IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA
HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS.
29 de Julho a 1° de Agosto de 2008.
Vitória da Conquista - BA.
MEMORIALISTAS SANTAMARENSES:
QUANDO A HISTÓRIA ENCONTRA A MEMÓRIA
Anderson de Rieti Santa Clara dos Santos
Graduando em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
E-mail: [email protected]
Palavras-chave: Fontes. Memorialistas santamarenses. Filarmônicas. História local.
História e memória, quase idênticas, mas distintas entre si... É nesta fronteira, ou
mesmo na aparente ausência dela, que este presente trabalho tem dado o seu ponto de partida.
O problema maior é que pode parec er para alguns que estarei em cima da linha que marca a
fronteira entre estas duas. Em cima do muro? Para uma posição bastante cômoda, é ela mesma
que esconde os seus espinhos mais cortantes. É possível, mesmo traçar um limite entre
memória, ainda mais qua ndo lidamos com autores que, a meu ver, se incumbem ao tráfego
neste duplo caminho, que se cruzam e se inter sectam? Este trabalho pretende, a princípio,
enveredar-se por uma discussão metodológica – na ampla acepção que este último termo
possa ter.
Na verdade, parte também de certos propósitos, este trabalho. Afina l de contas são os
memorialistas – no decorrer do texto compreenderemos o porquê desta expressão – fontes
para o meu projeto de pesquisa “Os Liras e os Apolos: ruídos de civismo e civilidade nas
filarmônicas santamarenses na Primeira República” que já tem dois anos de caminhada e que
desembocará – se bem que o rio tem como propósito esconder os seus meandros – num
trabalho de conclusão de curso na graduação. O que já se coloca como um problema: o que os
fazem um tipo de fonte, ou melhor, por que eu as delimito como tal?
Assim, este artigo tem como objetivo, em primeiro lugar, apontar os aspectos mais
relevantes das obras destes memorialistas, a forma como eles escreviam as suas “memórias” e
como eles abordavam sobre algumas questões. O outro objetivo é verificar como estes
memorialistas escrevem sobre as filarmônicas locais, vendo, assim, como a maneira de tratar
sobre alguns aspectos relativos à história de Santo Amaro foi importante para definir a própria
forma de relatarem sobre estas associações musicais. Vale lembrar que este não é mais um
espaço em que partiremos para algumas discussões mais profundas sobre as filarmônicas,
dado que este artigo, pelos objetivos aqui expostos, não me permitiri a tal incursão.
2
Entre a história e a memória
Estes memorialistas desempenharam importantes papeis na cidade de Santo Amaro,
seja como referências para outros autores, como é o caso de Herundino da Costa Leal 1, que
influenciou bastan te as obras de Zild a Paim, ou como destaques no cenário político e cultural
– ou na produção cultural, melhor dizendo – como é o caso desta última autora: diretora de
escolas, coordenadora de projetos culturais ligados à cultura afro -brasileira, além de ser
vereadora na cida de. Assim, se incumbiram de algumas tarefas importantes enquanto
intelectuais2 de uma cidade no interior da Bahia, especificamente no recôncavo baiano.
Podemos perceber, por exemplo, quando Leal (1964, p. 14) no prefácio de seu livro História
de Santo Amaro, produzido na década de 60 do século passado, expõe os seus objetivos:
[...] menos por pretensão de me tornar um escritor, como já disse linha
acima, do que para trazer ao conhecimento dos moços de hoje, cousas da
terra por êles ignoradas, é que me perm iti publicá-lo [o livro], certo de ir
prestar um bom serviço a nossa terra, uma vez que sem essa publicidade
êsses informes seriam sepultados no rol do esquecimento .
Assim também, uma outra autora, Zilda Paim, em Isto é Santo Amaro , produzido em
1974 (re-editado em 2005), deixa clara a sua tarefa:
Desincumbo-me deste dever de transmitir ao futuro, o legado que o passado
nos deixou. As nossas tradições devem ser cultuadas, relembradas a todo o
instante, sem, contudo vivermos exclusivamente delas. Devemos construir o
presente e deixar belas páginas que serão lidas no futuro, nunca porém
esquecer o passado .
Ao levarmos em conta alguns aspectos trazidos por alguns estudiosos sobre a
constituição de uma escrita histórica no Brasil – afinal, este país está e m uma determinada
posição nas “relações de produção” do conhecimento, para efeitos de paráfrase sob uma
linguagem marxiana –, o que podemos perceber é que esta escrita está dentro dos parâmetros
de uma “escola” e que teve seus desdobramentos entre vários historiadores não só no século
em que esteve em auge este tipo, mas no subseqüente, neste caso o século XX. A pista que
1
As únicas informações que obtive sobre este autor por parte do Sr. Raimundo Arthur, é que ele foi um escritor,
conhecido na UFBA. Desde já agradeço as informações fornecidas po r este senhor – um memorialista -mor, por
guardar as informações de outros memorialistas.
2
Aqui se corre um risco com este termo: o de elitizá -lo. Mas para escapar deste risco apóio -me em Gramsci
(1995, p. 7) que diz: “Todos os homens são intelectuais, pod er-se-ia dizer então; mas nem todos os homens
desempenham na sociedade a função de intelectuais”. Portanto, estes autores exercem uma função específica na
sociedade santamarense, delegada inclusive pela mesma. Adiante chegaremos a esta questão.
3
Fagundes Neves nos revela é a de que as corografias foram muito úteis na difusão do ensino
de história e mesmo para que “qualquer autodi data” assimilasse os seus métodos de estudo e
pudesse compor a corografia do próprio lugar no qual o autor havia nascido e/ ou para o qual
dedicava o estudo da história . As corografias influenciaram a elaboração de memórias
histórico-descritivas de fregues ias, municípios, províncias/ estados fazendo com que seus
dados fossem compilados no estudo da história do Brasil feito pelo Instituto Históri coGeográfico Brasileiro desde a sua criação, em meados do século XIX, até um longo período
(até a época em que os estudos de História do Brasil estavam em grande maioria a cargo das
universidades o que aconteceu a partir do segundo terço do século XX), Assim, trata -se da
difusão de métodos caros a estes historiadores, que se baseavam, logo, nos estudos históricos.
Daí, inclusive, veremos adiante como está montada a estrutura - no que diz respeito não só a
forma, mas também ao conteúdo – destas obras (NEVES, 2002, p. 70) .
Ainda, Fagundes Neves entende que estas influências são propícias à constituição de
um gênero literário, neste caso o gênero memorialista. (NEVES, 2002, p. 73).
Não
necessitamos reforçar o fato de que este gênero, não estava preocupado em ser criterioso, com
métodos ou utilização de conceitos, como fazemos enquanto historiadores. Mas, creio eu,
seria simplório estabelecer para estes intelectuais um gênero sem que se tenha um cuidado
com o tipo de tarefa a que eles se sentiam “convocados”. O que os leva a serem, neste sentido,
também memorialistas.
Não é à toa que Herundino da Costa Leal ao escrever Vida e Passado de Santo
Amaro, em 1950 tinham objetivos que estão no nível da memória como um recurso da
reconstituição histórica. Assim, é que ele procura “enfeixar os fatos ocorridos na minha
mocidade, bem como as tradições, a política e os vultos popular es de nossa terra querida, hoje
tão desprezada”, trazendo estes aspectos “ao conhecimento dos moços de hoje”, bem como
“recordar aos velhos as realizações do passado” (LEAL, 1950). Neste sentido o que está em
jogo é a possibilidade que estes intelectuais t êm de escolher imagens a partir de critérios
seletivos sob determinadas circunstâncias, como nos sugere Abreu (1999) sobre estes
memorialistas. Neste caso as circunstâncias são bem claras: para uma cidade que se vê “tão
desprezada” para a época de Costa Le al, nada mais notável como o relato de fatos passados
para que os “moços de hoje” passem a valorizar a sua terra natal. Deste modo, existe a
escolha, a seleção de aspectos para uma atividade mnemônica, um processo arbitrário, de
caráter social. É aí que a atividade da memória, como um processo estudado no âmbito da
biologia, da neurofisiologia, e outros campos do saber no âmbito das ciências naturais e na
4
área de saúde, interessa às ciências humanas e sociais como indicou Jacques Le Goff (LE
GOFF, 1996, p. 496).
Atermo-nos a esta interdisciplinaridade é importante, posto que aí se torna possível a
análise dos textos destes memorialistas, que se pretende histórica.
Mas não é uma
interdisciplinaridade que se paute na soma dos aspectos e conceitos fornecido s por diversas
disciplinas que entram em diálogo. Ela é articuladora dos mesmos. Assim, no estudo das
condições de escrita destes memorialistas, entendamos que ela (a escrita) se constitui de
possibilidades contextuais (históricas, sociais, culturais). No âmbito da memória, alguns
estudiosos ao longo de muitos anos, numa ordem de várias décadas, dentro da psicologia
social, puderam atribuir o caráter contextual no momento da atividade mnemônica. É o caso
de Maurice Halbwachs e F. Charles Bartlett quando des ignam este momento na atividade
mnemônica de convencionalização. Trata -se de um “trabalho de modelagem que a situação
evocada sofre no contexto de idéias e valores dos que evocam ”.
3
Há, nesse processo, uma
filtragem, a partir das circunstâncias dos que ev ocam, o que permite a produção de novos
significados alterando o conteúdo e valor do momento lembrado.
É evidente que numa escolha de uma análise que se atente a estes aspectos da
psicologia social, alguns elementos devem ser ponderados. Um deles é o fato de um destes
autores, como é o caso de Halbwachs, tratarem a atividade mnemônica como um elemento
que se subordina aos “fatos sociais”, numa linguagem durkheimiana – uma vez que o próprio
Halbwachs é um apreciador de Emile Dürkheim – dando um caráter emin entemente
funcionalista, o que aqui não nos interessa, dado os problemas que esta abordagem pode ter –
a vida como um sistema integrativo, harmônico, etc... Um outro é o caso de muitos destes
psicólogos, como é o caso de William Stern (BOSI, 1987, p 28) – que, mesmo entendendo a
atividade mnemônica como uma atividade delimitada pelos fatores contextuais – ainda
utilizarem um tipo de abordagem que veja a memória como um atributo da personalidade,
algo inerente ao “caráter” do indivíduo, questão muito trazida por uma psicologia de tipo
tradicional.
Mas não deixa de ser relevante o fato de essas abordagens verificarem o contexto
social como um dos fatores que devem ser relevados quando se fala da atividade da memória.
E é aqui que há uma curiosa semelhança ent re a atividade do historiador e daquele que evoca
a memória: ambos os processos inerentes a determinados contextos. A diferença é que, no
3
O estudo de Ecléa Bosi traz um apanhado destas teorias sobre a memória, principalmente no ramo da
psicologia social, especificamente no capítulo 1 “Memór ia-sonho e memória -trabalho”. (BOSI, 1987).
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trabalho destes memorialistas, o uso da memória é um dos elementos integrantes nos seus
métodos de escrever a história , para além daqueles outros que já vimos no início.
No entanto ainda há uma questão: a de ter estas obras destes intelectuais enquanto
fontes históricas. Acenando positivamente para ela, vemos que estas fontes trazem, não só
informações sobre determinadas épocas – principalmente as que se referem ao meu estudo –
mas os discursos que as compõem, elaborados em um específico contexto. Portanto, há um
interesse na hermenêutica, uma vez que, como bem nos sugerem Flamarion Cardoso e
Vainfas, “o documento não pod e ser visto como algo transparente” (CARDOSO; VAINFAS,
1997, p. 377)
Mas, na análise dos discursos alguns itens se colocam como cruciais, o que vai
depender basicamente da postura que o historiador toma em relação aos documentos
estudados. E aqui devo escl arecer a minha. Na análise do discurso, não significa que ao
entendermos que o contexto histórico delimita a forma do texto, ou mesmo que no seu resgate
aquele esteja dependente a esta (vocabulário, enunciados, tempos verbais etc), que o texto seja
irredutível em si, sendo ele próprio o motor para a produção do contexto específico a ser
estudado. Existem determinações extra textuais, o que faz com que o historiador não
negligencie o social, não deixando de fora, é óbvio, a forma do discurso (CARDOSO;
VAINFAS, p. 378).
A atenção a estes pressupostos sugere que ao estudarmos especificamente estes
historiadores memorialistas em questão, vejamos os fatores que influenciam a elaboração de
seus discursos – em seus livros – e mesmo na atividade da memória, uma vez que ela, também
como texto, como linguagem, esteve delimitada por algumas circunstâncias no momento de
seleção e filtragem das situações evocadas.
Mas, precede uma observação. A atividade de elaboração de uma e scrita histórica e da
memória não estão amar radas a estas determinações contextuais, ou melhor, como nos alerta
Antonio Gramsci, a relação destes intelectuais com elas se dá de forma “mediatizada” e não
direta, imediata. Se estes memorialistas escrevem de um determinado lugar, eles vão atribuir
novos significados a estes lugares, se apropriarão deles de maneira a se colocarem enquanto
originais na sua abordagem, o que nos sugere, na produção de seus discursos, na atividade
mnemônica, na elaboração da escrita histórica, uma relativa autonomia em relação a estes
“lugares” 4.
4
Este termo é utilizado por Michel de Certeau como o produto do “ fazer história” associado ao poder. (DE
CERTEAU, 2006) principalmente a secção “Escritas e Histórias”. Neste caso, o poder está entendido como um
produto do lugar social.
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Então, são estes pressupostos que podem ser agora norteadores para a nossa leitura
sobre estes – já podemos utilizar os dois termos juntos – historiadores memorialistas, tendo os, sobretudo, como fontes históricas.
Da gênese de um povo à sua exaltação: entre aspectos
Era de tamanha importância para estes intelectuais o culto a sua terra natal, recordando
aos jovens naquele momento em que seus livros estavam sendo publicados (e mesmo re editados), os fatos mais importantes ocorrid os na sua juventude, questões ligadas à história
política, às tradições, aos “vultos populares”, para, sobretudo, “incutir no espírito dos moços o
amor à terra, o sentimento da veneração e recurência aos nossos grandes vultos”, despertando
“em seus coraçõe s, que tudo podem, se desejam, a vontade de defender a terra de seus pais e
perpetuar a grandeza de seus avós” (LEAL, 1950). Uma das impressões destes autores era a
de que estes jovens estavam esquecendo da grandeza que teve Santo Amaro em outras épocas.
A região de Santo Amaro, que, em outros tempos, de colônia e parte do império, gozava de
ser o centro da economia agrário -exportadora e com os seus “filhos ilustres” ocupando o
cenário político durante esse período, via a sua importância sendo perdida no sé culo XX.
Assim, os livros destes historiadores tornaram -se referência para buscar a “grandeza” que
tinha Santo Amaro em outros tempos, motivando um espírito cívico a quem lia os seus livros,
principalmente os jovens.
Também nestes memorialistas, já que per cebemos como foi crucial a difusão dos
estudos de corografia na segunda metade do século XIX e no início do século XX, podemos
ver uma característica em comum: a de serem também corógrafos. Assim, analisando a
importância que tinham essas memórias históric o-descritivas e observando a sua estrutura
característica, podemos listar alguns aspectos presentes nestas obras:
1) Começavam a abordagem sobre as origens da cidade, enfocando, no seu
povoamento, as contribuições das raças/ povos/ culturas (termos que se equiparam, como
veremos essa abordagem especificamente em cada autor);
2) No início destes livros, o que os servia de base para o desenvolvimento destas
memórias era a localização geográfica do município, situando a sua fronteira com outras
cidades, descrevendo aspectos da hidrografia, do relevo , entre outros aspectos – seguindo a
idéia do território como um patrimônio geográfico, o que era comum nestas corografias 5;
5
Esta idéia foi muito veiculada, não só no século XIX, mas também no século XX, a p artir de um autor chamado
Veiga Cabral. Assim, segundo Neves (2002, p. 69) ele se antecipou aos conteúdos dentro das disciplinas
7
3) A descrição de acontecimentos importantes na cidade
– cívicos – como a
emancipação da vila à categoria de cidade, a data tida como “magna” 6, entre outros eventos
que caracterizavam a nobreza e a importância do lugar nos eventos nacionais;
4) Dar notabilidade a personagens importantes na cidade: políticos, nobres, médicos,
advogados, artis tas, cientistas. Isto funcionaria como o elenco de exemplos para que “moços
de hoje”, ainda utilizando a expressão de Costa Leal, possam se referenciar neles;
5) Citar espaços notórios na cidade como entidades civis – as filarmônicas estão entre
estas –, instituições públicas (hospitais, escolas etc), templos, entre outros, para dizer que a
funcionalidade de cada espaço e como a cidade estava bem dotada de serviços, elevando ainda
mais a sua importância;
6) As festas características do lugar: cívicas, rel igiosas, e mesmo cívico -religiosas já
que a cidade tinha no nome, Santo Amaro da Purificação, a junção de dois padroeiros: Nossa
Senhora da Purificação e Senhor Santo Amaro; assim nestas festas exaltava -se também a
própria cidade. Além disso, tinham lugar os festejos “populares” e folguedos;
7) e por último, os tipos populares e fatos curiosos, na medida em que estes aspectos
caracterizavam o “folclore” do lugar.
É claro que nem todos estes autores seguiam a mesma ordem, ou mesmo abordassem
sobre todos estes conteúdos, mas, vale notar, que os livros destes historiadores memorialistas
seguem um padrão que nos remete aos métodos que foram utilizados por diversos
historiadores ao longo de muitos anos, como já foi dito.
Os memorialistas e as filarmônicas
Como já dito anteriormente, as filarmônicas eram um desses espaços que preenchiam a
cidade com os seus serviços, animando festas, instruindo musicalmente os interessados na
arte, contribuindo, como relatavam não só estes autores, mas também os jornais da épo ca,
para o “progresso” de Santo Amaro da Purificação. Era como se estas filarmônicas, para estes
memorialistas, dessem vida à cidade, dinamizando -a. É o caso de Herundino da Costa Leal.
Este conta que já tivera a “oportunidade de assistir a ótimas tocatas, realizadas pelas
Filarmônicas ‘Oito de Setembro’, ‘dos Artistas’ e ‘Santamarense’ ”, e que, em pouco tempo,
desaparecendo estas, a cidade ficava “desprovida de uma Filarmônica para abrilhantar
curriculares “Organização Social e Política Brasileira” e “Moral e Cívica”, ambas criada s durante a ditadura
militar.
6
Referente ao dia 14 de junho de 1823, quando é escrita na câmara de Santo Amaro uma ata que questiona o
subjugo em relação a Portugal.
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qualquer ato político ou social”. Somente na ocasião de um band o precatório da Sociedade
Recreativa Santamarense é que os oradores, “profilgaram (sic) sôbre a falta de uma banda de
Música [...] que até pouco tempo possuía três filarmônicas [Santo Amaro] e agora se via na
dura contigência (sic) de recorrer a uma filarm ônica do interior do Município [distrito de
Acupe], constituindo isto um a falta bastante grave”. Assim, na desventura, para este
memorialista local, de comparar a sede com um distrito da cidade , é que se empreende a
fundação em Santo Amaro, em cinco de setembro de 1897, da Filarmônica Filhos de Apolo
(LEAL, 1950, p. 47)
Também relatada por estes memorialistas era a rivalidade – quase que comuns nestas
cidades interioranas como nos mostra Schwebel (1987), entre outros estudiosos no assunto –
entre estas fila rmônicas locais. Neste caso, Paim (2005, p. 221) nos traz de idéia de que esta
rivalidade começou já no surgimento da outra filarmônica, a Lira dos Artistas, a partir “da
desinteligência entre os músicos e diretores da Filhos de Apolo para competir com a o utra”.
Isto porque, na ocasião em que foram hospedar a Filarmônica Euterpe Feirense, alguns dos
integrantes da Filhos de Apolo, viram as péssimas condições em que se encontrava esta
sociedade, montando assim um outro grupo, neste ca so, a Lyra dos Artistas em 1908 (PAIM,
1998, p. 126). Esta “desinteligência” entre as duas filarmônicas iam ocasionar, ao longo dos
anos, em intervenções policiais, com estes autores nos contam.
Esta rivalidade entre estas associações ficou marcada, estando entre as curiosidades de
uma cidade, principalmente quando se leva em conta a forma como estes memorialistas
davam ênfase a estes momentos:
A Filarmônica Apolo era denominada pelos adeptos da outra de fedendo a
gás, pelo fato de ter um professor que gostava de morder uma cani nha do
alambique de seu Passos e, em represália, os adeptos desta chamavam a Lira
de Fedendo a Bode, pelo fato de ter entre suas adeptas algumas pretinhas
que deixavam exalar um cheiro estonteante (LEAL, 1950, p. 47, grifos do
autor).
Vê-se aí também q ue estas ofensas ainda evidenciam parte da configuração étnico racial destas filarmônicas. Por isso também estas filarmônicas rivalizavam entre si. É o caso,
por exemplo, da formação de grupos carnavalescos por parte destas associações musicais.
Como ainda nos conta Paim (1998), o Terno de Coletes, que era formado por alfaiates e
contava com a presença de músicos da Lira dos Artistas, disputava os espaços no carnaval de
Santo Amaro no decorrer das décadas de 20 e 30 do século XX com o clube Bacural, formado
9
por caixeiros. Este último clube só foi formado, continua Paim, pelo fato de que um de seus
integrantes queria que os “rapazes de cor” saíssem do Terno de Coletes.
Para “os moços de hoje”
Deste modo, verificamos assim que na evocação de um passado im ponente, saudoso
logo, estes memorialistas buscavam relatar sobre as coisas mais importantes da cidade de
Santo Amaro, entre elas as próprias filarmônicas locais. Espaços por excelência dos
santamarenses. Trata -se então de irmos a busca não somente das inf ormações que estes
autores trazem sobre estas associações musicais como um aspecto dentro da história local. É
necessário entender que estes intelectuais escrevem a partir de determinados lugares, o que
nos leva a fundo na análise das informações trazidas por eles.
No demais, a partir desta escrita destes memorialistas, as suas visões sobre a história,
mesmo que se preocupassem com um mundo particular
– e ainda que buscassem a
reconstituição histórica a partir de modelos nacionais – ajudaram a colocar tem áticas
importantes para a história da Bahia.
Mais ainda: o que estes historiadores memorialistas queriam mesmo era deixar coisas
para os “moços de hoje”.
Referências
ABREU, Martha. O império do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Jane iro,
1830-1900. São Paulo: Fapesp, 1999.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz; Edusp,
1987.
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. História e análise de textos . In:
.
(Org.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1995.
LEAL, Herundino da Costa. Vida e passado de Santo Amaro. Salvador: Imprensa Oficial da
Bahia, 1950.
. História de Santo Amaro. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1964.
10
LE GOFF, Jacques. Memória. In:
Unicamp, 1996.
. História e memória. Campinas: Editora da
NEVES, Erivaldo F. História regional e local: fragmentos e recomposição da história na crise
da modernidade. Feira de Santana: UEFS; Salvador: Arcádia, 2002.
PAIM, Zilda. Isto é Santo Amaro. Salvador: Academia das Letras, 2005.
. Relicário popular. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo/EGBA, 1999.
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