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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS
UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE JUSSARA
LICENCIATURA EM HISTÓRIA
FERNANDA DE SOUSA FEDRIGO
REDUTO DOS ANJOS: A LIDERANÇA RELIGIOSA E POLÍTICA DE “SANTA”
DICA EM LAGOLÂNDIA.
JUSSARA-GO
2012
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FERNANDA DE SOUSA FEDRIGO
REDUTO DOS ANJOS: A LIDERANÇA RELIGIOSA E POLÍTICA DE “SANTA”
DICA EM LAGOLÂNDIA.
Monografia apresentada ao Departamento de História da
Universidade Estadual de Goiás - UEG, Unidade
Universitária de Jussara – GO, em cumprimento à
exigência para obtenção do título de Graduada em
Licenciatura em História, sob orientação do professor
Rodrigo Fernandes da Silva.
JUSSARA-GO
2011
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À minha Deuza
4
AGRADECIMENTOS
Em minha longa caminhada até a conclusão desse curso, conheci e convivi com várias
pessoas. Algumas merecem ser lembradas e agradecidas por tornar minha vida de acadêmica
da UEG menos chata e estressante, são elas: meus únicos e verdadeiros amigos: Bruno Felipe,
Letícia Carolline e Heiler Konrad, pessoas com as quais tive o prazer de conversar, brigar,
beber, chorar, viver. Agradeço também a todos os outros, porcos covardes que sempre
criticaram minha autenticidade, e bem no fundo ansiaram pela minha amizade, algo que nunca
irão conseguir, só os dignos a merecem.
Não poderia deixar de agradecer também a minha família, que sempre esteve ao meu
lado nos momentos de dor e de alegria, os verdadeiros responsáveis pela minha felicidade. Ao
meu namorado Kaliu pelas puxadas de orelha, companheirismo e paciência no decorrer da
construção dessa pesquisa, a minha mãe Deuza, pela força, compreensão e amor que nunca
me faltou graças a ela e seu carinho inestimável que só uma mãe é capaz de compartilhar, ao
meu pai Divino pelo incentivo, ao meu sobrinho Guilherme pela alegria compartilhada, aos
meus irmãos, Geisson Carlos e Wesley, por existirem, por me agraciarem com sua companhia
e com o direito de chamá-los de irmãos, MEUS IRMÃOS, os homens da minha vida. Em
especial agradeço a minha tia Arlia, uma pessoa que sempre esperou mais de mim, que
sempre incentivou meu crescimento e que infelizmente não está a meu lado nesse momento,
mas que viverá pra sempre em meu coração.
São poucas as pessoas que eu amo, mas meu amor por vocês é o maior do mundo.
Muito obrigado por fazerem parte da minha vida.
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“Quando ela ficou moça, ficou santa, fez
milagres,
Curou gente, (...) curou moléstias –domundo, curou mais que padre Cícero Romão
(...)
O Rio do peixe – Rio Jordão- o rio santo do
sertão (...)
Rio do Peixe de Santa Dica , Rio do Peixe?
Não. Rio do cão.
Santa Dica do Rio de Peixe, Santa Dia de
Goiás, Santa Dica do Sertão?
Não.
Santa Dica do Rio de Janeiro,
Santa Dica de São Paulo,
Santa Dica do Brasil!
(LIMA, Jorge de. Poesias Completas, RJ,
Aguilar/ Brasília; INL, 1974.
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RESUMO:
O principal intuito desse trabalho é levantar uma discussão a cerca do movimento social,
religioso e político de “Santa” Dica, uma mulher a frente de seu tempo que se destacou no
interior goiano na década de 20 liderando milhares de pessoas em seu “reduto dos anjos” em
uma época em que mulher e submissão caminhavam juntos. O presente trabalho levantará
alguns fatos de extrema importância para a pesquisa e para se entender os rumos dessa
liderança, como o início e as características religiosas e politicas presentes em seu
movimento, as mudanças sofridas pela mesma com o passar dos anos pontuando as histórias
misteriosas que envolviam sua liderança, relatando o Dia do Fogo, momento tangido de
histórias sobrenaturais, discutir o quão conturbada foi sua relação com a Igreja Católica,
instituição que sempre a viu como uma rival, juntamente com os coronéis goianos e destacar
sua participação na Coluna Caiado e na Revolução Constitucionalista de 1932, importantes
momentos políticos ocorridos em sua vida.
PALAVRAS-CHAVE: Reduto dos anjos, Santa Dica, Igreja Católica, Goiás.
ABSTRACT:
The main aim of this paper is to raise a discussion about the social movement, religious and
political "Santa" Dica, a woman ahead of her time who stood out inside Goias in the 20s
leading thousands of people in his "stronghold angels "in a time when women and submission
walked together. The present study raise some facts of the utmost importance for research as
the beginning and the religious and political characteristics present in their motion, submit the
changes undergone by the same over the years, punctuating the mysterious stories involving
leadership, telling the Day Fire, tangido moment of supernatural stories, discuss how their
relationship was troubled with the Catholic Church, an institution that always saw her as a
rival, along with the colonels goianos and highlight their participation in Column Caiado and
the Constitutional Revolution of 1932, important political moments occurring in your life.
KEYWORDS: Vault of angels, Santa Dica, Catholic Church, Goiás.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................08
CAPÍTULO 1 – NASCE A “SANTA” DICA: A TRANSFORMAÇÃO DE
BENEDICTA NA LÍDER MESSIÂNICA DE LAGOLÂNDIA........................................16
1.1 - Nasce a “santa”: Dica e o movimento dos anjos.........................................................17
1.2 - As características da religiosidade Dica......................................................................25
CAPÍTULO 2 – DICA, IGREJA CATÓLICA E A POLÍTICA: RELAÇÕES
CONTURBADAS....................................................................................................................32
2.1 - Coluna Prestes, Dia do Fogo e Revolução Constitucionalista de 32:“Santa” Dica na
mira e no comando....................................................................................................................33
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................... .................................44
ANEXOS..................................................................................................................................46
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................47
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INTRODUÇÃO
Ela foi curandeira, profetisa, “santa”, capitã da guarda nacional e presa – por duas
vezes – no decorrer de seus sessenta e cinco anos de vida. Esses são apenas alguns dos fatos
que marcaram e chamam a atenção sobre a vida de Benedicta Cypriano Gomes, vulga “Santa”
Dica, uma mulher que nasceu, cresceu e viveu grande parte de sua vida em Lagolândia1 e lá
liderou um movimento de cunho messiânico que chamou a atenção de todo o estado de Goiás
para o local durante a República Velha. Sua vida sempre foi tangida por histórias misteriosas
dentre as quais podemos destacar suas ressureições e milagres, as rixas com a Igreja Católica
e os coronéis goianos, as conversas com anjos e pessoas já falecidas e as batalhas das quais
participou na condição de comandante. É uma história interessante e acima de tudo relevante
para a historiografia goiana e merece destaque por algumas questões importantes, a principal
talvez seja pelo fato de ser uma mulher na liderança, uma mulher visionária que conseguia
dominar e comandar centenas de homens em um período em que ser mulher era sinônimo de
ser submissa.
A história está marcada pela inferioridade e submissão da mulher, em
relação ao homem [...] vários filósofos e a Igreja Católica pregavam teses
que diziam que a inclinação da mulher devia ser para cuidar da casa, filhos e
marido; que deviam ser submissas ao marido; que eram destinadas ao
casamento e à maternidade; e que a mulher era somente para a recreação do
homem. Classificavam a mulher como segunda categoria, destinada a viver
sob a tutela do homem e sua submissão. Pois a sua natureza biológica a faria
inferior ao homem, em força e dignidade[...] Devido a isto, eram ignorantes,
tímidas e submissas aos homens, acentuando cada vez mais a supremacia
destes contra a mulher, pois eles conviviam com reuniões políticas em bares,
cafés, e vários lugares exclusivos aos homens, aos quais as mulheres não
tinham acesso inclusive às idéias políticas que ali borbulhavam (KUNZLER,
2008, p. 01-02).
No período conhecido como República Velha do qual tratamos no presente trabalho,
as mulheres tinham pouca participação nas opiniões da sociedade machista da época e eram
criadas e educadas para se casar, procriar e ser obediente aos maridos ou aos pais que seja, aos
homens de uma forma geral. Desde muito tempo sua imagem e a ideia de submissão são
associadas e a própria Igreja Católica ajudava a propagar essa ideologia para a sociedade
embasada em alguns dogmas e na própria bíblia2.
1
- Antiga Fazenda Mozondó, hoje Lagolândia é distrito da cidade de Pirenópolis.
- “Mulheres, sejam submissas a seus maridos, como ao senhor. De fato, o marido é a cabeça da sua esposa,
assim como Cristo, salvador do corpo, é a cabeça da Igreja. E assim como a Igreja está submissa a Cristo, assim
também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos” Efésios 5, 22-24.
2
9
Benedicta conseguiu um feito de grande relevância, ela saiu da mesmice e
subordinação que cercava o sexo feminino e se destacou politicamente no estado de Goiás em
um período que as mulheres não tinham sequer direito a voto, chamando a atenção do Brasil
para sua história e principalmente para seu movimento. Buscando na história percebesse que
Dica não foi a única mulher com esse tipo de prestígio e força no Brasil. A vida de Jacobina
Maurer3 também tomou esse segmento, ela também curava e profetizava para seus seguidores
foi aclamada como líder junto com seu marido João Jorge Maurer em sua comunidade.
A transformação não se operará mecanicamente, pela aparição do líder; é
preciso que os adeptos lhe cumpram ordens. Destes é a responsabilidade
pelas condições da sociedade, seu papel é se voltar para a coletividade,
moralizando-a e santificando-a [...]. O messianismo se afirma, pois, como
uma força prática e não como uma crença passiva e inerte de resignação e
conformismo: diante do espetáculo das injustiças, o dever do homem é
trabalhar para saná-las, pois sua é a responsabilidade pelas condições do
mundo. E, desde que a crença se ativa, dá então o lugar ao movimento
messiânico, que se destina a consertar aquilo que de errado existe. Estes
objetivos, que são políticos, sociais, econômicos (conforme se localizem os
erros neste ou naquele setor), devem sempre ser, no entanto, religiosamente
alcançados, isto é, por meio de rituais especiais que um enviado divino
revela aos homens (QUEIROZ, 1976, p. 29).
Normalmente essas comunidades lideradas por figuras messiânicas começavam devido
a pouca importância que as autoridades políticas davam as pessoas que viviam no interior do
país. Na história do Brasil se tem notícia de muitos movimentos considerados messiânicos. É
o caso de Canudos e Contestado, os mais famosos e com grande semelhança com o
movimento iniciado por Dica em Goiás. A aparição desses líderes passa a transformar a vida
das pessoas que os viam como os enviadas de Deus para os tirar do sofrimento e para os
conduzir ao paraíso na terra ou mesmo em uma outra vida, por isso esses líderes detinham de
tanta força perante seus seguidores.
No decorrer da construção da pesquisa nos deparamos com algo que nos acompanhou
por todo o seu desenvolvimento: os fatos sobrenaturais que sempre rodearam a vida de nosso
objeto, no caso “Santa” Dica. Temos plena consciência do quão polêmica é sua história
devido e esses acontecimentos inseridos num campo místico envolvendo sua liderança. Nesse
sentido, entrevistas serão utilizadas como fontes no presente trabalho afim de compreender o
início e o desenrolar de sua liderança. A vivência e as historias do povo de Lagolândia, serão
discutidas como forma de comprovar e reforçar o que será apresentado no decorrer da
pesquisa.
3
- Líder do reduto dos Muckers no Rio Grande do Sul.
10
Nesse sentido a história oral é um fundamento teórico metodológico importante para
essa pesquisa e por esse fato, temos que trabalhar e lidar com essas informações de forma que
apenas acrescente mais conteúdo e consistência a pesquisa dando credibilidade e
considerando tudo o que foi ouvido dos moradores de Lagolândia, mesmo os que não a
conheceram e que só conhecem sua história e seus milagres através de outras historias
contadas por terceiros.
Um dos aspectos mais polêmicos das fontes orais diz respeito a sua
credibilidade. Para alguns historiadores tradicionais os depoimentos orais
são tidos como fontes subjetivas por nutrirem –se da memoria individual,
que às vezes pode ser falível e fantasiosa. No entanto, a subjetividade é um
dado real em todas as fontes históricas, sejam elas orais, escritas ou visuais.
O que interessa em história oral é saber por que o entrevistado foi seletivo,
ou omisso, pois essa seletividade com certeza tem o seu significado
(THOMPSON, 1992, p.18).
Tudo envolvendo a vida de Dica, na visão de seus seguidores, tinha uma forte relação
com o sobrenatural. Dica era constantemente pega falando sozinha, porém seus seguidores e
ela própria se dizia conversando com anjos celestes ou com pessoas que já morreram, ou
mesmo as maneiras com que ela curava as pessoas de sua comunidade, ambos são assuntos
que nos chamam a atenção e nos desperta para a complexidade que é tentar decifrar alguns
acontecidos envolvendo sua liderança no interior de Goiás, acontecidos esses que ainda
permanecem sem maior aprofundamento e melhor discussão por parte da historiografia
goiana, mesmo porque alguns deles podem ser considerados por muitos como “ilusão” ou
mesmo o simples resultado do fanatismo religioso que cercava os seguidores de Dica.
Falava em outras línguas, curava através da imposição das mãos sobre
a cabeça ou ferimento, outras vezes, levava o dedinho à boca molhando-o de
saliva que passava sobre o ferimento e forma de cruz. E desse modo
peculiar, se utilizar raiz ou ervas, curou várias tipos de enfermidades, até
1925, quando perde a inocência4 (REZENDE, 2011, p. 17).
Analisando as condições de vida do povo que vivia na região, pode se entender um
pouco mais da importância e da grandiosidade do movimento de Dica para essa parcela de
pessoas. Na comunidade criada por ela o povo passou a ter mais qualidade de vida, algo que
eles não possuíam antes e isso foi um dos fatores mais significativos para aumentar o
prestígio de Dica para com o povo que via em sua comunidade uma saída para melhorar de
4
- Em 1925, Dica diz ter sido estuprada por um de seus seguidores Manoel Torres, conhecido como Caxeado,
enquanto estava em um de seus transes. Depois que sofre o abuso sexual, Dica diz ter ficado alguns dias sem
receber as manifestações dos guias espirituais através dos quais ela curava e profetizava para seus seguidores,
sendo assim, segundo a própria Dica ela perdeu seus dons de cura após a violência sexual sofrida por ela.
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vida sem perder sua identidade religiosa uma vez que Dica também detinha de uma forte
liderança religiosa e ministrava rituais do tipo em seu reduto.
Diante desse panorama econômico e social marcado pelo contraste, surgiram
movimentos de revolta popular, concentrados em pontos isolados do país. As
autoridades, que não tinham a menor preocupação com problemas sociais
como o analfabetismo, a fome, a falta de habitação e de terras para os
indivíduos das classes desfavorecidas, limitavam-se a reprimir esses
movimentos (COIN, 1998, p. 09).
O presente trabalho será dividido em dois capítulos. No primeiro será discutido o
nascimento do movimento e da liderança religiosa e política de Dica no interior goiano,
pontuando algumas questões de grande valia para a pesquisa como por exemplo as
características da “nova” religião criada por ela e um breve levantamento de sua conturbada
relação com a Igreja Católica, instituição que sempre atacou Dica e seu movimento através
dos jornais Santuário de Trindade e O Democrata. No segundo capítulo será abordado o “Dia
do Fogo” momento de maior embate entre o real e o sobrenatural ocorrido em sua vida. Será
destacado também a força política da qual Dica passa a dispor em Goiás através de sua
liderança, caracterizada pela sua participação na Coluna Caiado5, importante acontecimento
político ocorrido em Goiás juntamente com sua participação na Revolução Constitucionalista
de 1932, da qual participou apoiando o governo de Getúlio Vargas.
Será feito um levantamento da vida de Dica, a fim de ressaltar que toda a sua força
politica e religiosa se deu a partir desses acontecimentos sobrenaturais que aconteciam em sua
comunidade envolvendo seus dons. As pessoas que a seguiam acreditavam cegamente em
suas curas e seus milagres enfim, acreditavam que ela possuía dons mediúnicos reforçando
assim sua força perante o povo. De fato vários desses acontecimentos ainda despertam a
curiosidade e deixam dúvidas em quem faz uma leitura mais aprofundada do assunto. O
próprio Dia do Fogo, ainda traz algumas indagações a tona devido aos depoimentos
intrigantes que foram dados pelos moradores do reduto depois do ocorrido6.
A seguir traçaremos uma linha destacando e apresentando alguns desses momentos
considerados como cruciais da vida de Dica, como suas “ressureições”, seus “milagres”, sua
religiosidade, suas prisões, enfim, sua vida. Isso é indispensável para qualquer pesquisa que a
tenha como objeto e é uma das metas do presente trabalho. É importante entender como se
deu esse movimento social em Goiás fazendo um levantamento dos acontecimentos e fatores
5
- Nome dado a Coluna de uma importante oligarquia goiana - os Caiados - formada para enfrentar a Coluna
Prestes que ameaçava invadir Goiás na década de 20.
6
- O Dia do Fogo será melhor discutido no segundo capítulo desse trabalho.
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que transformaram Benedicta na líder messiânica que mobilizou centenas de pessoas e que
mais tarde transformaria a mesma em referência politica no estado de Goiás.
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CAPÍTULO 1: A TRANSFORMAÇÃO DE DICA NA LÍDER MESSIÂNICA DE
LAGOLÂNDIA.
A vida de Benedicta Cypriano Gomes sempre esteve cercada por histórias misteriosas.
Várias pessoas que vivem em Lagolândia ainda contam que ela já nasceu predestinada pelos
anjos a mudar a vida dos moradores da comunidade que mais tarde fundaria. Até onde é mito
ou verdade não se sabe, o fato é que a profecia se cumpriu aos olhos do povo e a missão de
Dica se realizou, essa missão era transformar e ajudar a vida de várias pessoas através de seu
movimento o que de fato aconteceu. Em seu reduto Dica ministrava curas, profecias e até
cirurgias despertando ainda mais a curiosidade de quem se depara com sua história de vida.
Hoje em dia ainda é possível encontrar em Lagolândia e em várias partes do estado de Goiás,
pessoas que conhecem alguém que já foi operada ou mesmo curada por Dica. Uma sobrinha,
que viveu boa parte de sua vida com Dica é um exemplo vivo disso e conta7 que foi operada
das amígdalas por ela8. Apesar de todos esses anos passados ainda nos deparamos com vários
assuntos misteriosos e sem explicação ocorridos em Lagolândia envolvendo Dica. Essas
operações feitas por ela são bastante intrigantes . Segundo sua sobrinha, depois de sua cirurgia
espiritual ela procurou um médico que constatou que ela não tinha mais amígdalas, algo
inexplicável aos olhos de quem não presenciou o ocorrido e uma mentira ou mesmo loucura
aos ouvidos de um cético.
A seguir, um levantamento dos acontecimentos que transformaram Benedicta em
“Santa” Dica, discuti-los e apresentar o quão conturbada foi relação do movimento que
lideraria com a Igreja Católica, aqui considerada e apresentada como o maior e principal rival
do movimento dos anjos devido a sua força na época. Existia uma forte relação entre o
movimento de “Santa” Dica e a religião. A população que vivia de forma oprimida e quase
miserável buscava abrigo e conforto na religião (o catolicismo era predominante na região). A
Igreja Católica pregava e tentava fazer o povo acreditar que se eles viviam na miséria agora,
em outra vida seria diferente e Deus os recompensaria. Isso mantinha a ordem católica perante
o povo e com isso a referida instituição conseguia se manter no controle. Entretanto, Dica
7
- Entrevista concedida no dia 15 de abril de 2012 em Lagolândia.
- Na mesma entrevista ela relata que durante sua cirurgia espiritual ela conseguia enxergar várias pessoas de
branco andando pelo quarto, depois Dica teria dito que essas pessoas eram os seus anjos enfermeiros que a
ajudaram na operação.
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surgiu entre os coronéis e a Igreja Católica para mudar a vida dessas pessoas através do seu
movimento, inicialmente de caráter religioso e que com o passar do tempo se transformou
também em um movimento político, mudança essa na vida das pessoas, caracterizada
principalmente pela rapidez com que o reduto dos anjos cresceu e apareceu em Goiás.
1.1 – Nasce a “santa”: Dica e o início do movimento dos anjos.
A chamaremos de “Santa” Dica em alguns trechos do texto apenas pelo fato de que foi
por esse nome que ela ficou conhecida.
O termo “Santa Dica”, pelo qual a personagem ficou conhecida, ainda hoje
causa constrangimento aos seguidores e pessoas que conhecem sua história e
sabem que esse era frequente em jornais e processos de forma irônica para
desmoralizar Dica. Por parte de moradores nunca foi pedido sua
canonização, nem a denominam de Santa (REZENDE, 2011, p. 23).
Seu movimento, social-religioso, foi um dos mais expressivos e com maior destaque
no estado de Goiás e ainda hoje é visto como um dos mais relevantes para a história goiana e
também para a historia das mulheres no Brasil. Em plena República Velha, Dica conseguiu o
que alguns levaram toda uma vida para conseguir, comandar e ser respeitada por homens em
uma época em que a “obrigação” das mulheres era se casar e ser submissa a seu marido e
voltar toda sua vida para cuidar de seus filhos e família. Dica de certa forma seguiu as regras
que lhe eram impostas pela sociedade na época, foi mãe, esposa (por 2 vezes) e conciliou
tudo isso com a missão de ser líder de centenas de pessoas que viviam ao redor de sua casa,
cerca de 500 pessoas chegaram a morar em sua comunidade. Mas como uma mulher
conseguiu mobilizar e comandar tantas pessoas no interior do interior do Brasil na década de
20?
Por meio de fé e religiosidade, já que o povo acreditava ser esta uma “Santa”
enviada dos anjos como mediadora entre eles e o céu. Era esta fé de um povo
simples que a legitimava como líder, com poderes espirituais e materiais.
(PACHECO, 2010, p.17).
Através de seus dons descritos como mediúnicos por seus seguidores e por ter
“ressuscitado” da morte despertando para uma fama tão expressiva que a daria a patente de
capitã do exército e prestígio político suficiente para eleger seu primeiro marido prefeito de
uma importante cidade goiana, Pirenópolis. Todos que viviam no reduto dos anjos
acreditavam realmente nos poderes de Dica e isso servia como instrumento de dominação
sobre aquela parcela de pessoas que a obedecia sem questionar.
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Sobre sua história de vida sabe-se que Dica nasceu em uma pequena gleba de terras
conhecida como Fazenda Mozondó a exatos 37 Km de Pirenópolis, local que pertencia a seu
pai Benedito Cypriano Gomes na época, no ano de 19059. Seu pai exercia a profissão de
lavrador e em sua pequena chácara produzia rapaduras e complementava a renda familiar
fazendo rédeas e laços. Benedicta era a primogênita de oito irmãos e ainda muito nova foi
morar com sua avó paterna. Como sua família era católica cresceu aprendendo e seguindo
essas tradições, as obedecendo e respeitando até o fim de sua vida.
Muito cedo Benedicta passou a viver em companhia da avó paterna – D.
Isabel Borges – no vilarejo daquele condomínio, local conhecido como
Lagoa, onde esta possuía pequena gleba de terra, vizinha à de seu filho, pai
de Benedicta. Com sua avó e uma tia, Leocárdia – sua madrinha, Benedicta
cresceu aprendendo as lidas domésticas e a prática da religião católica. Esta
fora sua escola, que não lhe ensinava, entretanto a ler ou escrever
(VASCONCELLOS, 1991, p.79).
Sempre foi dotada de uma beleza impar e por esse motivo despertou muitas paixões
inclusive em Caxeado, o homem que a teria abusado sexualmente como já foi colocado
anteriormente. Sua beleza é evidenciada quando serve de modelo para um quadro de Tarsila
do Amaral (pintora, desenhista e uma das figuras centrais da pintura brasileira e da primeira
fase do movimento modernista no Brasil) e é descrita em uma passagem do livro do
historiador goiano Antônio José de Moura. Ele a descreve da seguinte maneira em seu
romance “Sete léguas do Paraíso”:
[...] Conquanto de carnação prodígio e consistente, seu corpo é esguio e tão
harmonioso de linhas que, não importa a maneira como esteja vestida, a
roupa que veste só serve para realçar-lhe as formas, destacar-lhe a graça. A
pele é um moreno claro tão limpo de imperfeições, tão isento de impurezas,
que nem com o auxilio de lupas seria possível a alguém captar-lhe o menor
indício de mácula. O rosto é de deusa, perfeito tão perfeito e refletindo tal
frescor e tão grande viveza que, reproduzindo por pincel de mestre, poderia
ser exibido como expressão mais bela da mulher. De estatura meã e olhos
acesos de escuro fulgor, a cabeleira ondulada – lhe cintura abaixo, negra
macia, abundante, sempre sensível, se ela anda ao vai e vem das ancas. [...] a
esbeltez de seu porte endoidara irremediavelmente os homens, para a quase
totalidade dos quais é pecado desejá-la como fêmea, por santa derrubá-la no
caminho da fonte. Daí o suplício dos insofridos, ainda que só em
pensamento acuados entre o abrasamento da carne e os interditos da fé
(MOURA, 1989, p.20).
9
- Existem algumas contradições a respeito do ano de seu nascimento. Em alguns artigos consta que ela teria
nascido em 1909 ou 1906 mas aparentemente o ano certo é realmente 1905, essa informação nos foi confirmada
por sua irmã Bernarda Cypriano Gomes em uma entrevista concedida no dia 15 de abril de 2012. Sendo assim,
no presente trabalho seu ano de nascimento será atribuído à 1905.
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O início de seu movimento messiânico se deu a partir de suas “ressureições”, que
segundo fontes foram três ao todo. É a partir daí que Dica obtém sua fama e força política e
religiosa no estado de Goiás. A primeira “ressureição” teria ocorrido quando nasceu. Dica
nasceu sem sinais aparentes de vida, por isso foi dada como morta pela parteira e depois de
passadas 24 horas nesse estado os pais dela decidiram enterrá-la, quando ela chorou, o que foi
motivo de espanto e alegria para todos os seus familiares. Até então ninguém associava a
figura de Dica a santidade mesmo porque ela não passava de um bebê recém-nascido, por isso
todos ligaram o acontecimento a um milagre e ficou por isso mesmo, sem grandes alardes a
respeito do ocorrido.
A segunda ressureição foi quando tinha aproximadamente dois anos de idade. Rezende
relata com detalhes esse acontecimento na vida de Dica:
Com a idade de dois anos, sem sofrer de nenhuma doença aparente, para de
respirar, fica totalmente imóvel sem responder a nenhuma tentativa de
recobrar-lhe os sentidos, o que causa imensa tristeza em seus familiares e
naqueles que moravam na região [...] Após um período de velório, todos se
assustaram diante da cena que assistiram, Dica tossia e de sua boca golfadas
de sangue e pus saíam sem que pudessem ser contidas [...] Todos os
presentes tiveram um único entendimento do fato ocorrido, que Dica era
uma criança especial e nascera com uma missão a cumprir, acima da
compreensão de qualquer um deles (REZENDE, 2011, p.16).
Até então, mesmo com duas “ressureições” Dica ainda não tinha despertado a
fidelidade – no sentido religioso – das pessoas. Isso só vem acontecer quando ela completa 15
anos de idade quando mais uma vez perde os sentidos vitais. “Dica cai enferma e é tida como
morta num provável caso de catalepsia10. Porém, passados três dias, ao lhe ser dado o
tradicional banho dos defuntos, Dica “ressuscita”, espalhando a notícia de um milagre pelo
município, estado e pelo país” (PAIVA, 2005, p. 07). Só ai que sua “santidade” no imaginário
do povo surgiu e seu movimento de fato se iniciou. As pessoas atribuíram o acontecido a algo
milagroso e essa notícia se propagou rapidamente pela região, o que fez com que famílias e
pessoas de várias partes do estado de Goiás fossem a seu encontro com o anseio e com a
curiosidade de conhecer a garota que “ressuscitou”. Essa curiosidade pode ser entendida
levando em consideração a seguinte questão: na década de 20 a maioria absoluta da população
goiana era fiel a Igreja Católica e um caso de “ressureição” despertava a atenção e
principalmente a devoção de todos.
10
- Perturbação psicomotriz caracterizada por imobilidade e inércia de todo o corpo, levando a que o paciente
permaneça na posição em que foi colocado.
20
A partir desses acontecimentos (FILHO, 2009) nos remete a uma análise interessante.
Dica já havia “ressuscitado” por duas vezes, mas só na terceira é que seu movimento se inicia,
porquê? Segundo ele isso ocorreu primeiro pela questão da idade, só na terceira ressurreição
ela tem idade suficiente para comandar um movimento e segundo, está ligado ao fato de que
Dica tinha um mentor por trás de seu movimento, que provavelmente a ajudou a inicia-lo,
mentor esse que não habitava o local nas duas primeiras ressureições.
Não obstante, percebemos também que, para iniciar e dar continuidade ao
“Movimento dos Anjos”, não bastavam fatos extraordinários, como uma
ressurreição, ou mesmo a presença de vozes que apontassem Dica como
sendo uma “menina especial”; Dica necessitava de capacidades
psicomotoras e intelectuais para abstrair e estabelecer uma nova “doutrina” e
religiosidade, ou mesmo manipular elementos do sagrado, que permitisse ao
povo ter condições de nela acreditar, e a ela seguir. Tais capacidades só
poderiam estar presentes em Dica com uma idade já avançada, ou – como no
presente caso Dica possuía apenas 15 anos de idade, o que, aparentemente,
ainda não a permitiria desenvolver tais manipulações por si mesma – pela
presença de um terceiro, que a investisse de idéias e procedimentos originais
para uma nova religiosidade (FILHO, 2009, p.34).
Segundo Rezende esse mentor era Alfredo dos Santos, vulgo “Gaúcho”, o único
morador do reduto dos anjos alfabetizado.
Em todo caso, após sua terceira “ressurreição” Dica deu início ao
“Movimento dos Anjos”, o qual ganhou ainda mais força e consistência com
a presença de seguidores importantes, como o próprio Alfredo dos Santos,
que certamente a ajudara a desenvolver as bases mais fundamentais de seu
messianismo” (FILHO, 2009, p. 35).
Gaúcho teve grande importância para que o movimento dos anjos se iniciasse em
Lagolândia ajudando Dica a elaborar as bases de sua liderança messiânica no interior goiano
devido a sua capacidade de ler e escrever dom que nenhum outro morador do reduto tinha,
inclusive Dica que sempre foi analfabeta, sina de muitas mulheres na época. Contudo, após
suas ressureições, o movimento dos anjos se inicia e Dica passa a ser considerada e aclamada
como líder messiânica por seus seguidores, apesar de suas ressureições terem uma explicação
científica extremamente cabível ao momento. Como já foi colocado anteriormente a medicina
descreve o que Dica teve como uma crise de catalepsia11, algo mais comum do que se
imagina, mas na época poucas pessoas tinham conhecimento desse fato o que ajudou a
propagar a fama de Dica uma vez que as pessoas associavam o feito com algo divino e por
11
- Dica sofria de catalepsia e durante toda sua vida teve crises assim, segundo Waldetes Rezende, seus
seguidores eram tão acostumados com seus desmaios que quando ela desmaiava ninguém a tocava ou se
preocupava com ela, apenas a colocavam em uma cama e aguardavam até que ela acordasse, muitas vezes ela
passava dias desacordada.
21
isso sua figura, a partir dai, passa a ser associada a santidade e ela ganha status de líder no
local.
Com isso sua fama cresce e em pouco tempo várias famílias passam a habitar a
Fazenda Monzodó iniciando assim o reduto dos anjos.
Essa comunidade foi formada no povoado da Lagolândia, espaço que
pertencia à Fazenda Mozondó, condomínio de mais ou menos 12 lotes de
tamanhos desiguais, ainda não demarcados na época. A maior parte do
território era composta por matas e o restante era destinado ao cultivo, que
garantia a subsistência daqueles que lá moravam (SILVA, 2006, p.15).
O povo que chegava ao reduto se deparava com o que (PAIVA, 2005) denominava de
“paraíso no cerrado”. Um lugar com melhores condições de vida, onde se trabalhava para o
seu próprio sustento, onde o uso do dinheiro foi banido por Dica e onde não existia
desigualdade social ou financeira. O lema era "a terra é de Deus", todos os moradores se
tratavam como irmãos e Dica pregava que todos eram iguais aos olhos de Deus e que não
precisariam mais pagar impostos ao estado. No reduto dos anjos cada família recebia um lote
para plantar e a produção era dividida para todos os moradores em partes iguais no final das
colheitas. Dica usou as terras que antes pertenciam à seu pai e dividiu com os moradores, ela
conseguiu criar uma sociedade socialista em um local e para um povo que sempre esteve
acostumado com o capitalismo, mesmo sem saber o que essa expressão significava e
acarretava em suas vidas. Antes trabalhavam para os coronéis, agora trabalham para si
próprios, para sua própria sobrevivência, apesar de não obterem lucro com esse trabalho.
Benedicta dividiu a terra para todos, ditando a utilização coletiva dela e dos
bens que nela fossem produzidos. Muitos trabalhadores de fazendas vizinhas
passaram a aderir ao movimento, deixando seus empregos e passando a
trabalhar em conjunto nas terras da Comunidade. Seu poder incomodava os
coronéis da região, que viam em sua pessoa uma certa reprodução do
episódio de Canudos com perdas de trabalhadores e poder sobre a população
(SILVA, 2005, p.15).
Logicamente que esse modo de vida chamou a atenção do povo que vivia na região e
com o passar dos meses mais e mais famílias foram se aglomerando ao redor da casa de Dica.
Moradores das fazendas coronelísticas e romeiros que vinham de longe para conhece-la foram
os mais expressivos. Isso deixou os coronéis goianos com muita raiva, porque muitos
trabalhadores abandonavam suas fazendas para segui-la deixando “muitos desses
proprietários, sem um número suficiente de trabalhadores, pois os mais insatisfeitos, deixaram
os seus trabalhos e foram viver em sua Comunidade” (SILVA, 2005, p. 40).
Na época Goiás era considerado como pouco relevante no que dizia respeito à
economia e a política do Brasil na época.
22
Goiás, (...), não desfruta, durante a República Velha, de grande expressão no
cenário nacional. Estado de pequeno orçamento, população escassa, terras
pouco valorizadas, força pública diminuta, políticos poucos expressivos e
economia insignificante, não consegue despertar a atenção do governo
central para os seus problemas. Nem mesmo as disputas internas entre os
vários poderes merecem uma intervenção federal. Era um estado entregue à
sua própria sorte (VASCONCELLOS, 1991, p. 53).
Com cidades pequenas, sem expressão política e econômica, Goiás nem se comparava
com cidades como São Paulo economicamente falando, fator esse que facilitava para que os
coronéis continuassem com o poder nas mãos, já que eles eram vistos como os mais ricos da
região e comandavam quase tudo devido á política coronelista que regia o estado na época e
que de certa forma os amparava. Esses coronéis se aproveitavam da ignorância e da
humildade do povo para se sobressaírem politicamente e conseguirem com mais facilidade
trabalho com mão-de-obra barata para suas fazendas e votos, já que uma das armas mais
utilizadas por eles pra permanecer na cena política goiana era o “voto de cabresto12”.
O coronelismo, grosso modo, possui suas raízes no sistema colonial
brasileiro e, como tal, o termo é normalmente usado para designar os
grandes proprietários de terra que sempre dominaram a cena política
brasileira até a Revolução de 30 (DÓRIA, 2012, p. 03).
Dados os fatos chega-se a conclusão que a fama de Dica incomodava e atrapalhava os
coronéis principalmente por dois motivos: a questão da mão-de-obra: os trabalhadores de
suas fazendas estavam se afastando para seguir Dica, e segundo pela questão dos votos uma
vez que todos que viviam no reduto de Dica a obedeciam e a seguiam cegamente atrapalhando
os interesses políticos dos coronéis já que eles usavam e abusavam do chamado “voto de
cabresto” para com seus empregados na época. Eles – os coronéis – temiam que alguma
história semelhante à de Canudos se repetisse em Goiás, por isso interferiram juntamente a
Igreja Católica frente ao estado para dar fim ao reduto dos anjos culminando com o Dia do
Fogo. Com isso o primeiro grande rival do movimento de Dica surgia: os coronéis, que
enxergavam Dica como um obstáculo político e econômico e que estava disposto a derrubá-lo
a qualquer custo.
Contudo, percebe-se que Dica dividia seu reduto como uma sociedade, a sua própria
sociedade, que se mantinha completamente diferente da que existia no mundo fora do reduto
12
- O voto de cabresto é um sistema tradicional de controle de poder político através do abuso de autoridade,
compra de votos ou utilização da máquina pública. É um mecanismo muito recorrente nos rincões mais pobres
do Brasil como característica do coronelismo. Era usado onde o coronel (fazendeiro) obrigava e usava até
mesmo de violência para que os eleitores de seu "curral eleitoral" votassem nos candidatos apoiados por ele.
Como o voto era aberto, os eleitores eram pressionados e fiscalizados por capangas do coronel, para que
votassem nos candidatos por ele indicados
23
dos anjos, sociedade essa que contava com a presença de seres invisíveis no lugar mais alto de
sua hierarquia celeste, sem deixar de demonstrar é claro que seu lugar dentro dessa hierarquia
estava sempre um patamar acima de seus seguidores. Dica dividia sua sociedade dos anjos
hierarquizando-a da seguinte maneira.
Fonte MOURA, 1989, p.57. Segundo o jornal “Estrela do Jordão”.
No topo vinha a Ordem Sagrada, constituída dos anjos com os quais conversava
durante seus transes dividida em blocos: de um lado os anjos conselheiros e do outro lado os
anjos guerreiros e no centro José Sueste, seu primo já falecido que presidia os conselhos do
qual participava. Logo abaixo vinha a Ordem Profana da qual faziam parte todos os
moradores do reduto divididos dessa forma: primeiro vinha Dica, sempre em um patamar
acima, como uma verdadeira líder, mais abaixo vinham os seus auxiliares e os propagandistas
de fé e na base os fiéis. Essa sociedade criada por Dica foi denominada por ela como
Sociedade Sagrada.
Com relação à Ordem Profana, encontravam-se, sob a liderança de Dica,
hierarquicamente, os auxiliares, responsáveis pela manutenção e auxílio do
Salão de Curas e das demais funções religiosas desempenhadas por Dica,
24
destacando-se, dentre eles, Alfredo dos Santos – o “mentor intelectual” da
confiança de Dica – responsável pela transcrição das mensagens recebidas
por Dica enquanto esta estava em estado de transe. Além destes, havia os
Propagandistas da Fé, responsáveis pela divulgação do movimento
messiânico, e os Fiéis seguidores devotos de Santa Dica (FILHO, 2009, p.
39).
Na medida em que o movimento dos anjos e a população do reduto dos anjos cresceu,
percebe-se uma “evolução” de patamar de Dica na visão de seus seguidores e dela mesma
com o passar de tempo. Ela vai de curandeira a santa em alguns anos, isso porque suas curas e
profecias tiveram um resultado positivo para seus seguidores que logo lhe deram a fama de
milagreira que o resto do estado ficou conhecendo.
Santa Dica era somente curandeira, diagnosticando males e receitando a seus
devotos os remédios adequados para seus males. Tais diagnósticos eram
feitos durantes seus transes, em que era chamada a conferenciar com o
Conselho de Anjos. De Curandeira, não demorou muito para que a santa
fosse vista como milagreira devido os supostos resultados positivos de suas
curas e benzeções. Não obstante, devido à grande velocidade com que sua
fama se espalhava entre o povo goiano, bem como também devido à
evolução e complexidade que ganhavam suas conferências angelicais, Dica
passou rapidamente, de milagreira a profetiza e desta para santa
(VASCONCELLOS, 1991, p.81).
Na condição de líder do reduto Dica curava, profetizava e depois de alguns anos
passara a realizar cirurgias, sempre acompanhada de seus anjos dentre os quais destacamos o
Dr. Romulo Fritz Merques, Dr. Edson, Dr. Alain e Dr. Luiz, o primeiro sendo sempre o mais
lembrado pelos seguidores de Dica que ainda vivem em Lagolândia. Esse com certeza é um
dos assuntos que mais chamam a tenção do leitor quando o assunto é “Santa” Dica, as
características religiosas presentes em seu movimento são bastante interessantes.
Dica teria criado uma “nova religião” durante seu movimento dos anjos, com suas
próprias características e dogmas ainda que com vários pontos em comum com o espiritismo e
o catolicismo, características essas recheadas de mistérios e pontos a serem desvendados.
Devido a essa relação da nova religiosidade de Dica com o catolicismo é que a relação entre
Dica e a Igreja Católica fica mais conturbada e cheia de acusações e xingamentos por parte da
instituição religiosa destinados a moça. Entretanto, enquanto a Igreja e os coronéis odiavam
Dica, em contra partida vinha o povo do reduto que a amava e a seguia cada vez mais
cegamente. Através de matérias dos jornais O Democrata e Santuário de Trindade percebemos
o desconforto que Dica causava na Igreja Católica.
Dica se tornou uma espécie de Lenine de sexo differente. Prega a partilha
equitativa das terras pelo povo. [...] É preciso que lembremos de que um
25
homem suggestionado, crente, vale por dez. É sobrehumana a sua força.
Canudos é de ontem, e nós sabemos o que foi Canudos (JORNAL O
DEMOCRATA, 1924).
No decorrer do movimento dos anjos iniciado por Dica em Lagolândia podemos
perceber através de leituras que a mesma teria criado uma religiosidade realmente particular a
partir de sua liderança sócio religiosa no município. Dentro dessa sua religiosidade ela fazia
uma junção das duas grandes religiões misturando a doutrina espírita com a católica iniciando
a sua própria com características suas. Demonstraremos a seguir algumas dessas
características religiosas juntamente comum pequeno levantamento sobre a relação entre Dica
e a Igreja Católica, instituição que sempre demonstrou antipatia pelo movimento dos anjos e
por sua respectiva líder a “Santa” Dica.
1.2 – As características da religiosidade de Dica .
No que diz respeito ao movimento dos anjos liderado por “Santa” Dica no interior
goiano existe a necessidade de ressaltar algumas questões de grande valia para a presente
pesquisa, um exemplo são as características religiosas presentes em sua liderança tais como os
rituais que ela presidia em seu reduto, rituais esses com vários pontos a serem desvendados
devido aos elementos sobrenaturais que os envolvia e as características de sua religiosidade
com outras religiões. Existem alguns historiadores como Lauro de Vasconcelos e Waldetes
Rezende que levantaram a hipótese de Dica ter criado uma nova religião com muitas
semelhanças com a doutrina espírita e a católica. Nessa perspectiva tentaremos apresentar
algumas questões relacionadas a isso. Começando pela relação existente entre o espiritismo e
sua nova religiosidade.
Apontamos como exemplos espíritas claros em sua religiosidade, os transes, nos quais
Dica entrava constantemente.
Nesses dias, a moça não comia antes da cerimonia ser encerrada, era levada
para o banho (purificação), em seguida se dirigia para a sala maior da casa
onde se encontrava um altar com a imagem da Virgem Maria, ao lado estava
a cama construída sob encomenda de um carapina, pois possuía 10 palmos
ou 2 metros de altura, na qual Dica subia com ajuda de uma escada. Deitavase e em poucos minutos ficava paralisada, parecendo mesmo estar morta, era
quando começava a manifestação espiritual. A seguidora Ilza Rezende relata
que, durante os transes, Dica ficava como morta, a voz saía de seu corpo,
mas sua boca não se mexia, mudava de voz constantemente, conforme os
guias se manifestavam. As luzes permaneciam apagadas durante a reunião
(REZENDE, 2011, p 17-18).
26
Nessa sala se deitava em uma cama, grande e alta, especialmente feita para essa
ocasião e depois de poucos minutos começava a entrar em transe. Durante esses conselhos
que aconteciam em sua casa, que mais tarde ficou conhecido como “casarão das curas”, ela se
comunicava com anjos. Dica recebia conselhos sobre problemas pessoais e curas de doenças
que posteriormente repassava para os moradores do reduto durante suas conversas. Esses
rituais tinham sempre a finalidade de solucionar problemas para a comunidade e certa forma
pode-se perceber que ela usava esse “contato com os anjos”, para manter sua autoridade sobre
a população do reduto que acreditava em seus dons mediúnicos e principalmente acatavam
tudo o que lhes era imposto por Dica e por seus anjos nesses conselhos.
Com relação aos Guias espirituais, ou Anjos, que supostamente guiavam o
movimento de Santa Dica, encontramos claramente elementos típicos do
espiritismo, mas principalmente típicos de uma religiosidade essencialmente
popular destacável pela crença em entidades mortas enquanto crianças
(FILHO, 2009, p. 37).
Um pequeno trecho do livro de Alan Kardec ilustra bem essa relação de sua
religiosidade com a doutrina espírita.
As palavras espiritual, espiritualista e espiritualismo têm sentidos bem
definidos; dar-lhes novos significados para que sejam aplicados à Doutrina
dos Espíritos seria multiplicar as causas de ambiguidade, que já são
numerosas. Com efeito o espiritualismo é o oposto do materialismo;
qualquer pessoa que acredite ter em si outra coisa além de matéria é
espiritualista; mas isto não significa que ela acredite na existência de
Espíritos ou em suas comunicações com o mundo terreno. Para designar esta
última crença, em lugar das palavras espiritual e espiritualismo
empregaremos as palavras espírita e espiritismo, cujas formas lembram a
origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, têm a vantagem de ser
perfeitamente inteligíveis, deixando para a palavra espiritualismo o seu
sentido próprio. Diremos, então, que a Doutrina Espírita ou o Espiritismo
tem por principio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres
do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas ou, se se
preferir, os espiritistas (KARDEC, 1991, p.09).
Percebemos que se seguido ao pé da letra a “nova” religião de Dica possui algumas
semelhanças com os princípios descritos por Kardec, características essas visivelmente
espíritas destacadas pela passagem que afirma que o espiritismo tem como principio as
relações do mundo material com os espíritos, ou seres do mundo invisível ambos muito
utilizados por Dica em sua nova religiosidade. Suas conversas com anjos são um exemplo
dessa relação do mundo material com espíritos uma vez que esses anjos eram apontados como
dois primos de Dica falecidos ainda criança, são eles Silvéria e José Sueste, que sempre são
citados em entrevistas.
27
Em todo caso nesses rituais conseguimos perceber também a presença de doutrinas
visivelmente católicas como a presença da imagem da Virgem Maria e o “jejum antes de sua
cerimonia ambos apropriados e manipulados por Dica, segundo interesses próprios de seu
movimento” (FILHO, 2009, p.39). Destacando outras semelhanças presentes em sua
religiosidade com o catolicismo frisamos também a sua fidelidade a santos católicos como
São Sebastião. Dica até realizava festas para louvá-lo em seu reduto dos anjos, festas essas
muito grandes e com vários seguidores como já foi colocado anteriormente. Outra semelhança
gritante é o fato de que Dica crismava e presidia casamentos no reduto dos anjos, ambos
sacramentos de extrema importância da instituição catolicista.
Dica sempre se mostrou respeitosa para com a Igreja Católica, inclusive enquanto
estava presa em 1925, ela teria recebido um carta, citada por Waldetes durante uma
entrevista13, supostamente escrita por Jesus Cristo, na qual fica evidente que o movimento dos
anjos e a Igreja Católica tinham uma ligação profunda ainda que essa ligação não fosse do
agrado da instituição religiosa que sempre achou uma ousadia Dica presidir sacramentos em
seu reduto. Na carta em questão que foi denominada como “Carta Sagrada” estava escrito os
mandamentos que os moradores do reduto dos anjos teriam que seguir como por exemplo a
devoção a santos católicos e ordens para que os fiéis frequentassem as missas de domingo, um
forte indício de que o “movimento de Santa Dica não tinha pretensões de romper
definitivamente com a Igreja Católica (FILHO, 2009, p.49)”. Abaixo todo o conteúdo da
Carta Sagrada:
Carta Sagrada, dada por Nosso Senhor Jesus Cristo. Pelo monge Santo Frei
Manoel Salvador, dizendo, filhos meus, reunindo com o sangue derramado
na Cruz. Por vós aviso com o tempo para livrarem de vossos pecados que
tens feito contra mim. Pois, meus filhos se não fosse eu ter pezar, já tinha
destruído todas as maldades que tens feito contra mim. Se não fosse os
Benditíssimos rogos de minha mãe, Maria Santíssima, Santa Catarina, Santa
Tereza e São Francisco e os anjos de vossas guardas, eu já tinha consumido
abraçado o divino pedido por vossa vida, contra os erros que tens feito cruel
contra mim, e tanto que tenho avisado pelos meus vigários e meus profetas.
Nem assim vós não arrependesses, para mudar de vida. Eu mando que vais à
missa aos domingos e os dias Santos de guarda, fazeres suas orações para
cumprir com meus preceitos. Eu não quero que trabalhe aos dias de sábados,
domingos e dias santos. Dar esmolas aos pobres de bom coração e de rosto
alegre, que terais de mim o sacro, no dia do grande castigo, que eu mandarei
de Agosto e diante também destroirei com raios medonhos trovões,
tempestade e tremor de terra. Verais tocar corneta, temer a minha ira contra
vós. Terão vossos pais arrependidos de não ter educado os vossos filhos
quando era tempo, agora é tarde. Se não arrepender com lágrimas naquele
momento e todos que duvidar das minhas palavras não terão benção e serão
13
- Entrevista concedida no dia 15 de abril de 2012 em Lagolândia.
28
condenados no inferno para sempre. Todos que usarem o ato de caridade
para com os seus semelhantes e fizerem a misericórdia para o seu próximo.
Santa Catarina, Santa Tereza. São Francisco e os Anjos da vossa guarda são
que me pedem sempre para recompensar todos. Geralmente sabem que este
meu aviso, com tempo de arrepender dos erros que tens cometidos, para
livrar do inferno para sempre. E quem tiver em sua casa esta carta sagrada de
aviso, com fé em mim não terão o castigo. E quem duvidar que estes meus
avisos foi feito por minhas sagradas mãos e trazida por meus anjos serão
destruídos como o primeiro século. Todos aqueles que tiver esta carta em
casa com grande fé em mim deve copiar pelo amor de Deus a primeira para
minha mãe Maria Santíssima, a segunda para Santa Catarina, para ser
espalhada pelo mundo. Eu perdoarei todos os pecados daqueles que não
souber ler nem escrever, dar um vintém a quem souber, este vintém será
posto no cofre das almas, para ficar vigorosa esta carta. É para ler todos os
domingos sem falhar por devoção, quem assim fizer eu perdoarei e colocarei
à minha direita e serão livres de todos os perigos desta vida. Quem temer do
castigo e quem tiver e não cumprir com os meus preceitos não terão o pão e
nem o alimento corporal. Verão vossos filhos morrer de tanta crueldade e
tormento e não saberão por onde vai, a respeito dos abusos, das culpas
cometidas que tens feito contra mim. Meus ingratos filhos, torno a avisar
com tempo é preciso rezar uma salve rainha, par aminha mãe Maria
Santíssima, para Santa Catarina, para Santa Tereza e para São Francisco, e
um pai nosso e uma ave-Maria e um Glória ao pai, por vosso anjo da guarda,
para que interceda para não ser castigado, pelas vossas plantações e criações
e serão todos felizes por minha mãe. Maria Santíssima, por todos os séculos.
Amém (FILHO, 2009, p. 87).
Mais um fato curioso nos é apontado a partir da existência dessa carta. Dica era
analfabeta portanto não existia a menor possibilidade de ela mesma tela escrito na cadeia onde
se encontrava na época. De onde ela veio? por quem foi escrita? São perguntas que ainda hoje
carecem de repostas por parte da historiografia. Mais uma vez percebemos curiosidades e
acontecimentos misteriosos que reforça a tônica mística e messiânica envolvendo sua vida. De
fato sobre o assunto tem-se que os seguidores de Dica sempre seguiram e acataram o
conteúdo e as ordens dessa carta sem duvidar em nenhum momento de sua veracidade e que a
mesma foi realmente escrita por Jesus Cristo.
Entretanto, percebe-se a existência de uma certa predileção de Dica para com o
espiritismo analisando seus rituais. Sua sobrinha14 afirma que a própria Dica se considerava
espírita até o fim de sua vida, mas apesar das várias características em comum com o
espiritismo e o catolicismo, Dica realmente criou uma nova religiosidade a partir de sua
liderança social no reduto dos anjos usufruindo de dogmas “emprestados” de outras religiões
para montar os seus próprios. De fato essa nova religiosidade tinha suas particularidades, a
própria fusão dessas duas doutrinas – católica e espírita - com tantas diferenças já pode ser
apontada como a diferença mais expressiva. A partir desse sincretismo religioso Dica pode
14
- Entrevista concedida no dia 15 de abril de 2012 em Lagolândia.
29
montar sua própria religiosidade através da qual impunha e mantinha sua liderança e
autoridade sobre o povo do reduto dos anjos.
A união dessas práticas com dogmas católicos além de tornar sua nova religiosidade
singular, despertou junto com a devoção de seus seguidores o ódio da Igreja que sempre a
atacou e que sempre condenou práticas espíritas. “A Egreja Catholica condena o espiritismo e
proíbe debaixo de pecado mortal a assistência às sessões espíritas (SANTUÁRIO DE
TRINDADE, 1922)”. Entretanto pode-se afirmar que a nova religiosidade de Dica realmente
agradava a seus seguidores que em vários casos passavam uma vida inteira sem ao menos
procurar a Igreja para se batizar acreditando e respeitando os batismos conferidos por Dica em
seu reduto.
Em contra partida a essa adoração do povo vinha a Igreja Católica, outro rival de peso
- juntamente com os coronéis - de Dica e seu movimento messiânico, que usava
principalmente o jornal Santuário de Trindade para atacá-la desde o início. Esses ataques se
deram depois que os padres redentoristas descobriram que Dica realizava ritos muito
parecidos com os de sua instituição religiosa no seu reduto dos anjos ainda que mesclados
com elementos espíritas como já foi colocado anteriormente. Dica se apropriou da maior arma
de dominação católica em seu movimento, segundo (LE GOFF, 2008) “os principais
instrumentos de dominação da Igreja foram a consolidação da teologia e a prática dos
sacramentos”, alimentando assim ainda mais a fúria dos padres redentoristas da região que
consideravam seus feitos religiosos como algo desrespeitoso. A partir daí os ataques da Igreja
ficam ainda mais constantes. Bruxa, impostora, prostituta e histérica são algumas das palavras
usadas para descrevê-la nas matérias.
O povo ignorante e supersticioso se deixa prender por suas baboseiras e
asneiras e em grande número para lá se dirigem para ser batizado, chrismado
e casado sobre os uspieios de tal embusteira. [...] Tal mulher não passa de
uma ignorante e hystérica que está enriquecendo à custa do povo ignorante e
propenso a cousas sensacionais (SANTUÁRIO DE TRINDADE, 1924).
Analisando os rituais que Dica presidia percebesse que existiam realmente vários
pontos em comum com os ritos da Igreja Católica a realização de sacramentos é o mais claro.
Contudo, percebemos que existia um motivo pelo qual Dica tomava para si a responsabilidade
de presidir esses sacramentos católicos para seus seguidores no reduto.
Com relação à utilização dos sacramentos católicos por Dica, como
anteriormente abordado, percebemos dois motivos principais levaram Santa
30
Dica a manipulá-los por conta própria: a excessiva demora de desobrigas15
católicas na região; a legitimidade religiosa adquirida por Santa Dica, dada
por seus fiéis, na medida em que o movimento crescia e seu carisma lhe
permitia tais realizações (FILHO, 2009, p. 303).
A demora que ocorria no que dizia respeito a “obrigação” da Igreja Católica de
realizar tais sacramentos para com a população que vivia no interior do estado de Goiás na
época que não tinha condução e condição de ir a Trindade se batizar ou mesmo se casar.
Lembrando que foi a própria Igreja que apelidou Dica de “santa”, como forma de deboche. Os
moradores de Lagolândia a chamam de Madrinha Dica ou simplesmente Dona Dica. Mas
apesar de todos os ataques, ela sempre que realizava algum casamento ou batismo que fosse,
aconselhava as pessoas que os confirmassem na Igreja Católica (apesar de alguns passarem a
vida inteira sem a procurar) mostrando seu respeito, apesar de ela mesma não ser submissa à
referida instituição.
Apesar desse respeito por parte de Dica a Igreja via nela uma ameaça para seus
interesses. No que tange a economia, a Igreja perdia muito uma vez que sua maior fonte de
renda em Goiás era a festa de adoração ao Divino Pai Eterno em Trindade e as celebrações
feitas por Dica em seu reduto (Folia de Reis, Folia de São Sebastião, Festa do Divino 16)
estavam “roubando” muitos fiéis que deixavam de ir à Trindade para irem à Lagolândia ao
encontro de Dica acompanhar suas celebrações. Acredita-se que aproximadamente 15.000
pessoas chegaram a acompanhar seus rituais e festas no reduto dos anjos.
Dica, que foi excomungada pelos Padres Redentoristas de Trindade através
de matéria publicada no jornal O Santuário de Trindade por volta de 1924,
sob alegação de que ela praticava bruxaria no reduto de Lagolândia, não
pode mais frequentar as festas do Divino d cidades de Pirenópolis e
Trindade, o que a entristeceu muito. O fato provocou mais divergências entre
a líder religiosa e a Igreja Católica sendo que [...] o movimento de migração
de peregrinos era grande e a festa do Divino local chegou a receber cerca de
15.000 pessoas em dias de reinados do Imperador, do Rei e da Rainha, o que
provocou mais revoltas por parte de representantes da Igreja Católica.
Durante os festejos no distrito de Lagolândia, a região era tomada por
romeiros vindos de várias regiões (REZENDE, 2011, p. 21-22).
A partir dessa liderança religiosa no interior goiano Dica passa a dispor de grande
força política e isso ocorreu devido a sua participação em um momento de grande importância
para a politica goiana, a Coluna Caiado que abriu as portas para uma carreira política que não
seguiu as linhas normais. Dica nunca chegou a ser candidata ou ao menos se filiou a algum
15
- Desobrigas e o nome dado às missões redentoristas transcorridas a cavalo pelo interior de Goiás, para a
realização de missas, batismos, crismas, casamentos, etc.
16
- Ainda hoje em Lagolândia ocorre essa celebração conhecida como festa do Divino, uma festa iniciada na
década de 20 e que sobreviveu ao tempo.
31
partido. Ainda assim, segundo Vasconcellos partidos políticos como PSB e PTB a sondaram,
mas ela não se posicionava de lado algum e sempre tentava usufruir desse apoio com políticos
famosos para conseguir benefícios para sua comunidade. Mas em todo caso a partir desses
acontecimentos políticos dos quais participou sempre se mostrou ativa politicamente falando,
se posicionando de algum lado nas eleições obtendo sempre a vitória, já que normalmente
todos os candidatos que ela apoiava eram eleitos com folga devido a sua influência para com
o povo, não só do reduto mas de toda a região circunvizinha ao reduto dos anjos.
Existe uma grande relação entre a religiosidade de Dica e sua vida politica, afinal foi a
partir de sua liderança social e religiosa que ela passa a ter força política perante o povo no
interior de Goiás. Suas participações tanto na Coluna Caiado quando na Revolução
Constitucionalista de 1932 a deram o status de líder política em todo o estado de Goiás. Era
estarrecedor o fato de uma mulher dispor de tanta força e comandar tantos homens em plena
República Velha. Contudo, com essas participações em momentos políticos Dica passa a estar
mais do que nunca na mira da Igreja Católica que juntamente com os coronéis pediram ao
estado que dessem fim no reduto dos anjos resultando assim com o Dia do Fogo, momento de
grande importância em sua vida e na história de seu movimento, que está associado a mais
fatos sobrenaturais.
32
CAPÍTULO 2: DICA, IGREJA CATÓLICA E A POLÍTICA: RELAÇÕES
CONTURBADAS.
“Santa” Dica – nome pela qual ficou conhecida Benedicta Cypriano Gomes – iniciou
e liderou um movimento denominado com messiânico no interior de Goiás na década de 20.
Sua fama foi tão expressiva que a partir dessa força religiosa passa a gozar também de uma
força política semelhante a dos coronéis na região. Usamos com um fato para consolidar essa
ideia a sua participação na Coluna Caiado, que ia contra a Coluna Prestes que ameaçava
invadir Goiás na década de 20, momento onde o senador da época Antônio Ramos Caiado
convocou todos os coronéis influentes em Goiás para defenderem seu estado. Anos mais
tarde, mais uma vez sua força militar é comprovada, quando é convidada para lutar na
Revolução Constitucionalista de 193217, na qual apoiava o governo de Getúlio Vargas.
Ambos são momentos de grande importância em sua vida e a partir daí Dica ganha “status” de
líder política tamanha sua força e influência perante seus seguidores e moradores da região.
No presente capitulo será feito uma discussão a cerca desses momentos políticos
ocorridos na vida de Dica, além de pontuar outro acontecimento que teve grande importância
em sua história, “ o Dia do Fogo‟, o momento mais conturbado e cheio de mistérios que
envolveu sua vida. Novamente utilizaremos entrevistas colhidas em Lagolândia, para reforçar
algumas passagens desses acontecimentos que mais uma vez estão relacionadas com fé de
seus seguidores e com o misticismo que sempre cercou sua imagem. Outro intuito desse
capítulo é demonstrar que a relação de Dica e da Igreja Católica fica ainda mais conturbada
após sua participação na Coluna Caiado, usando algumas matérias do jornal “Santuário de
Trindade” para comprovar que existia uma grande rivalidade entre as duas na visão da Igreja.
Várias foram as matérias onde o nome de Dica apareceu estampando as páginas da
publicação, normalmente sendo associado a algum termo pejorativo por parte da instituição
religiosa que destila ataques ainda mais violentos a moça principalmente depois de ter
conhecimento de sua força política no estado.
17
- Em São Paulo, explode a Revolução Constitucionalista de 1932, quando a burguesia paulista lutava para
derrubar Getúlio Vargas da Presidência da República, e pela elaboração de uma nova Constituição que
contemplasse o estado de São Paulo com suas particularidades, diferenciada da Constituição Brasileira. Em
Goiás, Pedro Ludovico, lança apoio a Getúlio e recruta voluntários para combater as tropas de revoltosos
paulistas (REZENDE, 2011, p. 94).
33
Adentremos então na parte política de sua vida, começando por expor sua participação
na Coluna Caiado, momento onde sua força politica fica mais evidenciada no estado de Goiás
e posteriormente fora dele.
2.1- Coluna Prestes, Dia do Fogo e Revolução de 32:“Santa” Dica na mira e no comando.
Com o passar do tempo a fama de Dica já se mostrava bastante forte no estado de
Goiás. Sua liderança já se fazia tão presente no interior goiano na época que alguns já a
consideravam como uma coronel devido a sua força perante a população de seu reduto. A
prova de que a imagem de Dica já havia se consolidado como líder pode ser comprovada no
fato de ela ter sido convidada a participar de um importante momento político ocorrido em
Goiás na época: A Coluna Caiado em 1925.
A Coluna Prestes se constituiu como uma parte importante, com certeza a
maior expressão, do descontentamento e aversão em relação ao organismo
político vigente da Republica Velha. Neste sentido, sua formação se liga ao
movimento tenentista e suas séries de levantes organizados após 1922, e que
têm no episódio dos dezoito do Forte de Copacabana, o seu estopim, mas
não a sua raiz. A raiz de todo este descontentamento, para além de um
documento apócrifo que entra em cena, se insere na conjuntura de assenso
das camadas médias urbanas, que passam a se expressar através da atuação
da baixa oficialidade que coloca em questão o enfrentamento com o regime
oligárquico (SOUZA, 2010, p. 88).
Quando a Coluna Prestes ameaçou invadir Goiás, Dica foi convocada juntamente com
seus diqueiros18 para lutarem na batalha, esse foi um importante momento político em sua
vida, afinal foi a partir de sua participação no ocorrido que ela consegue consolidar sua
imagem de líder, também reduto afora. Até então a sociedade e as autoridades goianas já
sabiam que Dica gozava de grande força política mas ninguém imaginava o quanto essa força
era expressiva e principalmente que ela já existia além de seu reduto dos anjos.
A história conta que na ocasião o então senador Antônio Ramos Caiado convocou
todos os coronéis influentes de Goiás para defenderem seu estado. O coronel Francisco José
de Sá então convida Dica e seus seguidores para se juntarem a eles para tentar impedir que os
revoltosos da Coluna Prestes invadissem a Cidade de Goiás, pagando a “santa” e a seus
seguidores uma quantia de quinhentos mil réis como doação para se prepararem para a
batalha. Dica aceita e junta ao seu redor fiéis e alguns voluntários moradores de Pirenópolis
18
- Assim eram chamadas as pessoas que seguiam Dica e viviam no reduto dos anjos.
34
para lutar na batalha. Na época existia todo uma alarde quando se tratava desse assunto. Havia
muito medo que assassinatos e roubos acontecessem se a Coluna Prestes invadisse Goiás. “A
propaganda que o governo faz desses revoltosos faz espalhar pelo estado o terror entre a
população do sertão goiano, chegando alguns a abandonar suas cidades temendo assassinatos
e saques, que supostamente seriam efetuados (PAIVA, 2005, p.11).
A passagem dos “revoltosos de Prestes” pelo estado de Goiás se deu em dois
momentos principais: a primeira em 26 de julho de 1924, já sob a liderança
de Luís Carlos Prestes, na cidade de Mineiros, e a segunda em 12 de
setembro do mesmo ano, na cidade de Posses de Goiás. Amedrontados com
a fama e mitificação dada aos revoltosos da Coluna Prestes, os coronéis
goianos, unidos ao governo do estado organizaram duas Colunas governistas
para combater e impedir a passagem dos rebeldes: a primeira na capital
(Cidade de Goiás), formada por 1.114 homens sob o comando do Senador
Eugênio Jardim e do Primeiro Tenente do Exército Floriano Brayer; a
segunda, no sul do estado, compondo-se de 1.116 homens, sob o comando
do Senador Antônio Ramos Caiado e dos Primeiros Tenentes Agnaldo de
Castro e Jaime A. dos Santos, fazendo parte também o vice-presidente do
estado, senadores, deputados estaduais, juízes de direito, médicos,
comerciantes, chefes políticos de toda a região sul de Goiás. (FILHO, 2009,
p.41).
Apesar de não ter havido uma batalha frontal e direta entre as duas colunas fica
evidente a força política de Dica perante seus comandados a partir de sua participação na
batalha, afinal esse acontecido teve repercussão nacional e a projetou como líder politica no
Brasil. Era estarrecedor o fato de uma mulher em plena República Velha comandar e ser
respeitada por tantos homens. Quando a Igreja Católica fica sabendo da participação de Dica
no ocorrido se pronuncia da seguinte maneira utilizando o jornal Santuário de Trindade:
E a Dica dos Anjos? Nem é bom fallar. Affirmam pessoas que a viram na
Capital durante os dias da revolta que o seu procedimento é semelhante ou
mesmo peior do que de uma marafona ou prostituta (SANTUÁRIO DE
TRINDADE, 1925).
O referido jornal sempre foi a maior arma da Igreja Católica para atacá-la, mas mesmo
com os constantes ataques sofridos por Dica, o governo estadual ficou impressionado com a
força militar que ela possuía em Goiás. Por isso, ela e seus diqueiros foram homenageados
pelo Estado por terem participado da batalha. Mais uma vez, Dica desperta a ira da instituição
religiosa que “temendo perder seu apoio temporal para a “santa do Rio do Peixe”, lançou
ataques ainda mais violentos contra Dica (FILHO, 2009, p.42) novamente usando sua
principal arma, o jornal Santuário de Trindade para atacá-la, dessa vez se referindo a ela
como feiticeira e bruxa.
A imprensa do Rio e de São Paulo dá boas cachinadas da crendice e
insensatez dos que cultuam a grande santa. Os motejos e sarcasmos
35
indicando nomes e narrando as homenagens prestadas à Dica na capital do
estado, são verdadeiramente desconcertantes e humilhantes para os foros
cultos de Goyaz. Já os títulos que dão as chronicas, em typos gordos e
alarmantes, chamam a attenção do leitor e expõem ao ridículo o
procedimento dos goyanos que se deixaram levar pela lábia da Dica. E a
história não ficará nisso: daqui a dias essa imprensa collocará nosso estado
no rol das tribos selvéticas que acreditam em feiticeiras e bruxas e nós
teremos que engulir a pílula porque os próprios goyanos deram a mão à
palmatória (SANTUÁRIO DE TRINDADE, 1925).
A importância que Dica e seu movimento passaram a ter após a batalha foi o estopim
para o embate direto entre o estado e o reduto dos anjos. Esse foi um dos motivos que levaram
os coronéis da região a pedir juntamente à Igreja Católica que o reduto fosse destruído junto
ao estado. Ela (Dica) incomodava ambas as partes, política (representada pelos coronéis) e
religiosa (representada pela Igreja católica) e sua fama e força estava crescendo
demasiadamente, tudo o que eles não queriam naquele momento. O mesmo estado que
homenageou Dica antes, agora menos de uma mês depois que ela serviu ao estado na Coluna
Caiado, a ataca devido a constante pressão da Igreja Católica, que nesse momento já tem
conhecimento de que a fama e a influência de Dica vai muito além dos moradores do reduto
dos anjos.
As matérias que acusavam Dica soavam às vezes com tom ameaçador:
Se não se tomar sérias providências a questão se complicará, e nos veremos
em um buraco sem sahida. E não será por falta de aviso; nós os da imprensa
cumprimos com nosso dever, dando o alarme. Compete agora a polícia pôr
cobro a essas baboseiras que impressionam os ignorantes e simples [...]A
nossa história e a de outros paizes está cheia desses fatos tristes e de suas
consequências perniciosas: basta lembrar a história de Canudos, na Bahia,
com seu Antônio Conselheiro e dos Muckers, no Rio Grande do Sul com seu
João Maurer (SANTUÁRIO DE TRINDADE, 1924).
A Igreja pressionou a polícia e o estado para dar fim ao reduto alegando que Dica
usava ilegalmente a medicina, referindo se as suas curas milagrosas e também por praticar o
espiritismo, prática que a Igreja condenava e isso aliado as suas curas foi um prato cheio para
acusá-la de atentado a saúde pública, de acordo com o artigo 157 do Código Penal de 1910:
Artigo 157 – Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de
talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar
curas de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a
credulidade pública. Penas: de prisão cellular por um a seis mezes e multa de
100$ a 500$ (CÓDIGO PENAL, 1910).
36
O fato é que as pressões da Igreja e dos coronéis surtiram efeito e o reduto foi atacado
por tropas goianas em 1925. Esse acontecimento ficou conhecido como “Dia do Fogo”, o
momento mais conturbado e cheio de mistérios do reduto dos anjos.
O Governo Estadual decidiu, em meio a tantas pressões por parte dos
fazendeiros, da Igreja entre outros membros da sociedade goiana, dar fim à
Comunidade formada por Benedicta Cypriano. Foram enviadas a Lagolândia
forças policiais que receberam ordens expressas de reagirem, caso a
Comunidade resistisse à ordem de prisão decretada” (SILVA, 2005, p.17).
O Dia do Fogo foi um marco na história do reduto. A polícia do estado que pretendiam
levar Dica presa foram recebidos pelos diqueiros que estavam dispostos a defender sua líder
com suas vidas tamanha a adoração que tinham por ela. Esse episódio de certa forma serviu
para aumentar ainda mais a figura de santa milagreira de Dica, já várias coisas que
aconteceram no ocorrido foram atribuídas a fatos milagrosos por seus seguidores. Segundo
relatos de moradores de Lagolândia as balas batiam em Dica e caiam no chão como grãos de
milho ou enrolavam em seus longos cabelos e ricocheteavam, para o povo mais uma prova de
seus poderes divinos. No livro “Santa Dica: História e encantamentos”, Waldetes Rezende faz
uma descrição de alguns desses fatos místicos acontecidos no dia em questão.
Encontramos quem garante que no início, antes da fuga de Dica e seus
seguidores, os tiros foram quase todos em direção desta, mas as balas caíam
de seus cabelos como se fossem grãos de milho e não entravam no corpo
dela. O vestido usado por ela naquele dias até pouco tempo podia ser visto,
pois fora guardado, e permanecia todo perfurado pelas balas. Soldados
disseram que quando receberam ordens para atirar, avistaram nos galhos
mais altos da gameleira em frente ao salão onde funcionava o hospital de
curas, três crianças atiraram acirradamente sem que nenhuma delas caísse.
As três crianças vestidas de branco seriam os anjos: José Sueste, Silvéria e
serafim, que estavam aí para protege-los (REZENDE, 2011, p. 30).
Vários desses acontecimentos permanecem ainda por ser desvendados e entendidos e
continuam transitando pela boca do povo de Lagolândia. Conversando com sua irmã
Bernarda19 percebe-se que realmente ainda existe muita fé envolvendo a história do Dia do
Fogo e de Dica. Ele garante que sua irmã mais velha foi atingida por quatorze balas e que o
vestido que ela usava no dia do fogo até pouco tempo podia ser visto todo perfurado por
balas. Ela descreve o ocorrido da seguinte maneira:
[...]veio três polícia, ficou vinte e sete lá em cima aonde fizeram o
cemitério...meu tio subiu caladinho, não falou nada, passou o braço nela e
subiu atrás deles aí eles ligou a metralhadora e matou três reservista, meu tio
era reservista tinha outro o Zé belo que tinha sido reservista e o Vitor era
19
- Entrevista concedida no dia 15 de abril de 2012 por Bernarda Cipriano Gomes em Lagolândia.
37
reservista ai matou sete na bala e sete morreu afogado porque o corgo tava
cheio ai ela correu quando ela viu, ai ela ficou cismada e tirou o braço dele e
saiu correndo e caiu dentro do poço ai um muncado de moça caiu também
que era companheira dela, colega dela, caiu e foi segurando no pé dela. E o
outro tio meu que chamava Gustavo atravessou de barco e tirou ela e tirou os
que vei atrás que não alcançou o pé dela afundou e morreu aí morreu uma
porção afogado, sete afogado, sete na bala, quatorze pessoas[...] (Bernarda
Cypriano Gomes, 2012).
Devido a idade já avançada da entrevistada, existia uma certa dificuldade para
entender e transcrever o que Dona Bernarda falava. De uma forma sucinta, no resto da
entrevista ela relata que seu tio foi o primeiro a avistar as tropas goianas e que na ocasião foi
ao encontro dos policiais perguntar se eles tinham ido até o reduto para prender Dica ou para
matá-la por que se fosse a segunda opção eles tinham balas e as usariam para defender Dica.
O tio de Dica foi assassinado a tiros e foi ai que começou o tiroteio. Dica correu para não ser
atingida pelas balas e atravessou o Rio do Peixe (Rio Jordão para os diqueiros, que na ocasião
estava cheio devido às chuvas). Dona Bernarda assegura que quem se segurou em Dica na
travessia sobreviveu, os outros que tentaram nadar foram carregados pela correnteza e
morreram afogados.
Segundo os Diqueiros, Dica e os Anjos criaram uma espécie de escudo
celestial onde os projéteis metralhados pela polícia ricocheteavam não
atingindo a nenhum deles. Ao seguirem pelo rio Jordão mesmo os que não
sabiam nadar podiam ser salvos se segurassem nos cabelos da santa
(PAIVA, 2005, p.12).
Mais uma vez o jornal Santuário de Trindade usa o nome e a imagem de Dica para
estampar suas matérias, descrevendo o Dia do Fogo da seguinte maneira:
E a Dica dos Anjos? Quem tinha razão? O que previnimos succedeu tim tim
por tim tim. A polícia teve que intervir e prender a tal milagreira. Isso porem
não se deu sem derramamento de sangue. Eis o que diz o “Democrata”:
„Muitos crimes foram commetidos pelos que exploravam a ignorância do
povo. A santa depois de conversar com os Anjos declarava que alguns
individuos morreriam em certo dia. E essas pessoas appareciam mortas em
certo tempo determinado assassinadas pelos seus comparsas. Os soldados de
polícia (enviados contra Ella e caterna) foram recebidos à bala pelos
fanáticos. Assim foram presos 83 devotos, morrendo diversos afogados no
rio do Peixe ou Jordão para onde correram a conselho da santa Dica‟. Se
tivessem sido atendidas as nossas reclamações ter-se-ia evitado essa mancha
na história de Goyas (SANTUÁRIO DE TRINDADE, 1925).
De concreto temos o fato de que Dica fugiu pelas matas que cercavam o Rio do Peixe,
juntamente com alguns seguidores. Foram eles: Alfredo dos Santos, Benedito Cypriano
Gomes (seu pai), Jacinto Cypriano Gomes (seu tio), Gustavo Cypriano Gomes (seu tio) e
Manuel José Torres (Caxeado). Depois de alguns dias se entregou a policia. Em seu
38
depoimento Dica sempre se considerava inocente de todas as acusações que a promotoria lhe
acusava.
Quanto as acusações que lhe foram feitas, Dica disse considerar-se inocente,
pois todos os seus atos ocorridos em estado de transe eram praticados
inconscientemente, portanto não podia responder por eles [...] confirmou que
era mesmo procurada por muitos doentes desenganados pelos médicos, mas
não garantia a nenhum deles a cura, mesmo assim continuavam chegando
(REZENDE, 2011, p. 33).
Foi julgada, condenada em primeira instância, e permaneceu presa por nove meses.
“Recorrendo à instância superior, Benedicta Cypriano Gomes foi absolvida, devido,
especialmente, às incessantes pressões de seus seguidores, bem como da imprensa de São
Paulo e Rio de Janeiro contra o massacre em Lagolândia” (FILHO, 2009, p.43). Nesse
período a fama de Dica já havia se espalhado pelo país (sua participação na Coluna Caiado foi
determinante para isso) e isso pesou na hora do segundo julgamento que a absolveu.
Oficialmente o combate teve o seguinte resultado:
Segundo relatos oficiais, esta guerra durou pouco mais de trinta minutos,
onde seis pessoas morreram baleadas, cinco afogadas durante a fuga pelo
Rio Jordão e mais cinco ficaram gravemente feridas. Este evento ficou
conhecido como O Dia do Fogo. Para os seguidores de Dica, porém, o
combate seguiu-se por mais de duas horas e poucos foram os mortos
(PAIVA, 2005, p.12).
Contudo percebe-se que houve outro importante motivo pelo qual Dica foi absolvida
de todos os crimes dos quais foi acusada no tribunal. A defesa da “santa” alegou que ela não
podia responder as acusações e apresentou a justiça um laudo psiquiátrico da réu
comprovando que a mesma sofria de neurose histérica.
Declaração: (Dr. Olavo Baptista) – 6/3/26. Eu, abaixo assignado, Dr. em
medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, atesto que
Benedicta Cypriano Gomes padece de neurose hystérica, cujo estado
psicológico é representado pela forma de delírio religioso pelo qual é
inteiramente empolgada, delírio esse que é verdadeiro equivalente clínico ao
ataque hystérico (processo n 651. P. 137-A - REZENDE, 2011, p.34).
Se antes a Igreja a acusava de histeria, nesse momento esse foi o trunfo da defesa que
tirou Dica da prisão. Segundo (REZENDE, 2011) a partir disso Dica fica condenada para
sempre a ter sua figura associada a algo do mal, a imagem de mulher histérica e irresponsável
pela sociedade. Contudo, por parte de seus seguidores ela nunca foi vista dessa maneira, pelo
39
contrário sempre teve sua imagem respeitada e associada a santidade, a uma madrinha para
todos que viviam no reduto20.
Após o ocorrido Dica é proibida pelo estado de retornar ao reduto dos anjos e decide
se mudar junto com alguns seguidores para o Rio de Janeiro. Durante sua morada na cidade
“maravilhosa” recebe o convite da Confederação Espírita do Brasil para se juntar a eles.
Entretanto tem que antes fazer um teste para comprovar sua mediunidade. Muitas são as
histórias contando o teria que fazer nesse teste. Conta Waldetes21 que ela teve que realizar três
provas. Na primeira ela teve que movimentar um navio em alto mar, na segunda ela teve que
movimentar as estrelas do céu e na terceira ela teve que fazer uma pessoa analfabeta ler um
livro inteiro em latim. Waldetes garante que ela passou no teste e com isso foi aceita na
Confederação. A partir daí sua fama cresce também dentro da cidade do Rio de Janeiro, sendo
muitas vezes procurada para realizar curas e pessoas enfermas.
Só retorna à Goiás um ano depois, casada com o jornalista Mário Mendes, outra figura
importante da sua vida política em Goiás. “Dica passa a exercer forte influência política na
região e aquele que a tinha ao seu lado, era eleito com grande maioria. Em 1934, Mário
Mendes é eleito prefeito de Pirenópolis graças a ajuda de Dica” (PAVA, 2005, p. 13). Usando
sua influência com políticos ilustres da época ela conseguiu que seu primeiro marido, o
próprio Mario Mendes, fosse nomeado prefeito da cidade de Pirenópolis, quebrando toda uma
oligarquia que comandava a região e foi suplente de Deputado de 1935 a 1937 (REZENDE,
2011, p 41). Essa situação nos remete a uma análise. Dica que tanto contrariou os coronéis de
Goiás agora toma atitudes semelhantes as deles e usa seu prestígio com o povo e com
políticos para benefício próprio.
O nome de Mario Mendes marcou a história política de Pirenópolis, após
ocupar o cargo majoritário do Executivo Municipal, sendo o único eleito ou
nomeado a exercer essa função que não pertenceu às famílias tradicionais do
município (REZENDE, 2011, p.42).
Além de sua participação na Coluna Caiado, Dica também participou em outro
importante momento político, foi a Revolução Constitucionalista de 1932. Na ocasião foi a
São Paulo liderando 150 homens para lutar na revolução constitucionalista que ameaçava o
governo de Getúlio Vargas, a quem defendia. O grupo ficou conhecido como os pés com
palhas e pés-sem-palhas. Isso porque os diqueiros não sabiam diferenciar esquerda de direita e
20
- Inclusive, Dica foi madrinha de batismo e casamento da maioria absoluta dos moradores do reduto enquanto
esteve viva. Ninguém no reduto se casava sem ter a permissão de Dica.
21
- Entrevista concedida no dia 15 de abril de 2012, por Waldetes Rezende em Lagolândia.
40
isso atrapalhava na hora de marchar, a saída foi amarrar no pé direito de cada soldado e a
orientação partia de Dica: Pé com palha (batia-se o pé direito), pé sem palha (batia-se o pé
esquerdo) (REZENDE, 2011). Os diqueiros partiram para São Paulo, combateram em dois
conflitos e retornaram a Lagolândia sem nenhuma morte, fato atribuído a um milagre e Dica
agraciada com a patente de Cabo do Exército Nacional .
Dica formou exército composto por cerca de 400 homens que ficaram
conhecidos como Pés com Palha e Pés sem Palha (método usado para
distinguir entre esquerda e direita) e foi patenteada como Cabo do Exército
Brasileiro e incorpora-se ao batalhão de Siqueira Campos para lutar ao lado
dos legalistas na Revolução Constitucionalista de São Paulo, travando
combates na Ponte do Jaraguá, Itajobi e Chapadão. Dica leva 150 pés com
palha para o combate e volta sem nenhuma baixa, mesmo durante a travessia
da Ponte do Jaraguá que estava completamente minada, sendo o fato ligado a
mais um caso de milagre (PAIVA, 2005, p. 13).
Como a maioria dos acontecimentos que envolviam Dica eram relacionados a sua
santidade, em sua participação na referida revolução não foi diferente. Contam seus
seguidores que na ocasião Dica ordenou que um deles atravessasse a ponte Jaraguá com os
olhos vendados, que por sua vez estava toda minada. Como ele passou sem explodir nenhuma
bomba, o fato foi considerado como mais um milagre de “santa” Dica. Ainda hoje esse
acontecido é visto como algo maravilhoso e digno de orgulho por parte dos moradores de
Lagolândia. Dona Bernarda - irmã de Dica – guarda uma foto de Dica e seus diqueiros em
São Paulo, pendurada na parede da sala como se fosse um troféu valiosíssimo.
Com o passar dos anos percebe-se que Dica começa a se transformar teórica e
praticamente. Se antes ela era uma menina de ideais voltados para ajudar o povo, com o
tempo ela ganha algumas características de um coronel, a ponto de ser presa em 1950 pela
segunda vez, como mandante do assassinato de um homem pirenopolino, morador de
Lagolândia22. De fato Dica realmente mandou matar esse homem, pois segundo ela o mesmo
era constantemente repreendido por estar sempre bêbado e se metendo em brigas em seu
reduto. Waldetes23 conta que na ocasião Dica mandou um recado para que a família o viesse
buscar ou então eles o matariam, como sua família não veio, Dica mandou o matar depois que
ele tentou matar seu então marido Chico Teixeira24. “Contudo, Dica recebeu mensagens dos
22
- Na ocasião Dica foi acusada de mandar matar José Mendonça Sobrinho, pertencente a uma família
tradicional pirenopolina, permaneceu detida por alguns anos recebendo tratamento especial na cadeia, devido a
seu prestigio politico.
23
- Entrevista concedida no dia 15 de abril por Waldetes Rezende em Lagolândia.
24
- Dica se casou com Chico Teixeira, sócio de Mario Mendes. “Observando o interesse do sócio por sua bela
esposa, Mário a vende para este, pela quantia de 50 contos de réis. Não foi a única vez que o marido a vendera,
41
seus guias e resolveu acabar com aquela “ameaça”, deu ordem para que o seguidor Malaquias
esperar Zezinho Mendonça” (REZENDE, 2011, p.48). A ordem foi cumprida e Zezinho foi
morto a mando dos “guias” de Dica.
A partir do ocorrido faz se necessário algumas pontuações. Primeiro, Dica atribuía a
maioria de seus atos à seus “guias espirituais”, fossem eles para o bem ou para o mal. Como
foi colocado, ela só mandou matar Zezinho depois que seus “guias” mandaram. E segundo,
esse assassinato é a prova de que os seguidores de Dica a adoravam tanto e eram tão fiéis, que
até matavam por ela. Percebe-se também uma pitada de maldade ou desumanidade, como
preferir por parte de Dica a partir desse assassinato. “O corpo de Zezinho permaneceu por três
dias abandonado na rua [...] já mal-cheirava, e ninguém aparecia” (REZENDE, 2011, p.48).
Só depois de alguns dias é que o levaram para que a família o velassem em Pirenópolis.
Contudo alguns dias depois Dica e seu marido são presos e quase linchados pela
população de Pirenópolis quando chegaram a cadeia. Existia o medo eminente de uma
vingança contra Dica dentro da cadeia onde se encontrava presa. Mas como “nesse período, o
prestígio de Dica, já ultrapassara as fronteiras do estado de Goiás, e sua amizade com
políticos de renome serviram para livrá-la dessa suposta vingança25, que estava para ser
executada dentro da cadeia de Pirenópolis” (REZENDE, 2011, p.49). Por ordens maiores,
Dica foi transferida para a capital, onde permaneceu presa até 1953, quando é solta. Pedro
Ludovico, governador de Goiás na época foi o responsável, tanto pela transferência de Dica
quanto por sua libertação.
Essa mudança sofrida por Dica começou a partir do momento em que ela passa a ter
conhecimento de sua força perante o povo e diante de políticos da época e também depois de
seu casamento com Mario Mendes, jornalista culto e nas palavras de Waldetes Rezende26 um
verdadeiro “malandro” que sempre alienou Dica. Foi ele que a convenceu a participar da
Revolução Constitucionalista de 32 em São Paulo e o que mais se beneficiou de seu poder
político uma vez que graças a influencia de Dica, Mário foi prefeito de Pirenópolis e suplente
a Deputado em Goiás.
anteriormente já fora por duas vezes, como mercadoria que iria ser usada para dar prestigio aquele que a
possuísse.
25
- Ainda assim a “vingança” acontece e quando ainda estava presa recebe a notícia que seu filho Pedro havia
sido assassinado como forma de vingança pela morte de Zezinho Mendonça.
26
- Entrevista concedida no dia 15 de abril por Waldetes Rezende em Lagolândia.
42
No decorrer de sua vida Dica realmente viveu uma história diferente das outras
mulheres da época, e não só por causa dos vários momentos místicos ou sobrenaturais que
cercaram sua vida, mas também pela força que sempre esteve impregnada a imagem dessa
mulher, na visão dos moradores da região do interior goiano. Ela despertou e desafiou grandes
inimigos, a Igreja Católica, os coronéis, a imprensa goiana mas também adquiriu grandes
amigos27.
Olímpio Jaime, Deputado Estadual em 1963 foi amigo de Dica e a ajudou a emancipar
sua comunidade, ainda que por pouco tempo. Sem dúvida alguma o movimento dos anjos e a
força política de Dica foram os maiores contribuintes para que Lagolândia nascesse e se
tornasse município. Apesar da rivalidade existente na época entre Lagolândia e Pirenópolis o
município foi emancipado e assim permaneceu por muito pouco tempo, um fato curioso pois
tanto a emancipação quanto a retirada dela pelos políticos foram por causa de Dica e sua
influencia política, construída no decorrer de sua liderança religiosa no reduto dos anjos, para
com políticos importantes da época.
Há informações de que as lideranças locais e Dica trocaram de partido, e o
amigo Olímpio sentiu-se traído pelos aliados, ocorrendo em seguida a queda
da emancipação de Lagolândia [...] chegaram a contratar advogado para
tentar restabelecer o município, mas foram esforços em vão (REZENDE,
2011, p.91).
Essa foi sua maior derrota, ver seu reduto dos anjos se tornar cidade e depois
desmoronar. Com isso a maioria das pessoas que viviam em Lagolândia se mudaram da
cidade o que culminou com o esvaziamento do local. Dica também se muda, para Goiânia
onde morre sem o prestígio político a que sempre esteve acostumada. Morre aos 65 anos de
idade em Goiânia em 1970 durante uma cirurgia no intestino e como foi de sua vontade é
enterrada em Lagolândia sob a sombra de uma gameleira em frente ao casarão das curas,
lugar que ainda é muito procurado por romeiros principalmente no mês de julho quando
ocorre a Festa do Divino, celebração iniciada por Dica no povoado.
27
- Durante sua participação na Revolução de 1932 conheceu Juscelino Kubitscheck. Segundo Waldetes, Dica
previu que um dia ele ocuparia o mais importante cargo político do país. “ Quanto a Juscelino a quem conheceu
quando participava na Revolução de 1932 e trabalhava no hospital socorrendo os feridos de guerra, naquele
período, Dica surpreendeu o jovem médico ao prever que o mesmo ainda assumiria o cargo majoritário do país
(REZENDE, 2011, p.90)”. Alguns moradores mais antigos de Lagolândia contam que Dica desfilou com
Juscelino pelas ruas de Goiânia quando o mesmo tomou posse de presidente da república e que quando
transferiram a capital do país para Brasília, Juscelino teria mandado uma revista com uma dedicatória à amiga
Dica.
43
Sua imagem de “santa” sobreviveu ao tempo e ainda hoje percebemos grande
fidelidade a Dica por parte de alguns moradores da cidade. Conversando com uma jovem28,
moradora do distrito que trabalha na casa de Dona Divina (sucessora de Dica nas curas, mas
sem a mesma força religiosa) percebe-se que ainda existe grande respeito e fé em Dona Dica
principalmente pelos moradores mais velhos que ainda a chamam de madrinha Dica.
28
- Entrevista concedida no dia 15 de abril em Lagolândia.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Benedicta Cypriano Gomes, essa foi a mulher responsável por um verdadeiro
“rebuliço” político e religioso no interior de Goiás iniciado na década de 20. Por muitos anos
esse foi um nome de prestígio e força em Goiás. Milhares foram as pessoas que abandonaram
seus empregos para a seguir enquanto liderava o reduto dos anjos. Dica se tornou um mito
para aquela parcela de pessoas que sempre estiveram dispostos a lutar e até matar para
defendê-la. A de se respeitar sua liderança no reduto dos anjos. Por meio de fé e religiosidade
ela conseguiu se manter no controle de mais de 500 pessoas por muitos anos em uma época
que as mulheres deviam ser submissas aos homens, marcando seu nome na história das
mulheres no Brasil.
O principal intuito desse trabalho foi discutir e analisar os pontos e fatores que
levaram a jovem Benedicta a se tornar a “Santa” Dica, a líder messiânica de Lagolândia. É
uma história polêmica e requer alguns cuidados devido aos vários fatos sem explicação
científica que sempre rodearam sua vida. Utilizamos para compor parte da pesquisa,
entrevistas colhidas em Lagolândia com pessoas que conviveram com a própria Dica como
sua irmã mais nova Bernarda Cypriano Gomes que nos relatou com riqueza de detalhes
alguns dos mais importantes momentos ocorridos em sua vida e liderança como “O Dia do
Fogo” e características de sua nova religiosidade além de sua participação na Revolução
Constitucionalista de 1932, momento esse que desperta um sentimento de orgulho muito forte
em dona Bernarda.
Outra fonte bastante utilizada na pesquisa foram livros de historiadores goianos que
voltaram grande parte de suas vidas como pesquisadores para investigar a vida de Dica, como
por exemplo Lauro de Vasconcellos e Waldetes Rezende, a segunda sendo moradora de
Lagolândia e conhecedora assídua da vida e historia de Dica. Essas entrevistas tem grande
importância para a pesquisa principalmente pelo fato de que muitos dos ocorridos envolvendo
a vida e a liderança de Dica continuam sem explicação e são tangidos de muito mistério. As
entrevistas por si só não respondem a essas perguntas mas ajudam a confirmar que, na visão
dos seguidores de Dica esses fatos realmente aconteceram e ela era realmente dotada de dons
mediúnicos e que em nenhum momento os diqueiros duvidaram dessa ligação existente entre
Dica e os seus anjos guardiões.
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“Santa” Dica despertou sentimentos adversos na população do interior goiano. Para
seus seguidores ela era um mito, a líder, a madrinha Dica, para a Igreja Católica ela foi a
prostituta, a histérica a bruxa. Quem foi Dica afinal? Uma mulher, visionária que apesar de ter
seu nome associado muitas vezes a estereótipos de mulher mundana pela Igreja, não passava
de uma mulher normal, que sofria de catalepsia e através disso soube aproveitar de suas
“ressureições” para se tornar um ícone religioso, fato que a deu status de líder religiosa e
política no interior goiano na época. Tudo por meio da fé que cercava sua imagem na visão de
seus seguidores.
Nada do que aconteceu no Reduto dos Anjos pode ser considerado mentira. Os
diqueiros - que ainda existem em Lagolândia - confirmam absolutamente tudo o que envolvia
sua vida no que diz respeito as histórias sobrenaturais de Dica e quem somos nós para
desmenti-los. Dica foi líder, foi mulher e foi “santa”, depende apenas do contexto em que sua
imagem for inserida.
Os Diqueiros viveram um sonho. Viram nos ensinamentos de Dica sua
salvação. Fizeram com que o imaginário, o mito, se tornasse real. O Paraíso
passa a existir ali. Suas melhorias, perfeições, abundâncias e completudes,
porém só existiram enquanto todos que ali estiveram, acreditaram e viveram
aquele sonho (PAIVA, 2005, 20).
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ANEXOS
Benedicta Cypriano Gomes
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Entrevistas
REZENDE, Waldetes Aparecida. 15 de abril de 2012.
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“santa” dica em Lagolândia.