festejos foi armado no meio da rua bem em frente a casa de
Francisco.
É período da Semana Santa. O sábado amanhece sob os tiros de
espingarda para derrubar o Judas que haviam pendurado num mastro
ali em frente. Um boneco de pano cheio de capim.Aqueda do Judas a
tiros de espingarda é uma tradição muito forte. Vários tiros são
disparados nele até que alguém consiga atingir a corda que o
mantém pendurado pelo pescoço.
Pedro Elias pega também sua espingarda soca bucha e vai lá se
divertir. Até que alguém dispara uma espingarda de dois canos
acertando a corda e o Judas despenca no meio da rua, para diversão
da molequeira e dos cachorros presentes, que estraçalham o boneco
rapidamente em muitos pedaços.
À noite, os cordões Azul e Encarnado sobem o palco na maior
animação. Um pequeno estrado de madeira todo enfeitado com
bandeirolas nas cores azul e encarnado e um cordão de luzes
penduradas dão o clima do folguedo.
As mocinhas desfilam cantando as suas ladainhas, batendo em
117
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
pequenos pandeiros enfeitados com fitas.
“Boa noite meus senhores todos,
Boa noite senhoras também...”
Lá está Edite! Linda! Moreninha, vestida com as cores do Cordão
Encarnado, cantando e dançando. Francisco, logo abaixo em frente
ao palco, se delicia:
- Será que ela quer namorar comigo? - Pensa. - Ah! Se ela quizesse
namorar comigo!... Paixão recolhida. Sem dúvida. Mas Francisco
não tem coragem de se aproximar dela. Mesmo depois da
experiência malfadada da primeira namorada, ele se sente
fortemente atraido pelas mocinhas de sua época. Mas a sua
acentuada timidez o inibe de procurar contato mais direto. Às vezes,
tem a impressão que Edite flerta com ele. Mas depois ela se mantém
muito distante. Parece nem notar mais a sua presença.
Aos 15 anos, vai ter sua primeira experiência sexual, sem nunca ter
namorado de verdade.
Acabara de começar no seu primeiro emprego, como locutor na
Difusora SPVS - Serviço de Publicidade A Voz do Seridó.
Acalentava a espectativa de que assim, a Edite se interessasse por
ele. O SPVS é um serviço de auto-falantes pertencente à Diocese,
que mantém várias bocas de som espalhadas em diversos pontos da
cidade. Onde o jovem Ciduca já havia trabalhado como locutor.
Ali são irradiadas as notas da Diocese, bem como do público em
geral em pequenos avisos e divulgação musical. Sempre que se ouve
no auto-falantes uma música de Augusto Calheiros, Pedro Elias
logo se pronuncia:
- Isso é que é cantor!
Orlando Silva, Dalva de Oliveira, Francisco Alves, Silvio Caldas,
118
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Luiz Gonzaga, também são muito apreciados. Nelson Gonçalves,
Ângela Maria e Cauby Peixoto são as grandes revelações jovens da
época.
As moças da rua São José costumam sentar nas calçadas para se
deliciar com as fotos e os comentários sobre os artistas na Revista do
Rádio.
As fotos de Cauby Peixoto faz todas elas suspirarem. Um transtorno,
quando certo dia aparece um comentário de que o Cauby é
homossexual. Algumas das moças até choram de raiva com esses
comentários.
- Isso é inveja dessa gente! - Desabafam algumas. - Ele deve
namorar com a Ângela Maria! Não vê as fotos dos dois? - Quanta
ingenuidade! O tempo se encarregará de confirmar o que à boca
maldita ha tempos comentava. O grande ídolo nunca se casa. E
quando a Ângela Maria casou as moças ficam de orelha em pé.
- Mas ela não era namorada do Cauby!... - Exclamam surpresas.
É nesse tempo que Francisco vai ter sua primeira experiência sexual.
É noite de São João. Após o trabalho na Difusora, a cidade está
repleta de fogueiras queimando. Jessé de dona Rosa, também locutor
da difusora, acaba de chegar por lá montado em sua vistosa lambreta.
- Hoje tem um baile lá no Cabaré! Você vai? - Francisco mostra-se
um pouco surpreso com a pergunta. Nunca havia estado no cabaré.
Tem só 15 anos. Jessé já é freguês da zona ha bastante tempo. Já tem
seus 17 anos. Ha uma rua das mulheres de “vida fácil” lá próximo da
matança (local do abatedouro de animais) e do motor da luz. Mas ele
nunca esteve numa dessas casas. Aquele trecho da rua é conhecido
como o Cabaré.
Tem muitas raparigas, que durante o dia trabalham como domésticas
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
em algumas residências na cidade. Comportamento nota dez. À
noite, elas estão lá no Cabaré, engordando o faturamento. Tem delas
que cobra até dez mil réis! Um dinheirão! Francisco ganha oito mil
réis por mês. Não daria nem para uma noite de diversão com uma
rapariga daquelas. Mas ele juntou algumas economias e está
refletindo sobre a pergunta de Jessé.
Ainda não se decidiu. Desconfiado, Jessé lhe faz outra pergunta:
- Você já esteve com mulher?
- Ô xente! Já rapaz! - Que mentira! Mas não ia sair dessa por baixo.
- Então mais tarde quando você fechar a difusora eu passo aqui para
lhe pegar. A gente vai junto! Tá certo?
- Pode passar! - Responde Francisco pensando: É hoje! Que vou ter
de botar a lagartixa pra fazer carreira!
As 22h00 lá estão eles chegando à zona do baixo meretrício. O
Cabaré de Ana Raposa é a maior animação. Até um sanfoneiro
haviam contratado. Um salão todo enfeitado com bandeirolas.
Muitas mulheres de vida fácil disponíveis. Muitos homens também,
entre velhos, adultos, solteiros, casados e rapazes de primeira
viagem, como Francisco.
Modéstia à parte, Francisco dança bem. Logo uma das mulheres
ainda bem jovem, ali presente se interessa para dançar com ele.
Nesses ambientes diferentes dos bailes em sociedade, as mulheres se
aproximam e puxam o homem que elas querem para dançar. É
normal. O certo é que lá pelas duas horas da manhã, depois de
beberem algumas cervejas, Francisco foi conduzido ao lupanar. Não
sabia nada da arte da cama. Mas a jovem já sabia tudo.
Umas duas horas depois, o dia está amanhecendo com o cantar do
galo. Um silêncio total ao redor. Francisco vê pelas brechas do
telhado do quarto onde se deitou com a dita cuja, que o dia vai já
amanhecer. Apressa-se em ir embora. Veste a roupa e faz menção de
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
querer pagar a mulher. Ela então lhe diz:
- Não quero dinheiro seu, não! Valeu a noite de diversão! Quando
você vier outra vez a gente acerta! - Francisco então agradece e sai a
passos largos na direção de casa. Menino! Se Pedro Elias descobre
que ele passou a noite no Cabaré! Como vai ser quando chegar em
casa? - Pensa ele. Não vai entrar em casa! Teria que chamar sua
mãe.
Não vai chamar! Isso pode acordar o pai!
Chegando diante de casa, a fogueira ainda tem brasas fumaçando um
pouco. Ele se acocora junto. E se mantém ali em silêncio, esperando
que alguém abrisse a porta e talvez ele desse um jeito de entrar sem
ser visto. Que jeito!
Mas intuição de mãe é coisa séria! Não demorou quinze minutos e a
janela da sala se abriu. É Josina! Que fala baixo para Pedro não
acordar:
- Onde você andava camarada? Que chega em casa a essa hora?
Francisco dá uma desculpa esfarrapada... dizendo que andava com
Jessé de dona Rosa, e tal... Mas Josina não engoliu a conversa e abre
a porta mandando-o entrar. Mais tarde, quando ele acorda, não tendo
ninguém por perto, ela dá-lhe o aperto definitivo:
- Você andava por aí com mulher, não foi? - Francisco nem disse sim,
nem disse não. E como quem cala consente, teve que ouvir boas e
boas. Todo mundo sabia da fama de raparigueiro do Jessé de dona
Rosa. E andando com ele... Conclui acertadamente Josina.
- Você ainda é muito moço, Francisco! Não pode já estar se
enrolando com mulher do mundo por aí! - Mas dá o assunto por
encerrado.
Seu menino estava ficando homem! Realidade que ela é obrigada a
aceitar naturalmente. Só não queria que ele se envolvesse demais
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
com essas coisas. Mas não havia como evitar. O jeito era tolerar e
orientar no que pudesse. Sem clima suficiente para que ele recebesse
orientação do pai, como seria o ideal, cabia a ela também esse
cuidado. Embora não pudesse fazer muita coisa. Os jovens em
puberdade têm energias sexuais em franca ebolição. Restava pedir a
Deus que acompanhasse seu filho. E lhe desse juizo!
Passam-se três dias e Josina percebe resíduos diferentes nas cuecas
de Francisco. Chama ele para uma conversa:
- Francisco! Você está sentido alguma coisa diferente nesses
“troços”? - Apontando para a virilha dele. Francisco, que já está
sentido até febre, confirma a purulência.
- Taí o que você arranjou! - Diz ela com ar de preocupação. - Vá
agora mesmo na Farmácia do Gilson e diga isso a ele! Diga que eu
mandei ele medicar você! Isso é doença venéria meu filho! Você
precisa se tratar!
Francisco sai imediatamente em direção à Farmácia.
Quanto trabalho a família está dando a esta mulher extraordinária!
Um problema que, em situação normal, deveria estar sendo
averiguado pelo pai, ela é que tem de tomar a iniciativa. E sem ele
saber de nada. A sua ignorância é tamanha que seria capaz de
espancar o menino ao saber disso.
Na farmácia Francisco vai receber uma série de aplicações de
Benzetacil, uma injeção de antibiótico, muito dolorida. Uma a cada
três dias. São três no total.
- Depois volte aqui para me dizer como anda isso! - Diz o
farmaceutico.
Felizmente, tratada assim bem no início, a Blenorragia vai sendo
logo controlada.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
M
as a ignorância é mãe de todas as purulências. Uma
semana depois de tomar as injeções Francisco saboreia
um bom copo de caldo de cana com pastel. Isso é o pior
ativador da gonorréia. Alguns resquícios dela ainda existiam em seu
sangue e logo a blenorragia reage de volta.
Retornando à farmácia informando que ainda não ficou curado, o
farmacêutico lhe pergunta:
- Andou comendo comida carregada? Carne de porco, essas coisas?
- Não! - Responde Francisco.
- E caldo de cana?
- Eu sempre tomo, com pastel!
- Taí a causa. Homem!
- Caldo de cana é um veneno nesses casos! Vamos aplicar outras
injeções! - Agora são quatro. - Depois volte aqui! - Orienta o Gilsom
da farmácia.
Dessa vez Francisco mantém o resguardo direitinho, e duas semanas
após está completamente curado da gonorréia.
Mas ficou um efeito colateral! Francisco agora pensa duas vezes,
sobre um novo programa com mulheres no baixo meretrício.
Será que todas elas estão doentes? Camisinha nesse tempo se existia,
ninguém sabia em Caicó. Pelo menos os jovens em início de
“carreira”.
Levou um bom tempo, até Francisco se envolver de novo com uma
rapariga. Quem experimentou da fruta nunca mais vai esquecer.
Torna-se um vício desde a primeira vez. Tiraram-lhe o “cabaço”,
como diziam alguns. Agora tem de continuar com a magnífica
prática. Com todo cuidado, é bem verdade. Vez ou outra ele até se
diverte comentando com os amigos:
- Pois é! Levei uma cacetada com Blenorragia logo da primeira
vez!...
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
J
osina se mantém em alerta. Sempre vistoriando suas cuecas
samba-canção. Mas está tranqüila. Nunca mais encontrou nada
anormal. Das duas uma: ou Francisco não tem andado mais com
mulheres por aí, ou tem muita sorte agora. Mulheres acometidas de
doenças venéreas em Caicó nesse tempo é algo muito comum. A
Saúde Pública nem toma conhecimento disso. É um tempo difícil.
Difícil em tudo.
Mais uma eleição está às portas. Nenhum político se interessa por
questões dessa natureza. A propósito de eleição, a tia Maria, como
boa cozinheira, havia sido requisitada para ajudar na preparação da
comilança para os eleitores na casa de Zé Josias, um forte cabo
eleitoral do PSD.
Nesse tempo é muito comum os candidatos oferecerem transporte e
almoço aos eleitores.
- Passe lá em Zé Josias que eu preparo um bom prato pra você! - Diz
a tia Maria. Havia gente que almoçava várias vezes. Pelo menos
duas. Uma em qualquer residência que servisse almoço para os
eleitores do PSD e outra onde servisse para os eleitores da UDN. Só
havia esses dois partidos eleitorais.
Bois e mais bois, muitos porcos, muitas ovelhas e bodes, são
sacrificados nesse período para alimentar os dois ou três milhares de
eleitores.
Meio-dia e Francisco se acerca da casa de Zé Josias. É de menor
ainda. Não vota. Mas ha comida pra todo mundo.
A tia Maria assim que o vê prepara-lhe um suculento prato cheio até a
copa, com feijão verde na nata, arroz de leite, farofa e alguns pedaços
de carnes variadas.
Francisco logo reconhece a carne de porco por causa do toucinho.
- Porco eu não quero não tia Maria!
124
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Porquê? Você não gosta?
- Gosto não! - Claro que não iria confessar a ela sua recente
experiência blenorrágica. Seria motivo de gozação. Sem dúvida! Tia
Maria, o que tem de severa tem também de gaiata em contra-peso.
Aliás, quase todos os filhos do vovô Chico Elias são muito
espirituosos.
A diversão da comilança no dia de eleição não duraria muito tempo.
Anos depois foi proibida por Lei Federal. Nem transporte, nem
comida para os eleitores. Havia muita gente que votava apenas por
um prato de comida. Pessoas que ha muito não comiam carne.
Tiravam a barriga da miséria nas eleições. Mas algum tempo depois
isso já não existia mais.
Seis de abril. Dia do aniversário de Francisco. Sua mãe havia
encomendado uma surpresa para ele. Um violão que mandou fazer.
E lhe dá de presente. Ele procura aprender de ouvido a tocar o violão,
apenas com um pequeno caderno de posições de violão.
Aos poucos vai dominando o instrumento. Não demora muito e ele
entra para o rol dos seresteiros da cidade.
Juntamente com Luiz de Zé Paulo e seu piston de surdina e
Raimundo Nonato. Raimundo não canta nem toca nada. Mas é o
responsável para conduzir a garrafa de aguardente e o tira-gosto,
num saco de papel.
À noite, ele está sempre no microfone da Difusora. É comum se
ouvir pelos auto-falantes, durante a animação do passeio na
Pracinha, oferecimentos musicais do tipo:
- “Um alguém muito apaixonado, oferece esta música a outro
alguém que está passeando na praça, trajando sáia azul e blusa da
mesma cor. Com amor e carinho - Ninguém Me Ama - com Nora
Ney!”
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
ácil imaginar-se o alvorôço das moças na praça para descobrir
quem está vestida daquela maneira. Pois ha um desconhecido
apaixonado mandando-lhe mensagens sonoras, porém, sem se
identificar.
Ha situações que quase dá em caso de polícia. Amigos de um outro,
que providenciam uma “pegadinha”, oferecendo músicas à sua
namorada. Às vezes isso resulta em arenga entre os dois namorados.
- Você anda dando bola para alguém, que está lhe mandando essas
mensagens!
- Criatura! Eu não sei quem está fazendo isso! Eu não dou bola pra
ninguém! Era só o que faltava!
Enquanto os amigos matreiros se divertem de longe assistindo a
desavença dos namorados. Até que um dia o padre Galvão,
responsável pela Difusora, proibe terminantemente as tais
mensagens.
Tem gente que manda os moleques com a mensagem num pedaço de
papel, entregar lá na difusora.
- Se a pessoa não se identificar, - diz o padre: não receba nem
divulgue a mensagem!
O único jeito de coibir aquelas molecagens.
Os jovens da geração de Francisco, um pouco mais velhos, já estão
se dirigindo ao serviço militar. O tio Elias logo irá para o Exército.
O primo Jaci, já foi para a Marinha ha algum tempo. Manda
lembranças para a família. Chega uma carta dele informando que
está indo muito bem na Escola de Aprendizes Marinheiros e que logo
vai ser destacado para servir no Quartel da Marinha no Rio de
Janeiro. Informa também que em breve embarcará numa viagem de
prêmio, em navio-escola da Marinha Brasileira viajando por
diversos paízes. Esse é o comentário alviçareiro que mais se ouvia no
meio da família Elias.
No ano seguinte Francisco completará 16 anos.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E
ssa é a idade inicial para ingressar na Marinha. Quando
chegar a hora seu pai então sentencionará: -Vamos mandar
Francisco para a Marinha. Esse menino tem que fazer
carreira na vida.
Olha o exemplo do Jaci de Miguel! Vá no mesmo rumo que o futuro é
nas forças armadas!
O alistamento no Exército em Caicó ainda demoraria mais dois anos,
entrando só com 18 anos completos. E Pedro Elias acha que ele
deverá seguir o caminho do primo Jaci. A Marinha é a melhor opção.
Mas tem que entrar com dezesseis a dezessete anos.
A essa altura, Francisco já tem sua primeira namorada firme. A
Nevinha. Uma moça da vizinhança filha de uma família protestante.
Na verdade foi ela, um ano mais velha que ele, quem lhe ensinou os
primeiros passos na arte do namoro.
Despede-se dela e ruma para Natal, onde fará exames de saúde no
quartel Naval. E caso seja aprovado, embarcará dias depois para
cursar a Escola de Aprendizes Marinheiros de Recife, de onde havia
saido o primo Jaci, que agora singrava mares de vários continentes.
Nesse momento, o primo Jaci é o grande orgulho da família.
O vovô Chico Bobôco, está acamado já ha alguns dias. Sofre de uma
doença que ainda não descobriram o que é. Ele tem muita
dificuldade para urinar. Está muito abatido. Parece estar sofrendo
muito.
Ainda vivia pelo sítio, quando Pedro Elias o traz para sua casa na
cidade. Seria sua missão. cuidar do pai até a morte e do sogro
também.
- Cumpadre Chico! Enquanto eu tiver uma casa o senhor não ficará
desamparado! Vai ficar aqui com a gente! Vou levá-lo no hospital
para o médico lhe examinar. - Josina arrumou um quarto na casa para
vovô Bobôco se acomodar.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
gora já ha um novo hospital na cidade com mais
possibilidades de atendimento. O médico passou injeções
para aliviar as dores.
Chega o dia de Francisco ir para Natal a fim de se alistar na Marinha.
Na capital, que ainda não conhecia, foi recebido pela tia Nazinha,
irmã de Josina, cujo esposo também era marujo, e que estivera em
Caicó por ocasião da doença do Padim Bobôco, quando Josina lhe
solicitou que recebesse Francisco quando fosse para a Marinha.
Chegando à Natal com um companheiro, o Gordo de Severino
Modesto, também pretendente aos exames para a Marinha, hospedase por dois dias no Hotel Caiana no centro do Alecrim, enquanto
fariam os exames de saúde no Hospital Naval perto dali. Vindos da
tranqüilidade do interior, logo na primeira noite, um domingo, eles
deitam no quarto para dormir e deixam a porta aberta.
Pela manhã Francisco descobre que foi roubado. Levaram todo o seu
dinheiro. Ainda bem que deixaram a carteira com os documentos. O
Gordo, que dormia com sua carteira no bolso não foi roubado. Mas
amanheceu a segunda-feira com uma forte crise de amídalas. Na
praça em frente ao hotel ha muitas bancas de bugigangas para
vender.
- Capaz de eu não passar no exame de saúde por causa dessa
garganta. Vamos ali que eu vou comprar um remédio.
Francisco imagina que ele vai à Farmácia. Mas o Gordo compra
numa daquelas bancas uma lata de Vic-Vaporube e com o dedo,
aplica algumas dedadas da pasta sobre a língua massageando a
garganta, depois engole tudo. Francisco está surpreso!
Não sabia que isso era muito bom para crises de garganta. Os exames
seriam à tarde. Poucas horas depois o Gordo dá conta que a crise de
garganta havia passado completamente e anima-se para encarar os
128
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
exames de saúde. Mas, uma surpresa desagradável esperava por ele.
Fazendo os exames de saúde, muitos jovens candidatos presentes, e
o Gordo também na fila. Num dos exames o candidato tinha que por
o pé sobre um pó escuro ali existente e pisar depois numa cartolina. E
para grande tristeza do Gordo, ele acaba de ser desclassificado pela
planta do seu pé. Seus pés não têm cavas. É pé chato. O médico
descarta-o na hora. Francisco passa nos exames e deverá se
apresentar quinze dias depois a fim de embarcar de trem para a
Escola de Aprendizes em Recife. Enquanto o Gordo regressa a Caicó
entristecido. Queria tanto ser marinheiro...
Faz contato então com a tia Nazinha e vai para sua casa no bairro de
Lagoa Seca aguardar o dia da viagem. Ser marujo é charmoso.
Antonio, esposo da tia Nazinha também é marinheiro. Uma roupa
azul, muito bonita, uma boina branca com uma fita. Detalhes que
empolga os jovens.
Nos dias que passou em casa da tia Nazinha, pôde conhecer alguns
aspectos da cidade. Foi com ela à praia pela primeira vez, andou de
ônibus pela cidade. O cheiro da capital também lhe é muito diferente.
Cheiro de fumaça e de gente, tudo misturado. Foi com ela conhecer
também uma prima de segundo grau, Maria, filha do tio Zé Bobôco,
irmão do vovô Chico Bobôco, no bairro das Rocas. Será para lá que
ele voltará pouco mais de um mês depois.
Gostou muito da família de Maria. Ela tem um irmão, o Marola, que
era companheiro de Francisco nas mesas de sinuca em Caicó. A
afinidade foi imediata. As músicas ao violão ajudam no
relacionamento com as filhas de Maria. Elas apreciam bastante ouvir
Francisco ao violão.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
hega então, o dia da viagem para Recife. Ha uma
recomendação expressa para só levar numa pequena maleta
apenas uma muda de roupa, duas ou três cuecas, pasta e
escova de dentes.
Embarque pela manhã na estação central da Rede Ferroviária, no
bairro da Ribeira.
O trem sai às 07h00, chegando em Recife às 19h00. Um dia inteiro
de viagem. Velocidade de Maria Fumaça. Mas a viagem está muito
divertida.
Viagem para o desconhecido é sempre motivo de alegre espectativa
para todos os jovens. Além do mais, ha um cantor embarcado.
Francisco conduz seu violão. E anima a turma cantando juntamente
com outros jovens enquanto a viagem prossegue.
Na Estação Central de Trem no Recife, os recrutas são colocados em
um caminhão da Marinha com cobertura de lona, cada um com sua
pequena maleta, que agora se desloca pelas ruas da cidade muito
iluminada. Passam por pontes muito bonitas. Estão sendo levados
para a Escola de Aprendizes Marinheiros, nas proximidades de
Olinda.
Ao chegarem lá, um vexame! Pelo menos para Francisco, que nunca
havia passado por tal experiência.
- Todo mundo! Entrem naquele banheiro ali. Tirem toda a roupa e se
molhem nos chuveiros.
Grita um sargento. Chuveiros do tipo chuveirão. Logo em seguida,
um soldado aparece com uma mangueira grossa na mão e um tubo
nas costas. O sargento grita:
- Fiquem todos de costa e se abaixem até a cintura!
Mas o que é que está acontecendo aqui! - Pensa Francisco.
130
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Atal mangueira jorra uma fumaça com cheiro desagradável.
- Abram bem as pernas! - Grita o sargente. - Vocês estão levando um
banho de desinfetante para matar todos os chatos, xanha ( um tipo
de coceira) e piolhos que estiverem trazendo no corpo! - Berra ele. A Marinha não gosta de piolos, nem chatos, nem xanha, nem
piolhos! -Cada recruta recebe sua baforada no trazeiro devidamente
posicionado.
- Agora se virem de frente!
Outra baforada pelo corpo inteiro. Os recrutas já estão rindo da
situação.
- Silêncio! - Berra outra vez o sargento. - A Marinha não gosta de
marujos com risadinhas! Tudo aqui é pra ser levado a sério! Em
seguida se ensaboem e se lavem. Depois vistam a roupa de marujo.
Por traz de cada recruta ha um pequeno pacote de roupas no chão ao
pé da parede. Roupa para exercícios físicos, duas calças e duas
camisetas, dois calções de banho, um cinto de lona com fivela
cromada, um par de tênis de lona branco, um chinelo de borracha, e a
tal boina branca. Com uma recomendação final do sargento:
- Só não fornecemos cuecas! Todos têm que cozinhar a cueca que
vestiam quando chegaram! Procurem a lavandaria amanhã logo
cedo. E a própria roupa deve ser lavada com bastante sabão.
Cada um recebeu sua cota de sabão em barra.
Após a primeira lavagem na lavanderia elétrica com água quente
para matar piolhos, cada marujo tinha de lavar sua própria roupa nos
tanques de outra lavandaria existente no pátio trazeiro externo da
Escola.
Vestia uma, enquanto isso lavava a outra. E tinha-se de ficar ali
próximo à roupa, ensaboada ao sol ou enxugando, para evitar que
alguém as roubasse.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
D
esde a viagem no trem Francisco já fez amizade com alguns
companheiros de turma. Um deles, é o Zé Segundo, um
sujeito espirituoso e bem vivo, com quem se afina mais.
Estão sempre juntos conversando amenidades nas horas de folga.
O regime de instrução na Escola de Aprendizes não é moleza.
Inicialmente, o que pega mais forte são as instruções de marcha dos
pelotões. Que desfilam desde o calçamento da parte externa da
Escola até as marchas pelas areias da praia por trás da Escola.
Comenta-se que ha na Escola um contingente muito grande de
candidatos. De forma que o comando manda espremer as turmas em
toda sorte de exercício puxado e às vezes exagerado, provocando
para que muitos peçam baixa do alistamento. Os mais fortes vão
resistindo.
Ha também outros tipos de exames com provas escritas, sobre as
matérias que são dadas nas apostilhas. Quem não tiver tudo na ponta
da língua, estudando bastante, por qualquer coisa é dispensado.
Acontece um acidente com Francisco. A marcha dos marujos é feita
calçando apenas o tênis de lona com solado de borracha. Certa
manhã em marcha de ordem unida pelas areias da praia Francisco
tropeça num pau fino enterrado de ponta na areia que lhe penetra a
parte superior do pé esquerdo, cerca de um centímetro.
É levado para curativos na Enfermaria da Escola ali permanecendo
até o dia seguinte.
Dão-lhe alta ao meio-dia seguinte e logo mais à tarde está sendo
requisitado para continuar os exercícios com o pelotão.
O cabo que conduz o pelotão nem toma conhecimento da gravidade
do pé de Francisco e exige:
- Quero ver todo mundo batendo forte o pé no chão! Vamos rachar o
calçamento! Um, Dois! Três, Quatro! Um, Dois! Tres, quatro!
132
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O ferimento no pé está ficando uma coisa feia. Quinze minutos dde
ordem unida, com o pé já inchado, Francisco está mancando.
- Você aí, marujo! Marche sem mancar!
- O meu pé está doendo muito, cabo!
- Não interessa! Pisa forte! Vamos rachar o calçamento!
Nos dois dias seguintes, é a mesma coisa.
Enfermaria pela manhã e pelotão de ordem unida à tarde. O pé muito
vermelho está cada vez mais inchado. Quase já não cabe no tênis.
À tardinha o companheiro Zé Segundo avisa que foi desligado. Não
passou nas últimas provas escritas. Vai voltar para Natal com mais
alguns candidatos. Eram 20 no total. Francisco então resolve:
- Sabe de uma coisa! Eu vou aproveitar e pedir desligamento! Vou
embora! Se ficar aqui vou perder o meu pé. Isso aqui é coisa de
doido!
- Então você tem que ir agora falar com o Tenente Costa. Daqui ha
pouco encerra o expediente. E a gente vai de trem amanhã bem cedo.
Já avisaram!
Francisco não perde tempo. Vai à sala do Tenente Costa. Fala a ele da
sua situação mostrando o estado de seu pé, pedindo desligamento da
turma. O Tenente prontamente o atende. Olha sua ficha e conclui:
- Você veio de Natal, certo? Vamos aproveitar que amanhã está
voltando uma turma, desligada do curso e você vai junto!
Assina um papel com a autorização que bateu à máquina
rapidamente e diz:
- Arrume suas coisas! O transporte saí as 06h00 da manhã para
levar vocês na estação do trem!
Francisco agradece, pega o documento e volta para seu alojamento.
Não ficaria nem mais um dia ali. Seu futuro não é a Marinha. Disso
está certo.
133
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O problema agora será convencer seu pai quando chegasse à Caicó.
Cinco horas da manhã todos já estão de pé. Embarcam no caminhão
de lona às 06h00 e são deixados na Estação de Trem no centro do
Recife. Um sargento os acompanhará até Natal.
A um dos rapazes foi entregue um saco de pano, nada limpo, com 21
sanduíches de pão redondo com bife de fígado de boi. Por
recomendação do sargento, o saco só deveria ser aberto ao meio dia,
para um lanche na hora do almoço.
O vagão dos dispensados é o último no trem. Um calor infernal.
A viagem de volta é sempre mais dolorosa. Mas ha o violão de
Francisco, que ajuda a passar o tempo animando a rapaziada.
Justo ao meio-dia, o rapaz abre o saco com os sanduíches. Todos já
estão com muita fome. Afinal, saíram da Escola muito cedo, só com
um copo de café com leite e um pão na manteiga.
O saco aberto logo foi revelando o conteúdo do infeliz repasto.
Abrindo-se os pães vê-se que o bife de fígado está verde. Alguns
cheirando ruim. O lanche azedou fechado no saco. Era isso. E agora?
- E o sargento? Vamos reclamar dele! - Disse um.
Outro exclama afobado: - Vai ver que está lá no restaurante do trem
almoçando no bem bom!
Dois outros companheiros decidem ir até o restaurante do trem
procurar uma solução com o sargento.
Quinze minutos depois voltam desolados:
- E aí?
- Nada! O sargento disse que não é culpa dele e que não pode fazer
nada!
A essa altura alguns mais famintos tentam comer o sanduíche assim
mesmo. O Zé Segundo, bastante intuitivo tem uma idéia e chama
Francisco saindo fora do vagão:
134
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Tive uma idéia! - Diz ele esfregando as mãos.
- Rapaz, você canta muito bem! Eu vou fazer o ritmo batendo no
violão. O que você acha de a gente tentar conseguir alguma coisa
para comer cantando lá no restaurante?
- É! Não custa nada tentar!
E lá se vão eles para o vagão do restaurante que fica mais ou menos
no meio do trem.
Já entram cantando uma bela música de Nelson Gonçalves: “Maria
Bethânia. Tu És Para Mim a Senhora do Engenho”...
Querem impressionar todos os comensais. E estão conseguindo.
Vários passageiros estam almoçando no restaurante do trem.
Inclusive o sargento, que já desfruta a sua sobremesa de salada de
frutas. Todos estão surpresos com o show repentino dos rapazes.
Terminada a música, todos aplaudem. Bom sinal! Estão agradando.
Francisco amima-se e canta mais uma.
Cantando vão se aproximando da mesa do sargento. Logo o amigo
Zé Segundo fala com ele, pedindo que alivie uns dois sanduíches
para eles. Falou de modo que outras pessoas escutassem. Ora! O
sargento ficou sem saída.
E prontamente chama o garçom:
- Sirva dois sanduiches e dois refrigerantes aqui para os rapazes!
Que maravilha! Agora sim! Poderiam apaziguar o estômago que já
roncava feito cuica ha algum tempo.
Eles comem os sanduiches. Em seguida cantam mais duas músicas e
se retiram voltando ao vagão, dos dispensados, alegremente
palitando os dentes.
- Pra onde vocês foram? - Pergunta um deles. - Fomos almoçar, ora!
- Responde Zé Segundo.
- E vocês têm dinheiro?
- Claro que não! Foi o sargento que pagou!
135
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Já está começando um alvoroço. Os demais também querem ir lá
pedir comida ao sargento.
- Espera aí! - Fala o Zé Segundo. - Alguém aí sabe cantar tão bem
como o Francisco aqui?
Como ninguém responde, ele então informa como haviam
conseguido o lanche. Falou almoço só pra deixar a turma ouriçada.
E foi assim, que conseguiram chegar à Natal aquele dia, já à noite,
com apenas um sanduíche e um refrigerante, conseguidos à base do
violão.
De volta à Natal, Francisco vai então para a casa de Maria, do tio Zé
Bobôco, nas Rocas. Chegando lá explica o motivo de sua desistência
da Marinha. Maria então recomenda que ele fique em sua casa
alguns dias para ir ao hospital tratar daquele pé. Seria melhor.
O inchaço ainda está bem feio. O atendimento de saúde pública em
Natal é bem mais eficiente do que em Caicó.
Manuelzinho esposo dela também insistiu, então Fransisco fica por
lá umas duas semanas, vez por outra divertindo a todos com o seu
violão à noite, e durante o dia ajudando Manuelzinho em sua oficina
de marcenaria. A experiência obtida com o Sr. Joaquim Poroca, está
servindo para alguma coisa.
Certo dia, uma das filhas de Maria onvíndo-o cantar comenta:
- Você podia cantar na rádio! Tem um programa de auditório todo
sábado na Rádio Poti. É perto daqui. Você devia ir cantar lá!
Todos concordam. Ha tempos Francisco já alimentava o sonho de
ser cantor de rádio. Aquela era uma chance para tentar. E vai lá fazer
sua inscrição para o programa do próximo sábado. Vesperal dos
Brotinhos, que começava às 15h00 indo até as 17h00.
136
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
I
ndicou a música que gostaria de cantar, um sucesso de Carlos
Nobre, um cantor que já fazia sucesso imitando Nelson
Gonçalves. Voltaria no Sábado pela manhã para ensaiar com o
conjunto musical.
Durante dois dias seguintes, Francisco cantou repetidas vezes em
casa a música que irá apresentar no programa. As primas, filhas de
Maria, estão convencidas que ele vai ganhar o programa de calouros.
Até lá Francisco tenta exercitar a voz e pensa também em vencer a
timidez. Afinal, nunca havia cantado em público, ainda mais no
rádio. Mas enche-se de coragem, estimulado pelas primas que
confiam no seu talento e no sábado pela manhã apresenta-se para o
ensaio na rádio.
Enquanto ensaia, abrindo sua voz de boa tonalidade, ouve do
maestro do conjunto a seguinte observação:
- Com uma voz dessa! Você devia ser locutor de rádio!
- Locutor de rádio? - Pergunta ele surpreso.
O maestro nem sabia que ele já era locutor na Difusora lá em Caicó.
- Sim! Você tem uma voz muito boa! Daria um bom locutor!
Insiste ele.
Francisco agradece o estímulo e à tarde está de volta para participar
do programa de calouros.
As primas ficaram em casa e acompanham sua estréia pelo rádio.
A apresentação foi um sucesso. Francisco ganha o primeiro lugar. O
melhor calouro daquele sábado, recebendo um forte aplauso da
platéia do Vesperal dos Brotinhos.
Seu prêmio foi uma camisa de mangas curtas, de algodão, muito
bonita, colorida em quadrinhos, oferecimento das Lojas Seta.
Retornando para casa de Maria a vizinhança o aguarda também com
aplausos.As primas demonstram muita alegria.
- Não disse a você! Claro que você ia ganhar!
137
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Ninguém cantou melhor que você!
A experiência deixa Francisco muito feliz. Mas precisa voltar para
Caicó. Tem que recomeçar tudo partindo de lá.
Durante a semana seguinte, com o pé já praticamente sarado ele
volta para Caicó. Manuelzinho até insistiu para ele ficar com ele na
oficina de marcenaria. Mas Francisco sente que sua vida seguirá
outros rumos.
Chegando a Caicó explica para os pais o motivo de seu desligamento
da Marinha, informa o sucesso como cantor na Rádio Poti e mostra a
camisa que ganhou no programa.
Retorna então, às suas atividades de locutor no S.P.V.S.
À noite lá está Francisco, anunciando os pedidos musicais e
divulgando avisos de interesse da comunidade, principalmente as
notas da diocese, notas de aniversários, pedidos musicais, etc.
Vez ou outra, uma serenata pelas ruas da cidade. Algumas vezes
patrocinadas por Inácio Bezerra, Secretário da Prefeitura, que gosta
muito desse divertimento noturno. Paga tudo. A bebida, os tiragostos e tudo mais.
É sexta-feira. Normalmente as serestas são realizadas no meio da
semana. Chaga um garoto a porta da Difusora ali na esquina da
Pracinha da Liberdade com um recado:
- Chico Elias! Inácio Bezerra disse que quando você fechasse a
difusora fosse lá no bar da Pracinha que ele quer conversar com
você!
Mas será que Inácio Bezerra vai querer fazer serenata hoje? Sextafeira? Pensa Francisco. Depois das nove horas, quando fecha o
estúdio da Difusora, vai encontrar o Inácio Bezerra. Como sempre,
ele está cercado de amigos em uma mesa tomando cerveja.
138
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Ha alguém estranho com eles.
- Elias, vem cá! Quero lhe apresentar a este amigo! Ele é advogado.
Acabou de se formar lá em Recife e queria muito conhecer você.
Cumprimentos pra lá, cumprimentos pra cá, Francisco é convidado a
sentar. Diz o Inácio:
- Estávamos ha pouco ouvindo você lá na Difusora e o meu amigo
tem um convite pra lhe fazer.
- Você tem uma voz muito boa! - Diz o advogado. Um bom locutor.
Nunca pensou em sair de Caicó?
Enquanto Francisco fica pensativo no que responder, ele acrescenta:
- Eu tenho um amigo lá em Recife que se formou junto comigo na
Faculdade de Direito. Ele é filho de Pessoa de Queiroz, o dono do
grupo Jornal do Commércio, jornal e emissoras de rádio e de
televisão. Você não gostaria de trabalhar como locutor na Rádio
Jornal do Commércio?
Todos que estão a mesa silenciam aguardando a resposta de
Francisco. Isso é uma chance e tanto! Com sua indecisão em
responder todos procuram estimular.
- Chico Elias vai ser locutor da Rádio Jornal do Commércio! E a
acrescentam enfáticos: - PERNAMBUCO FALANDO PARA O
MUUUNDO! - É o slogan famoso da rádio, que ecoa até no exterior,
com seus 50K de potência.
Francisco ainda está atônito sem saber o que dizer. O advogado
aguarda sua resposta. Francisco procura enxergar os vasilhames de
cerveja vazios embaixo da mesa, concluindo seu raciocínio: - Já tem
gente embriagada aqui! - Pensa ele.
- É! Eu vou pensar e depois dou a resposta! - Diz Francisco, sem
muita convicção.
- Mas responda até amanhã, porque no domingo eu volto pra Recife!
139
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Acrescenta ele. O moço parece perfeitamente equilibrado. Não
parece falar sob o efeito da bebida. Quem está zonzo ainda é
Francisco com o convite inesperado. O advogado continua:
- O Roberto Queiroz é meu amigo íntimo. Tenho certeza que depois
que ouvirem sua voz lá na rádio você estará empregado. No máximo
uma semana depois.
E dá mais um estímulo: - Você não se preocupe! Vai ficar na minha
casa. Claro que vai ter que fazer uns testes lá na rádio. - A palavra
teste desencoraja Francisco. - Mas tenho certeza que você logo será
contratado! Você sabe quanto ganha por mês um locutor da Rádio
Jornal do Commércio?
- Não! - Responde Francisco.
- Pode ter certeza que é mais do que o que você ganha em Caicó
durante um ano inteiro.
Todos ali na mesa dão risadas.
- Vai Chico! É sua grande chance! - Procura estimular o amigo
Inácio Bezerra.
- Está certo! Amanhã eu trago a resposta!
Francisco toma alguns copos de cerveja e se vai, cheio de incertezas,
insegurança e timidez. Não tá vendo que isso não é pra mim! Pensa
ele aflito com aquela possibilidade. Não retornaria no dia seguinte
confirmando sua ida.
Em verdade, em muitos ocasiões de nossas vidas, somos nós os
primeiros a depreciar nossas próprias possibilidades,
desacreditando em nós mesmos.
Vítimas da nossa própria ausência de auto-estima. Uma matéria que,
aliás, deveria constar no ensino básico das crianças.Auto-estima!
Este seria um mecanismo interessante na formação dos jovens, tanto
quanto, matemática, português ou história.
Ou a neurolingüística, que se dedica à maturidade da personalidade
140
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
humana recomendando o exercício da auto-estima.
O advogado voltou para Recife e Francisco permanece em Caicó.
Tudo na vida tem a sua hora? É o que vamos ver.
O primo José, irmão do Jaci, um ano mais moço que Francisco,
acabou de ganhar de presente do pai uma linda sanfona vermelha.
José começa seu aprendizado na sanfona, tocando de ouvido. O que
chama a atenção da vizinhança pelo roncar do fole. Isso desperta
também a musicalidade de Francisco, que recorda o tempo de seu
realejo.
Vez por outra o primo lhe dá a sanfona para experimentar. Aos
poucos Francisco vai assimilando o manejo do instrumento musical.
Não demora muito e ele já está superando o primo José, que não
tendo nenhuma afinidade com a música, dificulta seu aprendizado.
Francisco, entretanto, deixa-se levar pela emoção.
Toca com o coração. Muitas vezes lembrando-se do vovô Chico
Elias. Por isso aprende mais rápido. Os vizinhos já comentam:
- Chico já tá tocando melhor que José!
Isso provoca o ciúme do primo, que então passa a lhe dificultar o
acesso a sanfona. Sempre apresenta uma desculpa para não entregar
mais a sanfona para ele tocar. Em casa, ele desabafa. Josina conta
para seu pai o que está acontecendo.
Agora, já vendendo fumo também na feira de Jardim de Piranhas,
uma cidade próxima, para onde vai todos os domingos, são duas
alternativas de ganhar mais dinheiro, para Pedro Elias.
Em sua próxima viagem à Campina Grande com o compadre Miguel
para transportar mais uma carrada de fumo, ele aproveita e compra
uma sanfona para Francisco. Novinha em folha. E lhe dá de presente.
Uma bela surpresa! Uma Scandalli!
141
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Toda branca, em madrepérola. 80 baixos. O mesmo tamanho da
sanfona do primo José. Agora Francisco pode soltar a inspiração pra
valer!
O aprendizado auto-didata se acelera.
Aliás, em muitas coisas em sua vida Francisco se revelaria um autodidata. Será assim também décadas mais tarde, em relação ao
computador.
Até então só havia um sanfoneiro famoso em Caicó. O Neguinho da
Sanfona (ver foto). O sanfoneiro promissor Francisco logo vai se
destacando. Os forrós pelos sítios da redondeza vão aparecendo,
agendados pelo pai e pelo tio Miguel Elias, o forrozeiro mor da
família dos Elias.
Chega a energia elétrica trazida de PauloAfonso. Um fator de grande
progresso para a cidade e região.
Francisco logo se transforma no segundo sanfoneiro de Caicó.
Depois de Neguinho do acordeom, com anos de sanfona e muito
conhecido na redondeza. Aprendendo a tocar de ouvido. Sem ler
uma única nota musical.
Começam a aparecer mais chamados para tocar bailes de forró pelos
sítios da redondeza.
Ainda se ouve no eco do tempo que se foi, a figura do tio Miguel
dançando forró no sítio do Manhoso, em casa de seu amigo Luiz
Porfírio. Dançando animadamente um Xote e exclamando: - AÍ
PEDIMMM! - Saudação de forrozeiro ao nosso mano Pedrinho que
também já desanda pelo salão, revelando desde cedo sua tendência
para o forró. Seria consagrado mais tarde o principal dançarino da
família. O jeito manhoso de seus passos havia aprendido com o coco
de terreiro dançado pelo preto Mané Pedro alguns anos atrás lá no
sítio.Agora dá show nos salões de forró.
142
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
hega também o Terceiro Batalhão de Engenharia e
Construção do Exército, levado para Caicó por iniciativa do
então Senador da República, Dinarte Mariz, cuja grande
obra inicial é a construção de uma ponte sobre o Rio Seridó.
Fatídica ponte! Que muita tristeza e luto propiciará aos Elias.
Dinarte Mariz é o bem-feitor político da região. A presença do
Exército em Caicó veio trazer uma grande transformação para a
cidade, inclusive do ponto de vista econômico.
Muitos oficiais, sargentos e cabos, trazidos de outras corporações
militares, são as novas oportunidades de casamento para muitas
moças da cidade. Elas disputam os militares, principalmente os
oficiais, quase a tapas.
De repente ha uma inflação de bons partidos na cidade.
À noite no passeio da Pracinha os comentários correm soltos. Fulana
tá de namoro com o sargento fulano de tal. Sicrana já anda de mãos
dadas com o oficial tal. Jovens militares na maioria. Alguns vindos
até do Sul do País.
É um grande momento para as moças pretensamente casadoiras da
cidade.
Um novo fato muito doloroso atinge em cheio a família. Para
Francisco, é a terceira experiência dolorosa com o sentimento da
perda de um ente querido. Um triste acidente vai matar seu irmão
mais velho. O tio-irmão Elias, muito querido. Que acabara de dar
baixa do Exército.
O rio Seridó está por cima de tanta água.
A ponte recém construida sobre o rio está lotada de gente assistindo a
correnteza da água.
Todos estão curiosos para ver se a ponte vai agüentar.
143
N
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
a quinta-feira passada, a rapaziada havia estado no poço da
pedra mais acima no rio tomando banho. Ao pular em água
rasa Francisco sofrera uma forte luxação num dos pés,
retirado das águas do rio nos braços do tio Elias e de outro amigo.
Conduzido para casa, neste sábado doloroso ainda está acamado
com um grande inchaço na perna.
Logo pela manhã, o tio Elias vai até a ponte do Rio Seridó, onde a
rapaziada se diverte pçulando de cabeça de cima da ponte nas águas
turvas do rio e se deliciam com as exibições dos saltos espetaculares
de Max Trindade e de outros freqüentadores dos banhos de rio.
Elias encontra sua namorada e fica conversando com ela até
próximo do almoço.
Já havia dado alguns saltos no rio também. Resolve então dar um
último pulo.
A namorada assiste ele penetrar de cabeça no rio. Só que desta vez
ele se choca com a base de um dos pilares de concreto da ponte!
Todos ficam olhando, mas ele não reaparece logo à frente, como de
costume.
Observam atônitos a água se turvando de vermelho em alguns
pontos mais adiante.
O jovem Elias desaparece nas águas correntes do rio. Só é
encontrado três dias depois, a quilômetros de distância do local. Seu
corpo muito inchado e entrando em decomposição foi localizado
preso às pedras do rio. Havia quebrado o pescoço no choque terrível
com a base da pilastra.
Uma consternação geral. Seu corpo foi trazido sobre um caminhão
caçamba até a frente da residência de Pedro Elias, onde residia.
Rápido a rua se enche de gente. Todos estão curiosos! Toda a família
completamente traumatizada. Francisco sofre uma dor terrível! A
perda de seu melhor amigo e irmão de criação.
Um choque terrível! Ele chora descontroladamente. Olha o imenso
corpo inchado do tio sobre a caçamba. Não quer acreditar que aquilo
144
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
aconteceu com ele. A emoção da perda é forte demais! Como o corpo
já está em decomposição, é levado imediatamente para ser sepultado
no jazigo da família Elias no cemitério novo da cidade.
Foram dias de muito sofrimento. De muita dor. De muita saudade, no
peito do jovem Francisco. Um abalo emocional dessas dimensões
levaria bastante tempo para ser superado.
Novamente a sua mãe Josina é muito importante em suas conversas,
buscando a superação dos filhos.
- Meu filho! Todos nós estamos sofrendo muito com a morte de seu
tio Elias! Mas nós temos que compreender e aceitar! Todos vamos
morrer um dia! Alguns irão assim! De forma muito dolorosa!
Mas temos de superar tudo e continuar em frente! Você precisa fazer
um esforço para não pensar muito nessa catástrofe com seu tio!
Tinha de acontecer! Deus sabe de tudo! Tinha que ser assim! Não se
desespere! Aos poucos tudo deve passar!
E acaricia o filho, que ainda chora dias depois, a morte do amigo,
amenizando-lhe a dor.
- Vá ligar o rádio! Procure se distrair um pouco! -Aconselha ela.
Francisco gosta de sintonizar a Rádio Globo do Rio de Janeiro,
Rádio Tupi, Rádio Bandeirantes de São Paulo, Rádio Clube de
Pernambuco, Rádio Jornal do Commércio, com seu slogan famoso:
Pernambuco Falando para o Mundo! - Rádio do Vaticano, A Voz da
América e a Rádio de Moscou, falando em língua portuguesa.
Tudo isso é muito fascinante para ele. O mundo vem até sua casa
pelas ondas do rádio. Almoço Musicado Tudo Bem Com Carboleno.
É seu programa favorito aos domingos ao meio-dia pelas ondas da
rádio Jornal do Commércio de Recife. Como seria Recife! Ele não
poude conhecer nada quando esteve na Escola de Aprendizes.
145
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Especula em sua imaginação.
Suas horas diárias se dividem entre a escola pela manhã, a Difusora à
noite e o rádio, para desparecer um pouco.
Alguns instantes do dia ele dedica ao seu aprendizado na sanfona. A
música parece se dar bem com ele e vice-versa.
As serestas continuam com as cordas de aço do violão que deixam
bolhas nos dedos. Que aos poucos vão virando calos. O que ameniza
a dor no contato dos dedos. É o chamado violão peduro. As cordas de
nylon só surgiriam anos depois. Pra tocar violão tinha que ter calos
nos dedos.
Já foram várias as carreiras que levou fugindo dos pais das moças
durante as serenatas mal recebidas. As vezes, até com tiros de
espingarda para cima, disparados pelo pai delas. Francisco, Luiz de
Zé Paulo e Raimundo Nonato. Correm enquanto escutam:
- Vão-se embora daqui seus desocupados!
Param de correr na próxima esquina e sentam para descançar um
pouco, rindo da situação. Quase não ha divertimento em Caicó nesse
tempo. Essas serenatas, às vezes duas por semana, são o estímulo
que eles necessitam para se divertir à noite.
Às vezes, passando antes, já de madrugada lá pela matança,
comprando um bom pedaço de fígado de boi aferventado e salgado.
Um excelente tira-gosto. Fatiado em pequenos nacos com a faquinha
que Nonato conduz.
Após terminar de cursar a primeira série ginasial no Diocesano,
Francisco não estuda mais. Tem de correr atrás, tentando ganhar seu
próprio dinheiro.
146
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
vovô Bobôco é internado às pressas. A doença se agravou.
Ha meses ele se mantinha doente, recolhido ao seu
quartinho, com uma doença que agora sabiam. Era mesmo
câncer.
Após mais uma forte crise foi levado ao hospital. Duas horas depois
Pedro Elias está de volta.
- Estou vindo do hospital agora! - Comenta com Josina.
- O médico me disse que nem adianta operar cumpadre Chico. É
câncer de próstata que ele tem. Não vai demorar muito. Ele vai
morrer logo.
- O médico me garantiu! Está em fase terminal. Sem poder urinar,
colocaram nele uma sonda. Está lá tomando uma medicação.
Amanhã vamos trazer ele pra casa. Pra morrer aqui. Com a gente.
Seja o que Deus quiser!
Josina chora copiosamente ao receber notícias tão dolorosas de seu
pai. Não ha nada que se possa fazer. Está nas mãos de Deus. Até
quando ele vai sofrer, ninguém sabe.
Vovô Bobôco é trazido para casa. Por algum tempo ainda permanece
em seu purgatório de sofrimento.
Uma enfermeira está entrando no quarto com a injeção que vai lhe
aplicar para minimazar as dores. Os familiares foram todos avisados
do agravamento de seu estado de saúde. Mesmo os que moram em
sítios mais distantes estão vindo vê-lo pela última vez.
O vovô tem filhos de duas famílias. A qualquer hora chega alguém
para lhe visitar. Até que, depois de muito sofrimento, ele também se
vai. Enlutando a todos.
O Padim Bobôco, tanto quanto o vovô Chico Elias, foi muito amado
147
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
pela família de Pedro Elias. Permanece para sempre vivo em nossa
lembrança. Principalmente pelo seu sofrimento atroz naqueles dias
finais.
Francisco vez por outra vai ao seu quarto. Tem muita pena dele. Seus
olhos bem azuis, que antes foram tão cheios de vida, agora estão
abatidos. Pela certeza de que a morte está próxima.
Mas principalmente, afetado pela dor que sente. Francisco, como
todos os netos, também sofre vendo o vovô naquele estado.
O dia amanhece sombrio. Muito calor na cidade. Não venta quase
nada.As árvores nas calçadas mais parecem umas pinturas.
Os familiares são avisados. O compadre Chico Bobôco está nas
últimas. Quem pôde, veio visitá-lo.
Mesmo com as injeções que uma enfermeira vem aplicar
freqüentemente, ele sofre muitas dores. Mantém a sonda em seu
abdome. As vezes que vai ao seu quarto, com os olhos marejados,
Francisco fica observando aqueles olhos azuis e cansados do vovô.
É muito doloroso vê-lo naquela situação. A morte para ele seria até
um alívio. Francisco pensa:
- Como pode uma pessoa tão boa como vovô ter que sofrer tanto!
Anos mais tarde, a Doutrina Espírita lhe dará as respostas que agora
não tem. O esclarecimento em relação à Lei do Carma.
Poucas semanas depois o vovô Bobôco descansou. Deixando
entristecida toda a família.
Asua morte foi um descanso. Seu purgatório havia terminado.
148
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Convidamos vocês para esta reunião, porque a AABB decidiu criar
um conjunto musical! Caicó já precisa de um! E vocês são
reconhecidamente bons músicos!
Gostaríamos de estruturar o conjunto com a participação de vocês!
Uma reunião, está acontecendo nas dependências da AABB, para a
qual Francisco também foi convidado, sem saber o motivo. Agora, o
gerente do Banco do Brasil está esclarecendo a razão do encontro.
A reunião tem um cunho artístico. O gerente do banco apresenta o
Sargento José Mário como o maestro do conjunto. Zé Mário,
sargento da polícia militar é também maestro da Banda de Música da
Prefeitura. Toca saxofone divinamente.
Todos ali concordam na formação do conjunto. O Dinha, que canta
muito bem, será o crooner. Francisco vai ser aproveitado no
acordeom.
Tem também o Galego do Violão, o Quinca de Biínha na baterista,
um baixista (baixo de pau, dos antigos), e dois outros rapazes na
percussão, bongô, afuxê, pandeiro, reco-reco, etc.
Todos estão animados. Mas ainda serão meses de ensaio até o
conjunto estar pronto para tocar os bailes da cidade.
Todas as noites durante a semana tem ensaio lá na AABB. Aos
poucos o sargento Zé Mario vai estruturando o repertório.
A base principal é a bossa-nova. Um gênero musical moderno que
acaba de surgir no Brasil. Mas também tem a música do Caribe,
boleros, mambos, e alguns tangos no repertório. Aos poucos
oconjunto vai se estruturando.
Outro dia o gerente do banco veio assistir o ensaio do conjunto
trazendo uma informação nova.
- Hoje já podemos anunciar pra vocês o nome do conjunto. Vai se
149
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
chamar - Conjunto Cataguases! - Informa ele com certa empáfia.
O nome soou bem estranho para os componentes. Era o auge da
MPB. Esperavam um nome mais moderno.
O maestro Zé Mário, cuidadosamente limpando a palheta do
saxofone com uma flanela pergunta:
- Cataguases! Que nome é esse? Por quê esse nome?
O gerente do banco se apressa em explicar.
- É o seguinte! Cataguases é o nome de uma cidade no interior de
Minas Gerais. É a minha terra. É um nome muito forte. Indígena.
Acho que vai pegar bem para o conjunto. Vocês não acham?
Quem seria besta para contradizer o gerente? Afinal, ele estava
criando um jeito novo para se ganhar algum dinheiro. E qualquer
dinheiro a mais é muito bem vindo. Assim o nome foi enfiado de
guela abaixo. Seria mesmo, Conjunto Cataguazes.
- Deixa lá ele com esse nome esquisito. Diz o sargento Zé Mário,
momentos depois. Na ausência do gerente, claro!- O conjunto é dele!. Dá AABB, aliás! E todos concordaram. Mas na
saída após o ensaio, longe do tal gerente, o comentário é um só:
- Mas que sujeito mais besta! Cataguases! Que nome ele veio dar ao
nosso conjunto!... - Mas estava devidamente batizado. Conjunto
Cataguases! Pelo sim, pelo não...
Logo a AABB anunciou uma grande festa para inauguração do
conjunto. Um momento de extrema vaidade para o gerente do banco.
O conjunto faz por merecer os aplausos da sociedade local.
Em muito pouco tempo já está tocando festas também nas cidades da
redondeza, ajudando a enaltecer o nome de Caicó. Todo mundo
comenta a beleza de conjunto musical que havia surgido em Caicó.
150
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
cidade vive um clima de bastante projeção com a chegada
do Batalhão de Engenharia e Construção, o 3° BEC. Festas e
mais festas. Se havia uma cidade festeira, essa era Caicó. O
que era muito bom, para a projeção da cidade.
As festas estão trazendo muita gente de outras regiões. Tudo é muito
promissor, e Francisco acompanha essa desenvoltura revelando-se
também um músico razoável.
De sanfoneiro de forró a acordionista da bossa-nova. Tocando de
ouvido. Mas tudo é possível, para quem tem vontade de evoluir.
Ah se vovô Chico Elias ainda fosse vivo para ver isso! - Pensava
Francisco.
Algo mudou também em relação ao interesse das moças em
Francisco. Ele agora, enfim, atou um namoro com a Edite de Beréu.
Que já o vê como um artista. Locutor e sanfoneiro. Mas descobre que
ela ainda está apaixonada pelo Siduca e sai fora. Vai namorar com
Maria, irmã de Edite. Ficaria tudo em família.
Maria é importante nesse momento, pois vai lhe dar continuidade às
aulas de namoro já iniciadas bem antes com a Nevinha. Ele acaba de
descobrir um verdadeiro beijo de língua.
Vai ter o show de um artista de muito sucesso, na cidade. Bienvenido
Granda. Que faz um enorme sucesso cantando boleros. Um cubano
refugiado no Brasil. Fugiu da nova ordem política implantada pelo
revolucionário Fidel Castro. - Diziam. No Brasil ele já é um grande
sucesso internacional juntamente com o americano Nat King Cole.
Seus discos, em 78 rotações, vendem como água.
Já começavam a aparecer seus primeiros Long-Plays, gravados na
Mocambo Rosemblit, uma fábrica de discos nova que havia surgido
em Recife. E o sucesso de Bienvenido Granda - O Bigode que
Encanta - havia chegado também a Caicó.
151
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
esta sexta-feira à noite, vai ter um show dele lá na AABB.
Alguém vai à casa de Francisco procurando por ele logo
cedo, informando que sua presença está sendo solicitada lá
no Hotel Avenida. O Bienvenido Granda gostaria de ser
acompanhado por ele no acordeom em seu show de logo mais a
noite.
O acordeom de Francisco e o pistom de surdina de Luiz de Zé Paulo.
Tocar para Bienvenido Granda! Imagina! Mas isso é uma honra! Um
grande prestígio!
- Vou sim! Diga que eu chego já! - Meia-hora depois Francisco chega
ao hotel conduzindo a sanfona. Chega ao hotel e já encontra o Luiz
de Zé Paulo, com seus pistom e umas três de Pitu na cabeça. Isso é só
umas nove e meia da manhã. Mas para Luiz de Zé Paulo, os trabalhos
com o copo começavam logo cedo. Ainda mais para topar um ensaio
musical com o Bigode que Encanta.
Os dois são conduzidos aos aposentos do famoso cantor. Ao
entrarem no quarto lá está, sentado numa rede, de pijama listrado,
sem camisa, uma pança cabeluda e proeminente derramando-se para
fora da rede, seu imenso bigode preto, fumando um fabuloso charuto
cubano.
- Buenos dias señores! - Fala ele pelo canto da boca e o charuto do
outro lado. - Hasta la médio dia debemos está concluido con
nuestros ensaios. Cierto? Hã me dicho que usteds son los mejores
musicos para mi apresentation. Conoces bien las musicas de
Bienvenido?
Francisco e Luiz não manjam bulhufas de castelhano. Mas dá para
entender o que ele quer. A cada duas músicas ensaiadas ele toma um
tequilla. - Mui bueno! Mui bueno! - dizia ele, degustando o Rom
Bacardi, puro e sem gelo, que ele bebe como se fôsse a sua Tequilla
cubana.
152
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
À
noite o show na AABB é um sucesso. Acompanhado apenas
por Francisco ao acordeon, Luiz ao pistom com surdina e um
baterista. Uma beleza de show. Bienvenido Granda estava
acostumado a ser acompanhado em seus shows por instrumental
mínimo. Só quer poder permanecer por a cá. Com dizia ele. Fugitivo
do regime de Fidel. Sua voz é muito envolvente. E forte. Canta seus
boleros com muita alma. Com muito sentimento.
Se duvidasse, ele cantaria até acompanhado por um Bem-teví.
O público que lotou aAABB delira com sua apresentação.Afinal, ele
é nesse momento um grande sucesso também nacional. Quem tinha
uma radiola em casa, tinha também discos de Bienvenido Granda.
No dia seguinte já existem cartazes pregados pela cidade anunciando
o próximo acontecimento musical. Um baile com a orquestra de
Osmar Milani, uma das mais famosas do Brasil, que trará também o
famoso cantor nacional Blackout, um preto bem alto, que canta
divinamente, na linha de voz bem parecida com o americano Nat
King Cole.
Caicó vive assim. A cada fim de semana uma nova festa. Os
empresários artísticos haviam descoberto a cidade no mapa dos
contratos musicais do Brasil. Essa é a Caicó no início dos anos 60.
Preparando-se para passos maiores. Uma enxurrada de militares do
exército estão chegando ali precisando de divertimentos artísticos.
Vários deles, oficiais e sargentos, ainda sem um lugar definitivo para
residir, estão hospedados no Hotel Avenida. As moças da cidade,
mais parecendo pescadoras de namorados volta e meia dão uma
passada em frente ao hotel. Quase sempre ha algum militar
debruçado na janela do hotel.
Quem sabe é hojue que eu descolo! - Pensam algumas.
Caicó está se modificando rapidamente.
153
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
M
as Josina está preocupada com seu filho mais velho.
Precisa fazer alguma coisa. Precisa arranjar um emprego
para Francisco. Ainda não está na idade de ir para o
Exército. O que ele ganha na Difusora e tocando sanfona de vez em
quando, é muito pouco. Pensa ela. Soube que a Prefeitura vai
inaugurar um centro telefônico e vai ao Prefeito Dr. Milton Marinho
pedir um emprego para o filho. E consegue. Chega em casa com a
novidade.
Francisco que acumula o trabalho de locutor na difusora e a
atividade de sanfoneiro, agora tem que deixar a locução na Difusora
e se concentrar na sanfona e no emprego no Centro Telefônico. Vai
ser técnico de montagem de linhas e instalação de aparelhos
telefônicos.
Uma reciclagem inicial com o engenheiro da telefônica trazido de
Mossoró e Francisco está pronto para os trabalhos de extensão de
rede telefônica, instalação de aparelhos e manutenção das linhas.
Certo dia ele está na rua, sobre uma escada em um poste, tentando
concertar um defeito nos terminais de linhas dentro da mufa, uma
caixa de chumbo ali no poste, de onde saem os fios com as
respectivas linhas de telefone para as residências.
Duas linhas deram defeito. Cruzamento de linhas. O que faz com que
a pessoa de uma linha ouça as conversas da outra. Um teste de
cruzamento de linhas é algo maçante e complicado, até descobrir
com qual terminal a linha está cruzando. Em cada caixa dessas tem
vinte pares de linhas.
Nesta manhã o sol está bem quente.
Já faz uns 15 minutos que Francisco está trepado na escada tentando
encontrar o defeito, sem obter êxito. Aproxima-se o Geraldo, filho
do maestro José Mário. Um rapaz muito inteligente nos estudos.
154
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Todos o conhecem por sua capacidade intelectual. Está terminando
de cursar o Ginasial. É um rapaz muito educado. Francisco respeita a
sua amizade.
- Olá Chico Elias!
- Oi Geraldo!
- Tudo bem?
- Tudo! Eu estou enrolado aqui tentando achar um defeito de
cruzamento de linha nesta caixa que já me deu um bom trabalho.
- Achou o defeito?
- Ainda não.
- Tente os fios do terminal 9 com o terminal 11!
Francisco olha para baixo. Geraldo mantém os braços cruzados, com
uma das mãos sobre a testa em posição de quem está pensando, com
os olhos fechados.
Nove com onze... Não custa tentar. E bingo!
As linhas se descruzaram passando a funcionar perfeitamente. Sem
dúvida aquilo é uma grande surpresa! Pelo que já sabia, Geraldo não
entendia nada de telefone. E de onde estava ali embaixo não dava
para ver nada lá em cima dentro daquela caixa.
- Espera aí! - Diz Francisco descendo da escada após fechar a caixa.
- Como é que você adivinhou quais eram os terminais que estavam
cruzados? Como fez isso?
- Não foi adivinhação! - Responde ele abrindo um sorriso.
- É para-normalidade!
- E o que é isso? - Francisco está muito curioso.
- Eu sou para-normal! É um tipo de fenômeno que ocorre com
algumas pessoas. Eu me concentrei no seu problema e vi na minha
mente que a solução estava naqueles dois terminais!
- Puxa vida! Isso parece bruxaria! Mas é fantástico! Como é mesmo
o nome?
- Para-normalidade! Para-psicologia! Eu estou estudando esse
155
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
fenômeno, que ocorre com algumas pessoas, inclusive eu!
- Quem está lhe ensinando sobre isso?
- Ninguém! Aqui em Caicó não tem ninguém para ensinar isso. Eu
estudo em livros que venho comprando. - Francisco está bem
surpreso que o que acaba de ouvir.
- Está bem. Obrigado por sua ajuda! Qualquer dia desses eu
gostaria de conversar mais com você sobre isso!
Diz Francisco recolhendo a escada para voltar ao centro telefônico.
Geraldo é um rapaz muito cordial, mantém sempre aquele sorriso de
satisfação. Afinal acabava de ajudar a mais alguém com sua paranormalidade.
- Quando quizer! - Responde ele.
Se contasse isso no Centro Telefônico ninguém acreditaria.
Francisco permanece por vários dias repensando sobre o fenômeno
do filho do maestro Zé Mario.
Será que haveria muita gente assim?
Pouco tempo depois Geraldo vai embora de Caicó. Transfere-se para
a capital onde vai estudar curso superior e Francisco não voltaria a
conversar com ele. O maestro Zé Mario, seu pai, também vai se
transferir breve para Natal.As coisas estão tomando outro rumo.
Aquela fora a primeira vez que tinha ouvido falar em paranormalidade. Nem sabia que esse era o nome. Algum tempo depois,
um padre vai aguçar sua inteligência em torno dos conhecimentos da
psicologia e parapsicologia. E dai ele será levado a conhecer muita
coisa também sobre a para-normalidade.
Existe acaso? Ou somos conduzidos pelas conseqüências? Se é
assim, quem programa as consequências?
O cabeamento da rede telefônica da cidade já havia sido concluído.
O trabalho de Francisco agora é só de manutenção das linhas.
156
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
I
nicialmente só têm oitocentos telefones instalados na cidade.
Mas diariamente ha sempre chamados para concertos nos cabos
telefônicos. As pessoas ainda estão aprendendo a manusear o
telefone.
Mesmo assim, sobra algum tempo para se dedicar à música. A
sanfona e o violão estão sempre com ele lá no centro telefônico.
Com a presença do Exército em Caicó dois novos clubes são
construídos. A ASSEC, para os sargentos e subtenentes e outro para
os oficiais.As festas continuam ainda mais freqüentes.
O Batalhão de Engenharia decide também montar um conjunto
musical. Negocia então com a gerência do Banco do Brasil para
absorver a estruturação do conjunto Cataguases, cujo instrumental
quase todo, pertencia aos próprios músicos.
Luquinha, um excelente sax-tenor trazido de outra cidade, é agora o
novo maestro do conjunto. O Batalhão deseja equipar melhor o
conjunto comprando novos instrumentos. Inclui também um belo
acordeom Scandalli preto de 120 baixos e todos os demais
instrumentos.
O conjunto cresce cada vez mais no conceito popular por toda a
região.
Acontece então, um fato notável que marcará com certa honraria o
conjunto Cataguases e todos os seus músicos.
Acidade de Patos, na Paraíba, próximo de Caicó contrata o
Cataguases para tocar o baile da festa de inauguração de seu novo e
majestoso hotel. Hotel JK. Uma homenagem ao já ex-presidente
Juscelino Kubistsheck, que estaria presente na festa.
O conjunto vai tocar o baile se revezando com uma apresentação da
grande orquestra de baile do famoso Maestro Nelson Ferreira, de
Recife, então considerada a melhor orquestra de todo o
Norte/Nordeste, ao nível de grandes orquestras, como as de Severino
157
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Araújo e Osmar Milani, que fazem sucesso no Sul/Sudeste do país.
Para o Cataguases é uma honraria tocar em revezamento com a
Orquestra Nelson Ferreira. O baile, realizado num clube da cidade,
começa com o Cataguases tocando.
Afama de “pé de valsa” do ex-presidente JK já é conhecida.
O homem gosta mesmo de dançar. Nem bem chegou ao baile já está
rodopiando pelo salão com a primeira dama do Município.Ainda são
poucos os casais no salão. O baile acaba de começar. O conjunto toca
um dos boleros do Trio Irakitan. A esposa do prefeito está mais que
honrada, dançando com o homenageado JK.
Ela, aproximadamente 1,60m. Ele, quase 2,00m de altura. É
divertido ver a mulher dançando com o ex-presidente, com o rosto
quase colado a fivela do cinturão dele. Não era nada elegante para a
primeira dama. Mas fazer o quê?
O homem é muito alto! E para ela é de fato uma grande honra.
Mesmo que assim, com o rosto tão próximo da sua braguilha.
O casal se aproxima do conjunto. Ele pergunta ao maestro:
- Vocês tocam Chá Chá Chá?
- Tocamos, sim! Presidente!
Responde o maestro que dá sinal ao baterista para mudar o ritmo.
Chá Chá Chá é um ritmo de sucesso nesse tempo. Oriundo de Cuba,
que vive seus dias de glória, pós revolução. É um rítmo muito
comum no Caribe. Chegara ao Brasil provocando grande furor nos
salões de baile.
E nosso ex-presidente, sem dúvida é um dos fãs desse gênero
musical.
-Chá Chá Chá! Queremos Chá Cha! Chá!
-Chá Chá Chá! Queremos Chá Chá Chá!
Segue o conjunto. E lá se vai JK rodopiando pelo salão com sua
pequenina parceira. Enquanto todos assistem. Alguns risos
disfarçados entre as senhoras presentes faz-se notar.
Aquele baile tinha que ficar na história. Não só da cidade de Patos.
158
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Mas também para os componentes do conjunto Cataguases.
O ex-Presidente apreciara muito bem o nome do conjunto.
Cataguases. Ele também é mineiro.
Chega o momento de Francisco se alistar no Exército. 18 anos é a
idade limite. Mas por conta da necessidade de sua presença nos
ensaios do conjunto, com inúmeros bailes já contratados para tocar,
ele é dispensado de serviço militar.
Chegam novas notícias envolvendo o primo Jaci.
Uma reportagem na revista O Cruzeiro mostra uma foto dele em dia
de grande gala no Mausoléu dos Pracinhas, no Aterro do Flamengo,
no Rio de Janeiro.
Um grande acontecimento com a presença de algum político
internacional, que vai ao Mausoléu depositar uma coroa de flores em
homenagem aos Pracinhas mortos na II Guerra Mundial.
Jaci é um dos militares que conduz a corbaile de flores para ser
depositada ali.
Tendo sido escolhido para aquela honraria, o Jaci só podia ser um
militar muito credenciado. A foto dele está estampada na capa da
revista O Cruzeiro, que também chega à Caicó.
O buchicho no seio da família é grande.
O fato enche de orgulho a família, principalmente o seu pai, o nosso
tio Miguel Elias.
Várias coisas estão marcando a vida do jovem Francisco.
A reportagem com a foto do primo Jaci na capa da revista o faz
refletir. Está feliz pelo primo. Bem que gostaria de estar também na
Marinha. Mas seu caminho está se revelando outro. Agora ele já
quase não toca mais a sua sanfona branca de 80 baixos que o pai lhe
deu. Ele tem uma bem melhor no conjunto, com 120 baixos.
Resolve então, achando que não precisa consultar o pai sobre isso,
vender a sanfona branca.
159
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Q
uando Pedro Elias toma conhecimento do fato, agride
Francisco violentamente em casa. Tenta espancá-lo! Ele já
tem mais de 18 anos.
São pouco mais de 18h00. Josina está no fogão terminando de
preparar o jantar. Francisco está ali perto.
Pedro Elias está fora de si, conduzindo um pedaço de lenha que
pegou no muro da casa, pensando aplicar-lhe um corretivo.
Josina se interpõe argumentando:
- Pedro, você não vai querer bater num homem feito!
- Eu apanhei de meu pai até com 21 anos!
- Então o senhor era pior que eu!
Responde Francisco. Não sabia de onde havia tirado tanta coragem
para enfrentar seu pai. Não havia bebido.
Nesse momento crucial entra em casa o tio Miguel, chamado às
pressas, que apesar de criar seus filhos também com muita
brutalidade, era por natureza um apaziguador.
- Minha gente! O que é isso! Pelo amor de Deus!
Compadre Pedro se acalme! - Enquanto seu Pedro desfiava seu
rosário de imprecauções tentando justificar os motivos de sua raiva.
Francisco aproveita-se do momento e se retira em direção à saída da
sala.
Suas irmãs e sua mãe, estão todas em prantos, tamanho o bafafá que
Pedro Elias armou querendo bater em Francisco.
Já na calçada fora de casa ele ouve o pai lhe despachar uma terrível
sentença:
- Pois suma daqui! Não quero mais você em minha casa! Vá
embora! Que o mundo ensina!
160
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco se afasta com o espírito muito dolorido indo dormir
no Centro Telefônico onde trabalha. Mudando-se para lá com
sua rede e seus pensamentos enfermos pela atitude de seu pai.
“Vá embora que o mundo ensina!” - Esta frase lhe fica martelando
na cabeça.
No dia seguinte sua mãe lhe manda uma pequana mala com suas
roupas e calçados. E semanalmente manda alguém pegar para lavar e
engomar a roupa do filho.
Francisco passa a fazer refeições numa pensão próxima do Centro
Telefônico onde trabalha. E dorme todas as noites em sua rede, por
entre os ruídos dos relés no painel do equipamento elétrico dos
telefones. Tarde da noite eles silenciam. Quase ninguém telefona.
Pela manhã servem de despertador.
Anos depois, enfrentando a vida sozinho, ele pôde concluir; quanta
verdade, mesmo em seu momento de raiva, o seu pai havia lhe dito
naquele instante em que o mandara embora de casa.
Razão pela qual, cada vez mais passou a crer no ensinamento
bíblico: “honrar pai e mãe”.
Por muito tempo o pai lhe corta caminho pela rua. Quando o avista
de longe muda de calçada.
Mas o tempo, ha! o velho e bom tempo, que não tem pressa mas a
tudo concerta, se encarregará de osturar essas feridas, da forma mais
providencial.
Uma nova fase promissora vai começar na vida de Francisco.
Aliás, vai ser sempre assim em toda a sua vida. Numa interminável
onda “helicoidal”, em movimento incessante. Parecida com a
imagem da escada do DNA. Sempre girando. Ora subindo, ora
descendo.Agora a helicoidal dá sinais de uma subida significativa.
161
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
1963. A Diocese de Caicó está montando a primeira estação de
rádio da cidade. A Emissora de Educação Rural, dedicada
primordialmente ao ensino básico pelo rádio.
É
Um modelo educacional muito interessante, criado pelo MEB,
Movimento de Educação de Base, da igreja católica no Brasil. Ha
nessa época muita ressonância em torno do modelo estabelecido
pelo grande pedagogo pernambucano, Paulo Freire. A Rádio Rural
chega com uma proposta inovadora e muito dinâmica. O ensino
básico através do rádio. Cujo público alvo é o grande número de
analfabetos existente no meio rural.
Uma grande meta social do Bispo Dom Manuel Tavares.
A ajuda financeira vem do Vaticano. É um período de certa
fertilidade cultural na cidade, marcante para toda a comunidade,
orientada através de textos inteligentes e programas que alguns
padres mantêm diariamente, além das aulas pelo rádio, propriamente
ditas, com radinhos cativos à pilha, que são distribuídos em diversos
sítios e fazendas pela área rural do município. Cativos, porque só
sintonizam a frequência da Emissora Rural. É a cultura do rádio
chegando à Caicó nos anos 60.
No dia em que o engenheiro de montagem vai ligar o transmissor da
emissora, colocando no ar o seu sinal de transmissão pela primeira
vez, Francisco está lá nos estúdios.
Já havia sido contactado para ser um dos locutores. Então é sua voz
que transmite a primeira mensagem da rádio.
- Informe o prefixo da rádio e a freqüencia em que estamos
transmitindo. Diz o engenheiro. - Informe também o endereço e peça
que as pessoas que estiverem nos ouvindo mandem
correspondências, informando como estão recebendo o nosso sinal.
Francisco rapidamente redige um pequeno texto e transmite pela
primeira vez o som da Rádio Rural de Caicó. O texto ficou sendo
162
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
repetido à cada 15 minutos, intercalado com músicas.
Esse foi um momento emocionante para Francisco. Quase tão
grande quanto o momento de inauguração da rádio.
E agora, entra em sua vida uma certa Vitória. Maria das Vitórias.
Estudante do Colégio Normal, preparando-se para ser professora.
Vinda da cidade deAcari.
Ela reside na Casa da Estudante, bem próximo ao Centro Telefônico
onde Francisco Trabalha.
Logo ele será obrigado a deixar o emprego da Prefeitura e a sanfona
no conjunto Cataguases, para trabalhar na rádio em tempo integral.
Mas enquanto aguarda o dia da inauguração da Emissora Rural
ainda continua lá no Centro Telefônico.
Inúmeras serenatas já haviam sido feitas para as moças da Casa da
Estudante. E entre elas, Francisco ainda não percebera, ha Maria das
Vitórias, uma morena de cabelos bem pretos.
Feições de índia cabocla, de olhos muito vivos, e sorriso muito
amável, desabrochando uma grande paixão por ele.
Já a conhecia. Mas ainda não havia percebido o interesse dela por
ele. O trabalho na rádio vai aproximar os dois.
Os programas de pedidos musicais servem de intercâmbio para essa
aproximação. Começam a namorar. Francisco gosta muito de
dançar. Ela também. Nas soarês e matinês dos clubes estão sempre
se encontrando. Nesse tempo ainda se dança agarrado um ao outro.
Essa proximidade tão física é muito providencial no relacionamento
dos jovens.
Ainda ecoa na mente de Francisco alguns ensinamentos
repetidamente passados pelo pai:
- O homem tem que se casar até os 25 anos! - Quando ele nasceu seu
pai tinha 23 anos.
Francisco já chegou aos 22. Sem bem saber como, os dois resolvem
noivar. Os próximos meses são de preparação. Aos 23 anos já deverá
163
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
estar casado. Pensa Francisco. Agora tem um emprego de futuro na
rádio.
Vitória, com sua inteligência fértil também contribui de vez em
quando na criação dos programas que ele escreve para apresentar na
rádio. E até participa de alguns. Ontem mesmo, domingo, foi ao ar
um desses programas.
Nesta segunda-feira, o padre Itan Pereira, diretor da rádio, que
mantém um programa diário na emissora à tardinha, encontra
Francisco por lá e o cumprimenta:
- Elias! Gostei muito daquele programa que você apresentou ontem
à tarde. Muito bem escrito!
Tratáva-se da narrativa de uma viagem de turismo de trem pela
Itália. Francisco aproveitara para sonorizar o programa com várias
músicas italianas de sucesso na época. O Sole Mio é a principal
delas.
O programa tentava narrar para seus ouvintes interioranos, que
muito pouca ou nenhuma informação tinham, sobre a vida em outros
paises, como era, por exemplo, a Itália. Segundo o padre, o texto era
muito criativo e contagiante. Claro que Francisco escreve com base
nas imagens que conhece através de alguns filmes que já vira com
cenas da Itália. O padre então acrescenta:
- Seu texto estava muito bom. Você lê muito? - Francisco pensa um
pouco e responde:
- Leio!
- O quê?
- Gibi!
Surpreso, o padre Itan esboça um sorriso compreensivo e interpela
curioso:
- Gibi? Você nunca leu um livro?
164
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Não! Padre! - Responde Francisco meio encabulado.
- Por quê? - Insiste o Pe. Itan, que entre outras coisas, é também
professor de psicologia.
- Muitas páginas padre! Não tenho paciência de ler um livro.
O Padre Itan acrescenta:
- É uma pena que você não estude mais!
- É, padre! O senhor sabe! Minha família tem poucas possibilidades.
Eu resolvi trabalhar para ganhar minha vida.
- Bem! Se você não vai se formar, e isso é uma pena!
Insiste ele: - Mas deixe eu lhe dizer que o maior conhecimento do
mundo não está necessariamente só nos bancos das universidades.
Está muito mais nos livros que se lê. Ler é uma dádiva. Mas é preciso
gostar de ler! Ocorre que existe uma prática para se desenvolver o
hábito da leitura. É que você não adquiriu esse hábito. Se você
quiser, eu posso lhe ensinar como se adquire o hábito da leitura.
Posso fazer um treinamento psicológico com você. Você não
gostaria?
Claro que Francisco tem muito apreço pelo Pe. Itan. Não só porque é
o seu chefe como diretor da rádio, mas porque ele inspira muito
respeito na cidade. É um homem de muita cultura. Professor de
psicologia. Não pode desapontá-lo.
- Claro! Padre! Eu gostaria!
-Está bem! Eu vou providenciar isso e depois começaremos esse
treinamento. Combinado?
- Combinado!
O Padre Itan, como outras personagens da vida real de Francisco,
está sendo citado aqui por ter sido uma dessas pessoas que mais
contribuíram para transformar a vida desse jovem interiorano. O
futuro, não muito distante, vai confirmar isso.
No dia seguinte o padre retorna com um pacote de presente e
entrega-o a Francisco.
165
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Abra!
Francisco logo percebe tratar-se de um livro. O primeiro que vai ler,
em sua vida. Vê o título: Conhece-te A Ti Mesmo. Autor: Norman
Vincent Peal.
Trata-se de um autor protestante. Mas e daí? O livro baseia-se em
psicologia aplicada.
Descrita de forma muito simples. O padre Itam sabia da importância
daquele autor americano, também formado em psicologia. O fato de
ser ele um pastor protestante, não desmerecia o conteúdo de sua
obra.
Por isso o dá de presente ao jovem iniciante. E trata de lhe ensinar os
segredos para o desenvolvimento do hábito pela leitura.
- Veja! A primeira coisa que devemos ler em um livro são suas
orelhas. - Francisco até então nem sabia que livro tinha orelha.
- Essas dobras da capa e contra-capa dos livros chamam-se
orelhas!- Descreve o padre. - Aqui sempre são colocadas
informações sobre o autor. É bom que saibamos quem é o autor, para
entendermos melhor a sua obra. Depois disso, lê-se o prefácio. É
sempre um texto escrito por outra pessoa falando sobre o conteúdo
da obra. E aí começamos a ler o conteúdo propriamente dito, do
livro.
Aqui começa o nosso treinamento. - Dando ênfase nos detalhes.
- Você precisa assumir um compromisso! Não comigo! Eu não vou
estar por perto. Mas com você mesmo! Vai ler somente a primeira
página do livro e fechar.
- Da próxima vez que for ler o livro, horas depois ou no dia seguinte,
leia a partir daquele ponto marcado, as próximas duas páginas.
Marque e guarde o livro. - Da próxima vez, a partir dali, leia três
páginas. Feche o livro e guarde. E assim continuadamente.
Leu cinco páginas? Da próxima vez leia seis páginas. Acrescente
sempre mais uma página ao total que for ler em cada vez que abrir o
livro.
166
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Faça isso! Desse jeito que estou lhe ensinando! - E enfatiza, com
certa convicção professoral: - Vai chegar o dia, em que você vai
querer parar, mas não consegue! Aí sim! Você terá dominado
perfeitamente o hábito da leitura! Mas precisa assumir o
compromisso de fazer o exercício psicológico exatamente dessa
maneira. Vai querer fazer?
- Claro padre! Eu vou sim! Pode ficar tranqüilo!
Francisco sai desse encontro convencido pelo menos de uma coisa.
Ia ter de fazer exatamente como o padre ensinou. Porque poderia
haver um problema: se não fizesse exatamente como ele mandou e
alguma coisa desse errada!
Como saber se por ter feito de maneira errada?
Além do mais, o padre lhe inspira uma enorme confiança. Não vai
ensiná-lo algo que seja ruim para sua vida. Lógico! Vai fazer
igualzinho como ele ensinou.
E no dia seguinte inicia o processo.
Primeiro lê as orelhas do livro e guarda.
Da próxima vez lê a primeira página, marca e guarda. Assim, uma
semana depois, encontra-se novamente com o padre que lhe
pergunta:
- E aí? Como vai o nosso treinamento literário? - Francisco
responde empolgado.
- Padre! Vai uma beleza! Já li mais de trinta páginas.
- Ótimo! - E acrescenta: - Tem outra coisa que eu esqueci de lhe
dizer! Procure observar que, cada autor sempre faz citações de
outras obras, geralmente correlacionadas ao trabalho dele. Vá
anotando os nomes desses livros.
Quando terminar a leitura que está fazendo, escolha um daqueles
títulos citados e compre-o para ler. Seu treinamento continuará
normalmente com a satisfação da leitura de outros livros, outros
autores, outros conhecimentos. Cada um deles deixa sua
167
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
personalidade visível na forma como escrevem.
Francisco agradece mais uma vez. Percebe que havia despertado
certa satisfação no padre. Dois meses depois, já iniciava a leitura de
um novo livro.
De repente percebe que sua gramática está melhorando. Já ha mais
riqueza de vocabulário e de conteúdo nos textos que escreve para os
programas. Isso lhe entusiasma bastante.
Dois anos depois, já soma 20 o total de livros que leu. Incluindo
obras de Eric Fromm, outro psicólgo austríaco naturalizado
americano, de muito sucesso na época. Ainda no seio da Psicologia.
Algumas de suas obras são direcionadas para os casais. O que muito
interessa ao jovem Francisco.
Logo sua sede de leitura, cada vez maior, o fará migrar para outro
ramo correlato da psicologia.
Ha certo movimento na cidade. Os evangélicos estão trabalhando
com muito afinco na propagação de seus dogmas religiosos.
A Assembléia de Deus é a mais atuante. Como em muitas partes do
mundo, já ha também em Caicó muita gente descontente com a
religião católica.As missas ainda são rezadas em latim. Isso dificulta
a assimilação da liturgia. De dominus a bispo a século seculorum, o
povo não entendia era nada.
Prática litúrgica a ser abolida algum tempo depois por Roma, que já
percebia o crescimento de outras doutrinas religiosas, também em
razão disso, entre outras coisas.
Francisco crescera no seio de uma família católica, confiando em
todos os seus credos. Mas o discurso dogmático dos evangélicos
protestantes condenando a adoração a estátuas com imagens dos
santos, se reflete nele como um conflito dogmático e uma possível
168
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
diferença por ventura existente, nas práticas bíblias dessas religiões
deixa-o bastante curioso. Resolve então ler as duas bíblias. Por
inteiro. A Católica, já havia lido algumas páginas. Em sua casa ha
uma.
Consegue um exemplar da Assembléia de Deus e passa a fazer uma
leitura comparativa. Capítulo por capítulo. Versículo por versículo.
Chegando a conclusão definitiva de que ambas pregam a mesma
coisa. Existem apenas pequenas diferenças de interpretação. E
muito lhe chamou a atenção, o fato de que ambas haviam se
originado no mesmo tronco das escrituras sagradas.
Foi então que conheceu algumas personagens importantes entre os
movimentos religiosos do mundo.
Calvino, e vários outros, dissidentes da igreja de Roma, que
descontentes, haviam fundado seus próprios movimentos religiosos.
Foi muito importante para Francisco esse período fértil de
aprendizado e conhecimento do papel das religiões sobre a
humanidade.
O que, aliás, já vinha lhe despertando interesse, desde o dia em que
um padre, da religião católica lhe presenteara um livro de psicologia,
escrito por um pastor protestante.
À primeira vista lhe parecia um contra-senso. Mas agora, com a
leitura de ambas as bíblias, convencia-se de que todas as religiões
são importantes, para quem delas precisa.
Mas tarde, através de outros conhecimentos literários, Francisco
descobrirá que a religião significa - Religari. Voltar ao Pai.
E mais ainda, que para se estar em paz com nosso Criador não
necessitamos mais que os 10 Mandamentos, entregues a Moisés.
Desde que consigamos praticá-los em sua integridade.
169
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
ada vez mais, o discurso empolgado dos pastores e religiosos
lhe parece uma prática necessária apenas para os ouvidos
mais renitentes da massa humana, que ainda necessita de
estímulos orais tão apelativos, para despertar e sedimentar a sua fé.
Convencendo-se de que, em tal caso, toda fé é muito pessoal.
Bastando o afastamento da igreja e dos púlpitos empolgados para
desvanecer.
Diferente da fé por convicção evolutiva e estudiosa, que jamais
fenece e só se reforça com as novas descobertas das experiências
humanas. Sejam quais forem às fontes do conhecimento.
E, quanto mais diversificada a leitura isenta, melhor o aprendizado.
A vida vem lhe ensinando que não aprendemos nada com sorrisos,
mas com os estímulos da dor. E separar o joio do trigo é nossa própria
função. Com base em tudo que conhecemos. E não apenas com base
em um único cabedal de conhecimentos. Sem o que, não ha
possibilidade de verdadeiro crescimento interior.
E segue em frente. Assumindo logo de princípio, que deve acreditar
em tudo, até prova em contrário. E as provas só podem vir, baseadas
em mais alternativas de conhecimento. Com a religiosidade não
seria diferente.
Depois das leituras bíblicas Francisco continua devorando uma
infinidade de outros livros. Ainda agora seu foco continua na
psicologia.
O conhecimento da psicanálise virá em seguida, através do convíveo
com um amigo chamado Djalma Bulhões, de origem muito pobre,
mas de espírito muito evolutivo. Estudioso também do gênero
humano, muito apegado à literatura e que vai ter uma participação
significativa na vida de Francisco.
É através dele que Francisco vai poder ter acesso às obras de
Sigmund Freud, que lhe deixarão profundos reflexos de
transformação cognitiva.
170
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Quem somos? O que somos? Por quê viemos? Pra onde vamos?
São questionamentos que no momento estão aguçando a sua
inteligência. Um jovem que parece não ter tido mentalmente
puberdade. Passando da infância à vida de adulto em muito pouco
tempo. Buscando sobreviver, como pode, e com o que a vida está lhe
oferecendo.
O Padre Itan é sua âncora. Ele tinha razão. Nesse momento, sua fome
de saber é insaciável. Não estará num banco de Universidade. Mas
não será um zero à esquerda.
O mundo é sua escola. Os grandes pensadores da humanidade são
seus mestres.
As livrarias estão abarrotadas de conhecimento. Não ha tempo a
perder.
Ha algum tempo Francisco recebera uma promoção na rádio. Antes
de deixar a direção da emissora, o padre Itan o havia colocado na
direção artística da emissora.
Passou a ser responsável pela programação da rádio, sua formatação
e execução. E ha uma diversidade acentuada de todo tipo de
programas. Desde aqueles de orientação puramente religiosa,
apresentados por alguns padres e pelo Bispo Dom Manuel Tavares,
até os programas de orientação educacional das aulas pelo rádio, e
outros de pedidos musicais, dos cantadores repentistas de viola,
outros de forró, ao vivo, com os sanfoneiros de toda a região.
Seu status financeiro também melhorou um pouco.
E a programação criativa da Emissora Rural começa a disputar
audiência nas cidades próximas, em Patos, Paraíba, dividindo
audiência com a Rádio Espinharas, existente já ha bastante tempo, e
em Currais Novos, competindo com a Rádio Brejuí.
O que estava preocupando a direção dessas emissoras,
principalmente a de Patos.
171
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco recebe um convite para se transferir para Patos. Vai lá
conhecer a emissora. Mas alguma coisa, bem lá no seu íntimo,
que depois ele descobrirá ser a sua intuição, lhe diz que não.
Que o caminho não é por ai. Ele abre mão do convite embora seja
financeiramente mais compensador.
No lugar do padre Itan está agora o padre Tércio. Outro jovem padre,
também professor, com muita bagagem cultural.
As serenatas ainda continuam de vez em quando. Agora bem mais
estilizadas. Ha um sanfoneiro novo na cidade. O Zequinha do
acordeom, vindo de Equador, uma cidade na divisa com a Paraíba no
caminho para Campina Grande. Zequinha também toca de ouvido.
Não lê música. Mas é um virtuoso extraordinário da sanfona. Já é
nessa ocasião o melhor sanfoneiro do Rio Grande do Norte. Viera
para ocupar o lugar de Francisco no conjunto.
As serenatas são uma beleza auditiva. Dinha, cantando. Zequinha no
acordeom, Galego do violão e Quinca de Biinha no atabaque de
borracha.As vezes, Quinca, Dinha e Francisco, cantam em trio. Uma
maravilha de serenata. Menos para a Madre Superiora do Colégio
Santa Terezinha.
Um dos companheiros nesta madrugada de lua cheia, é o Damião.
Apaixonado por uma das moças internas no colégio. Após a primeira
música, no maior silêncio noturno, abre-se uma das janelas do
Colégio. Surge a Madre Superiora, toda vestida dos pés à cabeça,
esganando uma reclamação pelo barulho da serenata, tentando gritar
baixinho. Sua figura na janela é bem curiosa. Ela tenta gritar
cochichando. A voz dela sai pela garganta como um arrôto. A cena é
muito engraçada.
Mas os seresteiros não lhe dão a mínima. - Vão embora! Seus
moleques! Vão embora! Estão nos incomodando!
Aquilo era zelo da Madre Superiora tentando isolar as meninas do
172
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Colégio da ação mundana daqueles jovens. A segunda música já
tinha começado.
Francisco observa com curiosidade a figura da freira, imaginando
quanto trabalho ela teve nesta madrugada, para se vestir só para ir à
janela tentar expulsá-los dali.
Ela insiste na reclamação, mas os rapazes fazem ouvidos de
mercador e continuam cantando e tocando maravilhosamente sem
arredarem pé.
Depois de insistir mais uma vez escorraçando-os, sem obter
resultado, a Madre Superiora perde as estribeiras e reage com certa
ira, nada santa.
Sobre o parapeito das janelas existem umas pedras seixo de mais ou
menos um quilo. Arredondadas. Usadas para escorar as janelas nas
salas de aula. Ela segura a pedra levantando as mãos à altura da
cabeça e joga o rebolo na direção dos rapazes. O terreno é meio
inclinado numa descida. Chão de barro. Rua ainda não calçada.
Quem pôde, saiu da trajetória da pedra que rola ladeira abaixo.
Zequinha do acordeom com o peso da sanfona não consegue se livrar
da pedra, que lhe atinge em cheio o osso do tornozelo. (Chamado o
osso do gostoso). A rapaziada então se afasta a meio-passo quase
correndo e Zequinha vai atrás. Soltou o teclado da sanfona para
agarrar o pé muito dolorido e também desce a ladeira às pressas.
Sanfona aberta e roncando: Fon! Fon! Fon! Fonromfonfon!
Todos se divertem a muitas risadas só de ver o Zequinha naquela
situação. Gordinho e entroncado, correndo ladeira abaixo com a
sanfona aberta. Ê!... Bons tempos aqueles!...
Lógico que a serenata tinha de continuar. Dai ha pouco o grupo está
em frente à Casa da Estudante, onde reside a namorada de Francisco
e várias outras moças vindas de cidades vizinhas.
173
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Ai não tem nenhuma proibição.
Vitória abre a janela do andar superior da casa e juntamente com
outras moças assiste a serenata. Três músicas e o grupo se afasta. Vão
à outra residência.Ali próximo.Abebida está acabando.
Mas uma passada na residência de José Benévolo, um comerciante
da melhor sociedade local, vai resolver esse problema.
Zé Benévolo toca rabeca. E adora quando os seresteiros aparecem
em sua casa. Ele pode exibir suas qualidades musicais.
Tão logo os rapazes começam a tocar em frente a sua casa ele logo
aparece com a rabeca na mão e se aproxima do grupo. A próxima
música é uma valsa, com Zé Benévolo na rabeca, acompanhado
pelos outros instrumentos. Uma glória para Zé Benévolo. Mais duas
músicas e ele observa:
- Está faltando bebida, não é?
- É sim! - Responde alguém. Ele entra em casa e volta em seguida
com um litro de Rom Merino.
Os seresteiros agradecem e se retiram para continuar a bebedeira e a
serenata. Lá pelas quatro da manhã todos se recolhem às suas casas.
Esta é a época das melhores serenatas em Caicó. Quem toca ou
canta, participa ativamente. Os outros assistem e acompanham.
Raimundo Nonato continua sendo o fiel escudeiro guardião da
bebida e dos tira-gostos.
Mas ha uma novidade nas noites de Caicó. Tem um galego na cidade
fazendo um tipo de serenata moderna, com uma caixa de vitrola
movida à corda, que aplica com uma manivela, e também faz
serenatas rodando discos 78RPM. Já comentam que certa noite o
galego levou um carreira quebrando a radiola que caira no chão. Mas
pra tudo tem concerto. E Raimundo Nonato, técnico de eletrônica
lhe resolvera o problema concertando a radiola.
Tudo é muito divertimento.
174
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
om o trabalho em tempo integral na Rádio Francisco é
obrigado a deixar também o emprego no Centro Telefônico
da Prefeitura.
Dedica-se exclusivamente a esse mundo novo que é a comunicação
pelo rádio.
Já tem um salário que dá para manter um casal e então resolve pedir a
Vitória em casamento. Ficam noivos e planejam o casamento para
seis meses depois.
Estamos em fins de 1964. Na sua mente ele continua ouvindo as
diretrizes de seu pai: “O homem deve se casar antes dos 25 anos!”
A revolução militar dita as normas da vida no país. Os programas da
rádio são todos gravados. E aqueles escritos, dedicados à educação
pelo rádio têm que passar pelo crivo da censura no quartel do
Exército.
Víve-se o regime da liberdade vigiada. Francisco já não tem a
mesma liberdade de expressão de antes. Isso o deixa desanimado.
Certo dia acorda com um sentimento diferente. Reconhece que não
está pronto para casar. O noivado foi mais um arrobo emocional de
um jovem despreparado.
- Meu Deus! Já só falta três meses! Eu Vou me casar! Mas... Não é
isso que eu quero!
Está decidido. Precisa terminar o noivado. Morreria sem nunca
saber se aquele ato fora de responsabilidade ou irresponsabilidade.
Vitória havia concluido o curso normal e voltara para sua cidade
Acari, mantendo os preparativos para o casamento. Francisco não
tem coragem de falar a ela pessoalmente. Resolve escrever-lhe uma
carta terminando tudo.
Maria das Vitórias estaria marcada para o resto da vida. Um
casamento tão próximo! Enxoval já quase pronto. Alguns móveis já
175
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
haviam sido comprados.
Mas Francisco esta resoluto. Alguma coisa muito séria aconteceu
dentro dele. Seus sentimentos por Vitória haviam lhe enganado.
Talvez o seu ego estivesse agindo por imposição do que seu pai tanto
ensinara. O homem tem que se casar logo cedo! Teria noivado
movido por isso?
Ofato é que estava se sentindo amarrado mesmo antes de casar. Mas
já descobrira uma coisa importante em suas leituras de psicologia.
Quando já não se tem um amor, deve-se curar os sentimentos
imediatamente com outro. É o que ele faz. Moça não falta em Caicó
interessada nele.
Mas como sempre foi um jovem tímido, não sai correndo atrás delas.
Deixa as coisas acontecerem naturalmente.
Ha também algumas moças apenas suas amigas. Pares de dança.
Moças que dançam muito bem. Uma delas é a Elcira de Zé Paulo. O
pai tem uma loja comercial na esquina do mercado. Todas as tardes
ela está lá atendendo os clientes.
À tardinha ainda está bem quente. Francisco está vindo da sorveteria
e pára para conversar um pouco com Elcira, enquanto toma o
sorvete.
Estão os dois à porta da loja conversando, quando passa pela outra
calçada um grupo de moças colegiais que estudam no Ginásio
Estadual recém inaugurado.
- Você já conhece a moça mais bonita de Caicó? - Pergunta Elcira.
- Não. Quem é?
- A Nely Padilha. Olha lá! Filha do major Ney Padilha, do Exército.
- E aponta para o grupo de moças. - Aquela de óculos com o totó no
cabelo!
176
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Francisco olha e vê a moça, alta, pele muito branca, olhos e cabelos
pretos. Realmente muito bonita. Um cartão postal. Como se diz
nesse tempo. Uma beleza angelical.
- É mesmo muito bonita! - A moça, mesmo à distância de uns
cinqüenta metros, também se fixa provocantemente em Francisco.
Enquanto passa mantém o olhar fixo nele. Dobrando a cabeça com
um lindo sorriso no rosto avermelhado de sol.
- Ih! Ela está flertando com você!
Diz Elcira rindo com ar de cupido.
- Só pode ser com você! Comigo é que não é. Ambos riem.
- Será? - Questiona Francisco.
- Até onde eu sei, mulher que olha para um homem daquele jeito está
interessada nele!
Acrescenta Elcira, cinco anos mais velha que Francisco, cuja
experiência é inquestionável.
- Só tem uma coisa! - Acrescenta ela. - Dizem que a maioria dos
rapazes bons partidos de Caicó, incluindo alguns oficiais do
Exército, estão doidos atrás dela. Mas até agora ela não deu bola
pra ninguém.
Francisco então se desanima. É um rapaz pobre. Um simples locutor
de rádio. Não se sente páreo para os concorrentes. Bem que está
precisando de novas emoções na sua vida. Mas a Nely!...
De qualquer forma fica pensando nela. É realmente muito linda. E do
jeito que flertou com ele... Essa derruba até avião! Pensa ele.
Elcira explica que o pai dela é um oficial gaúcho, engenheiro e major
do Exército. Haviam chegado em Caicó ha pouco mais de dois
meses. Moram num sobrado por trás da igreja de Santana. Após
tomar o sorvete Francisco se despede de Elcira e volta para a rádio.
177
T
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
rês dias depois, é noite de sábado, e como sempre o point da
Pracinha da Liberdade está repleto de moças no passeio ao
redor da praça e rapazes, quase todos nas mesas do bar
tomando cerveja e batendo papo.
Francisco está sentado numa das mesas. Aproxima-se um de seus
amigos, o Edílson Bezerra, sobrinho de Inácio, da Prefeitura, que
também reside nas proximidades da igreja de Santana. Edílson senta
para acompanhar na cerveja e começam a conversar.
- Esta semana vamos ter a festa de São Pedro lá em frente ao
Ginásio. Você vai por lá?
- Acho que vou. - Responde Francisco. Ha uma igrejinha de São
Pedro junto ao Ginásio Diocesano.
E a festa promete ser animada, com roda gigante e outros parques de
brinquedo, muito cachorro quente, caldo de cana com pastel, etc.
- Mas só devo ir na sexta e no sábado. São os melhores dias!
Eu também. Vamos nos encontrar lá. - E mudando de assunto
Edílson especula:
- Hoje eu soube de uma coisa que acho que interessa a você!
- O quê?
- Sabia que a grande paixão de Nely Padilha é você?
- Que história é essa Edílson? De onde você tirou isso?
- Minha prima que me contou. É amiga dela. Estudam juntas. Ela
que me disse: a Nely está apaixonadíssima por Francisco Elias, o
locutor da rádio. A toda hora está ouvindo ele no rádio!
Francisco comenta então sobre o dia em que ela passou por ele. E que
Elcira de Zé Paulo também achava que ela estava interessada nele.
Mas fala também sobre o grande interesse de vários rapazes na
cidade em torno dela. E Edílson realmente confirma.
- Inclusive, aquele engenheiro agrônomo filho de Doutor Janúncio.
O irmão dele, que é engenheiro civil está planejando o projeto de
178
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
uma galeria de lojas para construir em parceria com o Major Ney
que também é engenheiro.
Minha prima disse que o irmão dele só vive indo lá em casa do Major
Ney, junto com o irmão, claro, mas atrás de Nely.
- E ela?
- Minha prima disse que ela não quer saber dele. Até já deixou bem
claro para ele que não quer namorar com ele. Mas o cara é
insistente! E você? Vai fazer o quê?
- Eu? Nada! A Nely tem outros pretendentes importantes. Não vou
me meter nessa disputa não! Edílsom! Eu hein!
Mudam de assunto e continuam tomando suas cervejas.
Dai ha pouco:
- Olha lá a Nely! Está passeando ao redor da praça com a minhas
primas! Passou dando uma olhada caprichada aqui para nossa
mesa! - Diz Edilson.
Francisco está adorando aquilo, mas acrescenta:
- Deixa a Nely pra lá. Isso é fogo de palha. Logo passa! - E não dá a
mínima para a moça, apesar de isso o deixar muito envaidecido.
Como sua cadeira está meio de costas para o passeio da praça,
mantem-se assim. De fato ele tenta evitar aquele assédio “sutil” da
moça mais bonita da cidade, pensando com seus botões: Não está
vendo que isso não é pra mim! Outra vez ele se deixa levar por seu
pessimismo e amor próprio ainda não suficientemente
desenvolvido.
Na sexta-feira seguinte vai à Festa de São Pedro lá no Ginásio
Diocesano e reencontra o amigo Edílson Bezerra. Conversam um
pouco e vão até o homem do carinho de pipocas.
Compram dois saquinhos de pipoca e permanecem ali observando o
passeio e comendo as pipocas. Dai ha pouco ele sente nas costas um
tranco de alguém que parecia ter tropeçado e batido nele.
179
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Ao se virar, dá de cara com Nely. Ela dissimuladamente lhe pede
desculpas. Está acompanhada da prima de Edílson. Simulou o
tranco como se quisesse chamar sua atenção: Hei! Eu estou aqui?
Porque você não me nota? Coisa de mulher que estando a fim de
alguém, faz qualquer coisa para lhe chamar a atenção.
Após comprarem pipocas as moças se afastam deixando Francisco
pensativo. Edílson também observara a estratégia de Nely. E deduz:
- Ela está lhe provocando!
Francisco mais uma vez não dá importância ao fato e continuam
conversando até a hora de se despediram.
No sábado Nely não apareceu por lá. E a situação entre os dois vai
ficar assim até a noite do sábado seguinte.
Outra vez Francisco encontra-se com o amigo Edílson e sentam para
tomar a cervejinha amiga no bar da praça. O calor é intenso e a
cerveja bem gelada é a melhor pedida.
Outra vez Nely se faz presente, de braços dados passeando ao redor
da praça com as primas de Edílson. Acabou de passar oferecendo
aquele flerte comprometedor na direção dele. Edílson então solta a
bomba:
- A Nely acha que você tem medo dela!
- Medo dela?
- Sim! Ela mesma me disse ontem! Acha que você não se aproxima
dela porque tem medo!
- Medo de quê?
- Não sei! Você tem?
- Conversa! Edílson! Eu vou já resolver essa questão bem
ligeirinho! Na próxima passagem dela eu vou lá falar com ela! Edílson empolga-se com a iniciativa do amigo.
- Aí amigo! Gosto de ver assim! - E ficam aguardando.
180
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
volta no passeio da praça demora uns dez minutos. Dai ha
pouco lá vem a Nely de volta com as amigas. Francisco vai
então ao seu encontro. Deve estar bem vermelho tentando
controlar sua timidez. A adrenalina está à flor da pele. Não é medo,
mas sente algo bem estranho ao imaginar que estaria namorando a
moça mais cobiçada da cidade.
Isso não se encaixa nas pretensões de sua personalidade. Mas não
pode deixar de reagir a essa provocação de sua masculinidade. Não
está tranqüilo. Mas se esforça para parecer natural diante dela. O
coração está um tanto fora do compasso. Ela percebe a sua
aproximação e se desgarra das amigas parando no passeio a espera
dele. Francisco dá boa noite e pergunta:
- Podemos conversar um pouco?
- Sim! - Responde ela com o sorriso mais convencido e lindo que
alguém já lhe ofereceu.
Assim de pertinho a beleza dela é até mais provocante.
- Vamos sentar ali! - Sugere ele, apontando para o batente da calçada
de uns cinqüenta centímetros ao redor do outro canteiro da praça ao
lado.
A estratégia dela havia dado certo. Foi na jugular dele. Ferindo seu
amor próprio. Sentam. Ela também parece estar emocionada, pelo
jeito como morde o lábio inferior, de maneira muito recatada
abraçando os joelhos.
Uma beleza singela. Provantemente angelical.
Sem dúvida é a mulher que pode desequilibrar o emocional de
qualquer jovem. A mais bonita com quem Francisco já esteve até
então.
Ele procura ser suave em suas observações. E pergunta com voz
calma:
181
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Você disse a Edílson que acha que eu tenho medo de você? - Ela ri
meio sem jeito e responde:
- Achei que sim! - Francisco permanece olhando-a nos olhos. A
franqueza dela assusta. E resolve atacar o problema de frente e bem
resolutamente:
- Nely! Desde o dia em que eu lhe vi pela primeira vez, já soube que
você era a moça mais bonita de Caicó. - Ela ri um pouco timida.
Talvez fosse simplicidade o que ela demonstrava, mas não se mostra
insegura. Sem dúvida está envaidecida. Francisco prossegue:
- Eu sou... um jovem de família muito simples. Então em fiquei
pensando... Existem, pelo que se sabe, vários rapazes da mais alta
sociedade interessados em você!
E desfere a pergunta mais inesperada que certamente ela jamais
imaginou que ele lhe fizesse:
- Por quê? Você quer namorar comigo?
Pela primeira vez ela pareceu tremer na base. Fica séria.
O rosto enrubece. Silencia um pouco buscando as palavras certas,
com os braços apertando as pernas e o queixo sobre os joelhos,
deitando a cabeça de lado, olha bem nos olhos dele também e
responde com a sutileza e sabedoria da inteligência do coração
feminino:
- Alguém pode explicar porque uma pessoa se sente atraída por
outra?... Essas coisas não se explica! Eu sei! Tem alguns rapazes
aqui que já se aproximaram de mim procurando me namorar. Mas
eu acabei de chegar à cidade! Não estive pensando em namorar
ninguém... Até aquele dia em que eu lhe vi conversando com a...
Elcira. Não é esse o nome dela?
- É sim! Minha amiga!
182
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Ela continua olhando ele nos olhos e pergunta com voz muito suave:
- Você não quer? Namorar comigo?
Os dois estão tão bem próximos... Quase dá para ouvir seus corações
batendo descontroladamente.
Francisco reconhece que ela é genial, para encarar situações
inesperadas, como aquela provocada por sua pergunta.
- Claro que eu quero namorar você! Nely! Estou apenas tentando me
acostumar com a idéia. Não tenho medo de você! Tenho tido receio,
sim... de como será esse nosso relacionamento. Será que sou a
pessoa certa para você?
- Vamos deixar que o tempo responda isso por nós! Você não acha?
Mais uma vez ela demonstra uma pureza de raciocínio incrível.
Agora bem segura de si, Nely mostra-se mais inteligente do que
parece. E muito serena. Isso o agrada muito. É normal nesse tempo,
que se associe mulher bonita com mulher pouco inteligente. Mas
Nely está ali diante dele desfazendo esse equívoco. Além de linda,
ela é sim, muito inteligente.
Tem só dezoito anos. Uma colegial ainda. Mas demonstra muita
sensibilidade. Na sua forma de falar. De pensar antes de falar. De
falar coisas sérias olhando nos olhos. Sobre isso tudo Francisco já
tinha lido em seus livros de psicologia.
Era o suficiente para saber que aquela moça tinha uma personalidade
bem delineada.
Ficam os dois ali na praça conversando por um bom tempo, até que
as amigas dela se aproximam avisando que já estão a caminho de
casa. Nely vai acompanhá-las.
- Quase não saio à noite. Tenho os estudos. Meus pais dizem que é
melhor me manter em casa. Nos veremos no próximo sábado? Pergunta ela.
183
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Com toda certeza! - Responde Francisco, beijando-a no rosto. Ela
retribui o cumprimento social. E se vai aos cochichos com as amigas
sentíndo-se vitoriosa.
Francisco está de volta ao bar, onde Edílson o espera. Já no fogo de
algumas cervejas.
- E aí? - Pergunta ele. - Como foi?
- Maravilha! Ela é uma moça muito inteligente. Deu pra ver isso.
- O que tanto vocês conversaram?
- Ah Edílson, deixa isso pra lá! Você já está cheio de cerveja. Isso
não é assunto para mesa de bar. Falamos sobre nós. Só isso!
- Mas estão namorando mesmo?
- Acho que sim!
- Vou para a Soarê na AABB você também vai? - E seguem juntos
para o divertimento dos boleros, sambas e rumbas, que se dança ao
som dos discos de Valdir Calmon e Ray Conniff, tocados em
radiolas.
Edílson Bezerra, Francisco Elias e Antenor Tavares são os principais
“pés de ouro” dos salões de dança em Caicó.
Francisco pensa seriamente em Nely. Por um motivo bem especial.
O cheiro dela! Do corpo dela. Não exatamente um cheiro de
perfume. Mas o cheiro da pele dela!
Como explicam os estudiosos dos relacionamentos humanos, as
pessoas se atraem primeiramente pelo odor da pele. O parasimpático da mente humana capta e analisa o odor. Se lhe atrai, isso
desperta o desejo.
E é exatamente isso o que está acontecendo com Francisco. A
atração de pele da Nely é irresistível nele.
Durante os primeiros dois meses namoram assim. Apenas nos
encontros fortúitos da pracinha. Já andam de mãos dadas. Mas
184
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
apenas se encontram nas noites de sábado. Muita gente na cidade já
comenta sobre o namoro deles.
Ha muita visibilidade. Ele é o locutor da rádio. Ela a moça mais
bonita da cidade, filha do Major do Exército, cortejada e desejada
por todos. É lógico que os olhos curiosos da sociedade mexeriqueira
está pairando sobre eles.As dificuldades logo vão aparecer.
Tem muita gente enciumada com esse namoro. O irmão do
engenheiro sócio do major Ney é um deles. A Nely o havia rejeitado
para namorar aquele Zé Ninguém do Francisco Elias. Isso ele não
perdoa. É um sujeito de personalidade muito fraca e vai já provar
isso. Já está maquinando a respeito.
É meio de semana. Uma quinta-feira. Francisco vai assistir um filme
no Cinema São Francisco, recém inaugurado. Quem está na
Pracinha esta noite é outro amigo comum seu. O Radir. Edílson
chega perguntando:
- Você sabe onde Chico está?
- Ele disse que ia ao cinema São Francisco. Porquê? - Responde
Radir.
- Radir! Pode me fazer um favor?
- Pois não! Diga!
- Quando voltar para casa o cinema fica mais ou menos no seu
caminho, não é?
- É sim!
-Veja se você consegue encontrar Chico no cinema! E avise pra ele
que quebrou o maior pau lá na casa de Nely! Infernizaram a cabeça
da mãe dela, disseram que Chico é maconheiro, falaram horrores
sobre ele!. E a mãe está fula da vida exigindo que ela acabe o
namoro! Minha prima me disse que ela tem chorado muito desde
ontem. Só vim saber disso agora à noite!
Chico precisa saber o que está acontecendo!
185
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
R
adir também se mostra igualmente preocupado e garante que
vai a procura dele. No meio do filme ele aparece no São
Francisco e pede permissão para entrar e tentar localizar
Chico Elias. Encontra-o e faz sinal para vir falar com ele. Francisco
se levanta e vai ao seu encontro.
- Vamos sair! Preciso falar com você! Trago um recado urgente de
Edílson Bezerra!
Os dois se dirigem a um bar próximo. No caminho Radir já vai dando
os detalhes do que Edílson lhe contou.
A situação exige uma tomada de posição severa e urgente. Estão
enlameando o seu nome, que não é tão importante, mas é a única
coisa que tem e precisa preservar.
Realmente, à boca pequena, a sociedade local se dividia em duas
facções: uma torcendo pelo namoro do jovem pobre com a linda
princesa. E a outra condenando o namoro, tecendo em seus
mexericos os piores comentários. Mais dia, menos dia, isso teria que
chegar à família de Nely, na cidade ha apenas poucos meses.
- O que você vai fazer? - Pergunta Radir.
- A Nely está sofrendo com esta situação! Radir... Preciso pensar no
que vou fazer!
Discutem a possibilidade de uma reunião na noite seguinte em casa
dos pais dela, se possível com a presença do acusador, para tirarem
toda essa história a limpo.
- Eu quero ver aquele canalha confirmar todas essas acusações na
minha presença! - Francisco desabafa. - Mas Radir! E se esse
canalha confirmar? O que é que eu vou fazer? Vou ser
desmoralizado perante os pais dela? Sem fazer nada? - Radir apenas
ouve em silêncio.
- Radir! Você tem um revolver?
- Eu não! Mas meu pai tem! Posso lhe emprestar! Trago escondido,
mas lhe empresto!
186
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Você faz isso? Se aquele canalha me repetir isso lá, eu dou um tiro
na cara dele! - Francisco está ficando fora de si. - Mas e aí? Se eu
tiver que atirar nele! Vou lavar minha honra! Claro! Mas... e
depois?
Opai de Radir tem a caminhoneta, uma Chevrolet 56. Ele então
sugere:
- Eu vou com a caminhonete e fico esperando você na outra esquina
da igreja! Se você atirar nele corre pra lá que eu lhe levo depressa e
escondo você num sítio que tem acolá. Ninguém vai saber onde você
está. Depois se vê o que será feito! - No dia seguinte, logo pela
manhã, Radir aparece na rádio e entrega a Francisco o revólver. Um
38. Cano curto.
- Dá pra você esconder atrás na calça.
Esse está sendo o dia mais longo da vida de Francisco. Umas três
horas da tarde, ele conversa com Edílson, que lhe confirma tudo,
dando-lhe o número do telefone da residência de Nely.
- Edílson! Diga a ela que fique tranqüila. À noite eu vou lá falar com
os pais dela. Mas primeiro eu vou ligar para a mãe dela solicitando
essa reunião.
Agora está ligando para o telefone da casa dela. A empregada atende.
Ele pede para falar com a mãe de Nely. Ela vem atender o telefone e
Francisco se identifica:
- Dona Júlia! Boa tarde! Aqui quem fala é Francisco Elias o
namorado de Nely!
- Sim! - Responde a mãe dela secamente.
- Eu gostaria de solicitar uma reunião hoje à noite em sua casa, para
esclarecermos esse contratempo entre mim e vocês. Mas gostaria
que estivessem presentes, o Major Ney e esse rapaz que me fez essas
187
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
acusações inverídicas.
- Quero ver se ele tem peito para confirmar isso na minha presença.
A senhora pode confirmar essa reunião com o Major Ney? - A essa
altura a mãe de Nely já demonstra um outro tom de voz. De
preocupação. De surpresa com a iniciativa do rapaz.
- Pois não! Eu... vou telefonar agora mesmo... para o Ney e informar
a ele. Às oito horas, não é?
- Sim senhora!
- Pois está confirmado. Pode vir!
A pronta iniciativa do rapaz em ir lá esclarecer os fatos deve ter
surpreendido a mãe dela. Deixava transparecer isso no segundo tom
de voz. Pareceu muito preocupada. A essa altura Nely já foi
informada por Edílson.
Oito horas da noite Francisco chega à residência de Nely. Um
sobrado antigo. Com térreo e um primeiro andar. Uma escada lateral
de madeira sobe aos aposentos do primeiro andar, uma sala ampla
com várias janelas, piso em madeira, um longo corredor e três
quartos adjacentes.As outras dependências ficam no térreo.
Nely está na calçada a sua espera. Com três amigas aguardando o
desfecho. Ficara bem mais tranqüila ao saber que Francisco estaria
lá à noite para esclarecer tudo com seus pais. Mas está muito
preocupada. Porém já parece mais confiante. Já não se sente mais
sozinha. E não chora mais.
Recebe Francisco com carinho procurando parecer tranqüila.
Convída-o para sentar ali com as amigas e Edílson, informando que
o pai só deverá chegar após as 20h00.
Todos se esforçam para parecer uma situação normal. Mas em
verdade ha uma certa tensão e expectativa. Percebe-se isso pelo
modo como de vez enquando alguém esfrega as mãos.
188
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
inguém tem a menor idéia do que vai acontecer esta noite.
As amigas procuram descontrair puxando conversa.
Ao sentar Francisco sente-se desconfortável com o revólver enfiado
na parte de trás, preso ao cós da calça. Mantem uma camisa solta por
fora da calça para ninguém perceber a arma. Observa um certo brilho
de satisfação nos olhos de Nely. Alguma coisa lhe diz que ela
aguardava sua presença ali como uma tábua de salvação.
Meia-hora depois chega o Major Ney, que desce do automóvel
acompanhado do seu sócio, o engenheiro irmão do acusador.
Cumprimenta a todos e diz a Francisco: - Por favor, aguarde um
pouco que já pediremos para você subir para a nossa reunião!
De cara Francisco já gostou do semblante do Major Ney. Ele
transmite certa serenidade. É educadíssimo. A Nely beija o pai,
cumprimenta o sócio dele e volta a sentar-se ao lado de Francisco.
Francisco não comentou nada com Edílson sobre o possível plano de
fuga com o Radir, caso tivesse que atirar no acusador.
Num gesto de grande confiança Nely aperta-se ao seu antebraço.
Parecia querer dizer: Fique tranqüilo! Vai terminar tudo bem!
Percebendo que o acusador não se fará presente à reunião, Francisco
por sua vez relaxa um pouco. O sangue parece estar fluindo agora
mais naturalmente.
Mas ainda falta o momento do enfrentamento. Das explicações ao
pai dela. Ele pede então a Edílson:
- Quando eu subir Edílson, gostaria que você me acompanhasse.
Você é minha testemunha! - Ele diz que sim.
Nely já havia informado que, por solicitação do pai, feita antes, nem
ela nem a mãe, deveria estar presente à reunião.
189
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Talvez o Major Ney imaginasse que a presença delas na sala pudesse
acalorar os ânimos. Afinal ele não podia prever o desfecho do
encontro.
Não mais que dez minutos depois, que pareceram uma eternidade
para Francisco, a empregada avisa que ele pode subir.
Edílson, que já conhece a residência vai na frente. Nely e as amigas
ficam na calçada. Aperta a mão de Francisco tentando lhe passar
tranqüilidade. Os olhos dela dizem tudo.
Chegam à sala e lá estão já sentados em cadeiras de palhinha, o
Major e o engenheiro, irmão do acusador. O Major pede que se
acomodem e pergunta:
- Seu nome é Francisco Elias, certo?
- Sim, senhor!
- Você pediu essa reunião, não foi?
- Foi sim! Major! Para ter oportunidade de desmentir todas as
acusações que foram feitas contra mim. - O Major ouve em silêncio.
- Major Ney, eu não sou essa pessoa que disseram que sou. Eu sou
um rapaz de origem humilde e pobre. Se pobreza for algum crime
Major, então eu sou criminoso.
Namoro sua filha com todo o respeito que um homem pode ter por
uma mulher.
Lamento muito que o meu acusador não esteja aqui agora, pois
gostaria que ele confirmasse na minha presença todas essas
acusações! Mas pelo que vejo, ele preferiu mandar o irmão! - E
antes que os argumentos tomassem um rumo indesejado o Major
sabiamente toma a palavra.
- Olhe meu jovem! O que houve aqui foi um grande mal entendido.
Não se preocupe! Tudo já está esclarecido! Já conversei com minha
filha e confio plenamente nela!
Se vocês querem namorar, pois muito bem, eu dou meu total
190
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
consentimento! Pode vir a nossa casa. Será bem vindo.
Vamos esquecer tudo isso e dar por encerrada essa questão! Quero
dizer que aprecio muito a sua atitude de solicitar essa reunião.
E quero que saiba! - Continua ele, falando educadamente: - Pobreza
não é defeito para ninguém. Nobreza de personalidade, isso sim! É
algo que tem muito valor em minha apreciação. Pode ir tranqüilo!
Não ha nada aqui que ainda precise ser esclarecido! O meu sócio
está aqui, porque nós teremos também uma reunião de trabalho.
Obrigado por ter vindo!
- Obrigado também por ter me recebido, Major!
Francisco então se retira juntamente com Edílson, completamente aliviado.
Conversa curta e consistente aquela.
Ao descerem Nely vem ao seu encontro com um abraço afetuoso e
tranqüilizador. Beija-o no rosto e agradece:
- Obrigado por ter vindo me socorrer! Só Deus sabe como eu
precisava que você tomasse essa atitude!
Mas logo em seguida, Francisco precisa se retirar. Lembrou-se que o
amigo Radir está lá na esquina da igreja, na maior aflição esperando
pelo desfecho da reunião. Despede-se e vai ao encontro de Radir. Ao
dobrar a outra esquina da igreja, lá está o amigo a postos no volante.
- E então? Como foi lá?
- Tudo bem! O cafajeste não foi! Mandou o irmão no lugar dele!
Toma teu revólver! Graças a Deus não precisei usar! E foram
embora para o bar mais próximo. A garganta pedia uma cerveja
gelada, e dando os detalhes da reunião para Radir.
Uma semana depois, Nely confessa para Francisco.
Na noite da reunião, enquanto ele se reunia com o pai dela na sala, o
irmão mais moço dela, com apenas 15 anos, mantinha-se no quarto
191
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
preso pela mãe, pois tencionava ir lá fora com a pistola 45mm do pai.
Coisa de criança mimada.
Tudo nessa vida tem sua razão de ser. Sem entender porque, durante
muito tempo, alguma coisa mudara em Francisco a partir daquele
dia, em relação à seus sentimentos por Nely.
O sentimento inicial que ele imaginava poder se transformar num
grande amor por ela, aos poucos foi definhando, como uma flor que
lhe arrancam a raiz. Não entende aquilo. Uma linda mulher. Parecia
amá-lo. Em tão pouco tempo já haviam experimentado juntos
momentos de sofrimento. O que em muitos casos já seria motivo
suficiente para enraizar mais um relacionamento. Mas com ele está
sendo diferente.
O transtorno porque passara parece haver soterrado o seu sentimento
por ela. Claro que ela não tinha culpa. Claro que nem ele era culpado
de todo aquele transtorno que ambos viveram. Mas seu coração se
fechou inapelavelmente para aquele amor. Amor impossível. Como
explicar isso?
Algumas vezes, sempre nos sábados à noite, ainda esteve com ela,
namorando na calçada de sua casa, conforme o Major Ney pedira, e
também na pracinha, quando se encontravam. Mas não era mais a
mesma coisa.
Para ele, o encanto de namorar uma garota tão linda havia se perdido.
As vezes que esteve com ela em sua casa nunca viu a sua mãe. Até
onde sabia, dona Júlia continuava não apoiando o namoro deles.
A pressão psicológica daqueles momentos de apreensão talvez lhe
tivesse alterado algum fio da corrente elétrica que conduz os
sentimentos do cérebro ao coração. Algum curto circuito havia
alterado aquela corrente. E ele se mantem muito surpreso, sem
entender aquele fenômeno emocional. Ainda não lera nada sobre
isso nos livros de psicologia.
192
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
U
m mês depois estão outra vez sentados no canteiro da praça,
onde se aproximaram pela primeira vez. Nely, sempre
alegre, tem uma comunicação a fazer:
- Olha! Não sei como você vai receber isso! E já disse ao pessoal que
me convidou que não decidiria nada sem antes falar com você. Só
vou se você consentir!
- Pra onde Nely?
- Me convidaram para ser apresentada como Miss Caicó e
concorrer ao Miss Rio Grande do Norte! O que você acha?
Esse é o grande acontecimento social de então, realizado em todo o
Brasil sob iniciativa dos Diários e Emissoras Associadas, grupo de
comunicação criado pelo jornalistaAssis Chataubriand.
- Eu só vou aceitar se você concordar! Se você garantir que vai estar
comigo lá em Natal no dia do Desfile!
- Ora Nely! Essa é uma grande oportunidade para Caicó! Você deve
ir, sim!
- Você garante que vai estar lá comigo?
- Claro! Pode ir tranqüila!
Nesse momento o que Francisco menos quer é ser motivo de
descontentamento ainda maior para a sociedade local, caso não
concordasse com a candidatura de Nely. Só por namorar ela parte da
sociedade quase o esfola vivo. Imagine se ele não concordasse com a
candidatura dela!
Um fato ainda se mantém pendente sobre o namoro deles. Ela já
havia lhe informado a respeito. É sua mãe.
O Edílson, que freqüenta constantemente a casa deles também
confirmara. A mãe de Nely continuava sem engolir a figura de Elias,
um rapaz pobre, ser o namorado de Nely. Sua animosidade em
relação ao rapaz continuou. Mas Nely não ligava pra isso. Tinha o
193
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
aval de seu pai e isso lhe bastava. Conforme ela mesma dizia.
- Não se preocupe com a mamãe! Papai aceita o nosso namoro e isso
é suficiente!
Mas para Francisco é difícil administrar a situação.
Ao ir para Natal, já como a Miss Caicó, tendo a mãe sempre por perto
e sabendo de seu descontentamento com o namoro, ela manda um
telegrama para Francisco informando a data do desfile e pedindo
que, por favor, ele esteja lá. Quer vê-lo na platéia assim que entrar no
palco para desfilar. E assina o telegrama como Ylen. Seu nome ao
avesso. Francisco entendeu a mensagem e responde o telegrama,
assinando Saile.
Ela, entretanto nunca recebeu a resposta. Sua mãe intercepta o
telegrama. Chega à noite do desfile. Nely sobe a passarela e desfila.
Procura por todos os recantos da platéia e não vê o namorado.
É eleita a Miss Rio Grande do Norte. Carioca de nascimento, mas
como residia em Caicó, pôde representar a cidade.
Sua eleição foi muito aclamada em todo o Estado. A crônica social
está comentando que pela primeira vez o Rio Grande do Norte tem
uma candidata à altura do Miss Brasil, a se realizar um mês depois no
Rio de Janeiro.
No Rio Nely se sentirá em casa. Havia sido o último endereço da
família antes de se transferir para Caicó. Como militar, o pai
freqüentemente mudava de cidade.
O salto qualitativo entre o Rio e Caicó é sem dúvida muito grande.
Mas é lá que seu coração está. Entregue a Francisco. Por isto, apesar
de tudo sente um grande pesar. Ele não estava presente no seu
desfile. Era para ele, principalmente, que ela queria desfilar. Será
que não recebera seu telegrama? Pensa ela. Mas estava combinado.
Ele prometera que iria.
194
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
telegrama de Francisco interceptado pela mãe dela era
exatamente apresentando uma desculpa, alegando que não
poderia estar presente no sábado em Natal. Um trabalho de
última hora na rádio o impedia. Mas desejava todo sucesso a ela.
Era só uma desculpa para não ir. Não desejava se expor. Não se sentia
bem nesse papel. Sua intuição lhe dizia para não ir. Ela entenderia.
A mãe de Nely chegou a comentar com uma amiga sobre o telegrama
que havia interceptado. Essa amiga contou a Nely. Deixando-a
profundamente magoada com a mãe.
Desenvolvendo a partir dai, um relacionamento cheio de
ressentimentos e muito doloroso com a mãe.
Ansiava chegar em Caicó na esperança de que Francisco fosse vê-la.
Precisavam conversar.
Mas está magoada com ele também, depois de conhecer o conteúdo
de seu telegrama. A mãe rasgou e jogou fora. Mas leu antes e
comentou com a amiga.
Ele se desculpava por não poder ir. Mas prometera. De qualquer jeito
não teria ido. Mesmo que ela tivesse recebido o telegrama. Desejava
muito conversar com ele a respeito.
Logo após o concurso em Natal já está marcada a data da viagem ao
Rio uma semana depois, para os preparativos e ensaios do Miss
Brasil.
Mas antes, Caicó em peso prepara-se para receber a sua Miss que
está chegando numa quinta-feira à tardinha. Uma enorme carreata
aguarda por ela nas proximidades do açude Itans.
Um grande acontecimento para a cidade.
A rádio está lá para transmitir o evento. O repórter Francisco procura
não se aproximar dela. E solicita a Paulo Celestino, um outro
repórter, para fazer a entrevista com Nely. Um séqüito da imprensa
social acompanha a Miss.
195
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
U
m grande buzinaço percorre as ruas da cidade conduzindo
Nely em carro aberto. Um orgulho para a cidade. Pela
primeira vez Caicó arrebata o concurso da Miss Rio Grande
do Norte. Todos querem abraçá-la, cumprimentá-la. Menos
Francisco. Quem mais ela queria abraçar, não se faz presente.
Assiste de longe. Afastado da multidão de curiosos. Os fotógrafos
registram tudo.
São só dois dias em Caicó, para arrumarem as malas dela e da mãe e
seguirem para o Rio. E ele não dá notícias. Nely tenta contato com o
namorado pelo telefone da rádio, mas não consegue. A cada instante
fica mais aborrecida. O que havia acontecido? Teria existido algum
outro impedimento que ela desconhecia?
As suas amigas mais próximas não sabiam de nada. Não viam
Francisco. Também não entendiam porque ele não estivera com ela
logo que chegou. Nely está entristecida, mas procura não deixar
ninguém perceber. A alegria do sucesso obtido como representante
do RN ao Miss Brasil, sem dúvida a deixa envaidecida e ela procura
superar a crise emotiva, pelo menos por enquanto.
O desfile do Miss Brasil no Rio é transmitido pelo rádio. Todos
querem acompanhar a participação da candidata Norteriograndense.
Na noite do desfile, Francisco assiste também. Está com o ouvido
colado no rádio.
- Miss Rio Grande do Norte, 5° Lugar! - Anunciam os
apresentadores. É emocionante ouvir o nome dela com tamanha
projeção nacional. Nesta noite Francisco vai dormir arquitetando um
plano. Não está acostumado a conviver com esse tipo de pressão
emocional e procura um jeito de se afastar de Nely definitivamente.
Acho que já sei como fazer isso!Arquiteta ele.
196
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
H
a na cidade uma outra moça, quase tão bonita quanto Nely.
Que por incrível coincidência (?) reside na mesma rua em
que ela mora.
É outra prima do amigo Edílson. Que segundo ele, também dança
muito bem. Luzinete. Também bastante alta, 19 anos, de cor branca,
pernas bem longas, uma moça realmente bonita. Vai ser também
candidata a Miss mais tarde em Caicó. MissAlgodão.
Luzinete ha tempos vem atirando flertes vistosos na direção de
Francisco. Algo como as famosas flechadas de cupido. Mesmo antes
de conhecer a Nely, no tempo em que era noivo de Vitória, percebia
que Luzinete lhe fotografava constantemente no passeio da praça,
com seus dois olhos grandes e muito vivos.
Francisco lembrou-se dela. Será que tinha namorado? Francisco não
é de ir à missa. Mas a casa dela fica exatamente ao lado da igreja de
Santana.
Enquanto isso Nely ainda continua no Rio. Daria um jeito de ir à
missa no Sábado à noite e entrar por aquela porta lateral bem em
frente à casa dela.
Não deu outra. Missa das 19h00. Francisco caminha pela calçada da
igreja. Lá está Luzinete sentada em frente à sua casa. Está só.
Nada poderia ser melhor. Pensa ele. - Boa noite! - Cumprimenta ele
cordialmente. Ela responde com um sorriso do tamanho da rua.
Francisco improvisa uma conversa.
- Você viu Edílson?
- Não. Talvez esteja em casa agora!
- Você pode me oferecer um copo d'agua?
- Pois não! - Responde ela com toda cortesia e vai lá dentro pegar o
copo com água numa bandeja.
- Quer mais? - Pergunta após Francisco entregar o copo.
- Não! Obrigado! - Para quem não tinha nem um pouco de sede, um
197
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
copo bastava. Pensa ele. Luzinete oferece uma cadeira.
- Não quer sentar um pouco?
- É. Eu marquei com Edílson aqui!
Vou aguardar um pouco. Talvez ele apareça!
- Fique a vontade que eu já volto!
Ela entra e vai guardar a bandeja com o copo.
Enquanto aguarda por ela Francisco observa a casa de Nely, uns
cinqüenta metros adiante. E pensa. - Mas que coincidência!
Fica imaginando um quadro. Ali sentado namorando com Luzinete e
Nely tão perto.
Intuição? Pois será isso mesmo que vai acontecer muito em breve.
Luzinete está de volta. Muito comunicativa e educada, ficam
conversando na calçada. O tempo passa. Claro que Edílson não
chegaria. E sobre a missa, ele não falaria. Não seria inteligente para
alguém, deixar de assistir a missa para ficar conversando numa
calçada com uma moça. Mas o seu propósito tinha um outro sentido.
Depois de alguns minutos conversando Francisco resolve
arremessar o anzol.
- Está esperando o namorado?
- Não! Eu não tenho namorado! - Apressou-se ela em explicar. O
caminho está aberto. Pensa Francisco.
- Como? Uma moça bonita como você, não tem namorado?
- Pois é!
Responde ela ajeitando-se de forma charmosa na cadeira. Ela
disfarçadamente pergunta: - Você conhece uma música que diz
assim: Quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora...
Ambos riem. O peixe está fisgado. É só puxar o anzol. Pensa
Francisco.
- Tem certeza de que quem você quer não lhe quer?
A maçã do rosto de Luzinete agora está bem corada. Francisco
198
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
percebe. Ela responde:
- Estou perguntando agora a ele! - Olhando bem nos olhos de
Francisco. Luzinete tem também uns olhos bem grandes e e
xpressivos.
Ah! O que os jovens não fazem, quando querem provocar a quem
desejam.
- Está perguntando a mim?
Ela não diz nem sim nem não. Mas abre um sorriso comprometedor.
E antes que diga alguma coisa Francisco assume a situação.
- E se eu disser que vim aqui só pra ver você?
Ela alarga mais o sorriso. Toda mulher tem uma intuição muito forte.
Dizem.
- Eu não estava com sede. Continua Francisco. - Não vim procurar o
Edílson. Vim ver você! Queria conversar um pouco com você. Saber
se nós dois temos alguma chance! Algumas vezes eu tenho
percebido que você flerta comigo. Por mim, acho que temos uma
grande chance!
Aproposta está plenamente aceita, por ambas as partes.
Só lá pelas 22h00 Francisco vai embora. Já tem uma namorada nova.
É o único jeito de pressionar Nely a sair de sua vida. Acha que não
vale à pena manter uma relação não bem aceita por parte da família.
Adela.
Luzinete quis saber sobre Nely e Francisco esclarece que o namoro
não tinha sido nada sério, além do mais deu alguns problemas, que
ela bem sabia quais, residindo ali tão perto. Continuam se
encontrando. Ora ali na calçada da casa dela.
Outras vezes na pracinha ou num clube durante as soarês. O Edílson
logo soube e conversa com Francisco a respeito. Ele esclarece que
será melhor assim. O namoro com Nely não teria futuro.
199
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
D
uas semanas depois Nely está de volta em Caicó. Foi
informada de tudo. Traz consigo um automóvel zero
quilômetro que ganhara no concurso de Miss RN. Um
Aerowillys Preto.
A noite do terceiro dia de sua volta ela marca com uma atitude hostil,
de moça com o coração ferido. Provavelmente tocada por ciúme, o
que é perfeitamente natural, ela dirige seu carro junto à calçada até se
aproximar de Francisco e Luzinete. Então acelera o carro em toda
disparada com os pneus jogando terra e pedregulhos sobre o casal.
Surpresa! E Risos! De ambos. Era compreensível a atitude de Nely.
Sentia-se deixada de lado.
Só volta para casa após as 22h00 quando Francisco já se retirou. O
próximo sábado vai ser importante para o desabafo dela.
Nem sempre Luzinete pode acompanhar Francisco às soarês de
sábado na AABB. Após estar com ela na Pracinha deixa-a em casa e
vai ao clube, como de costume.
Um bom copo de Gim com laranjada é tudo o que ele quer, ao chegar
ao bar do clube. Senta numa mesa próxima enquanto as pessoas
ainda estão chegando. Dai ha pouco o clube está lotado.
Dança-se ao som da velha radiola. Velha no sentido figurado. Que
toca músicas de Valdir Calmon.
Elcira logo se apresenta para dançar com Francisco. Mas como todos
os amigos dele, procura evitar tocar no assunto Nely. Não demora
muito e a Miss chega ao clube acompanhada do irmão e da sua mãe.
Vão sentar num outro extremo do salão. Dai ha pouco chega também
o Edílson sentando-se à mesa de Francisco.
- Nely está ai! Você já viu?
- Vi sim!
200
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Vai dançar com ela?
- Vou nada Edílson! Imagina se a Luzinete sabe que eu estive aqui
dançando com a Nely!
Alguns instantes depois vem até sua mesa o Wilson, outro amigo
seu, que acabara de dançar com Nely. Vem lhe trazer um recado dela:
- Olá Elias! A Nely pede encarecidamente que você vá tirar ela para
dançar. Tem algo que ela precisa esclarecer com você!
Essa é uma situação nova. Já envolvia uma outra pessoa. Não seria
nada delicado da parte dele não levar em consideração a solicitação
dela. Ele agradece dizendo que daqui ha pouco vai conversar com
ela. Deve ter muita gente ai querendo dançar com ela. Francisco
precisa de mais uma dose de Gim para enfrentar a Nely.
Na verdade Francisco queria muito, a oportunidade de se esclarecer
com ela. Ela devia estar precisando muito daquele contato com ele, a
ponto de pedir a intervenção de uma outra pessoa. Após mais um
Gim com laranjada ele vai a sua mesa e convida-a para dançar. O
salão em penumbra, ao se aproximar da mesa não percebe e pisa no
pé do irmão dela. Que bela chegada! Pede desculpa, dá boa noite e
convida-a para dançar.
Lógico que mesmo na penumbra, todos os olhares mexeriqueiros ali
presentes estão concentrados no casal. Por alguns instantes mantemse em silêncio. É Nely quem puxa conversa.
- Eu não recebi seu telegrama! Minha mãe interceptou e não me
entregou. Eu soube depois através de uma amiga dela. - Francisco
mantem-se em silêncio. O cheiro dela é uma provocação infernal.
- Mas você não perdeu tempo, não é? Já está de namorada nova! Ela fala com desdém. Está ferida. É compreensível.
- Nely! Nosso namoro já começou errado! Deu-me muita
preocupação, sabia? Então achei que o melhor para nós dois era
201
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
cada um seguir o seu caminho. Não imaginei que você fosse se ferir
tanto.
- Não avaliou os meus sentimentos, não foi?
- Sinceramente, eu pensei que fosse me esquecer bem depressa com
tantos pretendentes, principalmente após sua eleição no concurso
Miss Rio Grande do Norte. Aliás, aproveito para lhe dar os
parabéns. Você esteve ótima!
- Não quero seus parabéns! - Nely mostra-se amarga.
- Só queria entender sua atitude! Mas não consigo. Tenho certeza
que não fiz nada errado. Se fui ao concurso é porque você me
encorajou! Olha, está bem! Passou, passou! Deixe-me na mesa, por
favor!
Repentinamente Nely parece não estar segurando as emoções.
Demonstra estar muito magoada mesmo. Francisco a acompanha
deixando-a na mesa. E volta para o seu Gim com laranjada. Ainda
meio atordoado. Puxa! Nely se feriu mesmo! - Pensa ele. Não
imaginei que seria assim. Mas como ela mesma disse, o que passou,
passou.
O amigo Edílson quer saber detalhes, mas ele resolve não conversar
sobre isso. Ele mesmo também está sensivelmente atingido pelas
emoções que Nely acaba de lhe passar. Está sendo um momento
doloroso também para ele. Não imaginava que ela o tivesse tão
ardentemente no coração.
Aquela noite Francisco bebe além da conta, sem saber se, por se
sentir culpado ou pelo sentimento de haver perdido uma mulher tão
extraordinária.
Francisco nunca mais viu Nely. Continua namorando Luzinete. Não
a ama. Mas a lógica lhe exige. Ela é também muito atraente. Precisa
ocupar sua mente com o cheiro de outra mulher. Além do mais,
continua em sua mente aquela trava fortemente marcada desde a
primeira namorada.
202
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
paixonar-se por uma mulher lhe dá muito medo. Essa é a
realidade psicológica com a qual ele tem que conviver.
Ainda inconscientemente neste momento.
Não muito longe dali, um outro quadro de sentimentos mal
resolvidos continua se manifestando de forma igualmente dolorosa.
Maria das Vitórias. Que repentinamente se viu arrancada de seu
sonho de noiva, terminara seu curso na escola normal e acaba de ser
aprovada num concurso público para trabalhar na ANCAR, um
órgão do Ministério da Agricultura, posteriormente transformado
em EMATER, também com atuação naAgricultura.
Ela está trabalhando no escritório da ANCAR na cidade Açu. Sem
esquecer o ex-noivo. Por mais que se esforce. O coração ainda dói.
Ela guarda a certeza de que Francisco a trocou pela Miss. É isso que
algumas amigas dela comentam. Julga apenas pelo que ouve falar.
Mas a vida tem de continuar. Ha um motivo de força maior, o
verdadeiro motivo da desistência de seu noivo, em se casar com ela,
que Maria das Vitórias só vai descobrir quarenta anos depois. E não
tem nada haver com Nely. O namoro com Nely foi apenas um
acidente de percurso.
Francisco está saindo da rádio depois de mais um dia de trabalho,
indo a caminho da banca de cafezinho de Vicente Modesto, na
esquina do Branco do Brasil. Tomando o café com pastel Francisco
ouve o conselho de Vicente Modesto.
- Francisco Elias! Vai embora rapaz! Um locutor como você esta
perdendo tempo aqui em Caicó. Vai trabalhar em um grande centro!
Você pode até escolher. Fortaleza, Natal, Recife, ou até Rio, Brasília
ou São Paulo. Você não é locutor para Caicó.
Já é a Segunda vez que alguém lhe diz isso. Pensa ele... Comendo seu
203
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
pastel.
- Vai chegar a hora Vicente! Vai chegar a hora!
À noite o amigo Edílson lhe conta uma novidade. - O major Ney vai
se transferir de volta para o Rio! Eu soube hoje!
- Ah é! Vai ser bom para Nely. Ela gosta muito do Rio. Já moraram
lá. Tem muitas amigas.
A transferência do major vai ser rápida. Duas semanas depois a
família já está retornando para o Rio de Janeiro. Notícia que de certa
forma tranqüiliza Luzinete. Pois pelo que sabe, através das suas
primas, a Nely ainda gosta de Francisco.
Edílson também dá conta de desentendimentos constantes entre ela e
a mãe. Tudo aquilo teria sido a ponto de o Major Ney pedir sua
transferência de volta para o Rio? Pensa nessa possibilidade. Mas
deixa o assunto pra lá. Já não lhe lhe diz mais respeito. Nely já faz
parte de seu passado.
Dois meses depois, o amigo Edílson vai à rádio a procura de
Francisco.
- Oi Chico!
- Diz aí Edílson! Tudo bem? Você por aqui essa hora? Alguma
novidade?
- Tenho sim! É pra você!
E entrega a Francisco uma carta para ele, enviada dentro da mesma
correspondência que Edílson recebera do Rio. Ele vê a assinatura lá
embaixo. É da mãe de Nely. Que surpresa!
- Ela me pediu para lhe entregar! - Francisco já está lendo a carta
cheio de curiosidade. A mãe de Nely escrevendo para ele! Por essa
ele não esperava!
Ela apresenta muitas desculpas pela maneira infeliz como o havia
204
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
tratado em Caicó. E entre outras coisas, fala da enorme dificuldade
de convivência que vem tendo com a própria filha, que a acusa de ser
a responsável pela sua infelicidade, ao dificultar o namoro dela com
ele. Francisco está boquiaberto!
- Quem diria! - Exclama surpreso. - Você já leu? - Pergunta a
Edílson.
- Li sim! Me desculpe! Mas a carta dela veio aberta, dentro da
minha, me pedindo para que entregasse para você. Que lhe fizesse
saber a terrível situação que estão vivendo em família, por conta das
acusações que Nely lhe faz. Você vai responder? - Indaga Edílson.
- Não Edílson! Antes de mais nada gostaria que você não contasse
isso à Luzinete! Vamos evitar que ela também sofra com essa
situação.
De qualquer forma, eu já havia planejado passar umas férias no Rio
com meu primo Jaci, que está chegando de férias no começo do mês
que vem. Você escreva para a mãe dela e dentro de sua carta mande
uma outra para Nely. Diga a ela que tenha paciência com a mãe
dela. Afinal é sua mãe. E avise que em agosto eu estarei no Rio.
Então irei visitá-los e conversaremos a respeito.
Assim fez o Edílson.
É Julho. Festa de Santana. O primo Jaci está de férias em Caicó.
Combinam então viajar juntos na volta dele para o Rio logo no início
de agosto. Francisco vai viver emoções muito fortes nesta viagem.
Um outro amigo, Pedro Telles, gerente do Banco do Povo em Caicó
acaba de casar, exatamente com a irmã daquela que foi a primeira
namorada de um dia só, de Francisco. Também estariam no Rio no
mês de agosto, num apartamento de temporada em Copacabana e
combinam se encontrar lá para algumas farras.
Dois dias depois de chegar ao Rio Francisco faz contato com o
amigo Pedro Telles. A cunhada, irmã de sua esposa também está
205
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
com eles no Rio. O primo Jaci leva Francisco ao apartamento que
Pedro Telles havia alugado, na Nossa Senhora de Copacabana.
Francisco está maravilhado, conhecendo o Rio de Janeiro pela
primeira vez. Foi um dia intenso de farra com Pedro, a esposa e a
cunhada dele. Francisco está com ela na janela do sétimo andar
olhando o movimento da avenida. Conversa animadamente com a
ex-primeira namorada, enquanto pensa: - Como essa vida é
engraçada! Essa garota não tem idéia sobre as transformações que
provocou em minha vida emocional. Hoje é uma pessoa adulta e
equilibrada. Distante daquela futilidade ainda juvenil de anos atrás.
E estamos aqui, como se nada tivesse acontecido. Ela nem pode
imaginar quanto.
Até vão juntos no dia seguinte à praia de Copacabana. Francisco não
sente nada por ela. A não ser a simples amizade de conterrâneos. Mas
não deixa de refletir como a vida nos prepara surpresas.
Amanhã é sábado. Vai ter muito movimento lá no apartamento do
Major Ney, pai de Nely. Francisco já se comunicou por telefone e o
major combinou que haverá um sarau em seu apartamento a partir
das oito da noite. Solicitando a Francisco que vá para lá logo no
sábado de manhã, pois deseja combinar algo com ele.
- Você trouxe o violão? - Perguntara ele ao telefone.
- Trouxe sim Major. - Francisco não se separa de seu violão. Não
mais aquele que ganhou de sua mãe anos atrás. Mas um outro,
Gianinni, muito bom.
- Vai também lá em casa amanhã, um amigo meu que também toca
violão. Vai ser bom vocês se conhecerem! - Garante ele. O major
quer falar com Pedro Telles. Convída-o também para a serenata em
sua casa.
Vai ser ótimo. Muita música. Bebida. Bons papos. E Nely! Claro! Ha
206
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
uma certa expectativa no fato de revê-la. Poder conversar com ela.
Será que já perdoou a mãe...
Procurar ajudar no reatamento das relações mãe e filha é algo que
muito agrada a Francisco. Ser útil, enfim. E o prazer também de estar
com ela. Porquê não?
Este sábado de manhã Jaci está indo para o quartel da Marinha mas
vai deixar primeiro Francisco na Barata Ribeiro, no endereço do
apartamento da família de Nely, garantindo que à noite também vai
estar presente ao sarau.
Jaci está curioso para conhecer a família de Nely. Cuja história com
Francisco já conhecia desde a viagem. São 09h00 da manhã. Estão
atrasados. Combinara com o Major umas 08h30. Mas enfim... O
trânsito complicou um pouco. Jaci vai voltar la à noite.
Chegam ao endereço da Barata Ribeiro. Francisco sobe o elevador
até o apartamento 703. O porteiro avisou que o Major já o aguardava.
Toca a campainha. É o Major Ney quem vem recebê-lo. Juntamente
com a esposa. Cumprimentos de ambos os lados.
- Que maravilha! Você aqui! - Exclama o Major.
- Um homem de palavra! - Diz a dona Júlia, mãe de Nely tentando ser
simpática.
Ela é agora o antagonismo em pessoa. Alguém completamente
diferente da que ouvia-se falar em Caicó, em relação a Francisco.
Ele a está conhecendo intimamente pela primeira vez. O Major, um
homem alto, bonitão, atlético, olhos azuis, o perfil exato do gaúcho,
aí pelos 1,90m e ela lá pelos seus 1,60m. Morena clara, olhos pretos,
cabelos escuros e muito lisos, e um pouco fora do peso, para o seu
tamanho. Fora os olhos grandes e expressivos não havia nada de tão
especial nela. Como uma mulher daquela conseguira fisgar um
homem do porte do Major Ney... Era algo para se pensar...
207
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E
m seguida aparece Nely. Ainda com cara de sono. Nada que
uma leve maquiagem apressada não resolvesse.
Cumprimentam-se alegremente mas de maneira formal.
Agora surge o rapaz irmão dela. Também se esforçando para ser
simpático.
Devia ter recebido algumas recomendações dos pais, talvez, para
encarar aquele reencontro. Seguiria o porte do pai. Também de cor
branca, olhos azuis e já bem grandinho para sua idade. A Nely tem os
olhos da mãe. Mas o rapaz tem os olhos do pai.
- Já tomou café? - Pergunta a mãe de Nely.
- Já sim! Tomei antes de sair!
Ah não! Mas sente aqui! Vai tomar café comigo de novo!
Diz alegremente Nely.
O Major Ney que parece com pressa para sair de casa diz,
convidando Francisco:
- Mas primeiro vamos comigo lá na garagem. Eu vou pegar algo que
deixei no carro e então você traz aqui para o apartamento, sim! Francisco desce com ele pelo elevador de serviço. O major explica:
- É um colchonete que eu esqueci no carro. Você vai ficar conosco o
fim de semana, não é?
- Bem Major! Eu me programei para sair com meu primo...
- Não! Não! Você fica com a gente este fim de semana. Vai ser
divertido hoje à noite! - Insiste ele.
Francisco está mesmo bastante surpreso com tamanha mudança de
atitude da família de Nely em relação a ele.
O Major faz-se entender rapidamente:
- Olha! É o seguinte! Você é homem! Compreende essas coisas! Eu
vou precisar sair para umas quebradas por aí - Dando idéia que vai
se encontrar com outra mulher, um caso talvez. - E elas vão precisar
ir lá no Meyer pegar uma cama pra você dormir aqui em casa hoje.
208
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Então, olha! Fique aí! Tome conta da casa! Dê um apoio pra elas!
Vão de Kombi pegar a cama. Vem desarmada. É fácil de trazer na
Kombi. Que eu vou também encomendar o bufê para logo mais a
noite. Vai ser uma farra e tanto, viu!
Major Ney parece muito entusiasmado. E sabe ser bastante
convincente.
Francisco ainda não entendeu se, por causa da sua presença ali ou se
em razão da serenata que ele programou. Ia ter até bufê! Quem
puderia imaginar aquilo em Caicó? Nem mesmo o Edílson. O major
entregando-lhe a casa e a responsabilidade de cuidar da esposa e sua
filha em sua ausência. Não acredito que isso está acontecendo!
Pensa Francisco.
- OK Major! Pode ficar tranqüilo!
O Major retira do porta malas do Karmanguia o colchonete
entregando a Francisco e sai apressado. É outra pessoa. Vestindo
aquele traje esportivo. Um tênis leve, bermuda, uma camisa de
malha colorida e óculos de sol. Completamente despojado daquela
postura militar. Dirigindo aquele Karmanguia! Parece mais um
playboi. Francisco retorna ao apartamento. Nely ainda está à mesa
do café.
- Tem certeza que não quer tomar café comigo? - Ela insiste.
- Não Nely! Apenas um cafezinho para acender o cigarro.
A mãe de Nely aproxima-se convidando-o para conhecer o
apartamento.
Terminando o seu café, Nely chama:
- Mãe! A senhora não vai com a gente?
- Vou sim Filha! Estou calçando os sapatos.
O clima de repente parece haver mudado naquela família. Será que
elas haviam se desentendido mesmo! Até o irmão dela mostra-se
simpático.
209
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
S
aem então de Kombi, Nely, sua mãe e Francisco. Em minutos
estão chegando ao Meyer. Pegando uma cama de solteiro
desmontada na residência de alguém da família e retornando
ao apartamento na Barata Ribeiro.
Nely ao volante está exuberante de satisfação. Francisco, por sua
vez, busca em seus pensamentos uma maneira de falar a ela,
orientando para que evite um relacionamento doloroso com sua mãe.
Fica aguardando a ocasião certa. Essa conversa deve se dar
reservadamente. É o que ele deduz.
Chegando ao apartamento, o jovem irmão dela já não está. Nely leva
Francisco a um quarto onde ele vai dormir aquela noite. Ali
Francisco se prontifica para armar a cama de solteiro.
Em seguida vai tomar um banho. Já são quase meio-dia e daqui ha
pouco o Major deve chegar para o almoço.
Pelo menos é o que ele pensa. Saindo do banho Francisco encontra
Nely na sala com duas amigas. Após os cumprimentos, a radiola está
tocando um disco do Trio Irakitan. Lembranças das Soarês de Caicó,
talvez.
- Vamos dançar! - Se insinua Nely. E os dois deslizam pela sala com
os boleros do Trio Irakitan, enquanto as amigas assistem.
- Ele dança divinamente! - Gába-se Nely para suas amigas. O que
será que ela disse a essas amigas... Imagina Francisco enquanto
dança com ela. Provavelmente está alimentando a expectativa de
reatar o namoro. Isso não vai dar certo! Como eu vou fazer para
esclarecer as coisas com Nely... Continua pensando. Agora é que não
daria certo mesmo! Ela no Rio e ele em Caicó!
As amigas de Nely se divertem. À noite, no sarau em casa do Major
elas também estarão presentes.Acabam de ser convidadas por Nely.
- Ele também canta muito bem! - Ressalta ela para suas amigas.
210
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Como sempre, Francisco não se separa de seu violão. Nely vai lá
dentro e volta com o violão, desligando a radiola.
- Elias, cante um pouco pra gente! Vai!
Claro! Toda cortesia ali ainda é pouca. As moças estão curiosas com
o novo amigo de Nely. Dança bem e também canta!
Altemar Dutra é outro cantor de muito sucesso na época. E Francisco
gosta de cantar suas músicas.
“Sentimental eu sou, eu sou demais....”
As amigas de Nely parecem gostar de ouví-lo cantar.
- Vocês não viram nada! - Diz Nely. - Estejam aqui hoje à noite! Vai
ser ótimo! Vem também um amigo de papai da Odeon!
O major não havia falado na Odeon! É uma gravadora! Puxa! Vem
gente da Odeon para o sarau do Major!... Francisco agora está
curioso. Quem será?
A serenata vai ser melhor do que ele imaginava. Claro que ele não
sabe. Mas o Major está mexendo os seus pauzinhos!...
Nesse tempo, logo após a Revolução de Março, os militares são os
donos de todo o prestígio. Em todas as áreas. O seu amigo da Odeon
certamente aprecia essa amizade. Um Major do Exército é uma
senhora patente, para amigo nenhum botar defeito.
Mas que pauzinhos o Major Ney pretendia mexer nessa noite?
Francisco só irá descobrir meses depois, já de volta em Caicó.
A vida toda, se Francisco pecou por omissão, foi o fato de expressar
uma personalidade muito inocente. Não ha malícia em seus
pensamentos.
Portanto, não podia aquilatar a intenção do Major Ney, promovendo
aquela serenata tão peculiar.
Francisco está tentando contatar o primo Jaci, que também foi
211
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
convidado para o Sarau. Fala com ele ao telefone:
- Jaci, está confirmada a sua presença aqui hoje? Não é?
- Claro! Às oito horas, certo?
- Se possível chegue um pouco antes. Por favor, traga para mim uma
roupa para vestir. Não imaginei que demoraria tanto tempo aqui e
preciso trocar de roupa à noite!
Tudo combinado, pelas oito horas da noite os convidados começam
a chegar. Inclusive o amigo Pedro Telles, convidado pelo Major Ney,
acompanhado da esposa e da cunhada. Já tem um bufê montado na
sala do apartamento, com bastante tira-gostos e bebidas. Os cariocas
sabem se divertir. É comum esses encontros nas residências.
Francisco tem uma surpresa para Nely. Compôs uma música para
ela, ainda em Caicó, e vai cantar para ela pela primeira vez nesta
noite.
Ela já sabe sobre a música desde esta tarde. Mas ele já lhe disse que
só vai cantar à noite. Ela mantem-se ansiosa para conhecer a sua
música.
Ha dois violões no sarau. O amigo do Major Ney, da Odeon, também
toca violão. A festa corre animada. Ha muita alegria ali. Entre uma
dose e outra de whisky, Francisco repassa nos pensamentos a
imagem daquele encontro familiar comparando com os momentos
de tribulação que vivera bem pouco tempo atrás, por causa daquele
namoro que não vingou.
Como estará se sentindo Nely? Isso ele gostaria de adivinhar.
Aproveita um intervalo para comunicar sua surpresa musical.
- Hoje eu tenho uma surpresa para minha amiga Nely. Pouco antes
de vir ao Rio eu compus uma música para ela. Que gostaria de
cantar agora, pela primeira vez.
212
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Todos estão curiosos para ouvir.As duas amigas dela então...
Imaginando que ela haveria de querer guardar a letra, Francisco
havia datilografado, e após cantar a música, oferece a ela o papel
com a letra datilografada.
Nely escutou a música com toda a ternura que podia oferecer ao
receber tão singela homenagem. Era o único jeito que Francisco
sabia, para lhe dizer que ela foi importante. Apesar de tão pouco
tempo. Por isso, merecedora. Ele sabe. No íntimo sabe, que nunca
mais irá vê-la após aquelas férias no Rio. E queria deixar com ela
essa lembrança.Algo que pudesse falar de coração para coração.
Ao lhe entregar o papel com a letra percebe que ha lágrimas sutis nos
olhos dela. Ninguém mais que ela, saberia como é significativo
receber dele esse presente.
Abaixo na folha de papel está assinado, - Seu amigo Saile.
Provavelmente ela só ouviu a melodia da música esta única vez. Mas
ficaria o poema no papel.
Ela agradece, como sempre com o sorriso largo e maravilhoso que
tem. Os presentes aplaudem a homenagem. O homem da Odeon,
amigo do Major Ney, comunica:
- Isso merece uma bebemoração! - E acrescenta, buscando o litro de
whisky - O Tocador quer beber!
É uma noitada e tanto. O Rio de Janeiro dessa época é muito
tranqüilo. Ainda. Meia-Noite, também pelo cuidado de não
incomodar os vizinhos, o Major Ney convida todo mundo para
continuar a serenata nas areias de Copacabana. Pelo sim, pelo não, o
Major leva a sua 45mm na cintura. Não custa nada se garantir.
Amanhã é domingo e todos os exageros do sábado serão tolerados.
Vão quase todos, a mãe de Nely prefere ficar no apartamento.
Serenata nas areias de Copacabana, bem próximo do mar.
Que maravilha! Logo alguém cava um buraco na areia para colocar
213
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
dentro uma caixa com gelo e as bebidas. O tira-gosto vai num
reservatório de pirex.
A madrugada está fria. Alguém toma a iniciativa de botar fogo em
papéis de jornal para esquentar um pouco, mas o vento leva tudo. O
jeito é esquentar com a bebida
A serenata continua até às 02h30 da manhã. Agora todo mundo está
no ponto. Uma cama vai bem. Os convidados vão embora. O primo
Jaci também. Combina com Francisco para vir pegá-lo neste
domingo à noite. Francisco não conseguiria ir sozinho de
Copacabana para São Cristóvão onde o primo mora. Ainda vai
passar o domingo com a família de Nely.
Um domingo de bastante sono. Quase duas da tarde é que estão
levantando para almoçar. Após o almoço Francisco tem
oportunidade de ficar a sós com Nely.
É o momento que ele precisa para tentar convencê-la a reatar o
relacionamento sadio com a mãe. Estão só os dois na sala do
apartamento, com a televisão ligada. Francisco a convida para ir até
a varanda do apartamento.
- Nely. O principal motivo de minha vinda aqui no Rio, é conversar
sobre você e sua mãe. Não é sábio que você mantenha por ela
qualquer sentimento que resulte em afastamento.
- Ela é sua mãe! Foi infeliz na sua atitude em relação a nós dois lá em
Caicó, mas... é sua mãe! Você não pode mudar isso!
Nely ouve em total silêncio, segurando com as mãos o parapeito da
varanda, olhando lá do sétimo andar o movimento lá embaixo na
Barata Ribeiro, como se não estivesse ali. Sua expressão agora é
triste.
-Então, eu lhe peço, - continua Francisco - deixe de lado esses
ressentimentos. Veja a minha posição! Tenho motivos para
214
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
ressentimentos com ela tanto quanto você! Mas estou aqui, a pedido
dela, através da carta que me escreveu. Você deve estar sabendo...
- Estou sim! Em princípio duvidei muito e falei pra ela: A senhora
deve estar sonhando! Imagina se ele vai querer escrever para mim!
Muito menos, imaginei que você viesse nos visitar! Foi uma grande
surpresa quando soube que você viria! Uma boa surpresa! Estou
contente! Mas não estou feliz. - Acrescenta ela com tristeza na voz. Sinto que você não veio ao Rio por mim, mas por essa carta!
- Não seja injusta! Vim por você também. Lógico! Procurando
apaziguar os ânimos entre você e sua mãe, estou pensando em você
também! Você entende isso? Eu não poderia estar em paz, sabendo
que por minha causa, o amor de uma filha e de uma mãe havia sido
destruído. Você promete que vai repensar seus sentimentos com ela?
Garante que minha vinda ao Rio não foi em vão?
Nely olha para Francisco e seus olhos falam. Ela parece enfim
compreender o que está se passando ali. O amor filial, a tolerância e
compreensão com os pais, deve ser mais verdadeiro que qualquer
outra coisa nessa vida.
Um namorado, uma paixão, vem e vai! O amor de uma mãe é
definitivo. Nely tem uma doçura de comportamento que expressam
bem a sua sensibilidade.
Com ternura ela segura as mãos dele e agradece:
- Muito obrigada! Obrigada mesmo! Pelo que você está fazendo por
nós. Obrigada, de coração!
- Eu sei que é! Assim você me deixa muito reconfortado. Vou poder
regressar a Caicó com o coração aliviado. Com a alegria interior de
haver feito algo por alguém.
215
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
quele não é o mesmo Francisco de algum tempo atrás. É
uma pessoa renovando-se. Evoluindo. É hora de lembrar
outra vez do Padre Itan. Essa pessoa nova que está
renascendo dentro dele é fruto da iniciativa daquele padre. Que lhe
ajudara desinteressadamente. Que o havia apontado o caminho do
conhecimento e da elevação interior. Simplesmente colocando um
livro em suas mãos. Os livros têm o poder de fecundar conteúdos na
alma das pessoas. Ainda bem que Nely parece perceber a grandeza
desse gesto.
O Major Ney aproxima-se após a sesta do domingo de ressaca. Eles
então encerram a conversa. Pouco depois chegam alguns amigos da
família e a conversa do grupo segue outro rumo, discutindo as
trivialidades.
As conversas giram em torno da animação da noite anterior. O Major
pergunta:
- Francisco Elias, você nunca pensou em seguir a carreira de
cantor?
- Ah Major ! Eu canto por brincadeira. Meu trabalho é o rádio.
Cantor!... Acho que devo prosseguir no rádio.
OMajor não acrescenta mais nada e muda de assunto. Diz apenas: O meu amigo da Odeon gostou muito da sua voz!...
Logo mais à noite, lá pelas 21h00, o primo Jaci chega para pegar
Francisco. Ele então se despede dos familiares de Nely e segue para
o elevador. Jaci o aguarda na portaria do prédio. Nely faz questão de
acompanhá-lo até lá embaixo.
Conversam algumas amenidades no elevador e ao chegarem à
recepção o primo Jaci agradece pela acolhida da noite anterior. Sai
216
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
até a calçada e se afasta um pouco. É o momento final da despedida.
- Obrigado, por me receber tão bem em sua casa! Nely! Obrigado
por tudo!
- E eu? O que devo lhe dizer? Muito mais que obrigado!
Nely continua segurando sua mão. Seus grandes olhos lindos
continuam fazendo um eloqüente discurso. Ela tem um jeito só seu
de falar com os olhos. Diz coisas maravilhosas. Que todo homem se
envaideceria de perceber. Olhos que transmitem um apelo. Um
pedido. Uma esperança. Um lamento sutil.
Ela lhe fala com toda a doçura que a tristeza da separação pode lhe
permitir nesse momento. Fala quase sussurando. Fala mansa e triste
ao mesmo tempo:
- Você nunca me amou! Não é verdade?
Francisco tem um nó atravessado na garganta. O cheiro de Nely
assim tão próximo lhe confunde o raciocínio.
- Eu não tive tempo! Nely! - Confessa ele falando baixinho. O primo
Jaci havia se afastado mais um pouco percebendo a importância do
momento. Me perdoe! Nosso relacionamento parecia tão bonito!
Tão único! E de repente, antes que eu pudesse amadurecer um
sentimento mais forte por você, nós fomos sacudidos com todo
aquele alvoroço e descontentamento emocional que sofremos, com a
pressão de sociedade de Caicó sobre nós.
Dava para perceber que metade da cidade estava a nosso favor e a
outra metade contra. Sua família se dividindo! Aquilo foi terrível
para mim! Uma experiência que não gostaria de viver novamente.
Então diante de tantas emoções contraditórias e doloridas, não se
abriu a tempo, um espaço tranqüilo em mim, onde você pudesse
permanecer definitivamente, de um jeito que me desse paz. Espero
que você compreenda isso! Faço questão de dizer, que em outras
217
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
circunstâncias eu me apaixonaria por você, certamente!
Eu e qualquer homem que tiver a sorte de conhecer você! Você é uma
pessoa maravilhosa Nely! Merece ser feliz! Eu não sei se poderia
fazê-la feliz. Talvez eu não mereça você! Desejo muito que você
esteja em paz! E que perdoe sua mãe!
Francisco não recorda de já haver falado a uma mulher assim.
Os olhos de Nely transmitem um misto de tristeza e lágrimas. Ela se
esforça para segurar aquela emoção forte. Ali está acontecendo algo
muito sério. A despedida está demorando mais do que o previsto.
Conclui o primo Jaci.
O momento é único. Sem ninguém por perto Nely pode relaxar as
emoções um pouco. Francisco oferece o lenço para ela enxugar os
olhos.Ainda bem que não está maquiada.
- Você é bonita até chorando e sem maquiagem. - Diz ele, tentando
descontrair um pouco o clima da despedida. Agora já recomposta
Nely continua:
- Está bem! Nunca pensei que alguém fosse mexer tanto comigo
como você mexeu! Mas não posso lhe obrigar a me amar. Não é
mesmo? - Diz ela, recuperando a altivez. - Vá com Deus! Desejo que
você possa ser feliz! Foi muito bom ter lhe conhecido! Precisaria ir a
um lugar tão distante, como Caicó, para achar alguém tão especial
como você! Mas eu soube isso! A primeira vez que vi você! Eu soube
que você marcaria minha vida! Eu vou estar bem! Vá em paz!
Nunca foi tão difícil se despedir de uma mulher como esse momento
que ele acaba de experimentar. Francisco se vai. Levando no coração
uma emoção muito estranha. Como alguém podia sentir algo assim,
por alguém que imagina não amar?
A vida tem dessas coisas. Nunca mais a veria. Umas duas vezes, ao
longo de sua vida vai obter informações dela. Sempre através do
amigo Edílson Bezerra. A primeira vez, uns dez anos depois,
informado de que ela havia casado com um francês indo residir em
Paris.
218
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
U
ns dez anos mais tarde recebe do amigo uma nova
informação. Nely havia se separado e estava de volta no
Brasil. Morando no Rio de Janeiro e tocando um atelier de
alta costura.
Tinha tudo haver com ela. Era uma pessoa de alto nível e havia
morado em Paris. Natural que houvesse evoluído para o mundo
glamuroso da alta costura.
Ao receber a informação de que o casamento de Nely se desfez,
Francisco pondera sobre isso: Será que só amamos na vida uma
única vez? Seria esse o motivo de tantos desencontros no casamento
como se vê em todos os tempos? Haveria alguém capaz de
interpretar corretamente o significado do amor entre duas pessoas?
Vamos dar um salto no precioso tempo, de volta até Caicó, em 1965.
Como estará Francisco levado pelas intempéries de seu destino
intransigente...
Regressara das férias no Rio de Janeiro e continua seu trabalho de
locutor e DiretorArtístico da rádio.
O sábado, dia muito movimentado com a feira da cidade lhe traz
notícias desagradáveis.
A cidade recebe um considerável número de gente e de caminhões
vindos das cidades da redondeza.
As 09h00 da manhã Francisco recebe a visita na rádio de um rapaz,
cujo pai tem uma mercearia e lanchonete ali próximo.
- Chico Elias! Papai pediu que você fosse lá urgente, que ele tem um
assunto para falar com você!
Pouco depois Francisco recebe uma informação perigosa. Pergunta
o homem da mercearia:
-Francisco Elias! Todos os sábados eu recebo aqui vários feirantes
que vem em caminhões de algumas cidades. Hoje esteve aqui um
219
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
motorista de caminhão lá de Laginhas me pedindo para lhe dar um
recado.
- De quem?
- Esta semana vocês divulgaram lá na rádio uma notícia sobre um
criminoso que estaria acoitado numa fazenda no município de
Lajinhas?
- Demos sim! No jornal do meio dia!
- Pois o criminoso lhe mandou um recado! Que você pare com as
notícias sobre ele! Do contrário ele virá aqui acertar as contas com
você, na bala!
Aquilo soou como um tiro nos seus ouvidos. Ele agradece ao homem
e volta para a rádio seriamente preocupado. Vai participar o fato à
direção da emissora.
Minutos depois Francisco ainda está pálido. O recado foi um
choque. Está pensando no perigo daquela situação. Caso o
criminoso viesse à sua procura, bastaria perguntar quem era
Francisco Elias e qualquer um o apontaria. Enquanto ele, o
criminoso, era um estranho.
Nenhuma notícia mais será dada sobre o caso do criminoso de
Laginhas. Mas Francisco não se sente mais seguro. Compra um
revólver com uma caixa de balas e vai aprender a atirar, lá no
armazém do tio Miguel. Desenvolve uma boa pontaria. Mas isso não
é suficiente para sua tranqüilidade. Surge então algo novo.
Coincidência? Francisco já desconfia que elas não existem.
Repentinamente a Rádio Nordeste de Natal está interessada em
contratá-lo. Francisco se empolga com a possibilidade de trabalhar
no rádio na Capital. É uma possibilidade bem oportuna. O irmão
Pedro já se encontra em Natal servindo naAeronáutica.
220
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
amigo Edílson encontra Francisco no passeio da Pracinha
no sábado à noite. Ele tem notícias do Rio.
- Recebí uma carta esta semana da mãe de Nely falando sobre um
sarau espetacular promovido no apartamento deles lá no Rio. Falou
também do sucesso que você fez por lá como cantor.
- É. De fato foram umas férias muito boas. Eu estava precisando
mesmo! Inclusive tive oportunidade de conversar com Nely e ela
prometeu que iria acabar com as desavenças com a mãe dela,
procurar perdoar e se entender bem com ela.
- Mas eu tenho outra informação pra você!
- Sobre o quê? - Será que Nely havia reacendido os ressentimentos
com a mãe!
- Esteve lá no apartamento do Major uma pessoa da gravadora
Odeon?
- Esteve, sim!
- Pois esse homem foi convidado lá pelo Major Ney para ouvir você
cantar. A dona Júlia me disse na carta, que o homem ficou muito
interessado em levar você para fazer uns testes na gravadora e quem
sabe, até lançarem você como cantor! - Francisco agora está ligando
as coisas.
- É! De fato, o Major Ney me perguntou se eu não gostaria de tentar
a profissão de cantor... Então foi isso... E falou também que talvez
fosse bom fazer uns testes, mas eu falei pra ele que precisava voltar.
As minhas férias na rádio iam terminar e eu tinha de estar aqui de
volta.
- Pois foi! O Major estava mexendo os “pauzinhos” afim de
conseguir sua transferência para o Rio. A mãe de Nely me deu todos
os detalhes. Ele queria tentar ajudar você profissionalmente porque
ama muito a Nely e essa seria a única forma de vê-la feliz. Com você
por perto!
221
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Agora eu entendo! Ele até sugeriu que eu trabalhasse no rádio lá
no Rio, quando eu falei que cantava apenas pra me divertir e que o
meu trabalho é mesmo no rádio... Então foi isso!
- Foi sim! Eles estavam tentando fazer de um jeito que você não
percebesse. Mas a idéia era essa!
Francisco fala a Edílson sobre o momento que está passando com as
ameaças que recebeu, de um possível atentado contra a sua vida. Até
já estava tentando aprender a atirar. Para se defender. Se fosse o caso.
O clima psicológico no trabalho da rádio não estava nada bom.
Um mês depois conversa com o Padre Tércio, que o aconselha a ir
realmente embora. Caicó já está lhe dando até susto. Este 1965 vai
ser marcante na sua vida.
De fato, desde uns quatro meses antes Francisco já vinha sendo
sondando pela Rádio Nordeste de Natal.
Muda-se para a capital deixando a namorada Luzinete em compasso
de espera.
Natal é uma cidade cativante. Muito movimento. O trânsito, as
práias, o aspecto urbano, tudo é novidade.
Um ambiente novo. Um rádio moderno. Mais atuante. Mais
profissionalizado.
Francisco é contratado como locutor noticiarista e disc-jockey,
animando programas de comunicação, principalmente com o
público jovem. Sua atuação é muito bem recebida. O programa
Telefone Pedindo Bis, com patrocínio da Gessy & Lever passa a ser a
sua primeira marca de grande sucesso em audiência. Chegando a
incomodar outras rádios. Entre elas, a Rádio Cabugi. A emissora de
maior audiência na Capital.
222
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco está residindo num pensionato bem próximo do
cinema Nordeste e da Rádio Nordeste no centro da cidade,
onde trabalha. O amigo Bulhões, que conhecera em Caicó,
um paraibano esforçado, vindo de João Pessoa para trabalhar no
Batalhão do Exército em Caicó, mora com ele no mesmo quarto no
pensionato. Havia muitos civis trabalhando em algumas funções
burocráticas no quartel. Bulhões era um deles.
De origem também muito humilde, dedica-se com afinco aos
estudos e à leitura. Também transfere-se para Natal, vindo trabalhar
em um órgão ligado ao Ministério dos Transportes.
Bulhões é uma inteligência fértil na constante busca por uma posição
melhor na vida.
Busca segurança. E um emprego federal é tudo o que queria. Em
Natal ele continua fazendo cursinhos para tentar um vestibular e
trabalha na repartição federal. Estuda à noite. Residindo com
Francisco no pensionato de Dona Paz, um ambiente muito
movimentado, repleto de jovens, moças e rapazes, na maioria
estudantes vindos do interior.
Ha dois ambientes no pensionato. Um em que se acomodam os
rapazes e outro para as moças. Embora o salão de refeições seja
único. Os jovens estão sempre em contato.
Normal que surjam os namoros. Freqüentemente Bulhões traz da
biblioteca do cursinho vários livros que devora com muito gosto.
Francisco faz parceria com ele em suas leituras. Mas também
continua comprando alguns livros nas livrarias de Natal.
Já faz cinco meses que Francisco está trabalhando na Rádio
Nordeste. O pensionato de dona Paz, onde mora, fica na rua de trás. É
muito cômodo para ir ao trabalho todos os dias.
O primeiro andar é a rádio. No térreo ha uma sorveteria e colado com
ela o Cinema Nordeste.
223
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Tem uma nova namorada. Alguém que acabou de conhecer no
pensionado. Chama-se Sandra. Bem jovem. Tem só 16 anos.
Francisco tem tido sorte com mulheres bonitas. A Sandra é uma das
moças mais bonitas do pensionato. Acabou de chegar para residir ali
juntamente com o irmão. A mãe tem negócios com restaurante na
cidade. Isso vai dar uma bela história.
Mas agora vamos nos ater ao seu trabalho na rádio. Esta manhã um
reencontro inesperado vai surpreender Francisco ao se aproximar do
prédio da rádio.
São 10h00 da manhã. Quem está ali sentado tomando um sorvete? O
Major Ney Padilha.
- Oi Major! Que surpresa! O senhor por aqui! - Francisco está
surpreso com o reencontro.
- Que prazer reencontrar você! Como vai?
- Estou agora aqui em Natal! Trabalho aqui na Rádio Nordeste! Diz Francisco apontando para o primeiro andar.
- Ah! Que bom! Rapaz! Você tem futuro! Eu não tenho dúvida!
- Como vai o pessoal por lá? A Nely e a dona Júlia, como estão?
Claro que Francisco gostaria de saber sobre a reaproximação das
duas. - Estão muito bem! Aquelas querelas entre elas é coisa do
passado. Tudo já está superado. Olha! Sua visita foi muito boa para
elas. Tenho até que lhe agradecer por isso!
- Nada! Major! Não precisa me agradecer. Mas e o senhor? Em
Natal?
- É! Ficaram alguns negócios pendentes e eu resolvi dar um pulo
aqui para resolver. Mas volto logo. Uns dois dias mais e estou
voltando para o Rio.
- Pois foi um grande prazer revê-lo Major! Dê lembranças a Nely e a
dona Júlia!
- Obrigado! Muito bom, saber que você está progredindo!
224
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Cumprimentam-se formalmente e Francisco vai ao seu trabalho.
Nunca mais veria o Major Ney nem saberia nada sobre ele. Guarda
entretanto, a sua imagem como uma pessoa muito educada e pai
amoroso. Pronto a fazer qualquer sacrifício para ver a filha feliz.
Bem que aquela era uma ótima oportunidade para Francisco
esclarecer-se com o Major sobre o amigo da Odeon que ele lhe
apresentou em seu apartamento, mas preferiu não tocar no assunto.
Vamos deixar isso no passado! Pensa ele. Talvez não se sentisse
muito à vontade estando lá e sabendo depois que sua transferência
para o Rio teria sido obra das iniciativas do provável sogro. Não se
sentia bem pensando isso. Francisco carrega consigo todo o
conteúdo machista tradicional da cultura local da Caicó desses
tempos. Depender do sogro! Para se posicionar na vida! Isso não é
uma coisa que pudesse tolerar. Melhor assim! A vida tinha tanto para
oferecer! Nely seguiria sua trajetória. E ele também! A lembrança de
ambos desapareceria com certeza na poeira do tempo. O melhor é
seguir adiante! E é isso o que ele tenta fazer agora. Já é um locutor de
sucesso em Natal! Vamos deixar as coisas acontecerem por si
mesmas Major! Pondera ele, batendo seu cartão de ponto na rádio.
Está na hora de começar o - Telefone Pedindo Bis.
O assunto de sua empolgação literária neste momento é a
Psicanálise. O amigo Bulhões está envolvido até os cabelos com este
assunto. E traz, de dois em dois, os livros de uma extensa coleção
com doze volumes, de Sigmund Freud, o pai da Psicanálise.
Os dois vão ler a coleção inteira. Bulhões lê um dos livros e passa-o
para Francisco. Quanto conhecimento Francisco está assimilando
agora! Um esforço que vale à pena todas as noites. Enquanto a
maioria dos colegas do pensionato sai para se divertir.
225
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
s meses passam rápido. Já é 1966. Agora é a jovem Sandra
que cruza o seu caminho na longa estrada da vida. Parece ter
vindo para ficar. Ao se virem pela primeira vez, foi atração
na hora. Dessas que não se explica. Apenas se vive. Os dois estão
namorando. Ela é muito bonita. Corpinho de manequim. Bem
magra, olhos verdes e cabelos castanhos lisos, pele levemente
morena. Inicialmente um namoro sem maiores pretensões. Mas com
algumas marcas significativas. A primeira vez que Francisco levou
uma namorada para jantar em um restaurante, foi com ela.
As praias de Natal nos fins de semana são os seus cartões postais.
Onde deixam a marca de suas emoções tão jovens.
O mano Pedro Elias Filho, ainda prestando serviço militar na
Aeronáutica em Natal, faz contato com Francisco e lhe transmite
uma solicitação:
- Rapaz! Eu planejei ir agora na Festa de Santana a Caicó visitar
papai e mamãe, mas infelizmente não vou poder ir. Eu queria lhe
pedir para ir em meu lugar. Seria muito bom para eles. - Até então
Francisco ainda não se reconciliara com seu pai. E argumenta com o
irmão: - Mas será que Papai vai me receber bem?
-Vai! Por sinal, eu já conversei com mamãe e ela me disse que ele
está muito contente com a possibilidade de você também ir lá, na
Festa. Como eu não vou poder ir, é importante que você vá!
- É. Porque não!
Ha um fato novo que já serve para amaciar o temperamento de seu
pai. O orgulho de ter um filho fazendo muito sucesso no rádio lá em
Natal. Pelos comentários que alguns de seus amigos fazem, isso o
deixa orgulhoso: - Ah, você é o pai de Francisco Elias! O locutor!... Um pouco de vaidade, em momentos apropriados, não faz mal. Está
servindo para reaproximar Pai e filho. Confirmou sua presença na
Festa e foi lá.
226
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
S
eu pai o recebe muito bem, demonstrando que os
ressentimentos haviam passado. Sua mãe fica muito feliz com
isso. Chega a compensar pela falta do Pedrinho. Dai por diante
os dois estariam definitivamente reconciliados.
Retornando para Natal em seguida, Francisco continua
aprofundando-se nas suas leituras.
Sua passagem pela Rádio Nordeste vai ser relativamente rápida.
Oito meses apenas.
Mais uma vez a “helicoidal” está dando sinais de mudanças na sua
vida. Nesse momento para melhor. A Rádio Cabugi, a emissora de
maior audiência na capital já descobriu Francisco. Quer contratar o
jovem locutor a qualquer custo.
Francisco está agora tentando sua qualificação como Jornalista
Profissional, aproveitando-se de uma Lei Federal pós-revolução, de
reconhecimento da profissão de jornalista, e que está amparando a
todos os profissionais que já atuam nessa área, também em rádio. Só
depois disso é que ele estará pronto para um novo passo, dessa vez,
na Rádio Cabugi.
Com um contrato que praticamente dobra o seu salário da Rádio
Nordeste, ele se transfere para a nova emissora. Onde ha ainda mais
atuação profissional. Incluindo programas ao vivo com rádio-atores.
O seu laboratório na Emissora de Educação Rural está lhe sendo
muito útil. Um novo ambiente de trabalho. A sua auto-estima está
elevada. Mais empolgação. Francisco se projeta cada vez mais.
Logo assume a chefia dos locutores. Mais um ano depois, assume a
Direção de Programação da Emissora.
E mais um ano e meio após, assume a Direção Geral da Rádio
Cabugi. Período que também vai ser curto, como Diretor Geral.
Agora, com suas atuações no rádio-teatro da Rádio Cabugi, é o teatro
227
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
propriamente dito que se interessa por ele. Francisco vai atuar no
teatro Alberto Maranhão, compondo o grupo teatral de Jesiel
Figueiredo. Participa como ator em algumas peças. Com destaque
para sua atuação em O Pagador de Promessas, peça de Dias Gomes.
É o tempo de recordar as serenatas de anos atrás.ARádio Cabugi tem
um programa semanal noturno com seresteiros ao vivo. O Bar da
Noite, às quinta-feiras. Duas horas de programa. A Meia-noite,
quando o programa termina, os participantes saem para fazer
serenatas em algumas residências da sociedade local, previamente
combinadas.
É um período oportuno para Francisco conhecer alguns figurões da
sociedade. O Deputado Roberto Freire é um deles. Aprecia muito as
serenatas, incluindo a participação da rádio-atriz Glorinha Oliveira,
uma excelente cantora, indo às vezes com os seresteiros até à beira
da praia, onde sentam e cantam, acompanhados por violão e
bandolim.
Amúsica vai estar sempre presente na vida de Francisco.
Ele agora reside em outro pensionato próximo à Rádio Cabugi, na
Praça de São Pedro, na subida do Baldo para oAlecrim.
Poucos meses antes, a namorada Sandra voltou com a mãe e o irmão
Webster a residir em João Pessoa.
Estão com ele no mesmo quarto do pensionato, o primo
Miguelzinho, cursando o CPOR, e o amigo Edílson Bezerra, que
também se transferiu para Natal, onde trabalha na CIBRAZEM,
outro órgão do Ministério deAgricultura.
Durante o dia, Miguelzinho está nos estudos no quartel do Exército e
Edílson no trabalho.
Em horas de folga Francisco está só em seu quarto. Com suas
228
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
leituras. O amigo Bulhões já não mora mais com eles. Andam
falando que ele conseguiu finalmente, uma transferência para o
próprio Ministério dos Transportes, em Brasília. Garoto furão! Esse
Bulhões.
Filho de mãe solteira, tinha muito apreço por ela. Falava nela de vez
em quando com muito orgulho, dos tempos em que servia cafezinho
na agência dos Correios em João Pessoa. Bulhões é um lutador.
Mensalmente enviava algum dinheiro para ela, que ainda residia em
João Pessoa. Seu maior sonho, dizia, era poder dar a ela uma vida
dígna. Portanto, sua missão primordial é dar-se bem na vida.
Limpamente, claro! Bulhões é um homem correto.
Deseja crescer na vida sem precisar pisar em ninguém. Para poder
dar descanso à sua mãe.
E aos poucos está conseguindo. Dá orgulho ser amigo de um cara
como o Bulhões. Ele é um exemplo. Estudioso. Esforçado.
Inteligente e dígno. Sua presença na vida de Francisco é muito
salutar. Os dois lêem bastante. Evoluem juntos. Mas Bulhões parece
ir à jato. Tudo nele é apressadinho. Como se o tempo fosse seu maior
inimigo.
A garra do jovem está muito bem personificada nele. Procura se
movimentar em sociedade sem desagradar ninguém. Isso lhe
confere uma marca singular. Diría-mos, um sujeito de muita
personalidade. Tanto, que fôra confundido antes lá por João Pessoa
nos tempos dos maiores apertos entre os estudantes, feitos pela
revolução. Haviam confundido bulhões com um sujeito perigoso
para o regime militar. Por ser franco em suas atitudes. Mas havia
aprendido que nesse tempo não se devia expressar tão
veementemente nossos conceitos. Ele está aprendendo a silenciar.
Descobriu que esse caminho é mais curto para ele se dar bem na vida.
Trata dodo mundo de “Peixadinha”. Você é meu amigo
229
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Peixadinha!... Não deixa brecha a qualquer descontentamento seja lá
com quem for.
Mas ha o Edílsom, que também gosta de boas leituras.
O contato com Sandra agora é na maioria das vezes por carta.
Raramente por telefone. Ela ouve Francisco às vezes pelo rádio, cuja
transmissão chega muito baixinho lá em João Pessoa. Diz ela. O
destino está preparando um capítulo bem significativo para esses
dois caminhantes.
Está chegando o dia dos namorados. Sandra consegue autorização
de sua mãe e avisa que vai passar o dia dos namorados com
Francisco, em Natal. Vai ficar também hospedada por poucos dias no
pensionato da dona Bilsa, onde ele mora. Sua chegada foi muito
aguardada.
A tarde está bem quente. Os dois estão no quarto de Francisco
namorando inocentemente em uma rede.
Mas onde estão dois jovens, plenos de libido e carência acumulada,
tudo pode acontecer. E eles quase, quase... Faltou pouco. Coisa de
jovens. Ela volta para João Pessoa. Plena de insegurança e
inexperiência. Sabia apenas que mensalmente tinha que aparecer
aquele sinal de mulher.
Talvez pela pressão psicológica da incerteza e da inexperiência, este
mês o fluxo não deu sinal.
Ela se desespera. Estou grávida! Pensa logo. Só pode ser! Meu Deus
estou grávida! E agora? Rápido procura contato com Francisco.
Desta vez chora descontroladamente ao telefone. Ele a tranqüiliza.
Nesse momento é como se ouvisse seu pai admoestando os filhos
verbalmente:
- Vocês não mexam com filhas alheias! Quem mexer com a filha dos
230
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
outros tem que casar!
Seu Pedro, claro, precisava verbalizar em defesa própria. Afinal o
seu clã era completo. Sete homens e Sete mulheres.
- Não se preocupe! - Tranqüiliza Francisco. - Avise a sua mãe e a seu
tio. Sábado eu vou ai e peço você em casamento!
Ela se aquieta. Pelo menos até onde podia.
No sábado seguinte Francisco desembarca na estação rodoviária de
João Pessoa, onde ela o espera acompanhada do irmão.
No almoço do domingo acertam tudo. Estão noivos. E marcam o
casamento para um mês depois. A família dela provavelmente
estranhou aquela pressa. Mas o jovem queria que fosse assim.
Então...
E conforme o combinado, um mês depois ela já está em Natal, em
sua companhia, num outro pensionato onde Francisco, já havia
combinado com a proprietária, que precisava de um quarto só para
ele e a esposa assim que casassem. Estão ultimando os preparativos
para o casamento.
O juiz realiza o casamento em casa mesmo. É comum nesse tempo.
Toda a mobília é um guarda-roupa e uma cama de casal. Após se
casarem permanecem no pensionato por mais algum tempo, até ele
encontrar um pequeno quitinete para alugar.
Só dois cômodos. Na verdade apenas um. Dividido ao meio com
parede de compensado, nos fundos da residência da família do
Doutor Armando Viana. Uma escada bem íngreme por onde
acessam a simplória moradia, Uma cozinha, por onde se entra no ap,
com um banheiro ao lado e o quarto com uma pequena janela dando
para o telhado da casa. Vai residir ali com Sandra. Na esperança de
logo se mudarem para um ambiente melhor. Já têm o seu cantinho
231
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
pra começar vida nova.
Não vêem a simpliscide do ambiente em que vivem. Apenas o idílio
amoroso de marido e mulher. Queriam seu próprio espaço e ali está
ele. É o melhor que a vida pode lhes oferecer agora. Mas acreditam
estar felizes.
Logo acontece o primeiro transtorno, pelo menos para Francisco.
Esse é o tempo comum da mais absoluta irresponsabilidade social
com o apoio dos poderes constituidos, que fechavam os olhos para o
problema. O machismo incongruente determina que tão logo se
casem os nubentes devem ter filhos.
Era só lembrar o exemplo de seu Pedro e dona Josina. Inicialmente
paupérrimos e construindo uma família de quatorze filhos. Esse
conceito de reconhecimento da masculinidade é passado de pais
para filhos ao longo de muito tempo. E olha, que estamos em plena
capital, em 1969.
Para o homem, principalmente, é muito significativo e comum,
almejar que o primeiro filho seja um homem. Ninguém pensa na
necessidade do controle de natalidade, ainda mais em casos de certa
dificuldade financeira, como é a situação desses dois. Pelas
estimativas, Sandra já estaria grávida. Mas...
Já estão casados ha três meses. E a gravidez até agora não se
confirmou. Francisco começa a sentir uma sensação esquisita. Algo
que não está gostando de sentir.
Uma sensação um tanto dolorosa. Não se sente traído, claro. No
máximo, inexperiente como era, sem dúvida ela havia se
equivocado. Qualquer moça em seu lugar viveria o mesmo trauma
da expectativa pior.
O problema não é engravidar. Mas ser mãe solteira. Francisco tem
plena consciência disso. Pois já havia lido que uma mulher pode
232
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
engravidar sem ter havido penetração vaginal.
Portanto, os dois são vítimas. Vítimas das dificuldades culturais
desse tempo. Em que não se tem todas as informações necessárias ao
equilíbrio familiar.
E agora? Pensa Francisco...
Mas para grande alegria dos dois, o mês seguinte confirma a
primeira gravidez. Nove meses depois nasce então Elissandra. Sua
chegada está sendo muito festejada. Um divertimento para a jovem
família. Francisco se emociona com o bebê nos braços. O próximo
certamente será um homem. Mantém as espectativas.
E a porteira de Sandra havia sido definitivamente aberta com alguns
medicamentos que certamente ajudaram em sua fertilidade. Onze
meses depois, nasce a segunda filha. Eliana. A primeira era bem
branca. A Segunda, é um pouco moreninha. Parece justo. Uma leva
os cromossomos de pele do pai, e a outra os da mãe. Duas meninas. E
o menino! Nada!
Nesse ambiente onde vivem há uma senhora, a dona Albani, esposa
do doutor Armando, uma pessoa de espírito muito bondoso. Por um
bom tempo vai ser como uma mãe para a inexperiente Sandra, que
casara com apenas 17 anos e já acalenta duas filhas. Nada é por
acaso!
Precisaria existir a dona Albani em seu caminho nesses tempos tão
infantís em termos de conhecimentos da vida de casada, para lhe
prestar um auxílio inestimável.
Agora sim! Já ha preocupação do casal na contenção de filhos. E
após a segunda filha, passam a usar os mecanismos comuns para
evitar gravidez indesejada. Já vai dar muito trabalho criar as duas
meninas com recursos financeiros tão parcos.
233
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco se contenta em não ter um filho homem. Se Deus
decidiu assim... Assim será. Os tubos de ensaio e os estudos
com o genoma humano ainda não entraram em cena.
No trabalho na Rádio Cabugi, tem algo novo acontecendo. Após
passar por uma chefia do quadro de locutores e posteriormente
assumir a direção de programação da emissora, agora Francisco vai
assumir a Direção Geral da rádio. Não por muito tempo. Mas de
qualquer forma, uma performance considerável, alcançada num
espaço de tempo relativamente curto, que lhe assegura um novo
status profisisonal. E faz só três anos que ingressou na Cabugi.
As bases do casamento é que não estão devidamente solidificadas.
Em diversas ocasiões, depois de passar o arrôbo inicial, Francisco se
dá conta de algumas reflexões inevitáveis. Ele nunca pôde amar
integralmente uma mulher. Portanto, Sandra não seria sua resolução
definitiva. Aquela trava psicológica de sua puberdade continua
existindo no mais íntimo de seu ser. Por vezes, imagina-se ainda
solteiro. Não devia ter se casado! São pensamentos amargos.
Descobre por outro lado, que há diferenças intransponíveis de
ambientação cultural entre ele e a esposa.
Compreende que é muito difícil para ela transpor essa barreira e pior,
não ha nada que ele possa fazer.
Ou seja, tudo sinaliza para um provável fracasso desse casamento.
Ele continua sua trajetória de conhecimentos através da leitura.
Enquanto a esposa enfoca apenas os seus deveres do lar. Que a
propósito, procura desempenhar muito bem, na tarefa de amparar
suas filhas.
Mas o distanciamento entre os dois já havia assinalado seu ponta-pé
inicial. Sem chance de mudança de rota. O que fazer? Francisco
234
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
medita a respeito e pondera em favor da unidade da família, até onde
ele pode conceber. Duas filhas lindas e inocentes não deveriam
pagar por erros ou enganos cometidos por seus pais. A cada dia
cresce o amor por elas. Enquanto pela esposa o sentimento se dá em
sentido contrário. Assume então consigo mesmo um compromisso
de tolerância e de sacrifício, se for o caso. Jamais abandonaria sua
esposa e suas filhas. Está resoluto a pagar o preço que for preciso,
para manter-se ao lado delas.
Quantos em seu lugar abandonariam o barco? Não ele! Com todos os
princípios que já conhece e defende. Deus as havia colocado em seu
caminho por alguma razão. Ele ainda não se aprofundou nos estudos
da espiritualidade para compreender tudo. Mas vai deixar o tempo
processar o seu cadinho de fusão. Vai até onde o futuro não lhe
inspirar o medo. O sentimento de responsabilidade paternal da-lhe
coragem para isso. A despeito de não estar preparado para semear no
coração das filhas as raízes de um amor paternal equilibrado.
Sabe que as ama, mas não sabe expressar esse sentimento
suficientemente claro.
Talvez algum ranço comportamental herdado de seu pai. Só muitos
anos depois, quando sua bagagem interior já terá alcançado um grau
considerável de transcendência e de conhecimento espiritual, é que
vai se dar conta de quanto as amou e não pôde vivificar isso de forma
prática e lúcida no tempo hábil.
Esse histórico deve refletir-se nelas como um pedido de perdão da
parte dele. Enfim, o coração tem razões que a própria razão
desconhece. É sempre muito reconfortante um olhar ao passado,
quando se busca o arrependimento.
Seis meses se passou e agora a “helicoidal” dá sinais de declínio pela
primeira vez desde que saiu de Caicó para Natal numa constante
235
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
trajetória de subida. Agora tem outra novidade no ambiente de
trabalho. Dessa vez para pior.
Agnelo Alves, que havia sido cassado pela Revolução Militar de
1964, retirado da Prefeitura de Natal, está na rádio para conversar
com Francisco.
- Elias! Como você sabe, eu fui cassado! Portanto, tenho que voltar
para as empresas do nosso grupo! - A família Alves é dona de um
jornal,ATribuna do Norte e a Rádio Cabugi.
- Você está no meu lugar! Mas não queremos que você deixe a gente!
Sabemos do bom trabalho que você vem fazendo na administração
da rádio. Então sugiro que acertemos as suas contas e você volta
para a Direção Artística. O que acha?
Francisco pondera que é melhor aproveitar a oportunidade e sair
definitivamente da rádio, pensando que não seria interessante
regredir a um posto anterior dentro da mesma empresa.
Afinal, o cargo de Diretor Geral já lhe rendera algum dissabor com
punição de alguns funcionários, merecidamente, mas tais atitudes
administrativas sempre deixam seqüelas de relacionamento, o que é
natural. E esclarece que aproveitará para viabilizar um projeto
antigo.Acriação de uma agência de propaganda em sociedade com o
amigo Rossini Ferraz.
O princípio de qualquer negócio é sempre trabalhoso e difícil. Ainda
mais agora. Estamos em fins da década de 60. A economia natalense
está em queda livre. A agência Idéia Propaganda não prospera
conforme o desejado. Os clientes quase não anunciam. O mercado
encolhe. O sócio Rossini decide ir embora para Brasília, onde,
segundo dizem, existem muitas oportunidades.
236
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
omentam na cidade que as empresas fazem esforços para
cumprir compromissos de empréstimos com o Banco do
Brasil, que se Francisco consegue com um amigo diretor da
Rádio Trairí, uma pequena emissora, um espaço para locução,
apresentando diariamente o noticiário do meio-dia. Um salário
mínimo. Pelo menos o feijão com arroz e o leite das crianças dava
para garantir. Além disso, alguns cachês esporádicos de gravação de
comerciais para rádio. Mas mesmo ai, a atividade recrudesceu
consideravelmente.
É nesse ambiente difícil, com sua helicoidal em baixa, que Francisco
precisa encarar a manutenção do casamento.
Ha um amigo seu, também locutor de rádio em Natal. Chama-se
Carlos Alberto. Virá a ser mais tarde uma figura de projeção, como
Senador da República e fundador da televisão Ponta Negra. Carlos
Alberto vive os mesmos tempos difíceis dessa época. E aconselha
Francisco:
- Vá embora rapaz! Vá pra Recife! Eu conheço aqueles locutores dos
estúdios de lá! Você é até melhor do que alguns deles!
Outra vez ha alguém em sua vida sinalizando para que dê um novo
passo a frente. Mas como? Se pergunta. Isso até que seria muito
bom. Mas tudo na vida tem a sua hora. O seu momento. A infinita
inteligência do Ser Supremo parece preparar o ambiente natural das
coisas e deixa girando ao seu redor até você cair dentro do ciclo. É o
que vai acontecer com ele Mas não exatamente agora.
O dissabor das dificuldades arrefece ainda mais o tempero do
casamento. Pela primeira vez ele repensa sua vida, imaginando suas
dificuldades de forma mais concreta. E se dá conta que o casamento
de ambos não se deu por amor. Mas por necessidade. Afinal, a trava
237
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
dos sentimentos ainda permanece dentro dele desde a puberdade.
Mas não fará como muitos. Não abandonará sua família. Não é um
covarde. Não lhe agrada a idéia de ver suas filhas crescendo sem a
presença de um pai por perto.
De novo ele se vê diante de sua consciência. Ainda não está
preparado para dar a elas o amor em forma de uma convivência
paternal adequada, mas está pleno de sua responsabilidade e ama as
suas filhas. Apesar do transtorno psicológico com a dificuldade
financeira, ele vai continuar seu compromisso de família. Elas não
têm culpa. São apenas mais duas vítimas das circunstâncias sociais
da época.
Francisco está descobrindo de forma dolorosa algo que muitas
pessoas talvez ainda nem se dêem conta. Eles estão nús diante de
suas vidas. Poderia ter sido diferente?
Não há como saber. Ha só o que viver. E um preço a pagar. Quantos
jovens terão cometido o mesmo engano! Assim ele está tomando
consciência dessa dura realidade. Mas já é tarde. Agora lhe resta a
grande satisfação de poder ver suas filhas crescerem estando ao lado
delas.
Para piorar a carga emocional, nesse momento elas estão doentes.
Ha uma infecção de pele com microorganismos desconhecidos que
os médicos não conseguem tratar.
As mãos e os pés das crianças estouram em bolhas que coçam sem
deixá-las dormir.
O doutor Armando, é um farmacêutico. Fez o que pôde, tentando
fórmulas de pomadas. Por fim recomenda levá-las ao melhor médico
de pele, um professor da Universidade. Nem ele curou as crianças.
Esta noite, o SER supremo manda um recado para eles. Por volta das
238
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
19h00, tem uma preta com um pano amarrado na cabeça sentada na
varanda do Doutor Armando. É a lavadeira de roupa. Está
aguardando que dona Albani lhe traga uma trouxa de roupas para
lavar. Francisco aproxima-se e senta com o Doutor Armando
lamentando-se da doença das crianças, informando que o tal médico
recomendado por ele havia dito, após ver todas as receitas médicas
que já haviam receitado para elas, que as meninas só estariam
curadas com uns cinco anos de idade, quando o organismo delas já
teria desenvolvido defesas naturais para combater a doença. A preta
lavadeira então pergunta:
- Vocês já deram mamão em jejum a essas crianças?
O Doutor Armando, em sua cadeira de balanço, víra-se para ela e
pergunta:
- Mamão! Dona Maria?
- Sim! Isso é um micróbio que elas pegaram, que só desaparece
tomando mamão em jejum.
- A senhora tem certeza dona Maria?
- Tenho seu Armando! Eu já curei meus filhos assim. - Diz ela com
toda convicção.
DoutorArmando volta-se então para Francisco:
- Não custa tentar, não é? - E explica: - De fato o mamão tem uma
substância química.... - E descreve o que poderia ser de fato a cura
para as meninas.
Ele não havia pensado nisso! De manhã logo cedo Francisco vai ao
mercado e compra o mamão mais bonito que encontrou, já maduro.
Voltando rápido a tempo de Sandra já preparar as mamadeiras da
manhã com o mamão para as meninas.
Duas vezes ao dia, pela manhã e à noite elas deverão comer o
mamão. Dissera a preta.
Na segunda noite depois disso, as crianças já conseguem dormir sem
239
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
se coçar nem incomodar. Todos os dias pela manhã, e à noitinha, a
alimentação delas é um mamadeira de mamão batido no
liquidificador apenas com água.
Uma semana depois as bolhas nas mãos e nos pés das crianças já
estão secando completamente. E menos de um mês depois estão
completamente curadas. Coincidência?Acaso?
Francisco pondera: Porque a preta Maria estava ali naquele exato
momento? A Francisco e Sandra só resta agradecer a Deus. Havia
sido Ele. Não tinham dúvida. Não poderia haver outra explicação.
Haviam recebido a ajuda D’Ele através daquela preta humilde.
É muito comum nessas situações, as pessoas afirmarem: foi
coincidência! Foi o acaso! Mas Francisco descobre um detalhe no
mínimo curioso em torno dessa experiência de vida. A todas as
pessoas com quem conversou sobre o fato, e que afirmavam tratar-se
apenas de coincidência, o fato de a preta Maria estar ali naquela
noite, a todas essas pessoas ele tem perguntado:
- Como anda sua relação com Deus? E curiosamente, nenhuma
delas tem se confessado estar vivendo tão próximo de Deus. Ou seja.
É muito mais cômodo, para aqueles que negam a presença do
Criador sempre ao nosso redor, confirmarem sua descrença
acreditando no acaso. É mais fácil para elas acreditarem nas meras
coincidências, do que aceitar que Deus exista e que crie as
oportunidades para nós. Os seus filhos. Quão miseráveis somos nós!
Mentes doentias. Mentes empobrecidas. Mentes recalcitrantes.
Mentes inconformadas. Sem pretender ser um visionário, mas
pessoas assim haverão de descobrir Deus através de muita dor e
agonia. É da sua própria natureza endurecida.
E permite que soframos para poder-mos ir até Ele, da única maneira
240
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
que se pode. Pela dor.
Muitos outros fatos durante a vida de Francisco virão confirmar essa
sua teoria. Teoria da suprema necessidade da dor.
Em Natal, ele está vivendo um momento difícil. Não há dinheiro
para o cigarro. Francisco é um fumante ativo. É bem doloroso
quando está sem cigarros e precisa dividir um com o amigo operador
da mesa de som na rádio. Mas Francisco tem esperanças de que tudo
possa melhorar. Não sabe como. Mas tem esperanças. A esperança
parece ser um mecanismo da consciência humana capaz de
transmitir uma mensagem ao Criador.
Coincidência? Bem, outra vez a “helicoidal” está se movimentando
com ventos a favor.
Ha um viajante de Recife que semanalmente visita Natal vendendo
gravações de comerciais de rádio de um estúdio de gravação para os
comerciantes locais. Ele descobre Francisco e se interessa pelo
jovem locutor de voz muito significativa. O viajante passa na rádio,
mas Francisco ainda não chegou.
- Você conhece o Paulo Carneiro Leão? Aquele viajante da
gravadora de Recife? - Pergunta o operador da mesa de áudio.
- Já ouvi falar. Mas não conheço pessoalmente.
- Ele esteve aqui hoje pela manhã a sua procura!
- Procurando por mim? Sobre?
- Não sei! Ele quer falar com você! Deixou esse papel com o
endereço do hotel onde está hospedado. E pediu pra você dar uma
passada lá após o jornal do meio-dia.
- O que será que ele quer comigo? - Pensa Francisco.
241
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
T
erminado o noticiário que apresenta na rádio ao meio-dia, ele
vai ao hotel e procura pelo Sr. Paulo Carneiro. Momentos
depois o senhor aparece. É um homem já de certa idade. Deve
ter mais de sessenta anos.
Após se apresentarem ele pergunta:
- Escuta! Você não gostaria de trabalhar em Recife nas gravadoras?
- Imediatamente Francisco recorda o conselho que ouvira do amigo
Carlos Alberto. Mas parece indeciso. A proposta o pegou de
surpresa.
- Você pode pedir uma licença na rádio, de uma semana e ir comigo.
Eu regresso a Recife sempre no sábado e na quarta-feira estou em
Natal de novo. Se você não gostar volta comigo. Mas tenho certeza
que você vai gostar! Sua voz é muito boa e podemos aproveitar você
muito bem lá na gravadora Cinesom.
Francisco então lembra que o irmão Pedro já está residindo em
Recife, transferido para o Quartel Geral da Aeronáutica, na capital
Pernambucana.
- Pois é! Eu até tenho um irmão que está morando lá. Estive em
Recife ha poucos meses atrás no casamento dele. Vou ver se consigo
a licença na rádio.
Combinam para se encontrarem no Hotel no sábado logo cedo, caso
ele resolva viajar.
Francisco conversa então com seu amigo diretor da Rádio Trairi,
falando dessa oportunidade e ele prontamente, não só lhe concede a
licença, mas também o estimula a ir e lhe adianta algum dinheiro
para a viagem. No sábado está a caminho de Recife após contatar o
irmão Pedro. O Sr. Paulo Carneiro deixa-o na residência do irmão no
bairro deAfogados.
242
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
a segunda -feira logo cedo o irmão Pedro, a caminho para o
Quartel, deixa Francisco no edifício onde se localiza a
gravadora no centro da cidade. É cedo. Oito horas.
Francisco sobe pelo elevador e se apresenta no estúdio. Apenas o
proprietário está lá quando ele chega.
- Ah! Você é o rapaz de Natal! O Paulo me falou de você! Estamos
curiosos para ouvir sua voz. Ele afirma que você é um excelente
locutor!
Permanecem conversando. O homem fica mais empolgado ao saber
que Francisco também é redator publicitário.
E explica que acontece de chegarem muitos trabalhos através dos
próprios clientes e ha necessidade de um bom redator.
Aos poucos os locutores free-lancers e demais funcionários da
gravadora vão chegando. Francisco vai sendo apresentado a cada um
deles. O Paulo Carneiro Leão chega também e já entrega a Francisco
o breafing de alguns textos para redigir.
Francisco redige os textos e grava alguns em dupla com os melhores
locutores comerciais de Recife nesta semana.
O amigo Carlos Alberto tinha razão. Ele se iguala a qualquer um
deles.
Resolve então, ficar em Recife uma semana. Paulo Carneiro volta na
quarta-feira à Natal, já levando algumas gravações feitas por
Francisco em Recife.
No sábado seguinte Paulo Carneiro está de volta. Mais trabalhos de
redação e locução para Francisco, que durante a semana também
gravou textos comerciais para rádios e TVs de Recife, com ótima
receptividade entre as agências de propaganda.
243
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E
stá começando um novo ciclo profissional para o jovem
locutor. Já faz 15 dias que Francisco está experimentando a
nova oportunidade profissional na capital pernambucana.
Nesse período, já ganhou mais dinheiro do que ganharia em um mês
em Natal.
Já pode mandar algum dinheiro para a esposa. E um recado, através
de Paulo Carneiro.
- Diga a ela que vou ficar aqui mais quinze dias. Que ela vá se
organizando para a mudança.
Um mês depois, com a ajuda do irmão Pedro, Francisco já alugou
casa para morar com a família no bairro de Jardim São Paulo.
Volta à Natal para providenciar a transferência definitiva com sua
família.Um novo passo está dado. Ha um futuro promissor exigindo
que ele se posicione em sua nova trajetória.
Ha um novo astral em sua família. A nova oportunidade profissional
em Recife veio na hora certa.
Graças a Deus por intermédio de Paulo Carneiro Leão. ACASO? Ou
algo providenciado pela Lei Suprema de causas e efeitos?
Francisco agora já pode voltar ao exercício de suas leituras. Comprar
os seus livros. Já ha uma grande carência acumulada pela falta de
dinheiro. Volta a ler avidamente.
O passo seguinte, é entrar para o círculo de locutores profissionais
também no Estúdio Center, uma outra produtora de áudio e cinema
publicitários. Seguindo a orientação de seus companheiros
Fernando Freitas e Rudi Barbosa. Através da Center ele vai
experimentar sua primeira aparição no vídeo, como garoto
propaganda em um comercial de TV. Essa oportunidade é ímpar,
para projeção também de sua imagem. Logo surgem outros
comerciais de TV.
244
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
R
ádio Jornal do Commercio. Devia estar registrado em algum
arquivo velado da Natureza que dirige os destinos dos seres
humanos, que o locutor Francisco Elias faria parte de seus
quadros. O companheiro Ribas Neto, também locutor nas
gravadoras, vai chefiar a nova equipe de locutores da Rádio. E tem
um convite para Francisco:
- Elias! Eu gostaria que você participasse do nosso quadro de
locutores na Jornal do Commercio. Estou reformulando o quadro e
preciso muito de você. Vamos lhe colocar em um horário que não
atrapalhe seus trabalhos free lancers aqui na gravadora. De meiodia às três da tarde, certo?
No dia seguinte, Francisco já vai iniciar sua atuação na rádio. Uma
emoção. Um momento especial.
Ao entrar pela primeira vez na cabine de locução. Ha uma mesa bem
grande com um microfone pendurado sobre ela. Francisco senta e
aguarda. Suas lembranças o levam de volta rapidamente a Caicó.
As cenas passam rápidas. Lá está Inácio Bezerra na mesa de cervejas
no bar da Pracinha, com aquele amigo interessado em levar
Francisco para Recife. Para esta rádio. Lá está também, em rápido
flash de sua lembrança, o amigo Vicente Modesto, o do cafezinho,
lhe recomendando para ir embora de Caicó. Francisco está
realmente emocionado.
Estava escrito. Um dia trabalharia nessa emissora de rádio. Pensa
ele. O operador da mesa de áudio dá sinal através da janela de vidro,
avisando que vai abrir o microfone. E Francisco inaugura a sua voz
pela Jornal do Commercio. Um momento para jamais esquecer.
Agora pode realmente sentir a enorme distância em termos de
grandeza, entre o microfone humilde do SPVS e uma grande
emissora de rádio como esta. Recife estava predestinada em seu
roteiro profissional.
245
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Q
ue mão estaria agendando esses “acasos” em sua vida? Uma
escalada profissional, pontilhada de fatos relevantes. Uma
realização pessoal na profissão que escolhera. Sem dúvida. É
motivo de muita satisfação, saber que seu nome está agora vinculado
aos grandes profissionais do rádio no Nordeste, afinal, Recife é
nesse momento o maior celeiro, já tendo revelado grandes nomes.
Francisco sente-se orgulhoso com as oportunidades que aos poucos
vão surgindo.
Não demora muito, acontece uma grande chance, pelas mãos do
amigo Fernando Freitas, também locutor, já muito prestigiado no
meio profissional, cuja empatia com o jovem Francisco foi imediata,
de ambas as partes. Bons amigos dali em diante.
Ele acaba de receber um convite prestigioso. Vai chefiar a equipe de
locutores do Canal 6, TV Tupi, Emissora do grupo das Associadas,
criado porAssis Chataubriend.
- Elias! Como vai seu trabalho na Jornal do Commercio? - Fernando
quer saber.
- Vai indo!
- Tenho uma proposta pra você!
Fernando então lhe fala do convite que recebeu e que deseja levá-lo
também para a televisão Canal 6. Locução em off. Trabalho parecido
com o do rádio. Nesse tempo nada é gravado antecipadamente. Tudo
é feito ao vivo.
Uma cabine de locução. Um monitor de TV em Preto e Branco, um
microfone sobre a mesa e uma pequena pasta com os textos de
chamadas e créditos da programação, textos comerciais, textos
foguetes para serem lidos na transmissão do futebol, tudo ao vivo.
A luz vermelha acende e o locutor fala o texto. Explica Fernando.
Não ha ainda a televisão moderna, em cores. Que só acontecerá dois
anos depois. A opção está feita. Francisco troca a Rádio Jornal do
Commercio pelo trabalho na TV Canal 6. Um novo passo. Novo
246
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
desafio. Novas conquistas.
Com pouco mais de um ano de Canal 6, surge outra grande chance.
A televisão vai fazer testes com os seus locutores e escolher um para
ocupar uma cadeira nos tele-jornais da emissora. São cinco locutores
a fazer o teste. Escolheram Francisco. Outra vez “o acaso?”. Pois
este será seu grande marco na carreira profissional em Recife.
A partir dai surgirá um novo astral totalmente renovado. A força da
imagem. O talento que vai mostrar outras faces.
Novas revelações. Novo aprendizado. Novos momentos para seu
crescimento profissional. E também, o inevitável.
Agora Francisco vai descobrir um outro lado da força de sua imagem
no público feminino.Vai sentir o impacto do assédio.
As relações no casamento nunca melhoram. Estacionaram, mas não
melhoram. Apesar das novas perspectivas financeiras da família.
Sandra cumpre exemplarmente as suas funções de dona de casa
cuidando dos filhos e da casa. As meninas estão na escola, tudo
parece normal. Ou quase tudo.
A nesga de amor entre os dois estreita-se ainda mais. Ha dias em que
Francisco pensa que vai se romper. Não há possibilidade de um
diálogo mútuo adequado e estabilizador. Ele continua lendo muito.
Mas Sandra não assimilou a leitura. E não consegue acompanhar
culturalmente a evolução de esposo. Isso é um dos motivos do
crescente distanciamento de ambos. Francisco se ressente em não
poder discutir idéias inovadoras com sua companheira, sobre
assuntos que ela desconhece. Ele até teme magoá-la ao tentar buscar
algum diálogo cultural. Algumas vezes até já tentou. Mas a conversa
é só um monólogo. Ele então evita as conversas de natureza literária.
Ha um fato novo em suas vidas.
Marina, irmã de Francisco, que já residira com eles em Natal agora
247
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
está de volta para ficar com eles em Recife. Deseja continuar
estudando e trabalhando. Está buscando sua oportunidade na vida.
Outra vez ela é acolhida por eles. Vai ser sempre assim entre os filhos
de Pedro e Josina. Ha sempre um estendendo a mão para o outro. Que
maravilha de exemplo! Que herança de personalidade maravilhosa
seus pais os havia ensinado. Talvez adivinhassem que no futuro seus
filhos iriam necessitar desses vínculos.
Jardim São Paulo é um bairro distante do centro.
Uma pequena casa numa rua de terra, ainda não calçada. Mas dá para
acomodá-los bem. O dia todo ele precisa estar na cidade. Só volta à
noite. Agora seu tempo se divide atendendo o chamado das
gravadoras durante o dia e à noite no telejornal da TV.
A primeira dificuldade onde residem, é o barulho ensurdecedor das
aeronaves voando baixo na direção de pouso do Aeroporto
Guararapes. Passam a não mais que 100 metros sobre as casas. As
meninas têm dificuldade em se habituarem enquanto dormem.
Geralmente acordam sobressaltadas com o ruído. Mas algumas
semanas depois já se acostumaram. O ser humano tem a capacidade
de se adaptar ao meio, como nenhum outro animal.
A imagem do nosso locutor e noticiarista de TV agora chega a Caicó
através das repetidoras do Canal 6. Um orgulho para a cidade.
Principalmente para a família de Pedro Elias. O seu filho é o locutor
da televisão, entrando em suas casas todas as noites de segunda a
sábado.
Sua primeira visita à cidade no período da Festa de Santana é um
acontecimento especial.
- Olha lá! É o Chico Elias! O nosso repórter da TV! - Acenam as
pessoas quando ele passa.
Sua auto-estima está muito elevada nesse momento. A “helicoidal”
248
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
está mesmo sacudindo a sua vida.
- Francisco Elias! Como vai? - É o Thiago, dirigente de um centro
espírita kardecista que o cumprimenta pelos corredores da TV Canal
6.
- Olá Thiago! Como vai seu programa de Rádio.
- É exatamente sobre isso que eu quero lhe falar.
Thiago mantém um programa de rádio semanal na Rádio
Tamandaré, uma co-irmã das Associadas existente ali no mesmo
prédio da TV.
- Estou precisando muito de sua colaboração.
Diz Thiago.
- Como assim?
- Precisamos de um locutor, como você, para ajudar na
apresentação de nosso programa. Ha muito material, notícias e
crônicas, que será bem melhor se apresentado por um locutor
profissional.
- Está bem. É uma vez por semana, não é?
- É sim. Você pode nos ajudar?
- Qual é o dia do programa?
- Gravamos o programa todas as quintas-feiras à noite. E vai ao ar
nas sextas às 22h00.
Em meio a tantos outros locutores naquele ambiente, não só da TV
mas também da Rádio clube de Pernambuco e a Tamandaré, no
mesmo prédio... Por quê Thiago escolheu exatamente ele? Ah!
Francisco! Você não sabe. Mas a mão do Grandioso está agendando
um fato importante em sua vida e você vai precisar desse centro
espírita. Como veremos tempos depois. Não será uma coincidência.
Francisco já leu algumas obras de Allan Kardec, O Livro dos
Espíritos, O Evangelho Segundo o Espiritismo e outras obras
correlatas de vários autores, incluindo Chico Xavier e obras
249
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
psicografadas transmitidas pelo espírito de Emmanuel e tem
interesse em pesquisar o espiritismo mais de perto.
Essa pode ser uma boa oportunidade.
Aceita o pedido de Thiago e passa a colaborar com ele na
apresentação do programa. (Ver foto). O centro de Thiago se
notabiliza pelas ações de socorro espiritual, receituário mediúnico e
de desenvolvimento de novos médiuns.
Será outra ocasião para ponderações sobre a mão do destino, acaso,
ou Lei do Carma, seja qual for a opinião que se tenha sobre fatos
dessa natureza, que marcam a vida das pessoas, inclusive a do nosso
locutor.
O grande acontecimento da cidade no momento é o concurso anual
da Miss Pernambuco. Um evento que o canal 6 de Recife transmite
ao vivo direto do Ginásio Geraldão. É o primeiro ano do concurso
com transmissão em cores pela televisão.
Francisco é escalado para a apresentação do evento, juntamente com
a amiga Carmem Tovar, também apresentadora do Canal 6. (Ver
foto)
Um grande momento de sociedade e de beleza. O ginásio está super
lotado. Ha representantes de muitas cidades do interior. E na capital,
incluem-se vários clubes, sociais e de futebol. Uma festa lindíssima.
Muita animação. Cada torcida leva ao Geraldão a sua charanga. Para
fazer ruído e torcer com a presença de sua candidata na passarela.
Como a transmissão é ao vivo, tudo tem que ser bem cronometrado.
Ao término de cada etapa do desfile, que são três ao todo: em roupa
social, em roupa representativa e em maiô, ha os intervalos
comerciais. Que duram no máximo 5 minutos. Tudo tem que andar
muito rápido.
Nos bastidores ha muita agitação. Meninas que ajustam a
250
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
maquiagem, outras o cabelo, outras que choram de nervosismo,
outras que passam quase peladas só de calcinha trocando de roupa às
pressas, peito de fora, tudo que se possa imaginar em algo assim tão
apressado pode ocorrer, quando existem mais de vinte candidatas
concorrendo ao título.
Ha um momento decisivo, em que o juri escolhe apenas 5 candidatas
e através delas serão escolhidas as 3 finalistas. Nesse momento ha
uma indecisão do juri. Um empate. Isso não estava previsto. E por
alguma razão está demorando mais que o normal para sair o
resultado final.
A comissão do júri confabula e não decide à tempo. Os 5 minutos do
intervalo comercial já se foram e a emissora está rodando mais 3
minutos de comerciais. O telespectador não tem paciência. A
audiência deve estar caindo. O que é totalmente imprevisto. Mais
que isso é inaceitável. Uma situação atípica e totalmente
imprevisível. Estava tudo tão bem programado...
Com vários ensaios e tudo mais...
Ninguém sabe o momento exato em que o júri vai decidir qual a
candidata vencedora. Pelo serviço de comunicação interna através
de pontos de ouvido Telex, os apresentadores são avisados da
situação imprevista:
- Elias e Carmem! - Eles se encontram agora nos bastidores. - Vão
para o palco! Tentem enrolar como puderem, pois já rodamos os
comerciais duas vezes e a transmissão tem de continuar. Inventem
alguma coisa! - Grita pelo fone de ouvido o moço que dirige a
transmissão no caminhão de externa.
Eagora? É o jeito! Vamos fazer o quê? Pensa Francisco entrando no
palco. Carmem que o acompanhava, sente as pernas fraquejarem e
retorna às pressas para os bastidores, deixando Francisco sozinho
251
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
entregue às feras.
Em fração de segundos Francisco imagina uma maneira criativa de
embromar a platéia, para estender o máximo que puder o tempo de
chegada do resultado.
Inspiração Repentina! Sem tempo para avaliar se daria certo ou não!
Lembrou-se das inúmeras torcidas organizadas ali presente. Os
clubes de futebol!
Eis a grande saída para ganhar tempo!
- Atenção Elias! Câmera 1 em Elias! - Grita o diretor de TV Adel
Barros. - Vai! Elias!
Francisco tem à mão uma folha de papel. O público imagina que ele
já está com o resultado nas mãos.
- Vamos saber agora, quem é a candidata eleita ao Miss
Pernambuco deste ano!....
Todas as charangas fazem um grande barulho. Claro, cada torcida
espera que sua candidata seja a vencedora.
- Quero saber aonde está a torcida do Sport Clube do Recife!
O ginásio vem abaixo com tanto barulho! Todos estão pensando que
a vencedora do concurso foi ela.
- Mas a do Esporte? Exclamam torcedores do Náutico.
O diretor de TV está gritando feito maluco lá dentro do caminhão de
externa.
- Virem as câmeras para a platéia! Câmera 3 Me dê a torcida do
Sport!
Até ele, que não sabia de nada, também torcedor fanático do Esporte,
imaginou que a candidata era a vencedora.
- Injustiça! Injustiça! Injustiça! Uuuuuuu! - Fazem côro algumas
senhoras da melhor sociedade local, sem poder aceitar aquele
resultado.
- A candidata do Náutico é dez vezes mais bonita que aquela moça!
Isso é um desclabro! - Esbraveja uma delas.
252
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Impressionante! Dali de cima do palco nosso apresentador observa o
impácto de sua informação sobre aquela platéia apaixonada. Como é
fácil conduzir as massas... Pensa ele.
Já começam a vaiar a comissão julgadora. Alguma coisa tem que ser
feita. E Francisco resolve assumir de novo a situação. Até aí rolou
cerca de um minuto com o borburinho da platéia.
O apresentador está ao microfone chamando a atenção do público,
informando que houve um engano. Silêncio total.
- Mas que cacada foi essa? Desabafa o diretor de TV que está
conduzindo a transmissão. Quando a pressão baixa na platéia,
Francisco continua:
- É!... Vocês me desculpem, mas eu... preciso saber onde está a
torcida do Náutico!!! E bota mais empolgação na chamada.
O ginásio vem abaixo outra vez. A torcida do Náutico responde com
grande entusiasmo. O público delira. Uns aplaudem.
Outros assobiam. Imaginando que sua candidata é a vencedora.
A essa altura, a ficha já caiu para o diretor de TV, que não é bobo.
Alguém acaba de lhe informar que o resultado ainda nem saiu. Já
sacou a grande saida de Elias!
E berra de empolgação no interfone:
- FECHA NA TORCIDA DO NÁUTICO! - Beleza Elias! Uma idéia
genial! Câmera 2, Fecha na moça que está chorando!
Já se foi mais um minuto. De novo a temperatura baixa na platéia.
- Está tudo muito bom! - e olhando para o papel que tem nas mãos o
apresentador continua - Mas eu tenho a maior surpresa para vocês!
Alguém ai sabe onde está a torcida do Santa Cruz!
Em meio a toda essa empolgação o público já concluí alguma coisa:
ele está mexendo com as torcidas das candidatas finalistas! Portanto,
a vencedora deve estar entre elas. Cada charanga queria fazer mais
253
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
barulho que a outra.
Minha nossa senhora! Exclama Adel Barros, o nosso diretor de TV,
que por sinal é ateu confesso, dando saltos de emoção lá no
caminhão de externa.
E assim por diante, Francisco mantém a agitação por mais de 5
minutos, até chegar a decisão do juri.
Ao ser anunciado o resultado definitivo, a Miss Pernambuco foi
outra completamente diferente. Venceu Serra Talhada.
As torcidas chiaram e espernearam de descontentamento. Mas a
transmissão ao vivo foi salva. Mexendo até com o público de casa
que acompanha pela TV.
Tão logo percebeu a armação de Francisco para ganhar tempo, a
amiga Carmem se apressou a entrar no palco e também participar da
brincadeira.
Não sem antes Francisco cochichar no seu ouvido:
- Não deixe ninguém perceber que é de mentirinha! - Na televisão
tudo é assim. Tudo é irreal, mas tem que parecer que é real.
Terminada a transmissão Francisco está lá atrás no caminhão de
externa recebendo os cumprimentos dos companheiros de trabalho e
também da própria diretoria das Associadas, que logicamente
percebeu o engenho de sua criatividade para salvar a transmissão.
- Você foi um artista! - Exalta o diretor da transmissão. Nesse
momento, Francisco lembra de algo. Como se alguém houvesse
batido no seu ombro lhe lembrando: - “Esse meu filho um dia ainda
vai ser artista!” Vovô Pai Chico Elias! Está sendo lembrado naquele
momento por algo que lhe dissera a mais de trinta anos atrás.
Televisão tem ritmo. Se sair do compasso o telespectador percebe e a
audiência cai automaticamente. E a melhor fórmula é a emoção.
Ninguém havia ensinado aquilo a Francisco.
254
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E
le estava descobrindo ali, na prática, na base do improviso e
da imaginação. Quem sabe lidar com ela está sempre bem no
vídeo. Profissionalmente, até aquele momento, essa era a sua
maior emoção. Salvar do caos uma transmissão ao vivo na televisão.
Logo essa! O primeiro Miss Pernambuco transmitido em cores!
Apenas com um gesto de criatividade.
- Está certo vovô! Isso foi coisa de artista mesmo! - Pensa ele,
rendendo suas homenagens ao avô já falecido. Seu ego hoje vai
dormir muito satisfeito. Com alguns whiskys a mais para amaciar.
Francisco nesse tempo segue o ritmo dos pernambucanos.
Afinidades com o copo. Não por vício. Por diversão. Até o dia em
que, por excesso tolo, sofre uma crise de pre-coma alcoólico.
Retirando disso um bom aprendizado.
Que não devemos abusar da capacidade de nossa máquina corporal,
que a natureza nos deu perfeita. E que muitas vezes distorcemos e
adoecemos por motivos fúteis, desde o vício, diversão, até a vaidade.
A dor vai ensinar essas coisas a Francisco. Como tantas outras que a
humanidade aprende a duras penas.
É julho. Mês da tradicional Festa de Santana em Caicó. Quem mora
longe sempre arranja um jeito de estar lá. É a oportunidade de se
rever todos os amigos que também se foram para longe da cidade
natal.Alguns para bem longe.
Só na família dos pais de Francisco são treze irmãos ainda vivos
nessa época. São Paulo, Rio de Janeiro, Natal, Recife, espalhados
por vários lugares pelo Brasil a fora.
A época é propícia para os reencontros também em família.
Francisco está indo de Recife levando dois casais amigos,
companheiros da TV. Fernando Freitas e Adel Barros. Vão com suas
esposas conhecer Caicó. Vai ser esta também a primeira vez que a
255
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Festa de Santana será mostrada ao Nordeste, pela Televisão Canal 6
de Recife.
Estão indo de automóvel. De Recife até Caicó durante a viagem são
ingeridas três garrafas de Pitú, uma em cada parada estratégica,
lavadas depois com uma cerveja. Coisa de maluco. Isso irá custar
bem caro a Francisco.
Já em Caicó seu pai convida-o para fazer uma visita especial.
- Francisco vamos fazer uma visita ao compadre Ezequiel! Ele está
muito doente! Já vive acamado. Todos estão achando que ele vai
morrer breve. - E se dirigem para a residência do Padrinho Ezequiel.
- Ha quantos anos você não vê seu padrinho?
- Acho que já faz uns dez anos!
Chegando lá são recebidos com entusiasmo pela madrinha Gizélia.
- Mas olha quem está aqui! O nosso repórter da televisão! - Abraça
Francisco com muito afeto e cumprimenta o compadre Pedro, como
sempre, com seu largo sorriso nos lábios.
- Vamos lá dentro! O Ezequiel vai adorar a sua visita Chiquinho!
Ainda gosta muito de raspa de queijo?
- Muito! Madrinha Gizélia! Pena que agora por onde eu ando não
tem dessas coisas!...
Estão entrando no quarto do padrinho Ezequiel. Ele já se arrumou
sentando recostadamente nos travesseiros da cama. Francisco
cumprimenta-o com muita alegria.
- Chiquinho! Mas que surpresa agradável a sua visita!
Ele ainda fala normalmente. A doença ainda não o definhou tanto.
Francisco evita falar de sua doença. A conversa animada gira em
torno do sucesso do afilhado na televisão.
- Mas compadre Pedro! Quem diria hein? Que o nosso garoto
medroso, acostumado a levar carreira de raposas seria hoje uma
pessoa tão famosa!...
256
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Todos estão muito felizes pela visita de Francisco. Seu pai não cabe
de orgulho. Apenas retribui com seu sorriso de satisfação. A
madrinha Gizélia já está voltando ao quarto com uma bandeja de
café fumegante.
- Não tem raspa de queijo! Mas tem um queijinho de manteiga muito
bom! Experimentem!
Receber bem é uma característica natural de todas as damas de
Caicó. Após uma meia-hora de muita prosa, com o padrinho
querendo saber todos os detalhes do trabalho na televisão, eles se
despedem e se retiram.
Foi um reencontro inesquecível. E confortável para seu padrinho e
sua madrinha. Essa é a última vez que Francisco vai estar com seu
padrinho em vida.
Pouco mais de um ano depois ele se vai. Assim é a vida. Todos
viemos. E todos iremos. Inexoravelmente.
Pedro Elias tinha dessas coisas! A sua vaidade pessoal passava
também pelo prazer de dar alegria a outras pessoas. Ele imaginara
que o compadre Ezequiel, em reta final aqui na terra, teria seu
espírito muito avivado com a visita do afilhado, agora famoso.
- Qual é a doença do Padrinho Ezequiel Papai?
- Dizem que é doença do fígado! Não sei! Acho que deve ser um
câncer.
Logo estão de volta em casa. Os preparativos do grande almoço em
família para umas trinta pessoas, já estão avançados.
Dois dias de Festa em Caicó, divertindo-se com os amigos da
televisão. Dois dias de exageros no copo.
Logo pela manhã uma grade de cerveja é depositada na geladeira.
Igualmente com três garrafas de Pitú.Adel prefere geladinha.
Passeios pelos banhos de açude. E mais bebida.
À noite, passeios pela Pracinha da Liberdade, local de grandes
257
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
recordações e reencontros. E mais cerveja e whisky.
Mais tarde, em um dos bailes em algum clube, mais cerveja, mais
whisky. Sem contar os intervalos para almoço e jantar, preparados
com muito zelo por Josina e sua cunha Maria Grande. Também
regados a muita bebida.
A tia Maria. Irmã de Pedro Elias, sempre está presente. Juntamente
com o tio Cícero, por quem os filhos de Pedro Elias e Josina têm
verdadeira adoração. Às vezes até provocando ciúmes em Pedro
Elias.
O tio Cícero nunca tivera filhos. A esposa é estéril. Talvez por isso,
seus sobrinhos o acarinhassem tanto. Agora mesmo ele está dando
risadas ouvindo um acontecimento muito divertido com ele
imaginado pela astúcia felina do sobrinho Pedro. Ambos muito
apreciadores de uma galinha bem torrada. Diziam até que os galos da
redondeza cantavam de tristeza, quando Pedro Elias Filho e o tío
Cícero se juntavam para degustar umas penosas.
Certa ocasião, vindo de Natal para Caicó à noite num fusca,
Francisco, o primo Miguelzinho e o irmão Pedro, dão com uma
raposa (a maior inimiga das galinhas) correndo à frente do carro na
pista.
- Passa por cima! Passa por cima! - Exulta Pedro.
Francisco dirige o automóvel e mira na raposa. Ouve-se os batuques
dela por baixo do carro. Nessa fração de segundos Pedro está
imaginando uma safadeza para o tio Cícero.
- Para o carro e dê meia-volta. Ela deve estar morta! - Diz ele. Qual
nada! O pneu não atingiu a raposa. Ela apenas embolou por baixo do
carro mas conseguiu se safar. Cinco minutos depois, Pedro ainda
procura pela raposa na cerca de pedra que margeia a estrada.
- Vamos embora, rapaz! Ela escapou! - Convida o motorista. - Por
quê tanta insistência em achar essa raposa?
Pedro então revela a sua maquinação. - Eu pensei em levar essa
raposa morta e colocar na porta do Tio Cícero para ele encontrar de
manhã cedo ao acordar. E pensei em deixar uma carta escrita pra
258
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
ele. Um testamento da raposa: - Camarada Ciuço! Lamento mas me
pegaram! Então deixo pra você todas as galinhas da redondeza! É
meu presente de despedida!
Ou seja, Pedro igualava o tio Cícero à uma velha raposa devoradora
de galinhas e frangos. Esta é a família dos divertidos Elias.
A tia Maria está lá na cozinha administrando o tempero das panelas
cheirosas para servir o almoço. Uma pessoa maravilhosa. Cozinha
como ninguém. Vem auxiliar Josina nesses grandes momentos.
Soltando um prato de buchada para o pessoal fazer tira-gosto
enquanto o almoço é esperado. Sua buchada de bode e o carneiro
torrado não têm igual.
Nessa festividade toda, dois dias passam rápido. No retorno, via
Campina Grande, Francisco sofre terrível crise de fígado, chegando
a perder os sentidos no percurso entre Campina Grande e João
Pessoa. Vomitara bastante!
Apagou completamente. O amigo Fernando, que não por acaso,
também é médico, com uma mão segura o volante e com a outra,
segura-lhe o pulso e não gosta do que acaba de perceber.
- Ele está quase sem pulso! - Exclama ele preocupado.
Fernando não conhece a rodovia. Não tem noção das distâncias entre
Campina Grande/João Pessoa. É por lá que estão indo. Pisa no
acelerador procurando encontrar uma farmácia na cidade mais
próxima. Seria bem mais rápido de onde estavam, dar meia-volta e
retornar a Campina Grande. Mas ele desconhece as distâncias e vai
em frente.
Francisco está com um tom de pele esverdeado. Fernando sabe o que
isso significa. O sangue não está circulando bem. A pressão está
muito baixa. Mais alguns minutos intermináveis e surge um posto de
combustível à beira da estrada.
- Meu amigo! Qual é a cidade mais próxima? - Pergunta fernando já
259
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
um tanto aflito.
- É Santa Rita! Logo ai na frente!
Ele pisa o acelerador com vontade. A última vez que Francisco havia
vomitada parecia ser bílis. Já quase desidratado. Já vomitara tudo
que havia no estômago. Cinco minutos depois Fernando pára diante
da primeira farmácia que encontra. Francisco está sendo retirado de
dentro do veículo. Adel e Fernando seguram-no pelos braços. Quase
voltando a si, Francisco vê prateleiras em sua frente. São os
vasilhames de remédios. Mas ele está delirando. Imagina que estão
entrando com ele em um bar. Só vê garrafas de cachaça, whisky e
cerveja a sua frente. Ainda consegue pensar: - Estão me levando para
o bar! Não quero beber. Eles vão me matar! Só pensa. Não consegue
falar. Perde os sentidos novamente.
Quinze minutos depois está despertando, amarrado a uma cadeira de
encosto. Tem uma siringa espetada em sua veia do braço direito.
Fernando está a sua frente. Procura reanimá-lo.
- E aí! Véio! Está se sentindo melhor? - Francisco está muito fraco.
Ainda não consegue articular as palavras. A cena com a cabeça que
sim. O mundo parece rodar sem parar. Sua boca está amarga e
totalmente seca. A língua lhe parece língua de papagaio. Fernando
explica:
- Aplicamos Plazil no músculo para inibir a ânsia de vômito. E
estamos aplicando soro na veia. Vamos aguardar um pouco. Você
está quase totalmente desidratado.
A ação do soro é incrível. Meia hora depois Francisco já está
novamente corado. Restabelecido para continuarem viagem para
Recife. Na saída da cidade Fernando lhe entrega um côco verde
super gelado. Francisco está morrendo de sede. O coco está fechado.
Olha para Fernando sem entender.
- Vá lambendo esse coco!
260
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Fernando estou com muita sede! Minha lingua está seca!
- Você não pode ingerir nada! O que bater dentro vai provocar nova
ânsia de vômito. Vai ser pior.
- Vá lambendo o coco! Lentamente!
Somente uma hora depois, ele parou a beira da estrada para abrir o
côco entregando a Francisco com um canudo. Mesmo assim
recomendando seriamente:
- Vá bebendo bem devagar! Não insista em tomar grandes goles. Vai
ter problema se fizer isso! Você quase foi embora véio! A sorte foi
achar-mos logo uma farmácia! Seu quadro estava preocupante!
Mas a gente só morre na hora certa... Não é?
Fernando também é espírita. Já conhecia bem as orientações da
doutrina Sua esposa Lurdinha é uma médium das boas, em processo
de desenvolvimento mediúnico. Francisco faz parte de seu grupo lá
no centro espírita. Algumas experiências fantásticas com a realidade
dos espiritos eles ainda vão conhecer.
Recomenda que Francisco procure um tratamento médico
adequado. E indica um de seus professores na Faculdade de
Medicina. O médico é muito minucioso e quer saber todos os
detalhes daquele acidente de saúde. Francisco relata a viagem desde
que sairam de Recife até a volta.
- Vocês são uns inconseqüentes! - Diz médico. - Essa coisa de beber
cachaça e lavar com cerveja é um atentado ao organismo físico. Não
se mistura bebida destilada com bebida fermentada. São produtos
fabricados quimicamente através de processos completamente
antagônicos.
E explica a agressividade do processo, uma vez que o organismo
físico, através de seus órgãos de defesa procura produzir enzimas a
261
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
uma velocidade muito grande para tentar neutralizar a ação
agressiva da química ingerida. E nesse processo contínuo, quando o
paciente continua ingerindo mais bebida alcoólica o organismo
perde as suas referências provocando a completa instabilidade dos
órgãos internos.
- Sabe o que você teve? - Pergunta o médico. - Um pré-coma
alcoólico. Foi sorte sua que o Fernando estava com vocês. Se
estivesse viajando sem a companhia de um médico, seu organismo
teria entrado em colapso absoluto e você teria morrido.
Esta lição dolorosa já está bem arquivada na mente de Francisco.
Nunca mais, em toda a sua vida, tomaria bebida fermentada
misturada à outra bebida destilada.
O médico quer saber:
- Você é viciado em bebida?
- Não doutor! Bebo apenas por diversão.
- Então ótimo. O tratamento vai ser fácil.
Receitou algumas medicações que deveriam ser ingeridas durante
dois meses. E impôs a necessidade de uma abstinência total de álcool
durante seis meses.
Francisco continua trabalhando na televisão. Hoje faz seis meses que
eu não bebo! Pensa ele. Vou comemorar com uma cerveja. Vizinho à
televisão ha um buteco. Como sempre ao meio-dia, repleto de gente
comendo e bebendo. O amigo Adel Barros é um de seus mais
assíduos freqüentadores. Toma cerveja com alguns amigos, para
lavar a tal cachaça. Francisco experimenta tomar um copo de
cerveja. E a sensação é horrível. Está sentindo aquela sensação
terrível de caída da pressão, parecida com o que sentiu durante a
crise naquela viagem. Com um pouco de tontura e também ânsia de
262
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
vômito. Resolve então por conta própria ficar de quarentena ao copo
por mais seis meses.
O amigo Fernando depois lhe dá algumas explicações sobre o
fenômeno que sentiu ao tomar o copo de cerveja:
- O que ocorreu é que seu subconsciente armazenou a informação do
desequilíbrio de sua instabilidade interna e correlacionou esse
dado, provavelmente, ao sabor da cerveja. Daqui ha algum tempo
você tente novamente! - Sugere ele.
Assim faz Francisco. Mais seis meses se passou. Ele vai ao buteco.
Precisa experimentar. Mas desta vez prefere ingerir uma pequena
dose da cachaça Pitú. Beleza! Entrou sem reclamar. Entrou até
macio! Tomou mais algumas doses, mas evitou beber a cerveja.
Somente algum tempo depois experimenta outra vez a cerveja. Sem
misturar à cachaça. Um primeiro copo e o organismo não reclamou.
O segundo copo já não entra tão bem. E o terceiro copo, só com
algum sacrifício.
Definitivamente seu organismo estabelecera uma quarentena
definitiva. Parecia rejeitar a cerveja para sempre. E assim é, por todo
o resto de sua vida. Sem conseguir tomar sozinho uma única cerveja.
Mais uma lição aprendida a duras penas, que faz questão de passar
adiante. Talvez venha a ajudar alguém que também aprecie o
coquetel malígno cachaça/cerveja. Quem inventou isso devia ter
pouco juizo. E provavelmente, nenhum conhecimento sobre
rejeição física e ação das enzimas.
O cigarro é um forte coadjuvante da bebida. Francisco está tentando
parar de fumar. Mas não aprecia esses modelos de tentativas, para
deixar de fumar aos poucos. É preciso muita força de vontade e um
motivo bem estimulador para deixar o vício. E o motivo aparece.
263
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Justificando aquele raciocínio de que, quando o paciente está pronto
o remédio aparece.
Francisco está apresentando o telejornal da noite. Um pigarro lhe
atravessa as cordas vocais modificando completamente a sua voz.
Ele tenta, mas não consegue se desvencilhar do pigarro. O jeito é
forçar a barra tossindo diante das câmeras. Para sua vergonha. Foi
terrível, ter que pedir desculpas aos telespectadores daquele jeito.
Ali estava a motivação que precisava. Sua personalidade toma
decisões bem fortes às vezes. Ele decide parar de fumar
imediatamente.
- Mas assim! De vez? - Perguntam os amigos.
- Assim! Quem manda em mim sou eu!
- Só quero ver por quantos dias!... - Duvidam alguns deles. Tem que
parar de fumar aos poucos! - Insistem outros.
- Que nada! Tem é que ter vergonha na cara! Eu já disse! Parei
agora! Parei! Pronto!
Será que vai conseguir? Por duas vezes o vício do cigarro vai ter
participação significativa em sua vida. Veremos isso mais tarde.
Francisco reside agora no bairro de Boa viagem. Trabalha no centro
da cidade para onde vai diariamente, levando as meninas Elissandra
e Eliana para o Colégio São José, dirigido por freiras, também no
Centro. Meio-dia pega as meninas no colégio e as leva de volta para
casa. É hora do rush. A avenida Domingos Ferreira uma nova
paralela em Boa Viagem, nem bem inaugurou já está congestionada
na hora do almoço. Logo no início da avenida ha um terreno com
muito lixo, com algumas moradias de caixas de papelão, onde
crianças brincam na sujeira. Francisco aproveita para estimular as
meninas. Elas vão no banco de traz do automóvel.
- Minhas filhas! Olhem aquelas crianças ali brincando no lixo. Elas
264
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
estão ali porque não têm uma oportunidade na vida como vocês
duas. Mas são crianças iguais a vocês.
Não têm culpa se seus pais são tão pobres. Mas o mundo é assim.
Vocês devem agradecer a Deus! Estão vindo do colégio, uma escola
decente, de automóvel, vão para casa almoçar uma comidinha
gostosa, depois irão se divertir com seus brinquedos. Brinquedos
que aquelas crianças não têm.
As meninas escutam em silêncio observando as pobres crianças
enquanto o carro passa lentamente no trânsito congestionado.
- Aproveitem bem, minhas filhas! Dêem valor ao que a vida oferece a
vocês. Aquelas crianças poderiam ser vocês. Dêem graças a Deus.
Procura usar com elas uma linguagem que sabia era comum na
educação religiosa que certamente recebiam no colégio das freiras.
Sem dúvida, a imagem daquelas crianças nos monturos de lixo partia
o coração de qualquer um que tivesse alguma sensibilidade humana.
Porquê existem crianças tão pobres? Enquanto existem outras tão
ricas? Porquê tanta desigualdade na raça humana? Esse assunto ha
muito já fazia parte dos estudos espiritualistas de Francisco.
Agora ele já tem informação suficiente, para compreender que esse
quadro só é aceitável se levarmos em conta a categoria de planeta de
expiação humana, que cabe ao nosso orbe.
Um planeta tão lindo! Para entretanto, acolher tanto sofrimento e
desigualdade.
Que outra lógica melhor poderia explicar isso? Se Deus é
infinitamente justo e bom? É exatamente esse o motivo que o leva ao
estudo da Doutrina Espírita.
As obras espiritualistas têm lhe mostrado com muita exatidão que as
enormes diferenças que marcam os seres humanos na Terra são
resultado da Lei do Carma. Carma Coletivo, enquanto, cidade,
nação, ou planeta, e Carma individual.
265
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Esses estudos realizados semanalmente no centro espírita estão
corroborando idéias já observadas através das obras espíritas que
Francisco lê avidamente. Esse parece ser seu grande momento de
crescimento interior com base no conhecimento da espiritualidade.
Algo que ele absorve com grande entusiasmo.
São 02h00 da manhã. Francisco ainda lê na cama sob a luz do abajur.
Sandra acorda.
- Menino! Você ainda está lendo há essa hora?
- Pois é! Sandra! O livro está tão gostoso que o sono passou! - Outra
vez Francisco lembra as palavras do Padre Itan. “Vai ter um
momento que você quer parar de ler e não consegue!”. É o que está
lhe acontecendo agora.
Dias depois ali mesmo na cama, Francisco experimenta duas
situações espirituais diferentes numa única noite. Ele dorme ao lado
da esposa. Repentinamente percebe que está acontecendo algo
fantástico! Ele está levantando-se suavemente, flutuando no ar,
retirando-se de seu próprio corpo. Vê o corpo estirado na cama
enquanto se afasta subindo. É como se alguém ou alguma coisa
estivesse puxando-o para fora do corpo. A ação vai se acelerando!
Velozmente ele é retirado dali. Inicialmente uma sensação de
insegurança.
Mas logo em seguida ele se vê em sua cidade natal. Uma tarde
chuvosa em Caicó.
Onde encontra sua mãe. Ela chora. Está muito triste. Francisco não
sabe porque. Mas sabe que aquilo é um sonho consciente. Está
sonhando! Que esquisito! Após alguns instantes observando sua
mãe chorando, sua mente recebe um comando: voltar ao corpo. Já!
Rápido! E está voltando. De uma forma que não pode controlar.
Novamente flutuando à uma velocidade fantástica. - Estou
chegando! Estou chegando! Cheguei!
Que estranho sonho consciente! E estatela-se debatendo-se na cama,
266
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
com a língua enrolada, tentando chamar a esposa. Deve ter se
debatido, pois Sandra acorda.
- Elias! O que é isso? O que foi? Você teve um pesadelo? - Ele ainda
não consegue falar normalmente. Ela vai rápido pegar um copo
d'agua. Quando retorna ao quarto Francisco já está sentado na cama.
- O que foi que você sentiu? - Insiste ela.
- Se eu disser você não vai acreditar!
Toma o copo d'agua e dá os detalhes do mais espetacular sonho que
já teve em toda a sua vida. Procura se acalmar e tenta dormir
novamente.
Aquela é a sua noite do sobrenatural. Francisco adormece. Não sabe
precisar quanto tempo depois, já está novamente envolvido em outro
sonho consciente.
Está de volta à Caicó. É noite. Está sentado num sofá na sala junto ao
irmão José.
E sabe que estão ali porque vai acontecer um encontro espírita. Uma
médium que não sabe quem é, vai realizar a sessão espírita.
Conversa com o irmão mas ouve ao mesmo tempo o vozerio de
pessoas conversando na outra sala próxima.
Ha um fio pendurando do teto no meio da sala com uma lâmpada
elétrica acesa. De repente a luz da lâmpada vai diminuindo sua
intensidade, quase apagando. Uma mulher está entrando na sala a
passos bem lentos, vindo lá de dentro. Estranho!
É sua irmã Lurdes! Ela tem o rosto envolvido por uma luz azulada!...
Que esquisito!... E olha para a janela com a visão reta como se
estivesse hipnotizada. Em sua consciência Francisco percebe que
aquilo é muito anormal. Tenta segurar a mão do irmão ao seu lado no
sofá mas não consegue. O ambiente está quase totalmente na
escuridão. Só o rosto iluminado de sua irmã se destaca na sala.
267
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Novamente ele recebe em sua mente aquela instrução inapelável:
Voltar ao corpo! Voltar ao corpo! Voltar ao corpo!
E novamente acorda em sua cama. Desta vez sem arrebatamento. Já
está se acostumando àquele tipo de experiência. A esposa continua
dormindo ao seu lado normalmente.
O que significa que desta vez ele retornou ao corpo sem se debater.
Pondera por alguns instantes sobre os fenômenos e volta a dormir.
Francisco já está se acostumando a uma idéia que havia lido outro
dia em algum livro: “Aquilo que não tem solução. Solucionado
está”. É isso. Não adianta ficar matutando sobre isso se não vou ter a
resposta! - Pensa ele. Qualquer dia vai pedir ajuda a Thiago para ver
se compreende melhor o fenômeno.
Algum tempo depois, já residindo no centro da cidade próximo ao
Colégio onde as filhas estudam, não ha mais necessidade de apanhálas no colégio. Agora Francisco apresenta um telejornal ao meio-dia
na TV.
E é a vez de participar de uma outra vivência de ordem espiritual
muito intensa, porém envolvendo uma outra pessoa.
Sua amiga Carmem Tovar. Ela tem um programa feminino um pouco
antes do meio-dia. O amigo Roberto Nogueira, apresenta seu
programa após o telejornal. Portanto, é comum os três se
encontrarem na TV àquela hora.
- Oi! Elias! Estava esperando você! - Diz Roberto Nogueira.
- Tudo bem?
- Está sim! - Mas o amigo demonstra estar preocupado. Ele já está
informado da atuação de Francisco no centro espírita de Thiago.
- Eu quero falar com você é sobre Carmem!
- O que tem ela?
- Não é ela! É o filho dela! Carmem tem um filho de seis anos. E está
com um problema muito sério! Diz ela que o menino já foi levado a
268
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
tudo que é pediatra famoso de Recife e ninguém descobre o que ele
tem!
- E o que ele sente?
- Dores! Dores por todo o corpo. O menino não dorme há uma
semana. Ela diz que o menino está definhando. Não se alimenta
direito. E não dorme porque não há posição que possa ficar sem
sentir dor. Para ela está sendo um sofrimento terrível. Esperava que
os médicos descobrissem o que o menino tem. Mas até agora nada!
Então eu falei pra ela sobre você e o centro espírita.
Mas ela reagiu muito mal à minha sugestão! Disse que não quer nem
saber disso! Que já teve uma experiência muito triste com espíritos!
Diz que a sogra fez macumba para separar ela do marido! Enfim!...
Não quer nem saber de centro espírita. Então eu pensei que talvez
você...
- Está bem Roberto! Eu vou falar com ela.
Francisco dirigi-se à redação do jornalismo e encontra Carmem nos
corredores. Conversa com ela. Mas ela continua irredutível.
- Não é por você Carmem! É pelo seu filho!
O que você tem a perder? Eu tenho visto muitas experiências
maravilhosas de cura lá no centro.
Quem sabe, seu filho também pode ser curado lá...
- É. Elias! Mas eu não boto os pés lá. Se você quiser tentar alguma
coisa tente. Mas lá eu não vou! - Carmem não dá brecha.
- Eu vou precisar do nome do garoto e do seu endereço. É assim que
eu vejo eles procederem nas reuniões lá no centro. Colocam os
papéis sobre a mesa com os pedidos de ajuda para as pessoas e eles
fazem uma visita espiritual ao local onde o doente se encontra.
Anota os dados do garoto com o endereço. E acrescenta:
- Hoje à noite tem reunião lá no centro. Vamos ver se eles podem
ajudar seu filho.
269
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
noite Francisco vai ao centro e informa a Thiago sobre o
problema do filho de Carmem. Ele recomenda que coloque
o papel na mesa juntamente com os outros que vão ser
atendidos.
O centro de Thiago é o mais singelo exemplo de humildade. Suas
instalações são muito simples. Uma pequena casa na Avenida Norte,
apenas com uma sala e mais dois ambientes. Na sala principal, um
ambiente de reuniões, existem bancos de madeira, uma cortina de
veludo vermelho na parede, um quadro com imagem de Jesus Cristo
e um outro com uma imagem do mentor espiritual do centro, um
padre, pintado por uma médium pintora e vidente, que passou para o
papel com pintura de grafite a imagem do padre.
Um segundo ambiente com uma mesa comprida, algumas cadeiras
ao redor e um ponto de luz azul pendurando do teto sobre a mesa. É aí
que ocorrem as reuniões de desobsessão e de treinamento para os
médiuns e doutrinadores.
Os outros ambientes são; um segundo quarto-escritório e uma
cozinha. São vários os encontros maravilhosos de cura, de ajuda, e
de crescimento interior que são propiciados nesse ambiente de total
singeleza.
Durante a reunião, o médium em trabalho pergunta segurando na
mão um dos papéis:
- Quem trouxe esse papel? Dessa criança em Boa Viagem? Uma
criança que não consegue dormir! Francisco se identifica.
- Enviamos companheiros nossos para uma visita a esse endereço! É
um apartamento onde o menino se encontra. A situação lá é muito
dolorosa! - Explica ele. - Tem haver com carma da mãe e do filho,
relacionado com algumas entidades obsessoras com quem
conviveram no passado. Ha muito ódio que foi deixado para traz ha
bastante tempo. Os algozes localizaram os dois. Agora, mãe e filho.
Eles não podem atingi-la por uma proteção especial que ela tem
nessa encarnação. Estão fazendo isso através do menino! Ha
270
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
dívidas também da criança para com eles! - E acrescentou: - Vai ser
preciso trazer alguém da família aqui! Já que o menino está
impossibilitado de se locomover! - Francisco então argumenta:
- Mas já conversamos com a mãe do garoto e ela está renitente sem
querer vir aqui! Já disse que não vinha. Então pensamos em ajudar
o garoto do jeito que fosse possível!
- Pois que venha um tio, uma tia, algum parente próximo! Diz o
mentor espiritual através do médium.
No dia seguinte Francisco recebe notícias de Carmem logo ao chegar
à portaria da TV.
- Dona Carmem já esteve aqui duas vezes procurando pelo senhor! Diz o moço da portaria. Francisco já sabe aonde vai encontrá-la. Ela
já vem vindo pelo corredor da televisão caminhando
apressadamente em sua direção parecendo muito agitada.
- Elias! O que foi que vocês fizeram ontem lá no centro?
- Nada! Carmem! Como de costume só colocamos o seu papel na
mesa e aguardamos algum contato.
- Elias! Pelo amor de Deus! Ontem eu tive um sonho fantástico.
Deixou-me muito confusa! Parecia tão real!...
- Como foi?
Carmem então narra o seu sonho extraordinário. Descrevendo
fielmente as características da casa onde está localizado o centro
dando todos os detalhes, até os três batentes de alvenaria na porta de
entrada, a porta de madeira dividida em duas metades, como é
normal nas casas bem simples, os bancos de madeira na sala, a
cortina de veludo, a outra sala quase escura com uma lâmpada azul
sobre a mesa e algumas pessoas ao redor de uma mesa.
- Mas eu não vi você lá! - Enfatiza ela.
Francisco compreende exatamente o que ocorreu. E com um sorriso
sereno procura acalmar Carmem.
271
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Eles não permitiram que você me visse! Isso poderia afetar a sua
consciência. Carmem o que ocorreu com você nós chamamos de
tele-transporte. Você foi levada lá em espírito. Você acaba de
descrever fielmente como é o nosso centro. Pena que não queira
visitar o centro! Para poder comprovar que é exatamente como você
descreveu.
- Quando vai ter outra reunião?
- Amanhã!
- Elias você me leva? Eu agora estou muito curiosa para conhecer o
centro!
Se Deus traça caminhos retos com linhas tortas e disso não temos
dúvida, ali estava mais uma prova de sua ação maravilhosa. Que
outro jeito poderia haver para levar Carmem ao centro no trabalho de
cura de seu filho? E quem melhor do que ela cujo carma mantinha
laços do passado com aqueles espíritos perseguidores? Ao conduzila ao centro em espírito na hora exata da reunião, os bem-feitores
espirituais haviam criado nela a expectativa necessária para desejar
ir lá. Sem dúvida eles usam de muita psicologia.
Na noite do dia seguinte Carmem foi para a televisão encontrar-se
com Francisco, que então vai com ela à reunião do centro. Às sextafeiras são feitas reuniões de desobsessão. Ocasião em que se tratam
os casos dessa natureza. Um só trabalho e duas curas ao mesmo
tempo.
A da vítima encarnada e dos próprios perseguidores espirituais, que
pela bondade de Deus ganham assim a oportunidade de ser
conduzidos a locais de amparo e tratamento em doutrinação,
existentes na espiritualidade.
O que eles chamam inicialmente de prisão na verdade são locais
onde serão mantidos não por espontânea vontade, já que ainda não
desenvolveram a capacidade do merecimento da consciência pelo
perdão.
272
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Muitos são reeducados passando, em muitos casos, a fazer parte das
equipes de resgate em socorros futuros a outros necessitados. Outros
mais endurecidos, incapazes de reconhecer a luz como sua salvação,
são devolvidos aos seus antros de dor para aprenderem um pouco
mais com ela. Isso também é da bondade do Criador.
Foram esclarecimentos assim que Carmem pôde ouvir naquela
reunião de atendimento ao seu filho através do nossos doutrinadores.
O seu caso estava relacionado a tantos outros com características
iguais em que, também por piedade dos instrutores espirituais, não
lhes é permitido ouvir a verbalização dos desagravos apresentados
por seus algozes, algo a que eles têm direito, ao serem levados ali à
força. Têm o direito de proferir seus impropérios como acusadores
diante de suas vítimas. Assim também está acontecendo ali com
Carmem que foi posta para dormir, anestesiada pela engenharia
maravilhosa dos espíritos. Parte dos trabalhos de desobsessão ela
nada percebeu.
- Ah! Eu dormi! - Diz ela, acordando já na hora em que todos oram o
Pai Nosso, encerrando a reunião.
A manhã seguinte traz mais surpresas para Carmem. Chegando em
casa após a reunião no centro espírita, pela primeira vez em mais de
uma semana, para seu espanto, Carmem vê o seu filho dormindo
normalmente na alcatifa da sala. São 23h00 aproximadamente. A
empregada ainda está acordada aguardando por ela. Então decide
deixar o menino dormindo ali mesmo.
Se acordasse durante a noite então viria conduzi-lo para seu quarto.
Pois temia acordá-lo, já que ha tantos dias não dormia direito.
Pela manhã, às 07h00, Carmem levanta-se para tomar o café e sair
para o trabalho. Vai primeiro à sala procurar o filho. Ele não está lá!
Ela vai à cozinha perguntar à secretária:
273
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Onde ele está?
- Está lá embaixo! Dona Carmem! No pilotis do prédio brincando
com as crianças.- Carmem não quer acreditar.
- Ele tomou café?
- Tomou! E comeu direitinho!
- Eu não acredito no que estou vendo! Meu Deus! Então tudo isso é
possível?
- O quê dona Carmem?
- Nada querida! É difícil de explicar!
Realmente o que Carmem quer dizer é que, é muito difícil
compreender algo assim. Principalmente para ela que já havia vivido
uma experiência dolorosa com a espiritualidade. Pelo menos é o que
ela imaginava.
Compreensões à parte, foi uma troca bem justa.Acura para o filho de
Carmem e mais esclarecimento para Francisco que cada vez mais
está interessado em estudar a fenomenologia mediúnica. Não por
mera curiosidade, mas pela vontade e necessidade de saber.
Aprender para ser útil. Aquela está sendo uma excelente
oportunidade para seu crescimento no entendimento da doutrina
espírita.Tem mais experiências maravilhosas reservadas para ele,
para mais adiante em sua trajetória de vida. E o aprendizado vivido
agora lhe será muito útil.
As mulheres. Elas seriam um capítulo à parte durante esta
experiência cármica de Francisco. Com sua presença na TV fica
quase impossível resistir aos assédios femininos. Além do mais o
desequilíbrio emocional em seu casamento continua. Como uma
ferida aberta sem cura. Seu temperamento e até suas preferências
estão sempre em desalinho com a esposa Sandra. A vida de casal é
relativamente boa apenas em pequenos períodos. Não ha maturidade
suficiente de ambos.As crises continuam.
274
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
o trabalho na gravadora ha uma locutora que acaba de
chegar de Mossoró, no Rio Grande do Norte.
Conterrânea de Francisco, dele se aproxima buscando afinidade que
possa ajudá-la em suas pretensões profissionais. Ele aceita sua
amizade. Divalda é uma mulher bonita. Tem um nível cultural
saudável. É inteligente e demonstra um razoável nível cultural.
É mãe solteira. Tem uma filha pequena de três anos.
Inicialmente Francisco a vê apenas como uma amiga precisando de
ajuda. Assim como ele recebeu ajuda dos companheiros locutores ao
chegar às gravadoras poucos anos atrás ela estava precisando de
apoio profissional, para indicações, parcerias de trabalho, essas
coisas.
Aos poucos os dois foram percebendo em suas carências afetivas
que havia algo mais entre eles. Dai a um relacionamento foi um
pequeno salto.
Divalda também bebe. Gosta de tomar cerveja. Mas não gosta de se
embriagar. É uma companheira de copo. Um bom papo. Detalhes
que notificam uma mulher em seu relacionamento com os homens.
Divalda mora num pequeno apartamento kitnet no centro da cidade,
próximo às gravadoras e à TV Universitária onde também trabalha.
Ali os dois normalmente se encontram. E vacilaram além da conta.
- Tenho uma notícia ruim pra você! - Diz ela ao chegar á gravadora.
- O que foi?
- Estou grávida!
Francisco, que já se norteia por sua formação espiritualista, depois
de ponderar responde com naturalidade:
- Que bom!
275
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Você tá louco! Que bom, que nada! - Reage prontamente Divalda.
- Eu não posso ter outro filho! Já basta a filha que tenho. Não posso!
Não posso! Vou tirar a criança! E queria que você me arranjasse o
dinheiro para pagar a parteira.
Francisco não concorda. Não pelo dinheiro. E argumenta:
- Divalda! O aborto provocado é um dos maiores crimes que se pode
cometer. Em vida e em espírito! - Ela já está nervosa e chora um
pouco descontrolada.
- Você não entende! Eu não posso ter outro filho!
- Eu ajudarei você a criar a criança! Você não estará nessa sozinha!
Não faça isso! Reflita melhor! - Mas Divalda já havia decidido
retirar o embrião. Tinha um pouco mais de um mês. Ela tinha pressa.
- Vou tirar a criança! De qualquer jeito! - Insiste com veemência. Se você não quer me ajudar com o dinheiro, tudo bem! Eu vou
procurar alguém que possa me emprestar o dinheiro! Mas vou fazer
o aborto!
Era doloroso decidir daquela maneira. Não havia como demovê-la
de sua decisão.
- Bem! De qualquer jeito você vai retirar a criança! - Diz ele com
pesar.
Não posso evitar! Mas saiba que eu não concordo com isso! A
responsabilidade é toda sua! Aí está o dinheiro!
Ela pega o cheque e sai imediatamente muito agitada. Vai ter com a
parteira que faz os abortos às escondidas. Isso é crime. Dá até cadeia.
Demora-se por três dias até aparecer novamente na gravadora.
Chega muito abatida. Parece que um trator passou por cima dela.
Tem até olheiras. E conta como foi.
- Era um menino! - Diz ela. - A parteira confirmou.
276
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Francisco emociona-se com aquela informação.
Um menino! Tudo que ele queria, após ser pai de duas filhas.
E Divalda jogou fora! Não disse nada a ela. Mas estava se sentindo
muito mal.
E se Deus não lhe permitisse mais ter um filho homem? A Natureza
tem dessas coisas. Dá, mas também tira.
Procura superar esse momento. Aos poucos Divalda foi se
recuperando. Mas a relação entre os dois já não é mais a mesma
coisa. Agora ha restrições de sentimentos entre eles pelo episódio do
aborto. O fato seguinte vem selar definitivamente o afastamento dos
dois.
Numa conversa com Sandra, Lurdinha, esposa do amigo Fernando
deixa escapar a informação do caso de Elias com a Divalda.
O fato provoca um terrível desentendimento no casal. Francisco
então assegura a Sandra. O caso com Divalda está encerrado nesse
exato momento.
Era a gota d'agua que faltava. Como já é de seu princípio, nada faria
com que deixasse a família.
As meninas estão crescendo. Precisam da presença do pai. E ele ama
suas filhas. Não deseja viver longe delas. Procura Divalda e
comunica a sua decisão. Ela é uma mulher forte. Acostumada a
dirigir sua própria vida.
Esse capítulo amoroso está encerrado na vida de Francisco.
Alguns meses depois as suas leituras estão mexendo com sua
consciência em relação à esposa. Exatamente uma coleção de livros
espíritas que adquiriu. São obras psicografadas pelo médium
catarinense Hercílio Maes, através de quem as comunicações
chegam pelo espírito de uma entidade hindu, chamada Ramatis.
Essas obras estão influenciado fortemente suas convicções na
277
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
tentativa de concertar erros do passado remoto.
Conclui que seu casamento com Sandra não havia sido por acaso. Ha
uma razão para isso. Só não sabe qual. Porquê não dar a ambos uma
nova oportunidade de se entenderem bem? Ha também ainda
guardada no ego de Francisco a carência por um filho homem.
Conversa então com ela.
- Sandra! Nós temos nos distanciado tanto... Acho que deveríamos
fazer alguma coisa! Acho que talvez esteja faltando uma nova
criança em nossa vida. Talvez isso possa alterar os nossos
sentimentos. O que você acha? - Ela age prontamente de maneira
receptiva.
- Também concordo. - Estavam num dia bom, apropriado para tomar
novas decisões.
- Então! Vamos tentar outro filho? - Pergunta ele. Até então o parco
relacionamento conjugal era mantido com mecanismos para evitar
filhos. Os dois estão de acordo. Deixam de lado os preservativos.
Francisco então faz um pacto com o espírito de Ramatis que já
conhece bem através dos livros. Pedindo a intervenção dele.
Se a esposa engravidar e o filho for homem, vai por o seu nome. Ele
se chamará Ramatis. Para ele esta será mais uma comprovação da
existência do espírito. No fundo, no fundo, ele procura se ressarcir
de alguma responsabilidade pelo aborto de Divalda. Mentaliza o
espírito de Ramatis e confessa a ele sua preocupação nesse sentido.
Pedindo que se for possível, que possa vir à vida aquele espírito
impedido de nascer através de Divalda. Também pede por ela. Para
que seu pecado seja diminuído com a vinda dessa criança.
278
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
U
m mês depois Sandra dá a notícia. Está grávida. Francisco se
emociona. Não pode contar nada a ela ainda. Deixa o tempo
correr. O relacionamento em casa melhora. A gravidez de
Sandra aumenta a cada dia. Francisco mais e mais se convence que
essa criança será do sexo masculino.
Uma certeza inexplicável. Forte. Muito convincente. Vai ser
homem! Tenho certeza. Ouvia isso dentro de sua mente sempre que
se aproximava de Sandra e colocava a mão sobre seu ventre. É um
homem que Ramatis está nos dando. Ao mesmo tempo, cresce
dentro dele uma necessidade imperiosa, irresistível, de contar a
Sandra a verdadeira razão daquele pacto. Ele já não tem a menor
dúvida de que o filho será homem. Ela já está com sete meses (Ver
foto).
Um dia, aproveitando a ocasião de estarem juntos à mesa após o café
da manhã ele resolve revelar a ela o seu segredo.
Ao tentar explicar a ela a gravidez interrompida de Divalda, ela
reage com sofrimento por essa informação e se descontrola um
pouco.
Ele fala de seu pacto com Ramatis. Mas ela está um pouco fora de si.
Reage com lágrimas. Chora copiosamente. Sente-se ferida em seu
amor próprio. Infelizmente não havia alcançado um estágio mais
avançado da realidade espiritual para compreender o que estava se
passando ali, e responde com expressão de raiva e dor em seu
orgulho ferido:
- Se eu soubesse que era para isso eu não teria concordado!
Desabafa chorando.
Francisco fora infantil ao revelar um segredo que era só dele e de
Ramatis. Ou não? Não imaginara que ela pudesse se ressentir
daquela forma. É fácil compreender o que ela sente. Freqüentemente
cometemos erros por achar que a mente das pessoas ao nosso redor
279
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
vibram no mesmo diapasão que a nossa. E assim cometemos
excessos.
Ela não entende nada da realidade espiritual. Como poderia dar
crédito a esse sacrifício... Pois que era de fato um sacrifício. Dela. A
serviço da consciência culposa de Francisco e para minorar a culpa
de uma ex-amante dele. Isso está acima de sua compreensão e
capacidade de aceitação. Ele então lhe diz com tristeza na voz:
- Sandra! Você não tem idéia da extensão da caridade que você está
fazendo! Se aquela criança que não pôde nascer de Divalda estiver
nascendo através de você e eu tenho certeza que é homem, isso é
uma dádiva para você! Um acréscimo de Deus para você em sua
conta espiritual.
Mas dolorida como está ela lá quer saber de conta espiritual!
Nesse momento sua mente lhe diz que ela foi usada. Posta em
sacrifício. Não consegue alcançar toda a imensa realidade que já
vive em seu ventre materno.
A espiritualidade dispõe das ferramentas apropriadas para transpor
todas as barreiras da compreensão humana. É provável que naquele
exato momento já esteja sendo arquitetada uma solução inteligente
através dos guias espirituais, os anjos de guarda de Francisco, do
espírito em processo de reencarnação através dela e o dela própria.
Falta pouco mais de um mês para a criança nascer. Ela continua
fazendo todo o pré-natal com acompanhamento médico. Nesse
tempo já existe o exame que revela o sexo das crianças. Mas é
particular. Custa muito caro. Seu pré-natal está sendo feito pelo
INPS, que nesse tempo atende relativamente bem. Além do mais,
saber de antemão o sexo da criança poderia trazer mais transtorno do
que alegria. O seu médico por sua vez, nada informa.
280
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
hega o grande dia. Francisco está na gravadora perto dali.
Pouco mais de três horas da tarde.
O cunhado Rony Trindade, como de costume, passa pelo
apartamento do casal a serviço do banco onde trabalha, para tomar
um cafezinho, quando algo acontece. O rompimento da bolsa do
útero de Sandra. Rony liga apressadamente para Francisco.
- Venha urgente que sua mulher vai ter neném. Já está perdendo
água! Francisco se apressa e vai correndo para casa. Está feliz. Até
que enfim o seu grande presente vai chegar. Vão de carro até a
maternidade São Marcos. Chegando lá ela já está sendo conduzida
diretamente para a sala de parto enquanto os dois são levados para o
apartamento onde ficam aguardando o nascimento da criança.
Ha muita tensão nesse momento. O cunhado Rony também quer
permanecer ali um pouco, pelo menos até saber o resultado do parto.
Francisco está muito emocionado. Seu corpo está bem quente. Sua
circulação sangüínea é forte. A pressão deve estar alta. De repente!
Explode em sua mente uma informação vinda não sabe de onde.
São dois bebês! Do sexo masculino! E um está morto!
Essa explosão de certeza em sua mente é algo muito forte.
Inquestionável. Muito convincente. Sem margem para engano. Algo
de que não se pode duvidar. Um fenômeno! Como se fosse possível
alguém colocar um alto-falante dentro de sua mente.
Dois homens! Um está morto! Dois homens! Um está morto!
Francisco se descontrola emocionalmente e entra em crise de choro,
deixando totalmente surpreso o cunhado Rony. Diga-se de
passagem, nesse tempo relevando-se um ateu convícto.
Era comum ouvir-se Rony blasfemar até com o nome de Cristo.
Dizia não aceditar em Deus. Que Deus era uma invenção da igreja,
essas coisas que dizem os cegos e ignorantes de espírito.
281
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Que é isso rapaz! - Reage ele prontamente. - Sua mulher está tendo
neném e você é quem chora! O que se passa com você?
- Rony! Acabo de receber uma informação! São dois bebês! São
homens! E um está morto! - Rony está espantado. Olha para a porta e
não vê ninguém.
- Que história é essa Chico? Quem lhe disse isso?
- Aqui Rony! Dentro da minha cabeça! Deram-me essa informação
agora!
Aquilo era bem mais do que podia conceber a mente de um ateu. Você está brincando comigo! - Exclama Rony, abrindo a geladeira
do frigobar para pegar um copo de água que entrega a Francisco.
Francisco está trêmulo e ainda chora. Aquilo é algo mais forte do que
ele mesmo podia imaginar. Mas tem certeza! A mais absoluta
certeza.
Teria sido o espírito de Ramatis que lhe transmitiu a mensagem?
Não era possível explicar esses detalhes para um ateu como Rony.
Ele só iria rir na sua cara.
Após alguns instantes Francisco já se acalmou e permanece sentado
em uma cadeira ali no quarto com o cunhado aguardando que tudo se
esclareça.
Rony relaxa desabafando:
- Esse cara tem cada uma!
Já faz mais de meia-hora que eles aguardam no quarto. Dai ha pouco
a porta se abre e entra uma enfermeira.
- Quem é o felizardo?
- Ele! - Responde Rony apontando para Francisco.
- Parabéns! O bebê é homem! Forte como um touro! Só teve um
probleminha!...
- Já sei! - Diz Francisco. - Eram gêmeos e um está morto!
Aenfermeira está muito surpresa, e pergunta:
282
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Quem esteve aqui antes de mim? Estou vindo agora da sala de
parto!
Rony está mais surpreso ainda. Arregala os olhos fixando-se em
Francisco. Os dois estão mudos. Como explicar aquilo à enfermeira?
Ela então retoma o diálogo:
- É! Realmente um está morto. Aliás, já estava morto ha umas três
horas. Foi laçado pelo cordão umbilical e morreu sufocado. Mas o
outro está muito bem!
E dá instruções a Francisco para no dia seguinte, passar pela manhã
para assinar uns papéis e levar o corpo do bebê para ser sepultado.
Que tarde aquela! Quanta emoção envolvida no episódio de
nascimento do menino Ramatis...
Somente vários dias depois, Francisco contou a Sandra o fenômeno
que ocorreu com ele lá na maternidade.
Por muito tempo ele pensou sobre aquela experiência. Chegando a
uma conclusão ponderável. Deus realmente parece traçar caminhos
retos por linhas tortas. Ali estava um exemplo muito claro da
magnitude de sua Onisciência.
Sem dúvida, ELE sabia desde o princípio, o que iria acontecer com a
aquela gestação tão desejada. E tinha que ser gêmeos. Para que os
pais pudessem receber o recado por inteiro.
O que dá margem a algumas ponderações: se são dois meninos, bem
que um deles poderia ser o ressarcimento pelo aborto de Divalda. É
uma hipótese. Neste caso a mãe entraria com o beneplácito da
doação. O outro seria então o acréscimo de Deus para Francisco e
Sandra.
Mas... E se ambos permanecessem vivos... Será que ela não rejeitaria
um deles? Sem saber qual seria o seu? Isso poderia ser uma injustiça
para com um dos bebês o que resultaria em culpabilidade cármica
283
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
para a mãe. É mais uma hipótese para se avaliar a sabedoria divina.
Assim, ela recebe apenas um. Não ha como saber qual dos dois é
realmente o seu. O que se foi? Ou o que ficou? O que lhe desperta um
amor maternal grandioso pela criança.
De qualquer forma, esse Ramatis é seu grande prêmio. Para ela e
para Francisco também.
Deus está fazendo a sua parte. Aliás, Deus está sempre tentando
realinhar os seres humanos. Nós é que não somos evoluídos ainda
suficientemente para poder compreender o milagre da criação, em
seus próprios domínios.
A afetividade, o respeito mútuo, o fator econômico, a similaridade
no nível de educação adequado, o conhecimento e a aproximação
com Deus, é tudo um emaranhado de princípios que se pudessem ser
observados corretamente, certamente garantiriam a estabilidade das
famílias.
E o casamento deixaria de ser uma via crucis, como ocorre com
muitos casais. Não é à toa que a instituição casamento vai se
deteriorando dia após dia no seio da sociedade humana. Embora se
saiba que sem a fórmula dessa célula mater, é improvável poder
manter o equilíbrio na preservação futura da raça humana.
São tantos os apelos anormais, que as pessoas já quase não acreditam
na singeleza e importância do casamento. Ou o modelo, que pode
estar errado, deveria sofrer alterações bem sérias.
Ha informações colhidas nos livros espiritualistas que Francisco lê
dando conta de como é estruturado o modelo familiar em planetas
mais evoluídos que a Terra. Essas ilustrações, muitas das quais
observadas nas obras ditadas pelo espírito de Ramatis, estão
oferecendo a Francisco um novo foco de mentalidade.
Ele até já sonha poder um dia reencarnar em um planeta assim, pleno
de equilíbrio e experimentar a evolução humana através de outro
modelo mais progressista.
284
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
esse momento ha um outro tema que o está deixando muito
curioso. A ufologia. Seu próximo passo de pesquisa
literária.
Ha muito se descobriu em torno dessa realidade até certo ponto
sobrenatural, um assunto bastante desmerecido pela imprensa
generalizada. Mas Francisco está muito interessado na ufologia
paranormal. Alguma coisa lhe diz que a pesquiza vale a pena. Ha
conhecimentos fantásticos por traz disso. E ele vai fundo. Já
consegue com facilidade dicernir o joio do trigo em suas pesquisas
literárias.
Está começando a descobrir um aspecto muito interessante. A
provável correlação da existência dos UFOs, com a espiritualidade e
pára-normalidade. O livro que está lendo, do escritor Eric Von
Deniken, especula sobre a carruagem de fogo bíblica vista pelo
profeta Elias, conforme está descrito na bíblia. Dando ao fato uma
conotação bem sólida com a provável aparição de visitantes do
espaço, desde a idade pré-histórica em nosso planeta, então
confundidos com Deuses.
O assunto é palpitante. Por algum tempo Francisco vai se debruçar
sobre ele. Deseja conhecer a fundo esse tema.
Teria sido Jesus um ser de outra galáxia? Desembarcando aqui na
pele de um ser humano comum para desenvolver e deixar entre os
habitantes do planeta seu projeto de evolução para esta raça
adâmica? Francisco está empolgado com esse novo foco para seus
conhecimentos literários.
Enquanto isso, continuam suas vivências em busca de mais
conhecimento sobre a doutrina espírita. Os trabalhos no centro
espírita de Thiago são muito proveitosos.
285
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E
stamos no final de 1974. Francisco vai entrar de férias na
televisão. Vai viajar com a família à Campinas e São Paulo. A
irmã Malvina reside atualmente em Campinas. E vai passar o
Natal em família com eles, rever a tia Nenem e sua família, rever os
irmãos Pedro e José que também já estão trabalhando em São Paulo,
acolhidos pela irmã Malvina e seu esposo Danilo Medeiros.
A TV Canal 6 precisa enviar um representante para o último
programa do ano no Clube dos Artistas, com Airton e Lolita
Rodrigues, na TV Tupi de São Paulo. Francisco é incumbido de
representar a emissora co-irmã Associada Pernambucana. E também
participa do programa. É seu primeiro grande momento na mídia
nacional
ATupi é na ocasião a maior rede de televisão do país. Sua presença lá
é muito prestigiosa para sua carreira profissional. Despertanto
interesse da Mesbla que o convida para permanecer em São Paulo.
Francisco é levado à Mesbla através do amigo Roque, um
publicitário de Recife, na ocasião transferido para trabalhar na
Central Mesbla de Produções em São Paulo. Precisavam de um
locutor com uma dinâmica de voz no estilo dele. Grava a primeira
campanha promocional da Mesbla para Janeiro de 75, a ser
veiculada em rede nacional. Seu trabalho de locução foi muito
apreciado pela produção publicitária da Mesbla. Que insiste em sua
permanência por lá. Mas Francisco não encara São Paulo para viver.
E resolve não aceitar o convite, decidindo voltar para Recife com a
família. Suas férias estão acabando.
Ainda vai passar pelo Rio e Salvador, onde passará o Ano Novo
74/75.
Sua vida profissional vai indo a mil maravilhas.
Os assédios se multiplicam de forma nunca sentida antes.
Paralelamente ao telejornal da TV, Francisco recebe um convite
286
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
para ser garoto propaganda da Primavera, uma grande rede de lojas
de magazines da cidade. Isso vai lhe render um simpático apelido
tempos depois no Aeroclube de Recife. Sua imagem está no vídeo a
todo instante. Também em outros canais de televisão através dos
comerciais.
O Canal 6 está se equipando para inaugurar a televisão a cores no
Nordeste. Coincidência ou não, obra do acaso talvez, é Francisco
quem faz a primeira transmissão em cores, com o telejornal
Factorama que apresenta ao meio-dia.
Os próximos três meses vai dar uma reviravolta na sua vida. Um fato
novo está se plasmando. A Lei de Causas e Efeitos está lhe
agendando um reencontro cármico. Alguém que vai sacudir suas
emoções de maneira muito intensa. Como sempre, as mulheres! Elas
parecem ser o seu grande carma.
Esta semana ele recebe uma nova tarefa do departamento de
telejornalismo da TV. Viajar até a cidade de Panelas. Uma cidade
bem pequena na região canavieira de Pernambuco, para uma
reportagem da Corrida do Jerico, um evento do calendário turístico
da Prefeitura local, que acaba de ganhar projeção nacional. O nome
do evento já diz bem. Corrida de Jerico! É uma brincadeira festiva. A
cidade se engalana, se enche de bandeirolas, recebe visitantes. A
televisão também se faz presente. Claro! Para prestígio dos políticos
locais.
O carro de reportagem acaba de chegar à cidade pouco antes do
meio-dia. A equipe está chegando a um clube onde será
recepcionada com um almoço oferecido pelo Prefeito e um
Deputado da região.
Esse momento vai ser marcante para Francisco. O dia do assédio de
uma rosa.
287
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
carro da reportagem está parando em frente ao clube. A
equipe está saindo do automóvel. Na calçada passam duas
jovens de braços dados. Uma delas fixa o olhar em Francisco
com aquele atrevimento ainda incomum nas moças do interior.
Olhar atrevido igual aquele, que se lembre, só o de Nely, vários anos
antes.
É linda a danada. Pele muito branca. Olhos pretos. Corpo esbelto,
parecendo manequim. Cabelos pretos enrolados num totó com um
boné bem feminino na cabeça, deixando o pescoço de fora. Bem
jovem ainda.
- Essa menina atirou em você direitinho! Será que acertou? Pergunta, de forma gozativa o câmera Claudio, muito observador.
- E atrevida! Você viu o jeito dela me olhar?
Os colegas da equipe de reportagem se divertem com a situação.
Na verdade muito comum para o pessoal da TV. Mas esse! Esse é o
dia que a onça veio beber água! Diz Cláudio, como sempre, muito
imaginativo.
Eles entram no clube. O almoço já vai ser servido. Não há tempo a
perder pois a corrida dos jericos começa as 14h00. O dia está
nublado e a chuva pode estragar a festa.
São mais de duzentos jumentos. Não dá pra correr tudo de uma vez.
As ruas são estreitas. É preciso fazer três corridas preliminares.
Explica o Prefeito. Selecionando os quinze melhores, que disputarão
a final.
Depois dos cumprimentos do Prefeito e do Deputado, o almoço já
está sendo servido. Uma mesa bem comprida. Todas as autoridades
da cidade estão ali presentes. Todo mundo quer sair na televisão.
Imagina! Se vão perder aquela oportunidade!
Moças estão vindo até a mesa trazendo bandejas com suculentos
288
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
pratos, os mais variados, servindo os començais.
Uma delas, bem por traz de Francisco pergunta se ele aceita
espaguete ao molho de camarão.
Ao se virar para ela Francisco dá de cara com a moça do boné. Bem
que se diz que a mulher pega o homem pelo prato. Nesse caso a
situação é bem realista. Com a fome que estão...Pra todo canto que ia
ao redor da mesa servindo outros pratos, a moça não desgruda o
olhar de Francisco.Acima de tudo, muito simpática e comunicativa.
Pode-se dizer que sua presença é mesmo envolvente.
Surpreendentemente comunicativa, para ser tão jovem. Pondera
Francisco, já acostumado a esses assédios bem diretos.
Após o almoço seguem-se as entrevistas e logo depois, todos já estão
indo na direção do local da corrida dos jericos.
Atal moça não desgruda da equipe.Acompanhando sempre de perto,
ao lado da amiga. Para onde Francisco se vira, lá está o sorriso
provocante dela.
À tardinha, a cidade tomada de poeira pelo término das corridas dos
jericos, numa rua sem calçamento, o Prefeito conduz a equipe da
reportagem a uma das palhoças ao ar livre. No canteiro central da
avenida existem várias delas e dá instruções para servir a equipe, de
tudo que o pessoal quizer, que a Prefeitura paga a conta.
Francisco aproxima-se de uma das mesas com a equipe. A juventude
local cerca. Tem gente querendo autógrafo, outros apenas curiosos,
mas isso faz parte. Francisco procura atender a todos com
cordialidade. Lá vem a moça do boné trazendo um gurí pela mão.
- Por favor! Ele quer um autógrafo!
Francisco atende com um sorriso compreensivo. É um truque! É Só
uma desculpa pra ela se aproximar.
289
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
L
ogo ele vai descobrir que a jovem quer mais do que um
simples autógrafo. Após receber o autógrafo o menino se
retira, mas ela permanece ali. Com seu sorriso provocante.
Encerrada a sessão de autógrafos todos sentam à mesa. Francisco
então convida a moça e sua amiga para sentarem também. Claro que
elas queriam mesmo era permanecer ali.
- Não querem sentar um pouco? Qual é o seu nome?
- Rose! - Responde ela. - Rose Rufino.
Algumas cervejas, alguns pratos de tira-gosto, algumas doses de
whisky, bons papos, a festa continua. Já passa das 19h00. Ha
bastante gente na rua. Algumas barracas têm música tocando em
serviços de som. O tempo passa rápido. O motorista então convida:
- Vamos embora gente! Vamos pegar chuva no caminho. Vamos ter
que dirigir com cuidado. Já é tarde!
Não muito. Mas todos concordam e se preparam para regressar a
Recife. Na despedida, Francisco já tem a perna entrando no carro da
reportagem, chegando bem perto a moça pergunta:
- Será que eu vou ver você de novo?
- Todos os dias! - Brinca ele rindo. - Veja o telejornal.
- Eu já lhe vejo todo dia! Mas nunca tinha visto assim tão perto.
Ela está agora bem próxima dele.
- Espero não ter lhe decepcionado. - Diz ele.
- Tem um jeito de saber! - Responde ela, provocantemente.
- Co..? - Ela então o beija na boca. Ali! Em plena praça! Na presença
de todos! Sem lhe dar tempo nem pra respirar. Francisco ainda não
sabe bem o que está acontecendo. O motor do carro dá a partida. Ele
entra no veículo e vão embora.
Ela fica na praça acenando com a mão. A amiga se aproxima e ambas
saem caminhando juntas.
290
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Rapaz! Que sucesso você está fazendo, hein! Se me dissessem eu
não creditaria! - Comenta o câmera Cláudio fazendo gozação. A
equipe toda se diverte.
- Eu ainda estou aqui meio zonzo! Essa menina me tirou do sério!
Pegou-me de surpresa!
Os colegas riem bastante. Francisco também se diverte. O assédio
foi mesmo bem incomum.
Os tempos estão mudando muito rápido. As mulheres já estão quase
tão liberais quanto os homens. Elas mesmas tomam a iniciativa. Mas
isso já vem de tempos atrás. Lembra da Nely? Do jeito como ela
provocou Francisco?Agora é essa menina!Ainda mais jovem.
- Assédio desse tipo eu ainda não tinha visto! - Comenta Francisco.
Não podia imaginar o motivo verdadeiro do forte interesse da jovem
Rose. Só mais tarde ele vai descobrir. Foi embora, imaginando que
nunca mais veria aquela moça. Isso era o normal para pensar em tal
situação.
Uma semana depois, sábado à noite, Francisco está saindo da
Televisão após o seu noticiário da noite. O moço da recepção lhe
entrega o telefone.
- É pra você!
- Alô!
- Olá! Pensou em mim esta semana?
- Quem está falando?
- Puxa vida! Mas você não lembra nem da minha voz?
- Bem... Eu atendo alguns telefonemas por semana. É normal. Mas
não estou lembrando de você. Quem é?
- Está bem, por hoje você está perdoado. Vamos ver da próxima vez!
E desligou.
291
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Eu, hein! Deve ser alguma doida! - Pensa Francisco.
Passam-se três dias e, na saída de TV novamente o telefone está a sua
espera.
- É a tal moça! - Diz o recepcionista da TV.
- Alô!
- Olá! E hoje? Será que você sabe quem sou eu?
- Eu quem? - Francisco já está muito curioso. Essa pessoa é mesmo
insistente.
- Não me diga que não está reconhecendo minha voz! Faz só três
dias que nos falamos!
-Claro que estou! Só que não sei quem é você! Porquê não pode dizer
seu nome?
- Eu sou a única rosa de sua vida! Que não consegue tirar você do
pensamento! - Ela mudara de tom. Parecia estar séria ao dizer isso.
Rosa... Rosa...- Pensa Francisco. Não conheço nenhuma Rosa...
Rose!!! Será aquela garota de Panelas? Francisco resolve atirar no
escuro.
- Escuta! Você gosta de corrida de Jerico? - Ela então ri
gostosamente ao telefone.
- Você me descobriu! Sou eu sim!
- Olá Rose! Porquê não disse desde a primeira vez?
Ambos continuam rindo ao telefone.
- Eu não sabia como você iria me receber! Tive receio de ter sido mal
interpretada por você! Nos encontramos lá em Panelas... Aquilo
tudo foi muito divertido...Mas fiquei com receio de ter sido mal
interpretada! Repetiu ela.
- Não Rose! Na verdade nem imaginei que fosse-nos falar mais. É
tão comum a gente conhecer pessoas por ai, que vêm e que se vão,
com toda naturalidade... Não pensei nada não! - Realmente ele
ainda não tinha motivo para ficar pensando nela. Procura ser franco.
- Você falou... lá em Panelas... Você não é de Panelas?
292
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Não! Eu moro em Caruaru! Estive lá com a minha tia para a festa
do Jerico. Não incomodo você com meus telefonemas?
- Não! Claro que não!
- Posso ligar outras vezes? Já estou até pensando em formar um fã
clube seu aqui!
Ela continua demonstrando prazer em rir daquilo tudo.
Parece brincar propositalmente com a situação.
- Pode ligar, sim! Pode ligar quando quiser!
Quizesse ou não, Francisco está gostando da brincadeira. Do jeito
quase infantil dela.
Esse foi o primeiro de uma série de contatos que ela passou a ter com
ele. Éra sempre ela quem liga. Diz que vai para a telefônica de
Caruaru onde tem uma amiga trabalhando lá
Aos poucos vai esclarecendo que no princípio, estava apenas
procurando se distrair um pouco, quando o conheceu.
Mas agora já não parece uma brincadeira. Pois não consegue tirá-lo
do pensamento.
Por várias vezes Francisco procura esclarecer Rose que o que ela
sente, ou acha que sente, provavelmente é apenas algo psicológico
por haver conhecido, “tão de perto” uma pessoa da televisão. Mas
ela continua insistindo, tentando se explicar:
- Não! Isso é diferente!. É uma coisa que eu nunca senti por
ninguém!
- Mas você ainda é muito jovem! Vai ter tempo de se apaixonar de
verdade pela pessoa certa!
- Então me diga como devo fazer para, primeiro me desapaixonar de
você. Não entendo o que se passa comigo! Beijei você por
brincadeira! Mas você ficou dentro de mim de um jeito que não quer
mais sair!
293
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Deixa de drama Rose! Olha! Eu não tenho culpa! Afinal, foi você
quem me surpreendeu com aquele beijo! Achei mesmo que tudo não
passava de uma brincadeira! Ainda vou ter que pensar muito sobre
isso para saber o que posso lhe recomendar. Só sei que você deve
procurar me esquecer!
Francisco não tem coragem de dizer a Rose que ela está se
apaixonando por um homem casado. Espera que ela desista dessa
paixão repentina. Pelo menos é isso que lhe parece. Coisa de menina
moça.
Pedro Elias acaba de chegar a Recife em visita às famílias de
Francisco e Sandra e de Lurdes e Rony. Já chegou à tardinha e agora,
Sandra está chamando para o jantar.
Todos se posicionam à mesa para um café caprichado. Ha uma
vasilha no centro da mesa com pedaços de fruta-pão cozida.
- E o que é isso? - Pergunta ele.
- É fruta-pão! Seu Pedro! - Responde Sandra.
- Fruta-pão? - Ele nunca havia visto aquilo.
-É! Seu Pedro!
Come-se ela cozida! Com uma manteiguinha por cima, é muito
gostosa!
Pedro Elias passa a faca no tablete de manteiga e espalha por cima do
fruta-pão quentinho, que já colocara no seu prato. E experimenta
uma garfada. Em seguida exclama:
- Eita! Que o home da padaria lascou-se!
Todos caiem na gargalhada entendendo o que se passa na mente dele.
Pelo seu entendimento as padarias devem estar em grande prejuízo.
É preciso lhe explicar que a fruta-pão, muito comum em Recife,
294
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
somente dá em certas épocas do ano.
As meninas se divertem com a visita do vovô. (Veja fotos)
É uma sexta-feira, Rony, muito do espirituoso, estimula Francisco
para levar seu Pedro a conhecer o BarAritana.
Ha pouco tempo a Rede Tupi de Televisão havia veiculado uma
novela de muito sucesso chamada - Aritana. Uma estória
envolvendo grupos indígenas.
Alguém então teve a idéia de abrir esse bar, bem no centro da cidade,
muito freqüentado pelas pessoas que estão diariamente saindo do
trabalho por volta das 18h00. Francisco gosta da idéia de levar seu
Pedro lá.
Ha um detalhe bem divertido nesse bar. É um ambiente fechado, com
ar-condicionado e decoração na linha da novela Aritana. Muitos
penduricalhos indígenas pendurados nas paredes. Pouca luz.
Simulando o ambiente de uma oca. Mesinhas e cadeiras de madeira.
Pequenos vasilhames de palha de coco trançada sobre as mesas...
Até os pratos de tira-gostos são de madeira envolvida com palha
trançada.
E um detalhe extremamente sensual. As garçonetes servem os
clientes totalmente nuas. Isto é. Sem sutiã nem calcinha. Apenas um
curtíssimo saiote de alguma coisa parecida com material de renda.
Ao se baixarem para depositar os produtos nas mesas, quem está por
trás, mesmo naquela penumbra, não deixa de apreciar o entre-perna
do traseiro das garçonetes.
Pedro Elias, que ainda tem uma vista muito boa e que nunca havia
visto tal coisa em toda a sua vida, exclama num misto de horrorizado
e surpreso, mas igualmente satisfeito e divertido:
- Home! Mas é possível! - Diz ele passando a mão na boca pra lá e pra
295
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
cá. Está nervoso. Claro!Asituação é mesmo surpreendente.
- E as garçonetes tão nuas! - Observa ele de olho arregalado falando
alto e provocando o riso das pessoas ali presente.
Rony bola de rir com a reação dele. E esclarece. Que aquilo é muito
natural ali. Faz parte do chamativo do bar.
- Mas espere! E a políça deixa?
Mais gargalhadas.
Em toda sua vida Pedro Elias aprontou muito com as pessoas.
Sempre gostou de se divertir com os outros. Dizia Josina. Fazendo
mangoça junto com os seus irmãos. Agora, a vida está lhe dando o
troco. É ele a personagem das diversões dos outros.
Rony não iria deixar passar essa oportunidade de diversão com ele.
Mostrando-lhe situação como essa do Bar Aritana, que sacode a
perplexidade do Recife dessa época. Imagine seu Pedro!
As semanas continuam iguais. Agora Rose precisa falar com
Francisco pelo menos duas vezes por semana.
Nesse momento ele está pensando seriamente em como a imagem
pública de uma pessoa da televisão pode atingir pessoas de maneiras
tão surpreendentes. Pensando nisso certo dia, ele recordou o
problema vivido com Nely.
Naquele caso fora diferente. Ela o vira pela primeira vez sem o
impacto psicológico de estar conhecendo uma pessoa famosa e isso
foi o suficiente.
Não havia o carisma forte que a televisão proporciona. Ela também
estivera em sua vida tão furtivamente, por algo assim, muito
parecido com o que está acontecendo com Rose. Embora o quadro
seja completamente diferente.
Certamente ela não continuaria por muito tempo vivendo essa ilusão
296
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
televisiva. Eles nem se vêem freqüentemente! Ela o vê pela
televisão. Mas isso é diferente. Pensa ele.
Dois meses depois o apresentador Francisco Elias é escalado para
apresentar o concurso Miss Pernambuco. Um grande acontecimento
da beleza feminina realizado anualmente no ginásio Geraldão, numa
iniciativa das Emissoras Associadas. O mesmo concurso que
consagrara anos antes a jovem Nely Padilha, Miss Rio Grande do
Norte.
Francisco é também um repórter de campo da emissora. Vai às
cidades do interior nos eventos locais para escolha das candidatas a
Miss que representarão as suas cidades.
Já está sendo anunciada a escolha da Miss Caruaru, numa festa com
muita pompa a se realizar no Clube daAABB.
A Rose está outra vez ao telefone. - Sábado será a festa da escolha
da Miss Caruaru.Você vai estar aqui? - Vou sim! Este ano me
escalaram para apresentar o Miss Pernambuco e eu tenho que
acompanhar a comitiva dos Diários Associados em algumas dessas
festas pelo interior. E vamos estar sim, em Caruaru.
- Vamos poder conversar?
- Claro! Você vai à festa?
- Vou sim! Com minha tia. Aquela que você conheceu lá em Panelas!
No sábado à noite Francisco chega à Caruaru com a equipe da TV.Ao
se aproximar do clube Rose já o aguarda. O Câmera Cláudio também
está chegando com Francisco.
Ao avistar Rose ele comenta:
- A onça já veio beber água de novo?
- Não brinca que esse caso é sério!
297
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Cochicha Francisco para que Rose não perceba.
Esta noite os dois conversam bastante.
Ele continua tentando demover Rose da idéia de alimentar essa
paixão. Mas ela parece mesmo decidida.
- Rose, qual é a sua idade?
- Dezessete anos!
- Rose eu sou dezenove anos mais velho que você! Isso me assusta!
Você não acha que precisaria encontrar alguém mais jovem pra
você?
- Se você me disser como eu posso deixar de gostar de você, aí eu vou
tentar!
- Você está me pedindo algo que sabe que não posso fazer!
- Eu nunca me apaixonei antes! Assim! É tão gostoso o que sinto por
você! Parece mesmo uma coisa muito impossível! Sabe... Às vezes eu
tenho a impressão que já nos conhecemos ha muito tempo...
No dia que lhe conheci, ao olhar pra você parecia que estava
reencontrando uma pessoa querida que não via ha muito tempo...
- Isso pode ter explicação Rose! Pelo menos do ponto de vista da
reencarnação. Quem sabe? Se já nos conhecemos de outras vidas
passadas...
- Você acredita em espiritismo?
- Eu sou espírita! Pelo menos estudo um pouco sobre a Doutrina.
Procuro me esclarecer. São tantas coisas na vida que parecem sem
resposta! E grande parte delas o espiritismo justifica.
- Pois é! Só sei que o único jeito de me sentir feliz é estar perto de
você! Como agora! Meu coração dá pulos, só de estar com você!
E lhe comunica algo que inicialmente o assusta:
- Muito breve eu vou morar em Recife! Vou ficar bem perto de você!
Ih! Agora danou-se! Pensa Francisco. Ele lhe devolve uma
298
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
expressão de repreensão no olhar. Lembrando-se que já ouviu falar
de casos em que a mulher endoida pelo cara e segue-o para onde ele
for.
- Mas pode deixar! - Tranqüiliza-o Rose. - Não sou apenas uma
jovem deslumbrada. Eu vou estudar, vou trabalhar! Quero ter minha
própria vida! - Ela parece muito decidida. E nem completou ainda
dezoito anos. Ele pondera:
- Rose! Eu não sou exatamente o melhor partido para você! E
sempre reforça considerando a diferença de idade.
- Nós já falamos sobre isso! - Retruca ela.
Vamos mudar de assunto!
Você pode me ajudar a arranjar trabalho lá em Recife?
- Posso tentar!
Francisco volta para Recife. Os contatos entre ambos vão continuar
por telefone, duas a três vezes por semana. Rose se mostra cada vez
mais carente. Já assumiu até um tratamento carinhoso para ele.
Chama-o de Beínho! O pior é que ele gosta.
Nunca fora tratado com tanto carinho assim... Mas a situação exige
um raciocínio maduro. Poderia realmente, alguém se apaixonar
apenas por uma imagem? É sobre isso que às vezes tenta esclarecer
Rose.
O tempo vai se encarregar de mostrar a ele que talvez, a Rose não
seja um mero “acaso” em sua vida. Ele já sabe que os “acasos” não
existem. São só consequências.
Mas nesse caso, consequência de quê? De ser ele um repórter de
televisão? Só isso? Ou haveria algo mais? Que ele ainda não sabe? O
tempo vai lhe dar todas as respostas.
Essa lógica não lhe basta. Nesse tempo Francisco já leu em
profundidade inúmeras obras espíritas. Já está envolvido com
299
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
aprendizado prático em centro espírita, e sabe que o destino oferece
laços incríveis.
Seria Rose uma companheira de longas jornadas em vidas passadas?
Não demora muito e ele vai ter essa confirmação.
Em algumas ocasiões Francisco acompanha o amigo Roberto
Nogueira, também apresentador da TV e cantor, em alguns de seus
shows pelas cidades do interior. Geralmente vão no sábado à noite e
regressam de madrugada. Nogueira gosta que Francisco seja seu
apresentador nesses shows.
- Rose estou indo amanhã com Roberto Nogueira para um show dele
numa cidade aí próximo de Caruaru.
- Ah! Que bom se a gente pudesse se ver! Escuta! Porque você na
volta não passa aqui em casa? Passaria o domingo com a gente!
Minha mãe quer muito conhecer você!
Ih! Agora pegou! Pensa ele. Conhecer a família de Rose... Humm...
Mas aceita o convite e combina com o amigo cantor. Vai conhecer a
família dela na companhia dele.Apenas como amigos. É isso! Está aí
a solução!
Na volta do show de manhã cedinho eles passam na casa de Rose.
Conhecem então sua família. Gente simples.
De classe média. O pai é um pequeno comerciante. Um belo café da
manhã foi preparado para os amigos de Rose. A vizinhança toda
começa a chegar. Querem conhecer o Repórter e o Cantor que estão
na casa de Rose. Um domingo fora do comum para aquela gente.
Bastante divertido.
Mas após o café Nogueira quer ir embora. Está cansado do show e
com muito sono. Francisco também.
- Não! Não vão embora! Já estamos preparando um almoço especial
300
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
para vocês!
O pai de Rose até abateu um carneiro para receber em sua casa o
pessoal da televisão! Olha aí uma tremenda saia justa!
Nogueira argumenta que precisa realmente voltar para Recife. A
pressão da família toda concentra-se em Francisco. Nogueira então
argumenta:
- Rapaz fica ai! Passa o dia com eles! Eu vou de ônibus! - Estavam
viajando no carro de Francisco. - Fica aí! Insiste ele. É até
deselegante não participar do almoço que estão preparando! Não
tem problema! Eu vou de ônibus! Numa boa!
Rose que já está colada nessa discussão também insiste:
- É Beínho! Fique aqui com a gente! Papai teve tanto gosto em
receber vocês! À tardinha você vai embora!
- Pois está bem! Vamos deixar Nogueira na Rodoviária! É aqui
perto?
Ela indica a direção e vão deixar o amigo Nogueira no próximo
ônibus para Recife.
Como diria o Cláudio se estivesse presente, a onça tá é com muita
sede. Deixa estar! Nogueira! Quando eu voltar você vai me pagar!
Por me meter nessa saia justa! Vai pensando Francisco no caminho
da rodoviária. Não dá pra falar nada com ele agora. A Rose está com
eles.
Francisco conhece então a família de Rose. O pai, a mãe e dois outros
irmãos, uma outra mocinha menor e um rapaz também mais moço
que ela. Rose é a mais velha da família.
Seu pai já está casado pela segunda vez. Após conversarem um
pouco Francisco está visivelmente caindo de sono.
- Você esteve acordado a noite toda! Não quer dormir um pouco?
Deite lá dentro em nosso quarto! Dê um cochilo! É o meu quarto e de
minha irmã. Mas ela já levantou. Você pode dormir tranqüilo na
minha cama!
301
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Caindo de sono e ressaca ele aceita. Rose está usando tudo que já
sabia para amarrar o interesse de Francisco por ela. E a cordialidade
é uma de suas armas. Enquanto isso, a mãe dela está se esmerando
preparando um laudo almoço. Umas 11h30 Francisco acorda. Rose
vai ao seu encontro e saem para uma visita rápida à casa de sua tia ali
na mesma rua.
Após o almoço ele já quer ir embora.
- Não vá agora não! Vamos dar umas voltas por ai! Você já conhece
bem Caruaru?
- Não! Da cidade mesmo não conheço quase nada!
Ela o leva para um passeio pelo Morro do Cruzeiro, um dos pontos
turísticos da cidade e a outros locais aprazíveis da cidade.
O que ela deseja mesmo é ter um momento a sós com ele para
conversarem um pouco mais. É um domingo muito divertido.
Só pela tardinha Francisco pega a estrada de volta para Recife.
Agora viajando sozinho e após tomar algumas doses durante o dia,
procura dirigir com muito cuidado. A rodovia de Caruaru passando
pela serra é famosa pelos acidentes. Novos contatos entre os dois vão
continuar apenas por telefone.
Enquanto viaja ele repassa sua vida. Ainda não sabe o motivo, mas
está se afeiçoando fortemente a ela. Imagina que isso talvez seja
apenas uma busca psicológica pelo clima de namoro, que
infelizmente já não mais existe entre ele e a esposa. Apenas uma
forma de compensação psicológica. Rose é uma moça.
Virgem. Ainda por cima, menor de idade. Ele não pretende mudar
nada disso. Precisa a todo custo descobrir um jeito de afastar-se dela.
Mas não quer magoá-la. Deve haver um jeito...
Depois de conhecer a família de Rose, agora mais que nunca ele
precisa encontrar uma solução. Rose é uma moça de boa família.
Precisa ter oportunidade de encontrar alguém apropriado, um rapaz
302
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
solteiro. Como já está habituado a deixar que o próprio tempo lhe dê
as respostas, deixa correr. Tudo tem um motivo e sua hora certa.
Confia ele.
As mulheres! As mulheres! Não lhe dão trégua. Vai pensando ele ao
volante. Sua carência afetiva acumulada é um apelo muito forte.
Como teria sido diferente se pudesse sentir-se amado assim pela
mulher que escolheu para se casar...
Francisco é um estopim de virilidade que explode com muita
facilidade. As conseqüências, bem, isso ele ainda não consegue
dominar.
Enquanto havia Divalda na parada, Francisco evitava qualquer
estreitamento no relacionamento com Rose. Mas agora... Como se
diz!Acarne é fraca...
Embora as intenções sejam boas. E Rose parece advinhar que o
caminho está aberto para ela. As suas investidas são cada vez mais
difíceis de resistir.
Como vai ser sua vida daqui em diante... Deixa correr... Deixa
correr... Não sou dono do meu próprio destino! Considera Francisco.
- Olá! Como vai!
- Vou bem Rose! E você? - Ela está novamente ao telefone.
- Vi você outro dia no Clube dos Artistas. - A televisão havia
reprisado o programa de fim-de-ano. - Ainda pretendo fundar um fãclube seu aqui em Caruarú. - Diz ela brincando.
- Estou indo morar ai em Recife já pra semana! Como já lhe falei,
gostaria que você me ajudasse ai! Você conhece tanta gente, não é?
Preciso trabalhar!
- É! Pode ser! Quando chegar faça contato. Vamos ver o que
podemos fazer por você.
Essa disposição dela em encarar o trabalho lhe dá certa
303
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
tranqüilidade. Seu orçamento doméstico não lhe permite
comprometer nada com a manutenção de uma outra família fora do
casamento. Mas podia ajudá-la a encontrar trabalho. Abriria portas
para ela. Isso não lhe custaria nada fazer.
Nesse momento, dias depois do encontro com a família dela em
Caruaru, Nogueira lhe chega com mais uma questão feminina:
-Amigo! - Diz ele,com jeito de gozador.
- Você precisa resolver a questão daquela figura que trabalha lá no
Bandepe onde eu tenho conta! Ela não me deixa em paz! Quer a todo
custo fazer contato com você!
- Nogueira! Não me sacaneia! Que conversa é essa?
- Não! É sério! Ela é manequim! Desfila nessas festas do clube do
Banorte, onde você esteve outro dia apresentando um desfile com a
Carmem Tovar. Está louca varrida por você! Não me deixa em paz!
- Ainda bem que eu não tenho conta no Banorte, hein Nogueira!
- Eu sei quem é! Diga que me deu o recado e pronto!
- Mas você não vai ligar pra ela?
- Nogueira! Eu já tenho problema demais! Vê se me poupa!
O amigo ri gostosamente da situação.
Rose já está em Recife. Inscreveu-se num cursinho e agora está ao
telefone tentando falar com Beínho.
- Ele não está! Viajou à Natal! - Informa a telefonista da gravadora
Center.
- Sabe quando ele volta?
- Acho que amanhã! Quer deixar recado?
- Diga que foi Rose quem ligou! Já estou em Recife!
Faço contato com ele depois!
O que será que Beínho foi fazer em Natal! Pensa Rose. Ela continua
apaixonada. Até tentou se desvencilhar da lembrança dele, com
outras alternativas de namoro em sua cidade, mas nada vingou. Seu
304
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
coração já havia sido entregue a Beínho! E agora... Residindo em
Recife... Poderia ser que desse certo a aproximação dos dois.
Acredita ela.
Mas esta semana Francisco está vivendo uma situação muito
dolorosa com um problema de saúde na família. Não dá para pensar
em Rose. Sua mãe telefonara no dia anterior pela manhã, falando de
Natal. Com uma terrível notícia para lhe dar:
- Meu filho! Você precisa vir aqui em Natal! Seu irmão Jasiel está
hospitalizado em uma UTI. Tentou o suicídio com um tiro na cabeça,
meu Filho! - Ela chora desconsoladamente ao telefone. Francisco
está perplexo. Meu Deus! Quanta dor essa criatura já passou em sua
vida! Imagina ele.
- Está bem! Mamãe! Ainda hoje à tarde estarei ai! Fique calma! O
que está feito, está feito! Deixemos que Deus tome conta do resto!
- Ele já foi operado. Mas ainda inspira cuidados. - Informa ela. - E o
pior! O médico me falou que ao sair do hospital ele deve ser levado
imediatamente para uma clínica psiquiátrica. Pois insiste que vai
terminar o que começou! Que vai repetir o suicídio!
Precisa de tratamento adequado!
- Não se desespere mamãe! Estarei com a senhora ainda hoje! Deus
ha de estar no caminho dele! Rese por ele!
- É só o que eu faço meu filho!
Embarcou ao meio-dia de avião e logo já está em Natal. Encontra sua
mãe no hospital. Conversa com o médico que informa sobre o estado
clínico de seu irmão.
- Mais dois dias e já poderemos dar alta a ele da UTI.
O médico confirma a necessidade de entregá-lo aos cuidados de uma
clínica psiquiátrica.Seu desequilíbrio é visível. Francisco
providencia as passagens de avião para que sua mãe vá com o irmão
para Recife. O médico garante mandá-lo direto do hospital numa
305
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
ambulância para oAeroporto.
Voltando a Recife ele faz contato com um médico conhecido, que
sempre aparecia em algumas entrevistas na televisão. Ele tem uma
clínica psiquiátrica.
- Não se preocupe! - Diz o médico. - Vamos receber seu irmão.
Vamos fazer por ele o melhor que podermos. Assim que chegar leveo para a clínica!
Dois dias após o irmão sai do hospital direto para Recife. Francisco
já os espera noAeroporto.
Do aeroporto vai direto para a clínica levando o irmão e sua mãe. Ele
é imediatamente internado. Ela fica com ele no apartamento da
clínica. Seu estado emocional realmente é bastante anormal. O
psiquiatra informa que a presença da mãe junto dele vai ser muito
bom para sua recuperação.
Inicía-se o tratamento psiquiátrico de Jasiel. Será necessária uma
permanência de trinta dias na clínica, com tratamento intensivo.
Francisco conversa com Thiago no centro espírita sobre o episódio
de seu irmão.
- Um suicídio é algo que normalmente envolve a ação de inimigos
espirituais que trabalham para desequilibrar mentalmente a vítima.
Vamos ver o que podemos fazer por ele aqui no centro. - Tranqüilizao Thiago.
Começam assim, paralelamente ao atendimento psiquiátrico,
trabalhos de ajuda para o seu irmão Jasiel, através de visitas de
socorro espiritual feitas à clínica onde ele se encontra.
Francisco recorda alguns dias após a internação do irmão, um
episódio vivido por ele tempos atrás em Natal e que contara ha uns
dois anos passados por ocasião de uma Festa de Santana em Caicó.
306
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
aquela ocasião, o irmão Jasiel comentara que estivera certo
dia à noite com uns amigos caminhando por uma rua em
Natal. Quando encontraram um pacote num cruzamento. É
madrugada. Pelo aspecto o pacote deve ser um despacho de
Umbanda. Ele e os amigos, que vinham de uma bebedeira,
macularam o despacho zombando dos tolos que haviam deixado
aquele excelente tira-gostos ali com a garrafa de cachaça. O galeto
aberto ainda estava morno. Comeram o despacho, beberam a
cachaça, depois chutaram o pacote espalhando a farofa pelo chão.
Na ocasião em que ele contara isso na roda de amigos em Caicó,
Francisco lembra que havia advertido:
- Rapaz! Isso não se faz! Não devemos mexer com o que não
entendemos!
- Que nada! Isso é coisa de gente besta!
Afirmara categórico o irmão, motivado pela soberba de seu
treinamento militar e pelo desconhecimento sobre o assunto.
Sua personalidade refletia o militar, acostumado a ação bruta,
treinado como soldado da PA, a polícia de choque daAeronáutica em
Natal.
Treinado para ser rude e enfrentar qualquer situação. Como tantos
outros militares, achava essa coisa de despacho uma tolice.
Francisco apenas lembrou-se do episódio. Não comentou nada com
Thiago. Seria prematuro fazer qualquer julgamento. A esse respeito.
Aos poucos a situação carmica de seu irmão vai se esclarecendo
durante as freqüentes reuniões de desobsessão à distância, feitas no
centro espírita de Thiago.
Os mentores espirituais informam que a cada semana estão enviando
emissários espirituais devidamente treinados, providenciando a
preparação de Jasiel para assim que puder, ser trazido ao centro para
os trabalhos definitivos de desobsessão. Seu quadro clínico
espiritual é dos mais graves. Mas com a graça de Deus, ele será
recuperado. Confiam nisso plenamente.
307
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
H
a uma lógica para que o irmão Jasiel pudesse merecer aquele
socorro. Como pessoa, em sua fortaleza muscular de militar
bem treinado, ele sempre foi um defensor dos oprimidos. Se
via alguém em qualquer lugar maltratando uma criança, um idoso ou
qualquer outra pessoa oprimida, imediatamente tomava as dores,
intervindo em favor da vítima. Talvez por isso, por seu sentimento
em proteger os desamparados, ele estivesse em posição de merecer
aquele atendimento tão peculiar. Francisco confia que os amigos
espirituais haveriam de ajudar muito na sua plena recuperação.
Por trinta dias enquanto permaneceu na clínica na companhia de sua
mãe, ele recebeu a ajuda espiritual. Houve até momentos muito
gratificantes nesse processo, materializando em Francisco cada vez
mais, a crença na efetiva ação do socorro espiritual. Numa dessas
reuniões no centro, a entidade espiritual dá informações sobre o
estado de seu irmão, e acrescenta:
- Os inimigos espirituais dele não estão conseguindo atingi-lo lá na
clínica onde está, graças à ajuda espiritual que ele está recebendo.
Inclusive ha lá uma senhora idosa. - É a mãe dele. Graças às
orações dela também. Por enquanto eles não conseguem se
aproximar dele. Mas estão lá. De prontidão. Aguardando uma
brecha para agir. Só quando ele puder ser trazido aqui, para o
ambiente energizado de nosso centro é que se poderá retirá-los de
junto dele. Ha muita dívida do passado. Que agora eles estão aqui
para cobrar. Mas fique tranqüilo. Vamos ajudar seu irmão!
Esse é um grande conforto para Francisco.
Ele sabe que pela Lei de Causa e Efeito seu irmão está recebendo o
atendimento adequado a que tem direito. Sua ignorância da
realidade espiritual não impede que possa ser socorrido.
Ele tem alguns créditos a seu favor. É com essa ferramenta que a
espiritualidade trabalha.
308
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco já leu muito sobre isso. Como fizera inúmeras vezes
com aqueles desvalidos que socorreu, colocando-se em
defesa deles, seu irmão agora está recebendo a dádiva do
merecimento. Francisco sabe. É assim que age a infinita sabedoria
da piedade de Deus.
Ele mesmo. Por quantas vezes já havia ajudado a socorrer pessoas
naquele centro espírita. Contribuindo com sua humilde experiência
de doutrinador. Agora recebe o retorno, de poder socorrer seu
próprio irmão com a ajuda dos amigos da espiritualidade ali
presentes. Coincidência? Que maravilhosa e providencial
coincidência! Aquilo era sim, fruto da infinita sabedoria Divina. O
socorro sempre aparece. Quando o paciente está pronto. Já havia
aprendido isso nos livros. Agora via na prática. Com um exemplo em
sua própria carne.
Chamado à clínica psiquiátrica no dia em que seu irmão vai ter alta,
Francisco conversa com o médico:
- Bem! Meu amigo! O que nós podíamos fazer por seu irmão já foi
feito! Ele está bem. Está equilibrado. Não repete mais que vai
continuar a tentativa de suicídio e já pode ter alta. Agora... Se você
quiser tentar outra alternativa!
Francisco agradece pelo apoio recebido para o tratamento do irmão e
vai com sua mãe e Jaziel para casa. Vai pensando... Outra
alternativa... Que outra alternativa?
Será que aquele médico é também espírita? O que o psiquiatra teria
querido dizer? Se tratava-se de atendimento espiritual, o irmão já
está recebendo. Vai ver que é isso! Conclui ele.
Seu apartamento é na Rua Sete de Setembro, esquina com a Conde
da Boa Vista, no centro de Recife.
Seu irmão está aberto. Parece demonstrar novamente aquele
temperamento divertido natural dele. Sandra e as crianças foram
309
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
orientadas para recebê-lo bem evitando comentar sobre o tratamento
e tudo corre bem.
O próprio médico havia facilitado as coisas quando sugeriu a Jaziel
que permanecesse por mais trinta dias em Recife.
Caso necessitasse retornar à clínica estaria perto. Dona Josina enfim,
coitada, pôde regressar a Caicó. O filho parecia estar recuperado.
Francisco convida Jaziel para conhecer o centro espírita do amigo
Thiago, que já lhe havia apresentado lá na TV.
De cara, houve uma empatia natural entre Jaziel e Thiago. Quem não
gostasse da figura de Thiago não gostaria de mais ninguém. Jovem
ainda, muito amável, inteligente e atencioso. Mantinha sempre um
leve sorriso deixando as pessoas muito à vontade. Jaziel se sentiu
muito bem em presença dele. Thiago também gostou muito de
Jaziel.
- Apareça lá no centro para conhecer o nosso trabalho! - Convidara
Thiago tentando abrir o caminho.
- O que você tem a perder? -Argumenta Francisco depois.
- Posso lhe garantir que a melhor coisa desse mundo para todos nós
é assumirmos que não sabemos nada e que vamos estar sempre
prontos para aprender algo. Com isso, novas realidades e
descobertas vão se abrindo para nós. É o que você vai ver lá. Ha
muita caridade no trabalho explícito do Centro Espírita. Eu gosto
do que vejo lá!
Com esses argumentos Jaziel aceita numa boa, a idéia de ir ao centro
espírita de Thiago. Os trabalhos de desobsessão direta vão começar
com ele na quarta-feira que se segue.
Thiago recebe o novo amigo com muito afago. Afinal é um irmão de
quem Francisco muito gosta. E recebe-o com muito prazer. Faz
questão de externar isso para deixá-lo muito à vontade.
310
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
omeça a reunião espírita como sempre, naquela sala em
penumbra com uma pequena luz azul pendurada sobre a
mesa, que está coberta com uma toalha muito branca, um
jarro de flores no centro e alguns copos com água, que vai ser
fluidificada durante a reunião.
Outros atendimentos de socorro espiritual são realizados e chega a
vez de Jaziel.
Seu trabalho de desobsessão foi deixado para o final, dado a sua
complexidade. De antemão os médiuns presentes já sabiam que seria
um trabalho de peso. Verdadeiras feras do mundo espiritual seriam
trazidas ali aquela noite.
Quase sempre amarradas por grilhões energéticos usados pelos
bem-feitores espirituais. Às vezes isso é necessário, tamanha é a
feracidade de algumas dessas entidades endurecidas. E no caso de
Jasiel, ha algumas delas envolvidas. Inimigos seus do passado
remoto. Experiências extraordinárias vão ocorrer ali em torno do
tratamento dele.
Ninguém espere que a atuação espiritual seja apenas um processo de
mão única. Ha sempre duas ou até mais causas de esclarecimento
envolvidas em uma única fase de tratamento. A espiritualidade é
magnânima. Como o é também o Criador. Ha sempre um acréscimo.
Recebe-se sempre mais do que o esperado.
Assim vai ser também com o irmão Jasiel. Socorro em dobro a ele e a
seus algozes. Que magnífica é a natureza infinita de Deus! Em cuja
ótica não existem criminosos. Mas apenas vítimas. Todos. Em graus
diferentes, porém. Em muitos casos vítimas de sua própria
ignorância.
311
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Q
uem fez novo contato foi a Rose. Avisa que está na cidade,
morando com suas amigas no pensionato que mensionara.
Matriculou-se em um cursinho preparando-se para o
vestibular. Marcam o primeiro encontro. Conversam sobre como
organizar a vida dela.
- Você já trabalhou em alguma coisa?
- Bem... Em fins de ano eu já trabalhei em algumas lojas em
Caruaru, trabalho temporário. Mas já tenho alguma experiência
com vendas e atendimento em lojas.
Posso lhe chamar de Beínho? - Francisco está curioso.
- Pode! Mas porque Beínho!
- Ah! Já faz tempo que eu lhe chamo assim! - Francisco olha bem
dentro dos olhos de Rose. Dá para perceber a paixão dela. E procura
direcionar as emoções dela na direção do estudo e do trabalho.
- Rose! Você precisa se dedicar aos seus estudos e trabalho...
- Não! Não mude de assunto! Você sabe que eu me apaixonei por
você, não sabe? Tudo por causa daquele nosso beijo em Panelas... Pondera ela. - Você pode até ficar bravo comigo. Mas sabe que
aquele beijo que eu lhe dei foi uma aposta que eu fiz com a minha
amiga naquele dia? Apostei que namoraria com você! E a prova
seria beijar você pra todo mundo ver! Ganhei a aposta! Era só uma
brincadeira! - Diz ela com certa ternura. - Mas não sei porque,
nunca mais pude esquecer você! Não está bravo comigo?
- Não! Só surpreso! Quer dizer que o beijo lhe traiu?
- Foi sim! - Ela ri de sua própria ingenuidade.
- Está vendo? Foi mexer com o que estava quieto!
Ambos riem. Estão se divertindo. Essa é uma situação muito
particular. Francisco continua sem saber bem como lidar com ela.
Lhe agrada muito ter o amor de uma mulher tão jovem. Mas essa
diferença de idade... Isso o preocupa.Ainda por cima, uma virgem! E
312
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
menor de idade!
Tudo aponta para algo chamado “problema”. Ele continua ouvindo
lá no mais recôndito de sua personalidade, a voz de seu pai: Você não
mexa com filha alheia!...
Procura se manter fiel àqueles princípios passados de pai para filho.
Conforme havia lhe prometido, Francisco tenta arranjar emprego
para ela. Já no dia seguinte liga para ela.
- Rose! Tenho novidades para você! Fiz um contato hoje com o Ze
Mário de Andrade! Falei de você! Como é esperta! Comunicativa!
Você pode vir amanhã de manhã à loja. Ele quer conversar com
você! Eu apresento você a ele!
Zé Mário de Andrade é proprietário de algumas pequenas lojas de
eletro-méstico, uma delas na Rua da Concórdia, vizinho ao prédio da
gravadora Center, onde Francisco trabalha como locutor.
Acaso? Bem, o certo é que Rose só poderia trabalhar um expediente
e mesmo assim, conseguiu o emprego. Ela é realmente muito
comunicativa. Uma Relações Públicas nata.
Acada semana, sempre às quartas-feiras, continuam as reuniões de
desobsessão. Jasiel continua indo lá.
Aos poucos a legião de obsessores, verdadeiros espíritos do mal, vão
sendo afastados dele. Os mais renitentes e perigosos vão ficando
para o final. Esta será a última reunião do seu tratamento.
Está presente à mesa, manifestando-se através de um dos médiuns
mais experientes do centro, uma figura realmente medonha.
Jasiel já percebeu que em alguns momentos das reuniões ele
adormece, permanecendo inconsciente durante certas revelações
dessas entidades que lhe perseguem. Já lhe foi explicado a razão
disso. Mas esta noite, ele vai permanecer consciente o tempo todo.
313
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Ha um propósito nisso.
Francisco entenderá depois. Vão ser feitas revelações que ele precisa
ouvir conscientemente. Elas vão tocar o seu espírito de forma muito
forte. Provocando alterações em sua personalidade com relação ao
conhecimento das coisas espirituais. Vai ser uma grande surpresa,
inclusive para Francisco. A inteligência do modus operandi dos
Bem-feitores espirituais é algo realmente maravilhoso.
A entidade acaba de ser incorporada. Estão à mesa, numa das
cabeceiras o irmão Jaziel. Thiago ao seu lado direito e Francisco à
esquerda. Todos sentados. Mais alguns médiuns e doutrinadores à
direita e à esquerda.
Na outra cabeceira da mesa está o médium que incorpora a entidade.
Ao seu lado direito e esquerdo estão dois dos mais experientes
doutrinadores do centro. Um deles inclusive é um simples motorista
de táxi. Mas nessas ocasiões, assistido intuitivamente por seus
mentores na espiritualidade ali presentes, ele se transforma, numa
pessoa de extraordinário conhecimento das Leis de Deus.
Seus conselhos são sempre muito apreciados. E de muita utilidade
para o esclarecimento das entidades sofredoras trazidas ali. É ele que
dá assistência àquela entidade acusatória que agora está diante de
Jasiel. É seus mais ferrenho inimigo do passado. Esboça o sorriso
mais debochado possível ao se dirigir a Jasiel. E após uma
gargalhada sinistra:
- Ah!!! Quer dizer que é você o bicho papão que anda mexendo com
nossos despachos nas encruzilhadas, hein!...
E repete a gargalhada.
Francisco e principalmente Jasiel estão paralisados. Ninguém além
deles sabe desse detalhe, que o irmão lhe havia contado tempos atrás,
vilipendiado um despacho que encontrou na encruzilhada certa noite
em Natal, comendo o frango com alguns amigos, bebendo a cachaça
314
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
e espalhando a farofa no chão.
Aquilo é uma revelação extraordinária!
Quem? Se não Jasiel, montado em sua incredulidade, necessita
desse depoimento? Naquele momento, para Francisco tudo foi
ficando bem claro. O sucesso de seu tratamento dependia em grande
parte de sua crença. E ela está agora sendo posta à prova. É incrível!
Ninguém poderia adivinha ali, algo de que só eles dois sabiam!
- Que tal? Gostou do tiro que levou na cabeça? - A entidade enfatiza
seu depoimento acrescentando mais gargalhadas sinistras. Jasiel
continua perplexo. Esta entidade realmente sabia o que havia
acontecido. Só podia estar lá naquela noite na encruzilhada. Deduz
ele.
- Mas não se preocupe! - Enfatiza sinistramente o espírito do mal. Não queremos que você morra ainda não! Ainda tem muitas contas
que precisamos acertar com você! - E continua dando gargalhadas.
Ha certas ocasiões, nem sempre, mas às vezes, algumas cenas
espetaculares são mostradas a Thiago em sua tela mental. Essa é
mais uma característica de sua mediunidade. Esta noite ele está
vendo coisas horríveis. Cenas que podem ajudar no entendimento
das razões das perseguições de algumas entidades, em casos muito
específicos, como aquele de Jasiel.
Nessas ocasiões desobsessivas quase sempre Thiago se mantém
muito tranqüilo em seu recolhimento e orações. Mas nesse momento
ele demonstra uma certa inquietação.
Depois da reunião, aproveitando que Jasiel não está por perto
Francisco indaga:
- Thiago! Hoje você mostrava-se muito inquieto durante a
desobsessão de Jasiel! Que foi? Alguma coisa anormal?
-Umas cenas que me mostraram meu amigo! Enquanto aquela
315
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
entidade estava ali. Eu vi cenas de uma guerra na Espanha. Vi
pessoas com o crânio aberto à golpes de espada. Uma coisa terrível
de se ver! E de alguma forma, que eu não sei qual, seu irmão estava
lá! Tinha relação com aquilo! Me pareceu que ele era um daqueles
soldados em luta.
Jasiel vem se aproximando e eles encerram a conversa reveladora.
Como tratava-se de uma entidade muito endurecida, e nesses casos a
ação do doutrinador nem sempre é útil, logo é retirada do ambiente,
sem que nada pudesse ser feito por ela no plano material.
Visando o esclarecimento do irmão, Francisco pergunta a Thiago:
-E aquela entidade Thiago! O que será feito dela?
-Infelizmente ela não está ainda em condições de ser socorrida. Está
completamente fechada ao esclarecimento e à luz.
Nada que o doutrinador lhe diga vai fazer diferença. Ela se alimenta
exclusivamente do ódio. Sua brutalidade está acima de qualquer
nível de socorro. São enviadas para seus ambientes de procedência.
Verdadeiros antros de sofrimento. Vai levar algum tempo até que
esteja pronta para receber o socorro do resgate. É também uma
vítima. Em estágio muito perigoso. - Esclarece Thiago.
Voltando para casa Francisco e Jasiel conversam:
- Incrível aquilo! Aquela entidade só podia estar lá no dia que
destroçamos o despacho na encruzilhada. Como é que poderia
saber? -Argumenta Jasiel.
Agora pelo menos já ha uma fresta aberta em sua mente para aceitar a
realidade espiritual. Provavelmente será através dela que a luz de
muitos outros esclarecimentos entrará. Assim espera seu irmão
Francisco.
Como já disse alguém muito famoso: “Ha muito mais coisa debaixo
desse céu, do que pode conceber a nossa vã filosofia!”
316
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Q
uem desmerece a realidade da espiritualidade o faz por
completa ignorância. Somente os tolos estão absolutamente
convencidos de que sabem tudo.
Aquela fora a última sessão de seu tratamento espiritual. Agora ele já
se sente muito bem, podendo voltar ao seu trabalho em Natal. Resta
apenas um detalhe de aclimatação que Francisco vai discutir logo
mais em Caicó, por ocasião de mais uma Festa de Santana.
Uma coisa, entretanto incomoda o irmão Jasiel. Ter que voltar ao
trabalho na mesma repartição na Universidade Federal. O mesmo
ambiente onde ocorrera a tentativa de suicídio. Isso não seria bom.
Foi então providenciada uma licença médica de três meses para se
pensar num jeito de contornar essa situação.
Alicença já vai terminar. Falta menos de um mês.
Entrou Julho e é mês de Festa de Santana em Caicó. Francisco vai
estar lá novamente. Leva consigo a reportagem da TV para uma
cobertura da festa.
Já em Caicó, encontra-se com Jasiel. Ele está muito bem.
Completamente restabelecido.
Pelo visto, física e espiritualmente.
Francisco sabe que o Senador Dinarte Mariz está na cidade. Solicita
uma entrevista com ele e vai à sua casa, acompanhado de seu pai e de
Jasiel. A intenção é pedir a ajuda do senador para conseguir a
transferência de seu irmão dentro da Universidade, para uma outra
repartição, evitando a ele o transtorno de ter de encarar as mesmas
pessoas de seu anterior local de trabalho. O senador os recebe muito
bem. Feita a entrevista o senador agradece dizendo:
- Muito obrigado, pela oportunidade da entrevista! O que precisar
de mim, pode dispor!
317
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Precisamos sim Senador!
Francisco relata ao senador a problemática de seu irmão, solicitando
dele os préstimos para interferir junto à Reitoria da Universidade
para transferí-lo para outra unidade.
- Perfeitamente! Conheço muito o atual Reitor! É meu amigo! Para
onde você gostaria de ser transferido meu jovem? - Pergunta ele a
Jasiel.
- Para a Faculdade de Farmácia! Senador!
- Pois muito bem! Vou enviar esse bilhete para o Reitor. Entregue a
ele, pois tenho certeza que nosso pedido será acolhido!
O Senador tinha sua força política. Logo na semana seguinte Jasiel
foi transferido para o outro setor. O pedido foi entregue ao Reitor
pelo próprio Francisco em seu regresso para Recife, passando por
Natal.
Claro que o Reitor teria todo interesse em receber o repórter famoso
da televisão.
Jasiel vai continuar a sua vida normalmente. Chega a casar-se com
uma jovem caicoense. Tem um filho com ela. O Jádson. Na verdade
Jasiel deixou dois filhos. Uma menina, Jasiele, nascida um pouco
antes, de outro relacionamento, mas também reconhecida e
registrada como filha.
Mas ele não chegou a viver muito. Havia amealhado algumas
inimizades. Uma delas, um jovem arruaceiro envolvido com
entorpecentes que passava freqüentemente pela rua onde Jasiel
morava com a esposa e o filho ainda bebê. Foi assassinado com um
tiro.
A mão do destino cármico atingiu-o dessa vez implacávelmente.
Quem sabe, estava escrito... Que seus algozes o levariam de volta ao
mundo dos espíritos de forma assim tão drástica.
Seu desaparecimento deixou muita saudade em família. Sua imagem
318
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
continua sendo lembrada com muito carinho por seus familiares.
Essa Festa de Santana também foi marcante para Francisco, de uma
outra maneira. Todos querem fazer contato com ele. É o sábado de
feira. Logo cedo a esposa do amigo Adel Barros, uma morena tipo
baiana, sai na porta da frente da casa, fica observando os transeuntes,
e pergunta a Francisco:
- Escuta! Aqui não tem gente de cor? - Ela está curiosa. Só passa
gente de pele branca, homens e mulheres à caminho da feira. Pela
primeira vez Francisco se dá conta dessa característica peculiar de
Caicó nessa época. E vai descobrir mais tarde a razão disso. A
maioria das famílias alí fixadas desde o império, trazem sangue
europeu. De Portugal. Através da penetração das milícias
portuguesas em terras do Seridó e também de Holandeses.
- Não Sílvia! Tem sim! Poucos. Mas tem!
E Lembra-se do preto Antonio Preto, que mora ali perto na mesma
rua, três casas após.Assim conhecido certamente por isso mesmo.
Por ser uma das poucas pessoas de raça negra pura em Caicó nessa
época. Sua origem, pelo que sabe, vem do Quilombo dos Palmares,
emAlagoas. De tempos imemoriais.
Mas não seriam tão poucos os pretos de Caicó. Afinal já existira até a
década de 60 um clube para eles. O Caicó Esporte Clube. Conhecido
como O Clube dos Morenos. Esses argumentos deixam Sílvia mais
sossegada.Afinal ela é de origem negra.
Antõi Preto - assim lhe chamam os mais íntimos, - é uma pessoa de
alma boa. Um preto corpulento, sempre rua a cima, rua abaixo,
montado em sua bicicleta, fazendo todo tipo de trabalho. De
fabricação de lamparina de zinco a trabalhos de pedreiro. Tudo ele
dá conta.
319
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Estão comentando que em certa ocasião, Pedro Elias pretendia
construir um pequeno ambiente nos fundos do muro da casa para
guardar bolas de fumo. Um pequeno depósito. Contrata o pedreiro
Antõi Preto. O primo Cíço está ajudando na obra, traçando a massa
de cimento lá fora na calçada e levando em baldes lá pra dentro.
Conversam animadamente. O primo Çico acaba de avistar lá fora um
avião passando a grande altitude. E chega lá dentro comentando:
- Ah! Coisa bem feita é o avião! O danado voar naquelas alturas e
não cair! -Antõi Preto, jogando massa na parede, só escuta.
Pedro Elias, por sua vez, tem uma observação a fazer:
- Mas bem feito é um navio home! Que carrega não sei quantas
toneladas de peso por cima d'agua e não afunda!
Antõi Preto, que tem uma fala bem estiraaaaada, então argumenta:
- Vocês dois são uns branco muuuito bêêêsta! Mais bem feito é os
nossos cuuuis!
Porquê Antõio? - Pergunta Pedro Elias dando boa gargalhada.
- Purquêêê! É Furaaado, vive de cabeça pra baaaxo... E as cooisas
não caaai!
É humanamente impossível se conviver com figuras como estas e
não guardar na lembrança alguns de seus quadros burlescos. Faz
parte da cultura deles. Eles são pontos, vírgulas e interjeições de
nossa própria história. Estarão para sempre em nossos corações.
320
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
último sábado da Festa de Santana está animado. E
Francisco vai viver emoções bem fortes. Acaba de recebe
uma visita interessante. É o Leônidas. Seu antigo amigo de
infância.
Informado de que Chico Elias está na cidade para a festa Leônidas
vai lá em casa de Pedro Elias ver se encontra o amigo dos tempos do
sítio Riacho do Meio. Agora famoso. Será que ele ainda me
reconhece? Imagina Leônidas.
-Meu amigo Leônidas! Como vai você!
Trocam um forte abraço. Leônidas já casou. Tem vários filhos.
Francisco apresenta o amigo de infância aos seus companheiros da
TV. Fala um pouco das lembranças de ambos na infância.
Leônidas continua morando e trabalhando lá no sítio. Veste uma
roupa bem simples e só tira seu chapéu de palha da cabeça ao entrar
em casa retraidamente, colocando-o sobre as pernas ao sentar no
pequeno terraço para alimentar um bom papo. Ele fala de seu
trabalho, da vida no Riacho do Meio e não deixa de observar:
- Mas Chico! Quem diria hein! Você hoje é famoso, não é? Vive na
televisão! A gente vê você aqui em Caicó na TV!
Asimplicidade de Leônidas é tocante.
Algo chama a atenção de Francisco. Uma imagem que o deixa
profundamente tocado. As mãos de Leônidas! Estão completamente
endurecidas de calos e rachaduras. De tanto trabalho no cabo da
enxada. Francisco emociona-se vendo aquilo. E pensa: Meu Deus!
Esse que aqui está poderia ser eu. Se meu pai não nos tivesse trazido
para a cidade logo cedo. Essa imagem fica em sua memória para
sempre. Seu amigo. Seu companheiro de infância. Ali está em sua
frente. Feliz por lhe ver. Mas sua imagem transmite uma profunda
321
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
sensação de pena. Seus olhos são entristecidos. Sua natureza fala
através deles.
Quem seria realmente você Leônidas!
Na imensa longevidade dos séculos de reencarnações. Imagina
Francisco, que agora já tem muita bagagem de informações sobre a
realidade das encarnações na raça humana do planeta onde vivemos.
O que estaria pensando Leônidas nesse momento?
Percebendo a chocante diferença entre ele e o amigo de infância?
Francisco se pergunta: Porquê Oh! Deus? Que razões impediriam
Leônidas, de merecer uma vida melhor do que aquela que está
levando? Se viera ao mundo no mesmo ambiente que o seu! Naquele
mesmo sítio! Cercado das mesmas dificuldades e da mesma
condição paupérrima!
Negar a possiblidade da Inteligência Cósmica na obra de nossas
vidas, através do aprendizado em sucessivas reencarnações, seria
relegar o ser humano e a vida a um plano sem importância. Somos
animais sim, como tantos outros, mas carregamos uma grande
diferença; estamos dotados de uma extraordinária ferramenta
sensorial de inteligência e de livre arbítrio para buscar-mos nossa
própria elevação.
Mas tudo nesse momento é festa. E não falta ocasião para a diversão.
Outra vez Pedro Elias está tendo a enorme satisfação de oferecer o
grande almoço em família nesse período de festa. Vários de seus
filhos, alguns que moram em outros estados, os cunhados, as noras,
os netos, que já são um bando correndo pela casa, todos vão estão
presentes no almoço. É uma ocasião propícia para algo que
Francisco deseja fazer.
Pedira na noite anterior ao cunhado Rony que leve sua mãe, a Dona
322
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Iracema Trindade para participar do almoço do domingo. Sem
explicar do que se trata ele recomenda:
- Não deixe de levá-la Rony! Eu vou ter muito prazer de tê-la
conosco em nosso almoço amanhã!
Dona Iracema já é uma senhora viúva. De bastante idade. Já não é
mais professora. Mas mantém seu equilíbrio perfeito.
No almoço ela também está lá. Recebida com alegria por todos.
Como sempre, muito alinhada. Uma senhora alta e esguia. Muito
elegante. Todos já se postam à mesa. Francisco toma a palavra:
- Por favor! Não sentem ainda! Eu desejo fazer um agradecimento.
Pedi a Rony e a Lurdes que trouxessem dona Iracema para este
almoço porque eu tenho um agradecimento para fazer a ela.
Sobre as muitas vezes que durante o desempenho do meu trabalho
no rádio e na TV, eu tive a enorme satisfação de lembrar-me dela.
Eu fui aluno de dona Iracema no grupo escolar. Ainda guardo na
memória dona Iracema, muito nitidamente, o dia em que fui
agraciado em sua prova de redação com uma nota 10. E hoje ainda
lembro perfeitamente da expressão que a senhora usou para
homenagear esse simples aluno seu.
- Apontando-me para todos os demais alunos como um exemplo.
Lembro que a senhora me disse, entregando-me a minha prova:
Você daria um excelente jornalista!
Alguns ali já se mostram emocionados. Ela certamente também.
Pois aqui está Dona Iracema! O seu jornalista! Para lhe retribuir
com grande prazer a homenagem. A senhora é também responsável
pelo que sou. Pelo desempenho que procuro dar ao meu trabalho
jornalístico no rádio e na TV. Muito obrigado! Por haver me dito
aquelas coisas. Num tempo em que eu nem bem sabia o que seria um
jornalista. Muito obrigado!
Este é para ele um momento inesquecível. Pelo prazer de também
homenagear a sua grande Mestra. Em breves palavras dona Iracema
323
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
agradece a homenagem.
E agora vamos à buchada! Que a emoção aumentou a fome! Com o
que concorda plenamente o cunhado Rony, que nunca foi chegado a
formalidades.
- Isso sim! É que é conversa!
Cochicha ele com alguém ao seu lado. O encontro vai ficar na
memória de Francisco como - OAlmoço de Dona Iracema.
324
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
T
rês meses se passou e Rose já é campeã de vendas na loja.
Uma iniciante. Sua performance de vendedora surpreende a
todos na loja. Francisco agora reside também no centro da
cidade. Estando muito perto dele, a gravadora é no prédio vizinho,
não falta oportunidade para contato entre os dois. Nos fins de
semana costumam ir às boates, freqüentar alguns locais de
badalação da noite em Recife. Ela parece muito feliz.
Em casa, a vida de Francisco é muito comum. Chegar sempre tarde
da noite é natural já ha muito tempo. A esposa parece não tomar
conhecimento. Mantém-se apática. Sua preocupação agora é
embalar seu lindo bebê. Nunca parece estar interessada em preservar
o esposo. Desde que ele venha dormir todo dia em casa!...
Mas assim como as ondas se afastam quando se joga um pedra
dentro d'agua, os dois estão aos pouquinhos se afastando mais e
mais. Vivem uma relação muito peculiar. Que poderia ser descrita da
seguinte forma: um casal aproxima-se de uma floresta. Ha ali duas
veredas. Eles precisam penetrar na floresta. Um escolhe. Vamos por
ali? O outro aponta a outra alternativa: Não! Vamos por ali. O outro
insiste: Bobagem! Vamos por aqui! Mas o outro faz questão: De jeito
nenhum! Vamos por aqui! E assim, quase sem se comprometer, cada
um segue a sua escolha. Eles penetram na floresta.
Os dois caminhos não são paralelos. Afastam-se em forma de V. No
começo da caminhada um grita: Hei! Você está aí? Estou! Responde
o outro.Aos poucos vão se distanciando ainda mais.
- Hei! - O outro agora já está ouvindo bem baixinho.
Cada vez mais a voz do outro vai se distanciando...
Até se tornar completamente inaudível.
É assim que Francisco e Sandra estão vivendo. Já quase não escutam
a voz do outro.
À noite Francisco e Rose vão se encontrar. Ela quer dar informações
do seu trabalho na loja. Mas no fundo, no fundo, eles estão se
sentindo fortemente atraídos.
325
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
oisa de hormônios jovens em ebolição. Ela informa que vai
muito bem no trabalho. Seus méritos estão sendo apreciados
na loja.
- Que bom! Fico feliz de poder abrir portas para você!
- E o coração? Você também me deixa entrar?
Ambos riem. Estão se experimentando. Faz parte do jogo da
sedução. Tudo tem que parecer muito natural. Rose sabe. Bem lá no
fundo ela sabe com sua astúcia feminina, que Francisco tenta resistir
ao seu amor.
- Você não perde tempo hein! - Ressalta ele.
Novos encontros se sucedem. O relacionamento com a Rose está se
solidificando mais a cada dia. Mas Francisco tem muito receio.
Precisa arranjar coragem pra dizer a ela que é um homem casado. E
que não está disposto a se ausentar de sua família.
Ha um novo encontro previsto e este vai ser decisivo. Pensa ele. O
que Rose sente e faz toda questão de demonstrar não é uma simples
paixão. Dá para perceber.
Já faz meses do primeiro encontro e do beijo lá em Panelas. E
Francisco ainda continua sem saber como lidar com essa situação.
Quer evitar que ela sofra. Mais dia, menos dia, ela vai saber que ele é
casado.
Além do mais, sem saber explicar, seu ego lhe diz como é
gratificante ter uma mulher realmente apaixonada por ele.
Independente de sua idade. Mas assim, tão inocentemente
apaixonada, como ele sabia que sua esposa nunca puderia estar. Já
está convencidamente certo de que ambos haviam se casado por uma
obrigação, por um laço do destino.
Algo que só se poderia entender aceitando a Lei de Causas e Efeitos.
Ou seja, conseqüências da Lei do Carma.
Mas, surpreendentemente, embora sentisse que poderia se apaixonar
também por aquela jovem, algo ainda lhe cala bem no fundo. A idéia
de que nada será suficientemente comprometedor, a ponto de retirá-
326
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
lo do convívio de sua família. Até torce para que Rose não leve
aquilo à sério e o esqueça. Ha tantas mulheres pontilhando sua vida
que a ausência dela não iria fazer falta. Imagina. Mas a ordem natural
das coisas não vai obedecer à sua vontade.
Decide contar a ela. Não ha como continuar assim. Enganando-a.
Alimentando mais e mais o amor dela. E revela tudo.
- Me perdoe Rose! Lembra que ha algum tempo eu lhe disse que não
era a pessoa ideal para você?
- Lembro sim!
- Pois é! Não sou! Rose! Realmente não tenho um futuro para lhe
oferecer. Eu já sou casado! - Esperando um grande impacto da parte
dela, ele se surpreende com sua frieza.
- Eu já sabia! - Responde ela com serenidade.
- Como? Desde Quando?
- Já faz tempo! Um dia peguei um documento seu que dizia seu
estado civil: casado.
- Porquê você não disse nada Rose? - Ela parece estranhamente
tranqüila.
- Não tive coragem de abordar você sobre isso! Não tive coragem de
correr o risco de lhe perder! Já estava apaixonada por você! Aliás,
sempre estive! Desde o começo! Não pude! Preferí dividir você com
sua esposa do que lhe perder para sempre! Isso é mais forte do que
eu! - Francisco a abraça carinhosamente.
- Oh! Rose! Como você conseguiu viver todo esse tempo sem
desabafar nada!
- Só Deus sabe! - Ela se mostra estranhamente acomodada com a
situação. - Beínho eu amo você de verdade! Nunca amei ninguém
desse jeito! Não posso lutar contra meu coração! Bem que tentei
algumas vezes! Mas isso tem sido mais forte do que tudo para mim!
Nunca pensei que amaria tanto alguém assim... O que eu poderia
fazer?
- Somente silenciar. E esperar que um dia essa situação pudesse se
esclarecer... E agora... estou com medo! - Ela vacila. - O que você vai
327
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
fazer?
O que ele poderia fazer? Francisco prefere permanecer em silêncio
abraçando-a com ternura. Respeito. E tudo mais que um homem de
verdade deve render de gratidão a uma mulher. Ainda não sabe o que
dizer. Imaginou que fosse bem mais fácil. Que ela não aceitasse e
que decidisse afastar-se dele. Mas a reação dela o surpreende!
Os dois permanecem ali por alguns instantes abraçados em silêncio.
Só ouvem seus próprios corações.
Porque a vida está fazendo isso comigo? Pensa ele.
Agora mais que nunca, tem certeza de que Rose já existira em sua
vida em alguma reencarnação passada. Isso não é obra do mero
acaso. O que fazer? Nunca havia estado numa situação igual a essa.
Precisa dar tempo ao tempo. Sempre confiou na sabedoria silenciosa
do tempo. Quem sabe, qualquer dia ela resolve enfrentar a
realidade... E desista dele. E ele? Como ficaria?
Agora percebe o quanto ela merece o seu amor. Pela primeira vez na
vida está entregando sem reservas o seu coração a uma mulher. A
barreira da trava psicológica trazida desde a puberdade está
finalmente sendo rompida. Por uma jovem dezenove anos mais nova
que ele.
Entretanto, por algum tempo ele luta contra essa nova realidade. Mas
não ha muito o que fazer. Sumir da vida dela? Isso lhe parece muita
canalhice e convardia. Desabafa com o amigo:
- Fernando! Estou numa fria!
- O que foi?
- A Rose!
- O quê? Engravidou a menina?
- Não! Amigo! Está louco! Nós só namoramos! Não teve sexo ainda
não!
328
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Fernando agora acha muita graça da situação.
- Não teve sexo ainda! Você! E qual é o problema?
- Estou gostando sério dela! - Francisco fala da situação com certa
tristeza.
- Porquê ela só apareceu na minha vida agora? - Desabafa com o
amigo.
- É! Pelo visto você está frito. Mas que nada! Qualquer hora você sai
pra outra e deixa Rose pra lá!... - Tenta contemporizar Fernando.
- Não é tão simples assim! - Reconsidera Francisco.
Tempo! Tempo é tudo o que precisa. Não dizem que o tempo se
encarrega de tudo? Mas Rose já vai completar dezoito anos. Isso não
vai ficar só em namoro inocente!...
Dai por diante, nunca mais haveria uma “outra” na vida de
Francisco.
A vida é um jogo. E essa é sua pior sinuca de bico.Vamos ver no que
dá. Pensa ele, com esperanças de que o destino ofereça uma curva de
saida.
Por algumas vezes Francisco já percebeu as insinuações sutis de
Rose provocando a possibilidade de um relacionamento completo
entre os dois. Ela não havia ainda completado 18 anos. No início ele
faz de conta que não entende. Mas depois acha melhor lhe fazer ver
que o relacionamento sexual entre ambos só poderá existir quando
ela for maior de idade. Quando civilmente puder decidir qualquer
coisa em sua vida. Sem arrependimentos. Sem acusações. Ela
compreende a posição dele e continuam o namoro assim mesmo.
- Quando for dona de sua própria liberdade! Principalmente, de sua
liberdade psicológica! Certo?
- Está bem! - Responde ela.
Afinal, sua liberdade precisa ser absoluta. Nesse tempo a liberdade
sexual da mulher ainda é um tabu.
329
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Ainda faltam alguns meses para Rose atingir sua maioridade. Ela
demonstra aguardar isso com certa ansiedade.
Enfim, acontece. É seu aniversário. Ela faz questão de lembrar:
- Hoje eu completo dezoito anos! Diz isso de forma provocativa.
Muita naturalidade. É tudo que Francisco procura administrar nesta
relação. E agora não tem saída. Vão ter que resolver essa parada. De
verdade. Como se acabassem de casar. Agora ela pode se sentir
mulher por inteiro.
- Rose! Eu imagino que você sonhasse com um uma noite de núpcias
normal. Dentro da realidade natural do casamento... Entretanto,
não está sendo assim. Como você se sente?
Francisco aborda Rose dessa maneira, pois se preocupa com os
sonhos dela.
- Eu me sinto muito feliz Beínho! Tenho você de uma maneira
diferente, dividindo-o com sua esposa e aceito isso com
naturalidade. Sei que você me ama. Isso é o que importa! Como toda
moça eu às vezes sonhei realmente, entrar numa igreja para casar!
Mas nesse momento o que me importa é que estou muito feliz! E se
estivesse casada, com tudo conforme o figurino, e não fosse feliz?
Não tem tanta gente vivendo assim?
Isso parece uma acusação aos ouvidos dele. É o mesmo que dizer:
veja o seu caso!
- É bom ouvir isso de você! Eu me preocupo com essas coisas! Você
ainda é tão jovem.... Ainda tem muita coisa para aprender com a
vida! E não quero que você se sinta infeliz! Nem quero me sentir
culpado!
Em reposta, ela o beija com ternura. Esquecem o assunto. Agora têm
muito para viver.
O que Francisco realmente não consegue revelar a ela é sua enorme
preocupação em relação à família. Principalmente pelos filhos. Se
não houvesse filhos já estaria separado da Sesposa ha muito tempo.
330
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Desde Natal, quando vieram para Recife. Mas eles são reais. Agora
são três. O menino Ramatís, desejado ha tempos como uma possível
forma de reaproximação definitiva do casal, ainda está de colo,
enchendo a todos de muita alegria em casa.
O casamento dos dois não tem mesmo remendo. Isso é ponto
pacífico. As diferenças continuam gritantes. O desamor continua
persistindo, machucando a ambos. E por tabela, os filhos também
são afetados.
Essa é a triste realidade dos casamentos mal sucedidos. Os filhos
pagam um preço também, sem terem culpa.
Não são eles as causas dos descasamentos. Mas a presença do bebê é
uma atenuante, para minimizar os descontentamentos dos dois.
Francisco se esforça para enxergar Sandra de uma outra maneira,
mas não consegue.
Com toda a experiência dos conhecimentos espirituais que já tem,
ele pode deduzir perfeitamente que um, é carma do outro. O destino
está cobrando dívidas que certamente eles acumularam em vidas
passadas. Agora, devem tentar contemporizar um pouco, procurar
amenizar os descontentamentos, para não agravar esse carma.
Os filhos precisam dele! Disso ele não abre mão. Quanto ao preço a
pagar? Qualquer um é muito barato considerando a importância que
têm para ele. Mesmo sem qualquer solidez o casamento de ambos
ainda precisa ser mantido nas aparências por um bom tempo. E
freqüentemente a consciência de Francisco lhe cobra pela relação
que está mantendo com Rose fora do casamento. Já faz quase dois
anos que estão convivendo.
Ela se realiza plenamente também em seu trabalho. E sua
performance de vendedora-relações públicas deixa Francisco
inseguro. Tem ciúme dela. Fica imaginando todos os papos que ela
331
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
mantém com pessoas diferentes na loja onde trabalha. Com homens
também. Claro! Detalhes que somente afetam uma mente insegura...
E nesse momento ele está muito inseguro. O ciúme está sendo muito
bem guardado em seu subconsciente. Pronto para se revelar a
qualquer momento. Há uma dificuldade. Francisco nunca aprendeu
a viver sob pressão. De qualquer tipo. O ciúme está agindo sobre ele
como uma pressão.
Rose não percebe nada. Ser alegre e comunicativa com as pessoas é
da sua própria natureza. Por isso mesmo está se revelando tão bem
no setor de vendas da loja. Ela nem imagina que Beínho está sendo
atingido tão duramente pelo ciúme. Dezenove anos de diferença na
idade de ambos pesa na insegurança dele. Fraquezas humanas! Ah!
Fraquezas humanas!
O que o ser humano não é capaz de fazer movido por suas fraquesas e
inseguranças...
Para ele, a relação está dolorosa.
Pronta para ser negativada a qualquer momento. É! Quem mandou
tirar a trave do coração? Cobra seu ego machista.
Uma manhã como outra qualquer. Logo cedo antes das 08h00, Rose
ainda não saiu de casa para o trabalho e telefona para Francisco.
Ambos discutem por uma amenidade qualquer. Coisa sem
importância. Nada que qualquer bom senso de prudência não
pudesse contemporizar. Mas o ego de Francisco entra em cena
imediatamente. Acabe com esse sofrimento de uma vez! Você não
foi sempre tão decidido nas suas decisões? Como está se permitindo
agora amargar esse ciúme? Não vai fazer nada? Tome uma decisão!
Já!Agora!
É uma manhã de segunda-feira e ha muita adrenalina proveniente da
ressaca do fim de semana no sangue de Francisco. Isso é o bastante.
Adiscussão está insuportável.
- Olha Rose! Quer saber de uma coisa? Vamos acabar com isso de
332
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
uma vez! Está encerrado nosso relacionamento! Eu não estou feliz
com você e vamos encerrar tudo!
Disse isso sem dar margem para que Rose interferisse. Sem dar a ela
oportunidade de argumentar. E secamente desliga o telefone.
Seu ego exultou. Isso! Assim é que se faz! Esse é o Elias que eu
conheço!... Ele já está na gravadora. O telefone toca outra vez. A
telefonista atende.
- É Pra você!
- Diga que não estou!
- Mas ela insiste. Diz que acabou de falar com você!
- Diga que eu acabei de sair!
Francisco sabe ser cruel quando seu indomável ego está
comandando as ações e as circunstâncias o pressionam. Instrumento
da personalidade humana, cuja atuação em nossas emoções ele já
havia estudado nos livros de psicologia e psicanálise. Já conhecia
bem o poder dessa fera. Ainda mais uma fera ferida. Não faz mais
contato com Rose. Não atende mais telefonema seu.
Os dias vão se passando. Na primeira semana após o desfecho
estranhou não tê-la visto mais chegando para o trabalho na loja. Mas
não se importou. Melhor assim! Deve estar procurando não cruzar
comigo! - Pensa ele.
O amigo Fernando logo é informado da situação.
- Não lhe falei! Ah! Sai pra outra!
Mas Rose havia marcado cadeira cativa no coração de Francisco.
Nunca mais haveria uma outra em sua vida de casado. Ele no
momento está raciocinando que será melhor estar mais disponível
em casa para a família. Está chegando cedo todas as noites. Mas isso
não faz a menor diferença para Sandra. Suas decepções com
Francisco também já haviam demarcado a linha das limitações. Sua
grande paixão é seu belíssimo bebê. E isso é muito bom. Enche-o de
carinho. Que ele muito precisa para crescer adornado pelo
333
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
maravilhoso sentimento materno. Vai ser bom para ele. As meninas
também estão muito contentes com a chegado do pimpolho. É seu
brinquedo vivo. Nesse período, se houvesse existido amor de
verdade entre Francisco e Sandra, as portas estão escancaradas para
uma reaproximação. Mas a distância entre ambos permanece. Ele se
contenta enfiando a cabeça em seus livros. A leitura é sua grande
viagem. Continua empolgado lendo a obra inteira de
Ramatís/Hercílio Maes.
334
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
o lado do amigo Fernando Freitas Francisco faz parte da
diretoria do Sindicato dos Radialistas de Pernambuco. O
sindicato vai enviar dois representantes a um congresso de
radialistas que se realizará na semana seguinte em Curitiba, no
Paraná. Ocasião para uma boa viagem. Lurdinha, esposa de
Fernando também está com eles.
No último dia do Congresso, enquanto os congressistas estariam
deliberando as decisões ali tomadas, Fernando solicita a Francisco
para que acompanhe Lurdinha numa visita que ela deseja fazer à
matriz daAMORC no Brasil, ali em Curitiba.
O Antenor, irmão de Lurdinha é membro da Rosa-cruz. Ela tem
muita curiosidade de conhecer a sede da AMORC. Francisco
também já foi antes convidado duas vezes a entrar para a ordem
Rosacruz. Nunca se decidiu a essa filiação. Mas já leu algumas obras
de autores Rosacruzes.
Também tem curiosidade de conhecer a sede da AMORC. E vai com
ela.
Só para relembrar, Lurdinha é uma médium atuante e de grande
sensibilidade. Descem do táxi em frente a AMORC e si dirigem por
uma passarela de tijolos vermelhos entre canteiros de grama muito
verde. Chove fininho. Nas paredes do prédio, imagens bem grandes
de figuras egípcias pintadas. (Ver foto). O cenário da AMORC é
realmente muito bonito.
Próximos já da porta de entrada do prédio, Lurdinha é tomada por
forte transformação mediúnica e permanece por alguns instantes em
desequilíbrio corporal, tentando resistir àquela manifestação.
Entre consciente e semiconsciente, cambaleando um pouco, ela diz
algumas palavras que Francisco houve claramente:
- Maria! Maria!... Você é uma das nossas!...
Alguém parece estar falando através dela. Ela reage tentando
permanecer consciente. Cambaleia. Francisco a ampara segurandoa pelos ombros. O corpo dela está novamente em desequilíbrio. Ela
335
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
fala com voz diferente:
- Diga a ela! Ela é uma das nossas! - E imediatamente toda a reação
desaparece. Lurdinha está novamente consciente.
Afetada com a manifestação mediúnica inesperada, claro. Mas está
novamente consciente. Para tranqüilidade de Francisco, que já se
preocupava um pouco sem saber como proceder naquela situação
inesperada e mais ou menos pública.
Ainda bem que em razão da chuva fina não havia ninguém por perto
para presenciar aquela cena. Eles entram enfim na recepção da
administração do prédio.
Um pequeno escritório, algumas pessoas jovens trabalhando com
algumas fichas em cartolina.
Vê-se uma plaqueta: “Não entre sem permissão!”
Os dois se apresentam. Informam de onde são. E falam da vontade
que têm de conhecer a sede da AMORC. Um jovem rapaz pede para
aguardarem um instante e sai do escritório dando impressão que vai
falar com mais alguém. Talvez um superior. Pensa Francisco.
Alguns poucos minutos e ele está de volta.
- Por favor! Entrem por aqui! - Convidando os dois a penetrarem nas
dependências internas da AMORC. Algumas das outras pessoas que
trabalham no escritório parecem surpresas com o convite que o rapaz
acaba de fazer àqueles dois estranhos.
O jovem segue ao lado de Francisco e Lurdinha enquanto comenta:
- Engraçado! Nunca é permitido a estranhos fazer esse tipo de
visita. Mas nosso diretor acaba de autorizar vocês a ver tudo que
quiserem! Inclusive! O nosso salão Mor!
- E o que é o salão Mor? - Pergunta Francisco. Mas com a impressão
que já sabia do que se tratava.
Havia lido sobre esse salão em um dos livros. O moço está
explicando:
- É o salão onde se realizam as nossas reuniões mais importantes.
Este aqui! - Abrindo uma pesada porta de madeira em dois lados.
336
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Parece ser Jacarandá. Ele continua explicando: - Inclusive, só
participam dessas reuniões os mestres graduados da AMORC. As
reuniões são feitas em algumas datas específicas. Fim do ano, por
exemplo. Eles dizem que é aqui que recebem as instruções de
entidades muito elevadas que os visitam nessas ocasiões.
O ambiente está pouco iluminado. As paredes estão totalmente
cobertas por pesadas cortinas de veludo vermelho. É uma sala de uns
oito metros por cinco. Ha uma pequena galeria de arquibancadas
com longos bancos também de madeira de ambos os lados. O rapaz
explica que ali sentam os participantes da reunião.
- Aquela cadeira ali! - Apontando para uma cadeira de madeira em
posição elevada numa das extremidades do auditório - Nossos
mestres dizem que é nessa cadeira onde se materializa a figura do
Grande Mestre, que vem dar a eles as instruções da ordem para o
novo ano que vai começar.
Tudo exatamente como Francisco já havia lido em um dos livros
sobre aAMORC.
A visita à sede Rosacruz foi realmente marcante. Para os dois. Quem
acreditaria naquela história? Teria sido o acaso que os levaria até ali?
Ou nós somos freqüentemente guiados por intuições específicas?
Porquê? Com que objetivo? Existiria alguém numa outra dimensão
guiando nossos passos na vida?
As religiões se referem à Anjos de guarda, Guias Espirituais,
Entidades de Luz, encarregadas de guiar a evolução da
humanidade... Enfim, são várias as alternativas, todas em torno do
mesmo princípio. Ha muito o que se pensar a respeito. A escolha de
cada um é de acordo com sua abertura mental. Ha muitos que não
crêem em nada disso.
Mas pelo sim, pelo não... O mais sensato é manter a mente aberta.
Sempre...Aluz ha de entrar por ai.
Antes de empreenderem a viagem, Francisco e Lurdinha haviam
recebido uma incumbência no mínimo inusitada, de uma entidade
337
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
conhecida como “Preto Velho”, em uma das reuniões no centro
espírita O Lar de Ita. Deveriam trazer do lugar para onde iriam, um
pedaço de madeira de cedro, para cada um. O objetivo, segundo
foram informados, era para serem transformados em amuletos,
instrumento físico de proteção, que deveria ser guardado em casa,
em lugar seguro. O artefato seria levado ao centro para que o Preto
Velho o imantasse com suas energias extraordinárias.
Como ele sabia que os dois viajariam à Curitiba? Extranho! Não?
Ao sairem da sede Rosacruz de volta para o hotel já anoitecera.
Solicitam ao taxista que passe em alguma serraria pelo caminho
onde pegariam os pedaços de madeira de cedro. E assim foi feito.
Ha um aspecto da inteligência para-normal que diz: se nada de mal
for feito com o objeto solicitado, não custa atender a solicitação.
Magia? Seria isso? Um instrumento de magia? O assunto dá margem
a inúmeras especulações, que não cabem no objetivo deste livro.
Francisco guardou em casa o seu pedaço de cedro. Mesmo sem
entender que tipo de proteção estava recebendo.Afinal...
338
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
T
rês meses já se passou desde que afastou abruptamente Rose
de sua vida. Embora nunca consiga deixar de pensar nela,
mantém a postura, imaginando que será melhor também para
ela. Merece encontrar uma pessoa só para ela.
Está caminhando nesta manhã ensolarada sobre uma das pontes do
Recife e encontra uma das amigas de Rose que reside com ela no
pensionato.
- Olá Francisco Elias!
- Olá! Como vai você?
- Bem! E você!
- Tudo bem! E a Rose! Como vai? - Afinal, ali está alguém que pode
lhe dar notícia dela.
- Está melhor!
- Melhor? De quê?
- Você não soube? A Rose teve um aborto! Naquele dia que vocês
acabaram o namoro. Aliás, ela abortou no exato momento em que
acabou de falar com você ao telefone! Francisco está perplexo.
- Mas ela já está bem! Já voltou a trabalhar! Mas pediu para ir
trabalhar em outra loja do Zé Mário de Andrade num outro
endereço. Sofreria mais vendo você quase diariamente.
A moça não poupa os detalhes, principalmente para que ele saiba o
quanto a Rose se feriu. Ele agradece as informações recebidas e sai
dali sem sentir os pés no chão. Meu Deus do céu! Aborto de novo
rondando a minha vida! Coitada da Rose! Como ela deve ter sofrido!
Seus pensamentos são somente para ela nesse momento. De forma
mais veemente sua consciência o acusa.
Francisco ainda precisa melhorar muito, evoluir espiritualmente
para não voltar a cometer mais desatinos.
Cai em si sobre essa sua realidade atual, percebendo que suas
responsabilidades se agravam à medida que sabe conscientemente
porque somos, o que somos e porque tomamos as nossas decisões.
Vai amargar por um bom tempo essa atitude. Desejando muito ainda
339
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
voltar a ter a oportunidade de se ressarcir com Rose.
Pelo menos fazê-la compreender o quanto ele ainda é um ser humano
infantil. Não merecia o seu amor. Resta orar muito por ela. E mais
uma vez, confiar na sabedoria do tempo.Amanhã nunca se sabe...
Mas já que tudo está feito, o melhor é deixar Rose dirigir sua própria
vida. Desde o princípio deixou bem claro para ela que não poderia
manter financeiramente duas famílias. Mas abriria todas as portas
que ela precisasse para ter seu trabalho e ser dona absoluta de sua
vida, com independência.
Meses depois, ela precisa novamente de sua ajuda. Saiu do trabalho
na loja e deseja trabalhar na empresa Jornal do Commercio, que está
sendo reestruturada.
Francisco interfere com seus conhecimentos e Rose vai trabalhar lá.
Tudo que fizesse ainda seria pouco para contribuir com o equilíbrio
da vida dela. Rose está plenamente restabelecida. E vai tocar a sua
vida. Já parou com os estudos e agora dedica-se inteiramente ao
trabalho. Procura se reerguer. E ele vai ajudar no que puder.
Pouco tempo depois, questão de meses, Francisco também vai
trabalhar na empresa Jornal do Commercio. Agora através de
contrato para a televisão Canal 2 e Rádio Jornal do Commercio.
Outra vez sua intuição lhe orientou uma decisão correta na vida.
Francisco aceita o contrato para trabalhar na TV e no rádio ao lado do
amigo Fernando Freitas. Eles formam uma dupla de noticiaristas de
muito sucesso.
Três meses após sua transferência do Canal 6 para o Canal 2, a TV
Tupi Canal 6 sofre um incêndio terrível, sucumbindo
completamente. Nada sobrou. Nem as paredes. Caiu tudo.
Imperiosamente Francisco pondera sobre esse fato: Coincidência?
Acaso?
Tem acontecido muitas coisas em sua vida de forma a não deixar
dúvidas. O destino vem traçando seu caminho.
340
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
P
or três anos e meio ele trabalha na empresa Jornal do
Commercio. Durante esse período, esporadicamente Rose
mantém alguns contatos.
Da última vez que se falaram ela havia informado que estava
namorando um rapaz, que parecia demonstrar boas intenções para
com ela. Um advogado. Ele queria casar em breve. E ela informara
que estava tentando reorganizar a sua vida. Francisco lhe aconselha a
seguir em frente. Ela merece ser feliz.
Lurdinha e Fernando continuam freqüentando o centro espírita O
Lar de Ita dirigido pelo senhor Eli, um gerente de banco que foi
obrigado a abraçar a tarefa espírita de manter a instituição. É lá que
Lurdinha está desenvolvendo sua mediunidade. Francisco
freqüentemente está com eles.
Na reunião do próximo sábado à noite vai acontecer lá um encontro
ecumênico muito interessante. Vão estar presentes, desde o padre da
paróquia local até o representante de um movimento espiritual
hindu.
Uma boa oportunidade para o repórter Francisco Elias,
acompanhado de seu colega Fernando Freitas, conhecer melhor as
atividades do centro espírita. Os dois são convidados para sentar à
mesa dos trabalhos onde se encontram as autoridades presentes.
Dentro do programa estabelecido para o evento faz-se necessária a
leitura de algo, que o senhor Eli solicita a Francisco para ler ao
microfone. Francisco é um repórter. Habituado à solenidades. Não
tem o menor problema para falar em público. Vai ao microfone e
começa a leitura. Após duas ou três linhas do texto, seu corpo é
tomado por uma estranha emoção, algo incontrolável parece lhe
travar a língua. Não consegue dominar os músculos de seu corpo.
Eles parecem não lhe obedecer. Uma emoção muito forte invade o
seu ser. Ele mal consegue falar. Não está entendo aquilo.
341
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Lágrimas correm de seus olhos enquanto balbucia aquelas palavras.
Com muita dificuldade para ler o texto, o amigo Fernando vai lhe
ajudar terminando a leitura. Ele volta para a mesa tomado de
vergonha. Nunca havia lhe acontecido algo assim! Qual a explicação
daquilo? Ao final da reunião recebeu um conselho do senhor Eli, que
havia presenciado com muita naturalidade o momento de
dificuldade porque passara.
- Essas coisas acontecem! - Diz ele. - Aconselho você a vir aqui mais
vezes. Tem alguém perto de você precisando de ajuda!
A partir daquele dia Francisco passa a acompanhar Lurdinha e
Fernando às reuniões do centro.ACASO? Coincidência?
É o que veremos mais tarde quando o garoto Ramatís com menos de
dois anos entrar em cena. São muitos os trabalhos espíritas com os
quais Francisco colabora no centro. Havia lido algumas obras muito
interessantes sobre os chákras energéticos existentes no corpo parafísico dos seres humanos.
O senhor Eli solicita sua ajuda para ministrar algumas palestras a
alguns médiuns do centro, passando informações sobre esse assunto.
Francisco providencia na Interfilmes uma série de slides e apresenta
o material para os médiuns do centro.
Mas sua principal tarefa está sendo ao lado de Fernando e Lurdinha.
Foi dada a ela a incumbência de estruturar um dos pequenos núcleos
de ajuda espiritual dentro do centro. São vários deles atuando nas
reuniões de tratamento espiritual. Ele faz parte de seu grupo nos
trabalhos de desobsessão e receituário mediúnico. Francisco apenas
colabora como doutrinador, algo que já fazia desde o tempo em que
trabalhou no centro de Thiago.
As reuniões de desenvolvimento mediúnico ocorrem às quartafeiras. O centro geralmente está repleto de médiuns em
342
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
desenvolvimento e participantes que são trazidos para identificação
de seus problemas ou simplesmente para tomar passes.
Esta noite algo muito estranho está acontecendo com Francisco. Ele
chama Lurdinha ao lado e comenta com ela:
- Lurdinha! Você está vendo aquela moça! - Aponta para uma jovem
de pele branca, cabelos pretos, muito bonita, acompanhada de uma
senhora de meia idade que parece ser sua mãe. Ambas estão ali pela
primeira vez.
- Estou vendo sim! O que é que tem?
- Não estou entendendo Lurdinha! Desde que aquela moça botou os
pés aqui dentro hoje, tem uma coisa muito forte me atraindo para
ela! E veja! Faço questão de explicar!
- Não é nada de atração física não! Embora seja muito bonita, é algo
muito estranho! Que não compreendo! Como se já a conhecesse de
muito tempo! - Lurdinha observa a moça e diz apenas:
- Fique tranqüilo! Se for alguma coisa espiritual tudo se
esclarecerá!
É muito estranho o que Francisco está sentindo com a presença
daquela jovem. Tinha alguma coisa acontecendo! Ele só não sabia o
quê. Terminada a reunião todo mundo foi embora.
Ele levou consigo aquela estraordinária impressão, incomodando-o
fortemente pelo fato de não ter tido esplicação. Procura esquecer o
incidente.
Sábado seguinte. Os trabalhos no centro são divididos em duas
etapas. Iniciam-se às 16h00 recepcionando os visitantes bem como,
continuando etapas de tratamentos anteriores. Uma pausa às 18h00
para um breve lanche. Geralmente simples sanduíches com
refrigerante. E meia hora depois começa a segunda etapa, agora com
343
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
os diversos grupos atendendo problemas novos agendados na
quarta-feira passada.
A jovem está lá outra vez com aquela senhora sempre ao seu lado.
Novamente Francisco sente a mesma impressão muito forte. Ela
exerce uma atração irresistível sobre ele. Mas até agora parece não
ter tomado conhecimento da presença dele. É algo que só atinge ele.
E não a ela. Isso o deixa ainda mais curioso.
Se fosse algo puramente físico ela certamente teria notado. Se bem
que ele procura disfarçar. A jovem vai ser atendida pelo grupo do
senhor Eli. Algo que Francisco não sabe. Seu Eli recebe uma
entidade cigana. Os diversos grupos se acomodam sentados em
cadeiras plásticas, alguns preferencialmente sentados no chão de
cimento mesmo, os grupos de três ou quatro pessoas, um pouco
afastados uns dos outros.
Em meio aos trabalhos, uma moça aproxima-se do grupo de
Lurdinha e fala com Francisco:
- O cigano mandou lhe dizer que ao terminar a reunião você
permaneça aqui, pois vai acontecer uma outra reunião especial. Sua
presença é importante!
Francisco agradece e fica aguardando o desfecho.
Terminada a reunião todos comemoram os bons resultados obtidos
com a ajuda espiritual. Um dos fatos marcantes deste sábado foi o
caso de um senhor, trazido numa maca direto de um hospital onde se
encontrava internado para ser tratado no centro. Chegou totalmente
entrevado com todos os seus músculos presos. Pernas, braços,
coluna, tudo enrijecido. Os médicos não estavam conseguindo curálo. Fôra posto ali no chão na própria maca trazida do hospital, ao lado
do grupo do senhor Eli.
Ao final do seu atendimento de desobsessão a entidade lhe diz:
- Pode se levantar você está curado! - O homem vacila. Talvez
344
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
recuse-se a acreditar.
- Levante-se! Estou mandando! Pode caminhar! Você está curado! Fala a entidade com certo vigor na voz. Como se ralhasse com uma
criança.
E para espanto de muitos ali presentes, inclusive Francisco, o
homem se levanta titubeando, mas sai caminhando com suas
próprias pernas, amparado por dois familiares.
Muitas coisas Francisco já havia presenciado em um centro espírita.
Mas algo ainda muito forte está reservado exatamente para ele dai a
instantes, ali mesmo.
Terminada a reunião foi comunicado ao senhor Eli, que na maioria
das vezes mantinha-se inconsciente enquanto o cigano atuava, a
orientação passada para fazerem a tal reunião especial. Para surpresa
de Francisco, a tal jovem e a senhora, que agora já se sabia, eram mãe
e filha, também haviam sido instruídas para participar da tal reunião
especial. Ao saber da orientação do cigano o senhor Eli dá algumas
instruções:
- Muito bem! Vamos só fazer um pequeno intervalo para que eu tome
um pouco de água, enquanto as pessoas todas se retiram. Ai vamos
sentar ali no chão! Ao redor daquele tapete!
As pessoas que iriam participar desse encontro especial já estavam
todas avisadas. Lurdinha e Fernando também. Umas nove pessoas
no total. Novatos ali apenas a senhora e sua filha, que foram
orientadas a sentar na extremidade oposta em frente ao senhor Eli.
Francisco senta ao lado junto a Fernando e Lurdinha. Começa
imediatamente a reunião com o senhor Eli incorporando uma
entidade, que parecia ter sido trazida ali amarrada. Só suas mãos
parecem estar livres. Assim que se apresenta vai imediatamente
atirando impropérios na direção das duas. Mãe e filha! Fazia-lhes
sérias acusações. Pelo que se entendia, ele as estava perseguindo
como obsessor já ha bastante tempo. Essas situações são sempre
345
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
acompanhadas e assistidas por entidades bem-feitoras, ali invisíveis,
que dão instruções a ele. Com a ajuda de seu Antonio, fazendo a
doutrinação, ele foi diminuindo o ritmo das acusações que fazia às
duas mulheres. Agora jorrando lágrimas de sofrimento ele narra sua
triste história. Aparentemente, só agora lhe foi dado conhecer a
presença de Francisco ali do seu lado. Pois até então não tomara
conhecimento dele.
- Mateus! Mateus! Meu amigo! Até que enfim encontrei você! - Diz
ele para Francisco estendendo-lhe as mãos, parecendo amarradas.
Segura o lado do coração com as duas mãos crispadas, como se
estivesse sentindo imensa dor. Continua narrando seu triste episódio
de séculos atrás.
O que ele ainda parece estar vivendo, aconteceu em 1649. Ele nem
sabe em que data estamos. Conta que ele, as duas, agora mãe e filha,
são (a mãe) a mulher por quem ele se apaixonara perdidamente e a
sua irmã (a filha). Juntamente com Francisco e vários outros amigos
da época, estudam na Faculdade de Direito de Santos. Narra ele,
todo o tempo, com lágrimas jorrando de seus olhos. Lágrimas de dor
e de emoção.
Ele é muito pobre. Mas seus amigos de faculdade gostam muito dele.
São jovens do feudalismo local, filhos de nobres, de comerciantes
importantes, como é o caso de Mateus (Francisco). São eles que
pagam os seus livros de estudo, que lhe compram a beca para o dia de
formatura. Os dois estão apaixonados.
Tanto ele como ela (a mãe). Também cursando o mesmo o período
final do curso de Direito.
Todo o tempo em que ele fala, mantém as mãos segurando o peito
como se houvesse ali uma grande ferida e as lágrimas continuam
jorrando incessantemente dos olhos do médium. Um momento
realmente tocante para todos ali presentes que dirigem a ele suas
346
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
orações, a pedido do doutrinador.
Ele continua sua triste narrativa. Como prêmio pelo curso realizado
todos vão fazer uma viagem de navio à Europa. Vão conhecer vários
paises. Incluindo Portugal. Mas ele não tem dinheiro. Os amigos
então pagam sua passagem e todas as suas despesas. Eles sabem do
amor dos dois. Inconcebível e inaceitável para essa época. Mas
tolerado por eles, que são seus amigos comuns. Esse é o tempo em
que os pais é que determinam com quem a moça vai se casar. E assim
viajam juntos. Um sonho de viagem. Principalmente para os dois
apaixonados.
Já estão regressando da Europa quando passam por Portugal, a
última parada antes de voltarem ao Brasil.
Ele havia imaginado um plano doloroso. Mas o único que seria
possível, para um dia merecer ser aceito no seio da família dela.
Decide ficar em Portugal. Uma surpresa para os amigos.
Principalmente para ela. Mas ele estava decidido. Ia ficar em
Portugal. Tentar a vida. Se um dia tivesse condições voltaria para ela.
Só lhe pede que nunca se case. Que espere por ele.
Todos estão traumatizados com sua decisão, mas são obrigados a
voltar sem ele.
Em Portugal ele vai sobreviver inicialmente trabalhando como
garçom em restaurantes granfinos. Certo dia ele atende um senhor
muito rico da nobreza portuguesa. O homem acha estranho um
simples garçom com uma linguagem tão refinada como a dele.
Ele então revela que na verdade é um advogado formado na
Faculdade de Direito de Santos.
Em outra ocasião confirma mostrando ao nobre o seu diploma de
347
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
advogado. O nobre se comove com ele e resolve apoiá-lo, montando
um escritório para ele e indicando-o à sociedade de Lisboa, uma vez
que é homem de muitas relações importantes.
Não demora muito e ele se transforma em um advogado muito
prestigiado e procurado na corte portuguesa. Poucos anos após ele já
é um homem rico. Tem muitas posses em dinheiro vivo. Já juntou
mais de um milhão de escudos. Então resolve vir ao Brasil. Seu
coração continua entregue a ela.
Enquanto isso, em São Paulo, os pais já haviam providenciado um
casamento de arranjo para ela, com um nobre da sociedade local. Seu
coração sempre foi dele. Mas não havia muito que ela pudesse fazer.
Nesse tempo é assim. Quando ele volta ela está casada. Já faz algum
tempo. Mas ainda não tem filhos.
Os dois se reencontram numa recepção da nobreza local. Uma
surpresa para ela. Ele está acompanhado do nobre português em
visita de férias ao Brasil. Que faz questão de apresentá-lo como um
dos advogados mais importantes de Portugal.
Para os dois não ha esperanças. Ela está casada. Resolvem então se
relacionarem às escondidas. Um escândalo sem tamanho se fosse
descoberto. A irmã dela (agora sua filha), revela tudo ao esposo
traído. Os dois são flagrados em traição matrimonial em plena
alcova. O homem lhe desfere um tiro de cravinote (uma espingarda
rudimentar do tempo do império) no peito.
E ele morre ali. Na frente dela. Banhado em sangue.
Até este momento em que está recebendo o socorro espiritual trazido
ali em trabalhos de desobsessão, ele ainda agarra-se ao peito,
sentindo a dor terrível daquele disparo.
Para que pudese ser socorrido, a inteligência da espiritualidade
348
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
primeiro permitiu que ele reencontrasse as duas vivendo em nossa
época, e através da caridade a elas duas através da desobsessão no
centro espírita, ele seria de fato o principal beneficiado.
Esse quadro dá uma idéia da intensidade do crime de adultério, como
é considerado na espiritualidade. Foram muitos séculos de
sofrimento desse espírito. Sentindo a dor como se tivesse acontecido
ha poucos instantes. Até o momento em que lhe foi permitido
aproximar-se delas, numa ação de perseguição movida pelo ódio e
desejo de vingança que vinha nutrindo até então, por aquela que os
delatara. E dai até o momento de merecer ser conduzido ao ambiente
de desobsessão, para ser resgatado.
Esse caso nos dá uma visão bem clara de como procede a
inteligência das mentalidades espirituais super dimensionadas.
Ao final da reunião não havia uma só pessoa ali presente que não
houvesse chorado também. O quadro era tocante demais!
Principalmente pelo fato de se poder presenciar o momento exato em
que o doutrinador lhe mostra, certamente com a ajuda dos guias
espirituais ali presentes, que sua dor terminou. Que o que ele sentia,
ou achava que sentia, era apenas o reflexo de sua consciência. Ela
sempre cobra quando fazemos algo errado. Pela contagem de nosso
mundo material, foram necessários séculos de sofrimentopara que
ele pudesse ser redimido. Provavelmente, por muitas vezes clamou
por Deus. Depois que o sofrimento o reaproximou da divindade.
Essa é uma marca feroz que assola a existência humana neste planeta
de expiação. Haveremos sempre que aprender através da dor. Não
importa em qual dimensão estejamos.Aluz que nos atinge queima. É
da nossa própria natureza decaída.
Ser definitiva e conscientemente uma “pessoa do bem”. Essa parece
ser a única vacina eficaz para redimir os seres humanos.
349
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
M
as infelizmente não é bem isso o que vemos todos os dias.
Agora mesmo, esse que lhes escreve está vendo na
televisão cenas dantescas em que mulheres são assinadas
a tiros enquanto procuram cercar e proteger aqueles que lutam contra
Israel.
Quanta insanidade! E isso está ocorrendo na mesma região que
crucificou Jesus.
Que feras brutalizadas temos sido nós seres humanos!
Em pleno início do terceiro milênio. Estamos falando do tempo que
leva para se aprender a ser um ser humano, filho de Deus. Em casa de
minha irmã Marina ha uma cachorra da raça siberiana. E ha uma
outra também de raça bem pequena. Todas as vezes que a pequenina
parece estar em perigo, a cadela grande corre em seu socorro.
Convivem harmoniosamente. Uma é o brinquedo da outra. Elas
parecem estar nos ensinando coisas. Elas! Os animais! Estão
ensinando coisas aos seres humanos. Incrível essa constatação! Mas
a natureza ensina o que é certo. Nosso livre arbítrio é que modifica
tudo.
Que caríssima liberdade Deus nos entregou! Ao nos conceder o
instrumento do livre arbítrio. E o fez, sem dúvida, por amor.
Portanto, não nos parece inteligente questionar as coisas de Deus, se
não estamos em condições nem mesmo de entender e respeitar nossa
própria identidade crística. Pelas regras da espiritualidade Maior
ainda parecemos viver na idade do macaco.
A experiência que Francisco acaba de vivenciar é uma das muitas
vividas em seus estudos da espiritualidade. Ainda viverá outras.
Nisso a espiritualidade lhe tem sido pródiga. Certamente que ha uma
razão lógica desconhecida para o aprendizado que ora recebe através
dessas revelações espirituais.
De volta aos livros, ha algo que o apaixona no momento. São as
obras romanceadas psicografadas pelo médium de Uberaba, Chico
350
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Xavier. Quando ainda freqüentava o centro espírita de Thiago ele
recebeu uma informação relevante sobre Chico Xavier através do
mentor espiritual de Thiago. Mais tarde, esse mesmo Chico Xavier
vai marcar presença na vida de Francisco.
- Esse que vocês têm agora, prestando um serviço maravilhoso a
humanidade de seu país e que se chama Chico Xavier, já foi
Barrabás! - Disse o mentor de Thiago.
Então vejamos: de Barrabás, liberado da crucificação em detrimento
de Jesus, até os nossos dias, são quase dois milênios. Ou seja! Leva
tempo até que o espírito que nos habita a carne consiga galgar passos
relevantes de crescimento.
Entretanto, estamos treinados psicologicamente para querer
resultados imediatos em tudo que empreendemos. Nem um pouco
preocupados com nosso próprio crescimento interior. De onde
viemos? Para onde vamos? Ah! Deixa isso pra depois! Estamos
geralmente muito preocupados com o agora. Com resultados
efêmeros.
Carecemos realmente ser chamados à realidade através da dor.
PEDIREIS E EU VOS ATENDEREI! A natureza é a navalha de
Deus, com a qual está sendo modelada a raça humana. Corta
retilineamente e é muito dolorosa.
351
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
M
eses depois Rose está novamente ao telefone. Informa que
precisa muito falar com Francisco pessoalmente.
Necessita de alguns conselhos. De orientação. Marcam
então para a noite após o telejornal que ele apresenta no Canal 2.
Rose parece bem mais madura. Sentam em um banco na praça ali
perto e conversam. Ela dá alguns detalhes do motivo pelo qual
precisa da sua orientação.
Inicia falando sobre o noivo.
- Ah! Já está noiva! Que bom!
- É mesmo sobre isso que eu quero lhe falar.
- Quem é ele?
- É um advogado. Ele é do interior mas formou-se aqui e continua
trabalhando em Recife e no interior. - Rose parece apreensiva.
- O que está acontecendo Rose?
- Esta semana eu tive um momento muito relevante. - Tenta explicar
ela. - Meu noivo me levou a um prédio em construção lá no bairro
dos Aflitos. Ele comprou um apartamento lá e queria que eu visse,
que desse algumas opiniões... Diz que é lá que vamos morar!
- Que maravilha Rose!
- É! Mas esse momento foi crucial para que eu refletisse sobre o que
vou fazer da minha vida. - Ela tem tristeza na voz. - Não posso me
casar com ele!... Vou fazê-lo infeliz! Ele não merece isso. Estou
muito indecisa! Por isso queria muito falar com você! Você me disse
que sempre que precisasse de uma palavra amiga estaria à
disposição, não foi?
- Claro! Rose! Claro! Eu gostaria muito de ver você feliz! Você
merece isso!Ninguém melhor que eu sabe disso! Porquê você não
tenta? O amor entre duas pessoas pode desabrochar a qualquer
momento. Convivendo juntos. Conhecendo-se mais!
- Pois é exatamente disso que tenho medo! Não me sinto capaz de
fazê-lo feliz. Uma vez você me disse que nós não podemos dar a
alguém algo que não temos. E o que eu sinto por ele não é suficiente
352
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
para garantir nosso casamento.
- Puxa vida Rose! Eu fico triste com isso. Gostaria muito mesmo, que
você acertasse o compasso de sua vida.
- Pois é! Não me censure. Por favor! Não posso fazer homem
nenhum feliz, se ainda amo você!
Francisco emudece. Fica vaidoso por dentro. Mas por fora está
entristecido.
Que situação! Nunca vai poder fazer aquela mulher feliz. E não pode
fazer nada para que ela seja feliz com outra pessoa. Ela dá mostras de
como é grandiosa. Correta e limpa de espírito. Qualquer outra se
aproveitaria da situação para garantir uma vida estável.
Com ela é diferente. Uma personalidade invejável.
Como é difícil administrar as correntes do amor. Eis um sentimento
indomável. Ele mesmo está ali diante da mulher que poderia amar
muito e fazê-la feliz. Mas continua impedido por circunstâncias que
no tempo, já estão fora de seu controle. Tem uma família que precisa
manter. Seu Carma é Sandra, as meninas Elissandra e Eliana e agora
o bebê Ramatís.
- Como vai o Ramatís?
Rose parece advinhar seus pensamentos. Ela tem curiosidade de
saber. O conheceu nos braços de Sandra. Os viu algumas vezes na
calçada da Avenida Conde da Boa Vista onde ele morava na ocasião,
e por onde ela passava diariamente para o trabalho. Sandra não a
conhecia. Nunca soube dela. Até então. Enquanto conviveram
Francisco foi sempre muito taxativo. Sandra nunca deveria saber
sobre eles.
E Rose, cuja personalidade é inquestionável, várias vezes passou tão
perto dela, sua curiosidade feminina era irresistível sobre o menino.
Principalmente após ter sofrido o aborto. Mas nunca deixou Sandra
perceber nada. Sempre a respeitou. Conforme Francisco lhe
solicitara. Respeite-a sempre! É a mãe dos meus filhos!
Rica em personalidade, ela está ali, na sua frente mais uma vez
dando provas disso. Que pena que o tal rapaz não teria aquela
maravilhosa companheira em sua vida.
353
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Caminhos tortuosos! Esses nossos! Hein Rose? Lamento muito,
por você! Sinceramente! O que eu posso lhe aconselhar? Você está
jogando fora uma chance maravilhosa de garantir a estabilidade de
sua vida. Faz isso porque é uma mulher maravilhosa! Só posso lhe
dizer o seguinte: Essa vida tem muitas surpresas para todos nós.
Faça sempre o que seu coração mandar. Ligue sempre seu coração à
sua intuição. E suas decisões vão ser sempre acertadas. Lembre-se
que Deus traça para nós linhas certas por caminhos tortos. Certo? Ele a leva até em casa, depois vai também para a sua.
Ambos acabam de ter um instante de grandeza. Vai pensando: Que
mulher extraordinária é você Rose! Porquê chegou tão tarde à minha
vida... Como eu gostaria de poder ser feliz com você! E como
sempre, reorienta seus pensamentos para sua família. Seus filhos,
em particular. Eles precisam de mim. E eu preciso deles. Não posso
mudar isso. Já estou no sacrifício.Assim vou continuar.
Quanto à sua atuação no centro espírita, esse é outro assunto do qual
Sandra não se aproxima.
Nunca o acompanha. Faz questão de demonstrar seu desinteresse e
descaso.Acha que é tempo perdido.
A Rose, por outro lado, com todo prazer, vai aonde ele for. Certa
ocasião resolve ir também ao centro espírita com ele. Deseja
conhecer esse ambiente que Beínho tanto fala e que tanto gosta.
Pouco ou quase nada ela sabe sobre o espiritismo. Só de ouvir falar.
Gostaria de conhecer melhor. E vai com ele a uma das sessões. Nesse
encontro no centro, em um dia de desenvolvimento mediúnico,
acontece um detalhe bem interessante para os dois.
Aproxima-se de ambos uma medium, incorporando uma entidade.
Vai aplicar um passe nos dois. Em seguida ela fala com Francisco:
- Esta já foi sua esposa na outra vida! E a que você tem em casa era a
outra! Elas trocaram de lugar! - E diz baixinho só para ele ouvir: Não deixe que elas chorem!
A médium se afasta. Vai dar outros passes em outras pessoas ali
presentes. Francisco permanece pensativo. Meio estático.
354
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Olha para Rose. Ela também está surpresa com aquela revelação.
- Você já imaginou! Bem que minha intuição me dizia! Nós dois já
nos conhecemos de vidas passadas. Essa é a novidade! Você já foi
minha esposa e Sandra era a outra. Que coisa, hein! Por isso você só
chegou muito tarde na minha vida. Para ser a outra! - Ambos estão
perplexos.
Mas Francisco encara tudo com muita naturalidade. Aquilo só podia
ser verdade. Não havia meio de a médium saber que ele era casado
com outra mulher. Recebeu o aviso como um acréscimo.
Alguém na espiritualidade estava lhe mandando esse recado.
- E o que ela lhe disse no seu ouvido? - Quis saber Rose.
- Nada demais! Só disse para cuidar bem de vocês duas! - Descarta
ele.
Francisco está de mudança. Vai residir em Rio Doce, Olinda.
Uma área bem próxima da praia. Imagina que será bom para as
crianças a proximidade do mar. O endereço fica bem distante. Cerca
de dezenove quilômetros até o centro de Recife onde trabalha. Mas o
sacrifício vale à pena. Pelo bem-estar da família. Ali vai acontecer
algo extraordinário.
Ramatís é bem pequeno ainda. Bebê de colo. São aproximadamente
18h30 de um dia qualquer da semana. A residência é um primeiro
andar na pista principal. Um pequeno edifício ainda novo. Embaixo
duas lojas comerciais. Nas proximidades ainda ha bastante terreno
vazio. Próximo dali, com vista pelo janelão da sala para a direção de
Recife, uma área bem grande, talvez um quarteirão inteiro com
plantio de coqueiros.
Elissandra, a mais velha, tem pouco mais de oito anos.
Está à janela com Ramatís nos braços enquanto sua mãe prepara o
mingau do garoto na cozinha. De repente ela avista um objeto
circular escuro, com pequenas janelas arredondadas e iluminadas
parado sobre os coqueiros. Estranha o objeto porque não escuta
nenhum ruído.
355
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Maínha! - Chama ela. - Vem cá!
- Espere aí menina! O mingau ainda não está pronto!
- Maínha! Vem ver uma coisa! Vem logo!
Percebendo que ha algo estranho no chamado de Elissandra ela vai
até a janela com o papeiro na mão mexendo o mingau de Ramatís. E
olha para onde e menina está apontando.
Tem um objeto circular bem estranho parado sobre o coqueiral.
Estão saindo algumas bolas de luz de dentro dele que deslizam pelo
ar sem qualquer ruído posicionando-se bem na copa dos coqueiros
por alguns instantes, em seguida retornam entrando no objeto pela
parte de baixo.
O objeto parece dois pratos, um emborcado sobre o outro.
Externamente parece ser escuro. Isso será um disco voador? Pensa
Sandra já com certo pavor. O objeto continua lá silenciosamente
fazendo seu trabalho.
O quê, ela não sabe. Poucos instantes depois elas começam a ouvir o
som de helicóptero vindo de Recife nessa direção.
Logo em seguida, as pequenas bolas de luz que estão fora do objeto
retornam velozmente para dentro dele. E então o estranho objeto
começa a se deslocar em sentido contrário ao dos helicópteros que se
aproximam do local. Passa quase por cima do prédio onde Sandra
mora e desaparece rapidamente. Sem o menor ruído audível.
Poucos minutos depois dois helicópteros também cruzam o local
parecendo ir em perseguição ao objeto.
Sandra imediatamente telefona para Francisco que se encontra nos
estúdios da televisão nesse momento. E conta o que se passou. Por
enquanto ele não vai noticiar nada a respeito. Está ansioso para
chegar em casa e ouvir dela todos os detalhes.
- Foi incrível! - Sandra está psicologicamente tocada pela ocorrência
que presenciou juntamente com as crianças.
- E como eram as bolas de luz? Alaranjadas, brancas?
356
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Não! Eram claras puxando para o azul.
- E vocês viram algo pelas janelinhas do objeto que parecesse com
uma pessoa?
- Não! Não vimos ninguém!
- Quanto tempo durou a aparição?
- Acho que uns vinte minutos até aparecerem os helicópteros.
- Vocês não sentiram nada estranho no corpo, um arrepio, alguma
sensação de calor?
- Não! Nada! Mas eram lindas as bolinhas azuladas.
- Mas tiveram medo?
- Ah! Sim! Não é todo dia que se vê uma coisa esquisita daquela!
Desabafa Sandra.
- Tem certeza que não era um helicóptero parado aqui em cima?
- Criatura! Se fosse um helicóptero acho que até o vento das hélices
dele atingiria a janela. Estava muito baixo!
- A que altura mais ou menos?
- Acho que uns cinqüenta metros! Ele estava numa altura um pouco
acima dos coqueiros. Sei disso porque as bolas de luz sempre se
deslocavam para baixo indo parar na copa dos coqueiros!
- Está bem. Temos todas as informações que precisamos para redigir
alguma coisa para o noticiário de amanhã.
Amanhece o dia e Francisco se mantém em expectativa esperando
que a imprensa local dê alguma notícia a respeito do fenômeno. Mas
nada. Ninguém parecia saber de nada. Ele mesmo faz uma ligação
para a Base Aérea de Recife procurando saber de alguma coisa. Mas
de lá ninguém informou nada. Disseram apenas que os helicópteros
que passaram por lá estavam em treinamento.
Estranho isso! Desconfia ele. Pois sabe, por tudo que já havia lido a
respeito do fenômeno dos UFOs, que dificilmente as autoridades
divulgam o que realmente acontece nessas aparições. Ha uma
política generalizada de acobertamento. Pelo que se sabe, seguindo
instruções até dos Estados Unidos. A desculpa é que esse
procedimento se faz necessário para evitar mal-estar na população.
357
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
U
ma coisa é certa. Raciocina Francisco. Sua esposa e as filhas
haviam realmente presenciado a ocorrência de algo muito
estranho e fora dos padrões normais da locomoção de
aeronaves.
O detalhe do absoluto silêncio do objeto é bastante revelador. À
noite o telejornal do Canal 2 é o único veículo de comunicação a
divulgar algo sobre o ocorrido. Numa pequena nota de não mais que
dez linhas. E tudo foi esquecido. Francisco só se lamenta por um
detalhe: Por tanto tempo ele se dedicou ao estúdio do fenômeno
UFO, chegando até a divulgar o assunto em seu programa de rádio
durante um certo período antes desse episódio e não teve a chance de
ver essa ocorrência.
Mas sabia que sua esposa e a filha Elissandra gozavam de pleno
equilíbrio mental. Não haviam inventado aquilo. Sem dúvida elas
realmente presenciaram o fenômeno.
Por dois anos permanecem residindo em Olinda. Os fins de semana
são muito divertidos. Para lá se desloca sempre Rony e a família. O
pequeno Pedro Ivo e Ramatís são a alegria geral.
Ramatís trouxe do ventre da mãe um problema físico. Sofre de
adenóide. Um chumaço de material orgânico que às vezes tapa-lhe a
respiração pelo nariz, deixando-o quase sem respiração. Sandra
acorda apreensiva ouvindo o ruído do menino no berço junto à cama.
Ramatís está em mais uma das terríveis crises de adenóide. É verão.
A temperatura elevada provoca essas crises no garoto. Ele toma uma
injeção a cada seis meses para controlar as crises. Deve ter se
vencido o período de uma nova dose. Ela muito apreensiva agita o
menino nos braços tentando fazê-lo respirar. Ele está quase
totalmente roxo. Sem ar nos pulmões agrava-se o problema de
oxigenação do sangue. Com muito esforço aplicando Vic Vaporube
o menino consegue voltar a respirar. Já é madrugada. Logo o Sábado
vai amanhecer.
358
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Oh! Meu Deus! Pensei que meu filho ia morrer! Elias logo cedo
vamos levar ele ao médico!
A crise do garoto foi realmente muito forte. Ainda não havia tido
uma tão grave assim.
São 08h30 da manhã e eles já estão chegando a uma clínica pediatra
para atendimento particular de urgência ao garoto. O médico está
examinando o menino. Confirma a situação dele. É realmente um
problema de adenóide.
- Esse menino teve algum trauma de nascimento?
- Teve sim!
Os pais explicam que ele nasceu de gêmeos e que o irmão nascera já
sem vida enlaçado pelo cordão umbilical.
- Acho que os esforços do irmão dele no ventre da mãe, ao ser preso
pelo cordão umbilical pode ter exercido algum tipo de pressão física
sobre o outro, nessa região do nariz. Por isso ele nasceu com esse
problema. A dificuldade é que, não se pode recomendar uma
cirurgia desse tipo numa criança tão pequena. É preciso aguardar
que ele atinja uns cinco anos de idade para então se poder operar. O
controle precisa continuar sendo feito com a injeção a cada seis
meses. - E enquanto prescreve a receita da injeção, chamando a
enfermeira para mandar aplicar, ele fala para os pais de Ramatís:
- Isso é o melhor que se pode fazer agora. Entretanto, se vocês
quiserem tentar outros meios!...
É a Segunda vez que Francisco ouve um médico usar esse tipo de
expressão, como recomendação a um tratamento de saúde na
família.
Ao saírem da clínica ele conversa com Sandra no carro voltando para
casa:
- Você ouviu bem o que aquele médico disse, de se tentar outros
meios?
- Ouvi! Sim! O que será que ele quis dizer com aquilo? Será que ele
quis dizer para procurarmos algum tratamento espírita?
359
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Também acho que sim! Foi isso que eu entendi. Aquele médico
deve ser espírita!
Nessa época Francisco já foi informado de alguns tratamentos com
cirurgia espiritual realizados no O Lar de Ita, cujo espírito médico é
recebido pelo Sr. Eli. As cirurgias são efetuadas às quinta-feiras.
Mas só em casos muito graves.
- Eu já soube que ha um dia na semana em que o Sr. Eli e uma equipe
de médiuns atende algumas pessoas em trabalhos de operação
espiritual. - Comenta ele.
Dizem que o atendimento é muito bom! Vou me informar esta
semana e saber se podemos agendar um tratamento desse tipo para
Ramatís.
Mesmo com sua total descrença das possibilidades espíritas, Sandra
está experimentado na própria pele uma situação de emergência.
Qualquer coisa seria melhor do que ver seu filho crescer até os cinco
anos de idade sofrendo aquele problema de saúde, que já quase o
matou.
Sandra então concorda que deve ser buscada essa possibilidade. A
aquiescência através da dor. Aqui parece estar sendo processado
mais uma vez o princípio da livre escolha, do ponto de vista
espiritual.
Francisco inclusive se surpreende pela facilidade com que ela está
aceitando essa alternativa. Já em plena consciência de como agem os
mentores da espiritualidade maior, ele quer entender que eles estão
agindo agora em torno dela.
Mais uma vez vamos assistir uma cura dupla. A dela, em termos de
crença e a do próprio filho.
Oh! magnífico laboratório! Onde se incrementam as atividades mais
extraordinárias da Grande Inteligência. O que importa são os
resultados. E eles virão! Com o beneplácito do Criador.
Ramatís é só o veículo de intercâmbio nessa operação de caridade
espiritual.
360
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
a reunião deste sábado no Lar de Ita, Francisco expõe o
problema do filho ao Senhor Eli, dirigente do centro. Ele
marca a reunião para a próxima quinta-feira à noite. Vai ser
uma reunião bem particular. Explica o Senhor Eli. A entidade que ele
recebe não gosta da aglomeração de muita gente nessas operações. E
os médiuns são escolhidos a dedo pelo próprio Eli. Na verdade são
escalados. Todos têm um enorme prazer de poder participar de uma
reunião dessas. Quase sempre com resultados extraordinários.
A equipe espiritual é cercada ali de muita credibilidade. Tanto que só
é convocada em casos muito específicos, como é o do garoto
Ramatís.Areunião está agendada.
Vão participar apenas; o pai e a mãe do garoto, o Senhor Eli, um de
seus filhos também médium, seu Antonio, vice-presidente do centro,
a esposa e sua filha e mais dois outros médiuns. Todos já habituados
a esse tipo de reunião. Novatos ali, somente Francisco e a Esposa.
Ele com muito respeito ao trabalho dos espíritos. Ela nem tanto. Ele
esclarece isso com antecedência ao Senhor Eli.
- Não tem importância! - Afirma o médium. - Mãe é mãe! Ela vai
gostar de ver seu filho livre desse problema!
O Senhor Eli ainda explica que no dia da cirurgia espiritual, sempre
no período noturno, o centro deve ser fechado ao meio dia.
Permanecendo assim até a hora da cirurgia.
Trata-se de uma assepsia espiritual, diz ele, uma espécie de lavagem
energética purificando o ambiente, providenciada pelos espíritos
Bem-feitores do centro, limpando-o do que eles chamam das lesmas
energéticas deixadas no ambiente por entidades menores em
processo de recuperação, quando para lá são conduzidas,
principalmente nos trabalhos de desobsessão.
Francisco vai aguardar o dia da operação levando consigo algumas
considerações mentais. Muita coisa já conhecia através dos livros
sobre os procedimentos normais das cirurgias espirituais.
361
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
M
uito já havia investigado literariamente sobre as operações
do médium Zé Arigó, de Congonhas do Campo e várias
outras fontes de pesquisa a respeito do assunto, incluindo
as obras do espírito de Ramatís.
E imagina como deve ser fantástica a tecnologia utilizada pelos
espíritos para poderem materializar na carne humana os resultados
de uma cirurgia. Para ele é fácil compreender. Já leu que as doenças
atacam os seres humanos primáriamente atingindo o seu corpo
perispiritual.
Um outro corpo energético que nos envolve, cópia fiel de nosso
corpo de carne. Só que feito de material puramente fluídico e
energético.
É nesse material que os espíritos operam. A partir da eliminação da
causa da doença no corpo perespiritual, a enfermidade se
desmaterializa igualmente no corpo físico. Levando para isso o
mesmo tempo normal de uma cirurgia física. Com exigência de
curativos e tudo mais.
Sua mente já começa a receber a nível de intuição as emanações do
lado espiritual, dando-lhe consciência de como a cura do menino vai
ser importante no processo de abertura mental da mãe do garoto. Os
espíritos nunca trabalham visando um resultado único. Sempre
buscam resultados paralelos de acréscimo, nas Leis da natureza que
eles operam em nome do Criador.
Nesse caso, não só Ramatís, mas também Sandra, será beneficiada.
Quem sabe... Sua concepção sobre espiritualidade possa melhorar a
partir dai.
Na noite da reunião todos estão lá no centro na hora marcada.
Ambiente muito tranqüilo, com pouca luz.Ouve-se apenas uma
música muito suave, executada através de um toca-fitas e uma
caixinha de som. A reunião já vai começar. O médico espiritual é
muito rígido em relação a horários. Sua equipe trabalha muito. Em
uma só noite são feitos vários atendimentos nos mais diversos locais.
362
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Não se sabe se apenas no Brasil ou se também em outros países.
20h00 e todos os médiuns já estão ali.
O salão é bastante grande e continua totalmente fechado. Lá dentro
somente os participantes da reunião. Ha apenas um banco de
madeira próximo a uma parede.E cadeiras de plástico. O banco é
igual aqueles das igrejas, feitos não de madeira maciça, mas de
treliças. Os médiuns e os pais são orientados a se posicionarem em
torno do banco.
O Senhor Eli posiciona-se na cabeceira, orientando para que o
garoto seja deitado de costas no banco. Ao seu lado direito está a
moça filha de seu Antonio. Com uma característica peculiar. É
completamente cega. Perdeu a visão aos quatorze anos. Sua
vantagem é que, ela vê tudo o que se passa do outro lado. E narra os
acontecimentos durante as cirurgias. Todos rezam o Pai Nosso
abrindo a reunião.
E em seguida são orientados para continuar orando em silêncio,
rogando pela misericórdia de Deus, para que a equipe médica
espiritual possa ser recebida ali para o tratamento de Ramatís. Estão
todos em silêncio, apenas com suas orações individuais. Uma
conversa com Deus, do jeito que cada um sabe. Sem qualquer
exigência dogmática. Na verdade estão exercitando o poder da fé.
Onde houver dois ou mais reunidos em meu nome, aí Estarei!
Não foi assim que o Messias ensinou? Francisco confia que é isso
exatamente o que ocorre ali. Acredita que o amor do divino Jesus
está presente ali, através das orações de todos, interagindo através
das mãos bondosas da equipe médica espiritual que acaba de chegar,
conforme a descrição da moça, que tudo vê:
- A equipe médica do Doutor (...........Nome do espírito aqui
preservado, por não haver autorização dele para ser revelado nestas
páginas) - acaba de chegar! Ele está acompanhado de seu
assistente, uma enfermeira e uma pessoa que opera os
equipamentos cirúrgicos. Que interessante! - A moça parece estar
363
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
surpresa. - O rapaz depositou aqui uma pequena caixa do tamanho
de um maço de caixas de fósforo! O objeto está aumentando de
tamanho! Cresce até ficar do tamanho de uma pequena mesa de
objetos cirúrgicos. Tem uma pequena tela! E uma espécie de pinça
presa por uma mangueira metálica.
A moça parece estar muito contente. - O Doutor (.....) Saúda a todos
e pede que continuem em suas orações.
- Elas são muito importantes para fornecer a energia de que eles
precisam. Ele diz estar muito feliz! Estão vindo agora do interior de
Minas Gerais onde operaram a perna de um rapaz que joga futebol.
A perna seria amputada por recomendação dos médicos terrenos.
Mas eles conseguiram salvar a perna do rapaz. Eles estão muito
contentes com essa graça alcançada.
A moça continua detalhando tudo o que vê. Sandra está preocupada
com Ramatís. Ele é um garoto bem esperto. Até certo ponto um
pouco inquieto. Como toda criança em sua idade. Veste apenas um
calçãozinho de tecido leve por cima da fralda e uma pequena
camiseta de malha. Está deitado de dorso. Pensando que talvez o
banco esteja incômodo para a cabeça dele, ela retira a camiseta de
malha que ele veste, dobra e coloca sob a cabeça dele. Nesse instante
a moça está descrevendo:
- Eles acabam de anestesiar o garoto. Ele não vai sentir nada.
O menino estranhamente pelo menos para Sandra, não atrapalha em
nada. Já parece estar desacordado. Pelo problema de respiração ele
nunca dormia nessa posição. Era sempre de lado. Mas agora ele se
mantém de dorso com o rosto para cima todo tempo e quietinho.
Dai a instantes ele faz algum ruído com o nariz, como se alguém
houvesse enfiado alguma coisa. Mas se mantém desacordado.
Francisco continua orando. No exato momento em que ele vê, com
os olhos da mente, a cena de um braço todo de branco esticar-se para
a direita com uma pinça segurando alguma coisa, ouve-se a moça
descrever:
364
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- O Doutor (........) acaba de retirar a adenóide do garoto e entrega
numa pinça para a enfermeira!
Francisco é então tomado de forte emoção. Acaba de compreender o
acréscimo extraordinário que lhe foi dado. Mostraram a ele o
momento exato da retirada da adenóide do garoto.
Silenciosamente as lágrimas descem em seu rosto. Ele continua com
os olhos cerrados, agradecendo a Deus a bondade daquele momento.
É preciso estar puro de coração e ter algum crédito perante as Leis da
espiritualidade para merecer aquele momento. É simplesmente
maravilhoso o que ele está sentido. Desejando ardentemente que
Sandra pudesse ter visto também aquela cena.
Terminada a cirurgia, que não demorou mais que vinte minutos, a
moça transmite uma instrução da equipe médica para os pais da
criança:
-O médico informa que vão ser necessários três curativos, que serão
efetuados pelos enfermeiros de sua equipe. - E explica como os pais
devem proceder. - Os curativos serão realizados em casa mesmo,
nas próximas três quinta-feiras, sempre às 18h00, a hora majestosa
da Ave-Maria. Vocês devem colocar um lençol branco bem limpo,
ainda não usado sobre a cama. Deitem ali o menino. Rezem o PaiNosso. Abram a bíblia em qualquer parte e leiam, durante cinco
minutos. Depois disso façam outra oração final de agradecimento a
Deus. É esse o procedimento simples.
A reunião termina como sempre, com a beleza da oração final, agora
proferida pelo SenhorAntonio.
Uma coisa ficou clara para Francisco. A participação do Senhor Eli
nesse processo era tão somente ceder o seu magnetismo mediúnico
para a equipe espiritual poder atuar. Durante todo o tempo ele não se
moveu. Mantendo-se ali sentado, completamente desacordado até a
cirurgia terminar.
Durante as próximas quinta-feiras, o procedimento de preparação
365
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
para os curativos são seguidos fielmente. Sempre nesse momento o
menino adormece muito facilmente.
Que impressão definitiva esse capítulo escreveu na mente de Sandra
a respeito da espiritualidade do bem, não se sabe.
Mas a lição fora passada. O menino Ramatís continuou crescendo
sem mais crises de Adenóide. Não tomou mais as injeções de
controle nem faria qualquer cirurgia física até se tornar adulto.
Alguém precisa de mais explicação?
Francisco tem uma. Uma única explicação! Aonde houver uma fé
verdadeira e inabalável no amor de Deus, ai Ele estará
materializando seus milagres. De todas as formas. Se quisermos
encarar fatos assim, como algo tão extraordinário. Mas
extraordinária mesmo é a persistência de muitos, em desacreditar
que Ele exista e que opera milagres todos os dias.
Todos somos Seus filhos. Todos merecemos Sua divina intervenção.
O fato é que ainda somos muito pouco evoluidos para poder
compreender toda grandeza de Sua evoluidíssima ciência espiritual.
Um dia quem sabe...
Só precisamos fazer por merecer. Essa cirurgia de Ramatís talvez
tivesse um propósito especial. Despertar o avivamento da convicção
sobre a extra-sensorialidade espiritual no seio de sua família. A sua
mãe carecia de esclarecimentos muito contundentes sobre a
realidade do espiritismo, que tanto empolga o esposo.
Para aceitarmos e respeitarmos qualquer situação inovadora é
necessário que saibamos da veracidade de sua existência. E aquela
talvez fosse a maneira mais eficaz da Inteligência da Espiritualidade
Maior, para fazer com que Sandra aceitasse essa realidade tão
distante de suas crenças habituais.
Ha situações em que nada fala melhor do que os próprios exemplos.
Ela agora tinha um. Muito forte. Seu próprio filho, a quem ama
acima de qualquer coisa acaba de receber as benesses de uma cura
através da ciência espiritual.
366
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Um acontecimento muito providencial para a mente dela. Sem
dúvida.
Pouco tempo depois, a família de Francisco já retornou de Olinda e
reside agora bem próximo ao Canal 2 aonde ele trabalha à poucos
passos do centro da cidade e das gravadoras onde atua.
Algum tempo depois acontecem
modificações de ordem
profissional. Francisco reúne-se a um grupo de amigos, locutores e
redatores. Fernando Freitas, Marcos Macena, Ribas Neto e Carlos
Alberto. E se estruturam como uma cooperativa profissional,
associando-se a uma outra produtora nova na cidade, a Interfilmes
do Brasil, com uma participação vantajosa na distribuição dos
ganhos da produtora.
A Interfilmes tem os equipamentos de filmagem, câmeras de
cinema, equipamentos de edição e sonorização, estúdio de áudio,
mas necessita da mão de obra especializada.
O seu foco até então é a produção de documentários em áudio visual
de slides.
Agora pode entrar também na disputa do mercado de produção de
filmes publicitários. Já tem o que precisa. Entre os locutores
associados ao projeto há também elementos com experiência em
direção de produção. Começa então um novo ciclo profissional.
Francisco está regressando de Porto Alegre. Foi enviado lá por uma
agência de propaganda de Recife para participar como apresentador
de alguns comerciais para uma campanha de Bingos do Lions Club,
que vai ser veiculada em alguns estados do Norte e Nordeste. E já
está de malas prontas com a família para ir a mais uma Festa de
Santana, em Caicó.
367
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
M
aria das Vitórias, sua ex-noiva, havia se transferido para o
estado do Acre, anos atrás. Lá ela se casou. Tentando
refazer sua vida. Ganhou notoriedade. Vitória é uma
pessoa muito inteligente e capaz. Ainda guardava a carta que
“Chiquinho” havia lhe enviado encerrando o noivado.
Algumas vezes ela esteve no Rio Grande do Norte em visitas.
Sempre que podia passava por Caicó para rever dona Josina, mãe de
Francisco, a quem ela considera uma segunda mãe. Havia
confessado a dona Josina anos atrás, que só se casaria quando
esquecesse Chiquinho completamente.
Vitória faz contato com Chiquinho. É candidata a Deputada Estadual
no Acre. Deseja que ele providencie o material de propaganda de sua
campanha. Básicamente, jingle e spots para carros de propaganda,
cartazes, santinhos, brindes, essas coisas distribuidas pelos políticos
em época de campanha.
Ninguém melhor que ele, que a conhece tão bem, para criar sua
propaganda eleitoral. “Maria das Vitórias! O Acre precisa de você!”
Esse o tema da campanha criada por ele e aprovada por ela.
Vitória já havia constituido sua família. Já tem filhos. No momento
ela encontra-se em Manaus com um problema de saúde na família.
Está por alguns dias em um hotel. Nem está lembrando de
Chiquinho! Vê o Jornal Nacional na sala do Hotel. Entra o intervalo
comercial e o que ela vê? Chiquinho está na televisão apresentando
um comercial do Lions. Que tremenda surpresa! Ela não se contém e
começa a chorar, chocada com aquela visão inesperada! A mulher
dona do hotel aproxima-se preocupada!
- Dona Vitória! O que foi? A senhora está sentindo alguma coisa? Ela imediatamente procura se recompor. Como explicar? E pergunta
a mulher:
- A senhora já viu esse comercial da televisão anunciando um Bingo
do Lions?
- Já vi! Sim! -Amulher não está entendendo nada.
368
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Quando passar o comercial de novo a senhora preste atenção no
rapaz que faz o comercial! Ele foi meu noivo! - Eu estou aqui chocada com essa coincidência! Estamos tão longe
de Recife onde ele mora! Nunca imaginei que pudesse vê-lo aqui em
Manaus!
A mulher naturalmente já entendeu o problema. Realmente era de
lascar. Vitória nesta noite vai dormir pensando: - Mas criatura! Nem
aqui você me deixa em paz! - Haveria de rir bastante anos depois,
comentando isso com o próprio.
É tempo de mais uma Festa de Santana em Caicó. Francisco está lá
com a família. Chegaram de madrugada viajando de automóvel.
Elissandra nunca se acostumou a viajar de automóvel sem se sentir
mal. Havia vomitado bastando com sua enxaqueca durante a
viagem.
- Ôh! Mimía! (Seu apelido familiar) Também você! Quase me faz
vomitar também na viagem! - Reclama Eliana ao descerem do
automóvel em Caicó.
É preciso medicar Elissandra. A preocupação é que ela possa estar se
desidratando. Amanhece o dia e tudo já está normal. Aproveitando
um momento que Sandra saiu, dona Josina entrega algo a Francisco.
- Está aí! Safado! A carta que você escreveu para Vitória terminando
o noivado! Ela me mandou uma carta outro dia com esta dentro. Um
dia ela me disse que só casaria quando lhe esquecesse! Está casada!
O papel da carta já está amarelado. Por muitos anos Vitória a
guardou. O que o amor não faz! Pensa Francisco enquanto rasga a
carta e joga fora.
Sandra não pode nem sonhar que chegou essa carta. Ainda mais
pelas mãos de mamãe! Pensa ele. Çê La Vie Mon Dieux! Çê La Vie!
São lembranças! Que vêm e se vão! Assim como nós. São poeira no
tempo. Entretanto, alguns fatos marcam nossos espíritos para
sempre. Escrevem no espírito uma linguagem diferente.
369
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
ão faz muito tempo Francisco leu em um livro espiritualista
que os fatos de nossas vidas são gravados noAkascha.
Um plano energético existente numa outra dimensão, em torno do
nosso planeta de origem. Ali estariam impressos todos os passos e
atitudes de nossas vidas, como num vídeo tape, enquanto estamos
materializados na terra. Um registo da trajetória do espírito. Seus
passos evolutivos. E tudo que lhe diz respeito.
Eque, no primeiro momento nosso após a morte, é lá que nossa
consciência vai buscar todo o seu histórico. Uma idéia muito
avançada para a pobre concepção analógica de nossos tempos e de
nossa consciência escolar materialista.
Mas não deixa de ser uma bela descriçao, para motivar nossas
mentes na busca das possibilidades desconhecidas e do
desenvolvimento de nosso senso de observação. Não fosse o
extraordinário senso de observação de Newtom, o grande cientista,
nunca se escalaria os magníficos estudos sobre o efeito real da
gravidade.
Portanto, deve-se experimentar, estudar, observar. Em qualquer um
dos campos do conhecimento humano. Da física Quantum à Paranormalidade. Ninguém pode ser dono absoluto da verdade do
conhecimento. A realidade está em toda parte. Inclusive em formas
de energias as mais diversificadas. Muitas ainda nem descobertas
pela inteligência humana.
Costumo responder, quando me falam de algo muito estranho e
inconcebível: Parece ser verdade. Até prova em contrário. Os
negativistas reagem diferentemente. Isso não é verdade. Até prova
em contrário. Dizem eles. Pois sempre será mais cômodo esconderse por trás da negação. Fazem assim por pura preguiça de se
aventurar na busca do desconhecido. Falta-lhes o espírito da
aventura.
Um dos companheiros consorciados na Interfilmes é o cinegrafista
CarlosAlberto, o técnico de cinema.
370
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Certo dia ele está indo ao Aeroclube de Recife e convida Francisco
para ir com ele. Diz que vai fazer sua inscrição no curso de
pilotagem. Francisco imagina que para ser um piloto a pessoa tem
que ter muito estudo, curso superior talvez.
- E você tem curso superior Carlos Alberto?
- Não! Não precisa!
- E é? Achei que precisaria ter muito estudo para ser piloto.
- Não! Você só precisa ter estudo suficiente para dar conta das
matérias do curso. São cinco apostilhas: Motores, Navegação,
Aerodinâmica, Meteorologia e Regulamento.
Durante o trajeto ele vai dando outras informações. É apaixonado
por aviação. Já voou bastante fazendo filmagens aéreas e agora está
disposto a realizar o curso de pilotagem para PP, piloto privado. A
categoria inicial. Só para aviões monomotores.
Chegando na secretaria doAeroclube Francisco logo é reconhecido.
- Ah! Você é o homem das propagandas da Primavera!
- Também vai fazer o curso? - Pergunta o secretário.
- Não! É meu amigo quem veio se inscrever!
- Porquê você não faz o curso também? Não gosta de aviação?
- Gosto! Claro! Gosto muito! Mas... Eu já tenho quarenta anos...
- Bobagem! - Diz o moço. - Temos formado pilotos aqui até com mais
de cinqüenta anos! Só importa que tenha saúde. Você já teve algum
problema grave de saúde?
- Não! Graças a Deus não!
- Vamos Elias! - Insiste Carlos Alberto. - Vamos fazer o curso juntos.
Seria muito bom! Nós viríamos todos os dias juntos!
- Vamos fazer o seguinte! - Diz o secretário - Você assiste uma
semana de aulas! Se gostar, volta aqui na Secretaria e faz sua
inscrição. Paga sua taxa para receber as apostilhas e continua!
- Está bem! Vamos ver como é o curso!
371
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco agora está decidido. Não custa nada dar uma olhada
no material das apostilhas. Carlos Alberto já tem as suas em
mãos. E passa a vir com ele todas as noites para a sala de aula.
São dadas duas matérias todos os dias. Cada aula tem uma hora de
duração, com um intervalo de quinze minutos entre ambas.
No dia seguinte lá na Interfilmes Francisco dá uma olhada no
conteúdo das matérias.
Verifica que de fato não ha nada que ele não possa aprender. Só um
pequeno detalhe. A matéria de Navegação Aérea exige
conhecimentos de regra três simples.
E isso Francisco nunca conseguiu aprender no tempo em que
estudou. O amigo Carlos Alberto lhe explica como montar a
estrutura da regra três simples. Ele aprende de imediato.
Pronto! Agora está contornada a única dificuldade para ele continuar
o curso.
Após uma semana Francisco volta à Secretaria do Aeroclube para
fazer sua inscrição. Agora está mesmo muito interessado. Precisa
correr nesses estudos. Quando se apresentaram no Aeroclube para a
inscrição de Carlos Alberto, já fazia uma semana que o curso havia
começado. Ele entende que não pode perder tempo e entra de cabeça
nas matérias para tirar o atraso.
Lá na Interfilmes, em qualquer momento de folga Francisco tem
sempre à mão uma apostilha. Já estão até fazendo piadas com ele. O
companheiro Marcos Macena, muito extrovertido e piadista é quem
mais lhe atiça a temperança com suas piadas:
- Como está a temperatura hoje em Marte? - Motivo de boas
gargalhadas de todos. O Carlos Alberto engrossa a fila dos
gozadores. Também se diverte bastante com boas risadas. Mas não
se dedica com tanto afinco ao estudo das matérias.
As brincadeiras dos companheiros são na verdade uma boa
motivação para Francisco. Estão mexendo com seu ego. Por isso ele
penetra mais fundo ainda em seus estudos garantindo:
372
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Podem rir! Ri melhor quem ri por último! Eu vou passar nesse
curso! Vocês vão ver!
Durante esse período está acontecendo novo agravamento no
relacionamento de Francisco e Sandra. Ela não gosta nem um pouco
da sua idéia de ser piloto de avião. Procura criar toda sorte de
interposição negativa para que ele deixe o curso pra lá. Ela não sabe
que ele não pode mais simplesmente deixar pra lá o curso. Seu ego já
está profundamente ferido com as gozações dos companheiros de
trabalho. Não pode parar. Vai ser piloto. Eles vão ver! Aquilo era só
um motivo banal para Sandra fortalecer o desentendimento entre
ambos. Não custaria nada ela lhe dar apoio. Pensa ele. Mas seria
sempre assim.
Seria muito mais lucrativo para ambos se ela ficasse do seu lado. Se
ajudasse a estimular a sua auto-estima.
Mas infelizmente, por incapacidade cultural para alcançar esses
valores ela se coloca do outro lado. Engrossa a fila dos opositores.
Francisco é ariano. Tem uma personalidade forte. Não cede por
nada. E continua o seu curso de aviador. Já sonha com as aulas
práticas.
No Aeroclube tem vários aviões. Da escola de pilotagem e também
de particulares. Monomotores, bi-motores. O cheiro da gasolina de
aviação está provocando nele algo parecido com a sensação da
infância ao conhecer pela primeira vez tão de perto um caminhão.
Ele vai em frente resoluto.
Periodicamente, normalmente aos sábados, são feitas algumas
provas simuladas. Os professores do curso vão podendo avaliar
quem está se saindo melhor. Quem precisa melhorar. Quais as
matérias que estão precisando de um reforço para determinados
alunos, etc.
A performance de Francisco, embora houvesse entrado no curso
com uma semana de atraso, é uma das melhores. Seu bom
aproveitamento é mais ou menos horizontal em todas as matérias.
Com algum destaque para NavegaçãoAérea.
373
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Que segundo diziam, era a matéria que mais derrubava candidatos.
Já está se revelando o melhor aluno nessa matéria.
No intervalo entre uma aula e outra, enquanto estão indo à
lanchonete do cinema Drive In ali perto dentro do Aeroclube, o
professor Moisés lhe dá uma dica:
- Primavera! - O apelido pegou. - Você vai indo muito bem no curso.
Estou certo de que um dos aprovados vai ser você!
Todos agora só o chamam de Primavera. Por causa dos comerciais de
TV. Naquele ambiente é assim. Todos ganham um apelido. O seu é
Primavera. Mais motivo de gozação lá na produtora!
- O seu amigo Carlos Alberto não vai bem no curso! Estou
preocupado com ele! - Diz o professor Moisés. E agora ele tem uma
dica: - Não se preocupe com a matéria Regulamento. Isso é só
decoreba. Você deixa para estudar a matéria só umas duas semanas
antes da prova, para ter tudo decorado no dia dos exames.
Concentre-se por enquanto nas demais matérias.
Ao término do último simulado o professor Moisés aborda
Francisco novamente com um pedido, no mínimo estranho:
- Primavera! É o seguinte! Sabe aquele moço que veio de Goiás
fazer o curso aqui?
- Sei sim!
- O caso daquele rapaz é especial. Ele está precisando de ajuda! É
filho de criação de um grande produtor de milho lá. Em Ouro Verde
de Goiás. O pai já tem um monomotor. Ele inclusive já aprendeu a
pilotar esse avião viajando muitas vezes com o piloto.
- O pai o mandou para cá dizendo que se ele conseguir o brevê de
piloto vai comprar um outro avião novinho na Embraer para ele
pilotar. Mas ele está muito triste porque não consegue assimilar bem
a matéria de Navegação Aérea. - Francisco ouve em silêncio a
proposta do professor. - Você, entretanto, é nosso melhor aluno
nessa matéria! Sabe aquele cabo da Aeronáutica que vem sempre
aqui! Aquele que faz o intercâmbio entre o D.A.C e o Aeroclube?
Você sabe que os aviões do Aeroclube são mantidos pelo D.A.C.
374
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Não é?
- Sei sim!
Pois bem! Tem uma armação ai com aquele cabo!
- Ele vai levar uma grana para ajudar o rapaz a passar no curso! E
está precisando de sua ajuda!
- Eu? Como? Isso não vai me prejudicar Moisés? - Ouve-se falar do
rigor que cerca a realização dessas provas nas dependências da
própriaAeronáutica, em ambiente militar.
As provas são acompanhadas por um capitão, um sargento e um
cabo.Os subalternos ficam todo instante caminhando entre os alunos
durante as provas para inibir problemas de cola entre eles. Ha certa
severidade nisso. Francisco já ouviu comentários a respeito.
- Ainda não entendí o que é que eu tenho que fazer Moizés!
- Não se preocupe! Veja! Eu mesmo vou fazer as provas também só
para ajudar a passar o ex-prefeito Antonio Farias. Sabe que ele tem
dois aviões aqui! Aquele Sêneca II e um Cessninha 148 que acabou
de comprar só para se divertir. Também já pilota. O piloto dele
ensinou. Mas não tem o brevê. Esta já é a nona vez que ele faz as
provas e ainda não conseguiu passar. Não tem tempo para estudar.
O Aeroclube é muito devedor a ele. Ele já disse que se não passar
dessa vez vai desistir.
Quando foi Prefeito de Recife foi ele quem fez a nossa pista de
asfalto. O Aeroclube vai passar ele. Eu vou lá para facilitar isso.
Mas não posso ajudar ao goiano. Pode dar na vista. Por isso
precisamos de você! - Francisco pensa um pouco.
- Você tem certeza que eu não vou me prejudicar? Moisés?
- Absoluta! - E para tranqüilizar Francisco ele dá os detalhes de como
a armação vai ser feita na frente de todo mundo e ninguém vai
perceber.
- Cada prova é entregue aos alunos em um envelope lacrado. O
capitão dá então ordem para todos abrirem o envelope e começar a
responder.
375
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Ha um cartão a ser perfurado com as 20 respostas de cada prova.
Tipo cartão de vestibular! - Continua explicando o Moizés.
Ha também papel, lápis e borracha para alguns cálculos que serão
feitos. Na prova de Navegação Aérea, assim que você responder
todos os quesitos, você vai esconder a sua borracha no bolso da
camisa. Essa é a única prova que precisa de borracha. Você vai
então chamar o cabo normalmente, para todos ouvirem, e dizer a ele
que está faltando uma borracha no seu envelope. O goiano vai ser
posicionado pelo cabo numa outra fila próximo de você. Quando
você o chamar ele já vai se posicionar junto ao goiano. Então ele vai
virar-se para o goiano e perguntar se ele pode emprestar a borracha
dele. E vai entregá-la a você. Você simula que está apagando
alguma coisa numa folha de papel rabiscada. Em seguida escreve o
gabarito das respostas num dos lados da borracha com o lápis de
grafite e virá-la ao contrário. Chama então o cabo e agradece
devolvendo a borracha. Ele vai examinar a borracha normalmente,
na frente de todos e entregar ao goiano. Ai é com ele! Tá certo?
Entendeu tudo direitinho?
Claro que Francisco havia entendido. Que bela armação! O Brasil é
mesmo o país do jeitinho! Mesmo entre a aparente severidade
militar!
Foram 36 alunos nessa turma. Passaram 6. Na real 4. O ex-prefeito
foi empurrado, o goiano também, pelo que Francisco sabia. Então
restavam quatro. Francisco é um deles. O resultado das provas o
D.A.C. só anuncia duas semanas após.
São quase 18h00 quando o cabo chega no Aeroclube com a relação
dos aprovados e prega no quadro da secretaria. Imediatamente
Moisés liga para Francisco.
- Primavera! Parabéns! O resultado saiu! Você está entre os
aprovados! -Aadrenalina de Francisco vai às alturas.
- Maravilha Moisés! E Carlos Alberto?
- Infelizmente não passou! Passe aqui daqui ha pouco! Vai ter uma
churrascada com cerveja! Pra gente comemorar!
376
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- De noite?
- É! Churrasco de gato! Estamos providenciando uns espetinhos!
Vem pra cá!
- Chego daqui ha pouco!
Já são quase 18h00. Os cumprimentos começam ali mesmo na
própria Interfilmes. Abraços de confraternização. Mas Carlos
Alberto está triste. Entretanto vai com o amigo até o Aeroclube
participar da festa dos aprovados.
Onde a cerveja já rola solta. O goiano é todo alegria. Também foi
aprovado, claro! Carlos Alberto garante ao professor Moisés que na
próxima turma vai passar. E vai amargar as gozações na Interfilmes.
Hoje é um dia de vitória para Francisco. Ele está exultante. Está feliz
pela aprovação no curso. Agora vai iniciar o treinamento prático nos
aviões Paulistinha, monomotores teco-teco de treinamento, do
Aeroclube.
Ao chegar em casa mais tarde naturalmente sob efeito da cervejada,
Francisco imagina que traz uma notícia capaz de motivar a esposa.
Mas ela reage ao contrário. Está muito nervosa. O momento é bem
apropriado para desencadear mais uma discussão.
As crianças estão muito afetadas com palavrório dos dois. Vão para
o quarto. Eles discutem na sala. Com o janelão do apartamento
aberto para a beleza do Rio Capibaribe. As luzes se refletem nas
águas escuras da noite. Uma noite bela e morna. No apartamento,
entretanto, a temperatura subiu muito.
O apartamento é no décimo primeiro andar.
Sandra descarrega toda a sua adrenalina. É um momento de dor. Ela
nunca entenderia porque está ali, presa a um carma que desconhece.
Francisco desabafa doloridamente:
- Sandra! Eu tenho certeza que nós não vamos terminar nossas vidas
juntos! - Sente isso com uma profundidade muito grande.
377
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
U
ma daquelas certezas inconfundíveis que não consegue
explicar. Como se estivesse lendo páginas do futuro. Está
muito triste pelo descaso da esposa com seus esforços no
curso de pilotagem. Nunca terá seu apoio em qualquer projeto de
elevação pessoal. Paciência!
Na semana seguinte Francisco está realizando os exames de saúde
que vão determinar sua capacidade física para os treinamentos
práticos de pilotagem.
Uma bateria de nove exames. Incluindo o psicológico.
O psiquiatra manda Francisco sentar em uma pequena cadeira de
madeira alta deixando os pés fora do chão.
Em seguida bate no músculo de seu joelho com um pequeno
martelinho de metal. À cada pancada a perna de Francisco sacode-se
com certa energia.
Extranhando a reação muito forte, o médico segura a ficha de
Francisco nas mãos conferindo sua idade, e pergunta:
- Você tem 40 anos, certo? - Francisco confirma.
- Extranho! - Diz ele pensativo. - Seus reflexos são de um garoto de
12 anos! Eu ainda não tinha visto um caso desse!
O médico está mesmo perplexo. E estende o exame de Francisco por
meia-hora. O normal seriam quinze minutos. Diz ele. Faz inúmeras
perguntas. Quer saber se ele lembra de fatos excepcionais ocorridos
em sua infância... Francisco narra alguns. Pergunta sobre
acidentes...
Francisco então lembra o episódio do choque elétrico. Ai o médico
acha que encontrou a causa do que ele está achando ser um
fenômeno psicosomático, para justificar o reflexos tão atuantes dele,
mesmo aos 40 anos de idade.
- Doutor! Agora estou lembrando de um detalhe: Eu nunca cai
escorregando em casca de banana, de manga, ou tropeçando em
qualquer coisa.
- E o que ocorre? - Quiz saber o médico.
- Eu não sei como, mas sempre consigo me equilibrar a tempo.
378
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Sem dúvida! Seu caso daria uma tese de doutourado.
Pena que não poderemos desenvolvê-la, não é? - E explica:
- Não posso provar, mas acho que o choque que você levou em idade
ainda infantil energizou seus cromossomos de tal forma,
carregando-os de enegia de forma anormal, como baterias, a ponto
de lhe conferir essa capacidade de raciocínio super rápido. Um
mecanismo de autodefesa criado pelo cérebro naquele momento de
alta voltagem elétrica. Vai ser bom para seu curso. O piloto precisa
muito de bons reflexos.
As emoções do treinamento prático são indescritíveis. Francisco
sente-se um pássaro. Voar nesses aviões tão pequenos é uma delícia
(Ver fotos). Ai também seu aproveitamento é muito bom. Após treze
horas de treinamento prático ele está pronto para o voo solo. O solo é
a hora em que o avião é entregue ao aprendiz para voar sozinho. Sem
o seu instrutor “anjo de guarda” na cadeira de trás.
O instrutor! Que nesse tipo de aeronave senta no banco de trás. É “o
padre” que vai solar Primavera. Padre é seu apelido. Pelo jeito suave
de sua personalidade. Mas não é bicha! Ele faz questão de esclarecer
sempre que pode.Após mais um pouso o padre diz:
- Primavera! Pare o avião ai no meio da pista! - O anjo da guarda
abre a porta e sai.
- Você está pronto! Já pode voar solo!
Um friozinho corre pela espinha de Francisco, só de pensar que
agora vai estar só conduzindo o avião.
- Tenha cuidado quando vier para o pouso! Lembre-se que agora a
aeronave está mais leve! Com menos peso! A tendência é flutuar
mais no pouso! Não me quebre esse avião! - Dá uma risadinha
batendo nas costas de Francisco. - Vai lá!
Primavera gira o Paulistinha de volta para a cabeceira de decolagem
e atocha a manete de potência! Trezentos metros depois já atingindo
60 milhas, puxa o manche suavemente e o Paulistinha desgruda do
379
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
chão! Que sensação maravilhosa! Agora meu Deus! Esteja do meu
lado! Pensa ele.
Gira ao redor do campo de pouso pegando a perna do vento, entrando
pela perna base e aproa na final, indo na direção da cabeceira da
pista. Pousa tranqüilo. Pouso de dois pontos, apenas com as duas
rodas dianteiras. Em seguida arremete e decola novamente, sem
desgrudar a vista dos instrumentos. A subida tem que manter 60
milhas por hora. Lá embaixo os demais alunos e alguns instrutores
aplaudem o vôo solo do Primavera.
Mais dois pousos igualmente tranqüilos. O último em três pontos.
Pouso com a rodinha da trazeira também, e ele retorna com a
aeronave para o pátio. Está recebendo os cumprimentos merecidos
dos colegas e dos instrutores.
As aulas práticas vão continuar, geralmente nos fins de semana,
quando ele tem mais tempo. Sábados e domingos. Às vezes, vôos
pela manhã e à tarde. Até completar as 16 horas mínimas exigidas
para o check de brevê.
O batismo de óleo dos pilotos, a nível de trote, é feito após a
checagem para brevetar. Os colegas da escola providenciam uma
lata com óleo queimado dos motores e uma vassoura enrolada num
pano velho.
Molham a vassoura no óleo e passam pelo corpo do jovem piloto.
Incluindo a lubrificação da “bequilha”. Nas aeronaves, bequilha é
um pneusinho bem pequeno na parte traseira. No trote, a lubrificação
da bequilha é esfregando a vassoura suja de óleo entre as pernas do
piloto, por trás. Outra ocasião para mais uma cervejada. Algo que o
professor Moisés não dispensa.
Já está começando a anoitecer. Estão todos ao redor de uma mesa ali
mesmo no pátio do Aeroclube. O amigo Carlos Alberto foi avisado e
acaba de chegar para participar da festa. Traz consigo uma pessoa
muito especial. É Rose. Havia informado a ela do cheque de
Primavera. Ela fez muita questão de ir lá também cumprimentá-lo.
Ele então a trás.
380
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Francisco acaba de sair do banheiro onde foi retirar todo aquele óleo
do corpo.
- Mas que surpresa boa! Rose! Você aqui! - Ela o abraço e
cumprimenta-o.
- Carlos Alberto me ligou informando que você estaria sendo
checado hoje a tarde para receber seu brevê! Pedi para vir com ele.
Queria muito lhe parabenizar! - Ele sente que a emoção dela é muito
verdadeira.
- Obrigado Rose! - Que diferença! Sandra não estaria ali. Mas a
Rose... Ela fica um pouco, depois vai embora com Carlos Alberto.
Moisés sabe que Francisco é casado. Quis então saber quem era
aquela jovem. Ele lhe dá alguns detalhes sobre Rose.
- Muito simpática ela! - Descreve Moisés.
- É mesmo! A Rose seria a mulher da minha vida! Se não tivesse
cruzado tão tarde a linha do meu destino!
É sexta-feira. Na segunda-feira seguinte na Interfilmes Francisco
conversa com CarlosAlberto sobre Rose.
- É! Ela ligou para cá querendo falar com você! Então falei que você
estaria fazendo seu cheque para o brevê e ela quis muito ir
cumprimentar você! Foi isso!
Os dias estão passando e Rose não fez mais contato.
Mas continua na mente de Francisco. Pelo que entendera, ela teria
tentado falar com ele. Naquele dia no Aeroclube não houve
oportunidade. O que seria? Será que ela acabou mesmo o noivado?
Estaria novamente só?
Sua carência afetiva é muita. Nunca mais houve outra mulher em sua
vida. Ele resolve ligar para ela.
- Oi Rose! Como vai?
- Oi! É você Beínho? Que bom que você ligou! - Francisco vai ser
rápido e objetivo.
- Pois é! Rose! Quero aproveitar para lhe agradecer mais uma vez
pelo estímulo que me deu indo lá no Aeroclube naquele dia!
381
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Mas claro! Que eu tive muito prazer de ir cumprimentar você!
Carlos Alberto me falou do seu esforço para passar nos exames.
Como vão os treinamentos?
- Muito bons! Estou progredindo. Tenho que completar 32 horas de
vôo solo. Tenho voado todos os fins de semana.
Ha outra coisa que eu quero lhe falar Rose! Você ainda está noiva?
- Não! Já faz tempo que o noivado acabou! Era mesmo sobre isso
que eu queria falar com você no dia que telefonei para a Interfilmes
e conversei com Carlos Alberto.
- E ainda está só?
- Estou! Sim! Estou dando um tempo! Meu coração só me pede
trabalho! Porquê?
- Vamos voltar a namorar? - Por alguns instantes ela fica em silêncio
ao telefone. Deve estar se refazendo da surpresa.
- Beínho! Você está falando sério?
- Nunca falei tão sério Rose!
- Você se separou de Sandra?
- Não Rose! Mas estou precisando muito de você!
Francisco também havia precisado de um tempo. Longe de qualquer
outra mulher. Uma tentativa. Para depois se convencer em definitivo
de que suas dificuldades de relacionamento com Sandra
independiam de qualquer outra relação fora do casamento.
Já se passou mais de dois anos do relacionamento tumultuado com
Rose. Já é 1981. Ficara todo esse tempo sozinho. Para provar algo a
si mesmo.
Agora tudo está bem claro. E não vai ficar sozinho mais sabendo que
ha uma mulher que ainda o ama. E que apesar de tudo ainda espera
por ele. Está começando ali uma nova etapa de convivência entre os
dois. Dessa vez vai ser bem mais demorada.
- É! Precisamos conversar! Estou sentido você muito dolorido! Está
precisando de um ombro amigo? - Pergunta Rose bastante
382
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
sensibilizada com o que ele acaba de lhe dizer. Marcam um encontro
para a noite seguinte. A conversa vai ser demorada. Ocasião em que
Francisco lhe informa de como deverão estruturar seu
relacionamento dai em diante. Afinal, ela também está sacrificando
sua vida pelo que sente por ele.
Conversam e Francisco deixa claro que vai continuar sendo um
relacionamento fora do casamento. Não tem coragem de deixar os
seus filhos. Explica a Rose o que sente por eles. E que os vê como um
compromisso cármico. Uma obrigação espiritual que trouxe consigo
ao vir a este mundo e que cumpre com grande alegria. Pois os ama
profundamente. Cuidar de seus filhos é sua tarefa mais
compensadora. Estar sempre perto deles enquanto crescem.
Rose aceita suas condições. Entende perfeitamente o que se passa
em seu coração. Respeita suas responsabilidades com os filhos. E
aceita se relacionarem assim mesmo. Ser a outra não a incomoda.
Pois já tem aquela informação recebida no centro espírita tempos
atrás. A outra de agora, já fôra no passado a esposa dele. Só quer estar
ao seu lado. Trabalha agora numa empresa de seguros. Sua vida vai
se renovar outra vez. Beínho está de volta ao coração dela. Por
inteiro. Ou quase. Dá para administrar bem a situação.
Enfim é a ele que ela ama. E se houver um período de calma, ele
também vai amá-la profundamente.
Assim espera. O relacionamento dos dois está novamente reatado. É
um período de muitas compensações emocionais. Para ambos.
Conversam sobre o aborto que ela sofreu.
- Rose! Eu lhe peço que me perdoe! Não podia advinhar que você
estava grávida. Aquele foi um momento intempestivo. Fiz mal. Por
isso lhe rogo que me perdoe!
- Já passou Beínho! Eu já superei isso! Não se preocupe! Não ha o
que perdoar. Tinha de acontecer daquele jeito!
Rose releva tudo. Pois ainda o ama.
383
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
o Aeroclube as emoções aumentam em torno do piloto
recém formado. Os vôos continuam nos fins de semana,
quando grande número de associados do Aeroclube e
aficionados por aviação, incluindo o pessoal do Clube de
Aeromodelismo, estão por lá.
Gildo, Presidente do Aeroclube, acaba de voltar de Oskhosh, uma
cidade americana, onde se realiza anualmente o maior evento de
aviação esportiva do mundo. As revistas dão conta da presença de
mais de três mil aeronaves vindas de várias partes do mundo para o
evento. Inclusive o Brasil, tem lá sua representação. A Esquadrilha
da Fumaça esteve presente dando seu show aéreo.
Ocorrem cerca de mil pousos e decolagens diariamente durante a
semana da Feira. Informa Gildo. Aquilo lá é uma loucura! Está
empolgadíssimo com o que viu na FAA, o centro da Federação de
Aviação Esportiva dos Estados Unidos.
Este ano o Gildo foi acompanhado de dois amigos do Aeroclube de
Recife. Francisco conversa com ele. Gildo dá inúmeros detalhes
empolgantes do evento.
E traz algo especificamente para lhe mostrar:
- Dê uma olhada nesse folder Primavera!
Estive no stand de montagem dessa aeronave! É o projeto KR-2!
Muito fácil de construir. Lembrei-me de você! - As fotos do KR-2,
em vários detalhes da seqüência de montagem, são bem
interessantes.
- Mas você acha que podemos construir esse projeto aqui? Francisco está curioso com essa idéia.
- Acho que sim! Acho você muito empolgado com aviação! Esse
projeto é muito fácil de construir! E barato! Já existe um KR-1 sendo
feito aqui em Recife por dois amigos nossos. Vai voar breve aqui no
384
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Aeroclube. Estão construindo na casa de um deles lá em Piedade.
Mas só tem um lugar na cabine. O KR-II, como você pode ver, tem
dois lugares. Side-by-side.
O projeto custa só cinqüenta dólares! Acho que você devia importar
esse projeto. Arranjaremos um espaço aqui no Aeroclube para você
montar a oficina de trabalho.
Ha um outro piloto ali escutando a conversa. É o amigo Guerra,
também piloto privado, um técnico da Texaco. Ele empolga-se com
a idéia e afirma:
- Primavera! Se você mandar buscar o projeto eu vou construir um
desses também junto com você! Faremos dois aviões com o mesmo
projeto!
- É isso aí! - Entusiasma o Presidente Gildo. E acrescenta: - O
Aeroclube dará todo apoio a vocês!
Francisco então manda buscar o projeto do KR-2. Tudo apenas no
papel. Plantas muito bem detalhados. Só que tudo em inglês. O
projeto existe para venda nos EE.UU também em kits para
montagem. Entretanto nesse tempo no Brasil, vários tipos de
produtos são proibidos de importação. Esse tipo de produto
infelizmente está incluído entre as proibições. O jeito era importar as
plantas com todos os desenhos e fabricar os próprios kits. Francisco
é uma pessoa que gosta de desafios. Logo se empolga com a idéia.
Acendem-se as luzes de um novo sonho. Mais uma realização para
seu currículo pessoal. Porquê não?
Agora vai ser construtor aeronáutico também! Que reviravolta na
sua vida!... Pensa ele. Mas há um problema! Nesse caso o projeto
precisa ser traduzido. Procura uma pessoa que faz esse tipo e
trabalho lá na Sudene, indicado por um amigo. Mas o preço cobrado
pela tradução é cerca de duzentos dólares. O projeto só custou
385
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
sessenta dólares! Cinquenta mais dez de correio. Não dá para topar
esse custo de tradução. O guerra também acha muito caro.
Francisco tem uma idéia. Nada é impossível quando a mente está
direcionada com total energia para um objetivo específico. Suas
noções de inglês são razoáveis. Não fala. Mas lê razoavelmente.
Compra então um dicionário de inglês técnico e traduz ele mesmo o
projeto. Mais um motivo para o prazer de seu ego.
Duas semanas depois inicia-se a construção. Francisco é muito
decidido. Não é alguém que possa ser impedido de algo com muita
facilidade.
Na vida, cada objetivo alcançado é motivo de elevação para sua
auto-estima. São provas a si mesmo, de que nada pode impedir uma
pessoa determinada. Quer deixar isso como um exemplo. Não é
incomum, descobrir-se às vezes em viagens mentais do tipo:
Quem é você, realmente, Francisco? Que saiu daquelas brenhas
paupérrimas em um sítio de Caicó, cercado de tamanha pobreza e
hoje se vê como piloto de avião, às voltas com a construção de um
projeto aeronáutico?
Pensar nessas imensas diferenças e transformações lhe dá um certo
prazer. Quase sempre lembra-se do vovô Chico Elias.
Informada da idéia de construção da aeronave Rose mostra-se logo
muito empolgada, transmitindo seu apoio a Francisco. E sempre que
possível, vai estar lá na oficina com ele tentando ajudar em alguma
coisa. Essa disposição dela o agrada muito.
Justamente o contrário da receptividade negativa que recebe em casa
por parte da esposa. Mas de certa forma ele já não se deixa tocar por
isso. Já está habituado às posições contrárias vindas dela. Vai em
frente na idéia de construção do KR-2 ao lado do amigo Guerra.
Quase sempre, Rose está em sua companhia.
386
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
os poucos a madeira, o compensado aeronáutico, a cola
Araldite e a serra elétrtica, vão dando forma às duas
aeronaves, construídas lado a lado. Vai levar algum tempo.
São necessárias 1.700 horas de trabalho para a conclusão do projeto
a partir da construção dos kits.
Mas Francisco não tem pressa. Ha um prazer muito grande nessa
tarefa. É sua terapia ocupacional. Que favoralmente vai ser
prolongada.
Rose interessa-se pelas emoções dele com o projeto do KR-II.
Procura participar. Dar sua contribuição em apoio ao que ele tanto se
empenha agora.
Guerra, certa ocasião conversa sobre Rose:
- Menina interessante essa Rose! Sua esposa é quem deveria estar
aqui, hein Primavera! Mas é a Rose que ocupa esse lugar!
Guerra sabe das dificuldades de Francisco no casamento. Lamenta
que seja assim. Mas compreende a dedicação de Rose para com ele.
Vindo até à oficina assim várias vezes, à noite, após o trabalho.
Semana após semana. Sem garantias de nada. Só para estar perto
dele. Às vezes um tanto cansada do seu dia-a-dia no trabalho.
- É admirável o que essa menina sente por você Primavera! Observa Guerra.
É prazeroso trabalhar na montagem do avião. A construção está bem
avançada. O prefixo da aeronave já foi liberado pelo C.T.A. - Centro
Técnico Aeroespacial, em São José dos Campos, São Paulo, que
também coordena e autoriza as construções ditas “home Build” construções caseiras.
PP-FAZ. As letras iniciais e o Z final são obrigatórios no registro,
identificando que se trata de uma aeronave esportiva de construção
caseira. O FAsão iniciais do nome de FranciscoAraujo.
387
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Que coincidência! Comenta ele com Rose. - Deu FAZ!
Os engenheiros do C.T.A. Estão em Recife para a primeira inspeção,
analisando o andamento do projeto nas duas aeronaves. Tudo no
figurino.
Sábado e domingo eles trabalham quase o dia todo no projeto duplo.
Os dois aviões estão sendo construídos em etapas paralelas.
Este domingo, Francisco foi almoçar em casa. Está terminando o
almoço quando o telefone toca. Guerra está muito consternado ao
telefone:
- Primavera! Uma notícia muito chocante!
- O que foi Guerra? - Francisco pensa logo num incêndio que teria
queimado os aviões.
- O Gildo acaba de se acidentar com o avião dele! Caiu na
decolagem aqui mesmo dentro do Aeroclube! Eu mesmo retirei ele
de dentro do avião pensando em correr com ele para o hospital. Mas
ele já morreu! Morreu nos meus braços!
Que chocante! Não poderia haver notícia mais desagradável do que
aquela para os associados do Aeroclube. Francisco volta
imediatamente para lá. O corpo do amigo Guido já havia sido
levado. Uma tristeza para todos.
- Como foi isso Guerra? - Francisco observa os destroços do avião.
- Eu estava na oficina. Só escutei o estrondo. Corri lá fora e as
pessoas estavam vindo apressadas na direção do avião. Eu vim
também. Ele estava voando com o sobrinho, que estava no banco de
trás. Algumas pessoas disseram que ele estava ensinando o
sobrinho a pilotar. E que foi o garoto quem decolou o avião. O Gildo
não deve ter percebido que o rapaz estava puxando o manche além
do normal. O avião estolou a uns setenta metros de altura e
despencou de vez caindo de bico. Foi isso!
388
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
P
or vários dias o Aeroclube vive uma consternação de luto. Na
oficina do KR-II também. A montagem dos dois KR-II vai
continuar.
Talvez seja aquela uma forma de homenagear o amigo Gildo. Afinal
a idéia fora dele.
Enquanto isso, periodicamente, Francisco se diverte com as
crianças, voando com elas nos teco-tecos do Aeroclube. Somente
Sandra nunca quis voar. Diz ter muito medo. Mas as meninas se
divertem voando com o pai nos fins de semana. Ramatís ainda é
muito pequeno. Só mais tarde, em Maceió, ele irá experimentar
essas emoções de voar junto com o pai.
Vez por outra Francisco vai à Fortaleza, contratado para gravar
comerciais de TV das lojas Romcy. O cachê vale à pena. Em uma
ocasião dessas leva Sandra e Ramatís (Ver fotos). Juntos também
vão o casal Fernando Freitas e Lurdinha. O moço da agência de
propaganda lá de Fortaleza é amigo deles de tempos atrás em Recife.
Tudo parece caminhar satisfatoriamente. Mas o destino está
preparando algo para Francisco.
A produção de comerciais na Interfilmes está decaindo cada vez
mais com a entrada no mercado da tecnologia do vídeo-tape com
imagens coloridas.
A situação econômica não está nada boa para ele. Ainda bem que os
gastos iniciais do projeto do KR-II haviam sido feitos bem antes na
compra dos materiais. Agora depende mais de mão de obra. Por isso
pode continuar sem problema. Mas essa situação com a
rentabilidade do trabalho o preocupa muito.As meninas agora têm
que estudar em um colégio modelo da Prefeitura, próximo de onde
389
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
eles moram na Rua daAurora.
Sandra toma uma iniciativa. Ha uma feirinha de artesanato quase em
frente ao prédio onde moram. Ela vai fazer bolos para vender na
feirinha. Tenta melhorar o orçamento doméstico. Estão vivendo um
período ruim. Ela se ressente porque Francisco nunca vai lá na
Feirinha onde ela vende os bolos. Ele não se sente à vontade. Que as
pessoas percebam o quanto estão em dificuldades. A esposa do
apresentador de televisão está vendendo bolo para sobreviverem.
Isso não seria nada demais. Mas ele tem dificuldade em assimilar
com total isenção e humildade essa situação.
A “helicoidal”, que parece dirigir os destinos dele rolou para baixo já
faz algum tempo.
A Rose continua sendo sua parceira. Tanto emocional, como em
apoio ao projeto do KR-II.
Francisco diminui consideravelmente os vôos recreativos de
Paulistinha no Aeroclube. Precisa economizar algum dinheiro. Rose
sempre procura reanimá-lo quando percebe que ele está triste.
- Beínho! Tenha fé! As coisas vão melhorar! Você vai ver! Vão
melhorar! - Que bom! Que ela não depende financeiramente dele
para viver. Ai o transtorno seria terrível. Ela cuida de si mesma. Tem
seu trabalho na empresa de seguros. O que ganha dá para se manter
muito bem.
Mas ele não vê como melhorar suas finanças. Seu mercado de
trabalho em Recife definhou consideravelmente. Depois de cada
dificuldade vem sempre a bonança! É nisso que ele deposita suas
esperanças.Amanhã... Nunca se sabe...
390
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
J
á faz mais de um ano que sua situação financeira não anda bem.
Já estamos em fins de 1981. Este ano nem pôde ir a Caicó na
Festa de Santana! - Pensa Francisco. A festa em Caicó é sempre
um marco periódico na vida de todos os seus familiares. Estão
sempre esperando sua presença por lá. Mas este ano não deu...
Alguns companheiros seus já saíram da cooperativa na Interfilmes,
buscando outras alternativas. Restam apenas ele e Fernando. Que
depois também se ausenta. Francisco ainda permanece. Pois ha uma
empresa de publicidade que grava com ele todos os comerciais de
um cliente seu. A Viana Leal. Um forte concorrente da Mesbla no
setor de magazine. Serviços de locução apenas. A produção de
material em filmes agora é insignificante.
As locuções no estúdio de áudio da produtora é o que ainda mantém
Francisco. Já não trabalha mais no rádio e TV Jornal do Commercio,
que também entrou em derrocada, com atraso de até três meses nos
salários dos seus funcionários.
Por um bom período a sua situação econômica vem se mantendo
bem magra. Mas pelo menos, vive uma nova situação sentimental
compensatória com Rose.
No momento, a condição emocional da família agrava-se mais ainda
com a crescente instabilidade do casamento, às vezes de forma bem
dolorosa para Francisco e para Sandra. Estão vivendo agora bem no
meio do que os especialistas chamam; a crise dos dez anos no
casamento. Ha quem afirme que todo casal passa por esse momento.
E dependendo do fortalecimento dos sentimentos envolvidos e da
base amorosa entre os dois, o resultado pode ser bem doloroso.
Muitos casamentos são desfeitos nesse momento crucial, quando os
filhos mais precisam da presença dos pais. Francisco analiza todas
essas conseqüencias. Já leu sobre todas elas. Outra vez ela está muito
nervosa e chora.
391
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco lembra do conselho passado pela entidade espiritual,
quando lhe aconselhou para que evitasse choro, de Sandra e
de Rose.
Porquê as coisas nunca se estabilizam em seu casamento? Pondera
ele. No momento seu compromisso continua em razão dos filhos.
Ramatís está crescendo. Já tem três anos. Já está no Jardim de
Infância. A vida precisa continuar. Agora mesmo ele está lá embaixo
no parque em frente ao prédio onde moram aprendendo a soltar pipa
com o Zezinho, um primo vindo de São Paulo em férias, filho da tia
Neném. Um rapaz nascido e crescido dentro de São Paulo.
Muito habituado a ver pouco sol. Hoje bem cedo Francisco deparouse com Zezinho encostado ao janelão do apartamento olhando
abismado a paisagem. Ele chegou ontem à noite de avião.
- Puxa! Mas como tem sol aqui! - Exclama ele muito curioso. Está
muito surpreso com tanta claridade assim, que nunca tinha visto. É
verão. E nesssa época no Nordeste o sol brilha com muita
intensidade.
Após o café da manhã o Zezinho desce lá embaixo no parque infantil
à beira do Rio Capibaribe para ensinar Ramatís a soltar pipa. Que ele
mesmo fez.
Francisco ainda é visto pelas agências de propaganda como um bom
Mestre de Cerimônias. Contratado de vez enquando para
apresentação de eventos de inauguração de bancos, supermercados e
outras empresas privadas.
Estão ligando para ele. Ha um acontecimento de relevância sendo
preparado em Recife. Um desses trabalhos a fazer. Bom mesmo!
Porque a situação econômica em casa já começa a apertar feio.
É um coquetel a se realizar na sexta-feira seguinte no restaurante de
392
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
cobertura de um hotel em Boa Viagem, para recepcionar o
Presidente Internacional da National.
Uma corporação japonesa que produz uma infinidade de produtos
eletrodomésticos e eletrônicos, com tentáculos espalhados pelo
mundo inteiro, em visita à Recife. Está lançando no mercado
brasileira as suas novas pilhas elétricas. O Presidente e sua comitiva
está visitando vários mercados no Brasil e Recife está no seu roteiro
também.Acabam de contratá-lo para apresentar o evento.
Às 19h30 Francisco já está no hotel conversando com a organização
do evento. Estarão presentes para recepcionar o Senhor Nakamura,
os Presidentes do Clube de Diretores Lojistas e da Federação do
Comércio em Pernambuco. Além de vários lojistas, varejistas que
distribuem os produtos da companhia aos consumidores diretos.
Já existe um núcleo da companhia sediado em Recife. Que importa
os equipamentos e redistribue com os lojistas. Ha grande espectativa
nessa recepção ao Sr. Nakamura. É a primeira vez que o Presidente
da National visita o Nordeste. Gravata e paletó é exigência formal.
Quinze minutos antes de iniciar o evento Francisco está sendo
contactado pelo representante da agência de propaganda que o
contratou:
- Elias! Estamos com um problema! Já falei com eles mas, nenhum
dos representantes do Clube de Riretores Lojistas nem da
Federação do Comércio, quer fazer a saudação ao Presidente da
National. - Nesse instante o homem da National em Recife se
aproxima. - Então o jeito é você mesmo fazer a saudação!
- Mas meu amigo eu nunca fiz isso! Estou aqui para apresentar o
evento como Mestre de Cerimônio! - O representante da agência
contra-argumenta que não há outra alternativa. A solução está na sua
mão.
393
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Mas eu não falo nada de Japonês! Como vou citar os nomes da
comitiva do homem? - O representante local da National, que fala
um português razoável, intervém com uma sugestão:
- Não tem poblema! Falar nome japonês é faci! Basta acentuá todas
as sí-la-bas. Assim né: Ná-ká-mú-rá!
Francisco experimenta: - NÁ-KÁ-MÚ-RÁ!
- Isso! Isso! - Responde o japonês. O problema está contornado.
Francisco vai fazer a saudação em nome das autoridades locais. Mas
deixa bem claro para o moço da agência:
- Vou fazer o menor discurso que você já ouviu na sua vida, hein!
Falar pouco para errar menos! - O representante da agência está de
acordo. Só então a comitiva da National é trazida para o salão.
Após as apresentações e os cumprimentos de praxe a todos os
presentes, com o Senhor Nákámúrá rodando todo o salão
acompanhado de seu séqüito, Francisco recebe instruções para ir ao
microfone, levando a relação com os nomes da comitiva e iniciar
sua saudação.
Ao começar a sua fala, ele é logo surpreendido pela postura do
Senhor Nakamura. O homem vem em sua direção e se posta uns dois
metros à sua frente, perfilando-se como se fosse um general
prestando continência a outro.
Os integrantes de sua comitiva também. Fazem fila ao seu lado.
Parece um pelotão militar prestes ao “apontar! Fogo!”.
O representante local da National se posiciona ao lado do Sr.
Nakamura. Vai ser o intérprete. Francisco desfia a lista de nove
nomes da comitiva:
- Ilustres senhores: Mí-xí-ô-cô, Ká-ní-ká-rá-chí, Ná-tô-cuô-mô... - E
assim por diante, até chegar ao nome principal da lista, o Senhor Ná-
394
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
mí-ô-zô-tô Ná-ká-mú-rá. Continua seu breve discurso de saudação à
tão importante autoridade empresarial internacional, descrevendo a
satisfação dos empresários locais e suas representações, em recebêlo nessa ocasião.
Pela expressão dos representantes das organizações comerciais ali
presentes, ele parece estar se saindo muito bem. Terminada a
saudação, ele anuncia que será servido a todos um coquetel.
Tão logo encerrou seu breve discurso, o Senhor Nakamura dá dois
passos mais à frente, ainda empertigado em posição militar e vai
apertar a mão de Francisco. Apertando forte ele balança o braço pra
cima e pra baixo cerca de uns 30 segundos. Eu já ví isso em algum
filme! Pensa Francisco. Após isso recebe os cumprimentos também
dos representantes das entidades comerciais e do próprio
representante da agência, que se mostra muito contente:
- Elias! Você foi incrível! Fantástico! Muito obrigado por tirar a
gente dessa saia justa!
- Você me apronta cada uma, hein! Amigo! - Desabafa Francisco.
Como para todo esforço ha sempre uma compensação e um
reconhecimento, na segunda-feira seguinte Francisco recebe um
telefone do gerente regional da National, pedindo que vá até o seu
escritório, não muito longe da produtora, por sinal. Ele não deu
detalhes.
Francisco imagina que o seu pagamento pelo trabalho do cerimonial
vai ser feito pela própria agência que o contratou. E vai lá. O que será
que ele quer comigo?
- Muito boa sua apresentação! O Presidente Nakamura ficou muito
impressionado e agradecido com seu discurso. Nós também! Sente
395
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
por favor! Você trabalha numa produtora de cinema publicitário,
certo?
- Perfeito!
- Nós temos um trabalho para você! Precisamos que vocês criem e
nos apresentem o roteiro de um filme para as pilhas National, que
rodaremos na televisão! É possível?
- Claro! É sim! Traremos isso ainda hoje!
- Por favor! Traga também o orçamento de produção do filme!
Conversa rápida e produtiva essa! Pensa Francisco de volta à
Interfilmes. Ele mesmo criou o roteiro do comercial.
Também se encarregaria da locução e direção do filme. Estabelece
no roteiro a participação de um personagem local de muito sucesso
na TV, o repórter policial Jota Ferreira, dono da maior audiência das
reportagens policiais da TV local. Francisco imagina que é preciso a
atuação de uma figura assim, muito carismática e de grande
popularidade. Jota Ferreira é a pessoa certa. Faz contato com o
profissional e fecha o orçamento. Ante de concluí-lo fica
imaginando... Um filme para a National!... Essa gente deve estar
acostumada a pagar rios de dinheiro no mercado internacional na
produção de um filme. Tá certo que a Interfilmes não é uma
produtora nada internacional. Mas procura engordar bastante o
orçamento.
O filme será rodado em 35mm e reduzido para 16mm para poder
veicular nas máquinas da televisão. Obtendo com isso uma
excelente qualidade no produto final.
Conclui o orçamento e vai apresentar junto com o roteiro.
- Mas que boa idéia! - O gerente da National achou muito
interessante utilizar o repórter da grande audiência policial no filme.
Aidéia é mesmo atingir o público popular. Esclarece ele.
Solicita que deixe com ele o roteiro e o orçamento. Ele irá à São
396
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Paulo no dia seguinte para encontrar-se com o Presidente Nakamura,
que já estará voltando ao Japão. Os compromissos corporativos do
Presidente demandam uma certa velocidade. Ele está acostumado a
amanhecer em um país e dormir em outro.
Uma semana depois está de volta. O telefone da Interfilmes toca. É o
gerente regional da National pedindo que vá até seu escritório.
- Excelente! - Diz ele recebendo Francisco em seu gabinete.
- Sabia que seu filme foi aprovado no Japão?
Explica que chegando à São Paulo o Senhor Nakamura já havia
embarcado de volta para o Japão. Ele teve então que ir até lá para
tratar de outros assuntos da companhia.
- O filme está aprovado e o orçamento também! Quanto tempo você
precisa para nos entregar o filme?
- Umas duas semanas! - Responde Francisco.
Está explícito no orçamento que o pagamento deve ser com 50% na
confirmação do orçamento e o restante na entrega.
- Aguarde um pouco que eu já mandei providenciar o cheque com o
pagamento dos 50%.
Em seguida entra uma moça nissei no gabinete e ele entrega o
cheque a Francisco, que deixa assinado um recibo provisório. A nota
fiscal virá com a conclusão do trabalho.
O resultado do discurso que Francisco fizera, de saudação ao Senhor
Nakamura, não poderia ser melhor.
Está rendendo dividendos. Pensando bem! Aquilo está lhe
parecendo uma iniciativa de compensação por parte dos dirigentes
da National, no sentido de demonstrar de uma forma bastante
plausível, seu reconhecimento.
Para quem está vivendo um certo aperto financeiro, essa
oportunidade é excelente.Acaso?
397
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco ganhou um bom dinheiro com o filme. Deu até para
comprar um automóvel. Um Passat seminovo. Com três anos
de uso. E ainda sobrou um bom dinheiro. Já estava sem carro
ha bastante tempo. Quando as coisas apertam, é o bem que primeiro
se vai. Seu destino aponta para Maceió.
A “helicoidal” vai continuar dai por diante sinalizando mudanças em
sua vida. Ha um amigo na cidade de Maceió, para quem
freqüentemente Francisco trabalha, na produção de gravações de
textos publicitários para rádio e TV lá deAlagoas.
Freqüentemente Francisco tem ido à TV Gazeta de Maceió finalizar
alguns comerciais de TV, que são passados de cinema para VT.
A TV Gazeta de Alagoas no momento é quem tem os equipamentos
de finalização mais modernos no Nordeste. Algo está sendo
engendrado favorecendo sua transferência para a capital alagoana.
Pedro Collor de Melo, diretor geral da TV Gazeta tem se mostrado ja
ha algum tempo muito interesse no apresentador de telejornal
Francisco Elias, que já conhecia da televisão em Recife.
Nesse momento a TV Gazeta, que está se modernizando, já tem em
seus quadros alguns profissionais trazidos de Recife. Pessoas que
Francisco conhece bem no setor de produção.
Certo dia o amigo de Maceió está ao telefone. E lhe diz que o
empresário Pedro Collor de Melo está insistindo em levar Francisco
paraAlagoas.
Seu amigo é a ponte desses contatos. É uma quinta-feira. O amigo
está ao telefone lhe informando:
- Pedro Collor fez contato comigo hoje! Está insistindo para você vir
aqui sábado que vem discutir um contrato de trabalho! Pediu-me
seu nome completo para emitir uma passagem de avião! Quer você
398
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
aqui no sábado pela manhã de qualquer jeito! - Francisco está
refletindo sobre o caso e responde:
- Faça o seguinte! Diga a ele que não precisa mandar a passagem!
Eu vou de carro! Vou levar minha esposa para conhecer Maceió!
Afinal, depende também dela!
Combinados assim, no sábado pela manhã Francisco está em
Maceió na companhia de Sandra. Enquanto permanece na TV
Gazeta conversando com Pedro Collor sobre as condições de seu
contrato, Sandra está sendo levada pelo amigo de Maceió para
conhecer o apartamento mobiliado que será oferecido pela empresa
para eles residirem, em frente a praia de Pajuçara.
Maceió já é nesse momento um cartão postal turístico. De muita
beleza natural. As águas azul-turquesa de suas praias e a enorme
calma reinante na cidade, sem o stress da grande metrópole que é
Recife, com toda sua insegurança é um apelativo irresistível. Tudo
isso encantam Sandra.
Fechado o contrato de trabalho. Francisco vai ter um horário na
Rádio Gazeta e será também o âncora local do telejornalismo da TV
Gazeta.
À tarde o casal retorna à Recife. No fim de semana seguinte
Francisco estará mudando-se para Maceió. Vai permanecer no
apartamento por enquanto sozinho. O apartamento está mobiliado,
portanto não ha problema para permanecer lá. Serão só seis meses. O
tempo em que as meninas terão terminado o período letivo e poderão
ir todos para Maceió. Mas... E a Rose?
Será muito complicado para ela aceitar essa nova realidade.
Francisco precisa conversar com ela com muito jeito.
Logo na segunda-feira à noite eles se encontram. Precisa participar a
ela a novidade com sua imediata transferência para Maceió.
399
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Mas Beínho... Eu nem sei o que dizer! Fico contente por você! Sua
situação financeira vai melhorar bastante! Mas... E nós? E eu?
Como vou poder ficar longe de você? O que vamos fazer?
Rose está preocupada. Será que vai perdê-lo de novo? Logo agora
que sua situação emocional havia se estabilizado! Os pensamentos
voam em sua cabeça.
Sua reação é compreensível.
- Acalme-se! - Aconselha Francisco. - Vamos raciocinar juntos!
Acho que tenho uma sugestão. Inicialmente, pelo menos durante
esses próximos seis meses, vamos combinar assim: Uma vez por mês
Sandra vai à Maceió com as crianças. No intervalo de quinze dias eu
venho à Recife.
- Assim vou estar com eles a cada quinze dias. Podemos fazer o
mesmo! Ou seja, podemos usar a mesma estratégia para nós dois.
Você também vai a Maceió uma vez por mês em período diferente.
Então nos encontraremos a cada quinze dias. Aqui em Recife ou lá
em Maceió. Na semana que vem ela não vai. Você já pode ir.
É uma estratégia complicada. Mas a única que pode assegurar aos
dois que vão estar sempre juntos. A vida de Francisco e Rose vai ser
sempre cercada de muita dificuldade. Mas se mantêm assim durante
os próximos seis meses. É a única forma de permanecerem juntos.
No fim desse ano, 1982, a família de Francisco muda-se
definitivamente para Maceió. Agora ele já não tem mais a desculpa
de ir à Recife uma vez por mês. Ficam sujeitos apenas à uma visita
quinzenal que Rose faz à Maceió.
Claro que ele paga as despesas de ônibus e hospedagem dela em
hotel a partir da sexta-feira à noite, retornando à Recife no domingo à
noite. Mas é uma situação bem desconfortável para ela.
400
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Que continua em sacrifício, fiel ao seu amor por ele. Falam-se
sempre por telefone. Ela acabou de ligar. Está chorando ao telefone:
- Rose! Não faz assim! Não chore! Você me deixa preocupado!
- Beínho! Eu já não agüento mais esta situação... Porquê tanto
sacrifício em minha vida...
Está sendo muito difícil para mim! Quero ir embora para Maceió
também. Preciso estar perto de você!
- Tem razão Rose! Esta situação é muito penosa principalmente
para você! Vou fazer uns contatos aqui e ver se consigo um emprego
para você. - Ela se anima. Está feliz de Beínho também sentir
necessidade dela.
Ha uma pessoa com quem Francisco iniciara uma amizade em
Maceió. Um cearense, gerente da Lojas Pernambucanas, existente
no centro de Maceió.
Fala ao amigo do problema com Rose. Explica que ela é uma
profissional excepcional no atendimento de vendas. O magazine As
Pernambucanas filial de Maceió, como outras empresas locais, tem
muita necessidade de encontrar mão de obra especializada.
- OK! - Diz o gerente da loja. - Eu inicialmente estou precisando
mesmo é de secretária! Será que ela se adaptaria bem?
- Não tenha dúvida! Rose é uma pessoa muito bem preparada para
atender as pessoas!
- Então pode mandá-la aqui para começar imediatamente.
Francisco dá a Rose a grande notícia. - Venha na sexta à noite, para
no sábado de manhã eu levar você para conversar com ele!
Ao conhecê-la o gerente gostou muito dela. Com olhos experientes
de profissional ele pôde ver que a moça tem ótimas características
para o trabalho de atendimento ao público. E lhe dá o prazo de uma
401
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
semana para começar no novo emprego.
Ela está muito feliz. Realizada. E na semana seguinte já está
residindo em Maceió. Inicialmente em uma pensão, cujo pagamento
pode bancar sem problemas com seu novo emprego. Pouco tempo
depois ela vai juntamente com outra amiga que trabalha na loja,
residir em um pequeno apartamento de dois quartos que conseguem
alugar no bairro do Poço, próximo do centro da cidade onde
trabalham. Só o fato de estar de novo tão próximo de Beínho já lhe dá
muita alegria de viver.
É ali, naquele apartamento bem simples, que eles se encontram
quase todos os dias. A amiga dela já conheceu Francisco e deixa-o
inteiramente à vontade. Sabe toda a história deles. Rose já lhe
contou. Freqüentemente ele recebe convites do tipo:
- Passa lá em casa hoje! A Rose preparou desde ontem uma sopa
maravilhosa para nós.
Preparando, temperando e dizendo: Beínho vai adorar!
Logo mais após o telejornal que apresenta na TV ele está lá no
apartamento delas.
- Beínho! E o avião? Você desistiu dele?
- Não Rose! Estou planejando trazê-lo para cá. Estou conseguindo
um espaço na área de um amigo aqui no bairro do Farol. Ele tem
uma empresa imobiliária. O terreno é muito grande com muita área
desocupada. Ele vai me ceder um espaço para colocar a oficina do
avião lá. Ai vou poder continuar a montagem dele. Está pensando
em me dar uma mãozinha? - Ambos riem recordando a oficina do
Aeroclube de Recife.
Na primeira oportunidade Francisco vai ao Aeroclube de Recife
rever o amigo Guerra e transportar o KR-II em cima de um
caminhão. Sua terapia ocupacional está mantida. Inclusive já vai
402
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
receber a penúltima inspeção do C.T.A. Um engenheiro de S. José
dos Campos vai passar por Maceió para ver e analisar a continuidade
do projeto.
O KR-II desperta muita curiosidade das pessoas. Freqüentemente ha
gente por lá querendo vê-lo. Francisco acaba de conhecer uma
pessoa que lhe reporta uma informação capaz de emocioná-lo. Um
outro corretor de imóveis chamado Márcio Raposo está entre os
curiosos observando o KR-II em construção. Ele comenta que um tio
morrera ha pouco tempo em Recife. Era um amante da aviação.
Trata-se exatamente de Gildo, o Presidente do Aeroclube de Recife,
amigo de Francisco. Os dois conversam bastante sobre Gildo. Nasce
ali uma sólida amizade.
As atividades profissionais de Francisco estão cada vez mais
intensas tomando seu tempo. A televisão, o rádio, a agência de
propaganda. Ele já montou sua primeira agência em Maceió. A
PM&P. Em sociedade com o diretor de arte Reginaldo Maia.
Está difícil de continuar com o projeto do KR-II. À noite Francisco
está sempre muito cansado. Arranjar tempo e disposição para
continuar o projeto não está sendo fácil. Ainda mais agora, que o
avião teve de ser removido para o Aeroclube de Alagoas. Com as
asas já em construção, precisa de um espaço definitivo para sua
conclusão. Um bom espaço foi conseguido lá. Mas Aeroclube de
Maceió fica distante.
Agora, só nos fins de semana ele pode dar andamento à construção
da aeronave. Mesmo assim, não está fácil.
Falta tão pouco! Uns 20% de mão de obra para sua conclusão.
Um amigo ex-presidente do Aeroclube de Maceió se propõe a ajudar
na construção da aeronave. Mas precisa levá-lo para sua fazenda de
403
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
plantação de cana, 30 quilômetros distante de Maceió. Lá ele tem
espaço bastante para uma oficina. Tem funcionários que podem
auxiliar. Ele também é piloto privado. E está muito interessado no
projeto. Francisco então propõe que ele termine o projeto e o avião
ficará para os dois.
Dessa forma ele pode se envolver plenamente com seu trabalho
profissional com o projeto do KR-II fora de suas preocupações
diárias.
Os anos se passam mas o projeto nunca será concluído. Francisco
não se sente penalizado por isso. Em verdade, todo o trabalho
empregado nele representou uma ocupação de terapia ocupacional.
Não havia gastado tanto dinheiro assim! Cerca de uns dois mil
dólares. Não está arrependido. Afinal, havia evoluído de tal maneira,
inclusive financeiramente, que não tem razões para transtornos. Sua
vida precisa ser tocada em frente e é isso o que ele faz agora. Sem
lamentações.
A única coisa que ainda o incomoda muito emocionalmente, é a
instabilidade no casamento, cada vez mais crescente.
Seu destino tanto quanto o de Sandra está marcado por esse carma de
convivência difícil.
Nada nem ninguém vai poder alterar isso. Suas atitudes
freqüentemente estão em desalinho.
As leituras de Francisco ultimamente recrudesceram um pouco.
Também ha um problema de espaço em casa para guardar os livros.
Os mais de trezentos volumes que ainda mantinha, trazidos de
Recife, estão em duas caixas grandes de papelão.
- Elias! Venha cá! - Chama Sandra, entrando em um dos quartos.
404
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Olhe isso! -Abre uma das caixas de livros. Ha baratas lá dentro.
- Essas caixas só estão servindo para ninho de baratas! Porque
você não doa esses livros?
Ele pondera sua sugestão e conclui que ela tem razão.
- É mesmo! Vou doar esses livros à Federação Espírita de Alagoas! Ha ali inúmeras obras sobre a espiritualidade, incluindo a coleção
inteira de Ramatís. Vai ser útil para alguém. Pensa ele.
E assim seus livros, pelos quais havia desenvolvido um certo
carinho, foram tirados de casa. Muitos anos depois ele vai lamentar
não ter preservado pelo menos as obras de Ramatís. Pois ao longo do
tempo deixaram de ser reeditadas, já não se encontrando mais nas
livrarias. Na estante da sala do apartamento não havia espaço para
tantos livros.
O tempo está passando. Após o período de aclimatação no novo
ambiente onde residem, agora cercados de maior segurança, afinal
sua posição financeira mudou radicalmente, a relação emocional do
casal não se estabiliza. As meninas estudando no melhor colégio de
Maceió. Tudo aparentemente vai bem. Menos para os sentimentos
de Francisco e Sandra.
Não haverá nunca solução para eles. A instabilidade continua
rondando-os. Mesmo sem saber de Rose, Sandra não parece haver
transformado nada em seu temperamento em relação à Francisco.
Ainda perduram os momentos críticos de insatisfação entre ambos e
a penumbra de antigos ressentimentos.
Primeira tentativa de separação. É um sábado. O garoto Ramatís já
tem agora pouco mais de quatro anos de idade. As poucas vezes que
o vê, Rose demonstra muito carinho com o menino. Agora mesmo,
Francisco está passando com ele na loja Pernambucanas sob
405
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
pretexto de comprar para ele um par de meias para os tênis. Estão
passando pelo departamento de roupa infantil da loja onde Rose
trabalha.
- Como ele é lindo! - Diz ela.- Parece muito com a mãe!
- É mesmo! A beleza puxou a ela! Mas a personalidade firme parece
que puxou a mim!
Diz ele com satisfação. Após seu último desentendimento com
Sandra Francisco amanheceu este sábado decidido.
As meninas já têm treze e doze anos respectivamente. Já suportariam
melhor emocionalmente a realidade da separação dos pais. Mas ha o
Ramatís, ainda muito pequeno. Francisco sai da loja com ele e vai ao
estúdio de um amigo, solicitado para gravar um texto comercial.
Ramatís está com ele no carro. Vai tentar conversar com o menino.
Ver como ele reage com a possibilidade da separação dos pais.
No tempo das meninas com essa idade dele, Francisco não estava
preparado para se posicionar bem, emotivamente com elas, numa
saudável relação pai e filhas. Mas agora com Ramatís, desde bem
pequeno, já aos dois anos de idade, ele procura lhe falar em termos
muito próximos, incutindo nele a importância da relação sadia entre
pais e filhos. O que não havia conseguido em relação às meninas, por
pura incapacidade sua, agora se esmera para não repetir o mesmo
erro com o menino. Desde Recife ele tem conversando com ele
nesses termos:
- Meu filho! Quem é seu melhor amigo? - Aos dois anos ele não
saberia definir isso. O pai esclarece: - Seu melhor amigo é seu pai!
Que sempre fará tudo para defender você! E quem é o melhor amigo
de papai? - O menino ria parecendo entender. - É você, meu filho!
Meu maior amigo é você!
Assim procura desenvolver uma relação de amizade e de confiança
entre pai e filho. Como deveria ter sido com as meninas, se tivesse na
406
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
cabeça os princípios e os conhecimentos que tem agora.
A idéia era munca se separar deles até que atingissem a maior idade.
Mas a situação entre ele e Sandra está cada vez mais insustentável. E
hoje está resolvido a sondar os sentimentos de Ramatís.
O menino está com ele no carro sentado no banco da frente. Tem só
quatro anos. Será que entenderia?
- Meu filho! Paínho e maínha vão se separar! Como você vê, ha
muitos desentendimentos entre nós. Mas não vou ficar longe de
vocês! Vou estar sempre por perto, vendo vocês sempre!
Observa que Ramatís entrou em estado de choque com a notícia.
Estaciona o veículo e tenta acalmá-lo. O menino está totalmente
trêmulo, preso ao banco com as mãos agarradas aos joelhos.
As lágrimas jorram grossas pelo seu rosto. Sua visão está turva pelo
sofrimento, fixa no nada. Olha em frente mas é como se não
estivesse enxergando nada. Francisco sofre também vendo a reação
do filho.Abraça-se a ele e lhe diz:
- Esqueça meu filho! Vamos fazer de conta que eu não lhe disse
nada! Esqueça! Papai não vai mais se separar de Maínha. Você não
está preparado pra isso! - E acaricia Ramatís insistindo: - Não
precisa chorar! Esqueça! Tá certo? Eu já estive todo esse tempo ao
lado de sua mãe, portanto posso continuar um pouco mais até você
crescer. Fique tranqüilo! Não vou mais me separar de sua mãe!
Ramatís agora consegue soluçar normalmente saindo da crise
estática em que se encontrava. Aos poucos vai relaxando e ambos
esquecem a ocorrência.
Francisco continua ponderando sobre tudo aquilo, convencendo-se
407
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
de que a estabilidade emocional de seus filhos era mais importante
que qualquer outra coisa. Seu sacrifício e de Sandra, assim como o
de Rose iria continuar por mais alguns anos. Até quando, não sabia
exatamente. Iria em frente. Seja o que Deus quiser! Seu amor por
seus filhos está acima de tudo. Seu sacrifício vale à pena. A
estabilidade da família precisa ser mantida. Em casa, Ramatís
parecia não ter revelado nada daquilo a sua mãe. Mesmo que o pai
não lhe tenha pedido isso.
Poderia uma criança de apenas quatro anos raciocinar com
inteligência sobre a necessidade de nunca revelar aquele episódio?
Os dias continuam normais. A amizade dos dois vai se fortalecendo
cada vez mais. O menino parece compreender o sacrifício do pai.
Procura sempre animá-lo quando ele chega em casa.
Já definitivamente instalada em seu apartamento com a amiga,
Francisco tem uma conversa bem oportuna com Rose.
- Veja Rose! Tenha cuidado! Maceió é uma cidade bem menor que
Recife! Todo cuidado é pouco sobre nós. Não fale às pessoas da loja
sobre nossa relação. Basta sua amiga saber. Precisamos evitar que
minha família descubra tudo! Ela o tranqüiliza:
- Não se preocupe Beínho! Se depender de mim Sandra não vai saber
nunca sobre nós.
Como você sabe, eu respeito muito sua mulher! Compreendo
perfeitamente suas responsabilidades com sua família, com seus
filhos, principalmente.
Fique tranqüilo!
E vão continuar assim. O apartamento dela fica no caminho de
Francisco entre a televisão e sua residência. Freqüentemente eles se
408
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
encontram no apartamento. Jantam às vezes, juntos com a amiga
dela. Francisco fica muito à vontade com elas no apartamento.
Em noites de calor a amiga de Rose aconselha:
- Elias pode tirar a camisa! Fique à vontade! Está muito quente! Francisco está sentado na sala, confortavelmente sem camisa, vendo
TV. Chega uma mocinha de cor na porta procurando por dona Rose.
- Ah! Já vou Maria! - E vai abrir a porta explicando a Francisco: - É
nossa lavadeira! Sente aí um pouquinho Maria! Eu vou juntar a
roupa para você levar! - A mocinha fica na sala com Francisco
vendo a TV. Mas ele lhe chamou a atenção. Ela parece surpresa com
ele ali.
Dai ha pouco pega a roupa e vai embora. Já em casa a mocinha
comenta com a mãe:
- Mamãe! Hoje eu conheci o esposo da dona Rose! É aquele senhor
da televisão! Aquele que faz o jornal!
Para pessoas muito simples como a lavadeir Maria e sua mãe, tinha
uma certa importância lavar a roupa da esposa do repórter da
telelvisão. Com certa vaidade ela conta isso para a mãe. Longe de
saber que está detonando uma onda de desavenças.
A mãe de Maria é, por sua vez, lavadeira da casa de uma amiga de
Sandra, que reside próximo a ela lá na Pajuçara. Na casa da amiga de
Sandra a lavadeira mãe fala orgulhosa:
- Minha filha conheceu ontem uma pessoa importante da televisão!
Ela lava a roupa da dona Rose. O esposo dela é aquele repórter da
TV Gazeta!
- Qual?
- Aquele do AL-TV. O Francisco Elias! - Confirma a lavadeira.
- Você tem certeza? Como é mesmo o nome dela?
409
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Dona Rose!
- Estranho! Tem alguma coisa errda! Eu sou amiga da esposa de
Elias! Eles moram aqui perto! O nome dela é Sandra!
A lavadeira não entendeu nada e vai embora em seguida. Acaba de
deixar ali plantada uma semente vigorosa de grande discórdia. Cheia
de curiosidade, mas vazia de personalidade, a amiga de Sandra conta
tudo para ela.
É um fim de semana. Francisco está em Recife à serviço da PM&P, a
agência de propaganda que mantém em sociedade com Reginaldo,
que vai ser o portador de séria informação.
Rose agora, apenas seis meses depois, já assumiu na loja a gerência
do setor de roupas infantis. Sua performance profissional de vendas
está se confirmando nesse novo trabalho. Dois meses após como
secretário do gerente da loja e em seguida essa promoção.
Francisco está em Recife na residência de sua irmã Marina, em Boa
Viagem.
No sábado à tarde o sócio, que sabia da existência de Rose, lhe
telefona.
- Amigo! O tempo aqui esquentou pra caramba! A Rose recebeu hoje
pela manhã a visita de Sandra lá na loja e quer muito falar com
você! - Deduzindo o que poderia ter acontecido entre Sandra e Rose,
Francisco pede um favor a Reginaldo:
- Vá lá em casa! Arranje uma desculpa e vá lá sondar o ambiente!
- É! De fato vou lá com minha esposa para Sandra ajudar ela a
encontrar uma empregada. É um bom motivo para saber como está
a temperatura por lá. Amanhã eu te ligo para informar da situação.
410
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Reginaldo liga no domingo passando as informações. Nada
tranquilizadoras como era de se esperar.
- Bronca meu amigo! E bronca da pesada! Sua mulher está
fumaçando! Disse-nos que quando você chegar sua mala já estará
pronta com suas roupas, para sair de casa! Não quer mais você lá!
- Está bem! Ligue para a Rose e diga para ela ir me esperar meianoite hoje na para do ônibus lá no bairro do Farol. Preciso
conversar com ela antes. Saber mais detalhes. Não irei para casa
quando chegar. Irei para o hotel de uma amigo lá na Pajuçara.
Segunda de manhã irei para a agência e veremos o que farei!
Obrigado Reginaldo! Até segunda!
Francisco tem um temperamento muito sólido para enfrentar
situações inesperadas. 18h00 está embarcando em Recife no ônibus
para Maceió. Conforme o combinado, meia-noite a Rose o espera na
parada do ônibus no Farol. Conversam um pouco. Ela dá os detalhes.
- Beínho! Foi horrível! - Rose já conhecia Sandra.
E para a esposa dele foi muito fácil localizá-la ao chegar à loja.
Perguntando a alguém quem era a Rose, logo a indicaram na secção
de roupas infantís.
Ao virar-se em dado momento, Rose quase entra em choque. Sandra
está parada em sua frente.Apenas observando-a cuidadosamente.
- Eu gelei Beínho! Ela só olhava para mim! Não sei como, mas
consegui me equilibrar e perguntei a ela procurando ser cortês:
- Pois não! Senhora! Precisa de alguma coisa?
Não! Ela me respondeu secamente. Só queria saber quem é você! E
retirou-se em seguida! Eu fique ali por alguns instantes
transtornada! Não sabia o que pensar! Então liguei para Reginaldo
pedindo para avisar você!
411
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Está bem! Rose! Está bem! Vamos pegar um táxi e deixar você em
casa. Depois vou para um hotel. Não irei para casa agora.
Conversarei com ela amanhã. Veremos!... Depois farei contato com
você!
Francisco está muito sério. A situação é realmente grave. Vai tentar
dormir no hotel.Aadrenalina não lhe permite que adormeça.
Mas ele trouxe um livro que comprou em Recife. Para serenar a
cabeça vai ler um pouco até o sono aparecer. De manhã vai para a
rádio fazer o seu programa que se encerra às 10h00. Em seguida vai
para sua agência. Tem muita coisa a fazer por lá. O trabalho vai lhe
tomar o dia.ARose também está tendo um dia daqueles!
Muita expectativa! O que será que vai acontecer? A amiga tenta
acalmá-la! Sua intuição está lhe gritando algo na consciência.
- Ele vai me deixar! Tenho certeza! Vai me deixar de novo!
- Mulher! Tenha calma! Não pode ser! Acalme-se!
Aamiga procura apoiá-la.
- Ele sempre falou! Que não deixaria a família se alguma coisa
acontecesse! Agora que a mulher dele já sabe de nós! Não temos
mais chance. Acabou amiga!
Rose sofre com a situação. Sabe do compromisso dele com sua
família. Nem se atreveria a lutar contra Sandra. Já o conhece o
suficiente. Nada vai tirá-lo de sua família. Por mais que a ame.
À tardinha Francisco liga para casa. Fala com Sandra, procurando
serenidade.
- Por favor, Sandra! Mande deixar na portaria um paletó, camisa e
gravata. Vou passar ai para pegar e vou fazer o noticiário da TV.
Depois volto por ai e pegarei você. Vamos sair de casa pra
conversar. Temos que acertar nossas vidas. Pode ser?
Ela concorda e após o noticiário da TV eles vão a um lugar sossegado
412
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
onde podem conversar. JEle sabe quando ela está nervosa pelo jeito
como morde o lábio inferior. Francisco resolve contar-lhe toda a
história de seu envolvimento com Rose. Desde o princípio. Desde
quando e aonde tudo começou. Não poupa os detalhes. Sandra ouve
em silêncio.
- Eu nunca vou mentir pra você. Desde que você queira saber. Não
iria lhe contar nada gratuitamente. Mas desde que você resolveu
enfrentar a situação ao saber de tudo... Pois vou lhe contar. Você
precisa saber as razões de minha relação com Rose. Fui encontrar
nela o que me faltava em você!
É uma conversa muito doída. Para ambos. Mas ele fala tudo. Fala
inclusive da construção do avião. De como ela, por várias noites,
cansada após o trabalho ia pra lá, ajudá-lo em alguma coisa na
oficina. Não deixa detalhe sem esclarecer.
Isto é, ha um que ele prefere não lhe contar. A informação que havia
recebido no centro espírita tempos atrás sobre a existência das duas
em sua vida. Também não valeria à pena. Pensa ele. Ela
provavelmente não levaria à sério tal informação.
- Mas quero que você saiba que tenho enfrentado essa nossa
situação durante tantos anos pensando na segurança que
precisamos dar a nossos filhos. Eles não têm culpa de nossos
desacertos. Neste momento nossos pensamentos devem se voltar
para Ramatís. - Agora já com quase seis anos. Mas ainda poderia ser
muito afetado.
- E quero lhe informar que a partir desse momento, assim como
aconteceu com Divalda, meu caso com Rose está encerrado.
Após essa conversa em que apenas ouviu silenciosamente, a
definição está nas mãos dela. Sandra parece se tranqüilizar e aceita-o
de volta em casa.
413
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
R
ose, infelizmente, vai amargar mais uma separação. Desta
vez definitiva. Francisco esclarece com ela a
impossibilidade de continuarem juntos.
Permanece muito dolorida ainda por algum tempo. Uma vez ou
outra Francisco ainda passa na loja para conversar com ela
rapidamente. Tentar acompanhar como ela está atravessando tão
dolorosa situação.
Ela se mostra resignada. Parece ter aceito o doloroso quadro do
afastamento definitivo do seu Beínho. Não ha nada que ela possa
fazer.
Não era sua culpa. Foi uma triste coincidência (?) a lavadeira filha de
uma outra lavadeira da amiga de Sandra... Ir a sua casa naquela noite.
Teria sido o destino? Teria chegado a hora final para eles?
Francisco nunca vai esquecê-la. Por toda a sua vida. Mas é capaz,
também ele, de passar por cima de seus sentimentos para levar sua
vida adiante da forma que considera o mais justo e ponderável.
Rose é muito ajudada por sua amiga que a estimula a alterar o seu
destino. Ela mesma.
O passo seguinte na vida profissional dele é a fusão de sua primeira
agência de propaganda em Maceió, com outra pequena agência. A
PM&P junta-se à Lagrotta e Associados, formando uma empresa de
maior potencial. Vão disputar o mercado publicitário em nível mais
avançado, competir pelas contas de publicidade do Governo do
Estado.
Essa nova estruturação é muito importante. Na primeira
concorrência aberta pelo governo do estado na gestão do governador
414
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Fernando Collor de Melo, cuja projeção trágica se consumaria mais
tarde, cassado da Presidência da República, a campanha criada pela
GP&M sai vencedora da concorrência.
É uma campanha da Secretaria de Saúde para lançamento do
protótipo nacional do SUS do Ministério da Saúde. Caso desse certo
o projeto do SUS seria estendido para todo o Brasil.
Francisco agora, além da atribuição de diretor de criação da agência,
é também encarregado pela produção de vídeo e áudio. A campanha
do SUS tem um de seus comerciais de TV protagonizado pela grande
estrela do cinema, teatro e televisão Fernanda Montenegro.
Ela se mostrou muito interessada no projeto, pela expectativa de se
tornar uma campanha de abrangência nacional.
Francisco vai dirigi-la no Rio de Janeiro.
SAÚDE ALAGOAS! É este o mote da campanha, excelentemente
desempenhado pela famosa atriz.
Mas ha um problema no meio do caminho da GP&M, que havia sido
estruturada com um elevado custo operacional para poder atender
contas do Governo.
Na primeira concorrência aberta ela venceu. Mexeram os pauzinhos
por traz das cortinas do poder. Afinal, a própria agência DM9, de
Salvador, que fizera a campanha do candidato Fernando Collor
havia perdido a concorrência. Dai em diante nunca mais se ouvirá
falar de concorrência público para a publicidade do Governo
Estadual, na sua gestão.
Todo material publicitário do Governo passou a ser autorizado pela
DM9 junto aos órgãos de comunicação, sem qualquer concorrência.
O mercado de produção publicitária de Maceió nesse tempo é muito
carente de profissionais especializados. Tem bons equipamentos de
415
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
produção de vídeo. Mas falta material humano especializado. Não
há ninguém em Maceió com especialização em iluminação a cores
para a televisão. Isso é um problema na hora de produzir um bom
comercial. Por isso Francisco precisa viajar tanto.
As melhores produções precisam ser feitas em outros centros. Os
mais próximos são: Salvador, Recife e Fortaleza. Mas isso encarece
o custo de produção dos comerciais.
Os seus sócios concordam que ele precisa ir a fazer uma
especialização na ESPM, Escola Superior de Marketing, no Rio de
Janeiro, especialmente sobre iluminação a cores.
Dois meses depois vai também a São Paulo fazer outro treinamento
com Pitter Gásper, o papa da iluminação a cores no Brasil, o primeiro
com especialização na Alemanha, com o sistema PAL-M, adotado
no Brasil.
O treinamento se dá durante a semana da FENASOFT, uma grande
feira internacional de informática anualmente realizada no
Anhembi. Quando Francisco descobre a fantástica ferramenta do
computador, já usado em larga escala por agências de propaganda
dos grandes centros. Volta sonhando com a espectativa de a GP&M
ser a primeira agência do mercado em Alagoas a adotar o sistema
Desktop, que viu em demonstrações na feira doAnhembí.
Essa especialização dá o tom diferenciado das produções de vídeo da
GP&M. Tentativas estão sendo feitas para a agência se manter no
mercado. Mas não está sendo fácil.
Os seus socios não se entusiasmaram muito com a idéia do Desktop.
Isso demandaria investimentos.
O Reginaldo, diretor de arte é quem mais resiste ao projeto Desktop.
Já que sua formação profissional foi a prancheta de desenho à mão,
416
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
na Escola de BelasArtes em Recife.
Neste período, sua filha Eliana, assistente do diretor de arte
Reginaldo, evolui em seu aprendizado. O que vai ser muito oportuno
dai ha pouco. Quando Francisco resolver sair da sociedade e montar
uma outra agência bem menor.
A GP&M vê-se diante de um problema. Como manter sua estrutura
sem as contas do Governo? Por quase dois anos ainda se manteve.
Várias outras campanhas foram lançadas por ela para o mercado
local. Incluindo o lançamento da Mapel 2000. É 1996. A
Volkswagen está iniciando o projeto de um novo layout de loja para
suas revendas em todo o Brasil. E o protótipo vai ser lançado com a
inauguração da Mapel 2000 em Maceió. Uma empresa do grupo
João Lyra.
A campanha criada pela GP&M ganha elogios da Presidência de
Marketing da Autolatina, um grupo recém formado pela
Volkswagen e a Ford no Brasil.
Alguns lançamentos imobiliários também foram feitos pela GP&M
com muito sucesso, atendendo a principal imobiliária de Maceió, a
Dumonte Imóveis.
Mas, além disso, nada mais ocorreu que justificasse a manutenção da
estrutura da GP&M.
Para três sócios, a remuneração já não é satisfatória. Francisco
decide sair da sociedade. Raciocina que uma pequena agência com
três ou quatro clientes seria o suficiente para ele se manter, em
condições mais favoráveis. Incluindo o tal Deskop.
Sai da GP&M e estrutura a Criação de Propaganda. São apenas três
salas em um primeiro andar. Entre seus clientes está a Márcio
Raposo Imóveis, seu principal cliente, que imediatamente passa a
417
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
ocupar a posição de principal imobiliária de Maceió, à frente da
Dumonte, de onde o próprio Márcio Raposo saíra.
Mais de trinta lançamentos imobiliárias serão feitos com a Criação
de Propaganda a partir de então. Maceió vive um boom imobiliário.
De sócio na agência, apenas Sandra, a esposa.
A Criação de Propaganda vai lutar por seu espaço no mercado.
Consegue por um bom tempo, com uma estrutura muito enxuta.
Apenas seis pessoas.
Toma uma iniciativa futurista. É a segunda agência de propaganda a
montar sua estrutura de produção gráfica sobre o sistema desktop de
computação gráfica.
Ele está em São Paulo novamente participando da nova FENASOFT
já no ano seguinte, com tudo que é novidade em computadores e
softwares.
Francisco vê em vários boxes na Feira, demonstrações de trabalhos
com computadores, scanners, impressoras, etc. Vai voltar para
Maceió levando na bagagem um investimento razoável nesses
equipamentos. Procura ser arrojado até onde pode.
Seu diretor de arte é o Jô, um ex-companheiro da GP&M. Que
também não se entusiasma com a criação de layouts em computador.
Sua escola profissional fora a mesma de Reginaldo, em Recife.
Entretanto, Eliana, filha de Francisco, e agora assistente do Jô,
concebe muito bem a idéia da avançada tecnologia. Francisco confia
que ela possa desenvolver bem o trabalho em computador.
E vai ser assim. O Jô criando os rafs, esboços de desenhos em
prancheta sobre a página de anúncio, orientando a montagem do layout e ela finalizando no computador. O casamento é perfeito. Talento
e tecnologia. Francisco redige e eles finalizam.
418
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
om isso conseguem uma agilidade incrível na elaboração dos
anúncios. Às vezes, ocorrem até três lançamentos
imobiliários num único mês.
Tempo é algo imprescindível nesse processo, que vai desde o
briefing do cliente, até a criação da campanha, sua aprovação,
finalização e distribuição do material publicitário com os veículos
de comunicação. Outdoor, Rádio, Jornal e Televisão. Às vezes a
campanha exige também a produção de um folder.
É muito trabalho para uma agência pequena. Mas com certa
agilidade eles dão conta do recado. Estão indo muito bem, enquanto
a GP&M está definhando à cada dia.
Ao sair de lá, Francisco indicou um profissional de Recife para
ocupar o seu lugar na criação. Mas o problema da GP&M era de
estratégia.
O inchaço estrutural está enterrando a agência.
Nesta viagem a São Paulo em visita à FENASOFT para tentar
comprar seus equipamentos de informática, Francisco vai se
hospedar na residência da tia Neném, no bairro do Tucuruvi. Vai
acontecer ali um fato marcante para a vida espiritual dele.
É fim de semana. Todos os equipamentos de computação já estão em
casa embalados para a viagem.
A tia Neném, já sabedora do interesse do sobrinho pela causa
espiritual, preparando o almoço do sábado lhe faz um convite:
- Francisco! Está vindo hoje do Rio de Janeiro uma pessoa muito
importante para dar uma palestra para a gente no centro espírita
que freqüentamos. Um general do Exército, reformado. É hoje à
tardinha. O centro fica aqui perto de casa! Nós vamos mesmo a pé.
A tia Neném freqüenta o centro sempre acompanhada de sua filha
mais velha, Zila. - Você gostaria de ir com a gente?
- Mas é claro tia Neném! Vou sim! Com muito prazer! Já faz tanto
tempo que eu não participo de nada no meio espírita... Vai ser ótimo!
419
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
final, não tinha qualquer compromisso previsto para aquela
tarde de sábado paulistano meio nublado. Pouco antes das
cinco da tarde eles estão chegando ao centro espírita.
Muita gente já se faz presente para assistir a palestra. Ha um salão
onde as pessoas estão entrando, com cadeiras plásticas, para uma
platéia de aproximadamente umas duzentas pessoas. Na porta de
entrada ha uma moça sentada a uma mesinha. Ao lado sobre a mesa
ha um pequeno saco de pano com várias pedrinhas numeradas
usadas em bingos. Ela tem um caderno nas mãos, aonde vai
anotando, por ordem de entrada, os nomes da pessoas, colocando à
esquerda o número que cada uma vai retirando conforme a pedrinha
no saco. Ha também um pacote embrulhado com papel de presente.
Amoça dá instruções aos participantes:
- Por favor! Seu nome? - E escreve no caderno
- Agora retire ai do saquinho uma pedrinha. - E anota o número da
pedrinha antes do nome da pessoa. Zila é a primeira. Retira o número
124. Atia Neném retira seu número em seguida.
Agora Francisco também retira seu número. 125.
Nesse exato momento, ele recebe em sua mente uma informação que
lhe chega bem forte, em forma de intuição. Algo parecido com
aquilo que sentiu durante o nascimento de Ramatís: - Você vai ser
sorteado para ganhar esse livro! - Mas você já o leu! Você deve ir
então ao microfone e anunciar isso! Precisa dar esse testemunho!
O fato pega Francisco de surpresa. Ele está muito emocionado com a
mensagem que acaba de receber. Lembra imediatamente do episódio
da comunicação que recebeu durante o parto de Sandra. A
informação continua martelando muito forte em sua mente. Quem
estaria lhe dando essas instruções? Está muito curioso e de certa
forma também muito tenso.
420
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
s três se dirigem a uma fila de cadeiras. A tia Neném vai à
frente. Atrás dele vai a Zila. Sentam nas últimas cadeiras
dessa fila próximo à parede.
A reunião já vai começar. O convidado ilustre acaba de chegar. Lá na
frente ha uma mesa bem comprida própria para esse tipo de evento
coberta com uma toalha branca e ornada com ramalhetes de flores. O
ambiente transpira muita paz. O presidente do centro, o convidado
palestrante e mais três pessoas compõem a mesa. O Presidente da
mesa está anunciando o palestrante. Francisco continua fortemente
tocado com o fenômeno de sua comunicação extra-sensorial. O que
seria aquilo? O que significa? Ele Sse mantém pensativo. Precisa
confessar isso à tia Neném. E cochicha ao ouvido dela:
- Tia Neném! Está acontecendo algo incrível aqui comigo! Estou
profundamente emocionado com isso! Nunca me ocorreu antes! - E
dá a elas os detalhes da comunicação que acaba de receber.
A tia Neném, conhecedora das inúmeras possibilidades utilizadas
pela inteligência dos espíritos mentores que certamente se faziam
presentes ali, lhe tranqüiliza:
- Não se preocupe! Essas coisas são comuns!
- Vamos aguardar que tudo ocorra como o previsto!
Relaxe! Vamos assistir à palestra!
- Mas claro!
Ela também está de certa forma, pelo menos, muito curiosa com o
fenômeno que o sobrinho acaba de relatar. Afinal, isso se refere a
algo que ainda vai acontecer.
Em meio a tantas pedrinhas daquelas na sacola, que após serem
anotados os números foram recolocadas no saco de pano para o
421
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
momento do sorteio, a retirada da pedra 125! Exatamente a dele!... É
algo incrível! A Zila ainda não tomou conhecimento do que está
acontecendo.
Assistem à palestra. Uma das mais ilustrativas que Francisco já
ouviu sobre a realidade do mundo dos espíritos.
O general reformado é uma pessoa extremamente bem preparada
para aquela tarefa espiritual.
A palestra termina. Mais uma vez Francisco analisa seus
pensamentos. A informação continua lá. Como uma certeza
indescritível! O momento está se aproximando. A tia Neném olha
para ele com um sorriso bem tranqüilo. Mas ele está tenso. Não pode
evitar. É muita responsabilidade o que havia anunciado a ela com
antecipação.
Ao imaginar a possibilidade de que aquilo não fosse verdade algo
varre a sua mente como se faria com uma vassoura, permanecendo
apenas aquela imensa certeza! Você vai ser sorteado!
Ele observa o salão. Ha ali, pelo menos, umas duzentas e vinte
pessoas. Todas as cadeiras foram ocupadas e ainda tem algumas
pessoas de pé. Mais de 200 pedrinhas naquele saco. Quais as chances
de coincidência para se número ser sorteado... Você vai ser
sorteado! A informação está lá cravada em sua mente de maneira
muito convicta.
O Presidente da mesa está anunciando ao microfone:
- Prezados convidados! Quando entraram vocês deram seus nomes
para o sorteio que agora vamos realizar. O presente é um livro do
espírito de Emanuel.
Uma obra psicografada por Chico Xavier!
Ao informar o título, Francisco se enche de alegria com o primeiro
sinal de veracidade! É realmente um livro que ele já leu.
422
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O Presidente da mesa tem nas mãos o saquinho com as pedrinhas e
solicita do general para que sorteie o felizardo. O general enfia a mão
no saquinho e balança bem as pedras. Retira uma e entrega ao
Presidente. Com o número da pedrinha ele confere no caderno o
nome do sorteado. E anuncia:
- Francisco Elias! - Foi o seu nome artístico, não o de batismo, que
Francisco deu a moça.
Francisco se levanta. O Presidente o chama até à mesa para receber o
livro.Ao chegar à mesa Francisco pergunta:
- Posso agradecer?
- Pois não! - O Presidente lhe entrega o microfone.
Visivelmente emocionado, com as mãos trêmulas, ele diz ao
microfone:
- Quando entrei aqui hoje... - E conta o que aconteceu.
Acrescentando:
- Não sei o que significa isso! Ha uma testemunha aqui presente. É
minha tia Neném! A quem eu confessei logo no início o que estava
acontecendo comigo, e informei o que iria acontecer agora! A
informação que recebi era para vir ao microfone dar esse
testemunho. Desconheço completamente a razão disso! E gostaria
que o livro fosse sorteado com outra pessoa. Pois já o li!
- Muito bem! - Diz o Presidente da mesa com naturalidade. Perfeitamente! Pois então sorteie você mesmo! Por favor! Estendendo-lhe o saquinho de pano para retirar outra pedra. O novo
número foi anunciado. Um rapaz veio receber o livro. E Francisco
pôde voltar para junto da tia Neném, que demonstra estar também
muito feliz. Não seria à toa que ela foi instruída para convidar o
sobrinho a ir ao centro aquela tarde.
No caminho de volta para casa conversam animadamente. A Zila
também o felicita pelo ocorrido demonstrando sua surpresa com o
corrido.
423
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Mas tia Neném o que significou aquilo?
- Não sei meu Filho! A espiritualidade tem muitas formas de
conduzir as coisas! Quem sabe, naquela sala havia mais alguém
precisando assistir isso para reforçar sua fé e sua crença no
espiritismo!
Que bela tarde aquela! Devia haver alguém mais naquela reunião
necessitando de tal testemunho como forma de credibilidade no
fenômeno espiritual.
Talvez alguém em conflito e dúvida em aceitação da doutrina.
Devia ser isso, conclui Francisco. Pois a ele mesmo isso não era
necessário. Ha muito que respeita a sabedoria expressa nas Leis da
espiritualidade. Sente-se feliz, pelo fato de ter sido usado em um
propósito espiritual tão singelo, que certamente seria de muito
louvor.
Poder ajudar a alguém desinteressadamente é sempre algo muito
valioso. Ele sabe disso. Ainda mais se você nem sabe a quem de fato
ajudou.
Esse quadro fica eternamente em sua memória, de maneira muito
grata. Quem sabe, algum acréscimo que alguém do outro lado havia
lhe dado. Mas quem? Ah! Como gostaria de saber! Que espírito
maravilhoso seria esse! No mínimo mantinha intimidade com seu
anjo de guarda. Afinal é ele quem autoriza qualquer ocorrência desse
tipo com os seres encarnados. Nada é feito sem seu conhecimento.
Foi sem dúvida um capítulo maravilhoso para suas memórias.
De volta em Maceió, ainda com reflexões sobre a experiência vivida
no centro espírita de São Paulo, Francisco está descobrindo algo um
pouco estranho: uma relação que parece existir entre ele e o número
7. Coincidência ou não, certo dia ele percebe que a placa de seu carro
termina em 7. E o número do prédio onde mora também. É 807.
424
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O número de seu apartamento, que aliás, foi uma exigência de
Sandra, é 704. Foi procurar na documentação de seus automóveis
anteriores, e todos eles tinham o número 7.
O telefone de casa é 325.7200. Os dois telefones da agência, ambos
contêm o número 7. Como Francisco já tem uma convicção muito
forte sobre coincidências, passa a ver isso com alguma curiosidade.
Seu telefone residencial em Natal, enquanto escreve estas linhas é 36434367.
Tem 7 duas vezes se somar 43 - 43, e ainda tem sete no final. É muita
ocorrência para ser coincidência.
Quem sabe estou marcado nesta encarnação com o número 7. Pensa
ele. Não parece nada mal. O número 7 é considerado na cabalística
um número sagrado.
Por falar em cabalística, agora mesmo ele está recordando algumas
obras extraordinárias que leu sobre a Kabala anos atrás, deixadas ao
mundo por um escritora tida como hermética, a russa Helena
Blavatsky.
A Kabala se propõe a explicar de forma muito fechada a ordem
natural da matemática divina. Afirmando que a criação é resultado
de uma extraordinária equação matemática de ordem sideral.
Faz só alguns dias, ele ouviu na televisão a afirmação de um físico,
que o universo seria uma equação em quântica.
Que pensamentos extraordinários!
Realidade? Imaginação?
Nada adianta querer-se aprofundar nessas questões. Basta imaginar
que a Natureza é pródiga em criar e materializar mundos, energias e
coisas, indo do macro sideral planetário ao micro dos insetos, das
moléculas, até a energia existente em um único átomo. Faz bastante
tempo que Francisco leu algo sobre a energia dos fótons.
425
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E
sse conhecimento lhe veio nos anos 80 quando leu muitas
obras sobre o fenômeno UFO lá em Recife. Encontrou duas
obras de extraordinário valor nesse campo. Escritas pelo
General Uchoa de Medeiros. Um general aposentado que havia sido
professor de física em Agulhas Negras, a escola de formação de
oficiais.
Quando escrevera tais obras residia em Brasília. Onde dirigia um
grupo de pesquisadores do fenômeno UFO. Narra em seu livro o
episódio de um contato com um ser extraterreno, que passara
inúmeras informações ao seu grupo de estudos, formado por doze
pessoas, todas de nível cultural irrepreensível, assegurava ele. Um
de seus livros é - Viajando no Hiperespaço.
O extraterreno teria informado que as naves com as quais se
transportam no hiperespaço são movidas com um tipo de energia que
aqui conhecemos como fóton. E que sua carga energética é
conduzida e administrada de dentro da nave em forma de atração e
repulsão magnética em relação aos planetas no espaço. JE que o
espaço/tempo não existiria em sua realidade, como concebemos
aqui na terra.
Francisco acha fantásticas essas revelações. Pois já havia lido
exatamente sobre isso em uma das obras espiritualistas de Ramatís.
Razão pela qual ele reforça ainda mais a convicção de uma relação
provavelmente existente, entre o fenômeno UFO e a paranormalidade.
Mais tarde, os livros de Trigueirinho e de Shirley MacLane
reportariam a mesma informação.
Quais seriam as chances de Shirley MacLane e Trigueirinho terem
lido a mesma obra do General Uchoa, e do espírito de Ramatís para
tentarem reproduzir o mesmo conceito?
426
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Não! Parece mais plausível que todos eles estivessem relatando a
mesma coisa, o mesmo conhecimento, passado aos seres humanos
em várias ocasiões diferentes através de diversos canais de
comunicação.Algo em comum parece existir. Conclui Francisco.
Alguma correlação para-normalidade/UFOS.
Agora mesmo ele está recordando outro fato que ajuda a por mais
lenha nessa fogueira.
Estamos na década de 1970. Em Recife. Lendo muito sofre ufologia,
Francisco descobre um livro de um cientista judeu, naturalizado
americano,Andrija Puharish.
Ele é um cientista médico especializado em fenômenos paranormais.
Seu laboratório é no mundo, em qualquer lugar onde haja alguém
fazendo algo fora do normal. Sua especialidade é o estudo da
fisiologia da para-normalidade.
Tem visitado vários países pesquisando fenômenos relatados com
médiuns e para-normais. Já pesquisou até Uri Güeller, durante o
período da guerra dos seis dias em Israel. Suas revelações são
bombásticas.
Uma de suas conceituadas pesquisas fôra realizada no Brasil. Havia
um fenômeno mediúnico chamado Arigó, na década de 70. A
imprensa mundial já se ocupava dele e do fenômeno de suas
cirurgias rudimentares usando simples canivetes.
Andrija Puharish resolve pesquizar Arigó e narra em seu livro,
inclusive com fotos, a pequena cirurgia que Arigó lhe fizera no
antebraço, retirando um pequeno nódulo sebáceo benigno.
Uma das fotos que ele expõe no livro é de um disco voador,
estacionado bem alto, pelos seus cálculos, uns cinco quilômetros de
altura, exatamente sobre a casa onde residiaArigó.
427
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
S
ão 11h00 do dia. O céu está bem claro. Narra Andrija. Durante
um atendimento de Arigó que está sendo acompanhado por
ele, procurando documentar tudo com sua máquina
fotográfica, o Dr. Fritz, incorporado emArigó, lhe diz:
- Vá lá fora e aponte sua máquina para cima! - Ele sai fora da casa.
Olha para cima. E o que vê? Algo que parece um objeto prateado
arredondado parado no céu. Aponta a máquina e fotografa. A foto
está em seu livro. Este e vários outros episódios narrados por ele dão
bem a idéia de como deve existir de fato alguma correlação entre
para-normalidade e UFOs.
Duvidar de tudo isso? Claro! Todos podemos. Nosso livre arbítrio é
nosso juiz! Mas, quem somos nós, analfabetos das causas e efeitos,
energéticos ou espirituais e fenômenos materializados em nosso
planeta, para asseverarmos que tudo não passa de pura imaginação?
Questionar até que podemos. Mas, a melhor posição nesses casos,
pelo menos para ele, é a que Francisco já adotou ha muito tempo.
Da mesma forma que se pode negar tudo, também se pode assumir
que, tudo é verdade, até prova em contrário. E assim, nossas mentes
estarão sempre prontas e abertas para deixar entrar uma fresta de luz,
quando chega a hora. O próprio Jesus já ensinava: Ha que se ter
olhos para ver e ouvidos para ouvir!
Claro que ele se referia a algo mais que nossos simples
equipamentos carnais não podem perceber.
Andrija Puharish narra em seu livro, que foi avisado quatro horas
antes, da morte do amigoArigó.
Antes que acontecesse, conforme a diferença de fuso horário onde se
encontrava no momento em Nova York e a hora de Brasília.
Coincidências?Acasos?
Ah! Desculpem-me! Mas isso é pura realidade! Até prova em
contrário!
428
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
H
a um fato novo envolvendo a Rose. Ela juntamente com a
amiga com quem mora, mudou de endereço. Francisco
nunca mais esteve com ela.
Sabia que ela deveria ter sofrido mais uma vez com esse novo
afastamento dos dois.
Mas, paciência! Para eles definitivamente não haveria solução.
Ele procura tocar a sua vida. Ela também.
Francisco encontra a amiga de Rose pela cidade. E é ela quem conta
as novidades. Já faz mais de um ano que eles não se vêem.
- Ah! Ela vai muito bem! - Diz a amiga. - Rose é uma pessoa de muito
merecimento na vida!
- Não tenho dúvida! - Confirma Francisco.
- Há alguns meses atrás um rapaz aproximou-se dela. Ele é um
engenheiro agrônomo. É gaúcho. Veio para Alagoas trabalhar em
uma usina de açúcar. Estão indo muito bem. Breve ela vai deixar de
morar comigo para ir viver com ele. Ele gosta muito dela. Ela
parece feliz! Até que enfim!...
- Que maravilha! Essa é a melhor notícia que alguém poderia me
dar sobre ela. Desejo muito sinceramente que Rose possa ser feliz
nesta vida! Sei o quanto ela merece! Transmita a ela a minha alegria
em saber disso! Diga a ela que não esqueça de ser feliz! É tudo que
eu desejo a ela!
- Ah! Deixe-me terminar! - Diz a moça. - No final deste ano ela vai
embora com ele para o Rio Grande do Sul. Vão morar em Porto
Alegre!
Esta foi a última informação que Francisco teve dela. Até dois anos
depois. Quando em visita aos amigos Fernando Freitas e Lurdinha
em Recife, a Lurdinha lhe dá notícias.
429
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Elias! Deixe eu lhe dizer que eu vi Rose outro dia!
- Aqui em Recife?
- Sim! Aqui perto da minha casa! Ela estava de férias visitando a
mãe dela, que mora aqui por perto. Ela casou não foi?
- Foi sim! - Confirma ele.
- Ela estava com uma garotinha filha dela! A coisa mais linda!
- Que bom Lurdinha! Fico feliz por ela! Rose foi muito especial para
mim!
Dai por diante nunca mais Francisco saberia dela. Algumas vezes
ainda pensa nela. Em momentos de muita carência afetiva. Ele
lembra de quanto foi amado por ela.
Onde estará você Rose! Será realmente feliz como eu desejo... Será
que conseguiu me tirar completamente de seu coração... Tomara!
Para que você possa ser feliz por inteiro! Eu é que nunca vou poder
tirar você de dentro de mim! Você veio para ficar!...
Continua tocando sua agência de propaganda. Trabalha muito O
trabalho na publicidade é algo que lhe diverte muito. Já não trabalha
mais no rádio nem na TV em Maceió. Ao fim de um contrato de mais
três anos com a TV Gazeta, decide não trabalhar mais no
telejornalismo também. Já havia parado com o rádio antes na
renovação desse contrato com a TV.
Precisa se dedicar por inteiro à agência de propaganda.
Freqüentemente viaja muito para conseguir produzir os comerciais
de TV nos lançamentos imobiliários. Faz isso fora de Maceió com
recursos mais avançados em vídeo, em praças como, Salvador,
Fortaleza, Rio e São Paulo.
Mais uma Festa de Santana está se aproximando. Desta vez muito
provavelmente, Francisco não poderá estar presente. Ha muito
trabalho na agência. Campanhas que precisam ser finalizadas. A
última semana de julho, quando a festa termina, está congestionada
de trabalho.
430
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
É
quinta-feira e Francisco está pensando: Como seria bom se
pudesse estar em Caicó amanhã à noite para participar do Baile
dos Coroas! Para ele, a Festa se resume no Baile dos Coroas, os
encontros com os amigos de longas datas no coreto da Pracinha e o
reencontro com os familiares, os almoços, toda a diversão
proporcionada nesse período.
Mas de carro... Não dá pra sair daqui umas 17h00 e chegar em Caicó
a tempo de ir à festa. Calcula ele. Lembra então de um detalhe.
Como associado do Aeroclube de Maceió ele tem direito a algumas
regalias. Pode inclusive alugar uma das aeronaves para uma viagem
a preço bem mais barato. Só precisaria conseguir algum piloto que
possa ir com ele. Alguém com muitas horas de vôo. Certifica-se
disso ligando para o Aeroclube. Dão-lhe o nome do piloto Leahy.
Um rapaz bem jovem. Ele também o conhece. Já é piloto de bimotor,
com mais de quinhentas horas de vôo.
O avião em que vão viajar é um Cherokee monomotor com quatro
acentos. Francisco pede informações sobre o custo do aluguel do
avião para ir até lá, permanecer dois dias e voltar. E compara a
diferença com a despesa de gasolina se fosse de carro. O custo será
apenas o dobro. Vale a pena ir de avião. Tem dinheiro suficiente para
essa jornada aérea sem maiores problemas.
Já na sexta-feira pela manhã, após acertar com o piloto Leahy que se
prontifica a fazer a viagem, descobrem que o plano de vôo
imaginado indo por Campina Grande, não é possível.
Por dois motivos: o avião precisará ser reabastecido e no Aeroporto
SBKG não consta fornecimento de gasolina de aviação, mas
somente querosene para jatos. Explica o controle Maceió. O
controlador de tráfego aéreo informa que não havendo instrumental
no avião para vôo por instrumentos o vôo não pode ser liberado na
rota Campina Grande, pois ha uma forte formação de nuvens por lá
impedindo que a aeronave possa voar abaixo dessa camada, apenas
431
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
no visual VFR. E acima dela, só em vôo por instrumentos. Mas
autoriza o vôo pela orla até João Pessoa. Lá se fará o reabastecimento
no Aeroclube de João Pessoa, continuando para Caicó na rota de
Guarabira.
O piloto verifica que saindo de Maceió por volta das 14h00 é
possível chegar em Caicó antes do por de sol. Por de sol em aviação é
exatamente às 17h15.
Por exigência de regulamento, nenhuma aeronave que não esteja em
condições de voar IFR, vôo por instrumentos, deve se manter no ar
além desse horário. O piloto Leahy está consciente disso.
Francisco vai de co-piloto auxiliando na navegação por vôo visual.
Um mapa aéreo da região nas mãos, no qual traçara o plano de vôo.
Vai conferir as posições de sobrevôo na rota. O avião decola de
Maceió levando piloto, co-piloto, Sandra e Eliana.
Uma hora e meia depois descem no Aeroclube em João Pessoa.
Reabastecem o avião e se apressam em decolar novamente agora na
rota para Caicó. Precisam ganhar tempo. Já em vôo sobre João
Pessoa o piloto chama pelo rádio o controle de João Pessoa e passa o
plano de vôo VFR, informando o tipo da aeronave e seu prefixo,
quantas pessoas a bordo, etc. O controle João Pessoa então
estabelece o nível 045. 4.500 pés.Apos encerrar o contato pelo rádio,
Francisco lembra ao piloto um detalhe:
- Informe ao controle que nosso vôo é VFR (visual) sem MSG (sem
mensagem de chegada). - O piloto chama o controle novamente e
passa estas informações corrigindo o plano de vôo. Nos vôos VFR,
se não houver essa observação no plano, sem MSG, ao chegar ao
lugar de descida o piloto está obrigado a telefonar para o controle
informando que chegou e pousou normalmente.
Sem essa informação de confirmação da aeronave chegando ao seu
destino, pode ser acionado o SIPAER, serviço de proteção ao vôo,
432
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
que pode demandar o envio de aeronaves para localizar o avião,
presumivelmente desaparecido. Isso é normal. Mas desde que as
informações foram passadas ao controle corrigindo o plano de vôo, à
tripulação do Cherokee segue seu curso sem qualquer preocupação
rumo a Caicó.
Já estão voando agora bem próximo de Guarabira. O co-piloto
verifica que estão um pouco fora da rota.
Deveriam estar passando mais afastado à esquerda de Guarabira, por
sobre uma linha férrea, e não sobre a cidade. Passa esta informação
ao comandante Leahy que responde:
- Não tem problema! Eu corrijo! - Pressiona o manche para a
esquerda posicionando a aeronave afastando-se da cidade e
continuam batendo papo. O piloto esqueceu de minutos após corrigir
de volta a proa da aeronave para o curso anterior, paralelo ao que
estavam fora da rota.
Dai ha pouco Francisco começa a estranhar os detalhes do solo lá
embaixo. Procurando alguns marcos de coisas que deveriam ser
identificadas ao longo da rota, como foi o caso de Guarabira e não os
encontra.
Onde deveria consta o cruzamento de uma rodovia está vendo uma
barragem seca.E nenhuma rodovia de terra por perto. Fala isso para o
comandante.
- Estamos perdidos? - Pergunta o piloto Leahy, nunca havia voado
por essas bandas. Não conhece nada da topografia local. Francisco
confirma:
- Não estou encontrando os pontos assinalados da rota no mapa!
Creio que estamos indo em outra direção! Olhando lá de cima para a
esquerda eles avistam uma cidade bem grande bastante longe ainda.
- Deve ser Campina Grande! - Comenta Francisco.
- E agora?
433
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O piloto Leahy parece começar a ficar preocupado.
Bem ao longe à sua frente eles avistam uma outra cidade
menorzinha.
Vamos descendo em direção àquela cidade. Geralmente as cidades
têm algum marco, alguma placa, algum letreiro, às vezes sobre
telhados de zinco, informando o nome da cidade.
E vão descendo nessa expectativa. Uns dez minutos depois já estão
voando bem baixo. Avistam algo que parece ser um pequeno campo
de pouso com pista de terra. E está cercado. Deve ser mesmo um
campo de pouso. Em todo caso...
A essa altura, Sandra que tem verdadeiro pavor de voar em avião
pequeno já com os nervos quase fora de controle, coração na boca,
encolhida no banco de trás. Para ela, queda de avião tem que ser das
grandes. Em avião grande! Como se isso possa fazer alguma
diferença.
Ao iniciarem o vôo sobre a cidade é Eliana quem avista a palavra
escrita com cal em um muro.
- Painho! Olha lá! É TAPERUÁ! Eu ví naquele muro! - O piloto
sobrevoa o local mais uma vez para confirmar. É mesmo! O nome
está lá em letras bem grandes. Imediatamente Francisco traça outra
linha sobre o mapa ligando Taperuá a Caicó. E estabelece a nova rota
em RM, rumo magnético, para onde a bússola deve apontar.
Sandra está comendo o pão que o diabo amassou. Aliás, está mais
amassando, como veremos mais tarde. Já imaginou em poucos
minutos tremendos transtornos. Por exemplo: Meu Deus! Pra quê eu
vim nessa viagem!...
O Cherokee segue agora seguro na direção de Caicó. O piloto
calcula que nesse processo de descida e subida deve ter consumido
uns oito a dez litros de gasolina a mais. Estão bem próximos de
sobrevoar Santa Luzia, a cidade maior nessa rota.
434
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Olha lá! - Diz Francisco.- É Santa Luzia! Pela posição aqui no
mapa estamos no rumo certo!
Acabam de cruzar Santa Luzia novamente a 4.500 pés. Mas o
comandante está preocupado com outro detalhe. Francisco percebe.
Já faz uns cinco minutos que sobrevoaram Santa Luzia.
- Comandante! Você parece preocupado! Algum problema?
- Olhe a hora! Daqui ha pouco vamos ultrapassar o horário para
vôo visual!
Já são 17h08. Francisco calcula rapidamente e informa.
- Mais quinze minutos e estaremos lá!
Mas o piloto continua com cara de preocupado.
Afinal ele não conhece nada nessa rota. O co-piloto navegador pode
estar equivocado. Ele se mostra inseguro. Francisco então sugere:
- Comandante! O capitão é você! A autoridade é sua! Se quiser
voltar e pousar ai em Santa Luzia, consta aqui no mapa um campo
de pouso lá!
- Eu prefiro! - Diz o comandante já dando meia-volta com a
aeronave.
Sandra outra vez se sacode de preocupações lá atrás. Leva nas mãos
um pequeno pacote de chocolate. Que a essa altura, sem perceber, já
os amassou completamente.
A aeronave já voando baixo outra vez aproxima-se do local onde
consta no mapa o tal campo de pouso de Santa Luzia. E o que os
nossos pilotos vêem não é nada agradável!
- Mas não é possível! Você vê o que eu estou vendo? - Pergunta
Francisco ao piloto Leahy.
- Estou sim! Que é que eles estão fazendo ali?
Acabam de avistar dois cavaleiros sentados em seus cavalos,
parados no meio do campo, um diante do outro. Parecem estar
batendo o um bom papo. Somente olham para o avião, mas não saem
dali. Francisco então observa um detalhe:
435
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Rapaz! Esse campo de pouso deve estar desativado. Tem duas
traves de futebol nele. Olha lá! É um campo de pelada. Isso ha muito
tempo não é mais um campo de pouso!
- Valei-me minha nossa senhora! - Deixa escapar Sandra, em seu
imenso trauma no banco de trás.
Enfim, o mapa de aviação que ele tem nas mãos já é bastante antigo.
- E agora? - Questiona mais uma vez o comandante. - Temos que
achar uma alternativa!
Francisco acaba de avistar uma estrada vicinal de asfalto que vem se
bifurcar com a rodovia principal. Na BR não daria para arriscar o
pouso. Tem muito tráfego nesta tarde.
Além do mais a estrada vicinal que não tem tráfego nenhum, está na
posição favorável ao vento de proa.
É possível observar isso se olhando a fumaça que sai dos bueiros das
casas. Eles dão alguns sobrevôos à baixa altitude sobre a cidade,
balançando as asas. Esse é o sinal de que a aeronave deseja pousar
por ali.
- Vamos pousar naquela estrada comandante?
- Vamos sim! É melhor pousar lá! Vê como a estrada é tranqüila?
- Mas tome cuidado com a fiação elétrica comandante! Já viu
aqueles cabos de alta tensão?
- Já vi, sim!
O comandante Leahy é um piloto excelente. Pousa suavemente na
estrada passando por cima dos cabos de alta tensão. O asfalto é novo.
Sem problema. Mas ao rolar na pista ele sente um tranco do lado
direito da aeronave. Imediatamente após o pouso eles descem e
empurram a aeronave para fora da estrada. Pode vir algum
automóvel ou caminhão.
O comandante vai examinar a asa direita e vê o motivo do tranco que
sentiu. A ponta da asa de alumínio está amassada. Batera num galho
de jurema.
- Isso poderá tirar a estabilidade da aeronave, comandante?
436
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Pergunta Francisco.
- Não! Não! Não deve oferecer alguma reação indesejável não!...
Uma multidão já está se dirigindo na direção da aeronave. O local do
pouso fica a uns dois quilômetros da cidade. O primeiro a chegar é
um rapaz em um automóvel.
Sandra acabou de sair da aeronave para constatar algo de que não
gosta. Tem as mãos todas meladas de chocolate amassado e
derretido.
O rapaz que acaba de chegar é um piloto de Ultraleve em Brasília.
Está ali de férias. Ao ver a atitude da aeronave balançando as asas
percebeu que precisava de ajuda.
Conhecedor do regulamento, ele se prontifica imediatamente e
resolveu ir ao local. Está levando nossos pilotos até a delegacia de
polícia da cidade.
Nesses casos, reza o regulamento, que também é do conhecimento
do delegado, que o policiamento local é obrigado a prestar segurança
à aeronave. Ainda mais nesse caso, que o Cherokee pertence ao
D.A.C., aos cuidados doAeroclube de Maceió.
Em poucos minutos ha cerca de umas cem pessoas ao redor da
aeronave. Gente que veio a pé, de bicicleta, de moto, de automóvel,
de jerico, de cavalo, gente de todo tipo.
Junto à aeronave só ficaram Sandra e Eliana. As pessoas ali estão
muito curiosas. E comentam:
- O avião caiu! Foi?
- E só tem essas duas mulheres dentro dele é?
- Que mulheres corajosas! - Comentam outros.
Eliana sempre muito brincalhona logo responde:
- É sim! Só tem nós duas!
437
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Enquanto isso, chegando à delegacia, os pilotos são informados de
que o delegado já se dirigiu para o local onde o avião está. Retornam
então para lá.
Chegando à delegacia de polícia os pilotos são informados que o
delegado já seguiu para o local. Eles voltam imediatamente para lá.
Comandante! - Diz o sargento de polícia, delegado da cidade. Estamos aqui na qualidade de delegado de Santa Luzia para prestar
ao senhor e a seu avião toda a segurança necessária, conforme diz o
regulamento. Já escalei esses dois policiais para pernoitar aqui
tomando conta do avião!
Só faltou o delegado prestar uma continência ao nosso comandante
Leahy.
- Está bem delegado! Foi apenas um pouso de emergência. Manhã
logo cedo voltaremos aqui para levar a aeronave!
Tripulação e passageiras agora estão sendo conduzidos para a praça
de táxi da cidade, onde pretendem alugar um e seguir até Caicó. Já
são quase 18h00.
-Eu hoje não perco o Baile dos Coroas de jeito nenhum! Exclama
Francisco.
Ainda é cedo. Estão saindo de Santa Luzia próximo das 18h30. São
somente 90 quilômetros. Pouco mais de uma hora depois já estão
chegando em Caicó.
Os pais de Francisco e os demais familiares estão um pouco
apreensivos. Eles haviam informado que iriam de avião.
- E que avião é esse que não chega nunca!
Já tinha observado Josina em suas preocupações naturais.
O episódio do pouso de emergência foi motivo de diversão para
muita gente. O detalhe do chocolate espremido de Sandra é motivo
de muita gozação.
438
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Por isso que não gosto de viajar em diabo de avião pequeno! Desabafa ela, para boas rizadas de todos os familiares.
Onze da noite já estão indo ao clube para o baile. O piloto Leahy,
provavelmente muito estressado com as dificuldades encontradas no
vôo, resolveu ficar em casa.
Mas tarde no clube Francisco fez contato com o piloto do avião
Bandeirante do Governo do Estado e ele confirma:
- Daria tempo bastante para vocês terem vindo até aqu! Eu posei às
17h30 com o Bandeirante do Governador e ainda tinha claridade do
sol.
Em Caicó nesse período do ano o pôr de sol ocorre somente após as
17h30. Mas regulamento é regulamento. Além do mais, o piloto
Leahy desconhecia esse detalhe.
No dia seguinte logo cedo eles são levados de automóvel até Santa
Luzia pelo mano Johnny. O pai de Francisco vai junto para voltar
com Johnny.
Francisco paga uns trocados para os policiais que pernoitaram com a
aeronave e vão decolar.
Pedro Elias nunca estivera tão perto de uma aeronave. Está cheio de
curiosidade para conhecer um. Tudo é estranho para ele.
Os pilotos decolam seguindo o mesmo rumo traçado por Francisco
na tarde anterior na direção de Caicó. Tempo cronometrado e, exatos
quinze minutos depois, já estão sobrevoando Caicó.
O comandante Leahy mantinha-se ainda preocupado com o excesso
de combustível gasto nas manobras durante a viagem. Como seria
bom se pudessem decolar dali com o tanque cheio!
Deram sorte. No domingo chega ao Aeródromo de Caicó uma frota
439
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
de ultra-leves vindos de Mossoró. Cerca de dez aeronaves. Por terra
seguia uma caminhonete com galões de combustível para
reabastecer os ultra-leves. O mesmo combustível dos aviões.
Somente era misturado a um terço de óleo ao fazer o abastecimento.
Esses Ultra-leves têm motor de três tempos e o combustível é uma
mistura de gasolina com óleo.
Francisco fala com o pessoal dos ultra-leves e consegue comprar a
gasolina para completar o tanque do Cherokee. Agora o comandante
Leahy está totalmente aliviado. Poderão voltar sem dificuldades. O
mesmo trajeto. Caicó a João Pessoa. Novo reabastecimento lá e
depois direto para Maceió na segunda-feira logo cedo.
Nesta visita a Festa de Santana Francisco reencontra um velho
amigo, outro padre, agora responsável pela paróquia de Santana. O
padre Antenor Araújo. Que se notabilizou pela construção de um
castelo medieval nas cercanias de Caicó. O Castelo de Engady. O
padre Antenor é uma figura muito culta. Também muito questionado
por seus encargos em conseguir dinheiro para a paróquia. As línguas
do mexerico ainda perduram na Caicó desses novos tempos. Dizem
que na contagem do Padre Antenor é assim: um pra mim, um pra tu,
um pra mim. Separando o dinheiro arrecadado na festa. Como na
velha matemática de Luiz Gonzaga em sua música. Um pra mim, um
pra tu, um pra mim. No final, ficavam dois terços com ele e um para a
igreja. Mas isso é só conversa dos mexericos de Caicó.
Francisco é convidado pelo Padre Antenor para ir à sua casa. Entre
um licor de Genipapo e outro vão atualizar os assuntos.
Pouco tempo atrás, conta ele, estivera na Universidade de Haifa em
Israel, convidado para apresentar sua tese de doutourado em
antropologia, desenvolvida na pesquisa de identificação das
famílias de judeus desterrados de Portugal em terras do Brasil, no
Nordeste e mais especificamente, no Seridó.
440
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco está muito empolgado com o assunto. Já leu alguns
livros tratando de Antropologia e sua importância no estudo
da raça humana. O assunto é apaixonante. Agora ouve um
relato impressionante do próprio estudioso do assunto, o Padre
Antenor. O seu estudo é muito revelador mesmo. Razão pela qual foi
convidado a ir a Israel.
- Olha! Francisco Elias!
Em nossas pesquisas nós descobrimos que a Coroa Portuguesa
servía-se do transporte em navios para o Brasil, de duas formas:
Uma era o transporte de escravos. E a outra, era igualmente
terrível! - Enfatiza o padre. - Eles selecionavam os judeus
portugueses da seguinte maneira: Os judeus ricos permaneciam lá.
Mas os judeus pobres, considerados um peso social para Portugal,
eram então desterrados para o Brasil, também confinados nos
porões dos navios. - Um relato interessantíssimo Francisco está
ouvindo.
O próprio padre Antenor, de pele muito branca, olhos verdes,
sobrenome Araújo, é um desses descendentes. Tem sangue judeu.
Afirma ele com toda convicção.
- Eles sabiam! - Continua sua narrativa. - Viajando naqueles porões
fétidos dos navios negreiros, que seriam desterrados em lugares
diversos pela costa brasileira. Famílias inteiras eram separadas e
divididas. Uns desciam em um lugar na costa, outros desciam em
outros lugares mais adiante. Só havia um jeito de eles se
reconhecerem entre si, se um dia encontrassem seus compatriotas e
familiares; adotando um sobrenome especial, como uma senha de
identificação. E combinaram adotar um sobrenome, com algo que
identificasse coisas da própria região: o nome de uma ave, de um
animal, de uma árvore, e assim por diante, anexando esse
sobrenome ao seu próprio nome. Só eles sabiam disso.
Quando um dia, encontrassem alguém com um sobrenome, tipo
441
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Pereira, Chaves, Cajú, Lima, Cordeiro, Bezerra, e tantos outros
sobrenomes que hoje conhecemos, expandidos por todo o país, esse
seria um de seus descendentes de sangue judeu vindo de Portugal.
Continua o padre.
- Nossas pesquisas demonstraram um dado curioso! Os lugares
onde foram deixados no Nordeste são: Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba e Sergipe. Note que Pernambuco e Bahia estão fora dessa
rota! Por uma razão lógica! Ali o forte era o comércio de escravos. E
o que temos? Uma predominância da cor negra nessas regiões.
Enquanto nesses outros lugares... Ainda hoje, se você reunir numa
sala pessoas dessas famílias nativas do Ceará, Rio Grande Norte,
Paraíba e Sergipe, ninguém será capaz de identificar seu lugar de
origem. São muito parecidas. Com traço de aparência muito
comum.
Sem dúvida, o padre Antenor havia descoberto algo fantástico. Uma
contribuição riquíssima para a história das raças em nosso país. Bem
mais tarde, lá para depois do Ano 2000, Francisco vai provocar um
outro relato igualmente tocante em torno do sobrenome dos judeus,
apresentando a versão dessa descoberta, lá em Recife
Vamos acompanhar essa narrativa quando ele já estiver outra vez em
Recife retornando de Maceió. O mundo dá muitas voltas. Como
veremos.
Esta palestra com o Padre Antenor Salvino de Araújo, por sinal,
também seu parente sanguíneo distante, pois seu nome de batismo é
Francisco Araújo da Costa, lhe dá um novo conhecimento, uma nova
visão da disseminação das famílias, que desde o princípio povoam as
terras do Brasil.
442
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
V
ocê mesmo, caro leitor, verifique a árvore genealógica de
sua família, se ha um desses sobrenomes característicos.
Pode ser até nome de fruta ou de qualquer coisa. Ai estará a
sua identidade verdadeira. Que o tempo não apaga. E que ficara
registrada até em cartórios.
Leão, Carvalho, Canabrava, Oliveira, Bandeira, uma infinidade de
exemplos que se pode citar. Todos eles. Chegaram aqui nos porões
dos navios. Não deixa de ser uma face muito ilustrativa da história
deste povo.
Em termos de Festa de Santana, esta é a mais proveitosa para
Francisco. Volta a Maceió trazendo na bagagem muita cultura.
Na viagem de volta Ramatís ocupa o lugar de Eliana no Cherokee. O
vôo ocorre tranqüilo. Apenas uma pequena correção para a direita ao
se aproximarem de João Pessoa. Vôo visual é assim mesmo. Tem que
ser tudo no olho. O tempo está bem limpo. Dá para fazer um VFR
tranqüilo.
Nosso co-piloto pousa no Aeroclube de João Pessoa. Aí o piloto
Leahy descobre que o tempo anda muito quente para ele.
O serviço de proteção ao vôo quase havia emitido o alerta do
SIPAER com o envio de aeronaves para localizar o Cherokee que,
pelas anotações no plano de vôo, estava desaparecido desde a sextafeira. O controle de João Pessoa já está ciente do reaparecimento do
Cherokee.Aconteceu um mal entendido.
O funcionário do controle de vôo que havia recebido o segundo
chamado do Cherokee na saída de João Pessoa, esquecera de
reformular as informações no plano de vôo já arquivado, conforme
foi passado pelo rádio posteriormente, sem MSG. Uma confusão dos
diabos! Com sérias ameaças de punição para o piloto Leahy.
443
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
controle de João Pessoa já havia se comunicado com o
Aeroclube de Maceió desde o sábado informando do
desaparecimento da aeronave, obtendo informação de que o
piloto era mais do que qualificado e que, provavelente havia
ocorrido algum mal entendido. Como de fato agora se confirmava.
Após as devidas explicações pelo telefone ao Controle João Pessoa,
puderam seguir viajem com destino à Maceió. Claro que não deram
qualquer informação sobre o pouso de emergência em Santa Luzia.
Ao chegarem em Maceió, o Presidente do Aeroclube está muito
nervoso. Mas a pedido do piloto e com o testemunho do co-piloto
Francisco, é redigido um documento do Aeroclube solicitando que
o D.A.C. averiguasse melhor, pois havia ocorrido realmente um mal
entendido.
O plano de vôo fora repassado para vôo sem MSG. Solicitando
portanto, que não houvesse punição para o piloto. Ele não tinha
culpa.
Francisco mandou concertar a mossa da ponta da asa do Cherokee e
tudo foi contornado.
- Outra viagem dessa, nem que Deus me peça eu não farei! Desabafa Sandra assim que põe os pés em terra no Aeroclube de
Maceió.
- Pra nunca mais!
444
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
1
990. Esse é um ano histórico para a família Elias. É o ano das
Bodas de Ouro de Pedro Elias e Josina. Com quase um ano de
antecedência todos os filhos já vinham sendo contatados para
assegurarem presenças garantias no fim do ano em Caicó. Toda a
prole de Pedro Elias e Josina deverá estar reunida para as
comemorações. À frente da agenda está o mano Johnny. Com grande
habilidade ultima todos os preparativos para a grande Festa em um
ambiente alugado próprio para eventos. (Ver fotos) Um verdadeiro
desfile de beldades. Uma grande noite de fim de ano.
Um acontecimento marcante. Todos os filhos estão presentes com
suas respectivas famílias. Francisco, Malvina, Maria de Lurdes,
Pedro Elias Filho, Marina, Josafá, José, Marluce, Mônica, Marlene,
Johnny e Franksvictor.
No total, cerca de cinqüenta pessoas, entre filhos, netos, genros e
noras.
Uma foto comemorativa foi feita com toda a família. O único local
onde se poderiam reunir todos na foto é as escadarias da igrejinha de
São Pedro ao lado do Ginásio Diocesano (ver foto).
Esta foi a única vez em que toda essa imensa família esteve reunida.
Os esforços foram muitos. Havia filhos e netos espalhados pelos
mais diferentes lugares do país. Mas todos compreenderam o
significado dessa comemoração e se fizeram presente.
Um acontecimento histórico e inesquecível para todos. Dava para
ver a grande satisfação de haver gerado tamanho pelotão de
indivíduos. Vía-se isso em Pedro Elias e Josina.
Aproveitando essa ocasião ímpar Francisco, assessorado por
Carlinhos Vangasse, noivo de Elissandra, com uma câmera de VHS
faz a filmagem de um documentário registrando tudo.
O documentário histórico é parte integrante deste livro. (Execute o
aplicativo em seu computador).
445
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Nele ha inclusive uma narrativa do próprio Pedro Elias, sobre o
início da grande jornada de sua família lá no sítio Riacho do Meio
entre as grotas de pedras e as temíveis cobras venenosas.
A festa das Bodas de Ouro foi marcante também por outro motivo.
Pouco tempo depois, Pedro Elias e Josina já estariam separados,
vivendo cada um para o seu lado.
As causas para isso devem ter sido muitas. Desde a intolerância dele,
calcado em sua personalidade um tanto brutalizada e incapaz de
acompanhar o desenvolvimento dos tempos modernos, passando
também pela decisão de Josina de abraçar um dogma religioso
completamente fora dos conceitos da religião católica, fato que
Pedro Elias nunca aceitaria.
Ponderando sobre essa pesarosa realidade e os motivos que
condicionaram a separação dos dois, principalmente o fato de sua
mãe haver se entregue ao movimento religioso dos Testemunhas de
Jeová, Francisco encontra um raciocínio que lhe parece lógico. Sua
mãe havia sofrido muito na companhia de seu pai. Ele é testemunha
disso. É muito complicado para uma pessoa se sacrificar tanto
quanto ela o fez em toda sua vida, sem viver uma experiência de
renovação espiritual. Todo ser humano que vive tais circunstâncias
estará, mais cedo ou mais tarde, devidamente pronto para uma virada
em sua vida.
Na maioria das vezes por puro acúmulo de carências reprimidas, as
mais diversas.Asua psique chega ao limite.
E dependendo da formação moral, cultural e do temperamento de
cada um, como é o caso de Josina, uma pessoa já com idade
avançada, ela encontra-se no ponto exato do caminho percorrido,
em que as conseqüências lhe guiam o raciocínio. E ela necessita
preencher o vazio que se avoluma em seu íntimo.
De alguma forma sua mente busca uma resolução.
446
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E é nesse momento de vazio e de necessidade interior que, por
“acaso”, ou decisão do destino, lhe chega a mensagem. No caso dela,
foi a mensagem de um panfleto entregue por uma Testemunha de
Jeová.
É este o momento em que se diz - Quando o enfermo está pronto o
remédio aparece.
O criador tem muitas fórmulas para auxiliar seus entes queridos
vivendo em sacrifício. Josina sem dúvida é uma dessas pessoas. A
mensagem das Testemunhas de Jeová lhe chega como tábua de
salvação.
Após tanto se questionar tentando entender o dogma e preceitos da
religião católica, não lhe parece justo que seu caso não tenha
solução. Ela é uma pessoa acostumada ao sacrifício de se doar.
A religião católica não lhe oferece esse instrumento de labor
espiritual, cuja única compensação, é a certeza de que Jeová a
compreende. E assim, ela se transforma numa Testemunha de Jeová
exemplar. Uma pessoa querida por toda essa comunidade de
religiosos. Pedro Elias jamais compreenderia isso. Portanto estão
vivendo separados. É melhor para ambos.
Certa ocasião em 1991, ele vai fazer uma visita à família de
Francisco em Maceió. Esse momento é oportuno para que
Francisco, mesmo vivendo tanto tempo distante dele, possa avaliar
que seu juízo não está lá grande coisa.
A viagem de ônibus foi cansativa. Pedro Elias já está com seus
setenta anos. Um ônibus para Campina Grande. E de lá outro para
Maceió. Um cansativo dia de viagem!
Mas chega contente de rever o filho, a nora e os netos. Todos estão
muito contentes com sua visita. Francisco já está pensando em
mandá-lo de volta num avião para Natal onde alguém o aguardaria.
447
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Vai combinar isso depois com ele. Ver se ele tem coragem para viajar
de avião, algo que nunca fez.
Josina já havia viajado tempos atrás à Campinas, em São Paulo para
um tratamento de saúde aos cuidados de Danilo e Malvina. Mas
Pedro Elias ainda não tinha vivido essa experiência.
À noite, preparando-se para dormir numa boa rede, o que é bom para
tirar aquela canseira da viagem, Francisco oferece:
- Papai o senhor escolhe! Se quer dormir aqui na varanda, tem
armadores! Ou se prefere dormir na sala, com a varanda aberta, vai
correr uma boa ventilação! - É um sétimo andar.
- Eu prefiro aqui na sala mesmo!
- Está bem! - E ali Francisco arma a sua rede.
Pela manhã logo cedinho Francisco acorda lembrando-se que seu
pai levanta muito cedo. São 05h30 da manhã. Vai lá fora conferir.
Positivo. Pedro Elias já se levantou, desarmou a rede e agora está de
braços cruzados encostado no parapeito da varanda observando o
pouco movimento lá embaixo na avenida Jatiúca.
- O senhor acorda bem cedo não é?
- É! Eu sempre acordo cedo! - E puxando conversa ele aponta para
uns coqueiros existentes ali em frente no outro quarteirão,
comentando:
- Como tem urubu aqui! Não é? - Os urubus estão levantando vôo em
direção à praia.
- É sim! Eles fazem dormitório nesses coqueiros! De manhã eles se
dirigem para a praia e outros locais por ai a procura do que comer.
São os primeiros a ajudar na limpeza da cidade. Qualquer bicho
morto por ai à noite eles já pegam e somem com ele.
- Lá em Caicó, não tem mais um só urubu! Nem pra fazer remédio!
- Como assim? - Francisco está curioso com essa informação.
- Olhe! Se morrer um cachorro hoje atropelado numa estrada por lá,
448
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
ele vai secar e não aparece um urubu pra comer a carniça!
- Mas porquê isso? - Francisco quer detalhes.
- Dizem que foi uns veterinário que chegaram por lá e colocaram um
veneno pra matar não sei o que diabo foi, que findou foi acabando
com todos os urubus! Porque eles comiam a carniça envenenada e
também morriam! - Ele fala isso demonstrando uma veracidade
incrível.
- Rapaz! É possível? - Insiste Francisco.
- Home! Os últimos urubus que tinham em Caicó arrumaram o
matulão (saco de pertences), jogaram nas costas e se danaram para
o Maranhão!
Francisco está surpreso e de boca aberta com a narrativa que acaba
de ouvir. É obrigado a concluir pensativo: - Meu Deus! Papai já está
fraco do juízo! Isso é conversa que ninguém possa acreditar. Sandra
já se levantou e vai preparar o café da manhã. Essa de papai é para
ficar na história mesmo! Pensa Francisco enquanto vai ao banheiro
tomar banho.
Foi uma semana de muitos divertimentos. Passeios diversos pelos
recantos mais bonitos de Maceió, a vista magnífica do mar, das
lagoas, a comida gostosa nos restaurantes de frutos do mar, uma
semana inesquecível. Tanto para ele quanto para os familiares de
Francisco. Todos gostam muito do vovô Pedro.
Já na sexta-feira Francisco conversa com ele sobre a viagem de volta
em avião. Ele parece se animar com a idéia. A passagem é então
comprada para um vôo da Vasp saindo de Maceió às 10h00 da
manhã, com uma escala em Recife e depois vôo para Natal, onde
Rony e Lurdes estariam aguardando por ele no aeroporto.
Francisco dá todos os detalhes sobre o vôo. Ele parece não
apresentar qualquer rejeição à idéia.
449
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
vôo é no domingo pela manhã. Francisco vai levá-lo no
Aeroporto. Estão lá sentados na lanchonete tomando um
lanche, aguardando a hora de embarque. O avião ainda não
chegou. Outras aeronaves estão pousando e subindo. Pedro Elias
resolve desembuchar suas preocupações com o vôo:
- Mas será que isso vai dar certo?
- O quê papai?
- A história desse vôo!
- Claro que vai papai! Não tem o menor problema! Veja ali! Olhe as
crianças e pessoas idosas desembarcando daquele avião! Pode
ficar tranqüilo que a viagem é muito gostosa!
- É!... Sua mãe já avuou né!... - Diz ele não parecendo muito
convicto.
- O senhor pode ficar tranqüilo! Uma aeromoça a bordo vai lhe
acompanhar. Vai lhe colocar no seu acento. Vai apertar o seu sinto
de segurança. E vai lhe dar toda atenção que o senhor precisar! Eu
vou pessoalmente recomendar a ela! - Ele não diz mais nada. Mas
pelo jeito como esfrega as mãos Francisco percebe que ele está...
desiste, mas não desiste da tal viagem. O seu avião já está vindo para
o pouso.
- Olha papai! É naquele que o senhor vai! Repare como ele pousa
suave!... - Ele fica observando com muita atenção o pouso do Vasp
737-200.
Já estão chamando para o embarque e Francisco vai com ele até a
sala de embarque.
Quando chega a hora, chamam primeiro as pessoas idosas e com
crianças. Francisco conversa com uma comissária de atendimento
em terra, recomendando que ele vai voar pela primeira vez e que ela
o entregue a uma comissária de bordo para entregá-lo em mãos à
filha e ao genro que estarão esperando por ele em Natal. A moça o
conduz até o avião.
450
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O vôo vai chegar em Natal por volta do meio-dia. Rony e Lurdes
estão esperando por ele no desembarque. Ele logo confessa que o
vôo foi uma beleza e de como o bicho é rápido.
Dois dias depois Pedro Elias já está de volta em Caicó. Sentado em
sua cadeira espreguiçadeira na calçada de casa sempre após o jantar,
ele continua contando, com todos os detalhes, a todos os amigos que
se aproximam, uma narrativa que duraria os próximos quinze dias.
Basta alguém lhe dar boa noite, e ele já vai abrindo conversa sobre a
tal viagem que fez de avião. - Home eu acabei de chegar de viagem
de Maceió! Vim num avião que meu filho Francisco me botou lá,
indo descer em Recife e depois em Natal!
- Gostou de viajar de avião seu Pedro! - Ha sempre um curioso
querendo saber.
- Home quando esse bicho enterrou dos pés na carreira, me
expremeeeeendo na cadeira! Eu tentando levar o corpo pra frente e
cadê! Não tinha força que me tirasse daquele espremido na cadeira.
Ah bicho duma força condenada! Mas foi bom! A viagem foi boa! É
muito rápido home! Quando você menos espera já está descendo
num outro lugar!
Chega um período de férias. Alguns netos de Pedro Elias estão em
Caicó. Vão passar as férias com o vovô. Josina não vive mais com
ele. Mas tem a mulher que cuida da casa.
Os meninos estão se divertindo. Meninos é força de expressão. Os
“meninos” já têm 14/15 anos.
Pedro Elias costuma ver televisão até pelas nove da noite, de
preferência o canal da Band. Depois vai dormir. Está cada vez mais
velho e assim como as crianças, o sono chega cedo. Os meninos
esperam até ele entrar no quarto para dormir.
Então pegam a fita VHS que alugaram e botam no vídeo cassete. É
um filme pornô. Sabe como são os jovens. Estão sempre na frente do
451
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
compasso. Ainda não têm idade para esses divertimentos, mas às
escondidas conseguem alugar esses filmes de cenas pesadas e agora
estão lá na sala com as portas fechadas no maior silêncio assistindo o
filmão.
No meio do bem bom, mais ou menos uma hora depois, Pedro Elias
se levanta saindo do quarto e vai à geladeira tomar água. Em vez de
voltar ao quarto, como imaginam os meninos, ele vai até a sala vendo
que os jovens assistem TV.
- É a Band? - Pergunta ele e vai logo sentando no sofá.
- É vovô! - Respondem os netos imaginando que então ele não se
interessará mais e voltará ao quarto.
Mas ele permanece mais um pouco.
Já não enxerga muito bem, porém dá para ver perfeitamente o
conteúdo das imagens.
As cenas são quentíssimas. Quase sai fumaça do televisor. Cenas de
sexo explícito no mais alto grau. Os netos estão paralisados. Não deu
tempo para tirar a fita.
O vovô examina direitinho conferindo se é mesmo aquilo que está
vendo, e repentinamente se levanta batendo com a palma da mão na
testa, exclamando:
- Meu Deus do Céu! Jesus Cristo perdeu o controle do mundo! - E
retíra-se apressadamente para o quarto, imaginando que aquilo é a
programação normal da Band para esse horário mais tarde da noite.
Pedro Elias está pagando um preço relativamente alto por não
conseguir com sua mentalidade um tanto retrógrada, acompanhar o
que está acontecendo no mundo dia a dia. Ele nem imagina que esse
tipo de filme é alugado em lojas específicas. Bem verdade que
específicos para pessoas de maior idade. Porém no interior, mais que
em qualquer outro centro mais avançado, menos se respeitam as
normas. E tais filmes são alugados mesmo por jovens de menor
452
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
idade. O vovô Pedro não sabe nada disso. E pelos próximos dias esse
vai ser o seu comentário insistentemente repetido com todo mundo
com quem conversa:
- Vocês têm visto a Band tarde da noite?
- Às vezes! - Respondem seus conhecidos.
- Eu não sei como é que se liga uma televisão para ver umas
porcarias daquelas!...
O conhecido em questão, que não sabia ao que ele se referia, fica sem
entender.
- Mas seu Pedro o senhor gosta tanto da Band!
- É! Mas eu durmo muito cedo!
Esse assunto seria por muito tempo motivo de diversão para seus
netos.
Pedro Elias periodicamente vai à Natal cuidar da saúde. É sempre
recebido em casa de Rony e Lurdes. Uma de suas características
peculiares é não gostar de comunista. Pedro Elias armazenou em sua
memória um dado sobre os comunistas. É, em sua opinião, a pior
classe de gente que se pode imaginar. Comunista come até
criancinha! Essa a imagem que ele tem dessa classe política.
Certamente havia assimilado essa informação desde muito tempo
atrás, quando a propaganda americana se empenhava em divulgar
horrores sobre os comunistas. Influenciando largamente a
consciência política das massas em países ignorantes, como era o
caso do Brasil. E Pedro Elias, como a maioria do povo de sua época
no pós-guerra, tinha esse conceito enraizado. Tinha horror de
comunista! E sempre que pode, faz questão de externar isso.
Por outro lado, sua formação cultural sempre apontou para o
brilhantismo da farda dos militares. Deve haver em seu
subconsciente um sonho guardado e não realizado.
453
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
T
alvez ele mesmo gostaria de ter sido um brilhante militar.
Major, Coronel, General, são palavras que ele expressa com
muito zelo. Tanto, que alguns de seus próprios netos são
apelidados de: o Coronel Luquinha, meu Major, é assim que ele os vê
em seus devaneios de avô coruja.
Esta noite, ele está em casa de Rony vendo televisão. Está
acontecendo a ECO92, um grande evento internacional que reúne no
Rio de Janeiro para discussão de assuntos do interesse global,
representações de centenas de países de todos os continentes.
Vendo todos aqueles figurões sendo recebidos na ECO92 pelas
autoridades locais, alguns deles em farda de gala, chega o momento
de recepcionarem um grande general da América Latina. Imponente
em sua farda verde cheia de condecorações... Com sua barba
imensa... Pedro Elias então exclama com admiração:
- Eita! Generalzão! - O genro Rony, que conhece bem as suas
predileções pergunta:
-Sabe quem é esse ai seu Pedro?
- Quem é?
- É Fidel Castro! O Presidente de Cuba!
Isso é um cachorro! - Dispara ele imediatamente.
Alterando seu conceito sobre o “Generalzão”. Uma coisa ele faz
questão de exprimir. Sempre. A sua franqueza. Quando se trata de
defender suas convicções. Rony dobra-se em gargalhadas.
454
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
U
m acontecimento marcante na família.
O casamento de Mimía, a primeira filha de Francisco. Elissandra
casa-se com Vangasse. Voltas fantásticas esse mundo dá!
O que temos aqui? Elissandra carrega sangue judeu português em
suas veias. E agora vai se casar com um descendente de alemão. Essa
história também é interessante.
Conta-se a título de especulação, talvez uma ficção, que o avô de
Vangasse, um piloto da Luftwaffe alemã, viajando a bordo de um
porta-aviões de Hitler pela costa brasileira na Segunda Guerra
Mundial, na região de Alagoas, enquanto voava numa esquadrilha
de reconhecimento, havia simulado uma pane em sua aeronave
jogando-a no manguezal numa área distante de Maceió.
Tempo em que havia muito pouca densidade demográfica nessa
região. Apenas algumas pouquíssimas choças de pescadores, mas
muito pouco povoadas, quase desertas.
O piloto Vangasse já desconfiara que Hitler iria perder a Guerra. E
resolvera se jogar ali, permanecendo por algum tempo dentro da
carlinga do avião como se estivesse morto. Seus companheiros
teriam feito algumas passadas por cima dele em vôos rasantes, mas
sem lugar para pousar afim de resgatá-lo, retornariam ao portaaviões registrando a perda de uma aeronave e de seu piloto, que lhes
parecia estar morto.
Algum tempo depois, com a esquadrilha já longe, o piloto Vangasse
teria descido da aeronave e se embrenhado no mato. Por algum
tempo alimenta-se de raízes e outras iguarias esquisitas que
conseguisse vasculhando o manguezal. Água de coco e algumas
outras frutas nativas. E assim foi escapando até encontrar gente que
o acolhe.
455
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Provavelmente famílias de pescadores. Sem falar uma palavra em
português, nem tão pouco ser entendido em seu alemão, só com
muito tempo foi absorvendo a linguagem nativa daquele povo.
Tempos depois casa-se com uma mulher nativa da região. De quem
nasceu seu Vangasse pai de Carlos Vangasse, que agora está se
casando com Elissandra.
Para justificar as características da consangüinidade hereditária
conforme explica a ciência, a mulher nativa com quem se casou o
piloto Vangasse era de pequena estatura, algo muito comum entre os
alagoanos. Seu Vangasse, pai de Carlinhos, que este narrador
conheceu em vida, era também de pequena estatura. Já o Carlinhos
Vangasse é bem alto. Chegando quase aos dois metros de altura.
Fruto, naturalmente, do resultado da hereditariedade em segunda
geração.
Pois ai está, reconciliando consangüinidades, uma judia e um
alemão, gerando nova filiação. Os filhos de Vangasse são os netos
deste que lhes escreve. Também bastante altos.
É o ser humano escrevendo sua própria história em miscigenação de
cromossomos. Perpetuando a espécie. Cada um leva a sua própria
chaveADN de identificação.
Você também, que agora lê este texto. Talvez devesse examinar a sua
árvore genealógica.
Pouco tempo depois casa-se Eliana, a segunda filha de Francisco e
Sandra. Em ambos eventos viu-se muita alegria de toda a família.
Parentes que moram distantes, principalmente familiares de Natal,
foram aos casamentos das meninas. Como todo casamento, os delas
foram muito festivos. A família Elias é reconhecida pela temperatura
de sua personalidade alegre. Uma geração vai herdando da outra
essas características comportamentais.
456
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E
liana, por exemplo, agora muito feliz entrando na igreja
levada pelo pai, provoca o comentário de alguém da família:
Lá vai a Tia Maria se casar! Ela realmente tem traços muito
fortes com Maria Grande, a tia de Francisco, aquela mesma
especialista nas buchadas de bode, assim alcunhada, por ser uma
mulher corpulenta. De pés bem grandes. Morreu sem nunca haver
calçado um sapato. Não havia número que coubesse seus pés. Eliana
arrancou alguns traços da tia Maria. Por isso ha sempre alguém
brincando com ela. Sua alegria de comunicação, igualmente como a
irmã Elissandra, também é outra característica contagiante.
Freqüentemente lembradas pelos tios e primos.
Com a gravidez das filhas inicia-se em Francisco um fenômeno
bastante relevante. A primeira a engravidar foi Eliana. Ao comunicar
a sua gravidez ela foi surpreendida com uma informação vinda de
seu pai.
- Vai ser um menino minha Filha!
- Um menino papai?
- Sim!
- Como é que o senhor sabe?
- Alguma coisa está me dizendo! Vai ser humem! Tenho certeza!
No momento ninguém leva a sério a sua observação. Ele mesmo
estava surpreso com aquilo. Mas lembrou-se da sensação que sentiu
no nascimento de Ramatís. Era algo parecido. Uma certeza! Muito
forte! Como se houvesse escutado alguém falando dentro dele. A
última vez que havia sentido algo assim foi em São Paulo, junto com
a tia Neném em um centro espírita.
Pouco tempo depois foi feito o exame de ultra-sonografia
confirmando. Eliana estava grávida realmente de um menino.
- Paínho! É mesmo um menino! Vou ter um menino! Como é que o
457
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
senhor sabia? - Ela está no telefone. Continua curiosa. Seu pai havia
realmente acertado.
Em seguida todos esquecem o fato. Algum tempo depois é a vez de
Elissandra anunciar que também está grávida. Assim que toma
conhecimento, Francisco faz uma busca em sua mente,
mentalizando a barriga da filha e novamente recebe a comunicação
extra-sensorial. E informa para ela:
- Vai ser homem também Elissandra!
- É mesmo Painho! Que bom! - Responde ela sem muita convicção.
Logo vai providenciar a ultra-sonografia e novamente o fato se
confirma. Ela liga para o pai.
- Painho! O senhor acertou mesmo! Vai ser homem!
A essa altura já tem alguém comentando: Mas que coincidência!
Elias acertou o sexo dos dois netos. Coincidência! Ele mesmo
também já está pensando nessa possibilidade. Será que foi só uma
coincidência?
A vida de Francisco parece estar passando por um período de certa
fertilidade em suas relações com a para-normalidade. Certa noite ele
sonha algo muito estranho. Parece ter sido uma mensagem, que ele
não consegue interpretar. Não está influenciado por nenhuma
convivência com centros espíritas desde que chegou em Alagoas,
nem está lendo qualquer livro vinculado a espiritualidade. Aliás, já
faz algum tempo que não lê um livro. Por isso conclui que o sonho
que acaba de ter deve ser algum tipo de mensagem que estão lhe
mandando da espiritualidade. Falta-lhe conhecimento suficiente
para desvendar com exatidão aquele sonho. Algo bem forte! Uma
cena gravada para sempre em sua memória. Foi mais um daqueles
sonhos em que ele tem consciência que está sonhando. É como se
sonhasse acordado.
458
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
cena do sonho é noturna. Numa noite de céu muito limpo.
Sem lua. Mas muitas estrelas cintilam no firmamento.
Existe em Maceió um campo de futebol do CRB. Cercado
com muro alto. Francisco já passou muitas vezes ao lado do campo,
já viu o espaço interno pela televisão em partidas de futebol.
Reconhece as arquibancadas não muito altas.
Certa vez passando de automóvel avistara pelo portão de entrada que
estava aberto, uma parte do gramado. E nesse sonho ele reconhece
perfeitamente. Foi levado para dentro desse gramado, onde se
encontram centenas de pessoas.
Ninguém que ele conheça. Até procura nas fisionomias alguém
conhecido e não encontra. Ele sabe que aquilo é um sonho. As
pessoas ao seu lado conversam animadamente.
A impressão que ele recebe é que estão todas ali aguardando um
acontecimento, alguém que vai chegar. Quem será? Imagina ele em
seu sonho. Quem estão esperando?
A pouca luminosidade do céu estrelado mostra em penumbra a
fisionomia das pessoas. Todas estão paradas no mesmo lugar. O
gramado está repleto de gente. Mas sem transeuntes. Grupos de
pessoas que conversam animadamente mas em voz baixa. Observa
que ha espaços de um metro mais ou menos entre elas.
Todas demonstram certa expectativa alegre. Portanto, conclui sua
consciência! Deve ser algo bom que vai acontecer ali.
De repente ha alguém apontando para o céu na direção do Cruzeiro
do Sul. Todos se voltam para essa direção. Ha um certo burburinho
na platéia!
As pessoas parecem estar empolgadas com o que vêem. Francisco
ainda não tem idéia do que se trata. também olha naquela direção.
Incrível!
Um pouco abaixo do Cruzeiro do Sul agora se vê uma estrela um
pouco maior que brilha intensamente aumentando de tamanho.
459
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Girando sem parar ela vem a uma velocidade descomunal em
direção a terra. Aumentando de tamanho enquanto se aproxima. A
estrela cai exatamente dentro do gramado onde se encontram as
pessoas espargindo um estrondo surdo com a intensidade de sua luz.
O impacto da sua chegada é muito forte. Mas soou com um som fofo.
Francisco sente como se houvesse perdido os sentidos por fração de
segundos. Mas já está voltando a si.
O que acaba de ver em seu sonho consciente é simplesmente
fantástico! Então se dá conta de que ha um visitante caminhando
entre os presentes. É um jovem aparentando no máximo 25 anos.
Interessante! Observa Francisco. Ele está vestido normalmente,
como qualquer um ali. Mas todo mundo se volta para ele com grande
satisfação por sua chegada. Portanto, deve ser alguém importante
que toda aquela gente estava aguardando.
Quem será ele?Agora o jovem recém chegado está passando mais ou
menos próximo de onde Francisco se encontra, ainda perplexo, sem
a menor idéia do que seja aquele tipo de evento ou quem seja aquela
figura.
As pessoas ao seu redor acenam alegremente para o jovem com o
braço. O jovem retribui o cumprimento com um sorriso confiante
também acenando para as pessoas. Acena na direção de Francisco. O
visitante mantém todo instante aquele sorriso muito tranqüilizador.
Que coisa incrível! Francisco está se questionando severamente
sobre o que está acontecendo ali quando repentina é arrancado da
cena, despertando imediatamente.
Ha tempos, com algum problema de coluna, ele dorme em rede.
Desperta com o coração aos pulos. Meu Deus do céu! O que foi isso?
Que mensagem foi essa que acabo de receber? Por vários minutos
ele permanece acordado refletindo sobre aquela maravilhosa cena.
Algo assim nunca havia lhe acontecido antes.
460
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Q
ue mensagem era aquela? Por quê a espiritualidade lhe manda
mensagens tão difíceis de decifrar? Lamenta por não poder
conceber aquela magnífica realidade. Só após vários
minutos, agora já com a pressão vascular normal, ele volta a
adormecer.
A cena fica-lhe gravada definitivamente na consciência com grande
intensidade. Jamais poderia esquecê-la. Como todos os fenômenos
de para-normalidade que lhe ocorreram. Aquele era mais um. Que
vinha para ficar. Como uma doce lembrança. Um momento de luz.
Um sonho do qual desejaria nunca ter acordado. A figura daquele
jovem fazia um bem enorme a todos que o viam.
Transmitia uma paz extraordinária. Era um ser de luz. Disso ele tinha
certeza. Mas quem? E qual seria sua missão aqui na terra? E o mais
interessante! Tinha as feições e aparência corporal de uma pessoa
normal. Sua estatura devia ser 1,75m aproximadamente. Não era
gordo nem magro. Parecia ter um físico enxuto. Não exatamente
atlético e musculoso. Mas enxuto. Seus olhos eram claros.
Transmitiam paz. Seu cabelo era curto. Vestia uma calça creme e
uma camisa de mangas curtas mais clara, combinando. Francisco
não chegou a se deter no tipo de calçado que ele usava. Não usava
qualquer tipo de jóia. Isso ele reparou.
Ou seja, a convicção que lhe ficou é que ele fora levado ali, não sabe
por quem, para presenciar a chegada daquela figura e ter tempo para
observar vários detalhes.
O motivo disso, nunca saberia. Mas sempre se sentiu grato à
espiritualidade por merecer esse tipo de experiência extra-sensorial.
Esperava que um dia tudo isso viesse fazer algum sentido.
Em situações especiais como essa, ele recorda a primeira cena que
lhe imprimiram na consciência, seu primeiro momento extrasensorial. Aquela cena de sua infância, com a luz azulada descendo
461
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
pela parede em sua direção.
Será que todas essas cousas tinham relação entre si? Pensar não é
proibido! Portanto ele vai continuar pensando em todas as
possibilidades possíveis. Todo o tempo em que se envolveu com os
centros espíritas, nunca ninguém ou qualquer entidade espiritual lhe
passou qualquer informação sobre essas coisas. Só lhe resta refletir e
pensar que Deus muito certamente, tem um objetivo nisso.
A realidade econômica de então no país, vivendo uma terrível
inflação, lhe desperta a curiosidade sobre um assunto palpitante. A
Neurolinguística. Aproveitando uma tentativa empresarial através
da Amway, uma corporação americana de distribuição de produtos
através de Marketing Direto, a partir de então atuando também no
Brasil, ele se aprofunda nesse treinamento.
Lendo o escritor de economia americano, Lee Iaccoca, ele descobre
algo interessante que o faz considerar possibilidades sobre a
realidade brasileira. Paízes que viveram conflitos e guerras, a
exemplo da Alemanha, o próprio Estados Unidos com a guerra da
Secessão, França, Itália, Coréia do Sul, Japão, todos eles haviam
regado com seu sangue a estabilidade e o progresso que então
experimentam.
O Brasil, entretanto, é apenas o país do “jeitinho”. “Não é um país
sério!” Conforme dissera Charles DeGoule algumas décadas antes.
Um país ainda infantil. E como toda criança, totalmente
irresponsável.
Talvez por isso seu povo estivesse pagando um preço tão caro com a
inflação assolante destruindo tudo pela frente. Inclusive, o seu
escritório de propaganda. Essa é a realidade dos anos 90.
Poucos anos depois Eliana engravida pela Segunda vez. Ao
comunicar o fato já o faz perguntando: - E agora painho? Vai ser
462
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
homem ou mulher? - Ele põe a mão na barriga dela e procura ouvir
alguma coisa. De novo vem aquela certeza muito forte.
- É homem de novo minha filha!
- Ah! Painho! Homem de novo?
- É minha filha! Não sou eu quem decide! Eu só recebo a intuição! É
homem novamente! - Outra vez Francisco está recordando aquele
momento do nascimento de Ramatís. Tem a impressão que esse
fenômeno se iniciou exatamente naquele dia.
A ultra-sonografia novamente confirma. Eliana vai ter outro filho
homem. Agora já não duvidam tanto das suas previsões. Mas ele
pede que não comentem isso com ninguém. Teme que possa perder
essa sensibilidade.
Elissandra engravida também pela Segunda vez.
E novamente quer saber do pai se é homem ou mulher. Todo mundo
na família já está desejando ardentemente que surja uma mulher.
- Sinto desapontá-los! Mas vai ser homem outra vez!
A reação não poderia ser outra. Elissandra também reage um pouco.
Queria tanto que fosse mulher! Mas não se incomoda se for homem
novamente. E é.
Foi confirmado mais uma vez com a ultra-sonografia. Agora
ninguém mais tem dúvida dessa capacidade dele.
Não se sabe como nem porque, mas o fato é que ele não errou
nenhum prognóstico até agora. São quatro netos lindos. Todos
homens. É assim que Deus está querendo. Então que seja.
Francisco aproveita o momento para retornar às suas leituras. Em
seguida é a vez de ter acesso a um outro nível de comunicação.
Acaba de ler um livro incrível. Uma autobiografia da atriz de cinema
Shirley MacLane, em que ela conta uma extraordinária experiência
para-normal, vivenciada desde o dia em que surgira do nada na
varanda de sua cobertura em Nova York, um ser, aparentemente
463
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
norma. Um homem, materializado ali, que já a aguardava, pois ela
havia saido um pouco do partamento, e que lhe deixa uma
mensagem incrível. Uma missão. Que ela deveria cumprir. Para isso
teria que ir até um lugar longíncuo nas serras altas na cordilheira do
Peru.
A narrativa da autora, faz questão de esclarecer que não se trata de
uma obra de ficção, aguçando bastante a curiosidade de Francisco.
Retira desse livro algumas informações muito importantes sobre a
correlação espiritualidade/UFOs.
Agora ele acaba de descobrir um outro autor, cognonimado
Trigueirinho, com vários livros que mostram também essa
correlação entre o mundo dos espíritos e o fenômeno UFO.
Francisco já desconfiava dessa possibilidade desde quando lia as
muitas obras sobre os discos voadores. Agora tem a oportunidade de
ir a fundo nessa avaliação.
Os livros de Trigueirinho chegam-lhe com muitos esclarecimentos.
A leitura o deixa muito empolgado. De uma vez só, encontra na
livraria do Shopping Iguatemi em Maceió, vários deles. Compra
nove livros do Trigueirinho. Tempos depois consegue alguns outros.
Lê tudo que encontra do autor Trigueirinho. Uma narrativa
fantástica. Para poucas mentes. É bem verdade. Precisa já desfrutar
de certa evolução no conhecimento da ufologia espiritualista para
poder compreender e absorver com isenção as narrativas de
Trigueirinho.
São parecidas com a obra de Shirley MacLane.
Durante vários meses ele devora os livros de Trigueirinho com muito
gosto, saboreando informações muito evolutivas e preciosas, sobre o
processo da evolução do ser humano na terra. É outra vez um período
muito fértil para seu aprendizado através dos livros, como ha tempos
não experimentava.
Enquanto em Maceió, esse é seu melhor momento com os livros.
464
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
T
em algo novo acontecendo no mercado financeiro nacional
que está pegando Alagoas em cheio. É a época do
“overnight”. Uma manobra financeira da política econômica
do Governo. As pessoas estão deixando de investir em
produtividade, e o mercado imobiliário vinha sendo uma forte
alternativa. Todo mundo agora está retirando o dinheiro dos
negócios e aplicando na falsa rentabilidade diária do “overnight”.
Uma forma de tentar proteger o capital da ação terrível da inflação
galopante e cada vez mais devastadora. O mercado imobiliário
despencou. Não ha como resistir.
O principal cliente da Criação de Propaganda parou com todos os
seus anúncios de jornal e telelvisão.
- Não adianta anunciar! - Diz Márcio Raposo. - É dinheiro jogado
fora! Elias! Ninguém está comprando imóvel!
Sem um parque industrial coerente com o tamanho da cidade, com
uma economia fortemente concentrada apenas em torno de algumas
usinas de açúcar, a situação em Alagoas é muito grave. Não ha como
continuar mantendo o escritório de publicidade. Além do mais, ele
havia cometido um grave erro estratégico operacional na agência de
propaganda. E só agora se dá conta disso.
Com os constantes e seguidos lançamentos imobiliários em período
recente, ele dera-se ao luxo de permitir que um só cliente, no caso a
Márcio Raposo Imóveis, representasse 60% do faturamento bruto da
agência. Outros 20% estão com a Cofal, com suas duas lojas de
material de construção, e os 20% restantes divididos entre outros três
clientes pequenos.
Com a brusca crise que se abateu sobre o mercado imobiliário ele
perde 60% em seu fluxo de caixa.
A cofal, seu segundo maior cliente, vende material de construção.
Também é afetada diretamente. E para não quebrar, fecha uma das
suas lojas. Também cancela os investimentos publicitários.
465
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Com os 20% restantes, não dá para manter o escritório. Não ha novos
clientes. Francisco decide fechar o escritório. Já ha espaço em seu
apartamento. O quarto que era das meninas ele transforma em seu
escritório. Mas não ha muito que fazer.
Por fim, em momento extremo da crise financeira, ele vai se valer da
experiência adquirida trabalhando com resina de poliéster na
fabricação do avião. Vai fabricar chaveiros finos, feitos em peças de
resina acrílica transparente.
Por algum tempo consegue alguns pedidos. E vai se mantendo, Deus
sabe como. Ramatís agora já trabalha também. Estuda e trabalha.
Sandra resolve por em prática um projeto seu antigo. E monta seu
salão de beleza. O casamento está vivendo mais um período terrível
de descontentamento. Ela não gosta da confecção dos chaveiros em
casa. Mesmo com a porta do quarto fechada o odor da resina invade a
casa. Isso lhe parece muito desconfortável.
- Não dá para você alugar um ponto e fazer esses chaveiros lá? Indaga ela em momento crítico.
- Não dá Sandra! Não tenho pedidos constantes que possam
garantir o pagamento de um aluguel! Mas Sandra não se conforma. Está empenhada em dificultar mais
ainda as coisas.
Ambos já estão corporalmente separados. Francisco já dorme em
quarto separado, no seu escritório.
Trabalhando até tarde da noite às vezes.
Perdeu-se totalmente o vínculo entre esses dois caminhantes do
tempo.
- Porque você não vai embora para Recife? Vai tentar alguma coisa!
Você conhece tanta gente lá! - Sugere ela. Empolgada com o
466
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
vislumbre de definitivamente se libertar de um casamento que,
inconfessadamente não teria se dado por amor verdadeiro. Mas por
instinto de preservação.
Sandra parece decidida a apressar as coisas. A separação deles é
questão de dias. Ou talvez de oportunidade.
Ramatís continua em casa, assistindo quase diariamente o transtorno
vivido por seus pais. Ele até chora às vezes. É um rapaz sensível.
Sente por nada poder fazer pelos pais nessa situação. Mas reconhece
que o melhor para eles é a separação definitiva. Já conhece esse filme
de longas datas. Foram muitos anos de desencontros e discussões
estéreis entre eles. É um caso sem solução. O quadro é lamentável,
principalmente do ponto de vista emocional. Porém ninguém nunca
estará definitivamente só.
Esses próximos dias vão ter surpresas, mas de forma diferente.
Um dos clientes de Francisco que vez ou outra ainda o procura para
realizar algum trabalho é o Pedro Camêlo, proprietário de uma
construtora.
Pedro é uma pessoa muito simples. Embora altamente realizado.
Suas origens também são paupérrimas. Certa vez ele contou a
Francisco como começou a sua vida vindo do interior, filho de
família muito pobre. Com muito esforço se formara em engenharia
civil. Atualmente tem uma construtora, com alguns
empreendimentos imobiliários em Maceió. Mas não é só isso. Ele
tem também duas fazendas de engorda de gado para corte.
Tem dois filhos. Ou melhor, tinha. Um rapaz de apenas dezesseis
anos e uma moça de quinze. Já havia falado do rapaz. Sempre o fazia
com muito orgulho. Afirmava que o rapaz, além dos estudos já
dirigia uma das fazendas. Falava dele com a certeza de que seria o
continuador de sua obra empresarial. Para quem começou do zero,
Pedro Camêlo pode-se dizer, tem um pequeno império.
467
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
M
as esta noite, sob uma garoa fina e persistente que cai
sobre toda Maceió, sua fortaleza parece desmoronar. Ele
está ao telefone em estado de choque emocional.
- Elias! - Pedro Camêlo está em soluços. - Eu tenho uma notícia
muito triste para lhe dar!... - Ele fala com dificuldade. - Meu filho
morreu! Elias! Meu filho morreu!... Uma perplexidade.
- Pedrinho! Acalme-se! O que foi que houve?
- Um triste acidente de carro Elias! Ele vinha do condomínio
Aldebaran onde foi pegar um amiguinho dele! Faz só umas duas
horas! Morreram todos dois! Ai! Meu Deus! Me dê forças para
suportar isso!
- Tenha calma Pedrinho. Tenha calma!
- Eu... Queria que você... Fizesse contato com o jornal! Eu não
tenho cabeça para fazer isso! Precisamos... Botar uma nota no
jornal para o sepultamento amanhã!...
- Está certo Pedrinho! Fique tranqüilo! Eu vou providenciar tudo!
Vou providenciar tudo agora mesmo!
Esse choque está sendo terrível para aquele homem. Amava aquele
filho com muita intensidade. Dizia que ele embora tivesse apenas
dezesseis anos agia como um adulto, extremamente responsável. Só
dava alegria aos seus pais. E acrescentava doloridamente ao
telefone:
- Como Deus pode fazer uma coisa dessas comigo Elias! Como
pode! - Pedro Camêlo encontra-se sob tremendo choque emocional.
Quase blasfema. Esse não seria o momento para lhe dizer coisas
mais profundas. Francisco imagina que vai ter oportunidade depois,
de conversar com ele, saber que tipo de religião ele tinha, se era
possível buscar conforto nela. Por enquanto, o melhor era deixá-lo
desabafar.
No dia seguinte foi feito o sepultamento sob profunda carga
emocional de toda a família. Francisco resolveu não comparecer.
Achou que sua presença poderia emocionar Pedro ainda mais.
468
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Ele fora a primeira pessoa fora da família a tomar conhecimento do
fato. É um fim de semana. O acidente ocorreu no sábado pouco
depois das 18h00.
Passados três dias após o sepultamento do rapaz, Francisco vai
visitar Pedro Camêlo. Ai ele teve ocasião de saber mais detalhes do
acidente. Desde quando entrou no escritório do amigo e durante todo
o tempo de sua conversa com ele, Pedrinho não para de chorar e se
lamentar. Como é triste ver aquele homem totalmente destroçado
daquela maneira.
- Minha vida acabou Elias! Acabou!
- Como foi o acidente?
- Ele vinha dirigindo o carro! Chovia um pouco e na entrada do
retorno da Fernandes Lima, entrando para a esquerda para o
Hiperbompreço eles se chocaram com a traseira de uma caçamba!
Morreram os dois na hora Elias! Meu filho se foi! Sem ao menos eu
poder me despedir dele!!! Que sofrimento Elias! Eu adorava ele
Elias! Meu filho era um homem de verdade! Como Deus deixa uma
coisa dessas acontecer?
Era a deixa que Francisco aguardava.
- Pedrinho! Qual é a sua religião?
- Não sou praticante de nenhuma religião Elias! Minha família
sempre foi católica. Mas eu mesmo passei tanto tempo lutando pela
vida que não me dediquei a nenhuma religião.
- Você acredita em Deus?
- Sim Elias! Mas nessa hora eu lhe confesso que quero desacreditar!
- Diz ele com profunda tristeza e continua chorando com os braços
apoiados na sua mesa de granito. Sua imagem se reflete no brilho do
granito. É uma cena triste de ver.
- Eu estou pensando em parar tudo Elias! Parar com tudo! Minha
vida não tem mais sentido!
- Não faça isso Pedrinho! Deus existe! Eu posso lhe assegurar!
469
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Nada é por acaso! Certamente chegou a hora do seu filho! Pense
bem! Sendo a pessoa tão competente que você confirma que ele era,
como se sentirá ele agora sabendo que você pretende parar com
todas as suas atividades? Certamente ele lhe diria: Não papai!
Continue!
Em memória dele, acho que você deve continuar!
Essas palavras provocam algum conforto espiritual nele. Ha vários
empreendimentos em andamento. Tanto na construtora como em
suas fazendas. Ele precisava se equilibrar. Ha muitas
responsabilidades envolvidas nas empresas. O raciocínio de que
talvez o filho não desejasse que ele parasse com tudo modifica sua
estrutura mental nesse momento. É o que parece.
Minutos depois, com ele já calmo, Francisco se retira, com uma
recomendação final:
- Em sua casa certamente ha uma bíblia! Todos os dias, no melhor
momento em que se lembre dele, abra a bíblica e leia o conteúdo.
Qualquer página! E ofereça a Deus! Pedindo que lhe dê calma e
serenidade para continuar com sua vida! Faça isso! Seu filho
certamente vai amá-lo ainda mais vendo suas tentativas de serenar
seu espírito.
- Eu imagino como é dolorido para você! Mas faça isso! Deve lhe
fazer algum bem. E a seu filho também!
Semanas depois, mais de dois meses, Pedro Camêlo telefona para
Francisco pedindo para passar no escritório. Tem um trabalho a
mandar para o jornal. Isso é um bom sinal. Significa que ele continua
tocando suas empresas. Os prédios em construção precisam ser
concluídos. É uma responsabilidade muito grande da construtora,
que quase sempre, vende seus apartamentos ainda na planta. Ha
muita credibilidade em torno do nome Construtora Camêlo.
470
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
M
inutos depois Francisco já está chegando ao seu escritório.
Como sempre, cumprimenta o amigo com palavras de
otimismo. Que o projeto de trabalho com a Amway não
tenha dado certo, tudo bem! Mas Francisco absorveu uma bagagem
excepcional com os treinamentos em Neurolinguística. E a
habilidade de lidar com pessoas é fundamental nesses estudos.
Ao recebê-lo em seu escritório mais de dois meses depois, Pedro
Camêlo ainda chora a ausência do filho. Cumprimenta Francisco sob
lágrimas. Logo que se recompõe, ele passa as informações para a
confecção do anúncio de jornal. Enquanto tomam um cafezinho.
Ao final do encontro ele pergunta:
- Elias você viu o programa Fantástico da Rede Globo ontem?
- Vi um pouco Pedrinho. Não todo! Mas vi algumas partes!
- Você viu a reportagem que saiu com aquele médium Chico Xavier?
- Vi Pedrinho! Nessa hora eu parei o computador e assisti tudo!
- Ah! Elias! Como eu me sinto infeliz!
E narra sob forte emoção o que vira na TV, enquanto chora
desconsoladamente. É triste ver um pai chorar, sofrendo tanto
daquele jeito.Acena afeta profundamente Francisco.
- Eu vi aquelas pessoas lá... Recebendo comunicações de seus entes
queridos Elias! E me senti muito infeliz! Eu não tenho a felicidade de
merecer que meu filho faça uma comunicação comigo!... - Enquanto
ele fala Francisco vai pensando... Por fim lhe diz:
- Pedrinho! Eu não posso lhe garantir nada! Mas ha uma pessoa de
Minas Gerais, um amigo meu, contador da Santa Casa aqui em
Maceió! Ele é espírita! Quem sabe, sendo de Minas, ele possa nos
dar alguma informação de como se chegar a uma reunião daquelas
com Chico Xavier. Assim que eu tiver uma informação eu faço
contato com você!
- Está certo Elias! Eu lhe fico muito agradecido! Mas não tenho
471
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
esperanças de merecer um contato de meu filho!
- Não perca as esperanças! Para Deus tudo é possível!
Diz Francisco retirando-se. Vai pensantivo: Meu Deus! Como a
morte desse rapaz chocou o Pedrinho! Ainda hoje, mais de dois
meses após, ele continua chorando a morte desse filho!... Que coisa
terrível havia acontecido com ele.
Uma semana depois, no seu dia-a-dia, tentando driblar as suas
dificuldades financeiras, Francisco ainda não fez contato com o
amigo da Santa Casa. Vez por outra lembra do que havia prometido a
Pedrinho, mas sua cabeça também está em meio parafuso. Alguém
está lhe chamando ao telefone. É o Reis, um amigo seu proprietário
de uma produtora de vídeo.
- Elias!
- Diz aí Reis!
- Eu peguei um trabalho grande! É um documentário para o grupo
Carlos Lyra. E queria saber se você pode dirigir esse vídeo?
- Lógico! Claro que posso!
Acertam tudo e iniciam as filmagens nas empresas do grupo em
Alagoas. Mais uma semana e eles estão viajando agora até Uberaba.
É lá que se concentram as principais empresas de agropecuária do
país. O Grupo Carlos Lyra também já tem os pés lá.
Uma agropecuária e uma moderna usina de açúcar. Ao total são
cinco empresas do grupo. Duas usinas de açúcar e uma agropecuária
em Alagoas e essas duas em Uberaba. Além de uma empresa de táxi
aéreo também emAlagoas.
Precisam filmar as empresas de lá. Nos escritórios da matriz em
Maceió informaram que haveria alguém no aeroporto de Uberaba
aguardando pela equipe de filmagem. Francisco, um câmera e o
próprio Reis.
472
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
D
esembarcando em Uberaba eles logo vêem um senhor com
um papel na mão escrito VIDEOHOUSE. É a empresa do
Reis. O moço é um motorista de táxi freqüentemente
contratado pelos escritórios do grupo Carlos Lyra em Uberaba para
pegar pessoas no aeroporto.
O táxi se dirige para um hotel na cidade onde a equipe pernoitará.
- Amanhã de manhã eu vou pegar vocês e levar lá na usina! - Explica
o motorista. Um senhor muito simpático. Eles estão indo por uma
longa avenida em direção ao centro da cidade. Ao pararem em um
cruzamento aguardando o sinal, o motorista aponta para a direita e
diz:
- Vejam aquela casa azul lá naquela esquina! Ali é o centro espírita
de Chico Xavier!
Quando ele falou Chico Xavier disparou um despertador na mente
de Francisco. Repentinamente ele lembra-se do amigo Pedro
Camêlo.
- Interessante! Há um amigo meu em Maceió precisando muito de
fazer um contato com Chico Xavier! - E conta o episódio triste que
envolveu o amigo com a morte de seu filho. O motorista de táxi retira
então do bolso um cartão e lhe entrega dizendo:
Olha! Eu não sou espírita! Sou católico. Mas tenho ajudado a muita
gente que vem aqui precisando assistir uma dessas reuniões de
Chico Xavier! Entregue esse cartão a seu amigo e diga a ele que
ligue para mim!
- Terei muito prazer em ajudar ele!
O moço, de uns quarenta e cinco anos, parece ser uma pessoa muito
serena. E responsável.
Francisco lhe agradece pela gentileza dizendo:
- Você não tem idéia do quanto meu amigo vai se sentir bem
recebendo seu cartão. Fique aguardando! A primeira coisa que
473
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
farei ao retornar à Maceió será entregar a ele o seu cartão! Vai ser
um grande presente para ele!
Coincidência?Acaso? Uma ova! Pensa Francisco.
Tem alguém mexendo os “pauzinhos” lá do outro lado! Está muito
contente de poder levar esse verdadeiro presente para o amigo Pedro
Camêlo.
Dormem no hotel e no dia seguinte são levados à usina. O trabalho
em Uberaba levará dois dias.
Sexta-feira eles já estão de volta via São Paulo. Lá Francisco fica,
enquanto o resto da equipe retorna à Maceió. Ele vai se hospedar
com a irmã Malvina, que mora agora no Bom Retiro em São Paulo.
Aproveita para desabafar com ela sobre sua separação eminente. Foi
bom poder conversar com a irmã depois de tanto tempo. Ha anos que
não se viam. Na segunda-feira Francisco está de volta em Maceió.
Ansioso para fazer contato com o amigo Pedro Camêlo. Liga para o
escritório e fala com a secretária.
- O Pedrinho está aí?
- Está sim! Espere ai que eu já passo pra ele!
- Não! Por favor! É uma surpresa que eu tenho pra ele! Sabe se ele
vai sair?
- Não! Hoje Não! Tem muita coisa para ele assinar aqui no
escritório! Sabe como é! Segunda-feira! A semana começando...
Geralmente hoje o expediente dele é interno aqui no escritório. Só
amanhã que ele sai por ai visitando as obras.
- Está bem! Daqui ha pouco estarei por ai! Não diga nada a ele!
Asecretária, que é irmã de Pedro está curiosa:
- Deve ser uma surpresa boa! Pelo jeito que você fala...
- A melhor que ele vai receber em toda a sua vida!
- Eu já estou cheia de curiosidade para saber o que é!
474
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Diz ela, esboçando um sorriso ao telefone.
- Chego já!
Em quinze minutos Francisco chega ao escritório da construtora. A
secretária imediatamente lhe anuncia. Pedro Camêlo o recebe
imediatamente, imaginando que ele esteja trazendo alguma
informação do contador da Santa Casa.
- Olá Pedrinho! Como está? Espero que você tenha um coração bem
forte! Porque o que trago pra você é algo que vai lhe emocionar
muito!
- Que bom Elias! - Pedrinho ainda fala expressando certa tristeza na
voz. A perda do filho lhe deixou marcas muito profundas. Por mais
que se esforce não consegue ser outra pessoa. Só consegue transpirar
sua profunda tristeza.
- Aníme-se! Homem! Deus gosta de pessoas otimistas! Não lhe disse
que Deus existe? Ele parece gostar de você!
- O que é que você tem pra mim Elias! - Pedrinho já se mostra bem
curioso.
- Quer saber onde eu estive esta semana a trabalho?
- Onde Elias? - Pedro tem uma fala bem mansa. E agora com a
tristeza da morte do filho... Mais ainda.
- Em Uberaba! Pedrinho!
- Uberaba Elias! Essa não é a cidade de Chico Xavier?
- Exatamente!
- E o que você foi fazer lá?
- Filmar um documentário para o grupo Carlos Lyra! Foi de
repente! Na verdade eu só me dei conta, quando já estava lá! - E
conta a conversa que teve com o motorista de táxi.
- Ele me entregou esse cartão para lhe trazer!
- Disse para você fazer contato que ele vai desenrolar isso pra você.
Vai agendar o dia que você deverá estar lá para a reunião, tudo
direitinho!
475
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
O
s olhos de Pedrinho parecem se encher de uma nova alegria.
Pela primeira vez, depois de todo esse tempo após a morte
do filho Francisco o vê com um leve sorriso nos lábios.
Quem sabe, ele já está começando a acreditar que Deus realmente
exista.
- Mas que coincidência! Hein Elias!
- Não é coincidência Pedrinho! Coincidências não existem! Existem
conseqüências! Em muitos casos engendradas pela mão de Deus.
Sempre na razão direta do merecimento de uma pessoa. Você tem
esse merecimento! Deus está falando com você através desse
cartão! Está em suas mãos! Agora é com você! Lhe dou mais uma
orientação: Não fique divagando... pensando... no que é e no que
não é possível não! Para Deus tudo é possível! Apenas transmita a
sua esposa com alegria isso! Deixe as coisas acontecerem!
Agradeça a Deus estar merecendo essa oportunidade. Amanhã...
quem pode saber?
Não demorou muito. Menos de um mês depois, Pedro Camêlo liga
para o amigo:
- Elias! Viajo para Uberaba nesta quinta-feira! Está tudo agendado!
O moço do táxi resolveu tudo. Vamos participar de uma das reuniões
de Chico Xavier este sábado à tarde. Eu vou de caminhonete! Minha
esposa não gosta de avião! Vamos com nosso motorista! A viagem
vai ser boa!
Pedro Camêlo tem uma cabine dupla com a qual se locomove entre
as obras em construção e as fazendas. Com o motorista dirigindo vai
se tranqüila a viagem.
- Assim que chegar de volta ligue pra mim! Quero saber como foi! Diz Francisco.
- Não tenha dúvida! Assim que chegar avisarei você!
Chega o fim de semana. Francisco pensa no amigo algumas vezes. O
que estará acontecendo com eles!...
476
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
E
xatamente no sábado à tarde, quando ocorrem as reuniões de
Chico Xavier, ele está pensando em Pedro e na esposa. Mas
como é de seu costume, não se preocupa com isso. Está tudo
nas mãos de Deus. Se ele está levando Pedro Camelo até Uberaba,
porque não lhe daria o que ele mais deseja?
Segunda-feira seguinte Pedro Camêlo já está de volta em Maceió.
Logo no início do expediente liga para Francisco.
- Elias! Pode passar aqui no escritório?
- Agora mesmo Pedrinho! Chego já ai!
Entrando no escritório dele já deu para sentir algo diferente no ar.
Pedro Camêlo está segurando fortemente a sua mão. Ha uma folha
de papel sobre a mesa. Pretende agradecer ao amigo aquela
oportunidade, mas as lágrimas não deixam. Lágrimas agora muito
serenas, sem sinal de sofrimento. Quando consegue falar ele diz:
- Elias! Eu recebi uma mensagem de meu filho! Elias! Eu estou
muito feliz! Eu e minha esposa! Somos as pessoas mais felizes do
mundo! Deus existe mesmo! Elias! Leia este papel! - Pedro tem os
olhos rasos d’agua. Mas dessa vez parece ser lágrimas de
contentamento, de gratidão.
Francisco por sua vez também está fortemente emocionado. Ha uma
energia extraordinária ali entre eles. Francisco já está acostumado a
essas emoções espirituais. O que está se passando ali é muito forte.
Na folha de papel ha uma mensagem escrita à caneta esferográfica.
O texto é simples e maravilhoso ao mesmo tempo. O espírito do filho
se identifica e diz entre outras coisas, para não se preocuparem. Ele
está sendo muito bem assistido lá onde se encontra. Pede para não
julgarem mal o motorista da caçamba. Ele não teve culpa.
477
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
É que alguns familiares de Pedro estavam sugerindo abrir um
processo contra a empresa dona da caçamba, pois no laudo pericial
havia a possibilidade de o motorista ser o culpado do acidente. Até
isso o filho dele esclareceu a fim de que não fizessem qualquer
injustiça.
Pedro explica tudo sobre a reunião. Informa que ao chegarem ao
centro espírita até se assustaram com tanta gente que havia para fazer
contato com Chico Xavier. Cerca de dez ônibus dos mais diferentes
lugares do Brasil estavam parados ali.
Areunião em que participariam seria às 16h00.
O senhor do táxi foi maravilhoso. Tudo correu conforme o previsto.
Ao entrarem no recinto da reunião, um grande salão com cerca de
quatrocentas cadeiras, conta ele, foram instruídos para sentarem
numa das filas de cadeiras bem pelo meio.
Todo o tempo em que ocorreu a reunião ele e a esposa estiveram
orando, conforme as instruções recebidas na entrada. Todas aquelas
pessoas oravam em silêncio. Lá na frente, uma mesa comprida, com
o médium Chico Xavier ao centro e algumas pessoas ao seu redor,
prestando ajuda.
O texto que ele psicografa é muito ilegível para uma pessoa comum
poder ler. Uma mulher, ao seu lado, vai recebendo os papeis e
passando a limpo as mensagens. Ele informa que é um momento
extraordinário aquele. Em que todos ali esperam pela graça de uma
mensagem do além.
- Elias! Foi incrível! - Continua narrando ele emocionado. - Nessa
reunião para cerca de quatrocentas pessoas, só aconteceram seis
comunicações espirituais! - Outra vez ele enche os olhos de lágrima.
- E a do nosso filho foi uma delas! Essa ai!
478
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Repare essa expressão carinhosa que ele usou falando para a mãe
dele! Elias! Só ele tratava a mãe com esse apelido carinhoso!
Ninguém mais ali sabia disso! Só nos dois e ele! Ele esteve lá
conosco Elias! Esteve lá!
O momento é muito forte. Francisco também tem lágrimas nos
olhos. E abraça o amigo cumprimentando-o:
- Fico muito feliz por você meu amigo! Fico feliz e agradeço a Deus
por ter me usado como instrumento para Sua bondade e
misericórdia!
Depois de alguns minutos Francisco vai embora. Leva consigo uma
sensação maravilhosa no coração muito leve. Sentido uma energia
irradiada com a sabedoria de Deus.
Sua intuição lhe dizia que naquele momento o jovem filho de Pedro
Camêlo provavelmente também esteve ali com eles. Que
maravilhoso! É o poder de Deus! Certamente que agiu ali pelas mãos
de seus espíritos iluminados, Bem-feitores espirituais, cujo trabalho
é levar um pouco de conforto aos que estão em sofrimento e que
clamam pela bondade do Pai.
Esse é mais um capítulo definitivamente escrito em sua alma para
nunca mais esquecer. Algo grandioso havia acontecido. O
testemunho da existência de Deus está como uma comprovação para
Pedro Camêlo e sua família. Independente da religião que queiram
praticar.
A primeira vez que teve a idéia de escrever um livro de memórias, as
suas memórias, um dos capítulos que logo lhe veio à mente foi esse
episódio com o amigo Pedro Camêlo. A providência divina sabe
todos os caminhos.
479
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
A
sugestão de Sandra lhe ficara na cabeça. Ir embora de volta
para Recife. Até que seria uma boa, se houvesse como.
Francisco já absorveu a idéia luminosa de agradecer a Deus
até mesmo os momentos de sofrimento. Pois sabe que é com eles que
seu espírito vai progredindo. Consciente de que o Pai não nos dá
nenhum fardo tão pesado que não possamos carregar.
Faz parte da naturea humana experimentar em sofrimento para
poder se elevar. Exemplo melhor como o do próprio Cristo, não há.
Na cruz Ele deixou expressa a mensagem: preparem-se para sofrer!
Esse é o único caminho para a elevação de cada um!
Consciente dessas cousas Francisco se mostra pesaroso sempre que
encontra alguém completamente ignorante das Leis espirituais,
proferindo blasfêmias sobre o que acontece com os seres humanos.
Não faz muito tempo, enquanto escreve estas páginas, ele ouve
comentários muito dolorosos sobre o efeito do Tsunami, um furacão
que atingiu um país bem pobre da Ásia provocando a morte de
milhares de pessoas, entre adultos, velhos e crianças. Onde está
Deus que permite uma coisa dessas?
Bradam os materialistas, ignorantes desconhecedores das Leis de
Expiação. Leis de carma coletivo. Precisariam se inteirar melhor
lendo obras espiritualistas.
Pois negam a si mesmos o direito de evoluir. De conhecer algo sobre
os instrumentos da Natureza, usados em conformidade com as Leis
de Deus.
Pessoas que ainda não se acostumaram ao cenário infalível da morte.
E que por isso transpiram sua desfaçatez em pensamentos
endurecidos, que nada contribuem para sua elevação espiritual.
Estão assinando seu próprio atestado de sofrimento. Pois é a dor que
480
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
nos ensina! Quando? Em qualquer tempo! A eternidade não tem
pressa. E lá, o tempo não parece ser igual ao que vivemos na terra.
Sujeito aos mesmos princípios de existencialidade. Embora já
saibamos que são inúmeras as dimensões, e que em cada uma delas
certamente ha vida.
Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Quando?
Porquê? A maioria não parece interessada nessas respostas.
Enquanto isso blasfemam, desejosas de dirigir o mundo conforme a
sua vontade. E ter Deus como se fosse seu empregado.
Ha delas que nem sabem pedir. Que nem acreditam na divindade.
Muito menos agradecer. Essas? São as que menos têm a dar. Pois
ninguém pode dar o que não tem em si mesmo. Mas o Pai sempre
ouve a todos. Pedi e EU vos darei! Assim está escrito. É fácil saber se
alguém está no rol dos ignorantes. Basta perguntar-lhe se tem medo
da morte. Quem teme a morte não sabe nada do que estamos
discutindo.
Mas este não é um livro doutrinário ou teosófico. Ha outras coisas
com que nos preocuparmos agora. A irmã Marina reside em Recife.
Ele vê uma possibilidade. Pelo menos teria onde ficar. Mas e
trabalho? Tem um reconhecimento muito grande por Recife, que o
acolheu e o profissionalizou. Mas os tempos são outros. Dezesseis
anos se passou desde que se transferiu paraAlagoas.
Os espaços profissionais já não são os mesmos. As pessoas já são
outras nos postos de comando em seu mercado de trabalho. Mas ha
uma! Um velho amigo dos tempos da Interfilmes. O Zezé.
Proprietário de um estúdio de gravação de áudio em Recife. O Studio
Z.
Qualquer dia vai lhe fazer uma visita. Sondar o mercado. Quem sabe
ele possa pelo menos lhe dar alguma orientação. Fazer uma
481
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
indicação. Apontar um caminho. Quem sabe, Deus poderá agir
através dele. Não é assim que ELE se comunica conosco. Sua
linguagem vem sempre em forma de resultados. Não tem
verbalização direta. O dialeto de Deus é a forma. O conteúdo. Assim
ELE parece se expressar a todos nós. Nem parece gostar de
compromisso com hora marcada.
Pelo menos na forma como compreendemos.
As coisas sempre acontecem de maneira mais ou menos inesperada
para nós. O relógio do Criador parece não ter nada haver com os
nossos ponteiros.
Portanto, o melhor talvez, seja entregarmos a ELE nosso pedido e
esquecermos um pouco. Em caso de merecimento o resultado
sempre virá.
Então, um novo “acaso” entra em cena. Todas as tardinhas Francisco
vai dar sua caminhada pelo calçadão da praia em Maceió. Volta para
casa, distante oitocentos metros da praia, por volta das 18h00. Quase
sempre Sandra ainda está no salão de beleza ali perto na mesma
avenida Jatiúca, onde moram, no apartamento que ele comprara
alguns anos antes.
A caminhada pela praia dá lugar a muitos devaneios. Francisco está
sempre só em suas caminhadas. Ele e seus pensamentos. Tem
conversado muito com Deus nessas caminhadas. Fala de sua vida, de
como deseja que Deus lhe mostre novos horizontes. Ele tem muita
fé. Confessa em suas conversas com ELE, compreender que se ainda
não lhe surgiu uma possibilidade de mudança significativa em sua
vida é porque ainda não está merecedor.
Confessa, confia e espera. Que seu merecimento possa ser
apressado. Gostaria muito de ir embora de volta para Recife. Mas
está inseguro. Como fazer isso? Está cada vez mais convencido de
que uma visita ao amigo Zezé seria a solução mais viável. Já está
planejando mentalmente a viagem. E continua pedindo que Deus
482
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
esteja com ele. Que tudo possa se amainar em sua vida. Pede também
pela tranqüilidade dos filhos. E até de Sandra também. Que ao sair de
sua vida ela possa conduzir a sua em perfeito equilíbrio.
São quase dezoito horas quando está chegando de volta ao
apartamento.
Acaba de entrar. Mas antes de ir tomar banho, fica um pouco na
varanda para relaxar o corpo suado. Ele vê a imagem colorida muito
bonita do entardecer sobre Maceió. O céu tingido de um vermelho
intenso. O sol já se foi. Deixando atrás de si apenas aquela linha
avermelhada no horizonte. O telefone está tocando! Ele vai atender.
- Alô!
- É da residência de Francisco Elias? - Pergunta uma voz feminina
muito simpática.
- É! Sim! Quem é?
- Ele está? - Insiste a voz.
- É ele quem está falando!
- Oi! Elias! Que bom! É Verinha!
- Verinha! Que Verinha? - Em tantos anos passados não lhe está
sendo fácil identificar a voz dessa Verinha.
- Verinha! Cunhada de Fernando Freitas! Irmã de Lurdinha!
A cortina cai repentinamente na mente de Francisco. Em fração de
segundos ele viaja no tempo até aqueles idos de 1972-73, quando
conhecera a jovem Verinha, irmã de Lurdinha, noiva do jovem
cadete daAeronáutica, Mário.
Alembrança veio imediata!
- Oi Verinha! Mas que surpresa! Como vai você? - Francisco está
pensando que Verinha está falando de São Paulo. A última vez que a
viu foi em seu apartamento nas proximidades do Aeroporto de
Congonhas, onde residia com o esposo, então piloto da Vasp. Ai já
em 1975-76. Naquela viagem com Fernando e Lurdinha à Curitiba,
483
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
eles passaram rapidamente por lá.
- Eu estou em Recife Elias! Já faz algum tempo que eu moro aqui!
- E o Mário?
- Ah! Elias! Eu estou separada do Mário já faz mais de um ano.
Vim para Recife para perto da minha família precisando de um
tratamento de saúde. Mas me fale de você!
- Que coincidência Verinha!
Eu também estou me separando da Sandra! Não vai demorar muito.
Eu já estou até pensando em voltar a morar em Recife!
- Ah! Que pena! Elias! Mas a vida é assim mesmo! Essas coisas
acontecem! E como é que você está?
Verinha já tinha experiência com o trauma da separação. Sua
abordagem sobre o estado emocional do amigo faz sentido. Ela já
passou na pele a mesma situação. Naquele momento ela não poderia
avaliar quanto está sendo importante esse seu contato. É tudo que
Francisco precisa nesse momento. Uma palavra amiga. Alguém que
se interessasse por suas emoções.
Eles conversam bastante ao telefone e prometem novos contatos
seguintes para continuar o papo. Esse contato com Verinha está
fazendo um bem enorme a Francisco.
Uma curiosidade já lhe assalta a mente: isso não é coincidência!
Como pode ser! Ela ligar exato agora, que ele está precisando tanto
de um papo amigo! Vai tentar esclarecer isso melhor no contato com
ela no dia seguinte.
Outra vez Francisco está fazendo sua caminhada. Aproveita e liga
para Verinha.
- Oi Verinha! É Elias!
- Que Ótimo! Como está?
- Na minha caminhada diária! Verinha eu queria saber...
484
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Como você me contatou? Como conseguiu meu telefone?
- Eu perguntei a Fernando se ele tinha seu telefone, então ele me
deu!
- Sim, mas porquê você se lembrou de ligar para mim?
- Não sei Elias! Me deu uma vontade muito grande de ligar para
você! Foi isso! Não sei explicar!... Como não tinha o seu telefone!...
Pedi a Fernando! Fiz errado?
- Não Verinha! Muito pelo contrário! Você não tem idéia do bem que
me fez o seu telefonema! Quem sabe um dia a gente possa conversar
mais sobre isso. Acho incrível, que depois de tantos anos sem nos
ver, sem nos falar, você de repente tenha tido necessidade de falar
comigo!
Isso que eu gostaria de entender melhor!
- Você vem a Recife quando?
- Acho que vou na próxima semana!
- Pois então! Faça contato!
Seria muito bom a gente conversar!...
O papo dos dois vai longe. Nos dias seguintes eles continuam se
falando ao telefone. Francisco continua muito intrigado com aquela
“coincidência” do telefonema dela. Será que... Melhor esclarecer
isso depois.
Logo no início da semana seguinte ele liga para Fernando
informando que vai a Recife fazer um contato com o Zezé e
aproveita para informar os contatos que está mantendo com Verinha,
confirmando que foi ele mesmo quem deu a ela o seu telefone.
- Elias! Tem uma coisa que eu quero lhe explicar!
- Verinha não está bem! Inclusive ela foi internada hoje de manhã! Essa notícia desnorteia Francisco.
- Como assim Fernando?
Ela me pareceu tão bem ao telefone!...
485
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Pois é! Mas ela está passando por um momento difícil. Ela está
recebendo tratamento numa clínica de psiquiatria.
Esta é uma notícia bem constrangedora para Francisco.
Ele não sentira nada de anormal nos telefonemas de Verinha. Como
podia ser isso?
Fernando lhe informa o nome da clínica em que ela está internada,
sob efeito de medicação controlada, e tudo mais.
Francisco está muito surpreso com tudo aquilo. Nem quer acreditar
no que acaba de ouvir. Pensa muitas coisas.
Será que Fernando estaria tentando dificultar algum relacionamento
dele com Verinha? O que estaria havendo realmente? Muitas
indagações.
De qualquer forma já planejara a viagem a Recife e informa a
Fernando que está indo dois dias depois.
Vai ter oportunidade de esclarecer todas as suas dúvidas
conversando com ele e Lurdinha.
Já em Recife faz uma visita aos dois. Eles confirmam a internação de
Verinha. Dão mais detalhes sobre o problema de saúde dela,
agravado após a separação. Foi por isso que ela veio para Recife.
Dizem eles.Após a separação a saúde dela se agravara.
- Mas ela já vinha tendo problemas de desequilíbrio emocional
antes da separação? - Francisco deseja saber mais detalhes.
- O afastamento dela de junto da família foi exigida pelo Mário
exatamente por isso! Segundo ele, não havia mais condições de ela
permanecer com a família. Estava precisando de cuidados médicos.
- Explica Fernando.
Pelo menos é essa a versão que eles sabem vinda do próprio Mário.
Os seus filhos, uma mocinha e um rapaz ainda na puberdade, ficaram
em São Paulo na companhia do pai.
486
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
P
ela versão do Mário, o caso da Verinha não tinha retorno. O
casamento deles, portanto, estava realmente desfeito.
Fernando explica que esse já é o segundo caso de
internamento dela desde que voltou para Recife. Lurdinha se mostra
muito preocupada com a saúde da irmã.
Sabendo o endereço da clínica onde ela está internada, no dia
seguinte Francisco acompanhado de Bosco, esposo da sua irmã
Marina, vai à clínica levar um buquê de flores para Verinha. Deseja
externar seus préstimos para que ela se restabeleça logo.
Na clínica informam que ela está sob ação de sedativos e não pode
receber visitas. Assim ele deixa o buquê de flores para ser entregue a
ela. Ha um cartão. E nele Francisco transmite sua mensagem de
otimismo para Verinha.
No sábado Francisco encontra-se com o amigo Zezé no Studio Z.
Conversam sobre as condições do mercado para o locutor Elias.
Zezé explica que muita coisa mudou. O mercado se modificou
radicalmente. As possibilidades são muito escassas. Estão
conversando quando chega a visita de uma pessoa que Zezé já
aguardava para uma reunião aquela manhã. É o Edvaldo Morais, um
radialista ex-companheiro de Francisco nos tempos da Rádio Jornal
do Commercio. Que vai ao estúdio fechar uma negociação com Zezé
para produzir lá os programas de rádio da campanha política do
PMDB e os partidos alinhados, para a primeira eleição do
Governador Jarbas Vasconcelos.
- Olá Francisco Elias! Quanto Tempo! Você ainda está em Maceió? Todos os companheiros daqueles tempos sabem que Francisco Elias
mudou-se para Alagoas. Elias dá todas as informações de sua vida
profissional em Maceió e agora, de sua pretensão em voltar para
Recife. O Edvaldo tem uma idéia:
- Elias você poderia participar do nosso grupo de trabalho nessa
487
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
campanha? Lembra daquela dupla de noticiaristas que você fazia
com o Fernando na Rádio Jornal?
Edvaldo deseja utilizar os dois locutores para narrar os programas de
rádio da campanha política, no mesmo estilo dinâmico que eles
usavam no noticiário do rádio naquele tempo. Segundo ele, um estilo
que ninguém havia conseguido repetir, depois deles.
O Fernando Freitas já estava sendo sondado também para participar
da campanha e o acerto foi fechado imediatamente com Francisco
também. Ali mesmo no Studio Z. A produção da campanha
começaria uma semana depois. Seriam três meses de trabalho, em
regime full time. Só o tempo de Francisco voltar a Maceió e
providenciar sua mudança para Recife.
Francisco conversa com a irmã Marina, que já estivera em Maceió
acompanhada de Bosco, tentando ver se era possível que Sandra
reconsiderasse a decisão da separação. Já que fora dela a iniciativa
de pedir a separação.
- Marina você poderia me acolher aqui se eu precisar passar uns
tempos em Recife? - Marina recebe o irmão com todo gosto.
O tempo está dando oportunidade de ressarcimento. Ha tempos, foi
Francisco que a acolheu em Recife no começo de sua vida. Agora é
ela que o recebe.
Francisco informa sobre o trabalho na campanha política e sua
viagem a Maceió para fazer a mudança.
Coincidência? Acaso? O que é isso? Pensa ele na viagem de volta a
Maceió. O fato é que, da noite para o dia, estão acontecendo
mudanças significativas na sua vida.
A “helicoidal” que se mantinha em baixa ha bastante tempo, agora
está de novo se movendo para cima.
O amigo Zezé também está interessado na permanência de
Francisco na gravadora, após descobrir que ele domina bem o
488
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
trabalho em computadores. Existem alguns na gravadora. Mas o
Zezé não manja nada de informática. A assessoria de Elias será
importante para botar o Studio Z na era da informática.
Francisco está de volta em casa informando a Sandra que vai embora
para Recife.
- E nossas coisas como vão ficar? - Sandra está apreensiva em
relação a isso. Ha apenas o apartamento conseguido com um
financiamento da Caixa Econômica, um automóvel Monza já
bastante usado e duas linhas telefônicas, que nesse tempo é um bom
patrimônio.
- Sandra! Você viveu comigo trinta anos, mas não me conhece! Não
se preocupe! As únicas coisas que pretendo levar daqui são minhas
roupas e esse computador que é meu instrumento de trabalho. O
resto pode ficar ai!
Além do mais, Ramatís, na Faculdade, que é longe, precisa do
automóvel. Quanto ao apartamento, ele já trabalha e ela também tem
sua renda com o salão de beleza. Podem continuar pagando o
financiamento, que é bem barato. Precisam dessa tranqüilidade. A
vida está mostrando novos caminhos para Francisco. Ele vai nesse
rumo. Não ha o que pensar.
Uma semana depois está em Recife para sua nova jornada em terras
pernambucanas. Marina reside em Boa viagem. Francisco vai para a
gravadora e só volta à noite. Quinze dias após o início da campanha
política, já estão sendo pagos 50% do valor do contrato de locutor da
campanha. Francisco já pode comprar um novo automóvel. Usado.
Mas seminovo. É necessário. Recife é uma cidade bem grande.
Todos os dias Francisco está em contato com o amigo Fernando.
Hoje ele tem notícias de Verinha.
- Ela está lá em casa se restabelecendo. Ainda tomando os
medicamentos controlados. Mas está se restabelecendo bem.
489
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Está muito abatida. Mas é assim mesmo. Esses remédios são bem
fortes!
- Eu gostaria muito de ver Verinha! - Diz Francisco.
- Pois passa lá em casa hoje à noite! Tomamos uns whiskys! E você
vai poder vê-la!
À noite Francisco está lá. O reencontro com Lurdinha é ótimo!
Quantas lembranças a rememorar! - Verinha está dormindo! - Diz
Lurdinha. - Tomou a medicação que bota logo ela para dormir. O
Papo continua.
Ha muitos assuntos para serem atualizados. Eles querem saber
detalhes de sua separação com Sandra. Falam sobre os filhos. Sobre
muitas coisas.
Já pelas 11h00 da noite Verinha aparece. Está muito abatida.
Francisco tem então a oportunidade de abraçá-la e transmitir a ela o
quanto deseja que ela se restabeleça.
- Elias! Muito obrigado pelas flores que você me levou! Foi incrível!
Eu acordei e vi as flores sobre a mesinha no quarto. E chamei a
enfermeira pra saber quem havia enviado. Só então vi o seu cartão!
Fiquei muito contente com as flores. Mais uma vez muito obrigado!
Em seguida Verinha volta para se deitar. Está muito frágil com toda a
medicação que lhe é administrada. Francisco passa muita força para
ela. Ela precisa se esforçar para retornar ao seu equilíbrio.
Já é tarde da noite e Francisco agora pode ir embora. Afinal estava ali
também pela expectativa de poder vê-la.
Voltando para casa ele repassa as emoções daquela noite. Percebe
algo em seu íntimo que lhe parece muito especial. Um sentimento
totalmente diferenciado em relação á Verinha. Foi ela, a pessoa que
lhe estendeu a mão através daquele telefonema inesperado em
Maceió. E pelo que percebe, agora é ela quem está precisando muito
dele.
490
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
É Lurdinha, irmã dela, quem lhe posiciona melhor esse raciocínio no
próximo encontro. Francisco já freqüenta agora mais vezes a casa de
Fernando. Numa dessas ocasiões, aproveitando que Verinha não está
presente, Lurdinha conversa com ele:
- Elias! Eu estou impressionada com o bem que você está fazendo a
Verinha nessa recuperação dela. Muito obrigado meu irmão! Eu
não sei o que você tanto conversa com ela.
- Mas sei que está fazendo um efeito muito bom a ela. O que vocês
tanto conversam?
- Coisas normais Lurdinha! O que posso lhe garantir é que hoje eu
me sinto bem mais preparado para uma situação dessa.
Sou muito grato a Verinha! Ela me tirou daquele momento
tormentoso pre-separação lá em Maceió. Nunca vou esquecer o fato
de ela procurar me ligar naquele momento. Acho que Deus botou ela
em meu caminho naquele dia. Como se explica?
Uma pessoa que não tinha contato comigo ha tantos anos, se
interessar em pedir o meu telefone e ligar?
Ela disse apenas que havia sentido muita vontade de falar comigo
naquele dia e que por isso pediu meu telefone a Fernando. Mas nós
sabemos não é Lurdinha? Que isso deve ter tido a mão de Deus. Eu
já vinha pedindo a ajuda DELE. Para que me acontecesse alguma
coisa nova.
E acho que isso veio através de Verinha! Talvez estivesse faltando a
motivação que veio através dela, para eu me decidir vir a Recife.
Por isso tenho por ela uma gratidão muito grande. E tudo que eu
puder fazer para a recuperação dela só vai me deixar muito feliz.
Deus sabia que tanto eu quanto ela estávamos precisando de um
certo alinhamento em nossas vidas. Precisando um do outro!
Lurdinha concorda com esse raciocínio.
Verinha continua seu tratamento de recuperação.
491
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Outras vezes os dois vão estar juntos. Vão passear. Vão a uma
lanchonete. Vão ao Shopping. Saiem para dançar. A companhia dela
lhe faz muito bem.
Sempre que pode ele procura estar com ela. Sua recuperação é
visível. Isso o deixa muito feliz. Está fazendo algo por alguém que
precisa dele.
Ao mesmo tempo está acontecendo algo difícil de evitar. Francisco
sente-se atraído pela mulher Verinha. Mas sua consciência está
muito crítica, mais sintonizada com o fato de ajudá-la a se reerguer.
Até procura sufocar emoções e sentimentos de ordem relacional
homem/mulher, que possam vir a conturbar esse processo
prioritário, que em sua lógica, é a plena recuperação dela.
Relacionam-se como se fossem namorados. Mas sem qualquer
avanço da parte dele. Já houve até momento em que ela precisou
desabafar:
- Esse nosso caso é um amor platônico! - O desabafo pegou
Francisco de surpresa.
Como responder a ela? Adoraria poder dizer que ela o atrai muito
como mulher. Mas que em face de sua problemática de saúde ele
jamais se atreveria a manter com ela um relacionamento que não
passasse pela aprovação de sua própria consciência.
Fica se imaginando como seria um relacionamento nesse nível, com
uma mulher que está em processo de restabelecimento através de
medicação controlada...
E se ela ainda não gozasse da plenitude de sua consciência? Essa
relação não seria algo totalmente sadio. Será que mereceria a
aprovação de Deus? ELE os aproximara por afinidades comuns. É o
que parecia. Mas daí a um passo do qual viessem a se arrepender, a
distância era bem pequena.
492
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Ele prefere não correr esse risco. Esse nosso caso é um amor
platônico! A frase ainda soa acusatória em seus ouvidos. Como uma
provocação. Uma forma de ferir seu ego masculino. Ele procura
compreendê-la e argumenta qualquer coisa para sair daquela saia
justa. Prefere guardar em seu coração o sentimento belo que nutre
por ela, de amparo, de ajuda, de contribuição, e de paixão também,
porquê não?
Mas de forma que sua amizade nunca possa ser maculada. Algum
tempo mais tarde, ambos concluem que é melhor continuarem dois
bons amigos. Amigos inesquecíveis! Marcados pelo destino em
rotas paralelas! Mas acima de tudo, bons amigos. No máximo grau
que pode haver sadiamente entre um homem e uma mulher.
Por outro lado Francisco está vivendo suas necessidades
emocionais, o que é perfeitamente natural.
Já é tempo de aparecer alguém em sua vida. Uma namorada por
inteiro.Algum relacionamento mais consistente.
Ele acaba de repassar em seus pensamentos do dia-a-dia, uma
experiência vivida tempos atrás, ainda com a esposa Sandra.
Os relacionamentos mantidos fora do casamento o haviam marcado
com uma preocupação consistente: será que ele sofria de algum
desequilíbrio psicológico, que o incapacitara de se manter fiel à
esposa, mesmo diante de seus descontentamentos? Não seria essa a
obrigação de um homem em perfeito equilíbrio?
Francisco sempre foi uma pessoa de iniciativas muito fortes. Sempre
que era necessário. Pensando nisso, tão logo encerrou seu caso com
Rose, ele se confinou, por iniciativa própria numa posição em que,
por três anos seguidos, não conheceu qualquer outra mulher. Poucos
acreditariam que alguém como ele fosse capaz de tamanho
sacrifício. Já que em casa, ha muito tempo a situação é zero a zero.
Mas ele o fez. Três anos sem mulher. O que isso lhe provara?
493
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Em primeiro lugar, que seu caso com Sandra não tinha mais
concerto. Haviam se distanciado tanto floresta adentro, que não se
ouviam mais. Do seus pontos não haveria mais retorno. Caminhos
paralelos que se transformaram em perpendiculares.
Então agora, já morando em Recife, Francisco está contente por se
desobrigar desse compromisso psicológico. Poderia se relacionar
com outra mulher, sim! Sem qualquer sentimento de culpa. Mas
nesse momento não poderia ser Verinha.
Que pena! Mas a situação psicológica dela não lhe permitia. Haveria
de buscar esse conforto humano em outra pessoa.
E acontece de reencontrar alguém, com quem jamais imaginara
manter um relacionamento. É a Eli. Ex-esposa de Eudes, um amigo
dos velhos tempos em Recife. Eli também está separada do esposo.
Tem três filhas, uma já casada. Que acaba de lhe dar uma neta.
Por duas vezes Eli, naqueles tempos, amiga íntima de Sandra,
estivera em visita a eles em Maceió. Jamais passaria pela cabeça de
Francisco que um dia ela estaria em seu caminho.
Também profundamente carente de afetividade.
Há um clube-restaurante muito freqüentado pela classe mais
madura, no bairro da Torre em Recife. É a famosa Catedral da
Seresta. É lá que eles vão se reencontrar.
A Eli adora dançar. A Catedral da Seresta tem música ao vivo.
Conjuntos e orquestras tocam seus bailes. Quase sempre lotados.
E existe nesse ambiente algumas características bem peculiares.
Bailes acontecem de quarta a domingo. A quinta-feira é o Baile das
Desquitadas. As mulheres é quem tiram os homens para dançar. Não
pode haver recusa. No caso de alguma reclamação o cavalheiro é
convidado a se retirar.
Francisco prefere os bailes mais tradicionais. Sábado é o dia de sua
preferência. Ele está entrando e vai direto ao banheiro.
494
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Pouca gente já havia entrado até este momento. São pouco mais das
22h00. Ao passar na direção do sanitário ele tem a impressão de ter
visto uma cara conhecida entre três amigas numa mesa. Voltando do
Wather Close ele vê perfeitamente a figura que lhe chamara a
atenção. É mesmo ela! Francisco ainda não sabia que ela havia se
separado também.
- É mesmo você Elieuza?
- Elias! Mas que surpresa! Como Vai?
Os dois se abraçam e se cumprimentam. Duas almas carentes de
afetividade. Ela apresenta-lhe as duas amigas.
- Você está aqui com alguém? - Pergunta Eli.
- Não! Estou sozinho!
Às vezes Bosco e Marina o acompanham para dançar na Catedral da
Seresta, mas este sábado ele está só.
- Porquê não senta com a gente! Você vem sempre aqui?
- Muito freqüentemente! Gosto de vir aos sábados.
Está começando ali um relacionamento demorado. Duraria quatro
anos.
Algo bem informal. Mas consistente. Namoram bastante, e logo
estão mantendo um relacionamento normal. Ela está separada e
reside em uma casa no bairro de Caxangá, um tanto distante de Boa
Viagem.
Mas é um relacionamento prático. Somente se encontram nos fins de
semana. Cada um vive em seu próprio lugar. Às vezes ela vai para
Boa Viagem para ficar com ele. Outros fins de semana ele vai para a
casa dela em Caxangá.
É assim que eles negociam a trajetória do tempo.
495
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
C
erto dia Francisco está na gravadora do Zezé e o telefone toca
chamando por ele.
Que surpresa! É Maria das Vitórias! Ela está no Aeroporto de Recife
aguardando uma conexão para Campina Grande. A família do
esposo é de Patos, na Paraíba, bem próximo de Caicó. Ela viaja só.
Está indo para lá.
- Mas Vitória! Que surpresa legal!
Quanto tempo você vai permanecer no Aeroporto?
- Uma hora e meia, mais ou menos!
- Me aguarde aí! Vou rever você!
Uma hora depois estão se reencontrando no saguão do aeroporto. O
trânsito não o permitiu chegar antes. Só têm quinze minutos. Um
abraço inesquecível e bastante emocional. Principalmente da parte
dela. Mas Francisco também está enternecido com aquele
reencontro.
O reencontro foi muito fugaz. Já estão chamando para o reembarque.
Vitória se vai.
Francisco está de volta ao seu dia-a-dia. Passam-se alguns meses. E
acontece um fato novo.
Maria das Vitórias, hoje mãe de três filhos, todos homens, já adultos,
também está vivendo um momento complicado em seu casamento.
O marido, um político de expressão no Acre. Até onde Vitória sabe,
mantém mais duas outras mulheres.
Ela está decidida pela separação.
Ao longo do tempo sempre manteve-se informada sobre a vida de
Chiquinho, através das informações que periodicamente recebe das
irmãs dele, suas amigas de longas datas, principalmente Malvina,
com quem se corresponde freqüentemente.
496
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
N
este momento ela já sabe que ele não vive mais com Sandra e
que está com Marina em Recife. Aproveitando que os filhos
desejam muito fazer uma viajem de Brasília até Recife
vindo de automóvel, resolve vir também com o pretexto de visitar a
amiga Marina. No fundo, no fundo, está querendo um novo contato
com Chiquinho.
Quem sabe, ele estaria receptivo para reatar com ela aquele caso tão
antigo, e se for o caso, ela está disposta a vir viver com ele. Nunca
esquecera aquele grande amor antigo.
Vai ao apartamento de Marina.
É recepcionada festivamente.
Francisco foi avisado e também está presente. Ela está muito atenta
aos sinais vindos dele. Mas Francisco está envolvido com outra
mulher nesse momento. A Eli. Com quem ele acredita que
permanecerá. E não abre para Vitória o espaço que ela desejava
encontrar.
Francisco tem uma característica peculiar. Nunca conseguiu se
relacionar com mais de uma mulher ao mesmo tempo. Seus
sentimentos não são fúteis. E os mantém sob controle.
Enquanto viveu com Sandra, suas relações fora do casamento
mantinham-se em regime de número 2 única de cada vez. Agora tem
a Eli. Não tem motivos para decepcioná-la.
Portanto Vitória vai retornar sem esperança de se resolver com ele.
Francisco continua acreditando no seu relacionamento com Eli. Às
vezes é bem divertido.
Mas ha também momentos indesejáveis.
Ele acaba de descobrir algo interessante. Parece comum, que o
relacionamento com mulheres já separadas possa ser complicado,
em face de alguns vícios comportamentais trazidos de uma outra
relação anterior.
Chegando em certa ocasião de precisar argumentar:
497
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
- Eli! Você não vive mais com seu ex-marido! Eu sou uma outra
pessoa! Sou diferente dele!...
Coisas desse tipo minam muito facilmente uma relação. E é isso o
que está acontecendo com eles.
São consideráveis as diferenças de personalidade, culturais também,
que impedem a continuidade do relacionamento entre eles.
Três anos depois, após alguns desconfortos relacionais entre ambos,
eles resolvem se afastar definitivamente.
As próprias filhas dela, que conheciam Elias desde seus tempos de
infância, e desejavam ver a mãe em um relacionamento equilibrado,
percebendo suas boas intenções em relação a Eli, chegam a advertila:
- Mamãe! A senhora vai perder Elias!
O resultado não foi outro.
Vão ser apenas bons amigos. Francisco outra vez está só.
Acontece a terceira gravidez de Elissandra. Francisco já não mora
mais em Maceió. Ela ainda não fez a ultra-sonografia. Primeiro liga
para ele e lhe comunica por telefone. E essa é a primeira vez em que o
fenômeno da premonição ocorre também por telefone. E de longa
distância. Sem estar perto dela, sem colocar a mão ou olhar para a
barriga dela, ele tem mesmo assim novamente aquela certeza
absoluta.
- É mulher minha filha! Agora é uma menina!
- É mesmo! Painho?
Ela parece estar emocionada. Francisco também, por sua vez. Pela
primeira vez consegue ouvir que é uma neta que vai receber.
Os exames confirmam mais tarde.
498
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Uma criança do sexo feminino.
Para grande satisfação de toda a família.
Aquilo era uma forma eloqüente de lhe dizerem que ele havia
recebido realmente esse acréscimo. Pois é assim que ele enxerga
essa condição para-normal de poder saber ainda no feto, o sexo da
criança.
Esse fenômeno lhe ocorreu também algumas vezes com pessoas
estranhas à sua família. Ele mantém a convicção, de que aquilo que
aconteceu por ocasião do nascimento de Ramatís foi algo muito
especial. O elemento detonador. Nunca isso havia acontecido antes
do nascimento dele. Fosse quem fosse que estivera com ele naquela
ocasião passando-lhe aquela certeza tão extraordinária dos filhos
gêmeos e que um deles estava morto, deixou impresso em seu ser
essa condição para-normal.
Ele só lamenta não poder saber o significado disso.
Porquê? O que a Inteligência Espiritual vem tentando lhe dizer com
essa para-normalidade?
Ele até tem pensado: de que forma poderia servir, com esse recurso
tão especial?
Sem resposta plausível para isso, decide permanecer em alerta, mas
condicionado a viver sua vida normal.
Deve haver uma razão para isso. Quem sabe... Um dia ele ainda
descubra! Às vezes, em suas reflexões mais acentuadas Francisco
forçosamente se pergunta: Será que minha vida foi marcada com
algum propósito específico? Como gostaria de saber! Mas quanto a
isso a única luz que recebe é: Continue vivendo sua vida! Deixe o
resto por conta do Criador! No momento apropriado tudo se
esclarecerá!
Durante seis anos de seu retorno em Recife, além da assessoria que
dá a Zezé no setor de informática do Studio Z, e alguns trabalhos de
499
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
locução comercial, Francisco ainda participa de mais duas
campanhas políticas.
Morando em Recife, ele vai mensalmente à Maceió.
Ha um cliente deixado lá, com quatro lojas de grifes no setor de
móveis, que ha mais de quinze anos só faz a sua comunicação de
televisão com a assessoria de Francisco. De fato, é esse cliente que o
mantém financeiramente. O que recebe no Studio de Zezé dá apenas
para a gasolina do automóvel e algumas despesas menores. Ele
também ajuda nas despesas no apartamento da irmã Marina. Que
agora já avisou! Vai se aposentar da Caixa Econômica e pretende
fixar residência definitiva em Natal. Já estão construindo uma casa
lá.
Após passarem juntos as festividades do século 2000 em Boa
Viagem, Marina e Bosco vão residir definitivamente em Natal.
Francisco ainda permanece por mais dois anos sozinho em Recife.
Exatamente o tempo em que encerra o relacionamento com Eli.
Maria das Vitórias é persistente. Já está informada de que ele está
novamente só. E faz contato por telefone, cujo número lhe foi
passado pela irmã Malvina. Têm muitos instantes de compensadoras
lembranças. As emoções de ambos estão se realinhando finalmente.
Enfim, o coração de Francisco está disponível para ela.
São muitos os contatos por telefone. Passam a acreditar que haja
uma chance para eles. Acertam para se reencontrarem uma semana
depois em Natal, para onde ela iria em visita a seus familiares lá
existentes.
Francisco e Vitória se reencontram na residência de Malvina. Um
reencontro histórico.
Emoções reprimidas por tantos anos! Tudo vem à tona com
500
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
velocidade incrível. Parece que ambos ainda são os mesmos jovens
da década de 1960 em Caicó. Vitória devia guardar no mais íntimo
de seu ser um sentimento retardado. E agora podiam extravasar.
Iniciam então um relacionamento cercado de dificuldades.
Pouco tempo depois, Malvina está em Recife tentando resolver um
problema do irmão Pedro, que busca documentos para requerer sua
aposentadoria da Aeronáutica. Ela vai estar com Francisco no
endereço onde ele mora em Boa Viagem. Um pequeno suíte de
quarto e banheiro. Ela toma a iniciativa e sugere:
- Porquê você não vai morar também em Natal? Fica aqui sozinho!
A companhia de Francisco é seu computador. Navegar na internet,
trabalhar suas músicas de karaokê no computador... É assim que ele
ocupa seu tempo, quando não está em Maceió à trabalho.
- Vamos lá pra casa! Morar comigo e Danilo!
Ele decide então seguir o conselho dela. Recife já não o diverte mais.
A cidade tornou-se muito insegura. Assaltos freqüentes. Ele mesmo
já escapou de dois. Já assistiu até assalto da janela de seu
apartamento. Pode-se dizer que Recife é a cidade do mêdo.
Em 2003 ele resolve ir residir também definitivamente em Natal.
Durante três anos continuam as visitas de Vitória à Natal. Durante
três anos ele aguarda que ela se decida a vir vier definitivamente com
ele.
Ela tem facilidades para obter as passagens áereas. Pois trabalha no
gabinete do Deputado Federal em Brasília.
Certo momento Francisco desabafa com ela:
- Durante toda a minha vida Vitória! Eu sempre mantive um
princípio! Nunca me envolver com mulher casada! E foram várias
as oportunidades que surgiram em minha vida! Mas pulei todas
501
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
essas tentações! Precisava ser você! Para contradizer isso! Por isso
acho que nunca devemos dizer: dessa água não beberei!
Faz sentido a sua consideração. Vitória ainda está oficialmente
casada. Não consegue deixar de viver ao lado do marido. Embora
garanta que entre ambos já não existe qualquer obrigação
matrimonial. A relação de ambos, diz ela, é algo como uma empresa
que tem dois sócios. Só isso. Só interesses materiais. Nada mais.
Também pudera! O homem tem duas outras mulheres. E bem mais
jovens. Não deve ser fácil dar conta de todas elas.
Em várias ocasiões Vitória acena com a expectativa de vir viver
definitivamente com Francisco. Após o casamento do filho! Após o
resguardo da nora! Ainda precisa dar uma certa assistência ao filho
mais moço que ainda estuda em Brasília...
Nesse compasso, reencontrando-se a cada dois, três meses, aos
poucos a relação vai se desgastando.
Por três anos Francisco ja esperou que ela se decida. A situação está
muito incômoda. Realmente insustentável.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
F
rancisco está em Recife atendendo um convite para trabalhar
em mais uma campanha política. Serão três meses. Consegue
alugar um suíte no mesmo endereço em que havia estado os
últimos dois anos em Boa Viagem.
Ha um vizinho seu. OAntonio Pereira.
Um antigo vendedor dos tempos da CODIF. Uma rede de lojas de
ferragens com matriz em Recife, onde trabalhava e filiais em outras
capitais, incluindo Maceió e Natal. A empresa, pertencia a um
português.Após a sua morte entrou em falência.
Certo dia Francisco conversa com Antonio Pereira e lhe fala da
extraordinária descoberta do Padre Antenor Araújo, em relação às
famílias Nordestinas com sobrenomes judeus. O dele é Pereira.
Antonio então se recorda de um fato extraordinário vivido no tempo
em que trabalhara na CODIF.
Havia vários vendedores na firma. Explica ele. Que recebiam uma
relação de empresas a serem visitadas, para vender as ferramentas da
CODIF.
Alguns deles já reclamavam que ninguém conseguia vender nada a
um judeu, dono de uma indústria muito conhecida. Que preferia
comprar suas ferrangens em São Paulo e nunca comprava em Recife.
Antonio Pereira também fora escalado para visitar o empresário
judeu. O primeiro da sua lista. Já que ele certamente não iria lhe
comprar nada, pelo menos se desvencilhava dele logo de saída.
Chega cedo ao seu escritório. O empresário ainda não havia
chegado. A secretária informa que ele não demora. Antonio Pereira
entrega seu cartão a ela e solicita para assim que ele chegasse ela
entregasse a ele o cartão. Se não o recebece também não perderia
tempo.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
D
ai a instantes o judeu passa apressadamente pela entrada do
escritório acompanhado da esposa que vem logo atrás e de
seu filho, também dirigentes da firma, entrando em sua sala.
Imediatamente a secretária vai á seu gabinete e lhe entrega o cartão
do vendedor da CODIF Antonio Pereira. A moça vai pensando...
Mais um coitado da CODIF que vai sair sem vender nada...
Ao receber o cartão, o judeu imediatamente levanta-se de sua mesa e
vai até a recepção com o cartão na mão.
- Muito prazer em recebê-lo em nossos escritórios! Seja bem-vindo!
Abraça fraternalmente o vendedor como se abraça a um amigo muito
conhecido de longas datas.
- Por favor! Vamos entrar! - E conduz o Pereira a sua sala pedindo a
ele que se sente.
A secretária ficou olhando a cena surpresa, sem entender patavina.
Quem seria mesmo aquele rapaz? Quantos vendedores da CODIF já
haviam estado ali e despachados solenemente! Alguns nem mesmo
sem ser recebidos no gabinete do empresário! Ela ainda está meio
atônita com o que acaba de presenciar, quando o empresário a chama
pelo interfone, solicitando que chame imediatamente à sua sala, a
esposa e o filho.
Em seu gabinete ele continua se desmanchando em cordialidade
com o vendedor. A esposa e o filho entram no gabinete. Ele então
com alegria, apresenta sua família a Antonio. Pede cafezinho,
conversam bastante, pede informações sobre a família de Antonio e,
finalmente, realiza uma compra espetacular de inúmeros tipos de
ferramentas para sua empresa recomendando a Antonio, que dali por
diante, não iria mais comprar em São Paulo. E que ele o visitasse
mensalmente. Fazia questão.
Por anos seguidos Antonio foi extraordinariamente bem recebido
nos escritórios do judeu.
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L
ogo após seu primeiro contato com o empresário judeu
Antonio regressa aos escritórios da CODIF zombando dos
seus companheiros vendedores.
- Vocês são uns incompetentes! Olha aqui o tamanho da venda que
eu fiz ao judeu!
Todos estão surpresos com a venda doAntonio.
- Não acredito! Diz um deles.
- Você vai me explicar como conseguiu fazer essa venda! - Intima
outro. O gerente está se aproximando.
- Olha só! O pedido que o Antonio conseguiu arrancar do judeu!
Até este momento quando conversa com Francisco, ele nunca havia
entendido porque o judeu o recebia tão bem.
- Rapaz! É incrível o que esse padre descobriu! Agora eu entendo!
Porque o judeu me recebia tão bem! Pelo meu sobrenome no cartão!
Pereira!
Por isso ele me fez tantas perguntas sobre a origem de minha
família! Impressionante! Só agora eu compreendo tudo!
Certamente, ao ver o sobrenome Pereira no cartão de Antonio, o
judeu, que devia saber dessa informação passada de pai para filho,
em sua árvore genealógica ha centenas de anos, sabia que estava
diante de um descendente de sua raça. Antonio era também um
judeu. Alguém a quem, na distância do tempo, deveria honrar,
respeitar e receber com toda regalia.
Assim Antonio pôde constatar a veracidade da descoberta do Padre
Antenor, em seu estudo sobre as raízes das famílias judias
espalhadas pelo Nordeste.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
D
urante essa campanha política de 2002 Pedro Elias está uma
fera lá em Caicó. Todo mundo fala que a candidata Vilma de
Farias, ex-esposa separada de Lavoisier Maia, é quem vai
ganhar as eleições para Governadora. Isso Pedro Elias não pode
tolerar.
Admirador profundo da família Maia, ele não pode aceitar que
“aquela rapariga”, assim trata a candidata, possa se eleger
Governadora. Rapariga, pelo simples fato de haver se separado de
um dos Maia.
O genro Rony, sabendo de suas preferências políticas, aborda seu
Pedro com informações sobre a eleição. E ele lhe pergunta:
- Você vai votar em quem? - Gostaria muito de administrar os votos
de cabresto da família, como fazia vinte ou trinta anos atrás.
- Vou! Seu Pedro! Vou votar em Vilma Maia!
- Naquela rapariga?
- Sim! Seu Pedro! Essa eleição não tem quem tire dela!
Ele profere ainda vários desaforos e Rony se afasta.
À noite, as apurações já vão bem adiantadas. A Vilma Maia disparou
na frente do adversário.
Rony agora tenta dobrar seu Pedro mostrando-lhe o resultado das
apurações, cujo último boletim acaba de ser divulgado pela
televisão.
- Olha ai seu Pedro! Olha ai a votação da mulher! De cem pessoas,
setenta votaram nela!
- É TUDO CORNO! - Esbraveja ele com veemência.
Maria de Lurdes, sua filha e esposa de Rony está presente.
- Não! Papai! Rony mesmo não é corno não!
506
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- Não é, mas tá pra ser! - Responde ele em cima da bucha. Todos
caiem na gargalhada. Não dá pra levar seu Pedro a sério. Ele nunca
daria o braço a torcer, fosse qual fosse a situação.
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Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Q
uinze de Abril de 2004. Toda a família de Pedro Elias está
indo a Caicó. Ele acaba de falecer. Esse momento de pesar
todos temos de viver. Apenas os que residem muito distante
como os filhos Pedro e José não podem vir para o sepultamento dele.
Pedro está no Paraná. E José em Volta Redonda, no estado do Rio.
Um acidente cerebral levou Pedro Elias aos 87 anos e 11 meses de
idade. O mano Franksvictor foi às pressas com ele para o hospital.
Mas a sua hora havia chegado. Entrou em coma e não saiu mais. Deu
entrada no hospital cerca de 17h00 e as 05h00 da manhã seguinte
Deus o levou.
Viveu quase oitenta e oito anos.
Deixou saudade. Tinha defeitos. Mas quem não os tem? Enquanto
viveu manteve-se fiel a sua fé em Deus. Deixou esse exemplo, entre
tantos outros. Francisco prefere não lembrá-lo por seus defeitos.
Mas apenas por suas qualidades. E foram muitas. Este livro é uma
homenagem também a ele. Não tinha o dom da escrita. Mas fez
história da boa.
Qualquer um que retorne no tempo seguindo seus rastros vai
encontrar inúmeros exemplos de grandeza.
Até onde se sabe, ao morrer deixou 15 filhos, um fora do casamento,
26 netos e 9 bisnetos.Alguns, nem chegou a conhecer.
Ha que se perpetuar a sua lembrança como alguém que deixou
marcas profundas em sua imensa família. Marcas que certamente
superam as cicatrizes.
Honrar pai e mãe. Esse preceito bíblico lhe cai como uma luva.
Inclusive pelo exemplo que deu cuidando de seu próprio pai, o vovô
Chico Elias e o sogro Chico Bobôco, ambos até a sua morte.
508
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Ele foi grande. Foi grande sim. Maior que seus defeitos. Tem honra
ao mérito em seu louvor.
Este livro começa e termina com ele.
Que ao lado de Josina escreveram páginas inesquecíveis de vida e de
probidade.
Por fim, uma mensagem aos que virão, ao longo dessa descendência
genealógica.
Deus é otimista.
A natureza é otimista.
Os melhores exemplos de realização humana no mundo são de
pessoas otimistas.
Porquê não deveríamos ser otimistas?
Ninguém dá nada a ninguém!
Nós apenas recebemos
o resultado da necessidade dos outros!
Autor desconhecido.
Somente os tolos
estão absolutamente convencidos de que sabem tudo.
Se você achar, que este livro lhe faz algum bem, saiba que está
recebendo o resultado da necessidade deste humilde narrador.
Quanto mais evoluimos,
mais aumenta a nossa responsabilidade, traduzida aqui em
necessidade, de também contribuir para o bem dos outros.
Esta mensagem final é especialmente para você, caro leitor, num
futuro distante. Fica como uma sugestão.
509
Eu, Tu, Eles - Francisco Elias
Um exercício de natureza histórica.
Que talvez, algum dos nossos descendentes,
talvez você,
possa dar continuidade a esta obra.
Caberia bem um segundo volume. Não?
E assim por diante.
Tudo sugere que você dê essa continuidade,
escrevendo a partir dos conhecimentos do seu tempo
Sobre seus ascendentes diretos.
Faça isso!
Em homenagem a sua própria gênesis.
Por fim,
um agradecimento especial
a todos que ajudaram a escrever este livro.
Incluindo nossos amigos invisíveis.
Pois tenho certeza, de que em muitos momentos
Eles estiveram conosco.
Ninguém escreve nada sozinho.
510
Malvina-Pedrinho-Lurdes-Francisco
Riacho do Meio - 1947
À frente: Marina-Jasiel-Marluce-José-Josafá
P/ traz: Francisco-Pedrinho-Malvina-Ma. De Lurdes
Rua São José - 1952
Locutor
do S.P.V.S.
1957
18 anos
23 anos
1990.
Escombros da primeira residência
no sítio Riacho do Meio
Lembrança de uma Festa de Santana
Josina, nos anos 60
1972 - Apresentador do telejornal Factorama
no Canal 6 inaugrando a TV à Cores no NE.
Baile de Carnaval no Clube Internacional
do Recife. O amigo Fernando, e a irmã Mônica
Concurso Miss-PE ao lado de Carmem Tovar
Canal 2 - TV Jornal do Commercio
1981. Aeroclube de Recife
Dez/1974 no Rio
Esta foto expressa bem o palhaço
da família, o mano Pedro.
Lembrança do Natal de 74 em Campinas.
Jan/1975. Pre-Carnaval em Salvador
com o amigo Zé de Freitas
Visita à tia Neném. São Paulo
Natal de 1974
Retornando de Fortaleza com Sandra
e Ramatís.
Lembrança do mano Jasiel.
Natal 1976
Fim de Ano na casa de praia do cunhado Rony- Praia de Cotovelo
Marina, Lurdes, Rony e Sandra
Filhas: Lurdes-Malvina-Marina
Mônica-Marluce-Marlene
Filhos:Francisco-Pedro-Josafá
José-Johnny-Franksvictor
Os netos
As netas
Pedro Elias se orgulhava de sua prole.
Ao ver esta voto exclamou:
Essa minha família não tem UM! feio!
CENAS DO JUBILEU DE OURO DE PEDRO ELIAS E JOSINA EM 1990
Os alemães invadem a descendência de Pedro Elias.
Ele não era muito chegado à alemão.
Viveu bem no auge da II Guerra. No entanto, eles ai estão, em
seus bisnetos.
Francisco ainda convalecendo de uma
cirurgia de vesícula.
Sua terceira geração. Alguns ele ainda alcançou
em vida. Se os visse agora, iria repetir com orgulho:
“Essa minha famía não tem UM feio!”
Josina já viuva em 2005, aos 84 anos.
Josina e filhas:
>Marina, Mônica, Ludes, Malvina, Marluce, Marlene
Ramatís e a prima Dani
Ramatís e a esposa Marcela
Josina, Claudinha, Eliana, Marina e Elissandra
Francisco e as irmãs Lurdes e Marlene
Ramatís e seu pai (o brother)
Josina recebe o carinho dos netos: Caio e Luquinha
Filhos de Francksvictor
Vovó Sandra com a netinha Elissa
Flagrante do casamento do sobrinho Pedro Ivo
Rio de Janeiro - 2006
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