Francisco Elias EU TU ELES Em Memória de Pedro Elias e Josina N a poeira do tempo, este livro descreve o status de vida de uma família de quatorze filhos, relatando a inteligência evolutiva do grupo familiar, desde o seu princípio. Procurando demonstrar que a evolução sempre premia os esforços. E também, para desmentir a convicção até então generalizada de que, vivendo em dificuldades, as gerações descendentes devam ser obrigatoriamente, vitimadas pela fórmula infame da decadência, como se vê nos tempos desta redação, nas favelas das grandes cidades. Tidas como criadouro de parias da sociedade. Tomara que no futuro distante, em que você lê este livro, a sociedade civil organizada tenha eliminado o jugo da miséria entre os seres humanos.A julgar pelas enormes diferenças existenciais, tanto do ponto de vista cultural dos nossos descendentes, como da evolução das possibilidades econômicas de vários deles e de suas famílias, é de se prever que no futuro, e quanto mais longe mais provável, viver em equilíbrio venha ser um exercício de muito valor para a raça humana, em exemplos de vida que devam ser copiados e repetidos incessantemente por todas as células das famílias, seja qual for o seu modelo de então. Que Deus abençoe a todos os que lerão este livro de memórias. Que possam nortear suas vidas pela busca do bem comum. Que em seus corações haja sempre espaço, para repartir entre si seus valores mais evolutivos. Como sua herança abençoada para continuar Francisco nasceu em 06 de abril de 1941. Domingo de Ramos. Ao chegar a vida adulta acreditava ser um bom sinal, a sua data de nascimento. Seria por natureza uma pessoa do bem. Com suas leituras no mais diverso compêndio de conhecimentos que os livros lhe podiam oferecer, orientou sua formação intelectual acreditando na boa orientação dos filhos, no trabalho e no empenho pelo sucesso profissional, muito embora fosse desapegado ao dinheiro. Após os 50 anos, depois de muito ler sobre psicologia e toda sorte de romances, de clássicos como “Dom Casmurro” - Machado de Assis aos poemas de Augusto dos Anjos, e obras psicografadas por Chico Xavier, o espírita de Congonhas do Campo e Uberaba, sua terapia literária passou a ser a Neurolingüística. Uma ciência da modernidade de então, que lida com o comportamento psicológico, chegando, em algumas ocasiões, a ministrar treinamento a profissionais de venda. Sua trajetória foi incansável na busca do conhecimento. Adotou com certo rigor até religioso, a máxima deixada por Sócrates como legado para a humanidade; “A única coisa que sei, é que nada sei”. Se houvesse cursado uma escola superior, Filosofia ou Letras, certamente teria sido um escritor. Este livro foi sua única experiência como escriba. Idéia que acalentava desde muito tempo. Por isso pede desculpas pelas falhas cometidas. E certamente foram muitas. Mas o que escreveu, o fez com o coração, visando apenas deixar esse histórico para as gerações vindouras de seus descendentes ÍNDICE 03 - Olhei para trás... 05 - 1940 - O ano da graça 08 - O ambiente rural 11 - A chegada do primogênito 15 - Jibóia tenta engulir o bebê 17 - Uma luz sobrenatural 21 - Fojos de preás 23 - Fisgada de Cascavel na lata 26 - Tem passarinhos no arrozal 27 - Inspiração para produzir telhas 36 - Uma Jararaca na Caieira 38 - As emoções de um Chevrolet 40 - Uma Seriema no cardápio. 42 - Palmatória na Cartilha do ABC 45 - A raposa e os melões 48 - Uma tragédia de domingo 50 - A pegadinha do circo 52 - Uma gaita para um artista 55 - Acidente de foice 58 - Mudança de vida no caminho 64 - O orifício do Tatú 65 - Aprendendo a tirar enxú 70 - Casca de ovo para os ossos 72 - Pedrinho bota fogo no pasto 73 - Mudança para o Pai Bastião 74 - A lição das moedas 77 - O vovô Bobôco em famíli 78 - Comércio de fumo 85 - Leite queimado é remédio 86 - Mudança para a cidade 87 - Admoestação à base cacete 88 - A revelação do rádio 88 - A experiência da morte 89 - A diversão do circo 92 - O comércio de fumo prospera 93 - Francisco descobre o cinema 95 - Morre o vovô Chico Elias 96 - Choque elétrico 98 - A diarréia do primo Jaci 100 - D. Iracema e a prova de redação 102 - A primeira namorada 106 - Uma triste decepção 108 - Casa nova para a família 109 - O primeiro rádio de mesa 109 - O primeiro carnaval 111 - Hormônios da puberdade 112 - O locutor do S.P.V.S. 113 - Sexo aos 15 anos 118 - O violão e as serestas 121 - O vovô Bobôco adoece Francisco vai para a Marinha 129-Um cantor de rádio 131-Primeiro convite para o rádio 133-Nasce um sanfoneiro 135-Tio Elias morre na ponte Seridó 138-Vovô Bobôco em fase terminal 141-Nasce o Conjunto s Cataguases 143-Show com Bienvenido Granda 145-Técnico em telefone 146-Experiência com para-normal 149-Tocando para JK dançar 151-Francisco é expulso de casa 152-O começo na Rádio Rural 154-Uma certa Vitória na sua vida 155-Uma luz chamada Padre Itan 162-Madre Superiora e a serenata 166-Nely Padilha no seu caminho 185-Sai Nely, entra Luzinete 192-Sofrimento de Nely e sua mãe 195-Visita a família de Nely no Rio 206-Ameças de um pistoleiro 209-A conquista do rádio em Natal 210-Sandra é o nome dela 212-Aprendizado literário continua 218-Casamento com Sandra 222-A primeira agência publicitária 225-Deus fala através de uma lavadeira 227-Convite para Recife 232-A grande chance na televisão 234-Descobrindo a missão espírita 235-Os bastidores da televisão 242-Pre-coma alcoólico 251-Experiência fora do corpo 253-A experiência de Carmem Tovar 259-O aborto de Divalda 262-A vinda de Ramatís 264-Gêmeos: uma experiência estra-sensorial 268-Descobertas com a ufologia 269-Natal inesquecível em Campinas 270-Surge uma rosa em seu caminho 277-A visita de Pedro Elias em Recife 287-Grande trauma com o irmão Jasiel 296-Revelações para Jasiel no Centro Espírita 303-Emoções de um amigo de infância 304-O almoço de Dona Iracima 315-Experiência vivida na AMORC 319-Rose também sofre aborto 321-Experiência para-normal no Lar de Ita 324-Revelações de encarnação em 1694 333-Sandra e Rose: em outras vida 334-Avistamento de nave extraterrestre 337-Ramatís leva Sandra ao entro Espírita Centro Espírita 346-Vitória é vitoriosa no Acre. 349-Curso de pilotagem aeronáutica 361-Construindo um avião KRII 369-Discursando para o Presidente Nakamura 371-Seu destino aponta para Maceió 376-Rose também vai para Maceió 383-Primeira tentativa de separação 385-Uma lavadeira revela a existência de Rose 391-O mercado publicitário de Maceió 395-Experiência para-normal em São Paulo 402-De Trigueirinho a Shirley MacLane e Andrija Puharich 407-Pouso de emergência em Sta. Luzia 415-Judeus em terras do Seridó 420-As Bodas de Ouro de Pedro e Josina 422-Pedro Elias e sua viagem de avião 427-Jesus Cristo perdeu o controle do mundo! 428-PedroElias e Fidel Castro 429-Casamentos em Maceió 431-Fenômeno da premonição 432-Outro sonho para-normal 436-Experiência com a Neurolinguística 437-Revelações de Shirley MacLane 438-Declínio na publicidade 441-Experiência Chico Xavier 445-Uma voz ao telefone 458-Retornando a Recife 461-A separação definitiva 466-Elieuza: Sua nova parceira em Recife 470-Mais uma premonição: uma menina 472-Retorno definitivo para Natal 474-A charada do empresário judeu 477-A zanga dePedro Elias com Vilma de Farias 478-Pedro Elias deixa esta vida Francisco Araújo da Costa Aos meus filhos: Elissandra, Eliana e Ramatís Aos meus netos: Arthur, Gabriel, Elissa, Victor e Rodrigo. E aos meus irmãos: Malvina, Lurdes, Pedro, Josafá, Jasiel (In Memorium), Marina, José, Marluce, Mônica, Marlene, Johnny e Francksvictor. Eles foram a inspiração com a qual este livro foi possível se materializar. Edição Revizada Jan/2007 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O lhei para trás... e vi meus avós, vi meus pais... e imaginei outros predecessores que não conhecí, de nossa imensa árvore genealógica. Guardando referência apenas, com os ecos de memória obtidos no Museu do Homem do Nordeste, em Recife, que descreve a origem das famílias Araújo, Costa, Elias e Batista, trazidas de além mar em náus portuguesas, na maioria dos casos, em jovens militares da Coroa, vindos para desbravar os nossos sertões. E das histórias de meu avô materno, Francisco Batista, o Chico Bobôco, informando que sua bisavó, uma cabocla braba, havia sido capturada à casco de cavalo, pelos tais militares das milícias portuguesas nas terras do Seridó. E vi em cada um de nossos antepassados até esta geração, histórias de vida e de sacrifícios. Mas acima de tudo, vi neles, a coragem de fazer sua própria história. Deixando marcas. Que são como sinais pelo caminho. O longo caminho dos que seguem destemidos, preenchendo páginas de exemplos fecundos, amparados pelo carisma da fé. E como o tempo seria generoso! Se nos permitisse saber os detalhes mais expressivos da vida de cada um deles, materialidos em suor, lágrimas e sorrisos. Pois assim é a vida. Preenchida nesses três elementos humanos. Suor, lágrimas e sorrisos! O suor da labuta para nos fortalecer a têmpera. As lágrimas para nos ensinar, (pois só aprendemos com a dor), enquanto com o sorriso, apenas nos divertimos. Então olho para o futuro... E vejo, na distância dos tempos mortos, uma coluna infindável de bravos caminhantes. Uma perfeita progressão geométrica molecular, reproduzida incessantemente entre homens e mulheres, que eternizam em seus cromossomos, a chama de vida que alimenta sonhos e esperanças. Pois é pelos sonhos que o mundo não perde as esperanças. Alguns diríam que se trata de uma auto-biografia. 2 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Mas, por um exercício literário menos enfadonho, imaginemos personagens! Todos reais! Eles nos ajudarão nessa tarefa. Teremos então, algo parecido com um romance. Sem pretensão de ofender os verdadeiros escritores. DIVÍRTA-SE! Estas páginas foram escritas para você. No presente e no futuro. Mas o autor tem um apelo a fazer. É parte do propósito deste livro: leia e passe-o adiante, a um outro descendente ou companheiro de sua jornada de vida. Com carinho: Aos que já se foram e aos que ainda virão. Para que nossos descendentes, possam olhar o passado com a dignidade de quem se movimenta, como espermatozóides, cada um recebendo o bastão Para continuar a caminhada, como se fosse-mos todos participantes de uma imensa maratona. A grande maratona da vida. Em que cada um deve dar o melhor de sí. Francisco Araújo da Costa O Chico Elias 3 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias M il novecentos e quarenta. O ano da graça em que o padre abençoa o casamento de Pedro Elias da Costa e Josina Júlia de Araújo. Ele, filho de Francisco Elias da Costa e Regina e ela, filha de Francisco Batista de Araújo (o Bobôco como era conhecido) e Josefa. Ambas famílias originárias das raízes portuguesas nas terras do Seridó. As milícias a serviço da Coroa de Portugal ha tempos haviam se embrenhado nos sertões do Seridó também a procura de ouro e outras riquezas para engordar o baú dos poderosos Reis de Portugal. Era do interesse lusitano que as terras do Brasil fossem devidamente ocupadas por sangue português, com sobrenome registrado, inclusive. Inicialmente em livros da Comarca e da igreja na hora do batismo, posteriormente, em cartório. O que favorecia o reconhecimento do domínio português sobre o país. Então, qualquer filho que nascia do contato desses militares com as mulheres nativas da região, algumas autênticas caboclas brabas capturadas a casco de cavalo, as crianças eram registradas levando o sobrenome de seu pai português. Centenas de anos mais tarde, seria fundado em Recife o Museu do Homem do Nordeste, com um largo estudo sobre o tema. O garoto Francisco ainda vai passar pela história viva conhecendo esses fatos, em visita que fará no futuro ao Museu, tendo acesso a esses e a outros dados interessantes. Mas por enquanto, ele é apenas um projeto na mente dos nubentes Pedro Elias e Josina. Seria o primeiro, de uma fila bem grande. Casar e ter filhos. Muitos, se possível. Era de praxe nesse tempo. Independentemente do grau de dificuldades financeiras. O Brasil precisava ser povoado. Suas dimensões imensas refletem essa necessidade. 4 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A cultura vigente estimula na sociedade esse instrumento de brasilidade. Ter muitos filhos. Ha famílias com mais de trinta. Às vezes, de mulheres diferentes. Uma notoriedade! Para o sujeito que exibia uma fileira de muitos filhos. Mas na verdade, uma insensatez governamental, em estimular essa cultura, já que o próprio Governo pouco ou nada contribuía para minorar o sofrimento de tanta gente. As famílias pobres ficam à mercê da própria sorte. Se a família se estabelece em algum lugar no campo, onde ha um patrão dono do sítio ou fazenda com um coração humanitário, o sofrimento é minorado. Caso contrário, é uma espécie de escravidão branca. Todos vítimas das circunstâncias. Pedro Elias e Josina acabam de se casar. Mais uma família a entrar nessa roda do destino. Destino cruel. Onde ha mais sofrimento e dores do que alegrias. Mas é na própria pele que aprendemos as mais significativas lições de vida. É da própria natureza humana. Só aprendemos algo com a dor. A emoção do sorriso é fútil. Logo desaparece. A sensação da dor fica. Como um aviso em nossas mentes.Assim é a vida. Pedro Elias e Josina vão experimentar muitas dores. E suas imagens ficarão como um troféu para orgulho de seus descendentes. Dois vencedores. Exemplos em carne. A sua lembrança é também uma homenagem a todas as famílias pobres, que como eles, construíram suas vidas pisando o cascalho do sofrimento e das vicissitudes. Eles irão em frente apesar de tudo. Porque sempre acreditaram que é sua missão, contribuir para construir um Brasil de luta e de vitórias. Alimentam um modelo simplório. Mas muito real. Ainda nos tempos atuais em que você lê este livro. - Não se devem criar filhos como batata solta na areia do rio! - Ensinavam eles. Mas os tempos 5 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias mudam. E corrompem todos os princípios de honradez estabelecidos. O que era verdade deixa de ser. A mentira muito repetida vira verdade. São máculas. Que a sociedade moderna processa, alimenta-se delas e depois cospe fora. Como se não lhe pertencesse. O escárnio dos escarros da podridão dos costumes corrompidos ao longo dos tempos. Transformando todos em vítimas do medonho poder de poucos sobre a ignorância de muitos. Que a infelicitada política desses tempos mantém, com mão de ferro, para seu próprio interesse. A ciência se esforça. Mas seus melhores resultados nunca chega para todos. Os ímpios do poder não permitem. A massa ignara deve permanecer na escuridão para que alguns poucos brilhem em suas falácias. Eu me envergonho das obras humanas do meu tempo. Por isso, diante de quadros tão revoltosos, rendo homenagens a Pedro Elias e Josina. E agradeço a Deus haver nascido deles para poder contar essa história. De honradez e trabalho. De inteligência cognitiva e de fé na providência divina. De força de vontade e de compromisso familiar. Para a continuidade de sua perpetuidade cromossômica. Já ha alguém a caminho. Vire a página que Francisco já está chegando! Pedro Elias havia se entendido com o agricultor Ezequiel Elpídio, informando que iria se casar e que precisava de uma casa para morar. Se o Ezequiel estivesse interessado em receber mais um morador no seu sítio, era ali que ele gostaria de começar sua vida. Os proprietários dos sítios e fazendas têm todo interesse em acolher novas famílias, desde que tenham uma boa procedência. E Pedro Elias, filho do velho Chico Elias, é uma ótima referência. 6 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Conhecidos em boa reputação pelo trabalho. Os patrões têm horror de gente preguiçosa. Não à toa. Todos os moradores e suas famílias recebem uma casa para morar e terras delimitadas para o plantio. Mas a colheita de tudo que plantam é pelo regime meio-a-meio com o patrão. É o regime de meeiros como se diz. Uma divisão cruel. Se ha inverno e o plantio dá uma boa colheita, dividem ao meio. Se o inverno fracassa e não colhem nada, até o custo das sementes fica como débito para abater no ano seguinte. É um regime barra pesada. Mas é o costume. Pelo menos em terras do Seridó. O algodão é o principal produto da agricultura. Ezequiel tem coração mais humanitário e as coisas se ajeitam melhor. Em outros sítios pela redondeza, o pobre trabalhador rural sofre muito. Mas não ha como mudar isso. Pelo menos da noite para o dia. A sua vida é um eterno sacrifício. O que se pode fazer? Por isso todo cuidado é pouco ao escolher onde se vai morar. Desde os pais dos pais de Pedro Elias, até onde ele sabia, vinha sendo assim. O êxodo para os grandes centros no Sul, como São Paulo, está apenas começando. Muito poucos se encorajam para essa jornada. Fala-se que as terras do Sul são maravilhosas. Não ha seca. Mas o desconhecido sempre assombra. E a maioria ainda prefere pagar o preço do trabalho insalubre e pouco rentável para tentar a vida ali mesmo. Sempre a espera que Deus dê bom tempo. Coragem para trabalhar é o maior qualificativo de Pedro Elias. No que dependesse de seus braços e pernas, sua família não passaria necessidade. Estão morando no sítio Riacho do Meio. Uma casa humilíssima. Apenas uma sala com piso e paredes de tijolos. Um estreito corredor em chão de terra batida. O quarto do casal em taipa (varas de madeira entrelaçadas e revestidas com barro). 7 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Um outro aposento menor também de taipa, que serve como despensa onde ha um pequeno paiol de alvenaria no meio dele, para guardar grãos enterrados em areia trazida do riacho. É uma forma rudimentar, de origem indígena, para conservar os grãos ao ataque dos gorgulhos e outros micro-organismos que ao longo do tempo perfuram os grãos. Basicamente de feijão e de milho. Tudo misturado. Na hora de por na panela para cozinhar, muitas vezes as mulheres só lavam bem as sementes e cozinham tudo junto. Mas todos sabemos do enorme potencial energético do feijão e do milho na alimentação humana. A cozinha, contém um fogão de alvenaria com o respectivo forno para assados e bolos, e o girau dos mantimentos. É uma peça feita de varas de madeira com tiras bem amarradas e penduradas nos caibros do teto por quatro pedaços de corda. As cordas contêm rodelas de cabaço colocadas a certa altura, para evitar que os ratos vindos do teto cheguem até o girau. Nesse girau são colocadas as carnes salgadas, sempre cobertas com um pano, rapaduras, usadas no arroz doce, na torrefação do café, nos bolos, nos ponches... Nesse tempo não se conhece ainda as geladeiras. Portanto, o termo refrescos ainda não é conhecido. No girau ainda se colocam vasilhames com manteiga, leite para coalhar, nata de leite, queijos, doces e tudo mais que precisa ficar fora do alcance dos gatos e qualquer outro animal da casa . Precisa ficar a uns dois metros do piso. Na verdade o tal girau, se assim se pode dizer, é também parte da mobília. Igualmente simplória. Duas redes. Uma cama de engradado (Varas de madeira entrelaçadas, com pés fincados no chão e um colchão de chita, recheado de capim bem fino e macio). Uma mesa de madeira, bem rústica. Quatro tamboretes (pequenos bancos de madeira sem encosto com o assento em couro). Um 8 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias balaio. Uma arupemba, de palha trançada para peneirar os grãos que vão para a panela e coar o milho da pamonha. Um pilão e um caco (tigela) de barro para torrar café. Dois potes. Um com água de beber. Bem fria. Colocado num dos cantos da sala coberto com um pano bem limpo e um prato de ágata com copos de alumínio em cima. E outro pote na cozinha com a água para cozinhar. Um galão com duas latas de querosene para conduzir água do açude ou da cacimba para casa. Um pequeno baú de madeira onde Josina coloca as roupas limpas e engomadas. Um ferro de engomar, feito de ferro fundido, aquecido com brasas, desses bem antigos, com um furo na parte traseira para soprar as brasas, com muito cuidado para não queimar a roupa do casal. Sapatos ainda não tinham. Sandálias bem fortes. Com solado de pneu de caminhão. A sandália de Josina é bem mais delicada. Com solado de couro. Ha também os chinelos de couro bem simples, Também muito comuns. imitando as atuais sandálias havaianas, que nesse tempo ainda não saíram do Havaí. No mais, é um burro de carga com sua cangalha, um par de urus, feitos de couro cru, para transportar desde crianças a tudo que se quiser. Feijão, milho, batata doce, frutas, produtos comprados na feira da cidade, e tudo que vem das plantações passa pelo lombo do burro nesses urus. Algumas vezes usam-se uns caixotes de madeira com alças de corda presos à cangalha. Outras vezes usam-se um equipamento de carga chamado “cambito”. Muito simples. Quatro peças de madeira em V, duas de cada lado, presas à cangalha do animal. Muito apropriado para transportar cargas de capim, até o curral, pegado com a casa. Ali ha uma vaquinha de leite. Presente do seu Ezequiel assim que soube que seria o padrinho do primeiro filho do casal. 9 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias U ma inovação, que ainda não ha na casa primária de Pedro e Josina, é um par de barris, feito de madeira, muito útil para transportar água no lombo do animal. Só bem mais tarde esse apetrecho vai fazer parte dos utensílios da casa. Algumas ferramentas, machado, foice, uma boa enxada, uma espingarda de socar. Um banco de madeira para sentar embaixo da latada, em frente a casa. O gato Mourisco e um cachorro vira-lata. Isso é tudo. Os dias passam rápido. O inverno foi promissor e ha muito trabalho nos roçados. A plantação cresce bonita. Após o jantar os dois conversam. A gravidez de Josina, esperando o primeiro filho já está bem acentuada. Pedro sugere: - Ô Josina! Vamos tomar o Ezequiel e dona Gizélia como padrinhos dessa criança? O que você acha? Ela concorda. É um costume da época. Oferecer um filho como afilhado ao patrão podia garantir pelo menos o interesse dele em ajudar a criar a criança. Os futuros padrinhos ao saberem da escolha ficam muito honrados. Logo o primeiro filho! Com muito gosto! - Afirma Ezequiel. A dona Gizélia logo oferece peças do enxoval do bebê e todos se divertem com a breve chegada da criança, que certamente vai dar alegria para todos. Chega o fim de semana com uma grande novidade já esperada. Após o jantar estão todos na sala. Conversa vai, conversa vem... - De amanhã não passa! - Diz a comadre Regina. - O quê, mamãe? - Pergunta Pedro. A sogra de Josina, está lá para cuidar dela no seu primeiro resguardo. - Eu tô falando aqui pra Josina! Acho que essa criança vai nascer esse fim de semana! 10 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Será? - Pergunta ele. O primeiro filho é sempre uma expectativa especial. Não só para os pais. Mas para todos os que estão mais próximos. E a sogra Regina tem bastante experiência. Já teve vários filhos. Cinco ou Seis. Noite de sábado para domingo. É um dia especial para qualquer criança vir ao mundo. É Domingo de Ramos. Logo nas primeiras horas da madrugada Josina inicia o trabalho de parto. - Pedro! Corre e vai buscar a parteira! Josina vai ter nenêm. Vá e volte depressa! - Recomenda dona Regina. Pedro Elias cela o jumento e sai a galope à procurar da parteira. Só pensa no tempo que vai demorar. Dá uns dez quilômetros. E na volta ainda tem que trazer a parteira na garupa do jumento. Espera Francisco! Espera que a parteira já está vindo!As contrações uterinas estão cada vez mais próximas. Ha qualquer momento a criança vai nascer. Graças a Deus a parteira chega a tempo. Dona Regina já mantinha água vervendo no fogão. Daí ha minutos ouve-se o choro do bebê! O primogênito da família. Quatro horas da manhã. Uma bela hora pra nascer. Quase junto com o nascer do sol. Ao som do cantar do galo chega Francisco em 6 de abril de 1941. - Que beleza, Josina! É um menino! - Informa a parteira. Daí por diante, a qualquer hora chegam familiares para beber o mijo do menino. Um costume sertanejo. Tomar o licor, feito de milho. O aluá. Que já havia sido providenciado com antecedência. Como toda mãe de primeira viagem, Josina experimentou suas provações maternais. Mas está feliz. Seu primeiro filho já está no colo. E é homem. Isso é uma bênção! Dizem alguns. - E o nome? - Vai se chamar Francisco! - Esclarece logo o pai. 11 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - O avô materno é Francisco! O avô paterno é Francisco! Então vai se chamar Francisco também! Assim Pedro Elias e Josina homenageiam os dois avôs. E ninguém tem nada a reclamar. Parto de parteira interiorana. Que sabia o ofício por pura experiência. Ha muitas delas nesse tempo. Médico obstetra era coisa de cidade grande. Dias depois foi o batizado. Na igreja de Santana, em Caicó. O compadre Ezequiel e a comadre Gizélia agora fazem parte da família. São os padrinhos de Francisco. Uma criança saudável. Vai crescer num ambiente paupérrimo, como tantas outras. O Leônidas, por exemplo. Filho de seu Aparício e dona Tereza, também moradores do sítio Riacho do Meio. Leônidas será mais tarde o amigo de infância de Francisco, convivendo ali no mesmo ambiente do sítio. Ambos quase da mesma idade. E dezenas de anos depois, motivo de forte emoção. O tempo se encarregará de mostrar, que nos tornamos o que somos, nem sempre por nossa livre escolha. Quando um dia, anos depois, Pedro Elias conduz sua família para a cidade, deixando definitivamente o jugo da escravidão branca do trabalho braçal e doloroso no campo, levará consigo a imensa vontade de fazer história para sua família. Talvez motivado por alguma ajuda espiritual. Quem sabe, de seu anjo de guarda. Para tomar decisões que resultariam em profundas e crescentes transformações em torno de sua prole. Como veremos mais tarde no exemplo de Leônidas, somos sem dúvida, resultado do meio em que vivemos. Da forma como 12 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias aceitamos ou não o chamado para alcançar o desconhecido. Como ouvimos ou não a nossa própria intuição, que parece vir até nós como veículo de comunicação subliminar, manifestado em cada um de nós pela vontade do Criador. É imprescindível observar que Pedro Elias sempre foi ligado em suas orações. Por inúmeras vezes se verá ele à noite sentado na cama ou na rede para dormir, cobrir-se com o lençol até o pescoço e fazer suas orações silenciosas. É seu jeito de conversar com Deus. E Deus parece Ouvi-lo. Como escuta a todos nós. Para ter saído de onde saiu, conduzir sua família para a cidade. Acreditar no porvir. Ter merecido receber a ajuda inestimável da companheira valorosa que é sua esposa Josina, na imensa tarefa de equilibrar as temperanças na educação dos filhos. Sem dúvida há neles um grande merecimento. Pedro Elias será sempre um homem de atitudes brutalizadas. Um ser humano desaculturado lutando com todas as forças para se fazer domar. E também para dominar. Esse fora o estilo que herdara de seus ancestrais. Cometendo inúmeros erros de ignorância. E quem não erra que atire a primeira pedra... Mas coube tanto a ele quanto a Josina, o mérito extraordinário de vislumbrar as responsabilidades para com seus filhos. Crescei e multiplicai. Isso eles atenderão plenamente. Desordenadamente. Quase irresponsavelmente, não fosse a sua mais completa ignorância em torno do assunto. Mas sem faltar com a orientação e o desejo mais forte, que todos os seus filhos se encaminhem bem na vida. Honrar pai e mãe. É essa a grande dívida existencial que todos os seus filhos lhes devem. Por mérito e merecimento. Eles são vencedores. Fizeram por merecer. Deus dá o frio conforme o cobertor. É máxima que ninguém desacredita. Porquê estão ali? Edificando uma família com tão grandiosos sacrifícios? Bem! Isso é coisa que só Deus sabe. A cada um, conforme as suas obras. E Pedro e Josina estão construindo uma 13 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias obra extraordinária. Gerar e criar quatorze filhos. Num ambiente de inúmeras dificuldades. Como isso está sendo possível? Que energia sublimada está orientando suas vidas? Algo terrível acaba de acontecer na família. Não exatamente na de Pedro. Mas na de seu pai. Sua mãe morreu. Enforcada. Dizem alguns, que traumatizada por maus tratos do esposo. Mas há também quem afirme que ela não vinha raciocinando muito bem. Talvez sofresse algum tipo de fraqueza mental. O Fato consternou profundamente toda a família. Ela fora encontrada pendurada numa árvore próximo de sua casa. Morreu deixando dois filhos ainda menores. Chiquinha, já uma mocinha de 12 anos e Elias, ainda bem pequeno com apenas quatro anos. Agora todos estão vivendo juntamente com Pedro e Josina. Já se passou seis meses do nascimento de Francisco. Josina já engravidou outra vez. À noite todos estão dormindo. O vovô Chico Elias, Chiquinha e Elias estão deitados na sala em suas redes. No quarto dormem Pedro e Josina na cama e o bebê Francisco numa redinha pequena próximo deles. Dormem no escuro. A iluminação noturna é feita com as lamparinas a pavio e querosene. Ha uma sobre uma cadeira perto da cama, mas está apagada. Pedro acorda ouvindo um chiado esquisito dentro do quarto. Desperta a esposa dizendo: - Estou escutando o chiado de uma cobra aqui dentro do quarto! Tem uma cascavel aqui dentro! - Uma tribulação para eles. Tateando no escuro ele procura alcançar a lamparina. Acha primeiro a caixa de fósforo. Risca um e acende a luz. Estão petrificados! Ha uma cobra pendurada sobre a rede do bebê, com o rabo enrolado no caibro do teto. Não é uma cascavel! É uma jibóia. Cobra de veada, como 14 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias chama o pessoal do campo. Imediatamente se levantam. Enquanto Josina afasta o punho da rede do bebê Pedro bate na cobra com um cabo de vassoura. O ofídio despenca do teto caindo no chão. O barulho já acordou todo mundo. - O que foi isso? - Pergunta o vovô Chico Elias. - Uma cobra! Aqui no quarto! Quase alcançou o menino dentro da rede. Ela tinha a boca escancarada. Graças a Deus o tamanho dela não deu para alcançar o menino! Se não tinha comido ele!... Explica estarrecido Pedro. Uma experiência terrível. Ha muitas locas de pedras nas cercanias da casa e as cobras estão sempre por perto. Depois de acalmados os ânimos, eles voltam a dormir. Com a luz acesa! Claro! Menos Josina. Esta noite ela não dorme mais. Seus nervos estão à flor da pele. Por mais que tente não consegue. Dizem que onde há uma cobra a sua companheira anda por perto. Ela continua muito assustada. Não quer mais surpresas. Fica acordada zelando pelo bebê até amanhecer o dia. As cobras vão estar freqüentemente no caminho de Francisco. Viver ali, naquele ambiente rural tão desprovido é uma ótima oportunidade para a Lei das possibilidades. A jibóia mede sete palmos e meio. De manhã logo cedo Pedro Elias abre ela pela barriga para tirar-lhe o couro e esticar no sol para secar. O couro é muito procurado na cidade. Ha pessoas que compram e pagam bem. O couro é utilizado para fazer bolsas e sapatos das madames. Coisa chique. Pelo menos o dinheiro da feira está garantido! - Pensa Pedro Elias enquanto esfola a jibóia. O menino cresce saudável. Já se passou três anos de seu aprendizado naquele ambiente rural. Observando e aprendendo. O próximo momento de extrema dificuldade para Josina, já bastante grávida do segundo filho, que virá a ser a galega Malvina, é um 15 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias capítulo extraordinário. Ha muitas raposas pela redondeza. E algumas ficam atacadas de raiva. Indo pelo caminho na direção do açude, Josina se depara com uma delas. A raposa investe sobre ela arreganhando os dentes tentando mordê-la. Josina está passsada de mêdo tentando se esquivar com aquela barriga enorme. Mas consegue apanhar um pedaço de pau e enfrenta corajosamente a raposa, matando-a a pauladas. Malvina viria a ser uma pessoa de personalidade bem forte e as vezes bem enérgica. Daí as gozações que no futuro vão lhe fazer os familiares. Até mesmo sua mãe Josina, que garante: - Você é assim tão nervosa por causa da raposa! Há sempre um primeiro dia, no existencial de uma criança, em que ela, de repente percebe que sua mente está iniciando um processo diferente, catalogando a partir de então, os acontecimentos relevantes de sua vida. Algo soou como um chamado para a mente infantil do pequeno Francisco! Como se lhe dissessem: - Hei! A partir de agora você tem uma nova tarefa. Vai guardar em sua memória todos os fatos dignos de registro de sua vida. Divirtase! Que vai ser algo bastante emocionante... A emoção estaria exatamente na diversão em catalogar cada fato novo. Descobrir as nuances de cada acontecimento. Ser tocado ou marcado em seu subconsciente com fatos cuja lembrança permanecerá para sempre. Francisco já tem agora quatro anos de idade. Dorme em sua rede junto à porta de entrada da sala. Outras pessoas também dormem ali na sala. As crianças, com seus respectivos pinicos embaixo das redes. Para o caso de urinarem dormindo (Ver cenas do DVD). Francisco também costuma não acordar nem pra fazer xixi. Mas esta noite algum muito diferente o desperta. Seria sua primeira experiência extra-sensorial. De repente 16 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias ele abre os olhos! Como se tivesse sido tocado por um chamado. E vê! Para seu espanto infantil, uma luz redonda, azulada, do diâmetro de uma xícara, tremulando na parede, dois palmos acima do punho de sua rede. Suavemente a luz vai descendo em direção ao punho da rede dele. Ele imagina que a luz vai chegar até ele vindo pela rede. Assusta-se e grita com dificuldade pela mãe. Alíngua meio grossa dificulta, mas ele consegue gritar. -MÃM-M-M-MÃE!... MÃM-M-M-MÃE!... - Dona Josina no quarto ao lado desperta e vai até a sala com a lamparina na mão. Quando Francisco chama pela mãe percebe que a luz para de descer. À medida que a luz da lamparina vai iluminando a sala a luz azul vai desaparecendo na parede. Ele está em estado de choque. - Que foi! Meu filho! Você teve um pesadelo? - Uma luz mamãe! Ali na parede! Vinha descendo pra minha rede! - Que luz, meu filho! Não tem luz nenhuma na parede! - Ela foi se embora mamãe! Tava ali! Ali! -Apontando para a parede. - Não meu filho! É a luz da lua que entra pelas brechas da telha! Não é nada não! Fique sossegado! Pode dormir! Eu vou deixar a lamparina acesa aqui na sala! Viu! Pode dormir! Fica ali um pouco junto a ele balançando a rede, depois volta ao seu quarto. Por um bom tempo Francisco ainda permanece acordado. Vez em quando ele entreabre um olho observando a parede a sua frente, pronto para gritar de novo se a tal luz voltar a aparecer. Aos poucos ele adormece. O assunto foi esquecido. Menos para Francisco. Que guardaria na lembrança para sempre aquela luz azulada na parede. Anos mais tarde, já um rapaz, residindo na cidade, Francisco se esclarece com sua mãe sobre aquele episódio da luz na parede e ela confirma, que realmente não poderia ser luz da lua pela brecha da 17 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias telha, pois não havia lua naquela noite. Por não obter uma esplicação lógica, resolvera esquecer o assunto. Então Francisco sabia, de certeza, que alguma coisa muito estranha havia lhe ocorrido naquela noite. O dia seguinte após o episódio, é de bastante reflexão para ele, que não consegue afastar de sua mente a imagem daquela luz azulada. Todos já se levantaram, mas ele ainda permanece em sua rede. Seis horas da manhã. Uma manhã úmida de inverno, com os preparativos de seu pai e seu avô paterno amolando as enxadas para irem ao plantio roçar o milho e o feijão, que brotam verdejantes com promessas de uma ótima colheita. O rec.. rec. do amolar das enxadas e o cheiro do café fumegante arrancam Francisco de sua rede, onde cochilava, indo até o terreno na parte de trás da humilde casa, juntando-se ao grupo. Pelo aspecto da moradia, vê-se que se trata de uma família bastante humilde, como tantas que habitam os sertões naqueles idos de 1945. - Vá jogar fora o seu pinico de mijo! - Ouve-se a voz de Josina enquanto à beira do fogão vira umas tapiocas que está preparando no caco de barro. Quase sempre, todos trabalham em torno de um pequeno açude, uma pequena barragem para as vazantes de plantio de batata doce, arroz, algumas frutas e o capim para alimentar os animais. O plantio maior é feito nas margens do açude. Quando cheio, o panorama é bonito. E aquela manhã está linda. Um festival de patos, marrecos, garças, socós, jaçanãs e tudo quanto são aves, com suas algazarras protegendo os ninhos sobre o capim das águas do açude. Bem no meio do açude, uma imensa mangueira totalmente rodeada de água. Para colher umas mangas maduras o jeito seria nadar até ela. É mas, em certa ocasião poucos dias atrás, Francisco, acompanhado da tia Chiquinha e do tio Elias, também ainda bem 18 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias jovens e imberbes, víram-se às voltas com uma jibóia que decidiu colher os ovos dos marrecos pelo meio do capim sobre a água. Eles nadam exatamente procurando os ninhos das marrecas para pegar os ovos. A jibóia havia chegado primeiro. Aliás, as cobras sempre estarão rodando o pequeno Francisco. Foi um tremendo alvoroço! Nada pra cá, nada pra lá! Para fugirem da grande cobra que estava muito nervosa com as visitas inesperadas. Portanto, ir à mangueira pegar umas mangas, e sozinho!... Essa idéia não agradava o garoto Francisco, que de cócoras, saborea o seu café matinal com beijú. Um tipo de tapioca endurecida, assada no forno à lenha, feita de farinha de madioca ralada. O vovô Chico Elias tira-o de seus pensamentos. - Meu filho, eu já amolei uma enxada pequena pra você. Vai conosco para o roçado? - Vou sim, vovô! - Mas olha! Cuidado para a enxada não cortar os seus pés. Ouviu bem? - Sim, vovô. - Esse menino não tem idade para pegar em enxada, compadre Chico! - Alerta a mãe de Francisco. - Ô comadre Josina! Ele fica todo dia lá no roçado querendo arrastar uma enxada grande! Então eu providenciei uma pequena pra ele. Não se preocupe! Eu ficarei com cuidado nele. Ele só quer se divertir!...Tomara que não me corte os pés de melancia!... Resmunga o vovô. - Pois sim!... (resmunga também ela). As primeiras horas da manhã sempre oferecem um espetáculo deslumbrante ao se chegar ao roçado. Sob uma árvore frondosa são colocados os objetos de trabalho, incluindo os mantimentos para a gostosa panela de rubacão, uma mistura de feijão, arroz e carnes pra 19 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias cozinhar todo junto, um pote de barro com água dormida bem fria e demais apetrechos. A primeira tarefa de Francisco é colher lenha para queimar na trempe de pedra e cozinhar a panela do almoço. Seu pai, logo colhe uma bela melancia madura e coloca na sombra da árvore para degustarem após o almoço. Panela no fogo e começa então o exercício da enxada, prolongando-se até as 11 horas, quando alguém bate no ferro da enxada avisando que o almoço está pronto. - Cuidado! Pra não deixar a panela queimar! - Lembra seu Pedro. Tem que se mexer de vez em quando. E se o caldo baixa muito, pegase um caneco de água no pote e coloca-se na panela. O caneco é uma obra de imaginação! Uma quenga de coco aberta no meio. Furada de um lado a outro nas bordas, e um pau enfiado pelo meio. Serve também de concha para se retirar a comida da panela. Ali do lado, o saco com um pouco de farinha. E se ha carne assada, é colocada dentro da farinha, evitando-se os insetos. Nesse tempo é assim: almoço às 11 horas, jantar às 5 da tarde e uma ceia, geralmente de coalhada com rapadura raspada lá pelas 7 da noite. Só quem puxou enxada horas a fio sabe quanta energia pode ser gasta. No roçado, às 04h00 da tarde é hora de retirada. Um banho na cacimba do riacho próximo e voltam todos para casa. Não sem antes verificar os fojos (apetrecho montado com lata de querosene enterrada no chão entre as pedras). Três deles foram montados estrategicamente nas grotas do serrote a caminho de casa. Sempre havia uns preás ou mocós caídos nas armadilhas. Esse horário da tardinha é o mais propício para iscar os fojos novamente, colocandose rama de batata doce e pedaços de frutas, muito apreciadas pelos pequenos roedores. 20 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Vovô! Corre aqui! O fojo ta cheio de preá!... - Grita Francisco. O menino está eufórico. Nunca havia visto tantos preás numa só armadilha. - Eita! Meu filho! Amanhã vamos ter um torrado de preá no almoço! Afaste-se! Deixe-me abrir o fojo. Suba ali naquela pedra. Fique com cuidado! Onde tem muito preá, sempre tem uma cobra por perto atraída pelos guinchos deles!... Mas inda não é dessa vez que Francisco viverá a grande aventura de matar uma cobra. Retirar os preás de dentro do fojo é tarefa para especialista. Mas parece bem simples. Com uma forquilha de madeira com a ponta em Y o vovô entreabre o fojo lentamente... Logo o primeiro roedor mostra a cabeça na tentativa de cair fora. É então preso pela forquilha e com a mão o vovô segura o bicho pelo couro do pescoço, colocando-o em frente ao rosto lhe diz: - Hei! Camaradinha?!... Parece que logo mais você vai para a panela!... - Abre um saco de pano, desses de farinha, que sempre leva às costas e joga o preá dentro, vivo. Francisco, que assiste ao espetáculo bastante entusiasmado logo pergunta: - Vovô! Não vai matar ele? - Não, meu filho! Ainda não! Vamos torcer o pescoço dele só em casa. Para abrir e salgar logo. Não pode ficar morto muito tempo antes de se tratar (tirar a vísceras). Um por um, seis preás vão sendo colocados no saco. O pai, Pedro Elias, por sua vez, colhe uma braçada de ração para os animais. Não muito. Só o burro Carrité, animal perigosamente arisco que dá coices no vento, um vaquinha no curral com um bezerro, para suprir a família com alguns litros de leite diariamente. 21 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A coalhada farta está garantida todas as noites. As vezes, acompanhada de um pedaço de carne assada que sobrou do almoço. Desde que o inverno fosse bom. Caso contrário não haveria ração para alimentar os animais. A infância de Francisco, ali no sítio é tranqüila. Um ambiente bucólico. Na companhia do tio-irmão Elias, apenas três anos mais velho e a irmã Malvina, um ano mais moça, além da tia Chiquinha, já uma mocinha com seus quinze ou dezesseis anos. À noite, principalmente quando ha uma bonita lua Cheia, as palestras correm soltas no terreiro da casa, enquanto as crianças brincam de esconde-esconde cobertas com um lençol, simulando almas do outro mundo. No dia seguinte, 05h00 da manhã, seu Pedro levanta, pega o galão e sai apressado. O sol ainda nem nasceu. Ele vai pelo caminho na direção do riacho. Uma vereda estreita. O capim verde do pasto com cerca de um metro de altura preenche um lado e outro do caminho. Segura pelos ombros duas latas de querosene penduradas por cordas, em um pau curvado. Ele vai à cacimba do riacho como faz todos os dias logo cedinho obter água para as tarefas da cozinha de Josina. Ao passar ao lado do serrote próximo com as latas roçando sobre o capim, ouve a fisgada na lata. E o chiado do maracá da cascavel e se assusta! Agradece a Deus não ter sido alcançado pela cobra, e continua seu caminho. Na volta, ele passa pelo local cheio de reservas e cuidados. Quantos perigos aquele homem enfrentou para constituir sua família naquele lugar!... Em poucos minutos o dia já amanheceu e a passarada alegra a manhã. 22 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O tio Elias e Francisco são incumbidos de ir verificar os fojos, à procura de preás ou mocós que houvesse caído nas armadilhas. - Cuidado com as cobras! Tem algumas delas por aí! - Alerta seu Pedro. E tem mesmo. Outra cascavel aguarda por eles. Que experiência! Normalmente, os fojos são abertos empurrando-se uma pequena vara sobre a tampa de madeira, entreabrindo-se uma pequena brecha para ver se ha preás e mocós capturados. Na primeira armadilha, apenas um preá. Francisco abre o saco e o tio Elias joga-o dentro. - Feche bem a boca do saco pra ele não sair! Recomenda ele. Na Segunda armadilha não havia nada. No terceiro fojo, o tio Elias leva um tremendo susto! Ao pressionar a tábua para baixo eles ouvem nitidamente o chiado do maracá da cascavel. Solta rapidamente a vara: - Ih! Rapaz! Tem uma cascavel aqui dentro da lata. Mas nós vamos pegar ela! - Como sempre conduzia uma foice, foi a uma árvore próxima e cortou uma vara maior com uma forquilha em V. Aproxima-se de Francisco e dá as instruções: - Olha! Você vai enfiar a sua vara bem devagarinho na brecha da tábua! A cobra vai botar a cabeça pra fora tentando sair! Aí eu cravo a forquilha no pescoço dela prendendo no chão e você bate com o pau na cabeça dela até matar! Certo? Francisco acena com a cabeça que sim. - Você tá com medo? - Tô! - Não tenha medo! Assim que ela botar a cabeça do lado de fora eu prendo ela com a forquilha! Não tem perigo não! E assim é feito. Tão logo se abriu uma pequena abertura na tábua o primeiro que pulou foi um preá embrenhando-se no mato. A cascavel trata de escapar, mas o gancho do Elias estava esperando por ela. 23 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias P resa pelo pescoço ela joga todo o corpo para fora se enrolando na vara do Elias com aquele chiado infernal do maracá. - Vai Chico! Bate na cabeça dela com a vara! Francisco passado de medo, batia mais nas pedras do que na cobra sem conseguir abatê-la. - Me dê a foice! - Pede o tio Elias. E fazendo toda força para não tirar a forquilha do pescoço da cobra, foi se aproximando até poder alcançá-la com a foice desferindo-lhe uma forte pancada na cabeça. A cobra então amolece o corpo soltando-se da vara e despencando no chão. Mais umas duas pancadas com a vara na cabeça dela e a peleja estava terminada. Nesse dia não deu para conseguir um bom torrado de preá. Mas a feira da semana estava garantida. Enrolaram a cobra na vara, colocando as estremidades nos ombros e vão se aproximando de casa. Os adultos estão ainda amolando as enxadas. - Menino, mas o que é isso? - Pergunta seu Pedro. - Uma cascavel! Estava dentro do fojo! Deu trabalho, mas nós conseguimos matá-la! - Esclarece o tio Elias. Seu Pedro logo a abre a cobra pela barriga esfolando e tirando o coro. Sete palmos e meio. E exclama animado: - Eita! Que o dinheiro da feira tá garantido!... - Verificou então que havia três preás na barriga da cobra. Engolidos por inteiro. O que fugiu certamente ela estava guardando para comer depois. Passado o período de inverno seguem-se as plantações de arroz, melões, jerimuns, batata doce, feijão e outras plantações nas varzantes do açude. Período em que as águas já baixaram bastante descobrindo uma terra escura e úmida própria para esse cultivo. A colheita do arroz enseja muitas travessuras das crianças, 24 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias incumbidas de espantar os pássaros que aos bandos infestam o plantio de arroz. Francisco e Malvina, ainda bem pequena, têm a tarefa de espantálos. As aves de arribação também já chegaram para comer o arroz ainda nos pendões. No caso delas ha um atenuante. Às dezenas elas são capturadas em arapucas, armadilhas que o vovô Elias faz, trançando gravetos de árvores. Um punhado de grãos de arroz é colocado sob a arapuca, armada com uma espécie de gatilho feito com um cordão preso ao chão. As aves vão bicar os grãos sob a arapuca até que uma delas solta o cordão e a arapuca despenca sobre elas. É comum capturar até vinte arrribaçãs numa só arapuca. Isso dá um belo almoço de torrado para a família inteira. Lá pelo final da última década antes da virada do ano 2000, a caça dessas aves estará totalmente proibida, para evitar o seu completo desaparecimento. Mas ha alguns caçadores renitentes que, fornecem às escondidas para pessoas de total confiança, alguns pares. Arribaçãs e preás. Os manos Jonny Costa e Franksvictor costumam estocar no freezer dúzias deles, para oferecer aos familiares visitantes, em julho, na Festa de Santana. - Olhe! Não diga a ninguem não! Mas passa lá em casa hoje, que vamos comer um torrado de preá e arribaçã! É um convite e tanto! Mas voltemos ao arrozal de seu Pedro nos idos de 1945. - Vocês deixem de brincadeira e prestem atenção nos passarinhos que estão devorando o arroz!!! Ralha ele. Francisco e Malvina, correm um pouco espantando os pássaros, mas logo voltam às brincadeiras de esconde-esconde por dentro do arrozal, esquecendo- 25 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias se dos passarinhos. Sabe como são desligadas as crianças. Até que seu Pedro armado de uns gravetos de jurema grita: - Venham cá! - Seu Pedro, não bata nas crianças! Apela o preto Mane Pedro, que ajuda na tarefa de bater o arroz. Ha um grande monte de palha de arroz já batido, ao lado. Lá vem Francisco e Malvina já protegendo a bunda com as mãos, pois sabiam que ganhariam umas boas bordoadas. Francisco é sempre o primeiro. Enquanto isso, Malvina, chorando e totalmente vermelha pelo sol na pele corre na direção do monte de palha de arroz e tenta subir. Imaginando que o pai não lhe alcançaria naquela altura. Uns três metros. Mas a palha de arroz escorrega. Já quase alcançando o topo ela desliza voltando até o chão, para seu desespero. Ela tenta novamente. E chora cada vez mais, sempre que escorrega até embaixo. Lá se vai ela arrastando-se para subir o monte de palha de arroz mais uma vez. Desta vez ela consegue. É uma cena pitoresca. Uma pequena criança muito loira e queimada de sol, trepada num monte de palha de arroz. Chorando descontroladamente. O pai já terminou de admoestar Francisco e agora vai em sua direção. - Desça já daí!... Ele está muito bravo. Mas Malvina decidiu que aquele não era um bom dia para levar uma surra. E se mantém no topo. O pai faz mensão de arrastá-la lá de cima. Ela então mais depressa do que rapidamente, desliza para o chão pelo outro lado e corre em direção de casa. Seu Pedro fica só olhando. É até hilariante aquela cena. O preto Mané Pedro ri à gargalhadas tirando Pedro do sério. - Mas que galega danada! - Exclama ele, rindo gostosamente. Seu Pedro deixa a surra de Malvina para depois e volta ao trabalho. 26 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Francisco agora, amargando as bordoadas que levou deseja também ser um passarinho e voar para bem longe dali. A água do açude está recuando cada vez mais. Seu Pedro, com sua astúcia natural, observa a lama do açude. Amassa o barro com a mão e curioso pergunta: -Ô Mane Pedro! Será que esse barro dá uma telha boa? Ou tijolo? - Quem sabe, seu Pedro... É capaz de dar!... -Mas será que tem barro bastante? Ou será que cavando vai dar logo na areia? - A gente só sabe cavando, né seu Pedro! - Pois é! Vamos cavar um poço bem aqui, pra ver a profundidade da camada de barro. - E seu Ezequiel? Será que vai deixar a gente fazer a telha? - Eu vou conversar com ele. Certamente ele vai querer dividir o lucro. Mas vamos primeiro ver se o barro presta. Inspiração! Intuição! Extraordinárias ferramentas que o Criador deixou em cada um de nós, para nos ser útil em momentos de necessidade. Infelizmente, bem poucos entre os seres humanos têm dado a devida atenção a esses predicados naturais. Logo cavam um poço de 1 metro de profundidade mais ou menos e vêem que a camada de barro com uma liga de primeira qualidade para produzir telhas e tijolos, é bastante profunda. Amente de seu Pedro fervilha enchendo-se de expectativa. E faz muito sentido! Caicó, a cidade próxima, cresce a olhos vistos. Vai precisar de muita telha e tijolos para tanta construção. - Mané! Vamos vender telhas e tijolos lá em Caicó! Você vai ver. Eu conheço umas pessoas lá que constroem casas. Cumpadre Miguel, 27 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias meu irmão, é um. E isso aqui vai dar uma telha de primeira! Se Deus quiser vai dar certo! Logo descobrem outra alternativa com o poço. A água! Água para trabalhar o barro! Nem precisariam usar a água do açude, que já está bem pouca. Já se vê até os peixes com a cabeça fora da água tentando absorver o oxigênio. Além do mais, essa nova atividade será a salvação para seu Pedro. O compadre Ezequiel agora só deixa plantar capim na área restante do açude, para garantir a alimentação dos animais do seu curral. Na casa da fazendo eles fazem queijo de manteiga e manteiga de garrafa, que ele vende na cidade. É nesse período a única fonte de renda para manter o sítio. Cheios de esperança eles retiram o barro, improvisam umas formas de madeira apropriadas para fazer telhas e, literalmente botam a mão na massa. Após secarem umas dez telhas, improvisam um pequeno forno de tijolos e colocam as telhas para queimar. Queimou a noite toda. Após um dia esfriando do calor, eles retiram das cinzas as dez telhas lindíssimas, vermelhas, e duríssimas. Pedro Elias improvisa vários testes. Precisa saber a resistência das telhas. Algo que seria “um teste de resistência”. Pendura a telha com uma das mãos e com a outra bate nela com um pedaço de madeira. O ruído que se escuta é algo próximo do som de um metal. - Mané Pedro, eu não lhe disse! - Pedro Elias está exaltado. - Olha, Mane! Até hoje eu ainda não tinha visto uma telha tão resistente. Mané Pedro sorri até pelo seu olho esquerdo coberto de catarata. - É mesmo, seu Pedro, deu uma telha ispiciá! 28 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Vamos fazer outro teste Mane! E colocando a telha no chão duro, com as bordas para cima, convoca Mane Pedro para a nova experiência. - Mané, suba nas bordas da telha pra ver se ela agüenta! Mané subiu e achou graça novamente. A telha não se rompeu. Mané Pedro não é alto, mas pesa em torno de uns setenta quilos. Repetem o teste com duas outras telhas e o resultado foi idêntico. Tão empolgados com os testes, até esqueceram do almoço. Já vai lá pelas doze e trinta quando rompe o som do búzio pelos cercados adjacentes, chamando para o almoço. Ha um em casa, feito de chifre de boi, que usam para chamar alguém. O vovô Chico Elias é um exímio tocador de búzio. - Vamos almoçar! Vamos almoçar! Apressa Pedro Elias bastante contente. - Depois do almoço você vai comigo lá na casa da fazenda subir nessa telha pra cumpadre Ezequiel ver o que nós fizemos! O compadre Ezequiel Elpídeo, proprietário do sítio Riacho do Meio, é homem de sorriso largo, brincalhão e têmpera de otimista. Tinha de ser o primeiro a saber do grande achado. - O que tanto vocês estavam fazendo que perderam a hora do almoço? Pergunta Josina. - Mulher! Estamos feitos! Conseguimos fazer telhas da melhor qualidade com aquele barro do açude. Daqui ha pouco vamos à Casa da Fazenda conversar com o cumpadre Ezequiel e mostrar a ele! Ela também se enche de novas esperanças. Sabe o que significa uma nova alternativa para ganhar algum dinheiro nesses tempos difíceis. 29 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias S entam e almoçam fartamente, tocados por uma alegria nunca vista antes. O feijão verde temperado com nata do leite nunca esteve tão delicioso. Uma banda de preá assado para cada um e algumas arribaçãs torradas dão o tom da maravilhosa iguaria desse almoço até certo ponto festivo. Ha algo novo no ar. Prenunciando sucesso e realização pessoal. É isso que sentem as pessoas que detonam algum processo criativo. Elas se enchem de uma nova energia. E naquele caso, certamente a inspiração de seu Pedro para produzir telhas e tijolos com aquele barro, teria vindo de cima. Quem sabe, suas orações haviam alcançado alguma resposta. Sua idéia já está materializada ali. Naquelas telhas lindas. E resistentes. Vamos ver o que o compadre Ezequiel acha! - Pensa ele enquanto almoça. Após almoçarem Pedro Elias enrola três telhas num papel grosso e se dirige com Mané Pedro para a casa da Fazenda, distante uns mil e quinhentos metros. A tarde está muito quente. O pouco vento que sopra traz um bafo quente. Mas à sombra, o descanso na rede é muito apreciado após o almoço. Na casa da Fazenda um empregado está colocando uma cangalha no jumento para ir pegar o capim no açude e trazer para alimentar as vacas logo mais à tardinha. O pequeno chapéu de coro na cabeça, uma camisa bem rota e calça cortada até o joelho, o rudaque como chamam, dão-lhe bem a imagem de um Jeca Tatú, uma figura que Francisco tem no seu livro de escola. Ali no sitio o homem é conhecido como o vaqueiro, a pessoa que cuida do gado. Alimenta os animais, aparta os bezerros, tira o leite das vacas. E ainda faz o queijo no tacho de cobre. 30 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A o longe vê-se alguns redemoinhos que se formam levantando poeira do chão. Os cercados estão secos. Só gravetos de árvores ressequidas. Nenhuma folha ou sombra. A não ser em árvores de raizes bem profundas e resistentes, como a mangueira velha lá do açude e os pés de bananeira por traz da parede do açude. É preciso andar-se com um chapéu na cabeça. O sol queima tudo. A pele de seu Pedro já está muito manchada pela ação do sol. Ao chegarem o compadre Ezequiel descansa do almoço cochilando numa rede no alpendre. - Boa tarde, cumpadre Ezequiel! - Boa tarde compadre Pedro! O que os traz aqui? - Cumpadre, se sente pra ver uma coisa que eu lhe trouxe! - E abre o pacote mostrando as belas telhas. - Compadre Pedro onde conseguiu essas telhas? - Eu fiz cumpadre! Cavei um buraco na lama do açude e o barro lá é de primeira! E pendurando a telha bate nela com a junta do dedo produzindo aquele som metalizado. - Danou-se! Compadre Pedro! Parece até ferro! Deixe-me ver! - O compadre Ezequiel examina a telha bem devagar... E acrescenta: - Mas compadre Pedro você é um danado! Não é que conseguiu uma telha danada de bonita!... - Você ainda não viu tudo cumpadre! - Mané suba aqui nessa telha!... Manuel Pedro não se fez de rogado. Subiu na telha e balançou o corpo pra lá e prá cá. Confirmando a experiência anterior. - Exelente compadre Pedro! A telha é realmente muito boa! Mas como você descobriu que o barro do açude seria tão bom? 31 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Ora, cumpadre! Eu fiquei pensando... O que é que eu vou fazer para dar de comer a minha família, se a gente não consegue plantar mais nada... Lá em casa só tem umas 3 cúias de feijão e um paiol de batata no pé da parede. E se a seca durar muito tempo? O que vamos fazer? Seu Pedro esquecera de que Deus sempre dá o frio conforme o cobertor. E Ele nunca abandona os seus. - Mas compadre Pedro o que é que tá faltando para se produzir telhas aquí no sítio. - Preciso da sua autorização cumpadre! E quero saber como é que vamos dividir o dinheiro das vendas. Você acha que se consegue vender as telhas lá na cidade? - Com toda certeza, compadre! O Nezinho Vicente precisa de muita telha para o monte de casas que está fazendo em Caicó! Vou acertar com ele o preço e depois eu lhe digo! Mas vá logo preparando um galpão pra gente montar a estrutura. Amanhã mesmo eu vou a cidade e a tardinha lhe dou notícia! Gizélia! - Ele chama a esposa: - Venha ver o que compadre Pedro fez! Mande fazer ai um cafezinho pra gente! - Boa tarte compadre Pedro! Boa tarde seu Manuel! Francisco toma-lhe a benção. A sua madrinha é um exemplo de senhora educada e muito cordial. Afagando o afilhado ela também admira a criação de compadre Pedro. - Que maravilha! Compadre Pedro! Não sabia que você era também um artesão! - Virando-se para o esposo ela pergunta: - Vocês vão produzir telhas aqui no sítio? - Telhas e tijolos também! - Responde animado o compadre Ezequiel. - Assim me garante o compadre Pedro. O cafezinho já está chegando. - Meu filho! Amanhã de manhã venha pra cá para ajudar a raspar o 32 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias tacho, viu! - Diz ela para Francisco. Raspar o tacho é retirar a borra do queijo pregado ao fundo do tacho. É delicioso. Na manhã seguinte Francisco vai lá, sem falta. Ele adora a raspa do queijo e ela sabe disso. - Pois então tá combinado! Sendo assim eu já vou cuidando de arrumar tudo por lá! Dizendo isso seu Pedro se despede, agradece pelo cafezinho delicioso e volta com Mané Pedro. No caminho de volta a prosa dos dois é uma só: - Você viu seu Pedro! Como seu Ezequiel arregalou os olhos quando viu a telha? - Mas ora, Mané! A nossa idéia chegou bem na hora! Ele viu logo que vai ter muito lucro! Menos de vinte e quatro horas após o compadre Ezequiel trouxe a resposta. Ninguém nunca soube quanto ele cobrou pelas telhas em Caicó, mas seu Pedro iria ganhar um tostão por cada telha (algo hoje em torno de dez centavos). Não era muito. Mas a alegria de seu Pedro, por ver que a idéia dava certo encobria a sensação de perda. Não demora muito e a olaria do Riacho do Meio já está produzindo também excelentes tijolos. Os pedidos continuam aumentando. Agora podia vir seca como viesse! Aquele buraco de lama iria salvar a família de seu Pedro. Com a total ausência de rádio (televisão nem pensar naquele tempo), a família de seu Pedro Elias só aumentava. Agora já ha mais duas outras crianças na casa. E haja tijolos e telhas. Além da montagem do galpão com estacas de madeira e cobertura 33 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias de palha de coqueiro, as bancadas de madeira para estender as grades com as formas também de mandeira, que servem para moldar o barro, ha agora um obstáculo exigindo ainda mais esforços de seu Pedro. Faz-se necessário abrir uma picada no mato. Improvisar uma trilha como estrada rudimentar para que um caminhão possa passar. A picada teria uns três quilômetros até alcançar a estrada que passa nas redondezas. Seu Pedro e Mané Pedro se embrenham no mato com machados e foices. Em pouco mais de uma semana a picada está aberta. Dá para passar um caminhão, para poder retirar a produção e levar para a cidade. Mas na mente de Pedro Elias, isso é apenas um detalhe. Logo caminhões e caminhões estariam transitando pela estrada rudimentar. Ele é só otimismo. Um homem cheio de coragem e obstinação pode realizar coisas aparentemente impossíveis. Só precisa de uma boa motivação. E isso ele transpira de sobra, em suor e dores pelo corpo. Músculos jovens, mas cansados e moídos de tanta carga de trabalho em excesso. Mas é preciso. É urgente. Nada vai impedí-lo. Asalvação da família está naquela iniciativa pioneira e corajosa. O compadre Ezequiel aparece por lá certo dia para ver como andam as coisas. - E aí compadre Pedro! Como vai a estrada? - Tamos quase terminando compadre! Pra semana o caminhão já vai poder encostar! - Mas, e a telha? Ainda está crua, não é? - Vamos aproveitar essa madeira que cortamos aqui na picada cumpadre! Esta semana já começaremos a queima da caieira!- (Um amontoado de tijolos em forma de grande forno em pirâmide, dentro do qual as telhas são empilhadas e queimadas com muita lenha). 34 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A grande fornalha mede aproximadamente quatro metros por cinco, por uns dois de altura, em duas camadas.Ao seu redor ha pequenas entradas rente ao solo, por onde o fogo é alimentado com a madeira. A caieira queima uma noite inteira até que as telhas ou os tijolos fiquem em brasa. O jumento Carrité nunca trabalhou tanto, transportando toda a madeira até o local da caieira. E chega a grande noite! Aprimeira queimada! É um acontecimento festivo. São oitocentas telhas para queimar. Francisco exulta. Ha algo para se comemorar. Nunca tinha visto a queima de uma caieira. À noite, sob o pé do velho Juazeiro, próximo ao grande forno, todos se reunem para acender o fogaréu. Francisco e o tio Elias levaram suas redes que armaram nos galhos do juazeiro. Vão dormir a noite ali. Não perderiam por nada aquele acontecimento. O cachorro está latindo ao longe. Deve ter acuado alguma caça. Mas esta noite, quem está ligando para os latidos de Tubarão! O fogaréu da queimada é a grande atração. Um pote de barro com água fria e canecas de alumínio foi colocado no tronco do Juazeiro. E também uma garrafa de Chica Boa embaixo do pote. Mané Pedro é muito chegado a ela. É a pinga de sucesso na época. Chica Boa adorna o rótulo da garrafa com um corpo escultural e um braçado de cana de açúcar no ombro. O sorriso dela deixa Francisco pensativo: Como é que fazem isso!... Como desenham ela?... O marketing boca-a-boca já é muito praticado nesse tempo, principalmente numa cidade interiorana e sub-desenvolvida como Caicó. As coisas acontecem a partir de certas iniciativas. Principalmente se 35 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias o propagandista desfruta de boa credibilidade. E isso o compadre Ezequiel tem de sobra na cidade. Já se encarregara de andar pela cidade com uma telha embaixo do braço, batendo com a junta dos dedos para que todos ouvissem o tom parecido com metal. Alardeando e divulgando para quem quizesse ouvir, ele avisava que logo os caminhões estariam descarregando em Caicó a melhor telha e tijolo que jamais haviam sido fabricados antes no Seridó. A produção virá do seu sítio Riacho do Meio. O compadre Nezinho Vicente já aguarda com muita espectativa o primeiro caminhão de telhas. Noite de escuridão sem luar. Céu coberto de estrelas. Redes armadas embaixo do juazeiro e o fogaréu da caieira queimando a noite toda as telhas colocadas lá dentro. A lenha é freqüentemente enfiada nas aberturas para alimentar o fogo. Aquilo é um espetáculo diferente e inusitado para o menino Francisco, que da sua rede juntamente com o tio Elias assistia o trabalho dos homens. Vez em quando, eles vêm até o juazeiro cumprimentar a Chica Boa. O preto Mané Pedro é o mais interessado. Bebem para combater o sono enquanto alimentam a caieira com a lenha. Não podem dormir. Na manhã seguinte, só fumaça. A caieira havia sido cozinhada ao sabor das chamas da jurema e do pereiro. Agora é esperar três dias até tudo aquilo esfriar, para poder retirar as telhas e arrumar tudo num canto. O caminhão virá na segunda-feira para transportar a primeira carrada de telhas para a cidade. - Vai dar um bom dinheiro!... - Pensa seu Pedro. - Mas , ô com os diabos!... Só um tostão cada telha!... É muito pouco!... - Mas vamos em frente! - Continua ele com Chica 36 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Boa assanhando seus pensamentos. Manhã do terceiro dia. Chega então o momento de retirar todas as cinzas e entulhos que restam dentro da caieira. As bocas das entradas são bem pequenas. Ha alguns amontoados de cinzas em recantos internos daqueles espaços exíguos. Olhando-se pelas portinholas da caieira só se via montes de cinzas lá dentro. Seu Pedro tenta retirá-las com enxadas colocadas em varas compridas. Mas ha pequenos montes de cinza em locais inacessíveis. Para um garoto, até que seria fácil entrar pela portinhola e arrastar as cinzas até perto da boca de saída. Seu Pedro então requisita o garoto Francisco que sempre estava por perto, para penetrar pelo buraco daquela câmara e ajudar a puxar as cinzas para perto da saída. Seu Pedro lhe entrega uma enxada pequena com instruções para ele puxar as cinzas. E lá se foi o menino Francisco caieira a dentro. De início, estranhou o forte odor de queimado exalando das cinzas. Ao puxar a enxada para perto de seus pés, Francisco dá um pulo para traz com um grito de terror, batendo com a cabeça no teto, que ali dentro é bem baixo. Ele precisa permanecer curvado. Papai! Papai! Tem uma cobra aqui!... Seu Pedro assusta-se igualmente pelo lado de fora. Abaixa-se colocando a cabeça na portinhola: - Onde, meu filho? Cadê? - E logo avista a peçonhenta Jararaca de bote armado pronta para atacar o menino. São momentos de tremenda angústia e sofrimento para seu Pedro. E de grande susto para o menino, que de tanto medo, está semiparalisado. O espaço interno não lhe permite levantar-se totalmente. Sua cabeça encosta no teto. - Recue meu filho! Afaste-se! Venha depressa caminhando junto à 37 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias parede para cá! Depressa, meu filho! E logo alcança os braços do menino, puxando-o para fora todo sujo de cinzas. Até o momento de se ver fora da caieira, era como se a mente de Francisco tivesse paralisado. Ele só consegue ver a imagem da cobra se enroscando e aprontando o bote na sua direção. Voltou à realidade ao ver seu pai ajoelhado com as mãos postas para cima, rogando a Deus. - Ah meu Pai do Céu! O que eu fui fazer com meu filho! Perdão, meu Deus! Perdão! Nunca mais eu vou cometer um erro desses!... Mane Pedro aproxima-se trazendo um galão de água para a olaria. Não está entendo aquilo. - Seu Pedro, o que foi que houve!... - Mane! Pelo amor de Deus! A cobra quase mordeu o menino ali dentro da caieira! - Mas como foi isso, seu Pedro? Enquanto explica, seu Pedro foi pegando uma vara comprida e, aproximando-se da boca da caieira... - Uma Jararaca, criatura! Tá lá dentro! Vamos matar essa condenada! E partiu para a ação arrastando a cobra para fora, esmagando a cabeça dela em seguida ainda cheio de pavor misturado com raiva. De fato as cobras gostam de um pouco de calor. E as cinzas ainda mornas naquela manhã, era um bom lugar para elas. - Tome, mô fio! Um copinho de água! Você se assustou muito? Oferece Mane Pedro. O menino só confirma acenando a cabeça. Aprimeira carrada de telha já está pronta. Tudo arrumado em fileiras aguardando o caminhão que virá transportar para a cidade. 38 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O compadre Ezequiel já está nervoso. Os clientes exigem a entrega das telhas. E na manhã da segunda-feira seguinte o caminhão chega para transportar o primeiro carregamento. Um Chevrolet GMC com boléia de madeira, aberta. Apenas um banco estofado, uma cobertura com dois antebraços, um de cada lado, parecendo mais um sofá com cobertura. O cheiro da gasolina! Que cheiro interessante! Penetrando pelo nariz de Francisco que se delicia com aquela sensação diferente! É impressionante, como o odor das coisas diferentes afetam o olfato das pessoas que habitam o campo. Principalmente as crianças. Acostumadas ao aroma das plantas, das flores silvestres, dos animais. Cheiro de caminhão, óleo queimado misturado ao odor da gasolina, isso é muito novo para o nariz do garoto Francisco. E a boléia do caminhão! Uma coisa do outro mundo! O volante, a alavanca de marchas, os pedais, aqueles botões pretos, tudo é novidade para ele. - Pode sentar na boléia! Mas não toque em nada, certo! Recomenda o motorista. Francisco então se delicia. Senta no banco. Ha se o banco da latada lá de casa fosse macio assim!... Examina ele apalpando o estofado do banco da boleia do caminhão. Examina todas aquelas coisas. Desce um pouco. Vai lá na frente examinar aquelas bolas de vidro. São os faróis. Como será que acende eles? Uma tremenda diversão. O coração de Francisco está aos pulos. Ao se aproximar da casa o motorista havia buzinado: Bi Bit! Francisco se perguntava: Como será que ele faz para tocar a buzina? Tudo é muito fantástico para ele. E aquele cheiro especial!... A única vez que estivera antes perto de um automóvel foi lá na estrada de Jucurutu. Do outro lado do sítio. Estrada de piçarro de pedras. 39 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N ão ha asfalto nesse tempo. Passou uma baratinha preta pela estrada. Francisco nunca havia visto aquele bicho. E desabalou-se na carreira enquanto o automóvel passava a toda velocidade. Que a se julgar hoje, não deveria ser mais que 30 ou 40 quilômetros por hora. E agora ali estava ele! Sentado na boleia do caminhão, curtindo aquela emoção misturada com cheiro de gasolina. Uma maravilha! Dias depois, o motorista que já observara o grande interesse de Francisco pelo caminhão, lhe dá uma carona, não mais que uns quinhentos metros pela estrada da picada. Foi fantástico. Ver o chão passando ao seu lado. Os rastros dos pneus pela estrada. - Gostou Chico? - Pergunta o tio Elias. - Gostei! Mas fiquei meio tonto! - Todos riem da sua ingenuidade. O trabalho continua duro na olaria. De quinze em quinze dias ha uma queimada da caieira. E uma Chica Boa por perto, para deslumbramento de Mané Pedro. O vovô Chico Elias também é chegado. Toma lá os seus goles. Tem dia de sábado que ele vem da feira capengando. - Compadre Chico hoje vem por cima! - Comenta Josina ao vê-lo se aproximar com o saco nas costas, como sempre, alegrando as crianças com os pães que traz da cidade. Quase um ano já se passou. Após tanto trabalho e uma renda tão minguada pela produção das telhas, Pedro Elias vai conversar com o compadre Ezequiel tentando melhorar o pagamento. Mas foi em vão. Não conseguiu o aumento tão desejado. Embora todo mundo na cidade não poupe elogios à qualidade das telhas e tijolos que eram feitos na olaria do Riacho do Meio. O mérito era todo dele. E saía 40 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias ganhando tão pouco. Do que recebe ainda tem que pagar a seu ajudante Mané Pedro. Como tudo que fazemos na vida, depois de passado o deslumbramento, vem a realidade. E a sensação não é nada boa. Outro dia na feira haviam-lhe informado que a telha era comprada por três tostões à unidade. Isso o deixou um tanto desolado. Por isso foi conversar sobre um reajustamento mais uma vez com o compadre Ezequiel. Não havia jeito. O homem não cedia nada. Então Pedro Elias cai na real. Acha que o que está recebendo não é justo. É uma sensação dolorosa. Mas é verdade. Todo o trabalho é dele. E de Mané Pedro. E às vezes até das crianças também. A situação está ficando insustentável. Até quando iria se manter, isso ele não sabia. Mas já não era mais possível fazer o trabalho com a mesma vontade e obstinação. Pedro Elias foi ficando amargo. Vez ou outra desabafa a situação em casa. Um acidente de foice mais tarde o levaria a cidade, onde na farmácia, passando para comprar remédio, receberia um convite irrecusável, que a seu ver iria mudar completamente a situação. Mas a vida tinha de continuar. - Tenha paciência homem! -Aconselha Josina. Outra vez a família está vivendo um período de muita carência. É final de um verão muito seco. Ainda não ha expectativas promissoras para o próximo inverno. Após o almoço, Francisco apura o ouvido. Está escutando um som estranho vindo dos cercados. - Vovô o que é aquilo? - Pergunta ao vovô Pai Chico Elias. - É a Seriema meu Filho! É um pássaro grande. - Francisco ainda não conhece a Seriema. O vovô explica: - É quase do tamanho de um peru! Com as canelas bem compridas! Ela não voa. Mas corre como 41 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias uma condenada! Nem os cachorros a pegam na carreira. Elas estão por aí, fazendo seus ninhos no chão. As cobras que vão tentar comer os seus ovos, elas matam. São umas danadas! Mais tarde, lá pelas três e meia da tarde, como freqüentemente ocorre nesses períodos de dificuldade, Pedro Elias carrega a espingarda de soca bucha. Pega o bisaco no qual leva reservatórios de chifre de boi, com pólvora e chumbo para recarregar a espingarda e se embrenha pelo cercado. Vai tentar matar uns mocós nas cercas de pedra. Precisa providenciar a mistura de carne para o almoço do dia seguinte. Batata doce, cuscuz de milho, arroz de leite e farinha, isso tinha em casa. Mas precisava um pouco de carne. Qualquer coisa. Desde arribaçã assada ou torrada, um preá ou mocó torrado no toucinho, qualquer coisa que conseguisse seria o complemento para o almoço. Ao longe, escuta-se os tiros da espingarda. São umas cinco e meia da tarde. O pai de Francisco está de volta. Trás algo grande pendurado na mão. É uma das tais seriemas. Havia conseguindo a mistura de carne suficiente para dois almoços. Francisco fica observando a mãe despenar a seriema. Sem as penas, era pouco maior que um frango. - Mamãe! As penas dela são cinza! - O menino Francisco está cheio de curiosidade. - É para elas se camuflarem dentro do mato seco meu filho! Assim elas se escondem das raposas! Aleve menção da raposa já deixa Francisco arrepiado. Até as galinhas do terreiro de Josina vez ou outra são ameaçadas por elas. A seca da região afeta também a fome dos animais. Faz parte do ciclo da natureza. 42 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A vida do trabalhador do campo no Nordeste sempre foi assim. De muito sofrimento. Como um parto que nunca termina. Alguns momentos de alegria de vez em quando, mas no geral, é mais sofrimento.Ainda hoje deve perdurar esse condicionamento. Os pais de Francisco vêem sua família crescer, e junto, vêem os problemas. Embora pessoas muito simples, ele principalmente, semi-analfabeto, imaginam que deva haver um jeito de conduzir seus filhos para um rumo melhor. Enquanto ainda bem pequenos, Josina se encarrega de lhes ensinar o alfabeto (a famosa cartilha de ABC), e contas de somar e diminuir. Isso ela dá conta. Não quer ver seus filhos crescendo analfabetos. Quando um deles já consegue escrever o seu nome todo, é uma festa. Uma comemoração. Mas... A injusta palmatória ainda reina absoluta nesse tempo. Sabe como é! Costume é costume. As escolas desse tempo usam a palmatória. Um instrumento de repreensão aos alunos. Ela é vista como um grande aliado da professora para manter a mente das crianças fixas nas tarefas escolares. Escreveu não leu, o pau comeu! Deve vir daí esse adágio tão popular. E na escola de Josina, uma vez ou outra, muito a seu contragosto é aplicada. Não haveria de ser diferente. Principalmente porque, mesmo contando com a ajuda da tia Chiquinha, ainda mocinha, haviam tarefas da casa que Josina precisa dar conta. Passa a lição, a criançada fica na sala estudando, incluindo alguns poucos filhos de outros agricultores que moram por perto, enquanto ela se ausenta um pouco para cuidar de seus afazeres. E aí, já viu! Quatro ou cinco crianças numa sala... Um quadro negro pendurado na parede com as lições... O quadro é mesmo preto, feito de um material betumoso e duro, circulado com tariscas de madeira. Escreve-se nele com umas pedras moles e cinzentas 43 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias colhidas no tabuleiro que substituem o giz. Um pequeno apagador, completa o quadro. Nos armadores de rede nas paredes, chapéus pendurados, das crianças, para se protegerem do sol. Ha até merenda escolar. Um pedaço de rapadura, uma batata assada, um taco de jerimum caboclo, daqueles bem durinhos, um pedaço de bolo de fubá... Merenda que cada um traz e entrega a dona Josina. Ela guarda as merendas no girau da cozinha, para a hora do lanche. Menino! Isso é um belo de um convite para travessuras mais atiradas. Certo dia, a galega Malvina, já com seus três anos de sapecagens resolve fazer uma visita às merendas, surrupiando o lanche de uma das crianças. Um transtorno para dona Josina na hora de distribuir amerenda. Obrigando-a a providenciar um lanche mais suculento para aquela criança, que transtornada se derrama em lágrimas prometendo que vai contar tudo à MAMÃE! Quando chegar em casa. Não precisa raciocinar muito para perceber que hoje, após as crianças saírem, a galega vai receber um corretivo de palmatória. Como assim é. - Ai ai ai! Ai ai ai! Ai ai ai! - Você ainda vai mexer nos lanches das crianças? - Não mamãe! Não vou mais não!... Vou mais não!... Ai ai ai! Ai ai ai!... A galega parece uma pimenta de tão vermelha, chorando e amargando as bordoadas que acaba de levar. Malvina é realmente muito impossível, (quando se queria dizer impulsiva). E ai! de quem esboçasse um sorriso quando outra criança apanhava de palmatória. 44 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Levaria o dobro de bolos na palma da mão. E se tentasse correr, ia na bunda mesmo. A temida palmatória é pesada. Tem crianças que se urinam ao experimentá-la a primeira vez. A palmatória ainda fará outros capítulos, como veremos mais adiante. É uma dureza! Sempre fica lá no quadro negro escrito: Três bolos de palmatória para quem não fizer o dever da aula. Palmatória para quem cochilar, para quem fizer arruaça, bater em outra criança, e vários ETCs. A Palmatória é então, um recurso exemplar apoiado pelas escolas oficiais e até pelos próprios pais das crianças. Elas não têm mesmo para quem apelar. Alguns pais até ameaçam: - Se apanhar na escola apanha em casa de novo quando chegar! Alguns anos depois a palmatória será abolida de vez pelo Ministério da Educação. E até proibida. Mas por enquanto, essa é a prática primitiva na educação das crianças. Nós somos produto natural daquilo para o qual fomos treinados. Não é isso que ensinam os estudiosos da natureza humana? Pois estou fortemente estimulado a pensar que ha algo errado no modelo de montagem do arquétipo da família moderna, agora nesses tempos de início de um novo milênio. (Ano de 2006). Friso isso porque imagino pessoas à frente de nosso tempo atual, nossos descendentes. Em que tipo de sociedade viverão? Quais os novos modelos intelectuais para o equilíbrio da sociedade de então? Como viverão as famílias? Como serão educados os seus filhos? Quais fatores da vida moderna estarão influenciando diretamente a cultura dos povos. Quais as transformações decorrentes? Pois é justo presumir que o empenho da humanidade continuará, para melhor. Então é importante se saber as diferenças obtidas desde os primeiros passos. 45 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C onsideremos que, estudar nosso passado é um exercício de cidadania. Vejo atualmente uma sociedade doente. De muitos males. Os mais sofisticados. Frutos de muitas tendências decadentes e estímulos errôneos recebidos. Ouço pessoas dizerem, que o afã do consumismo está produzindo parias numa sociedade desorganizada, em que os bandidos trancafiados nas prisões, fazem ali seus escritórios de atuação a serviço do crime organizado mantendo refém essa mesma sociedade desorganizada. Certos ou errados, modernos ou ultrapassados, esses modelos escrevem coisas no espírito humano como cartilhas de aprendizado. Como clichês que serão reproduzidos e reproduzidos incessantemente.Tão duramente quanto aquelas palmatórias do passado remoto. Ou até bem pior. Resta avaliar qual modelo produz um desajuste maior. A cada instante a célula mãe se deteriora cada vez mais. Empolgome nesses pensamentos porque sei que meu tempo não irá muito longe. Não alcançarei em vida, tão significativas transformações sociais. Resta a esperança de que elas ocorram. Para bom aproveitamento de nossa decendência genealógica. Torcemos por eles, vivendo em um planeta melhor no futuro. Repetimos o que ouvimos de nossos pais e avós: - Tem nada não meu filho! No futuro o mundo vai ser melhor! As gerações estão crescendo nesses idos de 1945, estruturadas psicologicamente ouvindo os pais, professores, estudiosos, especialistas, políticos, religiosos, todos, em várias épocas diferentes, dizerem que um dia tudo irá melhorar. Vejo meu pai exclamar coisas assim. Como o vejo, no ocaso de sua vida, repetindo as mesmas coisas. Assim como vejo minha mãe ainda viva neste 2006 para nossa 46 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias alegria, aos oitenta e quatro anos de idade, ainda lúcida, acreditando em coisas das quais muitos nem se lembram mais. Estou vendo eles passando, assim como eu também vou passar, sem que surja a solução definitiva de estabilidade da raça humana. Para os filhos de Pedro e Josina houve muitas transformações. Este que escreve é um exemplo. Mas quantas outras famílias sucubiram na tarefa de orientar o progresso de seus filhos! O mundo, a modernidade, a falta de educação e cultura lhes tem cobrado um preço muito alto. Enquanto isso, o vovô Chico Elias, encarregado de cuidar das plantações de fruta e batata doce nas margens do açude, está às voltas com um problema. Os melões estão amadurecendo. Grandes e cheirosos. Mas as pestes das raposas estão lhe dando a maior dor de cabeça. À noite, elas procuram os melões mais maduros e comem um pedaço do fundo. Deixando lá o resto imprestável. Já é a terceira vez que acontece isso e o pai Chico Elias chega para o almoço com os nervos à flor da pele: - Raposas dos trezentos diabos! - Que foi, papai? - Pergunta seu Pedro. - As pestes estão devorando os melões todas as noites! E escolhem os melhores! Os maduros e cheirosos! O desgraçado desse cachorro nem toma conhecimento delas! Esbraveja ele. Claro. As plantações estavam abaixo da casa, a favor do vento. À noite o cachorro não tinha como farejar o odor das raposas. A não ser que o vento mudasse direção. Então o preto Mané Pedro apresenta uma sugestão: - Ô seu Chico! Eu acho que sei como o senhor pode resolver essa questão com as raposas!... - Diz isso rindo gostosamente. 47 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N a verdade está curtindo a raiva do seu Chico Elias. Que reconhecidamente, não gosta nem um pouco de preto. De fato ele é um racista confesso. Faz questão de afirmar: Negro não presta! Mas o Mané Pedro, ele tolera. Faz de conta que não, mas percebe-se que ele gosta de Mané. Deve ter herdado de seus ancestrais portugueses esse ranço pela negritude. Mané Pedro seguramente, é o único preto com quem ele se relaciona razoavelmente bem. Mas fala com desdém: - Diga lá Mané Pedro! Que solução milagroooosa é essa? - Seu Chico! - Continua falando mansamente Mané Pedro. - É muito fácil! O senhor corta uma vara de bambu bem comprida! Enterra ela no chão! Dobra a ponta e arma uma armadilha com uma laçada de corda abraçando o melão! Mas não corte o melão! Deixe ele inteiro! Vovô Chico Elias fica olhando um pouco admirado para Mané Pedro. Em seguida, vira-se para as pessoas presentes e devolve carregando na ironia: - Não é que o negro pensa?... E você já viu isso funcionar, Mané Pedro? - Já! Seu Chico! Eu lhe mostro como fazer! O preto é mesmo uma doçura de pessoa. Por isso todos os netos de vovô Chico Elias gostam tanto dele. Mas tarde, sem Mané por perto, Josina comenta: - Mas compadre Chico! O Mané Pedro é uma pessoa tão bondosa! Por quê o senhor fala assim com ele? - Rindo de soslaio o vovô responde: -Minha comadre! Tá certo que Mané Pedro é um preto de alma branca! Mas preto é preto! A gente tem que andar com eles com um 48 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias pé atrás! O vovô também é uma vítima do preconceito arraigado ha séculos. Da intolerança da cultura ancestral, vinda de portugal juntamente com os negros escravos trazidos em porões de navios negreiros. Ele só reproduz essa herança maldita. Logo cedo vovô Chico Elias vai procurar uma boa vara de bambu E à tarde, Mané Pedro, voltando da olaria vai lá ajudá-lo a montar a geringonça para capturar a raposa ladrona. Mané Pedro é um bonachão. Está sempre rindo. Não guarda rancor de ninguém. Nunca se viu ele com semblante raivoso. Ajuda o vovô Chico Elias a enterrar a vara, ensinando com grande paciência como preparar o laço da corda abraçando o melão. Tudo preparado! À noite após o jantar as conversas giram em torno da captura das raposas. No plural, claro. Não se sabia quantas estavam visitando a plantação de melões. Odia amanhece. Logo depois de uma xícara de café, seu Chico se dirige ao local da armadilha. Dessa vez o cachorro também engrossa a fila que segue seu Chico. As crianças se divertem na maior expectativa. De longe, todos já avistam a mesura. Ha realmente uma raposa pendurada na vara. O cachorro logo chega ao local ladrando ferozmente. Seu Chico, que já conduzia sua foice, cortou um bom ramo de pereiro e se aproxima para saudar a raposa. - Cala a boca! Seu gôzo! - Ralha ele com o cachorro. - Bom dia camarada raposa! Como passou a noite? - A raposa lhe arreganha os dentes. Pendurada na vara a uns dois metros do solo. - Segurem esse cachorro! - Grita seu Chico. E se dirigindo a Mané Pedro ele solicita muito amavalmente: - Mané! Empurre a vara baixando um pouco essa safada! Feito isso, seu Chico aplica-lhe a maior surra de cipó de pereiro que 49 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias uma raposa já levou até então por aquelas redondezas. Ficou bastante suado de vergar o ramo no espinhaço da raposa. Mas agora sua expressão é de total satisfação. Depois de muito apanhar a raposa já não reage. Mané afrouxa a corda e ela cai mole ao chão, toda moída com a surra que levou. Para finalizar a exibição, que muito diverte as crianças, seu Chico dá o golpe de misericórdia com o olho da enxada na cabeça dela. Outras armadilhas foram montadas nas noites seguintes. Mas felizmente, aquela era a única que vinha comendo os melões de seu Chico Elias. Por vários dias a surra da raposa foi o assunto das conversas entre os moradores do sítio. No Domingo seguinte acontece uma tragédia para Francisco. O jumento Carrité, animal de cangalha e de cela da casa, sempre foi muito arisco. Montar nele não era fácil. A não ser Pedro Elias, que havia amansado o animal na porrada. Por motivo desconhecido, no Domingo ele resolveu celar o animal para mandar o seu irmão Elias e Francisco lá na casa de compadre Chico Bobôco, seu sogro, que mora lá pras bandas da Serra de São Bernardo. Aperta bem a correia da cela com o jumento dando coices. Ha dois caminhos pela parte traseira da casa. Um que leva ao açude e outro que vai na direção da barragem, por onde eles deverão seguir. Segura o cabresto do burro e manda Elias montar. O jumento já reclama se mostrando muito inquieto. Em seguida alguém levanta Francisco e coloca-o na garupa do animal. - Segure bem na cintura de Elias! - Orienta Pedro Elias. - E você Elias, mantenha o cabresto bem puxado! Não afroxe a rédea! O burro tem que andar com rédea curta! - Solta o cabresto e dá um tapa nas ancas do Carrité. 50 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A lguém já viu um jumento doido? Alí está um. Carrité aprumou o fucinho na direção do açude e dispara correndo loucamente, peidando e dando coices no vento. No terceiro peido, Francisco despenca de cima da garupa caindo frouxamente sobre uma touceira de milho seco. Bem no tronco do pé de milho ele encontra uma pedra, batendo nela com o braço esquerdo, quebrando a munheca. Chegando ao açude o jumento Carrité dá meia-volta e dispara rertornando para casa. Passa em frente às pessoas com orelhas murchas tomando o outro caminho na maior disparada. Pedro Elias grita para o irmão: - ELIAS! SEGURE O CABRESTO! - EU NÃO AAAACHO! - Responde ele em total aflição, aos solavancos, tentando não se soltar da cela do animal que prosegue sua trajetória louca dando coices ao vento e peidos enormes. Claro! A segurança falava mais alto. Elias já havia soltado o cabresto há muito tempo, deixando o jumento correr de rédea solta, agarrando-se à lua da cela tentando não cair também. Por sorte, um quilômetro depois ha um riacho com água e Carrité riscou! Só foi o tempo de Elias saltar no chão. Daí ha pouco chega em casa de volta puxando o Carrité pelo cabresto. Francisco, a essa altura, chorando sem controle, acaba de ser retirado do tronco do pé de milho e levado para casa para encanar o braço. - Quebrou o osso do braço! - Diz o vovô após um breve exame. Alguém me arranje duas tariscas de taquari (lascas feitas de casca de bambu seco, bastante resistentes). Manda providenciar um emplastro caseiro, besunta o braço do menino, enrola com um pedaço de pano, põe uma tarisca de cada lado e enrola o braço com outro pano apertando bem forte. - Ta pronto! Comadre Josina faça uma tipóia pra colocar no pescoço 51 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias dele e segurar o braço! E você, meu filho! Tenha todo cuidado com esse braço para as tariscas não saírem do lugar! Daqui ha um mês esse braço tá novinho em folha! Manda providenciar chá de casca de Aroeira para o menino tomar duas vezes por dia. Vai ajudar a colar o osso. Diz ele. Enfermaria rural. Isso é bastante praticado nesse tempo, utilizando-se os remédios caseiros. Atal viagem foi imediatamente cancelada. Esse não seria um bom jeito de começar o Domingo. Oh! Tempo! Oh! Vida sofrida de lavradores! Oh! Infância sacrificada!... As crianças também pagam seu preço. Vivendo em grande simpliscidade, com brinquedos toscos. Ossos de animais são seus carrinhos puxados por um cordão. Bonecas de pano que Josina mesma faz para as meninas!... Quando se vê as crianças dos dias atuais, destroçando seus brinquedos caríssimos, tem-se a impressão que elas não estão sendo suficientemente bem educadas. Mais um fim de ano está chegando. Dezembro de 1947. Como sempre aos sábados os adultos estão indo à feira na cidade. Uma experiência inusitada vai ser oferecida ao vovô Chico Elias. Ha um circo armado na cidade. E este é um divertimento espetacular para os caicoenses. Lazer e diversão para todos, a preços módicos. O Ezequiel Elpídio, muito brincalhão e gozador, gosta de se divertir com a ingenuidade dos outros. Resolve pregar uma peça no vovô Chico Elias. Convída-o para ir assistir o circo. Aos sábados o circo realiza espetáculos também à tarde. Claro! Para receber o pessoal que mora no meio rural e que está na cidade por conta da feira. O vovô nunca havia assistido um espetáculo circense em toda a sua vida. 52 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Vamos seu Chico! Eu pago sua entrada! - Insiste Ezequiel. O vovô Chico Elias, cheio de curiosidade, resolve aceitar. Longe de saber a prezepada que Ezequiel está engendrando para ele. Jamais se separa de seu saco de pano que conduz sempre no ombro, mesmo quando está vazio. Fosse a onde fosse. Seu saco ia junto. Principalmente à cidade nos dias de feira. E lá se foram ao circo. Chegando lá Ezequiel ausentou-se um pouco. - Eu volto já! - Disse ele. - Vou comprar os ingressos! O vovô fica ali parado aguardando em frente ao circo, observando o ruge ruge de gente se espremendo numa fila para entrar. Já são 15h00 e o espetáculo já vai começar, pois termina às 16h30. O vovô observa tudo com curiosidade. Ezequiel combina então com o homem da portaria para não deixar o velho entrar com o saco. Manda o homem esconder o saco para provocar uma confusão na saída. - Está aqui os ingressos! Vamos entrar! - E se aproximam da entrada. - Desculpe Senhor! Mas não pode entrar no circo com esse saco! - Como não pode? - Responde curioso o vovô. - Não pode, senhor! O senhor deixa o saco aqui comigo e pega na saída. - É! Chico Elias! Entrega o saco pra ele! Na saída a gente pega! Diz Ezequiel. O vovô então atende a imposição e entrega o saco ao homem. - Cuidado viu! Aí tem uns brinquedos dos meus netos! - Sim senhor! Pode ficar tranqüilo! - E os dois entram no circo. Terminado o espetáculo, muita diversão, muitas risadas, a multidão se dirige rápido para a saída. O portão de entrada está escancarado com toda aquela gente querendo sair ao mesmo tempo. Vovô Chico Elias vai sendo cuspido para fora espremido na multidão e tenta enxergar o tal homem com quem deixou o seu saco e já desesperado não o encontra. Demonstrando todo 53 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias descontentamento ele pergunta: - Ezequiel! Cadê o homem com o meu saco? - Não sei Chico Elias! Estou procurando ele, mas não acho! O vovô não se contém e então barre a quenga, como se diz nesse tempo, quando alguém está muito irado. Bradando no ar a sua bengala, da qual também nunca se separa, ele grita estridentemente no meio daquela multidão: - Apareça! Seu desgraçado! Com o meu saco! Apareça! Se não eu vou quebrá-lo de cacete!... Ezequiel está rindo às gargalhadas e o homem do circo, já preocupado com aquela propaganda negativa aproxima-se devolvendo-lhe o saco. - Está aqui, senhor! Aqui está! É que eu estava lá atrás e não vi o senhor! Ao receber seu saco e examinar se os brinquedos todos estão lá dentro, o vovô joga o saco nas costas e dirige aquele olhar 49 muito irado na direção de Ezequiel, e muito desconfiado desabafa: - Isso é prezepada sua! Seu cachorro! - Retirando-se, pegando o caminho na direção do sítio. Ezequiel está morrendo de rir. É o seu patrão. Mas o velho Chico Elias não tem papas na língua. Fosse quem fosse. Lhe desagradou! Recebia desaforo. À tardinha todos estão de volta ao sítio. O último a chegar é sempre o Pai Chico Elias. Que anda mais devagar carregando o peso de seus mais de setenta anos. Trazendo alguns pães para a diversão das crianças, que o aguardam ansiosas. Basta um grito dele lá do caminho aproximando-se da casa e a criançada dispara na carreira cercando o vovô para receberem os pães doces mão de onça. Desta vez ele traz também algo diferente. São pequenos presentes de Natal! 54 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias As meninas ganham bonecas de louça. Pedrinho ganha um estilingue. Agora as rolinhas da redondeza vão saber o que é bom!... Francisco também ganha um presente. A Marina e o Josafá ainda são muito pequenos. Ela apenas se arrasta pelo chão. Ele ainda bebê de colo. - Meu filho, venha cá! - O vovô chama Francisco e senta com ele no banco de madeira no terreiro da casa. - Abra seu presente! - O menino abre o pequeno pacote enrolado com um papel de bolinhas coloridas. E retira um pequeno realejo. Uma gaita de uns oito centímetros apenas. - Você sabe o que é isso? - O menino abana a cabeça afirmando que não. - É um realejo meu filho! Uma gaita de tocar. É assim! E pegando a gaita sopra nela ensinando a Francisco como é que se toca o instrumento. Soprando para fora e aspirando. - Ta vendo, meu filho! Soprando para fora é um tom. Para dentro é outro! Tome, tente! Francisco fica encantado com aquele presente. O primeiro presente de Natal em sua vida até então. Pedro Elias, por sua vez, tinha alguma habilidade com gaitas de boca. Vez por outra tocava alguma coisa na gaita. Francisco se diverte em seu aprendizado autodidata. Fon fon prá cá! Fon fon pra lá! Continua ele. À todo momento está soprando e se divertindo com sua gaita. O ano novo começa com boas chuvas. Já se passaram dois meses e o período agora é de roçar o mato para deixar os pés de feijão, milho, melancia e melão crescerem em terreno limpo. Todos os dias, seu Pedro, o vovô Chico Elias e o preto Mané Pedro se dirigem ao trabalho no roçado, que não fica muito distante da casa. Ao meio-dia retornam para o almoço. Só pela manhã. À tarde eles trabalham na 55 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias olaria. Seu Pedro está pensando em abrir o mato numa área mais próxima de casa para plantar outro roçado. Assim, sendo pertinho de casa ficaria melhor para o vovô cuidar dele. Enquanto eles se dedicariam por mais tempo ao trabalho na olaria. Os homens se aproximam trazendo suas enxadas para amolar. O vovô vem à frente. Francisco está sentado no banco de madeira tocando as primeiras notas de uma música que ouve muito os adultos cantarem. É o grande sucesso musical da época. Asa Branca, do Luiz Gonzaga, que já despontava fazendo sucesso. Sem rádio por ali, as pessoas aprendem as músicas ouvindo outras pessoas cantarem. Vovô Chico Elias aproxima-se de Francisco e pára perguntando: - Meu filho! Isso é a Asa Branca? Você ta tocando a Asa Branca? O repentino interesse do vovô na sua música deixa Francisco meio tímido. Ele se remexe no banco meio encabulado. Até parece que está fazendo uma coisa errada. Será? Pelo jeito da interpelação do vovô! Mas ele está é muito surpreso com a façanha do neto. Só faz dois meses que dera a gaita pra ele! - Vamos meu filho! Toque! - O menino rindo sem jeito não consegue tocar. Seu pai aproxima-se na companhia de Mané Pedro perguntando: - O que foi? Ele tava tocando? - Tava, sim! - Insiste o vovô: - Vamos meu filho! Toque a Asa Branca! E francisco, nada. O vovô então fala sério. As crianças sabiam quando ele falava sério pelo jeito do olho arregalado. - Isso não é brincadeira! Toque! Você estava tocando a Asa Branca, que eu ouvi!... Francisco então leva o vovô a sério e toca desajeitadamente solfejando as notas da música. Pouca coisa. Mas o suficiente para se 56 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias ouvir que era realmente a Asa Branca. O vovô escora-se no cabo da enxada para ouví-lo. Víra-se para os demais e exclama com certo ar de orgulho: - Esse meu filho, um dia ainda vai ser artista! Provavelmente, sua intuição lhe fala bem alto nesse momento. Não viveria para alcançar o neto artista. Mas estava vaticinando o futuro profissional de Francisco. Um tocador de sanfona razoável, como veremos mais tarde, bem como outras atuações artísticas com as quais pontuaria sua vida profissional futura. Toda sua trajetória artística está começando ali. Com uma gaita de boca simplória e infantil. Seria obra do acaso? Esse meu filho ainda vai ser artista! A frase fica-lhe gravada no subconsciente com bastante nitidez, pois embora não soubesse do que se tratava, observou o ar de satisfação nos adultos, que riam com a observação do vovô a seu respeito. Ou seria a Inteligência Suprema lhe mandando um recado através de seu avô? Quem sabe!... Mas algo interessante realmente aconteceu ali naquele momento, marcando o destino desse menino para sempre. O tempo se encarregaria de lhe revelar conhecimentos e vivências extraordinárias. Três décadas depois ele vai ter oportunidade de lembrar aquele momento e o vaticínio de seu avô. Pena que pouco tempo depois a gaita se quebrou, encerrando a experiência musical de Francisco. Por enquanto. Ha sem dúvida, uma energia musical em torno desse menino. Provavelmente influenciando seu espírito nesse caminho. Sua mãe Josina tem um canto muito afinado. Até mesmo o vovô 57 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Chico Elias, quando tenta embalar os netos, com uma música muito esquesita. Canta ele: “Meu amor morreu de bexiga, foi enterado num buraco de formiga!” Ou uma outra que fazia as crianças darem risadas: “Raposa magra do .. franzido! Rouba galinha, come escondido!” Uma tarde Pedro Elias dá instruções a Mané Pedro para continuar o trabalho na olaria enquanto ele vai abrir o mato ali próximo de casa com um machado e a foice abrindo espaço para o novo roçado. Define uma área e trabalha lá cortando os troncos de jurema, pereiro e do mufumbo, para depois botar fogo no pasto seco. Isso é comum para preparar a terra para o plantio. O inverno está prometendo muito. Dois dias de trabalho serão suficientes para preparar o novo roçado. Pedro Elias tem pressa. Vai cortando na foice os galhos mais finos e derrubando os troncos com o machado. Está muito suado. O sol está quente. Esse é mais um trabalho árduo cujo produto terá que dividir meio a meio com o patrão. Francisco vai arrastando os galhos cortados e amontoando numa coivara (monte de galhos). De repente, um acidente! Trabalhando freneticamente seu Pedro se desconcentra um pouco. A foice resvala no galho seco e atinge seu braço esquerdo em cheio. Corta a carne descascando até o osso. O sangue jorra. Francisco tem só seis anos e se vê agora diante de um quadro dantesco. Sofre vendo seu pai todo ensangüentado. - Meu filho fique aí juntando esses galhos já cortados que eu vou rápido lá na cidade para fazer um curativo nesse braço! - E segurando o braço com a outra mão, o sangue pingando, afasta-se indo na direção da casa que fica a uns 300 metros. Tão logo ele saiu Francisco solta livremente seu choro reprimido. Chora por pena do pai. Chora de medo. Não consegue concatenar as 58 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias idéias. Nunca tinha visto tanto sangue assim numa pessoa. Seu pai podia morrer? Todos os pensamentos mais desencontrados lhe atingiram em cheio naquele momento. Aos poucos foi se acalmando. Observando que daí ha pouco ia anoitecer, talvez umas cinco e meia da tarde, lembrou das raposas e guaxinins e teve medo. E como é costume seu nessas situações, abre uma animada conversa com alguém invisível, existente apenas na sua imaginação. Assim acredita que as raposas não se aproximarão. Talvez pensassem que havia mais gente com ele. Era isso! Conversou e conversou! Trocou idéias! De repente um ruído estranho atinge em cheio os seus ouvidos. Parou o que estava fazendo e apurou o ouvido... O ruído se repetiu! Agora mais perto! Parecia o rasgo do gato maracajá. Um felino pouco maior que um gato. O gato do mato como diziam. Diferente dos bichanos comuns, eles têm pontinhas nas orelhas. Francisco treme de medo.Aí não mais conversa. Salta numa desabalada carreira para casa gritando a todos pulmões: - Mamãe! Mamãe! Mamãe me acuda! - Josina sai rápido na porta da cozinha exclamando assustada: - O que é isso menino! O que foi! - Francisco corre os 300 metros em tempo recorde. Tremendo de medo agarra-se a sua mãe. - Um gato maracajá, mamãe! Queria me pegar! Queria me pegar! Continua chorando agarrado a saia da mãe, que tenta acalmá-lo. Levantando a vista Josina vê o compadre Ezequiel que se aproxima pelo caminho rindo gostosamente. - Compadre Ezequiel, você ainda ri dessa situação!... - Reage ela. - Comadre! Fui eu quem assustei o menino! Não imaginei que ele ia ter tanto medo. - E continua rindo da situação. - Mas compadre, você quase mata esse menino de susto. Até eu! - 59 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Ainda estou aqui com o coração na boca! Pensei que algum bicho tivesse atacado ele!... O compadre Ezequiel desculpa-se e é convidado a entrar. - Chiquinha! Bote aí o café no fogo para o compadre Ezequiel tomar! - Quero mesmo, comadre! Mas me traga primeiro um copo de água. Por favor! -Tome a bênção a seu padrinho, Francisco! - Diz ela afastando-se para pegar o copo de água. - Sente aí, compadre! O compadre Ezequiel abençoa o menino e pisca-lhe o olho dando a ele uma bonita moeda de quinhentos réis. O Réis é a moeda desse tempo. Quinhentos réis seria igual a 50 centavos de qualquer moeda. Senta numa espreguiçadeira para tomar o café. Um tipo de cadeira de balanço rudimentar feita com hastes de madeira e uma tira de tecido de rede presa no meio. - Cadê o compadre Pedro, comadre? - Pergunta ele devolvendo o copo. - Foi a cidade fazer um curativo num braço. Quase decepa o braço com um golpe de foice cortando lenha lá no roçado que ele está abrindo. Um horror, compadre! O osso ficou de fora! - Cortou o osso? - Não sei, compadre. Mas perdeu muito sangue! Enrolei o braço dele numa toalha, ele selou o burro e foi lá na cidade para o Cícero da Usina fazer um curativo. - Puxa vida! Que coisa! Será que quebrou o osso do braço? Sem dúvida o compadre Ezequiel já imaginava o quanto isso atrapalharia os trabalhos lá na olaria. - Mas pra quê ele foi abrir esse roçado, comadre! - Quer fazer o roçado aqui pertinho de casa. Assim a gente pode cuidar da lavoura enquanto ele trabalha na olaria. O compadre 60 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Chico vai nos ajudar a cuidar do roçado! - Pois é, comadre! Logo agora, que eu vim aqui para avisar a ele que recebi uma nova encomenda de dois caminhões de telha e três de tijolos. Acho que o Mané Pedro sozinho não vai dar conta do serviço! Vou esperar por ele pra gente ver o que se pode fazer! Continuaram palestrando. Enquanto isso, lá na cidade está se desenhando um quadro inesperado. Pedro Elias após receber o curativo da costura do braço foi até a farmácia de Chico Medeiros comprar uns comprimidos para acalmar a dor. Ao entrar na farmácia encontra Chico Medeiros conversando com seu irmão Honório, que vinha a ser o administrador do sítio da Velha Iria, sua mãe viúva, após a morte do velho Honório, pai. - Ah! Pedro Elias! Como vai? - Após cumprimentos de praxe o Honório dá o tom da conversa: - Pedro Elias eu tenho uma proposta pra lhe fazer! - Ah, é? - É você quem está fazendo as telhas e os tijolos lá no Riacho do Meio, não é? - É sim! Eu e Mané Pedro! - Mas que telhas boas e bem feitas! Você sabia que lá no nosso sítio, vizinho ao Riacho do Meio, nós temos um barro igualsinho aquele que vocês têm lá? - E é? - Pergunta surpreso Pedro Elias. - Eu lhe ofereço 2 tostões por cada telha e tijolo que você fizer! Você quer ir morar lá no nosso sítio? Ele analisa a situação por um instante, tentando compreender o que está acontecendo, depois responde: 61 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Mas Honório! É preciso montar toda uma estrutura! A olaria, as bancadas de madeira para se trabalhar em pé. Água perto para amolecer o barro. Vai precisar de lenha para queimar nas caieiras! E casa? Casa pra morar! Vocês têm tudo isso lá? - Não se preocupe! Tem até estrada já pronta! Só falta montar a olaria e você escolher o local onde quer construir a casa. Eu boto todo o material que vai precisar para construir a olaria e a casa! O que você me diz? Já recebendo o medicamento que pediu e ainda pensativo, Pedro Elias responde: - É Honório! Eu vou pensar e sábado eu venho para a feira e lhe dou a resposta! - Mas não demore Pedro! Se você não quiser a proposta eu vou colocar outra pessoa no seu lugar! Eu tenho pressa! - Tá certo! Sábado eu lhe dou a resposta! - E dando boa tarde Pedro Elias se retira montando no burro e seguindo para casa. Parecia que estava voando. Sua mente explodia de pensamentos. Parece que as coisas iriam mudar sua vida. Será que o barro que ele falou era mesmo bom? Precisava testar. Mandaria Mané Pedro lá pegar um pouco do barro. Tinha que fazer isso na surdina. Sem o compadre Ezequiel saber. Não desejava provocar sua raiva com isso. Trotando no burro rapidamente logo chega em casa. - Pronto, compadre! Ele está chegando! - Diz Josina. Ezequiel levanta-se da cadeira e vai ao encontro de Pedro Elias. -Mas compadre Pedro! Que desastre foi esse? Quebrou o osso do braço? - Graças a Deus não, compadre! A foice resvalou no osso! Só cortou a carne! - Trazia o braço todo envolto em gazes e esparadrapos. Teria 62 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias que voltar ao enfermeiro no próximo sábado para refazer o curativo. - Aquele Cícero da Usina é mesmo um carniceiro, compadre! Costurou isso cru! Disse que não tinha anestesia. Mas passou uns comprimidos e eu fui lá na farmácia e comprei. Já tomei um e a dor tá passando! Essa passada na farmácia do Chico Medeiros havia sido providencial. - Compadre Pedro e agora? Quanto tempo você acha que vai passar sem poder trabalhar na olaria? Isso aí, - observando o braço dele vai demorar pelo menos uns dois meses, hein! - Acho que sim, compadre! - Pois é uma pena! Eu vim aqui exatamente pra lhe avisar que recebi uma nova encomenda de dois caminhões de telha e três de tijolos. O Mané Pedro não pode dar conta do recado sozinho! Vai? - É! É muito trabalho pra ele só! Acho que temos um problema! E tem outra coisa compadre! Que eu preciso lhe dizer! Recebi hoje um convite de Honório, para ir morar lá no Pai Bastião e fazer telhas por lá! Ele vai me pagar dois tostões por cada telha e tijolo! - Pego de surpresa o compadre Ezequiel pergunta: - E você vai compadre? - Vou sim, compadre! Dois tostões é o dobro do que você me paga! Eu já acertei tudo com ele! - Pressiona seu Pedro. Na expectativa de que o compadre Ezequiel resolva lhe pagar a mesma coisa. Mas o Ezequiel já está ferido em sua personalidade e colocando o chapéu na cabeça adverte taxativamente: - Pois compadre Pedro! Esse foi o pior negócio que você já fez em sua vida! Aquela gente não presta! - Boa tarde comadre Josina! Obrigado pelo café! Eu já me vou! Até logo compadre Pedro! - E se retira imediatamente deixando Pedro Elias com a boca seca. Sem possibilidade de contra-argumentar. 63 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Pedro Elias mostra-se pensativo. Josina argumenta: - Isso vai dar certo? - Agora não tem jeito! Você viu a reação dele! Eu pensei que ele ia resolver me pagar a mesma coisa! Agora! O jeito é topar a proposta do Honório!... Deus é que sabe! Ao fim da tarde o pai Chico Elias chega da varzante de frutas e recebe a comunicação. Ouve em silêncio e depois considera: - O Ezequiel está com razão! Aquela gente do velho Honório não presta! Mas o que tá feito, remediado está! Seja lá o que Deus quiser! Não ha como voltar atrás! Dois dias depois já é o sábado. Pedro Elias não tem alternativa. E procura o Honório para confirmar a resposta. Feitos todos os acertos, as obras da olaria seriam iniciadas imediatamente, assim como a construção da nova casa para sua a família. Pelo menos ele vai ter a casa que sempre sonhou. Com um alpendre, uma sala grande, dois quartos, uma cozinha ampla com fogão novo, uma despensa maior onde também seriam armazenados os grãos que fossem colhidos, já que Pedro Elias também vai ter seu roçado para plantar sua roça de subsistência uma e varzante na área do açude. As promessas do Honório são maravilhosas. Resta apenas a desconfiança de que tudo não ocorra conforme o prometido. O vovô Chico Elias tem lá suas dúvidas. Àtardinha está em casa de volta da feira. Mas se mantem pensativo e um pouco reservado. Como se estivesse apreensivo. Esta é uma noite de lua cheia. Algo que alegra por demais as pessoas do campo. É sempre motivo de descontração. Mas nem mesmo Mané Pedro divertindo as crianças no terreiro da casa, sob a luz do luar, com a sua dança de côco de roda, tira seu Pedro dos seus 64 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias pensamentos pesarosos. Uma mudança radical é sempre motivo de muita reflexão na vida de qualquer pessoa. Imagine-se ele, que não estava acostumado a decisões tão repentinas. Alheias aos problemas dos adultos as crianças se divertem com Mané Pedro dançando no terreiro da casa, rodopiando e estalando as sandálias de couro cru nos calcanhares. O mano Pedro Elias Filho, então com três anos de idade, se deslumbra com a dança de Mané Pedro. Viria, anos mais tarde, a ser um autêntico imitador de Mané Pedro. A figura daquele preto brincalhão se fixaria em sua mente infantil para toda a vida. Os dois meses seguintes, enquanto se recuperava do acidente com a foice, seria o tempo de preparar tudo no sítio do Honório para a mudança. Pedro Elias mandou Mané Pedro pegar um pouco do barro lá e fizeram teste com algumas telhas e tijolos. De fato, o barro também era muito bom. Logo ele foi ao sítio do Honório escolher o local onde queria que a nova casa da família fosse construída. A casa dos seus sonhos. Incluindo um curral ao lado. Do acerto no acerto também constava uma vaca de leite para alimentar melhor as crianças. A casa seria uma beleza. Tudo de alvenaria. Chega de casa de taipa! Pensa ele. Em frente à casa um juazeiro frondoso. Um roçado para plantar e uma varzante na vargem do açude eram imprescindíveis. Os pensamentos vinham em turbilhões na mente de seu Pedro. Mais uma vez, entre tantas outras, aquela noite ele rezou a Deus e a Virgem Maria, pedindo proteção para sua família. O dia seguinte vai ser mais uma vez doloroso para Francisco. 65 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias H a tempos Pedro Elias conseguiu um outro jumento para ajudar nas tarefas de transporte. E uma vez por semana Francisco e Elias levam os animais à tardinha para dar um banho e escovar o pelo dos animais lá na cacimba do riacho. Ha uma lata na cacimba e uma cuia, usados para o banho, inclusive dos animais. Depois os dois voltam para casa montados em pelo nos animais. Para não cair trançam as pernas prendendo-se por baixo do animal. Enquanto subiam o morro na direção de casa não dava para o burro correr ladeira a cima. Terminada a subida o jumento dispara num galope apressado e sacolejando sobre o animal Francisco vai deslizando, deslizando pendendo o corpo para debaixo dele. O pelo molhado propiciou que deslizasse tão desajeitadamente. E agora? Vai se mantendo como pode galopando por baixo do animal. A sua cabeça de vez enquanto arrasta no chão. Ele se curva para frente tentanto evitar se machucar. Suas forças vao se esvaindo e o burro não para a corrida. Francisco bate então com a cabeça numa pedra e o mundo parece mudar de cor. Ele se solta no chão. O burro prossegue na corrida. O mundo está todo vermelho. Francisco está banhado de sangue. O tio Elias que vem atrás pára e levanta Francisco colocando-o sobre o outro jumento e leva-o para casa. Um desastre. O menino tem um corte profundo no coco da cabeça. Após lavar e limpar todo o sangue Josina passa álcool na cabeça dele e cobre o ferimento com pó de café. Isso mesmo. Pó de café. Era o cicatrizante mais utilizado até então. Por uma razão óbvia. O pó de café pode estancar o sangue facilitando a coagulação no local. Essa prática era largamente utilizada. - Como se foi lá? - Quiz saber o vovô Chico Elias, sobre o acerto de 66 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Pedro com Honório. - Ficou tudo acertado! Esses dois meses vão ser de preparativos para montagem da olaria e construção da casa! Vamos nos mudar para o Pai Bastião. É o jeito! Ha também um pequeno tear em casa. Entre outras coisas, a inteligência operacional do casal Pedro e Josina parece não conhecer limites. Conseguiram um tear e agora eles mesmos tecem as redes da família. Agora já são seis filhos. Ha necessidade de mais redes. Comprar é caro. Eles resolvem tecer as redes. Fazem isso à noite, aproveitando o período em que não há mais milho ou feijão seco para debulhar. Para as crianças até o tear é diversão. Pela manhã, uma novidade! A visita do tio Jaconías, irmão de Josina. Vem para procurar enxús. Já se sabia que no sítio havia muito mel de enxús para colher. E ele faz isso como ninguém. De longe o cachorro já late ferozmente. - Prendam o cachorro! - Grita ele. Tubarão é um cachorro bom de caça, muito feroz quando se tratava de estranhos aproximando-se da casa. Era também uma segurança para Josina sempre que os homens estavam longe no trabalho. O compadre Ezequiel já tinha experimentado a ferocidade de Tubarão. Os ciganos, que vez por outra apareciam nos sítios tentando arrancar alguma coisa daquela gente pobre, ali eles não encostavam. Tubarão botava todos pra correr. Cachorro na coleira e bem amarrado, o tio Jaconías então se aproxima. Trazia também o seu cachorro. Queria aproximar os dois animais para que juntos pudessem participar de uma grande caçada 67 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias noturna que estava planejando realizar ali no Riacho do Meio. Sabia-se que também existia muita caça, entre Tacacá, cujo fedor do mijo embebeda os cachorros, Tatu Verdadeiro, que ao se socar num buraco no chão acuado pelos cachorros dá o maior trabalho para ser retirado. Um torrado de Peba Verdadeiro bem gordo é uma farra imperdível. E o tio Jaconías adora essas caçadas. Explica para as crianças como arrancar um Tatú do buraco: - Primeiro, os cachorros acuam indicando o buraco do Tatu. Em seguida derrama-se uma lada de água no buraco! Se não fizer isso o Tatu crava as unhas na terra e não ha força que arranque ele de lá. Tóra-se o rabo dele mas o bicho não sái. Então, com a água dentro do buraco ele não consegue fixar as unhas na terra. - Mas se não tiver água? - Pergunta uma das crianças. - Bom, aí! O jeito é apelar para a ignorância! - Como assim! - Segura-se o bicho pelo rabo, e isso tem que ser rápido, porque ele continua cavando dentro do buraco para se enterrar mais fundo, enfía-se o dedo indicador no orifício dele, aí ele afrouxa-se todo e então é só puxar pelo rabo que ele sái. -Quá quá quá quá! Riem todos. Crianças e adultos. Esse tio Jaconías tem cada uma!... Permanece alguns dias com a família, tempo suficiente para ensinar os meninos como tirar os enxús carregados de favos de mel. O tempo das flores já havia acabado. O pólem estava armazenado no mel dos enxús. Só precisava encontrá-los pelo serrado a fora. Os dois cachorros se mantinam amarrados distantes um do outro se estranhando a toda hora, mas aos poucos foram se acostumando e dois dias depois já estavam se cheirando e tolerando a presença do outro. Era isso que o tio Jaconias esperava. 68 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias À tarde ele saiu com os meninos Francisco e Elias para encontrar os enxús. Meia hora de caminhada por entre o serrado e logo encontram um belo enxú. - Olha lá! - Mostra o tio Jaconias. - Prestem atenção! Diz ele enfiando o dedo indicador na boca e levantando o braço. - Isso é pra você sentir no dedo a direção que o vento está vindo. Por quê? Ha, Ha! - Brinca ele. - Você não pode se aproximar do enxú a favor do vento. Se as abelhas sentirem o seu odor elas vêm em cima de você! É a defesa delas! Então, sabendo a direção do vento você se aproxima do enxú pela parte de baixo! Contra o vento! Aí você pode chegar bem perto. Peguem ali algumas bostas de gado secas e tragam aqui! - Logo os meninos trouxeram uma porção de fezes de gado seca. Tudo foi amontoado no chão e ele bota fogo. Quando a fumaça já é bastante ele ensina: - Peguem! Cada um de vocês uma bosta acesa e soprem para fumaçar bastante! Só assim você pode ir para a parte a favor do vento. As abelhas não se aproximarão de você. A fumaça embebeda elas e as espanta. Elas irão se agrupar num desses galhos de árvore aqui por perto. Vamos lá? E vão se aproximando mais e mais do enxú. As abelhas vão saindo todas e se agrupando numa árvore próxima. Chegando enfim ao enxú, o tio Jaconias corta com a foice a touceira de mato inteira que prende o enxú. Uma bola grande cinzenta, parecendo um cupim. Bota o enxú inteiro na cabeça. - Vamos embora! - E caminham para casa. - Tio! E as abelhas? - Elas vão fazer um outro enxú por ai. 69 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Chegando a casa as outras crianças se animam. - Tragam ai um baláio! - Solicita ele. E vai abrindo as capas do enxú e colocando dentro do baláio com os favos de mel para cima. - Não comam agora! Mel de abelha quente dá uma dor de barriga danada! E é danado pra soltar traque! (Peidar).Tem que deixar esfriar! - Insiste ele. O enxú é bem grande. Quase enche o baláio. As crianças se acocoram ao redor do baláio colocado à sombra da latada e permanecem anciosas. - Tio! Já podemos comer? - Ainda não! Tem que esperar uma hora! Até o mel esfriar! É o tempo em que os adultos chegam do trabalho e agora todos degustam saborosamente as capas de enxú cheias de mel. - Tio! Porque é que o enxú é cinzento? - Ih! Agora você tocou num assunto proibido! - E explica enquanto as crianças riem parecendo não entender a piada. - As abelhas fazem essas capas com casca de árvore seca e... também... com bosta de gado seca! - Éca! Tio! Bosta de gado? - É sim! Mas não se preocupem! As abelhas sabem como trabalhar o material até transformar nessas capas. Vejam como são limpas! Você só sente o sabor do mel, não é? Basta chupar o mel e cuspir fora os casulos mastigados De fato, as abelhas são muito limpas. Processam o esterco seco de vaca de tal forma que retira completamente qualquer outro sabor. - Quem dera, você fosse tão limpo como as abelhas! - Ressalta ele. 70 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias D aí ha pouco a grande lua cheia desponta no horizonte. A noite vai ser de grande caçada. Os cachorros já estão apaziguados. Depois do jantar, aquela coalhada gostosa adoçada com raspa de rapadura, os homens saem com os cachorros para a caçada. Francisco e Elias vão junto. Chegando ao riacho próximo a cacimba, todos sentam na areia fria e ficam conversando sob o luar enquanto os dois cachorros se embrenham no mato farejando bicho. Não demora mais que quinze minutos e eles acuam uma caça. Estão latindo ferozmente a uns quinhentos metros dali! - Tão rápido assim! Pode ser um Tatu! - Diz o tio Jaconías por cima da sua experiência de caçador. Tragam a lata com água! Vocês dois fiquem aqui! É perigoso criança entrar no mato de noite! Voltamos já! - Pegam a lata com água e caminham apressadamente na direção em que os cachorros estão latindo. Elias e Francisco deitam ali de costas na areia do riacho e esperam, olhando a lua magnífica e conversando lorota, aguardando o retorno dos homens. Dai ha pouco adormecem. Não deu outra! Era mesmo um Tatu Verdadeiro! Enfiado no buraco. Com a água ele saiu fácil. Imediatamente os cachorros já estavam acuando outro bicho numa loca de pedra. Desta vez era uma Tacacá (ou Tacáca, como dizem eles). O cachorro parte em cima dela, recebe a chicotada de mijo fedorento no focinho e volta grunhindo e chorando. O outro cachorro então ataca e é recebido da mesma forma. O tio Jaconías é realmente um caçador experiente. Pega a espingarda e orienta um dos acompanhantes: - Pegue a lanterna! Foque na direção dela! - E atirou bem na cabeça da Tacacá. Os meninos então acordam assustados com o tiro da espingarda no meio da noite. 71 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Por hoje está bom! - diz ele. E todos voltam para casa. A caçada não demorou mais que uma hora. Rendeu dois torrados especiais: um de Tatu ( o Peba) e outro de Tacacá. Um mês após, o cachorro Tubarão ainda fede. Sua amizade com Francisco é bem chegada. Mas no momento isso é impossível. Balançando o rabo Tubarão se aproxima mas o menino reage: - Sái pra lá bicho fedorento! Você só fede a Tacáca!... O sabor do Tatu é bem apreciado. Francisco já conhecia. Mas a Tacáca, é a primeira vez que vai comer. O almoço do segundo dia. Um belo torrado de Tacáca. Torrada na tigela de barro, temperada com toucinho de porco e as verduras da horta caseira que ha na margem do açude. Não é fácil para Francisco absorver o sabor da carne da Tacáca. Parece gosto de carne queimada. Mas ha um jeito especial no trato do animal para evitar que a carne fique imprestável. Eles tiram primeiro uma glândula que o animal desenvolve em seu corpo. E assim, o gosto da carne é tolerável. Mas só depois de uns quinze minutos, vendo todos comerem a Tacáca, Francisco consegue digerí-la. Após comer, tem-se que escovar bem a boca, do contrário permanece impregnado o odor da Tacáca. E o primeiro arroto, ninguém fica por perto. Uma bufa, então! É gás metano em alta concentração. Teju, Tacacá, Tatu Verdadeiro, Preá e Mocó, tudo era comestível. Só dependia do jeito de preparar. E nisso dona Josina é uma especialista. Na casa de seu Pedro só não se come cobra. Embora haja quem 72 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias garanta que basta cortar um palmo antes da cabeça da cobra e pode comer. Sem problema. Mesmo as venenosas. Mané Pedro afirma conhecer alguém que comia cobra. Tem gosto de peixe. Garante ele. E uma galinha de capoeira torrada? Ah! Isso sim! Quem comeu as que Josina prepara jamais esquece. Um dia após, chegando ao roçado o Pai Chico Elias diz ao filho Pedro: - Vou plantar fumo aqui nessa baixa, meu filho! - Fumo, papai? E dá? - Isso era algo que seu Pedro nunca havia plantado. - Vai dar, sim! Sábado em Caicó em consegui umas sementes de fumo! E vou fazer fumo aqui! - E de fato, o fumo floresceu muito bem naquele chão, sem adubos, sem nada. Mas tinha que colher rápido para botar as folhas a secar ao sol. O inverno ia acabar logo e o fumo morreria no pé. O vovô Chico Elias tinha alguma experiência nisso. Dias depois consegue enrolar as folhas secas de fumo produzindo uma corda de fumo fina. Um fumo bem forte. Sentíu-se um vencedor. Seu cachimbo ia queimar um bom fumo, produzido por ele mesmo. Não precisaria mais comprar fumo na cidade. Dona Josina é quem tinha o que reclamar. Principalmente quando estava gestante. Mulher grávida costuma abusar de certas coisas com muita facilidade. Era o antojo, como diziam. E o cachimbo do vovô era uma delas. - Ô compadre Chico! O sarro desse seu cachimbo ta insuportável! Desabafa ela. Ele compreende e promete: - Tem nada não, comadre! Amanhã eu vou limpar ele. - Claro que esquecia e não limpava. E no dia seguinte o fedor do sarro está pior. A mamãe Josina está muito preocupada com outro problema. O 73 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias menino Pedrinho anda caindo das pernas. Uma fraqueza danada atacou o menino. Ele tem dificuldade até pra se manter em pé. Está emagrecendo a olhos vistos. Perdeu completamente o apetite. Um transtorno de saúde. Ela comenta durante o almoço bastante apreensiva: - Eu não sei o que esse menino tem! Está doente! Na maior fraqueza! Agora de manhã andava fraquejando das pernas aqui dentro de casa! Acho que temos de levar ele lá na farmácia de seu Zezinho pra ver se descobre o que ele tem! No sábado seguinte Pedrinho é levado à cidade. Enquanto Pedro Elias compra as coisas da feira Josina vai à farmácia com o menino. E explica ao farmacêutico Zezinho o que está acontecendo. Ele examina o menino cuidadosamente. Olha nas pálpebras dele, toma o pulso e perguntou: - Ele tem tido febre? - Às vezes! Mas é coisa pouca! Logo passa! - Teve gripe? - Não! Só não se alimenta direito. Não tem apetite! - Esse menino tem é fraqueza! - A senhora vai levar uma Emulsão de Stotch - Um fortificante muito famoso da época feito com óleo de Pirarucu - Um vidro de Biotônico Fontoura, e vai fazer o seguinte! Tem ovos de galinha na sua casa? - Tem sim! Bastante! Eu sempre tenho galinha pondo ovos lá em casa! - Pois bem! Lave as cascas bem lavadas e bote no sol para secar! Depois machuque no pilão até fazer um pó bem fino! E coloque uma colher de chá em cada prato de comida dele. É para ajudar na calcificação dos ossos! Depois de dois meses ele vai estar bom! Volte com ele aqui! 74 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O ra! Mas que solução interessante! A consulta, não precisava pagar. Era só comprar o remédio na própria farmácia do seu Zezinho. Ele deve ter salvado muita gente por aqueles tempos. Como já vimos antes, a assistência médica na Caicó de então era muito deficiente. E é com essa medicação, mais o pó das cascas de ovo capoeira que o mano Pedrinho se recupera plenamente, voltando às suas freqüentes travessuras cheio de vivacidade. Dava para perceber que ele voltara ao normal. O fortificante do óleo de Pirarucu tinha lá seu gosto muito ruim. Pedrinho só tomava debaixo de chinela. Mas se recuperou totalmente. Prova disso é que uns dois meses depois, com o pasto já seco, uma tarde, enquanto todos conversavam na sala dando acabamento em umas redes, Pedrinho pega a caixa de fósforos na cozinha e se dirige ao cercado próximo da casa riscando um fósforo e botando fogo no capim. -Corre! Madrinha Josina! Pedim botou fogo no pasto! - Grita a tia Chiquinha. Todos vão ajudar a apagar o fogo jogando baldes de água. Enquanto Josina se lamenta: - Meu Deus do céu! Ô menino danado!... Peraí safado, que você me paga! - Vai lá dentro de casa e traz a dita cuja palmatória para aplicar um corretivo no Pedrinho, que pelo visto, já está totalmente recuperado da fraqueza. Estão os dois correndo ao redor de um pé de mufumbo. Josina com a barriga já bem grande grávida do próximo filho. Pedrinho na frente e Josina atrás. Pega, mas não pega! Todo mundo assistindo a presepada. Com os cabelos louros, tipo escovinha, molhados de 75 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias suor, a mão de Josina pega, mas escorrega. Também pudera! Ela corre com dificuldade coitada, arrastando uma barriga imensa, já grávida de uns sete meses. Mas Pedrinho tropeça e cai. Aí ela chega junto! E aplíca-lhe uma admoestação razoável! Inesquecível! - Você vai levar mais cinco bolachadas pelo que me fez correr, seu safado! - E tome palmatória. - Cuidado madrinha Josina! É capaz da senhora perder esse menino! Olhe o estado da sua gravidez! Lembrou muito bem a tia Chiquinha, vindo em socorro do Pedrinho. Chega o dia da mudança para o sítio Pai Bastião. O compadre Ezequiel ficara desgostoso com a atitude do compadre Pedro. Não apareceu mais por lá. Dois jumentos. Bastaria dar duas viagens e toda a mudança será transportada. Só não foi o bichano Mourisco. Não houve quem fizesse ele se mudar para a casa nova que ficava distante uns três quilômetros. O sítio Pai Bastião é pegado ao Riacho do Meio. Levado no colo de Francisco, o gato anoiteceu e não amanheceu. Claro que Pedro Elias precisava ir lá se despedir do compadre Ezequiel e agradecer o apoio que recebeu dele. O compadre Ezequiel se mostrou naturalmente frio, demonstrando sua insatisfação, mas ia fazer o quê? Não era homem afeito a amenidades em se tratando de negócios. O Mané Pedro continuaria no Riacho do Meio até finalizar os últimos trabalhos que faltava para queimar as últimas telhas e tijolos que haviam feito. No Pai Bastião tudo é novidade. Casa nova. Uma nova olaria. Uma varzante também para plantar alguma coisa no açude, que aliás, é maior do que o do Riacho do Meio. Quase diariamente o vovô Chico Elias ainda vai ao Riacho do Meio continuar a colheita de frutas, feijão e batata que ainda havia na 76 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias plantação do açude. No dia seguinte Francisco vai com ele.Ao passarem diante da casa lá está Mourisco trepado na comeeira miando desoladamente. Por mais que Francisco o chame ele não desce. Não morreria de fome. Naqueles serrotes e na cerca de pedra ali próximo ha muita lagartixa e até preás que ele comeria. O adeus do bichano é definitivo. Muito apegado aos animais, Francisco sente tristeza pela falta de Mourisco. Anos depois, em suas leituras, Francisco descobrirá que os gatos não adotam as pessoas, mas as casas onde vivem. A olaria do Pai Bastião vai ser montada a toque de caixa. Algum tempo depois Mané Pedro também veio para ajudar na mão de obra. Vem o próximo ano e com ele um inverno promissor. Escolhida a área para plantio do roçado nas terras de cima do açude, logo pai Chico Elias tratou de plantar feijão, milho, fava, frutas, e tudo que pudesse colher ali, com a ajuda dos meninos Elias e Francisco e de vez em quando, seu Pedro também e Mané Pedro vêm ajudar no trabalho de limpar com enxada. O plantio floresce lindamente com tudo muito verde.Aterra também é boa. À tardinha, já em casa, lá pelas 17h00, (todos voltam para casa nesse horário para jantar), o vovô conversa com Francisco no alpendre da casa. - Meu filho! Ta vendo essa prata de um cruzado! Um cruzado era 25 centavos de um réis. - Eu lhe dou essa prata pra você ir lá no roçada me trazer a enxada que eu esqueci para eu amolar ela de manhã! Eu deixei lá embaixo do pé de Trapiá. Você vai? - Ora! Por aquela prata Francisco faria qualquer coisa. Um cruzado compra dez pães. - Vou sim, vovô! - Então vá! Mas volte logo que já vai anoitecer! - Francisco estica as 77 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias canelas na carreira para chegar logo ao roçado. Para um adulto não é muito longe. No máximo uns 800 metros. Mas para uma criança como ele, é uma boa tirada. Ainda na ida, pelo meio do caminho, ele lembra que tem medo de raposa e guaxinim. Parou! Resfolegando de cansaço. Apura o ouvido, mas só ouve as cigarras cantando e o arrufo de alguma coruja. Apressa o passo em direção ao roçado. Chegando ao pé de Trapiá lá está a enxada encostada. Botou no ombro e depressa toma o caminho de volta. Como é pesada essa enxada! Não dá para correr com ela. Anda o mais rápido que pode e antes do sol se por chega a casa. - Muito bem, meu filho! - E o vovô Chico Elias lhe entrega a prata de um cruzado. Já velhinha e encardida. Que ele guarda com muito zelo. Na feira do sábado seguinte ele estará cheio da grana. Na sexta-feira seguinte, pai Chico Elias vai conversar com Francisco mais uma vez. - Meu filho, quer ganhar outra prata daquela? - Quero vovô! - Responde de pronto ele. - Ta vendo esse saquinho? É um saquinho de pano com um cordão na boca para puxar e fechar. Continua ele: - Quero que você me corte esse pedaço de fumo bem cortadinho, e bote nesse saquinho para eu já ter o fumo pronto para encher o cachimbo. Certo? - Sim vovô! - Bem cortadinho! Certo? Mas cuidado para não cortar os dedos que a faca é amolada! Isso é tarefa que Francisco dá conta rapidamente. Sem o menor esforço. Menos de meia-hora e ele traz o saquinho com o fumo cortado. O vovô examina o conteúdo: - Ta bom! Muito bom! - E piscando-lhe o olho, entrega a Francisco 78 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias outra moeda de um cruzado. Esta bem novinha. Brilha ao sol. Francisco guarda junto com a outra. E se diverte colocando as moedas na palma da mão. Fica admirando com satisfação aquilo que é fruto de seu trabalho. No dia seguinte é novamente sábado e todos vão à cidade para a feira. Francisco vai junto. Ele e Malvina. Os adultos vão caminhando e o jumento leva dois caixotes pendurados na cangalha. Um de cada lado. Para trazer as compras da feira. São caixotes estreitos. Mas cabe as crianças. Uma de cada lado. Na volta, com as compras nos caixões eles viriam, uma sentado na cangalha e outra na garupa do burro. Chegam à cidade. Tão logo Francisco desce do burro vai logo à mercearia que tem numa esquina da rua São José, próximo à casa do tio José Tibúrcio onde eles deixam o burro amarrado. Francisco vai à venda interessado nos bolos e pães. E compra bastante. Quase não come no almoço. O estômago está cheio de pão doce e de bolos, broas, etc. Àtardinha estão de volta ao sítio. Vovô Chico Elias havia observado que Francisco trazia um pacote de pães da feira, que certamente guardou em casa para comer depois. Após o jantar, todos estão sentados no alpendre da casa proseando, então o pai Chico Elias pergunta a Francisco: - Meu filho hoje comprou pão à vontade, não foi? - Francisco confirmou que sim. Ele então interpela: - Gastou o dinheiro todo? - O garoto responde que não. - Então! Só gastou uma das moedas que ganhou? - O menino confirma que sim. - E a outra? - Ta guardada lá dentro! - Vá buscar para eu ver! - Francisco entra e volta em seguida com a 79 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias prata na mão e entrega ao vovô. Pai Chico Elias abre um sorriso significativo e exclama para os demais ali presentes, com ar de satisfação: - Vejam vocês! Esta semana eu fiz uma experiência com este menino! - Que experiência, papai? - Pergunta seu Pedro curioso. - Eu dei a ele uma tarefa difícil, para ir já à tardinha lá no roçado buscar a minha enxada e paguei a ele com essa prata velha, de um cruzado! No dia seguinte, eu lhe dei outra prata no mesmo valor só pra ele me cortar o fumo do cachimbo! Uma prata bem novinha! E o que eu vejo aqui? Ele bem que podia ter guardado a prata novinha e brilhante! E gastado a velha! Vocês percebem? Mas ele gastou aquela prata que não deu muito trabalho para ganhar! E guardou a prata que deu mais trabalho pra ganhar! O que isso quer dizer? Todos ficaram em silêncio, e ele concluiu: - Nós só guardamos aquilo que nos dá trabalho ganhar! É isso mesmo, meu filho! Você ta certo! - Disse ele afagando a cabeça do menino. Pai Chico Elias era também um psicólogo nato. Tinha lá suas dificuldades temperamentais, mas em matéria de experiência de vida tinha muito que ensinar. Mesmo não sendo uma pessoa de elevado grau de instrução educacional. De onde ele trazia no seu espírito esse tipo de conhecimento? É um caso para se pensar. Enganam-se aqueles que vêem nas pessoas simples do campo apenas seres de mentes limitadas e ignorantes. Muitas delas trazem consigo um aprendizado que bem se poderia definir como - histórico de inteligência cromossômica. Isso estaria em consonância com a teoria de Charles Darwin sobre a propagação das espécies? Ou vamos ter de aceitar a teoria da reencarnação? Não demorou muito, e o vovô Chico Elias adoeceu, sofrendo de algo que mais tarde se confirmaria como câncer de garganta. Herança maldita do seu cachimbo de fumo. Acamou-se de tal forma que já não pode mais dar conta dos trabalhos no roçado e na varzante. 80 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N ada é por acaso. Certo? Bem por esse período, o vovô materno Chico Bobôco vive uma crise de separação de sua esposa Josefa, cujo relacionamento doloroso já amargavam ha bastante tempo. Com os filhos já adultos e criados ele vai então para a companhia de Josina e Pedro Elias. Sua presença é muito bem vinda. Estava na incumbência cármica de Pedro Elias, cuidar de seu pai já velho e de seu sogro também, ambos até a morte. O Padim Bobôco, um carequinha entroncado, de olhos azuis e pele bronzeada, também de origem européia, de temperamento dócil, claro, veio para cuidar do plantio e das colheitas, enquanto Pedro Elias, Mané Pedro e os meninos maiores tocam o trabalho na olaria. A tia Chiquinha já havia casado com Luiz, um rapaz também da roça daquelas redondezas. O compadre Chico Elias permanece em casa acamado em sua rede amargando sua doença. Mas é impossível deixar de lado o miserável do cachimbo de fumo. O câncer a cada dia se agravava mais. Enquanto isso, Pedro Elias começa a amargar as primeiras decepções com o novo patrão Honório. As telhas e tijolos são entregues. Honório manda pegar em caminhões que levam para a cidade onde ele vende. Recebe o dinheiro, mas freqüentemente não repassa para Pedro Elias o seu pagamento. Cada caminhão com cerca de três mil telhas dá em média dois mil réis de pagamento para Pedro Elias. Isso é o dinheiro de uma boa feira mensal para a família. Mas sem receber o dinheiro direitinho, vez por outra ele se afoba com as dificuldades para pagar a seu ajudante Mané Pedro, que pacientemente suporta as dificuldades, compreendendo o problema. Num momento de certa tensão Pedro Elias desabafa em casa: - Bem que o compadre Ezequiel me disse! Essa família do velho 81 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Honório (o patriarca) não presta! E continua amargando suas dificuldades de recebimento do dinheiro por um bom tempo. Certo dia na feira da cidade, conversando com o irmão mais velho Miguel Elias, que então já se firmava como o principal comerciante de fumo da região do Seridó, desabafa mais uma vez. Conta para o irmão sobre as dificuldades que está passando e a decepção que está sofrendo. O problema está ficando insustentável. - Compadre Miguel eu já não sei mais o que fazer! Tenho sofrido o pão que o diabo amassou nas mãos de Honório! Ele nunca me paga direito! Também estava escrito no carma da família que o irmão Miguel Elias, um homem duro de atitudes, mas igualmente brando de coração, seria o porto seguro para os demais irmãos. Tem um aguçado tino comercial. - Ô compadre Pedro! - Era assim que todos eles se tratavam entre si. Como compadres. - Você sabe ler, escrever e contar, não sabe? - Compadre, eu leio! Devagarinho, mas leio! Escrevo errado, mas escrevo! E contar... eu sei somar e diminuir! Por quê? - Você se atreve a vender fumo? - Acho que sim! - Pois então eu acho que vamos dar uma solução ao seu problema. Vá jantar lá em casa hoje pra gente conversar. Pedro Elias não voltou logo para o sítio. A feira termina por volta das quatro da tarde e ele foi para casa do compadre Miguel esperar por ele. Miguel Elias já havia encaminhado o outro irmão Cícero Elias no comércio de fumo. Eram pequenas mesas de madeira colocadas dentro do mercado público de Caicó, com uma roda de fumo preto de 82 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias corda, geralmente enrolado numa esteira. Uma pequena tábua de cortar fumo para os clientes experimentarem, uma faca bem amolada e uma balança para pesar o fumo. É vendido em pedaços. O preço é por quilo. O comércio é promissor. Após o jantar sentam na calçada e o irmão Miguel expõe: - Eu já estou comprando fumo que vem do Brejo, em Campina Grande, compadre Pedro! Compro muito fumo! Fumo de boa qualidade! Se você quiser vou arranjar na Prefeitura autorização para mais uma banca de fumo, lá no mercado pra você! Eu forneço o fumo! Você vende e a gente separa uma parte do dinheiro pra você! Aos poucos você vai fazendo a sua freguesia! Quer tentar? - Acho que sim, compadre! - Logo no começo não vai atrapalhar nada pra você lá no sítio! Você continua na olaria e no sábado vem pra cá! Vamos fazer uma experiência! Eu acho que vai dar certo! Depois você decide se mudar pra cá para a cidade de vez! Vai ser melhor para as crianças! Elas estão estudando? - Estão, sim! Lá na escola de Nininha de Aparício, no Riacho do Meio. É longe! Elas vão no jumento! - Mas estão estudando! As menorzinhas Josina está desarnando elas em casa mesmo, estudando as primeiras letras. - Aqui na cidade vai ser bem melhor! Tem o grupo escolar! Uma escola melhor! Tamos acertados? - Tamos sim, compadre! - Pois então pode vir sábado que já podemos começar! Pedro Elias volta para o sítio esta noite com o espírito renovado. Já passa das oito da noite e ele segue pelo caminho trotando o burro Carrité, sob o manto de estrelas no céu, vislumbrando uma luz no fim do túnel. Seus pensamentos lhe mostram novos sonhos. Novas 83 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias possibilidades. Novas realizações. Com a ajuda de Cumpade Miguel eu agora me aprumo! - Vai pensando ele. - Onde você estava, criatura? Que demorou tanto? Pensamos que tinha acontecido alguma coisa! - Pergunta Josina. - E aconteceu, mesmo! Acho que outra vez a nossa vida vai mudar!... E conta sobre a conversa com o compadre Miguel. A princípio Josina fica meio apreensiva. Aquele era um salto bem maior. E se não desse certo? Ela não tem qualquer noção das peculiaridades e possibilidades do comércio. Pedro nunca tinha vendido nada. A sua resistência àquela idéia é natural. O novo lhe assusta. O tempo se encarregará de tranqüilizá-la. Os resultados falarão por si mesmos. Durante um certo período é assim que Pedro Elias inicia sua nova jornada de vida. Agora como comerciante de fumo. A cada semana as vendas melhoram mais. Ele anima-se cada vez mais. Todo fim de feira presta contas ao compadre Miguel e recebe o que lhe cabe. Algo em torno de 10% sobre as vendas do fumo. Não é muito inicialmente, mas é uma grande promessa. Já podia levar para casa todo sábado, um corte de tecido novo para a mulher, para os meninos. Logo Josina se anima com a compra de uma máquina de costura nova. Ela mesma costura a roupa da família. Se ha uma mulher corajosa e participativa ela se chama Josina. Aos poucos vai se convencendo de que a família deve se transferir para a cidade. O que mais a anima é a possibilidade de estudo melhor para as crianças. Ela sonha em ver todos os filhos crescidos e bem desenvolvidos na escola. Seus filhos seriam pessoas diferentes. Não sofreriam as dificuldades que ela e o marido vêm atravessando. E todo o tempo Deus sempre está nas orações do casal. E ELE responde. Coisas incríveis estão acontecendo na 84 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias transformação desta família. Até que enfim, tudo irá melhorar. Suas preces estão sendo ouvidas. No dia seguinte, um domingo, uma bela galinha torrada está na mesa para o almoço, acompanhada de arroz de leite e feijão verde com manteiga. Feijão verde colhido ali mesmo na varzante. O dia todo a conversa gira em torno da eminente mudança para a cidade. Não dá para agüentar por muito mais tempo os maus tratos financeiros que o Honório vem aplicando na negociação acertada sobre a produção da olaria. E Pedro Elias não é homem de mendigar a ninguém seus próprios direitos. Trabalha arduamente com muito afinco para cumprir com suas obrigações, mas ali no Pai Bastião o retorno está sendo muito sofrido. E ele vai dar um basta nisso. Ultimamente, não fosse o dinheiro que está ganhando com a venda de fumo na cidade, o aperto já seria bem grande. Eles estão lá no alpendre após o almoço balançando nas redes. A tarde como de costume está quente. Não venta nada. As árvores mais parecem umas pinturas. Um sol escaldante. O cochilo após o almoço é indispensável. - Cumpadre Pedro, quer dizer que o negócio do fumo ta indo bem, não é? - Indaga o vovô Bobôco. - Ta, cumpadre Chico! A cada semana a freguesia ta aumentando mais! Estou muito animado! Compadre Miguel me disse que já ta na hora da gente se mudar para a cidade. Tem uma casa da mulher dele na beira do rio de Seridó que vai desocupar daqui a uns dois meses e a gente já vai se mudar pra lá. - Se Deus quiser, antes do fim do ano já estaremos na cidade! - E a olaria como vai ficar? - Quis saber Mané Pedro. - Bem, Mané! Se você quiser continuar trabalhando para o Honório, você continua lá. Mas quando faltar quinze dias pra gente se mudar para a cidade eu vou avisar a ele que não vou pegar mais encomenda de telha. 85 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Mas tem a colheita da varzante também, né cumpadre Pedro? Acrescenta o Bobôco. - É compadre Chico! Quando a gente for para a cidade eu vou ter que trabalhar também lá no armazém de cumpadre Miguel preparando o fumo para fazer as bolas. O senhor continua vindo aqui toda semana para terminar de colher as batatas, as frutas e o feijão, ainda tem? - Tem sim cumpadre! - Então é isso aí! Vamos colher tudo que nos pertence e sair das terras desse desgraçado. - Sentenciou ele. Pedro está decidido. O futuro da sua família está é na cidade. O vovô Chico Elias por sua vez, continua acamado com o agravamento constante da sua doença. No prazo estimado de dois meses, Pedro Elias informa ao Honório que vai se mudar para a cidade. - Mas, e a olaria, Pedro? - Aí você faça o que quiser! Você não disse antes que se eu não viesse pra cá tinha uma outra pessoa que você ia colocar no meu lugar? Pois então! O Mané Pedro pode ficar aí também. Mas eu vou com minha família para a cidade. Você tem esses quinze dias para acertar minhas contas! Conversa agora com Honório é apenas o estritamente necessário. Pedro já vinha com ele atravessado na garganta ha algum tempo. Até o peixe do açude, para melhorar o cardápio da família, o Honório havia proibido pescar. Se era inverno e o açude se enchia de marrecos, era proibido caçar de espingarda. Para seu Pedro a xícara da tolerância havia esborrado. Fez o comunicado e se foi. 86 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E sta semana que começava tem novidades. O vovô Chico Bobôco informou haver descoberto um cortiço de abelha Rainha num tronco de Pau D’arco próximo ao caminho para o roçado. - E será que tem mel compadre Chico? - Indaga Pedro. - Tem sim compadre! Eu bati ontem no tronco da madeira e bateu fofo. Aquilo ta cheio de mel! - Pois então vamos tirar logo antes que Honório também proíba! Ha na casa um pequeno fole manual feito de couro, com uma ponta em forma de cano e dois cabos paralelos de madeira que são acionados fechando e abrindo. Próprio para soprar o braseiro que o Pai Chico Elias costumava usar para fundir e moldar alguns utensílios de ferro. Como seu machado, por exemplo. Ou uma boa foice. Conseguia na cidade um pedaço de ferro de mola de caminhão, que destemperava no fogo de brasas, batendo com a marreta até forjar o machado ou a foice, de vez em quando enfiando o metal em brasa num tonel d'agua para obter a têmpera ideal. Inúmeros conhecimentos tinha o Pai Chico Elias. O fole também era utilizado para aplicar formicidas contra as formigas de roça, que tanto prejuízo causavam às lavouras. Com o tal fole o Padim Bobôco bombeou fumaça para dentro do cortiço, cujo único buraco de entrada e saída das abelhas ficava aos uns quatro palmos acima do solo no tronco do Pau D’arco. Embriagadas pela fumaça elas abandonavam o cortiço. Com um corte no tronco da madeira pôde-se ver então como era o cortiço. Foi uma revelação interessante para o menino Francisco. Ainda com medo de ser picado pelas abelhas, mas com a curiosidade aguçada, ele se aproxima do avô que está aparando o mel em uma bacia. O corte na madeira atingiu também o saco de cera dentro do oco da árvore, no qual as abelhas depositavam o mel. 87 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias D iferentemente dos enxús, não havia capas. Só o mel dentro daquela panela de cêra. E uma borra amarela vedando as concavidades externas. Uma borra azedinha! Muito gostosa. Que o vovô recomenda: - Coma! Meu Filho! Isso é muito bom para sua saúde. Sem dúvida. Aquela borra amarela é a própolis, também produzida pelas abelhas. Com ela o cortiço fica totalmente protegido de qualquer ação de micróbios e bactérias. A própolis tem inclusive, ação medicinal como antibiótico natural. Quem ensinou isso às abelhas? Era uma pergunta que o vovô Bobôco questionava. Ninguém saberia responder. Mel de excelente qualidade. A abelha Rainha não é outra se não a famosa abelha Jandaíra, atualmente extinta, pela ação das abelhas africanas. Ali está. Um balde de uns cinco litros cheio de mel, amarelinho e de sabor inconfundível. É comum se comprar na cidade litros de vidro cheio de querosene para as lamparinas. Haviam alguns vazios, enfiados com a boca para baixo nos galhos da cerca atrás de casa. Ia precisar de uma certa técnica para limpar aquelas garrafas a fim de colocar nelas o mel. Mas pra tudo Josina tinha uma solução. Para retirar o odor do querosene, ela coloca água quente na garrafa, espreme espuma de sabão dentro, acrescentando um punhado de areia bem grossa trazida do riacho. Tampa a garrafa com uma cortiça e balança, balança... até o sabão agir bastante. Depois lava a garrafa e põe de boca para baixo para secar. Nenhum cheiro de querosene. Que interessante! Francisco confere cheirando a boca da garrafa. 88 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A s garrafas são enchidas de mel e bem tampadas com cortiças. Para ajudar a curar tosse e gripe das crianças, o mel é um santo remédio. Com ele Josina também faz lambedor. Um melaço grosso em que mistura o mel de abelha com sumo de hortelã, chá de raiz de fedegoso, casca de limão fervida, e outras ervas. Leite queimado! É outro remédio caseiro desse tempo. Um preparado que ela faz para provocar expectoração nas crianças gripadas. Logo nas primeiras chuvas do inverno a Jurema floresce. O odor das flores da jurema e o contato com a terra quente repentinamente molhada por um barrufo de chuva fina, é gripe na certa. Os remédios caseiros ajudam muito. O leite queimado é um preparado diferente. Tem um gosto de coisa queimada realmente. Mas com um pouco de açúcar, Francisco até que gosta. - Vá lá no tabuleiro e me traga três pedrinhas arredondadas, bem lisinhas! - Solicita Josina. Francisco vai rondar ali por perto no cercado e logo encontra no riacho seco mais próximo as tais pedrinhas roliças. Josina lava as pedras e as coloca dentro do leite de vaca para ferver. Deixa ferver bastante. Depois acrescenta algumas folhas de hortelã. E ferve mais um pouco. O leite fica meio esverdeado. Mas o sabor é muito bom. Francisco descobrirá anos depois que isso é uma receita indígena. Um tremendo fortificante. Dizem que a fervura extrai das pedras o potencial energético, como fortificante. Assim acreditavam os índios. Crença indígena ou não, o fato é que o leite queimado tem se mostrado muito eficiente na recuperação das crianças enfraquecidas pela gripe. 89 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C hega então, o dia da mudança para a cidade. - Eu vou lá na cidade pintar a casa! Você já vai arrumando as coisas que amanhã a gente se muda! - Informa Pedro Elias. Francisco vai junto ajudar o pai. Afinal também está cheio de curiosidade para conhecer a nova casa na cidade. Pintar casa naquele tempo era simplesmente passar um vassourão pelas paredes com cal. O que era providencial. Pois a cal tem a propriedade de exterminar todo tipo de micro-organismos, aranhas, percevejos, etc. Casa que, como a maioria delas na cidade, não é forrada. Tem só o telhado por sobre as ripas e caibros. Uma sala, um corredor, dois quartos, a cozinha, e um muro bem grande. Logo atrás do muro ha um monturo na beira do rio. Um local onde o povo despeja lixo. É um local muito fétido. Sempre visitado por uma nuvem de urubus. Espaçoso, o muro tem um local para amarrar o jumento e onde colocar capim para ele. No rio ha algumas cacimbas, onde as mulheres pegam água e lavam roupa nas pedras. Ha bastante capim também. O burro estará bem abastecido. Afinal, é só descer para o leito do rio e cortar o capim. Tudo foi logo bem avaliado pelo pai de Francisco. A vida ali não seria tão difícil. Será bem melhor do que no sítio. Inicialmente, o compadre Miguel lhe oferece a casa sem pagar aluguel. - Até construírmos uma casa pra sua família! Compadre Pedro! Assegura o tio Miguel. Mas isso é para depois. Agora é cuidar da mudança. Limparam bem a casa e ao final do dia montam no burro e retornam 90 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias ao sítio. - Ta tudo pronto! - Informa Pedro. Vamos aproveitar que amanhã é quinta-feira e vamos fazer a mudança. Sábado, se Deus quiser, eu já quero estar morando lá, para ir à feira! Todos se animam com as novas perspectivas. As crianças são as mais empolgadas. As aulas já vão começar! - Assim que chegar na cidade, sua primeira providência será matricular Francisco, Malvina e Maria de Lurdes no Grupo Escolar! Josina! Os outros ainda são pequenos irão para a escola depois! Pedro jantou e aquela noite vai dormir acalentando novos sonhos. É um momento novo na vida de todos, a mulher Josina e aquela fila de filhos. Logo cedo, Pedro mantém o burro Carrité amarrado a uma estaca forte de madeira no oitão da casa. O mano Pedrinho, está sentado ali ao lado na calçada alta do alpendre, balançando as pernas magras, acompanhando as tarefas do pai, que aperta a cangalha no lombo do burro para os trabalhos com a mudança dos cacarecos. Aperta fortemente a cinta da cangalha por baixo da barriga do animal, mas o próprio na está muito satisfeito com aqueles apertos. O burro dá alguns coices e masca agitando a cabeça demonstrando que está com más intenções. Pedrinho ri gostosamente observando aquela cena. Enquanto seu Pedro ralha com o burro e aperta mais a cinta. Carrité então descarrega seu descontentamento repentinamente com uma tremenda mordida no ombro de Pedrinho, levantando-o bruscamente. O menino cai desastrosamente no chão gemendo e chorando de dor. Triste momento para o burro Carrité. Que diga-se de passagem, ha muito demonstrava ter os tutanos atrofiados graças as pauladas que já havia levado de Pedro Elias. 91 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias P edrinho é o filho querido de seu Pedro. Afinal ele tem o seu nome. Surpreendido pela ação do animal e cheio de ira, Pedro Elias arranca a estaca do chão com as próprias mãos e começa a bater na cabeça do animal, que fica rodando comum peru pelo terreiro debaixo das bordoadas. - Homem de Deus! Você mata esse burro! - Chega gritando Josina. Você quer matar o outro! O jumento fica assim... Meu lelé... Com a cabeça quase encostada no chão... Parecendo que vai desabar. Seu Pedro se dá conta da sua brutalidade e para de bater no animal. - Esse diabo mordeu o menino! - Parece que vai morrer! - Também pudera! O tratamento que recebia de seu Pedro não era dos melhores. - E agora criatura! Como vamos transportar a mudança? - Indaga ela muito aflita. Mas aos poucos conseguem transportar a mudança. Na cidade tudo é novidade. Francisco agora já tem 12 anos. Ontem ouviu o rádio pela primeira vez. Um vizinho tem um. A janela estava aberta e Francisco aproximou-se ouvindo a voz do cantor. O Rádio anunciou a próxima música. E falava num tal de Getúlio Vargas. É o início da década de cinqüenta. Mas estavam falando nele. As músicas! Que coisa espetacular! Um tal de Augusto Calheiros canta no rádio. Um outro se chama Vicente Celestino. Tem uma música curiosa! Ele parecia cantar bêbado. O Ébrio - é o nome da música. Quanta emoção Francisco sentirá pouco tempo depois por causa disso! Várias outras vezes esteve naquela janela, como um espectador cativo. Sempre que o rádio tocava alto e ele estivesse desocupado. 92 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias É um divertimento diferente de tudo que já havia experimentado antes. Um rádio é muito caro. Seu Pedro ainda não podia ter um deles em casa. Mais tarde, quem sabe... Ao chegarem à cidade, com tudo já em seu devido lugar, Josina traz nos braços um novo bebê de poucos meses. É Marlene. Pouco tempo depois a menina adoece, vindo a falecer em poucas semanas. De coqueluche. Nesse tempo, devido aos parcos serviços assistenciais de saúde, morre muita criança de coqueluche. E o bebê se foi. Esse primeiro enfrentamento com a morte e a perda de um ente querido afeta bastante Francisco. Ele ainda não tinha vivido essa experiência. Mas superaria logo esse problema psicológico. A cidade oferece uma infinidade de novas emoções. A primeira coisa que lhe chama a atenção, aliás, já observara isso antes, desde quando vinha às vezes nos dias de feira, é o cheiro da cidade. Um cheiro diferente!Ativo! O odor da cal nas paredes, tudo tem cheiro diferente. Uma sensação parecida com aquela do cheiro de caminhão lá no Riacho do Meio. Outra vez o seu olfato acostumado aos odores do campo, está precisando de readaptação. Próximo a casa na beira do rio Seridó ha um pequeno campo de pelada de futebol. Poucas casas nas proximidades. É ali que armam os circos que chegam à cidade.Acabavam de montar um no local. É o circo do Alegria! Esta manhã estavam subindo o mastro para segurar a lona do circo. Alegria é um mágico, dono do circo, com alguns lances interessantes pelas cidades que visita, como forma de divulgação do circo. Veremos isso daqui ha pouco. A casa de Francisco é bem próximo dali. 93 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias tardinha o circo forma uma comitiva e desfilam pelas ruas principais da cidade, puxando um camelo, um elefante e um leão numa jaula sobre um caminhão. De vez em quando alguém vai lá e cutuca o leão, que insatisfeito, urra e arreganha os dentes mentirosamente. As crianças apreciam esse cortejo, inicialmente guardando uma certa distância. E comentam nas esquinas: À - E se aquele leão se soltar!... Outro caminhão conduz uma bola de ferro trançado bem grande. O globo da morte. No mesmo caminhão vão também belas moças em roupas sumárias de trapezistas, acenando para o povo que se posta nas calçadas. Lá na frente da comitiva, um carro pequeno com uma boca de altofalante, conduzido por dois palhaços. Um grita no microfone e o outro responde: - HOJE TEM ESPETÁCULO? - TEM SIM SENHOR! - ÀS 8 HORAS DANOITE? - TEM SIM SENHOR! Ha também um sujeito que caminha conduzindo um macaco pela coleira. A molecada se diverte com a passagem do macaco que lhes cumprimenta dando-lhes o dedo. Devia ter sido treinado para aquela função publicitária. Pois o efeito é incrível! Todo mundo se diverte com o macaco esticando o dedo para os meninos. Mas não faz isso para os adultos. Só para os moleques. E assim continua aquele cortejo pela cidade. A molequeira acompanha aos montes. Francisco vai junto. E agora, já sem muito 94 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias medo do leão os meninos até já chegam perto da jaula. - Olha os quiba dele! - Diz um colega de Francisco. A diversão é total. Passando a idéia de que melhor ainda seria ver o espetáculo logo mais à noite. - Mamãe! Disseram lá no circo que estão comprando gato! Eles pagam dez tostões por um gato! - Pra quê? Menino? - Sei não! Mamãe! - Mas você não está pensando em vender o gato daqui de casa não? - Não mamãe! Josina vai especular na vizinhança e descobre que os gatos que estão comprando é para alimentar um leão que tem no circo. - Você não vá se meter com essa história de caçar gato por aí não! Viu! - Mas eles compram também muito quiabo Mamãe! - E leão como quiabo! Menino! - Não mamãe! Disseram que é para os trapezistas ficarem com as juntas bem moles! Francisco e as irmãs Malvina e Maria de Lurdes, vão todos os dias para a escola no Grupo Escolar Senador Guerra. Uma instituição educacional mantida pela Prefeitura, com um apreciável qualificativo em seu corpo docente. As melhores professoras de Caicó, pois quase não havia professor no curso primário, estão ensinando ali. Dona Calpúrnia, Dona Iracema Trintade, Dona Beatriz, Dona Dorinha, Dona Iluminata e várias outras professoras de excelente nível. Tudo é muito novo para as crianças. O ambiente das salas de aula é 95 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias estimulante. A convivência com muitas outras crianças, tudo é muito inovador. Ainda havia a tal palmatória. Mas logo Francisco observou um detalhe: a palmatória da sua sala de aula é bem leve. No primeiro dia de aula ele aproveita um momento na hora do recreio em que todos estão fora da classe e pega na palmatória. Puxa como é leve! Nem parece aquela lá de casa feita de pereiro e bem pesada! Mesmo assim, faria tudo para não passar pela vergonha de apanhar de palmatória na frente de todo mundo. Estudava já no terceiro ano primário. Imagine! Um rapazinho! Levando bolos de palmatória! Eu não! Pensava ele. Pouco tempo depois, as palmatórias serão abolidas completamente das escolas. Além do mais, tinha as fortes observações dos pais em casa: Vocês estudem! Não brinquem! Ali naquela escola não se paga nada! Mas quem levar pau (não passar de ano), não fica mais na escola! Entenderam? Claro que as crianças haviam entendido. Estudariam bastante. Dividindo bem o tempo de seus dias entre a escola, as lições de casa e uma nova atividade que acabava de surgir. O comércio de fumo prospera. Durante a semana Pedro e o tio Cícero trabalham no armazém preparando o mel queimado para as bolas de fumo. Todos estão satisfeitos. Mas o tio Miguel não. Ele está sempre buscando inovar, com a sagacidade de seu espírito empreendedor. -Cumpadre Pedro! - Conversa animado o tio Miguel lá no armazém de fumo. - Eu vou aumentar a fabricação de cigarros de fumo empacotados. Vejo que tem muita gente que só procura pelos cigarros já prontos! Estou pensando em a gente botar os meninos, os meus, os seus, e algumas pessoas mais que quiserem trabalhar nisso, para fabricar 96 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias os cigarros. Isso vai dar um dinheirinho para os meninos! O que você acha? - Ta certo, cumpadre! Eu concordo! Menino tem que tá sempre bem ocupado! Se não sai por aí fazendo o que não deve! Essa foi uma decisão muito bem pensada e recebida. Todos os meninos da família, mais alguns adultos da vizinhança têm agora um jeito de ganhar uns trocados. Francisco e o tio Elias animam-se bastante com a idéia. Uns trocados para o cinema, o circo, etc., estava garantido. O tio Miguel fornece o fumo já moído, papel de enrolar os cigarros e papel almaço, mais grosso, às vezes até revistas velhas, para enrolar maços de 20 cigarros. Pela manhã, a fabricação de cigarros e à tarde, os estudos no grupo escolar, incluindo o tio Elias, que também foi matriculado. À noite, os deveres de casa trazidos da escola. Realmente não ha tempo de sobra para criança andar por ai fazendo travessuras. Sábado e domingo aí bem, são dias de folga. Podem se divertir um pouco. Mas saindo de casa com hora marcada para voltar. E não voltando, já sabem! Vai ter surra esperando. Uma noite de sábado, Francisco sai e não volta cedo. Pedro Elias chega em casa pelas onze horas e ele não está. O pai fica esperando com a corda na mão. Francisco, maroto, desconfia, pois a luz da lamparina está acesa. E não entra em casa. A porta da frente ficava encostada. E espera lá fora no maior silêncio até a lamparina apagar. Quem sabe, ele não vai me bater. E silenciosamente entra para dormir. Pela manhã logo cedinho Francisco acorda debaixo de lamboradas por baixo da rede. Que susto tremendo! Seu Pedro baixa-lhe a corda 97 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias lembrando que ele tinha de chegar em casa cedo! Foi um jeito muito ruim de despertar. Ainda bem que o tecido da rede amortecia um pouco. Mas a surra ficou para a história. Essas coisas aconteciam enquanto as demais crianças observavam. A experiência valia para todos. Um apanhava. Os outros aprendiam. É uma escola muito prática. E funcionava. A família cresce. Agora já são oito filhos. Crescem também as responsabilidades e preocupações de Pedro e Josina. Novamente é noite de sábado. Hoje Francisco vai ao cinema pela primeira vez. Já ganhou alguns trocados com a fabricação de cigarros, que o tio Miguel paga por semana. O tio Elias já havia assistido alguns filmes e agora leva Francisco para conhecer o cinema. Cinema de seu Clóvis. Um comerciante de tecidos da cidade, que entre outras coisas, abriu o primeiro cinema de Caicó. Cinema em preto e branco. Uma máquina de projeção grandona, com uma luz azulada muito forte. Que depois alguém explicou: é um carvão que queima com eletricidade produzindo aquela claridade necessária para a projeção do filme na tela.. E ha um modo especial de avisar a hora dos filmes. O cinema tem uma sirene. Ela toca três vezes. 18h15. 18h30 e 18h45. Às 19h00 começa a exibição do filme. Por sinal, ha dois tipos de sirenes noturnas na cidade: a do cinema e a do motor de luz. A energia elétrica da cidade nesse tempo é fornecida por um motor a óleo bem grande. Mantido pela Prefeitura. Mas as luzes apagam as 23h00 todos os dias. Também com um aviso prévio de quinze minutos através de uma estridente sirene, para toda a cidade ouvir. É necessário economizar o óleo. Diziam lá na Prefeitura. Por isto o cinema termina às 22h00.A energia de PauloAfonso só chegaria anos mais tarde. 98 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco está empolgado. Entra no cinema junto com o tio Elias e procuram um lugar bem no meio, nas cadeiras de madeira, com encosto. O filme é exatamente - O Ébrio. Aquele da música que Francisco ouvio outro dia pelo rádio do vizinho. Que emoção! Antes do filme tem um jornal na tela. Mostra cenas de um jogo de futebol no Maracanã. Algumas cenas de acontecimentos políticos e em seguida começa o filme. - Olha lá! É o Vicente Celestino! - Diz Francisco em voz alta cutucando o tio Elias. Recebe vindo lá de trás um fortíssimo PSSSSSSIIIIIU! O tio Elias lhe explica ao pé do ouvido: - É proibido falar alto no cinema! É mesmo o Vicente Celestino na tela! Que coisa fantástica! O cinema passou a ser então o seu passa-tempo preferido. Seriados de Rock Lane (Roque Lane como se dizia), O Zorro, Opalon Cassidy, Roy Rodgers, filmes engraçados com O Gordo e o Magro, Cantinflas, Charles Chaplin, e os musicais e chanchadas do cinema brasileiro produzidos pelaAtlântida Cinematográfica. O cinema é a porta de entrada para a civilização. As moças se deliciam aprendendo a beijar vendo os artistas dos filmes em seus colóquios amorosos. Algumas suspiravam só de ver as cenas amorosas. Outras mais afoitas até batiam palmas. Um verdadeiro orgasmo visual para as moiçolas desse tempo. 99 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A contece então, a segunda experiência dolorosa de Francisco com a morte. Morre o querido vovô Chico Elias. Seu câncer de carganta se transformara num sofrimento atroz. Ha meses ele padece prostado em uma cama. Já quase não fala mais. Uma noite, Francisco dorme. O vovô está muito mal! Ouviu alguém falar isso quando ia se deitar. Acorda de madrugada com sua mãe à beira de sua rede lhe chamando: - Francisco! Acorde! Francisco! Acorde! Meu filho! - Ham!... Que foi? - Levante meu filho! Seu avô acaba de falecer! Anotícia entrou como uma bomba pelos seus ouvidos. - O vovô morreu?- Sim! Meu filho! - Diz ela com lágrimas nos olhos: - Vamos lá no quarto dele! Todos estão lá! Todos, a quem ela se refere, são os filhos e filhas de vovô Chico Elias que estão ali reunidos, orando, assistindo os seus últimos momentos. Todos choram. É um momento muito triste. Francisco olha o avô estirado em sua cama, muito magro, a boca ainda semi-aberta. Teve vontade de abraçá-lo. Mas lembra que sua mãe dizia: - Não pode chegar muito perto de seu avô! Ele está com uma doença muito ruim! Que pega! O que sabiam as pessoas desse tempo, é que o câncer era uma doença muito contagiosa também com o contato físico. Ele se conteve. E como os demais presentes, apenas contempla o defunto. Pensa nele. Nos muitos momentos que teve com ele. De quanto ele lhe era importante. E também sofre por saber que nunca mais ele estará aqui. Depois de alguns momentos ainda chorando, Josina o leva de volta para se deitar. - Tente dormir meu filho! Só lhe acordei porque sei que você gostava muito dele! E ele de você também! Sossegue! Vá dormir! No dia seguinte, durante o café da manhã, Francisco escuta de um dos familiares presentes uma informação interessante: 100 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Você viu? - Como foi mesmo? - Pergunta alguém que havia chegado após a sua morte. - Estávamos todos rezando! De repente ele fechou a mão e com o dedo apontava para a mão fechada! Ninguém entendia o que ele queria dizer! O coitado não conseguia mais falar! Então Rita disse: - Papai está morrendo! Ele está pedindo uma vela! Assim que botaram a vela na mão dele, ele morreu!... Francisco havia perdido este momento. Quando chegou ao quarto do avô ele já estava morto. Passam-se vários dias até ele superar definitivamente a ausência do querido avô. É sua segunda experiência dolorosa com a perda de um ente querido. Dessa vez ainda mais forte.Afinal convivera muito na companhia do avô Chico Elias. Mas teve que se superar, também desta vez. Os estudos, o trabalho com os cigarros e o cinema, aos poucos foram lhe tirando o peso daquela perda, voltando à normalidade.Assimilou muito os conselhos da mãe quando o via triste: - Meu filho! Não pense na morte de seu avô! Todos nós um dia vamos morrer! Isso é certo! Francisco vai passar agora por uma outra experiência que o marcará para sempre. Aos onze anos ainda brinca de esconde-esconde com alguns amiguinhos que conheceu na escola. À noite está com dois deles brincando no coreto da Pracinha. Vestindo apenas um calção, muito suado de tanto correr, ele se posta em cima do coreto da praça que tem duas asas laterais, embaixo das quais estão várias mesas de um bar. Algumas pessoas bebem nas mesas. Ha um banco com dois namorados logo abaixo de onde ele se encontra. Ali, de cócoras, Francisco observa os transeuntes tentando se esconder dos amigos 101 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias que o procuram. Ele está tentando não ser visto por eles. Ha dois fios elétricos descendo de um poste próximo, prendendo-se à ponta da asa do coreto bem à sua frente, numa haste de ferro com as pontas dobradas para cima. A altura até o solo é de uns 3m. A queda de uma criança daquela altura poderia machucá-la bastante. Com as mãos sobre os joelhos ele observa. O amigo Mané Golinha que já o localizara vem sorrateiramente por trás e simula que vai empurrá-lo para cair embaixo. Instintivamente Francisco se agarra à única coisa que está à seu alcance. Os fios elétricos. Fios de um tipo antigo. Recoberto com borracha, que à ação do sol, resseca e descasca em vários lugares perdendo o isolamento. Francisco recebe a tremenda carga elétrica com um forte impacto. Tremendo-se todo, agarrado aos fios, seus pés descalços molhados de suor vão deslizando lentamente para a ponta da asa. O amigo assustado corre para trás descendo às pressas a escadaria do coreto gritando e dizendo que o amigo está levando um choque lá em cima do coreto. Francisco tenta chamar os namorados que estão logo abaixo, mas sua língua começa a enrolar para trás e ele não consegue gritar. Esta é uma situação muito crítica para uma criança. Num esforço tremendo para raciocinar ele pensa: - Tenho que empurrar os pés na haste de ferro e me jogar para trás! Consegue, enfim! E se estatela caindo de costas sobre o coreto. Fica ali meio desacordado com o corpo todo semi-adormecido e trêmulo, mas aos poucos vai voltando ao normal, quando chegam algumas pessoas para socorrê-lo. Oferecem-lhe um copo de água e cinco minutos depois ele já está em condições de caminhar tropegamente para casa. Sentindo-se muito abatido logo ele adormece. 102 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N a manhã seguinte desperta sentindo um certo ardor na mão esquerda. E observa que o dedo mindinho da mão esquerda está encurvado, preso por uma crosta escura, resultado da queimadura que sofreu preso ao fio elétrico. Mostra para sua mãe. Josina examina perguntando curiosa o que foi aquilo e ele então conta o acidente da noite anterior. Ela o leva à farmácia, onde lhe recomendam usar uma pomada no dedo e freqüentemente, várias vezes ao dia, esfregar bastante o dedo tentando estirá-lo. - Com o tempo o dedo vai voltar ao normal! - Diz o farmacêutico. De fato, uns dois meses depois a crosta escura já se soltou e o dedo de Francisco está voltando ao normal. Trinta anos depois esse episódio vai ser lembrado em um consultório médico, quando Francisco vai obter respostas bem convincentes, mais uma vez, de que coincidências não existem. Veremos isso mais tarde, em 1980. A vida na cidade corre tranqüila. Os primeiros meses foram de adaptação. Viver na cidade, cercado de gente, o ambiente escolar, tudo exige transformações. Algumas interferindo na formação da personalidade das crianças vindas da vivência bucólica do sítio. O odor de esterco dos animais, das plantas, dos bichos, está sendo substituído pela fuligem da cidade, a fumaça dos automóveis e tudo que caracteriza o odor comum das cidades. Estamos vivendo uma festiva noite de fim de ano. Onze horas da noite. Muita gente indo em direção à igreja de Santana assistir a missa do Galo. A cidade infelizmente está às escuras. Após as 23h00, mesmo em data tão significativa, o motor de luz já tinha sido desligado. 103 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N o centro da cidade próximo ao velho mercado público estão vários caminhões parados com inúmeros montes de frutas. Abacaxis, melancias, melões, laranjas e toda sorte de frutas e verduras ali postas aguardando o dia amanhecer, o sábado, dia de feira. Francisco caminha por ali com o primo Jaci, o filho mais velho do tio Miguel, então com uns 15 anos. Jaci, um rapazola muito endiabrado, ressentindo-se de um certo desarranjo intestinal, está procurando um lugar mais afastado e escuro para atender suas necessidades fisiológicas. - Chico! Vamos ali naquela rua escura entre aqueles caminhões que eu tô com necessidade!... - Francisco o acompanha e fica na esquina próxima, aguardando no escuro. Por medida de segurança, Jaci resolve subir em um pé de fícos frondoso ali existente. Arreia a calça e se ajeita nas galhas para cumprir a sua premente necessidade. Enquanto isso Francisco vê passar um casal de namorados, que vão se escorar bem embaixo da árvore onde Jaci está trepado. Sem nada poder fazer, pois não podia avisar que havia alguém em cima da árvore com tal propósito. Jaci de fato, está muito atingido com uma certa diarréia. E naquela situação, sem puder voltar atrás, ele tenta fazer pontaria de cima do galho para livrar o casal, mas infelizmente só consegue livrar a moça. E para surpresa do bem intencionado namorado, ele derrama a sua necessidade exatamente caindo sobre o ombro do rapaz. Ao sentir o impacto do dejeto mole, o moço se assusta exclamando: - O que é isso? - Passando a mão ele percebe e esclama enraivecido: E é merda! Jaci, que já subiu a calça pula embaixo tentando se desculpar. - Eu só queria fazer um medo a vocês! - E antes que o rapaz possa reagir ele desaparece numa tremenda carreira rua acima seguido por Francisco, que quase não consegue correr de tanto rir. Correm certos 104 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias de que naquela escuridão toda, não serão localizados. E se vão, deixando para traz o infeliz casal de namorados tentando se recompor, sabe-se lá de que forma. No Grupo Escolar estão começando as provas de fim de ano. Francisco se mantém com notas muito boas. Principalmente em português. Tem uma facilidade muito fluente para redação. As professoras são muito exigentes. E muito eficientes. Nesse tempo é obrigatório o estudo de uma língua alternativa. Inglês, Francês ou Latim. Quem não consegue aprender com elas não aprende com mais ninguém. Prova de redação. Dona Iracema Trindade, como todas as professoras, leva para casa as provas dos alunos para examinar e por a nota. Ela acaba de entrar na sala de aula com um braçado de provas embaixo do braço e coloca sobre o seu bureau. Os alunos que mantinham a algazarra, imediatamente silenciam. A professora cumprimenta a todos. - Agora vamos ver como é que a porca torce o rabo! - Dona Iracema, apesar de severa na tarefa do ensino, é muito espirituosa. E completa: - Quem vai passar de ano em português! E quem não estudou e vai levar!... Levanta o braço solicitando resposta da classe inteira: - PAAAU! - Respondem em coro todos os alunos. Quebrando o gelo do momento, pois ha muita expectativa entre os alunos sobre suas notas, o que é natural. São provas classificatórias para passar de ano. Ela chama cada um pelo nome, diz a sua nota e lhe entrega a prova. As notas serão conhecidas por toda a classe. É uma humilhação pública para os que obtiveram as menores notas. Os primeiros a ser chamados. As 105 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias melhores notas estão lá embaixo, na pilha de provas. Faltando apenas dez provas para serem entregues, é lógico que a expectativa cresce bastante. Agora vai-se conhecer os dez melhores alunos daquele ano em português. Francisco ainda não havia sido chamado. Portanto, está entre os dez. É o que ele deduz. E isso o deixa muito contente. - Agora! - Diz ela. Na medida em que eu for chamando esses dez nomes, quero que vocês todos prestem uma homenagem a esses alunos! Batendo palmas para eles! Eles merecem! Concordam! - SIMMM! - Responde em coro toda a classe. Dona Iracema também é uma psicóloga nata. Tem atitudes educacionais muito à frente do seu tempo. Aquela homenagem improvisada representa muito não só para os dez melhores da classe, mas também como exemplo, para estimular os demais estudantes. Um por um vai chamando os homenageados: 8,0! 8,5! 8,7! 8,8! - A cada um Francisco pensa: Agora sou eu! - 8,9! 9,0! 9,2! 9,5! 9,8! Francisco já está completamente vermelho de tanta emoção. Sua prova é a última! - A este aluno eu faço questão de dar NOTA 10! - Diz dona Iracema com empolgação. Foi a melhor prova de redação deste ano letivo! Esse aluno poderá ser no futuro um grande jornalista! Pois escreve com uma facilidade notória! Por favor! Batam palmas para Francisco Araújo da Costa! - UUUUUUU!!! - Acompanhado de muitas palmas, Francisco experimenta pela primeira vez na vida a emoção de ser homenageado. Sua auto-estima deve estar a mil nesse momento.Ele caminha na direção da professora para receber a sua prova. 106 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C oincidências existem? Ou são conseqüências? Anos depois Francisco terá oportunidade de agradecer a ela toda aquela empolgação. Dona Iracema demonstrava que qualquer pessoa pode usar a sua capacidade premonitiva. Algumas pessoas estão marcando a vida do jovem Francisco e dona Iracema, sem dúvida é uma delas. O jornalista se revelará anos mais tarde, em rádio e televisão. O fim de semana está agitado na cidade. São os festejos de São Sebastião, padroeiro dos motoristas. Ha uma procissão com muitos automóveis e caminhões num buzinaço pela cidade conduzindo a imagem de São Sebastião até a beira do Rio Seridó, lá pela altura do Poço de Santana. A partir dali, vão a pé pelo leito do rio, depois subindo a ladeira que leva à Capela de São Sebastião em cima dos serrotes de pedra. Francisco também vai na procissão. Todo faceiro exibe sua roupa nova que a mamãe Josina acabou de costurar. Uma calça comprida de brim azul e uma camisa de linho amarela. Sua primeira camisa de linho. Está se sentido um daqueles artistas que aparece nos filmes. Ali próximo sobem também algumas mocinhas. Entre elas ha uma bem bonita. De vez em quando ela atira um olhar comprometedor para Francisco, e lhe oferece um sorriso matreiro. Ele aníma-se todo. A menina está querendo namorar ele? Será? Mas logo ela desaparece na multidão puxada pelas coleguinhas. Após a procissão, que se encerrou com uma missa campal em frente à capelinha, todos iniciam a descida. Francisco e a mocinha ainda flertam mais uma vez quando se reencontram na descida. 107 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C omo da vez anterior ela some com as amigas por entre os transeuntes. Francisco volta para casa. Já está anoitecendo. Leva consigo aquela sensação maravilhosa de vitória. O primeiro flerte realmente confirmado. Afinal ela riu para ele de novo. Mas não diria nada ao tio Elias. Ia tentar encontrá-la outra vez. Quem sabe, iniciar um namoro. Então diria a ele que tinha uma namorada. Mais tarde, quando se deitou para dormir ficou curtindo a lembrança da imagem dela bastante tempo. E ensaiava em sua mente o que devia dizer a ela se a encontrasse de novo. - Você tem namorado? Quer namorar comigo? E se ela tivesse namorado? Não. Não devia ter. Se não, não tinha olhado para ele daquele jeito e seu sorriso dizia tudo. Naquela noite adormeceu embalando esse sonho. A primeira namorada! E como ela era bonita!... O próximo sábado é dia de ir ao cinema. Com seus trocados no bolso Francisco dirige-se à Pracinha. O tio Elias havia tomado outro rumo. Já tinha uma namorada fixa e saiu para se encontrar com ela. Ao chegar à Pracinha Francisco logo vê um pequeno aglomerado de jovens conversando alegremente. Mocinhas e rapazes estão na maior animação. Chegando mais perto Francisco descobre! Ali está ela! A menina linda que viu na procissão! Aproximando-se bastante deixou que ela também o visse. Ela pareceu ficar bem alegre quando o viu. Ele vai à bilheteria e compra o seu ingresso para o cinema. Volta e senta no canteiro da praça ali em frente. Os rapazes e as moças estão bem próximos. Um pouco depois a sirene toca a última chamada e todos se apressam para entrar no cinema. Francisco também. A menina procura ficar sempre perto dele na entrada. Todos entram. 108 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E ela segue sempre próximo a ele. Vai sentar numa das filas de cadeiras e ela vai junto seguida de suas amigas. Francisco senta. Ela passa em frente a ele entre os bancos, bem próximo para sentar na cadeira à sua esquerda. Ao passar tão junto Francisco sente o cheiro gostoso do corpo dela. Perfumado com Alfazema. É delicioso o cheiro dela. As amigas passam em seguida e sentam após a cadeira dela. Não se cumprimentam. Se quer, uma palavra. Mas por quê ela veio sentar ali junto a ele? Ainda está meio paralisado de emoção, pensando o que deveria conversar com ela, quando a luz apaga e a exibição começa na tela. Todos no cinema silenciam para assistir o filme. Depois dos trailers começa o filme. E os dois ali. Nenhuma palavra entre sí. Francisco ainda pensa: o que eu devo dizer primeiro? Quando o braço dela encosta-se ao dele no antebraço da cadeira. E agora? Francisco desliza o braço um pouquinho sentindo o contato da pele dela. Uma delícia! Seu coração está aos pulos. Sente que o rosto está quente. Que emoção sensacional! Depois de alguns momentos ele resolve fazer um teste e simulando conversar com alguém à sua frente retira o braço. Dai a instantes, quando recoloca o braço na cadeira não encontra mais o dela. Aguarda alguns minutos, que lhe parecem uma eternidade, mas ela não retorna o braço àquela posição. Ele vê dois filmes ao mesmo tempo. Um na tela do cinema e outro em sua mente. Enquanto Rock Lane corre na tela em seu cavalo pelos prados do faroeste americano, Francisco imagina outra cena em sua mente. Ela abraçada a ele.Aquele perfume! È demais! Mas não tem mais o contato físico do braço dela. Por certo ela pensou que ele não quer nada com ela! Como eu sou idiota! Pensa. Pra quê eu fui retirar o meu braço da cadeira!... Procura relaxar um 109 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias pouco e permanece apenas sentindo o cheiro maravilhoso dos cabelos dela quando balança a cabeça conversando com uma das amigas. E faz isso constantemente, como se soubesse o quanto ele está afetado pelo seu perfume. Parece se divertir provocando ele. Concentrado no filme Francisco quase já esquecera o braço dela. De repente! Ela encosta seu braço novamente no dele. Um momento de susto com um tiroteio na tela. O mocinho caiu do cavalo e todos se assustam imaginando que Rock Lane foi ferido. Dai por diante não desgrudam mais os braços na cadeira. Outro susto mais tarde! E ela agarra-se ao braço de Francisco. Aos poucos ela desliza o braço deixando a mão dela sobre a dele. Ele vira então o braço deixando que a mão dela caia na mão dele. Entrelaça os dedos dela. Ela aceita o carinho e aperta também a mão dele. Ele olha para ela. Ela está fixa na tela e não olha para ele. É como se já fossem namorados há um século. As mãos se acariciam infindávelmente. Os dedos se apertam levemente. Um responde ao carinho do outro. Para quê palavras? As mãos falam por si mesmas! Isso é namoro! Pensa Francisco. Assim permanecem naquele idílio mudo até o filme terminar. O tio Elias, três anos mais velho já faz sucesso com as moças. Ele é seu espelho. Mas não contaria nada a ele ainda. Ía esperar que o namoro com aquela menina se confirmasse mesmo. Depois falaria para ele que tinha uma namorada. Sonha rápido demais com essa possibilidade. Aprimeira namorada! Puxa! Que legal! Que emoção diferente! 110 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A s luzes acendem e todos se levantam. Ela imediatamente solta a mão dele. As amigas recomeçam na algazarra e empurra-empurra. Todos se dirigem à saída do cinema. Estão caminhando para a saida atraz dele. Ao chegarem à calçada, antes que Francisco pense o que vai falar com ela a menina se afasta junto com as amigas e vai embora. Sem se quer olhar para trás. Francisco permanece ali por alguns instantes, entre pensativo e surpreso. - Mas é assim que se começa a namorar? Não está entendo direito o que se passa. Por quê ela não lhe disse nada na saída? Nem uma promessa de se reencontrarem depois! Ia ter que aguardar o próximo encontro casual com ela para esclarecer aquela situação. Provavelmente será ali mesmo na pracinha um outro dia qualquer. No Grupo Escolar não a encontra. Nunca tinha a visto por lá. A não ser que estudasse em outro horário. À tarde talvez. Vai ao carro de pipocas. Compra um saquinho e se dirige para casa. Daqui ha pouco a luz da cidade vai apagar. A sirene do motor de luz já tocou avisando que faltam quinze minutos. A próxima semana segue repleta de pensamentos nela. Nem o seu nome ele sabe! Na quinta-feira Francisco resolve dar uma passada lá na Pracinha. Quem sabe... Nada! A menina sumiu. Na sexta-feira ele passa por lá novamente. Ha um serviço de alto-falante na esquina da Pracinha que toca todas as noites até as 21h00. Se pelo menos soubesse o nome dela até que botaria um anúncio oferecendo uma música a ela. Quem sabe ela apareceria... Esperou. Mas ela não apareceu. Chegou até a ver algumas daquelas suas amigas. Tem vontade de perguntar por ela, mas a timidez o impede. Amanhã é sábado e certamente ele vai poder reencontrá-la 111 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias novamente no cinema. Vai esclarecer de uma vez. Se estivesse na companhia das amigas ele se aproximaria dela e falaria: - Podemos conversar um pouco? - Ela certamente diria que sim e sentariam ali no canteiro da praça para entabular uma conversação de namoro. Botar os pontos nos ís. Se ela quizesse namorar ele, tudo bem. Se não quizesse, também se esclareceria de uma vez. Não ia ficar naquela incerteza, até certo ponto dolorosa. No primeiro toque da sirene às 18h15 Francisco já está se arrumando para sair. - Volte cedo! -Recomenda a mãe. E lá se vai ele para a Pracinha cheio de espectativas. Hoje tinha que saber o nome dela. Ao se aproximar do cinema logo pôde ver o grupo de rapazes e moças tagarelando e comendo pipocas. O que viu, deixa-o paralisado!Amenina tinha um namorado! Estava abraçada a ele divertindo-se com os demais. Ainda bem que ela não o vira. Sentou-se ali mesmo de costas, do outro lado do canteiro da praça. Seus pensamentos e as emoções fervilhavam. Que decepção! Como poude acreditar nela? Que leviana!... Não conseguiu entrar no cinema. Dai ha pouco toca a última chamada da sirene e todos entram no cinema. Ele fica lá fora. Dirige-se ao bar no coreto da Pracinha da Liberdade. Senta em uma mesa e pede um refrigerante. Nem a CocaCola baixa a temperatura de seu cérebro. Aguardaria o filme terminar. Ainda quer vê-la pela última vez. Daria um jeito de ela o ver. Passaria bem por perto. Queria olhá-la nos olhos. Precisava transmitir a ela nem que fosse com um olhar o seu descontentamento e decepção. A espera é terrível. O tempo parece se arrastar. Nada pode tirá-lo daqueles pensamentos doídos. Sente-se traído. Como ela foi capaz 112 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias de segurar a mão dele com tanto carinho, demonstrando afeto, e trair os seus sentimentos daquela maneira! Se já tinha um namorado, por quê se aproximou dele? Por quê lhe provocara daquele jeito. Relembrou tudo. Desde o dia em que a viu pela primeira vez na procissão de São Sebastião semanas antes. Ela parecia tão doce. Tão meiga. Embora demonstrasse uma certa frivolidade. Se ele fosse mais experiente teria reconhecido a sua personalidade fútil. O fato é que o havia ferido bem no peito. Com uma flechada certeira. De propósito! Por quê? Ele não consegue entender. É assim tão difícil entender as mulheres? Seriam elas todas iguais? Todas fúteis? Todas maquiavélicas? Enfim, o cinema se abre. O filme acabou. Todos agora estão saindo. Como de costume, os mais jovens se aglutinam junto ao carrinho de pipocas. E ela está lá no meio deles de mãos dadas com o namorado. Um rapaz da sociedade. Devia ser filho de gente rica. Francisco se aproxima. Passa bem em frente aos dois. Olha bem direto nos olhos dela. Ela o vê. Fica ligeiramente paralisada mas logo em seguida continua se divertindo com os amigos, parecendo que nem o vira. Como se nada tivesse acontecido. Esse é um momento muito difícil para o jovem Francisco entender. Mas o que se passa em seu interior é algo psicologicamente muito forte. Um sentimento que vai marcar dai por diante a sua vida de uma forma muito inusitada. Armou-se dentro dele, como que uma trava, de auto-defesa. Algo que seu ego gritaria por vários anos seguidos: nunca se apaixone por uma mulher! Quanta experiência ele vai viver com as mulheres, escorado nesse sentimento incomum e inexplicável. Algo gerido apenas em seu 113 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias subconsciente. Vai ler muito sobre psicologia alguns anos após, mas nunca foi levado ao esclarecimento sobre isso. Somente décadas depois, já após seus quarenta anos ele vai poder compreender tudo. - Compadre Pedro! Eu tenho outro armazém aqui na rua São José e acho que podemos construir sua casa lá! Vamos construir sua casa e depois você vai me pagando aos poucos! O tio Miguel Elias mais uma vez dava sinais de sua extraordinária personalidade, tentando ajudar ao irmão que se esforça e vê sua família crescer mais e mais. Nesse tempo ninguém pensa em praticar algum tipo de contenção para evitar filhos. Nem os Governos atuam em torno disso. O fator populacional ainda é uma necessidade. O Brasil ainda tem menos de cém milhões de habitantes. Um após o outro a fila vai aumentando (ver foto Caicó 1954) na familia de Pedro e Josina. Combinados os detalhes para o trabalho em regime de mutirão, iniciaram-se os trabalhos de construção da casa n° 553 da rua São José. Francisco ganha uma tarefa peculiar. Éele quem transporta a água para a construção da casa, em dois barris num jumento. Água transportada do Rio Barra Nova, que fica nas proximidades. A mudança para a nova casa foi um acontecimento e tanto. Casa com cheiro de nova. Portas e janelas pintadas com tinta a óleo. Uma calçada, uma pequena área de entrada, uma sala, outra sala, dois quartos, uma terceira sala de refeições, uma cozinha, um banheiro externo interligado à cozinha, e um pequeno muro onde armazena-se a lenha para o fogão. Pouco tempo depois seu Pedro já pôde comprar o primeiro rádio de mesa da família. Um rádio da marca ABC, com um olho mágico esverdeado no centro, que oscila com a mudança das estações. 114 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A gora a família já podia acompanhar as notícias pelo rádio. A cultura da comunicação começa a entrar na casa de Pedro Elias pelas ondas do rádio. Ele próprio, passa horas ao pé do rádio, procurando no dial onde ouvesse uma rádio tocando as músicas deAugusto Calheiros, seu grande ídolo. É Carnaval de 1954. Francisco tem agora 14 anos. Sábado de Zé Pereira. A cidade está um burburinho só. 09h00 da manhã e o Bloco dos Sujos já está nas ruas. Debaixo do maior temporal. Poucas vezes Caicó recebeu o beneplácito das chuvas tão fortes já em pleno mês de Fevereiro. Mas este sábado de Zé Pereira ficaria na história. Uma chuva torrencial cobre a cidade. Francisco se desgarra do bloco de carnaval, preferindo tomar banho de bicas. Descalço, só de calção, aproveita para se lavar da sujeira de tinta e talco que passaram no seu corpo. Está embaixo da bica bem na esquina da São José com Av. Seridó. Os trovões ecoam fortemente. O próximo vem anunciado por um forte relâmpago que cai ali por perto em algum para-raios. Francisco é atingido em cheio com a imensa claridade do relâmpago, se desequilibra escorregando na água e cai na calçada. Levanta-se atordoado e pensa: - Escapei por pouco! - E resolve ir para casa. Recebeu o relâmpago como um aviso. Mesmo com muita chuva o domingo de Carnaval está movimentado com muito barulho pela cidade. O dia está nublado, mas agora não chove mais. Anunciam que vai ter baile de carnaval à noite no Clube 115 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias dos Morenos. Tem muito lança-perfume de alumínio, da marca Odoro sendo vendida pelas esquinas. Bôlo-Bôlo, o mais conhecido engraxate da cidade anda com várias delas embaixo do braço, vendendo pelas ruas. Não é proibido cheirar lança perfume. Embora ainda de menor idade, Francisco compra um lança-perfume. E à tarde, bem no cruzamento de ruas próximo de sua casa, resolve tomar o primeiro porre. Cheira o lenço molhado e em alguns segundos o mundo desaparece sob seus pés. Corpo totalmente adormecido, ele cai no chão de terra molhada, no meio da rua. Ainda bem que nesse tempo o trânsito de automóveis em Caicó ainda é bem pequeno. Desperta momentos depois ainda zonzo. Sua primeira preocupação foi se certificar de que o lança-perfume ainda está na sua mão. Logo mais à noite, seu primeiro baile de carnaval no Clube dos Morenos está sendo muito divertido. Escorado numa das paredes do salão de baile, toma seus porres de lança-perfume, cheirando mais moderadamente. Aos poucos o som da orquestra ia sumindo e então ele vai escorregando na parede até ficar de cócoras. Pelo menos ninguém lhe pisa em cima, naquela posição. Um porre mais demorado, e quando retorna a si, tinham levado o lança-perfume. Para quem já tinha experimentado até queda na rua, as experiências daquele dia já eram suficientes. Resolve parar com os porres. A fabricação de cigarros continua por mais algum tempo, mas depois recrudesce. Francisco agora só tem a atividade na escola. Seus 14 anos de idade pedem uma ocupação extra. Seu Pedro então consegue uma vaga para ele na oficina de seu Joaquim Poroca, bem em frente a sua casa, para ajudar na fabricação de carrocerias de caminhão, onde será aproveitado nos trabalhos de pintura com tinta 116 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias a óleo a base de pincel. Ali também pode continuar ganhando seus trocados. Hormônios à flor da pele empurram Francisco para as mocinhas da redondeza. Aprendendo a correr de bicicleta, depois dos primeiros tombos agora ele se exibe passando várias vezes em frente a casa de Edite de Beréu, que reside no quarteirão próximo. Ela é sua nova paixão. Mas ha um problema entre os dois. Dizem que ela é apaixonada pelo jovem Ciduca, locutor da Difusora. Mas Francisco se sente muito atraído por ela. Ainda mais agora, com os festejos dos cordões azul e encarnado, angariando fundos para a igreja. O palco dos festejos foi armado no meio da rua bem em frente a casa de Francisco. É período da Semana Santa. O sábado amanhece sob os tiros de espingarda para derrubar o Judas que haviam pendurado num mastro ali em frente. Um boneco de pano cheio de capim.Aqueda do Judas a tiros de espingarda é uma tradição muito forte. Vários tiros são disparados nele até que alguém consiga atingir a corda que o mantém pendurado pelo pescoço. Pedro Elias pega também sua espingarda soca bucha e vai lá se divertir. Até que alguém dispara uma espingarda de dois canos acertando a corda e o Judas despenca no meio da rua, para diversão da molequeira e dos cachorros presentes, que estraçalham o boneco rapidamente em muitos pedaços. À noite, os cordões Azul e Encarnado sobem o palco na maior animação. Um pequeno estrado de madeira todo enfeitado com bandeirolas nas cores azul e encarnado e um cordão de luzes penduradas dão o clima do folguedo. As mocinhas desfilam cantando as suas ladainhas, batendo em 117 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias pequenos pandeiros enfeitados com fitas. “Boa noite meus senhores todos, Boa noite senhoras também...” Lá está Edite! Linda! Moreninha, vestida com as cores do Cordão Encarnado, cantando e dançando. Francisco, logo abaixo em frente ao palco, se delicia: - Será que ela quer namorar comigo? - Pensa. - Ah! Se ela quizesse namorar comigo!... Paixão recolhida. Sem dúvida. Mas Francisco não tem coragem de se aproximar dela. Mesmo depois da experiência malfadada da primeira namorada, ele se sente fortemente atraido pelas mocinhas de sua época. Mas a sua acentuada timidez o inibe de procurar contato mais direto. Às vezes, tem a impressão que Edite flerta com ele. Mas depois ela se mantém muito distante. Parece nem notar mais a sua presença. Aos 15 anos, vai ter sua primeira experiência sexual, sem nunca ter namorado de verdade. Acabara de começar no seu primeiro emprego, como locutor na Difusora SPVS - Serviço de Publicidade A Voz do Seridó. Acalentava a espectativa de que assim, a Edite se interessasse por ele. O SPVS é um serviço de auto-falantes pertencente à Diocese, que mantém várias bocas de som espalhadas em diversos pontos da cidade. Onde o jovem Ciduca já havia trabalhado como locutor. Ali são irradiadas as notas da Diocese, bem como do público em geral em pequenos avisos e divulgação musical. Sempre que se ouve no auto-falantes uma música de Augusto Calheiros, Pedro Elias logo se pronuncia: - Isso é que é cantor! Orlando Silva, Dalva de Oliveira, Francisco Alves, Silvio Caldas, 118 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Luiz Gonzaga, também são muito apreciados. Nelson Gonçalves, Ângela Maria e Cauby Peixoto são as grandes revelações jovens da época. As moças da rua São José costumam sentar nas calçadas para se deliciar com as fotos e os comentários sobre os artistas na Revista do Rádio. As fotos de Cauby Peixoto faz todas elas suspirarem. Um transtorno, quando certo dia aparece um comentário de que o Cauby é homossexual. Algumas das moças até choram de raiva com esses comentários. - Isso é inveja dessa gente! - Desabafam algumas. - Ele deve namorar com a Ângela Maria! Não vê as fotos dos dois? - Quanta ingenuidade! O tempo se encarregará de confirmar o que à boca maldita ha tempos comentava. O grande ídolo nunca se casa. E quando a Ângela Maria casou as moças ficam de orelha em pé. - Mas ela não era namorada do Cauby!... - Exclamam surpresas. É nesse tempo que Francisco vai ter sua primeira experiência sexual. É noite de São João. Após o trabalho na Difusora, a cidade está repleta de fogueiras queimando. Jessé de dona Rosa, também locutor da difusora, acaba de chegar por lá montado em sua vistosa lambreta. - Hoje tem um baile lá no Cabaré! Você vai? - Francisco mostra-se um pouco surpreso com a pergunta. Nunca havia estado no cabaré. Tem só 15 anos. Jessé já é freguês da zona ha bastante tempo. Já tem seus 17 anos. Ha uma rua das mulheres de “vida fácil” lá próximo da matança (local do abatedouro de animais) e do motor da luz. Mas ele nunca esteve numa dessas casas. Aquele trecho da rua é conhecido como o Cabaré. Tem muitas raparigas, que durante o dia trabalham como domésticas 119 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias em algumas residências na cidade. Comportamento nota dez. À noite, elas estão lá no Cabaré, engordando o faturamento. Tem delas que cobra até dez mil réis! Um dinheirão! Francisco ganha oito mil réis por mês. Não daria nem para uma noite de diversão com uma rapariga daquelas. Mas ele juntou algumas economias e está refletindo sobre a pergunta de Jessé. Ainda não se decidiu. Desconfiado, Jessé lhe faz outra pergunta: - Você já esteve com mulher? - Ô xente! Já rapaz! - Que mentira! Mas não ia sair dessa por baixo. - Então mais tarde quando você fechar a difusora eu passo aqui para lhe pegar. A gente vai junto! Tá certo? - Pode passar! - Responde Francisco pensando: É hoje! Que vou ter de botar a lagartixa pra fazer carreira! As 22h00 lá estão eles chegando à zona do baixo meretrício. O Cabaré de Ana Raposa é a maior animação. Até um sanfoneiro haviam contratado. Um salão todo enfeitado com bandeirolas. Muitas mulheres de vida fácil disponíveis. Muitos homens também, entre velhos, adultos, solteiros, casados e rapazes de primeira viagem, como Francisco. Modéstia à parte, Francisco dança bem. Logo uma das mulheres ainda bem jovem, ali presente se interessa para dançar com ele. Nesses ambientes diferentes dos bailes em sociedade, as mulheres se aproximam e puxam o homem que elas querem para dançar. É normal. O certo é que lá pelas duas horas da manhã, depois de beberem algumas cervejas, Francisco foi conduzido ao lupanar. Não sabia nada da arte da cama. Mas a jovem já sabia tudo. Umas duas horas depois, o dia está amanhecendo com o cantar do galo. Um silêncio total ao redor. Francisco vê pelas brechas do telhado do quarto onde se deitou com a dita cuja, que o dia vai já amanhecer. Apressa-se em ir embora. Veste a roupa e faz menção de 120 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias querer pagar a mulher. Ela então lhe diz: - Não quero dinheiro seu, não! Valeu a noite de diversão! Quando você vier outra vez a gente acerta! - Francisco então agradece e sai a passos largos na direção de casa. Menino! Se Pedro Elias descobre que ele passou a noite no Cabaré! Como vai ser quando chegar em casa? - Pensa ele. Não vai entrar em casa! Teria que chamar sua mãe. Não vai chamar! Isso pode acordar o pai! Chegando diante de casa, a fogueira ainda tem brasas fumaçando um pouco. Ele se acocora junto. E se mantém ali em silêncio, esperando que alguém abrisse a porta e talvez ele desse um jeito de entrar sem ser visto. Que jeito! Mas intuição de mãe é coisa séria! Não demorou quinze minutos e a janela da sala se abriu. É Josina! Que fala baixo para Pedro não acordar: - Onde você andava camarada? Que chega em casa a essa hora? Francisco dá uma desculpa esfarrapada... dizendo que andava com Jessé de dona Rosa, e tal... Mas Josina não engoliu a conversa e abre a porta mandando-o entrar. Mais tarde, quando ele acorda, não tendo ninguém por perto, ela dá-lhe o aperto definitivo: - Você andava por aí com mulher, não foi? - Francisco nem disse sim, nem disse não. E como quem cala consente, teve que ouvir boas e boas. Todo mundo sabia da fama de raparigueiro do Jessé de dona Rosa. E andando com ele... Conclui acertadamente Josina. - Você ainda é muito moço, Francisco! Não pode já estar se enrolando com mulher do mundo por aí! - Mas dá o assunto por encerrado. Seu menino estava ficando homem! Realidade que ela é obrigada a aceitar naturalmente. Só não queria que ele se envolvesse demais 121 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias com essas coisas. Mas não havia como evitar. O jeito era tolerar e orientar no que pudesse. Sem clima suficiente para que ele recebesse orientação do pai, como seria o ideal, cabia a ela também esse cuidado. Embora não pudesse fazer muita coisa. Os jovens em puberdade têm energias sexuais em franca ebolição. Restava pedir a Deus que acompanhasse seu filho. E lhe desse juizo! Passam-se três dias e Josina percebe resíduos diferentes nas cuecas de Francisco. Chama ele para uma conversa: - Francisco! Você está sentido alguma coisa diferente nesses “troços”? - Apontando para a virilha dele. Francisco, que já está sentido até febre, confirma a purulência. - Taí o que você arranjou! - Diz ela com ar de preocupação. - Vá agora mesmo na Farmácia do Gilson e diga isso a ele! Diga que eu mandei ele medicar você! Isso é doença venéria meu filho! Você precisa se tratar! Francisco sai imediatamente em direção à Farmácia. Quanto trabalho a família está dando a esta mulher extraordinária! Um problema que, em situação normal, deveria estar sendo averiguado pelo pai, ela é que tem de tomar a iniciativa. E sem ele saber de nada. A sua ignorância é tamanha que seria capaz de espancar o menino ao saber disso. Na farmácia Francisco vai receber uma série de aplicações de Benzetacil, uma injeção de antibiótico, muito dolorida. Uma a cada três dias. São três no total. - Depois volte aqui para me dizer como anda isso! - Diz o farmaceutico. Felizmente, tratada assim bem no início, a Blenorragia vai sendo logo controlada. 122 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias M as a ignorância é mãe de todas as purulências. Uma semana depois de tomar as injeções Francisco saboreia um bom copo de caldo de cana com pastel. Isso é o pior ativador da gonorréia. Alguns resquícios dela ainda existiam em seu sangue e logo a blenorragia reage de volta. Retornando à farmácia informando que ainda não ficou curado, o farmacêutico lhe pergunta: - Andou comendo comida carregada? Carne de porco, essas coisas? - Não! - Responde Francisco. - E caldo de cana? - Eu sempre tomo, com pastel! - Taí a causa. Homem! - Caldo de cana é um veneno nesses casos! Vamos aplicar outras injeções! - Agora são quatro. - Depois volte aqui! - Orienta o Gilsom da farmácia. Dessa vez Francisco mantém o resguardo direitinho, e duas semanas após está completamente curado da gonorréia. Mas ficou um efeito colateral! Francisco agora pensa duas vezes, sobre um novo programa com mulheres no baixo meretrício. Será que todas elas estão doentes? Camisinha nesse tempo se existia, ninguém sabia em Caicó. Pelo menos os jovens em início de “carreira”. Levou um bom tempo, até Francisco se envolver de novo com uma rapariga. Quem experimentou da fruta nunca mais vai esquecer. Torna-se um vício desde a primeira vez. Tiraram-lhe o “cabaço”, como diziam alguns. Agora tem de continuar com a magnífica prática. Com todo cuidado, é bem verdade. Vez ou outra ele até se diverte comentando com os amigos: - Pois é! Levei uma cacetada com Blenorragia logo da primeira vez!... 123 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias J osina se mantém em alerta. Sempre vistoriando suas cuecas samba-canção. Mas está tranqüila. Nunca mais encontrou nada anormal. Das duas uma: ou Francisco não tem andado mais com mulheres por aí, ou tem muita sorte agora. Mulheres acometidas de doenças venéreas em Caicó nesse tempo é algo muito comum. A Saúde Pública nem toma conhecimento disso. É um tempo difícil. Difícil em tudo. Mais uma eleição está às portas. Nenhum político se interessa por questões dessa natureza. A propósito de eleição, a tia Maria, como boa cozinheira, havia sido requisitada para ajudar na preparação da comilança para os eleitores na casa de Zé Josias, um forte cabo eleitoral do PSD. Nesse tempo é muito comum os candidatos oferecerem transporte e almoço aos eleitores. - Passe lá em Zé Josias que eu preparo um bom prato pra você! - Diz a tia Maria. Havia gente que almoçava várias vezes. Pelo menos duas. Uma em qualquer residência que servisse almoço para os eleitores do PSD e outra onde servisse para os eleitores da UDN. Só havia esses dois partidos eleitorais. Bois e mais bois, muitos porcos, muitas ovelhas e bodes, são sacrificados nesse período para alimentar os dois ou três milhares de eleitores. Meio-dia e Francisco se acerca da casa de Zé Josias. É de menor ainda. Não vota. Mas ha comida pra todo mundo. A tia Maria assim que o vê prepara-lhe um suculento prato cheio até a copa, com feijão verde na nata, arroz de leite, farofa e alguns pedaços de carnes variadas. Francisco logo reconhece a carne de porco por causa do toucinho. - Porco eu não quero não tia Maria! 124 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Porquê? Você não gosta? - Gosto não! - Claro que não iria confessar a ela sua recente experiência blenorrágica. Seria motivo de gozação. Sem dúvida! Tia Maria, o que tem de severa tem também de gaiata em contra-peso. Aliás, quase todos os filhos do vovô Chico Elias são muito espirituosos. A diversão da comilança no dia de eleição não duraria muito tempo. Anos depois foi proibida por Lei Federal. Nem transporte, nem comida para os eleitores. Havia muita gente que votava apenas por um prato de comida. Pessoas que ha muito não comiam carne. Tiravam a barriga da miséria nas eleições. Mas algum tempo depois isso já não existia mais. Seis de abril. Dia do aniversário de Francisco. Sua mãe havia encomendado uma surpresa para ele. Um violão que mandou fazer. E lhe dá de presente. Ele procura aprender de ouvido a tocar o violão, apenas com um pequeno caderno de posições de violão. Aos poucos vai dominando o instrumento. Não demora muito e ele entra para o rol dos seresteiros da cidade. Juntamente com Luiz de Zé Paulo e seu piston de surdina e Raimundo Nonato. Raimundo não canta nem toca nada. Mas é o responsável para conduzir a garrafa de aguardente e o tira-gosto, num saco de papel. À noite, ele está sempre no microfone da Difusora. É comum se ouvir pelos auto-falantes, durante a animação do passeio na Pracinha, oferecimentos musicais do tipo: - “Um alguém muito apaixonado, oferece esta música a outro alguém que está passeando na praça, trajando sáia azul e blusa da mesma cor. Com amor e carinho - Ninguém Me Ama - com Nora Ney!” 125 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F ácil imaginar-se o alvorôço das moças na praça para descobrir quem está vestida daquela maneira. Pois ha um desconhecido apaixonado mandando-lhe mensagens sonoras, porém, sem se identificar. Ha situações que quase dá em caso de polícia. Amigos de um outro, que providenciam uma “pegadinha”, oferecendo músicas à sua namorada. Às vezes isso resulta em arenga entre os dois namorados. - Você anda dando bola para alguém, que está lhe mandando essas mensagens! - Criatura! Eu não sei quem está fazendo isso! Eu não dou bola pra ninguém! Era só o que faltava! Enquanto os amigos matreiros se divertem de longe assistindo a desavença dos namorados. Até que um dia o padre Galvão, responsável pela Difusora, proibe terminantemente as tais mensagens. Tem gente que manda os moleques com a mensagem num pedaço de papel, entregar lá na difusora. - Se a pessoa não se identificar, - diz o padre: não receba nem divulgue a mensagem! O único jeito de coibir aquelas molecagens. Os jovens da geração de Francisco, um pouco mais velhos, já estão se dirigindo ao serviço militar. O tio Elias logo irá para o Exército. O primo Jaci, já foi para a Marinha ha algum tempo. Manda lembranças para a família. Chega uma carta dele informando que está indo muito bem na Escola de Aprendizes Marinheiros e que logo vai ser destacado para servir no Quartel da Marinha no Rio de Janeiro. Informa também que em breve embarcará numa viagem de prêmio, em navio-escola da Marinha Brasileira viajando por diversos paízes. Esse é o comentário alviçareiro que mais se ouvia no meio da família Elias. No ano seguinte Francisco completará 16 anos. 126 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E ssa é a idade inicial para ingressar na Marinha. Quando chegar a hora seu pai então sentencionará: -Vamos mandar Francisco para a Marinha. Esse menino tem que fazer carreira na vida. Olha o exemplo do Jaci de Miguel! Vá no mesmo rumo que o futuro é nas forças armadas! O alistamento no Exército em Caicó ainda demoraria mais dois anos, entrando só com 18 anos completos. E Pedro Elias acha que ele deverá seguir o caminho do primo Jaci. A Marinha é a melhor opção. Mas tem que entrar com dezesseis a dezessete anos. A essa altura, Francisco já tem sua primeira namorada firme. A Nevinha. Uma moça da vizinhança filha de uma família protestante. Na verdade foi ela, um ano mais velha que ele, quem lhe ensinou os primeiros passos na arte do namoro. Despede-se dela e ruma para Natal, onde fará exames de saúde no quartel Naval. E caso seja aprovado, embarcará dias depois para cursar a Escola de Aprendizes Marinheiros de Recife, de onde havia saido o primo Jaci, que agora singrava mares de vários continentes. Nesse momento, o primo Jaci é o grande orgulho da família. O vovô Chico Bobôco, está acamado já ha alguns dias. Sofre de uma doença que ainda não descobriram o que é. Ele tem muita dificuldade para urinar. Está muito abatido. Parece estar sofrendo muito. Ainda vivia pelo sítio, quando Pedro Elias o traz para sua casa na cidade. Seria sua missão. cuidar do pai até a morte e do sogro também. - Cumpadre Chico! Enquanto eu tiver uma casa o senhor não ficará desamparado! Vai ficar aqui com a gente! Vou levá-lo no hospital para o médico lhe examinar. - Josina arrumou um quarto na casa para vovô Bobôco se acomodar. 127 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A gora já ha um novo hospital na cidade com mais possibilidades de atendimento. O médico passou injeções para aliviar as dores. Chega o dia de Francisco ir para Natal a fim de se alistar na Marinha. Na capital, que ainda não conhecia, foi recebido pela tia Nazinha, irmã de Josina, cujo esposo também era marujo, e que estivera em Caicó por ocasião da doença do Padim Bobôco, quando Josina lhe solicitou que recebesse Francisco quando fosse para a Marinha. Chegando à Natal com um companheiro, o Gordo de Severino Modesto, também pretendente aos exames para a Marinha, hospedase por dois dias no Hotel Caiana no centro do Alecrim, enquanto fariam os exames de saúde no Hospital Naval perto dali. Vindos da tranqüilidade do interior, logo na primeira noite, um domingo, eles deitam no quarto para dormir e deixam a porta aberta. Pela manhã Francisco descobre que foi roubado. Levaram todo o seu dinheiro. Ainda bem que deixaram a carteira com os documentos. O Gordo, que dormia com sua carteira no bolso não foi roubado. Mas amanheceu a segunda-feira com uma forte crise de amídalas. Na praça em frente ao hotel ha muitas bancas de bugigangas para vender. - Capaz de eu não passar no exame de saúde por causa dessa garganta. Vamos ali que eu vou comprar um remédio. Francisco imagina que ele vai à Farmácia. Mas o Gordo compra numa daquelas bancas uma lata de Vic-Vaporube e com o dedo, aplica algumas dedadas da pasta sobre a língua massageando a garganta, depois engole tudo. Francisco está surpreso! Não sabia que isso era muito bom para crises de garganta. Os exames seriam à tarde. Poucas horas depois o Gordo dá conta que a crise de garganta havia passado completamente e anima-se para encarar os 128 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias exames de saúde. Mas, uma surpresa desagradável esperava por ele. Fazendo os exames de saúde, muitos jovens candidatos presentes, e o Gordo também na fila. Num dos exames o candidato tinha que por o pé sobre um pó escuro ali existente e pisar depois numa cartolina. E para grande tristeza do Gordo, ele acaba de ser desclassificado pela planta do seu pé. Seus pés não têm cavas. É pé chato. O médico descarta-o na hora. Francisco passa nos exames e deverá se apresentar quinze dias depois a fim de embarcar de trem para a Escola de Aprendizes em Recife. Enquanto o Gordo regressa a Caicó entristecido. Queria tanto ser marinheiro... Faz contato então com a tia Nazinha e vai para sua casa no bairro de Lagoa Seca aguardar o dia da viagem. Ser marujo é charmoso. Antonio, esposo da tia Nazinha também é marinheiro. Uma roupa azul, muito bonita, uma boina branca com uma fita. Detalhes que empolga os jovens. Nos dias que passou em casa da tia Nazinha, pôde conhecer alguns aspectos da cidade. Foi com ela à praia pela primeira vez, andou de ônibus pela cidade. O cheiro da capital também lhe é muito diferente. Cheiro de fumaça e de gente, tudo misturado. Foi com ela conhecer também uma prima de segundo grau, Maria, filha do tio Zé Bobôco, irmão do vovô Chico Bobôco, no bairro das Rocas. Será para lá que ele voltará pouco mais de um mês depois. Gostou muito da família de Maria. Ela tem um irmão, o Marola, que era companheiro de Francisco nas mesas de sinuca em Caicó. A afinidade foi imediata. As músicas ao violão ajudam no relacionamento com as filhas de Maria. Elas apreciam bastante ouvir Francisco ao violão. 129 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C hega então, o dia da viagem para Recife. Ha uma recomendação expressa para só levar numa pequena maleta apenas uma muda de roupa, duas ou três cuecas, pasta e escova de dentes. Embarque pela manhã na estação central da Rede Ferroviária, no bairro da Ribeira. O trem sai às 07h00, chegando em Recife às 19h00. Um dia inteiro de viagem. Velocidade de Maria Fumaça. Mas a viagem está muito divertida. Viagem para o desconhecido é sempre motivo de alegre espectativa para todos os jovens. Além do mais, ha um cantor embarcado. Francisco conduz seu violão. E anima a turma cantando juntamente com outros jovens enquanto a viagem prossegue. Na Estação Central de Trem no Recife, os recrutas são colocados em um caminhão da Marinha com cobertura de lona, cada um com sua pequena maleta, que agora se desloca pelas ruas da cidade muito iluminada. Passam por pontes muito bonitas. Estão sendo levados para a Escola de Aprendizes Marinheiros, nas proximidades de Olinda. Ao chegarem lá, um vexame! Pelo menos para Francisco, que nunca havia passado por tal experiência. - Todo mundo! Entrem naquele banheiro ali. Tirem toda a roupa e se molhem nos chuveiros. Grita um sargento. Chuveiros do tipo chuveirão. Logo em seguida, um soldado aparece com uma mangueira grossa na mão e um tubo nas costas. O sargento grita: - Fiquem todos de costa e se abaixem até a cintura! Mas o que é que está acontecendo aqui! - Pensa Francisco. 130 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Atal mangueira jorra uma fumaça com cheiro desagradável. - Abram bem as pernas! - Grita o sargente. - Vocês estão levando um banho de desinfetante para matar todos os chatos, xanha ( um tipo de coceira) e piolhos que estiverem trazendo no corpo! - Berra ele. A Marinha não gosta de piolos, nem chatos, nem xanha, nem piolhos! -Cada recruta recebe sua baforada no trazeiro devidamente posicionado. - Agora se virem de frente! Outra baforada pelo corpo inteiro. Os recrutas já estão rindo da situação. - Silêncio! - Berra outra vez o sargento. - A Marinha não gosta de marujos com risadinhas! Tudo aqui é pra ser levado a sério! Em seguida se ensaboem e se lavem. Depois vistam a roupa de marujo. Por traz de cada recruta ha um pequeno pacote de roupas no chão ao pé da parede. Roupa para exercícios físicos, duas calças e duas camisetas, dois calções de banho, um cinto de lona com fivela cromada, um par de tênis de lona branco, um chinelo de borracha, e a tal boina branca. Com uma recomendação final do sargento: - Só não fornecemos cuecas! Todos têm que cozinhar a cueca que vestiam quando chegaram! Procurem a lavandaria amanhã logo cedo. E a própria roupa deve ser lavada com bastante sabão. Cada um recebeu sua cota de sabão em barra. Após a primeira lavagem na lavanderia elétrica com água quente para matar piolhos, cada marujo tinha de lavar sua própria roupa nos tanques de outra lavandaria existente no pátio trazeiro externo da Escola. Vestia uma, enquanto isso lavava a outra. E tinha-se de ficar ali próximo à roupa, ensaboada ao sol ou enxugando, para evitar que alguém as roubasse. 131 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias D esde a viagem no trem Francisco já fez amizade com alguns companheiros de turma. Um deles, é o Zé Segundo, um sujeito espirituoso e bem vivo, com quem se afina mais. Estão sempre juntos conversando amenidades nas horas de folga. O regime de instrução na Escola de Aprendizes não é moleza. Inicialmente, o que pega mais forte são as instruções de marcha dos pelotões. Que desfilam desde o calçamento da parte externa da Escola até as marchas pelas areias da praia por trás da Escola. Comenta-se que ha na Escola um contingente muito grande de candidatos. De forma que o comando manda espremer as turmas em toda sorte de exercício puxado e às vezes exagerado, provocando para que muitos peçam baixa do alistamento. Os mais fortes vão resistindo. Ha também outros tipos de exames com provas escritas, sobre as matérias que são dadas nas apostilhas. Quem não tiver tudo na ponta da língua, estudando bastante, por qualquer coisa é dispensado. Acontece um acidente com Francisco. A marcha dos marujos é feita calçando apenas o tênis de lona com solado de borracha. Certa manhã em marcha de ordem unida pelas areias da praia Francisco tropeça num pau fino enterrado de ponta na areia que lhe penetra a parte superior do pé esquerdo, cerca de um centímetro. É levado para curativos na Enfermaria da Escola ali permanecendo até o dia seguinte. Dão-lhe alta ao meio-dia seguinte e logo mais à tarde está sendo requisitado para continuar os exercícios com o pelotão. O cabo que conduz o pelotão nem toma conhecimento da gravidade do pé de Francisco e exige: - Quero ver todo mundo batendo forte o pé no chão! Vamos rachar o calçamento! Um, Dois! Três, Quatro! Um, Dois! Tres, quatro! 132 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O ferimento no pé está ficando uma coisa feia. Quinze minutos dde ordem unida, com o pé já inchado, Francisco está mancando. - Você aí, marujo! Marche sem mancar! - O meu pé está doendo muito, cabo! - Não interessa! Pisa forte! Vamos rachar o calçamento! Nos dois dias seguintes, é a mesma coisa. Enfermaria pela manhã e pelotão de ordem unida à tarde. O pé muito vermelho está cada vez mais inchado. Quase já não cabe no tênis. À tardinha o companheiro Zé Segundo avisa que foi desligado. Não passou nas últimas provas escritas. Vai voltar para Natal com mais alguns candidatos. Eram 20 no total. Francisco então resolve: - Sabe de uma coisa! Eu vou aproveitar e pedir desligamento! Vou embora! Se ficar aqui vou perder o meu pé. Isso aqui é coisa de doido! - Então você tem que ir agora falar com o Tenente Costa. Daqui ha pouco encerra o expediente. E a gente vai de trem amanhã bem cedo. Já avisaram! Francisco não perde tempo. Vai à sala do Tenente Costa. Fala a ele da sua situação mostrando o estado de seu pé, pedindo desligamento da turma. O Tenente prontamente o atende. Olha sua ficha e conclui: - Você veio de Natal, certo? Vamos aproveitar que amanhã está voltando uma turma, desligada do curso e você vai junto! Assina um papel com a autorização que bateu à máquina rapidamente e diz: - Arrume suas coisas! O transporte saí as 06h00 da manhã para levar vocês na estação do trem! Francisco agradece, pega o documento e volta para seu alojamento. Não ficaria nem mais um dia ali. Seu futuro não é a Marinha. Disso está certo. 133 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O problema agora será convencer seu pai quando chegasse à Caicó. Cinco horas da manhã todos já estão de pé. Embarcam no caminhão de lona às 06h00 e são deixados na Estação de Trem no centro do Recife. Um sargento os acompanhará até Natal. A um dos rapazes foi entregue um saco de pano, nada limpo, com 21 sanduíches de pão redondo com bife de fígado de boi. Por recomendação do sargento, o saco só deveria ser aberto ao meio dia, para um lanche na hora do almoço. O vagão dos dispensados é o último no trem. Um calor infernal. A viagem de volta é sempre mais dolorosa. Mas ha o violão de Francisco, que ajuda a passar o tempo animando a rapaziada. Justo ao meio-dia, o rapaz abre o saco com os sanduíches. Todos já estão com muita fome. Afinal, saíram da Escola muito cedo, só com um copo de café com leite e um pão na manteiga. O saco aberto logo foi revelando o conteúdo do infeliz repasto. Abrindo-se os pães vê-se que o bife de fígado está verde. Alguns cheirando ruim. O lanche azedou fechado no saco. Era isso. E agora? - E o sargento? Vamos reclamar dele! - Disse um. Outro exclama afobado: - Vai ver que está lá no restaurante do trem almoçando no bem bom! Dois outros companheiros decidem ir até o restaurante do trem procurar uma solução com o sargento. Quinze minutos depois voltam desolados: - E aí? - Nada! O sargento disse que não é culpa dele e que não pode fazer nada! A essa altura alguns mais famintos tentam comer o sanduíche assim mesmo. O Zé Segundo, bastante intuitivo tem uma idéia e chama Francisco saindo fora do vagão: 134 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Tive uma idéia! - Diz ele esfregando as mãos. - Rapaz, você canta muito bem! Eu vou fazer o ritmo batendo no violão. O que você acha de a gente tentar conseguir alguma coisa para comer cantando lá no restaurante? - É! Não custa nada tentar! E lá se vão eles para o vagão do restaurante que fica mais ou menos no meio do trem. Já entram cantando uma bela música de Nelson Gonçalves: “Maria Bethânia. Tu És Para Mim a Senhora do Engenho”... Querem impressionar todos os comensais. E estão conseguindo. Vários passageiros estam almoçando no restaurante do trem. Inclusive o sargento, que já desfruta a sua sobremesa de salada de frutas. Todos estão surpresos com o show repentino dos rapazes. Terminada a música, todos aplaudem. Bom sinal! Estão agradando. Francisco amima-se e canta mais uma. Cantando vão se aproximando da mesa do sargento. Logo o amigo Zé Segundo fala com ele, pedindo que alivie uns dois sanduíches para eles. Falou de modo que outras pessoas escutassem. Ora! O sargento ficou sem saída. E prontamente chama o garçom: - Sirva dois sanduiches e dois refrigerantes aqui para os rapazes! Que maravilha! Agora sim! Poderiam apaziguar o estômago que já roncava feito cuica ha algum tempo. Eles comem os sanduiches. Em seguida cantam mais duas músicas e se retiram voltando ao vagão, dos dispensados, alegremente palitando os dentes. - Pra onde vocês foram? - Pergunta um deles. - Fomos almoçar, ora! - Responde Zé Segundo. - E vocês têm dinheiro? - Claro que não! Foi o sargento que pagou! 135 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Já está começando um alvoroço. Os demais também querem ir lá pedir comida ao sargento. - Espera aí! - Fala o Zé Segundo. - Alguém aí sabe cantar tão bem como o Francisco aqui? Como ninguém responde, ele então informa como haviam conseguido o lanche. Falou almoço só pra deixar a turma ouriçada. E foi assim, que conseguiram chegar à Natal aquele dia, já à noite, com apenas um sanduíche e um refrigerante, conseguidos à base do violão. De volta à Natal, Francisco vai então para a casa de Maria, do tio Zé Bobôco, nas Rocas. Chegando lá explica o motivo de sua desistência da Marinha. Maria então recomenda que ele fique em sua casa alguns dias para ir ao hospital tratar daquele pé. Seria melhor. O inchaço ainda está bem feio. O atendimento de saúde pública em Natal é bem mais eficiente do que em Caicó. Manuelzinho esposo dela também insistiu, então Fransisco fica por lá umas duas semanas, vez por outra divertindo a todos com o seu violão à noite, e durante o dia ajudando Manuelzinho em sua oficina de marcenaria. A experiência obtida com o Sr. Joaquim Poroca, está servindo para alguma coisa. Certo dia, uma das filhas de Maria onvíndo-o cantar comenta: - Você podia cantar na rádio! Tem um programa de auditório todo sábado na Rádio Poti. É perto daqui. Você devia ir cantar lá! Todos concordam. Ha tempos Francisco já alimentava o sonho de ser cantor de rádio. Aquela era uma chance para tentar. E vai lá fazer sua inscrição para o programa do próximo sábado. Vesperal dos Brotinhos, que começava às 15h00 indo até as 17h00. 136 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias I ndicou a música que gostaria de cantar, um sucesso de Carlos Nobre, um cantor que já fazia sucesso imitando Nelson Gonçalves. Voltaria no Sábado pela manhã para ensaiar com o conjunto musical. Durante dois dias seguintes, Francisco cantou repetidas vezes em casa a música que irá apresentar no programa. As primas, filhas de Maria, estão convencidas que ele vai ganhar o programa de calouros. Até lá Francisco tenta exercitar a voz e pensa também em vencer a timidez. Afinal, nunca havia cantado em público, ainda mais no rádio. Mas enche-se de coragem, estimulado pelas primas que confiam no seu talento e no sábado pela manhã apresenta-se para o ensaio na rádio. Enquanto ensaia, abrindo sua voz de boa tonalidade, ouve do maestro do conjunto a seguinte observação: - Com uma voz dessa! Você devia ser locutor de rádio! - Locutor de rádio? - Pergunta ele surpreso. O maestro nem sabia que ele já era locutor na Difusora lá em Caicó. - Sim! Você tem uma voz muito boa! Daria um bom locutor! Insiste ele. Francisco agradece o estímulo e à tarde está de volta para participar do programa de calouros. As primas ficaram em casa e acompanham sua estréia pelo rádio. A apresentação foi um sucesso. Francisco ganha o primeiro lugar. O melhor calouro daquele sábado, recebendo um forte aplauso da platéia do Vesperal dos Brotinhos. Seu prêmio foi uma camisa de mangas curtas, de algodão, muito bonita, colorida em quadrinhos, oferecimento das Lojas Seta. Retornando para casa de Maria a vizinhança o aguarda também com aplausos.As primas demonstram muita alegria. - Não disse a você! Claro que você ia ganhar! 137 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Ninguém cantou melhor que você! A experiência deixa Francisco muito feliz. Mas precisa voltar para Caicó. Tem que recomeçar tudo partindo de lá. Durante a semana seguinte, com o pé já praticamente sarado ele volta para Caicó. Manuelzinho até insistiu para ele ficar com ele na oficina de marcenaria. Mas Francisco sente que sua vida seguirá outros rumos. Chegando a Caicó explica para os pais o motivo de seu desligamento da Marinha, informa o sucesso como cantor na Rádio Poti e mostra a camisa que ganhou no programa. Retorna então, às suas atividades de locutor no S.P.V.S. À noite lá está Francisco, anunciando os pedidos musicais e divulgando avisos de interesse da comunidade, principalmente as notas da diocese, notas de aniversários, pedidos musicais, etc. Vez ou outra, uma serenata pelas ruas da cidade. Algumas vezes patrocinadas por Inácio Bezerra, Secretário da Prefeitura, que gosta muito desse divertimento noturno. Paga tudo. A bebida, os tiragostos e tudo mais. É sexta-feira. Normalmente as serestas são realizadas no meio da semana. Chaga um garoto a porta da Difusora ali na esquina da Pracinha da Liberdade com um recado: - Chico Elias! Inácio Bezerra disse que quando você fechasse a difusora fosse lá no bar da Pracinha que ele quer conversar com você! Mas será que Inácio Bezerra vai querer fazer serenata hoje? Sextafeira? Pensa Francisco. Depois das nove horas, quando fecha o estúdio da Difusora, vai encontrar o Inácio Bezerra. Como sempre, ele está cercado de amigos em uma mesa tomando cerveja. 138 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Ha alguém estranho com eles. - Elias, vem cá! Quero lhe apresentar a este amigo! Ele é advogado. Acabou de se formar lá em Recife e queria muito conhecer você. Cumprimentos pra lá, cumprimentos pra cá, Francisco é convidado a sentar. Diz o Inácio: - Estávamos ha pouco ouvindo você lá na Difusora e o meu amigo tem um convite pra lhe fazer. - Você tem uma voz muito boa! - Diz o advogado. Um bom locutor. Nunca pensou em sair de Caicó? Enquanto Francisco fica pensativo no que responder, ele acrescenta: - Eu tenho um amigo lá em Recife que se formou junto comigo na Faculdade de Direito. Ele é filho de Pessoa de Queiroz, o dono do grupo Jornal do Commércio, jornal e emissoras de rádio e de televisão. Você não gostaria de trabalhar como locutor na Rádio Jornal do Commércio? Todos que estão a mesa silenciam aguardando a resposta de Francisco. Isso é uma chance e tanto! Com sua indecisão em responder todos procuram estimular. - Chico Elias vai ser locutor da Rádio Jornal do Commércio! E a acrescentam enfáticos: - PERNAMBUCO FALANDO PARA O MUUUNDO! - É o slogan famoso da rádio, que ecoa até no exterior, com seus 50K de potência. Francisco ainda está atônito sem saber o que dizer. O advogado aguarda sua resposta. Francisco procura enxergar os vasilhames de cerveja vazios embaixo da mesa, concluindo seu raciocínio: - Já tem gente embriagada aqui! - Pensa ele. - É! Eu vou pensar e depois dou a resposta! - Diz Francisco, sem muita convicção. - Mas responda até amanhã, porque no domingo eu volto pra Recife! 139 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Acrescenta ele. O moço parece perfeitamente equilibrado. Não parece falar sob o efeito da bebida. Quem está zonzo ainda é Francisco com o convite inesperado. O advogado continua: - O Roberto Queiroz é meu amigo íntimo. Tenho certeza que depois que ouvirem sua voz lá na rádio você estará empregado. No máximo uma semana depois. E dá mais um estímulo: - Você não se preocupe! Vai ficar na minha casa. Claro que vai ter que fazer uns testes lá na rádio. - A palavra teste desencoraja Francisco. - Mas tenho certeza que você logo será contratado! Você sabe quanto ganha por mês um locutor da Rádio Jornal do Commércio? - Não! - Responde Francisco. - Pode ter certeza que é mais do que o que você ganha em Caicó durante um ano inteiro. Todos ali na mesa dão risadas. - Vai Chico! É sua grande chance! - Procura estimular o amigo Inácio Bezerra. - Está certo! Amanhã eu trago a resposta! Francisco toma alguns copos de cerveja e se vai, cheio de incertezas, insegurança e timidez. Não tá vendo que isso não é pra mim! Pensa ele aflito com aquela possibilidade. Não retornaria no dia seguinte confirmando sua ida. Em verdade, em muitos ocasiões de nossas vidas, somos nós os primeiros a depreciar nossas próprias possibilidades, desacreditando em nós mesmos. Vítimas da nossa própria ausência de auto-estima. Uma matéria que, aliás, deveria constar no ensino básico das crianças.Auto-estima! Este seria um mecanismo interessante na formação dos jovens, tanto quanto, matemática, português ou história. Ou a neurolingüística, que se dedica à maturidade da personalidade 140 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias humana recomendando o exercício da auto-estima. O advogado voltou para Recife e Francisco permanece em Caicó. Tudo na vida tem a sua hora? É o que vamos ver. O primo José, irmão do Jaci, um ano mais moço que Francisco, acabou de ganhar de presente do pai uma linda sanfona vermelha. José começa seu aprendizado na sanfona, tocando de ouvido. O que chama a atenção da vizinhança pelo roncar do fole. Isso desperta também a musicalidade de Francisco, que recorda o tempo de seu realejo. Vez por outra o primo lhe dá a sanfona para experimentar. Aos poucos Francisco vai assimilando o manejo do instrumento musical. Não demora muito e ele já está superando o primo José, que não tendo nenhuma afinidade com a música, dificulta seu aprendizado. Francisco, entretanto, deixa-se levar pela emoção. Toca com o coração. Muitas vezes lembrando-se do vovô Chico Elias. Por isso aprende mais rápido. Os vizinhos já comentam: - Chico já tá tocando melhor que José! Isso provoca o ciúme do primo, que então passa a lhe dificultar o acesso a sanfona. Sempre apresenta uma desculpa para não entregar mais a sanfona para ele tocar. Em casa, ele desabafa. Josina conta para seu pai o que está acontecendo. Agora, já vendendo fumo também na feira de Jardim de Piranhas, uma cidade próxima, para onde vai todos os domingos, são duas alternativas de ganhar mais dinheiro, para Pedro Elias. Em sua próxima viagem à Campina Grande com o compadre Miguel para transportar mais uma carrada de fumo, ele aproveita e compra uma sanfona para Francisco. Novinha em folha. E lhe dá de presente. Uma bela surpresa! Uma Scandalli! 141 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Toda branca, em madrepérola. 80 baixos. O mesmo tamanho da sanfona do primo José. Agora Francisco pode soltar a inspiração pra valer! O aprendizado auto-didata se acelera. Aliás, em muitas coisas em sua vida Francisco se revelaria um autodidata. Será assim também décadas mais tarde, em relação ao computador. Até então só havia um sanfoneiro famoso em Caicó. O Neguinho da Sanfona (ver foto). O sanfoneiro promissor Francisco logo vai se destacando. Os forrós pelos sítios da redondeza vão aparecendo, agendados pelo pai e pelo tio Miguel Elias, o forrozeiro mor da família dos Elias. Chega a energia elétrica trazida de PauloAfonso. Um fator de grande progresso para a cidade e região. Francisco logo se transforma no segundo sanfoneiro de Caicó. Depois de Neguinho do acordeom, com anos de sanfona e muito conhecido na redondeza. Aprendendo a tocar de ouvido. Sem ler uma única nota musical. Começam a aparecer mais chamados para tocar bailes de forró pelos sítios da redondeza. Ainda se ouve no eco do tempo que se foi, a figura do tio Miguel dançando forró no sítio do Manhoso, em casa de seu amigo Luiz Porfírio. Dançando animadamente um Xote e exclamando: - AÍ PEDIMMM! - Saudação de forrozeiro ao nosso mano Pedrinho que também já desanda pelo salão, revelando desde cedo sua tendência para o forró. Seria consagrado mais tarde o principal dançarino da família. O jeito manhoso de seus passos havia aprendido com o coco de terreiro dançado pelo preto Mané Pedro alguns anos atrás lá no sítio.Agora dá show nos salões de forró. 142 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C hega também o Terceiro Batalhão de Engenharia e Construção do Exército, levado para Caicó por iniciativa do então Senador da República, Dinarte Mariz, cuja grande obra inicial é a construção de uma ponte sobre o Rio Seridó. Fatídica ponte! Que muita tristeza e luto propiciará aos Elias. Dinarte Mariz é o bem-feitor político da região. A presença do Exército em Caicó veio trazer uma grande transformação para a cidade, inclusive do ponto de vista econômico. Muitos oficiais, sargentos e cabos, trazidos de outras corporações militares, são as novas oportunidades de casamento para muitas moças da cidade. Elas disputam os militares, principalmente os oficiais, quase a tapas. De repente ha uma inflação de bons partidos na cidade. À noite no passeio da Pracinha os comentários correm soltos. Fulana tá de namoro com o sargento fulano de tal. Sicrana já anda de mãos dadas com o oficial tal. Jovens militares na maioria. Alguns vindos até do Sul do País. É um grande momento para as moças pretensamente casadoiras da cidade. Um novo fato muito doloroso atinge em cheio a família. Para Francisco, é a terceira experiência dolorosa com o sentimento da perda de um ente querido. Um triste acidente vai matar seu irmão mais velho. O tio-irmão Elias, muito querido. Que acabara de dar baixa do Exército. O rio Seridó está por cima de tanta água. A ponte recém construida sobre o rio está lotada de gente assistindo a correnteza da água. Todos estão curiosos para ver se a ponte vai agüentar. 143 N Eu, Tu, Eles - Francisco Elias a quinta-feira passada, a rapaziada havia estado no poço da pedra mais acima no rio tomando banho. Ao pular em água rasa Francisco sofrera uma forte luxação num dos pés, retirado das águas do rio nos braços do tio Elias e de outro amigo. Conduzido para casa, neste sábado doloroso ainda está acamado com um grande inchaço na perna. Logo pela manhã, o tio Elias vai até a ponte do Rio Seridó, onde a rapaziada se diverte pçulando de cabeça de cima da ponte nas águas turvas do rio e se deliciam com as exibições dos saltos espetaculares de Max Trindade e de outros freqüentadores dos banhos de rio. Elias encontra sua namorada e fica conversando com ela até próximo do almoço. Já havia dado alguns saltos no rio também. Resolve então dar um último pulo. A namorada assiste ele penetrar de cabeça no rio. Só que desta vez ele se choca com a base de um dos pilares de concreto da ponte! Todos ficam olhando, mas ele não reaparece logo à frente, como de costume. Observam atônitos a água se turvando de vermelho em alguns pontos mais adiante. O jovem Elias desaparece nas águas correntes do rio. Só é encontrado três dias depois, a quilômetros de distância do local. Seu corpo muito inchado e entrando em decomposição foi localizado preso às pedras do rio. Havia quebrado o pescoço no choque terrível com a base da pilastra. Uma consternação geral. Seu corpo foi trazido sobre um caminhão caçamba até a frente da residência de Pedro Elias, onde residia. Rápido a rua se enche de gente. Todos estão curiosos! Toda a família completamente traumatizada. Francisco sofre uma dor terrível! A perda de seu melhor amigo e irmão de criação. Um choque terrível! Ele chora descontroladamente. Olha o imenso corpo inchado do tio sobre a caçamba. Não quer acreditar que aquilo 144 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias aconteceu com ele. A emoção da perda é forte demais! Como o corpo já está em decomposição, é levado imediatamente para ser sepultado no jazigo da família Elias no cemitério novo da cidade. Foram dias de muito sofrimento. De muita dor. De muita saudade, no peito do jovem Francisco. Um abalo emocional dessas dimensões levaria bastante tempo para ser superado. Novamente a sua mãe Josina é muito importante em suas conversas, buscando a superação dos filhos. - Meu filho! Todos nós estamos sofrendo muito com a morte de seu tio Elias! Mas nós temos que compreender e aceitar! Todos vamos morrer um dia! Alguns irão assim! De forma muito dolorosa! Mas temos de superar tudo e continuar em frente! Você precisa fazer um esforço para não pensar muito nessa catástrofe com seu tio! Tinha de acontecer! Deus sabe de tudo! Tinha que ser assim! Não se desespere! Aos poucos tudo deve passar! E acaricia o filho, que ainda chora dias depois, a morte do amigo, amenizando-lhe a dor. - Vá ligar o rádio! Procure se distrair um pouco! -Aconselha ela. Francisco gosta de sintonizar a Rádio Globo do Rio de Janeiro, Rádio Tupi, Rádio Bandeirantes de São Paulo, Rádio Clube de Pernambuco, Rádio Jornal do Commércio, com seu slogan famoso: Pernambuco Falando para o Mundo! - Rádio do Vaticano, A Voz da América e a Rádio de Moscou, falando em língua portuguesa. Tudo isso é muito fascinante para ele. O mundo vem até sua casa pelas ondas do rádio. Almoço Musicado Tudo Bem Com Carboleno. É seu programa favorito aos domingos ao meio-dia pelas ondas da rádio Jornal do Commércio de Recife. Como seria Recife! Ele não poude conhecer nada quando esteve na Escola de Aprendizes. 145 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Especula em sua imaginação. Suas horas diárias se dividem entre a escola pela manhã, a Difusora à noite e o rádio, para desparecer um pouco. Alguns instantes do dia ele dedica ao seu aprendizado na sanfona. A música parece se dar bem com ele e vice-versa. As serestas continuam com as cordas de aço do violão que deixam bolhas nos dedos. Que aos poucos vão virando calos. O que ameniza a dor no contato dos dedos. É o chamado violão peduro. As cordas de nylon só surgiriam anos depois. Pra tocar violão tinha que ter calos nos dedos. Já foram várias as carreiras que levou fugindo dos pais das moças durante as serenatas mal recebidas. As vezes, até com tiros de espingarda para cima, disparados pelo pai delas. Francisco, Luiz de Zé Paulo e Raimundo Nonato. Correm enquanto escutam: - Vão-se embora daqui seus desocupados! Param de correr na próxima esquina e sentam para descançar um pouco, rindo da situação. Quase não ha divertimento em Caicó nesse tempo. Essas serenatas, às vezes duas por semana, são o estímulo que eles necessitam para se divertir à noite. Às vezes, passando antes, já de madrugada lá pela matança, comprando um bom pedaço de fígado de boi aferventado e salgado. Um excelente tira-gosto. Fatiado em pequenos nacos com a faquinha que Nonato conduz. Após terminar de cursar a primeira série ginasial no Diocesano, Francisco não estuda mais. Tem de correr atrás, tentando ganhar seu próprio dinheiro. 146 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O vovô Bobôco é internado às pressas. A doença se agravou. Ha meses ele se mantinha doente, recolhido ao seu quartinho, com uma doença que agora sabiam. Era mesmo câncer. Após mais uma forte crise foi levado ao hospital. Duas horas depois Pedro Elias está de volta. - Estou vindo do hospital agora! - Comenta com Josina. - O médico me disse que nem adianta operar cumpadre Chico. É câncer de próstata que ele tem. Não vai demorar muito. Ele vai morrer logo. - O médico me garantiu! Está em fase terminal. Sem poder urinar, colocaram nele uma sonda. Está lá tomando uma medicação. Amanhã vamos trazer ele pra casa. Pra morrer aqui. Com a gente. Seja o que Deus quiser! Josina chora copiosamente ao receber notícias tão dolorosas de seu pai. Não ha nada que se possa fazer. Está nas mãos de Deus. Até quando ele vai sofrer, ninguém sabe. Vovô Bobôco é trazido para casa. Por algum tempo ainda permanece em seu purgatório de sofrimento. Uma enfermeira está entrando no quarto com a injeção que vai lhe aplicar para minimazar as dores. Os familiares foram todos avisados do agravamento de seu estado de saúde. Mesmo os que moram em sítios mais distantes estão vindo vê-lo pela última vez. O vovô tem filhos de duas famílias. A qualquer hora chega alguém para lhe visitar. Até que, depois de muito sofrimento, ele também se vai. Enlutando a todos. O Padim Bobôco, tanto quanto o vovô Chico Elias, foi muito amado 147 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias pela família de Pedro Elias. Permanece para sempre vivo em nossa lembrança. Principalmente pelo seu sofrimento atroz naqueles dias finais. Francisco vez por outra vai ao seu quarto. Tem muita pena dele. Seus olhos bem azuis, que antes foram tão cheios de vida, agora estão abatidos. Pela certeza de que a morte está próxima. Mas principalmente, afetado pela dor que sente. Francisco, como todos os netos, também sofre vendo o vovô naquele estado. O dia amanhece sombrio. Muito calor na cidade. Não venta quase nada.As árvores nas calçadas mais parecem umas pinturas. Os familiares são avisados. O compadre Chico Bobôco está nas últimas. Quem pôde, veio visitá-lo. Mesmo com as injeções que uma enfermeira vem aplicar freqüentemente, ele sofre muitas dores. Mantém a sonda em seu abdome. As vezes que vai ao seu quarto, com os olhos marejados, Francisco fica observando aqueles olhos azuis e cansados do vovô. É muito doloroso vê-lo naquela situação. A morte para ele seria até um alívio. Francisco pensa: - Como pode uma pessoa tão boa como vovô ter que sofrer tanto! Anos mais tarde, a Doutrina Espírita lhe dará as respostas que agora não tem. O esclarecimento em relação à Lei do Carma. Poucas semanas depois o vovô Bobôco descansou. Deixando entristecida toda a família. Asua morte foi um descanso. Seu purgatório havia terminado. 148 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Convidamos vocês para esta reunião, porque a AABB decidiu criar um conjunto musical! Caicó já precisa de um! E vocês são reconhecidamente bons músicos! Gostaríamos de estruturar o conjunto com a participação de vocês! Uma reunião, está acontecendo nas dependências da AABB, para a qual Francisco também foi convidado, sem saber o motivo. Agora, o gerente do Banco do Brasil está esclarecendo a razão do encontro. A reunião tem um cunho artístico. O gerente do banco apresenta o Sargento José Mário como o maestro do conjunto. Zé Mário, sargento da polícia militar é também maestro da Banda de Música da Prefeitura. Toca saxofone divinamente. Todos ali concordam na formação do conjunto. O Dinha, que canta muito bem, será o crooner. Francisco vai ser aproveitado no acordeom. Tem também o Galego do Violão, o Quinca de Biínha na baterista, um baixista (baixo de pau, dos antigos), e dois outros rapazes na percussão, bongô, afuxê, pandeiro, reco-reco, etc. Todos estão animados. Mas ainda serão meses de ensaio até o conjunto estar pronto para tocar os bailes da cidade. Todas as noites durante a semana tem ensaio lá na AABB. Aos poucos o sargento Zé Mario vai estruturando o repertório. A base principal é a bossa-nova. Um gênero musical moderno que acaba de surgir no Brasil. Mas também tem a música do Caribe, boleros, mambos, e alguns tangos no repertório. Aos poucos oconjunto vai se estruturando. Outro dia o gerente do banco veio assistir o ensaio do conjunto trazendo uma informação nova. - Hoje já podemos anunciar pra vocês o nome do conjunto. Vai se 149 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias chamar - Conjunto Cataguases! - Informa ele com certa empáfia. O nome soou bem estranho para os componentes. Era o auge da MPB. Esperavam um nome mais moderno. O maestro Zé Mário, cuidadosamente limpando a palheta do saxofone com uma flanela pergunta: - Cataguases! Que nome é esse? Por quê esse nome? O gerente do banco se apressa em explicar. - É o seguinte! Cataguases é o nome de uma cidade no interior de Minas Gerais. É a minha terra. É um nome muito forte. Indígena. Acho que vai pegar bem para o conjunto. Vocês não acham? Quem seria besta para contradizer o gerente? Afinal, ele estava criando um jeito novo para se ganhar algum dinheiro. E qualquer dinheiro a mais é muito bem vindo. Assim o nome foi enfiado de guela abaixo. Seria mesmo, Conjunto Cataguazes. - Deixa lá ele com esse nome esquisito. Diz o sargento Zé Mário, momentos depois. Na ausência do gerente, claro!- O conjunto é dele!. Dá AABB, aliás! E todos concordaram. Mas na saída após o ensaio, longe do tal gerente, o comentário é um só: - Mas que sujeito mais besta! Cataguases! Que nome ele veio dar ao nosso conjunto!... - Mas estava devidamente batizado. Conjunto Cataguases! Pelo sim, pelo não... Logo a AABB anunciou uma grande festa para inauguração do conjunto. Um momento de extrema vaidade para o gerente do banco. O conjunto faz por merecer os aplausos da sociedade local. Em muito pouco tempo já está tocando festas também nas cidades da redondeza, ajudando a enaltecer o nome de Caicó. Todo mundo comenta a beleza de conjunto musical que havia surgido em Caicó. 150 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A cidade vive um clima de bastante projeção com a chegada do Batalhão de Engenharia e Construção, o 3° BEC. Festas e mais festas. Se havia uma cidade festeira, essa era Caicó. O que era muito bom, para a projeção da cidade. As festas estão trazendo muita gente de outras regiões. Tudo é muito promissor, e Francisco acompanha essa desenvoltura revelando-se também um músico razoável. De sanfoneiro de forró a acordionista da bossa-nova. Tocando de ouvido. Mas tudo é possível, para quem tem vontade de evoluir. Ah se vovô Chico Elias ainda fosse vivo para ver isso! - Pensava Francisco. Algo mudou também em relação ao interesse das moças em Francisco. Ele agora, enfim, atou um namoro com a Edite de Beréu. Que já o vê como um artista. Locutor e sanfoneiro. Mas descobre que ela ainda está apaixonada pelo Siduca e sai fora. Vai namorar com Maria, irmã de Edite. Ficaria tudo em família. Maria é importante nesse momento, pois vai lhe dar continuidade às aulas de namoro já iniciadas bem antes com a Nevinha. Ele acaba de descobrir um verdadeiro beijo de língua. Vai ter o show de um artista de muito sucesso, na cidade. Bienvenido Granda. Que faz um enorme sucesso cantando boleros. Um cubano refugiado no Brasil. Fugiu da nova ordem política implantada pelo revolucionário Fidel Castro. - Diziam. No Brasil ele já é um grande sucesso internacional juntamente com o americano Nat King Cole. Seus discos, em 78 rotações, vendem como água. Já começavam a aparecer seus primeiros Long-Plays, gravados na Mocambo Rosemblit, uma fábrica de discos nova que havia surgido em Recife. E o sucesso de Bienvenido Granda - O Bigode que Encanta - havia chegado também a Caicó. 151 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N esta sexta-feira à noite, vai ter um show dele lá na AABB. Alguém vai à casa de Francisco procurando por ele logo cedo, informando que sua presença está sendo solicitada lá no Hotel Avenida. O Bienvenido Granda gostaria de ser acompanhado por ele no acordeom em seu show de logo mais a noite. O acordeom de Francisco e o pistom de surdina de Luiz de Zé Paulo. Tocar para Bienvenido Granda! Imagina! Mas isso é uma honra! Um grande prestígio! - Vou sim! Diga que eu chego já! - Meia-hora depois Francisco chega ao hotel conduzindo a sanfona. Chega ao hotel e já encontra o Luiz de Zé Paulo, com seus pistom e umas três de Pitu na cabeça. Isso é só umas nove e meia da manhã. Mas para Luiz de Zé Paulo, os trabalhos com o copo começavam logo cedo. Ainda mais para topar um ensaio musical com o Bigode que Encanta. Os dois são conduzidos aos aposentos do famoso cantor. Ao entrarem no quarto lá está, sentado numa rede, de pijama listrado, sem camisa, uma pança cabeluda e proeminente derramando-se para fora da rede, seu imenso bigode preto, fumando um fabuloso charuto cubano. - Buenos dias señores! - Fala ele pelo canto da boca e o charuto do outro lado. - Hasta la médio dia debemos está concluido con nuestros ensaios. Cierto? Hã me dicho que usteds son los mejores musicos para mi apresentation. Conoces bien las musicas de Bienvenido? Francisco e Luiz não manjam bulhufas de castelhano. Mas dá para entender o que ele quer. A cada duas músicas ensaiadas ele toma um tequilla. - Mui bueno! Mui bueno! - dizia ele, degustando o Rom Bacardi, puro e sem gelo, que ele bebe como se fôsse a sua Tequilla cubana. 152 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias À noite o show na AABB é um sucesso. Acompanhado apenas por Francisco ao acordeon, Luiz ao pistom com surdina e um baterista. Uma beleza de show. Bienvenido Granda estava acostumado a ser acompanhado em seus shows por instrumental mínimo. Só quer poder permanecer por a cá. Com dizia ele. Fugitivo do regime de Fidel. Sua voz é muito envolvente. E forte. Canta seus boleros com muita alma. Com muito sentimento. Se duvidasse, ele cantaria até acompanhado por um Bem-teví. O público que lotou aAABB delira com sua apresentação.Afinal, ele é nesse momento um grande sucesso também nacional. Quem tinha uma radiola em casa, tinha também discos de Bienvenido Granda. No dia seguinte já existem cartazes pregados pela cidade anunciando o próximo acontecimento musical. Um baile com a orquestra de Osmar Milani, uma das mais famosas do Brasil, que trará também o famoso cantor nacional Blackout, um preto bem alto, que canta divinamente, na linha de voz bem parecida com o americano Nat King Cole. Caicó vive assim. A cada fim de semana uma nova festa. Os empresários artísticos haviam descoberto a cidade no mapa dos contratos musicais do Brasil. Essa é a Caicó no início dos anos 60. Preparando-se para passos maiores. Uma enxurrada de militares do exército estão chegando ali precisando de divertimentos artísticos. Vários deles, oficiais e sargentos, ainda sem um lugar definitivo para residir, estão hospedados no Hotel Avenida. As moças da cidade, mais parecendo pescadoras de namorados volta e meia dão uma passada em frente ao hotel. Quase sempre ha algum militar debruçado na janela do hotel. Quem sabe é hojue que eu descolo! - Pensam algumas. Caicó está se modificando rapidamente. 153 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias M as Josina está preocupada com seu filho mais velho. Precisa fazer alguma coisa. Precisa arranjar um emprego para Francisco. Ainda não está na idade de ir para o Exército. O que ele ganha na Difusora e tocando sanfona de vez em quando, é muito pouco. Pensa ela. Soube que a Prefeitura vai inaugurar um centro telefônico e vai ao Prefeito Dr. Milton Marinho pedir um emprego para o filho. E consegue. Chega em casa com a novidade. Francisco que acumula o trabalho de locutor na difusora e a atividade de sanfoneiro, agora tem que deixar a locução na Difusora e se concentrar na sanfona e no emprego no Centro Telefônico. Vai ser técnico de montagem de linhas e instalação de aparelhos telefônicos. Uma reciclagem inicial com o engenheiro da telefônica trazido de Mossoró e Francisco está pronto para os trabalhos de extensão de rede telefônica, instalação de aparelhos e manutenção das linhas. Certo dia ele está na rua, sobre uma escada em um poste, tentando concertar um defeito nos terminais de linhas dentro da mufa, uma caixa de chumbo ali no poste, de onde saem os fios com as respectivas linhas de telefone para as residências. Duas linhas deram defeito. Cruzamento de linhas. O que faz com que a pessoa de uma linha ouça as conversas da outra. Um teste de cruzamento de linhas é algo maçante e complicado, até descobrir com qual terminal a linha está cruzando. Em cada caixa dessas tem vinte pares de linhas. Nesta manhã o sol está bem quente. Já faz uns 15 minutos que Francisco está trepado na escada tentando encontrar o defeito, sem obter êxito. Aproxima-se o Geraldo, filho do maestro José Mário. Um rapaz muito inteligente nos estudos. 154 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Todos o conhecem por sua capacidade intelectual. Está terminando de cursar o Ginasial. É um rapaz muito educado. Francisco respeita a sua amizade. - Olá Chico Elias! - Oi Geraldo! - Tudo bem? - Tudo! Eu estou enrolado aqui tentando achar um defeito de cruzamento de linha nesta caixa que já me deu um bom trabalho. - Achou o defeito? - Ainda não. - Tente os fios do terminal 9 com o terminal 11! Francisco olha para baixo. Geraldo mantém os braços cruzados, com uma das mãos sobre a testa em posição de quem está pensando, com os olhos fechados. Nove com onze... Não custa tentar. E bingo! As linhas se descruzaram passando a funcionar perfeitamente. Sem dúvida aquilo é uma grande surpresa! Pelo que já sabia, Geraldo não entendia nada de telefone. E de onde estava ali embaixo não dava para ver nada lá em cima dentro daquela caixa. - Espera aí! - Diz Francisco descendo da escada após fechar a caixa. - Como é que você adivinhou quais eram os terminais que estavam cruzados? Como fez isso? - Não foi adivinhação! - Responde ele abrindo um sorriso. - É para-normalidade! - E o que é isso? - Francisco está muito curioso. - Eu sou para-normal! É um tipo de fenômeno que ocorre com algumas pessoas. Eu me concentrei no seu problema e vi na minha mente que a solução estava naqueles dois terminais! - Puxa vida! Isso parece bruxaria! Mas é fantástico! Como é mesmo o nome? - Para-normalidade! Para-psicologia! Eu estou estudando esse 155 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias fenômeno, que ocorre com algumas pessoas, inclusive eu! - Quem está lhe ensinando sobre isso? - Ninguém! Aqui em Caicó não tem ninguém para ensinar isso. Eu estudo em livros que venho comprando. - Francisco está bem surpreso que o que acaba de ouvir. - Está bem. Obrigado por sua ajuda! Qualquer dia desses eu gostaria de conversar mais com você sobre isso! Diz Francisco recolhendo a escada para voltar ao centro telefônico. Geraldo é um rapaz muito cordial, mantém sempre aquele sorriso de satisfação. Afinal acabava de ajudar a mais alguém com sua paranormalidade. - Quando quizer! - Responde ele. Se contasse isso no Centro Telefônico ninguém acreditaria. Francisco permanece por vários dias repensando sobre o fenômeno do filho do maestro Zé Mario. Será que haveria muita gente assim? Pouco tempo depois Geraldo vai embora de Caicó. Transfere-se para a capital onde vai estudar curso superior e Francisco não voltaria a conversar com ele. O maestro Zé Mario, seu pai, também vai se transferir breve para Natal.As coisas estão tomando outro rumo. Aquela fora a primeira vez que tinha ouvido falar em paranormalidade. Nem sabia que esse era o nome. Algum tempo depois, um padre vai aguçar sua inteligência em torno dos conhecimentos da psicologia e parapsicologia. E dai ele será levado a conhecer muita coisa também sobre a para-normalidade. Existe acaso? Ou somos conduzidos pelas conseqüências? Se é assim, quem programa as consequências? O cabeamento da rede telefônica da cidade já havia sido concluído. O trabalho de Francisco agora é só de manutenção das linhas. 156 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias I nicialmente só têm oitocentos telefones instalados na cidade. Mas diariamente ha sempre chamados para concertos nos cabos telefônicos. As pessoas ainda estão aprendendo a manusear o telefone. Mesmo assim, sobra algum tempo para se dedicar à música. A sanfona e o violão estão sempre com ele lá no centro telefônico. Com a presença do Exército em Caicó dois novos clubes são construídos. A ASSEC, para os sargentos e subtenentes e outro para os oficiais.As festas continuam ainda mais freqüentes. O Batalhão de Engenharia decide também montar um conjunto musical. Negocia então com a gerência do Banco do Brasil para absorver a estruturação do conjunto Cataguases, cujo instrumental quase todo, pertencia aos próprios músicos. Luquinha, um excelente sax-tenor trazido de outra cidade, é agora o novo maestro do conjunto. O Batalhão deseja equipar melhor o conjunto comprando novos instrumentos. Inclui também um belo acordeom Scandalli preto de 120 baixos e todos os demais instrumentos. O conjunto cresce cada vez mais no conceito popular por toda a região. Acontece então, um fato notável que marcará com certa honraria o conjunto Cataguases e todos os seus músicos. Acidade de Patos, na Paraíba, próximo de Caicó contrata o Cataguases para tocar o baile da festa de inauguração de seu novo e majestoso hotel. Hotel JK. Uma homenagem ao já ex-presidente Juscelino Kubistsheck, que estaria presente na festa. O conjunto vai tocar o baile se revezando com uma apresentação da grande orquestra de baile do famoso Maestro Nelson Ferreira, de Recife, então considerada a melhor orquestra de todo o Norte/Nordeste, ao nível de grandes orquestras, como as de Severino 157 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Araújo e Osmar Milani, que fazem sucesso no Sul/Sudeste do país. Para o Cataguases é uma honraria tocar em revezamento com a Orquestra Nelson Ferreira. O baile, realizado num clube da cidade, começa com o Cataguases tocando. Afama de “pé de valsa” do ex-presidente JK já é conhecida. O homem gosta mesmo de dançar. Nem bem chegou ao baile já está rodopiando pelo salão com a primeira dama do Município.Ainda são poucos os casais no salão. O baile acaba de começar. O conjunto toca um dos boleros do Trio Irakitan. A esposa do prefeito está mais que honrada, dançando com o homenageado JK. Ela, aproximadamente 1,60m. Ele, quase 2,00m de altura. É divertido ver a mulher dançando com o ex-presidente, com o rosto quase colado a fivela do cinturão dele. Não era nada elegante para a primeira dama. Mas fazer o quê? O homem é muito alto! E para ela é de fato uma grande honra. Mesmo que assim, com o rosto tão próximo da sua braguilha. O casal se aproxima do conjunto. Ele pergunta ao maestro: - Vocês tocam Chá Chá Chá? - Tocamos, sim! Presidente! Responde o maestro que dá sinal ao baterista para mudar o ritmo. Chá Chá Chá é um ritmo de sucesso nesse tempo. Oriundo de Cuba, que vive seus dias de glória, pós revolução. É um rítmo muito comum no Caribe. Chegara ao Brasil provocando grande furor nos salões de baile. E nosso ex-presidente, sem dúvida é um dos fãs desse gênero musical. -Chá Chá Chá! Queremos Chá Cha! Chá! -Chá Chá Chá! Queremos Chá Chá Chá! Segue o conjunto. E lá se vai JK rodopiando pelo salão com sua pequenina parceira. Enquanto todos assistem. Alguns risos disfarçados entre as senhoras presentes faz-se notar. Aquele baile tinha que ficar na história. Não só da cidade de Patos. 158 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Mas também para os componentes do conjunto Cataguases. O ex-Presidente apreciara muito bem o nome do conjunto. Cataguases. Ele também é mineiro. Chega o momento de Francisco se alistar no Exército. 18 anos é a idade limite. Mas por conta da necessidade de sua presença nos ensaios do conjunto, com inúmeros bailes já contratados para tocar, ele é dispensado de serviço militar. Chegam novas notícias envolvendo o primo Jaci. Uma reportagem na revista O Cruzeiro mostra uma foto dele em dia de grande gala no Mausoléu dos Pracinhas, no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Um grande acontecimento com a presença de algum político internacional, que vai ao Mausoléu depositar uma coroa de flores em homenagem aos Pracinhas mortos na II Guerra Mundial. Jaci é um dos militares que conduz a corbaile de flores para ser depositada ali. Tendo sido escolhido para aquela honraria, o Jaci só podia ser um militar muito credenciado. A foto dele está estampada na capa da revista O Cruzeiro, que também chega à Caicó. O buchicho no seio da família é grande. O fato enche de orgulho a família, principalmente o seu pai, o nosso tio Miguel Elias. Várias coisas estão marcando a vida do jovem Francisco. A reportagem com a foto do primo Jaci na capa da revista o faz refletir. Está feliz pelo primo. Bem que gostaria de estar também na Marinha. Mas seu caminho está se revelando outro. Agora ele já quase não toca mais a sua sanfona branca de 80 baixos que o pai lhe deu. Ele tem uma bem melhor no conjunto, com 120 baixos. Resolve então, achando que não precisa consultar o pai sobre isso, vender a sanfona branca. 159 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Q uando Pedro Elias toma conhecimento do fato, agride Francisco violentamente em casa. Tenta espancá-lo! Ele já tem mais de 18 anos. São pouco mais de 18h00. Josina está no fogão terminando de preparar o jantar. Francisco está ali perto. Pedro Elias está fora de si, conduzindo um pedaço de lenha que pegou no muro da casa, pensando aplicar-lhe um corretivo. Josina se interpõe argumentando: - Pedro, você não vai querer bater num homem feito! - Eu apanhei de meu pai até com 21 anos! - Então o senhor era pior que eu! Responde Francisco. Não sabia de onde havia tirado tanta coragem para enfrentar seu pai. Não havia bebido. Nesse momento crucial entra em casa o tio Miguel, chamado às pressas, que apesar de criar seus filhos também com muita brutalidade, era por natureza um apaziguador. - Minha gente! O que é isso! Pelo amor de Deus! Compadre Pedro se acalme! - Enquanto seu Pedro desfiava seu rosário de imprecauções tentando justificar os motivos de sua raiva. Francisco aproveita-se do momento e se retira em direção à saída da sala. Suas irmãs e sua mãe, estão todas em prantos, tamanho o bafafá que Pedro Elias armou querendo bater em Francisco. Já na calçada fora de casa ele ouve o pai lhe despachar uma terrível sentença: - Pois suma daqui! Não quero mais você em minha casa! Vá embora! Que o mundo ensina! 160 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco se afasta com o espírito muito dolorido indo dormir no Centro Telefônico onde trabalha. Mudando-se para lá com sua rede e seus pensamentos enfermos pela atitude de seu pai. “Vá embora que o mundo ensina!” - Esta frase lhe fica martelando na cabeça. No dia seguinte sua mãe lhe manda uma pequana mala com suas roupas e calçados. E semanalmente manda alguém pegar para lavar e engomar a roupa do filho. Francisco passa a fazer refeições numa pensão próxima do Centro Telefônico onde trabalha. E dorme todas as noites em sua rede, por entre os ruídos dos relés no painel do equipamento elétrico dos telefones. Tarde da noite eles silenciam. Quase ninguém telefona. Pela manhã servem de despertador. Anos depois, enfrentando a vida sozinho, ele pôde concluir; quanta verdade, mesmo em seu momento de raiva, o seu pai havia lhe dito naquele instante em que o mandara embora de casa. Razão pela qual, cada vez mais passou a crer no ensinamento bíblico: “honrar pai e mãe”. Por muito tempo o pai lhe corta caminho pela rua. Quando o avista de longe muda de calçada. Mas o tempo, ha! o velho e bom tempo, que não tem pressa mas a tudo concerta, se encarregará de osturar essas feridas, da forma mais providencial. Uma nova fase promissora vai começar na vida de Francisco. Aliás, vai ser sempre assim em toda a sua vida. Numa interminável onda “helicoidal”, em movimento incessante. Parecida com a imagem da escada do DNA. Sempre girando. Ora subindo, ora descendo.Agora a helicoidal dá sinais de uma subida significativa. 161 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias 1963. A Diocese de Caicó está montando a primeira estação de rádio da cidade. A Emissora de Educação Rural, dedicada primordialmente ao ensino básico pelo rádio. É Um modelo educacional muito interessante, criado pelo MEB, Movimento de Educação de Base, da igreja católica no Brasil. Ha nessa época muita ressonância em torno do modelo estabelecido pelo grande pedagogo pernambucano, Paulo Freire. A Rádio Rural chega com uma proposta inovadora e muito dinâmica. O ensino básico através do rádio. Cujo público alvo é o grande número de analfabetos existente no meio rural. Uma grande meta social do Bispo Dom Manuel Tavares. A ajuda financeira vem do Vaticano. É um período de certa fertilidade cultural na cidade, marcante para toda a comunidade, orientada através de textos inteligentes e programas que alguns padres mantêm diariamente, além das aulas pelo rádio, propriamente ditas, com radinhos cativos à pilha, que são distribuídos em diversos sítios e fazendas pela área rural do município. Cativos, porque só sintonizam a frequência da Emissora Rural. É a cultura do rádio chegando à Caicó nos anos 60. No dia em que o engenheiro de montagem vai ligar o transmissor da emissora, colocando no ar o seu sinal de transmissão pela primeira vez, Francisco está lá nos estúdios. Já havia sido contactado para ser um dos locutores. Então é sua voz que transmite a primeira mensagem da rádio. - Informe o prefixo da rádio e a freqüencia em que estamos transmitindo. Diz o engenheiro. - Informe também o endereço e peça que as pessoas que estiverem nos ouvindo mandem correspondências, informando como estão recebendo o nosso sinal. Francisco rapidamente redige um pequeno texto e transmite pela primeira vez o som da Rádio Rural de Caicó. O texto ficou sendo 162 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias repetido à cada 15 minutos, intercalado com músicas. Esse foi um momento emocionante para Francisco. Quase tão grande quanto o momento de inauguração da rádio. E agora, entra em sua vida uma certa Vitória. Maria das Vitórias. Estudante do Colégio Normal, preparando-se para ser professora. Vinda da cidade deAcari. Ela reside na Casa da Estudante, bem próximo ao Centro Telefônico onde Francisco Trabalha. Logo ele será obrigado a deixar o emprego da Prefeitura e a sanfona no conjunto Cataguases, para trabalhar na rádio em tempo integral. Mas enquanto aguarda o dia da inauguração da Emissora Rural ainda continua lá no Centro Telefônico. Inúmeras serenatas já haviam sido feitas para as moças da Casa da Estudante. E entre elas, Francisco ainda não percebera, ha Maria das Vitórias, uma morena de cabelos bem pretos. Feições de índia cabocla, de olhos muito vivos, e sorriso muito amável, desabrochando uma grande paixão por ele. Já a conhecia. Mas ainda não havia percebido o interesse dela por ele. O trabalho na rádio vai aproximar os dois. Os programas de pedidos musicais servem de intercâmbio para essa aproximação. Começam a namorar. Francisco gosta muito de dançar. Ela também. Nas soarês e matinês dos clubes estão sempre se encontrando. Nesse tempo ainda se dança agarrado um ao outro. Essa proximidade tão física é muito providencial no relacionamento dos jovens. Ainda ecoa na mente de Francisco alguns ensinamentos repetidamente passados pelo pai: - O homem tem que se casar até os 25 anos! - Quando ele nasceu seu pai tinha 23 anos. Francisco já chegou aos 22. Sem bem saber como, os dois resolvem noivar. Os próximos meses são de preparação. Aos 23 anos já deverá 163 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias estar casado. Pensa Francisco. Agora tem um emprego de futuro na rádio. Vitória, com sua inteligência fértil também contribui de vez em quando na criação dos programas que ele escreve para apresentar na rádio. E até participa de alguns. Ontem mesmo, domingo, foi ao ar um desses programas. Nesta segunda-feira, o padre Itan Pereira, diretor da rádio, que mantém um programa diário na emissora à tardinha, encontra Francisco por lá e o cumprimenta: - Elias! Gostei muito daquele programa que você apresentou ontem à tarde. Muito bem escrito! Tratáva-se da narrativa de uma viagem de turismo de trem pela Itália. Francisco aproveitara para sonorizar o programa com várias músicas italianas de sucesso na época. O Sole Mio é a principal delas. O programa tentava narrar para seus ouvintes interioranos, que muito pouca ou nenhuma informação tinham, sobre a vida em outros paises, como era, por exemplo, a Itália. Segundo o padre, o texto era muito criativo e contagiante. Claro que Francisco escreve com base nas imagens que conhece através de alguns filmes que já vira com cenas da Itália. O padre então acrescenta: - Seu texto estava muito bom. Você lê muito? - Francisco pensa um pouco e responde: - Leio! - O quê? - Gibi! Surpreso, o padre Itan esboça um sorriso compreensivo e interpela curioso: - Gibi? Você nunca leu um livro? 164 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Não! Padre! - Responde Francisco meio encabulado. - Por quê? - Insiste o Pe. Itan, que entre outras coisas, é também professor de psicologia. - Muitas páginas padre! Não tenho paciência de ler um livro. O Padre Itan acrescenta: - É uma pena que você não estude mais! - É, padre! O senhor sabe! Minha família tem poucas possibilidades. Eu resolvi trabalhar para ganhar minha vida. - Bem! Se você não vai se formar, e isso é uma pena! Insiste ele: - Mas deixe eu lhe dizer que o maior conhecimento do mundo não está necessariamente só nos bancos das universidades. Está muito mais nos livros que se lê. Ler é uma dádiva. Mas é preciso gostar de ler! Ocorre que existe uma prática para se desenvolver o hábito da leitura. É que você não adquiriu esse hábito. Se você quiser, eu posso lhe ensinar como se adquire o hábito da leitura. Posso fazer um treinamento psicológico com você. Você não gostaria? Claro que Francisco tem muito apreço pelo Pe. Itan. Não só porque é o seu chefe como diretor da rádio, mas porque ele inspira muito respeito na cidade. É um homem de muita cultura. Professor de psicologia. Não pode desapontá-lo. - Claro! Padre! Eu gostaria! -Está bem! Eu vou providenciar isso e depois começaremos esse treinamento. Combinado? - Combinado! O Padre Itan, como outras personagens da vida real de Francisco, está sendo citado aqui por ter sido uma dessas pessoas que mais contribuíram para transformar a vida desse jovem interiorano. O futuro, não muito distante, vai confirmar isso. No dia seguinte o padre retorna com um pacote de presente e entrega-o a Francisco. 165 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Abra! Francisco logo percebe tratar-se de um livro. O primeiro que vai ler, em sua vida. Vê o título: Conhece-te A Ti Mesmo. Autor: Norman Vincent Peal. Trata-se de um autor protestante. Mas e daí? O livro baseia-se em psicologia aplicada. Descrita de forma muito simples. O padre Itam sabia da importância daquele autor americano, também formado em psicologia. O fato de ser ele um pastor protestante, não desmerecia o conteúdo de sua obra. Por isso o dá de presente ao jovem iniciante. E trata de lhe ensinar os segredos para o desenvolvimento do hábito pela leitura. - Veja! A primeira coisa que devemos ler em um livro são suas orelhas. - Francisco até então nem sabia que livro tinha orelha. - Essas dobras da capa e contra-capa dos livros chamam-se orelhas!- Descreve o padre. - Aqui sempre são colocadas informações sobre o autor. É bom que saibamos quem é o autor, para entendermos melhor a sua obra. Depois disso, lê-se o prefácio. É sempre um texto escrito por outra pessoa falando sobre o conteúdo da obra. E aí começamos a ler o conteúdo propriamente dito, do livro. Aqui começa o nosso treinamento. - Dando ênfase nos detalhes. - Você precisa assumir um compromisso! Não comigo! Eu não vou estar por perto. Mas com você mesmo! Vai ler somente a primeira página do livro e fechar. - Da próxima vez que for ler o livro, horas depois ou no dia seguinte, leia a partir daquele ponto marcado, as próximas duas páginas. Marque e guarde o livro. - Da próxima vez, a partir dali, leia três páginas. Feche o livro e guarde. E assim continuadamente. Leu cinco páginas? Da próxima vez leia seis páginas. Acrescente sempre mais uma página ao total que for ler em cada vez que abrir o livro. 166 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Faça isso! Desse jeito que estou lhe ensinando! - E enfatiza, com certa convicção professoral: - Vai chegar o dia, em que você vai querer parar, mas não consegue! Aí sim! Você terá dominado perfeitamente o hábito da leitura! Mas precisa assumir o compromisso de fazer o exercício psicológico exatamente dessa maneira. Vai querer fazer? - Claro padre! Eu vou sim! Pode ficar tranqüilo! Francisco sai desse encontro convencido pelo menos de uma coisa. Ia ter de fazer exatamente como o padre ensinou. Porque poderia haver um problema: se não fizesse exatamente como ele mandou e alguma coisa desse errada! Como saber se por ter feito de maneira errada? Além do mais, o padre lhe inspira uma enorme confiança. Não vai ensiná-lo algo que seja ruim para sua vida. Lógico! Vai fazer igualzinho como ele ensinou. E no dia seguinte inicia o processo. Primeiro lê as orelhas do livro e guarda. Da próxima vez lê a primeira página, marca e guarda. Assim, uma semana depois, encontra-se novamente com o padre que lhe pergunta: - E aí? Como vai o nosso treinamento literário? - Francisco responde empolgado. - Padre! Vai uma beleza! Já li mais de trinta páginas. - Ótimo! - E acrescenta: - Tem outra coisa que eu esqueci de lhe dizer! Procure observar que, cada autor sempre faz citações de outras obras, geralmente correlacionadas ao trabalho dele. Vá anotando os nomes desses livros. Quando terminar a leitura que está fazendo, escolha um daqueles títulos citados e compre-o para ler. Seu treinamento continuará normalmente com a satisfação da leitura de outros livros, outros autores, outros conhecimentos. Cada um deles deixa sua 167 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias personalidade visível na forma como escrevem. Francisco agradece mais uma vez. Percebe que havia despertado certa satisfação no padre. Dois meses depois, já iniciava a leitura de um novo livro. De repente percebe que sua gramática está melhorando. Já ha mais riqueza de vocabulário e de conteúdo nos textos que escreve para os programas. Isso lhe entusiasma bastante. Dois anos depois, já soma 20 o total de livros que leu. Incluindo obras de Eric Fromm, outro psicólgo austríaco naturalizado americano, de muito sucesso na época. Ainda no seio da Psicologia. Algumas de suas obras são direcionadas para os casais. O que muito interessa ao jovem Francisco. Logo sua sede de leitura, cada vez maior, o fará migrar para outro ramo correlato da psicologia. Ha certo movimento na cidade. Os evangélicos estão trabalhando com muito afinco na propagação de seus dogmas religiosos. A Assembléia de Deus é a mais atuante. Como em muitas partes do mundo, já ha também em Caicó muita gente descontente com a religião católica.As missas ainda são rezadas em latim. Isso dificulta a assimilação da liturgia. De dominus a bispo a século seculorum, o povo não entendia era nada. Prática litúrgica a ser abolida algum tempo depois por Roma, que já percebia o crescimento de outras doutrinas religiosas, também em razão disso, entre outras coisas. Francisco crescera no seio de uma família católica, confiando em todos os seus credos. Mas o discurso dogmático dos evangélicos protestantes condenando a adoração a estátuas com imagens dos santos, se reflete nele como um conflito dogmático e uma possível 168 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias diferença por ventura existente, nas práticas bíblias dessas religiões deixa-o bastante curioso. Resolve então ler as duas bíblias. Por inteiro. A Católica, já havia lido algumas páginas. Em sua casa ha uma. Consegue um exemplar da Assembléia de Deus e passa a fazer uma leitura comparativa. Capítulo por capítulo. Versículo por versículo. Chegando a conclusão definitiva de que ambas pregam a mesma coisa. Existem apenas pequenas diferenças de interpretação. E muito lhe chamou a atenção, o fato de que ambas haviam se originado no mesmo tronco das escrituras sagradas. Foi então que conheceu algumas personagens importantes entre os movimentos religiosos do mundo. Calvino, e vários outros, dissidentes da igreja de Roma, que descontentes, haviam fundado seus próprios movimentos religiosos. Foi muito importante para Francisco esse período fértil de aprendizado e conhecimento do papel das religiões sobre a humanidade. O que, aliás, já vinha lhe despertando interesse, desde o dia em que um padre, da religião católica lhe presenteara um livro de psicologia, escrito por um pastor protestante. À primeira vista lhe parecia um contra-senso. Mas agora, com a leitura de ambas as bíblias, convencia-se de que todas as religiões são importantes, para quem delas precisa. Mas tarde, através de outros conhecimentos literários, Francisco descobrirá que a religião significa - Religari. Voltar ao Pai. E mais ainda, que para se estar em paz com nosso Criador não necessitamos mais que os 10 Mandamentos, entregues a Moisés. Desde que consigamos praticá-los em sua integridade. 169 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C ada vez mais, o discurso empolgado dos pastores e religiosos lhe parece uma prática necessária apenas para os ouvidos mais renitentes da massa humana, que ainda necessita de estímulos orais tão apelativos, para despertar e sedimentar a sua fé. Convencendo-se de que, em tal caso, toda fé é muito pessoal. Bastando o afastamento da igreja e dos púlpitos empolgados para desvanecer. Diferente da fé por convicção evolutiva e estudiosa, que jamais fenece e só se reforça com as novas descobertas das experiências humanas. Sejam quais forem às fontes do conhecimento. E, quanto mais diversificada a leitura isenta, melhor o aprendizado. A vida vem lhe ensinando que não aprendemos nada com sorrisos, mas com os estímulos da dor. E separar o joio do trigo é nossa própria função. Com base em tudo que conhecemos. E não apenas com base em um único cabedal de conhecimentos. Sem o que, não ha possibilidade de verdadeiro crescimento interior. E segue em frente. Assumindo logo de princípio, que deve acreditar em tudo, até prova em contrário. E as provas só podem vir, baseadas em mais alternativas de conhecimento. Com a religiosidade não seria diferente. Depois das leituras bíblicas Francisco continua devorando uma infinidade de outros livros. Ainda agora seu foco continua na psicologia. O conhecimento da psicanálise virá em seguida, através do convíveo com um amigo chamado Djalma Bulhões, de origem muito pobre, mas de espírito muito evolutivo. Estudioso também do gênero humano, muito apegado à literatura e que vai ter uma participação significativa na vida de Francisco. É através dele que Francisco vai poder ter acesso às obras de Sigmund Freud, que lhe deixarão profundos reflexos de transformação cognitiva. 170 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Quem somos? O que somos? Por quê viemos? Pra onde vamos? São questionamentos que no momento estão aguçando a sua inteligência. Um jovem que parece não ter tido mentalmente puberdade. Passando da infância à vida de adulto em muito pouco tempo. Buscando sobreviver, como pode, e com o que a vida está lhe oferecendo. O Padre Itan é sua âncora. Ele tinha razão. Nesse momento, sua fome de saber é insaciável. Não estará num banco de Universidade. Mas não será um zero à esquerda. O mundo é sua escola. Os grandes pensadores da humanidade são seus mestres. As livrarias estão abarrotadas de conhecimento. Não ha tempo a perder. Ha algum tempo Francisco recebera uma promoção na rádio. Antes de deixar a direção da emissora, o padre Itan o havia colocado na direção artística da emissora. Passou a ser responsável pela programação da rádio, sua formatação e execução. E ha uma diversidade acentuada de todo tipo de programas. Desde aqueles de orientação puramente religiosa, apresentados por alguns padres e pelo Bispo Dom Manuel Tavares, até os programas de orientação educacional das aulas pelo rádio, e outros de pedidos musicais, dos cantadores repentistas de viola, outros de forró, ao vivo, com os sanfoneiros de toda a região. Seu status financeiro também melhorou um pouco. E a programação criativa da Emissora Rural começa a disputar audiência nas cidades próximas, em Patos, Paraíba, dividindo audiência com a Rádio Espinharas, existente já ha bastante tempo, e em Currais Novos, competindo com a Rádio Brejuí. O que estava preocupando a direção dessas emissoras, principalmente a de Patos. 171 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco recebe um convite para se transferir para Patos. Vai lá conhecer a emissora. Mas alguma coisa, bem lá no seu íntimo, que depois ele descobrirá ser a sua intuição, lhe diz que não. Que o caminho não é por ai. Ele abre mão do convite embora seja financeiramente mais compensador. No lugar do padre Itan está agora o padre Tércio. Outro jovem padre, também professor, com muita bagagem cultural. As serenatas ainda continuam de vez em quando. Agora bem mais estilizadas. Ha um sanfoneiro novo na cidade. O Zequinha do acordeom, vindo de Equador, uma cidade na divisa com a Paraíba no caminho para Campina Grande. Zequinha também toca de ouvido. Não lê música. Mas é um virtuoso extraordinário da sanfona. Já é nessa ocasião o melhor sanfoneiro do Rio Grande do Norte. Viera para ocupar o lugar de Francisco no conjunto. As serenatas são uma beleza auditiva. Dinha, cantando. Zequinha no acordeom, Galego do violão e Quinca de Biinha no atabaque de borracha.As vezes, Quinca, Dinha e Francisco, cantam em trio. Uma maravilha de serenata. Menos para a Madre Superiora do Colégio Santa Terezinha. Um dos companheiros nesta madrugada de lua cheia, é o Damião. Apaixonado por uma das moças internas no colégio. Após a primeira música, no maior silêncio noturno, abre-se uma das janelas do Colégio. Surge a Madre Superiora, toda vestida dos pés à cabeça, esganando uma reclamação pelo barulho da serenata, tentando gritar baixinho. Sua figura na janela é bem curiosa. Ela tenta gritar cochichando. A voz dela sai pela garganta como um arrôto. A cena é muito engraçada. Mas os seresteiros não lhe dão a mínima. - Vão embora! Seus moleques! Vão embora! Estão nos incomodando! Aquilo era zelo da Madre Superiora tentando isolar as meninas do 172 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Colégio da ação mundana daqueles jovens. A segunda música já tinha começado. Francisco observa com curiosidade a figura da freira, imaginando quanto trabalho ela teve nesta madrugada, para se vestir só para ir à janela tentar expulsá-los dali. Ela insiste na reclamação, mas os rapazes fazem ouvidos de mercador e continuam cantando e tocando maravilhosamente sem arredarem pé. Depois de insistir mais uma vez escorraçando-os, sem obter resultado, a Madre Superiora perde as estribeiras e reage com certa ira, nada santa. Sobre o parapeito das janelas existem umas pedras seixo de mais ou menos um quilo. Arredondadas. Usadas para escorar as janelas nas salas de aula. Ela segura a pedra levantando as mãos à altura da cabeça e joga o rebolo na direção dos rapazes. O terreno é meio inclinado numa descida. Chão de barro. Rua ainda não calçada. Quem pôde, saiu da trajetória da pedra que rola ladeira abaixo. Zequinha do acordeom com o peso da sanfona não consegue se livrar da pedra, que lhe atinge em cheio o osso do tornozelo. (Chamado o osso do gostoso). A rapaziada então se afasta a meio-passo quase correndo e Zequinha vai atrás. Soltou o teclado da sanfona para agarrar o pé muito dolorido e também desce a ladeira às pressas. Sanfona aberta e roncando: Fon! Fon! Fon! Fonromfonfon! Todos se divertem a muitas risadas só de ver o Zequinha naquela situação. Gordinho e entroncado, correndo ladeira abaixo com a sanfona aberta. Ê!... Bons tempos aqueles!... Lógico que a serenata tinha de continuar. Dai ha pouco o grupo está em frente à Casa da Estudante, onde reside a namorada de Francisco e várias outras moças vindas de cidades vizinhas. 173 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Ai não tem nenhuma proibição. Vitória abre a janela do andar superior da casa e juntamente com outras moças assiste a serenata. Três músicas e o grupo se afasta. Vão à outra residência.Ali próximo.Abebida está acabando. Mas uma passada na residência de José Benévolo, um comerciante da melhor sociedade local, vai resolver esse problema. Zé Benévolo toca rabeca. E adora quando os seresteiros aparecem em sua casa. Ele pode exibir suas qualidades musicais. Tão logo os rapazes começam a tocar em frente a sua casa ele logo aparece com a rabeca na mão e se aproxima do grupo. A próxima música é uma valsa, com Zé Benévolo na rabeca, acompanhado pelos outros instrumentos. Uma glória para Zé Benévolo. Mais duas músicas e ele observa: - Está faltando bebida, não é? - É sim! - Responde alguém. Ele entra em casa e volta em seguida com um litro de Rom Merino. Os seresteiros agradecem e se retiram para continuar a bebedeira e a serenata. Lá pelas quatro da manhã todos se recolhem às suas casas. Esta é a época das melhores serenatas em Caicó. Quem toca ou canta, participa ativamente. Os outros assistem e acompanham. Raimundo Nonato continua sendo o fiel escudeiro guardião da bebida e dos tira-gostos. Mas ha uma novidade nas noites de Caicó. Tem um galego na cidade fazendo um tipo de serenata moderna, com uma caixa de vitrola movida à corda, que aplica com uma manivela, e também faz serenatas rodando discos 78RPM. Já comentam que certa noite o galego levou um carreira quebrando a radiola que caira no chão. Mas pra tudo tem concerto. E Raimundo Nonato, técnico de eletrônica lhe resolvera o problema concertando a radiola. Tudo é muito divertimento. 174 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C om o trabalho em tempo integral na Rádio Francisco é obrigado a deixar também o emprego no Centro Telefônico da Prefeitura. Dedica-se exclusivamente a esse mundo novo que é a comunicação pelo rádio. Já tem um salário que dá para manter um casal e então resolve pedir a Vitória em casamento. Ficam noivos e planejam o casamento para seis meses depois. Estamos em fins de 1964. Na sua mente ele continua ouvindo as diretrizes de seu pai: “O homem deve se casar antes dos 25 anos!” A revolução militar dita as normas da vida no país. Os programas da rádio são todos gravados. E aqueles escritos, dedicados à educação pelo rádio têm que passar pelo crivo da censura no quartel do Exército. Víve-se o regime da liberdade vigiada. Francisco já não tem a mesma liberdade de expressão de antes. Isso o deixa desanimado. Certo dia acorda com um sentimento diferente. Reconhece que não está pronto para casar. O noivado foi mais um arrobo emocional de um jovem despreparado. - Meu Deus! Já só falta três meses! Eu Vou me casar! Mas... Não é isso que eu quero! Está decidido. Precisa terminar o noivado. Morreria sem nunca saber se aquele ato fora de responsabilidade ou irresponsabilidade. Vitória havia concluido o curso normal e voltara para sua cidade Acari, mantendo os preparativos para o casamento. Francisco não tem coragem de falar a ela pessoalmente. Resolve escrever-lhe uma carta terminando tudo. Maria das Vitórias estaria marcada para o resto da vida. Um casamento tão próximo! Enxoval já quase pronto. Alguns móveis já 175 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias haviam sido comprados. Mas Francisco esta resoluto. Alguma coisa muito séria aconteceu dentro dele. Seus sentimentos por Vitória haviam lhe enganado. Talvez o seu ego estivesse agindo por imposição do que seu pai tanto ensinara. O homem tem que se casar logo cedo! Teria noivado movido por isso? Ofato é que estava se sentindo amarrado mesmo antes de casar. Mas já descobrira uma coisa importante em suas leituras de psicologia. Quando já não se tem um amor, deve-se curar os sentimentos imediatamente com outro. É o que ele faz. Moça não falta em Caicó interessada nele. Mas como sempre foi um jovem tímido, não sai correndo atrás delas. Deixa as coisas acontecerem naturalmente. Ha também algumas moças apenas suas amigas. Pares de dança. Moças que dançam muito bem. Uma delas é a Elcira de Zé Paulo. O pai tem uma loja comercial na esquina do mercado. Todas as tardes ela está lá atendendo os clientes. À tardinha ainda está bem quente. Francisco está vindo da sorveteria e pára para conversar um pouco com Elcira, enquanto toma o sorvete. Estão os dois à porta da loja conversando, quando passa pela outra calçada um grupo de moças colegiais que estudam no Ginásio Estadual recém inaugurado. - Você já conhece a moça mais bonita de Caicó? - Pergunta Elcira. - Não. Quem é? - A Nely Padilha. Olha lá! Filha do major Ney Padilha, do Exército. - E aponta para o grupo de moças. - Aquela de óculos com o totó no cabelo! 176 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Francisco olha e vê a moça, alta, pele muito branca, olhos e cabelos pretos. Realmente muito bonita. Um cartão postal. Como se diz nesse tempo. Uma beleza angelical. - É mesmo muito bonita! - A moça, mesmo à distância de uns cinqüenta metros, também se fixa provocantemente em Francisco. Enquanto passa mantém o olhar fixo nele. Dobrando a cabeça com um lindo sorriso no rosto avermelhado de sol. - Ih! Ela está flertando com você! Diz Elcira rindo com ar de cupido. - Só pode ser com você! Comigo é que não é. Ambos riem. - Será? - Questiona Francisco. - Até onde eu sei, mulher que olha para um homem daquele jeito está interessada nele! Acrescenta Elcira, cinco anos mais velha que Francisco, cuja experiência é inquestionável. - Só tem uma coisa! - Acrescenta ela. - Dizem que a maioria dos rapazes bons partidos de Caicó, incluindo alguns oficiais do Exército, estão doidos atrás dela. Mas até agora ela não deu bola pra ninguém. Francisco então se desanima. É um rapaz pobre. Um simples locutor de rádio. Não se sente páreo para os concorrentes. Bem que está precisando de novas emoções na sua vida. Mas a Nely!... De qualquer forma fica pensando nela. É realmente muito linda. E do jeito que flertou com ele... Essa derruba até avião! Pensa ele. Elcira explica que o pai dela é um oficial gaúcho, engenheiro e major do Exército. Haviam chegado em Caicó ha pouco mais de dois meses. Moram num sobrado por trás da igreja de Santana. Após tomar o sorvete Francisco se despede de Elcira e volta para a rádio. 177 T Eu, Tu, Eles - Francisco Elias rês dias depois, é noite de sábado, e como sempre o point da Pracinha da Liberdade está repleto de moças no passeio ao redor da praça e rapazes, quase todos nas mesas do bar tomando cerveja e batendo papo. Francisco está sentado numa das mesas. Aproxima-se um de seus amigos, o Edílson Bezerra, sobrinho de Inácio, da Prefeitura, que também reside nas proximidades da igreja de Santana. Edílson senta para acompanhar na cerveja e começam a conversar. - Esta semana vamos ter a festa de São Pedro lá em frente ao Ginásio. Você vai por lá? - Acho que vou. - Responde Francisco. Ha uma igrejinha de São Pedro junto ao Ginásio Diocesano. E a festa promete ser animada, com roda gigante e outros parques de brinquedo, muito cachorro quente, caldo de cana com pastel, etc. - Mas só devo ir na sexta e no sábado. São os melhores dias! Eu também. Vamos nos encontrar lá. - E mudando de assunto Edílson especula: - Hoje eu soube de uma coisa que acho que interessa a você! - O quê? - Sabia que a grande paixão de Nely Padilha é você? - Que história é essa Edílson? De onde você tirou isso? - Minha prima que me contou. É amiga dela. Estudam juntas. Ela que me disse: a Nely está apaixonadíssima por Francisco Elias, o locutor da rádio. A toda hora está ouvindo ele no rádio! Francisco comenta então sobre o dia em que ela passou por ele. E que Elcira de Zé Paulo também achava que ela estava interessada nele. Mas fala também sobre o grande interesse de vários rapazes na cidade em torno dela. E Edílson realmente confirma. - Inclusive, aquele engenheiro agrônomo filho de Doutor Janúncio. O irmão dele, que é engenheiro civil está planejando o projeto de 178 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias uma galeria de lojas para construir em parceria com o Major Ney que também é engenheiro. Minha prima disse que o irmão dele só vive indo lá em casa do Major Ney, junto com o irmão, claro, mas atrás de Nely. - E ela? - Minha prima disse que ela não quer saber dele. Até já deixou bem claro para ele que não quer namorar com ele. Mas o cara é insistente! E você? Vai fazer o quê? - Eu? Nada! A Nely tem outros pretendentes importantes. Não vou me meter nessa disputa não! Edílsom! Eu hein! Mudam de assunto e continuam tomando suas cervejas. Dai ha pouco: - Olha lá a Nely! Está passeando ao redor da praça com a minhas primas! Passou dando uma olhada caprichada aqui para nossa mesa! - Diz Edilson. Francisco está adorando aquilo, mas acrescenta: - Deixa a Nely pra lá. Isso é fogo de palha. Logo passa! - E não dá a mínima para a moça, apesar de isso o deixar muito envaidecido. Como sua cadeira está meio de costas para o passeio da praça, mantem-se assim. De fato ele tenta evitar aquele assédio “sutil” da moça mais bonita da cidade, pensando com seus botões: Não está vendo que isso não é pra mim! Outra vez ele se deixa levar por seu pessimismo e amor próprio ainda não suficientemente desenvolvido. Na sexta-feira seguinte vai à Festa de São Pedro lá no Ginásio Diocesano e reencontra o amigo Edílson Bezerra. Conversam um pouco e vão até o homem do carinho de pipocas. Compram dois saquinhos de pipoca e permanecem ali observando o passeio e comendo as pipocas. Dai ha pouco ele sente nas costas um tranco de alguém que parecia ter tropeçado e batido nele. 179 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Ao se virar, dá de cara com Nely. Ela dissimuladamente lhe pede desculpas. Está acompanhada da prima de Edílson. Simulou o tranco como se quisesse chamar sua atenção: Hei! Eu estou aqui? Porque você não me nota? Coisa de mulher que estando a fim de alguém, faz qualquer coisa para lhe chamar a atenção. Após comprarem pipocas as moças se afastam deixando Francisco pensativo. Edílson também observara a estratégia de Nely. E deduz: - Ela está lhe provocando! Francisco mais uma vez não dá importância ao fato e continuam conversando até a hora de se despediram. No sábado Nely não apareceu por lá. E a situação entre os dois vai ficar assim até a noite do sábado seguinte. Outra vez Francisco encontra-se com o amigo Edílson e sentam para tomar a cervejinha amiga no bar da praça. O calor é intenso e a cerveja bem gelada é a melhor pedida. Outra vez Nely se faz presente, de braços dados passeando ao redor da praça com as primas de Edílson. Acabou de passar oferecendo aquele flerte comprometedor na direção dele. Edílson então solta a bomba: - A Nely acha que você tem medo dela! - Medo dela? - Sim! Ela mesma me disse ontem! Acha que você não se aproxima dela porque tem medo! - Medo de quê? - Não sei! Você tem? - Conversa! Edílson! Eu vou já resolver essa questão bem ligeirinho! Na próxima passagem dela eu vou lá falar com ela! Edílson empolga-se com a iniciativa do amigo. - Aí amigo! Gosto de ver assim! - E ficam aguardando. 180 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A volta no passeio da praça demora uns dez minutos. Dai ha pouco lá vem a Nely de volta com as amigas. Francisco vai então ao seu encontro. Deve estar bem vermelho tentando controlar sua timidez. A adrenalina está à flor da pele. Não é medo, mas sente algo bem estranho ao imaginar que estaria namorando a moça mais cobiçada da cidade. Isso não se encaixa nas pretensões de sua personalidade. Mas não pode deixar de reagir a essa provocação de sua masculinidade. Não está tranqüilo. Mas se esforça para parecer natural diante dela. O coração está um tanto fora do compasso. Ela percebe a sua aproximação e se desgarra das amigas parando no passeio a espera dele. Francisco dá boa noite e pergunta: - Podemos conversar um pouco? - Sim! - Responde ela com o sorriso mais convencido e lindo que alguém já lhe ofereceu. Assim de pertinho a beleza dela é até mais provocante. - Vamos sentar ali! - Sugere ele, apontando para o batente da calçada de uns cinqüenta centímetros ao redor do outro canteiro da praça ao lado. A estratégia dela havia dado certo. Foi na jugular dele. Ferindo seu amor próprio. Sentam. Ela também parece estar emocionada, pelo jeito como morde o lábio inferior, de maneira muito recatada abraçando os joelhos. Uma beleza singela. Provantemente angelical. Sem dúvida é a mulher que pode desequilibrar o emocional de qualquer jovem. A mais bonita com quem Francisco já esteve até então. Ele procura ser suave em suas observações. E pergunta com voz calma: 181 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Você disse a Edílson que acha que eu tenho medo de você? - Ela ri meio sem jeito e responde: - Achei que sim! - Francisco permanece olhando-a nos olhos. A franqueza dela assusta. E resolve atacar o problema de frente e bem resolutamente: - Nely! Desde o dia em que eu lhe vi pela primeira vez, já soube que você era a moça mais bonita de Caicó. - Ela ri um pouco timida. Talvez fosse simplicidade o que ela demonstrava, mas não se mostra insegura. Sem dúvida está envaidecida. Francisco prossegue: - Eu sou... um jovem de família muito simples. Então em fiquei pensando... Existem, pelo que se sabe, vários rapazes da mais alta sociedade interessados em você! E desfere a pergunta mais inesperada que certamente ela jamais imaginou que ele lhe fizesse: - Por quê? Você quer namorar comigo? Pela primeira vez ela pareceu tremer na base. Fica séria. O rosto enrubece. Silencia um pouco buscando as palavras certas, com os braços apertando as pernas e o queixo sobre os joelhos, deitando a cabeça de lado, olha bem nos olhos dele também e responde com a sutileza e sabedoria da inteligência do coração feminino: - Alguém pode explicar porque uma pessoa se sente atraída por outra?... Essas coisas não se explica! Eu sei! Tem alguns rapazes aqui que já se aproximaram de mim procurando me namorar. Mas eu acabei de chegar à cidade! Não estive pensando em namorar ninguém... Até aquele dia em que eu lhe vi conversando com a... Elcira. Não é esse o nome dela? - É sim! Minha amiga! 182 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Ela continua olhando ele nos olhos e pergunta com voz muito suave: - Você não quer? Namorar comigo? Os dois estão tão bem próximos... Quase dá para ouvir seus corações batendo descontroladamente. Francisco reconhece que ela é genial, para encarar situações inesperadas, como aquela provocada por sua pergunta. - Claro que eu quero namorar você! Nely! Estou apenas tentando me acostumar com a idéia. Não tenho medo de você! Tenho tido receio, sim... de como será esse nosso relacionamento. Será que sou a pessoa certa para você? - Vamos deixar que o tempo responda isso por nós! Você não acha? Mais uma vez ela demonstra uma pureza de raciocínio incrível. Agora bem segura de si, Nely mostra-se mais inteligente do que parece. E muito serena. Isso o agrada muito. É normal nesse tempo, que se associe mulher bonita com mulher pouco inteligente. Mas Nely está ali diante dele desfazendo esse equívoco. Além de linda, ela é sim, muito inteligente. Tem só dezoito anos. Uma colegial ainda. Mas demonstra muita sensibilidade. Na sua forma de falar. De pensar antes de falar. De falar coisas sérias olhando nos olhos. Sobre isso tudo Francisco já tinha lido em seus livros de psicologia. Era o suficiente para saber que aquela moça tinha uma personalidade bem delineada. Ficam os dois ali na praça conversando por um bom tempo, até que as amigas dela se aproximam avisando que já estão a caminho de casa. Nely vai acompanhá-las. - Quase não saio à noite. Tenho os estudos. Meus pais dizem que é melhor me manter em casa. Nos veremos no próximo sábado? Pergunta ela. 183 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Com toda certeza! - Responde Francisco, beijando-a no rosto. Ela retribui o cumprimento social. E se vai aos cochichos com as amigas sentíndo-se vitoriosa. Francisco está de volta ao bar, onde Edílson o espera. Já no fogo de algumas cervejas. - E aí? - Pergunta ele. - Como foi? - Maravilha! Ela é uma moça muito inteligente. Deu pra ver isso. - O que tanto vocês conversaram? - Ah Edílson, deixa isso pra lá! Você já está cheio de cerveja. Isso não é assunto para mesa de bar. Falamos sobre nós. Só isso! - Mas estão namorando mesmo? - Acho que sim! - Vou para a Soarê na AABB você também vai? - E seguem juntos para o divertimento dos boleros, sambas e rumbas, que se dança ao som dos discos de Valdir Calmon e Ray Conniff, tocados em radiolas. Edílson Bezerra, Francisco Elias e Antenor Tavares são os principais “pés de ouro” dos salões de dança em Caicó. Francisco pensa seriamente em Nely. Por um motivo bem especial. O cheiro dela! Do corpo dela. Não exatamente um cheiro de perfume. Mas o cheiro da pele dela! Como explicam os estudiosos dos relacionamentos humanos, as pessoas se atraem primeiramente pelo odor da pele. O parasimpático da mente humana capta e analisa o odor. Se lhe atrai, isso desperta o desejo. E é exatamente isso o que está acontecendo com Francisco. A atração de pele da Nely é irresistível nele. Durante os primeiros dois meses namoram assim. Apenas nos encontros fortúitos da pracinha. Já andam de mãos dadas. Mas 184 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias apenas se encontram nas noites de sábado. Muita gente na cidade já comenta sobre o namoro deles. Ha muita visibilidade. Ele é o locutor da rádio. Ela a moça mais bonita da cidade, filha do Major do Exército, cortejada e desejada por todos. É lógico que os olhos curiosos da sociedade mexeriqueira está pairando sobre eles.As dificuldades logo vão aparecer. Tem muita gente enciumada com esse namoro. O irmão do engenheiro sócio do major Ney é um deles. A Nely o havia rejeitado para namorar aquele Zé Ninguém do Francisco Elias. Isso ele não perdoa. É um sujeito de personalidade muito fraca e vai já provar isso. Já está maquinando a respeito. É meio de semana. Uma quinta-feira. Francisco vai assistir um filme no Cinema São Francisco, recém inaugurado. Quem está na Pracinha esta noite é outro amigo comum seu. O Radir. Edílson chega perguntando: - Você sabe onde Chico está? - Ele disse que ia ao cinema São Francisco. Porquê? - Responde Radir. - Radir! Pode me fazer um favor? - Pois não! Diga! - Quando voltar para casa o cinema fica mais ou menos no seu caminho, não é? - É sim! -Veja se você consegue encontrar Chico no cinema! E avise pra ele que quebrou o maior pau lá na casa de Nely! Infernizaram a cabeça da mãe dela, disseram que Chico é maconheiro, falaram horrores sobre ele!. E a mãe está fula da vida exigindo que ela acabe o namoro! Minha prima me disse que ela tem chorado muito desde ontem. Só vim saber disso agora à noite! Chico precisa saber o que está acontecendo! 185 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias R adir também se mostra igualmente preocupado e garante que vai a procura dele. No meio do filme ele aparece no São Francisco e pede permissão para entrar e tentar localizar Chico Elias. Encontra-o e faz sinal para vir falar com ele. Francisco se levanta e vai ao seu encontro. - Vamos sair! Preciso falar com você! Trago um recado urgente de Edílson Bezerra! Os dois se dirigem a um bar próximo. No caminho Radir já vai dando os detalhes do que Edílson lhe contou. A situação exige uma tomada de posição severa e urgente. Estão enlameando o seu nome, que não é tão importante, mas é a única coisa que tem e precisa preservar. Realmente, à boca pequena, a sociedade local se dividia em duas facções: uma torcendo pelo namoro do jovem pobre com a linda princesa. E a outra condenando o namoro, tecendo em seus mexericos os piores comentários. Mais dia, menos dia, isso teria que chegar à família de Nely, na cidade ha apenas poucos meses. - O que você vai fazer? - Pergunta Radir. - A Nely está sofrendo com esta situação! Radir... Preciso pensar no que vou fazer! Discutem a possibilidade de uma reunião na noite seguinte em casa dos pais dela, se possível com a presença do acusador, para tirarem toda essa história a limpo. - Eu quero ver aquele canalha confirmar todas essas acusações na minha presença! - Francisco desabafa. - Mas Radir! E se esse canalha confirmar? O que é que eu vou fazer? Vou ser desmoralizado perante os pais dela? Sem fazer nada? - Radir apenas ouve em silêncio. - Radir! Você tem um revolver? - Eu não! Mas meu pai tem! Posso lhe emprestar! Trago escondido, mas lhe empresto! 186 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Você faz isso? Se aquele canalha me repetir isso lá, eu dou um tiro na cara dele! - Francisco está ficando fora de si. - Mas e aí? Se eu tiver que atirar nele! Vou lavar minha honra! Claro! Mas... e depois? Opai de Radir tem a caminhoneta, uma Chevrolet 56. Ele então sugere: - Eu vou com a caminhonete e fico esperando você na outra esquina da igreja! Se você atirar nele corre pra lá que eu lhe levo depressa e escondo você num sítio que tem acolá. Ninguém vai saber onde você está. Depois se vê o que será feito! - No dia seguinte, logo pela manhã, Radir aparece na rádio e entrega a Francisco o revólver. Um 38. Cano curto. - Dá pra você esconder atrás na calça. Esse está sendo o dia mais longo da vida de Francisco. Umas três horas da tarde, ele conversa com Edílson, que lhe confirma tudo, dando-lhe o número do telefone da residência de Nely. - Edílson! Diga a ela que fique tranqüila. À noite eu vou lá falar com os pais dela. Mas primeiro eu vou ligar para a mãe dela solicitando essa reunião. Agora está ligando para o telefone da casa dela. A empregada atende. Ele pede para falar com a mãe de Nely. Ela vem atender o telefone e Francisco se identifica: - Dona Júlia! Boa tarde! Aqui quem fala é Francisco Elias o namorado de Nely! - Sim! - Responde a mãe dela secamente. - Eu gostaria de solicitar uma reunião hoje à noite em sua casa, para esclarecermos esse contratempo entre mim e vocês. Mas gostaria que estivessem presentes, o Major Ney e esse rapaz que me fez essas 187 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias acusações inverídicas. - Quero ver se ele tem peito para confirmar isso na minha presença. A senhora pode confirmar essa reunião com o Major Ney? - A essa altura a mãe de Nely já demonstra um outro tom de voz. De preocupação. De surpresa com a iniciativa do rapaz. - Pois não! Eu... vou telefonar agora mesmo... para o Ney e informar a ele. Às oito horas, não é? - Sim senhora! - Pois está confirmado. Pode vir! A pronta iniciativa do rapaz em ir lá esclarecer os fatos deve ter surpreendido a mãe dela. Deixava transparecer isso no segundo tom de voz. Pareceu muito preocupada. A essa altura Nely já foi informada por Edílson. Oito horas da noite Francisco chega à residência de Nely. Um sobrado antigo. Com térreo e um primeiro andar. Uma escada lateral de madeira sobe aos aposentos do primeiro andar, uma sala ampla com várias janelas, piso em madeira, um longo corredor e três quartos adjacentes.As outras dependências ficam no térreo. Nely está na calçada a sua espera. Com três amigas aguardando o desfecho. Ficara bem mais tranqüila ao saber que Francisco estaria lá à noite para esclarecer tudo com seus pais. Mas está muito preocupada. Porém já parece mais confiante. Já não se sente mais sozinha. E não chora mais. Recebe Francisco com carinho procurando parecer tranqüila. Convída-o para sentar ali com as amigas e Edílson, informando que o pai só deverá chegar após as 20h00. Todos se esforçam para parecer uma situação normal. Mas em verdade ha uma certa tensão e expectativa. Percebe-se isso pelo modo como de vez enquando alguém esfrega as mãos. 188 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N inguém tem a menor idéia do que vai acontecer esta noite. As amigas procuram descontrair puxando conversa. Ao sentar Francisco sente-se desconfortável com o revólver enfiado na parte de trás, preso ao cós da calça. Mantem uma camisa solta por fora da calça para ninguém perceber a arma. Observa um certo brilho de satisfação nos olhos de Nely. Alguma coisa lhe diz que ela aguardava sua presença ali como uma tábua de salvação. Meia-hora depois chega o Major Ney, que desce do automóvel acompanhado do seu sócio, o engenheiro irmão do acusador. Cumprimenta a todos e diz a Francisco: - Por favor, aguarde um pouco que já pediremos para você subir para a nossa reunião! De cara Francisco já gostou do semblante do Major Ney. Ele transmite certa serenidade. É educadíssimo. A Nely beija o pai, cumprimenta o sócio dele e volta a sentar-se ao lado de Francisco. Francisco não comentou nada com Edílson sobre o possível plano de fuga com o Radir, caso tivesse que atirar no acusador. Num gesto de grande confiança Nely aperta-se ao seu antebraço. Parecia querer dizer: Fique tranqüilo! Vai terminar tudo bem! Percebendo que o acusador não se fará presente à reunião, Francisco por sua vez relaxa um pouco. O sangue parece estar fluindo agora mais naturalmente. Mas ainda falta o momento do enfrentamento. Das explicações ao pai dela. Ele pede então a Edílson: - Quando eu subir Edílson, gostaria que você me acompanhasse. Você é minha testemunha! - Ele diz que sim. Nely já havia informado que, por solicitação do pai, feita antes, nem ela nem a mãe, deveria estar presente à reunião. 189 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Talvez o Major Ney imaginasse que a presença delas na sala pudesse acalorar os ânimos. Afinal ele não podia prever o desfecho do encontro. Não mais que dez minutos depois, que pareceram uma eternidade para Francisco, a empregada avisa que ele pode subir. Edílson, que já conhece a residência vai na frente. Nely e as amigas ficam na calçada. Aperta a mão de Francisco tentando lhe passar tranqüilidade. Os olhos dela dizem tudo. Chegam à sala e lá estão já sentados em cadeiras de palhinha, o Major e o engenheiro, irmão do acusador. O Major pede que se acomodem e pergunta: - Seu nome é Francisco Elias, certo? - Sim, senhor! - Você pediu essa reunião, não foi? - Foi sim! Major! Para ter oportunidade de desmentir todas as acusações que foram feitas contra mim. - O Major ouve em silêncio. - Major Ney, eu não sou essa pessoa que disseram que sou. Eu sou um rapaz de origem humilde e pobre. Se pobreza for algum crime Major, então eu sou criminoso. Namoro sua filha com todo o respeito que um homem pode ter por uma mulher. Lamento muito que o meu acusador não esteja aqui agora, pois gostaria que ele confirmasse na minha presença todas essas acusações! Mas pelo que vejo, ele preferiu mandar o irmão! - E antes que os argumentos tomassem um rumo indesejado o Major sabiamente toma a palavra. - Olhe meu jovem! O que houve aqui foi um grande mal entendido. Não se preocupe! Tudo já está esclarecido! Já conversei com minha filha e confio plenamente nela! Se vocês querem namorar, pois muito bem, eu dou meu total 190 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias consentimento! Pode vir a nossa casa. Será bem vindo. Vamos esquecer tudo isso e dar por encerrada essa questão! Quero dizer que aprecio muito a sua atitude de solicitar essa reunião. E quero que saiba! - Continua ele, falando educadamente: - Pobreza não é defeito para ninguém. Nobreza de personalidade, isso sim! É algo que tem muito valor em minha apreciação. Pode ir tranqüilo! Não ha nada aqui que ainda precise ser esclarecido! O meu sócio está aqui, porque nós teremos também uma reunião de trabalho. Obrigado por ter vindo! - Obrigado também por ter me recebido, Major! Francisco então se retira juntamente com Edílson, completamente aliviado. Conversa curta e consistente aquela. Ao descerem Nely vem ao seu encontro com um abraço afetuoso e tranqüilizador. Beija-o no rosto e agradece: - Obrigado por ter vindo me socorrer! Só Deus sabe como eu precisava que você tomasse essa atitude! Mas logo em seguida, Francisco precisa se retirar. Lembrou-se que o amigo Radir está lá na esquina da igreja, na maior aflição esperando pelo desfecho da reunião. Despede-se e vai ao encontro de Radir. Ao dobrar a outra esquina da igreja, lá está o amigo a postos no volante. - E então? Como foi lá? - Tudo bem! O cafajeste não foi! Mandou o irmão no lugar dele! Toma teu revólver! Graças a Deus não precisei usar! E foram embora para o bar mais próximo. A garganta pedia uma cerveja gelada, e dando os detalhes da reunião para Radir. Uma semana depois, Nely confessa para Francisco. Na noite da reunião, enquanto ele se reunia com o pai dela na sala, o irmão mais moço dela, com apenas 15 anos, mantinha-se no quarto 191 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias preso pela mãe, pois tencionava ir lá fora com a pistola 45mm do pai. Coisa de criança mimada. Tudo nessa vida tem sua razão de ser. Sem entender porque, durante muito tempo, alguma coisa mudara em Francisco a partir daquele dia, em relação à seus sentimentos por Nely. O sentimento inicial que ele imaginava poder se transformar num grande amor por ela, aos poucos foi definhando, como uma flor que lhe arrancam a raiz. Não entende aquilo. Uma linda mulher. Parecia amá-lo. Em tão pouco tempo já haviam experimentado juntos momentos de sofrimento. O que em muitos casos já seria motivo suficiente para enraizar mais um relacionamento. Mas com ele está sendo diferente. O transtorno porque passara parece haver soterrado o seu sentimento por ela. Claro que ela não tinha culpa. Claro que nem ele era culpado de todo aquele transtorno que ambos viveram. Mas seu coração se fechou inapelavelmente para aquele amor. Amor impossível. Como explicar isso? Algumas vezes, sempre nos sábados à noite, ainda esteve com ela, namorando na calçada de sua casa, conforme o Major Ney pedira, e também na pracinha, quando se encontravam. Mas não era mais a mesma coisa. Para ele, o encanto de namorar uma garota tão linda havia se perdido. As vezes que esteve com ela em sua casa nunca viu a sua mãe. Até onde sabia, dona Júlia continuava não apoiando o namoro deles. A pressão psicológica daqueles momentos de apreensão talvez lhe tivesse alterado algum fio da corrente elétrica que conduz os sentimentos do cérebro ao coração. Algum curto circuito havia alterado aquela corrente. E ele se mantem muito surpreso, sem entender aquele fenômeno emocional. Ainda não lera nada sobre isso nos livros de psicologia. 192 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias U m mês depois estão outra vez sentados no canteiro da praça, onde se aproximaram pela primeira vez. Nely, sempre alegre, tem uma comunicação a fazer: - Olha! Não sei como você vai receber isso! E já disse ao pessoal que me convidou que não decidiria nada sem antes falar com você. Só vou se você consentir! - Pra onde Nely? - Me convidaram para ser apresentada como Miss Caicó e concorrer ao Miss Rio Grande do Norte! O que você acha? Esse é o grande acontecimento social de então, realizado em todo o Brasil sob iniciativa dos Diários e Emissoras Associadas, grupo de comunicação criado pelo jornalistaAssis Chataubriand. - Eu só vou aceitar se você concordar! Se você garantir que vai estar comigo lá em Natal no dia do Desfile! - Ora Nely! Essa é uma grande oportunidade para Caicó! Você deve ir, sim! - Você garante que vai estar lá comigo? - Claro! Pode ir tranqüila! Nesse momento o que Francisco menos quer é ser motivo de descontentamento ainda maior para a sociedade local, caso não concordasse com a candidatura de Nely. Só por namorar ela parte da sociedade quase o esfola vivo. Imagine se ele não concordasse com a candidatura dela! Um fato ainda se mantém pendente sobre o namoro deles. Ela já havia lhe informado a respeito. É sua mãe. O Edílson, que freqüenta constantemente a casa deles também confirmara. A mãe de Nely continuava sem engolir a figura de Elias, um rapaz pobre, ser o namorado de Nely. Sua animosidade em relação ao rapaz continuou. Mas Nely não ligava pra isso. Tinha o 193 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias aval de seu pai e isso lhe bastava. Conforme ela mesma dizia. - Não se preocupe com a mamãe! Papai aceita o nosso namoro e isso é suficiente! Mas para Francisco é difícil administrar a situação. Ao ir para Natal, já como a Miss Caicó, tendo a mãe sempre por perto e sabendo de seu descontentamento com o namoro, ela manda um telegrama para Francisco informando a data do desfile e pedindo que, por favor, ele esteja lá. Quer vê-lo na platéia assim que entrar no palco para desfilar. E assina o telegrama como Ylen. Seu nome ao avesso. Francisco entendeu a mensagem e responde o telegrama, assinando Saile. Ela, entretanto nunca recebeu a resposta. Sua mãe intercepta o telegrama. Chega à noite do desfile. Nely sobe a passarela e desfila. Procura por todos os recantos da platéia e não vê o namorado. É eleita a Miss Rio Grande do Norte. Carioca de nascimento, mas como residia em Caicó, pôde representar a cidade. Sua eleição foi muito aclamada em todo o Estado. A crônica social está comentando que pela primeira vez o Rio Grande do Norte tem uma candidata à altura do Miss Brasil, a se realizar um mês depois no Rio de Janeiro. No Rio Nely se sentirá em casa. Havia sido o último endereço da família antes de se transferir para Caicó. Como militar, o pai freqüentemente mudava de cidade. O salto qualitativo entre o Rio e Caicó é sem dúvida muito grande. Mas é lá que seu coração está. Entregue a Francisco. Por isto, apesar de tudo sente um grande pesar. Ele não estava presente no seu desfile. Era para ele, principalmente, que ela queria desfilar. Será que não recebera seu telegrama? Pensa ela. Mas estava combinado. Ele prometera que iria. 194 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O telegrama de Francisco interceptado pela mãe dela era exatamente apresentando uma desculpa, alegando que não poderia estar presente no sábado em Natal. Um trabalho de última hora na rádio o impedia. Mas desejava todo sucesso a ela. Era só uma desculpa para não ir. Não desejava se expor. Não se sentia bem nesse papel. Sua intuição lhe dizia para não ir. Ela entenderia. A mãe de Nely chegou a comentar com uma amiga sobre o telegrama que havia interceptado. Essa amiga contou a Nely. Deixando-a profundamente magoada com a mãe. Desenvolvendo a partir dai, um relacionamento cheio de ressentimentos e muito doloroso com a mãe. Ansiava chegar em Caicó na esperança de que Francisco fosse vê-la. Precisavam conversar. Mas está magoada com ele também, depois de conhecer o conteúdo de seu telegrama. A mãe rasgou e jogou fora. Mas leu antes e comentou com a amiga. Ele se desculpava por não poder ir. Mas prometera. De qualquer jeito não teria ido. Mesmo que ela tivesse recebido o telegrama. Desejava muito conversar com ele a respeito. Logo após o concurso em Natal já está marcada a data da viagem ao Rio uma semana depois, para os preparativos e ensaios do Miss Brasil. Mas antes, Caicó em peso prepara-se para receber a sua Miss que está chegando numa quinta-feira à tardinha. Uma enorme carreata aguarda por ela nas proximidades do açude Itans. Um grande acontecimento para a cidade. A rádio está lá para transmitir o evento. O repórter Francisco procura não se aproximar dela. E solicita a Paulo Celestino, um outro repórter, para fazer a entrevista com Nely. Um séqüito da imprensa social acompanha a Miss. 195 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias U m grande buzinaço percorre as ruas da cidade conduzindo Nely em carro aberto. Um orgulho para a cidade. Pela primeira vez Caicó arrebata o concurso da Miss Rio Grande do Norte. Todos querem abraçá-la, cumprimentá-la. Menos Francisco. Quem mais ela queria abraçar, não se faz presente. Assiste de longe. Afastado da multidão de curiosos. Os fotógrafos registram tudo. São só dois dias em Caicó, para arrumarem as malas dela e da mãe e seguirem para o Rio. E ele não dá notícias. Nely tenta contato com o namorado pelo telefone da rádio, mas não consegue. A cada instante fica mais aborrecida. O que havia acontecido? Teria existido algum outro impedimento que ela desconhecia? As suas amigas mais próximas não sabiam de nada. Não viam Francisco. Também não entendiam porque ele não estivera com ela logo que chegou. Nely está entristecida, mas procura não deixar ninguém perceber. A alegria do sucesso obtido como representante do RN ao Miss Brasil, sem dúvida a deixa envaidecida e ela procura superar a crise emotiva, pelo menos por enquanto. O desfile do Miss Brasil no Rio é transmitido pelo rádio. Todos querem acompanhar a participação da candidata Norteriograndense. Na noite do desfile, Francisco assiste também. Está com o ouvido colado no rádio. - Miss Rio Grande do Norte, 5° Lugar! - Anunciam os apresentadores. É emocionante ouvir o nome dela com tamanha projeção nacional. Nesta noite Francisco vai dormir arquitetando um plano. Não está acostumado a conviver com esse tipo de pressão emocional e procura um jeito de se afastar de Nely definitivamente. Acho que já sei como fazer isso!Arquiteta ele. 196 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias H a na cidade uma outra moça, quase tão bonita quanto Nely. Que por incrível coincidência (?) reside na mesma rua em que ela mora. É outra prima do amigo Edílson. Que segundo ele, também dança muito bem. Luzinete. Também bastante alta, 19 anos, de cor branca, pernas bem longas, uma moça realmente bonita. Vai ser também candidata a Miss mais tarde em Caicó. MissAlgodão. Luzinete ha tempos vem atirando flertes vistosos na direção de Francisco. Algo como as famosas flechadas de cupido. Mesmo antes de conhecer a Nely, no tempo em que era noivo de Vitória, percebia que Luzinete lhe fotografava constantemente no passeio da praça, com seus dois olhos grandes e muito vivos. Francisco lembrou-se dela. Será que tinha namorado? Francisco não é de ir à missa. Mas a casa dela fica exatamente ao lado da igreja de Santana. Enquanto isso Nely ainda continua no Rio. Daria um jeito de ir à missa no Sábado à noite e entrar por aquela porta lateral bem em frente à casa dela. Não deu outra. Missa das 19h00. Francisco caminha pela calçada da igreja. Lá está Luzinete sentada em frente à sua casa. Está só. Nada poderia ser melhor. Pensa ele. - Boa noite! - Cumprimenta ele cordialmente. Ela responde com um sorriso do tamanho da rua. Francisco improvisa uma conversa. - Você viu Edílson? - Não. Talvez esteja em casa agora! - Você pode me oferecer um copo d'agua? - Pois não! - Responde ela com toda cortesia e vai lá dentro pegar o copo com água numa bandeja. - Quer mais? - Pergunta após Francisco entregar o copo. - Não! Obrigado! - Para quem não tinha nem um pouco de sede, um 197 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias copo bastava. Pensa ele. Luzinete oferece uma cadeira. - Não quer sentar um pouco? - É. Eu marquei com Edílson aqui! Vou aguardar um pouco. Talvez ele apareça! - Fique a vontade que eu já volto! Ela entra e vai guardar a bandeja com o copo. Enquanto aguarda por ela Francisco observa a casa de Nely, uns cinqüenta metros adiante. E pensa. - Mas que coincidência! Fica imaginando um quadro. Ali sentado namorando com Luzinete e Nely tão perto. Intuição? Pois será isso mesmo que vai acontecer muito em breve. Luzinete está de volta. Muito comunicativa e educada, ficam conversando na calçada. O tempo passa. Claro que Edílson não chegaria. E sobre a missa, ele não falaria. Não seria inteligente para alguém, deixar de assistir a missa para ficar conversando numa calçada com uma moça. Mas o seu propósito tinha um outro sentido. Depois de alguns minutos conversando Francisco resolve arremessar o anzol. - Está esperando o namorado? - Não! Eu não tenho namorado! - Apressou-se ela em explicar. O caminho está aberto. Pensa Francisco. - Como? Uma moça bonita como você, não tem namorado? - Pois é! Responde ela ajeitando-se de forma charmosa na cadeira. Ela disfarçadamente pergunta: - Você conhece uma música que diz assim: Quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora... Ambos riem. O peixe está fisgado. É só puxar o anzol. Pensa Francisco. - Tem certeza de que quem você quer não lhe quer? A maçã do rosto de Luzinete agora está bem corada. Francisco 198 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias percebe. Ela responde: - Estou perguntando agora a ele! - Olhando bem nos olhos de Francisco. Luzinete tem também uns olhos bem grandes e e xpressivos. Ah! O que os jovens não fazem, quando querem provocar a quem desejam. - Está perguntando a mim? Ela não diz nem sim nem não. Mas abre um sorriso comprometedor. E antes que diga alguma coisa Francisco assume a situação. - E se eu disser que vim aqui só pra ver você? Ela alarga mais o sorriso. Toda mulher tem uma intuição muito forte. Dizem. - Eu não estava com sede. Continua Francisco. - Não vim procurar o Edílson. Vim ver você! Queria conversar um pouco com você. Saber se nós dois temos alguma chance! Algumas vezes eu tenho percebido que você flerta comigo. Por mim, acho que temos uma grande chance! Aproposta está plenamente aceita, por ambas as partes. Só lá pelas 22h00 Francisco vai embora. Já tem uma namorada nova. É o único jeito de pressionar Nely a sair de sua vida. Acha que não vale à pena manter uma relação não bem aceita por parte da família. Adela. Luzinete quis saber sobre Nely e Francisco esclarece que o namoro não tinha sido nada sério, além do mais deu alguns problemas, que ela bem sabia quais, residindo ali tão perto. Continuam se encontrando. Ora ali na calçada da casa dela. Outras vezes na pracinha ou num clube durante as soarês. O Edílson logo soube e conversa com Francisco a respeito. Ele esclarece que será melhor assim. O namoro com Nely não teria futuro. 199 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias D uas semanas depois Nely está de volta em Caicó. Foi informada de tudo. Traz consigo um automóvel zero quilômetro que ganhara no concurso de Miss RN. Um Aerowillys Preto. A noite do terceiro dia de sua volta ela marca com uma atitude hostil, de moça com o coração ferido. Provavelmente tocada por ciúme, o que é perfeitamente natural, ela dirige seu carro junto à calçada até se aproximar de Francisco e Luzinete. Então acelera o carro em toda disparada com os pneus jogando terra e pedregulhos sobre o casal. Surpresa! E Risos! De ambos. Era compreensível a atitude de Nely. Sentia-se deixada de lado. Só volta para casa após as 22h00 quando Francisco já se retirou. O próximo sábado vai ser importante para o desabafo dela. Nem sempre Luzinete pode acompanhar Francisco às soarês de sábado na AABB. Após estar com ela na Pracinha deixa-a em casa e vai ao clube, como de costume. Um bom copo de Gim com laranjada é tudo o que ele quer, ao chegar ao bar do clube. Senta numa mesa próxima enquanto as pessoas ainda estão chegando. Dai ha pouco o clube está lotado. Dança-se ao som da velha radiola. Velha no sentido figurado. Que toca músicas de Valdir Calmon. Elcira logo se apresenta para dançar com Francisco. Mas como todos os amigos dele, procura evitar tocar no assunto Nely. Não demora muito e a Miss chega ao clube acompanhada do irmão e da sua mãe. Vão sentar num outro extremo do salão. Dai ha pouco chega também o Edílson sentando-se à mesa de Francisco. - Nely está ai! Você já viu? - Vi sim! 200 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Vai dançar com ela? - Vou nada Edílson! Imagina se a Luzinete sabe que eu estive aqui dançando com a Nely! Alguns instantes depois vem até sua mesa o Wilson, outro amigo seu, que acabara de dançar com Nely. Vem lhe trazer um recado dela: - Olá Elias! A Nely pede encarecidamente que você vá tirar ela para dançar. Tem algo que ela precisa esclarecer com você! Essa é uma situação nova. Já envolvia uma outra pessoa. Não seria nada delicado da parte dele não levar em consideração a solicitação dela. Ele agradece dizendo que daqui ha pouco vai conversar com ela. Deve ter muita gente ai querendo dançar com ela. Francisco precisa de mais uma dose de Gim para enfrentar a Nely. Na verdade Francisco queria muito, a oportunidade de se esclarecer com ela. Ela devia estar precisando muito daquele contato com ele, a ponto de pedir a intervenção de uma outra pessoa. Após mais um Gim com laranjada ele vai a sua mesa e convida-a para dançar. O salão em penumbra, ao se aproximar da mesa não percebe e pisa no pé do irmão dela. Que bela chegada! Pede desculpa, dá boa noite e convida-a para dançar. Lógico que mesmo na penumbra, todos os olhares mexeriqueiros ali presentes estão concentrados no casal. Por alguns instantes mantemse em silêncio. É Nely quem puxa conversa. - Eu não recebi seu telegrama! Minha mãe interceptou e não me entregou. Eu soube depois através de uma amiga dela. - Francisco mantem-se em silêncio. O cheiro dela é uma provocação infernal. - Mas você não perdeu tempo, não é? Já está de namorada nova! Ela fala com desdém. Está ferida. É compreensível. - Nely! Nosso namoro já começou errado! Deu-me muita preocupação, sabia? Então achei que o melhor para nós dois era 201 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias cada um seguir o seu caminho. Não imaginei que você fosse se ferir tanto. - Não avaliou os meus sentimentos, não foi? - Sinceramente, eu pensei que fosse me esquecer bem depressa com tantos pretendentes, principalmente após sua eleição no concurso Miss Rio Grande do Norte. Aliás, aproveito para lhe dar os parabéns. Você esteve ótima! - Não quero seus parabéns! - Nely mostra-se amarga. - Só queria entender sua atitude! Mas não consigo. Tenho certeza que não fiz nada errado. Se fui ao concurso é porque você me encorajou! Olha, está bem! Passou, passou! Deixe-me na mesa, por favor! Repentinamente Nely parece não estar segurando as emoções. Demonstra estar muito magoada mesmo. Francisco a acompanha deixando-a na mesa. E volta para o seu Gim com laranjada. Ainda meio atordoado. Puxa! Nely se feriu mesmo! - Pensa ele. Não imaginei que seria assim. Mas como ela mesma disse, o que passou, passou. O amigo Edílson quer saber detalhes, mas ele resolve não conversar sobre isso. Ele mesmo também está sensivelmente atingido pelas emoções que Nely acaba de lhe passar. Está sendo um momento doloroso também para ele. Não imaginava que ela o tivesse tão ardentemente no coração. Aquela noite Francisco bebe além da conta, sem saber se, por se sentir culpado ou pelo sentimento de haver perdido uma mulher tão extraordinária. Francisco nunca mais viu Nely. Continua namorando Luzinete. Não a ama. Mas a lógica lhe exige. Ela é também muito atraente. Precisa ocupar sua mente com o cheiro de outra mulher. Além do mais, continua em sua mente aquela trava fortemente marcada desde a primeira namorada. 202 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A paixonar-se por uma mulher lhe dá muito medo. Essa é a realidade psicológica com a qual ele tem que conviver. Ainda inconscientemente neste momento. Não muito longe dali, um outro quadro de sentimentos mal resolvidos continua se manifestando de forma igualmente dolorosa. Maria das Vitórias. Que repentinamente se viu arrancada de seu sonho de noiva, terminara seu curso na escola normal e acaba de ser aprovada num concurso público para trabalhar na ANCAR, um órgão do Ministério da Agricultura, posteriormente transformado em EMATER, também com atuação naAgricultura. Ela está trabalhando no escritório da ANCAR na cidade Açu. Sem esquecer o ex-noivo. Por mais que se esforce. O coração ainda dói. Ela guarda a certeza de que Francisco a trocou pela Miss. É isso que algumas amigas dela comentam. Julga apenas pelo que ouve falar. Mas a vida tem de continuar. Ha um motivo de força maior, o verdadeiro motivo da desistência de seu noivo, em se casar com ela, que Maria das Vitórias só vai descobrir quarenta anos depois. E não tem nada haver com Nely. O namoro com Nely foi apenas um acidente de percurso. Francisco está saindo da rádio depois de mais um dia de trabalho, indo a caminho da banca de cafezinho de Vicente Modesto, na esquina do Branco do Brasil. Tomando o café com pastel Francisco ouve o conselho de Vicente Modesto. - Francisco Elias! Vai embora rapaz! Um locutor como você esta perdendo tempo aqui em Caicó. Vai trabalhar em um grande centro! Você pode até escolher. Fortaleza, Natal, Recife, ou até Rio, Brasília ou São Paulo. Você não é locutor para Caicó. Já é a Segunda vez que alguém lhe diz isso. Pensa ele... Comendo seu 203 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias pastel. - Vai chegar a hora Vicente! Vai chegar a hora! À noite o amigo Edílson lhe conta uma novidade. - O major Ney vai se transferir de volta para o Rio! Eu soube hoje! - Ah é! Vai ser bom para Nely. Ela gosta muito do Rio. Já moraram lá. Tem muitas amigas. A transferência do major vai ser rápida. Duas semanas depois a família já está retornando para o Rio de Janeiro. Notícia que de certa forma tranqüiliza Luzinete. Pois pelo que sabe, através das suas primas, a Nely ainda gosta de Francisco. Edílson também dá conta de desentendimentos constantes entre ela e a mãe. Tudo aquilo teria sido a ponto de o Major Ney pedir sua transferência de volta para o Rio? Pensa nessa possibilidade. Mas deixa o assunto pra lá. Já não lhe lhe diz mais respeito. Nely já faz parte de seu passado. Dois meses depois, o amigo Edílson vai à rádio a procura de Francisco. - Oi Chico! - Diz aí Edílson! Tudo bem? Você por aqui essa hora? Alguma novidade? - Tenho sim! É pra você! E entrega a Francisco uma carta para ele, enviada dentro da mesma correspondência que Edílson recebera do Rio. Ele vê a assinatura lá embaixo. É da mãe de Nely. Que surpresa! - Ela me pediu para lhe entregar! - Francisco já está lendo a carta cheio de curiosidade. A mãe de Nely escrevendo para ele! Por essa ele não esperava! Ela apresenta muitas desculpas pela maneira infeliz como o havia 204 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias tratado em Caicó. E entre outras coisas, fala da enorme dificuldade de convivência que vem tendo com a própria filha, que a acusa de ser a responsável pela sua infelicidade, ao dificultar o namoro dela com ele. Francisco está boquiaberto! - Quem diria! - Exclama surpreso. - Você já leu? - Pergunta a Edílson. - Li sim! Me desculpe! Mas a carta dela veio aberta, dentro da minha, me pedindo para que entregasse para você. Que lhe fizesse saber a terrível situação que estão vivendo em família, por conta das acusações que Nely lhe faz. Você vai responder? - Indaga Edílson. - Não Edílson! Antes de mais nada gostaria que você não contasse isso à Luzinete! Vamos evitar que ela também sofra com essa situação. De qualquer forma, eu já havia planejado passar umas férias no Rio com meu primo Jaci, que está chegando de férias no começo do mês que vem. Você escreva para a mãe dela e dentro de sua carta mande uma outra para Nely. Diga a ela que tenha paciência com a mãe dela. Afinal é sua mãe. E avise que em agosto eu estarei no Rio. Então irei visitá-los e conversaremos a respeito. Assim fez o Edílson. É Julho. Festa de Santana. O primo Jaci está de férias em Caicó. Combinam então viajar juntos na volta dele para o Rio logo no início de agosto. Francisco vai viver emoções muito fortes nesta viagem. Um outro amigo, Pedro Telles, gerente do Banco do Povo em Caicó acaba de casar, exatamente com a irmã daquela que foi a primeira namorada de um dia só, de Francisco. Também estariam no Rio no mês de agosto, num apartamento de temporada em Copacabana e combinam se encontrar lá para algumas farras. Dois dias depois de chegar ao Rio Francisco faz contato com o amigo Pedro Telles. A cunhada, irmã de sua esposa também está 205 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias com eles no Rio. O primo Jaci leva Francisco ao apartamento que Pedro Telles havia alugado, na Nossa Senhora de Copacabana. Francisco está maravilhado, conhecendo o Rio de Janeiro pela primeira vez. Foi um dia intenso de farra com Pedro, a esposa e a cunhada dele. Francisco está com ela na janela do sétimo andar olhando o movimento da avenida. Conversa animadamente com a ex-primeira namorada, enquanto pensa: - Como essa vida é engraçada! Essa garota não tem idéia sobre as transformações que provocou em minha vida emocional. Hoje é uma pessoa adulta e equilibrada. Distante daquela futilidade ainda juvenil de anos atrás. E estamos aqui, como se nada tivesse acontecido. Ela nem pode imaginar quanto. Até vão juntos no dia seguinte à praia de Copacabana. Francisco não sente nada por ela. A não ser a simples amizade de conterrâneos. Mas não deixa de refletir como a vida nos prepara surpresas. Amanhã é sábado. Vai ter muito movimento lá no apartamento do Major Ney, pai de Nely. Francisco já se comunicou por telefone e o major combinou que haverá um sarau em seu apartamento a partir das oito da noite. Solicitando a Francisco que vá para lá logo no sábado de manhã, pois deseja combinar algo com ele. - Você trouxe o violão? - Perguntara ele ao telefone. - Trouxe sim Major. - Francisco não se separa de seu violão. Não mais aquele que ganhou de sua mãe anos atrás. Mas um outro, Gianinni, muito bom. - Vai também lá em casa amanhã, um amigo meu que também toca violão. Vai ser bom vocês se conhecerem! - Garante ele. O major quer falar com Pedro Telles. Convída-o também para a serenata em sua casa. Vai ser ótimo. Muita música. Bebida. Bons papos. E Nely! Claro! Ha 206 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias uma certa expectativa no fato de revê-la. Poder conversar com ela. Será que já perdoou a mãe... Procurar ajudar no reatamento das relações mãe e filha é algo que muito agrada a Francisco. Ser útil, enfim. E o prazer também de estar com ela. Porquê não? Este sábado de manhã Jaci está indo para o quartel da Marinha mas vai deixar primeiro Francisco na Barata Ribeiro, no endereço do apartamento da família de Nely, garantindo que à noite também vai estar presente ao sarau. Jaci está curioso para conhecer a família de Nely. Cuja história com Francisco já conhecia desde a viagem. São 09h00 da manhã. Estão atrasados. Combinara com o Major umas 08h30. Mas enfim... O trânsito complicou um pouco. Jaci vai voltar la à noite. Chegam ao endereço da Barata Ribeiro. Francisco sobe o elevador até o apartamento 703. O porteiro avisou que o Major já o aguardava. Toca a campainha. É o Major Ney quem vem recebê-lo. Juntamente com a esposa. Cumprimentos de ambos os lados. - Que maravilha! Você aqui! - Exclama o Major. - Um homem de palavra! - Diz a dona Júlia, mãe de Nely tentando ser simpática. Ela é agora o antagonismo em pessoa. Alguém completamente diferente da que ouvia-se falar em Caicó, em relação a Francisco. Ele a está conhecendo intimamente pela primeira vez. O Major, um homem alto, bonitão, atlético, olhos azuis, o perfil exato do gaúcho, aí pelos 1,90m e ela lá pelos seus 1,60m. Morena clara, olhos pretos, cabelos escuros e muito lisos, e um pouco fora do peso, para o seu tamanho. Fora os olhos grandes e expressivos não havia nada de tão especial nela. Como uma mulher daquela conseguira fisgar um homem do porte do Major Ney... Era algo para se pensar... 207 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E m seguida aparece Nely. Ainda com cara de sono. Nada que uma leve maquiagem apressada não resolvesse. Cumprimentam-se alegremente mas de maneira formal. Agora surge o rapaz irmão dela. Também se esforçando para ser simpático. Devia ter recebido algumas recomendações dos pais, talvez, para encarar aquele reencontro. Seguiria o porte do pai. Também de cor branca, olhos azuis e já bem grandinho para sua idade. A Nely tem os olhos da mãe. Mas o rapaz tem os olhos do pai. - Já tomou café? - Pergunta a mãe de Nely. - Já sim! Tomei antes de sair! Ah não! Mas sente aqui! Vai tomar café comigo de novo! Diz alegremente Nely. O Major Ney que parece com pressa para sair de casa diz, convidando Francisco: - Mas primeiro vamos comigo lá na garagem. Eu vou pegar algo que deixei no carro e então você traz aqui para o apartamento, sim! Francisco desce com ele pelo elevador de serviço. O major explica: - É um colchonete que eu esqueci no carro. Você vai ficar conosco o fim de semana, não é? - Bem Major! Eu me programei para sair com meu primo... - Não! Não! Você fica com a gente este fim de semana. Vai ser divertido hoje à noite! - Insiste ele. Francisco está mesmo bastante surpreso com tamanha mudança de atitude da família de Nely em relação a ele. O Major faz-se entender rapidamente: - Olha! É o seguinte! Você é homem! Compreende essas coisas! Eu vou precisar sair para umas quebradas por aí - Dando idéia que vai se encontrar com outra mulher, um caso talvez. - E elas vão precisar ir lá no Meyer pegar uma cama pra você dormir aqui em casa hoje. 208 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Então, olha! Fique aí! Tome conta da casa! Dê um apoio pra elas! Vão de Kombi pegar a cama. Vem desarmada. É fácil de trazer na Kombi. Que eu vou também encomendar o bufê para logo mais a noite. Vai ser uma farra e tanto, viu! Major Ney parece muito entusiasmado. E sabe ser bastante convincente. Francisco ainda não entendeu se, por causa da sua presença ali ou se em razão da serenata que ele programou. Ia ter até bufê! Quem puderia imaginar aquilo em Caicó? Nem mesmo o Edílson. O major entregando-lhe a casa e a responsabilidade de cuidar da esposa e sua filha em sua ausência. Não acredito que isso está acontecendo! Pensa Francisco. - OK Major! Pode ficar tranqüilo! O Major retira do porta malas do Karmanguia o colchonete entregando a Francisco e sai apressado. É outra pessoa. Vestindo aquele traje esportivo. Um tênis leve, bermuda, uma camisa de malha colorida e óculos de sol. Completamente despojado daquela postura militar. Dirigindo aquele Karmanguia! Parece mais um playboi. Francisco retorna ao apartamento. Nely ainda está à mesa do café. - Tem certeza que não quer tomar café comigo? - Ela insiste. - Não Nely! Apenas um cafezinho para acender o cigarro. A mãe de Nely aproxima-se convidando-o para conhecer o apartamento. Terminando o seu café, Nely chama: - Mãe! A senhora não vai com a gente? - Vou sim Filha! Estou calçando os sapatos. O clima de repente parece haver mudado naquela família. Será que elas haviam se desentendido mesmo! Até o irmão dela mostra-se simpático. 209 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias S aem então de Kombi, Nely, sua mãe e Francisco. Em minutos estão chegando ao Meyer. Pegando uma cama de solteiro desmontada na residência de alguém da família e retornando ao apartamento na Barata Ribeiro. Nely ao volante está exuberante de satisfação. Francisco, por sua vez, busca em seus pensamentos uma maneira de falar a ela, orientando para que evite um relacionamento doloroso com sua mãe. Fica aguardando a ocasião certa. Essa conversa deve se dar reservadamente. É o que ele deduz. Chegando ao apartamento, o jovem irmão dela já não está. Nely leva Francisco a um quarto onde ele vai dormir aquela noite. Ali Francisco se prontifica para armar a cama de solteiro. Em seguida vai tomar um banho. Já são quase meio-dia e daqui ha pouco o Major deve chegar para o almoço. Pelo menos é o que ele pensa. Saindo do banho Francisco encontra Nely na sala com duas amigas. Após os cumprimentos, a radiola está tocando um disco do Trio Irakitan. Lembranças das Soarês de Caicó, talvez. - Vamos dançar! - Se insinua Nely. E os dois deslizam pela sala com os boleros do Trio Irakitan, enquanto as amigas assistem. - Ele dança divinamente! - Gába-se Nely para suas amigas. O que será que ela disse a essas amigas... Imagina Francisco enquanto dança com ela. Provavelmente está alimentando a expectativa de reatar o namoro. Isso não vai dar certo! Como eu vou fazer para esclarecer as coisas com Nely... Continua pensando. Agora é que não daria certo mesmo! Ela no Rio e ele em Caicó! As amigas de Nely se divertem. À noite, no sarau em casa do Major elas também estarão presentes.Acabam de ser convidadas por Nely. - Ele também canta muito bem! - Ressalta ela para suas amigas. 210 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Como sempre, Francisco não se separa de seu violão. Nely vai lá dentro e volta com o violão, desligando a radiola. - Elias, cante um pouco pra gente! Vai! Claro! Toda cortesia ali ainda é pouca. As moças estão curiosas com o novo amigo de Nely. Dança bem e também canta! Altemar Dutra é outro cantor de muito sucesso na época. E Francisco gosta de cantar suas músicas. “Sentimental eu sou, eu sou demais....” As amigas de Nely parecem gostar de ouví-lo cantar. - Vocês não viram nada! - Diz Nely. - Estejam aqui hoje à noite! Vai ser ótimo! Vem também um amigo de papai da Odeon! O major não havia falado na Odeon! É uma gravadora! Puxa! Vem gente da Odeon para o sarau do Major!... Francisco agora está curioso. Quem será? A serenata vai ser melhor do que ele imaginava. Claro que ele não sabe. Mas o Major está mexendo os seus pauzinhos!... Nesse tempo, logo após a Revolução de Março, os militares são os donos de todo o prestígio. Em todas as áreas. O seu amigo da Odeon certamente aprecia essa amizade. Um Major do Exército é uma senhora patente, para amigo nenhum botar defeito. Mas que pauzinhos o Major Ney pretendia mexer nessa noite? Francisco só irá descobrir meses depois, já de volta em Caicó. A vida toda, se Francisco pecou por omissão, foi o fato de expressar uma personalidade muito inocente. Não ha malícia em seus pensamentos. Portanto, não podia aquilatar a intenção do Major Ney, promovendo aquela serenata tão peculiar. Francisco está tentando contatar o primo Jaci, que também foi 211 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias convidado para o Sarau. Fala com ele ao telefone: - Jaci, está confirmada a sua presença aqui hoje? Não é? - Claro! Às oito horas, certo? - Se possível chegue um pouco antes. Por favor, traga para mim uma roupa para vestir. Não imaginei que demoraria tanto tempo aqui e preciso trocar de roupa à noite! Tudo combinado, pelas oito horas da noite os convidados começam a chegar. Inclusive o amigo Pedro Telles, convidado pelo Major Ney, acompanhado da esposa e da cunhada. Já tem um bufê montado na sala do apartamento, com bastante tira-gostos e bebidas. Os cariocas sabem se divertir. É comum esses encontros nas residências. Francisco tem uma surpresa para Nely. Compôs uma música para ela, ainda em Caicó, e vai cantar para ela pela primeira vez nesta noite. Ela já sabe sobre a música desde esta tarde. Mas ele já lhe disse que só vai cantar à noite. Ela mantem-se ansiosa para conhecer a sua música. Ha dois violões no sarau. O amigo do Major Ney, da Odeon, também toca violão. A festa corre animada. Ha muita alegria ali. Entre uma dose e outra de whisky, Francisco repassa nos pensamentos a imagem daquele encontro familiar comparando com os momentos de tribulação que vivera bem pouco tempo atrás, por causa daquele namoro que não vingou. Como estará se sentindo Nely? Isso ele gostaria de adivinhar. Aproveita um intervalo para comunicar sua surpresa musical. - Hoje eu tenho uma surpresa para minha amiga Nely. Pouco antes de vir ao Rio eu compus uma música para ela. Que gostaria de cantar agora, pela primeira vez. 212 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Todos estão curiosos para ouvir.As duas amigas dela então... Imaginando que ela haveria de querer guardar a letra, Francisco havia datilografado, e após cantar a música, oferece a ela o papel com a letra datilografada. Nely escutou a música com toda a ternura que podia oferecer ao receber tão singela homenagem. Era o único jeito que Francisco sabia, para lhe dizer que ela foi importante. Apesar de tão pouco tempo. Por isso, merecedora. Ele sabe. No íntimo sabe, que nunca mais irá vê-la após aquelas férias no Rio. E queria deixar com ela essa lembrança.Algo que pudesse falar de coração para coração. Ao lhe entregar o papel com a letra percebe que ha lágrimas sutis nos olhos dela. Ninguém mais que ela, saberia como é significativo receber dele esse presente. Abaixo na folha de papel está assinado, - Seu amigo Saile. Provavelmente ela só ouviu a melodia da música esta única vez. Mas ficaria o poema no papel. Ela agradece, como sempre com o sorriso largo e maravilhoso que tem. Os presentes aplaudem a homenagem. O homem da Odeon, amigo do Major Ney, comunica: - Isso merece uma bebemoração! - E acrescenta, buscando o litro de whisky - O Tocador quer beber! É uma noitada e tanto. O Rio de Janeiro dessa época é muito tranqüilo. Ainda. Meia-Noite, também pelo cuidado de não incomodar os vizinhos, o Major Ney convida todo mundo para continuar a serenata nas areias de Copacabana. Pelo sim, pelo não, o Major leva a sua 45mm na cintura. Não custa nada se garantir. Amanhã é domingo e todos os exageros do sábado serão tolerados. Vão quase todos, a mãe de Nely prefere ficar no apartamento. Serenata nas areias de Copacabana, bem próximo do mar. Que maravilha! Logo alguém cava um buraco na areia para colocar 213 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias dentro uma caixa com gelo e as bebidas. O tira-gosto vai num reservatório de pirex. A madrugada está fria. Alguém toma a iniciativa de botar fogo em papéis de jornal para esquentar um pouco, mas o vento leva tudo. O jeito é esquentar com a bebida A serenata continua até às 02h30 da manhã. Agora todo mundo está no ponto. Uma cama vai bem. Os convidados vão embora. O primo Jaci também. Combina com Francisco para vir pegá-lo neste domingo à noite. Francisco não conseguiria ir sozinho de Copacabana para São Cristóvão onde o primo mora. Ainda vai passar o domingo com a família de Nely. Um domingo de bastante sono. Quase duas da tarde é que estão levantando para almoçar. Após o almoço Francisco tem oportunidade de ficar a sós com Nely. É o momento que ele precisa para tentar convencê-la a reatar o relacionamento sadio com a mãe. Estão só os dois na sala do apartamento, com a televisão ligada. Francisco a convida para ir até a varanda do apartamento. - Nely. O principal motivo de minha vinda aqui no Rio, é conversar sobre você e sua mãe. Não é sábio que você mantenha por ela qualquer sentimento que resulte em afastamento. - Ela é sua mãe! Foi infeliz na sua atitude em relação a nós dois lá em Caicó, mas... é sua mãe! Você não pode mudar isso! Nely ouve em total silêncio, segurando com as mãos o parapeito da varanda, olhando lá do sétimo andar o movimento lá embaixo na Barata Ribeiro, como se não estivesse ali. Sua expressão agora é triste. -Então, eu lhe peço, - continua Francisco - deixe de lado esses ressentimentos. Veja a minha posição! Tenho motivos para 214 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias ressentimentos com ela tanto quanto você! Mas estou aqui, a pedido dela, através da carta que me escreveu. Você deve estar sabendo... - Estou sim! Em princípio duvidei muito e falei pra ela: A senhora deve estar sonhando! Imagina se ele vai querer escrever para mim! Muito menos, imaginei que você viesse nos visitar! Foi uma grande surpresa quando soube que você viria! Uma boa surpresa! Estou contente! Mas não estou feliz. - Acrescenta ela com tristeza na voz. Sinto que você não veio ao Rio por mim, mas por essa carta! - Não seja injusta! Vim por você também. Lógico! Procurando apaziguar os ânimos entre você e sua mãe, estou pensando em você também! Você entende isso? Eu não poderia estar em paz, sabendo que por minha causa, o amor de uma filha e de uma mãe havia sido destruído. Você promete que vai repensar seus sentimentos com ela? Garante que minha vinda ao Rio não foi em vão? Nely olha para Francisco e seus olhos falam. Ela parece enfim compreender o que está se passando ali. O amor filial, a tolerância e compreensão com os pais, deve ser mais verdadeiro que qualquer outra coisa nessa vida. Um namorado, uma paixão, vem e vai! O amor de uma mãe é definitivo. Nely tem uma doçura de comportamento que expressam bem a sua sensibilidade. Com ternura ela segura as mãos dele e agradece: - Muito obrigada! Obrigada mesmo! Pelo que você está fazendo por nós. Obrigada, de coração! - Eu sei que é! Assim você me deixa muito reconfortado. Vou poder regressar a Caicó com o coração aliviado. Com a alegria interior de haver feito algo por alguém. 215 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A quele não é o mesmo Francisco de algum tempo atrás. É uma pessoa renovando-se. Evoluindo. É hora de lembrar outra vez do Padre Itan. Essa pessoa nova que está renascendo dentro dele é fruto da iniciativa daquele padre. Que lhe ajudara desinteressadamente. Que o havia apontado o caminho do conhecimento e da elevação interior. Simplesmente colocando um livro em suas mãos. Os livros têm o poder de fecundar conteúdos na alma das pessoas. Ainda bem que Nely parece perceber a grandeza desse gesto. O Major Ney aproxima-se após a sesta do domingo de ressaca. Eles então encerram a conversa. Pouco depois chegam alguns amigos da família e a conversa do grupo segue outro rumo, discutindo as trivialidades. As conversas giram em torno da animação da noite anterior. O Major pergunta: - Francisco Elias, você nunca pensou em seguir a carreira de cantor? - Ah Major ! Eu canto por brincadeira. Meu trabalho é o rádio. Cantor!... Acho que devo prosseguir no rádio. OMajor não acrescenta mais nada e muda de assunto. Diz apenas: O meu amigo da Odeon gostou muito da sua voz!... Logo mais à noite, lá pelas 21h00, o primo Jaci chega para pegar Francisco. Ele então se despede dos familiares de Nely e segue para o elevador. Jaci o aguarda na portaria do prédio. Nely faz questão de acompanhá-lo até lá embaixo. Conversam algumas amenidades no elevador e ao chegarem à recepção o primo Jaci agradece pela acolhida da noite anterior. Sai 216 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias até a calçada e se afasta um pouco. É o momento final da despedida. - Obrigado, por me receber tão bem em sua casa! Nely! Obrigado por tudo! - E eu? O que devo lhe dizer? Muito mais que obrigado! Nely continua segurando sua mão. Seus grandes olhos lindos continuam fazendo um eloqüente discurso. Ela tem um jeito só seu de falar com os olhos. Diz coisas maravilhosas. Que todo homem se envaideceria de perceber. Olhos que transmitem um apelo. Um pedido. Uma esperança. Um lamento sutil. Ela lhe fala com toda a doçura que a tristeza da separação pode lhe permitir nesse momento. Fala quase sussurando. Fala mansa e triste ao mesmo tempo: - Você nunca me amou! Não é verdade? Francisco tem um nó atravessado na garganta. O cheiro de Nely assim tão próximo lhe confunde o raciocínio. - Eu não tive tempo! Nely! - Confessa ele falando baixinho. O primo Jaci havia se afastado mais um pouco percebendo a importância do momento. Me perdoe! Nosso relacionamento parecia tão bonito! Tão único! E de repente, antes que eu pudesse amadurecer um sentimento mais forte por você, nós fomos sacudidos com todo aquele alvoroço e descontentamento emocional que sofremos, com a pressão de sociedade de Caicó sobre nós. Dava para perceber que metade da cidade estava a nosso favor e a outra metade contra. Sua família se dividindo! Aquilo foi terrível para mim! Uma experiência que não gostaria de viver novamente. Então diante de tantas emoções contraditórias e doloridas, não se abriu a tempo, um espaço tranqüilo em mim, onde você pudesse permanecer definitivamente, de um jeito que me desse paz. Espero que você compreenda isso! Faço questão de dizer, que em outras 217 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias circunstâncias eu me apaixonaria por você, certamente! Eu e qualquer homem que tiver a sorte de conhecer você! Você é uma pessoa maravilhosa Nely! Merece ser feliz! Eu não sei se poderia fazê-la feliz. Talvez eu não mereça você! Desejo muito que você esteja em paz! E que perdoe sua mãe! Francisco não recorda de já haver falado a uma mulher assim. Os olhos de Nely transmitem um misto de tristeza e lágrimas. Ela se esforça para segurar aquela emoção forte. Ali está acontecendo algo muito sério. A despedida está demorando mais do que o previsto. Conclui o primo Jaci. O momento é único. Sem ninguém por perto Nely pode relaxar as emoções um pouco. Francisco oferece o lenço para ela enxugar os olhos.Ainda bem que não está maquiada. - Você é bonita até chorando e sem maquiagem. - Diz ele, tentando descontrair um pouco o clima da despedida. Agora já recomposta Nely continua: - Está bem! Nunca pensei que alguém fosse mexer tanto comigo como você mexeu! Mas não posso lhe obrigar a me amar. Não é mesmo? - Diz ela, recuperando a altivez. - Vá com Deus! Desejo que você possa ser feliz! Foi muito bom ter lhe conhecido! Precisaria ir a um lugar tão distante, como Caicó, para achar alguém tão especial como você! Mas eu soube isso! A primeira vez que vi você! Eu soube que você marcaria minha vida! Eu vou estar bem! Vá em paz! Nunca foi tão difícil se despedir de uma mulher como esse momento que ele acaba de experimentar. Francisco se vai. Levando no coração uma emoção muito estranha. Como alguém podia sentir algo assim, por alguém que imagina não amar? A vida tem dessas coisas. Nunca mais a veria. Umas duas vezes, ao longo de sua vida vai obter informações dela. Sempre através do amigo Edílson Bezerra. A primeira vez, uns dez anos depois, informado de que ela havia casado com um francês indo residir em Paris. 218 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias U ns dez anos mais tarde recebe do amigo uma nova informação. Nely havia se separado e estava de volta no Brasil. Morando no Rio de Janeiro e tocando um atelier de alta costura. Tinha tudo haver com ela. Era uma pessoa de alto nível e havia morado em Paris. Natural que houvesse evoluído para o mundo glamuroso da alta costura. Ao receber a informação de que o casamento de Nely se desfez, Francisco pondera sobre isso: Será que só amamos na vida uma única vez? Seria esse o motivo de tantos desencontros no casamento como se vê em todos os tempos? Haveria alguém capaz de interpretar corretamente o significado do amor entre duas pessoas? Vamos dar um salto no precioso tempo, de volta até Caicó, em 1965. Como estará Francisco levado pelas intempéries de seu destino intransigente... Regressara das férias no Rio de Janeiro e continua seu trabalho de locutor e DiretorArtístico da rádio. O sábado, dia muito movimentado com a feira da cidade lhe traz notícias desagradáveis. A cidade recebe um considerável número de gente e de caminhões vindos das cidades da redondeza. As 09h00 da manhã Francisco recebe a visita na rádio de um rapaz, cujo pai tem uma mercearia e lanchonete ali próximo. - Chico Elias! Papai pediu que você fosse lá urgente, que ele tem um assunto para falar com você! Pouco depois Francisco recebe uma informação perigosa. Pergunta o homem da mercearia: -Francisco Elias! Todos os sábados eu recebo aqui vários feirantes que vem em caminhões de algumas cidades. Hoje esteve aqui um 219 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias motorista de caminhão lá de Laginhas me pedindo para lhe dar um recado. - De quem? - Esta semana vocês divulgaram lá na rádio uma notícia sobre um criminoso que estaria acoitado numa fazenda no município de Lajinhas? - Demos sim! No jornal do meio dia! - Pois o criminoso lhe mandou um recado! Que você pare com as notícias sobre ele! Do contrário ele virá aqui acertar as contas com você, na bala! Aquilo soou como um tiro nos seus ouvidos. Ele agradece ao homem e volta para a rádio seriamente preocupado. Vai participar o fato à direção da emissora. Minutos depois Francisco ainda está pálido. O recado foi um choque. Está pensando no perigo daquela situação. Caso o criminoso viesse à sua procura, bastaria perguntar quem era Francisco Elias e qualquer um o apontaria. Enquanto ele, o criminoso, era um estranho. Nenhuma notícia mais será dada sobre o caso do criminoso de Laginhas. Mas Francisco não se sente mais seguro. Compra um revólver com uma caixa de balas e vai aprender a atirar, lá no armazém do tio Miguel. Desenvolve uma boa pontaria. Mas isso não é suficiente para sua tranqüilidade. Surge então algo novo. Coincidência? Francisco já desconfia que elas não existem. Repentinamente a Rádio Nordeste de Natal está interessada em contratá-lo. Francisco se empolga com a possibilidade de trabalhar no rádio na Capital. É uma possibilidade bem oportuna. O irmão Pedro já se encontra em Natal servindo naAeronáutica. 220 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O amigo Edílson encontra Francisco no passeio da Pracinha no sábado à noite. Ele tem notícias do Rio. - Recebí uma carta esta semana da mãe de Nely falando sobre um sarau espetacular promovido no apartamento deles lá no Rio. Falou também do sucesso que você fez por lá como cantor. - É. De fato foram umas férias muito boas. Eu estava precisando mesmo! Inclusive tive oportunidade de conversar com Nely e ela prometeu que iria acabar com as desavenças com a mãe dela, procurar perdoar e se entender bem com ela. - Mas eu tenho outra informação pra você! - Sobre o quê? - Será que Nely havia reacendido os ressentimentos com a mãe! - Esteve lá no apartamento do Major uma pessoa da gravadora Odeon? - Esteve, sim! - Pois esse homem foi convidado lá pelo Major Ney para ouvir você cantar. A dona Júlia me disse na carta, que o homem ficou muito interessado em levar você para fazer uns testes na gravadora e quem sabe, até lançarem você como cantor! - Francisco agora está ligando as coisas. - É! De fato, o Major Ney me perguntou se eu não gostaria de tentar a profissão de cantor... Então foi isso... E falou também que talvez fosse bom fazer uns testes, mas eu falei pra ele que precisava voltar. As minhas férias na rádio iam terminar e eu tinha de estar aqui de volta. - Pois foi! O Major estava mexendo os “pauzinhos” afim de conseguir sua transferência para o Rio. A mãe de Nely me deu todos os detalhes. Ele queria tentar ajudar você profissionalmente porque ama muito a Nely e essa seria a única forma de vê-la feliz. Com você por perto! 221 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Agora eu entendo! Ele até sugeriu que eu trabalhasse no rádio lá no Rio, quando eu falei que cantava apenas pra me divertir e que o meu trabalho é mesmo no rádio... Então foi isso! - Foi sim! Eles estavam tentando fazer de um jeito que você não percebesse. Mas a idéia era essa! Francisco fala a Edílson sobre o momento que está passando com as ameaças que recebeu, de um possível atentado contra a sua vida. Até já estava tentando aprender a atirar. Para se defender. Se fosse o caso. O clima psicológico no trabalho da rádio não estava nada bom. Um mês depois conversa com o Padre Tércio, que o aconselha a ir realmente embora. Caicó já está lhe dando até susto. Este 1965 vai ser marcante na sua vida. De fato, desde uns quatro meses antes Francisco já vinha sendo sondando pela Rádio Nordeste de Natal. Muda-se para a capital deixando a namorada Luzinete em compasso de espera. Natal é uma cidade cativante. Muito movimento. O trânsito, as práias, o aspecto urbano, tudo é novidade. Um ambiente novo. Um rádio moderno. Mais atuante. Mais profissionalizado. Francisco é contratado como locutor noticiarista e disc-jockey, animando programas de comunicação, principalmente com o público jovem. Sua atuação é muito bem recebida. O programa Telefone Pedindo Bis, com patrocínio da Gessy & Lever passa a ser a sua primeira marca de grande sucesso em audiência. Chegando a incomodar outras rádios. Entre elas, a Rádio Cabugi. A emissora de maior audiência na Capital. 222 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco está residindo num pensionato bem próximo do cinema Nordeste e da Rádio Nordeste no centro da cidade, onde trabalha. O amigo Bulhões, que conhecera em Caicó, um paraibano esforçado, vindo de João Pessoa para trabalhar no Batalhão do Exército em Caicó, mora com ele no mesmo quarto no pensionato. Havia muitos civis trabalhando em algumas funções burocráticas no quartel. Bulhões era um deles. De origem também muito humilde, dedica-se com afinco aos estudos e à leitura. Também transfere-se para Natal, vindo trabalhar em um órgão ligado ao Ministério dos Transportes. Bulhões é uma inteligência fértil na constante busca por uma posição melhor na vida. Busca segurança. E um emprego federal é tudo o que queria. Em Natal ele continua fazendo cursinhos para tentar um vestibular e trabalha na repartição federal. Estuda à noite. Residindo com Francisco no pensionato de Dona Paz, um ambiente muito movimentado, repleto de jovens, moças e rapazes, na maioria estudantes vindos do interior. Ha dois ambientes no pensionato. Um em que se acomodam os rapazes e outro para as moças. Embora o salão de refeições seja único. Os jovens estão sempre em contato. Normal que surjam os namoros. Freqüentemente Bulhões traz da biblioteca do cursinho vários livros que devora com muito gosto. Francisco faz parceria com ele em suas leituras. Mas também continua comprando alguns livros nas livrarias de Natal. Já faz cinco meses que Francisco está trabalhando na Rádio Nordeste. O pensionato de dona Paz, onde mora, fica na rua de trás. É muito cômodo para ir ao trabalho todos os dias. O primeiro andar é a rádio. No térreo ha uma sorveteria e colado com ela o Cinema Nordeste. 223 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Tem uma nova namorada. Alguém que acabou de conhecer no pensionado. Chama-se Sandra. Bem jovem. Tem só 16 anos. Francisco tem tido sorte com mulheres bonitas. A Sandra é uma das moças mais bonitas do pensionato. Acabou de chegar para residir ali juntamente com o irmão. A mãe tem negócios com restaurante na cidade. Isso vai dar uma bela história. Mas agora vamos nos ater ao seu trabalho na rádio. Esta manhã um reencontro inesperado vai surpreender Francisco ao se aproximar do prédio da rádio. São 10h00 da manhã. Quem está ali sentado tomando um sorvete? O Major Ney Padilha. - Oi Major! Que surpresa! O senhor por aqui! - Francisco está surpreso com o reencontro. - Que prazer reencontrar você! Como vai? - Estou agora aqui em Natal! Trabalho aqui na Rádio Nordeste! Diz Francisco apontando para o primeiro andar. - Ah! Que bom! Rapaz! Você tem futuro! Eu não tenho dúvida! - Como vai o pessoal por lá? A Nely e a dona Júlia, como estão? Claro que Francisco gostaria de saber sobre a reaproximação das duas. - Estão muito bem! Aquelas querelas entre elas é coisa do passado. Tudo já está superado. Olha! Sua visita foi muito boa para elas. Tenho até que lhe agradecer por isso! - Nada! Major! Não precisa me agradecer. Mas e o senhor? Em Natal? - É! Ficaram alguns negócios pendentes e eu resolvi dar um pulo aqui para resolver. Mas volto logo. Uns dois dias mais e estou voltando para o Rio. - Pois foi um grande prazer revê-lo Major! Dê lembranças a Nely e a dona Júlia! - Obrigado! Muito bom, saber que você está progredindo! 224 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Cumprimentam-se formalmente e Francisco vai ao seu trabalho. Nunca mais veria o Major Ney nem saberia nada sobre ele. Guarda entretanto, a sua imagem como uma pessoa muito educada e pai amoroso. Pronto a fazer qualquer sacrifício para ver a filha feliz. Bem que aquela era uma ótima oportunidade para Francisco esclarecer-se com o Major sobre o amigo da Odeon que ele lhe apresentou em seu apartamento, mas preferiu não tocar no assunto. Vamos deixar isso no passado! Pensa ele. Talvez não se sentisse muito à vontade estando lá e sabendo depois que sua transferência para o Rio teria sido obra das iniciativas do provável sogro. Não se sentia bem pensando isso. Francisco carrega consigo todo o conteúdo machista tradicional da cultura local da Caicó desses tempos. Depender do sogro! Para se posicionar na vida! Isso não é uma coisa que pudesse tolerar. Melhor assim! A vida tinha tanto para oferecer! Nely seguiria sua trajetória. E ele também! A lembrança de ambos desapareceria com certeza na poeira do tempo. O melhor é seguir adiante! E é isso o que ele tenta fazer agora. Já é um locutor de sucesso em Natal! Vamos deixar as coisas acontecerem por si mesmas Major! Pondera ele, batendo seu cartão de ponto na rádio. Está na hora de começar o - Telefone Pedindo Bis. O assunto de sua empolgação literária neste momento é a Psicanálise. O amigo Bulhões está envolvido até os cabelos com este assunto. E traz, de dois em dois, os livros de uma extensa coleção com doze volumes, de Sigmund Freud, o pai da Psicanálise. Os dois vão ler a coleção inteira. Bulhões lê um dos livros e passa-o para Francisco. Quanto conhecimento Francisco está assimilando agora! Um esforço que vale à pena todas as noites. Enquanto a maioria dos colegas do pensionato sai para se divertir. 225 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O s meses passam rápido. Já é 1966. Agora é a jovem Sandra que cruza o seu caminho na longa estrada da vida. Parece ter vindo para ficar. Ao se virem pela primeira vez, foi atração na hora. Dessas que não se explica. Apenas se vive. Os dois estão namorando. Ela é muito bonita. Corpinho de manequim. Bem magra, olhos verdes e cabelos castanhos lisos, pele levemente morena. Inicialmente um namoro sem maiores pretensões. Mas com algumas marcas significativas. A primeira vez que Francisco levou uma namorada para jantar em um restaurante, foi com ela. As praias de Natal nos fins de semana são os seus cartões postais. Onde deixam a marca de suas emoções tão jovens. O mano Pedro Elias Filho, ainda prestando serviço militar na Aeronáutica em Natal, faz contato com Francisco e lhe transmite uma solicitação: - Rapaz! Eu planejei ir agora na Festa de Santana a Caicó visitar papai e mamãe, mas infelizmente não vou poder ir. Eu queria lhe pedir para ir em meu lugar. Seria muito bom para eles. - Até então Francisco ainda não se reconciliara com seu pai. E argumenta com o irmão: - Mas será que Papai vai me receber bem? -Vai! Por sinal, eu já conversei com mamãe e ela me disse que ele está muito contente com a possibilidade de você também ir lá, na Festa. Como eu não vou poder ir, é importante que você vá! - É. Porque não! Ha um fato novo que já serve para amaciar o temperamento de seu pai. O orgulho de ter um filho fazendo muito sucesso no rádio lá em Natal. Pelos comentários que alguns de seus amigos fazem, isso o deixa orgulhoso: - Ah, você é o pai de Francisco Elias! O locutor!... Um pouco de vaidade, em momentos apropriados, não faz mal. Está servindo para reaproximar Pai e filho. Confirmou sua presença na Festa e foi lá. 226 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias S eu pai o recebe muito bem, demonstrando que os ressentimentos haviam passado. Sua mãe fica muito feliz com isso. Chega a compensar pela falta do Pedrinho. Dai por diante os dois estariam definitivamente reconciliados. Retornando para Natal em seguida, Francisco continua aprofundando-se nas suas leituras. Sua passagem pela Rádio Nordeste vai ser relativamente rápida. Oito meses apenas. Mais uma vez a “helicoidal” está dando sinais de mudanças na sua vida. Nesse momento para melhor. A Rádio Cabugi, a emissora de maior audiência na capital já descobriu Francisco. Quer contratar o jovem locutor a qualquer custo. Francisco está agora tentando sua qualificação como Jornalista Profissional, aproveitando-se de uma Lei Federal pós-revolução, de reconhecimento da profissão de jornalista, e que está amparando a todos os profissionais que já atuam nessa área, também em rádio. Só depois disso é que ele estará pronto para um novo passo, dessa vez, na Rádio Cabugi. Com um contrato que praticamente dobra o seu salário da Rádio Nordeste, ele se transfere para a nova emissora. Onde ha ainda mais atuação profissional. Incluindo programas ao vivo com rádio-atores. O seu laboratório na Emissora de Educação Rural está lhe sendo muito útil. Um novo ambiente de trabalho. A sua auto-estima está elevada. Mais empolgação. Francisco se projeta cada vez mais. Logo assume a chefia dos locutores. Mais um ano depois, assume a Direção de Programação da Emissora. E mais um ano e meio após, assume a Direção Geral da Rádio Cabugi. Período que também vai ser curto, como Diretor Geral. Agora, com suas atuações no rádio-teatro da Rádio Cabugi, é o teatro 227 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias propriamente dito que se interessa por ele. Francisco vai atuar no teatro Alberto Maranhão, compondo o grupo teatral de Jesiel Figueiredo. Participa como ator em algumas peças. Com destaque para sua atuação em O Pagador de Promessas, peça de Dias Gomes. É o tempo de recordar as serenatas de anos atrás.ARádio Cabugi tem um programa semanal noturno com seresteiros ao vivo. O Bar da Noite, às quinta-feiras. Duas horas de programa. A Meia-noite, quando o programa termina, os participantes saem para fazer serenatas em algumas residências da sociedade local, previamente combinadas. É um período oportuno para Francisco conhecer alguns figurões da sociedade. O Deputado Roberto Freire é um deles. Aprecia muito as serenatas, incluindo a participação da rádio-atriz Glorinha Oliveira, uma excelente cantora, indo às vezes com os seresteiros até à beira da praia, onde sentam e cantam, acompanhados por violão e bandolim. Amúsica vai estar sempre presente na vida de Francisco. Ele agora reside em outro pensionato próximo à Rádio Cabugi, na Praça de São Pedro, na subida do Baldo para oAlecrim. Poucos meses antes, a namorada Sandra voltou com a mãe e o irmão Webster a residir em João Pessoa. Estão com ele no mesmo quarto do pensionato, o primo Miguelzinho, cursando o CPOR, e o amigo Edílson Bezerra, que também se transferiu para Natal, onde trabalha na CIBRAZEM, outro órgão do Ministério deAgricultura. Durante o dia, Miguelzinho está nos estudos no quartel do Exército e Edílson no trabalho. Em horas de folga Francisco está só em seu quarto. Com suas 228 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias leituras. O amigo Bulhões já não mora mais com eles. Andam falando que ele conseguiu finalmente, uma transferência para o próprio Ministério dos Transportes, em Brasília. Garoto furão! Esse Bulhões. Filho de mãe solteira, tinha muito apreço por ela. Falava nela de vez em quando com muito orgulho, dos tempos em que servia cafezinho na agência dos Correios em João Pessoa. Bulhões é um lutador. Mensalmente enviava algum dinheiro para ela, que ainda residia em João Pessoa. Seu maior sonho, dizia, era poder dar a ela uma vida dígna. Portanto, sua missão primordial é dar-se bem na vida. Limpamente, claro! Bulhões é um homem correto. Deseja crescer na vida sem precisar pisar em ninguém. Para poder dar descanso à sua mãe. E aos poucos está conseguindo. Dá orgulho ser amigo de um cara como o Bulhões. Ele é um exemplo. Estudioso. Esforçado. Inteligente e dígno. Sua presença na vida de Francisco é muito salutar. Os dois lêem bastante. Evoluem juntos. Mas Bulhões parece ir à jato. Tudo nele é apressadinho. Como se o tempo fosse seu maior inimigo. A garra do jovem está muito bem personificada nele. Procura se movimentar em sociedade sem desagradar ninguém. Isso lhe confere uma marca singular. Diría-mos, um sujeito de muita personalidade. Tanto, que fôra confundido antes lá por João Pessoa nos tempos dos maiores apertos entre os estudantes, feitos pela revolução. Haviam confundido bulhões com um sujeito perigoso para o regime militar. Por ser franco em suas atitudes. Mas havia aprendido que nesse tempo não se devia expressar tão veementemente nossos conceitos. Ele está aprendendo a silenciar. Descobriu que esse caminho é mais curto para ele se dar bem na vida. Trata dodo mundo de “Peixadinha”. Você é meu amigo 229 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Peixadinha!... Não deixa brecha a qualquer descontentamento seja lá com quem for. Mas ha o Edílsom, que também gosta de boas leituras. O contato com Sandra agora é na maioria das vezes por carta. Raramente por telefone. Ela ouve Francisco às vezes pelo rádio, cuja transmissão chega muito baixinho lá em João Pessoa. Diz ela. O destino está preparando um capítulo bem significativo para esses dois caminhantes. Está chegando o dia dos namorados. Sandra consegue autorização de sua mãe e avisa que vai passar o dia dos namorados com Francisco, em Natal. Vai ficar também hospedada por poucos dias no pensionato da dona Bilsa, onde ele mora. Sua chegada foi muito aguardada. A tarde está bem quente. Os dois estão no quarto de Francisco namorando inocentemente em uma rede. Mas onde estão dois jovens, plenos de libido e carência acumulada, tudo pode acontecer. E eles quase, quase... Faltou pouco. Coisa de jovens. Ela volta para João Pessoa. Plena de insegurança e inexperiência. Sabia apenas que mensalmente tinha que aparecer aquele sinal de mulher. Talvez pela pressão psicológica da incerteza e da inexperiência, este mês o fluxo não deu sinal. Ela se desespera. Estou grávida! Pensa logo. Só pode ser! Meu Deus estou grávida! E agora? Rápido procura contato com Francisco. Desta vez chora descontroladamente ao telefone. Ele a tranqüiliza. Nesse momento é como se ouvisse seu pai admoestando os filhos verbalmente: - Vocês não mexam com filhas alheias! Quem mexer com a filha dos 230 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias outros tem que casar! Seu Pedro, claro, precisava verbalizar em defesa própria. Afinal o seu clã era completo. Sete homens e Sete mulheres. - Não se preocupe! - Tranqüiliza Francisco. - Avise a sua mãe e a seu tio. Sábado eu vou ai e peço você em casamento! Ela se aquieta. Pelo menos até onde podia. No sábado seguinte Francisco desembarca na estação rodoviária de João Pessoa, onde ela o espera acompanhada do irmão. No almoço do domingo acertam tudo. Estão noivos. E marcam o casamento para um mês depois. A família dela provavelmente estranhou aquela pressa. Mas o jovem queria que fosse assim. Então... E conforme o combinado, um mês depois ela já está em Natal, em sua companhia, num outro pensionato onde Francisco, já havia combinado com a proprietária, que precisava de um quarto só para ele e a esposa assim que casassem. Estão ultimando os preparativos para o casamento. O juiz realiza o casamento em casa mesmo. É comum nesse tempo. Toda a mobília é um guarda-roupa e uma cama de casal. Após se casarem permanecem no pensionato por mais algum tempo, até ele encontrar um pequeno quitinete para alugar. Só dois cômodos. Na verdade apenas um. Dividido ao meio com parede de compensado, nos fundos da residência da família do Doutor Armando Viana. Uma escada bem íngreme por onde acessam a simplória moradia, Uma cozinha, por onde se entra no ap, com um banheiro ao lado e o quarto com uma pequena janela dando para o telhado da casa. Vai residir ali com Sandra. Na esperança de logo se mudarem para um ambiente melhor. Já têm o seu cantinho 231 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias pra começar vida nova. Não vêem a simpliscide do ambiente em que vivem. Apenas o idílio amoroso de marido e mulher. Queriam seu próprio espaço e ali está ele. É o melhor que a vida pode lhes oferecer agora. Mas acreditam estar felizes. Logo acontece o primeiro transtorno, pelo menos para Francisco. Esse é o tempo comum da mais absoluta irresponsabilidade social com o apoio dos poderes constituidos, que fechavam os olhos para o problema. O machismo incongruente determina que tão logo se casem os nubentes devem ter filhos. Era só lembrar o exemplo de seu Pedro e dona Josina. Inicialmente paupérrimos e construindo uma família de quatorze filhos. Esse conceito de reconhecimento da masculinidade é passado de pais para filhos ao longo de muito tempo. E olha, que estamos em plena capital, em 1969. Para o homem, principalmente, é muito significativo e comum, almejar que o primeiro filho seja um homem. Ninguém pensa na necessidade do controle de natalidade, ainda mais em casos de certa dificuldade financeira, como é a situação desses dois. Pelas estimativas, Sandra já estaria grávida. Mas... Já estão casados ha três meses. E a gravidez até agora não se confirmou. Francisco começa a sentir uma sensação esquisita. Algo que não está gostando de sentir. Uma sensação um tanto dolorosa. Não se sente traído, claro. No máximo, inexperiente como era, sem dúvida ela havia se equivocado. Qualquer moça em seu lugar viveria o mesmo trauma da expectativa pior. O problema não é engravidar. Mas ser mãe solteira. Francisco tem plena consciência disso. Pois já havia lido que uma mulher pode 232 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias engravidar sem ter havido penetração vaginal. Portanto, os dois são vítimas. Vítimas das dificuldades culturais desse tempo. Em que não se tem todas as informações necessárias ao equilíbrio familiar. E agora? Pensa Francisco... Mas para grande alegria dos dois, o mês seguinte confirma a primeira gravidez. Nove meses depois nasce então Elissandra. Sua chegada está sendo muito festejada. Um divertimento para a jovem família. Francisco se emociona com o bebê nos braços. O próximo certamente será um homem. Mantém as espectativas. E a porteira de Sandra havia sido definitivamente aberta com alguns medicamentos que certamente ajudaram em sua fertilidade. Onze meses depois, nasce a segunda filha. Eliana. A primeira era bem branca. A Segunda, é um pouco moreninha. Parece justo. Uma leva os cromossomos de pele do pai, e a outra os da mãe. Duas meninas. E o menino! Nada! Nesse ambiente onde vivem há uma senhora, a dona Albani, esposa do doutor Armando, uma pessoa de espírito muito bondoso. Por um bom tempo vai ser como uma mãe para a inexperiente Sandra, que casara com apenas 17 anos e já acalenta duas filhas. Nada é por acaso! Precisaria existir a dona Albani em seu caminho nesses tempos tão infantís em termos de conhecimentos da vida de casada, para lhe prestar um auxílio inestimável. Agora sim! Já ha preocupação do casal na contenção de filhos. E após a segunda filha, passam a usar os mecanismos comuns para evitar gravidez indesejada. Já vai dar muito trabalho criar as duas meninas com recursos financeiros tão parcos. 233 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco se contenta em não ter um filho homem. Se Deus decidiu assim... Assim será. Os tubos de ensaio e os estudos com o genoma humano ainda não entraram em cena. No trabalho na Rádio Cabugi, tem algo novo acontecendo. Após passar por uma chefia do quadro de locutores e posteriormente assumir a direção de programação da emissora, agora Francisco vai assumir a Direção Geral da rádio. Não por muito tempo. Mas de qualquer forma, uma performance considerável, alcançada num espaço de tempo relativamente curto, que lhe assegura um novo status profisisonal. E faz só três anos que ingressou na Cabugi. As bases do casamento é que não estão devidamente solidificadas. Em diversas ocasiões, depois de passar o arrôbo inicial, Francisco se dá conta de algumas reflexões inevitáveis. Ele nunca pôde amar integralmente uma mulher. Portanto, Sandra não seria sua resolução definitiva. Aquela trava psicológica de sua puberdade continua existindo no mais íntimo de seu ser. Por vezes, imagina-se ainda solteiro. Não devia ter se casado! São pensamentos amargos. Descobre por outro lado, que há diferenças intransponíveis de ambientação cultural entre ele e a esposa. Compreende que é muito difícil para ela transpor essa barreira e pior, não ha nada que ele possa fazer. Ou seja, tudo sinaliza para um provável fracasso desse casamento. Ele continua sua trajetória de conhecimentos através da leitura. Enquanto a esposa enfoca apenas os seus deveres do lar. Que a propósito, procura desempenhar muito bem, na tarefa de amparar suas filhas. Mas o distanciamento entre os dois já havia assinalado seu ponta-pé inicial. Sem chance de mudança de rota. O que fazer? Francisco 234 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias medita a respeito e pondera em favor da unidade da família, até onde ele pode conceber. Duas filhas lindas e inocentes não deveriam pagar por erros ou enganos cometidos por seus pais. A cada dia cresce o amor por elas. Enquanto pela esposa o sentimento se dá em sentido contrário. Assume então consigo mesmo um compromisso de tolerância e de sacrifício, se for o caso. Jamais abandonaria sua esposa e suas filhas. Está resoluto a pagar o preço que for preciso, para manter-se ao lado delas. Quantos em seu lugar abandonariam o barco? Não ele! Com todos os princípios que já conhece e defende. Deus as havia colocado em seu caminho por alguma razão. Ele ainda não se aprofundou nos estudos da espiritualidade para compreender tudo. Mas vai deixar o tempo processar o seu cadinho de fusão. Vai até onde o futuro não lhe inspirar o medo. O sentimento de responsabilidade paternal da-lhe coragem para isso. A despeito de não estar preparado para semear no coração das filhas as raízes de um amor paternal equilibrado. Sabe que as ama, mas não sabe expressar esse sentimento suficientemente claro. Talvez algum ranço comportamental herdado de seu pai. Só muitos anos depois, quando sua bagagem interior já terá alcançado um grau considerável de transcendência e de conhecimento espiritual, é que vai se dar conta de quanto as amou e não pôde vivificar isso de forma prática e lúcida no tempo hábil. Esse histórico deve refletir-se nelas como um pedido de perdão da parte dele. Enfim, o coração tem razões que a própria razão desconhece. É sempre muito reconfortante um olhar ao passado, quando se busca o arrependimento. Seis meses se passou e agora a “helicoidal” dá sinais de declínio pela primeira vez desde que saiu de Caicó para Natal numa constante 235 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias trajetória de subida. Agora tem outra novidade no ambiente de trabalho. Dessa vez para pior. Agnelo Alves, que havia sido cassado pela Revolução Militar de 1964, retirado da Prefeitura de Natal, está na rádio para conversar com Francisco. - Elias! Como você sabe, eu fui cassado! Portanto, tenho que voltar para as empresas do nosso grupo! - A família Alves é dona de um jornal,ATribuna do Norte e a Rádio Cabugi. - Você está no meu lugar! Mas não queremos que você deixe a gente! Sabemos do bom trabalho que você vem fazendo na administração da rádio. Então sugiro que acertemos as suas contas e você volta para a Direção Artística. O que acha? Francisco pondera que é melhor aproveitar a oportunidade e sair definitivamente da rádio, pensando que não seria interessante regredir a um posto anterior dentro da mesma empresa. Afinal, o cargo de Diretor Geral já lhe rendera algum dissabor com punição de alguns funcionários, merecidamente, mas tais atitudes administrativas sempre deixam seqüelas de relacionamento, o que é natural. E esclarece que aproveitará para viabilizar um projeto antigo.Acriação de uma agência de propaganda em sociedade com o amigo Rossini Ferraz. O princípio de qualquer negócio é sempre trabalhoso e difícil. Ainda mais agora. Estamos em fins da década de 60. A economia natalense está em queda livre. A agência Idéia Propaganda não prospera conforme o desejado. Os clientes quase não anunciam. O mercado encolhe. O sócio Rossini decide ir embora para Brasília, onde, segundo dizem, existem muitas oportunidades. 236 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C omentam na cidade que as empresas fazem esforços para cumprir compromissos de empréstimos com o Banco do Brasil, que se Francisco consegue com um amigo diretor da Rádio Trairí, uma pequena emissora, um espaço para locução, apresentando diariamente o noticiário do meio-dia. Um salário mínimo. Pelo menos o feijão com arroz e o leite das crianças dava para garantir. Além disso, alguns cachês esporádicos de gravação de comerciais para rádio. Mas mesmo ai, a atividade recrudesceu consideravelmente. É nesse ambiente difícil, com sua helicoidal em baixa, que Francisco precisa encarar a manutenção do casamento. Ha um amigo seu, também locutor de rádio em Natal. Chama-se Carlos Alberto. Virá a ser mais tarde uma figura de projeção, como Senador da República e fundador da televisão Ponta Negra. Carlos Alberto vive os mesmos tempos difíceis dessa época. E aconselha Francisco: - Vá embora rapaz! Vá pra Recife! Eu conheço aqueles locutores dos estúdios de lá! Você é até melhor do que alguns deles! Outra vez ha alguém em sua vida sinalizando para que dê um novo passo a frente. Mas como? Se pergunta. Isso até que seria muito bom. Mas tudo na vida tem a sua hora. O seu momento. A infinita inteligência do Ser Supremo parece preparar o ambiente natural das coisas e deixa girando ao seu redor até você cair dentro do ciclo. É o que vai acontecer com ele Mas não exatamente agora. O dissabor das dificuldades arrefece ainda mais o tempero do casamento. Pela primeira vez ele repensa sua vida, imaginando suas dificuldades de forma mais concreta. E se dá conta que o casamento de ambos não se deu por amor. Mas por necessidade. Afinal, a trava 237 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias dos sentimentos ainda permanece dentro dele desde a puberdade. Mas não fará como muitos. Não abandonará sua família. Não é um covarde. Não lhe agrada a idéia de ver suas filhas crescendo sem a presença de um pai por perto. De novo ele se vê diante de sua consciência. Ainda não está preparado para dar a elas o amor em forma de uma convivência paternal adequada, mas está pleno de sua responsabilidade e ama as suas filhas. Apesar do transtorno psicológico com a dificuldade financeira, ele vai continuar seu compromisso de família. Elas não têm culpa. São apenas mais duas vítimas das circunstâncias sociais da época. Francisco está descobrindo de forma dolorosa algo que muitas pessoas talvez ainda nem se dêem conta. Eles estão nús diante de suas vidas. Poderia ter sido diferente? Não há como saber. Ha só o que viver. E um preço a pagar. Quantos jovens terão cometido o mesmo engano! Assim ele está tomando consciência dessa dura realidade. Mas já é tarde. Agora lhe resta a grande satisfação de poder ver suas filhas crescerem estando ao lado delas. Para piorar a carga emocional, nesse momento elas estão doentes. Ha uma infecção de pele com microorganismos desconhecidos que os médicos não conseguem tratar. As mãos e os pés das crianças estouram em bolhas que coçam sem deixá-las dormir. O doutor Armando, é um farmacêutico. Fez o que pôde, tentando fórmulas de pomadas. Por fim recomenda levá-las ao melhor médico de pele, um professor da Universidade. Nem ele curou as crianças. Esta noite, o SER supremo manda um recado para eles. Por volta das 238 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias 19h00, tem uma preta com um pano amarrado na cabeça sentada na varanda do Doutor Armando. É a lavadeira de roupa. Está aguardando que dona Albani lhe traga uma trouxa de roupas para lavar. Francisco aproxima-se e senta com o Doutor Armando lamentando-se da doença das crianças, informando que o tal médico recomendado por ele havia dito, após ver todas as receitas médicas que já haviam receitado para elas, que as meninas só estariam curadas com uns cinco anos de idade, quando o organismo delas já teria desenvolvido defesas naturais para combater a doença. A preta lavadeira então pergunta: - Vocês já deram mamão em jejum a essas crianças? O Doutor Armando, em sua cadeira de balanço, víra-se para ela e pergunta: - Mamão! Dona Maria? - Sim! Isso é um micróbio que elas pegaram, que só desaparece tomando mamão em jejum. - A senhora tem certeza dona Maria? - Tenho seu Armando! Eu já curei meus filhos assim. - Diz ela com toda convicção. DoutorArmando volta-se então para Francisco: - Não custa tentar, não é? - E explica: - De fato o mamão tem uma substância química.... - E descreve o que poderia ser de fato a cura para as meninas. Ele não havia pensado nisso! De manhã logo cedo Francisco vai ao mercado e compra o mamão mais bonito que encontrou, já maduro. Voltando rápido a tempo de Sandra já preparar as mamadeiras da manhã com o mamão para as meninas. Duas vezes ao dia, pela manhã e à noite elas deverão comer o mamão. Dissera a preta. Na segunda noite depois disso, as crianças já conseguem dormir sem 239 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias se coçar nem incomodar. Todos os dias pela manhã, e à noitinha, a alimentação delas é um mamadeira de mamão batido no liquidificador apenas com água. Uma semana depois as bolhas nas mãos e nos pés das crianças já estão secando completamente. E menos de um mês depois estão completamente curadas. Coincidência?Acaso? Francisco pondera: Porque a preta Maria estava ali naquele exato momento? A Francisco e Sandra só resta agradecer a Deus. Havia sido Ele. Não tinham dúvida. Não poderia haver outra explicação. Haviam recebido a ajuda D’Ele através daquela preta humilde. É muito comum nessas situações, as pessoas afirmarem: foi coincidência! Foi o acaso! Mas Francisco descobre um detalhe no mínimo curioso em torno dessa experiência de vida. A todas as pessoas com quem conversou sobre o fato, e que afirmavam tratar-se apenas de coincidência, o fato de a preta Maria estar ali naquela noite, a todas essas pessoas ele tem perguntado: - Como anda sua relação com Deus? E curiosamente, nenhuma delas tem se confessado estar vivendo tão próximo de Deus. Ou seja. É muito mais cômodo, para aqueles que negam a presença do Criador sempre ao nosso redor, confirmarem sua descrença acreditando no acaso. É mais fácil para elas acreditarem nas meras coincidências, do que aceitar que Deus exista e que crie as oportunidades para nós. Os seus filhos. Quão miseráveis somos nós! Mentes doentias. Mentes empobrecidas. Mentes recalcitrantes. Mentes inconformadas. Sem pretender ser um visionário, mas pessoas assim haverão de descobrir Deus através de muita dor e agonia. É da sua própria natureza endurecida. E permite que soframos para poder-mos ir até Ele, da única maneira 240 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias que se pode. Pela dor. Muitos outros fatos durante a vida de Francisco virão confirmar essa sua teoria. Teoria da suprema necessidade da dor. Em Natal, ele está vivendo um momento difícil. Não há dinheiro para o cigarro. Francisco é um fumante ativo. É bem doloroso quando está sem cigarros e precisa dividir um com o amigo operador da mesa de som na rádio. Mas Francisco tem esperanças de que tudo possa melhorar. Não sabe como. Mas tem esperanças. A esperança parece ser um mecanismo da consciência humana capaz de transmitir uma mensagem ao Criador. Coincidência? Bem, outra vez a “helicoidal” está se movimentando com ventos a favor. Ha um viajante de Recife que semanalmente visita Natal vendendo gravações de comerciais de rádio de um estúdio de gravação para os comerciantes locais. Ele descobre Francisco e se interessa pelo jovem locutor de voz muito significativa. O viajante passa na rádio, mas Francisco ainda não chegou. - Você conhece o Paulo Carneiro Leão? Aquele viajante da gravadora de Recife? - Pergunta o operador da mesa de áudio. - Já ouvi falar. Mas não conheço pessoalmente. - Ele esteve aqui hoje pela manhã a sua procura! - Procurando por mim? Sobre? - Não sei! Ele quer falar com você! Deixou esse papel com o endereço do hotel onde está hospedado. E pediu pra você dar uma passada lá após o jornal do meio-dia. - O que será que ele quer comigo? - Pensa Francisco. 241 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias T erminado o noticiário que apresenta na rádio ao meio-dia, ele vai ao hotel e procura pelo Sr. Paulo Carneiro. Momentos depois o senhor aparece. É um homem já de certa idade. Deve ter mais de sessenta anos. Após se apresentarem ele pergunta: - Escuta! Você não gostaria de trabalhar em Recife nas gravadoras? - Imediatamente Francisco recorda o conselho que ouvira do amigo Carlos Alberto. Mas parece indeciso. A proposta o pegou de surpresa. - Você pode pedir uma licença na rádio, de uma semana e ir comigo. Eu regresso a Recife sempre no sábado e na quarta-feira estou em Natal de novo. Se você não gostar volta comigo. Mas tenho certeza que você vai gostar! Sua voz é muito boa e podemos aproveitar você muito bem lá na gravadora Cinesom. Francisco então lembra que o irmão Pedro já está residindo em Recife, transferido para o Quartel Geral da Aeronáutica, na capital Pernambucana. - Pois é! Eu até tenho um irmão que está morando lá. Estive em Recife ha poucos meses atrás no casamento dele. Vou ver se consigo a licença na rádio. Combinam para se encontrarem no Hotel no sábado logo cedo, caso ele resolva viajar. Francisco conversa então com seu amigo diretor da Rádio Trairi, falando dessa oportunidade e ele prontamente, não só lhe concede a licença, mas também o estimula a ir e lhe adianta algum dinheiro para a viagem. No sábado está a caminho de Recife após contatar o irmão Pedro. O Sr. Paulo Carneiro deixa-o na residência do irmão no bairro deAfogados. 242 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N a segunda -feira logo cedo o irmão Pedro, a caminho para o Quartel, deixa Francisco no edifício onde se localiza a gravadora no centro da cidade. É cedo. Oito horas. Francisco sobe pelo elevador e se apresenta no estúdio. Apenas o proprietário está lá quando ele chega. - Ah! Você é o rapaz de Natal! O Paulo me falou de você! Estamos curiosos para ouvir sua voz. Ele afirma que você é um excelente locutor! Permanecem conversando. O homem fica mais empolgado ao saber que Francisco também é redator publicitário. E explica que acontece de chegarem muitos trabalhos através dos próprios clientes e ha necessidade de um bom redator. Aos poucos os locutores free-lancers e demais funcionários da gravadora vão chegando. Francisco vai sendo apresentado a cada um deles. O Paulo Carneiro Leão chega também e já entrega a Francisco o breafing de alguns textos para redigir. Francisco redige os textos e grava alguns em dupla com os melhores locutores comerciais de Recife nesta semana. O amigo Carlos Alberto tinha razão. Ele se iguala a qualquer um deles. Resolve então, ficar em Recife uma semana. Paulo Carneiro volta na quarta-feira à Natal, já levando algumas gravações feitas por Francisco em Recife. No sábado seguinte Paulo Carneiro está de volta. Mais trabalhos de redação e locução para Francisco, que durante a semana também gravou textos comerciais para rádios e TVs de Recife, com ótima receptividade entre as agências de propaganda. 243 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E stá começando um novo ciclo profissional para o jovem locutor. Já faz 15 dias que Francisco está experimentando a nova oportunidade profissional na capital pernambucana. Nesse período, já ganhou mais dinheiro do que ganharia em um mês em Natal. Já pode mandar algum dinheiro para a esposa. E um recado, através de Paulo Carneiro. - Diga a ela que vou ficar aqui mais quinze dias. Que ela vá se organizando para a mudança. Um mês depois, com a ajuda do irmão Pedro, Francisco já alugou casa para morar com a família no bairro de Jardim São Paulo. Volta à Natal para providenciar a transferência definitiva com sua família.Um novo passo está dado. Ha um futuro promissor exigindo que ele se posicione em sua nova trajetória. Ha um novo astral em sua família. A nova oportunidade profissional em Recife veio na hora certa. Graças a Deus por intermédio de Paulo Carneiro Leão. ACASO? Ou algo providenciado pela Lei Suprema de causas e efeitos? Francisco agora já pode voltar ao exercício de suas leituras. Comprar os seus livros. Já ha uma grande carência acumulada pela falta de dinheiro. Volta a ler avidamente. O passo seguinte, é entrar para o círculo de locutores profissionais também no Estúdio Center, uma outra produtora de áudio e cinema publicitários. Seguindo a orientação de seus companheiros Fernando Freitas e Rudi Barbosa. Através da Center ele vai experimentar sua primeira aparição no vídeo, como garoto propaganda em um comercial de TV. Essa oportunidade é ímpar, para projeção também de sua imagem. Logo surgem outros comerciais de TV. 244 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias R ádio Jornal do Commercio. Devia estar registrado em algum arquivo velado da Natureza que dirige os destinos dos seres humanos, que o locutor Francisco Elias faria parte de seus quadros. O companheiro Ribas Neto, também locutor nas gravadoras, vai chefiar a nova equipe de locutores da Rádio. E tem um convite para Francisco: - Elias! Eu gostaria que você participasse do nosso quadro de locutores na Jornal do Commercio. Estou reformulando o quadro e preciso muito de você. Vamos lhe colocar em um horário que não atrapalhe seus trabalhos free lancers aqui na gravadora. De meiodia às três da tarde, certo? No dia seguinte, Francisco já vai iniciar sua atuação na rádio. Uma emoção. Um momento especial. Ao entrar pela primeira vez na cabine de locução. Ha uma mesa bem grande com um microfone pendurado sobre ela. Francisco senta e aguarda. Suas lembranças o levam de volta rapidamente a Caicó. As cenas passam rápidas. Lá está Inácio Bezerra na mesa de cervejas no bar da Pracinha, com aquele amigo interessado em levar Francisco para Recife. Para esta rádio. Lá está também, em rápido flash de sua lembrança, o amigo Vicente Modesto, o do cafezinho, lhe recomendando para ir embora de Caicó. Francisco está realmente emocionado. Estava escrito. Um dia trabalharia nessa emissora de rádio. Pensa ele. O operador da mesa de áudio dá sinal através da janela de vidro, avisando que vai abrir o microfone. E Francisco inaugura a sua voz pela Jornal do Commercio. Um momento para jamais esquecer. Agora pode realmente sentir a enorme distância em termos de grandeza, entre o microfone humilde do SPVS e uma grande emissora de rádio como esta. Recife estava predestinada em seu roteiro profissional. 245 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Q ue mão estaria agendando esses “acasos” em sua vida? Uma escalada profissional, pontilhada de fatos relevantes. Uma realização pessoal na profissão que escolhera. Sem dúvida. É motivo de muita satisfação, saber que seu nome está agora vinculado aos grandes profissionais do rádio no Nordeste, afinal, Recife é nesse momento o maior celeiro, já tendo revelado grandes nomes. Francisco sente-se orgulhoso com as oportunidades que aos poucos vão surgindo. Não demora muito, acontece uma grande chance, pelas mãos do amigo Fernando Freitas, também locutor, já muito prestigiado no meio profissional, cuja empatia com o jovem Francisco foi imediata, de ambas as partes. Bons amigos dali em diante. Ele acaba de receber um convite prestigioso. Vai chefiar a equipe de locutores do Canal 6, TV Tupi, Emissora do grupo das Associadas, criado porAssis Chataubriend. - Elias! Como vai seu trabalho na Jornal do Commercio? - Fernando quer saber. - Vai indo! - Tenho uma proposta pra você! Fernando então lhe fala do convite que recebeu e que deseja levá-lo também para a televisão Canal 6. Locução em off. Trabalho parecido com o do rádio. Nesse tempo nada é gravado antecipadamente. Tudo é feito ao vivo. Uma cabine de locução. Um monitor de TV em Preto e Branco, um microfone sobre a mesa e uma pequena pasta com os textos de chamadas e créditos da programação, textos comerciais, textos foguetes para serem lidos na transmissão do futebol, tudo ao vivo. A luz vermelha acende e o locutor fala o texto. Explica Fernando. Não ha ainda a televisão moderna, em cores. Que só acontecerá dois anos depois. A opção está feita. Francisco troca a Rádio Jornal do Commercio pelo trabalho na TV Canal 6. Um novo passo. Novo 246 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias desafio. Novas conquistas. Com pouco mais de um ano de Canal 6, surge outra grande chance. A televisão vai fazer testes com os seus locutores e escolher um para ocupar uma cadeira nos tele-jornais da emissora. São cinco locutores a fazer o teste. Escolheram Francisco. Outra vez “o acaso?”. Pois este será seu grande marco na carreira profissional em Recife. A partir dai surgirá um novo astral totalmente renovado. A força da imagem. O talento que vai mostrar outras faces. Novas revelações. Novo aprendizado. Novos momentos para seu crescimento profissional. E também, o inevitável. Agora Francisco vai descobrir um outro lado da força de sua imagem no público feminino.Vai sentir o impacto do assédio. As relações no casamento nunca melhoram. Estacionaram, mas não melhoram. Apesar das novas perspectivas financeiras da família. Sandra cumpre exemplarmente as suas funções de dona de casa cuidando dos filhos e da casa. As meninas estão na escola, tudo parece normal. Ou quase tudo. A nesga de amor entre os dois estreita-se ainda mais. Ha dias em que Francisco pensa que vai se romper. Não há possibilidade de um diálogo mútuo adequado e estabilizador. Ele continua lendo muito. Mas Sandra não assimilou a leitura. E não consegue acompanhar culturalmente a evolução de esposo. Isso é um dos motivos do crescente distanciamento de ambos. Francisco se ressente em não poder discutir idéias inovadoras com sua companheira, sobre assuntos que ela desconhece. Ele até teme magoá-la ao tentar buscar algum diálogo cultural. Algumas vezes até já tentou. Mas a conversa é só um monólogo. Ele então evita as conversas de natureza literária. Ha um fato novo em suas vidas. Marina, irmã de Francisco, que já residira com eles em Natal agora 247 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias está de volta para ficar com eles em Recife. Deseja continuar estudando e trabalhando. Está buscando sua oportunidade na vida. Outra vez ela é acolhida por eles. Vai ser sempre assim entre os filhos de Pedro e Josina. Ha sempre um estendendo a mão para o outro. Que maravilha de exemplo! Que herança de personalidade maravilhosa seus pais os havia ensinado. Talvez adivinhassem que no futuro seus filhos iriam necessitar desses vínculos. Jardim São Paulo é um bairro distante do centro. Uma pequena casa numa rua de terra, ainda não calçada. Mas dá para acomodá-los bem. O dia todo ele precisa estar na cidade. Só volta à noite. Agora seu tempo se divide atendendo o chamado das gravadoras durante o dia e à noite no telejornal da TV. A primeira dificuldade onde residem, é o barulho ensurdecedor das aeronaves voando baixo na direção de pouso do Aeroporto Guararapes. Passam a não mais que 100 metros sobre as casas. As meninas têm dificuldade em se habituarem enquanto dormem. Geralmente acordam sobressaltadas com o ruído. Mas algumas semanas depois já se acostumaram. O ser humano tem a capacidade de se adaptar ao meio, como nenhum outro animal. A imagem do nosso locutor e noticiarista de TV agora chega a Caicó através das repetidoras do Canal 6. Um orgulho para a cidade. Principalmente para a família de Pedro Elias. O seu filho é o locutor da televisão, entrando em suas casas todas as noites de segunda a sábado. Sua primeira visita à cidade no período da Festa de Santana é um acontecimento especial. - Olha lá! É o Chico Elias! O nosso repórter da TV! - Acenam as pessoas quando ele passa. Sua auto-estima está muito elevada nesse momento. A “helicoidal” 248 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias está mesmo sacudindo a sua vida. - Francisco Elias! Como vai? - É o Thiago, dirigente de um centro espírita kardecista que o cumprimenta pelos corredores da TV Canal 6. - Olá Thiago! Como vai seu programa de Rádio. - É exatamente sobre isso que eu quero lhe falar. Thiago mantém um programa de rádio semanal na Rádio Tamandaré, uma co-irmã das Associadas existente ali no mesmo prédio da TV. - Estou precisando muito de sua colaboração. Diz Thiago. - Como assim? - Precisamos de um locutor, como você, para ajudar na apresentação de nosso programa. Ha muito material, notícias e crônicas, que será bem melhor se apresentado por um locutor profissional. - Está bem. É uma vez por semana, não é? - É sim. Você pode nos ajudar? - Qual é o dia do programa? - Gravamos o programa todas as quintas-feiras à noite. E vai ao ar nas sextas às 22h00. Em meio a tantos outros locutores naquele ambiente, não só da TV mas também da Rádio clube de Pernambuco e a Tamandaré, no mesmo prédio... Por quê Thiago escolheu exatamente ele? Ah! Francisco! Você não sabe. Mas a mão do Grandioso está agendando um fato importante em sua vida e você vai precisar desse centro espírita. Como veremos tempos depois. Não será uma coincidência. Francisco já leu algumas obras de Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, O Evangelho Segundo o Espiritismo e outras obras correlatas de vários autores, incluindo Chico Xavier e obras 249 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias psicografadas transmitidas pelo espírito de Emmanuel e tem interesse em pesquisar o espiritismo mais de perto. Essa pode ser uma boa oportunidade. Aceita o pedido de Thiago e passa a colaborar com ele na apresentação do programa. (Ver foto). O centro de Thiago se notabiliza pelas ações de socorro espiritual, receituário mediúnico e de desenvolvimento de novos médiuns. Será outra ocasião para ponderações sobre a mão do destino, acaso, ou Lei do Carma, seja qual for a opinião que se tenha sobre fatos dessa natureza, que marcam a vida das pessoas, inclusive a do nosso locutor. O grande acontecimento da cidade no momento é o concurso anual da Miss Pernambuco. Um evento que o canal 6 de Recife transmite ao vivo direto do Ginásio Geraldão. É o primeiro ano do concurso com transmissão em cores pela televisão. Francisco é escalado para a apresentação do evento, juntamente com a amiga Carmem Tovar, também apresentadora do Canal 6. (Ver foto) Um grande momento de sociedade e de beleza. O ginásio está super lotado. Ha representantes de muitas cidades do interior. E na capital, incluem-se vários clubes, sociais e de futebol. Uma festa lindíssima. Muita animação. Cada torcida leva ao Geraldão a sua charanga. Para fazer ruído e torcer com a presença de sua candidata na passarela. Como a transmissão é ao vivo, tudo tem que ser bem cronometrado. Ao término de cada etapa do desfile, que são três ao todo: em roupa social, em roupa representativa e em maiô, ha os intervalos comerciais. Que duram no máximo 5 minutos. Tudo tem que andar muito rápido. Nos bastidores ha muita agitação. Meninas que ajustam a 250 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias maquiagem, outras o cabelo, outras que choram de nervosismo, outras que passam quase peladas só de calcinha trocando de roupa às pressas, peito de fora, tudo que se possa imaginar em algo assim tão apressado pode ocorrer, quando existem mais de vinte candidatas concorrendo ao título. Ha um momento decisivo, em que o juri escolhe apenas 5 candidatas e através delas serão escolhidas as 3 finalistas. Nesse momento ha uma indecisão do juri. Um empate. Isso não estava previsto. E por alguma razão está demorando mais que o normal para sair o resultado final. A comissão do júri confabula e não decide à tempo. Os 5 minutos do intervalo comercial já se foram e a emissora está rodando mais 3 minutos de comerciais. O telespectador não tem paciência. A audiência deve estar caindo. O que é totalmente imprevisto. Mais que isso é inaceitável. Uma situação atípica e totalmente imprevisível. Estava tudo tão bem programado... Com vários ensaios e tudo mais... Ninguém sabe o momento exato em que o júri vai decidir qual a candidata vencedora. Pelo serviço de comunicação interna através de pontos de ouvido Telex, os apresentadores são avisados da situação imprevista: - Elias e Carmem! - Eles se encontram agora nos bastidores. - Vão para o palco! Tentem enrolar como puderem, pois já rodamos os comerciais duas vezes e a transmissão tem de continuar. Inventem alguma coisa! - Grita pelo fone de ouvido o moço que dirige a transmissão no caminhão de externa. Eagora? É o jeito! Vamos fazer o quê? Pensa Francisco entrando no palco. Carmem que o acompanhava, sente as pernas fraquejarem e retorna às pressas para os bastidores, deixando Francisco sozinho 251 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias entregue às feras. Em fração de segundos Francisco imagina uma maneira criativa de embromar a platéia, para estender o máximo que puder o tempo de chegada do resultado. Inspiração Repentina! Sem tempo para avaliar se daria certo ou não! Lembrou-se das inúmeras torcidas organizadas ali presente. Os clubes de futebol! Eis a grande saída para ganhar tempo! - Atenção Elias! Câmera 1 em Elias! - Grita o diretor de TV Adel Barros. - Vai! Elias! Francisco tem à mão uma folha de papel. O público imagina que ele já está com o resultado nas mãos. - Vamos saber agora, quem é a candidata eleita ao Miss Pernambuco deste ano!.... Todas as charangas fazem um grande barulho. Claro, cada torcida espera que sua candidata seja a vencedora. - Quero saber aonde está a torcida do Sport Clube do Recife! O ginásio vem abaixo com tanto barulho! Todos estão pensando que a vencedora do concurso foi ela. - Mas a do Esporte? Exclamam torcedores do Náutico. O diretor de TV está gritando feito maluco lá dentro do caminhão de externa. - Virem as câmeras para a platéia! Câmera 3 Me dê a torcida do Sport! Até ele, que não sabia de nada, também torcedor fanático do Esporte, imaginou que a candidata era a vencedora. - Injustiça! Injustiça! Injustiça! Uuuuuuu! - Fazem côro algumas senhoras da melhor sociedade local, sem poder aceitar aquele resultado. - A candidata do Náutico é dez vezes mais bonita que aquela moça! Isso é um desclabro! - Esbraveja uma delas. 252 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Impressionante! Dali de cima do palco nosso apresentador observa o impácto de sua informação sobre aquela platéia apaixonada. Como é fácil conduzir as massas... Pensa ele. Já começam a vaiar a comissão julgadora. Alguma coisa tem que ser feita. E Francisco resolve assumir de novo a situação. Até aí rolou cerca de um minuto com o borburinho da platéia. O apresentador está ao microfone chamando a atenção do público, informando que houve um engano. Silêncio total. - Mas que cacada foi essa? Desabafa o diretor de TV que está conduzindo a transmissão. Quando a pressão baixa na platéia, Francisco continua: - É!... Vocês me desculpem, mas eu... preciso saber onde está a torcida do Náutico!!! E bota mais empolgação na chamada. O ginásio vem abaixo outra vez. A torcida do Náutico responde com grande entusiasmo. O público delira. Uns aplaudem. Outros assobiam. Imaginando que sua candidata é a vencedora. A essa altura, a ficha já caiu para o diretor de TV, que não é bobo. Alguém acaba de lhe informar que o resultado ainda nem saiu. Já sacou a grande saida de Elias! E berra de empolgação no interfone: - FECHA NA TORCIDA DO NÁUTICO! - Beleza Elias! Uma idéia genial! Câmera 2, Fecha na moça que está chorando! Já se foi mais um minuto. De novo a temperatura baixa na platéia. - Está tudo muito bom! - e olhando para o papel que tem nas mãos o apresentador continua - Mas eu tenho a maior surpresa para vocês! Alguém ai sabe onde está a torcida do Santa Cruz! Em meio a toda essa empolgação o público já concluí alguma coisa: ele está mexendo com as torcidas das candidatas finalistas! Portanto, a vencedora deve estar entre elas. Cada charanga queria fazer mais 253 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias barulho que a outra. Minha nossa senhora! Exclama Adel Barros, o nosso diretor de TV, que por sinal é ateu confesso, dando saltos de emoção lá no caminhão de externa. E assim por diante, Francisco mantém a agitação por mais de 5 minutos, até chegar a decisão do juri. Ao ser anunciado o resultado definitivo, a Miss Pernambuco foi outra completamente diferente. Venceu Serra Talhada. As torcidas chiaram e espernearam de descontentamento. Mas a transmissão ao vivo foi salva. Mexendo até com o público de casa que acompanha pela TV. Tão logo percebeu a armação de Francisco para ganhar tempo, a amiga Carmem se apressou a entrar no palco e também participar da brincadeira. Não sem antes Francisco cochichar no seu ouvido: - Não deixe ninguém perceber que é de mentirinha! - Na televisão tudo é assim. Tudo é irreal, mas tem que parecer que é real. Terminada a transmissão Francisco está lá atrás no caminhão de externa recebendo os cumprimentos dos companheiros de trabalho e também da própria diretoria das Associadas, que logicamente percebeu o engenho de sua criatividade para salvar a transmissão. - Você foi um artista! - Exalta o diretor da transmissão. Nesse momento, Francisco lembra de algo. Como se alguém houvesse batido no seu ombro lhe lembrando: - “Esse meu filho um dia ainda vai ser artista!” Vovô Pai Chico Elias! Está sendo lembrado naquele momento por algo que lhe dissera a mais de trinta anos atrás. Televisão tem ritmo. Se sair do compasso o telespectador percebe e a audiência cai automaticamente. E a melhor fórmula é a emoção. Ninguém havia ensinado aquilo a Francisco. 254 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E le estava descobrindo ali, na prática, na base do improviso e da imaginação. Quem sabe lidar com ela está sempre bem no vídeo. Profissionalmente, até aquele momento, essa era a sua maior emoção. Salvar do caos uma transmissão ao vivo na televisão. Logo essa! O primeiro Miss Pernambuco transmitido em cores! Apenas com um gesto de criatividade. - Está certo vovô! Isso foi coisa de artista mesmo! - Pensa ele, rendendo suas homenagens ao avô já falecido. Seu ego hoje vai dormir muito satisfeito. Com alguns whiskys a mais para amaciar. Francisco nesse tempo segue o ritmo dos pernambucanos. Afinidades com o copo. Não por vício. Por diversão. Até o dia em que, por excesso tolo, sofre uma crise de pre-coma alcoólico. Retirando disso um bom aprendizado. Que não devemos abusar da capacidade de nossa máquina corporal, que a natureza nos deu perfeita. E que muitas vezes distorcemos e adoecemos por motivos fúteis, desde o vício, diversão, até a vaidade. A dor vai ensinar essas coisas a Francisco. Como tantas outras que a humanidade aprende a duras penas. É julho. Mês da tradicional Festa de Santana em Caicó. Quem mora longe sempre arranja um jeito de estar lá. É a oportunidade de se rever todos os amigos que também se foram para longe da cidade natal.Alguns para bem longe. Só na família dos pais de Francisco são treze irmãos ainda vivos nessa época. São Paulo, Rio de Janeiro, Natal, Recife, espalhados por vários lugares pelo Brasil a fora. A época é propícia para os reencontros também em família. Francisco está indo de Recife levando dois casais amigos, companheiros da TV. Fernando Freitas e Adel Barros. Vão com suas esposas conhecer Caicó. Vai ser esta também a primeira vez que a 255 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Festa de Santana será mostrada ao Nordeste, pela Televisão Canal 6 de Recife. Estão indo de automóvel. De Recife até Caicó durante a viagem são ingeridas três garrafas de Pitú, uma em cada parada estratégica, lavadas depois com uma cerveja. Coisa de maluco. Isso irá custar bem caro a Francisco. Já em Caicó seu pai convida-o para fazer uma visita especial. - Francisco vamos fazer uma visita ao compadre Ezequiel! Ele está muito doente! Já vive acamado. Todos estão achando que ele vai morrer breve. - E se dirigem para a residência do Padrinho Ezequiel. - Ha quantos anos você não vê seu padrinho? - Acho que já faz uns dez anos! Chegando lá são recebidos com entusiasmo pela madrinha Gizélia. - Mas olha quem está aqui! O nosso repórter da televisão! - Abraça Francisco com muito afeto e cumprimenta o compadre Pedro, como sempre, com seu largo sorriso nos lábios. - Vamos lá dentro! O Ezequiel vai adorar a sua visita Chiquinho! Ainda gosta muito de raspa de queijo? - Muito! Madrinha Gizélia! Pena que agora por onde eu ando não tem dessas coisas!... Estão entrando no quarto do padrinho Ezequiel. Ele já se arrumou sentando recostadamente nos travesseiros da cama. Francisco cumprimenta-o com muita alegria. - Chiquinho! Mas que surpresa agradável a sua visita! Ele ainda fala normalmente. A doença ainda não o definhou tanto. Francisco evita falar de sua doença. A conversa animada gira em torno do sucesso do afilhado na televisão. - Mas compadre Pedro! Quem diria hein? Que o nosso garoto medroso, acostumado a levar carreira de raposas seria hoje uma pessoa tão famosa!... 256 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Todos estão muito felizes pela visita de Francisco. Seu pai não cabe de orgulho. Apenas retribui com seu sorriso de satisfação. A madrinha Gizélia já está voltando ao quarto com uma bandeja de café fumegante. - Não tem raspa de queijo! Mas tem um queijinho de manteiga muito bom! Experimentem! Receber bem é uma característica natural de todas as damas de Caicó. Após uma meia-hora de muita prosa, com o padrinho querendo saber todos os detalhes do trabalho na televisão, eles se despedem e se retiram. Foi um reencontro inesquecível. E confortável para seu padrinho e sua madrinha. Essa é a última vez que Francisco vai estar com seu padrinho em vida. Pouco mais de um ano depois ele se vai. Assim é a vida. Todos viemos. E todos iremos. Inexoravelmente. Pedro Elias tinha dessas coisas! A sua vaidade pessoal passava também pelo prazer de dar alegria a outras pessoas. Ele imaginara que o compadre Ezequiel, em reta final aqui na terra, teria seu espírito muito avivado com a visita do afilhado, agora famoso. - Qual é a doença do Padrinho Ezequiel Papai? - Dizem que é doença do fígado! Não sei! Acho que deve ser um câncer. Logo estão de volta em casa. Os preparativos do grande almoço em família para umas trinta pessoas, já estão avançados. Dois dias de Festa em Caicó, divertindo-se com os amigos da televisão. Dois dias de exageros no copo. Logo pela manhã uma grade de cerveja é depositada na geladeira. Igualmente com três garrafas de Pitú.Adel prefere geladinha. Passeios pelos banhos de açude. E mais bebida. À noite, passeios pela Pracinha da Liberdade, local de grandes 257 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias recordações e reencontros. E mais cerveja e whisky. Mais tarde, em um dos bailes em algum clube, mais cerveja, mais whisky. Sem contar os intervalos para almoço e jantar, preparados com muito zelo por Josina e sua cunha Maria Grande. Também regados a muita bebida. A tia Maria. Irmã de Pedro Elias, sempre está presente. Juntamente com o tio Cícero, por quem os filhos de Pedro Elias e Josina têm verdadeira adoração. Às vezes até provocando ciúmes em Pedro Elias. O tio Cícero nunca tivera filhos. A esposa é estéril. Talvez por isso, seus sobrinhos o acarinhassem tanto. Agora mesmo ele está dando risadas ouvindo um acontecimento muito divertido com ele imaginado pela astúcia felina do sobrinho Pedro. Ambos muito apreciadores de uma galinha bem torrada. Diziam até que os galos da redondeza cantavam de tristeza, quando Pedro Elias Filho e o tío Cícero se juntavam para degustar umas penosas. Certa ocasião, vindo de Natal para Caicó à noite num fusca, Francisco, o primo Miguelzinho e o irmão Pedro, dão com uma raposa (a maior inimiga das galinhas) correndo à frente do carro na pista. - Passa por cima! Passa por cima! - Exulta Pedro. Francisco dirige o automóvel e mira na raposa. Ouve-se os batuques dela por baixo do carro. Nessa fração de segundos Pedro está imaginando uma safadeza para o tio Cícero. - Para o carro e dê meia-volta. Ela deve estar morta! - Diz ele. Qual nada! O pneu não atingiu a raposa. Ela apenas embolou por baixo do carro mas conseguiu se safar. Cinco minutos depois, Pedro ainda procura pela raposa na cerca de pedra que margeia a estrada. - Vamos embora, rapaz! Ela escapou! - Convida o motorista. - Por quê tanta insistência em achar essa raposa? Pedro então revela a sua maquinação. - Eu pensei em levar essa raposa morta e colocar na porta do Tio Cícero para ele encontrar de manhã cedo ao acordar. E pensei em deixar uma carta escrita pra 258 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias ele. Um testamento da raposa: - Camarada Ciuço! Lamento mas me pegaram! Então deixo pra você todas as galinhas da redondeza! É meu presente de despedida! Ou seja, Pedro igualava o tio Cícero à uma velha raposa devoradora de galinhas e frangos. Esta é a família dos divertidos Elias. A tia Maria está lá na cozinha administrando o tempero das panelas cheirosas para servir o almoço. Uma pessoa maravilhosa. Cozinha como ninguém. Vem auxiliar Josina nesses grandes momentos. Soltando um prato de buchada para o pessoal fazer tira-gosto enquanto o almoço é esperado. Sua buchada de bode e o carneiro torrado não têm igual. Nessa festividade toda, dois dias passam rápido. No retorno, via Campina Grande, Francisco sofre terrível crise de fígado, chegando a perder os sentidos no percurso entre Campina Grande e João Pessoa. Vomitara bastante! Apagou completamente. O amigo Fernando, que não por acaso, também é médico, com uma mão segura o volante e com a outra, segura-lhe o pulso e não gosta do que acaba de perceber. - Ele está quase sem pulso! - Exclama ele preocupado. Fernando não conhece a rodovia. Não tem noção das distâncias entre Campina Grande/João Pessoa. É por lá que estão indo. Pisa no acelerador procurando encontrar uma farmácia na cidade mais próxima. Seria bem mais rápido de onde estavam, dar meia-volta e retornar a Campina Grande. Mas ele desconhece as distâncias e vai em frente. Francisco está com um tom de pele esverdeado. Fernando sabe o que isso significa. O sangue não está circulando bem. A pressão está muito baixa. Mais alguns minutos intermináveis e surge um posto de combustível à beira da estrada. - Meu amigo! Qual é a cidade mais próxima? - Pergunta fernando já 259 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias um tanto aflito. - É Santa Rita! Logo ai na frente! Ele pisa o acelerador com vontade. A última vez que Francisco havia vomitada parecia ser bílis. Já quase desidratado. Já vomitara tudo que havia no estômago. Cinco minutos depois Fernando pára diante da primeira farmácia que encontra. Francisco está sendo retirado de dentro do veículo. Adel e Fernando seguram-no pelos braços. Quase voltando a si, Francisco vê prateleiras em sua frente. São os vasilhames de remédios. Mas ele está delirando. Imagina que estão entrando com ele em um bar. Só vê garrafas de cachaça, whisky e cerveja a sua frente. Ainda consegue pensar: - Estão me levando para o bar! Não quero beber. Eles vão me matar! Só pensa. Não consegue falar. Perde os sentidos novamente. Quinze minutos depois está despertando, amarrado a uma cadeira de encosto. Tem uma siringa espetada em sua veia do braço direito. Fernando está a sua frente. Procura reanimá-lo. - E aí! Véio! Está se sentindo melhor? - Francisco está muito fraco. Ainda não consegue articular as palavras. A cena com a cabeça que sim. O mundo parece rodar sem parar. Sua boca está amarga e totalmente seca. A língua lhe parece língua de papagaio. Fernando explica: - Aplicamos Plazil no músculo para inibir a ânsia de vômito. E estamos aplicando soro na veia. Vamos aguardar um pouco. Você está quase totalmente desidratado. A ação do soro é incrível. Meia hora depois Francisco já está novamente corado. Restabelecido para continuarem viagem para Recife. Na saída da cidade Fernando lhe entrega um côco verde super gelado. Francisco está morrendo de sede. O coco está fechado. Olha para Fernando sem entender. - Vá lambendo esse coco! 260 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Fernando estou com muita sede! Minha lingua está seca! - Você não pode ingerir nada! O que bater dentro vai provocar nova ânsia de vômito. Vai ser pior. - Vá lambendo o coco! Lentamente! Somente uma hora depois, ele parou a beira da estrada para abrir o côco entregando a Francisco com um canudo. Mesmo assim recomendando seriamente: - Vá bebendo bem devagar! Não insista em tomar grandes goles. Vai ter problema se fizer isso! Você quase foi embora véio! A sorte foi achar-mos logo uma farmácia! Seu quadro estava preocupante! Mas a gente só morre na hora certa... Não é? Fernando também é espírita. Já conhecia bem as orientações da doutrina Sua esposa Lurdinha é uma médium das boas, em processo de desenvolvimento mediúnico. Francisco faz parte de seu grupo lá no centro espírita. Algumas experiências fantásticas com a realidade dos espiritos eles ainda vão conhecer. Recomenda que Francisco procure um tratamento médico adequado. E indica um de seus professores na Faculdade de Medicina. O médico é muito minucioso e quer saber todos os detalhes daquele acidente de saúde. Francisco relata a viagem desde que sairam de Recife até a volta. - Vocês são uns inconseqüentes! - Diz médico. - Essa coisa de beber cachaça e lavar com cerveja é um atentado ao organismo físico. Não se mistura bebida destilada com bebida fermentada. São produtos fabricados quimicamente através de processos completamente antagônicos. E explica a agressividade do processo, uma vez que o organismo físico, através de seus órgãos de defesa procura produzir enzimas a 261 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias uma velocidade muito grande para tentar neutralizar a ação agressiva da química ingerida. E nesse processo contínuo, quando o paciente continua ingerindo mais bebida alcoólica o organismo perde as suas referências provocando a completa instabilidade dos órgãos internos. - Sabe o que você teve? - Pergunta o médico. - Um pré-coma alcoólico. Foi sorte sua que o Fernando estava com vocês. Se estivesse viajando sem a companhia de um médico, seu organismo teria entrado em colapso absoluto e você teria morrido. Esta lição dolorosa já está bem arquivada na mente de Francisco. Nunca mais, em toda a sua vida, tomaria bebida fermentada misturada à outra bebida destilada. O médico quer saber: - Você é viciado em bebida? - Não doutor! Bebo apenas por diversão. - Então ótimo. O tratamento vai ser fácil. Receitou algumas medicações que deveriam ser ingeridas durante dois meses. E impôs a necessidade de uma abstinência total de álcool durante seis meses. Francisco continua trabalhando na televisão. Hoje faz seis meses que eu não bebo! Pensa ele. Vou comemorar com uma cerveja. Vizinho à televisão ha um buteco. Como sempre ao meio-dia, repleto de gente comendo e bebendo. O amigo Adel Barros é um de seus mais assíduos freqüentadores. Toma cerveja com alguns amigos, para lavar a tal cachaça. Francisco experimenta tomar um copo de cerveja. E a sensação é horrível. Está sentindo aquela sensação terrível de caída da pressão, parecida com o que sentiu durante a crise naquela viagem. Com um pouco de tontura e também ânsia de 262 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias vômito. Resolve então por conta própria ficar de quarentena ao copo por mais seis meses. O amigo Fernando depois lhe dá algumas explicações sobre o fenômeno que sentiu ao tomar o copo de cerveja: - O que ocorreu é que seu subconsciente armazenou a informação do desequilíbrio de sua instabilidade interna e correlacionou esse dado, provavelmente, ao sabor da cerveja. Daqui ha algum tempo você tente novamente! - Sugere ele. Assim faz Francisco. Mais seis meses se passou. Ele vai ao buteco. Precisa experimentar. Mas desta vez prefere ingerir uma pequena dose da cachaça Pitú. Beleza! Entrou sem reclamar. Entrou até macio! Tomou mais algumas doses, mas evitou beber a cerveja. Somente algum tempo depois experimenta outra vez a cerveja. Sem misturar à cachaça. Um primeiro copo e o organismo não reclamou. O segundo copo já não entra tão bem. E o terceiro copo, só com algum sacrifício. Definitivamente seu organismo estabelecera uma quarentena definitiva. Parecia rejeitar a cerveja para sempre. E assim é, por todo o resto de sua vida. Sem conseguir tomar sozinho uma única cerveja. Mais uma lição aprendida a duras penas, que faz questão de passar adiante. Talvez venha a ajudar alguém que também aprecie o coquetel malígno cachaça/cerveja. Quem inventou isso devia ter pouco juizo. E provavelmente, nenhum conhecimento sobre rejeição física e ação das enzimas. O cigarro é um forte coadjuvante da bebida. Francisco está tentando parar de fumar. Mas não aprecia esses modelos de tentativas, para deixar de fumar aos poucos. É preciso muita força de vontade e um motivo bem estimulador para deixar o vício. E o motivo aparece. 263 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Justificando aquele raciocínio de que, quando o paciente está pronto o remédio aparece. Francisco está apresentando o telejornal da noite. Um pigarro lhe atravessa as cordas vocais modificando completamente a sua voz. Ele tenta, mas não consegue se desvencilhar do pigarro. O jeito é forçar a barra tossindo diante das câmeras. Para sua vergonha. Foi terrível, ter que pedir desculpas aos telespectadores daquele jeito. Ali estava a motivação que precisava. Sua personalidade toma decisões bem fortes às vezes. Ele decide parar de fumar imediatamente. - Mas assim! De vez? - Perguntam os amigos. - Assim! Quem manda em mim sou eu! - Só quero ver por quantos dias!... - Duvidam alguns deles. Tem que parar de fumar aos poucos! - Insistem outros. - Que nada! Tem é que ter vergonha na cara! Eu já disse! Parei agora! Parei! Pronto! Será que vai conseguir? Por duas vezes o vício do cigarro vai ter participação significativa em sua vida. Veremos isso mais tarde. Francisco reside agora no bairro de Boa viagem. Trabalha no centro da cidade para onde vai diariamente, levando as meninas Elissandra e Eliana para o Colégio São José, dirigido por freiras, também no Centro. Meio-dia pega as meninas no colégio e as leva de volta para casa. É hora do rush. A avenida Domingos Ferreira uma nova paralela em Boa Viagem, nem bem inaugurou já está congestionada na hora do almoço. Logo no início da avenida ha um terreno com muito lixo, com algumas moradias de caixas de papelão, onde crianças brincam na sujeira. Francisco aproveita para estimular as meninas. Elas vão no banco de traz do automóvel. - Minhas filhas! Olhem aquelas crianças ali brincando no lixo. Elas 264 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias estão ali porque não têm uma oportunidade na vida como vocês duas. Mas são crianças iguais a vocês. Não têm culpa se seus pais são tão pobres. Mas o mundo é assim. Vocês devem agradecer a Deus! Estão vindo do colégio, uma escola decente, de automóvel, vão para casa almoçar uma comidinha gostosa, depois irão se divertir com seus brinquedos. Brinquedos que aquelas crianças não têm. As meninas escutam em silêncio observando as pobres crianças enquanto o carro passa lentamente no trânsito congestionado. - Aproveitem bem, minhas filhas! Dêem valor ao que a vida oferece a vocês. Aquelas crianças poderiam ser vocês. Dêem graças a Deus. Procura usar com elas uma linguagem que sabia era comum na educação religiosa que certamente recebiam no colégio das freiras. Sem dúvida, a imagem daquelas crianças nos monturos de lixo partia o coração de qualquer um que tivesse alguma sensibilidade humana. Porquê existem crianças tão pobres? Enquanto existem outras tão ricas? Porquê tanta desigualdade na raça humana? Esse assunto ha muito já fazia parte dos estudos espiritualistas de Francisco. Agora ele já tem informação suficiente, para compreender que esse quadro só é aceitável se levarmos em conta a categoria de planeta de expiação humana, que cabe ao nosso orbe. Um planeta tão lindo! Para entretanto, acolher tanto sofrimento e desigualdade. Que outra lógica melhor poderia explicar isso? Se Deus é infinitamente justo e bom? É exatamente esse o motivo que o leva ao estudo da Doutrina Espírita. As obras espiritualistas têm lhe mostrado com muita exatidão que as enormes diferenças que marcam os seres humanos na Terra são resultado da Lei do Carma. Carma Coletivo, enquanto, cidade, nação, ou planeta, e Carma individual. 265 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Esses estudos realizados semanalmente no centro espírita estão corroborando idéias já observadas através das obras espíritas que Francisco lê avidamente. Esse parece ser seu grande momento de crescimento interior com base no conhecimento da espiritualidade. Algo que ele absorve com grande entusiasmo. São 02h00 da manhã. Francisco ainda lê na cama sob a luz do abajur. Sandra acorda. - Menino! Você ainda está lendo há essa hora? - Pois é! Sandra! O livro está tão gostoso que o sono passou! - Outra vez Francisco lembra as palavras do Padre Itan. “Vai ter um momento que você quer parar de ler e não consegue!”. É o que está lhe acontecendo agora. Dias depois ali mesmo na cama, Francisco experimenta duas situações espirituais diferentes numa única noite. Ele dorme ao lado da esposa. Repentinamente percebe que está acontecendo algo fantástico! Ele está levantando-se suavemente, flutuando no ar, retirando-se de seu próprio corpo. Vê o corpo estirado na cama enquanto se afasta subindo. É como se alguém ou alguma coisa estivesse puxando-o para fora do corpo. A ação vai se acelerando! Velozmente ele é retirado dali. Inicialmente uma sensação de insegurança. Mas logo em seguida ele se vê em sua cidade natal. Uma tarde chuvosa em Caicó. Onde encontra sua mãe. Ela chora. Está muito triste. Francisco não sabe porque. Mas sabe que aquilo é um sonho consciente. Está sonhando! Que esquisito! Após alguns instantes observando sua mãe chorando, sua mente recebe um comando: voltar ao corpo. Já! Rápido! E está voltando. De uma forma que não pode controlar. Novamente flutuando à uma velocidade fantástica. - Estou chegando! Estou chegando! Cheguei! Que estranho sonho consciente! E estatela-se debatendo-se na cama, 266 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias com a língua enrolada, tentando chamar a esposa. Deve ter se debatido, pois Sandra acorda. - Elias! O que é isso? O que foi? Você teve um pesadelo? - Ele ainda não consegue falar normalmente. Ela vai rápido pegar um copo d'agua. Quando retorna ao quarto Francisco já está sentado na cama. - O que foi que você sentiu? - Insiste ela. - Se eu disser você não vai acreditar! Toma o copo d'agua e dá os detalhes do mais espetacular sonho que já teve em toda a sua vida. Procura se acalmar e tenta dormir novamente. Aquela é a sua noite do sobrenatural. Francisco adormece. Não sabe precisar quanto tempo depois, já está novamente envolvido em outro sonho consciente. Está de volta à Caicó. É noite. Está sentado num sofá na sala junto ao irmão José. E sabe que estão ali porque vai acontecer um encontro espírita. Uma médium que não sabe quem é, vai realizar a sessão espírita. Conversa com o irmão mas ouve ao mesmo tempo o vozerio de pessoas conversando na outra sala próxima. Ha um fio pendurando do teto no meio da sala com uma lâmpada elétrica acesa. De repente a luz da lâmpada vai diminuindo sua intensidade, quase apagando. Uma mulher está entrando na sala a passos bem lentos, vindo lá de dentro. Estranho! É sua irmã Lurdes! Ela tem o rosto envolvido por uma luz azulada!... Que esquisito!... E olha para a janela com a visão reta como se estivesse hipnotizada. Em sua consciência Francisco percebe que aquilo é muito anormal. Tenta segurar a mão do irmão ao seu lado no sofá mas não consegue. O ambiente está quase totalmente na escuridão. Só o rosto iluminado de sua irmã se destaca na sala. 267 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Novamente ele recebe em sua mente aquela instrução inapelável: Voltar ao corpo! Voltar ao corpo! Voltar ao corpo! E novamente acorda em sua cama. Desta vez sem arrebatamento. Já está se acostumando àquele tipo de experiência. A esposa continua dormindo ao seu lado normalmente. O que significa que desta vez ele retornou ao corpo sem se debater. Pondera por alguns instantes sobre os fenômenos e volta a dormir. Francisco já está se acostumando a uma idéia que havia lido outro dia em algum livro: “Aquilo que não tem solução. Solucionado está”. É isso. Não adianta ficar matutando sobre isso se não vou ter a resposta! - Pensa ele. Qualquer dia vai pedir ajuda a Thiago para ver se compreende melhor o fenômeno. Algum tempo depois, já residindo no centro da cidade próximo ao Colégio onde as filhas estudam, não ha mais necessidade de apanhálas no colégio. Agora Francisco apresenta um telejornal ao meio-dia na TV. E é a vez de participar de uma outra vivência de ordem espiritual muito intensa, porém envolvendo uma outra pessoa. Sua amiga Carmem Tovar. Ela tem um programa feminino um pouco antes do meio-dia. O amigo Roberto Nogueira, apresenta seu programa após o telejornal. Portanto, é comum os três se encontrarem na TV àquela hora. - Oi! Elias! Estava esperando você! - Diz Roberto Nogueira. - Tudo bem? - Está sim! - Mas o amigo demonstra estar preocupado. Ele já está informado da atuação de Francisco no centro espírita de Thiago. - Eu quero falar com você é sobre Carmem! - O que tem ela? - Não é ela! É o filho dela! Carmem tem um filho de seis anos. E está com um problema muito sério! Diz ela que o menino já foi levado a 268 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias tudo que é pediatra famoso de Recife e ninguém descobre o que ele tem! - E o que ele sente? - Dores! Dores por todo o corpo. O menino não dorme há uma semana. Ela diz que o menino está definhando. Não se alimenta direito. E não dorme porque não há posição que possa ficar sem sentir dor. Para ela está sendo um sofrimento terrível. Esperava que os médicos descobrissem o que o menino tem. Mas até agora nada! Então eu falei pra ela sobre você e o centro espírita. Mas ela reagiu muito mal à minha sugestão! Disse que não quer nem saber disso! Que já teve uma experiência muito triste com espíritos! Diz que a sogra fez macumba para separar ela do marido! Enfim!... Não quer nem saber de centro espírita. Então eu pensei que talvez você... - Está bem Roberto! Eu vou falar com ela. Francisco dirigi-se à redação do jornalismo e encontra Carmem nos corredores. Conversa com ela. Mas ela continua irredutível. - Não é por você Carmem! É pelo seu filho! O que você tem a perder? Eu tenho visto muitas experiências maravilhosas de cura lá no centro. Quem sabe, seu filho também pode ser curado lá... - É. Elias! Mas eu não boto os pés lá. Se você quiser tentar alguma coisa tente. Mas lá eu não vou! - Carmem não dá brecha. - Eu vou precisar do nome do garoto e do seu endereço. É assim que eu vejo eles procederem nas reuniões lá no centro. Colocam os papéis sobre a mesa com os pedidos de ajuda para as pessoas e eles fazem uma visita espiritual ao local onde o doente se encontra. Anota os dados do garoto com o endereço. E acrescenta: - Hoje à noite tem reunião lá no centro. Vamos ver se eles podem ajudar seu filho. 269 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A noite Francisco vai ao centro e informa a Thiago sobre o problema do filho de Carmem. Ele recomenda que coloque o papel na mesa juntamente com os outros que vão ser atendidos. O centro de Thiago é o mais singelo exemplo de humildade. Suas instalações são muito simples. Uma pequena casa na Avenida Norte, apenas com uma sala e mais dois ambientes. Na sala principal, um ambiente de reuniões, existem bancos de madeira, uma cortina de veludo vermelho na parede, um quadro com imagem de Jesus Cristo e um outro com uma imagem do mentor espiritual do centro, um padre, pintado por uma médium pintora e vidente, que passou para o papel com pintura de grafite a imagem do padre. Um segundo ambiente com uma mesa comprida, algumas cadeiras ao redor e um ponto de luz azul pendurando do teto sobre a mesa. É aí que ocorrem as reuniões de desobsessão e de treinamento para os médiuns e doutrinadores. Os outros ambientes são; um segundo quarto-escritório e uma cozinha. São vários os encontros maravilhosos de cura, de ajuda, e de crescimento interior que são propiciados nesse ambiente de total singeleza. Durante a reunião, o médium em trabalho pergunta segurando na mão um dos papéis: - Quem trouxe esse papel? Dessa criança em Boa Viagem? Uma criança que não consegue dormir! Francisco se identifica. - Enviamos companheiros nossos para uma visita a esse endereço! É um apartamento onde o menino se encontra. A situação lá é muito dolorosa! - Explica ele. - Tem haver com carma da mãe e do filho, relacionado com algumas entidades obsessoras com quem conviveram no passado. Ha muito ódio que foi deixado para traz ha bastante tempo. Os algozes localizaram os dois. Agora, mãe e filho. Eles não podem atingi-la por uma proteção especial que ela tem nessa encarnação. Estão fazendo isso através do menino! Ha 270 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias dívidas também da criança para com eles! - E acrescentou: - Vai ser preciso trazer alguém da família aqui! Já que o menino está impossibilitado de se locomover! - Francisco então argumenta: - Mas já conversamos com a mãe do garoto e ela está renitente sem querer vir aqui! Já disse que não vinha. Então pensamos em ajudar o garoto do jeito que fosse possível! - Pois que venha um tio, uma tia, algum parente próximo! Diz o mentor espiritual através do médium. No dia seguinte Francisco recebe notícias de Carmem logo ao chegar à portaria da TV. - Dona Carmem já esteve aqui duas vezes procurando pelo senhor! Diz o moço da portaria. Francisco já sabe aonde vai encontrá-la. Ela já vem vindo pelo corredor da televisão caminhando apressadamente em sua direção parecendo muito agitada. - Elias! O que foi que vocês fizeram ontem lá no centro? - Nada! Carmem! Como de costume só colocamos o seu papel na mesa e aguardamos algum contato. - Elias! Pelo amor de Deus! Ontem eu tive um sonho fantástico. Deixou-me muito confusa! Parecia tão real!... - Como foi? Carmem então narra o seu sonho extraordinário. Descrevendo fielmente as características da casa onde está localizado o centro dando todos os detalhes, até os três batentes de alvenaria na porta de entrada, a porta de madeira dividida em duas metades, como é normal nas casas bem simples, os bancos de madeira na sala, a cortina de veludo, a outra sala quase escura com uma lâmpada azul sobre a mesa e algumas pessoas ao redor de uma mesa. - Mas eu não vi você lá! - Enfatiza ela. Francisco compreende exatamente o que ocorreu. E com um sorriso sereno procura acalmar Carmem. 271 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Eles não permitiram que você me visse! Isso poderia afetar a sua consciência. Carmem o que ocorreu com você nós chamamos de tele-transporte. Você foi levada lá em espírito. Você acaba de descrever fielmente como é o nosso centro. Pena que não queira visitar o centro! Para poder comprovar que é exatamente como você descreveu. - Quando vai ter outra reunião? - Amanhã! - Elias você me leva? Eu agora estou muito curiosa para conhecer o centro! Se Deus traça caminhos retos com linhas tortas e disso não temos dúvida, ali estava mais uma prova de sua ação maravilhosa. Que outro jeito poderia haver para levar Carmem ao centro no trabalho de cura de seu filho? E quem melhor do que ela cujo carma mantinha laços do passado com aqueles espíritos perseguidores? Ao conduzila ao centro em espírito na hora exata da reunião, os bem-feitores espirituais haviam criado nela a expectativa necessária para desejar ir lá. Sem dúvida eles usam de muita psicologia. Na noite do dia seguinte Carmem foi para a televisão encontrar-se com Francisco, que então vai com ela à reunião do centro. Às sextafeiras são feitas reuniões de desobsessão. Ocasião em que se tratam os casos dessa natureza. Um só trabalho e duas curas ao mesmo tempo. A da vítima encarnada e dos próprios perseguidores espirituais, que pela bondade de Deus ganham assim a oportunidade de ser conduzidos a locais de amparo e tratamento em doutrinação, existentes na espiritualidade. O que eles chamam inicialmente de prisão na verdade são locais onde serão mantidos não por espontânea vontade, já que ainda não desenvolveram a capacidade do merecimento da consciência pelo perdão. 272 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Muitos são reeducados passando, em muitos casos, a fazer parte das equipes de resgate em socorros futuros a outros necessitados. Outros mais endurecidos, incapazes de reconhecer a luz como sua salvação, são devolvidos aos seus antros de dor para aprenderem um pouco mais com ela. Isso também é da bondade do Criador. Foram esclarecimentos assim que Carmem pôde ouvir naquela reunião de atendimento ao seu filho através do nossos doutrinadores. O seu caso estava relacionado a tantos outros com características iguais em que, também por piedade dos instrutores espirituais, não lhes é permitido ouvir a verbalização dos desagravos apresentados por seus algozes, algo a que eles têm direito, ao serem levados ali à força. Têm o direito de proferir seus impropérios como acusadores diante de suas vítimas. Assim também está acontecendo ali com Carmem que foi posta para dormir, anestesiada pela engenharia maravilhosa dos espíritos. Parte dos trabalhos de desobsessão ela nada percebeu. - Ah! Eu dormi! - Diz ela, acordando já na hora em que todos oram o Pai Nosso, encerrando a reunião. A manhã seguinte traz mais surpresas para Carmem. Chegando em casa após a reunião no centro espírita, pela primeira vez em mais de uma semana, para seu espanto, Carmem vê o seu filho dormindo normalmente na alcatifa da sala. São 23h00 aproximadamente. A empregada ainda está acordada aguardando por ela. Então decide deixar o menino dormindo ali mesmo. Se acordasse durante a noite então viria conduzi-lo para seu quarto. Pois temia acordá-lo, já que ha tantos dias não dormia direito. Pela manhã, às 07h00, Carmem levanta-se para tomar o café e sair para o trabalho. Vai primeiro à sala procurar o filho. Ele não está lá! Ela vai à cozinha perguntar à secretária: 273 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Onde ele está? - Está lá embaixo! Dona Carmem! No pilotis do prédio brincando com as crianças.- Carmem não quer acreditar. - Ele tomou café? - Tomou! E comeu direitinho! - Eu não acredito no que estou vendo! Meu Deus! Então tudo isso é possível? - O quê dona Carmem? - Nada querida! É difícil de explicar! Realmente o que Carmem quer dizer é que, é muito difícil compreender algo assim. Principalmente para ela que já havia vivido uma experiência dolorosa com a espiritualidade. Pelo menos é o que ela imaginava. Compreensões à parte, foi uma troca bem justa.Acura para o filho de Carmem e mais esclarecimento para Francisco que cada vez mais está interessado em estudar a fenomenologia mediúnica. Não por mera curiosidade, mas pela vontade e necessidade de saber. Aprender para ser útil. Aquela está sendo uma excelente oportunidade para seu crescimento no entendimento da doutrina espírita.Tem mais experiências maravilhosas reservadas para ele, para mais adiante em sua trajetória de vida. E o aprendizado vivido agora lhe será muito útil. As mulheres. Elas seriam um capítulo à parte durante esta experiência cármica de Francisco. Com sua presença na TV fica quase impossível resistir aos assédios femininos. Além do mais o desequilíbrio emocional em seu casamento continua. Como uma ferida aberta sem cura. Seu temperamento e até suas preferências estão sempre em desalinho com a esposa Sandra. A vida de casal é relativamente boa apenas em pequenos períodos. Não ha maturidade suficiente de ambos.As crises continuam. 274 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N o trabalho na gravadora ha uma locutora que acaba de chegar de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Conterrânea de Francisco, dele se aproxima buscando afinidade que possa ajudá-la em suas pretensões profissionais. Ele aceita sua amizade. Divalda é uma mulher bonita. Tem um nível cultural saudável. É inteligente e demonstra um razoável nível cultural. É mãe solteira. Tem uma filha pequena de três anos. Inicialmente Francisco a vê apenas como uma amiga precisando de ajuda. Assim como ele recebeu ajuda dos companheiros locutores ao chegar às gravadoras poucos anos atrás ela estava precisando de apoio profissional, para indicações, parcerias de trabalho, essas coisas. Aos poucos os dois foram percebendo em suas carências afetivas que havia algo mais entre eles. Dai a um relacionamento foi um pequeno salto. Divalda também bebe. Gosta de tomar cerveja. Mas não gosta de se embriagar. É uma companheira de copo. Um bom papo. Detalhes que notificam uma mulher em seu relacionamento com os homens. Divalda mora num pequeno apartamento kitnet no centro da cidade, próximo às gravadoras e à TV Universitária onde também trabalha. Ali os dois normalmente se encontram. E vacilaram além da conta. - Tenho uma notícia ruim pra você! - Diz ela ao chegar á gravadora. - O que foi? - Estou grávida! Francisco, que já se norteia por sua formação espiritualista, depois de ponderar responde com naturalidade: - Que bom! 275 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Você tá louco! Que bom, que nada! - Reage prontamente Divalda. - Eu não posso ter outro filho! Já basta a filha que tenho. Não posso! Não posso! Vou tirar a criança! E queria que você me arranjasse o dinheiro para pagar a parteira. Francisco não concorda. Não pelo dinheiro. E argumenta: - Divalda! O aborto provocado é um dos maiores crimes que se pode cometer. Em vida e em espírito! - Ela já está nervosa e chora um pouco descontrolada. - Você não entende! Eu não posso ter outro filho! - Eu ajudarei você a criar a criança! Você não estará nessa sozinha! Não faça isso! Reflita melhor! - Mas Divalda já havia decidido retirar o embrião. Tinha um pouco mais de um mês. Ela tinha pressa. - Vou tirar a criança! De qualquer jeito! - Insiste com veemência. Se você não quer me ajudar com o dinheiro, tudo bem! Eu vou procurar alguém que possa me emprestar o dinheiro! Mas vou fazer o aborto! Era doloroso decidir daquela maneira. Não havia como demovê-la de sua decisão. - Bem! De qualquer jeito você vai retirar a criança! - Diz ele com pesar. Não posso evitar! Mas saiba que eu não concordo com isso! A responsabilidade é toda sua! Aí está o dinheiro! Ela pega o cheque e sai imediatamente muito agitada. Vai ter com a parteira que faz os abortos às escondidas. Isso é crime. Dá até cadeia. Demora-se por três dias até aparecer novamente na gravadora. Chega muito abatida. Parece que um trator passou por cima dela. Tem até olheiras. E conta como foi. - Era um menino! - Diz ela. - A parteira confirmou. 276 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Francisco emociona-se com aquela informação. Um menino! Tudo que ele queria, após ser pai de duas filhas. E Divalda jogou fora! Não disse nada a ela. Mas estava se sentindo muito mal. E se Deus não lhe permitisse mais ter um filho homem? A Natureza tem dessas coisas. Dá, mas também tira. Procura superar esse momento. Aos poucos Divalda foi se recuperando. Mas a relação entre os dois já não é mais a mesma coisa. Agora ha restrições de sentimentos entre eles pelo episódio do aborto. O fato seguinte vem selar definitivamente o afastamento dos dois. Numa conversa com Sandra, Lurdinha, esposa do amigo Fernando deixa escapar a informação do caso de Elias com a Divalda. O fato provoca um terrível desentendimento no casal. Francisco então assegura a Sandra. O caso com Divalda está encerrado nesse exato momento. Era a gota d'agua que faltava. Como já é de seu princípio, nada faria com que deixasse a família. As meninas estão crescendo. Precisam da presença do pai. E ele ama suas filhas. Não deseja viver longe delas. Procura Divalda e comunica a sua decisão. Ela é uma mulher forte. Acostumada a dirigir sua própria vida. Esse capítulo amoroso está encerrado na vida de Francisco. Alguns meses depois as suas leituras estão mexendo com sua consciência em relação à esposa. Exatamente uma coleção de livros espíritas que adquiriu. São obras psicografadas pelo médium catarinense Hercílio Maes, através de quem as comunicações chegam pelo espírito de uma entidade hindu, chamada Ramatis. Essas obras estão influenciado fortemente suas convicções na 277 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias tentativa de concertar erros do passado remoto. Conclui que seu casamento com Sandra não havia sido por acaso. Ha uma razão para isso. Só não sabe qual. Porquê não dar a ambos uma nova oportunidade de se entenderem bem? Ha também ainda guardada no ego de Francisco a carência por um filho homem. Conversa então com ela. - Sandra! Nós temos nos distanciado tanto... Acho que deveríamos fazer alguma coisa! Acho que talvez esteja faltando uma nova criança em nossa vida. Talvez isso possa alterar os nossos sentimentos. O que você acha? - Ela age prontamente de maneira receptiva. - Também concordo. - Estavam num dia bom, apropriado para tomar novas decisões. - Então! Vamos tentar outro filho? - Pergunta ele. Até então o parco relacionamento conjugal era mantido com mecanismos para evitar filhos. Os dois estão de acordo. Deixam de lado os preservativos. Francisco então faz um pacto com o espírito de Ramatis que já conhece bem através dos livros. Pedindo a intervenção dele. Se a esposa engravidar e o filho for homem, vai por o seu nome. Ele se chamará Ramatis. Para ele esta será mais uma comprovação da existência do espírito. No fundo, no fundo, ele procura se ressarcir de alguma responsabilidade pelo aborto de Divalda. Mentaliza o espírito de Ramatis e confessa a ele sua preocupação nesse sentido. Pedindo que se for possível, que possa vir à vida aquele espírito impedido de nascer através de Divalda. Também pede por ela. Para que seu pecado seja diminuído com a vinda dessa criança. 278 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias U m mês depois Sandra dá a notícia. Está grávida. Francisco se emociona. Não pode contar nada a ela ainda. Deixa o tempo correr. O relacionamento em casa melhora. A gravidez de Sandra aumenta a cada dia. Francisco mais e mais se convence que essa criança será do sexo masculino. Uma certeza inexplicável. Forte. Muito convincente. Vai ser homem! Tenho certeza. Ouvia isso dentro de sua mente sempre que se aproximava de Sandra e colocava a mão sobre seu ventre. É um homem que Ramatis está nos dando. Ao mesmo tempo, cresce dentro dele uma necessidade imperiosa, irresistível, de contar a Sandra a verdadeira razão daquele pacto. Ele já não tem a menor dúvida de que o filho será homem. Ela já está com sete meses (Ver foto). Um dia, aproveitando a ocasião de estarem juntos à mesa após o café da manhã ele resolve revelar a ela o seu segredo. Ao tentar explicar a ela a gravidez interrompida de Divalda, ela reage com sofrimento por essa informação e se descontrola um pouco. Ele fala de seu pacto com Ramatis. Mas ela está um pouco fora de si. Reage com lágrimas. Chora copiosamente. Sente-se ferida em seu amor próprio. Infelizmente não havia alcançado um estágio mais avançado da realidade espiritual para compreender o que estava se passando ali, e responde com expressão de raiva e dor em seu orgulho ferido: - Se eu soubesse que era para isso eu não teria concordado! Desabafa chorando. Francisco fora infantil ao revelar um segredo que era só dele e de Ramatis. Ou não? Não imaginara que ela pudesse se ressentir daquela forma. É fácil compreender o que ela sente. Freqüentemente cometemos erros por achar que a mente das pessoas ao nosso redor 279 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias vibram no mesmo diapasão que a nossa. E assim cometemos excessos. Ela não entende nada da realidade espiritual. Como poderia dar crédito a esse sacrifício... Pois que era de fato um sacrifício. Dela. A serviço da consciência culposa de Francisco e para minorar a culpa de uma ex-amante dele. Isso está acima de sua compreensão e capacidade de aceitação. Ele então lhe diz com tristeza na voz: - Sandra! Você não tem idéia da extensão da caridade que você está fazendo! Se aquela criança que não pôde nascer de Divalda estiver nascendo através de você e eu tenho certeza que é homem, isso é uma dádiva para você! Um acréscimo de Deus para você em sua conta espiritual. Mas dolorida como está ela lá quer saber de conta espiritual! Nesse momento sua mente lhe diz que ela foi usada. Posta em sacrifício. Não consegue alcançar toda a imensa realidade que já vive em seu ventre materno. A espiritualidade dispõe das ferramentas apropriadas para transpor todas as barreiras da compreensão humana. É provável que naquele exato momento já esteja sendo arquitetada uma solução inteligente através dos guias espirituais, os anjos de guarda de Francisco, do espírito em processo de reencarnação através dela e o dela própria. Falta pouco mais de um mês para a criança nascer. Ela continua fazendo todo o pré-natal com acompanhamento médico. Nesse tempo já existe o exame que revela o sexo das crianças. Mas é particular. Custa muito caro. Seu pré-natal está sendo feito pelo INPS, que nesse tempo atende relativamente bem. Além do mais, saber de antemão o sexo da criança poderia trazer mais transtorno do que alegria. O seu médico por sua vez, nada informa. 280 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C hega o grande dia. Francisco está na gravadora perto dali. Pouco mais de três horas da tarde. O cunhado Rony Trindade, como de costume, passa pelo apartamento do casal a serviço do banco onde trabalha, para tomar um cafezinho, quando algo acontece. O rompimento da bolsa do útero de Sandra. Rony liga apressadamente para Francisco. - Venha urgente que sua mulher vai ter neném. Já está perdendo água! Francisco se apressa e vai correndo para casa. Está feliz. Até que enfim o seu grande presente vai chegar. Vão de carro até a maternidade São Marcos. Chegando lá ela já está sendo conduzida diretamente para a sala de parto enquanto os dois são levados para o apartamento onde ficam aguardando o nascimento da criança. Ha muita tensão nesse momento. O cunhado Rony também quer permanecer ali um pouco, pelo menos até saber o resultado do parto. Francisco está muito emocionado. Seu corpo está bem quente. Sua circulação sangüínea é forte. A pressão deve estar alta. De repente! Explode em sua mente uma informação vinda não sabe de onde. São dois bebês! Do sexo masculino! E um está morto! Essa explosão de certeza em sua mente é algo muito forte. Inquestionável. Muito convincente. Sem margem para engano. Algo de que não se pode duvidar. Um fenômeno! Como se fosse possível alguém colocar um alto-falante dentro de sua mente. Dois homens! Um está morto! Dois homens! Um está morto! Francisco se descontrola emocionalmente e entra em crise de choro, deixando totalmente surpreso o cunhado Rony. Diga-se de passagem, nesse tempo relevando-se um ateu convícto. Era comum ouvir-se Rony blasfemar até com o nome de Cristo. Dizia não aceditar em Deus. Que Deus era uma invenção da igreja, essas coisas que dizem os cegos e ignorantes de espírito. 281 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Que é isso rapaz! - Reage ele prontamente. - Sua mulher está tendo neném e você é quem chora! O que se passa com você? - Rony! Acabo de receber uma informação! São dois bebês! São homens! E um está morto! - Rony está espantado. Olha para a porta e não vê ninguém. - Que história é essa Chico? Quem lhe disse isso? - Aqui Rony! Dentro da minha cabeça! Deram-me essa informação agora! Aquilo era bem mais do que podia conceber a mente de um ateu. Você está brincando comigo! - Exclama Rony, abrindo a geladeira do frigobar para pegar um copo de água que entrega a Francisco. Francisco está trêmulo e ainda chora. Aquilo é algo mais forte do que ele mesmo podia imaginar. Mas tem certeza! A mais absoluta certeza. Teria sido o espírito de Ramatis que lhe transmitiu a mensagem? Não era possível explicar esses detalhes para um ateu como Rony. Ele só iria rir na sua cara. Após alguns instantes Francisco já se acalmou e permanece sentado em uma cadeira ali no quarto com o cunhado aguardando que tudo se esclareça. Rony relaxa desabafando: - Esse cara tem cada uma! Já faz mais de meia-hora que eles aguardam no quarto. Dai ha pouco a porta se abre e entra uma enfermeira. - Quem é o felizardo? - Ele! - Responde Rony apontando para Francisco. - Parabéns! O bebê é homem! Forte como um touro! Só teve um probleminha!... - Já sei! - Diz Francisco. - Eram gêmeos e um está morto! Aenfermeira está muito surpresa, e pergunta: 282 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Quem esteve aqui antes de mim? Estou vindo agora da sala de parto! Rony está mais surpreso ainda. Arregala os olhos fixando-se em Francisco. Os dois estão mudos. Como explicar aquilo à enfermeira? Ela então retoma o diálogo: - É! Realmente um está morto. Aliás, já estava morto ha umas três horas. Foi laçado pelo cordão umbilical e morreu sufocado. Mas o outro está muito bem! E dá instruções a Francisco para no dia seguinte, passar pela manhã para assinar uns papéis e levar o corpo do bebê para ser sepultado. Que tarde aquela! Quanta emoção envolvida no episódio de nascimento do menino Ramatis... Somente vários dias depois, Francisco contou a Sandra o fenômeno que ocorreu com ele lá na maternidade. Por muito tempo ele pensou sobre aquela experiência. Chegando a uma conclusão ponderável. Deus realmente parece traçar caminhos retos por linhas tortas. Ali estava um exemplo muito claro da magnitude de sua Onisciência. Sem dúvida, ELE sabia desde o princípio, o que iria acontecer com a aquela gestação tão desejada. E tinha que ser gêmeos. Para que os pais pudessem receber o recado por inteiro. O que dá margem a algumas ponderações: se são dois meninos, bem que um deles poderia ser o ressarcimento pelo aborto de Divalda. É uma hipótese. Neste caso a mãe entraria com o beneplácito da doação. O outro seria então o acréscimo de Deus para Francisco e Sandra. Mas... E se ambos permanecessem vivos... Será que ela não rejeitaria um deles? Sem saber qual seria o seu? Isso poderia ser uma injustiça para com um dos bebês o que resultaria em culpabilidade cármica 283 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias para a mãe. É mais uma hipótese para se avaliar a sabedoria divina. Assim, ela recebe apenas um. Não ha como saber qual dos dois é realmente o seu. O que se foi? Ou o que ficou? O que lhe desperta um amor maternal grandioso pela criança. De qualquer forma, esse Ramatis é seu grande prêmio. Para ela e para Francisco também. Deus está fazendo a sua parte. Aliás, Deus está sempre tentando realinhar os seres humanos. Nós é que não somos evoluídos ainda suficientemente para poder compreender o milagre da criação, em seus próprios domínios. A afetividade, o respeito mútuo, o fator econômico, a similaridade no nível de educação adequado, o conhecimento e a aproximação com Deus, é tudo um emaranhado de princípios que se pudessem ser observados corretamente, certamente garantiriam a estabilidade das famílias. E o casamento deixaria de ser uma via crucis, como ocorre com muitos casais. Não é à toa que a instituição casamento vai se deteriorando dia após dia no seio da sociedade humana. Embora se saiba que sem a fórmula dessa célula mater, é improvável poder manter o equilíbrio na preservação futura da raça humana. São tantos os apelos anormais, que as pessoas já quase não acreditam na singeleza e importância do casamento. Ou o modelo, que pode estar errado, deveria sofrer alterações bem sérias. Ha informações colhidas nos livros espiritualistas que Francisco lê dando conta de como é estruturado o modelo familiar em planetas mais evoluídos que a Terra. Essas ilustrações, muitas das quais observadas nas obras ditadas pelo espírito de Ramatis, estão oferecendo a Francisco um novo foco de mentalidade. Ele até já sonha poder um dia reencarnar em um planeta assim, pleno de equilíbrio e experimentar a evolução humana através de outro modelo mais progressista. 284 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N esse momento ha um outro tema que o está deixando muito curioso. A ufologia. Seu próximo passo de pesquisa literária. Ha muito se descobriu em torno dessa realidade até certo ponto sobrenatural, um assunto bastante desmerecido pela imprensa generalizada. Mas Francisco está muito interessado na ufologia paranormal. Alguma coisa lhe diz que a pesquiza vale a pena. Ha conhecimentos fantásticos por traz disso. E ele vai fundo. Já consegue com facilidade dicernir o joio do trigo em suas pesquisas literárias. Está começando a descobrir um aspecto muito interessante. A provável correlação da existência dos UFOs, com a espiritualidade e pára-normalidade. O livro que está lendo, do escritor Eric Von Deniken, especula sobre a carruagem de fogo bíblica vista pelo profeta Elias, conforme está descrito na bíblia. Dando ao fato uma conotação bem sólida com a provável aparição de visitantes do espaço, desde a idade pré-histórica em nosso planeta, então confundidos com Deuses. O assunto é palpitante. Por algum tempo Francisco vai se debruçar sobre ele. Deseja conhecer a fundo esse tema. Teria sido Jesus um ser de outra galáxia? Desembarcando aqui na pele de um ser humano comum para desenvolver e deixar entre os habitantes do planeta seu projeto de evolução para esta raça adâmica? Francisco está empolgado com esse novo foco para seus conhecimentos literários. Enquanto isso, continuam suas vivências em busca de mais conhecimento sobre a doutrina espírita. Os trabalhos no centro espírita de Thiago são muito proveitosos. 285 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E stamos no final de 1974. Francisco vai entrar de férias na televisão. Vai viajar com a família à Campinas e São Paulo. A irmã Malvina reside atualmente em Campinas. E vai passar o Natal em família com eles, rever a tia Nenem e sua família, rever os irmãos Pedro e José que também já estão trabalhando em São Paulo, acolhidos pela irmã Malvina e seu esposo Danilo Medeiros. A TV Canal 6 precisa enviar um representante para o último programa do ano no Clube dos Artistas, com Airton e Lolita Rodrigues, na TV Tupi de São Paulo. Francisco é incumbido de representar a emissora co-irmã Associada Pernambucana. E também participa do programa. É seu primeiro grande momento na mídia nacional ATupi é na ocasião a maior rede de televisão do país. Sua presença lá é muito prestigiosa para sua carreira profissional. Despertanto interesse da Mesbla que o convida para permanecer em São Paulo. Francisco é levado à Mesbla através do amigo Roque, um publicitário de Recife, na ocasião transferido para trabalhar na Central Mesbla de Produções em São Paulo. Precisavam de um locutor com uma dinâmica de voz no estilo dele. Grava a primeira campanha promocional da Mesbla para Janeiro de 75, a ser veiculada em rede nacional. Seu trabalho de locução foi muito apreciado pela produção publicitária da Mesbla. Que insiste em sua permanência por lá. Mas Francisco não encara São Paulo para viver. E resolve não aceitar o convite, decidindo voltar para Recife com a família. Suas férias estão acabando. Ainda vai passar pelo Rio e Salvador, onde passará o Ano Novo 74/75. Sua vida profissional vai indo a mil maravilhas. Os assédios se multiplicam de forma nunca sentida antes. Paralelamente ao telejornal da TV, Francisco recebe um convite 286 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias para ser garoto propaganda da Primavera, uma grande rede de lojas de magazines da cidade. Isso vai lhe render um simpático apelido tempos depois no Aeroclube de Recife. Sua imagem está no vídeo a todo instante. Também em outros canais de televisão através dos comerciais. O Canal 6 está se equipando para inaugurar a televisão a cores no Nordeste. Coincidência ou não, obra do acaso talvez, é Francisco quem faz a primeira transmissão em cores, com o telejornal Factorama que apresenta ao meio-dia. Os próximos três meses vai dar uma reviravolta na sua vida. Um fato novo está se plasmando. A Lei de Causas e Efeitos está lhe agendando um reencontro cármico. Alguém que vai sacudir suas emoções de maneira muito intensa. Como sempre, as mulheres! Elas parecem ser o seu grande carma. Esta semana ele recebe uma nova tarefa do departamento de telejornalismo da TV. Viajar até a cidade de Panelas. Uma cidade bem pequena na região canavieira de Pernambuco, para uma reportagem da Corrida do Jerico, um evento do calendário turístico da Prefeitura local, que acaba de ganhar projeção nacional. O nome do evento já diz bem. Corrida de Jerico! É uma brincadeira festiva. A cidade se engalana, se enche de bandeirolas, recebe visitantes. A televisão também se faz presente. Claro! Para prestígio dos políticos locais. O carro de reportagem acaba de chegar à cidade pouco antes do meio-dia. A equipe está chegando a um clube onde será recepcionada com um almoço oferecido pelo Prefeito e um Deputado da região. Esse momento vai ser marcante para Francisco. O dia do assédio de uma rosa. 287 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O carro da reportagem está parando em frente ao clube. A equipe está saindo do automóvel. Na calçada passam duas jovens de braços dados. Uma delas fixa o olhar em Francisco com aquele atrevimento ainda incomum nas moças do interior. Olhar atrevido igual aquele, que se lembre, só o de Nely, vários anos antes. É linda a danada. Pele muito branca. Olhos pretos. Corpo esbelto, parecendo manequim. Cabelos pretos enrolados num totó com um boné bem feminino na cabeça, deixando o pescoço de fora. Bem jovem ainda. - Essa menina atirou em você direitinho! Será que acertou? Pergunta, de forma gozativa o câmera Claudio, muito observador. - E atrevida! Você viu o jeito dela me olhar? Os colegas da equipe de reportagem se divertem com a situação. Na verdade muito comum para o pessoal da TV. Mas esse! Esse é o dia que a onça veio beber água! Diz Cláudio, como sempre, muito imaginativo. Eles entram no clube. O almoço já vai ser servido. Não há tempo a perder pois a corrida dos jericos começa as 14h00. O dia está nublado e a chuva pode estragar a festa. São mais de duzentos jumentos. Não dá pra correr tudo de uma vez. As ruas são estreitas. É preciso fazer três corridas preliminares. Explica o Prefeito. Selecionando os quinze melhores, que disputarão a final. Depois dos cumprimentos do Prefeito e do Deputado, o almoço já está sendo servido. Uma mesa bem comprida. Todas as autoridades da cidade estão ali presentes. Todo mundo quer sair na televisão. Imagina! Se vão perder aquela oportunidade! Moças estão vindo até a mesa trazendo bandejas com suculentos 288 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias pratos, os mais variados, servindo os començais. Uma delas, bem por traz de Francisco pergunta se ele aceita espaguete ao molho de camarão. Ao se virar para ela Francisco dá de cara com a moça do boné. Bem que se diz que a mulher pega o homem pelo prato. Nesse caso a situação é bem realista. Com a fome que estão...Pra todo canto que ia ao redor da mesa servindo outros pratos, a moça não desgruda o olhar de Francisco.Acima de tudo, muito simpática e comunicativa. Pode-se dizer que sua presença é mesmo envolvente. Surpreendentemente comunicativa, para ser tão jovem. Pondera Francisco, já acostumado a esses assédios bem diretos. Após o almoço seguem-se as entrevistas e logo depois, todos já estão indo na direção do local da corrida dos jericos. Atal moça não desgruda da equipe.Acompanhando sempre de perto, ao lado da amiga. Para onde Francisco se vira, lá está o sorriso provocante dela. À tardinha, a cidade tomada de poeira pelo término das corridas dos jericos, numa rua sem calçamento, o Prefeito conduz a equipe da reportagem a uma das palhoças ao ar livre. No canteiro central da avenida existem várias delas e dá instruções para servir a equipe, de tudo que o pessoal quizer, que a Prefeitura paga a conta. Francisco aproxima-se de uma das mesas com a equipe. A juventude local cerca. Tem gente querendo autógrafo, outros apenas curiosos, mas isso faz parte. Francisco procura atender a todos com cordialidade. Lá vem a moça do boné trazendo um gurí pela mão. - Por favor! Ele quer um autógrafo! Francisco atende com um sorriso compreensivo. É um truque! É Só uma desculpa pra ela se aproximar. 289 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias L ogo ele vai descobrir que a jovem quer mais do que um simples autógrafo. Após receber o autógrafo o menino se retira, mas ela permanece ali. Com seu sorriso provocante. Encerrada a sessão de autógrafos todos sentam à mesa. Francisco então convida a moça e sua amiga para sentarem também. Claro que elas queriam mesmo era permanecer ali. - Não querem sentar um pouco? Qual é o seu nome? - Rose! - Responde ela. - Rose Rufino. Algumas cervejas, alguns pratos de tira-gosto, algumas doses de whisky, bons papos, a festa continua. Já passa das 19h00. Ha bastante gente na rua. Algumas barracas têm música tocando em serviços de som. O tempo passa rápido. O motorista então convida: - Vamos embora gente! Vamos pegar chuva no caminho. Vamos ter que dirigir com cuidado. Já é tarde! Não muito. Mas todos concordam e se preparam para regressar a Recife. Na despedida, Francisco já tem a perna entrando no carro da reportagem, chegando bem perto a moça pergunta: - Será que eu vou ver você de novo? - Todos os dias! - Brinca ele rindo. - Veja o telejornal. - Eu já lhe vejo todo dia! Mas nunca tinha visto assim tão perto. Ela está agora bem próxima dele. - Espero não ter lhe decepcionado. - Diz ele. - Tem um jeito de saber! - Responde ela, provocantemente. - Co..? - Ela então o beija na boca. Ali! Em plena praça! Na presença de todos! Sem lhe dar tempo nem pra respirar. Francisco ainda não sabe bem o que está acontecendo. O motor do carro dá a partida. Ele entra no veículo e vão embora. Ela fica na praça acenando com a mão. A amiga se aproxima e ambas saem caminhando juntas. 290 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Rapaz! Que sucesso você está fazendo, hein! Se me dissessem eu não creditaria! - Comenta o câmera Cláudio fazendo gozação. A equipe toda se diverte. - Eu ainda estou aqui meio zonzo! Essa menina me tirou do sério! Pegou-me de surpresa! Os colegas riem bastante. Francisco também se diverte. O assédio foi mesmo bem incomum. Os tempos estão mudando muito rápido. As mulheres já estão quase tão liberais quanto os homens. Elas mesmas tomam a iniciativa. Mas isso já vem de tempos atrás. Lembra da Nely? Do jeito como ela provocou Francisco?Agora é essa menina!Ainda mais jovem. - Assédio desse tipo eu ainda não tinha visto! - Comenta Francisco. Não podia imaginar o motivo verdadeiro do forte interesse da jovem Rose. Só mais tarde ele vai descobrir. Foi embora, imaginando que nunca mais veria aquela moça. Isso era o normal para pensar em tal situação. Uma semana depois, sábado à noite, Francisco está saindo da Televisão após o seu noticiário da noite. O moço da recepção lhe entrega o telefone. - É pra você! - Alô! - Olá! Pensou em mim esta semana? - Quem está falando? - Puxa vida! Mas você não lembra nem da minha voz? - Bem... Eu atendo alguns telefonemas por semana. É normal. Mas não estou lembrando de você. Quem é? - Está bem, por hoje você está perdoado. Vamos ver da próxima vez! E desligou. 291 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Eu, hein! Deve ser alguma doida! - Pensa Francisco. Passam-se três dias e, na saída de TV novamente o telefone está a sua espera. - É a tal moça! - Diz o recepcionista da TV. - Alô! - Olá! E hoje? Será que você sabe quem sou eu? - Eu quem? - Francisco já está muito curioso. Essa pessoa é mesmo insistente. - Não me diga que não está reconhecendo minha voz! Faz só três dias que nos falamos! -Claro que estou! Só que não sei quem é você! Porquê não pode dizer seu nome? - Eu sou a única rosa de sua vida! Que não consegue tirar você do pensamento! - Ela mudara de tom. Parecia estar séria ao dizer isso. Rosa... Rosa...- Pensa Francisco. Não conheço nenhuma Rosa... Rose!!! Será aquela garota de Panelas? Francisco resolve atirar no escuro. - Escuta! Você gosta de corrida de Jerico? - Ela então ri gostosamente ao telefone. - Você me descobriu! Sou eu sim! - Olá Rose! Porquê não disse desde a primeira vez? Ambos continuam rindo ao telefone. - Eu não sabia como você iria me receber! Tive receio de ter sido mal interpretada por você! Nos encontramos lá em Panelas... Aquilo tudo foi muito divertido...Mas fiquei com receio de ter sido mal interpretada! Repetiu ela. - Não Rose! Na verdade nem imaginei que fosse-nos falar mais. É tão comum a gente conhecer pessoas por ai, que vêm e que se vão, com toda naturalidade... Não pensei nada não! - Realmente ele ainda não tinha motivo para ficar pensando nela. Procura ser franco. - Você falou... lá em Panelas... Você não é de Panelas? 292 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Não! Eu moro em Caruaru! Estive lá com a minha tia para a festa do Jerico. Não incomodo você com meus telefonemas? - Não! Claro que não! - Posso ligar outras vezes? Já estou até pensando em formar um fã clube seu aqui! Ela continua demonstrando prazer em rir daquilo tudo. Parece brincar propositalmente com a situação. - Pode ligar, sim! Pode ligar quando quiser! Quizesse ou não, Francisco está gostando da brincadeira. Do jeito quase infantil dela. Esse foi o primeiro de uma série de contatos que ela passou a ter com ele. Éra sempre ela quem liga. Diz que vai para a telefônica de Caruaru onde tem uma amiga trabalhando lá Aos poucos vai esclarecendo que no princípio, estava apenas procurando se distrair um pouco, quando o conheceu. Mas agora já não parece uma brincadeira. Pois não consegue tirá-lo do pensamento. Por várias vezes Francisco procura esclarecer Rose que o que ela sente, ou acha que sente, provavelmente é apenas algo psicológico por haver conhecido, “tão de perto” uma pessoa da televisão. Mas ela continua insistindo, tentando se explicar: - Não! Isso é diferente!. É uma coisa que eu nunca senti por ninguém! - Mas você ainda é muito jovem! Vai ter tempo de se apaixonar de verdade pela pessoa certa! - Então me diga como devo fazer para, primeiro me desapaixonar de você. Não entendo o que se passa comigo! Beijei você por brincadeira! Mas você ficou dentro de mim de um jeito que não quer mais sair! 293 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Deixa de drama Rose! Olha! Eu não tenho culpa! Afinal, foi você quem me surpreendeu com aquele beijo! Achei mesmo que tudo não passava de uma brincadeira! Ainda vou ter que pensar muito sobre isso para saber o que posso lhe recomendar. Só sei que você deve procurar me esquecer! Francisco não tem coragem de dizer a Rose que ela está se apaixonando por um homem casado. Espera que ela desista dessa paixão repentina. Pelo menos é isso que lhe parece. Coisa de menina moça. Pedro Elias acaba de chegar a Recife em visita às famílias de Francisco e Sandra e de Lurdes e Rony. Já chegou à tardinha e agora, Sandra está chamando para o jantar. Todos se posicionam à mesa para um café caprichado. Ha uma vasilha no centro da mesa com pedaços de fruta-pão cozida. - E o que é isso? - Pergunta ele. - É fruta-pão! Seu Pedro! - Responde Sandra. - Fruta-pão? - Ele nunca havia visto aquilo. -É! Seu Pedro! Come-se ela cozida! Com uma manteiguinha por cima, é muito gostosa! Pedro Elias passa a faca no tablete de manteiga e espalha por cima do fruta-pão quentinho, que já colocara no seu prato. E experimenta uma garfada. Em seguida exclama: - Eita! Que o home da padaria lascou-se! Todos caiem na gargalhada entendendo o que se passa na mente dele. Pelo seu entendimento as padarias devem estar em grande prejuízo. É preciso lhe explicar que a fruta-pão, muito comum em Recife, 294 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias somente dá em certas épocas do ano. As meninas se divertem com a visita do vovô. (Veja fotos) É uma sexta-feira, Rony, muito do espirituoso, estimula Francisco para levar seu Pedro a conhecer o BarAritana. Ha pouco tempo a Rede Tupi de Televisão havia veiculado uma novela de muito sucesso chamada - Aritana. Uma estória envolvendo grupos indígenas. Alguém então teve a idéia de abrir esse bar, bem no centro da cidade, muito freqüentado pelas pessoas que estão diariamente saindo do trabalho por volta das 18h00. Francisco gosta da idéia de levar seu Pedro lá. Ha um detalhe bem divertido nesse bar. É um ambiente fechado, com ar-condicionado e decoração na linha da novela Aritana. Muitos penduricalhos indígenas pendurados nas paredes. Pouca luz. Simulando o ambiente de uma oca. Mesinhas e cadeiras de madeira. Pequenos vasilhames de palha de coco trançada sobre as mesas... Até os pratos de tira-gostos são de madeira envolvida com palha trançada. E um detalhe extremamente sensual. As garçonetes servem os clientes totalmente nuas. Isto é. Sem sutiã nem calcinha. Apenas um curtíssimo saiote de alguma coisa parecida com material de renda. Ao se baixarem para depositar os produtos nas mesas, quem está por trás, mesmo naquela penumbra, não deixa de apreciar o entre-perna do traseiro das garçonetes. Pedro Elias, que ainda tem uma vista muito boa e que nunca havia visto tal coisa em toda a sua vida, exclama num misto de horrorizado e surpreso, mas igualmente satisfeito e divertido: - Home! Mas é possível! - Diz ele passando a mão na boca pra lá e pra 295 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias cá. Está nervoso. Claro!Asituação é mesmo surpreendente. - E as garçonetes tão nuas! - Observa ele de olho arregalado falando alto e provocando o riso das pessoas ali presente. Rony bola de rir com a reação dele. E esclarece. Que aquilo é muito natural ali. Faz parte do chamativo do bar. - Mas espere! E a políça deixa? Mais gargalhadas. Em toda sua vida Pedro Elias aprontou muito com as pessoas. Sempre gostou de se divertir com os outros. Dizia Josina. Fazendo mangoça junto com os seus irmãos. Agora, a vida está lhe dando o troco. É ele a personagem das diversões dos outros. Rony não iria deixar passar essa oportunidade de diversão com ele. Mostrando-lhe situação como essa do Bar Aritana, que sacode a perplexidade do Recife dessa época. Imagine seu Pedro! As semanas continuam iguais. Agora Rose precisa falar com Francisco pelo menos duas vezes por semana. Nesse momento ele está pensando seriamente em como a imagem pública de uma pessoa da televisão pode atingir pessoas de maneiras tão surpreendentes. Pensando nisso certo dia, ele recordou o problema vivido com Nely. Naquele caso fora diferente. Ela o vira pela primeira vez sem o impacto psicológico de estar conhecendo uma pessoa famosa e isso foi o suficiente. Não havia o carisma forte que a televisão proporciona. Ela também estivera em sua vida tão furtivamente, por algo assim, muito parecido com o que está acontecendo com Rose. Embora o quadro seja completamente diferente. Certamente ela não continuaria por muito tempo vivendo essa ilusão 296 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias televisiva. Eles nem se vêem freqüentemente! Ela o vê pela televisão. Mas isso é diferente. Pensa ele. Dois meses depois o apresentador Francisco Elias é escalado para apresentar o concurso Miss Pernambuco. Um grande acontecimento da beleza feminina realizado anualmente no ginásio Geraldão, numa iniciativa das Emissoras Associadas. O mesmo concurso que consagrara anos antes a jovem Nely Padilha, Miss Rio Grande do Norte. Francisco é também um repórter de campo da emissora. Vai às cidades do interior nos eventos locais para escolha das candidatas a Miss que representarão as suas cidades. Já está sendo anunciada a escolha da Miss Caruaru, numa festa com muita pompa a se realizar no Clube daAABB. A Rose está outra vez ao telefone. - Sábado será a festa da escolha da Miss Caruaru.Você vai estar aqui? - Vou sim! Este ano me escalaram para apresentar o Miss Pernambuco e eu tenho que acompanhar a comitiva dos Diários Associados em algumas dessas festas pelo interior. E vamos estar sim, em Caruaru. - Vamos poder conversar? - Claro! Você vai à festa? - Vou sim! Com minha tia. Aquela que você conheceu lá em Panelas! No sábado à noite Francisco chega à Caruaru com a equipe da TV.Ao se aproximar do clube Rose já o aguarda. O Câmera Cláudio também está chegando com Francisco. Ao avistar Rose ele comenta: - A onça já veio beber água de novo? - Não brinca que esse caso é sério! 297 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Cochicha Francisco para que Rose não perceba. Esta noite os dois conversam bastante. Ele continua tentando demover Rose da idéia de alimentar essa paixão. Mas ela parece mesmo decidida. - Rose, qual é a sua idade? - Dezessete anos! - Rose eu sou dezenove anos mais velho que você! Isso me assusta! Você não acha que precisaria encontrar alguém mais jovem pra você? - Se você me disser como eu posso deixar de gostar de você, aí eu vou tentar! - Você está me pedindo algo que sabe que não posso fazer! - Eu nunca me apaixonei antes! Assim! É tão gostoso o que sinto por você! Parece mesmo uma coisa muito impossível! Sabe... Às vezes eu tenho a impressão que já nos conhecemos ha muito tempo... No dia que lhe conheci, ao olhar pra você parecia que estava reencontrando uma pessoa querida que não via ha muito tempo... - Isso pode ter explicação Rose! Pelo menos do ponto de vista da reencarnação. Quem sabe? Se já nos conhecemos de outras vidas passadas... - Você acredita em espiritismo? - Eu sou espírita! Pelo menos estudo um pouco sobre a Doutrina. Procuro me esclarecer. São tantas coisas na vida que parecem sem resposta! E grande parte delas o espiritismo justifica. - Pois é! Só sei que o único jeito de me sentir feliz é estar perto de você! Como agora! Meu coração dá pulos, só de estar com você! E lhe comunica algo que inicialmente o assusta: - Muito breve eu vou morar em Recife! Vou ficar bem perto de você! Ih! Agora danou-se! Pensa Francisco. Ele lhe devolve uma 298 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias expressão de repreensão no olhar. Lembrando-se que já ouviu falar de casos em que a mulher endoida pelo cara e segue-o para onde ele for. - Mas pode deixar! - Tranqüiliza-o Rose. - Não sou apenas uma jovem deslumbrada. Eu vou estudar, vou trabalhar! Quero ter minha própria vida! - Ela parece muito decidida. E nem completou ainda dezoito anos. Ele pondera: - Rose! Eu não sou exatamente o melhor partido para você! E sempre reforça considerando a diferença de idade. - Nós já falamos sobre isso! - Retruca ela. Vamos mudar de assunto! Você pode me ajudar a arranjar trabalho lá em Recife? - Posso tentar! Francisco volta para Recife. Os contatos entre ambos vão continuar por telefone, duas a três vezes por semana. Rose se mostra cada vez mais carente. Já assumiu até um tratamento carinhoso para ele. Chama-o de Beínho! O pior é que ele gosta. Nunca fora tratado com tanto carinho assim... Mas a situação exige um raciocínio maduro. Poderia realmente, alguém se apaixonar apenas por uma imagem? É sobre isso que às vezes tenta esclarecer Rose. O tempo vai se encarregar de mostrar a ele que talvez, a Rose não seja um mero “acaso” em sua vida. Ele já sabe que os “acasos” não existem. São só consequências. Mas nesse caso, consequência de quê? De ser ele um repórter de televisão? Só isso? Ou haveria algo mais? Que ele ainda não sabe? O tempo vai lhe dar todas as respostas. Essa lógica não lhe basta. Nesse tempo Francisco já leu em profundidade inúmeras obras espíritas. Já está envolvido com 299 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias aprendizado prático em centro espírita, e sabe que o destino oferece laços incríveis. Seria Rose uma companheira de longas jornadas em vidas passadas? Não demora muito e ele vai ter essa confirmação. Em algumas ocasiões Francisco acompanha o amigo Roberto Nogueira, também apresentador da TV e cantor, em alguns de seus shows pelas cidades do interior. Geralmente vão no sábado à noite e regressam de madrugada. Nogueira gosta que Francisco seja seu apresentador nesses shows. - Rose estou indo amanhã com Roberto Nogueira para um show dele numa cidade aí próximo de Caruaru. - Ah! Que bom se a gente pudesse se ver! Escuta! Porque você na volta não passa aqui em casa? Passaria o domingo com a gente! Minha mãe quer muito conhecer você! Ih! Agora pegou! Pensa ele. Conhecer a família de Rose... Humm... Mas aceita o convite e combina com o amigo cantor. Vai conhecer a família dela na companhia dele.Apenas como amigos. É isso! Está aí a solução! Na volta do show de manhã cedinho eles passam na casa de Rose. Conhecem então sua família. Gente simples. De classe média. O pai é um pequeno comerciante. Um belo café da manhã foi preparado para os amigos de Rose. A vizinhança toda começa a chegar. Querem conhecer o Repórter e o Cantor que estão na casa de Rose. Um domingo fora do comum para aquela gente. Bastante divertido. Mas após o café Nogueira quer ir embora. Está cansado do show e com muito sono. Francisco também. - Não! Não vão embora! Já estamos preparando um almoço especial 300 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias para vocês! O pai de Rose até abateu um carneiro para receber em sua casa o pessoal da televisão! Olha aí uma tremenda saia justa! Nogueira argumenta que precisa realmente voltar para Recife. A pressão da família toda concentra-se em Francisco. Nogueira então argumenta: - Rapaz fica ai! Passa o dia com eles! Eu vou de ônibus! - Estavam viajando no carro de Francisco. - Fica aí! Insiste ele. É até deselegante não participar do almoço que estão preparando! Não tem problema! Eu vou de ônibus! Numa boa! Rose que já está colada nessa discussão também insiste: - É Beínho! Fique aqui com a gente! Papai teve tanto gosto em receber vocês! À tardinha você vai embora! - Pois está bem! Vamos deixar Nogueira na Rodoviária! É aqui perto? Ela indica a direção e vão deixar o amigo Nogueira no próximo ônibus para Recife. Como diria o Cláudio se estivesse presente, a onça tá é com muita sede. Deixa estar! Nogueira! Quando eu voltar você vai me pagar! Por me meter nessa saia justa! Vai pensando Francisco no caminho da rodoviária. Não dá pra falar nada com ele agora. A Rose está com eles. Francisco conhece então a família de Rose. O pai, a mãe e dois outros irmãos, uma outra mocinha menor e um rapaz também mais moço que ela. Rose é a mais velha da família. Seu pai já está casado pela segunda vez. Após conversarem um pouco Francisco está visivelmente caindo de sono. - Você esteve acordado a noite toda! Não quer dormir um pouco? Deite lá dentro em nosso quarto! Dê um cochilo! É o meu quarto e de minha irmã. Mas ela já levantou. Você pode dormir tranqüilo na minha cama! 301 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Caindo de sono e ressaca ele aceita. Rose está usando tudo que já sabia para amarrar o interesse de Francisco por ela. E a cordialidade é uma de suas armas. Enquanto isso, a mãe dela está se esmerando preparando um laudo almoço. Umas 11h30 Francisco acorda. Rose vai ao seu encontro e saem para uma visita rápida à casa de sua tia ali na mesma rua. Após o almoço ele já quer ir embora. - Não vá agora não! Vamos dar umas voltas por ai! Você já conhece bem Caruaru? - Não! Da cidade mesmo não conheço quase nada! Ela o leva para um passeio pelo Morro do Cruzeiro, um dos pontos turísticos da cidade e a outros locais aprazíveis da cidade. O que ela deseja mesmo é ter um momento a sós com ele para conversarem um pouco mais. É um domingo muito divertido. Só pela tardinha Francisco pega a estrada de volta para Recife. Agora viajando sozinho e após tomar algumas doses durante o dia, procura dirigir com muito cuidado. A rodovia de Caruaru passando pela serra é famosa pelos acidentes. Novos contatos entre os dois vão continuar apenas por telefone. Enquanto viaja ele repassa sua vida. Ainda não sabe o motivo, mas está se afeiçoando fortemente a ela. Imagina que isso talvez seja apenas uma busca psicológica pelo clima de namoro, que infelizmente já não mais existe entre ele e a esposa. Apenas uma forma de compensação psicológica. Rose é uma moça. Virgem. Ainda por cima, menor de idade. Ele não pretende mudar nada disso. Precisa a todo custo descobrir um jeito de afastar-se dela. Mas não quer magoá-la. Deve haver um jeito... Depois de conhecer a família de Rose, agora mais que nunca ele precisa encontrar uma solução. Rose é uma moça de boa família. Precisa ter oportunidade de encontrar alguém apropriado, um rapaz 302 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias solteiro. Como já está habituado a deixar que o próprio tempo lhe dê as respostas, deixa correr. Tudo tem um motivo e sua hora certa. Confia ele. As mulheres! As mulheres! Não lhe dão trégua. Vai pensando ele ao volante. Sua carência afetiva acumulada é um apelo muito forte. Como teria sido diferente se pudesse sentir-se amado assim pela mulher que escolheu para se casar... Francisco é um estopim de virilidade que explode com muita facilidade. As conseqüências, bem, isso ele ainda não consegue dominar. Enquanto havia Divalda na parada, Francisco evitava qualquer estreitamento no relacionamento com Rose. Mas agora... Como se diz!Acarne é fraca... Embora as intenções sejam boas. E Rose parece advinhar que o caminho está aberto para ela. As suas investidas são cada vez mais difíceis de resistir. Como vai ser sua vida daqui em diante... Deixa correr... Deixa correr... Não sou dono do meu próprio destino! Considera Francisco. - Olá! Como vai! - Vou bem Rose! E você? - Ela está novamente ao telefone. - Vi você outro dia no Clube dos Artistas. - A televisão havia reprisado o programa de fim-de-ano. - Ainda pretendo fundar um fãclube seu aqui em Caruarú. - Diz ela brincando. - Estou indo morar ai em Recife já pra semana! Como já lhe falei, gostaria que você me ajudasse ai! Você conhece tanta gente, não é? Preciso trabalhar! - É! Pode ser! Quando chegar faça contato. Vamos ver o que podemos fazer por você. Essa disposição dela em encarar o trabalho lhe dá certa 303 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias tranqüilidade. Seu orçamento doméstico não lhe permite comprometer nada com a manutenção de uma outra família fora do casamento. Mas podia ajudá-la a encontrar trabalho. Abriria portas para ela. Isso não lhe custaria nada fazer. Nesse momento, dias depois do encontro com a família dela em Caruaru, Nogueira lhe chega com mais uma questão feminina: -Amigo! - Diz ele,com jeito de gozador. - Você precisa resolver a questão daquela figura que trabalha lá no Bandepe onde eu tenho conta! Ela não me deixa em paz! Quer a todo custo fazer contato com você! - Nogueira! Não me sacaneia! Que conversa é essa? - Não! É sério! Ela é manequim! Desfila nessas festas do clube do Banorte, onde você esteve outro dia apresentando um desfile com a Carmem Tovar. Está louca varrida por você! Não me deixa em paz! - Ainda bem que eu não tenho conta no Banorte, hein Nogueira! - Eu sei quem é! Diga que me deu o recado e pronto! - Mas você não vai ligar pra ela? - Nogueira! Eu já tenho problema demais! Vê se me poupa! O amigo ri gostosamente da situação. Rose já está em Recife. Inscreveu-se num cursinho e agora está ao telefone tentando falar com Beínho. - Ele não está! Viajou à Natal! - Informa a telefonista da gravadora Center. - Sabe quando ele volta? - Acho que amanhã! Quer deixar recado? - Diga que foi Rose quem ligou! Já estou em Recife! Faço contato com ele depois! O que será que Beínho foi fazer em Natal! Pensa Rose. Ela continua apaixonada. Até tentou se desvencilhar da lembrança dele, com outras alternativas de namoro em sua cidade, mas nada vingou. Seu 304 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias coração já havia sido entregue a Beínho! E agora... Residindo em Recife... Poderia ser que desse certo a aproximação dos dois. Acredita ela. Mas esta semana Francisco está vivendo uma situação muito dolorosa com um problema de saúde na família. Não dá para pensar em Rose. Sua mãe telefonara no dia anterior pela manhã, falando de Natal. Com uma terrível notícia para lhe dar: - Meu filho! Você precisa vir aqui em Natal! Seu irmão Jasiel está hospitalizado em uma UTI. Tentou o suicídio com um tiro na cabeça, meu Filho! - Ela chora desconsoladamente ao telefone. Francisco está perplexo. Meu Deus! Quanta dor essa criatura já passou em sua vida! Imagina ele. - Está bem! Mamãe! Ainda hoje à tarde estarei ai! Fique calma! O que está feito, está feito! Deixemos que Deus tome conta do resto! - Ele já foi operado. Mas ainda inspira cuidados. - Informa ela. - E o pior! O médico me falou que ao sair do hospital ele deve ser levado imediatamente para uma clínica psiquiátrica. Pois insiste que vai terminar o que começou! Que vai repetir o suicídio! Precisa de tratamento adequado! - Não se desespere mamãe! Estarei com a senhora ainda hoje! Deus ha de estar no caminho dele! Rese por ele! - É só o que eu faço meu filho! Embarcou ao meio-dia de avião e logo já está em Natal. Encontra sua mãe no hospital. Conversa com o médico que informa sobre o estado clínico de seu irmão. - Mais dois dias e já poderemos dar alta a ele da UTI. O médico confirma a necessidade de entregá-lo aos cuidados de uma clínica psiquiátrica.Seu desequilíbrio é visível. Francisco providencia as passagens de avião para que sua mãe vá com o irmão para Recife. O médico garante mandá-lo direto do hospital numa 305 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias ambulância para oAeroporto. Voltando a Recife ele faz contato com um médico conhecido, que sempre aparecia em algumas entrevistas na televisão. Ele tem uma clínica psiquiátrica. - Não se preocupe! - Diz o médico. - Vamos receber seu irmão. Vamos fazer por ele o melhor que podermos. Assim que chegar leveo para a clínica! Dois dias após o irmão sai do hospital direto para Recife. Francisco já os espera noAeroporto. Do aeroporto vai direto para a clínica levando o irmão e sua mãe. Ele é imediatamente internado. Ela fica com ele no apartamento da clínica. Seu estado emocional realmente é bastante anormal. O psiquiatra informa que a presença da mãe junto dele vai ser muito bom para sua recuperação. Inicía-se o tratamento psiquiátrico de Jasiel. Será necessária uma permanência de trinta dias na clínica, com tratamento intensivo. Francisco conversa com Thiago no centro espírita sobre o episódio de seu irmão. - Um suicídio é algo que normalmente envolve a ação de inimigos espirituais que trabalham para desequilibrar mentalmente a vítima. Vamos ver o que podemos fazer por ele aqui no centro. - Tranqüilizao Thiago. Começam assim, paralelamente ao atendimento psiquiátrico, trabalhos de ajuda para o seu irmão Jasiel, através de visitas de socorro espiritual feitas à clínica onde ele se encontra. Francisco recorda alguns dias após a internação do irmão, um episódio vivido por ele tempos atrás em Natal e que contara ha uns dois anos passados por ocasião de uma Festa de Santana em Caicó. 306 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N aquela ocasião, o irmão Jasiel comentara que estivera certo dia à noite com uns amigos caminhando por uma rua em Natal. Quando encontraram um pacote num cruzamento. É madrugada. Pelo aspecto o pacote deve ser um despacho de Umbanda. Ele e os amigos, que vinham de uma bebedeira, macularam o despacho zombando dos tolos que haviam deixado aquele excelente tira-gostos ali com a garrafa de cachaça. O galeto aberto ainda estava morno. Comeram o despacho, beberam a cachaça, depois chutaram o pacote espalhando a farofa pelo chão. Na ocasião em que ele contara isso na roda de amigos em Caicó, Francisco lembra que havia advertido: - Rapaz! Isso não se faz! Não devemos mexer com o que não entendemos! - Que nada! Isso é coisa de gente besta! Afirmara categórico o irmão, motivado pela soberba de seu treinamento militar e pelo desconhecimento sobre o assunto. Sua personalidade refletia o militar, acostumado a ação bruta, treinado como soldado da PA, a polícia de choque daAeronáutica em Natal. Treinado para ser rude e enfrentar qualquer situação. Como tantos outros militares, achava essa coisa de despacho uma tolice. Francisco apenas lembrou-se do episódio. Não comentou nada com Thiago. Seria prematuro fazer qualquer julgamento. A esse respeito. Aos poucos a situação carmica de seu irmão vai se esclarecendo durante as freqüentes reuniões de desobsessão à distância, feitas no centro espírita de Thiago. Os mentores espirituais informam que a cada semana estão enviando emissários espirituais devidamente treinados, providenciando a preparação de Jasiel para assim que puder, ser trazido ao centro para os trabalhos definitivos de desobsessão. Seu quadro clínico espiritual é dos mais graves. Mas com a graça de Deus, ele será recuperado. Confiam nisso plenamente. 307 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias H a uma lógica para que o irmão Jasiel pudesse merecer aquele socorro. Como pessoa, em sua fortaleza muscular de militar bem treinado, ele sempre foi um defensor dos oprimidos. Se via alguém em qualquer lugar maltratando uma criança, um idoso ou qualquer outra pessoa oprimida, imediatamente tomava as dores, intervindo em favor da vítima. Talvez por isso, por seu sentimento em proteger os desamparados, ele estivesse em posição de merecer aquele atendimento tão peculiar. Francisco confia que os amigos espirituais haveriam de ajudar muito na sua plena recuperação. Por trinta dias enquanto permaneceu na clínica na companhia de sua mãe, ele recebeu a ajuda espiritual. Houve até momentos muito gratificantes nesse processo, materializando em Francisco cada vez mais, a crença na efetiva ação do socorro espiritual. Numa dessas reuniões no centro, a entidade espiritual dá informações sobre o estado de seu irmão, e acrescenta: - Os inimigos espirituais dele não estão conseguindo atingi-lo lá na clínica onde está, graças à ajuda espiritual que ele está recebendo. Inclusive ha lá uma senhora idosa. - É a mãe dele. Graças às orações dela também. Por enquanto eles não conseguem se aproximar dele. Mas estão lá. De prontidão. Aguardando uma brecha para agir. Só quando ele puder ser trazido aqui, para o ambiente energizado de nosso centro é que se poderá retirá-los de junto dele. Ha muita dívida do passado. Que agora eles estão aqui para cobrar. Mas fique tranqüilo. Vamos ajudar seu irmão! Esse é um grande conforto para Francisco. Ele sabe que pela Lei de Causa e Efeito seu irmão está recebendo o atendimento adequado a que tem direito. Sua ignorância da realidade espiritual não impede que possa ser socorrido. Ele tem alguns créditos a seu favor. É com essa ferramenta que a espiritualidade trabalha. 308 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco já leu muito sobre isso. Como fizera inúmeras vezes com aqueles desvalidos que socorreu, colocando-se em defesa deles, seu irmão agora está recebendo a dádiva do merecimento. Francisco sabe. É assim que age a infinita sabedoria da piedade de Deus. Ele mesmo. Por quantas vezes já havia ajudado a socorrer pessoas naquele centro espírita. Contribuindo com sua humilde experiência de doutrinador. Agora recebe o retorno, de poder socorrer seu próprio irmão com a ajuda dos amigos da espiritualidade ali presentes. Coincidência? Que maravilhosa e providencial coincidência! Aquilo era sim, fruto da infinita sabedoria Divina. O socorro sempre aparece. Quando o paciente está pronto. Já havia aprendido isso nos livros. Agora via na prática. Com um exemplo em sua própria carne. Chamado à clínica psiquiátrica no dia em que seu irmão vai ter alta, Francisco conversa com o médico: - Bem! Meu amigo! O que nós podíamos fazer por seu irmão já foi feito! Ele está bem. Está equilibrado. Não repete mais que vai continuar a tentativa de suicídio e já pode ter alta. Agora... Se você quiser tentar outra alternativa! Francisco agradece pelo apoio recebido para o tratamento do irmão e vai com sua mãe e Jaziel para casa. Vai pensando... Outra alternativa... Que outra alternativa? Será que aquele médico é também espírita? O que o psiquiatra teria querido dizer? Se tratava-se de atendimento espiritual, o irmão já está recebendo. Vai ver que é isso! Conclui ele. Seu apartamento é na Rua Sete de Setembro, esquina com a Conde da Boa Vista, no centro de Recife. Seu irmão está aberto. Parece demonstrar novamente aquele temperamento divertido natural dele. Sandra e as crianças foram 309 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias orientadas para recebê-lo bem evitando comentar sobre o tratamento e tudo corre bem. O próprio médico havia facilitado as coisas quando sugeriu a Jaziel que permanecesse por mais trinta dias em Recife. Caso necessitasse retornar à clínica estaria perto. Dona Josina enfim, coitada, pôde regressar a Caicó. O filho parecia estar recuperado. Francisco convida Jaziel para conhecer o centro espírita do amigo Thiago, que já lhe havia apresentado lá na TV. De cara, houve uma empatia natural entre Jaziel e Thiago. Quem não gostasse da figura de Thiago não gostaria de mais ninguém. Jovem ainda, muito amável, inteligente e atencioso. Mantinha sempre um leve sorriso deixando as pessoas muito à vontade. Jaziel se sentiu muito bem em presença dele. Thiago também gostou muito de Jaziel. - Apareça lá no centro para conhecer o nosso trabalho! - Convidara Thiago tentando abrir o caminho. - O que você tem a perder? -Argumenta Francisco depois. - Posso lhe garantir que a melhor coisa desse mundo para todos nós é assumirmos que não sabemos nada e que vamos estar sempre prontos para aprender algo. Com isso, novas realidades e descobertas vão se abrindo para nós. É o que você vai ver lá. Ha muita caridade no trabalho explícito do Centro Espírita. Eu gosto do que vejo lá! Com esses argumentos Jaziel aceita numa boa, a idéia de ir ao centro espírita de Thiago. Os trabalhos de desobsessão direta vão começar com ele na quarta-feira que se segue. Thiago recebe o novo amigo com muito afago. Afinal é um irmão de quem Francisco muito gosta. E recebe-o com muito prazer. Faz questão de externar isso para deixá-lo muito à vontade. 310 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C omeça a reunião espírita como sempre, naquela sala em penumbra com uma pequena luz azul pendurada sobre a mesa, que está coberta com uma toalha muito branca, um jarro de flores no centro e alguns copos com água, que vai ser fluidificada durante a reunião. Outros atendimentos de socorro espiritual são realizados e chega a vez de Jaziel. Seu trabalho de desobsessão foi deixado para o final, dado a sua complexidade. De antemão os médiuns presentes já sabiam que seria um trabalho de peso. Verdadeiras feras do mundo espiritual seriam trazidas ali aquela noite. Quase sempre amarradas por grilhões energéticos usados pelos bem-feitores espirituais. Às vezes isso é necessário, tamanha é a feracidade de algumas dessas entidades endurecidas. E no caso de Jasiel, ha algumas delas envolvidas. Inimigos seus do passado remoto. Experiências extraordinárias vão ocorrer ali em torno do tratamento dele. Ninguém espere que a atuação espiritual seja apenas um processo de mão única. Ha sempre duas ou até mais causas de esclarecimento envolvidas em uma única fase de tratamento. A espiritualidade é magnânima. Como o é também o Criador. Ha sempre um acréscimo. Recebe-se sempre mais do que o esperado. Assim vai ser também com o irmão Jasiel. Socorro em dobro a ele e a seus algozes. Que magnífica é a natureza infinita de Deus! Em cuja ótica não existem criminosos. Mas apenas vítimas. Todos. Em graus diferentes, porém. Em muitos casos vítimas de sua própria ignorância. 311 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Q uem fez novo contato foi a Rose. Avisa que está na cidade, morando com suas amigas no pensionato que mensionara. Matriculou-se em um cursinho preparando-se para o vestibular. Marcam o primeiro encontro. Conversam sobre como organizar a vida dela. - Você já trabalhou em alguma coisa? - Bem... Em fins de ano eu já trabalhei em algumas lojas em Caruaru, trabalho temporário. Mas já tenho alguma experiência com vendas e atendimento em lojas. Posso lhe chamar de Beínho? - Francisco está curioso. - Pode! Mas porque Beínho! - Ah! Já faz tempo que eu lhe chamo assim! - Francisco olha bem dentro dos olhos de Rose. Dá para perceber a paixão dela. E procura direcionar as emoções dela na direção do estudo e do trabalho. - Rose! Você precisa se dedicar aos seus estudos e trabalho... - Não! Não mude de assunto! Você sabe que eu me apaixonei por você, não sabe? Tudo por causa daquele nosso beijo em Panelas... Pondera ela. - Você pode até ficar bravo comigo. Mas sabe que aquele beijo que eu lhe dei foi uma aposta que eu fiz com a minha amiga naquele dia? Apostei que namoraria com você! E a prova seria beijar você pra todo mundo ver! Ganhei a aposta! Era só uma brincadeira! - Diz ela com certa ternura. - Mas não sei porque, nunca mais pude esquecer você! Não está bravo comigo? - Não! Só surpreso! Quer dizer que o beijo lhe traiu? - Foi sim! - Ela ri de sua própria ingenuidade. - Está vendo? Foi mexer com o que estava quieto! Ambos riem. Estão se divertindo. Essa é uma situação muito particular. Francisco continua sem saber bem como lidar com ela. Lhe agrada muito ter o amor de uma mulher tão jovem. Mas essa diferença de idade... Isso o preocupa.Ainda por cima, uma virgem! E 312 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias menor de idade! Tudo aponta para algo chamado “problema”. Ele continua ouvindo lá no mais recôndito de sua personalidade, a voz de seu pai: Você não mexa com filha alheia!... Procura se manter fiel àqueles princípios passados de pai para filho. Conforme havia lhe prometido, Francisco tenta arranjar emprego para ela. Já no dia seguinte liga para ela. - Rose! Tenho novidades para você! Fiz um contato hoje com o Ze Mário de Andrade! Falei de você! Como é esperta! Comunicativa! Você pode vir amanhã de manhã à loja. Ele quer conversar com você! Eu apresento você a ele! Zé Mário de Andrade é proprietário de algumas pequenas lojas de eletro-méstico, uma delas na Rua da Concórdia, vizinho ao prédio da gravadora Center, onde Francisco trabalha como locutor. Acaso? Bem, o certo é que Rose só poderia trabalhar um expediente e mesmo assim, conseguiu o emprego. Ela é realmente muito comunicativa. Uma Relações Públicas nata. Acada semana, sempre às quartas-feiras, continuam as reuniões de desobsessão. Jasiel continua indo lá. Aos poucos a legião de obsessores, verdadeiros espíritos do mal, vão sendo afastados dele. Os mais renitentes e perigosos vão ficando para o final. Esta será a última reunião do seu tratamento. Está presente à mesa, manifestando-se através de um dos médiuns mais experientes do centro, uma figura realmente medonha. Jasiel já percebeu que em alguns momentos das reuniões ele adormece, permanecendo inconsciente durante certas revelações dessas entidades que lhe perseguem. Já lhe foi explicado a razão disso. Mas esta noite, ele vai permanecer consciente o tempo todo. 313 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Ha um propósito nisso. Francisco entenderá depois. Vão ser feitas revelações que ele precisa ouvir conscientemente. Elas vão tocar o seu espírito de forma muito forte. Provocando alterações em sua personalidade com relação ao conhecimento das coisas espirituais. Vai ser uma grande surpresa, inclusive para Francisco. A inteligência do modus operandi dos Bem-feitores espirituais é algo realmente maravilhoso. A entidade acaba de ser incorporada. Estão à mesa, numa das cabeceiras o irmão Jaziel. Thiago ao seu lado direito e Francisco à esquerda. Todos sentados. Mais alguns médiuns e doutrinadores à direita e à esquerda. Na outra cabeceira da mesa está o médium que incorpora a entidade. Ao seu lado direito e esquerdo estão dois dos mais experientes doutrinadores do centro. Um deles inclusive é um simples motorista de táxi. Mas nessas ocasiões, assistido intuitivamente por seus mentores na espiritualidade ali presentes, ele se transforma, numa pessoa de extraordinário conhecimento das Leis de Deus. Seus conselhos são sempre muito apreciados. E de muita utilidade para o esclarecimento das entidades sofredoras trazidas ali. É ele que dá assistência àquela entidade acusatória que agora está diante de Jasiel. É seus mais ferrenho inimigo do passado. Esboça o sorriso mais debochado possível ao se dirigir a Jasiel. E após uma gargalhada sinistra: - Ah!!! Quer dizer que é você o bicho papão que anda mexendo com nossos despachos nas encruzilhadas, hein!... E repete a gargalhada. Francisco e principalmente Jasiel estão paralisados. Ninguém além deles sabe desse detalhe, que o irmão lhe havia contado tempos atrás, vilipendiado um despacho que encontrou na encruzilhada certa noite em Natal, comendo o frango com alguns amigos, bebendo a cachaça 314 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias e espalhando a farofa no chão. Aquilo é uma revelação extraordinária! Quem? Se não Jasiel, montado em sua incredulidade, necessita desse depoimento? Naquele momento, para Francisco tudo foi ficando bem claro. O sucesso de seu tratamento dependia em grande parte de sua crença. E ela está agora sendo posta à prova. É incrível! Ninguém poderia adivinha ali, algo de que só eles dois sabiam! - Que tal? Gostou do tiro que levou na cabeça? - A entidade enfatiza seu depoimento acrescentando mais gargalhadas sinistras. Jasiel continua perplexo. Esta entidade realmente sabia o que havia acontecido. Só podia estar lá naquela noite na encruzilhada. Deduz ele. - Mas não se preocupe! - Enfatiza sinistramente o espírito do mal. Não queremos que você morra ainda não! Ainda tem muitas contas que precisamos acertar com você! - E continua dando gargalhadas. Ha certas ocasiões, nem sempre, mas às vezes, algumas cenas espetaculares são mostradas a Thiago em sua tela mental. Essa é mais uma característica de sua mediunidade. Esta noite ele está vendo coisas horríveis. Cenas que podem ajudar no entendimento das razões das perseguições de algumas entidades, em casos muito específicos, como aquele de Jasiel. Nessas ocasiões desobsessivas quase sempre Thiago se mantém muito tranqüilo em seu recolhimento e orações. Mas nesse momento ele demonstra uma certa inquietação. Depois da reunião, aproveitando que Jasiel não está por perto Francisco indaga: - Thiago! Hoje você mostrava-se muito inquieto durante a desobsessão de Jasiel! Que foi? Alguma coisa anormal? -Umas cenas que me mostraram meu amigo! Enquanto aquela 315 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias entidade estava ali. Eu vi cenas de uma guerra na Espanha. Vi pessoas com o crânio aberto à golpes de espada. Uma coisa terrível de se ver! E de alguma forma, que eu não sei qual, seu irmão estava lá! Tinha relação com aquilo! Me pareceu que ele era um daqueles soldados em luta. Jasiel vem se aproximando e eles encerram a conversa reveladora. Como tratava-se de uma entidade muito endurecida, e nesses casos a ação do doutrinador nem sempre é útil, logo é retirada do ambiente, sem que nada pudesse ser feito por ela no plano material. Visando o esclarecimento do irmão, Francisco pergunta a Thiago: -E aquela entidade Thiago! O que será feito dela? -Infelizmente ela não está ainda em condições de ser socorrida. Está completamente fechada ao esclarecimento e à luz. Nada que o doutrinador lhe diga vai fazer diferença. Ela se alimenta exclusivamente do ódio. Sua brutalidade está acima de qualquer nível de socorro. São enviadas para seus ambientes de procedência. Verdadeiros antros de sofrimento. Vai levar algum tempo até que esteja pronta para receber o socorro do resgate. É também uma vítima. Em estágio muito perigoso. - Esclarece Thiago. Voltando para casa Francisco e Jasiel conversam: - Incrível aquilo! Aquela entidade só podia estar lá no dia que destroçamos o despacho na encruzilhada. Como é que poderia saber? -Argumenta Jasiel. Agora pelo menos já ha uma fresta aberta em sua mente para aceitar a realidade espiritual. Provavelmente será através dela que a luz de muitos outros esclarecimentos entrará. Assim espera seu irmão Francisco. Como já disse alguém muito famoso: “Ha muito mais coisa debaixo desse céu, do que pode conceber a nossa vã filosofia!” 316 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Q uem desmerece a realidade da espiritualidade o faz por completa ignorância. Somente os tolos estão absolutamente convencidos de que sabem tudo. Aquela fora a última sessão de seu tratamento espiritual. Agora ele já se sente muito bem, podendo voltar ao seu trabalho em Natal. Resta apenas um detalhe de aclimatação que Francisco vai discutir logo mais em Caicó, por ocasião de mais uma Festa de Santana. Uma coisa, entretanto incomoda o irmão Jasiel. Ter que voltar ao trabalho na mesma repartição na Universidade Federal. O mesmo ambiente onde ocorrera a tentativa de suicídio. Isso não seria bom. Foi então providenciada uma licença médica de três meses para se pensar num jeito de contornar essa situação. Alicença já vai terminar. Falta menos de um mês. Entrou Julho e é mês de Festa de Santana em Caicó. Francisco vai estar lá novamente. Leva consigo a reportagem da TV para uma cobertura da festa. Já em Caicó, encontra-se com Jasiel. Ele está muito bem. Completamente restabelecido. Pelo visto, física e espiritualmente. Francisco sabe que o Senador Dinarte Mariz está na cidade. Solicita uma entrevista com ele e vai à sua casa, acompanhado de seu pai e de Jasiel. A intenção é pedir a ajuda do senador para conseguir a transferência de seu irmão dentro da Universidade, para uma outra repartição, evitando a ele o transtorno de ter de encarar as mesmas pessoas de seu anterior local de trabalho. O senador os recebe muito bem. Feita a entrevista o senador agradece dizendo: - Muito obrigado, pela oportunidade da entrevista! O que precisar de mim, pode dispor! 317 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Precisamos sim Senador! Francisco relata ao senador a problemática de seu irmão, solicitando dele os préstimos para interferir junto à Reitoria da Universidade para transferí-lo para outra unidade. - Perfeitamente! Conheço muito o atual Reitor! É meu amigo! Para onde você gostaria de ser transferido meu jovem? - Pergunta ele a Jasiel. - Para a Faculdade de Farmácia! Senador! - Pois muito bem! Vou enviar esse bilhete para o Reitor. Entregue a ele, pois tenho certeza que nosso pedido será acolhido! O Senador tinha sua força política. Logo na semana seguinte Jasiel foi transferido para o outro setor. O pedido foi entregue ao Reitor pelo próprio Francisco em seu regresso para Recife, passando por Natal. Claro que o Reitor teria todo interesse em receber o repórter famoso da televisão. Jasiel vai continuar a sua vida normalmente. Chega a casar-se com uma jovem caicoense. Tem um filho com ela. O Jádson. Na verdade Jasiel deixou dois filhos. Uma menina, Jasiele, nascida um pouco antes, de outro relacionamento, mas também reconhecida e registrada como filha. Mas ele não chegou a viver muito. Havia amealhado algumas inimizades. Uma delas, um jovem arruaceiro envolvido com entorpecentes que passava freqüentemente pela rua onde Jasiel morava com a esposa e o filho ainda bebê. Foi assassinado com um tiro. A mão do destino cármico atingiu-o dessa vez implacávelmente. Quem sabe, estava escrito... Que seus algozes o levariam de volta ao mundo dos espíritos de forma assim tão drástica. Seu desaparecimento deixou muita saudade em família. Sua imagem 318 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias continua sendo lembrada com muito carinho por seus familiares. Essa Festa de Santana também foi marcante para Francisco, de uma outra maneira. Todos querem fazer contato com ele. É o sábado de feira. Logo cedo a esposa do amigo Adel Barros, uma morena tipo baiana, sai na porta da frente da casa, fica observando os transeuntes, e pergunta a Francisco: - Escuta! Aqui não tem gente de cor? - Ela está curiosa. Só passa gente de pele branca, homens e mulheres à caminho da feira. Pela primeira vez Francisco se dá conta dessa característica peculiar de Caicó nessa época. E vai descobrir mais tarde a razão disso. A maioria das famílias alí fixadas desde o império, trazem sangue europeu. De Portugal. Através da penetração das milícias portuguesas em terras do Seridó e também de Holandeses. - Não Sílvia! Tem sim! Poucos. Mas tem! E Lembra-se do preto Antonio Preto, que mora ali perto na mesma rua, três casas após.Assim conhecido certamente por isso mesmo. Por ser uma das poucas pessoas de raça negra pura em Caicó nessa época. Sua origem, pelo que sabe, vem do Quilombo dos Palmares, emAlagoas. De tempos imemoriais. Mas não seriam tão poucos os pretos de Caicó. Afinal já existira até a década de 60 um clube para eles. O Caicó Esporte Clube. Conhecido como O Clube dos Morenos. Esses argumentos deixam Sílvia mais sossegada.Afinal ela é de origem negra. Antõi Preto - assim lhe chamam os mais íntimos, - é uma pessoa de alma boa. Um preto corpulento, sempre rua a cima, rua abaixo, montado em sua bicicleta, fazendo todo tipo de trabalho. De fabricação de lamparina de zinco a trabalhos de pedreiro. Tudo ele dá conta. 319 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Estão comentando que em certa ocasião, Pedro Elias pretendia construir um pequeno ambiente nos fundos do muro da casa para guardar bolas de fumo. Um pequeno depósito. Contrata o pedreiro Antõi Preto. O primo Cíço está ajudando na obra, traçando a massa de cimento lá fora na calçada e levando em baldes lá pra dentro. Conversam animadamente. O primo Çico acaba de avistar lá fora um avião passando a grande altitude. E chega lá dentro comentando: - Ah! Coisa bem feita é o avião! O danado voar naquelas alturas e não cair! -Antõi Preto, jogando massa na parede, só escuta. Pedro Elias, por sua vez, tem uma observação a fazer: - Mas bem feito é um navio home! Que carrega não sei quantas toneladas de peso por cima d'agua e não afunda! Antõi Preto, que tem uma fala bem estiraaaaada, então argumenta: - Vocês dois são uns branco muuuito bêêêsta! Mais bem feito é os nossos cuuuis! Porquê Antõio? - Pergunta Pedro Elias dando boa gargalhada. - Purquêêê! É Furaaado, vive de cabeça pra baaaxo... E as cooisas não caaai! É humanamente impossível se conviver com figuras como estas e não guardar na lembrança alguns de seus quadros burlescos. Faz parte da cultura deles. Eles são pontos, vírgulas e interjeições de nossa própria história. Estarão para sempre em nossos corações. 320 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O último sábado da Festa de Santana está animado. E Francisco vai viver emoções bem fortes. Acaba de recebe uma visita interessante. É o Leônidas. Seu antigo amigo de infância. Informado de que Chico Elias está na cidade para a festa Leônidas vai lá em casa de Pedro Elias ver se encontra o amigo dos tempos do sítio Riacho do Meio. Agora famoso. Será que ele ainda me reconhece? Imagina Leônidas. -Meu amigo Leônidas! Como vai você! Trocam um forte abraço. Leônidas já casou. Tem vários filhos. Francisco apresenta o amigo de infância aos seus companheiros da TV. Fala um pouco das lembranças de ambos na infância. Leônidas continua morando e trabalhando lá no sítio. Veste uma roupa bem simples e só tira seu chapéu de palha da cabeça ao entrar em casa retraidamente, colocando-o sobre as pernas ao sentar no pequeno terraço para alimentar um bom papo. Ele fala de seu trabalho, da vida no Riacho do Meio e não deixa de observar: - Mas Chico! Quem diria hein! Você hoje é famoso, não é? Vive na televisão! A gente vê você aqui em Caicó na TV! Asimplicidade de Leônidas é tocante. Algo chama a atenção de Francisco. Uma imagem que o deixa profundamente tocado. As mãos de Leônidas! Estão completamente endurecidas de calos e rachaduras. De tanto trabalho no cabo da enxada. Francisco emociona-se vendo aquilo. E pensa: Meu Deus! Esse que aqui está poderia ser eu. Se meu pai não nos tivesse trazido para a cidade logo cedo. Essa imagem fica em sua memória para sempre. Seu amigo. Seu companheiro de infância. Ali está em sua frente. Feliz por lhe ver. Mas sua imagem transmite uma profunda 321 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias sensação de pena. Seus olhos são entristecidos. Sua natureza fala através deles. Quem seria realmente você Leônidas! Na imensa longevidade dos séculos de reencarnações. Imagina Francisco, que agora já tem muita bagagem de informações sobre a realidade das encarnações na raça humana do planeta onde vivemos. O que estaria pensando Leônidas nesse momento? Percebendo a chocante diferença entre ele e o amigo de infância? Francisco se pergunta: Porquê Oh! Deus? Que razões impediriam Leônidas, de merecer uma vida melhor do que aquela que está levando? Se viera ao mundo no mesmo ambiente que o seu! Naquele mesmo sítio! Cercado das mesmas dificuldades e da mesma condição paupérrima! Negar a possiblidade da Inteligência Cósmica na obra de nossas vidas, através do aprendizado em sucessivas reencarnações, seria relegar o ser humano e a vida a um plano sem importância. Somos animais sim, como tantos outros, mas carregamos uma grande diferença; estamos dotados de uma extraordinária ferramenta sensorial de inteligência e de livre arbítrio para buscar-mos nossa própria elevação. Mas tudo nesse momento é festa. E não falta ocasião para a diversão. Outra vez Pedro Elias está tendo a enorme satisfação de oferecer o grande almoço em família nesse período de festa. Vários de seus filhos, alguns que moram em outros estados, os cunhados, as noras, os netos, que já são um bando correndo pela casa, todos vão estão presentes no almoço. É uma ocasião propícia para algo que Francisco deseja fazer. Pedira na noite anterior ao cunhado Rony que leve sua mãe, a Dona 322 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Iracema Trindade para participar do almoço do domingo. Sem explicar do que se trata ele recomenda: - Não deixe de levá-la Rony! Eu vou ter muito prazer de tê-la conosco em nosso almoço amanhã! Dona Iracema já é uma senhora viúva. De bastante idade. Já não é mais professora. Mas mantém seu equilíbrio perfeito. No almoço ela também está lá. Recebida com alegria por todos. Como sempre, muito alinhada. Uma senhora alta e esguia. Muito elegante. Todos já se postam à mesa. Francisco toma a palavra: - Por favor! Não sentem ainda! Eu desejo fazer um agradecimento. Pedi a Rony e a Lurdes que trouxessem dona Iracema para este almoço porque eu tenho um agradecimento para fazer a ela. Sobre as muitas vezes que durante o desempenho do meu trabalho no rádio e na TV, eu tive a enorme satisfação de lembrar-me dela. Eu fui aluno de dona Iracema no grupo escolar. Ainda guardo na memória dona Iracema, muito nitidamente, o dia em que fui agraciado em sua prova de redação com uma nota 10. E hoje ainda lembro perfeitamente da expressão que a senhora usou para homenagear esse simples aluno seu. - Apontando-me para todos os demais alunos como um exemplo. Lembro que a senhora me disse, entregando-me a minha prova: Você daria um excelente jornalista! Alguns ali já se mostram emocionados. Ela certamente também. Pois aqui está Dona Iracema! O seu jornalista! Para lhe retribuir com grande prazer a homenagem. A senhora é também responsável pelo que sou. Pelo desempenho que procuro dar ao meu trabalho jornalístico no rádio e na TV. Muito obrigado! Por haver me dito aquelas coisas. Num tempo em que eu nem bem sabia o que seria um jornalista. Muito obrigado! Este é para ele um momento inesquecível. Pelo prazer de também homenagear a sua grande Mestra. Em breves palavras dona Iracema 323 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias agradece a homenagem. E agora vamos à buchada! Que a emoção aumentou a fome! Com o que concorda plenamente o cunhado Rony, que nunca foi chegado a formalidades. - Isso sim! É que é conversa! Cochicha ele com alguém ao seu lado. O encontro vai ficar na memória de Francisco como - OAlmoço de Dona Iracema. 324 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias T rês meses se passou e Rose já é campeã de vendas na loja. Uma iniciante. Sua performance de vendedora surpreende a todos na loja. Francisco agora reside também no centro da cidade. Estando muito perto dele, a gravadora é no prédio vizinho, não falta oportunidade para contato entre os dois. Nos fins de semana costumam ir às boates, freqüentar alguns locais de badalação da noite em Recife. Ela parece muito feliz. Em casa, a vida de Francisco é muito comum. Chegar sempre tarde da noite é natural já ha muito tempo. A esposa parece não tomar conhecimento. Mantém-se apática. Sua preocupação agora é embalar seu lindo bebê. Nunca parece estar interessada em preservar o esposo. Desde que ele venha dormir todo dia em casa!... Mas assim como as ondas se afastam quando se joga um pedra dentro d'agua, os dois estão aos pouquinhos se afastando mais e mais. Vivem uma relação muito peculiar. Que poderia ser descrita da seguinte forma: um casal aproxima-se de uma floresta. Ha ali duas veredas. Eles precisam penetrar na floresta. Um escolhe. Vamos por ali? O outro aponta a outra alternativa: Não! Vamos por ali. O outro insiste: Bobagem! Vamos por aqui! Mas o outro faz questão: De jeito nenhum! Vamos por aqui! E assim, quase sem se comprometer, cada um segue a sua escolha. Eles penetram na floresta. Os dois caminhos não são paralelos. Afastam-se em forma de V. No começo da caminhada um grita: Hei! Você está aí? Estou! Responde o outro.Aos poucos vão se distanciando ainda mais. - Hei! - O outro agora já está ouvindo bem baixinho. Cada vez mais a voz do outro vai se distanciando... Até se tornar completamente inaudível. É assim que Francisco e Sandra estão vivendo. Já quase não escutam a voz do outro. À noite Francisco e Rose vão se encontrar. Ela quer dar informações do seu trabalho na loja. Mas no fundo, no fundo, eles estão se sentindo fortemente atraídos. 325 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C oisa de hormônios jovens em ebolição. Ela informa que vai muito bem no trabalho. Seus méritos estão sendo apreciados na loja. - Que bom! Fico feliz de poder abrir portas para você! - E o coração? Você também me deixa entrar? Ambos riem. Estão se experimentando. Faz parte do jogo da sedução. Tudo tem que parecer muito natural. Rose sabe. Bem lá no fundo ela sabe com sua astúcia feminina, que Francisco tenta resistir ao seu amor. - Você não perde tempo hein! - Ressalta ele. Novos encontros se sucedem. O relacionamento com a Rose está se solidificando mais a cada dia. Mas Francisco tem muito receio. Precisa arranjar coragem pra dizer a ela que é um homem casado. E que não está disposto a se ausentar de sua família. Ha um novo encontro previsto e este vai ser decisivo. Pensa ele. O que Rose sente e faz toda questão de demonstrar não é uma simples paixão. Dá para perceber. Já faz meses do primeiro encontro e do beijo lá em Panelas. E Francisco ainda continua sem saber como lidar com essa situação. Quer evitar que ela sofra. Mais dia, menos dia, ela vai saber que ele é casado. Além do mais, sem saber explicar, seu ego lhe diz como é gratificante ter uma mulher realmente apaixonada por ele. Independente de sua idade. Mas assim, tão inocentemente apaixonada, como ele sabia que sua esposa nunca puderia estar. Já está convencidamente certo de que ambos haviam se casado por uma obrigação, por um laço do destino. Algo que só se poderia entender aceitando a Lei de Causas e Efeitos. Ou seja, conseqüências da Lei do Carma. Mas, surpreendentemente, embora sentisse que poderia se apaixonar também por aquela jovem, algo ainda lhe cala bem no fundo. A idéia de que nada será suficientemente comprometedor, a ponto de retirá- 326 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias lo do convívio de sua família. Até torce para que Rose não leve aquilo à sério e o esqueça. Ha tantas mulheres pontilhando sua vida que a ausência dela não iria fazer falta. Imagina. Mas a ordem natural das coisas não vai obedecer à sua vontade. Decide contar a ela. Não ha como continuar assim. Enganando-a. Alimentando mais e mais o amor dela. E revela tudo. - Me perdoe Rose! Lembra que ha algum tempo eu lhe disse que não era a pessoa ideal para você? - Lembro sim! - Pois é! Não sou! Rose! Realmente não tenho um futuro para lhe oferecer. Eu já sou casado! - Esperando um grande impacto da parte dela, ele se surpreende com sua frieza. - Eu já sabia! - Responde ela com serenidade. - Como? Desde Quando? - Já faz tempo! Um dia peguei um documento seu que dizia seu estado civil: casado. - Porquê você não disse nada Rose? - Ela parece estranhamente tranqüila. - Não tive coragem de abordar você sobre isso! Não tive coragem de correr o risco de lhe perder! Já estava apaixonada por você! Aliás, sempre estive! Desde o começo! Não pude! Preferí dividir você com sua esposa do que lhe perder para sempre! Isso é mais forte do que eu! - Francisco a abraça carinhosamente. - Oh! Rose! Como você conseguiu viver todo esse tempo sem desabafar nada! - Só Deus sabe! - Ela se mostra estranhamente acomodada com a situação. - Beínho eu amo você de verdade! Nunca amei ninguém desse jeito! Não posso lutar contra meu coração! Bem que tentei algumas vezes! Mas isso tem sido mais forte do que tudo para mim! Nunca pensei que amaria tanto alguém assim... O que eu poderia fazer? - Somente silenciar. E esperar que um dia essa situação pudesse se esclarecer... E agora... estou com medo! - Ela vacila. - O que você vai 327 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias fazer? O que ele poderia fazer? Francisco prefere permanecer em silêncio abraçando-a com ternura. Respeito. E tudo mais que um homem de verdade deve render de gratidão a uma mulher. Ainda não sabe o que dizer. Imaginou que fosse bem mais fácil. Que ela não aceitasse e que decidisse afastar-se dele. Mas a reação dela o surpreende! Os dois permanecem ali por alguns instantes abraçados em silêncio. Só ouvem seus próprios corações. Porque a vida está fazendo isso comigo? Pensa ele. Agora mais que nunca, tem certeza de que Rose já existira em sua vida em alguma reencarnação passada. Isso não é obra do mero acaso. O que fazer? Nunca havia estado numa situação igual a essa. Precisa dar tempo ao tempo. Sempre confiou na sabedoria silenciosa do tempo. Quem sabe, qualquer dia ela resolve enfrentar a realidade... E desista dele. E ele? Como ficaria? Agora percebe o quanto ela merece o seu amor. Pela primeira vez na vida está entregando sem reservas o seu coração a uma mulher. A barreira da trava psicológica trazida desde a puberdade está finalmente sendo rompida. Por uma jovem dezenove anos mais nova que ele. Entretanto, por algum tempo ele luta contra essa nova realidade. Mas não ha muito o que fazer. Sumir da vida dela? Isso lhe parece muita canalhice e convardia. Desabafa com o amigo: - Fernando! Estou numa fria! - O que foi? - A Rose! - O quê? Engravidou a menina? - Não! Amigo! Está louco! Nós só namoramos! Não teve sexo ainda não! 328 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Fernando agora acha muita graça da situação. - Não teve sexo ainda! Você! E qual é o problema? - Estou gostando sério dela! - Francisco fala da situação com certa tristeza. - Porquê ela só apareceu na minha vida agora? - Desabafa com o amigo. - É! Pelo visto você está frito. Mas que nada! Qualquer hora você sai pra outra e deixa Rose pra lá!... - Tenta contemporizar Fernando. - Não é tão simples assim! - Reconsidera Francisco. Tempo! Tempo é tudo o que precisa. Não dizem que o tempo se encarrega de tudo? Mas Rose já vai completar dezoito anos. Isso não vai ficar só em namoro inocente!... Dai por diante, nunca mais haveria uma “outra” na vida de Francisco. A vida é um jogo. E essa é sua pior sinuca de bico.Vamos ver no que dá. Pensa ele, com esperanças de que o destino ofereça uma curva de saida. Por algumas vezes Francisco já percebeu as insinuações sutis de Rose provocando a possibilidade de um relacionamento completo entre os dois. Ela não havia ainda completado 18 anos. No início ele faz de conta que não entende. Mas depois acha melhor lhe fazer ver que o relacionamento sexual entre ambos só poderá existir quando ela for maior de idade. Quando civilmente puder decidir qualquer coisa em sua vida. Sem arrependimentos. Sem acusações. Ela compreende a posição dele e continuam o namoro assim mesmo. - Quando for dona de sua própria liberdade! Principalmente, de sua liberdade psicológica! Certo? - Está bem! - Responde ela. Afinal, sua liberdade precisa ser absoluta. Nesse tempo a liberdade sexual da mulher ainda é um tabu. 329 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Ainda faltam alguns meses para Rose atingir sua maioridade. Ela demonstra aguardar isso com certa ansiedade. Enfim, acontece. É seu aniversário. Ela faz questão de lembrar: - Hoje eu completo dezoito anos! Diz isso de forma provocativa. Muita naturalidade. É tudo que Francisco procura administrar nesta relação. E agora não tem saída. Vão ter que resolver essa parada. De verdade. Como se acabassem de casar. Agora ela pode se sentir mulher por inteiro. - Rose! Eu imagino que você sonhasse com um uma noite de núpcias normal. Dentro da realidade natural do casamento... Entretanto, não está sendo assim. Como você se sente? Francisco aborda Rose dessa maneira, pois se preocupa com os sonhos dela. - Eu me sinto muito feliz Beínho! Tenho você de uma maneira diferente, dividindo-o com sua esposa e aceito isso com naturalidade. Sei que você me ama. Isso é o que importa! Como toda moça eu às vezes sonhei realmente, entrar numa igreja para casar! Mas nesse momento o que me importa é que estou muito feliz! E se estivesse casada, com tudo conforme o figurino, e não fosse feliz? Não tem tanta gente vivendo assim? Isso parece uma acusação aos ouvidos dele. É o mesmo que dizer: veja o seu caso! - É bom ouvir isso de você! Eu me preocupo com essas coisas! Você ainda é tão jovem.... Ainda tem muita coisa para aprender com a vida! E não quero que você se sinta infeliz! Nem quero me sentir culpado! Em reposta, ela o beija com ternura. Esquecem o assunto. Agora têm muito para viver. O que Francisco realmente não consegue revelar a ela é sua enorme preocupação em relação à família. Principalmente pelos filhos. Se não houvesse filhos já estaria separado da Sesposa ha muito tempo. 330 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Desde Natal, quando vieram para Recife. Mas eles são reais. Agora são três. O menino Ramatís, desejado ha tempos como uma possível forma de reaproximação definitiva do casal, ainda está de colo, enchendo a todos de muita alegria em casa. O casamento dos dois não tem mesmo remendo. Isso é ponto pacífico. As diferenças continuam gritantes. O desamor continua persistindo, machucando a ambos. E por tabela, os filhos também são afetados. Essa é a triste realidade dos casamentos mal sucedidos. Os filhos pagam um preço também, sem terem culpa. Não são eles as causas dos descasamentos. Mas a presença do bebê é uma atenuante, para minimizar os descontentamentos dos dois. Francisco se esforça para enxergar Sandra de uma outra maneira, mas não consegue. Com toda a experiência dos conhecimentos espirituais que já tem, ele pode deduzir perfeitamente que um, é carma do outro. O destino está cobrando dívidas que certamente eles acumularam em vidas passadas. Agora, devem tentar contemporizar um pouco, procurar amenizar os descontentamentos, para não agravar esse carma. Os filhos precisam dele! Disso ele não abre mão. Quanto ao preço a pagar? Qualquer um é muito barato considerando a importância que têm para ele. Mesmo sem qualquer solidez o casamento de ambos ainda precisa ser mantido nas aparências por um bom tempo. E freqüentemente a consciência de Francisco lhe cobra pela relação que está mantendo com Rose fora do casamento. Já faz quase dois anos que estão convivendo. Ela se realiza plenamente também em seu trabalho. E sua performance de vendedora-relações públicas deixa Francisco inseguro. Tem ciúme dela. Fica imaginando todos os papos que ela 331 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias mantém com pessoas diferentes na loja onde trabalha. Com homens também. Claro! Detalhes que somente afetam uma mente insegura... E nesse momento ele está muito inseguro. O ciúme está sendo muito bem guardado em seu subconsciente. Pronto para se revelar a qualquer momento. Há uma dificuldade. Francisco nunca aprendeu a viver sob pressão. De qualquer tipo. O ciúme está agindo sobre ele como uma pressão. Rose não percebe nada. Ser alegre e comunicativa com as pessoas é da sua própria natureza. Por isso mesmo está se revelando tão bem no setor de vendas da loja. Ela nem imagina que Beínho está sendo atingido tão duramente pelo ciúme. Dezenove anos de diferença na idade de ambos pesa na insegurança dele. Fraquezas humanas! Ah! Fraquezas humanas! O que o ser humano não é capaz de fazer movido por suas fraquesas e inseguranças... Para ele, a relação está dolorosa. Pronta para ser negativada a qualquer momento. É! Quem mandou tirar a trave do coração? Cobra seu ego machista. Uma manhã como outra qualquer. Logo cedo antes das 08h00, Rose ainda não saiu de casa para o trabalho e telefona para Francisco. Ambos discutem por uma amenidade qualquer. Coisa sem importância. Nada que qualquer bom senso de prudência não pudesse contemporizar. Mas o ego de Francisco entra em cena imediatamente. Acabe com esse sofrimento de uma vez! Você não foi sempre tão decidido nas suas decisões? Como está se permitindo agora amargar esse ciúme? Não vai fazer nada? Tome uma decisão! Já!Agora! É uma manhã de segunda-feira e ha muita adrenalina proveniente da ressaca do fim de semana no sangue de Francisco. Isso é o bastante. Adiscussão está insuportável. - Olha Rose! Quer saber de uma coisa? Vamos acabar com isso de 332 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias uma vez! Está encerrado nosso relacionamento! Eu não estou feliz com você e vamos encerrar tudo! Disse isso sem dar margem para que Rose interferisse. Sem dar a ela oportunidade de argumentar. E secamente desliga o telefone. Seu ego exultou. Isso! Assim é que se faz! Esse é o Elias que eu conheço!... Ele já está na gravadora. O telefone toca outra vez. A telefonista atende. - É Pra você! - Diga que não estou! - Mas ela insiste. Diz que acabou de falar com você! - Diga que eu acabei de sair! Francisco sabe ser cruel quando seu indomável ego está comandando as ações e as circunstâncias o pressionam. Instrumento da personalidade humana, cuja atuação em nossas emoções ele já havia estudado nos livros de psicologia e psicanálise. Já conhecia bem o poder dessa fera. Ainda mais uma fera ferida. Não faz mais contato com Rose. Não atende mais telefonema seu. Os dias vão se passando. Na primeira semana após o desfecho estranhou não tê-la visto mais chegando para o trabalho na loja. Mas não se importou. Melhor assim! Deve estar procurando não cruzar comigo! - Pensa ele. O amigo Fernando logo é informado da situação. - Não lhe falei! Ah! Sai pra outra! Mas Rose havia marcado cadeira cativa no coração de Francisco. Nunca mais haveria uma outra em sua vida de casado. Ele no momento está raciocinando que será melhor estar mais disponível em casa para a família. Está chegando cedo todas as noites. Mas isso não faz a menor diferença para Sandra. Suas decepções com Francisco também já haviam demarcado a linha das limitações. Sua grande paixão é seu belíssimo bebê. E isso é muito bom. Enche-o de carinho. Que ele muito precisa para crescer adornado pelo 333 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias maravilhoso sentimento materno. Vai ser bom para ele. As meninas também estão muito contentes com a chegado do pimpolho. É seu brinquedo vivo. Nesse período, se houvesse existido amor de verdade entre Francisco e Sandra, as portas estão escancaradas para uma reaproximação. Mas a distância entre ambos permanece. Ele se contenta enfiando a cabeça em seus livros. A leitura é sua grande viagem. Continua empolgado lendo a obra inteira de Ramatís/Hercílio Maes. 334 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A o lado do amigo Fernando Freitas Francisco faz parte da diretoria do Sindicato dos Radialistas de Pernambuco. O sindicato vai enviar dois representantes a um congresso de radialistas que se realizará na semana seguinte em Curitiba, no Paraná. Ocasião para uma boa viagem. Lurdinha, esposa de Fernando também está com eles. No último dia do Congresso, enquanto os congressistas estariam deliberando as decisões ali tomadas, Fernando solicita a Francisco para que acompanhe Lurdinha numa visita que ela deseja fazer à matriz daAMORC no Brasil, ali em Curitiba. O Antenor, irmão de Lurdinha é membro da Rosa-cruz. Ela tem muita curiosidade de conhecer a sede da AMORC. Francisco também já foi antes convidado duas vezes a entrar para a ordem Rosacruz. Nunca se decidiu a essa filiação. Mas já leu algumas obras de autores Rosacruzes. Também tem curiosidade de conhecer a sede da AMORC. E vai com ela. Só para relembrar, Lurdinha é uma médium atuante e de grande sensibilidade. Descem do táxi em frente a AMORC e si dirigem por uma passarela de tijolos vermelhos entre canteiros de grama muito verde. Chove fininho. Nas paredes do prédio, imagens bem grandes de figuras egípcias pintadas. (Ver foto). O cenário da AMORC é realmente muito bonito. Próximos já da porta de entrada do prédio, Lurdinha é tomada por forte transformação mediúnica e permanece por alguns instantes em desequilíbrio corporal, tentando resistir àquela manifestação. Entre consciente e semiconsciente, cambaleando um pouco, ela diz algumas palavras que Francisco houve claramente: - Maria! Maria!... Você é uma das nossas!... Alguém parece estar falando através dela. Ela reage tentando permanecer consciente. Cambaleia. Francisco a ampara segurandoa pelos ombros. O corpo dela está novamente em desequilíbrio. Ela 335 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias fala com voz diferente: - Diga a ela! Ela é uma das nossas! - E imediatamente toda a reação desaparece. Lurdinha está novamente consciente. Afetada com a manifestação mediúnica inesperada, claro. Mas está novamente consciente. Para tranqüilidade de Francisco, que já se preocupava um pouco sem saber como proceder naquela situação inesperada e mais ou menos pública. Ainda bem que em razão da chuva fina não havia ninguém por perto para presenciar aquela cena. Eles entram enfim na recepção da administração do prédio. Um pequeno escritório, algumas pessoas jovens trabalhando com algumas fichas em cartolina. Vê-se uma plaqueta: “Não entre sem permissão!” Os dois se apresentam. Informam de onde são. E falam da vontade que têm de conhecer a sede da AMORC. Um jovem rapaz pede para aguardarem um instante e sai do escritório dando impressão que vai falar com mais alguém. Talvez um superior. Pensa Francisco. Alguns poucos minutos e ele está de volta. - Por favor! Entrem por aqui! - Convidando os dois a penetrarem nas dependências internas da AMORC. Algumas das outras pessoas que trabalham no escritório parecem surpresas com o convite que o rapaz acaba de fazer àqueles dois estranhos. O jovem segue ao lado de Francisco e Lurdinha enquanto comenta: - Engraçado! Nunca é permitido a estranhos fazer esse tipo de visita. Mas nosso diretor acaba de autorizar vocês a ver tudo que quiserem! Inclusive! O nosso salão Mor! - E o que é o salão Mor? - Pergunta Francisco. Mas com a impressão que já sabia do que se tratava. Havia lido sobre esse salão em um dos livros. O moço está explicando: - É o salão onde se realizam as nossas reuniões mais importantes. Este aqui! - Abrindo uma pesada porta de madeira em dois lados. 336 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Parece ser Jacarandá. Ele continua explicando: - Inclusive, só participam dessas reuniões os mestres graduados da AMORC. As reuniões são feitas em algumas datas específicas. Fim do ano, por exemplo. Eles dizem que é aqui que recebem as instruções de entidades muito elevadas que os visitam nessas ocasiões. O ambiente está pouco iluminado. As paredes estão totalmente cobertas por pesadas cortinas de veludo vermelho. É uma sala de uns oito metros por cinco. Ha uma pequena galeria de arquibancadas com longos bancos também de madeira de ambos os lados. O rapaz explica que ali sentam os participantes da reunião. - Aquela cadeira ali! - Apontando para uma cadeira de madeira em posição elevada numa das extremidades do auditório - Nossos mestres dizem que é nessa cadeira onde se materializa a figura do Grande Mestre, que vem dar a eles as instruções da ordem para o novo ano que vai começar. Tudo exatamente como Francisco já havia lido em um dos livros sobre aAMORC. A visita à sede Rosacruz foi realmente marcante. Para os dois. Quem acreditaria naquela história? Teria sido o acaso que os levaria até ali? Ou nós somos freqüentemente guiados por intuições específicas? Porquê? Com que objetivo? Existiria alguém numa outra dimensão guiando nossos passos na vida? As religiões se referem à Anjos de guarda, Guias Espirituais, Entidades de Luz, encarregadas de guiar a evolução da humanidade... Enfim, são várias as alternativas, todas em torno do mesmo princípio. Ha muito o que se pensar a respeito. A escolha de cada um é de acordo com sua abertura mental. Ha muitos que não crêem em nada disso. Mas pelo sim, pelo não... O mais sensato é manter a mente aberta. Sempre...Aluz ha de entrar por ai. Antes de empreenderem a viagem, Francisco e Lurdinha haviam recebido uma incumbência no mínimo inusitada, de uma entidade 337 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias conhecida como “Preto Velho”, em uma das reuniões no centro espírita O Lar de Ita. Deveriam trazer do lugar para onde iriam, um pedaço de madeira de cedro, para cada um. O objetivo, segundo foram informados, era para serem transformados em amuletos, instrumento físico de proteção, que deveria ser guardado em casa, em lugar seguro. O artefato seria levado ao centro para que o Preto Velho o imantasse com suas energias extraordinárias. Como ele sabia que os dois viajariam à Curitiba? Extranho! Não? Ao sairem da sede Rosacruz de volta para o hotel já anoitecera. Solicitam ao taxista que passe em alguma serraria pelo caminho onde pegariam os pedaços de madeira de cedro. E assim foi feito. Ha um aspecto da inteligência para-normal que diz: se nada de mal for feito com o objeto solicitado, não custa atender a solicitação. Magia? Seria isso? Um instrumento de magia? O assunto dá margem a inúmeras especulações, que não cabem no objetivo deste livro. Francisco guardou em casa o seu pedaço de cedro. Mesmo sem entender que tipo de proteção estava recebendo.Afinal... 338 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias T rês meses já se passou desde que afastou abruptamente Rose de sua vida. Embora nunca consiga deixar de pensar nela, mantém a postura, imaginando que será melhor também para ela. Merece encontrar uma pessoa só para ela. Está caminhando nesta manhã ensolarada sobre uma das pontes do Recife e encontra uma das amigas de Rose que reside com ela no pensionato. - Olá Francisco Elias! - Olá! Como vai você? - Bem! E você! - Tudo bem! E a Rose! Como vai? - Afinal, ali está alguém que pode lhe dar notícia dela. - Está melhor! - Melhor? De quê? - Você não soube? A Rose teve um aborto! Naquele dia que vocês acabaram o namoro. Aliás, ela abortou no exato momento em que acabou de falar com você ao telefone! Francisco está perplexo. - Mas ela já está bem! Já voltou a trabalhar! Mas pediu para ir trabalhar em outra loja do Zé Mário de Andrade num outro endereço. Sofreria mais vendo você quase diariamente. A moça não poupa os detalhes, principalmente para que ele saiba o quanto a Rose se feriu. Ele agradece as informações recebidas e sai dali sem sentir os pés no chão. Meu Deus do céu! Aborto de novo rondando a minha vida! Coitada da Rose! Como ela deve ter sofrido! Seus pensamentos são somente para ela nesse momento. De forma mais veemente sua consciência o acusa. Francisco ainda precisa melhorar muito, evoluir espiritualmente para não voltar a cometer mais desatinos. Cai em si sobre essa sua realidade atual, percebendo que suas responsabilidades se agravam à medida que sabe conscientemente porque somos, o que somos e porque tomamos as nossas decisões. Vai amargar por um bom tempo essa atitude. Desejando muito ainda 339 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias voltar a ter a oportunidade de se ressarcir com Rose. Pelo menos fazê-la compreender o quanto ele ainda é um ser humano infantil. Não merecia o seu amor. Resta orar muito por ela. E mais uma vez, confiar na sabedoria do tempo.Amanhã nunca se sabe... Mas já que tudo está feito, o melhor é deixar Rose dirigir sua própria vida. Desde o princípio deixou bem claro para ela que não poderia manter financeiramente duas famílias. Mas abriria todas as portas que ela precisasse para ter seu trabalho e ser dona absoluta de sua vida, com independência. Meses depois, ela precisa novamente de sua ajuda. Saiu do trabalho na loja e deseja trabalhar na empresa Jornal do Commercio, que está sendo reestruturada. Francisco interfere com seus conhecimentos e Rose vai trabalhar lá. Tudo que fizesse ainda seria pouco para contribuir com o equilíbrio da vida dela. Rose está plenamente restabelecida. E vai tocar a sua vida. Já parou com os estudos e agora dedica-se inteiramente ao trabalho. Procura se reerguer. E ele vai ajudar no que puder. Pouco tempo depois, questão de meses, Francisco também vai trabalhar na empresa Jornal do Commercio. Agora através de contrato para a televisão Canal 2 e Rádio Jornal do Commercio. Outra vez sua intuição lhe orientou uma decisão correta na vida. Francisco aceita o contrato para trabalhar na TV e no rádio ao lado do amigo Fernando Freitas. Eles formam uma dupla de noticiaristas de muito sucesso. Três meses após sua transferência do Canal 6 para o Canal 2, a TV Tupi Canal 6 sofre um incêndio terrível, sucumbindo completamente. Nada sobrou. Nem as paredes. Caiu tudo. Imperiosamente Francisco pondera sobre esse fato: Coincidência? Acaso? Tem acontecido muitas coisas em sua vida de forma a não deixar dúvidas. O destino vem traçando seu caminho. 340 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias P or três anos e meio ele trabalha na empresa Jornal do Commercio. Durante esse período, esporadicamente Rose mantém alguns contatos. Da última vez que se falaram ela havia informado que estava namorando um rapaz, que parecia demonstrar boas intenções para com ela. Um advogado. Ele queria casar em breve. E ela informara que estava tentando reorganizar a sua vida. Francisco lhe aconselha a seguir em frente. Ela merece ser feliz. Lurdinha e Fernando continuam freqüentando o centro espírita O Lar de Ita dirigido pelo senhor Eli, um gerente de banco que foi obrigado a abraçar a tarefa espírita de manter a instituição. É lá que Lurdinha está desenvolvendo sua mediunidade. Francisco freqüentemente está com eles. Na reunião do próximo sábado à noite vai acontecer lá um encontro ecumênico muito interessante. Vão estar presentes, desde o padre da paróquia local até o representante de um movimento espiritual hindu. Uma boa oportunidade para o repórter Francisco Elias, acompanhado de seu colega Fernando Freitas, conhecer melhor as atividades do centro espírita. Os dois são convidados para sentar à mesa dos trabalhos onde se encontram as autoridades presentes. Dentro do programa estabelecido para o evento faz-se necessária a leitura de algo, que o senhor Eli solicita a Francisco para ler ao microfone. Francisco é um repórter. Habituado à solenidades. Não tem o menor problema para falar em público. Vai ao microfone e começa a leitura. Após duas ou três linhas do texto, seu corpo é tomado por uma estranha emoção, algo incontrolável parece lhe travar a língua. Não consegue dominar os músculos de seu corpo. Eles parecem não lhe obedecer. Uma emoção muito forte invade o seu ser. Ele mal consegue falar. Não está entendo aquilo. 341 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Lágrimas correm de seus olhos enquanto balbucia aquelas palavras. Com muita dificuldade para ler o texto, o amigo Fernando vai lhe ajudar terminando a leitura. Ele volta para a mesa tomado de vergonha. Nunca havia lhe acontecido algo assim! Qual a explicação daquilo? Ao final da reunião recebeu um conselho do senhor Eli, que havia presenciado com muita naturalidade o momento de dificuldade porque passara. - Essas coisas acontecem! - Diz ele. - Aconselho você a vir aqui mais vezes. Tem alguém perto de você precisando de ajuda! A partir daquele dia Francisco passa a acompanhar Lurdinha e Fernando às reuniões do centro.ACASO? Coincidência? É o que veremos mais tarde quando o garoto Ramatís com menos de dois anos entrar em cena. São muitos os trabalhos espíritas com os quais Francisco colabora no centro. Havia lido algumas obras muito interessantes sobre os chákras energéticos existentes no corpo parafísico dos seres humanos. O senhor Eli solicita sua ajuda para ministrar algumas palestras a alguns médiuns do centro, passando informações sobre esse assunto. Francisco providencia na Interfilmes uma série de slides e apresenta o material para os médiuns do centro. Mas sua principal tarefa está sendo ao lado de Fernando e Lurdinha. Foi dada a ela a incumbência de estruturar um dos pequenos núcleos de ajuda espiritual dentro do centro. São vários deles atuando nas reuniões de tratamento espiritual. Ele faz parte de seu grupo nos trabalhos de desobsessão e receituário mediúnico. Francisco apenas colabora como doutrinador, algo que já fazia desde o tempo em que trabalhou no centro de Thiago. As reuniões de desenvolvimento mediúnico ocorrem às quartafeiras. O centro geralmente está repleto de médiuns em 342 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias desenvolvimento e participantes que são trazidos para identificação de seus problemas ou simplesmente para tomar passes. Esta noite algo muito estranho está acontecendo com Francisco. Ele chama Lurdinha ao lado e comenta com ela: - Lurdinha! Você está vendo aquela moça! - Aponta para uma jovem de pele branca, cabelos pretos, muito bonita, acompanhada de uma senhora de meia idade que parece ser sua mãe. Ambas estão ali pela primeira vez. - Estou vendo sim! O que é que tem? - Não estou entendendo Lurdinha! Desde que aquela moça botou os pés aqui dentro hoje, tem uma coisa muito forte me atraindo para ela! E veja! Faço questão de explicar! - Não é nada de atração física não! Embora seja muito bonita, é algo muito estranho! Que não compreendo! Como se já a conhecesse de muito tempo! - Lurdinha observa a moça e diz apenas: - Fique tranqüilo! Se for alguma coisa espiritual tudo se esclarecerá! É muito estranho o que Francisco está sentindo com a presença daquela jovem. Tinha alguma coisa acontecendo! Ele só não sabia o quê. Terminada a reunião todo mundo foi embora. Ele levou consigo aquela estraordinária impressão, incomodando-o fortemente pelo fato de não ter tido esplicação. Procura esquecer o incidente. Sábado seguinte. Os trabalhos no centro são divididos em duas etapas. Iniciam-se às 16h00 recepcionando os visitantes bem como, continuando etapas de tratamentos anteriores. Uma pausa às 18h00 para um breve lanche. Geralmente simples sanduíches com refrigerante. E meia hora depois começa a segunda etapa, agora com 343 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias os diversos grupos atendendo problemas novos agendados na quarta-feira passada. A jovem está lá outra vez com aquela senhora sempre ao seu lado. Novamente Francisco sente a mesma impressão muito forte. Ela exerce uma atração irresistível sobre ele. Mas até agora parece não ter tomado conhecimento da presença dele. É algo que só atinge ele. E não a ela. Isso o deixa ainda mais curioso. Se fosse algo puramente físico ela certamente teria notado. Se bem que ele procura disfarçar. A jovem vai ser atendida pelo grupo do senhor Eli. Algo que Francisco não sabe. Seu Eli recebe uma entidade cigana. Os diversos grupos se acomodam sentados em cadeiras plásticas, alguns preferencialmente sentados no chão de cimento mesmo, os grupos de três ou quatro pessoas, um pouco afastados uns dos outros. Em meio aos trabalhos, uma moça aproxima-se do grupo de Lurdinha e fala com Francisco: - O cigano mandou lhe dizer que ao terminar a reunião você permaneça aqui, pois vai acontecer uma outra reunião especial. Sua presença é importante! Francisco agradece e fica aguardando o desfecho. Terminada a reunião todos comemoram os bons resultados obtidos com a ajuda espiritual. Um dos fatos marcantes deste sábado foi o caso de um senhor, trazido numa maca direto de um hospital onde se encontrava internado para ser tratado no centro. Chegou totalmente entrevado com todos os seus músculos presos. Pernas, braços, coluna, tudo enrijecido. Os médicos não estavam conseguindo curálo. Fôra posto ali no chão na própria maca trazida do hospital, ao lado do grupo do senhor Eli. Ao final do seu atendimento de desobsessão a entidade lhe diz: - Pode se levantar você está curado! - O homem vacila. Talvez 344 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias recuse-se a acreditar. - Levante-se! Estou mandando! Pode caminhar! Você está curado! Fala a entidade com certo vigor na voz. Como se ralhasse com uma criança. E para espanto de muitos ali presentes, inclusive Francisco, o homem se levanta titubeando, mas sai caminhando com suas próprias pernas, amparado por dois familiares. Muitas coisas Francisco já havia presenciado em um centro espírita. Mas algo ainda muito forte está reservado exatamente para ele dai a instantes, ali mesmo. Terminada a reunião foi comunicado ao senhor Eli, que na maioria das vezes mantinha-se inconsciente enquanto o cigano atuava, a orientação passada para fazerem a tal reunião especial. Para surpresa de Francisco, a tal jovem e a senhora, que agora já se sabia, eram mãe e filha, também haviam sido instruídas para participar da tal reunião especial. Ao saber da orientação do cigano o senhor Eli dá algumas instruções: - Muito bem! Vamos só fazer um pequeno intervalo para que eu tome um pouco de água, enquanto as pessoas todas se retiram. Ai vamos sentar ali no chão! Ao redor daquele tapete! As pessoas que iriam participar desse encontro especial já estavam todas avisadas. Lurdinha e Fernando também. Umas nove pessoas no total. Novatos ali apenas a senhora e sua filha, que foram orientadas a sentar na extremidade oposta em frente ao senhor Eli. Francisco senta ao lado junto a Fernando e Lurdinha. Começa imediatamente a reunião com o senhor Eli incorporando uma entidade, que parecia ter sido trazida ali amarrada. Só suas mãos parecem estar livres. Assim que se apresenta vai imediatamente atirando impropérios na direção das duas. Mãe e filha! Fazia-lhes sérias acusações. Pelo que se entendia, ele as estava perseguindo como obsessor já ha bastante tempo. Essas situações são sempre 345 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias acompanhadas e assistidas por entidades bem-feitoras, ali invisíveis, que dão instruções a ele. Com a ajuda de seu Antonio, fazendo a doutrinação, ele foi diminuindo o ritmo das acusações que fazia às duas mulheres. Agora jorrando lágrimas de sofrimento ele narra sua triste história. Aparentemente, só agora lhe foi dado conhecer a presença de Francisco ali do seu lado. Pois até então não tomara conhecimento dele. - Mateus! Mateus! Meu amigo! Até que enfim encontrei você! - Diz ele para Francisco estendendo-lhe as mãos, parecendo amarradas. Segura o lado do coração com as duas mãos crispadas, como se estivesse sentindo imensa dor. Continua narrando seu triste episódio de séculos atrás. O que ele ainda parece estar vivendo, aconteceu em 1649. Ele nem sabe em que data estamos. Conta que ele, as duas, agora mãe e filha, são (a mãe) a mulher por quem ele se apaixonara perdidamente e a sua irmã (a filha). Juntamente com Francisco e vários outros amigos da época, estudam na Faculdade de Direito de Santos. Narra ele, todo o tempo, com lágrimas jorrando de seus olhos. Lágrimas de dor e de emoção. Ele é muito pobre. Mas seus amigos de faculdade gostam muito dele. São jovens do feudalismo local, filhos de nobres, de comerciantes importantes, como é o caso de Mateus (Francisco). São eles que pagam os seus livros de estudo, que lhe compram a beca para o dia de formatura. Os dois estão apaixonados. Tanto ele como ela (a mãe). Também cursando o mesmo o período final do curso de Direito. Todo o tempo em que ele fala, mantém as mãos segurando o peito como se houvesse ali uma grande ferida e as lágrimas continuam jorrando incessantemente dos olhos do médium. Um momento realmente tocante para todos ali presentes que dirigem a ele suas 346 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias orações, a pedido do doutrinador. Ele continua sua triste narrativa. Como prêmio pelo curso realizado todos vão fazer uma viagem de navio à Europa. Vão conhecer vários paises. Incluindo Portugal. Mas ele não tem dinheiro. Os amigos então pagam sua passagem e todas as suas despesas. Eles sabem do amor dos dois. Inconcebível e inaceitável para essa época. Mas tolerado por eles, que são seus amigos comuns. Esse é o tempo em que os pais é que determinam com quem a moça vai se casar. E assim viajam juntos. Um sonho de viagem. Principalmente para os dois apaixonados. Já estão regressando da Europa quando passam por Portugal, a última parada antes de voltarem ao Brasil. Ele havia imaginado um plano doloroso. Mas o único que seria possível, para um dia merecer ser aceito no seio da família dela. Decide ficar em Portugal. Uma surpresa para os amigos. Principalmente para ela. Mas ele estava decidido. Ia ficar em Portugal. Tentar a vida. Se um dia tivesse condições voltaria para ela. Só lhe pede que nunca se case. Que espere por ele. Todos estão traumatizados com sua decisão, mas são obrigados a voltar sem ele. Em Portugal ele vai sobreviver inicialmente trabalhando como garçom em restaurantes granfinos. Certo dia ele atende um senhor muito rico da nobreza portuguesa. O homem acha estranho um simples garçom com uma linguagem tão refinada como a dele. Ele então revela que na verdade é um advogado formado na Faculdade de Direito de Santos. Em outra ocasião confirma mostrando ao nobre o seu diploma de 347 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias advogado. O nobre se comove com ele e resolve apoiá-lo, montando um escritório para ele e indicando-o à sociedade de Lisboa, uma vez que é homem de muitas relações importantes. Não demora muito e ele se transforma em um advogado muito prestigiado e procurado na corte portuguesa. Poucos anos após ele já é um homem rico. Tem muitas posses em dinheiro vivo. Já juntou mais de um milhão de escudos. Então resolve vir ao Brasil. Seu coração continua entregue a ela. Enquanto isso, em São Paulo, os pais já haviam providenciado um casamento de arranjo para ela, com um nobre da sociedade local. Seu coração sempre foi dele. Mas não havia muito que ela pudesse fazer. Nesse tempo é assim. Quando ele volta ela está casada. Já faz algum tempo. Mas ainda não tem filhos. Os dois se reencontram numa recepção da nobreza local. Uma surpresa para ela. Ele está acompanhado do nobre português em visita de férias ao Brasil. Que faz questão de apresentá-lo como um dos advogados mais importantes de Portugal. Para os dois não ha esperanças. Ela está casada. Resolvem então se relacionarem às escondidas. Um escândalo sem tamanho se fosse descoberto. A irmã dela (agora sua filha), revela tudo ao esposo traído. Os dois são flagrados em traição matrimonial em plena alcova. O homem lhe desfere um tiro de cravinote (uma espingarda rudimentar do tempo do império) no peito. E ele morre ali. Na frente dela. Banhado em sangue. Até este momento em que está recebendo o socorro espiritual trazido ali em trabalhos de desobsessão, ele ainda agarra-se ao peito, sentindo a dor terrível daquele disparo. Para que pudese ser socorrido, a inteligência da espiritualidade 348 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias primeiro permitiu que ele reencontrasse as duas vivendo em nossa época, e através da caridade a elas duas através da desobsessão no centro espírita, ele seria de fato o principal beneficiado. Esse quadro dá uma idéia da intensidade do crime de adultério, como é considerado na espiritualidade. Foram muitos séculos de sofrimento desse espírito. Sentindo a dor como se tivesse acontecido ha poucos instantes. Até o momento em que lhe foi permitido aproximar-se delas, numa ação de perseguição movida pelo ódio e desejo de vingança que vinha nutrindo até então, por aquela que os delatara. E dai até o momento de merecer ser conduzido ao ambiente de desobsessão, para ser resgatado. Esse caso nos dá uma visão bem clara de como procede a inteligência das mentalidades espirituais super dimensionadas. Ao final da reunião não havia uma só pessoa ali presente que não houvesse chorado também. O quadro era tocante demais! Principalmente pelo fato de se poder presenciar o momento exato em que o doutrinador lhe mostra, certamente com a ajuda dos guias espirituais ali presentes, que sua dor terminou. Que o que ele sentia, ou achava que sentia, era apenas o reflexo de sua consciência. Ela sempre cobra quando fazemos algo errado. Pela contagem de nosso mundo material, foram necessários séculos de sofrimentopara que ele pudesse ser redimido. Provavelmente, por muitas vezes clamou por Deus. Depois que o sofrimento o reaproximou da divindade. Essa é uma marca feroz que assola a existência humana neste planeta de expiação. Haveremos sempre que aprender através da dor. Não importa em qual dimensão estejamos.Aluz que nos atinge queima. É da nossa própria natureza decaída. Ser definitiva e conscientemente uma “pessoa do bem”. Essa parece ser a única vacina eficaz para redimir os seres humanos. 349 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias M as infelizmente não é bem isso o que vemos todos os dias. Agora mesmo, esse que lhes escreve está vendo na televisão cenas dantescas em que mulheres são assinadas a tiros enquanto procuram cercar e proteger aqueles que lutam contra Israel. Quanta insanidade! E isso está ocorrendo na mesma região que crucificou Jesus. Que feras brutalizadas temos sido nós seres humanos! Em pleno início do terceiro milênio. Estamos falando do tempo que leva para se aprender a ser um ser humano, filho de Deus. Em casa de minha irmã Marina ha uma cachorra da raça siberiana. E ha uma outra também de raça bem pequena. Todas as vezes que a pequenina parece estar em perigo, a cadela grande corre em seu socorro. Convivem harmoniosamente. Uma é o brinquedo da outra. Elas parecem estar nos ensinando coisas. Elas! Os animais! Estão ensinando coisas aos seres humanos. Incrível essa constatação! Mas a natureza ensina o que é certo. Nosso livre arbítrio é que modifica tudo. Que caríssima liberdade Deus nos entregou! Ao nos conceder o instrumento do livre arbítrio. E o fez, sem dúvida, por amor. Portanto, não nos parece inteligente questionar as coisas de Deus, se não estamos em condições nem mesmo de entender e respeitar nossa própria identidade crística. Pelas regras da espiritualidade Maior ainda parecemos viver na idade do macaco. A experiência que Francisco acaba de vivenciar é uma das muitas vividas em seus estudos da espiritualidade. Ainda viverá outras. Nisso a espiritualidade lhe tem sido pródiga. Certamente que ha uma razão lógica desconhecida para o aprendizado que ora recebe através dessas revelações espirituais. De volta aos livros, ha algo que o apaixona no momento. São as obras romanceadas psicografadas pelo médium de Uberaba, Chico 350 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Xavier. Quando ainda freqüentava o centro espírita de Thiago ele recebeu uma informação relevante sobre Chico Xavier através do mentor espiritual de Thiago. Mais tarde, esse mesmo Chico Xavier vai marcar presença na vida de Francisco. - Esse que vocês têm agora, prestando um serviço maravilhoso a humanidade de seu país e que se chama Chico Xavier, já foi Barrabás! - Disse o mentor de Thiago. Então vejamos: de Barrabás, liberado da crucificação em detrimento de Jesus, até os nossos dias, são quase dois milênios. Ou seja! Leva tempo até que o espírito que nos habita a carne consiga galgar passos relevantes de crescimento. Entretanto, estamos treinados psicologicamente para querer resultados imediatos em tudo que empreendemos. Nem um pouco preocupados com nosso próprio crescimento interior. De onde viemos? Para onde vamos? Ah! Deixa isso pra depois! Estamos geralmente muito preocupados com o agora. Com resultados efêmeros. Carecemos realmente ser chamados à realidade através da dor. PEDIREIS E EU VOS ATENDEREI! A natureza é a navalha de Deus, com a qual está sendo modelada a raça humana. Corta retilineamente e é muito dolorosa. 351 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias M eses depois Rose está novamente ao telefone. Informa que precisa muito falar com Francisco pessoalmente. Necessita de alguns conselhos. De orientação. Marcam então para a noite após o telejornal que ele apresenta no Canal 2. Rose parece bem mais madura. Sentam em um banco na praça ali perto e conversam. Ela dá alguns detalhes do motivo pelo qual precisa da sua orientação. Inicia falando sobre o noivo. - Ah! Já está noiva! Que bom! - É mesmo sobre isso que eu quero lhe falar. - Quem é ele? - É um advogado. Ele é do interior mas formou-se aqui e continua trabalhando em Recife e no interior. - Rose parece apreensiva. - O que está acontecendo Rose? - Esta semana eu tive um momento muito relevante. - Tenta explicar ela. - Meu noivo me levou a um prédio em construção lá no bairro dos Aflitos. Ele comprou um apartamento lá e queria que eu visse, que desse algumas opiniões... Diz que é lá que vamos morar! - Que maravilha Rose! - É! Mas esse momento foi crucial para que eu refletisse sobre o que vou fazer da minha vida. - Ela tem tristeza na voz. - Não posso me casar com ele!... Vou fazê-lo infeliz! Ele não merece isso. Estou muito indecisa! Por isso queria muito falar com você! Você me disse que sempre que precisasse de uma palavra amiga estaria à disposição, não foi? - Claro! Rose! Claro! Eu gostaria muito de ver você feliz! Você merece isso!Ninguém melhor que eu sabe disso! Porquê você não tenta? O amor entre duas pessoas pode desabrochar a qualquer momento. Convivendo juntos. Conhecendo-se mais! - Pois é exatamente disso que tenho medo! Não me sinto capaz de fazê-lo feliz. Uma vez você me disse que nós não podemos dar a alguém algo que não temos. E o que eu sinto por ele não é suficiente 352 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias para garantir nosso casamento. - Puxa vida Rose! Eu fico triste com isso. Gostaria muito mesmo, que você acertasse o compasso de sua vida. - Pois é! Não me censure. Por favor! Não posso fazer homem nenhum feliz, se ainda amo você! Francisco emudece. Fica vaidoso por dentro. Mas por fora está entristecido. Que situação! Nunca vai poder fazer aquela mulher feliz. E não pode fazer nada para que ela seja feliz com outra pessoa. Ela dá mostras de como é grandiosa. Correta e limpa de espírito. Qualquer outra se aproveitaria da situação para garantir uma vida estável. Com ela é diferente. Uma personalidade invejável. Como é difícil administrar as correntes do amor. Eis um sentimento indomável. Ele mesmo está ali diante da mulher que poderia amar muito e fazê-la feliz. Mas continua impedido por circunstâncias que no tempo, já estão fora de seu controle. Tem uma família que precisa manter. Seu Carma é Sandra, as meninas Elissandra e Eliana e agora o bebê Ramatís. - Como vai o Ramatís? Rose parece advinhar seus pensamentos. Ela tem curiosidade de saber. O conheceu nos braços de Sandra. Os viu algumas vezes na calçada da Avenida Conde da Boa Vista onde ele morava na ocasião, e por onde ela passava diariamente para o trabalho. Sandra não a conhecia. Nunca soube dela. Até então. Enquanto conviveram Francisco foi sempre muito taxativo. Sandra nunca deveria saber sobre eles. E Rose, cuja personalidade é inquestionável, várias vezes passou tão perto dela, sua curiosidade feminina era irresistível sobre o menino. Principalmente após ter sofrido o aborto. Mas nunca deixou Sandra perceber nada. Sempre a respeitou. Conforme Francisco lhe solicitara. Respeite-a sempre! É a mãe dos meus filhos! Rica em personalidade, ela está ali, na sua frente mais uma vez dando provas disso. Que pena que o tal rapaz não teria aquela maravilhosa companheira em sua vida. 353 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Caminhos tortuosos! Esses nossos! Hein Rose? Lamento muito, por você! Sinceramente! O que eu posso lhe aconselhar? Você está jogando fora uma chance maravilhosa de garantir a estabilidade de sua vida. Faz isso porque é uma mulher maravilhosa! Só posso lhe dizer o seguinte: Essa vida tem muitas surpresas para todos nós. Faça sempre o que seu coração mandar. Ligue sempre seu coração à sua intuição. E suas decisões vão ser sempre acertadas. Lembre-se que Deus traça para nós linhas certas por caminhos tortos. Certo? Ele a leva até em casa, depois vai também para a sua. Ambos acabam de ter um instante de grandeza. Vai pensando: Que mulher extraordinária é você Rose! Porquê chegou tão tarde à minha vida... Como eu gostaria de poder ser feliz com você! E como sempre, reorienta seus pensamentos para sua família. Seus filhos, em particular. Eles precisam de mim. E eu preciso deles. Não posso mudar isso. Já estou no sacrifício.Assim vou continuar. Quanto à sua atuação no centro espírita, esse é outro assunto do qual Sandra não se aproxima. Nunca o acompanha. Faz questão de demonstrar seu desinteresse e descaso.Acha que é tempo perdido. A Rose, por outro lado, com todo prazer, vai aonde ele for. Certa ocasião resolve ir também ao centro espírita com ele. Deseja conhecer esse ambiente que Beínho tanto fala e que tanto gosta. Pouco ou quase nada ela sabe sobre o espiritismo. Só de ouvir falar. Gostaria de conhecer melhor. E vai com ele a uma das sessões. Nesse encontro no centro, em um dia de desenvolvimento mediúnico, acontece um detalhe bem interessante para os dois. Aproxima-se de ambos uma medium, incorporando uma entidade. Vai aplicar um passe nos dois. Em seguida ela fala com Francisco: - Esta já foi sua esposa na outra vida! E a que você tem em casa era a outra! Elas trocaram de lugar! - E diz baixinho só para ele ouvir: Não deixe que elas chorem! A médium se afasta. Vai dar outros passes em outras pessoas ali presentes. Francisco permanece pensativo. Meio estático. 354 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Olha para Rose. Ela também está surpresa com aquela revelação. - Você já imaginou! Bem que minha intuição me dizia! Nós dois já nos conhecemos de vidas passadas. Essa é a novidade! Você já foi minha esposa e Sandra era a outra. Que coisa, hein! Por isso você só chegou muito tarde na minha vida. Para ser a outra! - Ambos estão perplexos. Mas Francisco encara tudo com muita naturalidade. Aquilo só podia ser verdade. Não havia meio de a médium saber que ele era casado com outra mulher. Recebeu o aviso como um acréscimo. Alguém na espiritualidade estava lhe mandando esse recado. - E o que ela lhe disse no seu ouvido? - Quis saber Rose. - Nada demais! Só disse para cuidar bem de vocês duas! - Descarta ele. Francisco está de mudança. Vai residir em Rio Doce, Olinda. Uma área bem próxima da praia. Imagina que será bom para as crianças a proximidade do mar. O endereço fica bem distante. Cerca de dezenove quilômetros até o centro de Recife onde trabalha. Mas o sacrifício vale à pena. Pelo bem-estar da família. Ali vai acontecer algo extraordinário. Ramatís é bem pequeno ainda. Bebê de colo. São aproximadamente 18h30 de um dia qualquer da semana. A residência é um primeiro andar na pista principal. Um pequeno edifício ainda novo. Embaixo duas lojas comerciais. Nas proximidades ainda ha bastante terreno vazio. Próximo dali, com vista pelo janelão da sala para a direção de Recife, uma área bem grande, talvez um quarteirão inteiro com plantio de coqueiros. Elissandra, a mais velha, tem pouco mais de oito anos. Está à janela com Ramatís nos braços enquanto sua mãe prepara o mingau do garoto na cozinha. De repente ela avista um objeto circular escuro, com pequenas janelas arredondadas e iluminadas parado sobre os coqueiros. Estranha o objeto porque não escuta nenhum ruído. 355 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Maínha! - Chama ela. - Vem cá! - Espere aí menina! O mingau ainda não está pronto! - Maínha! Vem ver uma coisa! Vem logo! Percebendo que ha algo estranho no chamado de Elissandra ela vai até a janela com o papeiro na mão mexendo o mingau de Ramatís. E olha para onde e menina está apontando. Tem um objeto circular bem estranho parado sobre o coqueiral. Estão saindo algumas bolas de luz de dentro dele que deslizam pelo ar sem qualquer ruído posicionando-se bem na copa dos coqueiros por alguns instantes, em seguida retornam entrando no objeto pela parte de baixo. O objeto parece dois pratos, um emborcado sobre o outro. Externamente parece ser escuro. Isso será um disco voador? Pensa Sandra já com certo pavor. O objeto continua lá silenciosamente fazendo seu trabalho. O quê, ela não sabe. Poucos instantes depois elas começam a ouvir o som de helicóptero vindo de Recife nessa direção. Logo em seguida, as pequenas bolas de luz que estão fora do objeto retornam velozmente para dentro dele. E então o estranho objeto começa a se deslocar em sentido contrário ao dos helicópteros que se aproximam do local. Passa quase por cima do prédio onde Sandra mora e desaparece rapidamente. Sem o menor ruído audível. Poucos minutos depois dois helicópteros também cruzam o local parecendo ir em perseguição ao objeto. Sandra imediatamente telefona para Francisco que se encontra nos estúdios da televisão nesse momento. E conta o que se passou. Por enquanto ele não vai noticiar nada a respeito. Está ansioso para chegar em casa e ouvir dela todos os detalhes. - Foi incrível! - Sandra está psicologicamente tocada pela ocorrência que presenciou juntamente com as crianças. - E como eram as bolas de luz? Alaranjadas, brancas? 356 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Não! Eram claras puxando para o azul. - E vocês viram algo pelas janelinhas do objeto que parecesse com uma pessoa? - Não! Não vimos ninguém! - Quanto tempo durou a aparição? - Acho que uns vinte minutos até aparecerem os helicópteros. - Vocês não sentiram nada estranho no corpo, um arrepio, alguma sensação de calor? - Não! Nada! Mas eram lindas as bolinhas azuladas. - Mas tiveram medo? - Ah! Sim! Não é todo dia que se vê uma coisa esquisita daquela! Desabafa Sandra. - Tem certeza que não era um helicóptero parado aqui em cima? - Criatura! Se fosse um helicóptero acho que até o vento das hélices dele atingiria a janela. Estava muito baixo! - A que altura mais ou menos? - Acho que uns cinqüenta metros! Ele estava numa altura um pouco acima dos coqueiros. Sei disso porque as bolas de luz sempre se deslocavam para baixo indo parar na copa dos coqueiros! - Está bem. Temos todas as informações que precisamos para redigir alguma coisa para o noticiário de amanhã. Amanhece o dia e Francisco se mantém em expectativa esperando que a imprensa local dê alguma notícia a respeito do fenômeno. Mas nada. Ninguém parecia saber de nada. Ele mesmo faz uma ligação para a Base Aérea de Recife procurando saber de alguma coisa. Mas de lá ninguém informou nada. Disseram apenas que os helicópteros que passaram por lá estavam em treinamento. Estranho isso! Desconfia ele. Pois sabe, por tudo que já havia lido a respeito do fenômeno dos UFOs, que dificilmente as autoridades divulgam o que realmente acontece nessas aparições. Ha uma política generalizada de acobertamento. Pelo que se sabe, seguindo instruções até dos Estados Unidos. A desculpa é que esse procedimento se faz necessário para evitar mal-estar na população. 357 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias U ma coisa é certa. Raciocina Francisco. Sua esposa e as filhas haviam realmente presenciado a ocorrência de algo muito estranho e fora dos padrões normais da locomoção de aeronaves. O detalhe do absoluto silêncio do objeto é bastante revelador. À noite o telejornal do Canal 2 é o único veículo de comunicação a divulgar algo sobre o ocorrido. Numa pequena nota de não mais que dez linhas. E tudo foi esquecido. Francisco só se lamenta por um detalhe: Por tanto tempo ele se dedicou ao estúdio do fenômeno UFO, chegando até a divulgar o assunto em seu programa de rádio durante um certo período antes desse episódio e não teve a chance de ver essa ocorrência. Mas sabia que sua esposa e a filha Elissandra gozavam de pleno equilíbrio mental. Não haviam inventado aquilo. Sem dúvida elas realmente presenciaram o fenômeno. Por dois anos permanecem residindo em Olinda. Os fins de semana são muito divertidos. Para lá se desloca sempre Rony e a família. O pequeno Pedro Ivo e Ramatís são a alegria geral. Ramatís trouxe do ventre da mãe um problema físico. Sofre de adenóide. Um chumaço de material orgânico que às vezes tapa-lhe a respiração pelo nariz, deixando-o quase sem respiração. Sandra acorda apreensiva ouvindo o ruído do menino no berço junto à cama. Ramatís está em mais uma das terríveis crises de adenóide. É verão. A temperatura elevada provoca essas crises no garoto. Ele toma uma injeção a cada seis meses para controlar as crises. Deve ter se vencido o período de uma nova dose. Ela muito apreensiva agita o menino nos braços tentando fazê-lo respirar. Ele está quase totalmente roxo. Sem ar nos pulmões agrava-se o problema de oxigenação do sangue. Com muito esforço aplicando Vic Vaporube o menino consegue voltar a respirar. Já é madrugada. Logo o Sábado vai amanhecer. 358 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Oh! Meu Deus! Pensei que meu filho ia morrer! Elias logo cedo vamos levar ele ao médico! A crise do garoto foi realmente muito forte. Ainda não havia tido uma tão grave assim. São 08h30 da manhã e eles já estão chegando a uma clínica pediatra para atendimento particular de urgência ao garoto. O médico está examinando o menino. Confirma a situação dele. É realmente um problema de adenóide. - Esse menino teve algum trauma de nascimento? - Teve sim! Os pais explicam que ele nasceu de gêmeos e que o irmão nascera já sem vida enlaçado pelo cordão umbilical. - Acho que os esforços do irmão dele no ventre da mãe, ao ser preso pelo cordão umbilical pode ter exercido algum tipo de pressão física sobre o outro, nessa região do nariz. Por isso ele nasceu com esse problema. A dificuldade é que, não se pode recomendar uma cirurgia desse tipo numa criança tão pequena. É preciso aguardar que ele atinja uns cinco anos de idade para então se poder operar. O controle precisa continuar sendo feito com a injeção a cada seis meses. - E enquanto prescreve a receita da injeção, chamando a enfermeira para mandar aplicar, ele fala para os pais de Ramatís: - Isso é o melhor que se pode fazer agora. Entretanto, se vocês quiserem tentar outros meios!... É a Segunda vez que Francisco ouve um médico usar esse tipo de expressão, como recomendação a um tratamento de saúde na família. Ao saírem da clínica ele conversa com Sandra no carro voltando para casa: - Você ouviu bem o que aquele médico disse, de se tentar outros meios? - Ouvi! Sim! O que será que ele quis dizer com aquilo? Será que ele quis dizer para procurarmos algum tratamento espírita? 359 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Também acho que sim! Foi isso que eu entendi. Aquele médico deve ser espírita! Nessa época Francisco já foi informado de alguns tratamentos com cirurgia espiritual realizados no O Lar de Ita, cujo espírito médico é recebido pelo Sr. Eli. As cirurgias são efetuadas às quinta-feiras. Mas só em casos muito graves. - Eu já soube que ha um dia na semana em que o Sr. Eli e uma equipe de médiuns atende algumas pessoas em trabalhos de operação espiritual. - Comenta ele. Dizem que o atendimento é muito bom! Vou me informar esta semana e saber se podemos agendar um tratamento desse tipo para Ramatís. Mesmo com sua total descrença das possibilidades espíritas, Sandra está experimentado na própria pele uma situação de emergência. Qualquer coisa seria melhor do que ver seu filho crescer até os cinco anos de idade sofrendo aquele problema de saúde, que já quase o matou. Sandra então concorda que deve ser buscada essa possibilidade. A aquiescência através da dor. Aqui parece estar sendo processado mais uma vez o princípio da livre escolha, do ponto de vista espiritual. Francisco inclusive se surpreende pela facilidade com que ela está aceitando essa alternativa. Já em plena consciência de como agem os mentores da espiritualidade maior, ele quer entender que eles estão agindo agora em torno dela. Mais uma vez vamos assistir uma cura dupla. A dela, em termos de crença e a do próprio filho. Oh! magnífico laboratório! Onde se incrementam as atividades mais extraordinárias da Grande Inteligência. O que importa são os resultados. E eles virão! Com o beneplácito do Criador. Ramatís é só o veículo de intercâmbio nessa operação de caridade espiritual. 360 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N a reunião deste sábado no Lar de Ita, Francisco expõe o problema do filho ao Senhor Eli, dirigente do centro. Ele marca a reunião para a próxima quinta-feira à noite. Vai ser uma reunião bem particular. Explica o Senhor Eli. A entidade que ele recebe não gosta da aglomeração de muita gente nessas operações. E os médiuns são escolhidos a dedo pelo próprio Eli. Na verdade são escalados. Todos têm um enorme prazer de poder participar de uma reunião dessas. Quase sempre com resultados extraordinários. A equipe espiritual é cercada ali de muita credibilidade. Tanto que só é convocada em casos muito específicos, como é o do garoto Ramatís.Areunião está agendada. Vão participar apenas; o pai e a mãe do garoto, o Senhor Eli, um de seus filhos também médium, seu Antonio, vice-presidente do centro, a esposa e sua filha e mais dois outros médiuns. Todos já habituados a esse tipo de reunião. Novatos ali, somente Francisco e a Esposa. Ele com muito respeito ao trabalho dos espíritos. Ela nem tanto. Ele esclarece isso com antecedência ao Senhor Eli. - Não tem importância! - Afirma o médium. - Mãe é mãe! Ela vai gostar de ver seu filho livre desse problema! O Senhor Eli ainda explica que no dia da cirurgia espiritual, sempre no período noturno, o centro deve ser fechado ao meio dia. Permanecendo assim até a hora da cirurgia. Trata-se de uma assepsia espiritual, diz ele, uma espécie de lavagem energética purificando o ambiente, providenciada pelos espíritos Bem-feitores do centro, limpando-o do que eles chamam das lesmas energéticas deixadas no ambiente por entidades menores em processo de recuperação, quando para lá são conduzidas, principalmente nos trabalhos de desobsessão. Francisco vai aguardar o dia da operação levando consigo algumas considerações mentais. Muita coisa já conhecia através dos livros sobre os procedimentos normais das cirurgias espirituais. 361 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias M uito já havia investigado literariamente sobre as operações do médium Zé Arigó, de Congonhas do Campo e várias outras fontes de pesquisa a respeito do assunto, incluindo as obras do espírito de Ramatís. E imagina como deve ser fantástica a tecnologia utilizada pelos espíritos para poderem materializar na carne humana os resultados de uma cirurgia. Para ele é fácil compreender. Já leu que as doenças atacam os seres humanos primáriamente atingindo o seu corpo perispiritual. Um outro corpo energético que nos envolve, cópia fiel de nosso corpo de carne. Só que feito de material puramente fluídico e energético. É nesse material que os espíritos operam. A partir da eliminação da causa da doença no corpo perespiritual, a enfermidade se desmaterializa igualmente no corpo físico. Levando para isso o mesmo tempo normal de uma cirurgia física. Com exigência de curativos e tudo mais. Sua mente já começa a receber a nível de intuição as emanações do lado espiritual, dando-lhe consciência de como a cura do menino vai ser importante no processo de abertura mental da mãe do garoto. Os espíritos nunca trabalham visando um resultado único. Sempre buscam resultados paralelos de acréscimo, nas Leis da natureza que eles operam em nome do Criador. Nesse caso, não só Ramatís, mas também Sandra, será beneficiada. Quem sabe... Sua concepção sobre espiritualidade possa melhorar a partir dai. Na noite da reunião todos estão lá no centro na hora marcada. Ambiente muito tranqüilo, com pouca luz.Ouve-se apenas uma música muito suave, executada através de um toca-fitas e uma caixinha de som. A reunião já vai começar. O médico espiritual é muito rígido em relação a horários. Sua equipe trabalha muito. Em uma só noite são feitos vários atendimentos nos mais diversos locais. 362 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Não se sabe se apenas no Brasil ou se também em outros países. 20h00 e todos os médiuns já estão ali. O salão é bastante grande e continua totalmente fechado. Lá dentro somente os participantes da reunião. Ha apenas um banco de madeira próximo a uma parede.E cadeiras de plástico. O banco é igual aqueles das igrejas, feitos não de madeira maciça, mas de treliças. Os médiuns e os pais são orientados a se posicionarem em torno do banco. O Senhor Eli posiciona-se na cabeceira, orientando para que o garoto seja deitado de costas no banco. Ao seu lado direito está a moça filha de seu Antonio. Com uma característica peculiar. É completamente cega. Perdeu a visão aos quatorze anos. Sua vantagem é que, ela vê tudo o que se passa do outro lado. E narra os acontecimentos durante as cirurgias. Todos rezam o Pai Nosso abrindo a reunião. E em seguida são orientados para continuar orando em silêncio, rogando pela misericórdia de Deus, para que a equipe médica espiritual possa ser recebida ali para o tratamento de Ramatís. Estão todos em silêncio, apenas com suas orações individuais. Uma conversa com Deus, do jeito que cada um sabe. Sem qualquer exigência dogmática. Na verdade estão exercitando o poder da fé. Onde houver dois ou mais reunidos em meu nome, aí Estarei! Não foi assim que o Messias ensinou? Francisco confia que é isso exatamente o que ocorre ali. Acredita que o amor do divino Jesus está presente ali, através das orações de todos, interagindo através das mãos bondosas da equipe médica espiritual que acaba de chegar, conforme a descrição da moça, que tudo vê: - A equipe médica do Doutor (...........Nome do espírito aqui preservado, por não haver autorização dele para ser revelado nestas páginas) - acaba de chegar! Ele está acompanhado de seu assistente, uma enfermeira e uma pessoa que opera os equipamentos cirúrgicos. Que interessante! - A moça parece estar 363 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias surpresa. - O rapaz depositou aqui uma pequena caixa do tamanho de um maço de caixas de fósforo! O objeto está aumentando de tamanho! Cresce até ficar do tamanho de uma pequena mesa de objetos cirúrgicos. Tem uma pequena tela! E uma espécie de pinça presa por uma mangueira metálica. A moça parece estar muito contente. - O Doutor (.....) Saúda a todos e pede que continuem em suas orações. - Elas são muito importantes para fornecer a energia de que eles precisam. Ele diz estar muito feliz! Estão vindo agora do interior de Minas Gerais onde operaram a perna de um rapaz que joga futebol. A perna seria amputada por recomendação dos médicos terrenos. Mas eles conseguiram salvar a perna do rapaz. Eles estão muito contentes com essa graça alcançada. A moça continua detalhando tudo o que vê. Sandra está preocupada com Ramatís. Ele é um garoto bem esperto. Até certo ponto um pouco inquieto. Como toda criança em sua idade. Veste apenas um calçãozinho de tecido leve por cima da fralda e uma pequena camiseta de malha. Está deitado de dorso. Pensando que talvez o banco esteja incômodo para a cabeça dele, ela retira a camiseta de malha que ele veste, dobra e coloca sob a cabeça dele. Nesse instante a moça está descrevendo: - Eles acabam de anestesiar o garoto. Ele não vai sentir nada. O menino estranhamente pelo menos para Sandra, não atrapalha em nada. Já parece estar desacordado. Pelo problema de respiração ele nunca dormia nessa posição. Era sempre de lado. Mas agora ele se mantém de dorso com o rosto para cima todo tempo e quietinho. Dai a instantes ele faz algum ruído com o nariz, como se alguém houvesse enfiado alguma coisa. Mas se mantém desacordado. Francisco continua orando. No exato momento em que ele vê, com os olhos da mente, a cena de um braço todo de branco esticar-se para a direita com uma pinça segurando alguma coisa, ouve-se a moça descrever: 364 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - O Doutor (........) acaba de retirar a adenóide do garoto e entrega numa pinça para a enfermeira! Francisco é então tomado de forte emoção. Acaba de compreender o acréscimo extraordinário que lhe foi dado. Mostraram a ele o momento exato da retirada da adenóide do garoto. Silenciosamente as lágrimas descem em seu rosto. Ele continua com os olhos cerrados, agradecendo a Deus a bondade daquele momento. É preciso estar puro de coração e ter algum crédito perante as Leis da espiritualidade para merecer aquele momento. É simplesmente maravilhoso o que ele está sentido. Desejando ardentemente que Sandra pudesse ter visto também aquela cena. Terminada a cirurgia, que não demorou mais que vinte minutos, a moça transmite uma instrução da equipe médica para os pais da criança: -O médico informa que vão ser necessários três curativos, que serão efetuados pelos enfermeiros de sua equipe. - E explica como os pais devem proceder. - Os curativos serão realizados em casa mesmo, nas próximas três quinta-feiras, sempre às 18h00, a hora majestosa da Ave-Maria. Vocês devem colocar um lençol branco bem limpo, ainda não usado sobre a cama. Deitem ali o menino. Rezem o PaiNosso. Abram a bíblia em qualquer parte e leiam, durante cinco minutos. Depois disso façam outra oração final de agradecimento a Deus. É esse o procedimento simples. A reunião termina como sempre, com a beleza da oração final, agora proferida pelo SenhorAntonio. Uma coisa ficou clara para Francisco. A participação do Senhor Eli nesse processo era tão somente ceder o seu magnetismo mediúnico para a equipe espiritual poder atuar. Durante todo o tempo ele não se moveu. Mantendo-se ali sentado, completamente desacordado até a cirurgia terminar. Durante as próximas quinta-feiras, o procedimento de preparação 365 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias para os curativos são seguidos fielmente. Sempre nesse momento o menino adormece muito facilmente. Que impressão definitiva esse capítulo escreveu na mente de Sandra a respeito da espiritualidade do bem, não se sabe. Mas a lição fora passada. O menino Ramatís continuou crescendo sem mais crises de Adenóide. Não tomou mais as injeções de controle nem faria qualquer cirurgia física até se tornar adulto. Alguém precisa de mais explicação? Francisco tem uma. Uma única explicação! Aonde houver uma fé verdadeira e inabalável no amor de Deus, ai Ele estará materializando seus milagres. De todas as formas. Se quisermos encarar fatos assim, como algo tão extraordinário. Mas extraordinária mesmo é a persistência de muitos, em desacreditar que Ele exista e que opera milagres todos os dias. Todos somos Seus filhos. Todos merecemos Sua divina intervenção. O fato é que ainda somos muito pouco evoluidos para poder compreender toda grandeza de Sua evoluidíssima ciência espiritual. Um dia quem sabe... Só precisamos fazer por merecer. Essa cirurgia de Ramatís talvez tivesse um propósito especial. Despertar o avivamento da convicção sobre a extra-sensorialidade espiritual no seio de sua família. A sua mãe carecia de esclarecimentos muito contundentes sobre a realidade do espiritismo, que tanto empolga o esposo. Para aceitarmos e respeitarmos qualquer situação inovadora é necessário que saibamos da veracidade de sua existência. E aquela talvez fosse a maneira mais eficaz da Inteligência da Espiritualidade Maior, para fazer com que Sandra aceitasse essa realidade tão distante de suas crenças habituais. Ha situações em que nada fala melhor do que os próprios exemplos. Ela agora tinha um. Muito forte. Seu próprio filho, a quem ama acima de qualquer coisa acaba de receber as benesses de uma cura através da ciência espiritual. 366 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Um acontecimento muito providencial para a mente dela. Sem dúvida. Pouco tempo depois, a família de Francisco já retornou de Olinda e reside agora bem próximo ao Canal 2 aonde ele trabalha à poucos passos do centro da cidade e das gravadoras onde atua. Algum tempo depois acontecem modificações de ordem profissional. Francisco reúne-se a um grupo de amigos, locutores e redatores. Fernando Freitas, Marcos Macena, Ribas Neto e Carlos Alberto. E se estruturam como uma cooperativa profissional, associando-se a uma outra produtora nova na cidade, a Interfilmes do Brasil, com uma participação vantajosa na distribuição dos ganhos da produtora. A Interfilmes tem os equipamentos de filmagem, câmeras de cinema, equipamentos de edição e sonorização, estúdio de áudio, mas necessita da mão de obra especializada. O seu foco até então é a produção de documentários em áudio visual de slides. Agora pode entrar também na disputa do mercado de produção de filmes publicitários. Já tem o que precisa. Entre os locutores associados ao projeto há também elementos com experiência em direção de produção. Começa então um novo ciclo profissional. Francisco está regressando de Porto Alegre. Foi enviado lá por uma agência de propaganda de Recife para participar como apresentador de alguns comerciais para uma campanha de Bingos do Lions Club, que vai ser veiculada em alguns estados do Norte e Nordeste. E já está de malas prontas com a família para ir a mais uma Festa de Santana, em Caicó. 367 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias M aria das Vitórias, sua ex-noiva, havia se transferido para o estado do Acre, anos atrás. Lá ela se casou. Tentando refazer sua vida. Ganhou notoriedade. Vitória é uma pessoa muito inteligente e capaz. Ainda guardava a carta que “Chiquinho” havia lhe enviado encerrando o noivado. Algumas vezes ela esteve no Rio Grande do Norte em visitas. Sempre que podia passava por Caicó para rever dona Josina, mãe de Francisco, a quem ela considera uma segunda mãe. Havia confessado a dona Josina anos atrás, que só se casaria quando esquecesse Chiquinho completamente. Vitória faz contato com Chiquinho. É candidata a Deputada Estadual no Acre. Deseja que ele providencie o material de propaganda de sua campanha. Básicamente, jingle e spots para carros de propaganda, cartazes, santinhos, brindes, essas coisas distribuidas pelos políticos em época de campanha. Ninguém melhor que ele, que a conhece tão bem, para criar sua propaganda eleitoral. “Maria das Vitórias! O Acre precisa de você!” Esse o tema da campanha criada por ele e aprovada por ela. Vitória já havia constituido sua família. Já tem filhos. No momento ela encontra-se em Manaus com um problema de saúde na família. Está por alguns dias em um hotel. Nem está lembrando de Chiquinho! Vê o Jornal Nacional na sala do Hotel. Entra o intervalo comercial e o que ela vê? Chiquinho está na televisão apresentando um comercial do Lions. Que tremenda surpresa! Ela não se contém e começa a chorar, chocada com aquela visão inesperada! A mulher dona do hotel aproxima-se preocupada! - Dona Vitória! O que foi? A senhora está sentindo alguma coisa? Ela imediatamente procura se recompor. Como explicar? E pergunta a mulher: - A senhora já viu esse comercial da televisão anunciando um Bingo do Lions? - Já vi! Sim! -Amulher não está entendendo nada. 368 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Quando passar o comercial de novo a senhora preste atenção no rapaz que faz o comercial! Ele foi meu noivo! - Eu estou aqui chocada com essa coincidência! Estamos tão longe de Recife onde ele mora! Nunca imaginei que pudesse vê-lo aqui em Manaus! A mulher naturalmente já entendeu o problema. Realmente era de lascar. Vitória nesta noite vai dormir pensando: - Mas criatura! Nem aqui você me deixa em paz! - Haveria de rir bastante anos depois, comentando isso com o próprio. É tempo de mais uma Festa de Santana em Caicó. Francisco está lá com a família. Chegaram de madrugada viajando de automóvel. Elissandra nunca se acostumou a viajar de automóvel sem se sentir mal. Havia vomitado bastando com sua enxaqueca durante a viagem. - Ôh! Mimía! (Seu apelido familiar) Também você! Quase me faz vomitar também na viagem! - Reclama Eliana ao descerem do automóvel em Caicó. É preciso medicar Elissandra. A preocupação é que ela possa estar se desidratando. Amanhece o dia e tudo já está normal. Aproveitando um momento que Sandra saiu, dona Josina entrega algo a Francisco. - Está aí! Safado! A carta que você escreveu para Vitória terminando o noivado! Ela me mandou uma carta outro dia com esta dentro. Um dia ela me disse que só casaria quando lhe esquecesse! Está casada! O papel da carta já está amarelado. Por muitos anos Vitória a guardou. O que o amor não faz! Pensa Francisco enquanto rasga a carta e joga fora. Sandra não pode nem sonhar que chegou essa carta. Ainda mais pelas mãos de mamãe! Pensa ele. Çê La Vie Mon Dieux! Çê La Vie! São lembranças! Que vêm e se vão! Assim como nós. São poeira no tempo. Entretanto, alguns fatos marcam nossos espíritos para sempre. Escrevem no espírito uma linguagem diferente. 369 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N ão faz muito tempo Francisco leu em um livro espiritualista que os fatos de nossas vidas são gravados noAkascha. Um plano energético existente numa outra dimensão, em torno do nosso planeta de origem. Ali estariam impressos todos os passos e atitudes de nossas vidas, como num vídeo tape, enquanto estamos materializados na terra. Um registo da trajetória do espírito. Seus passos evolutivos. E tudo que lhe diz respeito. Eque, no primeiro momento nosso após a morte, é lá que nossa consciência vai buscar todo o seu histórico. Uma idéia muito avançada para a pobre concepção analógica de nossos tempos e de nossa consciência escolar materialista. Mas não deixa de ser uma bela descriçao, para motivar nossas mentes na busca das possibilidades desconhecidas e do desenvolvimento de nosso senso de observação. Não fosse o extraordinário senso de observação de Newtom, o grande cientista, nunca se escalaria os magníficos estudos sobre o efeito real da gravidade. Portanto, deve-se experimentar, estudar, observar. Em qualquer um dos campos do conhecimento humano. Da física Quantum à Paranormalidade. Ninguém pode ser dono absoluto da verdade do conhecimento. A realidade está em toda parte. Inclusive em formas de energias as mais diversificadas. Muitas ainda nem descobertas pela inteligência humana. Costumo responder, quando me falam de algo muito estranho e inconcebível: Parece ser verdade. Até prova em contrário. Os negativistas reagem diferentemente. Isso não é verdade. Até prova em contrário. Dizem eles. Pois sempre será mais cômodo esconderse por trás da negação. Fazem assim por pura preguiça de se aventurar na busca do desconhecido. Falta-lhes o espírito da aventura. Um dos companheiros consorciados na Interfilmes é o cinegrafista CarlosAlberto, o técnico de cinema. 370 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Certo dia ele está indo ao Aeroclube de Recife e convida Francisco para ir com ele. Diz que vai fazer sua inscrição no curso de pilotagem. Francisco imagina que para ser um piloto a pessoa tem que ter muito estudo, curso superior talvez. - E você tem curso superior Carlos Alberto? - Não! Não precisa! - E é? Achei que precisaria ter muito estudo para ser piloto. - Não! Você só precisa ter estudo suficiente para dar conta das matérias do curso. São cinco apostilhas: Motores, Navegação, Aerodinâmica, Meteorologia e Regulamento. Durante o trajeto ele vai dando outras informações. É apaixonado por aviação. Já voou bastante fazendo filmagens aéreas e agora está disposto a realizar o curso de pilotagem para PP, piloto privado. A categoria inicial. Só para aviões monomotores. Chegando na secretaria doAeroclube Francisco logo é reconhecido. - Ah! Você é o homem das propagandas da Primavera! - Também vai fazer o curso? - Pergunta o secretário. - Não! É meu amigo quem veio se inscrever! - Porquê você não faz o curso também? Não gosta de aviação? - Gosto! Claro! Gosto muito! Mas... Eu já tenho quarenta anos... - Bobagem! - Diz o moço. - Temos formado pilotos aqui até com mais de cinqüenta anos! Só importa que tenha saúde. Você já teve algum problema grave de saúde? - Não! Graças a Deus não! - Vamos Elias! - Insiste Carlos Alberto. - Vamos fazer o curso juntos. Seria muito bom! Nós viríamos todos os dias juntos! - Vamos fazer o seguinte! - Diz o secretário - Você assiste uma semana de aulas! Se gostar, volta aqui na Secretaria e faz sua inscrição. Paga sua taxa para receber as apostilhas e continua! - Está bem! Vamos ver como é o curso! 371 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco agora está decidido. Não custa nada dar uma olhada no material das apostilhas. Carlos Alberto já tem as suas em mãos. E passa a vir com ele todas as noites para a sala de aula. São dadas duas matérias todos os dias. Cada aula tem uma hora de duração, com um intervalo de quinze minutos entre ambas. No dia seguinte lá na Interfilmes Francisco dá uma olhada no conteúdo das matérias. Verifica que de fato não ha nada que ele não possa aprender. Só um pequeno detalhe. A matéria de Navegação Aérea exige conhecimentos de regra três simples. E isso Francisco nunca conseguiu aprender no tempo em que estudou. O amigo Carlos Alberto lhe explica como montar a estrutura da regra três simples. Ele aprende de imediato. Pronto! Agora está contornada a única dificuldade para ele continuar o curso. Após uma semana Francisco volta à Secretaria do Aeroclube para fazer sua inscrição. Agora está mesmo muito interessado. Precisa correr nesses estudos. Quando se apresentaram no Aeroclube para a inscrição de Carlos Alberto, já fazia uma semana que o curso havia começado. Ele entende que não pode perder tempo e entra de cabeça nas matérias para tirar o atraso. Lá na Interfilmes, em qualquer momento de folga Francisco tem sempre à mão uma apostilha. Já estão até fazendo piadas com ele. O companheiro Marcos Macena, muito extrovertido e piadista é quem mais lhe atiça a temperança com suas piadas: - Como está a temperatura hoje em Marte? - Motivo de boas gargalhadas de todos. O Carlos Alberto engrossa a fila dos gozadores. Também se diverte bastante com boas risadas. Mas não se dedica com tanto afinco ao estudo das matérias. As brincadeiras dos companheiros são na verdade uma boa motivação para Francisco. Estão mexendo com seu ego. Por isso ele penetra mais fundo ainda em seus estudos garantindo: 372 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Podem rir! Ri melhor quem ri por último! Eu vou passar nesse curso! Vocês vão ver! Durante esse período está acontecendo novo agravamento no relacionamento de Francisco e Sandra. Ela não gosta nem um pouco da sua idéia de ser piloto de avião. Procura criar toda sorte de interposição negativa para que ele deixe o curso pra lá. Ela não sabe que ele não pode mais simplesmente deixar pra lá o curso. Seu ego já está profundamente ferido com as gozações dos companheiros de trabalho. Não pode parar. Vai ser piloto. Eles vão ver! Aquilo era só um motivo banal para Sandra fortalecer o desentendimento entre ambos. Não custaria nada ela lhe dar apoio. Pensa ele. Mas seria sempre assim. Seria muito mais lucrativo para ambos se ela ficasse do seu lado. Se ajudasse a estimular a sua auto-estima. Mas infelizmente, por incapacidade cultural para alcançar esses valores ela se coloca do outro lado. Engrossa a fila dos opositores. Francisco é ariano. Tem uma personalidade forte. Não cede por nada. E continua o seu curso de aviador. Já sonha com as aulas práticas. No Aeroclube tem vários aviões. Da escola de pilotagem e também de particulares. Monomotores, bi-motores. O cheiro da gasolina de aviação está provocando nele algo parecido com a sensação da infância ao conhecer pela primeira vez tão de perto um caminhão. Ele vai em frente resoluto. Periodicamente, normalmente aos sábados, são feitas algumas provas simuladas. Os professores do curso vão podendo avaliar quem está se saindo melhor. Quem precisa melhorar. Quais as matérias que estão precisando de um reforço para determinados alunos, etc. A performance de Francisco, embora houvesse entrado no curso com uma semana de atraso, é uma das melhores. Seu bom aproveitamento é mais ou menos horizontal em todas as matérias. Com algum destaque para NavegaçãoAérea. 373 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Que segundo diziam, era a matéria que mais derrubava candidatos. Já está se revelando o melhor aluno nessa matéria. No intervalo entre uma aula e outra, enquanto estão indo à lanchonete do cinema Drive In ali perto dentro do Aeroclube, o professor Moisés lhe dá uma dica: - Primavera! - O apelido pegou. - Você vai indo muito bem no curso. Estou certo de que um dos aprovados vai ser você! Todos agora só o chamam de Primavera. Por causa dos comerciais de TV. Naquele ambiente é assim. Todos ganham um apelido. O seu é Primavera. Mais motivo de gozação lá na produtora! - O seu amigo Carlos Alberto não vai bem no curso! Estou preocupado com ele! - Diz o professor Moisés. E agora ele tem uma dica: - Não se preocupe com a matéria Regulamento. Isso é só decoreba. Você deixa para estudar a matéria só umas duas semanas antes da prova, para ter tudo decorado no dia dos exames. Concentre-se por enquanto nas demais matérias. Ao término do último simulado o professor Moisés aborda Francisco novamente com um pedido, no mínimo estranho: - Primavera! É o seguinte! Sabe aquele moço que veio de Goiás fazer o curso aqui? - Sei sim! - O caso daquele rapaz é especial. Ele está precisando de ajuda! É filho de criação de um grande produtor de milho lá. Em Ouro Verde de Goiás. O pai já tem um monomotor. Ele inclusive já aprendeu a pilotar esse avião viajando muitas vezes com o piloto. - O pai o mandou para cá dizendo que se ele conseguir o brevê de piloto vai comprar um outro avião novinho na Embraer para ele pilotar. Mas ele está muito triste porque não consegue assimilar bem a matéria de Navegação Aérea. - Francisco ouve em silêncio a proposta do professor. - Você, entretanto, é nosso melhor aluno nessa matéria! Sabe aquele cabo da Aeronáutica que vem sempre aqui! Aquele que faz o intercâmbio entre o D.A.C e o Aeroclube? Você sabe que os aviões do Aeroclube são mantidos pelo D.A.C. 374 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Não é? - Sei sim! Pois bem! Tem uma armação ai com aquele cabo! - Ele vai levar uma grana para ajudar o rapaz a passar no curso! E está precisando de sua ajuda! - Eu? Como? Isso não vai me prejudicar Moisés? - Ouve-se falar do rigor que cerca a realização dessas provas nas dependências da própriaAeronáutica, em ambiente militar. As provas são acompanhadas por um capitão, um sargento e um cabo.Os subalternos ficam todo instante caminhando entre os alunos durante as provas para inibir problemas de cola entre eles. Ha certa severidade nisso. Francisco já ouviu comentários a respeito. - Ainda não entendí o que é que eu tenho que fazer Moizés! - Não se preocupe! Veja! Eu mesmo vou fazer as provas também só para ajudar a passar o ex-prefeito Antonio Farias. Sabe que ele tem dois aviões aqui! Aquele Sêneca II e um Cessninha 148 que acabou de comprar só para se divertir. Também já pilota. O piloto dele ensinou. Mas não tem o brevê. Esta já é a nona vez que ele faz as provas e ainda não conseguiu passar. Não tem tempo para estudar. O Aeroclube é muito devedor a ele. Ele já disse que se não passar dessa vez vai desistir. Quando foi Prefeito de Recife foi ele quem fez a nossa pista de asfalto. O Aeroclube vai passar ele. Eu vou lá para facilitar isso. Mas não posso ajudar ao goiano. Pode dar na vista. Por isso precisamos de você! - Francisco pensa um pouco. - Você tem certeza que eu não vou me prejudicar? Moisés? - Absoluta! - E para tranqüilizar Francisco ele dá os detalhes de como a armação vai ser feita na frente de todo mundo e ninguém vai perceber. - Cada prova é entregue aos alunos em um envelope lacrado. O capitão dá então ordem para todos abrirem o envelope e começar a responder. 375 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Ha um cartão a ser perfurado com as 20 respostas de cada prova. Tipo cartão de vestibular! - Continua explicando o Moizés. Ha também papel, lápis e borracha para alguns cálculos que serão feitos. Na prova de Navegação Aérea, assim que você responder todos os quesitos, você vai esconder a sua borracha no bolso da camisa. Essa é a única prova que precisa de borracha. Você vai então chamar o cabo normalmente, para todos ouvirem, e dizer a ele que está faltando uma borracha no seu envelope. O goiano vai ser posicionado pelo cabo numa outra fila próximo de você. Quando você o chamar ele já vai se posicionar junto ao goiano. Então ele vai virar-se para o goiano e perguntar se ele pode emprestar a borracha dele. E vai entregá-la a você. Você simula que está apagando alguma coisa numa folha de papel rabiscada. Em seguida escreve o gabarito das respostas num dos lados da borracha com o lápis de grafite e virá-la ao contrário. Chama então o cabo e agradece devolvendo a borracha. Ele vai examinar a borracha normalmente, na frente de todos e entregar ao goiano. Ai é com ele! Tá certo? Entendeu tudo direitinho? Claro que Francisco havia entendido. Que bela armação! O Brasil é mesmo o país do jeitinho! Mesmo entre a aparente severidade militar! Foram 36 alunos nessa turma. Passaram 6. Na real 4. O ex-prefeito foi empurrado, o goiano também, pelo que Francisco sabia. Então restavam quatro. Francisco é um deles. O resultado das provas o D.A.C. só anuncia duas semanas após. São quase 18h00 quando o cabo chega no Aeroclube com a relação dos aprovados e prega no quadro da secretaria. Imediatamente Moisés liga para Francisco. - Primavera! Parabéns! O resultado saiu! Você está entre os aprovados! -Aadrenalina de Francisco vai às alturas. - Maravilha Moisés! E Carlos Alberto? - Infelizmente não passou! Passe aqui daqui ha pouco! Vai ter uma churrascada com cerveja! Pra gente comemorar! 376 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - De noite? - É! Churrasco de gato! Estamos providenciando uns espetinhos! Vem pra cá! - Chego daqui ha pouco! Já são quase 18h00. Os cumprimentos começam ali mesmo na própria Interfilmes. Abraços de confraternização. Mas Carlos Alberto está triste. Entretanto vai com o amigo até o Aeroclube participar da festa dos aprovados. Onde a cerveja já rola solta. O goiano é todo alegria. Também foi aprovado, claro! Carlos Alberto garante ao professor Moisés que na próxima turma vai passar. E vai amargar as gozações na Interfilmes. Hoje é um dia de vitória para Francisco. Ele está exultante. Está feliz pela aprovação no curso. Agora vai iniciar o treinamento prático nos aviões Paulistinha, monomotores teco-teco de treinamento, do Aeroclube. Ao chegar em casa mais tarde naturalmente sob efeito da cervejada, Francisco imagina que traz uma notícia capaz de motivar a esposa. Mas ela reage ao contrário. Está muito nervosa. O momento é bem apropriado para desencadear mais uma discussão. As crianças estão muito afetadas com palavrório dos dois. Vão para o quarto. Eles discutem na sala. Com o janelão do apartamento aberto para a beleza do Rio Capibaribe. As luzes se refletem nas águas escuras da noite. Uma noite bela e morna. No apartamento, entretanto, a temperatura subiu muito. O apartamento é no décimo primeiro andar. Sandra descarrega toda a sua adrenalina. É um momento de dor. Ela nunca entenderia porque está ali, presa a um carma que desconhece. Francisco desabafa doloridamente: - Sandra! Eu tenho certeza que nós não vamos terminar nossas vidas juntos! - Sente isso com uma profundidade muito grande. 377 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias U ma daquelas certezas inconfundíveis que não consegue explicar. Como se estivesse lendo páginas do futuro. Está muito triste pelo descaso da esposa com seus esforços no curso de pilotagem. Nunca terá seu apoio em qualquer projeto de elevação pessoal. Paciência! Na semana seguinte Francisco está realizando os exames de saúde que vão determinar sua capacidade física para os treinamentos práticos de pilotagem. Uma bateria de nove exames. Incluindo o psicológico. O psiquiatra manda Francisco sentar em uma pequena cadeira de madeira alta deixando os pés fora do chão. Em seguida bate no músculo de seu joelho com um pequeno martelinho de metal. À cada pancada a perna de Francisco sacode-se com certa energia. Extranhando a reação muito forte, o médico segura a ficha de Francisco nas mãos conferindo sua idade, e pergunta: - Você tem 40 anos, certo? - Francisco confirma. - Extranho! - Diz ele pensativo. - Seus reflexos são de um garoto de 12 anos! Eu ainda não tinha visto um caso desse! O médico está mesmo perplexo. E estende o exame de Francisco por meia-hora. O normal seriam quinze minutos. Diz ele. Faz inúmeras perguntas. Quer saber se ele lembra de fatos excepcionais ocorridos em sua infância... Francisco narra alguns. Pergunta sobre acidentes... Francisco então lembra o episódio do choque elétrico. Ai o médico acha que encontrou a causa do que ele está achando ser um fenômeno psicosomático, para justificar o reflexos tão atuantes dele, mesmo aos 40 anos de idade. - Doutor! Agora estou lembrando de um detalhe: Eu nunca cai escorregando em casca de banana, de manga, ou tropeçando em qualquer coisa. - E o que ocorre? - Quiz saber o médico. - Eu não sei como, mas sempre consigo me equilibrar a tempo. 378 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Sem dúvida! Seu caso daria uma tese de doutourado. Pena que não poderemos desenvolvê-la, não é? - E explica: - Não posso provar, mas acho que o choque que você levou em idade ainda infantil energizou seus cromossomos de tal forma, carregando-os de enegia de forma anormal, como baterias, a ponto de lhe conferir essa capacidade de raciocínio super rápido. Um mecanismo de autodefesa criado pelo cérebro naquele momento de alta voltagem elétrica. Vai ser bom para seu curso. O piloto precisa muito de bons reflexos. As emoções do treinamento prático são indescritíveis. Francisco sente-se um pássaro. Voar nesses aviões tão pequenos é uma delícia (Ver fotos). Ai também seu aproveitamento é muito bom. Após treze horas de treinamento prático ele está pronto para o voo solo. O solo é a hora em que o avião é entregue ao aprendiz para voar sozinho. Sem o seu instrutor “anjo de guarda” na cadeira de trás. O instrutor! Que nesse tipo de aeronave senta no banco de trás. É “o padre” que vai solar Primavera. Padre é seu apelido. Pelo jeito suave de sua personalidade. Mas não é bicha! Ele faz questão de esclarecer sempre que pode.Após mais um pouso o padre diz: - Primavera! Pare o avião ai no meio da pista! - O anjo da guarda abre a porta e sai. - Você está pronto! Já pode voar solo! Um friozinho corre pela espinha de Francisco, só de pensar que agora vai estar só conduzindo o avião. - Tenha cuidado quando vier para o pouso! Lembre-se que agora a aeronave está mais leve! Com menos peso! A tendência é flutuar mais no pouso! Não me quebre esse avião! - Dá uma risadinha batendo nas costas de Francisco. - Vai lá! Primavera gira o Paulistinha de volta para a cabeceira de decolagem e atocha a manete de potência! Trezentos metros depois já atingindo 60 milhas, puxa o manche suavemente e o Paulistinha desgruda do 379 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias chão! Que sensação maravilhosa! Agora meu Deus! Esteja do meu lado! Pensa ele. Gira ao redor do campo de pouso pegando a perna do vento, entrando pela perna base e aproa na final, indo na direção da cabeceira da pista. Pousa tranqüilo. Pouso de dois pontos, apenas com as duas rodas dianteiras. Em seguida arremete e decola novamente, sem desgrudar a vista dos instrumentos. A subida tem que manter 60 milhas por hora. Lá embaixo os demais alunos e alguns instrutores aplaudem o vôo solo do Primavera. Mais dois pousos igualmente tranqüilos. O último em três pontos. Pouso com a rodinha da trazeira também, e ele retorna com a aeronave para o pátio. Está recebendo os cumprimentos merecidos dos colegas e dos instrutores. As aulas práticas vão continuar, geralmente nos fins de semana, quando ele tem mais tempo. Sábados e domingos. Às vezes, vôos pela manhã e à tarde. Até completar as 16 horas mínimas exigidas para o check de brevê. O batismo de óleo dos pilotos, a nível de trote, é feito após a checagem para brevetar. Os colegas da escola providenciam uma lata com óleo queimado dos motores e uma vassoura enrolada num pano velho. Molham a vassoura no óleo e passam pelo corpo do jovem piloto. Incluindo a lubrificação da “bequilha”. Nas aeronaves, bequilha é um pneusinho bem pequeno na parte traseira. No trote, a lubrificação da bequilha é esfregando a vassoura suja de óleo entre as pernas do piloto, por trás. Outra ocasião para mais uma cervejada. Algo que o professor Moisés não dispensa. Já está começando a anoitecer. Estão todos ao redor de uma mesa ali mesmo no pátio do Aeroclube. O amigo Carlos Alberto foi avisado e acaba de chegar para participar da festa. Traz consigo uma pessoa muito especial. É Rose. Havia informado a ela do cheque de Primavera. Ela fez muita questão de ir lá também cumprimentá-lo. Ele então a trás. 380 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Francisco acaba de sair do banheiro onde foi retirar todo aquele óleo do corpo. - Mas que surpresa boa! Rose! Você aqui! - Ela o abraço e cumprimenta-o. - Carlos Alberto me ligou informando que você estaria sendo checado hoje a tarde para receber seu brevê! Pedi para vir com ele. Queria muito lhe parabenizar! - Ele sente que a emoção dela é muito verdadeira. - Obrigado Rose! - Que diferença! Sandra não estaria ali. Mas a Rose... Ela fica um pouco, depois vai embora com Carlos Alberto. Moisés sabe que Francisco é casado. Quis então saber quem era aquela jovem. Ele lhe dá alguns detalhes sobre Rose. - Muito simpática ela! - Descreve Moisés. - É mesmo! A Rose seria a mulher da minha vida! Se não tivesse cruzado tão tarde a linha do meu destino! É sexta-feira. Na segunda-feira seguinte na Interfilmes Francisco conversa com CarlosAlberto sobre Rose. - É! Ela ligou para cá querendo falar com você! Então falei que você estaria fazendo seu cheque para o brevê e ela quis muito ir cumprimentar você! Foi isso! Os dias estão passando e Rose não fez mais contato. Mas continua na mente de Francisco. Pelo que entendera, ela teria tentado falar com ele. Naquele dia no Aeroclube não houve oportunidade. O que seria? Será que ela acabou mesmo o noivado? Estaria novamente só? Sua carência afetiva é muita. Nunca mais houve outra mulher em sua vida. Ele resolve ligar para ela. - Oi Rose! Como vai? - Oi! É você Beínho? Que bom que você ligou! - Francisco vai ser rápido e objetivo. - Pois é! Rose! Quero aproveitar para lhe agradecer mais uma vez pelo estímulo que me deu indo lá no Aeroclube naquele dia! 381 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Mas claro! Que eu tive muito prazer de ir cumprimentar você! Carlos Alberto me falou do seu esforço para passar nos exames. Como vão os treinamentos? - Muito bons! Estou progredindo. Tenho que completar 32 horas de vôo solo. Tenho voado todos os fins de semana. Ha outra coisa que eu quero lhe falar Rose! Você ainda está noiva? - Não! Já faz tempo que o noivado acabou! Era mesmo sobre isso que eu queria falar com você no dia que telefonei para a Interfilmes e conversei com Carlos Alberto. - E ainda está só? - Estou! Sim! Estou dando um tempo! Meu coração só me pede trabalho! Porquê? - Vamos voltar a namorar? - Por alguns instantes ela fica em silêncio ao telefone. Deve estar se refazendo da surpresa. - Beínho! Você está falando sério? - Nunca falei tão sério Rose! - Você se separou de Sandra? - Não Rose! Mas estou precisando muito de você! Francisco também havia precisado de um tempo. Longe de qualquer outra mulher. Uma tentativa. Para depois se convencer em definitivo de que suas dificuldades de relacionamento com Sandra independiam de qualquer outra relação fora do casamento. Já se passou mais de dois anos do relacionamento tumultuado com Rose. Já é 1981. Ficara todo esse tempo sozinho. Para provar algo a si mesmo. Agora tudo está bem claro. E não vai ficar sozinho mais sabendo que ha uma mulher que ainda o ama. E que apesar de tudo ainda espera por ele. Está começando ali uma nova etapa de convivência entre os dois. Dessa vez vai ser bem mais demorada. - É! Precisamos conversar! Estou sentido você muito dolorido! Está precisando de um ombro amigo? - Pergunta Rose bastante 382 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias sensibilizada com o que ele acaba de lhe dizer. Marcam um encontro para a noite seguinte. A conversa vai ser demorada. Ocasião em que Francisco lhe informa de como deverão estruturar seu relacionamento dai em diante. Afinal, ela também está sacrificando sua vida pelo que sente por ele. Conversam e Francisco deixa claro que vai continuar sendo um relacionamento fora do casamento. Não tem coragem de deixar os seus filhos. Explica a Rose o que sente por eles. E que os vê como um compromisso cármico. Uma obrigação espiritual que trouxe consigo ao vir a este mundo e que cumpre com grande alegria. Pois os ama profundamente. Cuidar de seus filhos é sua tarefa mais compensadora. Estar sempre perto deles enquanto crescem. Rose aceita suas condições. Entende perfeitamente o que se passa em seu coração. Respeita suas responsabilidades com os filhos. E aceita se relacionarem assim mesmo. Ser a outra não a incomoda. Pois já tem aquela informação recebida no centro espírita tempos atrás. A outra de agora, já fôra no passado a esposa dele. Só quer estar ao seu lado. Trabalha agora numa empresa de seguros. Sua vida vai se renovar outra vez. Beínho está de volta ao coração dela. Por inteiro. Ou quase. Dá para administrar bem a situação. Enfim é a ele que ela ama. E se houver um período de calma, ele também vai amá-la profundamente. Assim espera. O relacionamento dos dois está novamente reatado. É um período de muitas compensações emocionais. Para ambos. Conversam sobre o aborto que ela sofreu. - Rose! Eu lhe peço que me perdoe! Não podia advinhar que você estava grávida. Aquele foi um momento intempestivo. Fiz mal. Por isso lhe rogo que me perdoe! - Já passou Beínho! Eu já superei isso! Não se preocupe! Não ha o que perdoar. Tinha de acontecer daquele jeito! Rose releva tudo. Pois ainda o ama. 383 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N o Aeroclube as emoções aumentam em torno do piloto recém formado. Os vôos continuam nos fins de semana, quando grande número de associados do Aeroclube e aficionados por aviação, incluindo o pessoal do Clube de Aeromodelismo, estão por lá. Gildo, Presidente do Aeroclube, acaba de voltar de Oskhosh, uma cidade americana, onde se realiza anualmente o maior evento de aviação esportiva do mundo. As revistas dão conta da presença de mais de três mil aeronaves vindas de várias partes do mundo para o evento. Inclusive o Brasil, tem lá sua representação. A Esquadrilha da Fumaça esteve presente dando seu show aéreo. Ocorrem cerca de mil pousos e decolagens diariamente durante a semana da Feira. Informa Gildo. Aquilo lá é uma loucura! Está empolgadíssimo com o que viu na FAA, o centro da Federação de Aviação Esportiva dos Estados Unidos. Este ano o Gildo foi acompanhado de dois amigos do Aeroclube de Recife. Francisco conversa com ele. Gildo dá inúmeros detalhes empolgantes do evento. E traz algo especificamente para lhe mostrar: - Dê uma olhada nesse folder Primavera! Estive no stand de montagem dessa aeronave! É o projeto KR-2! Muito fácil de construir. Lembrei-me de você! - As fotos do KR-2, em vários detalhes da seqüência de montagem, são bem interessantes. - Mas você acha que podemos construir esse projeto aqui? Francisco está curioso com essa idéia. - Acho que sim! Acho você muito empolgado com aviação! Esse projeto é muito fácil de construir! E barato! Já existe um KR-1 sendo feito aqui em Recife por dois amigos nossos. Vai voar breve aqui no 384 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Aeroclube. Estão construindo na casa de um deles lá em Piedade. Mas só tem um lugar na cabine. O KR-II, como você pode ver, tem dois lugares. Side-by-side. O projeto custa só cinqüenta dólares! Acho que você devia importar esse projeto. Arranjaremos um espaço aqui no Aeroclube para você montar a oficina de trabalho. Ha um outro piloto ali escutando a conversa. É o amigo Guerra, também piloto privado, um técnico da Texaco. Ele empolga-se com a idéia e afirma: - Primavera! Se você mandar buscar o projeto eu vou construir um desses também junto com você! Faremos dois aviões com o mesmo projeto! - É isso aí! - Entusiasma o Presidente Gildo. E acrescenta: - O Aeroclube dará todo apoio a vocês! Francisco então manda buscar o projeto do KR-2. Tudo apenas no papel. Plantas muito bem detalhados. Só que tudo em inglês. O projeto existe para venda nos EE.UU também em kits para montagem. Entretanto nesse tempo no Brasil, vários tipos de produtos são proibidos de importação. Esse tipo de produto infelizmente está incluído entre as proibições. O jeito era importar as plantas com todos os desenhos e fabricar os próprios kits. Francisco é uma pessoa que gosta de desafios. Logo se empolga com a idéia. Acendem-se as luzes de um novo sonho. Mais uma realização para seu currículo pessoal. Porquê não? Agora vai ser construtor aeronáutico também! Que reviravolta na sua vida!... Pensa ele. Mas há um problema! Nesse caso o projeto precisa ser traduzido. Procura uma pessoa que faz esse tipo e trabalho lá na Sudene, indicado por um amigo. Mas o preço cobrado pela tradução é cerca de duzentos dólares. O projeto só custou 385 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias sessenta dólares! Cinquenta mais dez de correio. Não dá para topar esse custo de tradução. O guerra também acha muito caro. Francisco tem uma idéia. Nada é impossível quando a mente está direcionada com total energia para um objetivo específico. Suas noções de inglês são razoáveis. Não fala. Mas lê razoavelmente. Compra então um dicionário de inglês técnico e traduz ele mesmo o projeto. Mais um motivo para o prazer de seu ego. Duas semanas depois inicia-se a construção. Francisco é muito decidido. Não é alguém que possa ser impedido de algo com muita facilidade. Na vida, cada objetivo alcançado é motivo de elevação para sua auto-estima. São provas a si mesmo, de que nada pode impedir uma pessoa determinada. Quer deixar isso como um exemplo. Não é incomum, descobrir-se às vezes em viagens mentais do tipo: Quem é você, realmente, Francisco? Que saiu daquelas brenhas paupérrimas em um sítio de Caicó, cercado de tamanha pobreza e hoje se vê como piloto de avião, às voltas com a construção de um projeto aeronáutico? Pensar nessas imensas diferenças e transformações lhe dá um certo prazer. Quase sempre lembra-se do vovô Chico Elias. Informada da idéia de construção da aeronave Rose mostra-se logo muito empolgada, transmitindo seu apoio a Francisco. E sempre que possível, vai estar lá na oficina com ele tentando ajudar em alguma coisa. Essa disposição dela o agrada muito. Justamente o contrário da receptividade negativa que recebe em casa por parte da esposa. Mas de certa forma ele já não se deixa tocar por isso. Já está habituado às posições contrárias vindas dela. Vai em frente na idéia de construção do KR-2 ao lado do amigo Guerra. Quase sempre, Rose está em sua companhia. 386 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A os poucos a madeira, o compensado aeronáutico, a cola Araldite e a serra elétrtica, vão dando forma às duas aeronaves, construídas lado a lado. Vai levar algum tempo. São necessárias 1.700 horas de trabalho para a conclusão do projeto a partir da construção dos kits. Mas Francisco não tem pressa. Ha um prazer muito grande nessa tarefa. É sua terapia ocupacional. Que favoralmente vai ser prolongada. Rose interessa-se pelas emoções dele com o projeto do KR-II. Procura participar. Dar sua contribuição em apoio ao que ele tanto se empenha agora. Guerra, certa ocasião conversa sobre Rose: - Menina interessante essa Rose! Sua esposa é quem deveria estar aqui, hein Primavera! Mas é a Rose que ocupa esse lugar! Guerra sabe das dificuldades de Francisco no casamento. Lamenta que seja assim. Mas compreende a dedicação de Rose para com ele. Vindo até à oficina assim várias vezes, à noite, após o trabalho. Semana após semana. Sem garantias de nada. Só para estar perto dele. Às vezes um tanto cansada do seu dia-a-dia no trabalho. - É admirável o que essa menina sente por você Primavera! Observa Guerra. É prazeroso trabalhar na montagem do avião. A construção está bem avançada. O prefixo da aeronave já foi liberado pelo C.T.A. - Centro Técnico Aeroespacial, em São José dos Campos, São Paulo, que também coordena e autoriza as construções ditas “home Build” construções caseiras. PP-FAZ. As letras iniciais e o Z final são obrigatórios no registro, identificando que se trata de uma aeronave esportiva de construção caseira. O FAsão iniciais do nome de FranciscoAraujo. 387 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Que coincidência! Comenta ele com Rose. - Deu FAZ! Os engenheiros do C.T.A. Estão em Recife para a primeira inspeção, analisando o andamento do projeto nas duas aeronaves. Tudo no figurino. Sábado e domingo eles trabalham quase o dia todo no projeto duplo. Os dois aviões estão sendo construídos em etapas paralelas. Este domingo, Francisco foi almoçar em casa. Está terminando o almoço quando o telefone toca. Guerra está muito consternado ao telefone: - Primavera! Uma notícia muito chocante! - O que foi Guerra? - Francisco pensa logo num incêndio que teria queimado os aviões. - O Gildo acaba de se acidentar com o avião dele! Caiu na decolagem aqui mesmo dentro do Aeroclube! Eu mesmo retirei ele de dentro do avião pensando em correr com ele para o hospital. Mas ele já morreu! Morreu nos meus braços! Que chocante! Não poderia haver notícia mais desagradável do que aquela para os associados do Aeroclube. Francisco volta imediatamente para lá. O corpo do amigo Guido já havia sido levado. Uma tristeza para todos. - Como foi isso Guerra? - Francisco observa os destroços do avião. - Eu estava na oficina. Só escutei o estrondo. Corri lá fora e as pessoas estavam vindo apressadas na direção do avião. Eu vim também. Ele estava voando com o sobrinho, que estava no banco de trás. Algumas pessoas disseram que ele estava ensinando o sobrinho a pilotar. E que foi o garoto quem decolou o avião. O Gildo não deve ter percebido que o rapaz estava puxando o manche além do normal. O avião estolou a uns setenta metros de altura e despencou de vez caindo de bico. Foi isso! 388 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias P or vários dias o Aeroclube vive uma consternação de luto. Na oficina do KR-II também. A montagem dos dois KR-II vai continuar. Talvez seja aquela uma forma de homenagear o amigo Gildo. Afinal a idéia fora dele. Enquanto isso, periodicamente, Francisco se diverte com as crianças, voando com elas nos teco-tecos do Aeroclube. Somente Sandra nunca quis voar. Diz ter muito medo. Mas as meninas se divertem voando com o pai nos fins de semana. Ramatís ainda é muito pequeno. Só mais tarde, em Maceió, ele irá experimentar essas emoções de voar junto com o pai. Vez por outra Francisco vai à Fortaleza, contratado para gravar comerciais de TV das lojas Romcy. O cachê vale à pena. Em uma ocasião dessas leva Sandra e Ramatís (Ver fotos). Juntos também vão o casal Fernando Freitas e Lurdinha. O moço da agência de propaganda lá de Fortaleza é amigo deles de tempos atrás em Recife. Tudo parece caminhar satisfatoriamente. Mas o destino está preparando algo para Francisco. A produção de comerciais na Interfilmes está decaindo cada vez mais com a entrada no mercado da tecnologia do vídeo-tape com imagens coloridas. A situação econômica não está nada boa para ele. Ainda bem que os gastos iniciais do projeto do KR-II haviam sido feitos bem antes na compra dos materiais. Agora depende mais de mão de obra. Por isso pode continuar sem problema. Mas essa situação com a rentabilidade do trabalho o preocupa muito.As meninas agora têm que estudar em um colégio modelo da Prefeitura, próximo de onde 389 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias eles moram na Rua daAurora. Sandra toma uma iniciativa. Ha uma feirinha de artesanato quase em frente ao prédio onde moram. Ela vai fazer bolos para vender na feirinha. Tenta melhorar o orçamento doméstico. Estão vivendo um período ruim. Ela se ressente porque Francisco nunca vai lá na Feirinha onde ela vende os bolos. Ele não se sente à vontade. Que as pessoas percebam o quanto estão em dificuldades. A esposa do apresentador de televisão está vendendo bolo para sobreviverem. Isso não seria nada demais. Mas ele tem dificuldade em assimilar com total isenção e humildade essa situação. A “helicoidal”, que parece dirigir os destinos dele rolou para baixo já faz algum tempo. A Rose continua sendo sua parceira. Tanto emocional, como em apoio ao projeto do KR-II. Francisco diminui consideravelmente os vôos recreativos de Paulistinha no Aeroclube. Precisa economizar algum dinheiro. Rose sempre procura reanimá-lo quando percebe que ele está triste. - Beínho! Tenha fé! As coisas vão melhorar! Você vai ver! Vão melhorar! - Que bom! Que ela não depende financeiramente dele para viver. Ai o transtorno seria terrível. Ela cuida de si mesma. Tem seu trabalho na empresa de seguros. O que ganha dá para se manter muito bem. Mas ele não vê como melhorar suas finanças. Seu mercado de trabalho em Recife definhou consideravelmente. Depois de cada dificuldade vem sempre a bonança! É nisso que ele deposita suas esperanças.Amanhã... Nunca se sabe... 390 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias J á faz mais de um ano que sua situação financeira não anda bem. Já estamos em fins de 1981. Este ano nem pôde ir a Caicó na Festa de Santana! - Pensa Francisco. A festa em Caicó é sempre um marco periódico na vida de todos os seus familiares. Estão sempre esperando sua presença por lá. Mas este ano não deu... Alguns companheiros seus já saíram da cooperativa na Interfilmes, buscando outras alternativas. Restam apenas ele e Fernando. Que depois também se ausenta. Francisco ainda permanece. Pois ha uma empresa de publicidade que grava com ele todos os comerciais de um cliente seu. A Viana Leal. Um forte concorrente da Mesbla no setor de magazine. Serviços de locução apenas. A produção de material em filmes agora é insignificante. As locuções no estúdio de áudio da produtora é o que ainda mantém Francisco. Já não trabalha mais no rádio e TV Jornal do Commercio, que também entrou em derrocada, com atraso de até três meses nos salários dos seus funcionários. Por um bom período a sua situação econômica vem se mantendo bem magra. Mas pelo menos, vive uma nova situação sentimental compensatória com Rose. No momento, a condição emocional da família agrava-se mais ainda com a crescente instabilidade do casamento, às vezes de forma bem dolorosa para Francisco e para Sandra. Estão vivendo agora bem no meio do que os especialistas chamam; a crise dos dez anos no casamento. Ha quem afirme que todo casal passa por esse momento. E dependendo do fortalecimento dos sentimentos envolvidos e da base amorosa entre os dois, o resultado pode ser bem doloroso. Muitos casamentos são desfeitos nesse momento crucial, quando os filhos mais precisam da presença dos pais. Francisco analiza todas essas conseqüencias. Já leu sobre todas elas. Outra vez ela está muito nervosa e chora. 391 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco lembra do conselho passado pela entidade espiritual, quando lhe aconselhou para que evitasse choro, de Sandra e de Rose. Porquê as coisas nunca se estabilizam em seu casamento? Pondera ele. No momento seu compromisso continua em razão dos filhos. Ramatís está crescendo. Já tem três anos. Já está no Jardim de Infância. A vida precisa continuar. Agora mesmo ele está lá embaixo no parque em frente ao prédio onde moram aprendendo a soltar pipa com o Zezinho, um primo vindo de São Paulo em férias, filho da tia Neném. Um rapaz nascido e crescido dentro de São Paulo. Muito habituado a ver pouco sol. Hoje bem cedo Francisco deparouse com Zezinho encostado ao janelão do apartamento olhando abismado a paisagem. Ele chegou ontem à noite de avião. - Puxa! Mas como tem sol aqui! - Exclama ele muito curioso. Está muito surpreso com tanta claridade assim, que nunca tinha visto. É verão. E nesssa época no Nordeste o sol brilha com muita intensidade. Após o café da manhã o Zezinho desce lá embaixo no parque infantil à beira do Rio Capibaribe para ensinar Ramatís a soltar pipa. Que ele mesmo fez. Francisco ainda é visto pelas agências de propaganda como um bom Mestre de Cerimônias. Contratado de vez enquando para apresentação de eventos de inauguração de bancos, supermercados e outras empresas privadas. Estão ligando para ele. Ha um acontecimento de relevância sendo preparado em Recife. Um desses trabalhos a fazer. Bom mesmo! Porque a situação econômica em casa já começa a apertar feio. É um coquetel a se realizar na sexta-feira seguinte no restaurante de 392 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias cobertura de um hotel em Boa Viagem, para recepcionar o Presidente Internacional da National. Uma corporação japonesa que produz uma infinidade de produtos eletrodomésticos e eletrônicos, com tentáculos espalhados pelo mundo inteiro, em visita à Recife. Está lançando no mercado brasileira as suas novas pilhas elétricas. O Presidente e sua comitiva está visitando vários mercados no Brasil e Recife está no seu roteiro também.Acabam de contratá-lo para apresentar o evento. Às 19h30 Francisco já está no hotel conversando com a organização do evento. Estarão presentes para recepcionar o Senhor Nakamura, os Presidentes do Clube de Diretores Lojistas e da Federação do Comércio em Pernambuco. Além de vários lojistas, varejistas que distribuem os produtos da companhia aos consumidores diretos. Já existe um núcleo da companhia sediado em Recife. Que importa os equipamentos e redistribue com os lojistas. Ha grande espectativa nessa recepção ao Sr. Nakamura. É a primeira vez que o Presidente da National visita o Nordeste. Gravata e paletó é exigência formal. Quinze minutos antes de iniciar o evento Francisco está sendo contactado pelo representante da agência de propaganda que o contratou: - Elias! Estamos com um problema! Já falei com eles mas, nenhum dos representantes do Clube de Riretores Lojistas nem da Federação do Comércio, quer fazer a saudação ao Presidente da National. - Nesse instante o homem da National em Recife se aproxima. - Então o jeito é você mesmo fazer a saudação! - Mas meu amigo eu nunca fiz isso! Estou aqui para apresentar o evento como Mestre de Cerimônio! - O representante da agência contra-argumenta que não há outra alternativa. A solução está na sua mão. 393 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Mas eu não falo nada de Japonês! Como vou citar os nomes da comitiva do homem? - O representante local da National, que fala um português razoável, intervém com uma sugestão: - Não tem poblema! Falar nome japonês é faci! Basta acentuá todas as sí-la-bas. Assim né: Ná-ká-mú-rá! Francisco experimenta: - NÁ-KÁ-MÚ-RÁ! - Isso! Isso! - Responde o japonês. O problema está contornado. Francisco vai fazer a saudação em nome das autoridades locais. Mas deixa bem claro para o moço da agência: - Vou fazer o menor discurso que você já ouviu na sua vida, hein! Falar pouco para errar menos! - O representante da agência está de acordo. Só então a comitiva da National é trazida para o salão. Após as apresentações e os cumprimentos de praxe a todos os presentes, com o Senhor Nákámúrá rodando todo o salão acompanhado de seu séqüito, Francisco recebe instruções para ir ao microfone, levando a relação com os nomes da comitiva e iniciar sua saudação. Ao começar a sua fala, ele é logo surpreendido pela postura do Senhor Nakamura. O homem vem em sua direção e se posta uns dois metros à sua frente, perfilando-se como se fosse um general prestando continência a outro. Os integrantes de sua comitiva também. Fazem fila ao seu lado. Parece um pelotão militar prestes ao “apontar! Fogo!”. O representante local da National se posiciona ao lado do Sr. Nakamura. Vai ser o intérprete. Francisco desfia a lista de nove nomes da comitiva: - Ilustres senhores: Mí-xí-ô-cô, Ká-ní-ká-rá-chí, Ná-tô-cuô-mô... - E assim por diante, até chegar ao nome principal da lista, o Senhor Ná- 394 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias mí-ô-zô-tô Ná-ká-mú-rá. Continua seu breve discurso de saudação à tão importante autoridade empresarial internacional, descrevendo a satisfação dos empresários locais e suas representações, em recebêlo nessa ocasião. Pela expressão dos representantes das organizações comerciais ali presentes, ele parece estar se saindo muito bem. Terminada a saudação, ele anuncia que será servido a todos um coquetel. Tão logo encerrou seu breve discurso, o Senhor Nakamura dá dois passos mais à frente, ainda empertigado em posição militar e vai apertar a mão de Francisco. Apertando forte ele balança o braço pra cima e pra baixo cerca de uns 30 segundos. Eu já ví isso em algum filme! Pensa Francisco. Após isso recebe os cumprimentos também dos representantes das entidades comerciais e do próprio representante da agência, que se mostra muito contente: - Elias! Você foi incrível! Fantástico! Muito obrigado por tirar a gente dessa saia justa! - Você me apronta cada uma, hein! Amigo! - Desabafa Francisco. Como para todo esforço ha sempre uma compensação e um reconhecimento, na segunda-feira seguinte Francisco recebe um telefone do gerente regional da National, pedindo que vá até o seu escritório, não muito longe da produtora, por sinal. Ele não deu detalhes. Francisco imagina que o seu pagamento pelo trabalho do cerimonial vai ser feito pela própria agência que o contratou. E vai lá. O que será que ele quer comigo? - Muito boa sua apresentação! O Presidente Nakamura ficou muito impressionado e agradecido com seu discurso. Nós também! Sente 395 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias por favor! Você trabalha numa produtora de cinema publicitário, certo? - Perfeito! - Nós temos um trabalho para você! Precisamos que vocês criem e nos apresentem o roteiro de um filme para as pilhas National, que rodaremos na televisão! É possível? - Claro! É sim! Traremos isso ainda hoje! - Por favor! Traga também o orçamento de produção do filme! Conversa rápida e produtiva essa! Pensa Francisco de volta à Interfilmes. Ele mesmo criou o roteiro do comercial. Também se encarregaria da locução e direção do filme. Estabelece no roteiro a participação de um personagem local de muito sucesso na TV, o repórter policial Jota Ferreira, dono da maior audiência das reportagens policiais da TV local. Francisco imagina que é preciso a atuação de uma figura assim, muito carismática e de grande popularidade. Jota Ferreira é a pessoa certa. Faz contato com o profissional e fecha o orçamento. Ante de concluí-lo fica imaginando... Um filme para a National!... Essa gente deve estar acostumada a pagar rios de dinheiro no mercado internacional na produção de um filme. Tá certo que a Interfilmes não é uma produtora nada internacional. Mas procura engordar bastante o orçamento. O filme será rodado em 35mm e reduzido para 16mm para poder veicular nas máquinas da televisão. Obtendo com isso uma excelente qualidade no produto final. Conclui o orçamento e vai apresentar junto com o roteiro. - Mas que boa idéia! - O gerente da National achou muito interessante utilizar o repórter da grande audiência policial no filme. Aidéia é mesmo atingir o público popular. Esclarece ele. Solicita que deixe com ele o roteiro e o orçamento. Ele irá à São 396 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Paulo no dia seguinte para encontrar-se com o Presidente Nakamura, que já estará voltando ao Japão. Os compromissos corporativos do Presidente demandam uma certa velocidade. Ele está acostumado a amanhecer em um país e dormir em outro. Uma semana depois está de volta. O telefone da Interfilmes toca. É o gerente regional da National pedindo que vá até seu escritório. - Excelente! - Diz ele recebendo Francisco em seu gabinete. - Sabia que seu filme foi aprovado no Japão? Explica que chegando à São Paulo o Senhor Nakamura já havia embarcado de volta para o Japão. Ele teve então que ir até lá para tratar de outros assuntos da companhia. - O filme está aprovado e o orçamento também! Quanto tempo você precisa para nos entregar o filme? - Umas duas semanas! - Responde Francisco. Está explícito no orçamento que o pagamento deve ser com 50% na confirmação do orçamento e o restante na entrega. - Aguarde um pouco que eu já mandei providenciar o cheque com o pagamento dos 50%. Em seguida entra uma moça nissei no gabinete e ele entrega o cheque a Francisco, que deixa assinado um recibo provisório. A nota fiscal virá com a conclusão do trabalho. O resultado do discurso que Francisco fizera, de saudação ao Senhor Nakamura, não poderia ser melhor. Está rendendo dividendos. Pensando bem! Aquilo está lhe parecendo uma iniciativa de compensação por parte dos dirigentes da National, no sentido de demonstrar de uma forma bastante plausível, seu reconhecimento. Para quem está vivendo um certo aperto financeiro, essa oportunidade é excelente.Acaso? 397 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco ganhou um bom dinheiro com o filme. Deu até para comprar um automóvel. Um Passat seminovo. Com três anos de uso. E ainda sobrou um bom dinheiro. Já estava sem carro ha bastante tempo. Quando as coisas apertam, é o bem que primeiro se vai. Seu destino aponta para Maceió. A “helicoidal” vai continuar dai por diante sinalizando mudanças em sua vida. Ha um amigo na cidade de Maceió, para quem freqüentemente Francisco trabalha, na produção de gravações de textos publicitários para rádio e TV lá deAlagoas. Freqüentemente Francisco tem ido à TV Gazeta de Maceió finalizar alguns comerciais de TV, que são passados de cinema para VT. A TV Gazeta de Alagoas no momento é quem tem os equipamentos de finalização mais modernos no Nordeste. Algo está sendo engendrado favorecendo sua transferência para a capital alagoana. Pedro Collor de Melo, diretor geral da TV Gazeta tem se mostrado ja ha algum tempo muito interesse no apresentador de telejornal Francisco Elias, que já conhecia da televisão em Recife. Nesse momento a TV Gazeta, que está se modernizando, já tem em seus quadros alguns profissionais trazidos de Recife. Pessoas que Francisco conhece bem no setor de produção. Certo dia o amigo de Maceió está ao telefone. E lhe diz que o empresário Pedro Collor de Melo está insistindo em levar Francisco paraAlagoas. Seu amigo é a ponte desses contatos. É uma quinta-feira. O amigo está ao telefone lhe informando: - Pedro Collor fez contato comigo hoje! Está insistindo para você vir aqui sábado que vem discutir um contrato de trabalho! Pediu-me seu nome completo para emitir uma passagem de avião! Quer você 398 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias aqui no sábado pela manhã de qualquer jeito! - Francisco está refletindo sobre o caso e responde: - Faça o seguinte! Diga a ele que não precisa mandar a passagem! Eu vou de carro! Vou levar minha esposa para conhecer Maceió! Afinal, depende também dela! Combinados assim, no sábado pela manhã Francisco está em Maceió na companhia de Sandra. Enquanto permanece na TV Gazeta conversando com Pedro Collor sobre as condições de seu contrato, Sandra está sendo levada pelo amigo de Maceió para conhecer o apartamento mobiliado que será oferecido pela empresa para eles residirem, em frente a praia de Pajuçara. Maceió já é nesse momento um cartão postal turístico. De muita beleza natural. As águas azul-turquesa de suas praias e a enorme calma reinante na cidade, sem o stress da grande metrópole que é Recife, com toda sua insegurança é um apelativo irresistível. Tudo isso encantam Sandra. Fechado o contrato de trabalho. Francisco vai ter um horário na Rádio Gazeta e será também o âncora local do telejornalismo da TV Gazeta. À tarde o casal retorna à Recife. No fim de semana seguinte Francisco estará mudando-se para Maceió. Vai permanecer no apartamento por enquanto sozinho. O apartamento está mobiliado, portanto não ha problema para permanecer lá. Serão só seis meses. O tempo em que as meninas terão terminado o período letivo e poderão ir todos para Maceió. Mas... E a Rose? Será muito complicado para ela aceitar essa nova realidade. Francisco precisa conversar com ela com muito jeito. Logo na segunda-feira à noite eles se encontram. Precisa participar a ela a novidade com sua imediata transferência para Maceió. 399 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Mas Beínho... Eu nem sei o que dizer! Fico contente por você! Sua situação financeira vai melhorar bastante! Mas... E nós? E eu? Como vou poder ficar longe de você? O que vamos fazer? Rose está preocupada. Será que vai perdê-lo de novo? Logo agora que sua situação emocional havia se estabilizado! Os pensamentos voam em sua cabeça. Sua reação é compreensível. - Acalme-se! - Aconselha Francisco. - Vamos raciocinar juntos! Acho que tenho uma sugestão. Inicialmente, pelo menos durante esses próximos seis meses, vamos combinar assim: Uma vez por mês Sandra vai à Maceió com as crianças. No intervalo de quinze dias eu venho à Recife. - Assim vou estar com eles a cada quinze dias. Podemos fazer o mesmo! Ou seja, podemos usar a mesma estratégia para nós dois. Você também vai a Maceió uma vez por mês em período diferente. Então nos encontraremos a cada quinze dias. Aqui em Recife ou lá em Maceió. Na semana que vem ela não vai. Você já pode ir. É uma estratégia complicada. Mas a única que pode assegurar aos dois que vão estar sempre juntos. A vida de Francisco e Rose vai ser sempre cercada de muita dificuldade. Mas se mantêm assim durante os próximos seis meses. É a única forma de permanecerem juntos. No fim desse ano, 1982, a família de Francisco muda-se definitivamente para Maceió. Agora ele já não tem mais a desculpa de ir à Recife uma vez por mês. Ficam sujeitos apenas à uma visita quinzenal que Rose faz à Maceió. Claro que ele paga as despesas de ônibus e hospedagem dela em hotel a partir da sexta-feira à noite, retornando à Recife no domingo à noite. Mas é uma situação bem desconfortável para ela. 400 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Que continua em sacrifício, fiel ao seu amor por ele. Falam-se sempre por telefone. Ela acabou de ligar. Está chorando ao telefone: - Rose! Não faz assim! Não chore! Você me deixa preocupado! - Beínho! Eu já não agüento mais esta situação... Porquê tanto sacrifício em minha vida... Está sendo muito difícil para mim! Quero ir embora para Maceió também. Preciso estar perto de você! - Tem razão Rose! Esta situação é muito penosa principalmente para você! Vou fazer uns contatos aqui e ver se consigo um emprego para você. - Ela se anima. Está feliz de Beínho também sentir necessidade dela. Ha uma pessoa com quem Francisco iniciara uma amizade em Maceió. Um cearense, gerente da Lojas Pernambucanas, existente no centro de Maceió. Fala ao amigo do problema com Rose. Explica que ela é uma profissional excepcional no atendimento de vendas. O magazine As Pernambucanas filial de Maceió, como outras empresas locais, tem muita necessidade de encontrar mão de obra especializada. - OK! - Diz o gerente da loja. - Eu inicialmente estou precisando mesmo é de secretária! Será que ela se adaptaria bem? - Não tenha dúvida! Rose é uma pessoa muito bem preparada para atender as pessoas! - Então pode mandá-la aqui para começar imediatamente. Francisco dá a Rose a grande notícia. - Venha na sexta à noite, para no sábado de manhã eu levar você para conversar com ele! Ao conhecê-la o gerente gostou muito dela. Com olhos experientes de profissional ele pôde ver que a moça tem ótimas características para o trabalho de atendimento ao público. E lhe dá o prazo de uma 401 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias semana para começar no novo emprego. Ela está muito feliz. Realizada. E na semana seguinte já está residindo em Maceió. Inicialmente em uma pensão, cujo pagamento pode bancar sem problemas com seu novo emprego. Pouco tempo depois ela vai juntamente com outra amiga que trabalha na loja, residir em um pequeno apartamento de dois quartos que conseguem alugar no bairro do Poço, próximo do centro da cidade onde trabalham. Só o fato de estar de novo tão próximo de Beínho já lhe dá muita alegria de viver. É ali, naquele apartamento bem simples, que eles se encontram quase todos os dias. A amiga dela já conheceu Francisco e deixa-o inteiramente à vontade. Sabe toda a história deles. Rose já lhe contou. Freqüentemente ele recebe convites do tipo: - Passa lá em casa hoje! A Rose preparou desde ontem uma sopa maravilhosa para nós. Preparando, temperando e dizendo: Beínho vai adorar! Logo mais após o telejornal que apresenta na TV ele está lá no apartamento delas. - Beínho! E o avião? Você desistiu dele? - Não Rose! Estou planejando trazê-lo para cá. Estou conseguindo um espaço na área de um amigo aqui no bairro do Farol. Ele tem uma empresa imobiliária. O terreno é muito grande com muita área desocupada. Ele vai me ceder um espaço para colocar a oficina do avião lá. Ai vou poder continuar a montagem dele. Está pensando em me dar uma mãozinha? - Ambos riem recordando a oficina do Aeroclube de Recife. Na primeira oportunidade Francisco vai ao Aeroclube de Recife rever o amigo Guerra e transportar o KR-II em cima de um caminhão. Sua terapia ocupacional está mantida. Inclusive já vai 402 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias receber a penúltima inspeção do C.T.A. Um engenheiro de S. José dos Campos vai passar por Maceió para ver e analisar a continuidade do projeto. O KR-II desperta muita curiosidade das pessoas. Freqüentemente ha gente por lá querendo vê-lo. Francisco acaba de conhecer uma pessoa que lhe reporta uma informação capaz de emocioná-lo. Um outro corretor de imóveis chamado Márcio Raposo está entre os curiosos observando o KR-II em construção. Ele comenta que um tio morrera ha pouco tempo em Recife. Era um amante da aviação. Trata-se exatamente de Gildo, o Presidente do Aeroclube de Recife, amigo de Francisco. Os dois conversam bastante sobre Gildo. Nasce ali uma sólida amizade. As atividades profissionais de Francisco estão cada vez mais intensas tomando seu tempo. A televisão, o rádio, a agência de propaganda. Ele já montou sua primeira agência em Maceió. A PM&P. Em sociedade com o diretor de arte Reginaldo Maia. Está difícil de continuar com o projeto do KR-II. À noite Francisco está sempre muito cansado. Arranjar tempo e disposição para continuar o projeto não está sendo fácil. Ainda mais agora, que o avião teve de ser removido para o Aeroclube de Alagoas. Com as asas já em construção, precisa de um espaço definitivo para sua conclusão. Um bom espaço foi conseguido lá. Mas Aeroclube de Maceió fica distante. Agora, só nos fins de semana ele pode dar andamento à construção da aeronave. Mesmo assim, não está fácil. Falta tão pouco! Uns 20% de mão de obra para sua conclusão. Um amigo ex-presidente do Aeroclube de Maceió se propõe a ajudar na construção da aeronave. Mas precisa levá-lo para sua fazenda de 403 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias plantação de cana, 30 quilômetros distante de Maceió. Lá ele tem espaço bastante para uma oficina. Tem funcionários que podem auxiliar. Ele também é piloto privado. E está muito interessado no projeto. Francisco então propõe que ele termine o projeto e o avião ficará para os dois. Dessa forma ele pode se envolver plenamente com seu trabalho profissional com o projeto do KR-II fora de suas preocupações diárias. Os anos se passam mas o projeto nunca será concluído. Francisco não se sente penalizado por isso. Em verdade, todo o trabalho empregado nele representou uma ocupação de terapia ocupacional. Não havia gastado tanto dinheiro assim! Cerca de uns dois mil dólares. Não está arrependido. Afinal, havia evoluído de tal maneira, inclusive financeiramente, que não tem razões para transtornos. Sua vida precisa ser tocada em frente e é isso o que ele faz agora. Sem lamentações. A única coisa que ainda o incomoda muito emocionalmente, é a instabilidade no casamento, cada vez mais crescente. Seu destino tanto quanto o de Sandra está marcado por esse carma de convivência difícil. Nada nem ninguém vai poder alterar isso. Suas atitudes freqüentemente estão em desalinho. As leituras de Francisco ultimamente recrudesceram um pouco. Também ha um problema de espaço em casa para guardar os livros. Os mais de trezentos volumes que ainda mantinha, trazidos de Recife, estão em duas caixas grandes de papelão. - Elias! Venha cá! - Chama Sandra, entrando em um dos quartos. 404 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Olhe isso! -Abre uma das caixas de livros. Ha baratas lá dentro. - Essas caixas só estão servindo para ninho de baratas! Porque você não doa esses livros? Ele pondera sua sugestão e conclui que ela tem razão. - É mesmo! Vou doar esses livros à Federação Espírita de Alagoas! Ha ali inúmeras obras sobre a espiritualidade, incluindo a coleção inteira de Ramatís. Vai ser útil para alguém. Pensa ele. E assim seus livros, pelos quais havia desenvolvido um certo carinho, foram tirados de casa. Muitos anos depois ele vai lamentar não ter preservado pelo menos as obras de Ramatís. Pois ao longo do tempo deixaram de ser reeditadas, já não se encontrando mais nas livrarias. Na estante da sala do apartamento não havia espaço para tantos livros. O tempo está passando. Após o período de aclimatação no novo ambiente onde residem, agora cercados de maior segurança, afinal sua posição financeira mudou radicalmente, a relação emocional do casal não se estabiliza. As meninas estudando no melhor colégio de Maceió. Tudo aparentemente vai bem. Menos para os sentimentos de Francisco e Sandra. Não haverá nunca solução para eles. A instabilidade continua rondando-os. Mesmo sem saber de Rose, Sandra não parece haver transformado nada em seu temperamento em relação à Francisco. Ainda perduram os momentos críticos de insatisfação entre ambos e a penumbra de antigos ressentimentos. Primeira tentativa de separação. É um sábado. O garoto Ramatís já tem agora pouco mais de quatro anos de idade. As poucas vezes que o vê, Rose demonstra muito carinho com o menino. Agora mesmo, Francisco está passando com ele na loja Pernambucanas sob 405 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias pretexto de comprar para ele um par de meias para os tênis. Estão passando pelo departamento de roupa infantil da loja onde Rose trabalha. - Como ele é lindo! - Diz ela.- Parece muito com a mãe! - É mesmo! A beleza puxou a ela! Mas a personalidade firme parece que puxou a mim! Diz ele com satisfação. Após seu último desentendimento com Sandra Francisco amanheceu este sábado decidido. As meninas já têm treze e doze anos respectivamente. Já suportariam melhor emocionalmente a realidade da separação dos pais. Mas ha o Ramatís, ainda muito pequeno. Francisco sai da loja com ele e vai ao estúdio de um amigo, solicitado para gravar um texto comercial. Ramatís está com ele no carro. Vai tentar conversar com o menino. Ver como ele reage com a possibilidade da separação dos pais. No tempo das meninas com essa idade dele, Francisco não estava preparado para se posicionar bem, emotivamente com elas, numa saudável relação pai e filhas. Mas agora com Ramatís, desde bem pequeno, já aos dois anos de idade, ele procura lhe falar em termos muito próximos, incutindo nele a importância da relação sadia entre pais e filhos. O que não havia conseguido em relação às meninas, por pura incapacidade sua, agora se esmera para não repetir o mesmo erro com o menino. Desde Recife ele tem conversando com ele nesses termos: - Meu filho! Quem é seu melhor amigo? - Aos dois anos ele não saberia definir isso. O pai esclarece: - Seu melhor amigo é seu pai! Que sempre fará tudo para defender você! E quem é o melhor amigo de papai? - O menino ria parecendo entender. - É você, meu filho! Meu maior amigo é você! Assim procura desenvolver uma relação de amizade e de confiança entre pai e filho. Como deveria ter sido com as meninas, se tivesse na 406 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias cabeça os princípios e os conhecimentos que tem agora. A idéia era munca se separar deles até que atingissem a maior idade. Mas a situação entre ele e Sandra está cada vez mais insustentável. E hoje está resolvido a sondar os sentimentos de Ramatís. O menino está com ele no carro sentado no banco da frente. Tem só quatro anos. Será que entenderia? - Meu filho! Paínho e maínha vão se separar! Como você vê, ha muitos desentendimentos entre nós. Mas não vou ficar longe de vocês! Vou estar sempre por perto, vendo vocês sempre! Observa que Ramatís entrou em estado de choque com a notícia. Estaciona o veículo e tenta acalmá-lo. O menino está totalmente trêmulo, preso ao banco com as mãos agarradas aos joelhos. As lágrimas jorram grossas pelo seu rosto. Sua visão está turva pelo sofrimento, fixa no nada. Olha em frente mas é como se não estivesse enxergando nada. Francisco sofre também vendo a reação do filho.Abraça-se a ele e lhe diz: - Esqueça meu filho! Vamos fazer de conta que eu não lhe disse nada! Esqueça! Papai não vai mais se separar de Maínha. Você não está preparado pra isso! - E acaricia Ramatís insistindo: - Não precisa chorar! Esqueça! Tá certo? Eu já estive todo esse tempo ao lado de sua mãe, portanto posso continuar um pouco mais até você crescer. Fique tranqüilo! Não vou mais me separar de sua mãe! Ramatís agora consegue soluçar normalmente saindo da crise estática em que se encontrava. Aos poucos vai relaxando e ambos esquecem a ocorrência. Francisco continua ponderando sobre tudo aquilo, convencendo-se 407 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias de que a estabilidade emocional de seus filhos era mais importante que qualquer outra coisa. Seu sacrifício e de Sandra, assim como o de Rose iria continuar por mais alguns anos. Até quando, não sabia exatamente. Iria em frente. Seja o que Deus quiser! Seu amor por seus filhos está acima de tudo. Seu sacrifício vale à pena. A estabilidade da família precisa ser mantida. Em casa, Ramatís parecia não ter revelado nada daquilo a sua mãe. Mesmo que o pai não lhe tenha pedido isso. Poderia uma criança de apenas quatro anos raciocinar com inteligência sobre a necessidade de nunca revelar aquele episódio? Os dias continuam normais. A amizade dos dois vai se fortalecendo cada vez mais. O menino parece compreender o sacrifício do pai. Procura sempre animá-lo quando ele chega em casa. Já definitivamente instalada em seu apartamento com a amiga, Francisco tem uma conversa bem oportuna com Rose. - Veja Rose! Tenha cuidado! Maceió é uma cidade bem menor que Recife! Todo cuidado é pouco sobre nós. Não fale às pessoas da loja sobre nossa relação. Basta sua amiga saber. Precisamos evitar que minha família descubra tudo! Ela o tranqüiliza: - Não se preocupe Beínho! Se depender de mim Sandra não vai saber nunca sobre nós. Como você sabe, eu respeito muito sua mulher! Compreendo perfeitamente suas responsabilidades com sua família, com seus filhos, principalmente. Fique tranqüilo! E vão continuar assim. O apartamento dela fica no caminho de Francisco entre a televisão e sua residência. Freqüentemente eles se 408 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias encontram no apartamento. Jantam às vezes, juntos com a amiga dela. Francisco fica muito à vontade com elas no apartamento. Em noites de calor a amiga de Rose aconselha: - Elias pode tirar a camisa! Fique à vontade! Está muito quente! Francisco está sentado na sala, confortavelmente sem camisa, vendo TV. Chega uma mocinha de cor na porta procurando por dona Rose. - Ah! Já vou Maria! - E vai abrir a porta explicando a Francisco: - É nossa lavadeira! Sente aí um pouquinho Maria! Eu vou juntar a roupa para você levar! - A mocinha fica na sala com Francisco vendo a TV. Mas ele lhe chamou a atenção. Ela parece surpresa com ele ali. Dai ha pouco pega a roupa e vai embora. Já em casa a mocinha comenta com a mãe: - Mamãe! Hoje eu conheci o esposo da dona Rose! É aquele senhor da televisão! Aquele que faz o jornal! Para pessoas muito simples como a lavadeir Maria e sua mãe, tinha uma certa importância lavar a roupa da esposa do repórter da telelvisão. Com certa vaidade ela conta isso para a mãe. Longe de saber que está detonando uma onda de desavenças. A mãe de Maria é, por sua vez, lavadeira da casa de uma amiga de Sandra, que reside próximo a ela lá na Pajuçara. Na casa da amiga de Sandra a lavadeira mãe fala orgulhosa: - Minha filha conheceu ontem uma pessoa importante da televisão! Ela lava a roupa da dona Rose. O esposo dela é aquele repórter da TV Gazeta! - Qual? - Aquele do AL-TV. O Francisco Elias! - Confirma a lavadeira. - Você tem certeza? Como é mesmo o nome dela? 409 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Dona Rose! - Estranho! Tem alguma coisa errda! Eu sou amiga da esposa de Elias! Eles moram aqui perto! O nome dela é Sandra! A lavadeira não entendeu nada e vai embora em seguida. Acaba de deixar ali plantada uma semente vigorosa de grande discórdia. Cheia de curiosidade, mas vazia de personalidade, a amiga de Sandra conta tudo para ela. É um fim de semana. Francisco está em Recife à serviço da PM&P, a agência de propaganda que mantém em sociedade com Reginaldo, que vai ser o portador de séria informação. Rose agora, apenas seis meses depois, já assumiu na loja a gerência do setor de roupas infantis. Sua performance profissional de vendas está se confirmando nesse novo trabalho. Dois meses após como secretário do gerente da loja e em seguida essa promoção. Francisco está em Recife na residência de sua irmã Marina, em Boa Viagem. No sábado à tarde o sócio, que sabia da existência de Rose, lhe telefona. - Amigo! O tempo aqui esquentou pra caramba! A Rose recebeu hoje pela manhã a visita de Sandra lá na loja e quer muito falar com você! - Deduzindo o que poderia ter acontecido entre Sandra e Rose, Francisco pede um favor a Reginaldo: - Vá lá em casa! Arranje uma desculpa e vá lá sondar o ambiente! - É! De fato vou lá com minha esposa para Sandra ajudar ela a encontrar uma empregada. É um bom motivo para saber como está a temperatura por lá. Amanhã eu te ligo para informar da situação. 410 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Reginaldo liga no domingo passando as informações. Nada tranquilizadoras como era de se esperar. - Bronca meu amigo! E bronca da pesada! Sua mulher está fumaçando! Disse-nos que quando você chegar sua mala já estará pronta com suas roupas, para sair de casa! Não quer mais você lá! - Está bem! Ligue para a Rose e diga para ela ir me esperar meianoite hoje na para do ônibus lá no bairro do Farol. Preciso conversar com ela antes. Saber mais detalhes. Não irei para casa quando chegar. Irei para o hotel de uma amigo lá na Pajuçara. Segunda de manhã irei para a agência e veremos o que farei! Obrigado Reginaldo! Até segunda! Francisco tem um temperamento muito sólido para enfrentar situações inesperadas. 18h00 está embarcando em Recife no ônibus para Maceió. Conforme o combinado, meia-noite a Rose o espera na parada do ônibus no Farol. Conversam um pouco. Ela dá os detalhes. - Beínho! Foi horrível! - Rose já conhecia Sandra. E para a esposa dele foi muito fácil localizá-la ao chegar à loja. Perguntando a alguém quem era a Rose, logo a indicaram na secção de roupas infantís. Ao virar-se em dado momento, Rose quase entra em choque. Sandra está parada em sua frente.Apenas observando-a cuidadosamente. - Eu gelei Beínho! Ela só olhava para mim! Não sei como, mas consegui me equilibrar e perguntei a ela procurando ser cortês: - Pois não! Senhora! Precisa de alguma coisa? Não! Ela me respondeu secamente. Só queria saber quem é você! E retirou-se em seguida! Eu fique ali por alguns instantes transtornada! Não sabia o que pensar! Então liguei para Reginaldo pedindo para avisar você! 411 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Está bem! Rose! Está bem! Vamos pegar um táxi e deixar você em casa. Depois vou para um hotel. Não irei para casa agora. Conversarei com ela amanhã. Veremos!... Depois farei contato com você! Francisco está muito sério. A situação é realmente grave. Vai tentar dormir no hotel.Aadrenalina não lhe permite que adormeça. Mas ele trouxe um livro que comprou em Recife. Para serenar a cabeça vai ler um pouco até o sono aparecer. De manhã vai para a rádio fazer o seu programa que se encerra às 10h00. Em seguida vai para sua agência. Tem muita coisa a fazer por lá. O trabalho vai lhe tomar o dia.ARose também está tendo um dia daqueles! Muita expectativa! O que será que vai acontecer? A amiga tenta acalmá-la! Sua intuição está lhe gritando algo na consciência. - Ele vai me deixar! Tenho certeza! Vai me deixar de novo! - Mulher! Tenha calma! Não pode ser! Acalme-se! Aamiga procura apoiá-la. - Ele sempre falou! Que não deixaria a família se alguma coisa acontecesse! Agora que a mulher dele já sabe de nós! Não temos mais chance. Acabou amiga! Rose sofre com a situação. Sabe do compromisso dele com sua família. Nem se atreveria a lutar contra Sandra. Já o conhece o suficiente. Nada vai tirá-lo de sua família. Por mais que a ame. À tardinha Francisco liga para casa. Fala com Sandra, procurando serenidade. - Por favor, Sandra! Mande deixar na portaria um paletó, camisa e gravata. Vou passar ai para pegar e vou fazer o noticiário da TV. Depois volto por ai e pegarei você. Vamos sair de casa pra conversar. Temos que acertar nossas vidas. Pode ser? Ela concorda e após o noticiário da TV eles vão a um lugar sossegado 412 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias onde podem conversar. JEle sabe quando ela está nervosa pelo jeito como morde o lábio inferior. Francisco resolve contar-lhe toda a história de seu envolvimento com Rose. Desde o princípio. Desde quando e aonde tudo começou. Não poupa os detalhes. Sandra ouve em silêncio. - Eu nunca vou mentir pra você. Desde que você queira saber. Não iria lhe contar nada gratuitamente. Mas desde que você resolveu enfrentar a situação ao saber de tudo... Pois vou lhe contar. Você precisa saber as razões de minha relação com Rose. Fui encontrar nela o que me faltava em você! É uma conversa muito doída. Para ambos. Mas ele fala tudo. Fala inclusive da construção do avião. De como ela, por várias noites, cansada após o trabalho ia pra lá, ajudá-lo em alguma coisa na oficina. Não deixa detalhe sem esclarecer. Isto é, ha um que ele prefere não lhe contar. A informação que havia recebido no centro espírita tempos atrás sobre a existência das duas em sua vida. Também não valeria à pena. Pensa ele. Ela provavelmente não levaria à sério tal informação. - Mas quero que você saiba que tenho enfrentado essa nossa situação durante tantos anos pensando na segurança que precisamos dar a nossos filhos. Eles não têm culpa de nossos desacertos. Neste momento nossos pensamentos devem se voltar para Ramatís. - Agora já com quase seis anos. Mas ainda poderia ser muito afetado. - E quero lhe informar que a partir desse momento, assim como aconteceu com Divalda, meu caso com Rose está encerrado. Após essa conversa em que apenas ouviu silenciosamente, a definição está nas mãos dela. Sandra parece se tranqüilizar e aceita-o de volta em casa. 413 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias R ose, infelizmente, vai amargar mais uma separação. Desta vez definitiva. Francisco esclarece com ela a impossibilidade de continuarem juntos. Permanece muito dolorida ainda por algum tempo. Uma vez ou outra Francisco ainda passa na loja para conversar com ela rapidamente. Tentar acompanhar como ela está atravessando tão dolorosa situação. Ela se mostra resignada. Parece ter aceito o doloroso quadro do afastamento definitivo do seu Beínho. Não ha nada que ela possa fazer. Não era sua culpa. Foi uma triste coincidência (?) a lavadeira filha de uma outra lavadeira da amiga de Sandra... Ir a sua casa naquela noite. Teria sido o destino? Teria chegado a hora final para eles? Francisco nunca vai esquecê-la. Por toda a sua vida. Mas é capaz, também ele, de passar por cima de seus sentimentos para levar sua vida adiante da forma que considera o mais justo e ponderável. Rose é muito ajudada por sua amiga que a estimula a alterar o seu destino. Ela mesma. O passo seguinte na vida profissional dele é a fusão de sua primeira agência de propaganda em Maceió, com outra pequena agência. A PM&P junta-se à Lagrotta e Associados, formando uma empresa de maior potencial. Vão disputar o mercado publicitário em nível mais avançado, competir pelas contas de publicidade do Governo do Estado. Essa nova estruturação é muito importante. Na primeira concorrência aberta pelo governo do estado na gestão do governador 414 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Fernando Collor de Melo, cuja projeção trágica se consumaria mais tarde, cassado da Presidência da República, a campanha criada pela GP&M sai vencedora da concorrência. É uma campanha da Secretaria de Saúde para lançamento do protótipo nacional do SUS do Ministério da Saúde. Caso desse certo o projeto do SUS seria estendido para todo o Brasil. Francisco agora, além da atribuição de diretor de criação da agência, é também encarregado pela produção de vídeo e áudio. A campanha do SUS tem um de seus comerciais de TV protagonizado pela grande estrela do cinema, teatro e televisão Fernanda Montenegro. Ela se mostrou muito interessada no projeto, pela expectativa de se tornar uma campanha de abrangência nacional. Francisco vai dirigi-la no Rio de Janeiro. SAÚDE ALAGOAS! É este o mote da campanha, excelentemente desempenhado pela famosa atriz. Mas ha um problema no meio do caminho da GP&M, que havia sido estruturada com um elevado custo operacional para poder atender contas do Governo. Na primeira concorrência aberta ela venceu. Mexeram os pauzinhos por traz das cortinas do poder. Afinal, a própria agência DM9, de Salvador, que fizera a campanha do candidato Fernando Collor havia perdido a concorrência. Dai em diante nunca mais se ouvirá falar de concorrência público para a publicidade do Governo Estadual, na sua gestão. Todo material publicitário do Governo passou a ser autorizado pela DM9 junto aos órgãos de comunicação, sem qualquer concorrência. O mercado de produção publicitária de Maceió nesse tempo é muito carente de profissionais especializados. Tem bons equipamentos de 415 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias produção de vídeo. Mas falta material humano especializado. Não há ninguém em Maceió com especialização em iluminação a cores para a televisão. Isso é um problema na hora de produzir um bom comercial. Por isso Francisco precisa viajar tanto. As melhores produções precisam ser feitas em outros centros. Os mais próximos são: Salvador, Recife e Fortaleza. Mas isso encarece o custo de produção dos comerciais. Os seus sócios concordam que ele precisa ir a fazer uma especialização na ESPM, Escola Superior de Marketing, no Rio de Janeiro, especialmente sobre iluminação a cores. Dois meses depois vai também a São Paulo fazer outro treinamento com Pitter Gásper, o papa da iluminação a cores no Brasil, o primeiro com especialização na Alemanha, com o sistema PAL-M, adotado no Brasil. O treinamento se dá durante a semana da FENASOFT, uma grande feira internacional de informática anualmente realizada no Anhembi. Quando Francisco descobre a fantástica ferramenta do computador, já usado em larga escala por agências de propaganda dos grandes centros. Volta sonhando com a espectativa de a GP&M ser a primeira agência do mercado em Alagoas a adotar o sistema Desktop, que viu em demonstrações na feira doAnhembí. Essa especialização dá o tom diferenciado das produções de vídeo da GP&M. Tentativas estão sendo feitas para a agência se manter no mercado. Mas não está sendo fácil. Os seus socios não se entusiasmaram muito com a idéia do Desktop. Isso demandaria investimentos. O Reginaldo, diretor de arte é quem mais resiste ao projeto Desktop. Já que sua formação profissional foi a prancheta de desenho à mão, 416 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias na Escola de BelasArtes em Recife. Neste período, sua filha Eliana, assistente do diretor de arte Reginaldo, evolui em seu aprendizado. O que vai ser muito oportuno dai ha pouco. Quando Francisco resolver sair da sociedade e montar uma outra agência bem menor. A GP&M vê-se diante de um problema. Como manter sua estrutura sem as contas do Governo? Por quase dois anos ainda se manteve. Várias outras campanhas foram lançadas por ela para o mercado local. Incluindo o lançamento da Mapel 2000. É 1996. A Volkswagen está iniciando o projeto de um novo layout de loja para suas revendas em todo o Brasil. E o protótipo vai ser lançado com a inauguração da Mapel 2000 em Maceió. Uma empresa do grupo João Lyra. A campanha criada pela GP&M ganha elogios da Presidência de Marketing da Autolatina, um grupo recém formado pela Volkswagen e a Ford no Brasil. Alguns lançamentos imobiliários também foram feitos pela GP&M com muito sucesso, atendendo a principal imobiliária de Maceió, a Dumonte Imóveis. Mas, além disso, nada mais ocorreu que justificasse a manutenção da estrutura da GP&M. Para três sócios, a remuneração já não é satisfatória. Francisco decide sair da sociedade. Raciocina que uma pequena agência com três ou quatro clientes seria o suficiente para ele se manter, em condições mais favoráveis. Incluindo o tal Deskop. Sai da GP&M e estrutura a Criação de Propaganda. São apenas três salas em um primeiro andar. Entre seus clientes está a Márcio Raposo Imóveis, seu principal cliente, que imediatamente passa a 417 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias ocupar a posição de principal imobiliária de Maceió, à frente da Dumonte, de onde o próprio Márcio Raposo saíra. Mais de trinta lançamentos imobiliárias serão feitos com a Criação de Propaganda a partir de então. Maceió vive um boom imobiliário. De sócio na agência, apenas Sandra, a esposa. A Criação de Propaganda vai lutar por seu espaço no mercado. Consegue por um bom tempo, com uma estrutura muito enxuta. Apenas seis pessoas. Toma uma iniciativa futurista. É a segunda agência de propaganda a montar sua estrutura de produção gráfica sobre o sistema desktop de computação gráfica. Ele está em São Paulo novamente participando da nova FENASOFT já no ano seguinte, com tudo que é novidade em computadores e softwares. Francisco vê em vários boxes na Feira, demonstrações de trabalhos com computadores, scanners, impressoras, etc. Vai voltar para Maceió levando na bagagem um investimento razoável nesses equipamentos. Procura ser arrojado até onde pode. Seu diretor de arte é o Jô, um ex-companheiro da GP&M. Que também não se entusiasma com a criação de layouts em computador. Sua escola profissional fora a mesma de Reginaldo, em Recife. Entretanto, Eliana, filha de Francisco, e agora assistente do Jô, concebe muito bem a idéia da avançada tecnologia. Francisco confia que ela possa desenvolver bem o trabalho em computador. E vai ser assim. O Jô criando os rafs, esboços de desenhos em prancheta sobre a página de anúncio, orientando a montagem do layout e ela finalizando no computador. O casamento é perfeito. Talento e tecnologia. Francisco redige e eles finalizam. 418 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C om isso conseguem uma agilidade incrível na elaboração dos anúncios. Às vezes, ocorrem até três lançamentos imobiliários num único mês. Tempo é algo imprescindível nesse processo, que vai desde o briefing do cliente, até a criação da campanha, sua aprovação, finalização e distribuição do material publicitário com os veículos de comunicação. Outdoor, Rádio, Jornal e Televisão. Às vezes a campanha exige também a produção de um folder. É muito trabalho para uma agência pequena. Mas com certa agilidade eles dão conta do recado. Estão indo muito bem, enquanto a GP&M está definhando à cada dia. Ao sair de lá, Francisco indicou um profissional de Recife para ocupar o seu lugar na criação. Mas o problema da GP&M era de estratégia. O inchaço estrutural está enterrando a agência. Nesta viagem a São Paulo em visita à FENASOFT para tentar comprar seus equipamentos de informática, Francisco vai se hospedar na residência da tia Neném, no bairro do Tucuruvi. Vai acontecer ali um fato marcante para a vida espiritual dele. É fim de semana. Todos os equipamentos de computação já estão em casa embalados para a viagem. A tia Neném, já sabedora do interesse do sobrinho pela causa espiritual, preparando o almoço do sábado lhe faz um convite: - Francisco! Está vindo hoje do Rio de Janeiro uma pessoa muito importante para dar uma palestra para a gente no centro espírita que freqüentamos. Um general do Exército, reformado. É hoje à tardinha. O centro fica aqui perto de casa! Nós vamos mesmo a pé. A tia Neném freqüenta o centro sempre acompanhada de sua filha mais velha, Zila. - Você gostaria de ir com a gente? - Mas é claro tia Neném! Vou sim! Com muito prazer! Já faz tanto tempo que eu não participo de nada no meio espírita... Vai ser ótimo! 419 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A final, não tinha qualquer compromisso previsto para aquela tarde de sábado paulistano meio nublado. Pouco antes das cinco da tarde eles estão chegando ao centro espírita. Muita gente já se faz presente para assistir a palestra. Ha um salão onde as pessoas estão entrando, com cadeiras plásticas, para uma platéia de aproximadamente umas duzentas pessoas. Na porta de entrada ha uma moça sentada a uma mesinha. Ao lado sobre a mesa ha um pequeno saco de pano com várias pedrinhas numeradas usadas em bingos. Ela tem um caderno nas mãos, aonde vai anotando, por ordem de entrada, os nomes da pessoas, colocando à esquerda o número que cada uma vai retirando conforme a pedrinha no saco. Ha também um pacote embrulhado com papel de presente. Amoça dá instruções aos participantes: - Por favor! Seu nome? - E escreve no caderno - Agora retire ai do saquinho uma pedrinha. - E anota o número da pedrinha antes do nome da pessoa. Zila é a primeira. Retira o número 124. Atia Neném retira seu número em seguida. Agora Francisco também retira seu número. 125. Nesse exato momento, ele recebe em sua mente uma informação que lhe chega bem forte, em forma de intuição. Algo parecido com aquilo que sentiu durante o nascimento de Ramatís: - Você vai ser sorteado para ganhar esse livro! - Mas você já o leu! Você deve ir então ao microfone e anunciar isso! Precisa dar esse testemunho! O fato pega Francisco de surpresa. Ele está muito emocionado com a mensagem que acaba de receber. Lembra imediatamente do episódio da comunicação que recebeu durante o parto de Sandra. A informação continua martelando muito forte em sua mente. Quem estaria lhe dando essas instruções? Está muito curioso e de certa forma também muito tenso. 420 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O s três se dirigem a uma fila de cadeiras. A tia Neném vai à frente. Atrás dele vai a Zila. Sentam nas últimas cadeiras dessa fila próximo à parede. A reunião já vai começar. O convidado ilustre acaba de chegar. Lá na frente ha uma mesa bem comprida própria para esse tipo de evento coberta com uma toalha branca e ornada com ramalhetes de flores. O ambiente transpira muita paz. O presidente do centro, o convidado palestrante e mais três pessoas compõem a mesa. O Presidente da mesa está anunciando o palestrante. Francisco continua fortemente tocado com o fenômeno de sua comunicação extra-sensorial. O que seria aquilo? O que significa? Ele Sse mantém pensativo. Precisa confessar isso à tia Neném. E cochicha ao ouvido dela: - Tia Neném! Está acontecendo algo incrível aqui comigo! Estou profundamente emocionado com isso! Nunca me ocorreu antes! - E dá a elas os detalhes da comunicação que acaba de receber. A tia Neném, conhecedora das inúmeras possibilidades utilizadas pela inteligência dos espíritos mentores que certamente se faziam presentes ali, lhe tranqüiliza: - Não se preocupe! Essas coisas são comuns! - Vamos aguardar que tudo ocorra como o previsto! Relaxe! Vamos assistir à palestra! - Mas claro! Ela também está de certa forma, pelo menos, muito curiosa com o fenômeno que o sobrinho acaba de relatar. Afinal, isso se refere a algo que ainda vai acontecer. Em meio a tantas pedrinhas daquelas na sacola, que após serem anotados os números foram recolocadas no saco de pano para o 421 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias momento do sorteio, a retirada da pedra 125! Exatamente a dele!... É algo incrível! A Zila ainda não tomou conhecimento do que está acontecendo. Assistem à palestra. Uma das mais ilustrativas que Francisco já ouviu sobre a realidade do mundo dos espíritos. O general reformado é uma pessoa extremamente bem preparada para aquela tarefa espiritual. A palestra termina. Mais uma vez Francisco analisa seus pensamentos. A informação continua lá. Como uma certeza indescritível! O momento está se aproximando. A tia Neném olha para ele com um sorriso bem tranqüilo. Mas ele está tenso. Não pode evitar. É muita responsabilidade o que havia anunciado a ela com antecipação. Ao imaginar a possibilidade de que aquilo não fosse verdade algo varre a sua mente como se faria com uma vassoura, permanecendo apenas aquela imensa certeza! Você vai ser sorteado! Ele observa o salão. Ha ali, pelo menos, umas duzentas e vinte pessoas. Todas as cadeiras foram ocupadas e ainda tem algumas pessoas de pé. Mais de 200 pedrinhas naquele saco. Quais as chances de coincidência para se número ser sorteado... Você vai ser sorteado! A informação está lá cravada em sua mente de maneira muito convicta. O Presidente da mesa está anunciando ao microfone: - Prezados convidados! Quando entraram vocês deram seus nomes para o sorteio que agora vamos realizar. O presente é um livro do espírito de Emanuel. Uma obra psicografada por Chico Xavier! Ao informar o título, Francisco se enche de alegria com o primeiro sinal de veracidade! É realmente um livro que ele já leu. 422 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O Presidente da mesa tem nas mãos o saquinho com as pedrinhas e solicita do general para que sorteie o felizardo. O general enfia a mão no saquinho e balança bem as pedras. Retira uma e entrega ao Presidente. Com o número da pedrinha ele confere no caderno o nome do sorteado. E anuncia: - Francisco Elias! - Foi o seu nome artístico, não o de batismo, que Francisco deu a moça. Francisco se levanta. O Presidente o chama até à mesa para receber o livro.Ao chegar à mesa Francisco pergunta: - Posso agradecer? - Pois não! - O Presidente lhe entrega o microfone. Visivelmente emocionado, com as mãos trêmulas, ele diz ao microfone: - Quando entrei aqui hoje... - E conta o que aconteceu. Acrescentando: - Não sei o que significa isso! Ha uma testemunha aqui presente. É minha tia Neném! A quem eu confessei logo no início o que estava acontecendo comigo, e informei o que iria acontecer agora! A informação que recebi era para vir ao microfone dar esse testemunho. Desconheço completamente a razão disso! E gostaria que o livro fosse sorteado com outra pessoa. Pois já o li! - Muito bem! - Diz o Presidente da mesa com naturalidade. Perfeitamente! Pois então sorteie você mesmo! Por favor! Estendendo-lhe o saquinho de pano para retirar outra pedra. O novo número foi anunciado. Um rapaz veio receber o livro. E Francisco pôde voltar para junto da tia Neném, que demonstra estar também muito feliz. Não seria à toa que ela foi instruída para convidar o sobrinho a ir ao centro aquela tarde. No caminho de volta para casa conversam animadamente. A Zila também o felicita pelo ocorrido demonstrando sua surpresa com o corrido. 423 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Mas tia Neném o que significou aquilo? - Não sei meu Filho! A espiritualidade tem muitas formas de conduzir as coisas! Quem sabe, naquela sala havia mais alguém precisando assistir isso para reforçar sua fé e sua crença no espiritismo! Que bela tarde aquela! Devia haver alguém mais naquela reunião necessitando de tal testemunho como forma de credibilidade no fenômeno espiritual. Talvez alguém em conflito e dúvida em aceitação da doutrina. Devia ser isso, conclui Francisco. Pois a ele mesmo isso não era necessário. Ha muito que respeita a sabedoria expressa nas Leis da espiritualidade. Sente-se feliz, pelo fato de ter sido usado em um propósito espiritual tão singelo, que certamente seria de muito louvor. Poder ajudar a alguém desinteressadamente é sempre algo muito valioso. Ele sabe disso. Ainda mais se você nem sabe a quem de fato ajudou. Esse quadro fica eternamente em sua memória, de maneira muito grata. Quem sabe, algum acréscimo que alguém do outro lado havia lhe dado. Mas quem? Ah! Como gostaria de saber! Que espírito maravilhoso seria esse! No mínimo mantinha intimidade com seu anjo de guarda. Afinal é ele quem autoriza qualquer ocorrência desse tipo com os seres encarnados. Nada é feito sem seu conhecimento. Foi sem dúvida um capítulo maravilhoso para suas memórias. De volta em Maceió, ainda com reflexões sobre a experiência vivida no centro espírita de São Paulo, Francisco está descobrindo algo um pouco estranho: uma relação que parece existir entre ele e o número 7. Coincidência ou não, certo dia ele percebe que a placa de seu carro termina em 7. E o número do prédio onde mora também. É 807. 424 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O número de seu apartamento, que aliás, foi uma exigência de Sandra, é 704. Foi procurar na documentação de seus automóveis anteriores, e todos eles tinham o número 7. O telefone de casa é 325.7200. Os dois telefones da agência, ambos contêm o número 7. Como Francisco já tem uma convicção muito forte sobre coincidências, passa a ver isso com alguma curiosidade. Seu telefone residencial em Natal, enquanto escreve estas linhas é 36434367. Tem 7 duas vezes se somar 43 - 43, e ainda tem sete no final. É muita ocorrência para ser coincidência. Quem sabe estou marcado nesta encarnação com o número 7. Pensa ele. Não parece nada mal. O número 7 é considerado na cabalística um número sagrado. Por falar em cabalística, agora mesmo ele está recordando algumas obras extraordinárias que leu sobre a Kabala anos atrás, deixadas ao mundo por um escritora tida como hermética, a russa Helena Blavatsky. A Kabala se propõe a explicar de forma muito fechada a ordem natural da matemática divina. Afirmando que a criação é resultado de uma extraordinária equação matemática de ordem sideral. Faz só alguns dias, ele ouviu na televisão a afirmação de um físico, que o universo seria uma equação em quântica. Que pensamentos extraordinários! Realidade? Imaginação? Nada adianta querer-se aprofundar nessas questões. Basta imaginar que a Natureza é pródiga em criar e materializar mundos, energias e coisas, indo do macro sideral planetário ao micro dos insetos, das moléculas, até a energia existente em um único átomo. Faz bastante tempo que Francisco leu algo sobre a energia dos fótons. 425 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E sse conhecimento lhe veio nos anos 80 quando leu muitas obras sobre o fenômeno UFO lá em Recife. Encontrou duas obras de extraordinário valor nesse campo. Escritas pelo General Uchoa de Medeiros. Um general aposentado que havia sido professor de física em Agulhas Negras, a escola de formação de oficiais. Quando escrevera tais obras residia em Brasília. Onde dirigia um grupo de pesquisadores do fenômeno UFO. Narra em seu livro o episódio de um contato com um ser extraterreno, que passara inúmeras informações ao seu grupo de estudos, formado por doze pessoas, todas de nível cultural irrepreensível, assegurava ele. Um de seus livros é - Viajando no Hiperespaço. O extraterreno teria informado que as naves com as quais se transportam no hiperespaço são movidas com um tipo de energia que aqui conhecemos como fóton. E que sua carga energética é conduzida e administrada de dentro da nave em forma de atração e repulsão magnética em relação aos planetas no espaço. JE que o espaço/tempo não existiria em sua realidade, como concebemos aqui na terra. Francisco acha fantásticas essas revelações. Pois já havia lido exatamente sobre isso em uma das obras espiritualistas de Ramatís. Razão pela qual ele reforça ainda mais a convicção de uma relação provavelmente existente, entre o fenômeno UFO e a paranormalidade. Mais tarde, os livros de Trigueirinho e de Shirley MacLane reportariam a mesma informação. Quais seriam as chances de Shirley MacLane e Trigueirinho terem lido a mesma obra do General Uchoa, e do espírito de Ramatís para tentarem reproduzir o mesmo conceito? 426 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Não! Parece mais plausível que todos eles estivessem relatando a mesma coisa, o mesmo conhecimento, passado aos seres humanos em várias ocasiões diferentes através de diversos canais de comunicação.Algo em comum parece existir. Conclui Francisco. Alguma correlação para-normalidade/UFOS. Agora mesmo ele está recordando outro fato que ajuda a por mais lenha nessa fogueira. Estamos na década de 1970. Em Recife. Lendo muito sofre ufologia, Francisco descobre um livro de um cientista judeu, naturalizado americano,Andrija Puharish. Ele é um cientista médico especializado em fenômenos paranormais. Seu laboratório é no mundo, em qualquer lugar onde haja alguém fazendo algo fora do normal. Sua especialidade é o estudo da fisiologia da para-normalidade. Tem visitado vários países pesquisando fenômenos relatados com médiuns e para-normais. Já pesquisou até Uri Güeller, durante o período da guerra dos seis dias em Israel. Suas revelações são bombásticas. Uma de suas conceituadas pesquisas fôra realizada no Brasil. Havia um fenômeno mediúnico chamado Arigó, na década de 70. A imprensa mundial já se ocupava dele e do fenômeno de suas cirurgias rudimentares usando simples canivetes. Andrija Puharish resolve pesquizar Arigó e narra em seu livro, inclusive com fotos, a pequena cirurgia que Arigó lhe fizera no antebraço, retirando um pequeno nódulo sebáceo benigno. Uma das fotos que ele expõe no livro é de um disco voador, estacionado bem alto, pelos seus cálculos, uns cinco quilômetros de altura, exatamente sobre a casa onde residiaArigó. 427 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias S ão 11h00 do dia. O céu está bem claro. Narra Andrija. Durante um atendimento de Arigó que está sendo acompanhado por ele, procurando documentar tudo com sua máquina fotográfica, o Dr. Fritz, incorporado emArigó, lhe diz: - Vá lá fora e aponte sua máquina para cima! - Ele sai fora da casa. Olha para cima. E o que vê? Algo que parece um objeto prateado arredondado parado no céu. Aponta a máquina e fotografa. A foto está em seu livro. Este e vários outros episódios narrados por ele dão bem a idéia de como deve existir de fato alguma correlação entre para-normalidade e UFOs. Duvidar de tudo isso? Claro! Todos podemos. Nosso livre arbítrio é nosso juiz! Mas, quem somos nós, analfabetos das causas e efeitos, energéticos ou espirituais e fenômenos materializados em nosso planeta, para asseverarmos que tudo não passa de pura imaginação? Questionar até que podemos. Mas, a melhor posição nesses casos, pelo menos para ele, é a que Francisco já adotou ha muito tempo. Da mesma forma que se pode negar tudo, também se pode assumir que, tudo é verdade, até prova em contrário. E assim, nossas mentes estarão sempre prontas e abertas para deixar entrar uma fresta de luz, quando chega a hora. O próprio Jesus já ensinava: Ha que se ter olhos para ver e ouvidos para ouvir! Claro que ele se referia a algo mais que nossos simples equipamentos carnais não podem perceber. Andrija Puharish narra em seu livro, que foi avisado quatro horas antes, da morte do amigoArigó. Antes que acontecesse, conforme a diferença de fuso horário onde se encontrava no momento em Nova York e a hora de Brasília. Coincidências?Acasos? Ah! Desculpem-me! Mas isso é pura realidade! Até prova em contrário! 428 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias H a um fato novo envolvendo a Rose. Ela juntamente com a amiga com quem mora, mudou de endereço. Francisco nunca mais esteve com ela. Sabia que ela deveria ter sofrido mais uma vez com esse novo afastamento dos dois. Mas, paciência! Para eles definitivamente não haveria solução. Ele procura tocar a sua vida. Ela também. Francisco encontra a amiga de Rose pela cidade. E é ela quem conta as novidades. Já faz mais de um ano que eles não se vêem. - Ah! Ela vai muito bem! - Diz a amiga. - Rose é uma pessoa de muito merecimento na vida! - Não tenho dúvida! - Confirma Francisco. - Há alguns meses atrás um rapaz aproximou-se dela. Ele é um engenheiro agrônomo. É gaúcho. Veio para Alagoas trabalhar em uma usina de açúcar. Estão indo muito bem. Breve ela vai deixar de morar comigo para ir viver com ele. Ele gosta muito dela. Ela parece feliz! Até que enfim!... - Que maravilha! Essa é a melhor notícia que alguém poderia me dar sobre ela. Desejo muito sinceramente que Rose possa ser feliz nesta vida! Sei o quanto ela merece! Transmita a ela a minha alegria em saber disso! Diga a ela que não esqueça de ser feliz! É tudo que eu desejo a ela! - Ah! Deixe-me terminar! - Diz a moça. - No final deste ano ela vai embora com ele para o Rio Grande do Sul. Vão morar em Porto Alegre! Esta foi a última informação que Francisco teve dela. Até dois anos depois. Quando em visita aos amigos Fernando Freitas e Lurdinha em Recife, a Lurdinha lhe dá notícias. 429 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Elias! Deixe eu lhe dizer que eu vi Rose outro dia! - Aqui em Recife? - Sim! Aqui perto da minha casa! Ela estava de férias visitando a mãe dela, que mora aqui por perto. Ela casou não foi? - Foi sim! - Confirma ele. - Ela estava com uma garotinha filha dela! A coisa mais linda! - Que bom Lurdinha! Fico feliz por ela! Rose foi muito especial para mim! Dai por diante nunca mais Francisco saberia dela. Algumas vezes ainda pensa nela. Em momentos de muita carência afetiva. Ele lembra de quanto foi amado por ela. Onde estará você Rose! Será realmente feliz como eu desejo... Será que conseguiu me tirar completamente de seu coração... Tomara! Para que você possa ser feliz por inteiro! Eu é que nunca vou poder tirar você de dentro de mim! Você veio para ficar!... Continua tocando sua agência de propaganda. Trabalha muito O trabalho na publicidade é algo que lhe diverte muito. Já não trabalha mais no rádio nem na TV em Maceió. Ao fim de um contrato de mais três anos com a TV Gazeta, decide não trabalhar mais no telejornalismo também. Já havia parado com o rádio antes na renovação desse contrato com a TV. Precisa se dedicar por inteiro à agência de propaganda. Freqüentemente viaja muito para conseguir produzir os comerciais de TV nos lançamentos imobiliários. Faz isso fora de Maceió com recursos mais avançados em vídeo, em praças como, Salvador, Fortaleza, Rio e São Paulo. Mais uma Festa de Santana está se aproximando. Desta vez muito provavelmente, Francisco não poderá estar presente. Ha muito trabalho na agência. Campanhas que precisam ser finalizadas. A última semana de julho, quando a festa termina, está congestionada de trabalho. 430 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias É quinta-feira e Francisco está pensando: Como seria bom se pudesse estar em Caicó amanhã à noite para participar do Baile dos Coroas! Para ele, a Festa se resume no Baile dos Coroas, os encontros com os amigos de longas datas no coreto da Pracinha e o reencontro com os familiares, os almoços, toda a diversão proporcionada nesse período. Mas de carro... Não dá pra sair daqui umas 17h00 e chegar em Caicó a tempo de ir à festa. Calcula ele. Lembra então de um detalhe. Como associado do Aeroclube de Maceió ele tem direito a algumas regalias. Pode inclusive alugar uma das aeronaves para uma viagem a preço bem mais barato. Só precisaria conseguir algum piloto que possa ir com ele. Alguém com muitas horas de vôo. Certifica-se disso ligando para o Aeroclube. Dão-lhe o nome do piloto Leahy. Um rapaz bem jovem. Ele também o conhece. Já é piloto de bimotor, com mais de quinhentas horas de vôo. O avião em que vão viajar é um Cherokee monomotor com quatro acentos. Francisco pede informações sobre o custo do aluguel do avião para ir até lá, permanecer dois dias e voltar. E compara a diferença com a despesa de gasolina se fosse de carro. O custo será apenas o dobro. Vale a pena ir de avião. Tem dinheiro suficiente para essa jornada aérea sem maiores problemas. Já na sexta-feira pela manhã, após acertar com o piloto Leahy que se prontifica a fazer a viagem, descobrem que o plano de vôo imaginado indo por Campina Grande, não é possível. Por dois motivos: o avião precisará ser reabastecido e no Aeroporto SBKG não consta fornecimento de gasolina de aviação, mas somente querosene para jatos. Explica o controle Maceió. O controlador de tráfego aéreo informa que não havendo instrumental no avião para vôo por instrumentos o vôo não pode ser liberado na rota Campina Grande, pois ha uma forte formação de nuvens por lá impedindo que a aeronave possa voar abaixo dessa camada, apenas 431 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias no visual VFR. E acima dela, só em vôo por instrumentos. Mas autoriza o vôo pela orla até João Pessoa. Lá se fará o reabastecimento no Aeroclube de João Pessoa, continuando para Caicó na rota de Guarabira. O piloto verifica que saindo de Maceió por volta das 14h00 é possível chegar em Caicó antes do por de sol. Por de sol em aviação é exatamente às 17h15. Por exigência de regulamento, nenhuma aeronave que não esteja em condições de voar IFR, vôo por instrumentos, deve se manter no ar além desse horário. O piloto Leahy está consciente disso. Francisco vai de co-piloto auxiliando na navegação por vôo visual. Um mapa aéreo da região nas mãos, no qual traçara o plano de vôo. Vai conferir as posições de sobrevôo na rota. O avião decola de Maceió levando piloto, co-piloto, Sandra e Eliana. Uma hora e meia depois descem no Aeroclube em João Pessoa. Reabastecem o avião e se apressam em decolar novamente agora na rota para Caicó. Precisam ganhar tempo. Já em vôo sobre João Pessoa o piloto chama pelo rádio o controle de João Pessoa e passa o plano de vôo VFR, informando o tipo da aeronave e seu prefixo, quantas pessoas a bordo, etc. O controle João Pessoa então estabelece o nível 045. 4.500 pés.Apos encerrar o contato pelo rádio, Francisco lembra ao piloto um detalhe: - Informe ao controle que nosso vôo é VFR (visual) sem MSG (sem mensagem de chegada). - O piloto chama o controle novamente e passa estas informações corrigindo o plano de vôo. Nos vôos VFR, se não houver essa observação no plano, sem MSG, ao chegar ao lugar de descida o piloto está obrigado a telefonar para o controle informando que chegou e pousou normalmente. Sem essa informação de confirmação da aeronave chegando ao seu destino, pode ser acionado o SIPAER, serviço de proteção ao vôo, 432 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias que pode demandar o envio de aeronaves para localizar o avião, presumivelmente desaparecido. Isso é normal. Mas desde que as informações foram passadas ao controle corrigindo o plano de vôo, à tripulação do Cherokee segue seu curso sem qualquer preocupação rumo a Caicó. Já estão voando agora bem próximo de Guarabira. O co-piloto verifica que estão um pouco fora da rota. Deveriam estar passando mais afastado à esquerda de Guarabira, por sobre uma linha férrea, e não sobre a cidade. Passa esta informação ao comandante Leahy que responde: - Não tem problema! Eu corrijo! - Pressiona o manche para a esquerda posicionando a aeronave afastando-se da cidade e continuam batendo papo. O piloto esqueceu de minutos após corrigir de volta a proa da aeronave para o curso anterior, paralelo ao que estavam fora da rota. Dai ha pouco Francisco começa a estranhar os detalhes do solo lá embaixo. Procurando alguns marcos de coisas que deveriam ser identificadas ao longo da rota, como foi o caso de Guarabira e não os encontra. Onde deveria consta o cruzamento de uma rodovia está vendo uma barragem seca.E nenhuma rodovia de terra por perto. Fala isso para o comandante. - Estamos perdidos? - Pergunta o piloto Leahy, nunca havia voado por essas bandas. Não conhece nada da topografia local. Francisco confirma: - Não estou encontrando os pontos assinalados da rota no mapa! Creio que estamos indo em outra direção! Olhando lá de cima para a esquerda eles avistam uma cidade bem grande bastante longe ainda. - Deve ser Campina Grande! - Comenta Francisco. - E agora? 433 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O piloto Leahy parece começar a ficar preocupado. Bem ao longe à sua frente eles avistam uma outra cidade menorzinha. Vamos descendo em direção àquela cidade. Geralmente as cidades têm algum marco, alguma placa, algum letreiro, às vezes sobre telhados de zinco, informando o nome da cidade. E vão descendo nessa expectativa. Uns dez minutos depois já estão voando bem baixo. Avistam algo que parece ser um pequeno campo de pouso com pista de terra. E está cercado. Deve ser mesmo um campo de pouso. Em todo caso... A essa altura, Sandra que tem verdadeiro pavor de voar em avião pequeno já com os nervos quase fora de controle, coração na boca, encolhida no banco de trás. Para ela, queda de avião tem que ser das grandes. Em avião grande! Como se isso possa fazer alguma diferença. Ao iniciarem o vôo sobre a cidade é Eliana quem avista a palavra escrita com cal em um muro. - Painho! Olha lá! É TAPERUÁ! Eu ví naquele muro! - O piloto sobrevoa o local mais uma vez para confirmar. É mesmo! O nome está lá em letras bem grandes. Imediatamente Francisco traça outra linha sobre o mapa ligando Taperuá a Caicó. E estabelece a nova rota em RM, rumo magnético, para onde a bússola deve apontar. Sandra está comendo o pão que o diabo amassou. Aliás, está mais amassando, como veremos mais tarde. Já imaginou em poucos minutos tremendos transtornos. Por exemplo: Meu Deus! Pra quê eu vim nessa viagem!... O Cherokee segue agora seguro na direção de Caicó. O piloto calcula que nesse processo de descida e subida deve ter consumido uns oito a dez litros de gasolina a mais. Estão bem próximos de sobrevoar Santa Luzia, a cidade maior nessa rota. 434 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Olha lá! - Diz Francisco.- É Santa Luzia! Pela posição aqui no mapa estamos no rumo certo! Acabam de cruzar Santa Luzia novamente a 4.500 pés. Mas o comandante está preocupado com outro detalhe. Francisco percebe. Já faz uns cinco minutos que sobrevoaram Santa Luzia. - Comandante! Você parece preocupado! Algum problema? - Olhe a hora! Daqui ha pouco vamos ultrapassar o horário para vôo visual! Já são 17h08. Francisco calcula rapidamente e informa. - Mais quinze minutos e estaremos lá! Mas o piloto continua com cara de preocupado. Afinal ele não conhece nada nessa rota. O co-piloto navegador pode estar equivocado. Ele se mostra inseguro. Francisco então sugere: - Comandante! O capitão é você! A autoridade é sua! Se quiser voltar e pousar ai em Santa Luzia, consta aqui no mapa um campo de pouso lá! - Eu prefiro! - Diz o comandante já dando meia-volta com a aeronave. Sandra outra vez se sacode de preocupações lá atrás. Leva nas mãos um pequeno pacote de chocolate. Que a essa altura, sem perceber, já os amassou completamente. A aeronave já voando baixo outra vez aproxima-se do local onde consta no mapa o tal campo de pouso de Santa Luzia. E o que os nossos pilotos vêem não é nada agradável! - Mas não é possível! Você vê o que eu estou vendo? - Pergunta Francisco ao piloto Leahy. - Estou sim! Que é que eles estão fazendo ali? Acabam de avistar dois cavaleiros sentados em seus cavalos, parados no meio do campo, um diante do outro. Parecem estar batendo o um bom papo. Somente olham para o avião, mas não saem dali. Francisco então observa um detalhe: 435 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Rapaz! Esse campo de pouso deve estar desativado. Tem duas traves de futebol nele. Olha lá! É um campo de pelada. Isso ha muito tempo não é mais um campo de pouso! - Valei-me minha nossa senhora! - Deixa escapar Sandra, em seu imenso trauma no banco de trás. Enfim, o mapa de aviação que ele tem nas mãos já é bastante antigo. - E agora? - Questiona mais uma vez o comandante. - Temos que achar uma alternativa! Francisco acaba de avistar uma estrada vicinal de asfalto que vem se bifurcar com a rodovia principal. Na BR não daria para arriscar o pouso. Tem muito tráfego nesta tarde. Além do mais a estrada vicinal que não tem tráfego nenhum, está na posição favorável ao vento de proa. É possível observar isso se olhando a fumaça que sai dos bueiros das casas. Eles dão alguns sobrevôos à baixa altitude sobre a cidade, balançando as asas. Esse é o sinal de que a aeronave deseja pousar por ali. - Vamos pousar naquela estrada comandante? - Vamos sim! É melhor pousar lá! Vê como a estrada é tranqüila? - Mas tome cuidado com a fiação elétrica comandante! Já viu aqueles cabos de alta tensão? - Já vi, sim! O comandante Leahy é um piloto excelente. Pousa suavemente na estrada passando por cima dos cabos de alta tensão. O asfalto é novo. Sem problema. Mas ao rolar na pista ele sente um tranco do lado direito da aeronave. Imediatamente após o pouso eles descem e empurram a aeronave para fora da estrada. Pode vir algum automóvel ou caminhão. O comandante vai examinar a asa direita e vê o motivo do tranco que sentiu. A ponta da asa de alumínio está amassada. Batera num galho de jurema. - Isso poderá tirar a estabilidade da aeronave, comandante? 436 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Pergunta Francisco. - Não! Não! Não deve oferecer alguma reação indesejável não!... Uma multidão já está se dirigindo na direção da aeronave. O local do pouso fica a uns dois quilômetros da cidade. O primeiro a chegar é um rapaz em um automóvel. Sandra acabou de sair da aeronave para constatar algo de que não gosta. Tem as mãos todas meladas de chocolate amassado e derretido. O rapaz que acaba de chegar é um piloto de Ultraleve em Brasília. Está ali de férias. Ao ver a atitude da aeronave balançando as asas percebeu que precisava de ajuda. Conhecedor do regulamento, ele se prontifica imediatamente e resolveu ir ao local. Está levando nossos pilotos até a delegacia de polícia da cidade. Nesses casos, reza o regulamento, que também é do conhecimento do delegado, que o policiamento local é obrigado a prestar segurança à aeronave. Ainda mais nesse caso, que o Cherokee pertence ao D.A.C., aos cuidados doAeroclube de Maceió. Em poucos minutos ha cerca de umas cem pessoas ao redor da aeronave. Gente que veio a pé, de bicicleta, de moto, de automóvel, de jerico, de cavalo, gente de todo tipo. Junto à aeronave só ficaram Sandra e Eliana. As pessoas ali estão muito curiosas. E comentam: - O avião caiu! Foi? - E só tem essas duas mulheres dentro dele é? - Que mulheres corajosas! - Comentam outros. Eliana sempre muito brincalhona logo responde: - É sim! Só tem nós duas! 437 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Enquanto isso, chegando à delegacia, os pilotos são informados de que o delegado já se dirigiu para o local onde o avião está. Retornam então para lá. Chegando à delegacia de polícia os pilotos são informados que o delegado já seguiu para o local. Eles voltam imediatamente para lá. Comandante! - Diz o sargento de polícia, delegado da cidade. Estamos aqui na qualidade de delegado de Santa Luzia para prestar ao senhor e a seu avião toda a segurança necessária, conforme diz o regulamento. Já escalei esses dois policiais para pernoitar aqui tomando conta do avião! Só faltou o delegado prestar uma continência ao nosso comandante Leahy. - Está bem delegado! Foi apenas um pouso de emergência. Manhã logo cedo voltaremos aqui para levar a aeronave! Tripulação e passageiras agora estão sendo conduzidos para a praça de táxi da cidade, onde pretendem alugar um e seguir até Caicó. Já são quase 18h00. -Eu hoje não perco o Baile dos Coroas de jeito nenhum! Exclama Francisco. Ainda é cedo. Estão saindo de Santa Luzia próximo das 18h30. São somente 90 quilômetros. Pouco mais de uma hora depois já estão chegando em Caicó. Os pais de Francisco e os demais familiares estão um pouco apreensivos. Eles haviam informado que iriam de avião. - E que avião é esse que não chega nunca! Já tinha observado Josina em suas preocupações naturais. O episódio do pouso de emergência foi motivo de diversão para muita gente. O detalhe do chocolate espremido de Sandra é motivo de muita gozação. 438 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Por isso que não gosto de viajar em diabo de avião pequeno! Desabafa ela, para boas rizadas de todos os familiares. Onze da noite já estão indo ao clube para o baile. O piloto Leahy, provavelmente muito estressado com as dificuldades encontradas no vôo, resolveu ficar em casa. Mas tarde no clube Francisco fez contato com o piloto do avião Bandeirante do Governo do Estado e ele confirma: - Daria tempo bastante para vocês terem vindo até aqu! Eu posei às 17h30 com o Bandeirante do Governador e ainda tinha claridade do sol. Em Caicó nesse período do ano o pôr de sol ocorre somente após as 17h30. Mas regulamento é regulamento. Além do mais, o piloto Leahy desconhecia esse detalhe. No dia seguinte logo cedo eles são levados de automóvel até Santa Luzia pelo mano Johnny. O pai de Francisco vai junto para voltar com Johnny. Francisco paga uns trocados para os policiais que pernoitaram com a aeronave e vão decolar. Pedro Elias nunca estivera tão perto de uma aeronave. Está cheio de curiosidade para conhecer um. Tudo é estranho para ele. Os pilotos decolam seguindo o mesmo rumo traçado por Francisco na tarde anterior na direção de Caicó. Tempo cronometrado e, exatos quinze minutos depois, já estão sobrevoando Caicó. O comandante Leahy mantinha-se ainda preocupado com o excesso de combustível gasto nas manobras durante a viagem. Como seria bom se pudessem decolar dali com o tanque cheio! Deram sorte. No domingo chega ao Aeródromo de Caicó uma frota 439 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias de ultra-leves vindos de Mossoró. Cerca de dez aeronaves. Por terra seguia uma caminhonete com galões de combustível para reabastecer os ultra-leves. O mesmo combustível dos aviões. Somente era misturado a um terço de óleo ao fazer o abastecimento. Esses Ultra-leves têm motor de três tempos e o combustível é uma mistura de gasolina com óleo. Francisco fala com o pessoal dos ultra-leves e consegue comprar a gasolina para completar o tanque do Cherokee. Agora o comandante Leahy está totalmente aliviado. Poderão voltar sem dificuldades. O mesmo trajeto. Caicó a João Pessoa. Novo reabastecimento lá e depois direto para Maceió na segunda-feira logo cedo. Nesta visita a Festa de Santana Francisco reencontra um velho amigo, outro padre, agora responsável pela paróquia de Santana. O padre Antenor Araújo. Que se notabilizou pela construção de um castelo medieval nas cercanias de Caicó. O Castelo de Engady. O padre Antenor é uma figura muito culta. Também muito questionado por seus encargos em conseguir dinheiro para a paróquia. As línguas do mexerico ainda perduram na Caicó desses novos tempos. Dizem que na contagem do Padre Antenor é assim: um pra mim, um pra tu, um pra mim. Separando o dinheiro arrecadado na festa. Como na velha matemática de Luiz Gonzaga em sua música. Um pra mim, um pra tu, um pra mim. No final, ficavam dois terços com ele e um para a igreja. Mas isso é só conversa dos mexericos de Caicó. Francisco é convidado pelo Padre Antenor para ir à sua casa. Entre um licor de Genipapo e outro vão atualizar os assuntos. Pouco tempo atrás, conta ele, estivera na Universidade de Haifa em Israel, convidado para apresentar sua tese de doutourado em antropologia, desenvolvida na pesquisa de identificação das famílias de judeus desterrados de Portugal em terras do Brasil, no Nordeste e mais especificamente, no Seridó. 440 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco está muito empolgado com o assunto. Já leu alguns livros tratando de Antropologia e sua importância no estudo da raça humana. O assunto é apaixonante. Agora ouve um relato impressionante do próprio estudioso do assunto, o Padre Antenor. O seu estudo é muito revelador mesmo. Razão pela qual foi convidado a ir a Israel. - Olha! Francisco Elias! Em nossas pesquisas nós descobrimos que a Coroa Portuguesa servía-se do transporte em navios para o Brasil, de duas formas: Uma era o transporte de escravos. E a outra, era igualmente terrível! - Enfatiza o padre. - Eles selecionavam os judeus portugueses da seguinte maneira: Os judeus ricos permaneciam lá. Mas os judeus pobres, considerados um peso social para Portugal, eram então desterrados para o Brasil, também confinados nos porões dos navios. - Um relato interessantíssimo Francisco está ouvindo. O próprio padre Antenor, de pele muito branca, olhos verdes, sobrenome Araújo, é um desses descendentes. Tem sangue judeu. Afirma ele com toda convicção. - Eles sabiam! - Continua sua narrativa. - Viajando naqueles porões fétidos dos navios negreiros, que seriam desterrados em lugares diversos pela costa brasileira. Famílias inteiras eram separadas e divididas. Uns desciam em um lugar na costa, outros desciam em outros lugares mais adiante. Só havia um jeito de eles se reconhecerem entre si, se um dia encontrassem seus compatriotas e familiares; adotando um sobrenome especial, como uma senha de identificação. E combinaram adotar um sobrenome, com algo que identificasse coisas da própria região: o nome de uma ave, de um animal, de uma árvore, e assim por diante, anexando esse sobrenome ao seu próprio nome. Só eles sabiam disso. Quando um dia, encontrassem alguém com um sobrenome, tipo 441 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Pereira, Chaves, Cajú, Lima, Cordeiro, Bezerra, e tantos outros sobrenomes que hoje conhecemos, expandidos por todo o país, esse seria um de seus descendentes de sangue judeu vindo de Portugal. Continua o padre. - Nossas pesquisas demonstraram um dado curioso! Os lugares onde foram deixados no Nordeste são: Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Sergipe. Note que Pernambuco e Bahia estão fora dessa rota! Por uma razão lógica! Ali o forte era o comércio de escravos. E o que temos? Uma predominância da cor negra nessas regiões. Enquanto nesses outros lugares... Ainda hoje, se você reunir numa sala pessoas dessas famílias nativas do Ceará, Rio Grande Norte, Paraíba e Sergipe, ninguém será capaz de identificar seu lugar de origem. São muito parecidas. Com traço de aparência muito comum. Sem dúvida, o padre Antenor havia descoberto algo fantástico. Uma contribuição riquíssima para a história das raças em nosso país. Bem mais tarde, lá para depois do Ano 2000, Francisco vai provocar um outro relato igualmente tocante em torno do sobrenome dos judeus, apresentando a versão dessa descoberta, lá em Recife Vamos acompanhar essa narrativa quando ele já estiver outra vez em Recife retornando de Maceió. O mundo dá muitas voltas. Como veremos. Esta palestra com o Padre Antenor Salvino de Araújo, por sinal, também seu parente sanguíneo distante, pois seu nome de batismo é Francisco Araújo da Costa, lhe dá um novo conhecimento, uma nova visão da disseminação das famílias, que desde o princípio povoam as terras do Brasil. 442 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias V ocê mesmo, caro leitor, verifique a árvore genealógica de sua família, se ha um desses sobrenomes característicos. Pode ser até nome de fruta ou de qualquer coisa. Ai estará a sua identidade verdadeira. Que o tempo não apaga. E que ficara registrada até em cartórios. Leão, Carvalho, Canabrava, Oliveira, Bandeira, uma infinidade de exemplos que se pode citar. Todos eles. Chegaram aqui nos porões dos navios. Não deixa de ser uma face muito ilustrativa da história deste povo. Em termos de Festa de Santana, esta é a mais proveitosa para Francisco. Volta a Maceió trazendo na bagagem muita cultura. Na viagem de volta Ramatís ocupa o lugar de Eliana no Cherokee. O vôo ocorre tranqüilo. Apenas uma pequena correção para a direita ao se aproximarem de João Pessoa. Vôo visual é assim mesmo. Tem que ser tudo no olho. O tempo está bem limpo. Dá para fazer um VFR tranqüilo. Nosso co-piloto pousa no Aeroclube de João Pessoa. Aí o piloto Leahy descobre que o tempo anda muito quente para ele. O serviço de proteção ao vôo quase havia emitido o alerta do SIPAER com o envio de aeronaves para localizar o Cherokee que, pelas anotações no plano de vôo, estava desaparecido desde a sextafeira. O controle de João Pessoa já está ciente do reaparecimento do Cherokee.Aconteceu um mal entendido. O funcionário do controle de vôo que havia recebido o segundo chamado do Cherokee na saída de João Pessoa, esquecera de reformular as informações no plano de vôo já arquivado, conforme foi passado pelo rádio posteriormente, sem MSG. Uma confusão dos diabos! Com sérias ameaças de punição para o piloto Leahy. 443 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O controle de João Pessoa já havia se comunicado com o Aeroclube de Maceió desde o sábado informando do desaparecimento da aeronave, obtendo informação de que o piloto era mais do que qualificado e que, provavelente havia ocorrido algum mal entendido. Como de fato agora se confirmava. Após as devidas explicações pelo telefone ao Controle João Pessoa, puderam seguir viajem com destino à Maceió. Claro que não deram qualquer informação sobre o pouso de emergência em Santa Luzia. Ao chegarem em Maceió, o Presidente do Aeroclube está muito nervoso. Mas a pedido do piloto e com o testemunho do co-piloto Francisco, é redigido um documento do Aeroclube solicitando que o D.A.C. averiguasse melhor, pois havia ocorrido realmente um mal entendido. O plano de vôo fora repassado para vôo sem MSG. Solicitando portanto, que não houvesse punição para o piloto. Ele não tinha culpa. Francisco mandou concertar a mossa da ponta da asa do Cherokee e tudo foi contornado. - Outra viagem dessa, nem que Deus me peça eu não farei! Desabafa Sandra assim que põe os pés em terra no Aeroclube de Maceió. - Pra nunca mais! 444 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias 1 990. Esse é um ano histórico para a família Elias. É o ano das Bodas de Ouro de Pedro Elias e Josina. Com quase um ano de antecedência todos os filhos já vinham sendo contatados para assegurarem presenças garantias no fim do ano em Caicó. Toda a prole de Pedro Elias e Josina deverá estar reunida para as comemorações. À frente da agenda está o mano Johnny. Com grande habilidade ultima todos os preparativos para a grande Festa em um ambiente alugado próprio para eventos. (Ver fotos) Um verdadeiro desfile de beldades. Uma grande noite de fim de ano. Um acontecimento marcante. Todos os filhos estão presentes com suas respectivas famílias. Francisco, Malvina, Maria de Lurdes, Pedro Elias Filho, Marina, Josafá, José, Marluce, Mônica, Marlene, Johnny e Franksvictor. No total, cerca de cinqüenta pessoas, entre filhos, netos, genros e noras. Uma foto comemorativa foi feita com toda a família. O único local onde se poderiam reunir todos na foto é as escadarias da igrejinha de São Pedro ao lado do Ginásio Diocesano (ver foto). Esta foi a única vez em que toda essa imensa família esteve reunida. Os esforços foram muitos. Havia filhos e netos espalhados pelos mais diferentes lugares do país. Mas todos compreenderam o significado dessa comemoração e se fizeram presente. Um acontecimento histórico e inesquecível para todos. Dava para ver a grande satisfação de haver gerado tamanho pelotão de indivíduos. Vía-se isso em Pedro Elias e Josina. Aproveitando essa ocasião ímpar Francisco, assessorado por Carlinhos Vangasse, noivo de Elissandra, com uma câmera de VHS faz a filmagem de um documentário registrando tudo. O documentário histórico é parte integrante deste livro. (Execute o aplicativo em seu computador). 445 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Nele ha inclusive uma narrativa do próprio Pedro Elias, sobre o início da grande jornada de sua família lá no sítio Riacho do Meio entre as grotas de pedras e as temíveis cobras venenosas. A festa das Bodas de Ouro foi marcante também por outro motivo. Pouco tempo depois, Pedro Elias e Josina já estariam separados, vivendo cada um para o seu lado. As causas para isso devem ter sido muitas. Desde a intolerância dele, calcado em sua personalidade um tanto brutalizada e incapaz de acompanhar o desenvolvimento dos tempos modernos, passando também pela decisão de Josina de abraçar um dogma religioso completamente fora dos conceitos da religião católica, fato que Pedro Elias nunca aceitaria. Ponderando sobre essa pesarosa realidade e os motivos que condicionaram a separação dos dois, principalmente o fato de sua mãe haver se entregue ao movimento religioso dos Testemunhas de Jeová, Francisco encontra um raciocínio que lhe parece lógico. Sua mãe havia sofrido muito na companhia de seu pai. Ele é testemunha disso. É muito complicado para uma pessoa se sacrificar tanto quanto ela o fez em toda sua vida, sem viver uma experiência de renovação espiritual. Todo ser humano que vive tais circunstâncias estará, mais cedo ou mais tarde, devidamente pronto para uma virada em sua vida. Na maioria das vezes por puro acúmulo de carências reprimidas, as mais diversas.Asua psique chega ao limite. E dependendo da formação moral, cultural e do temperamento de cada um, como é o caso de Josina, uma pessoa já com idade avançada, ela encontra-se no ponto exato do caminho percorrido, em que as conseqüências lhe guiam o raciocínio. E ela necessita preencher o vazio que se avoluma em seu íntimo. De alguma forma sua mente busca uma resolução. 446 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E é nesse momento de vazio e de necessidade interior que, por “acaso”, ou decisão do destino, lhe chega a mensagem. No caso dela, foi a mensagem de um panfleto entregue por uma Testemunha de Jeová. É este o momento em que se diz - Quando o enfermo está pronto o remédio aparece. O criador tem muitas fórmulas para auxiliar seus entes queridos vivendo em sacrifício. Josina sem dúvida é uma dessas pessoas. A mensagem das Testemunhas de Jeová lhe chega como tábua de salvação. Após tanto se questionar tentando entender o dogma e preceitos da religião católica, não lhe parece justo que seu caso não tenha solução. Ela é uma pessoa acostumada ao sacrifício de se doar. A religião católica não lhe oferece esse instrumento de labor espiritual, cuja única compensação, é a certeza de que Jeová a compreende. E assim, ela se transforma numa Testemunha de Jeová exemplar. Uma pessoa querida por toda essa comunidade de religiosos. Pedro Elias jamais compreenderia isso. Portanto estão vivendo separados. É melhor para ambos. Certa ocasião em 1991, ele vai fazer uma visita à família de Francisco em Maceió. Esse momento é oportuno para que Francisco, mesmo vivendo tanto tempo distante dele, possa avaliar que seu juízo não está lá grande coisa. A viagem de ônibus foi cansativa. Pedro Elias já está com seus setenta anos. Um ônibus para Campina Grande. E de lá outro para Maceió. Um cansativo dia de viagem! Mas chega contente de rever o filho, a nora e os netos. Todos estão muito contentes com sua visita. Francisco já está pensando em mandá-lo de volta num avião para Natal onde alguém o aguardaria. 447 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Vai combinar isso depois com ele. Ver se ele tem coragem para viajar de avião, algo que nunca fez. Josina já havia viajado tempos atrás à Campinas, em São Paulo para um tratamento de saúde aos cuidados de Danilo e Malvina. Mas Pedro Elias ainda não tinha vivido essa experiência. À noite, preparando-se para dormir numa boa rede, o que é bom para tirar aquela canseira da viagem, Francisco oferece: - Papai o senhor escolhe! Se quer dormir aqui na varanda, tem armadores! Ou se prefere dormir na sala, com a varanda aberta, vai correr uma boa ventilação! - É um sétimo andar. - Eu prefiro aqui na sala mesmo! - Está bem! - E ali Francisco arma a sua rede. Pela manhã logo cedinho Francisco acorda lembrando-se que seu pai levanta muito cedo. São 05h30 da manhã. Vai lá fora conferir. Positivo. Pedro Elias já se levantou, desarmou a rede e agora está de braços cruzados encostado no parapeito da varanda observando o pouco movimento lá embaixo na avenida Jatiúca. - O senhor acorda bem cedo não é? - É! Eu sempre acordo cedo! - E puxando conversa ele aponta para uns coqueiros existentes ali em frente no outro quarteirão, comentando: - Como tem urubu aqui! Não é? - Os urubus estão levantando vôo em direção à praia. - É sim! Eles fazem dormitório nesses coqueiros! De manhã eles se dirigem para a praia e outros locais por ai a procura do que comer. São os primeiros a ajudar na limpeza da cidade. Qualquer bicho morto por ai à noite eles já pegam e somem com ele. - Lá em Caicó, não tem mais um só urubu! Nem pra fazer remédio! - Como assim? - Francisco está curioso com essa informação. - Olhe! Se morrer um cachorro hoje atropelado numa estrada por lá, 448 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias ele vai secar e não aparece um urubu pra comer a carniça! - Mas porquê isso? - Francisco quer detalhes. - Dizem que foi uns veterinário que chegaram por lá e colocaram um veneno pra matar não sei o que diabo foi, que findou foi acabando com todos os urubus! Porque eles comiam a carniça envenenada e também morriam! - Ele fala isso demonstrando uma veracidade incrível. - Rapaz! É possível? - Insiste Francisco. - Home! Os últimos urubus que tinham em Caicó arrumaram o matulão (saco de pertences), jogaram nas costas e se danaram para o Maranhão! Francisco está surpreso e de boca aberta com a narrativa que acaba de ouvir. É obrigado a concluir pensativo: - Meu Deus! Papai já está fraco do juízo! Isso é conversa que ninguém possa acreditar. Sandra já se levantou e vai preparar o café da manhã. Essa de papai é para ficar na história mesmo! Pensa Francisco enquanto vai ao banheiro tomar banho. Foi uma semana de muitos divertimentos. Passeios diversos pelos recantos mais bonitos de Maceió, a vista magnífica do mar, das lagoas, a comida gostosa nos restaurantes de frutos do mar, uma semana inesquecível. Tanto para ele quanto para os familiares de Francisco. Todos gostam muito do vovô Pedro. Já na sexta-feira Francisco conversa com ele sobre a viagem de volta em avião. Ele parece se animar com a idéia. A passagem é então comprada para um vôo da Vasp saindo de Maceió às 10h00 da manhã, com uma escala em Recife e depois vôo para Natal, onde Rony e Lurdes estariam aguardando por ele no aeroporto. Francisco dá todos os detalhes sobre o vôo. Ele parece não apresentar qualquer rejeição à idéia. 449 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O vôo é no domingo pela manhã. Francisco vai levá-lo no Aeroporto. Estão lá sentados na lanchonete tomando um lanche, aguardando a hora de embarque. O avião ainda não chegou. Outras aeronaves estão pousando e subindo. Pedro Elias resolve desembuchar suas preocupações com o vôo: - Mas será que isso vai dar certo? - O quê papai? - A história desse vôo! - Claro que vai papai! Não tem o menor problema! Veja ali! Olhe as crianças e pessoas idosas desembarcando daquele avião! Pode ficar tranqüilo que a viagem é muito gostosa! - É!... Sua mãe já avuou né!... - Diz ele não parecendo muito convicto. - O senhor pode ficar tranqüilo! Uma aeromoça a bordo vai lhe acompanhar. Vai lhe colocar no seu acento. Vai apertar o seu sinto de segurança. E vai lhe dar toda atenção que o senhor precisar! Eu vou pessoalmente recomendar a ela! - Ele não diz mais nada. Mas pelo jeito como esfrega as mãos Francisco percebe que ele está... desiste, mas não desiste da tal viagem. O seu avião já está vindo para o pouso. - Olha papai! É naquele que o senhor vai! Repare como ele pousa suave!... - Ele fica observando com muita atenção o pouso do Vasp 737-200. Já estão chamando para o embarque e Francisco vai com ele até a sala de embarque. Quando chega a hora, chamam primeiro as pessoas idosas e com crianças. Francisco conversa com uma comissária de atendimento em terra, recomendando que ele vai voar pela primeira vez e que ela o entregue a uma comissária de bordo para entregá-lo em mãos à filha e ao genro que estarão esperando por ele em Natal. A moça o conduz até o avião. 450 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O vôo vai chegar em Natal por volta do meio-dia. Rony e Lurdes estão esperando por ele no desembarque. Ele logo confessa que o vôo foi uma beleza e de como o bicho é rápido. Dois dias depois Pedro Elias já está de volta em Caicó. Sentado em sua cadeira espreguiçadeira na calçada de casa sempre após o jantar, ele continua contando, com todos os detalhes, a todos os amigos que se aproximam, uma narrativa que duraria os próximos quinze dias. Basta alguém lhe dar boa noite, e ele já vai abrindo conversa sobre a tal viagem que fez de avião. - Home eu acabei de chegar de viagem de Maceió! Vim num avião que meu filho Francisco me botou lá, indo descer em Recife e depois em Natal! - Gostou de viajar de avião seu Pedro! - Ha sempre um curioso querendo saber. - Home quando esse bicho enterrou dos pés na carreira, me expremeeeeendo na cadeira! Eu tentando levar o corpo pra frente e cadê! Não tinha força que me tirasse daquele espremido na cadeira. Ah bicho duma força condenada! Mas foi bom! A viagem foi boa! É muito rápido home! Quando você menos espera já está descendo num outro lugar! Chega um período de férias. Alguns netos de Pedro Elias estão em Caicó. Vão passar as férias com o vovô. Josina não vive mais com ele. Mas tem a mulher que cuida da casa. Os meninos estão se divertindo. Meninos é força de expressão. Os “meninos” já têm 14/15 anos. Pedro Elias costuma ver televisão até pelas nove da noite, de preferência o canal da Band. Depois vai dormir. Está cada vez mais velho e assim como as crianças, o sono chega cedo. Os meninos esperam até ele entrar no quarto para dormir. Então pegam a fita VHS que alugaram e botam no vídeo cassete. É um filme pornô. Sabe como são os jovens. Estão sempre na frente do 451 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias compasso. Ainda não têm idade para esses divertimentos, mas às escondidas conseguem alugar esses filmes de cenas pesadas e agora estão lá na sala com as portas fechadas no maior silêncio assistindo o filmão. No meio do bem bom, mais ou menos uma hora depois, Pedro Elias se levanta saindo do quarto e vai à geladeira tomar água. Em vez de voltar ao quarto, como imaginam os meninos, ele vai até a sala vendo que os jovens assistem TV. - É a Band? - Pergunta ele e vai logo sentando no sofá. - É vovô! - Respondem os netos imaginando que então ele não se interessará mais e voltará ao quarto. Mas ele permanece mais um pouco. Já não enxerga muito bem, porém dá para ver perfeitamente o conteúdo das imagens. As cenas são quentíssimas. Quase sai fumaça do televisor. Cenas de sexo explícito no mais alto grau. Os netos estão paralisados. Não deu tempo para tirar a fita. O vovô examina direitinho conferindo se é mesmo aquilo que está vendo, e repentinamente se levanta batendo com a palma da mão na testa, exclamando: - Meu Deus do Céu! Jesus Cristo perdeu o controle do mundo! - E retíra-se apressadamente para o quarto, imaginando que aquilo é a programação normal da Band para esse horário mais tarde da noite. Pedro Elias está pagando um preço relativamente alto por não conseguir com sua mentalidade um tanto retrógrada, acompanhar o que está acontecendo no mundo dia a dia. Ele nem imagina que esse tipo de filme é alugado em lojas específicas. Bem verdade que específicos para pessoas de maior idade. Porém no interior, mais que em qualquer outro centro mais avançado, menos se respeitam as normas. E tais filmes são alugados mesmo por jovens de menor 452 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias idade. O vovô Pedro não sabe nada disso. E pelos próximos dias esse vai ser o seu comentário insistentemente repetido com todo mundo com quem conversa: - Vocês têm visto a Band tarde da noite? - Às vezes! - Respondem seus conhecidos. - Eu não sei como é que se liga uma televisão para ver umas porcarias daquelas!... O conhecido em questão, que não sabia ao que ele se referia, fica sem entender. - Mas seu Pedro o senhor gosta tanto da Band! - É! Mas eu durmo muito cedo! Esse assunto seria por muito tempo motivo de diversão para seus netos. Pedro Elias periodicamente vai à Natal cuidar da saúde. É sempre recebido em casa de Rony e Lurdes. Uma de suas características peculiares é não gostar de comunista. Pedro Elias armazenou em sua memória um dado sobre os comunistas. É, em sua opinião, a pior classe de gente que se pode imaginar. Comunista come até criancinha! Essa a imagem que ele tem dessa classe política. Certamente havia assimilado essa informação desde muito tempo atrás, quando a propaganda americana se empenhava em divulgar horrores sobre os comunistas. Influenciando largamente a consciência política das massas em países ignorantes, como era o caso do Brasil. E Pedro Elias, como a maioria do povo de sua época no pós-guerra, tinha esse conceito enraizado. Tinha horror de comunista! E sempre que pode, faz questão de externar isso. Por outro lado, sua formação cultural sempre apontou para o brilhantismo da farda dos militares. Deve haver em seu subconsciente um sonho guardado e não realizado. 453 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias T alvez ele mesmo gostaria de ter sido um brilhante militar. Major, Coronel, General, são palavras que ele expressa com muito zelo. Tanto, que alguns de seus próprios netos são apelidados de: o Coronel Luquinha, meu Major, é assim que ele os vê em seus devaneios de avô coruja. Esta noite, ele está em casa de Rony vendo televisão. Está acontecendo a ECO92, um grande evento internacional que reúne no Rio de Janeiro para discussão de assuntos do interesse global, representações de centenas de países de todos os continentes. Vendo todos aqueles figurões sendo recebidos na ECO92 pelas autoridades locais, alguns deles em farda de gala, chega o momento de recepcionarem um grande general da América Latina. Imponente em sua farda verde cheia de condecorações... Com sua barba imensa... Pedro Elias então exclama com admiração: - Eita! Generalzão! - O genro Rony, que conhece bem as suas predileções pergunta: -Sabe quem é esse ai seu Pedro? - Quem é? - É Fidel Castro! O Presidente de Cuba! Isso é um cachorro! - Dispara ele imediatamente. Alterando seu conceito sobre o “Generalzão”. Uma coisa ele faz questão de exprimir. Sempre. A sua franqueza. Quando se trata de defender suas convicções. Rony dobra-se em gargalhadas. 454 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias U m acontecimento marcante na família. O casamento de Mimía, a primeira filha de Francisco. Elissandra casa-se com Vangasse. Voltas fantásticas esse mundo dá! O que temos aqui? Elissandra carrega sangue judeu português em suas veias. E agora vai se casar com um descendente de alemão. Essa história também é interessante. Conta-se a título de especulação, talvez uma ficção, que o avô de Vangasse, um piloto da Luftwaffe alemã, viajando a bordo de um porta-aviões de Hitler pela costa brasileira na Segunda Guerra Mundial, na região de Alagoas, enquanto voava numa esquadrilha de reconhecimento, havia simulado uma pane em sua aeronave jogando-a no manguezal numa área distante de Maceió. Tempo em que havia muito pouca densidade demográfica nessa região. Apenas algumas pouquíssimas choças de pescadores, mas muito pouco povoadas, quase desertas. O piloto Vangasse já desconfiara que Hitler iria perder a Guerra. E resolvera se jogar ali, permanecendo por algum tempo dentro da carlinga do avião como se estivesse morto. Seus companheiros teriam feito algumas passadas por cima dele em vôos rasantes, mas sem lugar para pousar afim de resgatá-lo, retornariam ao portaaviões registrando a perda de uma aeronave e de seu piloto, que lhes parecia estar morto. Algum tempo depois, com a esquadrilha já longe, o piloto Vangasse teria descido da aeronave e se embrenhado no mato. Por algum tempo alimenta-se de raízes e outras iguarias esquisitas que conseguisse vasculhando o manguezal. Água de coco e algumas outras frutas nativas. E assim foi escapando até encontrar gente que o acolhe. 455 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Provavelmente famílias de pescadores. Sem falar uma palavra em português, nem tão pouco ser entendido em seu alemão, só com muito tempo foi absorvendo a linguagem nativa daquele povo. Tempos depois casa-se com uma mulher nativa da região. De quem nasceu seu Vangasse pai de Carlos Vangasse, que agora está se casando com Elissandra. Para justificar as características da consangüinidade hereditária conforme explica a ciência, a mulher nativa com quem se casou o piloto Vangasse era de pequena estatura, algo muito comum entre os alagoanos. Seu Vangasse, pai de Carlinhos, que este narrador conheceu em vida, era também de pequena estatura. Já o Carlinhos Vangasse é bem alto. Chegando quase aos dois metros de altura. Fruto, naturalmente, do resultado da hereditariedade em segunda geração. Pois ai está, reconciliando consangüinidades, uma judia e um alemão, gerando nova filiação. Os filhos de Vangasse são os netos deste que lhes escreve. Também bastante altos. É o ser humano escrevendo sua própria história em miscigenação de cromossomos. Perpetuando a espécie. Cada um leva a sua própria chaveADN de identificação. Você também, que agora lê este texto. Talvez devesse examinar a sua árvore genealógica. Pouco tempo depois casa-se Eliana, a segunda filha de Francisco e Sandra. Em ambos eventos viu-se muita alegria de toda a família. Parentes que moram distantes, principalmente familiares de Natal, foram aos casamentos das meninas. Como todo casamento, os delas foram muito festivos. A família Elias é reconhecida pela temperatura de sua personalidade alegre. Uma geração vai herdando da outra essas características comportamentais. 456 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E liana, por exemplo, agora muito feliz entrando na igreja levada pelo pai, provoca o comentário de alguém da família: Lá vai a Tia Maria se casar! Ela realmente tem traços muito fortes com Maria Grande, a tia de Francisco, aquela mesma especialista nas buchadas de bode, assim alcunhada, por ser uma mulher corpulenta. De pés bem grandes. Morreu sem nunca haver calçado um sapato. Não havia número que coubesse seus pés. Eliana arrancou alguns traços da tia Maria. Por isso ha sempre alguém brincando com ela. Sua alegria de comunicação, igualmente como a irmã Elissandra, também é outra característica contagiante. Freqüentemente lembradas pelos tios e primos. Com a gravidez das filhas inicia-se em Francisco um fenômeno bastante relevante. A primeira a engravidar foi Eliana. Ao comunicar a sua gravidez ela foi surpreendida com uma informação vinda de seu pai. - Vai ser um menino minha Filha! - Um menino papai? - Sim! - Como é que o senhor sabe? - Alguma coisa está me dizendo! Vai ser humem! Tenho certeza! No momento ninguém leva a sério a sua observação. Ele mesmo estava surpreso com aquilo. Mas lembrou-se da sensação que sentiu no nascimento de Ramatís. Era algo parecido. Uma certeza! Muito forte! Como se houvesse escutado alguém falando dentro dele. A última vez que havia sentido algo assim foi em São Paulo, junto com a tia Neném em um centro espírita. Pouco tempo depois foi feito o exame de ultra-sonografia confirmando. Eliana estava grávida realmente de um menino. - Paínho! É mesmo um menino! Vou ter um menino! Como é que o 457 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias senhor sabia? - Ela está no telefone. Continua curiosa. Seu pai havia realmente acertado. Em seguida todos esquecem o fato. Algum tempo depois é a vez de Elissandra anunciar que também está grávida. Assim que toma conhecimento, Francisco faz uma busca em sua mente, mentalizando a barriga da filha e novamente recebe a comunicação extra-sensorial. E informa para ela: - Vai ser homem também Elissandra! - É mesmo Painho! Que bom! - Responde ela sem muita convicção. Logo vai providenciar a ultra-sonografia e novamente o fato se confirma. Ela liga para o pai. - Painho! O senhor acertou mesmo! Vai ser homem! A essa altura já tem alguém comentando: Mas que coincidência! Elias acertou o sexo dos dois netos. Coincidência! Ele mesmo também já está pensando nessa possibilidade. Será que foi só uma coincidência? A vida de Francisco parece estar passando por um período de certa fertilidade em suas relações com a para-normalidade. Certa noite ele sonha algo muito estranho. Parece ter sido uma mensagem, que ele não consegue interpretar. Não está influenciado por nenhuma convivência com centros espíritas desde que chegou em Alagoas, nem está lendo qualquer livro vinculado a espiritualidade. Aliás, já faz algum tempo que não lê um livro. Por isso conclui que o sonho que acaba de ter deve ser algum tipo de mensagem que estão lhe mandando da espiritualidade. Falta-lhe conhecimento suficiente para desvendar com exatidão aquele sonho. Algo bem forte! Uma cena gravada para sempre em sua memória. Foi mais um daqueles sonhos em que ele tem consciência que está sonhando. É como se sonhasse acordado. 458 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A cena do sonho é noturna. Numa noite de céu muito limpo. Sem lua. Mas muitas estrelas cintilam no firmamento. Existe em Maceió um campo de futebol do CRB. Cercado com muro alto. Francisco já passou muitas vezes ao lado do campo, já viu o espaço interno pela televisão em partidas de futebol. Reconhece as arquibancadas não muito altas. Certa vez passando de automóvel avistara pelo portão de entrada que estava aberto, uma parte do gramado. E nesse sonho ele reconhece perfeitamente. Foi levado para dentro desse gramado, onde se encontram centenas de pessoas. Ninguém que ele conheça. Até procura nas fisionomias alguém conhecido e não encontra. Ele sabe que aquilo é um sonho. As pessoas ao seu lado conversam animadamente. A impressão que ele recebe é que estão todas ali aguardando um acontecimento, alguém que vai chegar. Quem será? Imagina ele em seu sonho. Quem estão esperando? A pouca luminosidade do céu estrelado mostra em penumbra a fisionomia das pessoas. Todas estão paradas no mesmo lugar. O gramado está repleto de gente. Mas sem transeuntes. Grupos de pessoas que conversam animadamente mas em voz baixa. Observa que ha espaços de um metro mais ou menos entre elas. Todas demonstram certa expectativa alegre. Portanto, conclui sua consciência! Deve ser algo bom que vai acontecer ali. De repente ha alguém apontando para o céu na direção do Cruzeiro do Sul. Todos se voltam para essa direção. Ha um certo burburinho na platéia! As pessoas parecem estar empolgadas com o que vêem. Francisco ainda não tem idéia do que se trata. também olha naquela direção. Incrível! Um pouco abaixo do Cruzeiro do Sul agora se vê uma estrela um pouco maior que brilha intensamente aumentando de tamanho. 459 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Girando sem parar ela vem a uma velocidade descomunal em direção a terra. Aumentando de tamanho enquanto se aproxima. A estrela cai exatamente dentro do gramado onde se encontram as pessoas espargindo um estrondo surdo com a intensidade de sua luz. O impacto da sua chegada é muito forte. Mas soou com um som fofo. Francisco sente como se houvesse perdido os sentidos por fração de segundos. Mas já está voltando a si. O que acaba de ver em seu sonho consciente é simplesmente fantástico! Então se dá conta de que ha um visitante caminhando entre os presentes. É um jovem aparentando no máximo 25 anos. Interessante! Observa Francisco. Ele está vestido normalmente, como qualquer um ali. Mas todo mundo se volta para ele com grande satisfação por sua chegada. Portanto, deve ser alguém importante que toda aquela gente estava aguardando. Quem será ele?Agora o jovem recém chegado está passando mais ou menos próximo de onde Francisco se encontra, ainda perplexo, sem a menor idéia do que seja aquele tipo de evento ou quem seja aquela figura. As pessoas ao seu redor acenam alegremente para o jovem com o braço. O jovem retribui o cumprimento com um sorriso confiante também acenando para as pessoas. Acena na direção de Francisco. O visitante mantém todo instante aquele sorriso muito tranqüilizador. Que coisa incrível! Francisco está se questionando severamente sobre o que está acontecendo ali quando repentina é arrancado da cena, despertando imediatamente. Ha tempos, com algum problema de coluna, ele dorme em rede. Desperta com o coração aos pulos. Meu Deus do céu! O que foi isso? Que mensagem foi essa que acabo de receber? Por vários minutos ele permanece acordado refletindo sobre aquela maravilhosa cena. Algo assim nunca havia lhe acontecido antes. 460 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Q ue mensagem era aquela? Por quê a espiritualidade lhe manda mensagens tão difíceis de decifrar? Lamenta por não poder conceber aquela magnífica realidade. Só após vários minutos, agora já com a pressão vascular normal, ele volta a adormecer. A cena fica-lhe gravada definitivamente na consciência com grande intensidade. Jamais poderia esquecê-la. Como todos os fenômenos de para-normalidade que lhe ocorreram. Aquele era mais um. Que vinha para ficar. Como uma doce lembrança. Um momento de luz. Um sonho do qual desejaria nunca ter acordado. A figura daquele jovem fazia um bem enorme a todos que o viam. Transmitia uma paz extraordinária. Era um ser de luz. Disso ele tinha certeza. Mas quem? E qual seria sua missão aqui na terra? E o mais interessante! Tinha as feições e aparência corporal de uma pessoa normal. Sua estatura devia ser 1,75m aproximadamente. Não era gordo nem magro. Parecia ter um físico enxuto. Não exatamente atlético e musculoso. Mas enxuto. Seus olhos eram claros. Transmitiam paz. Seu cabelo era curto. Vestia uma calça creme e uma camisa de mangas curtas mais clara, combinando. Francisco não chegou a se deter no tipo de calçado que ele usava. Não usava qualquer tipo de jóia. Isso ele reparou. Ou seja, a convicção que lhe ficou é que ele fora levado ali, não sabe por quem, para presenciar a chegada daquela figura e ter tempo para observar vários detalhes. O motivo disso, nunca saberia. Mas sempre se sentiu grato à espiritualidade por merecer esse tipo de experiência extra-sensorial. Esperava que um dia tudo isso viesse fazer algum sentido. Em situações especiais como essa, ele recorda a primeira cena que lhe imprimiram na consciência, seu primeiro momento extrasensorial. Aquela cena de sua infância, com a luz azulada descendo 461 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias pela parede em sua direção. Será que todas essas cousas tinham relação entre si? Pensar não é proibido! Portanto ele vai continuar pensando em todas as possibilidades possíveis. Todo o tempo em que se envolveu com os centros espíritas, nunca ninguém ou qualquer entidade espiritual lhe passou qualquer informação sobre essas coisas. Só lhe resta refletir e pensar que Deus muito certamente, tem um objetivo nisso. A realidade econômica de então no país, vivendo uma terrível inflação, lhe desperta a curiosidade sobre um assunto palpitante. A Neurolinguística. Aproveitando uma tentativa empresarial através da Amway, uma corporação americana de distribuição de produtos através de Marketing Direto, a partir de então atuando também no Brasil, ele se aprofunda nesse treinamento. Lendo o escritor de economia americano, Lee Iaccoca, ele descobre algo interessante que o faz considerar possibilidades sobre a realidade brasileira. Paízes que viveram conflitos e guerras, a exemplo da Alemanha, o próprio Estados Unidos com a guerra da Secessão, França, Itália, Coréia do Sul, Japão, todos eles haviam regado com seu sangue a estabilidade e o progresso que então experimentam. O Brasil, entretanto, é apenas o país do “jeitinho”. “Não é um país sério!” Conforme dissera Charles DeGoule algumas décadas antes. Um país ainda infantil. E como toda criança, totalmente irresponsável. Talvez por isso seu povo estivesse pagando um preço tão caro com a inflação assolante destruindo tudo pela frente. Inclusive, o seu escritório de propaganda. Essa é a realidade dos anos 90. Poucos anos depois Eliana engravida pela Segunda vez. Ao comunicar o fato já o faz perguntando: - E agora painho? Vai ser 462 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias homem ou mulher? - Ele põe a mão na barriga dela e procura ouvir alguma coisa. De novo vem aquela certeza muito forte. - É homem de novo minha filha! - Ah! Painho! Homem de novo? - É minha filha! Não sou eu quem decide! Eu só recebo a intuição! É homem novamente! - Outra vez Francisco está recordando aquele momento do nascimento de Ramatís. Tem a impressão que esse fenômeno se iniciou exatamente naquele dia. A ultra-sonografia novamente confirma. Eliana vai ter outro filho homem. Agora já não duvidam tanto das suas previsões. Mas ele pede que não comentem isso com ninguém. Teme que possa perder essa sensibilidade. Elissandra engravida também pela Segunda vez. E novamente quer saber do pai se é homem ou mulher. Todo mundo na família já está desejando ardentemente que surja uma mulher. - Sinto desapontá-los! Mas vai ser homem outra vez! A reação não poderia ser outra. Elissandra também reage um pouco. Queria tanto que fosse mulher! Mas não se incomoda se for homem novamente. E é. Foi confirmado mais uma vez com a ultra-sonografia. Agora ninguém mais tem dúvida dessa capacidade dele. Não se sabe como nem porque, mas o fato é que ele não errou nenhum prognóstico até agora. São quatro netos lindos. Todos homens. É assim que Deus está querendo. Então que seja. Francisco aproveita o momento para retornar às suas leituras. Em seguida é a vez de ter acesso a um outro nível de comunicação. Acaba de ler um livro incrível. Uma autobiografia da atriz de cinema Shirley MacLane, em que ela conta uma extraordinária experiência para-normal, vivenciada desde o dia em que surgira do nada na varanda de sua cobertura em Nova York, um ser, aparentemente 463 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias norma. Um homem, materializado ali, que já a aguardava, pois ela havia saido um pouco do partamento, e que lhe deixa uma mensagem incrível. Uma missão. Que ela deveria cumprir. Para isso teria que ir até um lugar longíncuo nas serras altas na cordilheira do Peru. A narrativa da autora, faz questão de esclarecer que não se trata de uma obra de ficção, aguçando bastante a curiosidade de Francisco. Retira desse livro algumas informações muito importantes sobre a correlação espiritualidade/UFOs. Agora ele acaba de descobrir um outro autor, cognonimado Trigueirinho, com vários livros que mostram também essa correlação entre o mundo dos espíritos e o fenômeno UFO. Francisco já desconfiava dessa possibilidade desde quando lia as muitas obras sobre os discos voadores. Agora tem a oportunidade de ir a fundo nessa avaliação. Os livros de Trigueirinho chegam-lhe com muitos esclarecimentos. A leitura o deixa muito empolgado. De uma vez só, encontra na livraria do Shopping Iguatemi em Maceió, vários deles. Compra nove livros do Trigueirinho. Tempos depois consegue alguns outros. Lê tudo que encontra do autor Trigueirinho. Uma narrativa fantástica. Para poucas mentes. É bem verdade. Precisa já desfrutar de certa evolução no conhecimento da ufologia espiritualista para poder compreender e absorver com isenção as narrativas de Trigueirinho. São parecidas com a obra de Shirley MacLane. Durante vários meses ele devora os livros de Trigueirinho com muito gosto, saboreando informações muito evolutivas e preciosas, sobre o processo da evolução do ser humano na terra. É outra vez um período muito fértil para seu aprendizado através dos livros, como ha tempos não experimentava. Enquanto em Maceió, esse é seu melhor momento com os livros. 464 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias T em algo novo acontecendo no mercado financeiro nacional que está pegando Alagoas em cheio. É a época do “overnight”. Uma manobra financeira da política econômica do Governo. As pessoas estão deixando de investir em produtividade, e o mercado imobiliário vinha sendo uma forte alternativa. Todo mundo agora está retirando o dinheiro dos negócios e aplicando na falsa rentabilidade diária do “overnight”. Uma forma de tentar proteger o capital da ação terrível da inflação galopante e cada vez mais devastadora. O mercado imobiliário despencou. Não ha como resistir. O principal cliente da Criação de Propaganda parou com todos os seus anúncios de jornal e telelvisão. - Não adianta anunciar! - Diz Márcio Raposo. - É dinheiro jogado fora! Elias! Ninguém está comprando imóvel! Sem um parque industrial coerente com o tamanho da cidade, com uma economia fortemente concentrada apenas em torno de algumas usinas de açúcar, a situação em Alagoas é muito grave. Não ha como continuar mantendo o escritório de publicidade. Além do mais, ele havia cometido um grave erro estratégico operacional na agência de propaganda. E só agora se dá conta disso. Com os constantes e seguidos lançamentos imobiliários em período recente, ele dera-se ao luxo de permitir que um só cliente, no caso a Márcio Raposo Imóveis, representasse 60% do faturamento bruto da agência. Outros 20% estão com a Cofal, com suas duas lojas de material de construção, e os 20% restantes divididos entre outros três clientes pequenos. Com a brusca crise que se abateu sobre o mercado imobiliário ele perde 60% em seu fluxo de caixa. A cofal, seu segundo maior cliente, vende material de construção. Também é afetada diretamente. E para não quebrar, fecha uma das suas lojas. Também cancela os investimentos publicitários. 465 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Com os 20% restantes, não dá para manter o escritório. Não ha novos clientes. Francisco decide fechar o escritório. Já ha espaço em seu apartamento. O quarto que era das meninas ele transforma em seu escritório. Mas não ha muito que fazer. Por fim, em momento extremo da crise financeira, ele vai se valer da experiência adquirida trabalhando com resina de poliéster na fabricação do avião. Vai fabricar chaveiros finos, feitos em peças de resina acrílica transparente. Por algum tempo consegue alguns pedidos. E vai se mantendo, Deus sabe como. Ramatís agora já trabalha também. Estuda e trabalha. Sandra resolve por em prática um projeto seu antigo. E monta seu salão de beleza. O casamento está vivendo mais um período terrível de descontentamento. Ela não gosta da confecção dos chaveiros em casa. Mesmo com a porta do quarto fechada o odor da resina invade a casa. Isso lhe parece muito desconfortável. - Não dá para você alugar um ponto e fazer esses chaveiros lá? Indaga ela em momento crítico. - Não dá Sandra! Não tenho pedidos constantes que possam garantir o pagamento de um aluguel! Mas Sandra não se conforma. Está empenhada em dificultar mais ainda as coisas. Ambos já estão corporalmente separados. Francisco já dorme em quarto separado, no seu escritório. Trabalhando até tarde da noite às vezes. Perdeu-se totalmente o vínculo entre esses dois caminhantes do tempo. - Porque você não vai embora para Recife? Vai tentar alguma coisa! Você conhece tanta gente lá! - Sugere ela. Empolgada com o 466 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias vislumbre de definitivamente se libertar de um casamento que, inconfessadamente não teria se dado por amor verdadeiro. Mas por instinto de preservação. Sandra parece decidida a apressar as coisas. A separação deles é questão de dias. Ou talvez de oportunidade. Ramatís continua em casa, assistindo quase diariamente o transtorno vivido por seus pais. Ele até chora às vezes. É um rapaz sensível. Sente por nada poder fazer pelos pais nessa situação. Mas reconhece que o melhor para eles é a separação definitiva. Já conhece esse filme de longas datas. Foram muitos anos de desencontros e discussões estéreis entre eles. É um caso sem solução. O quadro é lamentável, principalmente do ponto de vista emocional. Porém ninguém nunca estará definitivamente só. Esses próximos dias vão ter surpresas, mas de forma diferente. Um dos clientes de Francisco que vez ou outra ainda o procura para realizar algum trabalho é o Pedro Camêlo, proprietário de uma construtora. Pedro é uma pessoa muito simples. Embora altamente realizado. Suas origens também são paupérrimas. Certa vez ele contou a Francisco como começou a sua vida vindo do interior, filho de família muito pobre. Com muito esforço se formara em engenharia civil. Atualmente tem uma construtora, com alguns empreendimentos imobiliários em Maceió. Mas não é só isso. Ele tem também duas fazendas de engorda de gado para corte. Tem dois filhos. Ou melhor, tinha. Um rapaz de apenas dezesseis anos e uma moça de quinze. Já havia falado do rapaz. Sempre o fazia com muito orgulho. Afirmava que o rapaz, além dos estudos já dirigia uma das fazendas. Falava dele com a certeza de que seria o continuador de sua obra empresarial. Para quem começou do zero, Pedro Camêlo pode-se dizer, tem um pequeno império. 467 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias M as esta noite, sob uma garoa fina e persistente que cai sobre toda Maceió, sua fortaleza parece desmoronar. Ele está ao telefone em estado de choque emocional. - Elias! - Pedro Camêlo está em soluços. - Eu tenho uma notícia muito triste para lhe dar!... - Ele fala com dificuldade. - Meu filho morreu! Elias! Meu filho morreu!... Uma perplexidade. - Pedrinho! Acalme-se! O que foi que houve? - Um triste acidente de carro Elias! Ele vinha do condomínio Aldebaran onde foi pegar um amiguinho dele! Faz só umas duas horas! Morreram todos dois! Ai! Meu Deus! Me dê forças para suportar isso! - Tenha calma Pedrinho. Tenha calma! - Eu... Queria que você... Fizesse contato com o jornal! Eu não tenho cabeça para fazer isso! Precisamos... Botar uma nota no jornal para o sepultamento amanhã!... - Está certo Pedrinho! Fique tranqüilo! Eu vou providenciar tudo! Vou providenciar tudo agora mesmo! Esse choque está sendo terrível para aquele homem. Amava aquele filho com muita intensidade. Dizia que ele embora tivesse apenas dezesseis anos agia como um adulto, extremamente responsável. Só dava alegria aos seus pais. E acrescentava doloridamente ao telefone: - Como Deus pode fazer uma coisa dessas comigo Elias! Como pode! - Pedro Camêlo encontra-se sob tremendo choque emocional. Quase blasfema. Esse não seria o momento para lhe dizer coisas mais profundas. Francisco imagina que vai ter oportunidade depois, de conversar com ele, saber que tipo de religião ele tinha, se era possível buscar conforto nela. Por enquanto, o melhor era deixá-lo desabafar. No dia seguinte foi feito o sepultamento sob profunda carga emocional de toda a família. Francisco resolveu não comparecer. Achou que sua presença poderia emocionar Pedro ainda mais. 468 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Ele fora a primeira pessoa fora da família a tomar conhecimento do fato. É um fim de semana. O acidente ocorreu no sábado pouco depois das 18h00. Passados três dias após o sepultamento do rapaz, Francisco vai visitar Pedro Camêlo. Ai ele teve ocasião de saber mais detalhes do acidente. Desde quando entrou no escritório do amigo e durante todo o tempo de sua conversa com ele, Pedrinho não para de chorar e se lamentar. Como é triste ver aquele homem totalmente destroçado daquela maneira. - Minha vida acabou Elias! Acabou! - Como foi o acidente? - Ele vinha dirigindo o carro! Chovia um pouco e na entrada do retorno da Fernandes Lima, entrando para a esquerda para o Hiperbompreço eles se chocaram com a traseira de uma caçamba! Morreram os dois na hora Elias! Meu filho se foi! Sem ao menos eu poder me despedir dele!!! Que sofrimento Elias! Eu adorava ele Elias! Meu filho era um homem de verdade! Como Deus deixa uma coisa dessas acontecer? Era a deixa que Francisco aguardava. - Pedrinho! Qual é a sua religião? - Não sou praticante de nenhuma religião Elias! Minha família sempre foi católica. Mas eu mesmo passei tanto tempo lutando pela vida que não me dediquei a nenhuma religião. - Você acredita em Deus? - Sim Elias! Mas nessa hora eu lhe confesso que quero desacreditar! - Diz ele com profunda tristeza e continua chorando com os braços apoiados na sua mesa de granito. Sua imagem se reflete no brilho do granito. É uma cena triste de ver. - Eu estou pensando em parar tudo Elias! Parar com tudo! Minha vida não tem mais sentido! - Não faça isso Pedrinho! Deus existe! Eu posso lhe assegurar! 469 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Nada é por acaso! Certamente chegou a hora do seu filho! Pense bem! Sendo a pessoa tão competente que você confirma que ele era, como se sentirá ele agora sabendo que você pretende parar com todas as suas atividades? Certamente ele lhe diria: Não papai! Continue! Em memória dele, acho que você deve continuar! Essas palavras provocam algum conforto espiritual nele. Ha vários empreendimentos em andamento. Tanto na construtora como em suas fazendas. Ele precisava se equilibrar. Ha muitas responsabilidades envolvidas nas empresas. O raciocínio de que talvez o filho não desejasse que ele parasse com tudo modifica sua estrutura mental nesse momento. É o que parece. Minutos depois, com ele já calmo, Francisco se retira, com uma recomendação final: - Em sua casa certamente ha uma bíblia! Todos os dias, no melhor momento em que se lembre dele, abra a bíblica e leia o conteúdo. Qualquer página! E ofereça a Deus! Pedindo que lhe dê calma e serenidade para continuar com sua vida! Faça isso! Seu filho certamente vai amá-lo ainda mais vendo suas tentativas de serenar seu espírito. - Eu imagino como é dolorido para você! Mas faça isso! Deve lhe fazer algum bem. E a seu filho também! Semanas depois, mais de dois meses, Pedro Camêlo telefona para Francisco pedindo para passar no escritório. Tem um trabalho a mandar para o jornal. Isso é um bom sinal. Significa que ele continua tocando suas empresas. Os prédios em construção precisam ser concluídos. É uma responsabilidade muito grande da construtora, que quase sempre, vende seus apartamentos ainda na planta. Ha muita credibilidade em torno do nome Construtora Camêlo. 470 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias M inutos depois Francisco já está chegando ao seu escritório. Como sempre, cumprimenta o amigo com palavras de otimismo. Que o projeto de trabalho com a Amway não tenha dado certo, tudo bem! Mas Francisco absorveu uma bagagem excepcional com os treinamentos em Neurolinguística. E a habilidade de lidar com pessoas é fundamental nesses estudos. Ao recebê-lo em seu escritório mais de dois meses depois, Pedro Camêlo ainda chora a ausência do filho. Cumprimenta Francisco sob lágrimas. Logo que se recompõe, ele passa as informações para a confecção do anúncio de jornal. Enquanto tomam um cafezinho. Ao final do encontro ele pergunta: - Elias você viu o programa Fantástico da Rede Globo ontem? - Vi um pouco Pedrinho. Não todo! Mas vi algumas partes! - Você viu a reportagem que saiu com aquele médium Chico Xavier? - Vi Pedrinho! Nessa hora eu parei o computador e assisti tudo! - Ah! Elias! Como eu me sinto infeliz! E narra sob forte emoção o que vira na TV, enquanto chora desconsoladamente. É triste ver um pai chorar, sofrendo tanto daquele jeito.Acena afeta profundamente Francisco. - Eu vi aquelas pessoas lá... Recebendo comunicações de seus entes queridos Elias! E me senti muito infeliz! Eu não tenho a felicidade de merecer que meu filho faça uma comunicação comigo!... - Enquanto ele fala Francisco vai pensando... Por fim lhe diz: - Pedrinho! Eu não posso lhe garantir nada! Mas ha uma pessoa de Minas Gerais, um amigo meu, contador da Santa Casa aqui em Maceió! Ele é espírita! Quem sabe, sendo de Minas, ele possa nos dar alguma informação de como se chegar a uma reunião daquelas com Chico Xavier. Assim que eu tiver uma informação eu faço contato com você! - Está certo Elias! Eu lhe fico muito agradecido! Mas não tenho 471 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias esperanças de merecer um contato de meu filho! - Não perca as esperanças! Para Deus tudo é possível! Diz Francisco retirando-se. Vai pensantivo: Meu Deus! Como a morte desse rapaz chocou o Pedrinho! Ainda hoje, mais de dois meses após, ele continua chorando a morte desse filho!... Que coisa terrível havia acontecido com ele. Uma semana depois, no seu dia-a-dia, tentando driblar as suas dificuldades financeiras, Francisco ainda não fez contato com o amigo da Santa Casa. Vez por outra lembra do que havia prometido a Pedrinho, mas sua cabeça também está em meio parafuso. Alguém está lhe chamando ao telefone. É o Reis, um amigo seu proprietário de uma produtora de vídeo. - Elias! - Diz aí Reis! - Eu peguei um trabalho grande! É um documentário para o grupo Carlos Lyra. E queria saber se você pode dirigir esse vídeo? - Lógico! Claro que posso! Acertam tudo e iniciam as filmagens nas empresas do grupo em Alagoas. Mais uma semana e eles estão viajando agora até Uberaba. É lá que se concentram as principais empresas de agropecuária do país. O Grupo Carlos Lyra também já tem os pés lá. Uma agropecuária e uma moderna usina de açúcar. Ao total são cinco empresas do grupo. Duas usinas de açúcar e uma agropecuária em Alagoas e essas duas em Uberaba. Além de uma empresa de táxi aéreo também emAlagoas. Precisam filmar as empresas de lá. Nos escritórios da matriz em Maceió informaram que haveria alguém no aeroporto de Uberaba aguardando pela equipe de filmagem. Francisco, um câmera e o próprio Reis. 472 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias D esembarcando em Uberaba eles logo vêem um senhor com um papel na mão escrito VIDEOHOUSE. É a empresa do Reis. O moço é um motorista de táxi freqüentemente contratado pelos escritórios do grupo Carlos Lyra em Uberaba para pegar pessoas no aeroporto. O táxi se dirige para um hotel na cidade onde a equipe pernoitará. - Amanhã de manhã eu vou pegar vocês e levar lá na usina! - Explica o motorista. Um senhor muito simpático. Eles estão indo por uma longa avenida em direção ao centro da cidade. Ao pararem em um cruzamento aguardando o sinal, o motorista aponta para a direita e diz: - Vejam aquela casa azul lá naquela esquina! Ali é o centro espírita de Chico Xavier! Quando ele falou Chico Xavier disparou um despertador na mente de Francisco. Repentinamente ele lembra-se do amigo Pedro Camêlo. - Interessante! Há um amigo meu em Maceió precisando muito de fazer um contato com Chico Xavier! - E conta o episódio triste que envolveu o amigo com a morte de seu filho. O motorista de táxi retira então do bolso um cartão e lhe entrega dizendo: Olha! Eu não sou espírita! Sou católico. Mas tenho ajudado a muita gente que vem aqui precisando assistir uma dessas reuniões de Chico Xavier! Entregue esse cartão a seu amigo e diga a ele que ligue para mim! - Terei muito prazer em ajudar ele! O moço, de uns quarenta e cinco anos, parece ser uma pessoa muito serena. E responsável. Francisco lhe agradece pela gentileza dizendo: - Você não tem idéia do quanto meu amigo vai se sentir bem recebendo seu cartão. Fique aguardando! A primeira coisa que 473 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias farei ao retornar à Maceió será entregar a ele o seu cartão! Vai ser um grande presente para ele! Coincidência?Acaso? Uma ova! Pensa Francisco. Tem alguém mexendo os “pauzinhos” lá do outro lado! Está muito contente de poder levar esse verdadeiro presente para o amigo Pedro Camêlo. Dormem no hotel e no dia seguinte são levados à usina. O trabalho em Uberaba levará dois dias. Sexta-feira eles já estão de volta via São Paulo. Lá Francisco fica, enquanto o resto da equipe retorna à Maceió. Ele vai se hospedar com a irmã Malvina, que mora agora no Bom Retiro em São Paulo. Aproveita para desabafar com ela sobre sua separação eminente. Foi bom poder conversar com a irmã depois de tanto tempo. Ha anos que não se viam. Na segunda-feira Francisco está de volta em Maceió. Ansioso para fazer contato com o amigo Pedro Camêlo. Liga para o escritório e fala com a secretária. - O Pedrinho está aí? - Está sim! Espere ai que eu já passo pra ele! - Não! Por favor! É uma surpresa que eu tenho pra ele! Sabe se ele vai sair? - Não! Hoje Não! Tem muita coisa para ele assinar aqui no escritório! Sabe como é! Segunda-feira! A semana começando... Geralmente hoje o expediente dele é interno aqui no escritório. Só amanhã que ele sai por ai visitando as obras. - Está bem! Daqui ha pouco estarei por ai! Não diga nada a ele! Asecretária, que é irmã de Pedro está curiosa: - Deve ser uma surpresa boa! Pelo jeito que você fala... - A melhor que ele vai receber em toda a sua vida! - Eu já estou cheia de curiosidade para saber o que é! 474 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Diz ela, esboçando um sorriso ao telefone. - Chego já! Em quinze minutos Francisco chega ao escritório da construtora. A secretária imediatamente lhe anuncia. Pedro Camêlo o recebe imediatamente, imaginando que ele esteja trazendo alguma informação do contador da Santa Casa. - Olá Pedrinho! Como está? Espero que você tenha um coração bem forte! Porque o que trago pra você é algo que vai lhe emocionar muito! - Que bom Elias! - Pedrinho ainda fala expressando certa tristeza na voz. A perda do filho lhe deixou marcas muito profundas. Por mais que se esforce não consegue ser outra pessoa. Só consegue transpirar sua profunda tristeza. - Aníme-se! Homem! Deus gosta de pessoas otimistas! Não lhe disse que Deus existe? Ele parece gostar de você! - O que é que você tem pra mim Elias! - Pedrinho já se mostra bem curioso. - Quer saber onde eu estive esta semana a trabalho? - Onde Elias? - Pedro tem uma fala bem mansa. E agora com a tristeza da morte do filho... Mais ainda. - Em Uberaba! Pedrinho! - Uberaba Elias! Essa não é a cidade de Chico Xavier? - Exatamente! - E o que você foi fazer lá? - Filmar um documentário para o grupo Carlos Lyra! Foi de repente! Na verdade eu só me dei conta, quando já estava lá! - E conta a conversa que teve com o motorista de táxi. - Ele me entregou esse cartão para lhe trazer! - Disse para você fazer contato que ele vai desenrolar isso pra você. Vai agendar o dia que você deverá estar lá para a reunião, tudo direitinho! 475 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias O s olhos de Pedrinho parecem se encher de uma nova alegria. Pela primeira vez, depois de todo esse tempo após a morte do filho Francisco o vê com um leve sorriso nos lábios. Quem sabe, ele já está começando a acreditar que Deus realmente exista. - Mas que coincidência! Hein Elias! - Não é coincidência Pedrinho! Coincidências não existem! Existem conseqüências! Em muitos casos engendradas pela mão de Deus. Sempre na razão direta do merecimento de uma pessoa. Você tem esse merecimento! Deus está falando com você através desse cartão! Está em suas mãos! Agora é com você! Lhe dou mais uma orientação: Não fique divagando... pensando... no que é e no que não é possível não! Para Deus tudo é possível! Apenas transmita a sua esposa com alegria isso! Deixe as coisas acontecerem! Agradeça a Deus estar merecendo essa oportunidade. Amanhã... quem pode saber? Não demorou muito. Menos de um mês depois, Pedro Camêlo liga para o amigo: - Elias! Viajo para Uberaba nesta quinta-feira! Está tudo agendado! O moço do táxi resolveu tudo. Vamos participar de uma das reuniões de Chico Xavier este sábado à tarde. Eu vou de caminhonete! Minha esposa não gosta de avião! Vamos com nosso motorista! A viagem vai ser boa! Pedro Camêlo tem uma cabine dupla com a qual se locomove entre as obras em construção e as fazendas. Com o motorista dirigindo vai se tranqüila a viagem. - Assim que chegar de volta ligue pra mim! Quero saber como foi! Diz Francisco. - Não tenha dúvida! Assim que chegar avisarei você! Chega o fim de semana. Francisco pensa no amigo algumas vezes. O que estará acontecendo com eles!... 476 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias E xatamente no sábado à tarde, quando ocorrem as reuniões de Chico Xavier, ele está pensando em Pedro e na esposa. Mas como é de seu costume, não se preocupa com isso. Está tudo nas mãos de Deus. Se ele está levando Pedro Camelo até Uberaba, porque não lhe daria o que ele mais deseja? Segunda-feira seguinte Pedro Camêlo já está de volta em Maceió. Logo no início do expediente liga para Francisco. - Elias! Pode passar aqui no escritório? - Agora mesmo Pedrinho! Chego já ai! Entrando no escritório dele já deu para sentir algo diferente no ar. Pedro Camêlo está segurando fortemente a sua mão. Ha uma folha de papel sobre a mesa. Pretende agradecer ao amigo aquela oportunidade, mas as lágrimas não deixam. Lágrimas agora muito serenas, sem sinal de sofrimento. Quando consegue falar ele diz: - Elias! Eu recebi uma mensagem de meu filho! Elias! Eu estou muito feliz! Eu e minha esposa! Somos as pessoas mais felizes do mundo! Deus existe mesmo! Elias! Leia este papel! - Pedro tem os olhos rasos d’agua. Mas dessa vez parece ser lágrimas de contentamento, de gratidão. Francisco por sua vez também está fortemente emocionado. Ha uma energia extraordinária ali entre eles. Francisco já está acostumado a essas emoções espirituais. O que está se passando ali é muito forte. Na folha de papel ha uma mensagem escrita à caneta esferográfica. O texto é simples e maravilhoso ao mesmo tempo. O espírito do filho se identifica e diz entre outras coisas, para não se preocuparem. Ele está sendo muito bem assistido lá onde se encontra. Pede para não julgarem mal o motorista da caçamba. Ele não teve culpa. 477 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias É que alguns familiares de Pedro estavam sugerindo abrir um processo contra a empresa dona da caçamba, pois no laudo pericial havia a possibilidade de o motorista ser o culpado do acidente. Até isso o filho dele esclareceu a fim de que não fizessem qualquer injustiça. Pedro explica tudo sobre a reunião. Informa que ao chegarem ao centro espírita até se assustaram com tanta gente que havia para fazer contato com Chico Xavier. Cerca de dez ônibus dos mais diferentes lugares do Brasil estavam parados ali. Areunião em que participariam seria às 16h00. O senhor do táxi foi maravilhoso. Tudo correu conforme o previsto. Ao entrarem no recinto da reunião, um grande salão com cerca de quatrocentas cadeiras, conta ele, foram instruídos para sentarem numa das filas de cadeiras bem pelo meio. Todo o tempo em que ocorreu a reunião ele e a esposa estiveram orando, conforme as instruções recebidas na entrada. Todas aquelas pessoas oravam em silêncio. Lá na frente, uma mesa comprida, com o médium Chico Xavier ao centro e algumas pessoas ao seu redor, prestando ajuda. O texto que ele psicografa é muito ilegível para uma pessoa comum poder ler. Uma mulher, ao seu lado, vai recebendo os papeis e passando a limpo as mensagens. Ele informa que é um momento extraordinário aquele. Em que todos ali esperam pela graça de uma mensagem do além. - Elias! Foi incrível! - Continua narrando ele emocionado. - Nessa reunião para cerca de quatrocentas pessoas, só aconteceram seis comunicações espirituais! - Outra vez ele enche os olhos de lágrima. - E a do nosso filho foi uma delas! Essa ai! 478 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Repare essa expressão carinhosa que ele usou falando para a mãe dele! Elias! Só ele tratava a mãe com esse apelido carinhoso! Ninguém mais ali sabia disso! Só nos dois e ele! Ele esteve lá conosco Elias! Esteve lá! O momento é muito forte. Francisco também tem lágrimas nos olhos. E abraça o amigo cumprimentando-o: - Fico muito feliz por você meu amigo! Fico feliz e agradeço a Deus por ter me usado como instrumento para Sua bondade e misericórdia! Depois de alguns minutos Francisco vai embora. Leva consigo uma sensação maravilhosa no coração muito leve. Sentido uma energia irradiada com a sabedoria de Deus. Sua intuição lhe dizia que naquele momento o jovem filho de Pedro Camêlo provavelmente também esteve ali com eles. Que maravilhoso! É o poder de Deus! Certamente que agiu ali pelas mãos de seus espíritos iluminados, Bem-feitores espirituais, cujo trabalho é levar um pouco de conforto aos que estão em sofrimento e que clamam pela bondade do Pai. Esse é mais um capítulo definitivamente escrito em sua alma para nunca mais esquecer. Algo grandioso havia acontecido. O testemunho da existência de Deus está como uma comprovação para Pedro Camêlo e sua família. Independente da religião que queiram praticar. A primeira vez que teve a idéia de escrever um livro de memórias, as suas memórias, um dos capítulos que logo lhe veio à mente foi esse episódio com o amigo Pedro Camêlo. A providência divina sabe todos os caminhos. 479 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias A sugestão de Sandra lhe ficara na cabeça. Ir embora de volta para Recife. Até que seria uma boa, se houvesse como. Francisco já absorveu a idéia luminosa de agradecer a Deus até mesmo os momentos de sofrimento. Pois sabe que é com eles que seu espírito vai progredindo. Consciente de que o Pai não nos dá nenhum fardo tão pesado que não possamos carregar. Faz parte da naturea humana experimentar em sofrimento para poder se elevar. Exemplo melhor como o do próprio Cristo, não há. Na cruz Ele deixou expressa a mensagem: preparem-se para sofrer! Esse é o único caminho para a elevação de cada um! Consciente dessas cousas Francisco se mostra pesaroso sempre que encontra alguém completamente ignorante das Leis espirituais, proferindo blasfêmias sobre o que acontece com os seres humanos. Não faz muito tempo, enquanto escreve estas páginas, ele ouve comentários muito dolorosos sobre o efeito do Tsunami, um furacão que atingiu um país bem pobre da Ásia provocando a morte de milhares de pessoas, entre adultos, velhos e crianças. Onde está Deus que permite uma coisa dessas? Bradam os materialistas, ignorantes desconhecedores das Leis de Expiação. Leis de carma coletivo. Precisariam se inteirar melhor lendo obras espiritualistas. Pois negam a si mesmos o direito de evoluir. De conhecer algo sobre os instrumentos da Natureza, usados em conformidade com as Leis de Deus. Pessoas que ainda não se acostumaram ao cenário infalível da morte. E que por isso transpiram sua desfaçatez em pensamentos endurecidos, que nada contribuem para sua elevação espiritual. Estão assinando seu próprio atestado de sofrimento. Pois é a dor que 480 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias nos ensina! Quando? Em qualquer tempo! A eternidade não tem pressa. E lá, o tempo não parece ser igual ao que vivemos na terra. Sujeito aos mesmos princípios de existencialidade. Embora já saibamos que são inúmeras as dimensões, e que em cada uma delas certamente ha vida. Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Quando? Porquê? A maioria não parece interessada nessas respostas. Enquanto isso blasfemam, desejosas de dirigir o mundo conforme a sua vontade. E ter Deus como se fosse seu empregado. Ha delas que nem sabem pedir. Que nem acreditam na divindade. Muito menos agradecer. Essas? São as que menos têm a dar. Pois ninguém pode dar o que não tem em si mesmo. Mas o Pai sempre ouve a todos. Pedi e EU vos darei! Assim está escrito. É fácil saber se alguém está no rol dos ignorantes. Basta perguntar-lhe se tem medo da morte. Quem teme a morte não sabe nada do que estamos discutindo. Mas este não é um livro doutrinário ou teosófico. Ha outras coisas com que nos preocuparmos agora. A irmã Marina reside em Recife. Ele vê uma possibilidade. Pelo menos teria onde ficar. Mas e trabalho? Tem um reconhecimento muito grande por Recife, que o acolheu e o profissionalizou. Mas os tempos são outros. Dezesseis anos se passou desde que se transferiu paraAlagoas. Os espaços profissionais já não são os mesmos. As pessoas já são outras nos postos de comando em seu mercado de trabalho. Mas ha uma! Um velho amigo dos tempos da Interfilmes. O Zezé. Proprietário de um estúdio de gravação de áudio em Recife. O Studio Z. Qualquer dia vai lhe fazer uma visita. Sondar o mercado. Quem sabe ele possa pelo menos lhe dar alguma orientação. Fazer uma 481 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias indicação. Apontar um caminho. Quem sabe, Deus poderá agir através dele. Não é assim que ELE se comunica conosco. Sua linguagem vem sempre em forma de resultados. Não tem verbalização direta. O dialeto de Deus é a forma. O conteúdo. Assim ELE parece se expressar a todos nós. Nem parece gostar de compromisso com hora marcada. Pelo menos na forma como compreendemos. As coisas sempre acontecem de maneira mais ou menos inesperada para nós. O relógio do Criador parece não ter nada haver com os nossos ponteiros. Portanto, o melhor talvez, seja entregarmos a ELE nosso pedido e esquecermos um pouco. Em caso de merecimento o resultado sempre virá. Então, um novo “acaso” entra em cena. Todas as tardinhas Francisco vai dar sua caminhada pelo calçadão da praia em Maceió. Volta para casa, distante oitocentos metros da praia, por volta das 18h00. Quase sempre Sandra ainda está no salão de beleza ali perto na mesma avenida Jatiúca, onde moram, no apartamento que ele comprara alguns anos antes. A caminhada pela praia dá lugar a muitos devaneios. Francisco está sempre só em suas caminhadas. Ele e seus pensamentos. Tem conversado muito com Deus nessas caminhadas. Fala de sua vida, de como deseja que Deus lhe mostre novos horizontes. Ele tem muita fé. Confessa em suas conversas com ELE, compreender que se ainda não lhe surgiu uma possibilidade de mudança significativa em sua vida é porque ainda não está merecedor. Confessa, confia e espera. Que seu merecimento possa ser apressado. Gostaria muito de ir embora de volta para Recife. Mas está inseguro. Como fazer isso? Está cada vez mais convencido de que uma visita ao amigo Zezé seria a solução mais viável. Já está planejando mentalmente a viagem. E continua pedindo que Deus 482 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias esteja com ele. Que tudo possa se amainar em sua vida. Pede também pela tranqüilidade dos filhos. E até de Sandra também. Que ao sair de sua vida ela possa conduzir a sua em perfeito equilíbrio. São quase dezoito horas quando está chegando de volta ao apartamento. Acaba de entrar. Mas antes de ir tomar banho, fica um pouco na varanda para relaxar o corpo suado. Ele vê a imagem colorida muito bonita do entardecer sobre Maceió. O céu tingido de um vermelho intenso. O sol já se foi. Deixando atrás de si apenas aquela linha avermelhada no horizonte. O telefone está tocando! Ele vai atender. - Alô! - É da residência de Francisco Elias? - Pergunta uma voz feminina muito simpática. - É! Sim! Quem é? - Ele está? - Insiste a voz. - É ele quem está falando! - Oi! Elias! Que bom! É Verinha! - Verinha! Que Verinha? - Em tantos anos passados não lhe está sendo fácil identificar a voz dessa Verinha. - Verinha! Cunhada de Fernando Freitas! Irmã de Lurdinha! A cortina cai repentinamente na mente de Francisco. Em fração de segundos ele viaja no tempo até aqueles idos de 1972-73, quando conhecera a jovem Verinha, irmã de Lurdinha, noiva do jovem cadete daAeronáutica, Mário. Alembrança veio imediata! - Oi Verinha! Mas que surpresa! Como vai você? - Francisco está pensando que Verinha está falando de São Paulo. A última vez que a viu foi em seu apartamento nas proximidades do Aeroporto de Congonhas, onde residia com o esposo, então piloto da Vasp. Ai já em 1975-76. Naquela viagem com Fernando e Lurdinha à Curitiba, 483 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias eles passaram rapidamente por lá. - Eu estou em Recife Elias! Já faz algum tempo que eu moro aqui! - E o Mário? - Ah! Elias! Eu estou separada do Mário já faz mais de um ano. Vim para Recife para perto da minha família precisando de um tratamento de saúde. Mas me fale de você! - Que coincidência Verinha! Eu também estou me separando da Sandra! Não vai demorar muito. Eu já estou até pensando em voltar a morar em Recife! - Ah! Que pena! Elias! Mas a vida é assim mesmo! Essas coisas acontecem! E como é que você está? Verinha já tinha experiência com o trauma da separação. Sua abordagem sobre o estado emocional do amigo faz sentido. Ela já passou na pele a mesma situação. Naquele momento ela não poderia avaliar quanto está sendo importante esse seu contato. É tudo que Francisco precisa nesse momento. Uma palavra amiga. Alguém que se interessasse por suas emoções. Eles conversam bastante ao telefone e prometem novos contatos seguintes para continuar o papo. Esse contato com Verinha está fazendo um bem enorme a Francisco. Uma curiosidade já lhe assalta a mente: isso não é coincidência! Como pode ser! Ela ligar exato agora, que ele está precisando tanto de um papo amigo! Vai tentar esclarecer isso melhor no contato com ela no dia seguinte. Outra vez Francisco está fazendo sua caminhada. Aproveita e liga para Verinha. - Oi Verinha! É Elias! - Que Ótimo! Como está? - Na minha caminhada diária! Verinha eu queria saber... 484 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Como você me contatou? Como conseguiu meu telefone? - Eu perguntei a Fernando se ele tinha seu telefone, então ele me deu! - Sim, mas porquê você se lembrou de ligar para mim? - Não sei Elias! Me deu uma vontade muito grande de ligar para você! Foi isso! Não sei explicar!... Como não tinha o seu telefone!... Pedi a Fernando! Fiz errado? - Não Verinha! Muito pelo contrário! Você não tem idéia do bem que me fez o seu telefonema! Quem sabe um dia a gente possa conversar mais sobre isso. Acho incrível, que depois de tantos anos sem nos ver, sem nos falar, você de repente tenha tido necessidade de falar comigo! Isso que eu gostaria de entender melhor! - Você vem a Recife quando? - Acho que vou na próxima semana! - Pois então! Faça contato! Seria muito bom a gente conversar!... O papo dos dois vai longe. Nos dias seguintes eles continuam se falando ao telefone. Francisco continua muito intrigado com aquela “coincidência” do telefonema dela. Será que... Melhor esclarecer isso depois. Logo no início da semana seguinte ele liga para Fernando informando que vai a Recife fazer um contato com o Zezé e aproveita para informar os contatos que está mantendo com Verinha, confirmando que foi ele mesmo quem deu a ela o seu telefone. - Elias! Tem uma coisa que eu quero lhe explicar! - Verinha não está bem! Inclusive ela foi internada hoje de manhã! Essa notícia desnorteia Francisco. - Como assim Fernando? Ela me pareceu tão bem ao telefone!... 485 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Pois é! Mas ela está passando por um momento difícil. Ela está recebendo tratamento numa clínica de psiquiatria. Esta é uma notícia bem constrangedora para Francisco. Ele não sentira nada de anormal nos telefonemas de Verinha. Como podia ser isso? Fernando lhe informa o nome da clínica em que ela está internada, sob efeito de medicação controlada, e tudo mais. Francisco está muito surpreso com tudo aquilo. Nem quer acreditar no que acaba de ouvir. Pensa muitas coisas. Será que Fernando estaria tentando dificultar algum relacionamento dele com Verinha? O que estaria havendo realmente? Muitas indagações. De qualquer forma já planejara a viagem a Recife e informa a Fernando que está indo dois dias depois. Vai ter oportunidade de esclarecer todas as suas dúvidas conversando com ele e Lurdinha. Já em Recife faz uma visita aos dois. Eles confirmam a internação de Verinha. Dão mais detalhes sobre o problema de saúde dela, agravado após a separação. Foi por isso que ela veio para Recife. Dizem eles.Após a separação a saúde dela se agravara. - Mas ela já vinha tendo problemas de desequilíbrio emocional antes da separação? - Francisco deseja saber mais detalhes. - O afastamento dela de junto da família foi exigida pelo Mário exatamente por isso! Segundo ele, não havia mais condições de ela permanecer com a família. Estava precisando de cuidados médicos. - Explica Fernando. Pelo menos é essa a versão que eles sabem vinda do próprio Mário. Os seus filhos, uma mocinha e um rapaz ainda na puberdade, ficaram em São Paulo na companhia do pai. 486 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias P ela versão do Mário, o caso da Verinha não tinha retorno. O casamento deles, portanto, estava realmente desfeito. Fernando explica que esse já é o segundo caso de internamento dela desde que voltou para Recife. Lurdinha se mostra muito preocupada com a saúde da irmã. Sabendo o endereço da clínica onde ela está internada, no dia seguinte Francisco acompanhado de Bosco, esposo da sua irmã Marina, vai à clínica levar um buquê de flores para Verinha. Deseja externar seus préstimos para que ela se restabeleça logo. Na clínica informam que ela está sob ação de sedativos e não pode receber visitas. Assim ele deixa o buquê de flores para ser entregue a ela. Ha um cartão. E nele Francisco transmite sua mensagem de otimismo para Verinha. No sábado Francisco encontra-se com o amigo Zezé no Studio Z. Conversam sobre as condições do mercado para o locutor Elias. Zezé explica que muita coisa mudou. O mercado se modificou radicalmente. As possibilidades são muito escassas. Estão conversando quando chega a visita de uma pessoa que Zezé já aguardava para uma reunião aquela manhã. É o Edvaldo Morais, um radialista ex-companheiro de Francisco nos tempos da Rádio Jornal do Commercio. Que vai ao estúdio fechar uma negociação com Zezé para produzir lá os programas de rádio da campanha política do PMDB e os partidos alinhados, para a primeira eleição do Governador Jarbas Vasconcelos. - Olá Francisco Elias! Quanto Tempo! Você ainda está em Maceió? Todos os companheiros daqueles tempos sabem que Francisco Elias mudou-se para Alagoas. Elias dá todas as informações de sua vida profissional em Maceió e agora, de sua pretensão em voltar para Recife. O Edvaldo tem uma idéia: - Elias você poderia participar do nosso grupo de trabalho nessa 487 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias campanha? Lembra daquela dupla de noticiaristas que você fazia com o Fernando na Rádio Jornal? Edvaldo deseja utilizar os dois locutores para narrar os programas de rádio da campanha política, no mesmo estilo dinâmico que eles usavam no noticiário do rádio naquele tempo. Segundo ele, um estilo que ninguém havia conseguido repetir, depois deles. O Fernando Freitas já estava sendo sondado também para participar da campanha e o acerto foi fechado imediatamente com Francisco também. Ali mesmo no Studio Z. A produção da campanha começaria uma semana depois. Seriam três meses de trabalho, em regime full time. Só o tempo de Francisco voltar a Maceió e providenciar sua mudança para Recife. Francisco conversa com a irmã Marina, que já estivera em Maceió acompanhada de Bosco, tentando ver se era possível que Sandra reconsiderasse a decisão da separação. Já que fora dela a iniciativa de pedir a separação. - Marina você poderia me acolher aqui se eu precisar passar uns tempos em Recife? - Marina recebe o irmão com todo gosto. O tempo está dando oportunidade de ressarcimento. Ha tempos, foi Francisco que a acolheu em Recife no começo de sua vida. Agora é ela que o recebe. Francisco informa sobre o trabalho na campanha política e sua viagem a Maceió para fazer a mudança. Coincidência? Acaso? O que é isso? Pensa ele na viagem de volta a Maceió. O fato é que, da noite para o dia, estão acontecendo mudanças significativas na sua vida. A “helicoidal” que se mantinha em baixa ha bastante tempo, agora está de novo se movendo para cima. O amigo Zezé também está interessado na permanência de Francisco na gravadora, após descobrir que ele domina bem o 488 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias trabalho em computadores. Existem alguns na gravadora. Mas o Zezé não manja nada de informática. A assessoria de Elias será importante para botar o Studio Z na era da informática. Francisco está de volta em casa informando a Sandra que vai embora para Recife. - E nossas coisas como vão ficar? - Sandra está apreensiva em relação a isso. Ha apenas o apartamento conseguido com um financiamento da Caixa Econômica, um automóvel Monza já bastante usado e duas linhas telefônicas, que nesse tempo é um bom patrimônio. - Sandra! Você viveu comigo trinta anos, mas não me conhece! Não se preocupe! As únicas coisas que pretendo levar daqui são minhas roupas e esse computador que é meu instrumento de trabalho. O resto pode ficar ai! Além do mais, Ramatís, na Faculdade, que é longe, precisa do automóvel. Quanto ao apartamento, ele já trabalha e ela também tem sua renda com o salão de beleza. Podem continuar pagando o financiamento, que é bem barato. Precisam dessa tranqüilidade. A vida está mostrando novos caminhos para Francisco. Ele vai nesse rumo. Não ha o que pensar. Uma semana depois está em Recife para sua nova jornada em terras pernambucanas. Marina reside em Boa viagem. Francisco vai para a gravadora e só volta à noite. Quinze dias após o início da campanha política, já estão sendo pagos 50% do valor do contrato de locutor da campanha. Francisco já pode comprar um novo automóvel. Usado. Mas seminovo. É necessário. Recife é uma cidade bem grande. Todos os dias Francisco está em contato com o amigo Fernando. Hoje ele tem notícias de Verinha. - Ela está lá em casa se restabelecendo. Ainda tomando os medicamentos controlados. Mas está se restabelecendo bem. 489 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Está muito abatida. Mas é assim mesmo. Esses remédios são bem fortes! - Eu gostaria muito de ver Verinha! - Diz Francisco. - Pois passa lá em casa hoje à noite! Tomamos uns whiskys! E você vai poder vê-la! À noite Francisco está lá. O reencontro com Lurdinha é ótimo! Quantas lembranças a rememorar! - Verinha está dormindo! - Diz Lurdinha. - Tomou a medicação que bota logo ela para dormir. O Papo continua. Ha muitos assuntos para serem atualizados. Eles querem saber detalhes de sua separação com Sandra. Falam sobre os filhos. Sobre muitas coisas. Já pelas 11h00 da noite Verinha aparece. Está muito abatida. Francisco tem então a oportunidade de abraçá-la e transmitir a ela o quanto deseja que ela se restabeleça. - Elias! Muito obrigado pelas flores que você me levou! Foi incrível! Eu acordei e vi as flores sobre a mesinha no quarto. E chamei a enfermeira pra saber quem havia enviado. Só então vi o seu cartão! Fiquei muito contente com as flores. Mais uma vez muito obrigado! Em seguida Verinha volta para se deitar. Está muito frágil com toda a medicação que lhe é administrada. Francisco passa muita força para ela. Ela precisa se esforçar para retornar ao seu equilíbrio. Já é tarde da noite e Francisco agora pode ir embora. Afinal estava ali também pela expectativa de poder vê-la. Voltando para casa ele repassa as emoções daquela noite. Percebe algo em seu íntimo que lhe parece muito especial. Um sentimento totalmente diferenciado em relação á Verinha. Foi ela, a pessoa que lhe estendeu a mão através daquele telefonema inesperado em Maceió. E pelo que percebe, agora é ela quem está precisando muito dele. 490 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias É Lurdinha, irmã dela, quem lhe posiciona melhor esse raciocínio no próximo encontro. Francisco já freqüenta agora mais vezes a casa de Fernando. Numa dessas ocasiões, aproveitando que Verinha não está presente, Lurdinha conversa com ele: - Elias! Eu estou impressionada com o bem que você está fazendo a Verinha nessa recuperação dela. Muito obrigado meu irmão! Eu não sei o que você tanto conversa com ela. - Mas sei que está fazendo um efeito muito bom a ela. O que vocês tanto conversam? - Coisas normais Lurdinha! O que posso lhe garantir é que hoje eu me sinto bem mais preparado para uma situação dessa. Sou muito grato a Verinha! Ela me tirou daquele momento tormentoso pre-separação lá em Maceió. Nunca vou esquecer o fato de ela procurar me ligar naquele momento. Acho que Deus botou ela em meu caminho naquele dia. Como se explica? Uma pessoa que não tinha contato comigo ha tantos anos, se interessar em pedir o meu telefone e ligar? Ela disse apenas que havia sentido muita vontade de falar comigo naquele dia e que por isso pediu meu telefone a Fernando. Mas nós sabemos não é Lurdinha? Que isso deve ter tido a mão de Deus. Eu já vinha pedindo a ajuda DELE. Para que me acontecesse alguma coisa nova. E acho que isso veio através de Verinha! Talvez estivesse faltando a motivação que veio através dela, para eu me decidir vir a Recife. Por isso tenho por ela uma gratidão muito grande. E tudo que eu puder fazer para a recuperação dela só vai me deixar muito feliz. Deus sabia que tanto eu quanto ela estávamos precisando de um certo alinhamento em nossas vidas. Precisando um do outro! Lurdinha concorda com esse raciocínio. Verinha continua seu tratamento de recuperação. 491 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Outras vezes os dois vão estar juntos. Vão passear. Vão a uma lanchonete. Vão ao Shopping. Saiem para dançar. A companhia dela lhe faz muito bem. Sempre que pode ele procura estar com ela. Sua recuperação é visível. Isso o deixa muito feliz. Está fazendo algo por alguém que precisa dele. Ao mesmo tempo está acontecendo algo difícil de evitar. Francisco sente-se atraído pela mulher Verinha. Mas sua consciência está muito crítica, mais sintonizada com o fato de ajudá-la a se reerguer. Até procura sufocar emoções e sentimentos de ordem relacional homem/mulher, que possam vir a conturbar esse processo prioritário, que em sua lógica, é a plena recuperação dela. Relacionam-se como se fossem namorados. Mas sem qualquer avanço da parte dele. Já houve até momento em que ela precisou desabafar: - Esse nosso caso é um amor platônico! - O desabafo pegou Francisco de surpresa. Como responder a ela? Adoraria poder dizer que ela o atrai muito como mulher. Mas que em face de sua problemática de saúde ele jamais se atreveria a manter com ela um relacionamento que não passasse pela aprovação de sua própria consciência. Fica se imaginando como seria um relacionamento nesse nível, com uma mulher que está em processo de restabelecimento através de medicação controlada... E se ela ainda não gozasse da plenitude de sua consciência? Essa relação não seria algo totalmente sadio. Será que mereceria a aprovação de Deus? ELE os aproximara por afinidades comuns. É o que parecia. Mas daí a um passo do qual viessem a se arrepender, a distância era bem pequena. 492 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Ele prefere não correr esse risco. Esse nosso caso é um amor platônico! A frase ainda soa acusatória em seus ouvidos. Como uma provocação. Uma forma de ferir seu ego masculino. Ele procura compreendê-la e argumenta qualquer coisa para sair daquela saia justa. Prefere guardar em seu coração o sentimento belo que nutre por ela, de amparo, de ajuda, de contribuição, e de paixão também, porquê não? Mas de forma que sua amizade nunca possa ser maculada. Algum tempo mais tarde, ambos concluem que é melhor continuarem dois bons amigos. Amigos inesquecíveis! Marcados pelo destino em rotas paralelas! Mas acima de tudo, bons amigos. No máximo grau que pode haver sadiamente entre um homem e uma mulher. Por outro lado Francisco está vivendo suas necessidades emocionais, o que é perfeitamente natural. Já é tempo de aparecer alguém em sua vida. Uma namorada por inteiro.Algum relacionamento mais consistente. Ele acaba de repassar em seus pensamentos do dia-a-dia, uma experiência vivida tempos atrás, ainda com a esposa Sandra. Os relacionamentos mantidos fora do casamento o haviam marcado com uma preocupação consistente: será que ele sofria de algum desequilíbrio psicológico, que o incapacitara de se manter fiel à esposa, mesmo diante de seus descontentamentos? Não seria essa a obrigação de um homem em perfeito equilíbrio? Francisco sempre foi uma pessoa de iniciativas muito fortes. Sempre que era necessário. Pensando nisso, tão logo encerrou seu caso com Rose, ele se confinou, por iniciativa própria numa posição em que, por três anos seguidos, não conheceu qualquer outra mulher. Poucos acreditariam que alguém como ele fosse capaz de tamanho sacrifício. Já que em casa, ha muito tempo a situação é zero a zero. Mas ele o fez. Três anos sem mulher. O que isso lhe provara? 493 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Em primeiro lugar, que seu caso com Sandra não tinha mais concerto. Haviam se distanciado tanto floresta adentro, que não se ouviam mais. Do seus pontos não haveria mais retorno. Caminhos paralelos que se transformaram em perpendiculares. Então agora, já morando em Recife, Francisco está contente por se desobrigar desse compromisso psicológico. Poderia se relacionar com outra mulher, sim! Sem qualquer sentimento de culpa. Mas nesse momento não poderia ser Verinha. Que pena! Mas a situação psicológica dela não lhe permitia. Haveria de buscar esse conforto humano em outra pessoa. E acontece de reencontrar alguém, com quem jamais imaginara manter um relacionamento. É a Eli. Ex-esposa de Eudes, um amigo dos velhos tempos em Recife. Eli também está separada do esposo. Tem três filhas, uma já casada. Que acaba de lhe dar uma neta. Por duas vezes Eli, naqueles tempos, amiga íntima de Sandra, estivera em visita a eles em Maceió. Jamais passaria pela cabeça de Francisco que um dia ela estaria em seu caminho. Também profundamente carente de afetividade. Há um clube-restaurante muito freqüentado pela classe mais madura, no bairro da Torre em Recife. É a famosa Catedral da Seresta. É lá que eles vão se reencontrar. A Eli adora dançar. A Catedral da Seresta tem música ao vivo. Conjuntos e orquestras tocam seus bailes. Quase sempre lotados. E existe nesse ambiente algumas características bem peculiares. Bailes acontecem de quarta a domingo. A quinta-feira é o Baile das Desquitadas. As mulheres é quem tiram os homens para dançar. Não pode haver recusa. No caso de alguma reclamação o cavalheiro é convidado a se retirar. Francisco prefere os bailes mais tradicionais. Sábado é o dia de sua preferência. Ele está entrando e vai direto ao banheiro. 494 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Pouca gente já havia entrado até este momento. São pouco mais das 22h00. Ao passar na direção do sanitário ele tem a impressão de ter visto uma cara conhecida entre três amigas numa mesa. Voltando do Wather Close ele vê perfeitamente a figura que lhe chamara a atenção. É mesmo ela! Francisco ainda não sabia que ela havia se separado também. - É mesmo você Elieuza? - Elias! Mas que surpresa! Como Vai? Os dois se abraçam e se cumprimentam. Duas almas carentes de afetividade. Ela apresenta-lhe as duas amigas. - Você está aqui com alguém? - Pergunta Eli. - Não! Estou sozinho! Às vezes Bosco e Marina o acompanham para dançar na Catedral da Seresta, mas este sábado ele está só. - Porquê não senta com a gente! Você vem sempre aqui? - Muito freqüentemente! Gosto de vir aos sábados. Está começando ali um relacionamento demorado. Duraria quatro anos. Algo bem informal. Mas consistente. Namoram bastante, e logo estão mantendo um relacionamento normal. Ela está separada e reside em uma casa no bairro de Caxangá, um tanto distante de Boa Viagem. Mas é um relacionamento prático. Somente se encontram nos fins de semana. Cada um vive em seu próprio lugar. Às vezes ela vai para Boa Viagem para ficar com ele. Outros fins de semana ele vai para a casa dela em Caxangá. É assim que eles negociam a trajetória do tempo. 495 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias C erto dia Francisco está na gravadora do Zezé e o telefone toca chamando por ele. Que surpresa! É Maria das Vitórias! Ela está no Aeroporto de Recife aguardando uma conexão para Campina Grande. A família do esposo é de Patos, na Paraíba, bem próximo de Caicó. Ela viaja só. Está indo para lá. - Mas Vitória! Que surpresa legal! Quanto tempo você vai permanecer no Aeroporto? - Uma hora e meia, mais ou menos! - Me aguarde aí! Vou rever você! Uma hora depois estão se reencontrando no saguão do aeroporto. O trânsito não o permitiu chegar antes. Só têm quinze minutos. Um abraço inesquecível e bastante emocional. Principalmente da parte dela. Mas Francisco também está enternecido com aquele reencontro. O reencontro foi muito fugaz. Já estão chamando para o reembarque. Vitória se vai. Francisco está de volta ao seu dia-a-dia. Passam-se alguns meses. E acontece um fato novo. Maria das Vitórias, hoje mãe de três filhos, todos homens, já adultos, também está vivendo um momento complicado em seu casamento. O marido, um político de expressão no Acre. Até onde Vitória sabe, mantém mais duas outras mulheres. Ela está decidida pela separação. Ao longo do tempo sempre manteve-se informada sobre a vida de Chiquinho, através das informações que periodicamente recebe das irmãs dele, suas amigas de longas datas, principalmente Malvina, com quem se corresponde freqüentemente. 496 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias N este momento ela já sabe que ele não vive mais com Sandra e que está com Marina em Recife. Aproveitando que os filhos desejam muito fazer uma viajem de Brasília até Recife vindo de automóvel, resolve vir também com o pretexto de visitar a amiga Marina. No fundo, no fundo, está querendo um novo contato com Chiquinho. Quem sabe, ele estaria receptivo para reatar com ela aquele caso tão antigo, e se for o caso, ela está disposta a vir viver com ele. Nunca esquecera aquele grande amor antigo. Vai ao apartamento de Marina. É recepcionada festivamente. Francisco foi avisado e também está presente. Ela está muito atenta aos sinais vindos dele. Mas Francisco está envolvido com outra mulher nesse momento. A Eli. Com quem ele acredita que permanecerá. E não abre para Vitória o espaço que ela desejava encontrar. Francisco tem uma característica peculiar. Nunca conseguiu se relacionar com mais de uma mulher ao mesmo tempo. Seus sentimentos não são fúteis. E os mantém sob controle. Enquanto viveu com Sandra, suas relações fora do casamento mantinham-se em regime de número 2 única de cada vez. Agora tem a Eli. Não tem motivos para decepcioná-la. Portanto Vitória vai retornar sem esperança de se resolver com ele. Francisco continua acreditando no seu relacionamento com Eli. Às vezes é bem divertido. Mas ha também momentos indesejáveis. Ele acaba de descobrir algo interessante. Parece comum, que o relacionamento com mulheres já separadas possa ser complicado, em face de alguns vícios comportamentais trazidos de uma outra relação anterior. Chegando em certa ocasião de precisar argumentar: 497 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Eli! Você não vive mais com seu ex-marido! Eu sou uma outra pessoa! Sou diferente dele!... Coisas desse tipo minam muito facilmente uma relação. E é isso o que está acontecendo com eles. São consideráveis as diferenças de personalidade, culturais também, que impedem a continuidade do relacionamento entre eles. Três anos depois, após alguns desconfortos relacionais entre ambos, eles resolvem se afastar definitivamente. As próprias filhas dela, que conheciam Elias desde seus tempos de infância, e desejavam ver a mãe em um relacionamento equilibrado, percebendo suas boas intenções em relação a Eli, chegam a advertila: - Mamãe! A senhora vai perder Elias! O resultado não foi outro. Vão ser apenas bons amigos. Francisco outra vez está só. Acontece a terceira gravidez de Elissandra. Francisco já não mora mais em Maceió. Ela ainda não fez a ultra-sonografia. Primeiro liga para ele e lhe comunica por telefone. E essa é a primeira vez em que o fenômeno da premonição ocorre também por telefone. E de longa distância. Sem estar perto dela, sem colocar a mão ou olhar para a barriga dela, ele tem mesmo assim novamente aquela certeza absoluta. - É mulher minha filha! Agora é uma menina! - É mesmo! Painho? Ela parece estar emocionada. Francisco também, por sua vez. Pela primeira vez consegue ouvir que é uma neta que vai receber. Os exames confirmam mais tarde. 498 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Uma criança do sexo feminino. Para grande satisfação de toda a família. Aquilo era uma forma eloqüente de lhe dizerem que ele havia recebido realmente esse acréscimo. Pois é assim que ele enxerga essa condição para-normal de poder saber ainda no feto, o sexo da criança. Esse fenômeno lhe ocorreu também algumas vezes com pessoas estranhas à sua família. Ele mantém a convicção, de que aquilo que aconteceu por ocasião do nascimento de Ramatís foi algo muito especial. O elemento detonador. Nunca isso havia acontecido antes do nascimento dele. Fosse quem fosse que estivera com ele naquela ocasião passando-lhe aquela certeza tão extraordinária dos filhos gêmeos e que um deles estava morto, deixou impresso em seu ser essa condição para-normal. Ele só lamenta não poder saber o significado disso. Porquê? O que a Inteligência Espiritual vem tentando lhe dizer com essa para-normalidade? Ele até tem pensado: de que forma poderia servir, com esse recurso tão especial? Sem resposta plausível para isso, decide permanecer em alerta, mas condicionado a viver sua vida normal. Deve haver uma razão para isso. Quem sabe... Um dia ele ainda descubra! Às vezes, em suas reflexões mais acentuadas Francisco forçosamente se pergunta: Será que minha vida foi marcada com algum propósito específico? Como gostaria de saber! Mas quanto a isso a única luz que recebe é: Continue vivendo sua vida! Deixe o resto por conta do Criador! No momento apropriado tudo se esclarecerá! Durante seis anos de seu retorno em Recife, além da assessoria que dá a Zezé no setor de informática do Studio Z, e alguns trabalhos de 499 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias locução comercial, Francisco ainda participa de mais duas campanhas políticas. Morando em Recife, ele vai mensalmente à Maceió. Ha um cliente deixado lá, com quatro lojas de grifes no setor de móveis, que ha mais de quinze anos só faz a sua comunicação de televisão com a assessoria de Francisco. De fato, é esse cliente que o mantém financeiramente. O que recebe no Studio de Zezé dá apenas para a gasolina do automóvel e algumas despesas menores. Ele também ajuda nas despesas no apartamento da irmã Marina. Que agora já avisou! Vai se aposentar da Caixa Econômica e pretende fixar residência definitiva em Natal. Já estão construindo uma casa lá. Após passarem juntos as festividades do século 2000 em Boa Viagem, Marina e Bosco vão residir definitivamente em Natal. Francisco ainda permanece por mais dois anos sozinho em Recife. Exatamente o tempo em que encerra o relacionamento com Eli. Maria das Vitórias é persistente. Já está informada de que ele está novamente só. E faz contato por telefone, cujo número lhe foi passado pela irmã Malvina. Têm muitos instantes de compensadoras lembranças. As emoções de ambos estão se realinhando finalmente. Enfim, o coração de Francisco está disponível para ela. São muitos os contatos por telefone. Passam a acreditar que haja uma chance para eles. Acertam para se reencontrarem uma semana depois em Natal, para onde ela iria em visita a seus familiares lá existentes. Francisco e Vitória se reencontram na residência de Malvina. Um reencontro histórico. Emoções reprimidas por tantos anos! Tudo vem à tona com 500 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias velocidade incrível. Parece que ambos ainda são os mesmos jovens da década de 1960 em Caicó. Vitória devia guardar no mais íntimo de seu ser um sentimento retardado. E agora podiam extravasar. Iniciam então um relacionamento cercado de dificuldades. Pouco tempo depois, Malvina está em Recife tentando resolver um problema do irmão Pedro, que busca documentos para requerer sua aposentadoria da Aeronáutica. Ela vai estar com Francisco no endereço onde ele mora em Boa Viagem. Um pequeno suíte de quarto e banheiro. Ela toma a iniciativa e sugere: - Porquê você não vai morar também em Natal? Fica aqui sozinho! A companhia de Francisco é seu computador. Navegar na internet, trabalhar suas músicas de karaokê no computador... É assim que ele ocupa seu tempo, quando não está em Maceió à trabalho. - Vamos lá pra casa! Morar comigo e Danilo! Ele decide então seguir o conselho dela. Recife já não o diverte mais. A cidade tornou-se muito insegura. Assaltos freqüentes. Ele mesmo já escapou de dois. Já assistiu até assalto da janela de seu apartamento. Pode-se dizer que Recife é a cidade do mêdo. Em 2003 ele resolve ir residir também definitivamente em Natal. Durante três anos continuam as visitas de Vitória à Natal. Durante três anos ele aguarda que ela se decida a vir vier definitivamente com ele. Ela tem facilidades para obter as passagens áereas. Pois trabalha no gabinete do Deputado Federal em Brasília. Certo momento Francisco desabafa com ela: - Durante toda a minha vida Vitória! Eu sempre mantive um princípio! Nunca me envolver com mulher casada! E foram várias as oportunidades que surgiram em minha vida! Mas pulei todas 501 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias essas tentações! Precisava ser você! Para contradizer isso! Por isso acho que nunca devemos dizer: dessa água não beberei! Faz sentido a sua consideração. Vitória ainda está oficialmente casada. Não consegue deixar de viver ao lado do marido. Embora garanta que entre ambos já não existe qualquer obrigação matrimonial. A relação de ambos, diz ela, é algo como uma empresa que tem dois sócios. Só isso. Só interesses materiais. Nada mais. Também pudera! O homem tem duas outras mulheres. E bem mais jovens. Não deve ser fácil dar conta de todas elas. Em várias ocasiões Vitória acena com a expectativa de vir viver definitivamente com Francisco. Após o casamento do filho! Após o resguardo da nora! Ainda precisa dar uma certa assistência ao filho mais moço que ainda estuda em Brasília... Nesse compasso, reencontrando-se a cada dois, três meses, aos poucos a relação vai se desgastando. Por três anos Francisco ja esperou que ela se decida. A situação está muito incômoda. Realmente insustentável. 502 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias F rancisco está em Recife atendendo um convite para trabalhar em mais uma campanha política. Serão três meses. Consegue alugar um suíte no mesmo endereço em que havia estado os últimos dois anos em Boa Viagem. Ha um vizinho seu. OAntonio Pereira. Um antigo vendedor dos tempos da CODIF. Uma rede de lojas de ferragens com matriz em Recife, onde trabalhava e filiais em outras capitais, incluindo Maceió e Natal. A empresa, pertencia a um português.Após a sua morte entrou em falência. Certo dia Francisco conversa com Antonio Pereira e lhe fala da extraordinária descoberta do Padre Antenor Araújo, em relação às famílias Nordestinas com sobrenomes judeus. O dele é Pereira. Antonio então se recorda de um fato extraordinário vivido no tempo em que trabalhara na CODIF. Havia vários vendedores na firma. Explica ele. Que recebiam uma relação de empresas a serem visitadas, para vender as ferramentas da CODIF. Alguns deles já reclamavam que ninguém conseguia vender nada a um judeu, dono de uma indústria muito conhecida. Que preferia comprar suas ferrangens em São Paulo e nunca comprava em Recife. Antonio Pereira também fora escalado para visitar o empresário judeu. O primeiro da sua lista. Já que ele certamente não iria lhe comprar nada, pelo menos se desvencilhava dele logo de saída. Chega cedo ao seu escritório. O empresário ainda não havia chegado. A secretária informa que ele não demora. Antonio Pereira entrega seu cartão a ela e solicita para assim que ele chegasse ela entregasse a ele o cartão. Se não o recebece também não perderia tempo. 503 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias D ai a instantes o judeu passa apressadamente pela entrada do escritório acompanhado da esposa que vem logo atrás e de seu filho, também dirigentes da firma, entrando em sua sala. Imediatamente a secretária vai á seu gabinete e lhe entrega o cartão do vendedor da CODIF Antonio Pereira. A moça vai pensando... Mais um coitado da CODIF que vai sair sem vender nada... Ao receber o cartão, o judeu imediatamente levanta-se de sua mesa e vai até a recepção com o cartão na mão. - Muito prazer em recebê-lo em nossos escritórios! Seja bem-vindo! Abraça fraternalmente o vendedor como se abraça a um amigo muito conhecido de longas datas. - Por favor! Vamos entrar! - E conduz o Pereira a sua sala pedindo a ele que se sente. A secretária ficou olhando a cena surpresa, sem entender patavina. Quem seria mesmo aquele rapaz? Quantos vendedores da CODIF já haviam estado ali e despachados solenemente! Alguns nem mesmo sem ser recebidos no gabinete do empresário! Ela ainda está meio atônita com o que acaba de presenciar, quando o empresário a chama pelo interfone, solicitando que chame imediatamente à sua sala, a esposa e o filho. Em seu gabinete ele continua se desmanchando em cordialidade com o vendedor. A esposa e o filho entram no gabinete. Ele então com alegria, apresenta sua família a Antonio. Pede cafezinho, conversam bastante, pede informações sobre a família de Antonio e, finalmente, realiza uma compra espetacular de inúmeros tipos de ferramentas para sua empresa recomendando a Antonio, que dali por diante, não iria mais comprar em São Paulo. E que ele o visitasse mensalmente. Fazia questão. Por anos seguidos Antonio foi extraordinariamente bem recebido nos escritórios do judeu. 504 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias L ogo após seu primeiro contato com o empresário judeu Antonio regressa aos escritórios da CODIF zombando dos seus companheiros vendedores. - Vocês são uns incompetentes! Olha aqui o tamanho da venda que eu fiz ao judeu! Todos estão surpresos com a venda doAntonio. - Não acredito! Diz um deles. - Você vai me explicar como conseguiu fazer essa venda! - Intima outro. O gerente está se aproximando. - Olha só! O pedido que o Antonio conseguiu arrancar do judeu! Até este momento quando conversa com Francisco, ele nunca havia entendido porque o judeu o recebia tão bem. - Rapaz! É incrível o que esse padre descobriu! Agora eu entendo! Porque o judeu me recebia tão bem! Pelo meu sobrenome no cartão! Pereira! Por isso ele me fez tantas perguntas sobre a origem de minha família! Impressionante! Só agora eu compreendo tudo! Certamente, ao ver o sobrenome Pereira no cartão de Antonio, o judeu, que devia saber dessa informação passada de pai para filho, em sua árvore genealógica ha centenas de anos, sabia que estava diante de um descendente de sua raça. Antonio era também um judeu. Alguém a quem, na distância do tempo, deveria honrar, respeitar e receber com toda regalia. Assim Antonio pôde constatar a veracidade da descoberta do Padre Antenor, em seu estudo sobre as raízes das famílias judias espalhadas pelo Nordeste. 505 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias D urante essa campanha política de 2002 Pedro Elias está uma fera lá em Caicó. Todo mundo fala que a candidata Vilma de Farias, ex-esposa separada de Lavoisier Maia, é quem vai ganhar as eleições para Governadora. Isso Pedro Elias não pode tolerar. Admirador profundo da família Maia, ele não pode aceitar que “aquela rapariga”, assim trata a candidata, possa se eleger Governadora. Rapariga, pelo simples fato de haver se separado de um dos Maia. O genro Rony, sabendo de suas preferências políticas, aborda seu Pedro com informações sobre a eleição. E ele lhe pergunta: - Você vai votar em quem? - Gostaria muito de administrar os votos de cabresto da família, como fazia vinte ou trinta anos atrás. - Vou! Seu Pedro! Vou votar em Vilma Maia! - Naquela rapariga? - Sim! Seu Pedro! Essa eleição não tem quem tire dela! Ele profere ainda vários desaforos e Rony se afasta. À noite, as apurações já vão bem adiantadas. A Vilma Maia disparou na frente do adversário. Rony agora tenta dobrar seu Pedro mostrando-lhe o resultado das apurações, cujo último boletim acaba de ser divulgado pela televisão. - Olha ai seu Pedro! Olha ai a votação da mulher! De cem pessoas, setenta votaram nela! - É TUDO CORNO! - Esbraveja ele com veemência. Maria de Lurdes, sua filha e esposa de Rony está presente. - Não! Papai! Rony mesmo não é corno não! 506 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias - Não é, mas tá pra ser! - Responde ele em cima da bucha. Todos caiem na gargalhada. Não dá pra levar seu Pedro a sério. Ele nunca daria o braço a torcer, fosse qual fosse a situação. 507 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Q uinze de Abril de 2004. Toda a família de Pedro Elias está indo a Caicó. Ele acaba de falecer. Esse momento de pesar todos temos de viver. Apenas os que residem muito distante como os filhos Pedro e José não podem vir para o sepultamento dele. Pedro está no Paraná. E José em Volta Redonda, no estado do Rio. Um acidente cerebral levou Pedro Elias aos 87 anos e 11 meses de idade. O mano Franksvictor foi às pressas com ele para o hospital. Mas a sua hora havia chegado. Entrou em coma e não saiu mais. Deu entrada no hospital cerca de 17h00 e as 05h00 da manhã seguinte Deus o levou. Viveu quase oitenta e oito anos. Deixou saudade. Tinha defeitos. Mas quem não os tem? Enquanto viveu manteve-se fiel a sua fé em Deus. Deixou esse exemplo, entre tantos outros. Francisco prefere não lembrá-lo por seus defeitos. Mas apenas por suas qualidades. E foram muitas. Este livro é uma homenagem também a ele. Não tinha o dom da escrita. Mas fez história da boa. Qualquer um que retorne no tempo seguindo seus rastros vai encontrar inúmeros exemplos de grandeza. Até onde se sabe, ao morrer deixou 15 filhos, um fora do casamento, 26 netos e 9 bisnetos.Alguns, nem chegou a conhecer. Ha que se perpetuar a sua lembrança como alguém que deixou marcas profundas em sua imensa família. Marcas que certamente superam as cicatrizes. Honrar pai e mãe. Esse preceito bíblico lhe cai como uma luva. Inclusive pelo exemplo que deu cuidando de seu próprio pai, o vovô Chico Elias e o sogro Chico Bobôco, ambos até a sua morte. 508 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Ele foi grande. Foi grande sim. Maior que seus defeitos. Tem honra ao mérito em seu louvor. Este livro começa e termina com ele. Que ao lado de Josina escreveram páginas inesquecíveis de vida e de probidade. Por fim, uma mensagem aos que virão, ao longo dessa descendência genealógica. Deus é otimista. A natureza é otimista. Os melhores exemplos de realização humana no mundo são de pessoas otimistas. Porquê não deveríamos ser otimistas? Ninguém dá nada a ninguém! Nós apenas recebemos o resultado da necessidade dos outros! Autor desconhecido. Somente os tolos estão absolutamente convencidos de que sabem tudo. Se você achar, que este livro lhe faz algum bem, saiba que está recebendo o resultado da necessidade deste humilde narrador. Quanto mais evoluimos, mais aumenta a nossa responsabilidade, traduzida aqui em necessidade, de também contribuir para o bem dos outros. Esta mensagem final é especialmente para você, caro leitor, num futuro distante. Fica como uma sugestão. 509 Eu, Tu, Eles - Francisco Elias Um exercício de natureza histórica. Que talvez, algum dos nossos descendentes, talvez você, possa dar continuidade a esta obra. Caberia bem um segundo volume. Não? E assim por diante. Tudo sugere que você dê essa continuidade, escrevendo a partir dos conhecimentos do seu tempo Sobre seus ascendentes diretos. Faça isso! Em homenagem a sua própria gênesis. Por fim, um agradecimento especial a todos que ajudaram a escrever este livro. Incluindo nossos amigos invisíveis. Pois tenho certeza, de que em muitos momentos Eles estiveram conosco. Ninguém escreve nada sozinho. 510 Malvina-Pedrinho-Lurdes-Francisco Riacho do Meio - 1947 À frente: Marina-Jasiel-Marluce-José-Josafá P/ traz: Francisco-Pedrinho-Malvina-Ma. De Lurdes Rua São José - 1952 Locutor do S.P.V.S. 1957 18 anos 23 anos 1990. Escombros da primeira residência no sítio Riacho do Meio Lembrança de uma Festa de Santana Josina, nos anos 60 1972 - Apresentador do telejornal Factorama no Canal 6 inaugrando a TV à Cores no NE. Baile de Carnaval no Clube Internacional do Recife. O amigo Fernando, e a irmã Mônica Concurso Miss-PE ao lado de Carmem Tovar Canal 2 - TV Jornal do Commercio 1981. Aeroclube de Recife Dez/1974 no Rio Esta foto expressa bem o palhaço da família, o mano Pedro. Lembrança do Natal de 74 em Campinas. Jan/1975. Pre-Carnaval em Salvador com o amigo Zé de Freitas Visita à tia Neném. São Paulo Natal de 1974 Retornando de Fortaleza com Sandra e Ramatís. Lembrança do mano Jasiel. Natal 1976 Fim de Ano na casa de praia do cunhado Rony- Praia de Cotovelo Marina, Lurdes, Rony e Sandra Filhas: Lurdes-Malvina-Marina Mônica-Marluce-Marlene Filhos:Francisco-Pedro-Josafá José-Johnny-Franksvictor Os netos As netas Pedro Elias se orgulhava de sua prole. Ao ver esta voto exclamou: Essa minha família não tem UM! feio! CENAS DO JUBILEU DE OURO DE PEDRO ELIAS E JOSINA EM 1990 Os alemães invadem a descendência de Pedro Elias. Ele não era muito chegado à alemão. Viveu bem no auge da II Guerra. No entanto, eles ai estão, em seus bisnetos. Francisco ainda convalecendo de uma cirurgia de vesícula. Sua terceira geração. Alguns ele ainda alcançou em vida. Se os visse agora, iria repetir com orgulho: “Essa minha famía não tem UM feio!” Josina já viuva em 2005, aos 84 anos. Josina e filhas: >Marina, Mônica, Ludes, Malvina, Marluce, Marlene Ramatís e a prima Dani Ramatís e a esposa Marcela Josina, Claudinha, Eliana, Marina e Elissandra Francisco e as irmãs Lurdes e Marlene Ramatís e seu pai (o brother) Josina recebe o carinho dos netos: Caio e Luquinha Filhos de Francksvictor Vovó Sandra com a netinha Elissa Flagrante do casamento do sobrinho Pedro Ivo Rio de Janeiro - 2006