Evolução Urbana de uma Cidade no Interior Paulista
Casa Branca no Caminho de Goiás
Mariana Pereira Horta Rodrigues
Trabalho Final de Graduação
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Universidade de São Paulo
Orientadora: Maria Lúcia Bressan Pinheiro
São Paulo
2006
Ao meu marido, Marcelo,
e aos meus pais, Heraldo e Eliana.
Para a população casa-branquense.
Agradecimentos
A Deus, pela vida.
À minha orientadora, Maria Lúcia Bressan Pinheiro, pela
amizade, atenção na discussão de diversos temas e paciência
nos desabafos. Nas orientações, os sonhos e a vontade de
estudar cresceram a cada dia.
Aos demais professores presentes na banca, Beatriz
Piccolotto Siqueira Bueno e Percival Tirapeli, toda gratidão e
admiração.
Ao meu marido, Marcelo Juliano Bevilaqua, pelo amor,
companheirismo e apoio em todos os momentos.
Aos meus pais, Heraldo e Eliana, que sempre acreditaram
em mim, pelo exemplo de vida, amor e carinho.
À minha irmã Ana Cláudia e à minha tia Norma, pela leitura
final dos textos e pela eterna amizade.
Aos meus irmãos, Fernanda e Rafael, pelo amor.
Ao meu avô, Manuel, pelo exemplo profissional.
Aos colegas do Departamento do Patrimônio Histórico da
cidade de São Paulo, pela iniciação na prática do patrimônio
histórico.
Aos casa-branquenses que me auxiliaram na pesquisa e
coleta de materiais.
Aos meus amigos Michel Hoog Chauí do Vale e Vanessa
Rocha Siqueira, pela amizade, pelas reflexões sobre
arquitetura e pelos momentos de descontração e riso solto.
Sumário
ABREVIATURAS
06
APRESENTAÇÃO
07
INTRODUÇÃO
10
DADOS GERAIS
12
CAPÍTULO I
ASPECTOS HISTÓRICOS
1.1 Aspectos Históricos Gerais
1.2 O Processo de Interiorização do Brasil
1.3 O Caminho de Goiás e as Origens do Estado de São Paulo
1.4 O Povoamento Mineiro
1.5 Casa Branca: Aspectos Históricos Peculiares
Períodos Iniciais do Processo de Urbanização
1.6 O Café e a Estrada de Ferro Mogiana
Nova Fase de Urbanização
1.7 Considerações sobre os Aspectos Históricos
13
CAPÍTULO II
URBANIZAÇÃO E URBANISMO NO BRASIL E EM CASA BRANCA
49
2.1 O Processo de Urbanização em Casa Branca
2.2 Os Primórdios da Ocupação do Território da Freguesia de Nossa
Senhora das Dores de Casa Branca
2.2.1 Hipóteses 1, 2 e 3
2.2.2 Hipótese 4
2.3 A Evolução Urbana de Casa Branca: Nova Proposta
2.4 Discussão sobre Urbanismo
Inserção de Casa Branca no Contexto Nacional
2.4.1 Primeiro Eixo de Evolução Urbana de Casa Branca
Século XVIII a 1814
2.4.2 Segundo Eixo de Evolução Urbana de Casa Branca
De 1814 a 1841
2.4.3 Terceiro Eixo de Evolução Urbana de Casa Branca
De 1841 a 1878
2.4.4 Quarto Eixo de Evolução Urbana de Casa Branca
De 1878 a 1881
2.4.5 Quinto Eixo de Evolução Urbana de Casa Branca
De 1881 a 1932
51
58
13
18
21
27
31
41
46
60
71
73
76
95
98
100
102
103
CAPÍTULO III
PATRIMÔNIO HISTÓRICO
104
105
113
3.1 Patrimônio Histórico e os Conceitos de Conservação e Restauração
3.2 Preservação de Conjuntos Urbanos
3.3 Os Órgãos de Preservação no Brasil
118
CAPÍTULO IV
PROPOSTAS
130
4.1 O Quadro Urbano a ser Preservado
4.2 Morfologia dos Conjuntos Urbanos a serem Preservados
4.3 Discussão das Propostas
4.3.1 Proposta de Intervenção
130
137
143
148
CONSIDERAÇÕES FINAIS
151
BIBLIOGRAFIA
152
ANEXO I
REGISTRO DE IMÓVEIS DA RUA WALDEMAR PANICO
155
ANEXO II
REVISTA ‘CIGARRA’
157
Abreviaturas
ACCPE - Associação Casa-branquense de Cultura Phísica e Esportiva
CAGESP - Companhia de Armazéns Gerais de São Paulo
CONDEPHAAT - Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico
do Estado de São Paulo
DAE - Divisão de Arquivos do Estado de São Paulo
FAUUSP - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IG - Instituto Geológico do Estado de São Paulo
IGC - Instituto Geográfico e Cartográfico do Estado de São Paulo
IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
SPHAN - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
UFSCAR - Universidade Federal de São Carlos
UNESP - Universidade do Estado de São Paulo
USP - Universidade de São Paulo
Apresentação
A preservação da memória é a grande motivação dessa pesquisa. Ela faz parte de nosso cotidiano e responde aos
anseios humanos de conhecimento de seu passado. Quem
fomos, somos e haveremos de ser? A história e a identidade
de cada cidadão compõe-se de lembranças e da consciência
sobre os fatos. O que se caracteriza como patrimônio cultural,
em sua essência, é o conjunto de lembranças através das quais
um povo identifica-se e um país pode ser, então, chamado
de nação. Patriotismo, regionalismo, sentimentalismo? Tratase da consciência da necessidade da preservação da cultura
como primícia para o desenvolvimento de um povo.
Foram estudos sobre a “Urbanização e Urbanismo no
Brasil” e sobre a “Conservação e Restauração do Patrimônio
Arquitetônico” que me despertaram a atenção e o interesse
para a preservação de conjuntos arquitetônicos em centros
urbanos.
A constante evolução dos espaços citadinos impõe
aos pensadores da cidade a necessidade de aliar a preservação
de bens de interesse histórico às transformações inevitáveis e
essenciais à modernização desses centros, com vistas à manutenção da qualidade de vida, através de espaços adequados à
convivência humana. Acredita-se que a cidade do passado não
deve negar a do presente, nem esta a outra. Cada tempo tem
o seu próprio valor. Portanto, a cidade não deve permanecer
imóvel e imutável, deve-se incentivar a concomitância entre a
preservação histórica e a contemporaneidade.
A conservação não só do patrimônio arquitetônico,
mas da conformação urbana, justifica-se pela cidade, em sua
arquitetura e urbanismo, conter os aspectos da sociedade que
a habita. Relembrando “As Cidades e a Memória”, “(...) a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da
mão, nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das
bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas,
entalhes, esfoladuras”.
Tais questões somaram-se ao anseio de devolver os
frutos de minha formação acadêmica à terra mãe. Seguindo
uma tendência de estudos voltados para o interior do Bra-
Uma notícia está chegando lá do Maranhão
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão
Veio no vento que soprava lá no litoral
De Fortaleza, de Recife e de Natal
A boa nova foi ouvida em Belém, Manaus,
João Pessoa, Teresina e Aracaju
E lá do norte foi descendo pro Brasil central
Chegou em Minas, já bateu bem lá no sul
Aqui vive um povo que merece mais respeito
Sabe, belo é o povo como é belo todo amor
Aqui vive um povo que é mar e que é rio
E seu destino é um dia se juntar
O canto mais belo será sempre mais sincero
Sabe, tudo quanto é belo será sempre de espantar
Aqui vive um povo que cultiva a qualidade
Ser mais sábio que quem o quer governar
A novidade é que o Brasil não é só litoral
É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul
Tem gente boa espalhada por esse Brasil
Que vai fazer desse lugar um bom país
Uma notícia está chegando lá do interior
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão
Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil
Não vai fazer desse lugar um bom país
(Notícias do Brasil, Milton Nascimento e Fernando
Brant)
1
Matéria optativa AUH – 237, oferecida
na graduação da FAUUSP e ministrada pela
professora Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno.
2
Matéria optativa AUH – 127, oferecida
na graduação da FAUUSP e ministrada pelas
professoras Maria Lúcia Bressan Pinheiro e Beatriz
Mugayar Kuhl.
3
CALVINO, p.14 -15.
sil, especialmente sobre o interior do Estado de São Paulo,
realizados pela Unesp, Usp São Carlos, Ufscar e alguns trabalhos realizados na FauUsp, volto meus olhares de arquiteta e
urbanista para a cidade de Casa Branca. “A novidade é que o
Brasil não é só litoral (...)” e há a necessidade de que também
as pequenas cidades do interior do Estado estejam preparadas
para discutir, conscientemente, questões do Estatuto da Cidade e possam elaborar seus Planos Diretores com vistas a um
desenvolvimento urbano adequado.
Questões práticas de como analisar o patrimônio arquitetônico, inserido na preservação de um conjunto urbano,
foram trazidas pelo estágio de um ano na Divisão de Preservação do Departamento do Patrimônio Histórico do Município
de São Paulo, sob supervisão e orientação do arquiteto Walter
Pires, principalmente nos trabalhos de elaboração de inventário e pesquisa sobre o bairro de Mirandópolis, instrução de
processo de tombamento de antigas residências no bairro do
Ipiranga e inventário de bens no bairro da Vila Mariana. Todos os trabalhos abordaram a questão do objeto arquitetônico
inserido na metrópole histórica, principalmente no caso de
Mirandópolis, cujo processo propôs o tombamento do bairro,
preservando o desenho urbano. Essas questões sobre a grande metrópole de São Paulo são paradigmas para estudos que
podem ser realizados em qualquer cidade do Brasil. Numa
escala reduzida, a cidade de Casa Branca apresenta os mesmos
problemas pelos quais a Vila de Piratininga passou e que a
metrópole enfrenta como conseqüência de decisões equivocadas, como a ocupação de áreas de mananciais, a impermeabilização do solo, a ocupação das margens dos rios e córregos,
o transporte público inadequado, a falta de áreas verdes e de
lazer públicas, a habitação irregular, etc.
Idéias sobre a viabilidade e recursos para instaurar a
restauração e conservação de bens móveis e imóveis foram
introduzidas por intelectuais envolvidos na preservação da
Fazenda do Pinhal, em São Carlos, célula mater daquela cidade, especialmente o gerente da Casa Pró Pinhal, Francisco de
Sá Neto. Em Congresso realizado naquele local, foram discutidas questões como, por exemplo, a necessidade de elaborar
políticas públicas para a preservação do patrimônio cultural
brasileiro, especificamente no Estado de São Paulo, em parceria com o Iphan e Condephaat, em paralelo com o desen-
4
Uma metodologia para pesquisa sobre o
patrimônio histórico do interior do Estado de São
Paulo já havia sido elaborada na década de 1970
pelo Iphan, segundo José Saia Neto, que propunha
um levantamento sistemático sobre a região da
Mogiana, onde se encontra Casa Branca. Portanto,
há tempos, estudos tentam voltar-se para o espaço
interiorano.
5
Notícias do Brasil, música de Milton
Nascimento e Fernando Brant.
volvimento de projetos de pesquisa e ações educativas junto à
comunidade, bem como parcerias com a iniciativa privada, de
uma forma que o direcionamento econômico seja conduzido
pela pesquisa e pelo valor científico, sem perda da densidade
histórica do patrimônio, visando à sua sustentabilidade.
Mas, apesar do grande interesse pela cidade, barreiras
organizacionais atrozes impediram avanços na pesquisa documental. Documentos do arquivo morto do município não se
encontram mais na Prefeitura: foram queimados ou enviados
ao museu da cidade, cuja falta de funcionários especializados
em arquivamento, museologia ou algo semelhante inviabilizam
qualquer tipo de pesquisa mais densa e específica, haja vista
a desorganização e a falta de catalogação, apesar do grande
esforço e da dedicação do pesquisador Adolfo Legnaro Filho,
diretor do museu. Observa-se essa falha do sistema público
municipal e o desleixo com a cultura da cidade.
Queixas e murmúrios à parte, é tempo de prosseguir.
Identificar problemas e necessidades é o primeiro passo para
propor soluções adequadas.
As cidades de Casa Branca (da realidade ao
pessimismo)
A cidade do tempo, da história, da terra e dos velhos,
do sagrado e do largo;
a cidade do aço, do concreto,
da luxúria e do desleixo;
a cidade do conforto, da aparência, da opulência e do
opressor;
a cidade do trabalho, do pão, do calçado e da jabuticaba;
a cidade déspota, arrogante, hilária, ignorante!
Nelas, vilarejos, terra batida, percevejos, goteiras, barro,
bala, fumo, prostituição.
Fé? Força, loucura, exclusão, abismo.
O tempo a teria salvo, o presente a condena.
Passada a história, que nada mais se construa
(Mariana Horta, 1° de março de 2006 – após uma
semana de pesquisas e atribulações em Casa Branca)
6
Museu Histórico e Pedagógico Afonso e
Alfredo de Taunay.
Introdução
A história da cidade de Casa Branca poderia ser confundida com a história de muitas outras do interior paulista
situadas ao longo do Caminho de Goiás. As terras, antes ocupadas pelos índios caiapós, passaram a ser percorridas pelos
bandeirantes, que, seguindo as nascentes dos rios, chegaram
até Vila Boa de Goiás, onde encontraram ouro. A trilha do
Anhangüera seria, a partir de então, caminho de viajantes em
busca de fortunas. O Brasil interiorizava-se a partir da Vila de
São Paulo de Piratininga, em direção a Minas e Goiás.
Muitos pousos surgiram na passagem de rios e, destes,
arraiais, freguesias, vilas e cidades. A Capitania de São Paulo
urbanizou-se a partir do Caminho de Goiás, principalmente
após a crise do ouro em Minas Gerais, com a migração de
muitos mineiros para a região, que desenvolveram uma agricultura de subsistência e introduziram a criação de gado.
Casa Branca insere-se nesse processo: foi pouso para
viajantes, apesar de não ser passagem de rio, mas entroncamento de caminhos; possuía sesmarias, concedidas ao longo
do Caminho de Goiás; e continha capela e vigário. Seu início
de urbanização é considerado um processo espontâneo, no
qual a população inicial era paulista e mineira. Mas, por motivos que serão apresentados e discutidos, houve a intervenção
por parte da Coroa lusitana, através de uma linha portuguesa
de ordenação do território, defendida e introduzida no Brasil
por Dom João VI. O arraial tornou-se Freguesia por Decreto Régio e incentivou-se a colonização açoriana nessas terras. Nesse aspecto, a cidade de Casa Branca diferencia-se, ao
considerarmos o contexto da Capitania de São Paulo. Apesar
das intervenções urbanísticas portuguesas terem ocorrido em
outras localidades do Brasil colonial, como em Vila Boa, há a
necessidade de se discutir os interesses do governo português
na região de Casa Branca.
Sobre essas análises, vários contextos embasam-nas:
as ‘políticas’ de colonização do Brasil e os ‘mecanismos’ de
interiorização e conquista do território; os interesses econômicos do governo português e as crises do reinado luso na
Europa; e os interesses da Espanha na conquista do território
oriental da América.
Corta extensa e quase despovoada zona da parte suloriental da vastíssima província de Mato Grosso a estrada
que da Vila de Sant’Ana de Paranaíba vai ter ao sítio
abandonado de Camapuã. Desde aquela povoação, assente
próximo ao vértice do ângulo em que confinam os territórios
de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso até
ao Rio Sucuriú, afluente do majestoso Paraná, isto é, no
desenvolvimento de muitas dezenas de léguas, anda-se
comodamente, de habitação em habitação, mais ou menos
chegadas umas às outras; rareiam, porém, depois as casas,
mais e mais, caminham-se largas horas, dias inteiros sem se
ver morada nem gente (...).
Ali começa o sertão chamado bruto.
Pousos sucedem a pousos, e nenhum teto habitado ou em
ruínas, nenhuma palhoça ou tapera dá abrigo ao caminhante
contra a frialdade das noites, contra o temporal que ameaça,
ou a chuva que está caindo. Por toda a parte, a calma da
campina não arroteada; por toda a parte, a vegetação virgem,
como quando aí surgiu pela vez primeira.
A estrada que atravessa essas regiões incultas desenrola-se à
maneira de alvejante faixa, aberta que é na areia, elemento
dominante na composição de todo aquele solo, fetilizado
aliás por um sem-número de límpidos e borbulhantes
regatos, ribeirões e rios, cujos contingentes são outros tantos
tributários do claro e fundo Paraná ou, na contravertente, do
correntoso Paraguai(...).
O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em
geral, família. Enquanto moço, seu fim único é devassar
terras, pisar campos onde ninguém antes pusera pé, vadear
rios desconhecidos, despontar cabeceiras e furar matas, que
descobridor algum até então haja varado.
Cresce-lhe o orgulho na razão de extensão e importância
das viagens empreendidas; e seu maior gosto cifra-se em
enumerar as correntes caudais que transpôs, os ribeirões
que batizou, as serras que transmontou e os pantanais que
afoitamente cortou, quando não levou dias a rodeá-la com
rara paciência(...).
Nascera Cirino de Campos (...) na província de São
Paulo, na sossegada e bonita Vila de Casa Branca, a qual
demora umas 50 léguas do litoral. Filho de um vendedor de
drogas, que se intitulava boticário e a esse ofício acumulava
o importante cargo de administrador do correio, crescera
debaixo das vistas paternas até a idade de doze anos,
completos os quais fora enviado, em tempos de festas e a
títulos de recordações saudosas, a um velho tio e padrinho,
morador na cidade de Ouro Preto (...).
O menino, transido de medo, passou a tarde a chorar num
canto sombrio da casa, onde relembrou, até lhe vir o sono,
a alegre vida de outrora, os folguedos que fazia com os
camaradas na viçosa relva do Cruzeiro à entrada da Vila de
Casa Branca e sobretudo os carinhos da saudosa mãe (...).
(TANAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1964, p.9,10,17,18,32,33, primeira
edição de 1872)
.
10
A história de Casa Branca confunde-se, portanto, com
a própria história do Brasil. A escala reduzida da problemática
não lhe tira o mérito da exploração científica. Trata-se de um
microcosmo da história brasileira nesse país onde, muitas vezes, a cultura é esquecida e o povo perde sua identidade. São
esses primeiros passos, oriundos da observação histórica, que
indicarão o caminho para a preservação do patrimônio cultural dessa cidade, atualmente entregue aos interesses aleatórios,
não públicos, que a consomem e a desfiguram.
1
Segundo Lucila Brioschi, o antigo
sertão do Rio Pardo foi capítulo menor na saga
bandeirante, pois seu solo não oferecia as riquezas
então procuradas – pedras e metais preciosos. Esta
região foi conhecida e trilhada, provavelmente,
desde fins do século XVII, como trecho de
passagem daqueles que, saindo dos campos de
Piratininga, demandavam os antigos domínios dos
índios Goiazes. Sobre as trilhas sertanistas foi-se
delineando um traçado mais ou menos fixo, que
passou, então, a ser conhecido, já no século XVIII,
como Caminho de Goiás (BRIOSCHI, 1995, p.49).
1- Mapa do Caminho de Goiás
Fonte: BACELLAR & BRIOSCHI, p.45.
11
Dados Gerais
Município de Casa Branca
Área: 865 Km²
Altitude Média: 679 m
Freguesia de Nossa Senhora das Dores de Casa Branca, Território de Mogi Mirima:
Alvará de 25 de outubro de 1814
Vila do Termo de Mogi Mirim, abrangendo as freguesias de
Casa Branca e Caconde e o curato de São Simão:
Lei n.° 15, de 25 de fevereiro de 1841
Cidade de Casa Branca:
Lei n.°22, de 27 de março de 1872
Comarca, com os Termos de Casa Branca, Caconde e São
Simão:
Lei n.° 46, de 06 de abril de 1872
Localização: Está situada a Nordeste do Estado de São Paulo, no trajeto da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro.
As coordenadas geográficas da sede municipal são: 21° 46’
29’’ latitude Sul e 47° 05’ 16’’ longitude Oeste. A distância em
relação à capital do Estado é de 201 km, em linha reta.
Em seus primórdios, localizava-se no chamado “sertão do rio
Pardo”, região que abrangia o território desde o rio Jaguari
Mirim ao Sul até o rio Grande ao Norte, e que, administrativamente, pertenceu ao antigo Município de Jundiaí, passando a
compor o Município de Mogi Mirim, quando da criação deste
último, em 1769. Sobre o âmbito da administração eclesiástica, a área encontrava-se sobre a jurisdição da freguesia de
Mogi Guaçu.
Limites:
N: Mococa e Tambaú
NE: São José do Rio Pardo
E: Itobi
SE: Vargem Grande do Sul
S: Aguaí
SO: Santa Cruz das Palmeiras
O: Santa Cruz das Palmeiras e Tambaú
NO: Tambaú
População do Município de Casa Branca
Ano
Total de habitantes
1765*
16
1825
2635
1872**
10281
1890
13482
1900
16133
1920
26397
1940
21993
1950
21123
1954
22452
1960
17212
1970
18170
1980
21751
1991
25308
2000
26800
*dados de 1765 retirados da pesquisa de Amélia
Trevisan (1979, p.27)
** dados do recenseamento oficial (FURLANI,
2003, p.108)
2- Localização do Município de Casa Branca em
relação ao Estado e ao Município de São Paulo.
Fonte: Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, vol
XI.
3- O Município de Casa Branca e seus limites.
a
A grafia adotada para Mogi Guaçu,
Mogi Mirim e Mogiana segue aquela adotada
pela própria administração dos municípios e pelo
registro daquela empresa de estrada de ferro. Como
palavras de origem indígena, deveriam ser escritas
com “j”, mas optou-se pelo “g” em função do uso
corriqueiro.
12
Capítulo I
Aspectos Históricos
1.1 Aspectos Históricos Gerais
O sistema econômico feudal, a predominância do
meio rural e um poder político descentralizado e fragmentado, aliados à intensa exploração dos camponeses, levou ao
início de várias rebeliões na Europa Ocidental, em princípios
do século XIV. O sistema feudal não permitia o aumento da
produtividade agrícola, levando às guerras e à estagnação. A
solução para essa crise da Europa Ocidental foi a expansão
geográfica e o aumento da população que seria explorada.
Portugal destacou-se como o pioneiro dessa expansão
ultramarina devido a vários fatores. Firmava-se no quadro europeu como um país autônomo, com tendências a voltar-se
para o exterior, além de possuir uma base política mais consolidada do que o restante da Europa e um governo monárquico
centralizado na figura de D. João, o Mestre de Avis, em torno
do qual reagruparam-se importantes grupos sociais, como a
nobreza e os comerciantes. Portanto, a Coroa tinha força e
estabilidade para lançar-se como empreendedor na expansão
marítima. Além disso, Portugal possuía posição geográfica
privilegiada além de experiência no comércio de longa dis-
“Qualquer estudo histórico, mesmo uma monografia sobre
um assunto bastante delimitado, pressupõe um recorte do
passado, feito pelo historiador, a partir de suas concepções e
da interpretação de dados que conseguiu reunir. A própria
seleção de dados tem muito a ver com as concepções do
pesquisador”.
(FAUSTO, p.13)
4- Principais Rotas Comerciais Portuguesas dos
séculos XVI ao XVIII.
Fonte: CHLA, vol I, p.451 In FAUSTO, p.31.
13
tância.
Ceuta, no Norte da África, foi o ponto de partida da
expansão ultramarina, com a chegada dos portugueses em
1415. A expansão metódica desenvolveu-se ao longo da costa
ocidental africana e nas ilhas do Oceano Atlântico. A partir da
conquista do Cabo da Boa Esperança (1487), os portugueses
chegam à Índia e depois à China e ao Japão (1540 a 1630). A
exploração na costa da África baseou-se no sistema de feitorias, pontos fortificados de comércio, e a partir de 1441, no
comércio de escravos para Portugal. Nas ilhas do Atlântico, a
exploração diferiu bastante do caso africano. Na Ilha da Madeira (1420), Açores (1427), Cabo Verde (1460) e São Tomé
(1471), os portugueses realizaram experiências significativas
de plantio em grande escala, com uso de mão-de-obra escrava, método que seria também introduzido no Brasil.
Em relação ao Brasil, foi somente a partir da possibilidade dos espanhóis tomarem as ‘terras brasileiras’ como
alternativa de caminho para as Índias, em 1492, que Portugal
contestou a posse da nova terra, fato que culminou nas negociações do Tratado de Tordesilhas (1494).
Após a posse das ‘terras brasileiras’ ter sido garantida
pelo Tratado, pode-se identificar no período colonial brasileiro (1500 a 1822), segundo Boris Fausto, três períodos: de
1500 a 1549, a chegada de Cabral à instalação do Governo
Geral, um período de reconhecimento e posse da nova terra,
com um comércio escasso; de 1549 até fins do século XVIII,
período de consolidação da colonização, com marchas e contramarchas; e, do final do século XVIII até 1822, período de
transformações na ordem mundial e nas colônias, culminando
com a crise do sistema colonial e com a independência. São
de relevância, nessa pesquisa, os dois momentos históricos
finais, com extensão do período até fins do século XIX, para
compreensão da expansão cafeeira e da ferrovia no Brasil.
Apesar disso, o período inicial, até 1549, também contribui
para o entendimento de pontos posteriores a serem estudados, referentes às políticas de colonização dirigida, ocorridas
no sertão brasileiro, que se relacionam com formas de exploração da colônia.
As primeiras tentativas de exploração basearam-se no
sistema de feitorias. Inicialmente, as terras brasileiras foram
arrendadas por um período de três anos a um consórcio de
1-
FAUSTO, p.41.
14
comerciantes liderado por Fernão de Noronha. Foi a partir de
1505 que o Brasil passou a ser explorado diretamente pela Coroa, não com intenções de povoamento efetivo, mas visando à
extração do pau-brasil, atividade econômica que predominou
até 1535. No entanto, vários fatores, principalmente políticos,
levaram a Coroa portuguesa à convicção de que era necessário
colonizar a nova terra. Além das disputas de fronteiras com
a Espanha, eram os franceses que, nesse primeiro período da
colonização, despertavam as maiores preocupações, pois praticavam pirataria.
Em relação à colonização do Brasil, a primeira tentativa inicia-se com o sistema das Capitanias Hereditárias, introduzido por Dom João III. Em essência, elas representaram
uma tentativa transitória e inicial de colonização, com o objetivo de integrar a Colônia à economia mercantil européia.
A posse das capitanias dava aos donatários extensos poderes,
tanto na esfera econômica, com a arrecadação de tributos,
como na administrativa. Deste ponto de vista, os donatários
tinham o monopólio da justiça, com autorização para fundar
vilas e doar sesmarias. No entanto, as capitanias não vingaram
e apenas duas desenvolveram-se, São Vicente e Pernambuco.
Com isso, aos poucos, essas terras voltaram a pertencer ao
Estado, sendo que entre 1752 e 1754 o Marquês de Pombal
completou esse processo.
A decisão de instituir o Governo Geral do Brasil também provém de Dom João III, num período em que a Coroa
portuguesa começava a entrar em crise, reflexo dos maus negócios na Índia e das derrotas militares no Marrocos. Além
desses fatores, o fracasso das Capitanias Hereditárias levou à
necessidade de uma organização administrativa da Colônia.
A instituição do Governo Geral deveria garantir a posse das
terras, a sua colonização e a arrecadação de tributos para a
Coroa. Representou um esforço de centralização administrativa, o que não significa que o governador geral detivesse todos
os poderes, já que a ligação entre as capitanias era bastante
precária, o que limitava a sua ação. Além disso, essa montagem da administração colonial desdobrou e enfraqueceu o
poder da Coroa, que não se ajustava à idéia de uma máquina
burocrática esmagadora, transposta com êxito para a Colônia.
O Estado esteve mais presente apenas nas regiões que eram
o núcleo fundamental da economia de exportação. Por isso,
15
até meados do século XVII, o Estado somente foi eficaz na
sede do governo geral e nas capitanias à sua volta. Nas outras regiões, houve o preenchimento das funções do Estado
por grupos privados, como o bandeirismo paulista que, apesar
de desvinculado da Coroa, não foi inimigo do Estado, pois
compatibilizava com os interesses do governo português. Foi
somente com a descoberta das minas de ouro e diamantes que
o governo português aumentou seu controle, com o interesse
de assegurar a cobrança de tributos sobre suas riquezas.
Portanto, a colonização apenas começa a se consolidar após três décadas marcadas pela necessidade de garantir
a posse da nova terra. O Brasil torna-se, então, uma Colônia
com a função de fornecer ao comércio europeu produtos alimentícios e minérios, com base na produção em larga escala e
assentada na grande propriedade e no trabalho escravo, principalmente negro. Através do mercantilismo, a Coroa portuguesa tratou de assegurar os maiores ganhos do empreendimento colonial. Portanto, podemos dizer que o sentido da
colonização, até a descoberta dos metais preciosos, foi dado
pela grande propriedade, o trabalho escravo e a monocultura.
Mas, Carlos Teixeira da Silva chama a atenção para o fato de
a Coroa sempre ter se preocupado em diversificar a produção e garantir o plantio de gêneros alimentícios para consumo
na própria Colônia. Destaca, ainda, a presença de pequenos
proprietários na sociedade rural, além dos senhores e seus escravos. Boris Fausto acrescenta dizendo que não havia desinteresse da Coroa pela plantation, mas havia a necessidade de
produção de alimentos para a fixação do homem na Colônia.
Por esse quadro geral econômico, podemos entender porque
a população da Colônia viveu em sua grande maioria no campo. As cidades cresceram aos poucos e eram dependentes do
meio rural. Esse quadro somente começa a ser modificado
em função dos grandes comerciantes e pelo crescimento do
aparelho administrativo, o que aumentou o peso qualitativo
das cidades. A invasão holandesa e a vinda da família real para
o Rio de Janeiro, em 1808, também contribuíram para o desenvolvimento dos centros urbanos.
Nesse processo de colonização, é importante destacar
o papel da Igreja. Estado e Igreja estavam destinados a organizar a colonização no Brasil. À Coroa cabia a organização administrativa, política e o controle econômico. À Igreja, o con-
2-
p.58.
Carlos Teixeira da Silva apud FAUSTO,
3-
FAUSTO, p.58.
16
trole sobre as almas facilitava veicular a obediência ao poder
do Estado. Mas, apesar da subordinação da Igreja ao Estado,
no caso português, a Igreja adquiria certa autonomia ao tornar-se proprietária de grandes extensões de terra. Próximos
aos patrimônios religiosos também surgiam povoações, sendo
a capela o elemento valorizador da terra, pois era através da
presença religiosa que a função administrativa tornava-se organizada e a freguesia podia, então, ser estabelecida.
Após o auge do ouro, o Brasil enfrenta consecutivas
crises no período Pombalino, de 1750 a 1777, entre elas a
queda da produção do ouro, a crise do açúcar, despesas para
reconstruir Lisboa após o terremoto de 1755 e guerras com a
Espanha pelas terras do sul de São Paulo ao Rio da Prata.
Com a queda de Pombal, em 1777, seguida da instituição do reinado de D. Maria I e do príncipe regente D. João,
muita coisa mudou. Companhias de comércio foram extintas
e fábricas foram fechadas, mas, de 1777 a 1808, o reinado
foi favorável à reativação das atividades agrícolas na Colônia. Após a invasão francesa em Portugal, o príncipe D. João
decide pela transferência da Corte portuguesa para o Brasil,
em 1808. Com a vinda da família real, ocorre uma reviravolta
nas relações entre Metrópole e Colônia. Iniciam-se as disputas pela abolição da escravatura por parte dos ingleses, com
interesses em aumentar o mercado consumidor no Brasil, e
ocorrem alterações no cenário urbano da Colônia. A Coroa
também tomava medidas no sentido de integrar Portugal e
Brasil como partes de um mesmo reino. Em 1815, D. João
eleva o Brasil a Reino Unido de Portugal e, no ano seguinte, é
sagrado rei de Portugal, com o título de D. João VI.
Mas, em 1820, irrompeu em Portugal uma revolução
liberal. Os rebeldes procuravam enfrentar um momento de
profunda crise na vida portuguesa: crise política pela ausência do rei; crise econômica pelo fim do mercantilismo; e crise
militar pela presença de tropas inglesas em Portugal, mesmo
com o fim da guerra na Europa em 1814. Além disso, pretendiam fazer com que o Brasil voltasse a se subordinar inteiramente a Portugal. No final de 1820, exigiram a volta do rei
D. João VI àquele país e, temendo perder o trono, o monarca
retorna, deixando no Brasil o príncipe regente Pedro, futuro
D. Pedro I.
17
1.2 O Processo de Interiorização do Brasil
Frei Vicente do Salvador escreve, em 1627, que os
portugueses tinham sido incapazes de povoar o interior da
nova terra. Mas, é justamente a partir da segunda metade do
século XVII que ocorre uma revisão do esquema colonial,
com novas formas de exploração e dominação. Nesse quadro,
segundo Nestor Goulart, o governo português estabeleceu
uma linha de maior centralização do poder e, como decorrência, houve uma dinamização da vida urbana da colônia.
Ainda no fim do período colonial, cerca de 74% da
população concentrava-se em torno dos principais portos
exportadores e no interior das capitanias costeiras: RJ, BA,
PE e PB. A colonização da Capitania de São Vicente também
começou pelo litoral, com o plantio de cana e a construção
de engenhos. Mas essa atividade não progrediu, por causa da
desvantagem com a produção nordestina. Por outro lado, a
existência de índios em grande número na região Centro-Sul
atraiu para o local os primeiros jesuítas. Padres e colonizadores, com objetivos diferentes, iriam se aventurar rumo ao interior, vencendo a Serra do Mar e abrindo caminho por trilhas
indígenas, até chegar ao Planalto de Piratininga, fundando, em
1554, a povoação de São Paulo. Dessa forma, separados da
costa por essa barreira natural, os primeiros colonizadores e
os missionários voltaram-se cada vez mais para o sertão, percorrendo caminhos com a ajuda dos índios e utilizando-se da
rede fluvial formada pelo Tietê, o Paraíba e outros rios.
5- A Marcha do Povoamento e a Urbanização
- Séculos XVI e XVIII, respectivamente.
Fonte: HGCB, Difel, tomo I, vol. 1. In FAUSTO,
p.92 e 139.
4-
p.91.
Frei Vicente do Salvador apud FAUSTO,
5-
REIS FILHO, 1995, p.25.
18
As bandeiras foram a grande marca deixada pelos
paulistas na vida colonial do século XVII. Essas expedições,
que reuniam brancos, mamelucos e índios, lançavam-se pelo
sertão em busca de indígenas a serem escravizados e metais
preciosos. As bandeiras tomaram as direções de Minas Gerais,
Goiás, Mato Grosso e as regiões onde se localizavam as aldeias de índios guaranis, organizadas pelos jesuítas espanhóis.
Os historiadores Alfredo Ellis Jr. e Afonso Taunay valorizaram as façanhas paulistas, que estenderam as fronteiras do
Brasil muito além de Tordesilhas, como, por exemplo, no caso
do Caminho de Goiás, que se estendeu além daquela linha,
ligando São Paulo de Piratininga a Vila Boa de Goiás.
Como já foi mencionado, não se pode dizer que os interesses da Coroa e o bandeirismo estivessem completamente
separados. Houve bandeiras que contaram com o incentivo
direto da administração portuguesa, enquanto outras não. De
um modo geral, a busca de metais preciosos, o apresamento
dos índios, em determinados períodos, e a expansão territorial
eram compatíveis com os objetivos da Metrópole.
Foram os paulistas, em suas andanças pelo sertão, que
confirmaram a presença de metais preciosos no Brasil. Foi
em 1695, no rio das Velhas, próximo a Sabará e Caeté, que
ocorreram as primeiras descobertas significativas de ouro, associadas ao nome de Borba Gato. Com a descoberta dos metais preciosos, a corrida do ouro provocou a primeira grande
corrente imigratória para o Brasil: de 1700 a 1760, chegaram,
de Portugal e das Ilhas dos Açores, cerca de 600 mil pessoas.
Conseqüentemente, em termos administrativos, o eixo da vida
da Colônia deslocou-se para o Centro-Sul, especialmente para
o Rio de Janeiro, por onde entravam escravos e suprimentos
e saía o ouro. Portanto, a extração do ouro e diamantes deu
origem à intervenção regulamentadora mais ampla que a Coroa realizou no Brasil, fazendo grande esforço para arrecadar
tributos, os quais eram o quinto e a capitação. Arrecadar impostos e organizar a sociedade das minas passaram a ser os dois
objetivos básicos da administração portuguesa. Para isso, era
necessário estabelecer normas, transformar acampamentos
em núcleos urbanos, criar um aparelho burocrático, incluindo
as funções militares.
Além disso, a economia mineradora gerou uma certa
articulação entre áreas diversas da Colônia. Do Sul para Mi19
nas, vieram o gado e as mulas, necessários ao carregamento
de mercadorias, e o comércio intensificou-se. Muitas pessoas,
de diversas partes do Brasil, também migraram para a região,
além de portugueses e açorianos. Com essa nova população
em Minas Gerais e a atividade mineradora não rural, a vida social concentrou-se em novas cidades e as fronteiras das ‘terras
portuguesas’ na América expandiram-se.
E foi com a descoberta de novas minas em Goiás e
Mato Grosso que o território interior, sob domínio português,
foi estendido longamente para oeste dos limites do Tratado
de Tordesilhas e, em cada uma dessas áreas, estabeleceram-se
vilas e sistemas regulares de controle administrativo. A mineração, pois, induziu o reforço dos esquemas de centralização e
as iniciativas de criação de vilas foram transferidas à administração central, sendo que as câmaras municipais tiveram seus
poderes restringidos. Dessa forma, a criação de vilas passa a
ser feita por iniciativa do governo português, através de Cartas Régias aos governadores e uma política de urbanização
mais coerente. Mas, sua estruturação efetiva somente ocorrerá
durante a administração do Marquês de Pombal (1750-1777).
Considerando que as disputas para expandir as ‘terras portuguesas’ na América levaram à necessidade de efetivar
a colonização nas fronteiras, que deveriam corresponder ao
Tratado de Tordesilhas, levanta-se, como hipótese, a possibilidade de que Casa Branca se situasse nesse limite, daí uma das
razões do governo português decretar a fundação de uma Freguesia nessa localidade, obviamente associada a outros fatores,
que serão considerados mais adiante. Com o intuito de aprofundar essa hipótese, foram realizados mapas que possibilitassem a comparação da provável localização da linha imaginária
do Tratado de Tordesilhas, com a localização do município de
Casa Branca. As duas composições de mapas, observadas acima, foram baseadas em atualização do mapa do Brasil, oferecida pelo IBGE, sobreposta ao mapa de Boris Fausto (Rumo
das Principais Entradas e Bandeiras), que mostra a posição da
linha do Tratado. Como as referências geográficas no período
colonial eram bastante imprecisas e diferentes das atuais, já
que as longitudes não eram medidas a partir do Meridiano de
Greenwich, não há como ter certeza, pelos métodos utilizados nesta monografia, do posicionamento correto da linha de
Tordesilhas. Mas, não tendo sido encontrado mapa atualizado
6- Rumo das Principais Entradas e Bandeiras
Fonte: HGCB, tomo I, Vol. 1. In FAUSTO, p.95.
7- Linha do Tratado de Tordesilhas e a localização
do Município de Casa Branca
8- Linha do Tratado de Tordesilhas, o Caminho de
Goiás e a localização do Município de Casa Branca
20
oficial dessa informação desejada, a aproximação dessa idéia
pode ser visualizada nestes mapas acima. Observando-os, a
cidade de Casa Branca pode ser considerada próxima ao limite
das terras portuguesas, segundo aquele Tratado, considerando-se todas as imprecisões das informações. A hipótese poderia, então, ser relevante, apesar de outras freguesias já terem
sido fundadas nessa região, como Franca, de 1804.
Com isso, desde o início do século XVIII, a extensão
geográfica da Colônia nada tinha a ver com a incerta Linha de
Tordesilhas. A expansão das bandeiras paulistas, para o Oeste,
e dos criadores de gado e forças militares, para o Sudoeste,
ampliou, de fato, as fronteiras do país. O avanço minerador,
a partir do século XVIII, também contribuiu, de modo que a
fisionomia territorial do Brasil já se aproximava bastante da
atual.
O Tratado de Madri (1750), entre Portugal e Espanha,
reconheceu o princípio de posse para quem fosse ocupante
efetivo de uma área, o que também contribuiu para incentivar as políticas de colonização permanente das terras pelos
portugueses. No entanto, apesar das fronteiras estarem praticamente definidas, vastas regiões do país permaneciam inexploradas.
9- Brasil antes e depois do Tratado de Madri.
Fonte: CHLA, vol. I. In FAUSTO, p.136.
1.3 O Caminho de Goiás e as Origens do Estado de
São Paulo
Para o estudo da evolução urbana da cidade de Casa
Branca é necessário, primeiro, entender a evolução urbana ao
longo do Caminho de Goiás, inserido no processo de interiorização do Brasil.
Esse sertão, território dos índios caiapós, teve sua
ocupação e seu povoamento marcado pela antiga trilha de
Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, aberta para aprisionamento de índios e para busca de metais preciosos, que
viria a se chamar Caminho de Goiás.
Durante o século XVII, começaram as incursões pelo
interior, à procura de índios e metais preciosos, aproveitando
as antigas trilhas indígenas. O comércio através da Estrada de
10- Caminhos antigos indicando as principais
penetrações de bandeiras. Caminho de Goiás.
Fonte: Instituto Geológico do Estado de São Paulo
6-
Segundo Ganymedes José (p.15), é por
volta de 1572 que Sebastião Marinho, sertanista,
conhece o caminho dos goiases. Depois, vieram
outros: Afonso Sardinha, Luís Caetano de Almeida,
Bartolomeu Bueno Siqueira e Bartolomeu Bueno da
Silva, entre 1670 e 1680. E, segundo um documento
datado de 1728, que cuida das delimitações das
divisas entre São Paulo e Minas, encontrado no
volume XXIV da “Revista do Instituto Histórico
e Geográfico do Estado de São Paulo”, já se
mencionava um arraial de Casa Branca.
21
Goiás também era facilitado pela topografia do seu traçado,
que, cortando terrenos pouco acidentados, permitia o tráfego
de carros de boi. Com isso, pequenas roças foram se disseminando ao longo dessas trilhas e a terra foi sendo ocupada com
a formação de arraiais e sítios para a criação de gado e lavoura.
Com o tempo, os moradores do Planalto de Piratininga tornaram-se abastecedores do litoral e do Nordeste canavieiro.
Somente em fins do século XVII que os vicentinos, contando
com incentivos da Coroa portuguesa, intensificaram as buscas de riquezas minerais e descobriram as primeiras jazidas
de ouro, na região da atual Ouro Preto, em 1690. Ainda na
primeira metade do século XVIII, foi descoberto ouro em
Mato Grosso, em 1718, e em Goiás, em 1725. Esse fato transformou vastas áreas, até então habitadas por indígenas, em
centros para onde convergiam indivíduos sequiosos de enriquecimento.
À medida que as áreas de mineração se expandiam, intensificava-se o fluxo das trocas com os núcleos de população
mais antigos, criando e sedimentando antigas trilhas e caminhos. Negociantes, tropeiros, autoridades ou simples aventureiros circulavam periodicamente pelas estradas, contribuindo
para a fixação de moradores ao longo dos percursos. Na beira
dos caminhos iam se disseminando ranchos, roças, vendas e
surgindo locais para o abastecimento e pernoite, os pousos.
A notícia sobre o ouro em Goiás teve como conseqüência imediata um aumento da ocupação das terras ao
longo do caminho, seja por concessão de sesmarias, seja por
posse pura e simples. A intensificação da circulação de tropas
e pessoas nesse trajeto fez convergir os interesses dos particulares em auferir lucros com o fornecimento de abrigo e
mantimentos aos viajantes, com as preocupações da Coroa
em facilitar, de forma controlada, as vias de acesso ao ouro.
Uma série de sesmarias foram solicitadas nesse trajeto, tendo
como justificativa a instalação de pousos “para a comodidade
dos viajantes e aumento do real dízimo”. Entre 1727 e 1736,
foram feitos cerca de 69 registros de sesmarias ao longo do
Caminho. Além disso, no momento em que a ocupação se
acelerava, posseiros de longa data também tratavam de legalizar o uso de suas terras, alegando já se encontrarem no local,
plantando roças e criando gado há muito tempo. Foram nos
dez primeiros anos após o descobrimento do ouro de Goiás
7-
BACELLAR & BRISCHI, p.47.
22
que ocorreram quase todos os atos de concessão de sesmarias
e de regulamentação das posses registradas pela estrada do
Anhangüera.
Se o número de sesmarias pode ser avaliado, o total de
pousos realmente instalados nesse percurso tem sido objeto
de controvérsias. O mais provável é que os pousos podiam ser
encontrados a distâncias regulares, que cobriam uma jornada
de viagem de 2,5 a 5 léguas. Esses pousos, designados também como sítios ou paragens, possuíam, além de uma ou mais
casas de morada do chefe do pouso e seus eventuais agregados, outras benfeitorias de uso exclusivo do proprietário: o
pasto, um rancho e, às vezes, uma venda para uso de tropas
e viajantes. Os pousos ofereciam aos viajantes acomodações
extremamente simples: um teto de sapé sustentado por madeiras, com o espaço interno inteiramente aberto.
Mas, as rotas que haviam levado os paulistas a descobrir as Minas Gerais, minas de Goiás e Cuiabá e que representavam as principais vias de abastecimento dos pousos
e arraiais que aí surgiram, viram-se ameaçadas por caminhos
mais curtos, que ligavam os núcleos mineradores diretamente
ao porto do Rio de Janeiro (Caminho Novo, construído entre
1701 e 1707). Com isso, e além da rápida exaustão das minas
goianas, entre 1740 e 1790, a região passou por um período
de relativa estagnação em relação à produção e à população. A
soma desses fatores causou o atraso na ocupação efetiva das
terras ao longo do antigo Caminho do Anhangüera. Talvez
esse seja, também, um dos fatores para o atraso da elevação
do arraial de Casa Branca a freguesia, o que ocorreu somente
em 1814. A partir de 1760, porém, abrem-se os caminhos de
Ouro Fino a Cabo Verde, sendo esse, talvez, o mais importante caminho para o povoamento do Nordeste de São Paulo.
Por volta de 1765, foi descoberto ouro nas cabeceiras
do Rio Pardo, o que resultou na primeira instalação de freguesia em território paulista: a Freguesia de Nossa Senhora da
Conceição das Cabeceiras do Rio Pardo (atual Caconde), desmembrada de Mogi Guaçu. Isso provocou um crescimento
populacional junto à divisa com a Capitania de Minas Gerais:
foi essa área ao Norte do Rio Pardo, durante o século XVIII, a
responsável pelo crescimento da população do Nordeste paulista, facilitado pelo caminho de Ouro Fino a Cabo Verde.
Apesar das trilhas existentes desde o século XVII,
23
somente após a descoberta do ouro em Vila Boa de Goiás,
a antiga ligação dos paulistas com as terras dos índios goiases ganhou foros de “estrada” ou “caminho”. O Caminho de
Goiás saía de São Paulo em direção a Jundiaí, dirigindo-se a
Mogi Mirim, Mogi Guaçu e Casa Branca. Depois desse percurso, feito no sentido Sul-Norte, o caminho tomava a direção Noroeste, atingindo Cajuru, Batatais, Franca e Ituverava.
Seguindo próximo à nascente dos rios, passando o rio Tietê,
seguia-se pelos rios Atibaia, Jaguari, Jaguari Mirim, Pardo e
Grande, transpostos por meio de barca.
11- Casa Branca nos roteiros do sertão (1772)
Fonte: FURLANI, p.120.
24
Alguns relatos, citados por Pedro Taques, confirmam
que a região já era percorrida pelos sertanistas vicentinos desde meados do século XVII, colocando-a na trama dos trilhos
e caminhos abertos nos primeiros séculos de exploração do
planalto bandeirante. Seu traçado deveria ser bem conhecido
no ano de 1722, quando a bandeira de Bartolomeu Bueno da
Silva, o Anhangüera, levou apenas vinte dias para ir de São
Paulo ao Rio Grande.
Desde o ano de 1655, o território cortado pela trilha
do Anhangüera pertenceu ao Município de Jundiaí. Em 1769,
a porção Norte passou para a jurisdição da recém-criada vila
de Mogi Mirim, que sofreu sua primeira fragmentação ao ser
criada a vila de Franca, em 1823. O segundo desmembramento ocorreu apenas em 1841, quando da instalação da vila de
Casa Branca. Desta, nasceu São Simão, em 1865, da qual desmembrou-se Ribeirão Preto, em 1871.
O Estado de São Paulo teve origem nas Capitanias de
São Vicente e Santo Amaro, com a configuração atual influenciada pelo Caminho de Goiás, já que a interiorização ocorreu
a partir de São Paulo de Piratininga (1554), o ponto de partida
privilegiado para o reconhecimento dos sertões.
12-Desmembramento Territorial do Nordeste
Paulista
Franca 1821 - Batatais 1839 - Cajuru 1865
Casa Branca 1841 - São Simão 1865
Nordeste Paulista: freguesias e municípios criados até 1889
Municípios
Data da
freguesia
Data do
município
Município
de origem
Franca
1804
1821
Mojimirim
Batatais
1815
1839
Franca
São Simão
1842
1865
Casa Branca
Cajuru
1846
1865
Batatais
Ituverava
1847
1885
Franca
Igarapava
1851
1873
Franca
Ipuã
1859
1948
S. Joaquim da Barra
Sto. Antônio da Alegria
1866
1885
Cajuru
Ribeirão Preto
1870
1871
São Simão
Morro Agudo
1872
1934
Orlândia
Rifaina
1873
1948
Pedregulho
Nuporanga
1873
1885
Batatais / Orlândia
Patrocínio Paulista
1874
1885
Franca
Altinópolis
1875
1918
Batatais
Sertãozinho
1885
1896
Ribeirão Preto
Serra Azul
1885
1927
São Simão
Jeriquara
1885
1964
Franca
Fonte: IGC, 1995.
Franca - Igarapava 1873, Patrocínio Paulista 1885
- Ituverava 1885
Batatais - Cajuru - Sto. Antônio da Alegria 1885
- Nuporanga 1865
São Simão - Ribeirão Preto 1871
8-
Pedro Taques apud BACELLAR &
BRIOSCHI, p.46.
25
Em 1709, a Coroa comprou as Capitanias de Santos
e São Vicente, criando a Capitania Real de São Paulo e Minas
do Ouro, que foi desmembrada em duas em 1720, São Paulo
e Minas Gerais, e, em 1748, criaram-se as Capitanias de Goiás
e Mato Grosso. Nesse mesmo ano, São Paulo passou a ser
subordinada ao Rio de Janeiro, mas, com o acirramento das
disputas entre castelhanos e portugueses pelas fronteiras, em
1750 é assinado o Tratado de Madri e no ano de 1765 a Capitania de São Paulo é restituída, pela necessidade de fortalecer
os territórios ocupados pelos portugueses, sendo governada
por Morgado de Mateus (1765 a 1775).
A restauração do governo de São Paulo, sob a administração de Morgado de Mateus, marcou o início do crescimento econômico paulista a partir da segunda metade do
século XVIII. A partir de então, São Paulo superou o período
bandeirante e voltou-se para o desenvolvimento da agricultura. Mas o povoamento mais intensivo só ocorreu a partir
da última década do século XVIII, com a entrada maciça de
mineiros no território paulista. Como já citado, foi a atividade
mineradora, entre final do XVII e meados do XVIII, o fator
determinante de uma ocupação mais densa e da diversificação
das atividades no interior brasileiro.
Aliás, uma característica que chama a atenção para a
área estudada, segundo Bacellar e Brioschi, é que o povoamento, após a crise do ouro nas Minas Gerais, a partir de
1748, deu-se predominantemente por mineiros, durante todo
o século XIX. Segundo esses autores, a influência mineira não
se esgotou no processo migratório dos anos 1800, mas persistiu na economia de subsistência e criação de gado, na preservação de vínculos com o Sul de Minas e na conservação
de traços culturais, como a arquitetura e o modo de falar. Foi
com essas características mineiras que a população local recebeu paulistas, fluminenses do Vale do Paraíba e imigrantes de
outras nações, povos que trouxeram novos produtos para serem cultivados, uma nova organização do espaço e novas relações de trabalho. Morgado de Mateus tenta seguir as diretrizes
deixadas pelo Marquês de Pombal, que buscou um desenvolvimento fundamentado no aperfeiçoamento da agricultura,
sendo que várias obras de divulgação agrícola, editadas em
Lisboa, foram enviadas ao Brasil, com o intuito de esclarecer
os produtores e modernizar as práticas agrícolas coloniais.
Franca 1821 - Igarapava 1873
- Patrocínio Paulista 1885
- Ituverava 1885
Batatais 1839 - Cajuru 1865 - Sto Ant. Alegria 1885
- Nuporanga 1865 / Orlândia 1909
- Jardinópolis 1898
São Simão - Ribeirão Preto 1871 - Sertãozinho 1896
- Cravinhos 1897
Fonte: BACELLAR & BRIOSCHI, 1999, p.84.
9-
BACELLAR & BRIOSCHI, p.17.
26
Atividade efêmera, a mineração contribuiu para a ocupação e povoamento das terras do Planalto de Piratininga.
Uma vez esgotados os aluviões, as pastagens no entorno eram
ocupadas com gado e roças, permitindo que boa parte dos
mineradores se transformassem em criadores e lavradores.
Assim, no final do século XVIII e início do XIX, a principal
atividade econômica do Nordeste Paulista continuava sendo
o comércio com os viajantes, o que incentivou a criação de
novos pousos. Mas, os caminhos e trilhas alternativos, abertos
a partir do Caminho de Goiás, mantinham alertas as autoridades locais, tendo em vista possíveis evasões de tributos e o
controle da entrada e estabelecimento de mineiros no território paulista. De Ouro Fino ao desemboque do Rio Pardo,
toda a área a Leste do Caminho de Goiás esteve sob tensão
durante os séculos XVIII e XIX, o que pode ser considerado
como um dos principais motivos para o interesse da Coroa
portuguesa em estabelecer em Casa Branca a freguesia, em
1814.
Dentro desse espaço social, onde cada qual produzia
para sua própria subsistência, a diferenciação das atividades e
ocupações era bastante restrita. Todos os ofícios ocorriam em
paralelo com o cultivo da terra. Somente com a criação das
vilas, as ocupações estritamente urbanas poderão se desenvolver. A partir de 1830, surgem alguns indivíduos que vivem
apenas de sua ocupação, sem vínculos com a atividade agrícola10. Pouco a pouco, a separação entre os ofícios e o comércio
e as lidas agrárias indica a constituição de um novo espaço social, que se destaca daqueles definidos pelos sítios e fazendas.
1.4 O Povoamento Mineiro
Em 1856, o Nordeste Paulista apresentava uma rede
fundiária de implantação relativamente recente, pois a abertura do Caminho de Goiás, ainda em princípios do XVIII,
não implicara no desbravamento dos vastos territórios às suas
margens. Somente no início do século XIX, em momento
de instauração de uma importante migração mineira, é que
se principiou a desbravar o chamado Sertão do Caminho de
Goiás. Grandes glebas foram abertas e ocupadas com a cria-
10-
BACELLAR & BRIOSCHI, p.74.
27
ção de gado, a produção de queijos e o plantio de milho e
feijão. As primeiras grandes glebas foram apossadas a partir
de 1800, obedecendo ao sentido principal do fluxo migratório
sul-mineiro. Ou seja, foram sendo estabelecidas na seqüência
leste-oeste, primeiro ocupando a margem direita do Rio Pardo e, depois, a margem esquerda.
Foi após o período áureo da extração de metais preciosos em Minas que o povoamento do sertão paulista ganhou corpo. O período de apogeu da extração do ouro foi
entre 1733 e 1748. Após esse período, começa a declinar a
produção nas primeiras jazidas, em Minas Gerais, e, no último
quartel do século XVIII, a decadência generaliza-se: no início
do século XIX, a produção aurífera já não tinha maior peso
no conjunto da economia brasileira. Com isso, o retrocesso
da região das minas foi nítido: as cidades transformaram-se
em centros estagnados, provocando a migração. Ouro Preto,
por exemplo, tinha 20 mil habitantes em 1740 e apenas 7 mil
em 1804. Os mineiros passaram a procurar as terras férteis do
Leste de São Paulo e as atividades voltam-se, novamente, para
a agricultura.
Os ‘avanços’ dos mineiros sobre o território paulista,
durante o século XVIII, prenunciaram o movimento migratório que imprimiu a sua marca na área das futuras freguesias
de Franca, Batatais e Casa Branca, no início do século XIX,
determinando um aumento de 50% na população.
Entre o final do século XVIII, com os seus pousos
e sua economia de abastecimento interno, e o último quarto
do XIX, com o café, o antigo sertão do Caminho de Goiás
viu sua paisagem totalmente modificada pela entrada maciça
dos mineiros em seu território (1790-1875). Nesse período,
em que os ‘entrantes’ mineiros povoaram o Nordeste Paulista,
houve uma ruralização da sociedade mineira, fato que também pode ser entendido como uma expansão das atividades
desenvolvidas no Sul de Minas para as Capitanias de São Paulo e Rio de Janeiro, e não simplesmente uma forma de evasão
à decadência da atividade mineradora. Um destaque é a indústria de laticínios no Nordeste paulista, herança mineira, como
os “Laticínios Argênzio”, fábrica localizada em Casa Branca e
fundada em 1897.
O incremento da agricultura e a expansão da pecuária
no Sul de Minas têm especial importância para o conhecimen28
to do Nordeste paulista. Foi, em grande parte, da Comarca do
Rio das Mortes (São João Del Rei) que saíram os entrantes
que povoaram as vertentes ocidentais da Mantiqueira e o sertão do Rio Pardo.
Freguesia do rio Pardo: população segundo condição social - 1801 - 1835
Anos
Livres
Escravos
N
%
1801
491
1807
1267
1814*
2046
1824*
3974
1835**
7224
68
Total
N
%
86
80
79
338
72
68
3443
32
Fonte: AESP: Maços de População
N
%
14
571
100
21
1605
100
802
28
2848
100
1853
32
5827
100
10667
100
*Chiachiri Filho, 1986 p.186
**Müller, 1937
BACELLAR & BRIOSCHI
* No início do século XIX, a população do sertão
do Rio Pardo cresceu a uma taxa de 8,9% ao ano.
A divulgação da notícia da existência de terras
desocupadas e boas para cultivo e criação de gado
atraía cada vez mais mineiros. Entre 1801 e 1807,
a população da Freguesia do Rio Pardo quase
triplicou e a maioria dos entrantes era considerada
pobre. A partir de 1820, começaram a chegar na
região famílias com maiores recursos, contando-se
vários proprietários de escravos (BACELLAR &
BRIOSCHI, p. 227). Esses dados são importantes
para entender o contexto regional e inserir Casa
Branca como o arraial mais próximo dessa
Freguesia do Rio Pardo, onde havia sido descoberto
ouro e onde a população estava crescendo sem
controle por parte da Coroa portuguesa.
Cidades mineiras
Cidades ao longo do Caminho de Goiás
Nova descoberta do Rio Pardo
mandado impedir pelo Capitão General de S.Paulo
Descoberta de ouro nas desembocaduras do
Rio Pardo e novos caminhos de ligação entre
Ouro Fino e Cabo Verde contribuíram para o
povoamento do Nordeste Paulista.
13- O Caminho de Goiás: o pouso de Casa Branca
e o seu entorno
Fonte: BACELLAR & BRIOSCHI, p.45.
O Nordeste paulista foi local não apenas de passagem
daqueles que, buscando ocupar as fronteiras, migraram com
o seu rebanho. No processo migratório em direção Oeste,
grande parte dos entrantes aí fixou residência e deixou a sua
descendência. Em fins do XVIII, de 1788 a 1820, o interesse
29
pelo sertão do Rio Pardo ressurgiu e pode ser percebido pelo
número de pedidos de legitimação de posses antigas11, o que
pode significar não só o medo desses antigos proprietários
perderem suas terras para os entrantes mineiros, mas também
a preocupação com o ouro que estava sendo descoberto na
região.
As terras do sertão do Rio Pardo haviam se tornado
atraentes para indivíduos enriquecidos com o comércio ou
para aqueles que ocupavam postos elevados na administração
da Colônia, sendo que as terras, até então pouco ocupadas e
provavelmente de baixo custo, tornavam-se focos de novos
investimentos. Daí resulta a importância tardia do arraial de
Casa Branca e o seu povoamento como centro agrícola e pecuário. Uma grande dúvida coloca-se nesse momento: se já
havia a colonização espontânea, realizada pelos mineiros imigrantes, por que a necessidade da colonização açoriana? Será
que isso não ocorreu muito mais em decorrência de um fator
externo, o superpovoamento12 das ilhas atlânticas, do que pela
necessidade de povoamento desse sertão?
Com essa migração mineira crescente no sertão do
Rio Pardo, a população aumentava progressivamente e, no
ano de 1811, os moradores desse sertão, que se estendia entre
Mogi Guaçu e Franca, enviaram ao Bispo de São Paulo, Dom
Mateus de Abreu Pereira, um pedido para a criação de duas
freguesias nesse trecho. No ano de 1814, a Mesa da Consciência13 aprovou a instalação das duas freguesias solicitadas: Casa
Branca, ao Sul do Rio Pardo, e Batatais, na sua margem direita. Os então fregueses de Franca, Batatais e Casa Branca, eram
munícipes de Mogi Mirim. A criação das três freguesias em
um intervalo de tempo de 10 anos expressa um crescimento
demográfico, mas não da riqueza.
Portanto, além da intenção da Coroa portuguesa, houve o interesse da criação da freguesia de Casa Branca pelos
próprios moradores. Mas, como veremos mais adiante, o local solicitado por alguns moradores e pelo padre Godói não
correspondia àquele onde foram construídas as casinhas para
os açorianos e onde deveria ser erigida a Igreja Matriz. Uma
capela, dedicada a Santana, já existia nas terras de Cocais, mas
não foi considerada.
À medida que avançava a ocupação das terras do Nordeste Paulista, os antigos posseiros iam perdendo suas roças.
11-
BACELLAR & BRIOSCHI, p.63.
12-
A partir de 1746, os açorianos,
pressionados pelos problemas ocasionados pela
superpopulação, agravados ainda por colheitas
insuficientes, viram-se obrigados a emigrar e
solicitaram ao Rei o transporte de uma parte da
população para o Brasil (TREVISAN, p.12). O
mesmo teria ocorrido no início do século XIX.
13-
BACELLAR & BRIOSCHI, p.78.
30
Enquanto o sertão do Rio Pardo era apenas um espaço que se
interpunha entre a cidade de São Paulo e Vila Boa de Goiás,
seus moradores paulistas puderam plantar para o seu sustento
em terras próprias e alheias. Com o crescimento populacional
e a chegada de famílias mineiras possuidoras de escravos e
grandes rebanhos de gado, a pressão sobre a ocupação das
terras foi sentida tanto por antigos proprietários, que reafirmavam o seu direito sobre as áreas já ocupadas, como por
posseiros e agregados destituídos de suas roças.
A presença dos mineiros e a sua preponderância na
população do Nordeste paulista duraram enquanto o gado e
a agricultura do excedente14 dominavam a economia regional. Com a introdução e expansão da cafeicultura, os paulistas
voltam a ocupar a região, desta vez acompanhados por fluminenses, originários do Vale do Paraíba, e pelos imigrantes
europeus, dentre os quais destacam-se os italianos.
A criação de uma freguesia não implicava, necessariamente, na sua elevação a vila em curto espaço de tempo. Para
isso, contribuíam fatores de ordem econômica, demográfica e
política. E é com a chegada dos trilhos da estrada de ferro que
surgem várias cidades, sedes de municípios novos que suplantaram povoados e cidades já existentes.
1.5 Casa Branca: Aspectos Históricos Peculiares
Períodos iniciais do processo de urbanização
A região, onde em 1814 se inseriu a freguesia de Casa
Branca, estendia-se ao longo do Caminho de Goiás. Esta vasta faixa de terra ofereceu, pela ausência de grandes florestas
e pelos campos, um caminho natural para os bandeirantes.
Constituída por terrenos ricos em arenitos e xistos argilosos
e cálcicos15, rochas de pouca resistência que conformaram
um relevo quase plano, essa região adquiriu uma importância
extraordinária como eixo de expansão colonizadora paulista,
pois era a única via possível em direção ao Norte. Dessa forma, Casa Branca foi, no seu início, um pouso no Caminho de
Goiás.
Segundo apontamentos de Saint-Hilaire16, o pouso de
14-
Agricultura do excedente era aquela
na qual a produção visava, principalmente, à
subsistência, mas, o que sobrava era comercializado.
15-
PANTOJA, p.23.
16-
Sain-Hilaire apud PANTOJA, p.25.
31
Casa Branca estava situado em posição intermediária entre Mogi Mirim e Franca, sendo, pois,
inevitável que todas as tropas, vindas de Goiás
para São Paulo ou do Sul para o Norte, escolhessem este pouso para se abastecerem. “Casa
Branca é, portanto, uma cidade que nasceu a expensas de uma estrada, viveu e conheceu grande
desenvolvimento como centro comercial, onde
se abastecia um vasto hinterland que se estendia
até Minas e Goiás”17.
Depois da expedição do Anhangüera,
em 1722, o caminho, pelo menos até o Rio Pardo, já era conhecido e contava com moradores.
Dessa forma, a região da futura freguesia de
Casa Branca já tinha um começo de povoamento nas primeiras décadas do século XVIII e era
conhecida como “Boca do Sertão”. Esta afirmativa é comprovada pelo fato de que Bartolomeu Bueno da Silva, voltando a São Paulo, em
1725, com a notícia da descoberta de ouro em
Goiás, viria a receber de D. João V o direito das
passagens dos rios que dependessem de canoas no caminho de seus descobrimentos. Os rios
considerados foram o Iguatibaia, Jaguari, Pardo,
Grande, Rio das Velhas, Parnaíba, Guacurumbá,
Meia Ponte e dos Pasmados. Em cada rio, os
descobridores requereram sesmarias para poder
instalar os serviços de barcas, as quais deveriam
constar de pouso para viajantes, pasto para os
animais, plantações e criações para fornecer alimentos. A partir de então, sucederam-se vários
outros requerimentos de concessão de sesmarias ao longo do Caminho de Goiás, sendo que
de 1726 a 1736 foram concedidas terras numa
extensão de 690 km de testada, perlongando a
rota do ouro18.
Nessa região, portanto, houve sempre
moradores e sítios, o que não ocorreu do Rio
Pardo para diante, mesmo após a descoberta
dos rios Sapucaí e Grande. Em 1731 já se afirmava, oficialmente, que na região, “até o rio
.
Sesmarias Concedidas no Caminho de Goiás 1726 - 1736
Data
Situação
Sesmeiro
1726
02.07 Rio Jaguari (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
02.07 Rio Iguatibaia (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
02.07 Rio Meia Ponte (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
02.07 Rio Guacurumbá (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
02.07 Rio Parnaíba (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
02.07 Rio dos Pasmados (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
02.07 Rio Pardo (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
02.07 Rio Grande (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
02.07 Rio das Velhas (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
02.07 Rio Mojiguaçu (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
02.07 Rio Sapucaí (passagem)
Bartolomeu Bueno da Silva
1727
22.10 Ribeirão das Araras
Manuel Miranda Freire
13.11 Córrego da Paciência
Manuel Dias Abreu
1728
30.03 Córrego Bocajubas (Olho D'agua)
Manuel Rodrigues Nunes
02.04 Rio Cubatão
Carlos Barbosa de Magalhães
21.04 Rio Sapucaí (passagem)
Antônio Pereira
06.07 Ribeirão Pirapitingui (Mojiguaçu)
José Correia da Fonseca
26.07 Ribeirão das Furnas
Francisco Rodrigues Prado
31.07 Ribeirão das Carrancas
Xavier Teles da Silva
31.07 Ribeirão Araquara
Urbano Couto Menezes
02.08 Ribeirão Sapucaí Mirim
José Góis Morais
02.08 Ribeirão Pirapitingui
Kartinho Nunes de Oliveira
02.08 Ribeirão Pirapitingui
Manuel Gomes da Costa
04.08 Lugar Batatais
Pedro Rocha Pimentel
06.08 Ribeirão Itupeva
Inácio Vieira Barros Fajardo
06.08 Paragem Araraquara
João Pimentel Távora
07.08 Lugar Campinhos (além Rio Atibaia)
Antônio da Cunha Abreu
08.08 Ribeirão Jatibocas (além Rio Sapucaí)
Manuel Dias Meneses
09.08 Ribeirão Itaqui
Jorge Silva Nobre
09.08 Ribeirão dos Barreiros (aquém Rio Grande) José Munis Paiva
09.08 Lugar entre o rio Cubatão e o Araraquara
Rafael Francisco
09.09 Ribeirão Água Quente (Serra Negra)
Manuel de Castro
18.09 Ribeirão Jatibocas
Matias do Couto
27.09 Paragem entre o rio Sapucaí e o Grande
José Gonçalves de Aguiar
28.09 Lugar além do rio César
Manuel Gonçalves de Aguiar
1732
15.11 Lugar Campinhos (Aquém do rio Moji)
Antônio da Cunha Abreu
15.11 Lugar Campinhos (Aquém do rio Moji)
João Bueno da Silva
15.11 Lugar Campinhos (Aquém do rio Moji)
Manuel das Neves Pires
1733
23.02 Paragem rio Água Fria
Simão Bueno Xavier
26.04 Paragem Ponte Alta
Francisco Jorge de Chaves
26.04 Córrego da Paciência
Manuel Dias Abreu
26.04 Córrego Seco
Estevam da Cunha e Abreu
28.05 Paragem além do rio Jaguari
João Pedroso Xavier
23.07 Paragem Ribeirão do Cercado
Inácio Vieira Barros Fajardo
23.07 Moji do Campo
João dos Reis Araújo
15.10 Ribeirão das Pedras
Januário de Godói Moreira
30.10 Ribeirão Palmital (aquém do rio Pardo)
Pedro Francisco Sarmento
12.11 Paragem Bocaina
Margarida Silva
18.11 Paragem das Quadrilheiras
Antônio de Araújo Lanhoso
02.12 Paragem Barra de Itupeva
Jerônimo Dias Barreto
02.12 Lugar Cachoeira Grande do rio Moji
João Antônio
03.12 Lugar Cachoeira Grande do rio Moji
Bernardo Bicudo de Aguiar
03.12 Paragem Olho D'agua
Manuel Rocha Carvalho
18.12 Paragem rio Moji
Maria Vaz (Antônio Furquim)
18.12 Ribeirão da Paragem Cocais
Simplício Pedroso Xavier
1734
23.01 Ribeira do Rio Pardo
Domingos Jorge da Silva
02.11 Riberião Itaqui
Domingos Vierira Cardoso
1735
22.02 Paragem Olho D'agua
Inácio Rodrigues
22.05 Rio Moji
Manuel de Oliveira Souza
22.05 Rio Moji
Manuel Alves Tenório
1736
06.03 Paragem além rio Jaguari
Amaro Nunes
Área Concedida
Testada: 104 léguas e 1800 braças=690 km
Sertão: 105 léguas=693 km
Fonte: TREVISAN, 1979, p.23.
32
Pardo, inclusive, houve moradores e sítios”19, e que, em 1733,
uns homens chamados mascates andavam pelo caminho com
suas cargas de negócios, vendendo aos roceiros e chegando
até ao Rio Grande. Durante todo o século XVIII e XIX, o
povoamento da rota do ouro intensificou-se e Casa Branca
tornou-se o entroncamento dos caminhos das Minas Gerais,
de Mato Grosso e de Goiás.
No entanto, foi somente a partir da presença religiosa
na povoação que a comunidade começou a se organizar para
solicitar a oficialização do arraial. O padre Francisco de Godói Coelho, ordenado em 1787, foi o primeiro vigário de Casa
Branca. Em 1807, requereu e obteve carta de sesmaria na região, propriedade que tinha início na lagoa seca de “Olhos
D’água”, indo até ao córrego do Piçarrão. Nessa propriedade
dos Cocais, distante uma légua do pouso de Casa Branca, o
padre Godói tentou lançar as bases de uma povoação, erigindo uma capela sob a invocação de Santana e um cemitério na
divisa de Cocais e Piçarrão.
Animados pelo padre Godói, os moradores do sertão
do Caminho de Goiás requereram ao bispo de São Paulo a
criação de uma freguesia. Sendo o padre Godói o orientador
do movimento, parecia-lhe certo que a representação pedia a
ereção da freguesia no local da suposta única capela existente,
isto é, em Cocais e não no pouso de Casa Branca, onde, na
ocasião (1811), segundo a hipótese defendida por Amélia Trevisan, não havia motivo especial aparente para tal ereção.
Respondendo ao pedido, o bispo de São Paulo, D. Mateus de Abreu Pereira, após ouvir o parecer favorável do pároco de Mogi Guaçu, concordou com a proposta.20
Portanto, afirma Trevisan21, a escolha da localidade de
Casa Branca deveu-se ao bispo de São Paulo, que, na ocasião,
como membro interino do Governo da Capitania, representava o pensamento da Coroa: D. João pretendia incentivar a
agricultura baseada em pequenas propriedades, com a criação
de núcleos de povoamento. Assim, o Alvará Régio22 da criação da Freguesia de Nossa Senhora das Dores de Casa Branca
foi expedido no Rio de Janeiro, em 25 de outubro de 1814, e
assinada, em março de 1814, pelo príncipe regente de Portugal, Dom João VI.
Em vista da necessidade de uma parcela da população e do esforço do padre Godói, a freguesia seria criada em
Repartição dos Moradores do Caminho de Goiás,
desde o Rio Jaguari Mirim até ao pouso de Cubatão
1765
Sítio
Moradores
Fogos (livres)
Chefes das famílias
Jaguari
1
5
Gonçalo da Costa Bezerra
Iberaba
2
5
Manuel José Castro
Francisco Muniz
Olho D'água
2
10
Antônio Siqueira Dias
Carlos de Siqueira Antunes
Piçarrão
3
19
João Muniz de Barros
Ângelo Dias
Antônio Cardoso
Ribeirão
2
7
Casa Branca
2
16
Bartolomeu Fernandes Faria
Francisco Xavier Machado
Alexandre de Souza
Manuel Ferreira
Capão
1
5
José de Siqueira Gil
Tambaú
Paciência
1
9
Caetano de Souza Machado
2
10
Inácio Bueno
Bartolomeu Dias
Cercado
2
6
Luiz Pedroso
Rio Pardo
1
5
Lourenço Bezerra
Cubatão
4
27
Francisco Barbosa
Maria Pedrosa
Pedro Alvares
Maria da Silva
Bernardo Machado
23
124
Fonte: TREVISAN, p.27.
17-
PANTOJA, p.25.
18-
TREVISAN, p.20
19-
TREVISAN, p.22.
20-
Parecer do Bispo D. Mateus de Abreu
Pereira:
“1- A nova freguesia seria criada sob a invocação de Nossa
Senhora das Dores, no lugar da Casa Branca, com limites
desde o Rio Jaguari (Mirim) até ao pouso do Cubatão, em
distância de 16 léguas.
2- A igreja matriz deveria ser edificada no lugar da Casa
Branca, para ficar no centro do território da Freguesia” (o
antigo pouso de Casa Branca achava-se situado próximo
ao Rio Espraiado) (D. Mateus de Abreu Pereira apud
TREVISAN, p.39).
21-
TREVISAN, p.39.
33
Cocais, onde havia a capela de Santana. Entretanto, motivos
políticos determinaram sua ereção no pouso de Casa Branca,
o que não teria correspondido aos motivos religiosos dos moradores do sertão, segundo Trevisan. Explicar-se-ia, assim, a
falta de interesse dos paroquianos em erigir a matriz de Casa
Branca. A única capela existente na nova freguesia, construída
como as casas, de pau-a-pique e coberta com palha de indaiá,
sem torre e com um único pórtico, comportava apenas cerca
de 50 pessoas23.
Ainda segundo Trevisan24, coincidiu essa criação com
a necessidade de o governador ter de erigir uma povoação
para arranchar os casais de ilhéus que D. João VI pretendia remeter para a Capitania de São Paulo. Em dezembro de 1814,
o governador da Capitania de São Paulo recebeu mais de vinte
casais de açorianos para o aumento da população e o desenvolvimento da lavoura. À falta de terras devolutas no litoral,
14- Configuração atual do Município de Casa
Branca: limites com os municípios vizinhos.
Localização aproximada do pouso de Casa Branca e
da povoação dos Cocais.
Fonte: IGC
22-
“Eu, o Príncipe Regente de Portugal, e
do Mestrado, cavallaria, e Ordem de Nosso Senhor
JESUS Christo. Faço saber, que sendo-me prezente com
reprezentação do Reverendo Bispo de São Paulo do Meo
Conselho, o requerimento dos moradores do Certão da
estrada de Goyas no dito Bispado, em que me expunhão a
grande falta de Pasto, e Socorros Espirituaes, que sofrião
pela longetude da Sua Freguezia, pedindo-me, que afim
de remediar tão grandes males lhe fizesse a Graça de
erigir huma nova Freguezia naquele Certão: o que visto, e
repportas dos Procuradores Geral das Ordens, e da minha
Real Coroa, é Fazenda, que tudo subio a minha Real
Prezença em consulta da Meza da Consiencia, e Ordens.
Hey por be, que no Certão da estrada de Goyas do Bispado
de São Paulo d’aquem do Rio Pardo no lugar denominado
Caza Branca, seja erecta huma nova Freguezia com a
invocação de Nossa Senhora das Dores, a qual os moradores
do dito Certão edificarão à sua custa no prefixo termo de
quatro annos, e ficará lemitada esta nova Freguezia desde
o Rio Jaguari athe o pouzo do Cubatão. Pelo que mando
a todas as pessoas, a que o Cumprimento deste Alvará
competir o cumprão, e guardem, como nelle se contem, sendo
passado pela Chancellaria da Ordem, e registrado nos Livros
da Câmera do Bispado de São Paulo, e nos das Freguezias,
que por este sou servido mandar erigir, e nada que ella
houver de ser desmembrada, e valera como Carta, posto que
seo effeito haja de durar mais de hum anno, sem embargo da
ordenação em contrario”.
(Alvará Régio de D. João VI sobre a criação da
Freguesia de Nossa Senhora das Dores de Casa
Branca, em 25 de outubro de 1814. Transcrição da
carta segundo Adolfo Legnaro Filho, diretor do
Museu Histórico de Casa Branca)
23-
TREVISAN, p.67.
24-
TREVISAN, p.40.
34
deliberou o governo estabelecê-las no termo da vila de Mogi
Mirim, a fim de povoarem a estrada que ia a Goiás e Mato
Grosso, principal via de comércio de São Paulo com aquelas
capitanias.
Mas, segundo Pantoja25, foi em conseqüência da diminuição da população paulista, convocada para as guerras
do Sul, que o Governador Francisco de Assis Mascarenhas,
Marquês de Palma, tratou de promover a colonização estrangeira, por isso a tentativa de formar um núcleo de colonização
açoriana nessas terras da freguesia de Casa Branca.
Como havia cinco famílias açorianas na sesmaria do
Rio do Peixe26, chegadas em 1813, e sendo o Caminho de
Goiás a via de maior comércio para o interior, projetou o governo instalar os ilhéus nessa região. Escolhida a localidade
para formar a primeira povoação de colonos, criou-se ali uma
freguesia nova, a de Casa Branca. Iniciada com grande atividade a construção das casas, tratou-se de encontrar terras
devolutas nas proximidades da nova povoação.
Entretanto, não havia terras devolutas ao longo do caminho, pois desde 1726 tinham sido concedidas por sesmaria.
O local mais próximo encontrado para instalar a povoação
foi nas terras da sesmaria que o coronel José Vaz de Carvalho
recebera em 1791 para criação de animais e que, na ocasião,
estava abandonada. Escolheu-se, nesse local, uma faixa de terra, junto ao Rio Espraiado e perto do pouso de Casa Branca,
para acomodar os casais de ilhéus.
Segundo Amélia Trevisan, chegam à Capitania de São
Paulo, em dezembro de 1814, mais vinte casais27, mas somente 19 famílias chegariam a Casa Branca em maio de 181528,
com cinco a sete filhos cada, somando cerca de cento e vinte
pessoas, que vieram das ilhas à custa do Estado para se estabelecerem no sertão do Rio Pardo.
Segundo Trevisan, especialmente construída para os
colonos açorianos, junto ao pouso de Casa Branca, a nova
povoação teria sido planejada, seguindo um traçado regular29.
Assim, projetou-se a planta do povoado, prevendo o seu aumento com abertura de novas ruas, todas dentro do alinhamento.
Segundo D’Alincourt30, em 1818, “o lugar de Nossa
Senhora das Dores de Casa Branca consta de um largo retangular, ornado de pequenas casas cobertas de palha e com uma
25-
PANTOJA, p.28.
26-
A sesmaria do Rio do Peixe localizavase no Termo da Vila de Mogi das Cruzes e os
chefes das famílias açorianas eram: Manoel Raposo
Velloso, Antônio Raposo, José da Costa, José da
Ponte e José de Oliveira.
27-
A palavra ‘casal’, antigamente, designava
a família.
28-
Segundo Trevisan (p.61) os chefes das
famílias açorianas eram:
1- Antônio de Souza Pacheco
2- Manuel Batista
3- João Lourenço de Borba
4- Manoel Correia
5- Manoel Antônio
6- José Valério do Sacramento
7- Domingos José de Melo
8- Antônio José do Nascimento
9- Manoel Espínola de Bitancourt
10- Francisco de Souza Pimentel
11- José da Rosa Machado
12- Francisco Antônio
13- Manoel Vieira
14- Francisco Cardodo
15- Fructuoso de Quadros
16- João José da Cunha
17- Manoel do Conde
18- Francisco de Espínola
19- José de Ávila Neto
20- Silvestre Correa Medina (que ficara em
Santos)
Segundo Ganymedes José (p.30), teriam vindo
para Casa Branca 124 açorianos, de 23 famílias
diferentes:
1- Manuel Antônio Machado, sua mulher
Domingas da Conceição e 2 filhos.
2- Manuel de Conde Pais, sua mulher Juana
Francisca da Conceição e 6 filhos.
3- Manuel de Espíndola Bittencourt, sua
mulher Maria Antônia de Jesus e 6 filhos.
4- Manuel Correia de Melo, sua mulher
Maria Josefa e 5 filhos.
5- Antônio Raposo, sua mulher Ana Maria e
seus 4 filhos.
6- Manuel Joaquim de Matos, sua mulher
Úrsula Brandina da Conceição e 7 filhos.
7- Narciso Vieira Gonçalves, sua mulher
Vicência Maria da Conceição e 5 filhos.
8- Manuel Valério do Sacramento, sua
mulher Teresa Cândida de Jesus e 1 filho.
9- João Vieira da Costa, sua mulher Maria
dos Anjos de Bittencourt e 8 filhos.
10- José Vieira da Costa, sua mulher Ana
Maria das Dores e 2 filhos.
11- José de Souza, solteiro.
12- João de Matos Oliveira, sua mulher Rosa
Vitorina de Conceição e 9 filhos.
13- José da Rosa Machado, sua mulher Maria
Delfina do Rosário e 4 filhos.
14- Máximo José de Souza, sua mulher Ana
Joaquina de Jesus e 1 filho.
15- José de Pontes dos Reis.
16- Francisco de Espíndola, sua mulher
35
igreja no fim do mesmo largo”. Saint-Hilaire31, que passou por
Casa Branca no ano seguinte (1819), registrou que “a aldeia de
Casa Branca compõe-se de casinholas esparsas e de uma rua
reta, bastante larga, mas muito curta; numa das extremidades
dessa rua está edificada uma pequena igreja, a igual distância
das duas filas laterais de casas”.
Assim, conclui Amélia Trevisan, que a primeira rua
de Casa Branca, partindo da capela, estendia-se até ao pouso
de Casa Branca, situado à beira da estrada dos goiases32; nessa
rua, que Trevisan chama como rua dos Ilhéus, segundo ela,
surgiram as primeiras vendas, tanto que ela ficou conhecida
mais tarde como Rua do Comércio, depois Rua Mestre Araújo
e atual Rua Waldemar Panico33. Os primeiros comerciantes
dessa rua teriam sido quatro dos ilhéus, os quais, aproveitando
a proximidade do pouso, instalaram pequenas vendas em suas
casinhas, fornecendo gêneros aos tropeiros da estrada.34
Portanto, o povoado era formado de uma rua que, embora larga, era curta, dando a impressão de uma praça; margeando-a, dois correres de casas ligadas, sem jardins e com pequenos quintais. E essa primeira rua de Casa Branca, partindo
da capela, estendia-se até ao pouso da Casa Branca, situado à
beira do Caminho de Goiás. As casas eram em número de 24,
construídas para as famílias dos insulares.
Amélia Trevisan questiona tal economia de terreno no
sertão. A verdade é que não havia terras devolutas ao longo do
Caminho de Goiás e, além disso, o plano governamental era o
de aumentar com novas famílias o núcleo urbano, reservando
espaço para novas ruas. Deve-se ressaltar que a tipologia de
casas contíguas era uma constante no ordenamento português.
Era o alinhamento das casas que delimitava o espaço da rua, o
qual devia constituir um cenário mais ou menos homogêneo,
segundo as tradições portuguesas, sendo que as construções
deviam se fazer sobre o alinhamento fronteiro dos lotes e nos
limites laterais. Além disso, havia a necessidade de se proteger
as paredes de taipa, vulneráveis às intempéries.
Mas, a experiência com o núcleo colonial de açorianos de Casa Branca teve início antes da criação da Freguesia
Aldina Rosa e 8 filhos.
17- Antônio José da Rosa, sua mulher Júlia
Marfisa do Rosário e 11 filhos.
18- Manuel Veloso de Souza, sua mulher Ana
Rosa e 4 filhos.
19- Manuel Vieira Gonçalves e seus 2 filhos.
20- Francisco de Souza Pimental.
21- Manuel Batista de Mendonça.
22- Francisco Antônio de Espíndola.
23- João Lourenço da Borba.
“a povoação foi edificada com regularidade e com
a mesma foram marcadas as ruas que deviam abrir para o
futuro, para que os vindouros não tenham de emendar erros
da polícia passada, com prejuízo até dos possuidores que
estiverem fora dos alinhamentos e são para seguir a planta
a princípio determinada sem nenhuma alteração.” (DAE
– Ofício do Intendente Geral da Polícia, Paulo
Fernandes Viana ao sargento-mor de Casa Branca,
José Garcia Leal. Rio de Janeiro, 24 de agosto de
1818. M.I. Caixa 33, ordem 265.)
29-
30-
D’Alincourt apud TREVISAN, p.65.
31-
Saint-Hilaire apud TREVISAN, p.67.
32-
RIO DE JANEIRO. Arquivo do IHGB
– Dicionário Topográfico da Comarca de Casa
Branca por Lafayete de Toledo. 1899. M. Lata 6,
Doc. 9, Vol. IV.
33-
JOSÉ, p.29.
34-
DAE – Ofício do sargento-mor José
Garcia Leal ao Conde de Palma. Casa Branca, 8 de
junho de 1819. M.I. Caixa 87, ordem 333.
de Nossa Senhora das Dores, isto é, em 1813, com os cinco
casais vindos da ilha de São Miguel, a maior dos Açores. Os
outros casais, chegados à nova povoação em 1815, vieram das
ilhas Graciosa e Terceira.
36
Os açorianos, que deixaram para sempre suas ilhas e
que vieram tão esperançosos, embalados por tantas promessas, em busca de melhores condições de vida, eram os maiores
interessados no sucesso da empresa. Para eles, foi criada a
povoação de Casa Branca, onde receberam lotes urbanos e
terras para cultivo na sesmaria do Ribeirão Claro. Nesses lotes
urbanos, cada casal recebeu uma casa e ainda benefícios como
uma junta de bois, uma vaca, sementes, duas enxadas, dois
machados, um arado e mesadas para seu sustento por dois
anos, enquanto não pudessem colher suas lavouras. Por que,
então, o parcial malogro do empreendimento, já que dos 19
casais ficaram na freguesia de Casa Branca apenas 6 ou 7?
Os poucos estudos feitos sobre os ilhéus de Casa
Branca repetem-se e detêm-se sobre as afirmações de SaintHilaire e Luís D’Alincourt35: “(...) assustados à vista das enormes árvores que deviam derrubar antes de preparar e semear
as terras, fugiram quase todos (...)” e “(...) vieram vinte e quatro casais, dos quais existem unicamente 6 (...) por causa do
esquecimento que houve de se lhes fornecer tudo quanto o
Estado lhes tinha prometido”.
Segundo Trevisan, realmente, a sesmaria cedida aos
ilhéus localizava-se num trecho de matas virgens, na cabeceira
do Rio Tambaú, com grandes árvores em meio ao cerrado. E
foi mesmo por causa do descaso do governo da Capitania de
São Paulo que o empreendimento não obteve o resultado que
o príncipe regente esperava. A principal queixa era referente à
impossibilidade do uso da terra.
Para os açorianos, a posse da terra era fundamental.
Mas o ano de 1815 chegava ao fim, sem que lhes tivessem
demarcado as terras da sua sesmaria.
Daniel Pedro Muller, tenente-coronel do Real corpo
de engenheiros, chegou a Casa Branca em janeiro de 1816
para inspecionar o estado em que se achava o núcleo de povoamento. Após a inspeção, determinou que se assinalassem
os terrenos que os ilhéus deveriam cultivar, fazendo medir a
sesmaria e distribuir as terras aos casais na devida proporção.
O Conde de Palma reconhece que sem os ilhéus não poderia haver um estabelecimento permanente, como se desejava,
para aumento da população.
A partir das determinações do tenente-coronel, pretendia-se resolver a situação angustiosa dos casais e reter na
35-
Saint-Hilaire e D’Alincourt apud TREVISAN, p.74.
37
freguesia os açorianos, para que não malograsse o empreendimento, pois a partida dos novos habitantes mostraria o
descaso com que o governo da Capitania tratara assunto tão
relevante. O Conde de Palma, segundo observação de Amélia
Trevisan, não soube valer-se do núcleo criado por Dom João,
que ofereceu colonos práticos na agricultura, financiou suas
mesadas, casas, sementes e arados, tudo pago pela Fazenda
Real. Ao Governo da Capitania só competia oferecer terras;
mas o Conde de Palma, ainda segundo descrição de Trevisan,
para eximir-se de sua incompetência, não perdia a oportunidade de desmerecer os ilhéus, dizendo que eram preguiçosos
e vadios.
As terras concedidas não foram consideradas boas
para os ilhéus e não mais acreditando nas promessas feitas,
declararam que, apesar das novas providências sobre as terras
e novas casas, só se contentariam indo povoar as terras da Fazenda Santa Cruz ou Cantagalo. Mas, o núcleo de Casa Branca
não ficaria deserto, uma vez que, após novas negociações, 7
casais resolveram ficar.
A nova sesmaria cedida, contígua à povoação, permitiu aos ilhéus, enquanto não se construíam as novas casas e
enquanto não se demarcavam as terras, morar em suas casas,
inclusive os ilhéus com suas vendas.
As casas seriam edificadas com 40 palmos de frente
por 30 de fundo, “(...) com risco e dimensões dadas por Muller para cada hum dos cazaes de ilheos, sendo cada huma das
ditas cazas situadas no centro dos terrenos”36 das terras para
cultivo, deixando vazias as casas dos lotes urbanos.
Escolhidos os terrenos de acordo com as instruções
do engenheiro Muller, isto é, terra habitável, reunindo as propriedades de água, matos de cultura e campo de pastagens,
ao informar as providências tomadas, o engenheiro pediu ao
Conde de Palma que mandasse pagar aos ilhéus dois mil réis
para completarem seus arados, bem como lhes fornecesse novamente o gado para principiarem suas culturas, pois o primeiro que havia sido dado a eles fora vendido por necessidade
de subsistência. Pediu também que restituísse o comando da
povoação ao capitão Anselmo de Oliveira Leite, cargo que
havia sido passado para José Garcia Leal. Entretanto, mais
um ano passou sem que os ilhéus recebessem os títulos das
terras.
36-
DAE. M.I. Códice 88, fl. 107.
38
Para demonstrar a dificuldade da situação, o Juiz de
Fora de São Paulo37 escreveu o seguinte: “(...) não conhecia,
em território algum, casais mais mal estabelecidos do que esses que estão em São Paulo, principiando por não terem terreno algum próprio, por terem perdido tudo quanto se mandou
e se lhes na Casa Branca”.O que ocorreu é que a sesmaria de
José Vaz de Carvalho, cedida aos ilhéus, já havia sido passada
a Antônio Soares do Prado, daí a dificuldade em se conseguir
o título da posse da terra. Mas o intendente Paulo Fernandes
Viana insistia que o importante era manter os ilhéus naquelas
terras.
O Governo Interino remeteu tudo ao engenheiro
Muller, o qual relatou o ocorrido desde a chegada dos casais;
e que eles haviam recebido tudo o que havia sido prometido,
faltando apenas os títulos das terras, que, no entanto, estavam
sendo cultivadas. Esses títulos ainda não haviam sido entregues porque a sesmaria do coronel José Vaz ainda não fora
confirmada. Sugeriu, então, que o governo remetesse os autos
da sentença à Corte, onde a sesmaria seria logo confirmada,
ficando, assim, tudo legalizado.
De fato, em 1818, o Intendente da Polícia informou
ser injusta a pretensão de Antônio Soares, pois o coronel José
Vaz tinha a posse da sesmaria há muitos anos, a qual havia
sido confirmada por sua Majestade.
O sargento-mor José Garcia Leal, indo à Corte, teve
ocasião de explicar ao Intendente de Polícia a verdadeira situação dos ilhéus. Devido à sua dedicação, José Garcia Leal
foi nomeado diretor da povoação, cabendo-lhe instruções38
específicas para ordenar a povoação.
Esses problemas sobre a posse da terra mostram também que não havia um plano urbanístico desenhado, com a
delimitação das terras, já que somente após a chegada dos
ilhéus, saíram à procura de terras devolutas.
Contudo, a situação não se resolvia, mesmo após Antônio Soares do Prado ter requerido ordem de despejo das
famílias dos ilhéus. Por falecimento desse senhor, a questão
continuou com seus herdeiros; sua viúva Ana Maria da Candelária requereu a Dom João VI contra a invasão dos ilhéus
em sua sesmaria. Em 1821, comprovou-se, finalmente, que as
terras pertenciam à viúva. Mas, o Governador da Capitania
respondeu que os ilhéus deveriam permanecer nas terras.
37-
Juiz de Fora de São Paulo apud
TREVISAN, p.112.
38-
Instruções ao novo diretor da povoação,
José Garcia Leal:
1- “Seu primeiro cuidado deve ser conseguir que os ilhéus se
empreguem na lavoura para a qual foram mandados, à custa
de grandes despesas feitas pela Intendência.
2- A partir dessa data, a Intendência não mais financiará
as despesas da colônia.
3- Deve animar aos povos a levantar a Matriz que não tem
tido aumento e sem a casa de Deus não estão bem as dos
humanos.
4- Determinará que nenhum dos ilhéus poderá sair do
distrito para qualquer fim que não seja o comércio vizinho
sem licença por escrito; aquele que não atender será castigado
cada vez com oito dias na prisão na cadeia da vila de Mogi
Mirim, ou na Corte, se por lá aparecerem e voltarão presos
para a povoação.
5- Deve usar de brandura sempre que possível, deixando os
castigos para último caso.
6- Convidará, por parte do Intendente, ao exemplar vigário
da freguesia, Francisco de Godói Coelho, para ajudar a
animar os trabalhos desses novos colonos.”
(DAE- Ofício do Intendente de Polícia ao
sargento-mor José Garcia Leal. Rio de Janeiro, 24
de agosto de 1819. M.I. Caixa 33, ordem 265, apud
TREVISAN, p.114.)
39
Embora inquietados muitas vezes por intrusos, os
ilhéus conseguiram se firmar em suas terras. A propriedade
ficou conhecida como Fazenda Cachoeira dos Ilhéus e no fim
do século XIX foi dividida judicialmente, fracionando-se em
diversos sítios e fazendas, denominadas: Morro, Bom Jesus,
Prata, Morro dos Ilhéus, Capão Doce, e outras.
Dedicaram-se à agricultura e à pecuária. Foram eles
que salvaram Casa Branca em 1826, quando, por pavor ao
recrutamento para as guerras no Sul, os homens válidos fugiram para Goiás e Minas Gerais. Como os ilhéus e seus filhos
estavam isentos de tal serviço, permaneceram na freguesia.
Passados dez anos do início da povoação oficial pelos
açorianos, no ano de 1825 havia em Casa Branca 2.635 habitantes distribuídos por 467 fogos e divididos em duas companhias de ordenanças: a primeira comandada pelo capitão
Joaquim Gonçalves dos Santos, natural de São João Del Rei e
a segunda, pelo capitão José Magalhães Passos.
O vigário Francisco de Godói Coelho continuava em
Cocais e recebera um coadjutor, o padre Joaquim Floriano.
Embora o alvará de criação da freguesia dispusesse
que os moradores deveriam edificar a Igreja Matriz no prazo de quatro anos, neste ano de 1825 ainda não havia sido
cumprida a exigência. Isto se deveu ao fato de ainda existir
na povoação a pequenina capela que, segundo Trevisan, o Intendente Geral de Polícia mandara construir para os ilhéus
receberem nela os benefícios dos sacramentos.
Com a partida dos ilhéus para sua sesmaria, algumas
das casinhas foram vendidas pelo governo. Outras pessoas
vieram morar na povoação e, devido à pobreza das moradias,
é de crer-se que não eram fazendeiros e sim pessoas humildes, os chamados ‘entrantes’, vindos de Minas Gerais. Entre
os novos moradores, havia alguns pardos devotos de Nossa
Senhora do Rosário. No ano de 1822, houve um grande incêndio no povoado, que destruiu sete casas, inclusive a que
seria do quartel e cadeia.
Em 1897, escreve Lafayete de Toledo39: “(...) a povoação de Casa Branca progredia e já tinha uma capela coberta de
sapé, no local onde hoje está a Igreja do Rosário”.
39-
RIO DE JANEIRO. Arquivo do IHGB
– Dicionário Topográfico da Comarca de Casa
Branca por Lafayete de Toledo. 1899. M. Lata 6,
Doc. 9, Vol. IV, p.143.
40
1.6 O Café e a Estrada de Ferro Mogiana: Nova Fase
de Urbanização
15- Estradas de Ferro no Estado de São Paulo
Ligações entre São Paulo, Moji Mirim, Casa Branca
e Ribeirão Preto
16- Estação Briaréu em
Casa Branca
Durante o século XIX, produtos tradicionais de exportação, como a cana e o algodão, foram perdendo a sua
posição privilegiada em favor de um novo produto que se expandia rapidamente: o café.
Nas últimas décadas do século XVIII, os engenhos
de cana constituíram-se num dos principais mercados consumidores de animais de carga e tração, assim como de gêneros alimentícios, promovendo a expansão dos rebanhos e da
agricultura. Foi essa integração de São Paulo com a economia
exportadora, exibindo a necessidade de viabilização do co-
17- Estação Casa
Branca, Praça Rui
Barbosa
18- Estação Cocais em Casa
Branca
41
mércio através da melhoria da infra-estrutura (estradas e portos) e a dinamização das tropas internas, que criou condições
favoráveis à posterior disseminação da lavoura cafeeira pelo
território paulista.
O café não surgiu abruptamente. Na década de 1830,
a produção era ainda incipiente, mas sua expansão foi muito
rápida: em menos de duas décadas ocupou as terras férteis do
Nordeste paulista. Com a ascensão da cafeicultura, inicia-se
um processo que por todo o Estado de São Paulo, nas últimas
décadas do século XIX, foi desalojando os ‘mineiros’ para dar
lugar aos ‘paulistas’. Um processo em que a cultura do café foi
tomando espaço à criação de gado e à cultura do excedente. A
partir de fins do XIX, as áreas produtoras de café receberão
um novo impulso, com crescimento acelerado de população e
desdobramento em novos municípios, alterando a configuração do espaço, até então marcado pela existência das fazendas
de gado e das lavouras de gêneros de subsistência.
Até 1848, quando o café ultrapassou a cana no valor
das exportações, as plantações do Vale do Paraíba eram responsáveis pela quase totalidade da produção desse produto.
Foi a estrada de ferro Santos-Jundiaí (1867) o passo decisivo
para a expansão dos cafezais pelo Oeste paulista. A expansão
dos trilhos pelo interior paulista permitiu o avanço da agricultura de exportação, no caso o café, por áreas anteriormente
ocupadas pela economia do excedente.
Já na segunda metade do século XIX, o avanço do café
ao longo do Caminho de Goiás significou, em termos concretos, a ultrapassagem dos limites geográficos anteriormente
atingidos pela produção açucareira. As transformações, que se
manifestavam em termos provinciais, vão atingir o Nordeste
paulista somente no último quarto do século, quando o café
impõe a sua marca na organização da produção e dos estilos
de vida e na mentalidade da população.
A partir da década de 1870, uma conjuntura favorável
viria a incentivar a expansão da frente pioneira do café sobre
o Nordeste paulista, ampliando o espaço agrário voltado para
a lavoura de exportação. A relativa valorização do café, a abertura do mercado consumidor norte-americano e a possibilidade técnica das ferrovias como meio de encurtar e baratear o
transporte foram incentivos essenciais, que permitiram a paulatina incorporação dessa região à cafeicultura. O café sofreu
19- Estação Coronel
Correa em Casa Branca
20- Estação Nova de Casa
Branca
42
sua primeira interrupção apenas ao final da década de 1920,
com a grande crise mundial.
Foi a partir dessa década de 1870 que se iniciou a penetração do café na Alta Mogiana, em momento propício à
sua expansão, favorecido pelo aumento do consumo e pela
alta dos preços internacionais. Fazendeiros e o próprio Estado investiram pesadamente na lavoura cafeeira, gerando
o enriquecimento notável de São Paulo. Clima, relevo, solo
e a expansão ferroviária favoreceram a rápida instalação de
grandes plantações cafeeiras no Nordeste paulista, alterando
radicalmente o panorama agrário regional. O café possibilitou
o crescimento econômico significativo de São Paulo, principalmente após sua produção em larga escala na Alta Mogiana.
Daí resultaram o crescimento demográfico acelerado, graças
também à imigração em larga escala, juntamente com a expansão dos serviços e, enfim, o início da industrialização.
A Estrada de Ferro Mogiana, fundada em março de
1872, visava atender ao vasto Nordeste paulista. Em 1875, já
havia alcançado Mogi Mirim e Amparo, partindo de Campinas. Casa Branca seria a próxima estação, inaugurada em 1878.
Conforme o contrato celebrado com o governo da Província
de São Paulo para a construção da linha até Casa Branca, a
companhia fora também autorizada a construir um ramal que
fosse até aos municípios de São Simão e Ribeirão Preto.
A escolha dos traçados das linhas férreas era determinada pela conformação do relevo e pela oferta do café, isto
é, levava em consideração a localização das grandes manchas
cafeeiras do Nordeste paulista. A expansão das vias férreas
nessa região esteve, portanto, intimamente vinculada à economia cafeeira. O início do declínio cafeeiro resultou na paralisação do processo de instalação de novos ramais. Certamente,
a ausência de planejamento na construção das estradas de ferro, aliada às distâncias estendidas pelos desvios excessivos em
função dos interesses políticos, também contribuíram para a
decadência da rede ferroviária, que viria a perder a concorrência com o transporte rodoviário.
Foi em 1854 que o Dr. Martinho da Silva Prado introduziu o café no município de Casa Branca, mas essa lavoura
só ganharia importância a partir de 1878, com o advento da
Estrada de Ferro Mogiana, que garantiu o escoamento da produção e a introdução da mão-de-obra estrangeira mais espe43
cializada40. É nesse período que Casa Branca passou por uma
fase verdadeiramente revolucionária. Segundo Pantoja41, Casa
Branca torna-se o posto mais avançado da estrada de ferro
e o problema do transporte e da mão-de-obra é resolvido.
Com isso, a função agrícola domina a vida na cidade, complementada pela função comercial. A influência da estrada de
ferro também se faz notar no crescimento da cidade: o povoamento, detido até a Praça Barão de Mogi Guaçu, junto à
Igreja Matriz, começa a se estender colina acima, para atingir a
estação da estrada de ferro, localizada na parte alta da cidade.
Ao mesmo tempo, o comércio desloca-se para a rua Coronel
José Júlio (a Rua da Estação), caminho mais curto para atingir
a estação. A cidade alcança seu desenvolvimento máximo em
comprimento e começa a crescer em largura.
A cultura cafeeira manteve-se até 1924, quando começa a diminuir sua produção em conseqüência do esgotamento dos solos, da praga da broca e da concorrência das novas
áreas abertas ao café, e cai em completa estagnação com a
crise de 1929. Criação de gado, cereais, hortaliças e o algodão
substituíram o café.
É importante considerar também que de centro dinâmico da economia, a agricultura começou a desempenhar
um papel completamente diferente durante a década de 1930,
subordinando-se à indústria nacional, sendo a responsável, até
1950, pelo seu estabelecimento.
A crise econômica mundial, desencadeada a partir da
quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, afetou
gravemente a sociedade brasileira, atingindo, de maneira mais
direta, o setor exportador. Essa crise implicou em profundas
alterações nas estruturas econômica, social e política do país.
A economia exportadora, fundada em um único produto, o
café, teve exposta sua fragilidade.
Diante dessa crise, a sociedade brasileira encaminha-se
para um novo modelo de crescimento, baseado numa produção voltada para o mercado interno e sob a liderança do setor
industrial. O processo de industrialização emergente coloca
em cena novos atores sociais e novas relações de trabalho,
expandindo o assalariamento e a residência urbana. A cidade
e a indústria exercem grande atração sobre os moradores do
campo e a migração rural-urbana toma vulto sem precedentes.
40-
FURLANI, p.126.
41-
PANTOJA, p.36.
44
Nesse processo de industrialização do país, os problemas econômicos que já existiam em Casa Branca agravam-se
com o desequilíbrio entre a produção agrária e a comercialização desses produtos ou a sua industrialização. Casa Branca nunca foi uma cidade industrial: tanto no passado como
no presente, as iniciativas industriais nesse município foram,
marcantemente, inconstantes.
Mas a cidade destacou-se em outro ramo. Na década
de 1910, Casa Branca teve grande destaque no ramo educacional, que se transformou num fator de desenvolvimento
econômico. A partir de 1912, graças à ação do Dr. Francisco Thomaz de Carvalho, foi criada a Escola Normal de Casa
Branca, cuja função foi essencial à vida da cidade42.
Casa Branca, transformada em capital-escola, possuía
amplo raio de ação, que alcançava, principalmente, Itobi, São
José do Rio Pardo, São Sebastião da Grama, Vargem Grande
do Sul, São João da Boa Vista, Mococa, Cajuru, Palmeiras,
Tambaú, São Simão, Cravinhos, Aguaí e o Sul de Minas. Numerosas famílias fixaram-se em Casa Branca para educar seus
filhos, o que constituiu importantíssimo fator, ao lado da cultura cafeeira e da ferrovia, na determinação do índice populacional de 26.397 habitantes, em 1920, somente superado no
ano de 2000, com 26.800 habitantes.
Com a crise do café, em 1929, salientou-se o papel
da Escola Normal como suporte vital do contexto funcional
da cidade, garantindo-lhe sua sobrevivência após a época de
ouro daquele produto. Mas, com a expansão da rede escolar
estadual, a partir da década de 1940, Casa Branca perdeu sua
expressiva posição de pólo educacional, o que refletiu incisivamente em seu desenvolvimento.
Hoje, Casa Branca não possui nenhum destaque econômico. Casa Branca foi importante entroncamento rodo-ferroviário, mas, hoje, resguarda apenas sua condição de nó rodoviário, dada a desativação da malha ferroviária. A indústria
não se desenvolveu, havendo poucos estabelecimentos desse
setor secundário, e a economia gira em torno do funcionalismo público, do presídio estadual e da agricultura.
A agricultura, no entanto, atividade histórica empreendida desde a vinda dos açorianos e intensificada com a imigração mineira, é uma atividade que não traz divisas econômicas para o município. Maria Aparecida Pantoja já discutia
42-
FURLANI, p.138.
45
esse problema que persiste até o presente. Segundo estudos
dessa pesquisadora, foram identificadas duas zonas rurais no
município. Uma, a Nordeste, é limítrofe com os municípios
de São José do Rio Pardo, São Sebastião da Grama e Vargem
Grande do Sul; a outra, limítrofe com Tambaú e Palmeiras.
Ambas têm suas produções captadas pelas sedes dos municípios vizinhos, ocasionando sérios desequilíbrios à economia
de Casa Branca.
Em suma, Casa Branca produzia, mas não comercializava. Até hoje, tratando-se não só da comercialização dos produtos, mas da industrialização, o mesmo fato se repete com a
produção de cítricos, cana, arroz, feijão, milho, soja, algodão,
madeira, etc., escoada para outros municípios industrializados.
Assim, Casa Branca produz, mas não industrializa43.
1.7 Considerações sobre os aspectos históricos
Maria Aparecida Pantoja aponta, em 1942, questões
que são discutidas até o presente: as fases de apogeu e crise da
economia casa-branquense, fases comerciais e agrícolas, em
paralelo com dados da população e do território, baseados
nos relatos de Saint-Hilaire. Destaca-se a descrição geomorfológica da região, com características favoráveis à penetração
pelos bandeirantes, em direção a Goiás e Minas Gerais. Ponto
de destaque é também a criação do povoado. Como já havia,
no século XVIII, capela no povoado de Cocais, os sesmeiros
do pouso de Casa Branca, temendo a concorrência, teriam dirigido uma petição ao príncipe regente D. João, na qual solicitavam a criação da freguesia. Sobre a imigração açoriana, esta
teria ocorrido pela necessidade de se aumentar a população
local, já que ocorria um decréscimo expressivo da população
paulista em decorrência das guerras do Sul.
O trabalho de João Horta de Macedo, de 1950, proporciona uma visão do vilarejo em 1865. Destaca a importância de dois documentos fundamentais para a comprovação
da existência do pouso de Casa Branca, já no século XVIII: o
“Mapa Geográfico da Capitania de S. Paulo (1791 e 1792)” e
os dados inscritos no recenseamento de Mogi Mirim, de 1783.
Suas descrições sobre a espacialidade do pequeno povoamen-
43-
FURLANI, p.129.
46
to são palavras do Visconde de Taunay, que faz referência
ao povoado em seu livro “Marcha das Forças”44 e exalta suas
qualidades pitorescas em “Inocência”45.
O terceiro trabalho de referência é a dissertação de
Amélia Trevisan, de 1979. Em seu trabalho, reúne dados
fundamentais sobre a cidade, como censos, descrições dos
viajantes do século XIX, referências a documentos originais
sobre a imigração açoriana e até mesmo o nome dos primeiros proprietários de sesmarias da região em estudo. Estabelece algumas discussões sobre a vinda dos açorianos e sobre a
tentativa de estabelecer um núcleo agrícola, avaliados como
uma coincidência com o pedido dos moradores para fundar
a freguesia. Não há um aprofundamento sobre a questão da
evolução urbana, deixando, ainda, em aberto a questão do ordenamento português.
Ressalta-se também, nessa primeira fase da pesquisa,
a falta de material gráfico oficial que possibilitasse um estudo
preciso da territorialidade. Alguns mapas foram produzidos
ou manipulados para possibilitar uma maior aproximação
espacial desse Nordeste paulista, região de história tão rica
e intrigante, com importantes questões urbanísticas a serem
desvendadas, que devem ser desbravadas, de forma a que cada
cidade do entorno possa identificar-se nesse contexto único
do Caminho de Goiás.
Em relação ao início do povoamento da cidade de
Casa Branca, supõe-se, pelos dados apresentados, que a região
desta cidade já era conhecida no século XVII, pois foi através
da trilha que levava às Minas Gerais, e que passava por esta
região, que o ouro foi descoberto no Rio das Velhas, em 1690.
Mas o povoamento somente teve início após a intensificação
do comércio pelos viajantes, a partir da descoberta de ouro
em Mato Grosso, em 1718, e em Goiás, em 1725. Com os
caminhos para Minas e Goiás, estabeleceu-se neste entroncamento o pouso de Casa Branca, paragem para os viajantes e
ponto de comércio. “Boca de sertão”, Casa Branca foi elevada
a freguesia em 1814, somente depois de Franca, em 1804, e
Caconde, em 1765.
A ocupação do seu território data do século XVIII,
tendo sido concedida sesmaria no Ribeirão da paragem Cocais, em 1733, e constando no censo de 1765 dois fogos. Mas
o povoamento somente intensifica-se com a imigração minei-
44-
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle
Taunay, Visconde de, 1843-1899. Marcha das forças:
expedição de Mato Grosso, 1865-1866. São Paulo:
Melhoramentos, 1928.
45-
TAUNAY, primeira edição de 1872.
47
ra, iniciada após 1790, decorrente da crise do ouro de 1748,
atingindo o auge em meados do século XIX.
Área pioneira no processo de interiorização, inserida no
Nordeste paulista, é elevada a freguesia por Decreto de D.
João VI, devido a vários fatores:
. Por medo de perderem suas terras, devido à imigração mineira, os sesmeiros e alguns moradores próximo ao pouso,
por intermédio do Padre Godói, solicitaram a elevação do
pouso a Freguesia, de forma a lhe garantir alguma ordem administrativa e militar.
. Dentro da política de interiorização do Brasil, incentivada
pelo Tratado de Madri, havia a intenção, por parte do governo português, de garantir a posse das terras das fronteiras da
antiga Linha do Tratado de Tordesilhas, através da fundação
de núcleos urbanos, que também auxiliariam no controle oficial das estradas, principalmente para assegurar o controle sobre as áreas onde metais preciosos haviam sido descobertos.
Também coincide esta atitude com os anseios de estabelecer
núcleos baseados em pequenas propriedades rurais, para diminuir o poder dos grandes proprietários de terras e intensificar o poder da Coroa, principalmente após a vinda da família
real em 1808, na busca de uma centralização do poder.
. A descoberta de ouro nas cabeceiras do Rio Pardo, em 1765,
é alvo de grande preocupação da Coroa. Com a abertura de
Caminhos entre Ouro Fino e Cabo Verde, havia a necessidade
de controle mais rígido para garantir a exploração oficial dessa
riqueza mineral. Para esse fim, funda-se a primeira freguesia
no Nordeste paulista: Nossa Senhora das Cabeceiras do Rio
Pardo (atual Caconde). Casa Branca seria o pouso paulista
mais antigo e mais próximo desse extremo leste, divisa com
Minas Gerais, sendo, portanto, focada pela Coroa.
. Por último, coloca-se a necessidade de se estabelecer os açorianos que já se encontravam no Brasil, sendo bastante oportuno para D. João VI a criação desta freguesia, o que coincide,
ainda, com a necessidade de intensificar o contingente populacional na região, já que muitos paulistas e mineiros estavam
sendo convocados para as guerras no Sul.
Portanto, muitos fatores contribuíram para essa inserção populacional e para o desenvolvimento inicial desse
núcleo urbano.
48
Capítulo II
Urbanização e Urbanismo no Brasil e em Casa Branca
Nas diversas fases de crise e reerguimento do município
de Casa Branca, as oportunidades econômicas foram seguidas
por novas fases de urbanização. No início do povoamento,
como ‘Boca de Sertão’, conheceu grande desenvolvimento
como centro comercial, onde se abastecia um vasto hinterland
que se estendia até Minas e Goiás. Com o surgimento de
21- Foto Aérea da cidade de Casa Branca, 1968.
Fonte: FFLCH USP _ sem escala
22- Foto Oblíqua da cidade de Casa Branca, 1968.
Fonte: IGC
“A história da urbanização colonial é a história das
configurações assumidas no espaço, pelas relações dessa
sociedade, no processo de colonização. A história do
urbanismo colonial é a história dos esforços para controle
do espaço urbano dessas relações, no quadro da dominação
colonial” (REIS FILHO, Nestor Goulart. Notas
sobre o urbanismo no Brasil. Primeira parte:
período colonial. São Paulo: Cadernos do LAP 08/
FAUUSP, 1995, p.5).
49
outros pousos no caminho até Franca, Casa Branca perde sua
preponderância e exclusividade. Trata-se da primeira crise.
Da mesma forma, reergue-se com a introdução da cultura
do café, em 1854, quando a agricultura foi incrementada pela
vinda dos mineiros, principalmente a partir de 1841, e com
o prolongamento dos trilhos da Estrada de Ferro Mogiana,
de Mogi Mirim a Casa Branca, em 1878. No entanto, nova
crise se estabelece com o prolongamento da Estrada de Ferro
para Ribeirão Preto, cessando a atuação de Casa Branca
como cidade pioneira no transporte ferroviário na região. A
economia manter-se-á, então, até 1929, em torno dos cafezais,
com a função agrícola em primeiro lugar.
A partir de 1912, a função agrícola dividirá lugar
com a função intelectual, quando o Dr. Altino Arantes, que
geria a pasta de Instrução Pública no governo Rodrigues
Alves, manifestou sua intenção de criar uma Escola Normal
na Mogiana. Como Casa Branca estava em plena expansão
cafeeira, como centro econômico importante e com a
vantagem de ocupar posição central na região, foi escolhida.
Criada a Escola Normal, muitos estudantes se transferiram
para Casa Branca, quer vindos das cidades servidas pelo
ramal do Rio Pardo, a saber, São José do Rio Pardo, Mococa e
cidades do Sul de Minas, como de toda a região da Mogiana,
entre Ribeirão Preto e Casa Branca e entre Casa Branca e
Mogi Mirim. Com o crescimento populacional, que passou de
16.133 habitantes em 1900 para 26.397 em 1920, Casa Branca
tornou-se uma pequena capital escolar.
Com a crise cafeeira instaurada em 1929, devido
ao esgotamento da terra, ao aparecimento da broca e à
concorrência dos cafezais novos do Noroeste, a presença
da Escola Normal, graças à numerosa população escolar,
impediu que a cidade caísse em completa estagnação. Mas, a
partir da década de 1940, com a criação de numerosos ginásios
e Escolas Normais livres, em São José do Rio Pardo, Mococa
e São Simão, Casa Branca perdeu seu papel intelectual.
Dentro de um período delimitado entre início do século
XIX e meados do século XX, a evolução urbana seguiu essas
fases econômicas. Primeiro, a ocupação restringia-se à Rua do
Comércio, atual Waldemar Panico, região à beira do Caminho
de Goiás, de intensa movimentação comercial. Com o café e
a ferrovia, casarões são construídos na Rua Dr. Menezes e no
1-
PANTOJA, p.48.
50
entorno da nova Igreja Matriz e o eixo de ocupação do espaço
estende-se até a Estação da Mogiana, atingindo o auge da
expansão urbana longitudinal. É somente com a construção
do prédio da Escola Normal, na década de 1930, na Praça Dr.
Carvalho, que a cidade começa a crescer em largura e a área
central torna-se mais densamente ocupada.
Neste capítulo, propõe-se caracterizar essa evolução
urbana, identificando-a no espaço citadino, bem como analisar
os seus mecanismos de ocupação, inserido no contexto do
urbanismo português no Brasil.
2.1 O Processo de Urbanização de Casa Branca
23- A evolução urbana
de Casa Branca segundo
Geraldo Majella Furlani:
consideram-se seis períodos
distintos.
Fonte: FURLANI, 123.
51
Em relação à evolução urbana da cidade de Casa
Branca, seguindo os estudos de Geraldo Majella Furlani, a
progressão da cidade poderia ser caracterizada a partir de seis
períodos:
1- Da origem da cidade, 1814, a 1852 (construção da Igreja
Matriz): da Rua do Comércio (atual Waldemar Panico) até a
Praça Barão de Mogi Guaçu.
2- De 1852 a 1878 (advento da Estrada de Ferro Mogiana
e período áureo do café): setor em torno da Praça Barão de
Mogi Guaçu e bairros São João e Senhor Menino.
3- De 1878 a 1932 (edificação da Escola Normal): da Praça
Barão de Mogi Guaçu até a estação velha da Mogiana (Praça
Rui Barbosa), trechos das avenidas Francisco Nogueira de
Lima e Coronel Castro e Bairro dos Marsons.
4- De 1932 a 1960: trechos das ruas Altino Arantes, Duque
de Caxias, Santo Antônio e Manoel Martins, setor do baixo
Desterro e Bairro do Desterro (1949); Vilas Industrial e
Francischet (1952); Vila Santa Maria (1956); Bairro de Nazaré,
Jardins Resende e São Carlos (1957) e Vila de São Bernardo
(1958)
5- De 1960 a 1994: parte antiga do Jardim Boa Esperança ou
Vila Diniz (1962); Vila Três Cruzes (1963); Vila Santa Cecília
(1964); Trecho da Duque de Caxias (1965); segmento da
Justino de Castro e Jardins Alvorada e Boa Esperança (1966):
Jardins Tupi, América e Paulista (1970); conjunto habitacional
João Stefanini (CECAP), Jardim Eldorado e parte da Duque de
Caxias (1977); Portal dos Pinheiros, Estância Coesa e Jardins
Europa e Macaúba (1978); Chácara Mogiana, Parque São
Paulo, Vertentes do Alporama e Jardins do Horto, Bela Vista
e Boa Esperança (1979); Parque Residencial João Pereira de
Lima (Nosso Teto) e Jardim Industrial (1980); segmentos das
ruas Justino de Castro e Santo Antônio – Jardim Francischet
(1981); trechos das ruas Doutor Moacir Trancoso Peres e
Manoel Martins (1982); Jardim Rafaela (1984); Cidades Jardins
I e II ou Vila Grilo (1988); Conjuntos Habitacionais Professor
Wlademir Pereira, Professor Sebastião de Faria Zimbres, São
Bernardo II e Bela Vista, Núcleo Residencial Emílio Bernarde
(1992) e Chácara Boa Vista (1994).
6- De 1994 a 2001: Conjuntos Habitacionais Doutor Odenir
Buzatto, Parque das Acácias e Arlindo Peres (2000); Jardim
2-
FURLANI, p.121.
52
Colina do Sol e Condomínio Jardim Monte Belo (2001).
Sobre essa evolução urbana descrita e proposta por
Furlani, proponho que o esquema seja simplificado e que
cada conjunto arquitetônico constitua uma proposta de
preservação a ser apresentada ao Condephaat, restringindo o
foco de interesse ao centro da cidade.
Desta forma, apresento uma proposta mais detalhada
da evolução urbana da cidade de Casa Branca, desde os seus
primórdios no século XIX até 1932, restringindo-me a estudos
do centro da cidade, perímetro que engloba a evolução urbana
da cidade desde a ocupação ao longo do Caminho de Goiás
até a introdução da Estrada de Ferro e da Escola Normal.
Destaco também, nesta nova proposta, a Rua Waldemar
Panico e a Rua Mestre Araújo como primórdios da ocupação
desse território.
24- A evolução urbana do centro da cidade de Casa
Branca segundo estudos de Geraldo Majella Furlani.
Sobreposição do mapa produzido pelo professor
Furlani, figura 23, ao mapa atualizado da cidade
de Casa Branca, cedido pela arquiteta Maria Eliza
Chinez.
53
1- Caminho de Goiás, atual estrada para Tambaú
2- Córrego Espraiado
3- Córrego Pingo
4- Hipóteses 1, 2 e 3 de localização das casas dos açorianos
5- Hipótese 4 de localização das casas dos açorianos
6- Hipótese de localização da primeira capela do povoado, atual Praça Honório de Syllos
7- Hipótese de localização da primeira capela do povoado, atual Largo do Rosário
8a- Primeiro cemitério
8b- Segundo cemitério, a partir de 1869
9- Igreja Matriz Nossa Senhora das Dores
10- Estação da Estrada de Ferro Mogiana
11- Santa Casa de Misericórdia 1885/ 1887
12- Mercado Municipal 1885
13- Príncipe de Nápoli 1887
14- Casa Cristal 1890
15- Antigo grupo escolar Rubião Júnior
16- Capela de Nossa Senhora do Desterro
17- Cadeia Pública e Paço Municipal
18- Bosque Municipal
19- Escola Normal 1932
20- Asilo de Inválidos
26- Mapa da nova proposta de evolução urbana
para a cidade de Casa Branca - proposta inicial
advinda dos estudos de Furlani e dos estudos da
cronologia de surgimento das edificações nesse
espaço urbano.
século XVIII a 1814 (criação da Freguesia)
1814 a 1841 (localização da igreja matriz)
1841 a 1878 (Estrada de Ferro Mogiana)
1878 a 1881
1881 a 1932 (Escola Normal)
Abaixo, são apresentados os dados retirados da
bibliografia deste trabalho, organizados em ordem cronológica.
Alguns dados são relatos de viajantes do século XIX, outros são
comentários conclusivos a partir da observação desses relatos,
feitos por Maria Aparecida Pantoja (1942), Ganymedes José
(1971) e Amélia Trevisan (1979). É através destes dados e dos
apontamentos de Furlani que efetuamos uma nova proposta
para a evolução urbana de Casa Branca.
54
Século XVIII: no entroncamento dos caminhos para Minas,
Cuiabá e Goiás a região de Casa Branca apresenta-se como
pouso de viajantes, já com a concessão de sesmarias.
1807: o Padre Francisco de Godói Coelho requer sesmaria
na propriedade de Cocais e funda ali uma capela, dedicada a
Santana, e um cemitério.
1811: pedido de criação da Freguesia de Casa Branca.
1814: expedido o Alvará Régio para criação da Freguesia de
Nossa Senhora das Dores de Casa Branca; determina-se a
construção das casas que acolheriam os imigrantes açorianos
e de uma capela, que depois seria substituída pela matriz.
1815: em maio deste ano chegam os casais de açorianos.
1818: segundo relato de D’Alincourt, a Freguesia constava de
um largo retangular, ornado de pequenas casas cobertas de
palha e com uma igreja no fim do mesmo largo.
1819: segundo Saint-Hilaire, a Freguesia se compunha de
uma rua reta, bastante larga, mas muito curta, e numa das
extremidades, a igual distância das duas filas laterais de casas,
havia uma igreja consagrada a Nossa Senhora das Dores. As
casas eram em número de 24, contíguas e cobertas de palha.
1822: um grande incêndio destrói sete casas, inclusive a que
seria do quartel e cadeia.
1825: os açorianos partem para as sesmarias e algumas casinhas
são vendidas pelo governo.
1837: havia na Freguesia duas ruas, a Rua do Comércio e,
paralela a esta, a Rua das Flores.
1841: a vila já contava com 40 casas novas e se estendia até o
Largo do Rosário, convergindo para a praça onde se projetava
a construção da matriz (atual Praça Barão de Mogi Guaçu).
A Rua dos Carros, hoje Luiz Gama, era a principal via de
tráfego de carros de boi e tropas e o centro comercial estava
localizado na Rua do Comércio, atual Waldemar Panico, e no
Largo do Rosário. Essa função comercial é revelada pelas
formas das casas: baixas e alongadas com numerosas portas;
eram os grandes armazéns.
1843: iniciados os trabalhos para a construção da primeira
igreja matriz, na atual Praça Barão de Mogi Guaçu.
1852: a igreja matriz já estava edificada, mas não concluída:
apresentava-se sem acabamentos.
1869: mudança do cemitério do Largo do Rosário para onde
é hoje o Instituto de Educação, antiga Escola Normal. Ficava
27- Rua Waldemar Panico, década de 1980.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
28- Rua Waldemar Panico, 136. Construção
demolida. Sem data.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
29- Primitiva Igreja do Rosário em Casa Branca.
Aquarela de Miguel Dutra (1854). Reprodução de
João Dorat de fotografia fornecida por Afonso
Taunay.
Fonte: Almanaque de Casa Branca para o ano 1905,
emprestado pela senhora Dulce Horta.
30- Primitivo Cemitério de Casa Branca. Aquarela
de Miguel Dutra (1855). Reprodução de João Dorat
de fotografia fornecida por Afonso Taunay.
Fonte: Almanaque de Casa Branca para o ano 1905,
emprestado pela senhora Dulce Horta.
55
próximo ao bosque de onde brotava a água para consumo do
dia-a-dia.
1872: início das construções do Teatro São José.
1877: a Estrada de Ferro Mogiana chega ao Aterradinho e D.
Pedro II visita Casa Branca. Vicente Ferreira de Syllos Pereira
o recebe em seu sobrado, situado na Rua Capitão Horta, atrás
do colégio Rubião Júnior.
1878: a Estação Mogiana chega em Casa Branca.
1881: com o aumento das construções, o segundo cemitério já
estava praticamente no centro da cidade. A nova opção recaiu
sobre uma gleba da antiga Fazenda Penhora. A cidade cresce
da Praça Barão de Mogi Guaçu em direção à estação de trem
e a Rua Coronel José Júlio torna-se a nova rua do comércio.
Atingida a estação, a cidade alcançou o seu desenvolvimento
máximo no sentido do comprimento e vai começar a crescer
em largura.
1885: instalou-se a Irmandade da Santa Casa de Caridade.
O prédio deveria ser construído com frente para a Rua dos
Carros, na época conhecida como Rua da Palha, atual Rua
Luiz Gama e Luiz Piza. Nesse ano também é inaugurado o
Mercado Municipal, não muito distante de onde seria a Santa
Casa. A partir da inauguração, a rua defronte passou a ser
chamada Rua do Mercado e a posterior, Rua São Miguel.
1886: D. Pedro II visita Casa Branca pela segunda vez e
planta as cinco palmeiras no Largo do Rosário. Nesse tempo,
o movimento de trens da Mogiana já é regular e já se tinha
formado uma rua comprida que ia do Rosário ao topo, onde
estava a estação, atual Rua Coronel José Júlio. Nessa rua, havia
um bondinho, o Candura, que subia até a estação puxado por
burros e descia à tração.
1887: inaugura-se a Santa Casa de Caridade e com o café,
muitos imigrantes continuam indo para Casa Branca e os
italianos fundam, na Rua Capitão Horta, o prédio de uma
nova escola, a Príncipe de Nápoli.
1888: a igreja matriz é inaugurada solenemente e funda-se o
Clube Recreativo de Casa Branca.
1889: um incêndio destrói a igreja matriz.
1890: é fundada a Casa Cristal da família Basilone.
1891: assinala-se a existência da primeira escola da cidade,
o colégio Santa Maria, que funcionava em um casarão de
janelas altas, próximo ao Largo do Rosário. Era conhecida
31- Fotos da Estação da Estrada de Ferro Mogiana
em Casa Branca, 1920.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
32- Rua Coronel José Júlio - Rua da Estação.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
Sem data.
33- Santa Casa de Misericórdia, 1940.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
56
como escola de baixo, pois depois foi construída outra mais
próxima da estação.
1893: lançada a pedra fundamental da nova igreja matriz,
no mesmo local anterior. Também ocorre a construção da
capela, em honra de Nossa Senhora do Desterro, e da nova
cadeia pública, que seria em dois pavimentos, destinando-se o
superior ao Paço Municipal. Escolheram o local no Largo da
Misericórdia. Também chega à cidade a luz elétrica.
1902: o Paço Municipal está situado no Largo da
Misericórdia.
1903: fundado o primeiro Grupo Escolar, Dr. Rubião Jr.,
provisoriamente instalado em um velho casarão no Largo do
Rosário, perto da casa onde o Imperador havia se hospedado,
na Rua Capitão Horta. Por doação do Barão de Casa Branca,
a cidade nessa época tinha vários chafarizes. A nascente
provinha do açude no bosque, local dos futuros terrenos da
ACCPE, Associação Casa-branquense de Cultura Phísica e
Esportiva.
1912: criação da Escola Normal.
1917: construção da avenida que leva a cidade ao bosque.
1918: a Escola Normal entra em funcionamento no velho
casarão da esquina do Largo do Rosário.
1928: escolhido o local para a construção da nova Escola
Normal: o antigo cemitério.
1932: fundado o Asilo de Inválidos, entra em funcionamento
o novo prédio da Escola Normal e cria-se o Sanatório Cocais,
sendo destruído o antigo abrigo dos leprosos, restando apenas
a capela na saída para Tambaú, construída em 1888.
1938: inaugura-se o Salão São José, da paróquia, ao lado da
matriz.
1952: a antiga Rua dos Carros e da Palha, atual Luiz Gama,
transforma-se em avenida de duas mãos.
1960: inaugura-se o Cine Casa Branca e funda-se a Escola
Técnica de Comércio na esquina das ruas Lafaiete de Toledo
e Lacerda Franco.
1962: inaugura-se a estação rodoviária, nos fundos da igreja
matriz, e também o Fórum Ministro Costa Manso, na Praça
Rodrigues Alves, antigo Largo da Boa Morte.
1963: inaugurada a CAGESP, armazém para estoque da
produção agrícola.
1966: remodelação da Praça Rui Barbosa, em frente à Estação
34- Casa das Irmãs, anexa à Santa Casa de
Misericórdia, 1940.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
35- Antigo Mercado Municipal.
Fonte: Almanaque de Casa Branca para 1905,
emprestado pela senhora Dulce Horta.
36- Igreja do Rosário e as cinco palmeiras plantadas
por D. Pedro II, que não existem mais.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
37- Escola Príncipe de Nápoli, Rua Capitão Horta.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
Sem data.
57
da Estrada de Ferro Mogiana.
Com este panorama geral da evolução urbana da
cidade de Casa Branca, passemos, então, ao foco deste
trabalho: o primeiro eixo de ocupação, da Rua do Comércio,
atual Waldemar Panico, até a Praça Barão de Mogi Guaçu, com
delimitação do perímetro referente ao processo de ocupação
do solo vinculado aos primeiros tempos de povoação, à vinda
dos açorianos para a cidade e à migração de mineiros: Rua
do Comércio, Praça Barão do Rio Pardo e Largo da Igreja do
Rosário.
38- Clube Casa Branca na Praça Barão de Mogi
Guaçu, décade de 1920.
Fonte: Museu de Casa Branca.
2.2 Os primórdios da ocupação do território da
Freguesia de Nossa Senhora das Dores de Casa
Branca
39- Jardim Público na Praça Barão de Mogi Guaçu.
Fonte: Almanaque de Casa Branca para 1905,
emprestado pela senhora Dulce Horta.
Rua dos
Mineiros
40- Casa Cristal, Rua Coronel José Júlio, esquina
com a Praça Barão de Mogi Guaçu.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
Sem data.
Repartição dos Habitantes/ Grupos Ocupacionais dos Chefes
de Família, Senhores, Escravos e Agregados
1814
Ocupação
Chefes de família Senhores Escravos Agregados
Clero secular
Agricultura e pecuária
Comércio
Ofícios
Diversos
Total
1
1
3
0
145
26
83
66
4
0
0
1
15
2
6
7
1
0
0
1
166
29
92
75
41- Antigo Paço Municipal e Cadeia Pública.
Fonte: Almanaque de Casa Branca para o ano de
1905, emprestado pela senhora Dulce Horta.
Fonte: Listas Nominativas por Fogos apud TREVISAN p.51.
58
No ano da criação da Freguesia, em 1814, havia
em Casa Branca 166 fogos, dos quais 117 eram de famílias
originárias da Capitania de São Paulo, 35 de Minas Gerais,
1 de Goiás e 13 sem indicação. No quadro de ocupações
do referido censo consta, em primeiro lugar, o clero secular,
pois o pároco, o padre Francisco de Godói Coelho, além de
suas funções religiosas, era o representante administrativo do
governo da Capitania de São Paulo, nomeado pelo Príncipe
Regente. Consta também um único senhor de engenho de
açúcar, lavradores, lavradores-criadores, um negociante
de bois, taberneiros, ferreiros, um sapateiro, telheiros,
carpinteiros, fiadeiras e escravos. Analisando este quadro,
podemos supor que o pouso já possuía uma razoável estrutura
urbana, vinculada à produção rural, mas já com atividades
exclusivamente urbanas, atividades estas que deveriam atender
aos moradores e aos viajantes.
Com isso, novamente pode-se afirmar que a vinda dos
açorianos para a cidade tratou de responder a interesses da
Coroa em estabelecer esses imigrantes que já se encontravam
no Brasil desde 1813. Não se criou uma freguesia unicamente
para abrigá-los, mas coincidiu o pedido do Padre Godói com a
necessidade de D. João VI de alocar essas famílias. De qualquer
forma, foi o Decreto de D. João VI, de 1814, que determinou
as diretrizes para a ocupação ordenada desse território.
Em fevereiro de 1813, já se encontravam os açorianos
distribuídos pelas capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo,
Minas Gerais, Porto Seguro e Espírito Santo. A segunda
leva de açorianos chegou ao Brasil ainda no ano de 1814 e
se encontravam distribuídos, desde então, provisoriamente ao
longo do Caminho de Goiás, nas fazendas de Jundiaí, São
Carlos e Mogi Mirim, chegando em Casa Branca apenas em
maio de 1815. Dessa forma, comprova-se que a projetada
colonização açoriana na Capitania de São Paulo começou com
um erro básico, pois ao invés de, primeiramente, se escolher o
local da povoação para alojar as famílias imigrantes, procedeuse ao contrário: primeiro mandaram vir dos Açores os casais,
para depois se resolver o local e a sua habitabilidade.
Foi em dezembro de 1814 que o Conde de Palma,
governador da Capitania de São Paulo, recebeu 20 casais de
ilhéus açorianos para aumento da população e desenvolvimento
da lavoura. Deliberou o governo estabelecê-los no termo da
42- Antiga Cadeia Pública.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
Sem data.
43- Igreja Nossa Senhora das Dores, 1930
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
44- Igreja Nossa Senhora das Dores, 1940
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
45- Antigo casarão do colégio Rubião Júnior.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
Sem data.
3-
Dados estatísticos colhidos nos maços de
população de Mogi Guaçu, apud TREVISAN, p.42,
50 e 51.
4-
TREVISAN, p.55.
59
Vila de Mogi Mirim, para povoar a estrada que ia a Goiás e
Mato Grosso, principal via de comércio de São Paulo com
aquelas capitanias. Tal decisão e necessidade coincidiram,
portanto, com o pedido de criação da Freguesia de Casa
Branca feito pelos moradores já lá residentes.
Em maio de 1815, chegam em Casa Branca 19 casais,
somando cerca de 120 pessoas, que vieram dos Açores à custa
do Estado. A esses açorianos foram entregues casas junto
ao pouso de Casa Branca, porém a questão das terras para
cultivo demoraria a ser resolvida.
Documento enviado pelo Intendente Geral de Polícia
ao sargento-mor de Casa Branca, em 1818, estaria esclarecendo
ao sargento-mor a obrigatoriedade em seguir a planta que
teria sido determinada quando da construção das casas dos
açorianos, no ano de 1815. Não há, no entanto, referências à
existência dessa planta que definiria o traçado urbano desse
primeiro eixo de ocupação, mas supõe-se que o plano tenha
realmente existido, haja vista a racionalidade desse traçado e
a regularidade do traçado das ocupações subseqüentes, em
quadrícula.
Após considerar os aspectos acima relatados, há
quatro hipóteses que podem ser estabelecidas a partir dos
documentos pesquisados e dos estudos que estão sendo
realizados a respeito da história da cidade de Casa Branca e das
características da evolução urbana no Brasil nesses primórdios
de ocupação do território.
46- Escola Normal, 1940.
Fonte: Museu de Casa Branca. Autor desconhecido.
2.2.1 Hipóteses 1, 2 e 3
Segundo os estudos de Amélia Trevisan, o início da
ocupação efetiva do pouso de Casa Branca teria ocorrido com
a construção das casas para os açorianos, que chegaram a esse
novo núcleo urbano em 1815. A hipótese, defendida em sua
dissertação de mestrado, estabelece que tais casas de morada,
construídas pela Coroa portuguesa, estariam localizadas onde
hoje é a Rua Waldemar Panico, antiga Rua do Comércio, sendo
que haveria, ainda hoje, construções remanescentes desse
início do século XIX. Seriam 24 casas, contíguas e cobertas de
5-
Segundo certidão da Câmara de Mogi
Mirim, 1° de julho de 1815, apud TREVISAN, p. 63.
6-
“A povoação foi edificada com regularidade e com
a mesma foram marcadas as ruas que deviam abrir para o
futuro, para que os vindouros não tenham de emendar erros
da Polícia passada, com prejuízo até dos possuidores que estiverem fora dos alinhamentos e são para seguir a planta a princípio determinada sem nenhuma alteração”. (DAE – Ofício
do Intendente Geral de Polícia ao sargento-mor de
Casa Branca, José Garcia Leal, em agosto de 1818,
apud TREVISAN, p. 65).
60
palha. A autora também defende que a antiga igreja construída
para atender os açorianos localizar-se-ia no mesmo lugar onde
hoje está a Igreja do Rosário.
Os seus apontamentos baseiam-se nos relatos dos
viajantes D’Alincourt e Saint-Hilaire. Segundo D’Alincourt,
em 1818, o lugar de Nossa Senhora das Dores de Casa Branca
constava de um largo retangular, ornado de pequenas casas
cobertas de palha e com uma igreja no fim do mesmo largo,
para onde teriam ido 24 casais. Saint-Hilaire, em 1819, registra
que Casa Branca se compunha de uma rua reta, bastante larga,
mas muito curta, e numa das extremidades, à igual distância
das duas filas laterais de casas, uma igreja consagrada a Nossa
Senhora das Dores; as casas eram em número de 24.
Com essas descrições e segundo apontamentos de
Amélia Trevisan, constata-se que o povoamento era formado
por uma rua, que hoje seria a Rua Waldemar Panico, na qual
haveria 24 casinhas contíguas, sem recuo lateral ou frontal,
12 de cada lado da rua, cobertas de palha e, provavelmente,
construídas de pau-a-pique, segundo as técnicas construtivas
utilizadas na época e através da observação das três casinhas
que resistem até o presente e que, supostamente, seriam
remanescentes daquele período. Observa-se também que
apesar de terem sido construídas 24 casas, vieram para a
cidade apenas 19 casais e, portanto, as demais casas passaram
47- Desenho referente
à proposta de Amélia
Trevisan para a localização
das 24 casas dos açorianos e
da primeira capela.
As casas estariam
localizadas na Rua
Waldemat Panico, com
frente medindo 4 braças
(8,8 m). A primitiva igreja
estaria localizada onde hoje
está a Igreja do Rosário,
mas ela estaria voltada para
o grande largo, em direção
às casas. Nas suas costas,
estaria o cemitério.
7-
D’Alincourt e Saint-Hilaire apud
TREVISAN, p.66.
61
a ser ocupadas por outras funções, como o quartel, que foi
destruído no incêndio de 1822, o qual destruiu 7 casas.
Mas, se considerarmos as descrições dos viajantes, que
considera que a igreja estava localizada no fim do conjunto das
casas, podemos levantar mais duas hipóteses de localização
dessas habitações açorianas e de localização da primitiva
igreja.
Nessa segunda hipótese, apenas pela observação do
desenho desse trecho urbano considerado, que possui um
alargamento da Rua Waldemar Panico, que hoje constitui
a Praça Honório de Syllos, podemos supor que esse largo
poderia ter sido o adro da primitiva igreja.
49- Desenho referente à hipótese 2.
As 24 casas dos açorianos estariam localizadas
na Rua Waldemar Panico, com frente medindo 4
braças (8,8 m). A primitiva capela estaria localizada
onde hoje é a Praça Honório de Syllos.
Na terceira hipótese, podemos considerar o
posicionamento da antiga igreja no atual local da Igreja
do Rosário, mas muda-se o posicionamento das casas, que
localizar-se-iam na atual Rua Mestre Araújo.
50- Desenho referente à hipótese 3.
As 24 casas construídas para os açorianos
estariam localizadas na Rua Mestre Araújo,
continuação da Rua Waldemar Panico, com
frente medindo 3 braças (6,6 m). A primitiva
capela estaria localizada onde hoje é a Igreja
do Rosário.
Tais hipóteses podem ser levantadas porque não há
provas sobre a real localização dessas construções. Sobre
as casas da Rua Waldemar Panico, números 131, 151 e 165,
não há elementos concretos que comprovem que elas seriam
remanescentes dessas primitivas construções de 1815 e, sobre
a capela, supõe-se que ela localizar-se-ia no local da atual
Igreja do Rosário em função de uma gravura de 1854, que será
8-
DAE – Ofício do Alferes Comandante
do Quartel de Casa Branca ao Governo Interino
sobre o incêndio – 28 de fevereiro de 1823, apud
TREVISAN, p.66.
62
Praça Honório de Syllos
Rua Waldemar Panico 102
183, 201 e 229 do outro. Como um lado tem 8 propriedades
e o outro, 6, supondo que na época dos açorianos haveria
12 casas de cada lado, levanta-se a hipótese de um posterior
remembramento desses lotes, já que os imóveis construídos no
início do século XIX seriam pequenas construções, sem recuos
laterais, medindo de 3 a 4 braças de frente e provavelmente
semelhantes às construções 131, 151 e 165 e até mesmo à 136,
já demolida, consideradas por aquela autora remanescentes
do período. Outras suposições também podem ser levantadas
a partir de documento fornecido pelo Cartório de Registro de
Imóveis de Casa Branca, referentes aos títulos de compra e
venda dos primeiros proprietários registrados10, a maioria no
início do século XX. É importante ressaltar que tais casas de
morada foram construídas pelo governo da Capitania de São
Paulo, mas que, com a saída dos açorianos para suas sesmarias,
as casas foram vendidas.
Também seria interessante analisar os processos
existentes na Prefeitura a respeito das obras realizadas nesse
logradouro, em relação aos proprietários atuais, como uma
tentativa de recuperar a conformação original dos lotes e as
características originais das construções. Tal análise não foi
possível, pois não conseguimos fazer uma retrospectiva dos
nomes dos proprietários, obtemos apenas os nomes dos
proprietários atuais e dos primeiros. Sobre os atuais, não havia
nenhum dado relevante para esse estudo, e sobre os primeiros,
não houve como localizar tais processos, haja vista que a
72
apresentada adiante. Mas novas informações demonstram que
a hipótese de Amélia Trevisam pode ser realmente questionada.
É o que demonstramos nos apontamos que se seguem.
Considerando a hipótese de Amélia Trevisan correta,
nos dispusemos a analisar a atual situação dos imóveis
localizados na Rua Waldemar Panico, com o intuito de buscar
resquícios que pudessem comprovar que as casas dos açorianos
tivessem sido realmente localizadas nessa rua. Procurou-se
observar tanto as construções como as configurações dos
lotes.
Analisando documento da Prefeitura do Município
de Casa Branca, que elenca os imóveis hoje situados na Rua
Waldemar Panico, observamos que atualmente há apenas 14
propriedades nos dois lados da rua. Os números 102, 118,
136, 152, 196, 206, 212, e 236 de um lado e 131, 151, 165,
63
Rua Waldemar Panico - antiga Rua do Comércio
Prefeitura só possui documentos a partir de 1970 e aqueles
seriam do início do século.
Outra forma para tentar supor a conformação original
de tais casas e seus respectivos lotes seria através das plantas
dos lotes atuais, através dos quais poder-se-ia verificar a
modulação desses lotes, mas, como descrito acima, o acesso
a qualquer dado da Prefeitura para esses fins acadêmicos não
foi possível.
Observando os dados do Cartório de Registro
de Imóveis, podemos supor a numeração original das
construções da Rua Waldemar Panico. Tendo como registro
oficial das antigas numerações da Rua do Comércio, como
demonstra tabela abaixo, apenas os números 01, 03, 11, 06, 08
e 10, levanta-se a hipótese da numeração original dos outros
imóveis e, com esses dados, supõe-se que a Rua dos Açorianos,
que segundo Amélia Trevisan seria a atual Waldemar Panico,
seguisse pelas ruas Waldemar Panico e Mestre Araújo, para só
assim ser possível completar a numeração das 24 casas.
Rua Waldemar Panico
Rua Mestre Araújo
Rua do Comércio
ano
numeração atual ímpar
numeração original
1922
131
10
1922
151
8
165
6
1917
183
1917
201
1978
4
4
2
1
229
numeração atual par
numeração original
1924
102
17
1922
118
15
136
13
152
1926
196
9
1918
206
7
212
5
236
3
1909
148 e 154
11
1942
Nessa tabela, considera-se que a Rua do Comércio passou a se chamar Rua Mestre Araújo e
somente depois chamou-se Waldemar Panico, segundo considerações de Ganymedes José.
Tal hipótese poderia ser comprovada se houvesse nos
registros da Prefeitura ou no Museu de Casa Branca os
históricos dos nomes das ruas da cidade, como o que existe
no Arquivo Municipal do Município de São Paulo. Talvez a
Rua do Comércio se referisse não só à atual Waldemar Panico,
mas também à Mestre Araújo, pois seriam uma só. Mas, nessa
hipótese apresentada, os lotes, referentes à essa numeração
64
‘original’, seriam maiores do que as 3 ou 4 braças de frente
sugeridas para as primeiras casinhas açorianas. Acredita-se,
portanto, que já nesse começo do século XX, segundo o registro
no Cartório de Imóveis, teria ocorrido um remembramento
dos lotes originais dos açorianos ou que aquelas construções
de 1815 não se localizavam nesse local.
Ainda procurando resquícios históricos, tentou-se
fazer pesquisa utilizando os nomes dos primeiros proprietários
com registro no Cartório de Imóveis, solicitando-se os
processos referentes àqueles proprietários junto à Prefeitura.
No entanto, como os processos ainda existentes na Prefeitura
datam a partir de 1970 e os registros de compra e venda são,
em sua maioria, das décadas de 1910 e 1920, não foi possível
encontrá-los. Segundo o arquiteto responsável da Prefeitura,
o senhor Homero Evangelista, tais documentos do arquivo
morto ou foram destruídos ou estariam no Museu de Casa
Branca. A pesquisa neste último estabelecimento comprovouse inviável, haja vista a falta de catalogação e organização dos
documentos.
Diante de tais dificuldades, optou-se por utilizar
outros meios para chegar à hipótese da conformação original
das 24 casas dos açorianos. O documento utilizado seria a
própria construção remanescente, referente aos imóveis 131,
151 e 165 da atual Rua Waldemar Panico, e a conformação
atual das quadras e das ruas, utilizando mapa atualizado da
cidade, cedido pela arquiteta Maria Elisa Chinez.
É importante considerar e destacar que a conformação
atual dessas residências citadas, mesmo se for realmente
vestígios de outros tempos, muito provavelmente não é aquela
original, já que há um histórico de sua construção de quase
200 anos, que inclui mudanças de uso e reformas.
Considerando o fato de que, segundo o registro do
Cartório de Imóveis, as construções 131, 151 e 165, no registro
de 1922, pertenciam a um único proprietário, o senhor Álvaro
Machado Pereira, teria havido, pelo menos, um processo de
remembramento de lotes. Portanto, a localização de portas
e janelas talvez fosse outra originalmente, o que poderia ser
pesquisado através de prospecções. O interessante também
seria comparar a posição dos esteios de madeira com as
medidas mínimas utilizadas para a construção do pau-a-pique,
tentando, assim, supor qual seria a conformação original de
52- Imóveis situados na Rua Waldemar Panico,
números 131, 151 e 165.
Fotos de Mariana Horta, março de 2006.
9-
Cada braça tem 2.2 metros de
comprimento.
10-
Ver anexo do Registro de Imóveis da Rua
Waldemar Panico.
65
cada casinha açoriana. Mas também a técnica construtiva
já foi substituída. A casa 151, por exemplo, já apresenta as
paredes da fachada em tijolos. Outro fato a considerar é que
as entradas laterais, hoje presentes nos imóveis 131 e 165,
com certeza já são modificações da segunda metade do século
XIX.
53- Estudos sobre a casa de pau a pique, taipa de
mão ou taipa de sopapo.
1a- Sequência de desenhos de Silvio Cordeiro, sobre a
estrutura do pau a pique e da configuração da casa de
caboclo
2a- Modelo de planta de casa em pau a pique, desenho de
Carlos Zibel Costa
3a- Desenho da planta da casa 165 da Rua Waldemar
Panico, de Mariana Horta, em março de 2006.
1a
2a
1b
3a
54- Série de desenhos para estudo de suposta
configuração das casas dos açorianos no início do
século XIX, localizadas na Rua Waldemar Panico.
Desenhos de Mariana Horta.
2b
1b- A configuração das casas 131, 151 e 165 no início
do século XX e ainda hoje, com pequenas alterações nas
entradas laterais.
2b- Proposta de plantas para as casas dos açorianos.
Modulação com porta e janela.
66
Ainda sobre esse primeiro eixo de ocupação, é
destaque a Igreja do Rosário e seu largo. Segundo Amélia
Trevisan, a capela, construída para os açorianos enquanto não
se erigia a matriz, havia sido construída como as casas, de
pau-a-pique e coberta com palha de indaiá, sem torre e com
um único pórtico e comportava cerca de 50 pessoas. Teria
sido esta capela, supostamente construída entre 1814 e 1818,
a primeira matriz da Freguesia de Casa Branca, edificada no
mesmo lugar onde está a atual Igreja do Rosário, em cuja
proximidade também encontrava-se o cemitério, segundo
Amélia Trevisan.
Mas, outro questionamento é que, se existissem as
24 casinhas na atual Rua Waldemar Panico, a localização da
capela no atual posicionamento da Igreja do Rosário seria
muito distante e não estaria de acordo com o descrito por
D’Alincourt, em 1818, e por Saint-Hilaire, em 1819. Segundo
eles a rua seria reta e curta, estando no seu final a pequena
capela.
Como já foi comentado, observando o desenho atual
da cidade vemos um pequeno largo onde hoje está a praça
Honório de Syllos. Qual a razão da existência desse largo?
Será que não era ali que poderia estar localizada a antiga
capela de pau-a-pique coberta de palha? E depois, com a
evolução urbana, determinou-se a nova localização onde hoje
está a Igreja do Rosário, com o cemitério onde hoje é a praça
subseqüente? De qualquer forma, naquela hipótese ou nesta,
afirmam-se questões de desenho urbano baseadas apenas em
suposições, sem terem sido feitas prospecções arqueológicas
ou mesmo que tenha sido descoberta alguma planta ou
desenho antigos.
O primeiro registro da primitiva Igreja do Rosário, já
em seu local atual, aparece em 1854, em aquarela de Miguel
Dutra11, já com torre. Portanto não era a primitiva capela de
1814. Talvez, aquela original, situada no largo da Praça Honório
de Syllos tivesse sido destruída no incêndio de 1822. O ofício
relatando tal acontecimento confirmaria essa hipótese?
Segundo Matilde Maria de Jesus12, essa primitiva capela
não tinha torre e suas paredes de pau-a-pique não tinham
pintura, eram apenas rebocadas de areia e estrume de gado e
não possuía janelas laterais, apenas duas portas.
Uma reforma ou uma nova construção para substituir
11-
Aquarela de Miguel Dutra existente
no Museu Paulista e reproduzida no trabalho de
SCACABARROZZI, p.6. Ver página 55 desta
monografia.
12-
Matilde Maria de Jesus apud
SCACABARROZZI, p.7.
67
a capela primitiva teria sido feita em torno de 1854, segundo a
aquarela de Miguel Dutra. A igreja atual foi erguida em 1914,
para comemoração do centenário da paróquia.
O interessante seria pesquisar sobre documentos
eclesiásticos referentes à implantação da primeira capela e
às reformas e construções subseqüentes. Haveria um plano
urbanístico para a conformação do largo? Existiriam esses
documentos eclesiásticos?
Retomando outra questão importante, temos que
considerar que os resquícios das construções supostamente
remanescentes das açorianas, já não seriam daquele início do
século XIX. As várias mudanças de usos e as conseqüentes
mudanças arquitetônicas caracterizariam tais construções
como documento histórico referente a outro período, da
metade do século XIX.
A Rua do Comércio teve uma vida bastante intensa no
século XIX, especialmente entre a segunda metade daquele
século e início do XX, como mostraram os relatos de Maria
Bárbara Horta Pereira13. Por isso, esse período deve ter
marcado muitas transformações nas suas características, como
sugerem os relatos: a vida dinâmica e de intensa atividade
econômica transforma as formas de ocupação do solo, o que
muitas vezes ocorreu em São Paulo, a exemplo da Avenida
Paulista, e continua ocorrendo, como na Avenida Faria Lima
e Marginal Pinheiros.
55- Mapa de 1885 desenhado por Maria Bárbara,
provavelmente segundo pesquisas e relatos de seu
pai Álvaro e de sua mãe Alice.
1-
Rua Coronel José Júlio
2-
Rua da Palha, atual 7 de Setembro
3-
Rua das Flores, atual Capitão Horta
4-
Rua do Comércio, atual Waldemar Panico
5-
Praça da Matriz
6-
Praça da Igreja do Rosário
7-
Casa de Manoel Machado Pereira e sua
mulher Maria Bárbara. Ao lado ficava o armazém.
8-
Casa de João Bento de Oliveira Horta
Fonte: PEREIRA, p.14.
56- Desenhos de Maria Bárbara.
A primeira figura corresponde ao armazém de
João Bento de Oliveira Horta, dividido em três
residências, correspondentes às atuais construções
de numeração 131, 151 e 165.
As duas figuras de baixo correspondem ao número
oito do mapa acima, lote 148 ou 154, atual 152 da
Rua Waldemar Panico, que também pertenceram a
João Bento, construção já demolida.
Fonte: PEREIRA, p.16, 17.
No ano de 1885, a cidade expande-se em direção
à estação da Estrada de Ferro Mogiana. No manuscrito de
Maria Bárbara14, há a descrição em detalhes da conformação
da cidade nesse ano, provavelmente em decorrência dos
relatos de seu pai Álvaro Machado Pereira e de sua mãe Alice
Horta Pereira.
13-
Nesta monografia, foi usado um
manuscrito inédito de 1983 como documento de
pesquisa, escrito por Maria Bárbara Horta Pereira,
filha de Álvaro Machado Pereira e Alice Horta
Pereira, descendentes do casal açoriano José da
Rosa Machado e Maria Delfina do Rosário, que
vieram para o Brasil em 1814. Todos, em algum
momento de suas vidas, moraram em Casa Branca e
esse manuscrito registra esses relatos da família.
14-
PEREIRA, p.14.
68
A casa de João Bento de Oliveira Horta15, que aparece
no mapa com a numeração 8, referida no texto de Maria
Bárbara, seria a atual casa 152, da Rua Waldemar Panico,
conforme registro do Cartório de Imóveis. A construção
do outro lado da rua, “baixa e comprida”, corresponde aos
imóveis números 131, 151 e 165, que aparecem no Registro
de Imóveis como propriedades de Álvaro Machado Pereira,
que as havia adquirido do próprio João Bento, que outrora
tivera ali um armazém.
A casa de João Bento de Oliveira Horta, atual 152,
em seu desenho, não se parece com as casinhas do outro
lado da rua, referentes ao armazém. As janelas em arco e o
terreno grande não condizem com as descrições das casinhas
açorianas. Nesse ano de 1885, 70 anos após aquelas construções
primitivas, muitas alterações já deviam ter ocorrido na outrora
Rua dos Açorianos16.
Álvaro Machado Pereira casa-se com Alice Horta
Pereira em 1909 e pouco tempo depois o Major João Bento de
Oliveira Horta encerrou as atividades em seu estabelecimento
comercial e transformou o prédio, antigo armazém, em três
residências, Rua do Comércio números 06, 08 e 10, atuais Rua
Waldemar Panico 131, 151 e 165, sendo que o casal foi morar
na maior, a 165.
Pelos relatos, a descrição das casas em 1909 é
praticamente a mesma nesse ano de 2006. São quase 100
anos de predominância das características principais dessas
construções e mesmo que não sejam as originais dos
açorianos, as próprias transformações de uso, o seu destaque
como uso comercial na Rua do Comércio e o tempo dessas
construções já justifica o seu valor como registro de uma
época, o que justificaria, mais uma vez, o seu tombamento
pelo Condephaat.
Nesta década de 1910, também é registrado por Maria
Bárbara a existência de uma fábrica de macarrão da família
Gregorini, ao lado da residência do Major João Bento, na
Rua do Comércio, além de uma farmácia do próprio Álvaro
Machado Pereira.
Sobre esta década de 1910, há também um interessante
registro da história da cidade em texto publicado na revista
“Cigarra”17, cedida por Maria Elena Horta. Tal documento trata
da visita do presidente do Estado, o senhor Altino Arantes,
15-
João Bento de Oliveira Horta é avô de
Maria Bárbara, pai de Alice Horta Pereira. Ele é
filho de Moysés de Oliveira Horta, que foi para
Casa Branca da cidade de Cabo Verde, em Minas
Gerais, cujo pai Manuel Joaquim d’Horta veio dos
Açores, da Província do Fayal, cuja capital é Horta.
“O primeiro Horta de quem tenho notícia é Manuel Joaquim
d’Horta (vindo dos Açores, da Província do Fayal, cuja capital
chama-se Horta). Encontro-o na pequenina vila de Cabo
Verde, a Oeste do Estado de Minas Gerais, próximo à divisa
com o Estado de São Paulo. Sei apenas, a seu respeito, que
foi pai de Moisés de Oliveira Horta. (Este) ao atingir a idade
adulta, casou-se com uma moça chamada Maria Antônia
do Nascimento. O casal resolveu ir para o Estado de São
Paulo (e), de fato, vamos encontrá-los, em 1832, na pequenina
cidade de Casa Branca (...)” (PEREIRA, p.6-7)
“Também de uma das ilhas dos Açores veio para o Brasil
a família de José da Rosa Machado e Maria Delfina do
Rosário. Chegaram por volta de 1816, com uma leva de
imigrantes açorianos que, vencendo as duras penas a rude
estrada do porto de Santos para o interior, fixou-se em Casa
Branca.” (PEREIRA, p.8-9)
“Ainda voltamos aos Açores. Agora estamos na ponta
noroeste da Ilha de São Jorge, onde fica a Freguesia dos
Rosais, um pequeno povoado. Ali, no caminho de baixo (...)
é onde mora a família de Francisco José Machado Pereira.
Todas as noites, após os trabalhos do dia, à porta da casa,
ele conversa com seu cunhado Manoel Inácio de Souza
Pontes. E sempre o assunto é o sonho de ambos: o Brasil, a
colônia que Portugal tem na América do Sul, e para onde
tantos amigos têm ido.” (PEREIRA, p.9-10)
16-
A denominação Rua dos Açorianos é
sugerida por Amélia Trevisan, mas não há registros
que a confirmem como nome oficial.
17-
Ver a revista em anexo.
69
por ocasião das festas de entrega de diplomas à primeira turma
de alunas que concluíram o curso da Escola Normal de Casa
Branca, em torno de 1917/1918. Descreve-se o progresso
da cidade, exaltando sua beleza, com habitações modernas
e higiênicas, ainda com destaque para sua riqueza agrícola,
especialmente a cultura do café. Fala-se ainda nas benfeitorias
nos espaços públicos: bosque, jardim, rodovia, saneamento e
a própria instalação da Escola Normal em 1912.
Concluindo toda essa discussão, salienta-se que nos
estudos realizados sobre a cidade de Casa Branca, observa-se
o grande destaque dado à ‘colonização’ açoriana e a pouca
preocupação com a migração mineira, que deixou traços
profundos na cultura do município.
Segundo Maria Aparecida Pantoja18, apontamentos
de Saint-Hilaire destacam outros dois fatos interessantes: o
crescimento do povoado de 1819 a 1823 e a semelhança de
seu plano de construção com o das aldeias de Minas. Esses
dois fatos poderiam ser explicados pela migração de mineiros
para a região, vindos de São João Del Rei e Cabo Verde.
A análise dos dados apresentados por Amélia Trevisan
e a sua confrontação com dados de relatos de famílias que
habitaram a pequena cidade no século XIX, levam-nos a
crer que criou-se um mito a respeito das casas dos açorianos,
como uma forma de exaltar um passado no qual a cidade
teria sido ‘colonizada’ por novos estrangeiros, vindos dos
Açores, apesar de já estarem presentes em suas terras aqueles
imigrantes vindos das Minas Gerais, da cidade de Cabo Verde
e São João Del Rei, sendo que a primeira também já havia
sido colonizada por imigrantes açorianos, mas com população
nascida no Brasil.
As casas dos açorianos na Rua Waldemar Panico,
se assim realmente caracterizadas, só teriam permanecido
como tal até meados da década de 1820, quando aqueles
receberam suas sesmarias e para lá se mudaram. As 24 casas
foram, então, alugadas ou vendidas e só na segunda metade
do século XIX tal rua recebe destaque urbano como a Rua
do Comércio, assumindo a função que exercia a Freguesia em
termos regionais, já que, de origem, era pouso de viajantes.
57- Desenho
das casas 131,
151 e 165 da
Rua Waldemar
Panico, segundo
descrição das
mesmas em
1910, por Maria
Bárbara.
Desenho de
Mariana Horta.
58- Desenho
das casas 131,
151 e 165 da
Rua Waldemar
Panico, segundo
descrição das
mesmas em
período anterior
a 1885, quando
eram um único
armazém.
Hipótese de
como poderia ter
sido o armazém
de João Bento de
Oliveira Horta.
Desenho de
Mariana Horta.
70
2.2.2 Hipótese 4
A partir dos estudos da historiadora Amélia Trevisan,
da observação dos mesmos relatos dos viajantes Saint-Hilaire
e D’Alincourt, dos documentos históricos apresentados em
seu trabalho, bem como novos documentos referentes às
propriedades localizadas hoje na Rua Waldemar Panico e seus
respectivos primeiros proprietários registrados em cartório
e até mesmo o manuscrito de uma família, que descreve a
sua história em Casa Branca, como a observação da própria
arquitetura e do desenho urbano, podemos tirar novas
conclusões, paradoxais com as idéias defendidas em 1979, mas
que podem abrir novos caminhos para pesquisas futuras.
A nova hipótese defendida é que as 24 casas construídas
pela Coroa portuguesa para acolher os casais de açorianos não
estariam localizadas na atual Rua Waldemar Panico, mas ao
redor da Igreja do Rosário, formando um “largo retangular”,
como afirma D’Alincourt.
O próprio relato dos viajantes sugere essa
conformação, já que, em 1818, Casa Branca constava de um
largo retangular, ornado de pequenas casas cobertas de palha
e com uma igreja no fim do mesmo largo, ou que, em 1819,
o povoado compunha-se de uma rua reta, bastante larga, mas
muito curta, e numa das extremidades, à igual distância das
duas filas laterais de casas, localizava-se uma igreja consagrada
a Nossa Senhora das Dores.
Dessa forma, propõe-se outra ocupação do espaço
59- Hipótese 4 de localização das casas dos
açorianos nos primórdios do século XIX.
As 24 casas estariam localizadas no entorno da
Praça Barão do Rio Pardo, formando um grande
largo, cada uma com 4 braças de frente (8,8 m).
A capela estaria localizada onde hoje está a Igreja
do Rosário, mas com frente para o outro lado,
sendo que nas suas costas, atual Praça Dr. Barreto,
estaria o primeiro cemitério da povoação.
18-
PANTOJA, p.30-31.
71
urbano no início do século XIX.
Como desde o final do século XVIII já havia sesmarias
nessa região sendo ocupadas e como o pouso para viajantes
que passavam pelo Caminho de Goiás, atual estrada velha para
Tambaú, acarretou o início de uma aglomeração em favor
dessa atividade comercial, acredita-se que, primordialmente,
a Rua Waldemar Panico tenha sido ocupada pelos próprios
sertanistas, seguindo essa tendência comercial dos viajantes.
Tal hipótese deve-se principalmente à observação das
características espaciais e da arquitetura. A rua em diagonal,
que rasga o desenho mais regular, em quadrículas, seria a
própria continuação do caminho para Goiás, sugerindo que
o início da aglomeração urbana tenha surgido às margens de
tal caminho, já que era preciso atender à necessidade de tais
viajantes. Essa ocupação sertanista seria mais lógica, pois, não
havendo capela naquele local próximo ao pouso, a própria
estrada, com seu movimento, seria o único foco de interesse
ao redor do qual poder-se-ia iniciar um arraial.
É importante destacar que, como a Coroa portuguesa
era responsável pela construção das habitações para os
açorianos, determinou também a construção da primeira
capela e os traçados das ruas futuras.
Tais casas, de acordo com os relatos dos viajantes,
seriam pequenas construções de taipa de sopapo, contíguas e
cobertas de sapê. Essas construções, de 1815, não tiveram a
influência da cultura açoriana em sua arquitetura, mas foram
construídas com as características da arquitetura cabocla
local, já que esses imigrantes chegaram na Freguesia quando
tais construções estavam praticamente terminadas. Também
não há relato de que eles tivessem construído suas próprias
casas, mesmo porque os açorianos permaneceram nessas
construções por apenas alguns anos e logo foram transferidos
para suas sesmarias. É claro que, posteriormente, a cultura
açoriana permaneceu no local, advinda das próprias famílias
que chegaram em 1815, como de outras famílias de origem
do mesmo arquipélago e que foram para a freguesia migrando
do sul de Minas, das cidades de Cabo Verde, e de São João
Del Rei, e que aqui se estabeleceram em meados do século
XIX, por volta do ano 1841, como a família do João Bento de
Oliveira Horta, citado anteriormente, que veio da ilha Fayal,
cuja capital é Horta, e que foi para Casa Branca em 1832.
72
Com isso, supomos que as características açorianas,
ainda presentes em algumas construções da Rua Waldemar
Panico, números 131, 151 e 165, como os gradis de madeira,
sejam resquícios de uma arquitetura de meios do século XIX,
mesmo porque a ocupação de lotes com recuos laterais data
de 1850 a 1900, segundo Nestor Goulart Reis Filho.
60- Análise dos mapas do Instituto Geológico do
Estado de São Paulo (IG).
Observando os mapas de 1905, 1907, 1930, 1938
e 1964 do município de Casa Branca, pudemos
montar um histórico da evolução urbana da cidade.
Com esses dados, tecemos comparações com o
mapa da evolução urbana proposto por Furlani e
com a primeira hipótese pessoal para a evolução
dessa cidade (p.53 e 54).
Como resultado, temos um último mapa como
proposta pessoal final da evolução urbana da cidade
de Casa Branca.
2.3 A evolução urbana de Casa Branca: nova
proposta
Mapa IG 1905
Mapa IG 1938
Mapa IG 1907
Mapa IG 1964
Mapa IG 1930
Mapa IG 1971
73
Após a pesquisa bibliográfica que permitiu a montagem
de uma proposta de evolução urbana para a cidade de Casa
Branca, principalmente a partir da localização de imóveis que
teriam atraído a expansão urbana, como a matriz, a estação de
trem e a Escola Normal, e da análise sobre o primeiro eixo
de ocupação da cidade, buscou-se em material iconográfico
a prova final para entender a conformação desse espaço
urbano.
Os mapas do Instituto Geológico do Estado de
São Paulo mostram, além do desenho das ruas, a ocupação
das quadras, mostrando em detalhe o território ocupado.
Desvantagem há no fato desses registros terem sido feitos
apenas a partir de 1905, mas, desse ano até 1964, pode-se
entender melhor o território.
Em relação à grafia, ao desenho de tais mapas,
percebe-se que até 1930 o plano urbano é apresentado com
ruas perfeitamente paralelas, num sistema ortogonal de
quadrículas, o que não corresponde à realidade. É só observar
o mapa de 2000, feito sobre base de foto aérea. Trata-se de
uma questão de método de trabalho e da tecnologia utilizada
para efetuar esses mapas ou era esse o plano original para
o desenvolvimento urbano, tal como escrito no Ofício do
Intendente Geral de Polícia ao sargento-mor de Casa Branca?
Mapa IG 1905
Mapa IG 1930
Mapa IG 1907
Mapa IG 1938
Mapa IG 1964
61- Mapa da evolução urbana de Casa Branca,
produto da análise dos mapas do Instituto
Geológico.
74
O fato é que, apesar do plano regular, claramente identificado
no mapa de 1930, esse plano não é ortogonal perfeito, como
comprova o mapa de 2000.
Comparando-se o mapa, produto da análise dos mapas
do IG, com o outro, proposto como hipótese de evolução
urbana para este trabalho de graduação (p.54), podemos
afirmar que o primeiro confirma o segundo. Há grande
semelhança entre os dois, com a diferença de que os mapas
do IG destacam quais as faces de quadra são ocupadas e quais
não são.
Foi elaborado, então, um terceiro mapa, produto
desses dois apresentados, sendo este último a proposta final
para a evolução urbana da cidade de Casa Branca, delimitando
um perímetro de atuação que caracteriza a cidade até o ano de
1932. Perímetro de interesse histórico, dentro do qual serão
propostos os conjuntos arquitetônicos a serem preservados.
É importante destacar que esse perímetro corresponde
ao atual centro da cidade, com as ruas comerciais centradas
na Coronel José Júlio, Altino Arantes, Ipiranga, Luiz Gama e
Luiz Piza, e que é nesse perímetro que os preços da terra são
os mais altos, sendo que a especulação imobiliária começa a
se fazer presente, haja vista a existência de inúmeros terrenos
vazios. Entender toda essa dinâmica é fundamental para
propor soluções eficazes que possam garantir a preservação
do patrimônio histórico, inserido nesse perímetro, e o diálogo
com suas áreas envoltórias.
62- Mapa da Evolução Urbana de Casa Branca.
Proposta final para esta monografia.
75
A compreensão do espaço urbano além desse
perímetro também é de suma importância, principalmente na
identificação de carências, o que auxiliaria na proposição de
novos usos públicos para espaços vazios e até mesmo para
imóveis de interesse como patrimônio histórico. Esse estudo
da cidade como um todo também é essencial para que se
possa planejar seu crescimento e expansão, impedindo, dessa
forma, uma aglomeração hipertrofiada nesse núcleo histórico,
ou seja, o seu inchaço, o que poderia causar uma aceleração
nas transformações ocorridas sem controle, e a sua rápida
descaracterização. Não se pretende o enrijecimento da cidade,
mas um desenvolvimento que respeite o patrimônio cultural.
Expandir a cidade para além desse perímetro é,
portanto, essencial para a sua preservação. Mas, é também
fundamental garantir o seu uso, apesar da criação de novos
eixos urbanos.
2.4 Discussão sobre Urbanismo: inserção de Casa
Branca no contexto nacional
O período em que se insere a cidade de Casa Branca,
em seus primórdios de desenvolvimento urbano, mostra-se
obscuro dentro dos estudos já realizados sobre o urbanismo
português no Brasil. Muitos dados são apresentados a
respeito da segunda metade do século XVIII, referente à
gestão do Marquês de Pombal, de 1750 a 1777, e do período
pós-independência do Brasil, principalmente no período
Republicano, a partir de 1890, mas não há uma discussão clara
sobre o urbanismo no início do século XIX, no qual inserese a intervenção portuguesa no processo de urbanização do
pouso de Casa Branca, com a criação da freguesia em 1814.
Estabeleceremos uma discussão sobre as características
desse ‘urbanismo casa-branquense’ a partir da comparação
com os estudos realizados por Nestor Goulart Reis Filho,
Murillo Marx e Roberta Delson, além de apontamentos de
Manuel Teixeira e Margarida Valla, tentando compreender o
quadro urbanístico e a morfologia daquela cidade do Nordeste
paulista.
76
A composição do quadro histórico dessa cidade e
a observação de seu desenho urbano atual já nos levaram a
várias hipóteses sobre os primórdios de seu desenvolvimento
urbano. A comparação com o quadro do urbanismo brasileiro
e a observação das características morfológicas do território e
também das características arquitetônicas, será outro caminho
para a compreensão desse espaço, inserindo-o na história do
Brasil e contribuindo para o conhecimento dessa região ao
Sul de Minas Gerais. Até o momento, a cartografia do início
do século XX, os dados referentes à implantação de edifícios
religiosos e civis no tecido urbano e a observação local foram
fontes que permitiram a constituição do mapa da evolução
urbana da cidade, dividindo-a em cinco períodos de interesse
para o presente estudo. A partir dessa cartografia, poderemos
observar os traçados e as morfologias urbanas da cidade em
suas várias fases de desenvolvimento, características ainda
legíveis espacialmente.
Sobre esta região, localizada entre o Rio Jaguari e o
Rio Pardo, conta-se que, por volta de 1682, foi Bartolomeu
Bueno da Silva o primeiro homem civilizado a percorrer a
região, onde viria a surgir o pouso de Casa Branca19. Como
primeiros registros oficiais, há referência ao arraial de Casa
Branca em 1728, citada na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo20, além dos dados apresentados no
caderno de recenseamentos de Mogi Mirim, de 1765 e 1783,
e do Mapa Geográfico da Capitania de São Paulo, realizado
entre 1791 e 1792. Além dos estudos de Lafayette de Toledo,
Afonso de E. Taunay, Saint-Hilaire, Luiz D’Alincourt e do
Visconde de Taunay21.
Recuperando o início da ocupação dessa região, que
se desenvolveu ao longo do chamado Caminho de Goiás, esta
faixa do território paulista, representada pelo antigo termo de
Mogi Mirim, conheceu uma ocupação rala e dispersa desde as
primeiras décadas do século XVIII, em função da descoberta
do ouro de Goiás. O início de seu povoamento, segundo Lucila
Brioschi22, foi quase linear, com o estabelecimento de alguns
pousos situados ao longo da estrada, ligando a cidade de São
Paulo a Vila Boa de Goiás. Famílias de paulistas ocuparam
a área e aí deitaram suas raízes, dando início à ocupação e
à história da região - viveram as conjunturas de opulência
e decadência do ouro de Goiás. Mas foi nos primórdios do
19-
Segundo Enciclopédia dos Municípios
Brasileiros, 11° volume, p.230.
20-
Vol. XXIV.
21-
Alfredo d’Escragnolle Taunay, o
Visconde de Taunay (1843-1899).
22-
BRIOSCHI, 1995, p.10.
77
século XIX que teve início um processo de adensamento
populacional, provocado por migrações de mineiros que se
estabeleceram com fazendas de gado. E no último quartel
daquele século, o café chegou às margens do Rio Pardo.
É justamente a história inicial desse povoamento
paulista e mineiro que deve ser resgatada. Na bibliografia
específica sobre a cidade de Casa Branca, há grande destaque
dado à colonização açoriana, mas há poucas considerações
sobre a população paulista que ali já residia desde o século
XVIII e a mineira chegada em meados do XIX. Na verdade,
afirma Lucila Brioschi23, na própria historiografia paulista a
história feita pelos mineiros no século XIX foi quase esquecida
e a ocupação paulista é superficialmente tratada, como
época de menor significação. Mas, é esse período anterior à
constituição da Freguesia de Nossa Senhora das Dores de
Casa Branca, em 1814, que caracteriza a ocupação espontânea
desse território, ao longo dessa rota do ouro.
No início da colonização do Brasil, nos séculos XVI e
XVII, o projeto de ocupação do novo território incluía a criação
de vilas nas Capitanias Hereditárias, poder concedido aos
donatários. Mas, apesar dessa relativa autonomia administrativa
da Colônia, não havia ainda condições para uma vida urbana:
vilas e cidades tinham papéis eminentemente administrativos.
Houve uma política urbanizadora apenas nas cidades de
interesse para a Coroa; nas demais, as iniciativas partiam
dos donatários ou da própria população. Segundo Teixeira e
Valla24, os traçados das primeiras cidades do Brasil, construídas
no século XVI sem intervenção direta do poder real, tinham
as suas raízes na tradição urbana vernácula, adequada a uma
política de ocupação do território feita lentamente pelos
donatários. A organização espacial dessas pequenas cidades era
de responsabilidade dos próprios donatários, daí resultando,
na maior parte dos casos, núcleos urbanos com traçados
irregulares, sendo ausentes preocupações de geometrização.
Mas, a partir da influência espanhola, pela união das coroas
(1580-1640), a influência do código castelhano começa a se
fazer sentir e a preocupação com a ordem formal dos espaços
urbanos torna-se mais presente.
Ao terminar o século XVII, a Colônia teria uma
população total de 300.000 habitantes25, que viviam em sua
maioria no meio rural e junto ao litoral. Essas condições
23-
BRIOSCHI, 1995, p.11.
24-
TEIXEIRA & VALLA, p.216.
25-
REIS FILHO, 1995, p.38.
78
somente se alterarão no século XVIII, em função da descoberta
do ouro. Com a descoberta de novas minas em Goiás e Mato
Grosso, o território interior, sob o domínio português, foi
estendido longamente para Oeste dos limites do Tratado de
Tordesilhas e, em cada uma dessas áreas, foram estabelecidas
vilas e sistemas regulares de controle administrativo. A
mineração induziu o reforço dos esquemas de centralização
e as iniciativas de criação de vilas foram transferidas à
administração central e as câmaras municipais tiveram seus
poderes restringidos. Dessa forma, a criação de vilas passa a
se fazer por iniciativa do governo português, através de Cartas
Régias aos governadores e uma política de urbanização mais
coerente, sendo que vilas e cidades do Brasil ficaram mais
semelhantes aos modelos portugueses. Mas a estruturação
efetiva dessa política urbanizadora somente ocorrerá durante
a administração do Marquês de Pombal26, quando fundar
vilas e cidades torna-se a forma mais eficaz de demonstrar a
soberania sobre um território e de o defender.
No século XVIII, surgem cidades, construídas em
Portugal e no Brasil, com planos regulares, concebidos segundo
traçados geométricos, a maior parte das vezes ortogonais, onde
se expressam alguns dos grandes temas do urbanismo clássico:
a cidade planejada racionalmente na sua estrutura global; a
praça como elemento central da malha urbana; e os conceitos
de planejamento e beleza urbana associados à regularidade do
traçado e à adoção de modelos arquitetônicos uniformes, aos
quais deveriam obedecer todas as construções de uma rua, de
uma praça ou mesmo de uma cidade27. É nesse contexto que
se insere a política urbanizadora de Pombal, principalmente
nas províncias do Mato Grosso, Amazônia e Grão Pará.
Sobre as normas estabelecidas nesse período na
Colônia, segundo Teixeira e Valla28, nada é referido sobre
o plano das novas vilas, presumindo-se que na maioria dos
casos o traçado existente tenha-se mantido inalterado. Este
terá sido, certamente, o caso nos aldeamentos jesuíticos, que
se regulavam por um conjunto de regras bastante preciso e
adotavam um traçado geométrico regular, não se excluindo
a hipótese de os próprios traçados jesuíticos terem estado
na origem das características regulares de fundações urbanas
portuguesas seiscentistas e setecentistas. Verifica-se, por outro
lado, uma grande semelhança entre os termos e as orientações
26-
REIS FILHO, 1995, p.39.
27-
TEIXEIRA & VALLA, p.253.
28-
TEIXEIRA & VALLA, p.255.
79
de muitas das Cartas Régias e autos de fundação desses novos
núcleos urbanos. Tal fato significa que existia um conjunto de
princípios estabelecidos que eram sistematicamente utilizados
na definição do traçado dessas novas fundações, resultado de
uma prática efetiva de urbanização e de princípios teóricos
que se desenvolviam, apesar de, em alguns casos, a realidade
construída acabar por diferir das prescrições enunciadas nesses
documentos, devido a alterações introduzidas localmente,
muitas vezes motivadas pelas particularidades do sítio e pelo
confronto com a realidade.
Ainda segundo aqueles autores29, ao longo dos séculos
XVI e XVII a adoção de traçados regulares no planejamento
de novas cidades ou na construção de novos bairros em
cidades já existentes desenvolve-se tanto em Portugal, em
Lisboa, nas ilhas da Madeira e dos Açores, bem como no
Brasil e no Oriente. Mas, do ponto de vista estritamente
formal, a dominância de edifícios singulares, e o seu papel
como ponto focal de várias perspectivas, aparecem-nos tanto
em traçados irregulares como em traçados geometrizados,
constituindo uma das principais características do urbanismo
de origem portuguesa. Em todas as situações há sempre a
preocupação de marcar e de valorizar as particularidades
topográficas e peculiares de cada lugar. A sua aparente
desordem era efetivamente regida por princípios que, embora
não codificados num conjunto explícito de regras, eram parte
de uma rica tradição urbana.
Em todos esses períodos, com maior ou menor
presença da ação reguladora da Coroa, percebe-se, pois, que
não só o Estado tomou a iniciativa de estabelecer novos
núcleos de povoamento, e nesses casos a Igreja sempre estava
presente, mas também a população estabeleceu e procurou
oficializar novos povoados, como afirma Murillo Marx30.
Um arraial, surgido espontaneamente, igualmente deveria
ser oficializado pela presença da Igreja, quando assumiria
funções administrativas. Capela curada, paróquia, catedral e
sé institucionalizariam o arraial, a freguesia, a vila e a cidade
perante a Coroa portuguesa. E tal sagração do espaço urbano
deveria seguir as normas das “Constituições da Bahia31”, que
atentam para problemas em relação a prédios e vazios urbanos,
como sua localização, utilidade e características de composição.
Segundo Murillo Marx, tais recomendações eclesiásticas se
29-
TEIXEIRA & VALLA, p.215.
30-
MARX, 1991, p.17,18.
31-
As Constituiçõens primeyras do arcebispado
da Bahia foram redigidas em 1707 e publicadas
em 1719 e referem-se tanto aos ritos eclesiásticos
como também estipulam normas para construção
e localização dos locais pios, sendo que as igrejas
deveriam ser edificadas em lugar alto, livre de
umidade e de outras construções, permitindo que as
procissões pudessem andar ao redor delas. (MARX,
1991, p.20-22)
80
tornariam condicionantes para o tecido urbano dos incipientes
estabelecimentos coloniais lusitanos, em função da lacuna e
omissão deixadas pela legislação portuguesa, já que Portugal
não criou uma legislação específica para suas colônias, mas
simplesmente transferiu sua legislação e jurisprudência. É
somente com a República que a norma temporal ganhará
pleno domínio.
Nos primórdios da colonização, a evolução usual dos
embrionários arraiais brasileiros32 advém dos patrimônios
religiosos ou das terras concedidas às capelas, terras doadas
à Igreja por proprietários de glebas vizinhas, com a intenção
de se beneficiarem com os ofícios eclesiásticos e com os
decorrentes serviços civis. É desse patrimônio que se dará o
retalhamento e a distribuição inicial do solo brasileiro.
Foi em meio às sesmarias que esses patrimônios
religiosos se constituíram, e essas mesmas terras deveriam
servir de moradia e de meio de subsistência a quem desejasse
ali morar de forma gregária. Portanto, entre o mundo rural
e o urbano desabrochavam pequenas povoações alterando
a paisagem e, lentamente, o meio social. Mas é importante
destacar que os patrimônios podiam ser religiosos ou leigos,
tendo estes últimos ganho importância e maior freqüência no
século XIX, já sob outro quadro imobiliário. Ainda segundo
Marx33, o patrimônio religioso merece atenção destacada
diante das peculiaridades do desenho urbano brasileiro. De
fato, a luta para obtenção da licença para uma capela deveria
atender à exigência do arcebispado de que ela não existisse
em lugar ermo e despovoado. Portanto, para a capela ser
oficializada, deveria haver um assentamento, que também lhe
garantiria os rendimentos necessários para a manutenção do
templo. Conseguiriam isso através da cessão, mediante foro,
de parcelas de terras para interessados em habitar junto ao
templo. Dessa forma, a criação de um patrimônio não apenas
definia o terreno da capela, de seu adro e da área a sua volta,
como determinava o retalhamento do solo ao seu redor.
Observando os desenhos propostos por Murillo
Marx34, podemos entender claramente a sua conclusão sobre
a realidade desses aldeamentos coloniais: eram constituídos
por um modesto casario situado no entorno da capela, com
um terreiro vasto e poucas ruas ou ruelas. Uma freguesia não
se distanciaria desse modelo, crescendo apenas em tamanho.
O patrimônio de uma capela se constitui por entre as
sesmarias, contribui para seu sustento, possibilita o acesso à
terra. (MARX, 1991, p.42)
A capela acolhe moradores em pequenas porções de sua
gleba, torna-se instrumento de urbanização e cria uma nova
paisagem. (MARX, 1991, p.43)
Próspero e avantajado, o lugar - certamente uma freguesia
- ascende a vila e ganha um patrimônio, agora público: o
rossio. (MARX, 1991, p.78)
32-
MARX, 1991, p.25.
33-
MARX, 1991, p.37.
34-
MARX, 1991, p.54. (Sequência de
desenhos figura 63)
81
Todos esses registros revelam e repetem o tipo de ordenação
representado pelo pequeno agrupamento de casas, pelo
predomínio de sua disposição irregular, por ruas mal
delineadas, tortuosas e inconstantes na largura, de pequenas
travessas e de terrenos desalinhados. Afirma-se ainda que uma
observação mais atenta permite perceber a pouca atenção por
parte das autoridades temporais para com o ordenamento e
aprimoramento dos povoados e mesmo freguesias, isso devido
ao fato de que a administração municipal estava sediada numa
outra aglomeração, às vezes muito distante35.
Dessa forma, Marx afirma36 que não se adotou um
padrão urbanístico a se repetir indefinidamente. E quando
foram adotados planos regulares, não se optou, a não ser
raramente, pelo xadrez, ou seja, pelo esquema de ruas
perpendiculares com uma praça principal, quadrada ou
retangular. Assim, as cidades brasileiras não apresentam um
esquema viário em grelha perfeita, mesmo quando regulares.
Em contraponto a esse período inicial da colonização
brasileira, descrita por Murillo Marx, Teixeira e Valla37 afirmam
que nas fundações setecentistas, uma praça – quadrada ou
retangular – constituía o elemento gerador da estrutura física
da cidade. Era a partir dela que se definia o traçado das ruas
e se estruturava o conjunto da malha urbana, geralmente
segundo um sistema ortogonal. Nesta praça, onde na maior
parte das vezes localizava-se o pelourinho, deviam ser também
edificados a igreja, a casa da Câmara e a cadeia. Além disso,
todos os edifícios de habitação deviam ter fachadas construídas
de acordo com o mesmo traçado. Tais características estavam
devidamente expressas nas Cartas Régias e autos de fundação
e são expressão da influência de princípios renascentistas
na concepção e traçado destas cidades. O conceito de
‘planejamento urbano’ associado à regularidade do traçado,
à nova concepção cenográfica do espaço, à valorização
do papel da fachada e à adoção de modelos arquitetônicos
uniformes, aos quais deviam obedecer todas as construções
de uma rua ou de uma praça, são alguns dos grandes temas
do urbanismo clássico, que no Brasil, segundo esses autores,
foram plenamente aplicados em Províncias como a de Mato
Grosso, Amazônia e Grão Pará e Maranhão.
Mas, é importante ressaltar que tal ordenamento
português no Brasil ocorreu a partir do século XVIII e em
Uma câmara administrará o município, o pelourinho
simbolizará sua autonomia; uma nova etapa da vida urbana
e da ordem fundiária. (MARX, 1991, p.79)
Cresce a vila e se adensa; aumenta a importância dos limites
de todo o tipo e se multiplicam as questões de alinhamento.
(MARX, 1991, p.110)
Surge o loteador, o empreendedor imobiliário que retalha
uma gleba, vende suas parcelas, passa igualmente a desenhar
a cidade. (MARX, 1991, p.111)
63- Sequência de desenhos de Murillo Marx, em seu
livro Brasil, terra de quem?
82
locais de grande interesse para a Coroa, pontos chave para
garantir a posse do território e em locais onde os jesuítas,
que seriam expulsos, tinham constituído suas missões. No
grande sertão inabitado, como o interior de São Paulo, que
aqui tratamos especificamente, muitos assentamentos surgem
como patrimônios e seguem as orientações diretas da Igreja.
Nos setecentos, também afirma Murillo Marx38, disseminamse mais exemplos de um desenho rigoroso em novas
fundações ou em outras aglomerações elevadas à categoria
de vila por razões estratégicas. Tais núcleos impressionam
pela ortogonalidade de suas ruas, pela presença de uma praça
central e por outros cuidados, como a orientação, a declividade
para o escoamento das águas, a largura das vias e dos terrenos.
Mas, ainda assim, não constituem uma quadrícula perfeita39.
O esquema de quadrícula regular, de uma praça central como
núcleo irradiador de uma grelha de ruas ortogonais, somente
aparece em fundações bem recentes de fins do século XIX e
início do XX, e também em cidades da frente pioneira do café.
Nessas aglomerações, despontam novas praças, além daquela
da matriz, especialmente a da estação ferroviária e, com a
República, a da escola pública. É também com a República,
com sua primeira Constituição, que foi permitido aos Estados
tornarem cidade toda e qualquer sede de município.
Em meados dos oitocentos, a apropriação da terra
não se dará mais pela concessão do Estado, mas pela compra
e venda40. Com a Lei das Terras41, de 1850, a terra adquire
um valor de troca e se regulamenta como mercadoria. Nesse
momento, há a necessidade do parcelamento exato do solo
e da definição precisa dos lotes, por escrito e em plantas,
detalhamento que passa a exigir outra precisão na medição
e demarcação. As solicitações de alinhamento tornam-se
corriqueiras, uma questão de desenho urbano, assumidas pela
edilidade nos seus serviços administrativos e técnicos. Com
essa nova postura, o desenho das ruas e largos vai sendo,
discretamente, modificado, tanto em cidades maiores como
menores. Daí a racionalidade do desenho que se começa a
detectar nas centenas de fundações recentes (final do XIX)
dos sertões paulistas, até então inóspitos. Essas fundações,
dos tempos da riqueza desbravadora do café, têm por trás
aquela importante e anterior mudança legal da Lei das Terras
e são caracterizadas por uma forma mais geometrizada, que
35-
Isso me parece um pouco contraditório,
ao observar o desenho da planta da cidade de Casa
Branca. Desde o segundo período da evolução
urbana, referente àquilo que teria sido constituído a
partir de 1814, o traçado urbano já demonstra uma
certa racionalidade, que talvez não seja planejada, mas
apenas siga a tradição portuguesa de ordenamento.
O traçado original, do século XVIII a 1814, segue as
descrições acima? Penso que sim. Este traçado original
segue apenas a lógica da continuidade do Caminho
de Goiás, contrapondo-se ao restante da malha, em
quadrícula paralela ao córrego Espraiado e entre
dois córregos. O que Murillo Marx descreve aplicase, portanto, ao primeiro eixo de desenvolvimento
desse núcleo urbano, no qual a capela teria ocupado
a atual praça Honório de Syllos, largo e talvez antigo
adro da igrejinha de pau-a-pique.
36-
MARX, 1991, p.60.
37-
Deve-se considerar que esses autores
tratam da política Pombalina, sob a qual foram
fundadas ou reestruturadas vilas ou cidades como
São José de Macapá (1758), Vila Nova de Mazagão
(1770), Vila Bela do Mato Grosso (1777), Vila de São
João de Parnaíba (1798), e alguns aldeamentos como
a Aldeia de São Miguel (1765), Marabitenas (1767) e
Vila Viçosa (1769).
38-
MARX, 1991, p.97.
39-
Essas características urbanas aparecem
em cidades como Salvador e Mariana.
40-
Com a Independência do Brasil, houve
uma grande indecisão, por parte do novo Estado,
quanto à questão da terra. A resolução de 17 de
julho de 1822 havia suspendido o antigo sistema
de concessão de terras, o das sesmarias, porém não
instaurou um outro que completasse a reformulação
pretendida. Essa indecisão prolongou-se até 1850
e permitiu, nesse período de indecisão, uma única
forma de obtenção da terra rural: a posse. (MARX,
1991, p.103)
83
presidirá também a expansão dos núcleos mais velhos, por
toda parte e em qualquer escala. Apoiado na rede ferroviária,
aparece então um novo tipo de traçado, mais geométrico e
atento à orientação, à forma e ao tamanho do seu módulo:
surge o lote para ser vendido. É nesse fim do século XIX
que surge o termo ‘loteamento’, que tornou-se corriqueiro
nos textos legais, e o antigo concessionário de terras deixa de
ter determinados vínculos com o patrimônio da Coroa, para
tornar-se proprietário da terra com direitos para loteá-la.
Segundo Nestor Goulart42, essas mudanças na
organização do espaço já eram observáveis nas três últimas
décadas do século XIX. Poucos anos após a instalação
das primeiras ferrovias nas regiões Sudeste e Sul do país, a
atividade urbanizadora adquiriu extraordinária intensidade.
No final dos anos 1880, as linhas alcançavam regiões novas,
de desbravamento recente, induzido pelas facilidades do novo
meio de transporte. Em alguns casos, as empresas ferroviárias
criaram subsidiárias para promover a colonização, estimulando
o avanço de pioneiros. O mais freqüente, porém, era o avanço
dos próprios pioneiros com múltiplas empresas, oferecendo
glebas rurais ou lotes em vilas e cidades, por eles mesmos
fundadas. Nessas frentes pioneiras, os traçados das cidades
apresentavam soluções urbanísticas estereotipadas, em forma
de tabuleiro de xadrez, de acordo com o sentido pragmático
das iniciativas, revelando o caráter mercantil e a urgência dos
empreendimentos. As condições topográficas eram pouco
consideradas e espaços maiores eram reservados para uma
praça de comércio em frente à estação e mais uma ou duas
nas proximidades, para atividades cívicas, sociais, culturais e
religiosas.
Roberta Marx Delson, na defesa de suas teorias
sobre um planejamento urbano abrangente aplicado no
Brasil a partir do século XVIII, antes mesmo do Marquês
de Pombal, no período chamado de joanino – D. João
V – deixa de considerar certos aspectos esclarecidos por
Murillo Marx, como a questão do desenvolvimento urbano
a partir do patrimônio religioso, não de forma aleatória, mas
considerando regras bastante claras da própria Igreja, como as
“Constituições da Bahia”. Apesar desse documento descartar
essa característica peculiar do Brasil, bem como desconsiderar
o surgimento espontâneo de assentamentos do interior, lança
41- Lei de Terras
42-
REIS FILHO, 1995, p.13.
84
algumas questões sobre o período posterior ao pombalino,
como um período de continuação de normas já estabelecidas.
Na sua defesa de um ‘planejamento urbano’43 português, não
considera o tamanho ou função dos núcleos, a única distinção
importante que destaca é entre as comunidades que receberam
um planejamento sistemático depois da sua fundação e as
que foram construídas obedecendo, desde o início, a uma
regulamentação.
Delson considera que é a partir de 1716 que a
maioria das novas comunidades construídas no sertão foram
subordinadas a um protótipo de planejamento de vilas,
promulgado nesse ano para a criação da municipalidade de
Mocha, na zona Norte do Piauí. Fisicamente, essa construção
planejada representava o compromisso de Portugal com o
Absolutismo e o Iluminismo e o xadrez da malha urbana era a
representação da imagem civilizada e europeizada que Portugal
esperava projetar no interior do Brasil. O mecanismo, pelo
qual o sertão seria subordinado à autoridade real, baseava-se na
fundação de comunidades supervisionadas pela Coroa, as quais
formariam redes integradas urbanizadas, localizadas em pontos
estratégicos do interior. As leis de planejamento, organizadas
a partir de 1716, forneciam instruções metodológicas para
a fundação das vilas, determinando que na construção de
novas vilas deveriam ser tomadas providências referentes à
localização da praça central com pelourinho, localização da
igreja, localização da Câmara, cadeia e outras construções
públicas, e demarcação dos lotes residenciais em linha reta,
de forma a garantir uma disposição ordenada e em linha reta
das moradias e garantir a uniformidade de suas fachadas,
proporcionando uma vista harmoniosa do conjunto.
Sem dúvida, segundo Delson44, o maior desafio
enfrentado pelos portugueses foi implantar os novos padrões
urbanos nas regiões de mineração do Centro e na fronteira
do extremo Oeste do país. Nesses locais, assume que os
bandeirantes e mineradores tinham tomado a iniciativa na
formação de comunidades, mas que, em geral, as ruas desses
vilarejos eram, simplesmente, as estradas que passavam
pela região, e não vias especialmente construídas. Em suas
intervenções, a Coroa era favorável à escolha judiciosa de
lugares que apresentassem claras potencialidades de evoluírem
para comunidades permanentes, além de estipular que esses
43-
Roberta Delson adota o ‘planejamento
urbano’, nesse período colonial, como a abordagem
do traçado de elementos arquitetônicos num centro
habitado, sem consideração de seu tamanho ou
função.
44-
DELSON, p.27.
85
novos centros deveriam localizar-se perto de achados recentes
de ouro. Porém, nessa ordem inicial, não se faz nenhuma
referência a um traçado urbano, dando a entender que a
preocupação primordial da Coroa era fixar os aventureiros e
não criar comunidades ordenadas.
Em meados dos setecentos45, enquanto a região de
Minas começou a assumir um caráter quase urbano, a geração
seguinte de exploradores bandeirantes penetrou para o Oeste,
em direção a Goiás e Mato Grosso. A partir de 1727, exigiuse que os administradores tomassem todas as providências
possíveis para reter a escassa população, mesmo em zonas
não produtoras de ouro. Também foram realizados censos
para identificar vazios demográficos, e as futuras povoações
teriam que se submeter às exigências de planejamento. É
através do Código de 1746 que será fundada Vila Bela, em
Mato Grosso.
A partir de 174046, os portugueses adotaram o programa
de José da Silva Pais de colonização subsidiada, para um projeto
de colonização com imigrantes açorianos com assistência
social completa. O Conselho Ultramarino considerava esses
imigrantes - cujas condições de sobrevivência nas ilhas de
origem eram dificultosas, devido ao excesso de população
– como colonos excelentes para o Brasil. Acreditavam que
os imigrantes ilhéus eram um tipo de colono mais estável
que o bandeirante, pois eram considerados, por natureza,
agricultores satisfeitos em permanecer na terra e que não
se deixariam seduzir pelas perspectivas de enriquecimento
rápido na mineração. Era através do Regimento de 1747 que
se definia o programa para cada nova comunidade criada para
famílias açorianas. As instruções sobre o projeto das cidades
eram detalhadas com maior precisão nessa legislação do que
em qualquer lei de planificação de vilas anteriores: insistiase no traçado ordenado das ruas e na uniformidade dos
elementos arquitetônicos.
Esse regimento de 1747, segundo Delson, era um
modelo de uniformidade e ordem. O planificador urbano
era instruído a traçar as ruas com não menos de 30 pés (9m)
de largura, e a demarcar uma praça quadrada de 500 palmos
(110m) de lado. O objetivo era usar ao máximo o espaço
disponível e obter uma perspectiva grandiosa. Em coerência
com essa política, a instrução referente às casas dizia que elas
45-
DELSON, p.27.
46-
DELSON, p.41.
86
deveriam ser construídas em boa ordem, deixando-se entre elas
e atrás delas um espaço demarcado, suficiente para o plantio
de pomares e hortas. No entanto, a sensatez desse arranjo
é questionável, porque o largo espaçamento das edificações
conferia um aspecto espalhado à comunidade. Essa nova
política de subsídio da imigração foi produto da mentalidade
de D. João V. Como protótipo para o povoamento de vilas, o
Regimento de 1747 complementava o modelo de Aracati, do
mesmo ano, fornecendo orientações sobre as dimensões das
novas comunidades. O planejamento de vilas tinha evoluído
para a instalação patrocinada de colonos, e daí foi apenas um
passo para o planejamento regional abrangente, que seria
aplicado amplamente na segunda metade do século XVIII, com
o incentivo do Marquês de Pombal. Não se nega a importante
atuação pombalina no aperfeiçoamento do sistema joanino,
mas, já naquele período, havia sido desenvolvido e aplicado
no Brasil um modelo de governo absolutista.
A primeira providência da Companhia Geral do Grão
Pará e Maranhão, criada pelo Marquês de Pombal em 1755,
foi a construção de São José de Macapá para colonos dos
Açores e da Ilha da Madeira, seguindo o plano de colonização
de 1747. Na colonização de Salto, em 1792, diferentemente
dos primeiros planos de colonização com açorianos, o
governo assumiria apenas a responsabilidade de fornecer
instrumentos aos colonos, em vez de dotar cada família de
unidade residencial padronizada.
64- São José de Macapá, no Amapá, 1761,
mostrando o desenho da praça dupla. (DELSON,
p.57)
65- São José de Macapá, detalhe da disposição das
habitações. (DELSON, p.58)
No final da dominação pombalina em 1777, com a
adaptação bem sucedida do modelo de planificação de vilas
padronizado a regiões geograficamente diferentes, segundo
87
Delson47, pode-se observar que no resto do século XVIII o
destaque à retilineidade e à regularização continuou, agora
estendendo-se aos centros urbanos mais antigos. Com a
Independência do Brasil, em 1822, o Império declara que o
crescimento urbano padronizado é desejável e obrigatório. A
Lei de Organização Municipal, de 1828, institui as diretrizes
para o crescimento urbano no país no século XIX e continha
instruções precisas para as Prefeituras no que se referia à
configuração urbana. Embora nem todos os núcleos tenham
se ajustado às novas normas urbanas, a orientação geral para a
regulamentação foi uma característica desse ciclo e, na opinião
da autora, a maioria dessas novas comunidades obedeceu ao
modelo predeterminado. Com isso, durante os últimos anos
do século XVIII e também muito tempo depois de instaurado
o Império, a prevalência das malhas urbanas ortogonais foi
assegurada. Os conceitos de ordem e precisão, outrora ditados
pelo programa disciplinar para o interior sem lei, agora se
haviam tornado padrões de bom gosto para toda a nação.
Diante de tantas considerações sobre legislações
que teriam regido a organização do Brasil Colônia, e sobre
a defesa de Roberta Marx Delson sobre a generalização da
aplicação dessas normas, é importante considerar, novamente,
os apontamentos de Murillo Marx, sob o seu ponto de vista
da união Igreja-Estado, característica peculiar brasileira. Este
autor não nega a existência das ‘Ordenações do Reino’, com
certas adaptações necessárias à sua aplicação no novo território
conquistado, mas, diante de sua pouca caracterização e de um
processo não regulamentado para sua aplicação, as normas
canônicas impõem-se sobre certas situações.
Segundo Murillo Marx48, é importante destacar que a
norma espiritual e a temporal coexistiram por muito tempo no
Brasil, mas as determinações eclesiásticas impuseram-se com
facilidade nos primeiros tempos. Isto por lacuna e omissão da
legislação específica portuguesa e pelo fato das orientações
canônicas já atentarem para problemas que podiam interessar
aos prédios e aos vazios urbanos, como sua localização,
utilidade e características de composição. Acobertadas pela
Coroa, tais constituições eclesiásticas ganharam força de lei
e terminaram por influir mais do que a lei nos incipientes
estabelecimentos coloniais lusitanos, posto que, diante de
normas civis muito gerais, as normas espirituais impuseram-
47-
DELSON, p.91.
48-
MARX, 2003, p.17, 18.
88
se com maior eficácia e rigor.
Os instrumentos legais lusitanos, as ‘Ordenações
do Reino’, em sua generalidade e por sua transposição
praticamente automática de um continente a outro, chegaram
para um cumprimento relativo, já que Portugal nunca criou
um corpo de legislação especial para suas colônias. Em
conseqüência, segundo Murillo Marx, eram os costumes
que prevaleciam nas fundações brasileiras de todo o período
colonial. Transpostas pela metrópole e completadas de forma
casuística, as leis lusas foram muito lentamente se adaptando
para fazer frente a uma nova realidade. As mais gerais, como
as relativas à questão fundiária, incidiram sem detalhamento
sobre o quadro urbanístico; as mais específicas avançaram
timidamente com as posturas municipais. É somente com a
Independência que as normas civis substituíram as constituições
do arcebispado da Bahia e, com a República, ganharam seu
pleno domínio e mundanização. Mas, conflitos e atritos entre
as duas jurisdições existiram por séculos em toda a colônia
portuguesa na América49. Tais conflitos refletem a união da
Igreja com o Estado e se fizeram sentir na paisagem urbana
brasileira, já que as duas jurisdições conviviam e presidiam
a vida na colônia: uma com as “Constituições da Bahia”, de
1707, e a outra com as “Ordenações Filipinas”, ordenações
do reino que foram aplicadas à colônia de forma casuística e
que atravessaram a Independência, a República e o século XX.
Casuisticamente também se sucederam os acertos entre Sua
Majestade e Roma, o que resultou na seqüência de dezenove
concórdias. Afirma Marx que é a partir dessa incerteza e
indefinição da relação entre a Igreja e o Estado que se pode
compreender as incertas e mal definidas linhas das povoações
brasileiras, como também analisar a sua inquestionável lógica
própria.
Apesar da permanência das normas eclesiásticas sobre
o país e de seu peso sobre a vida do povo, a Independência
trouxe mudanças significativas também para os aspectos
citadinos50. Toda a laicização ocorrida na Europa, durante o
século das luzes, não podia deixar de se fazer sentir, assim
como os reflexos da Revolução Francesa, particularmente no
mundo português, tão atingido pela transferência da corte
para o Brasil. Mas será somente com a República que a união
Igreja e Estado se desfaz e a secularização, iniciada no século
49-
MARX, 2003, p.21.
50-
MARX, 2003, p.34.
89
XVIII, se completa.
A aplicação das leis do reino em sua colônia, segundo
Murillo Marx, ajudou a transposição de um certo tipo de desenho
urbano através do Atlântico. O costume e a tradição, alicerçados
na Idade Média, estiveram presentes nessa reprodução de
características urbanísticas tão forte e seguidamente repetidas.
Porém, um quadro legal atinente a questões básicas e em que
se amparava o arcabouço normativo da cidade foi a causa
mais direta desse fenômeno, não esquecendo os reflexos da
união Igreja-Estado. As ‘Ordenações do Reino’, transpostas
para realidade tão diversa, sofreram apenas as adaptações
mais óbvias e inevitáveis, não sendo claro o plano citadino
em geral, seu arruamento e, sobretudo, o parcelamento do
solo. Das ‘Ordenações do Reino’ e das medidas de caráter
casuístico baixadas através de cartas régias, alvarás e decretos,
passou-se diretamente à Legislação Imperial, sem se conhecer
por séculos um código especial para a colônia. As primeiras
ordenações foram feitas por Afonso V, no século XV, e
aproveitadas para as Ordenações Manuelinas, em 1521, que,
revisadas, consubstanciaram as Ordenações Filipinas, que
tiveram grande duração e alcance, permanecendo no Brasil até
o século XX, apesar da Carta de Lei de 1828, que delegava às
Câmaras vários assuntos referentes à gestão do chão público.
Essas cartas régias e decretos visavam, normalmente, a não
mais do que uma cidade em foco e, nesta, alguns aspectos
gerais. As instruções não chegavam a expressar detalhes que
pudessem constranger a iniciativa da autoridade colonial,
regional ou local, nem que, hoje, nos pudessem ajudar a
compreender melhor o desenho urbano resultante. Diante de
tais características, o direito civil reconhecia o canônico que,
ao contrário, possuía determinações claras e categóricas sobre
temas da paisagem urbana.
Portanto, afirma Marx51, no caso português, não
havendo uma planta oficial a ser repetida, mas procedimentos
tácitos e costumeiros a serem aplicados, o processo de
gerenciamento, não sendo rigoroso, levou a um grau de opções
maior, de soluções mais variadas que no caso espanhol. Mas no
fim dos setecentos, já aparecem mais questões de arruamento,
abertura de novas vias, pendências com proprietários e
recursos para obras públicas e reparos. Também ocorrem
mudanças em novas fundações dos fins dos setecentos: o
51-
MARX, 2003, p.49.
90
cuidado temporal torna-se mais explicitado e o espiritual, se
não ausente, parece mais subordinado, ou menos imperioso,
conseqüência do período pombalino. Mas, é somente nos
primeiros anos republicanos que se intensificam as normas
de cunho predominantemente técnico, como as que dizem
respeito ao gabarito das ruas ou ao seu calçamento.
Mesmo assim, podemos observar semelhanças entre
cidade distintas. Dessa forma, podemos analisar algumas
plantas de cidades do século XVIII, com planos claros de
intervenção, e outras, situadas no Caminho de Goiás, como
Franca e Casa Branca, sem ainda uma documentação que
prove a intervenção física intencional da Coroa.
Há uma semelhança entre esses desenhos de São João
da Parnaíba, Franca e Casa Branca, respectivamente com
origens em 1798, 1804 e 1814. Há uma clara regularidade
do traçado, em quadrículas não ortogonais, paralelas,
primordialmente, ao rio, nos casos de São João e Casa Branca,
daí a primeira impressão de irregularidade do traçado. Estas
duas também se organizam em torno de uma praça que contém
a igreja. Em Casa Branca e Franca, o surgimento da cidade
como prolongamento do Caminho de Goiás, formando um
desenho inicial irregular em diagonal, contrasta com o restante
do desenho, em quadrículas regulares não ortogonais, com
crescimento em direção à estação da Estrada de Ferro.
66- Vila de São João de Parnaíba, desenho de 1798.
(TEIXEIRA & VALLA, p.266)
67- Planta da cidade de Franca mostrando o núcleo
urbano original e a extensão da cidade em direção à
estação da Estrada de Ferro Mogiana (Almanaque
de Franca, 1912, p.215).
68- Planta da cidade de Casa Branca, desenho de
1932 (IG).
Outra característica, segundo Teixeira e Valla52, é que
nessas fundações uma praça constituía o elemento gerador
da estrutura física da cidade. Era a partir dela que se definia o
52-
TEIXEIRA & VALLA, p.255.
91
traçado das ruas e se estruturava o conjunto da malha urbana,
segundo um sistema ortogonal, em alguns casos. Nesta praça,
onde, na maior parte das vezes, localizava-se o pelourinho,
deveriam ser também edificados a igreja, a casa da Câmara e
a cadeia. Além disso, todos os edifícios deveriam ter fachadas
construídas de acordo com o mesmo traçado, normas que
estariam bem descritas nas cartas régias e autos de fundação
desses núcleos, como a Nova Vila Viçosa, de 1769 e a Nova
Vila Alcobaça, de 1774. A cidade setecentista é, assim, uma
cidade regular, com uma estrutura de base geométrica,
racionalmente planejada na sua estrutura global. Também
nesse período, diferentemente de períodos anteriores, o
processo de crescimento já não ocorre através da construção
de sucessivas malhas urbanas, cada uma delas com as suas
características morfológicas próprias, que se iam adicionando
sucessivamente, mas a expansão da sua estrutura urbana
original passa a ser feita segundo regras que nela já estão
implícitas.
Todo esse panorama sobre a urbanização e o urbanismo
no Brasil, da Colônia até a Proclamação da República, lança
luzes e dúvidas sobre as características que teriam incidido
sobre a cidade de Casa Branca. As teorias sobre esse assunto
iniciam-se com os estudos de Nestor Goulart Reis Filho, em
1968, e são aprimorados junto ao Laboratório de Estudos
sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação (LAP), estudos
publicados em 1995. Em 1979, Roberta Marx Delson lança
novas questões, que só serão publicadas no Brasil em 1997.
Abordando a questão do parcelamento do solo brasileiro
e as conseqüências da união Igreja-Estado, Murillo Marx
enriquecerá esses estudos no Brasil com os trabalhos da década
de 1980. Os três autores levantam questões importantíssimas
sobre os processos de surgimento dos núcleos urbanos
no Brasil e das formas de controle desses espaços, mas,
ao observar um caso específico, de uma cidade do interior
paulista, nunca antes mencionada em tais estudos, a análise de
sua conformação e morfologia se torna complexa e duvidosa:
as respostas não são reveladas facilmente.
Uma dúvida que me coloco é sobre as várias formas
de surgimento da aglomeração urbana no Brasil. Nos seus
primórdios de colonização, havia no Brasil um sistema de
cessão de sesmarias pelo capitão donatário, que havia recebido
69- Nova Vila Viçosa, 1769. (TEIXEIRA &
VALLA, p.277)
70- Nova Vila de Alcobaça na Capitania de Porto
Seguro, 1774. (TEIXEIRA & VALLA, p.279)
92
uma capitania hereditária da Coroa, sendo que o donatário
também poderia fundar vilas. Depois, nos setecentos, a
Coroa passa a determinar a fundação ou a reformulação de
vilas e cidades em locais que lhe eram de interesse, através
de Cartas Régias direcionadas diretamente aos governadores
das Províncias. Mas, em todo o período colonial, houve
também a fundação espontânea de assentamentos, nos locais
mais distantes do sertão brasileiro. Aglomerações surgidas
ao longo de caminhos, a partir de pousos, ou em torno de
alguma atividade específica, como a mineração. Há também
o surgimento incentivado pelos próprios sesmeiros, que
doavam terras à Igreja, constituindo o patrimônio religioso,
do qual ocorreria o retalhamento da terra. Mas, se analisarmos
o caso de Casa Branca, mesmo que o início da aglomeração
tenha surgido em torno do Caminho de Goiás e do caminho
para Minas, em torno do pouso que atendia aos viajantes,
tendo se estabelecido ali uma atividade comercial, precisamos
considerar que aquelas terras não estavam devolutas, mas já
haviam sido doadas em sesmaria no início do século XVIII,
como mostram os censos apresentados no trabalho de Amélia
Trevisan53. Temos também que considerar que, caso seja
verídico, se perto ao pouso de Casa Branca houvesse uma
capela já em 1811, como faz referência Ganymedes José em
seu trabalho, poderia ter havido a intenção de que aquele
arraial fosse constituído como capela curada. Portanto, talvez
tivesse havido a doação de um patrimônio religioso à Igreja,
através do qual teria sido construída tal capela e distribuídas as
terras para os fogos. Mas, como ocorreu a ida do padre Godói
para a fazenda Cocais, em 1807, e como este teria solicitado
a sua própria sesmaria, com a intenção de ali constituir novo
povoamento, devido à proximidade de ambos os lugares,
não haveria perante o bispo de São Paulo, responsável pela
região, necessidade de haver duas capelas na região de Casa
Branca, desativando aquela outra do pouso, deixando apenas
a de Santana, em Cocais. Havia também uma intenção política
em sagrar apenas a capela de Cocais, já que para isso uma
população deveria estar sendo constituída e o padre Godói,
então, beneficiar-se-ia com a distribuição de suas próprias
terras, sendo que os posseiros deveriam, então, mediante
foro, pagar tributos à capela. Essa análise não chega a
conclusões, mas é importante estabelecer essas questões para
53-
Ver página 32 desta monografia.
93
que entendamos que Casa Branca pode ter tido um processo
de urbanização bastante característico no Brasil, e que esse
processo, associado ao patrimônio, poderia ter continuado
independentemente das intenções da Coroa em acelerar
o processo de constituição da freguesia para ali instalar os
açorianos. Com a capela curada, independentemente de
qualquer outra intenção da Coroa, poderia haver a elevação
do arraial a freguesia, se ali fosse também construída uma
matriz, haja vista a evolução vinculada ao poder da Igreja.
Dentre as várias análises, pesquisas e pontos de
vista, podemos afirmar que houve no Brasil várias formas e
mecanismos para instaurar ou oficializar núcleos urbanos. Ao
mesmo tempo em que no século XVIII, com a descoberta de
ouro no Brasil, inicia-se uma ação mais regulamentadora da
Coroa, com a criação de inúmeras vilas em pontos estratégicos
para a dominação do território, a ação espiritual ainda se fazia
presente, haja vista que a relação Igreja-Estado persistirá
até a República. Enquanto as Ordenações do Reino sofriam
adaptações e novos regulamentos surgiam para solucionar
problemas urbanísticos específicos, locais e isolados, a Igreja
fazia-se presente onde a Coroa não tinha interesses específicos.
Muitas aglomerações urbanas surgem de patrimônios
religiosos ou de aglomerações espontâneas oficializadas pela
presença de um membro religioso. Mesmo com o maior rigor
legislativo, efetivado no período pombalino, o poder da Igreja
católica será refletido nos tecidos urbanos coloniais, seguindo
as Constituições da Bahia. Mas, devemos considerar também
que, mesmo cidades que não sofreram nenhuma intervenção
direta da Coroa, durante o período colonial, poderão ter
passado por remodelações urbanísticas durante o período
cafeeiro, assumindo feições de uma ação regulamentadora
mais presente, seguindo uma morfologia mais regular. Com
isso, propõe-se que cada período da evolução urbana de Casa
Branca seja analisado à luz desses conceitos apresentados,
numa tentativa de identificar o porquê de suas características
morfológicas, vinculadas às várias etapas da urbanização desse
território.
94
2.4.1 Primeiro eixo da evolução urbana de Casa
Branca
Século XVIII a 1814
O arraial de Casa Branca teria seguido as características
de desenvolvimento das primeiras aglomerações do Brasil
Colônia? Já foi posto que houve na região duas aglomerações,
uma próxima ao pouso, na beira do Caminho de Goiás, outra
na Fazenda Cocais.
No ano de 1765, o sítio de Casa Branca aparece com
2 fogos e 16 moradores e no novo censo realizado em 178354,
já consta um novo morador, João de França, 41 anos, casado
com Maria Almeida, e com seis filhos: Vicente, Manuel,
Ana, Joana, João e Luís. E no ano de 1790, um aventureiro
chamado Bento Dias Garcia se estabeleceu em uma gleba não
muito distante do caminho e como nas terras havia muitos
coqueiros, a fazenda ficou conhecida por Cocais. Suas divisas
iam desde a lagoa seca Olhos d’Água até o córrego Piçarrão.
Havia ainda na região alguns sesmeiros55.
É certo que ainda nesse século XVIII a região não
se constituiria com feições urbanas. Haveria, provavelmente,
apenas o pouso para os viajantes e esses fogos referidos.
Mas, deste último quarto de século até meados da segunda
década do XIX, novos viajantes paulistas ali se fixariam com
suas famílias, como mostram os dados do censo de 1814.
Outro fato relevante é a citação de Ganymedes José56 sobre a
presença de uma capela no pouso, ainda em 1811. Segundo o
autor, nesse ano de 1811 já havia em Casa Branca um posto
de comércio que tinha a vantagem de estar localizado à beira
do Caminho de Goiás. Acrescente-se o fato de ali também
ter sido construída uma capela de pau-a-pique e coberta de
sapé, apesar de naquele núcleo não morar nenhum padre que
pudesse celebrar os ofícios eclesiásticos. Esse relato fornece
um dado importantíssimo, haja vista que as citações de
Amélia Trevisan não consideram tal povoamento, ela apenas
refere-se à capela construída pelo padre Godói em Cocais, a
capela dedicada a Santana, e que só posteriormente, com o
alvará para criação da freguesia, teria sido erigida a capelinha
no povoado de Casa Branca para atender às necessidades dos
açorianos. Mas, há grande probabilidade da capela citada por
Ganymedes ter existido antes da oficialização do arraial como
século XVIII a 1814
Segundo Nestor Goulart Reis Filho (1970, p.21) nesse
início do século XIX, o quadro urbano colonial era
constituído por ruas de aspecto uniforme, com casas
térreas e sobrados construídos sobre o alinhamento
das vias públicas e sobre os limites laterais dos
terrenos. A rua era delimitada pelas construções e
não havia jardins. Nas construções mais simples, as
técnica utilizadas eram o pau-a-pique, o adobe ou
a taipa de pilão. A cobertura formava-se por um
telhado em duas águas, sem o uso de calhas.
71- Foto da Estrada de Casa Branca a Tambaú,
março de 2006. Foto de Mariana Horta.
54-
TREVISAN, p.34.
55-
JOSÉ, p. 16.
56-
Ganymedes José, em prefácio de seu
livro Uma Vez, Casa Branca... , de 1973, relata que,
junto com colegas da Escola de Comércio de Casa
Branca, fazia pesquisas sobre a cidade e, portanto,
tinha em mãos “caixas e caixas com importantíssimo
material informativo sobre a história de Casa Branca!”. Foi
com esse material que elaborou o romance citado,
sem considerações científicas, mas seguindo esses
documentos preciosos e considerando relatos dos
moradores locais.
95
freguesia. Devemos considerar os apontamentos de Murillo
Marx e Nestor Goulart e os dados censitários apresentados
por Amélia Trevisan.
Observando o desenho urbano, podemos supor que
o núcleo inicial da cidade de Casa Branca tenha-se formado
pela confluência entre o caminho para Goiás, trecho referente
à antiga Rua do Comércio, e o caminho para Minas, trecho
referente à Rua dos Mineiros, como sugere o mapa de
177257. Dessa ocupação incipiente, espontânea, decorrente
da instalação de um pouso de viajantes à beira do Caminho
de Goiás, resultaria o desenho irregular. Mas, mesmo nessa
suposta aleatoriedade, percebe-se a presença de um desenho
característico da normatização eclesiástica: o largo, referente à
atual praça Honório de Syllos.
Nesses primórdios de urbanização, portanto, a iniciativa
foi decorrência da ação desbravadora dos bandeirantes e
foram os próprios viajantes que ali se fixaram. As ruas desse
núcleo eram, portanto, apenas a continuação das estradas que
ali passavam, mas a presença de uma capela seria necessária
para a oficialização da comunidade, daí o largo e a sugestiva
existência do templo já em 1811.
Levanta-se também a hipótese de que os próprios
proprietários de terras da região tivessem doado um patrimônio
para a constituição de um núcleo, pois não havia terras
devolutas nesse sertão. Dessa forma, o surgimento do pouso
e a constituição de um patrimônio teriam sido concomitantes,
com a posterior ocupação pelos fogos, que aparecem nos
censos acima citados. Mesmo que tal ocupação tenha ocorrido
entre a segunda metade do século XVIII e início do XIX,
em período em que já estariam consolidadas as diretrizes de
regulamentação das intervenções urbanísticas da Coroa, não
havia nessa região, até então, um interesse específico para a
intervenção, apesar da descoberta de ouro nas cabeceiras do
Rio Pardo, ocorrendo, pois, o seu desenvolvimento como
decorrência dos interesses da própria população, seguindo,
portanto, um desenvolvimento semelhante ao descrito por
Murillo Marx.
Segundo Murillo Marx58, se o poder temporal não
estabelecesse um plano para uma povoação qualquer, um
de seus elementos obrigatórios – capela curada, matriz,
catedral e sé – era somente autorizado se sua localização e
72- Foto da Rua Waldemar Panico, trecho com
calçamento de pedras não aparadas, março de 2006.
73- Foto da Rua Waldemar Panico vista da Praça
Honório de Syllos, março de 2006.
57-
Ver página 24 desta monografia.
58-
MARX, 2003, p.111.
96
terreno preenchessem certas exigências estabelecidas pelas
constituições do arcebispado. Da Bahia vinham para toda
parte, e também ao planalto sulista distante e de difícil acesso,
as normas para localizar a igreja matriz do lugar, bem como
todas as outras capelas e igrejas. Todas obedeceram a tais
determinações e, cada uma e todas em conjunto, desenharam,
mais do que qualquer autoridade civil ou militar, os contornos
da paisagem urbana das cidades brasileiras desses primeiros
tempos. Daí, serem os adros quase as únicas praças e as ruas,
espaços que ligavam um prédio importante a outro, quase
sempre de uma igreja a outra.
74- Foto da Rua Waldemar Panico vista da Praça
Honório de Syllos, março de 2006.
75- Foto da Praça Honório de Syllos, março de
2006.
76- Foto da Praça Honório de Syllos e da Rua
Mestre Araújo, março de 2006.
78- Foto da Rua Mestre Araújo em direção à Praça
Barão do Rio Pardo, março de 2006.
77- Foto da Rua Mestre Araújo em direção à Praça
Honório de Syllos, março de 2006.
97
2.4.2 Segundo eixo da evolução urbana de Casa
Branca
De 1814 a 1841
O processo espontâneo de desenvolvimento, que,
provavelmente, seguiria os caminhos decorrentes de uma
presença religiosa, já com a capela de 1811 construída,
não deixou de ser regido por normas canônicas, mas teve
incorporadas as características da colonização açoriana
dirigida.
Como afirmou Murillo Marx, uma ação mais presente
da Coroa portuguesa não significava a subordinação total
dos interesses eclesiásticos. Por muito tempo, as normas
presentes nas Constituições da Bahia preencheram as lacunas
das Ordenações do Reino. Nesse trecho urbano, podemos
supor que coexistiram os interesses da Igreja e o Regimento
de 1747, através do qual se definia o programa para cada nova
comunidade açoriana. Apesar de não haver registro de um
plano desenhado especificamente para esse assentamento,
através desse Regimento há clara intenção de ordenamento
desse novo traçado urbano. O desenho regular, não ortogonal,
mas em quadrículas regulares, faz-se presente.
O núcleo açoriano estrutura-se ao redor de um grande
largo, onde deveriam ser localizados a matriz, o pelourinho e o
cemitério e em torno do qual seriam construídas as casas para
os açorianos e os edifícios para a representação civil, como
a Casa de Câmara e a cadeia. É em torno dessa praça que
deveria, então, ser estruturado o núcleo. Tal caracterização
aproxima-se bastante das descrições feitas por Teixeira e Valla,
em relação às fundações dirigidas pela Coroa: a urbanização
em torno de uma praça.
79- Foto do entorno da Praça Barão do Rio Pardo,
março de 2006.
De 1814 a 1841
Na primeira metade do século XIX, a presença da
Missão Francesa na Corte e a fundação da Academia
de Belas Artes favoreceram o emprego de construções
mais refinadas. Surge um novo tipo de residência, a
casa de porão alto, que representava uma transição
entre os velhos sobrados e as casas térreas. Possuíam
o mesmo tipo de implantação no lote do período
colonial. A inovações aparecem com a implantação
de platibandas, que substituíram os velhos beirais
por condutores ou calhas, e também na utilização do
vidro, simples ou colorido, sobretudo nas bandeiras
das portas e janelas, em lugar das gelosias. As
fachadas são marcadas por pilastras e sobre estas, na
platibanda, são colocados vasos de louça. Aparece
também o telhado de quatro águas, muitas vezes sem
a platibanda. Nessa época, multiplicavam-se as ruas
calçadas e apareciam os primeiros passeios junto
às casas, e também surge o jardim público. (REIS
FILHO, 1970, p.33)
80- Foto do entorno da Praça Barão do Rio Pardo,
março de 2006.
98
83- Fotos do entorno da Praça Barão do Rio Pardo,
março de 2006.
81- Fotos do entorno da Praça Dr. Barreto, março
de 2006.
82- Foto da Praça Barão do Rio Pardo e da escola
Ribião Júnior, março de 2006.
84- Foto da Igreja do Rosário, de seu largo e da
escola Ribião Júnior ao fundo, março de 2006.
99
2.4.3 Terceiro eixo da evolução urbana de Casa
Branca
De 1841 a 1878
Como a construção da matriz ainda não fora iniciada,
existindo apenas uma capela no local original determinado
para esse fim, onde hoje é o Largo do Rosário, determinouse, em 1841, um novo terreno para sua construção. Com isso,
a freguesia foi elevada a vila e a ocupação do território seguiu
em direção à matriz, tendo o povoamento sido impulsionado
pela migração mineira. O traçado urbano segue paralelo aos
córregos Espraiado e Pingo, em continuação ao traçado
do período açoriano anterior, supondo-se que houvesse,
realmente, um plano que regulamentasse, através de um
conjunto de normas, o crescimento urbano da comunidade
açoriana, como já sugeria o ofício do Intendente Geral da
Capitania de São Paulo ao sargento-mor de Casa Branca, em
181859. Mas, é somente a partir da década de 1870, com o auge
do café na região, que a urbanização toma impulso e é ocupado
o entorno da igreja matriz, como sugerem os casarões ainda
presentes no local e nas proximidades.
É a partir dessa segunda metade do século XIX que
os alinhamentos das ruas tornam-se mais precisos, de acordo
com a postura do Conselho Geral da Província de São Paulo,
de 1830, sobre a criação de um arruador, a ser nomeado pela
Câmara, que tinha o cargo de alinhar todas as ruas. Com isso, o
alinhamento ganhará papel crucial ao longo do século XIX.
De 1841 a 1878
Na segunda metade do século XIX, as cidades e as
residências são dotadas de serviços de água e esgoto
e surgem as casas urbanas com novos esquemas de
implantação, afastadas dos vizinhos e com jardins
laterais, mas com as construções ainda mantendo
o alinhamento com a via pública. Normalmente, o
recuo era apenas de um dos lados; do outro, quando
existia, reduzia-se ao mínimo. Ao mesmo tempo, a
arquitetura mantinha o esquema da casa de porão
alto, transferindo, porém, a entrada para a fachada
lateral. O contato da arquitetura com os jardins
laterais, dificultado pela altura das construções, era
resolvido pela presença de varandas, protegidas
com gradis de ferro, às quais se chegava por meio
de caprichosas escadas. Modificam-se também
as técnicas construtivas. As casas passam a ser
construídas de tijolos e cobertas com telha tipo
Marselha, com beirais ornados com lambrequins. Mais
para o final do século XIX surgem os afastamentos
das construções em relação às vias públicas, o recuo
frontal. As construções passam a ocupar o centro do
lote. Aparecem também as venezianas. Desaparece,
portanto, a uniformidade dos esquemas das
residências, que foi o traço marcante da fase colonial.
(REIS FILHO, 1970, p.43)
85- Foto da Rua Doutor Menezes.
59-
.
Ver página 36 desta monografia.
100
86- Igreja Matriz Nossa Senhora das Dores.
Fonte: Site da Câmara Municipal de Casa Branca,
sem data, autor desconhecido.
89- O entorno da Praça Barão de Mogi Guaçu,
março de 2006.
87- Igreja Matriz Nossa Senhora das Dores e seu
largo, março de 2006.
89- O entorno da Praça Barão de Mogi Guaçu e
antiga Escola Normal ao fundo, março de 2006.
88- O entorno da Praça Barão de Mogi Guaçu e o
prédio Basilone, março de 2006.
90- Rua Coronel José Júlio e o prédio Basilone,
março de 2006
101
2.4.4 Quarto eixo da evolução urbana de Casa
Branca
De 1878 a 1881
É instaurada, em 1878, a estação da Estrada de
Ferro Mogiana em Casa Branca e o cemitério assume nova
localização em 1881. Nesse curto espaço de tempo, o desenho
urbano atinge o auge de seu desenvolvimento longitudinal,
seguindo do jardim da igreja matriz até a estação. A feição
morfológica da cidade assume, de uma vez por todas, um
caráter claramente ordenado, não mais em torno de praças
com funções religiosas, mas em favor de uma modernização
associada à ferrovia e de uma praça estruturada para o comércio,
facilitado e incentivado pelo novo meio de transporte. Tornase presente o desenho do tabuleiro de xadrez, pela própria
facilidade e agilidade da delimitação dos lotes.
Foi nesse período que muitas cidades já existentes
tiveram os seus traçados urbanos remodelados em função da
ação de empresas associadas às ferrovias, com o intuito de
promover a colonização. Em Casa Branca, talvez não tenha
ocorrido a remodelação do traçado original da freguesia, já
ordenado, mas tenha havido a intenção de ortogonalizar o
crescimento subseqüente, sendo perceptível a sua maior
regularidade.
91- A Rua Coronel José Júlio (Rua da Estação) e a
Praça Rui Barbosa ao fundo, março de 2006.
De 1878 a 1881
92- Foto da Estação da Estrada de Ferro Mogiana
em Casa Branca, Praça Rui Barbosa, março de 2006.
93- O entorno da Praça Rui Barbosa, março de
2006.
102
2.4.5 Quinto eixo da evolução urbana de Casa
Branca
De 1881 a 1932
A ocupação urbana expande-se transversalmente até
atingir os limites naturais do dois córregos que circundam o
povoado. O traçado mantém-se regular, seguindo as diretrizes
agora estabelecidas pela República. O cemitério desloca-se
novamente e a construção da Escola Normal de Casa Branca,
no antigo cemitério, conclui o período de urbanização até esses
tempos de crise do café e início de uma nova fase política no
Brasil, a transição entre a Primeira República, a Ditadura de
Getúlio Vargas e a Nova República.
De 1881 a 1932
Nesse início do século XX, considera-se completa
a primeira etapa de libertação da arquitetura em
relação aos alinhamentos do lote, mas ainda existem
construções vinculadas às características dos
períodos anteriores, construídas sobre os limites
das vias. Entre as duas guerras mundiais, algumas
inovações serão marcantes: a preocupação de isolar
a casa em meio a um jardim, a tendência a conservar
um paralelismo rígido em relação aos limites do lote,
a transformação progressiva dos pavilhões externos
das chácaras em edículas, o desaparecimento
progressivo de hortas e pomares, com a sua redução
quase simbólica a uma jabuticabeira ou a um canteiro
de alfaces. (REIS FILHO, 1970, p.53)
94- Praça Ministro Costa Manso, 2005.
95- Santa Casa de Misericórdia, maio de 2006.
96- Escola Normal. Site Câmara Municipal, sem
data, autor desconhecido.
103
Capítulo III
Patrimônio Histórico
Diante das várias teorias sobre conservação e restauração já discutidas até o presente, é importante que a postura escolhida para abordagem do patrimônio histórico e intervenção em edificações seja coerente com as necessidades
específicas do local e do edifício, sempre respeitando o legado
histórico de tal objeto de forma a garantir a sua transmissão
para o futuro. A prática, portanto, deve basear-se numa abordagem metodológica do patrimônio a partir do conhecimento
dos elementos de valor a serem preservados, conhecimento
adquirido através da pesquisa, da documentação e do registro
das diversas fases pela qual passou o bem até o seu presente
atual.
A revisão histórica sobre a cidade de Casa Branca, no
que concerne ao seu processo de urbanização, ao urbanismo
e à arquitetura, trouxe à tona a identificação do patrimônio
histórico dessa cidade. Preservado ou não, tal patrimônio refere-se a períodos distintos da história da cidade, tanto em relação a bens imóveis arquitetônicos como ao próprio desenho
urbano ou até mesmo de elementos que compõem o espaço
público, como o calçamento. Mas é o conjunto urbano que
traz significado à necessidade de preservação. Dessa forma, é
necessário resgatar conceitos sobre a preservação de conjuntos urbanos, tendo em vista uma revisão teórica que embase
ações que possam atender às peculiaridades desse núcleo urbano.
A conformação da cidade, decorrente de uma preocupação urbanística baseada em um panorama português de
normas ou, simplesmente, tradições, aliada a uma arquitetura
bastante característica, claramente identificada no quadro da
arquitetura no Brasil, devem ser preservadas em conjunto, de
forma a garantir uma ambiência e uma correta leitura e identificação cultural da população com esses espaços tombados.
104
3.1 Patrimônio Histórico e os Conceitos de
Conservação e Restauração
O título do livro de Françoise Choay já indica os caminhos para a análise desse recente campo de estudo: A Alegoria do Patrimônio destaca como o desenvolvimento intelectual
humano foi capaz de estabelecer discursos e debates de suma
importância no campo da conservação e restauração de bens
de valor cultural, mas ao mesmo tempo mostra como ocorre
a manipulação das informações, subjugando-as a uma lógica
econômica, mercadológica.
Estabelece-se um panorama a respeito das teorias
e das práticas relacionadas ao patrimônio histórico, termo
que acaba por assumir a sua definição primária: complexo de
bens materiais ou não, direitos, ações, posse e tudo o mais que
pertença a pessoa ou empresa e seja suscetível de apreciação
econômica.
Após tanto trabalho intelectual, há uma involução
das aplicações práticas das teorias de conservação e restauro,
tendo em vista algumas intervenções realizadas no Brasil. Os
intelectuais não deixam de se beneficiar com as técnicas modernas aplicadas a essa área do conhecimento, e a eles lhes foi
permitido o acesso às informações históricas para o entendimento das obras. À maioria da população restou-lhes compor
a massa manipulada pelo marketing do turismo, que canaliza
grandes investimentos de dinheiro, acarretando uma apreciação superficial e medíocre dos monumentos históricos. A
questão cultural, num processo cognitivo e pedagógico, como
diz a autora, seria o ponto fundamental a ser discutido, já que
a preservação dos monumentos antigos é, antes de tudo, uma
mentalidade e não uma lei que se estabelece. Não obstante,
há que se destacar, primeiramente, a evolução do pensamento
humano, a fim de se tentar compreender as falhas que permitiram a manipulação econômica da cultura.
As premissas para entender esse desenvolvimento
intelectual baseiam-se na diferenciação entre monumento e
monumento histórico. O monumento apresenta uma função
antropológica, uma relação com a memória, ou seja, remete à
memória viva de certa comunidade – trata-se de um marco
para manter viva a memória. Essa memória, porém, perpe-
1-
“A expressão designa um bem
destinado ao usufruto de uma comunidade que
se ampliou a dimensões planetárias, constituído
pela acumulação contínua de uma diversidade
de objetos que se congregam por seu passado
comum: obras e obras-primas das belas artes
e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de
todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos.
Em nossa sociedade errante, constantemente
transformada pela mobilidade e ubiqüidade de seu
presente, ‘patrimônio histórico’ tornou-se uma das
palavras-chave da tribo midiática. Ela remete a uma
instituição e a uma mentalidade.” (CHOAY, p.11)
2-
Patrimônio. Definido pelo Dicionário
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
3-
“O sentido original do termo é o do
latim monumentum, que por sua vez deriva de monere
(advertir, lembrar), aquilo que traz à lembrança
alguma coisa. A natureza afetiva de seu propósito
é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma
informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma
memória viva. Nesse sentido primeiro, chamarse-á monumento tudo o que for edificado por
uma comunidade de indivíduos para rememorar
acontecimentos, sacrifícios, ritos ou crenças”.
(CHOAY, p.17-18)
4-
“O monumento histórico é uma
invenção, bem datada, do Ocidente. (...) A noção
não pode ser dissociada de um contexto mental
e de uma visão de mundo. (...) o monumento
histórico não é, desde o princípio, desejado e criado
como tal; ele é constituído a posteriori pelos olhares
convergentes do historiador e do amante da arte,
que o selecionam na massa dos edifícios existentes,
dentre os quais os monumentos representam
apenas uma pequena parte”. (CHOAY, p.25)
105
tua por entre as gerações ou para cada geração existe algo a
ser lembrado? Talvez neste questionamento esteja a perda do
entendimento do sentido do monumento – a quem pertence
essa memória? Com a perda do entendimento do monumento
como signo, este passa a adquirir função como sinal: há uma
substituição do ideal da memória pelo ideal da beleza. Essa
perda do valor de memória também é justificada pelas memórias artificiais, como a imprensa, a pintura ou a fotografia.
Dessa forma, o monumento comemorativo vai sendo substituído pelo monumento histórico como exaltação da técnica e
da beleza construtiva de uma época e não como rememoração
de feitos da história.
Os monumentos históricos, por sua vez, como invenção ocidental, têm sua conceituação baseada nos estudos
das ruínas antigas de Roma. Estudos dirigidos pelo clero dos
séculos VIII ao XII acarretaram, muitas vezes, uma conservação destruidora, tanto em termos conceituais, uma vez que
as artes pagãs passam a ser interpretadas segundo os conhecimentos cristãos, como em termos práticos, por haver a exploração econômica dos mármores e das outras preciosidades
das construções antigas, que passam a ser utilizadas nas novas
edificações. Estes dois problemas apresentados podem ser relacionados às dificuldades encontradas para haver a apropriação de uma cultura existente ou à necessidade de se dar uso
às antiguidades. Acreditava-se que a alteridade de uma cultura
estranha não poderia ser assumida. Na verdade, uma questão
que se pode colocar é: Por que uma cultura precisa ser assumida? Por estar sendo transformada em produto de consumo?
Pode-se supor, contudo, que a cultura no século XII fosse
um meio de unir a qualidade artística à doutrinação dos fiéis
católicos, por isso a necessidade de a arte ser assumida, além
de justificar o interesse dos clérigos letrados e interessados
pela arte.
Hoje talvez possamos estabelecer outra diferenciação:
entre monumento histórico e patrimônio histórico. O monumento histórico é uma invenção do Ocidente, que atribui a
determinado objeto ou construção um valor cultural vinculado à memória de certa comunidade, valores estes não associados simplesmente a feitos históricos, mas à técnica e à
estética de determinado período. O patrimônio histórico, em
sua essência, é o conjunto de lembranças através das quais um
5-
Signo. “Ling. Entidade constituída pela
combinação de um conceito, denominado significado,
e uma imagem acústica, denominada significante. [A
imagem acústica de um signo lingüístico não é
a palavra falada (ou seja, o som material), mas a
impressão psíquica deste som, segundo Saussure”.
(Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira)
6-
Sinal. “V. símbolo. Aquilo que, por um
princípio de analogia, representa ou substitui outra
coisa. Aquilo que, por sua forma ou sua natureza
evoca, representa ou substitui, num determinado
contexto, algo abstrato ou ausente. Aquilo que tem
valor evocativo, mágico ou místico. Objeto material
que, por convenção arbitrária, representa ou designa
uma realidade complexa”. (Dicionário Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira)
106
povo se identifica; é o conjunto dos produtos culturais de uma
sociedade, podendo ser chamado, de uma forma mais abrangente, como patrimônio cultural. Essa nova conceituação
abrange, hoje, tanto bens imóveis e móveis como também os
bens intangíveis, extrapolando, dessa forma, a conceituação
de monumento histórico. Além disso, entretanto, a apropriação desse termo pelo mundo capitalista também o vincula a
questões econômicas e mercadológicas, assumindo, portanto,
o termo ‘patrimônio’ a figuração de um bem com valor econômico. Consideramos importante discutir essa nova conceituação do patrimônio cultural, como uma forma de controlar
essas investidas capitalistas e reafirmar a sua essencialidade,
o seu valor de memória, direito de todo cidadão. É preciso
reafirmar o patrimônio cultural como um bem que propicie
saber e prazer, posto à disposição de todos, diferenciando-o
de produtos culturais, fabricados, empacotados e distribuídos
para serem consumidos.
Analisando a evolução do pensamento a respeito da
apreciação da obra concreta e da conceituação da conservação do monumento histórico, ainda no século XV havia o que
foi chamado por Choay de “efeito Petrarca”, segundo o qual
as obras que não pertenciam à Antiguidade eram relegadas às
trevas. Conseqüência de um entendimento literário e filológico da história de Roma; uma apreciação não visual, que não
conseguia relacionar-se diretamente com a obra em análise. É
o chamado por Choay de “efeito Brunelleschi”, que introduzirá a análise do universo formal da arte clássica, permitindo
um diálogo entre artistas e humanistas, sendo que o passado
passa a ser revelado pela produção material das civilizações. É
também nesse contexto que surgem os antiquários, responsáveis pela elaboração dos primeiros ‘inventários’ sobre bens de
interesse cultural, quando há a necessidade de tornar visível o
passado. Seguindo essa evolução, segundo Choay, constata-se
que a arte contribui com os próprios meios para transmitir
o espírito dos povos e das civilizações, apostando no deleite como um dos valores inerentes ao monumento histórico.
A partir de então, esboça-se uma nova filosofia da representação, com conseqüências para o modo de conservação das
antiguidades: a fruição da arte não é ‘mediatizável’, ela exige
a presença real de seu objeto. Com isso, começa-se a esboçar
também a nova forma de conservação: a conservação real,
7-
Essas discussões pessoais baseiam-se
nos apontamentos de Choay. A seguinte frase
caracteriza muito bem tal processo de produção do
patrimônio cultural: “Nosso patrimônio deve ser
vendido e promovido com os mesmos argumentos
e as mesmas técnicas que fizeram o sucesso dos
parques de diversões”. Discurso do Ministro do
Turismo francês em 1986, secundado por um
de seus colaboradores: “Passar do centro antigo
como pretexto ao centro antigo como produto”.
(CHOAY, p.211)
107
não bastando gravuras ilustradas em livros, já que houve a
constatação de que o trabalho de erudição e de inventário levado a cabo pelos antiquários não tinha quase nenhum efeito
na conservação real dos monumentos históricos.
É na França de 1789 que tem origem a conservação
real dos monumentos históricos, através de um aparelho jurídico e técnico, paralelamente aos atos de vandalismo da Revolução Francesa. “Da noite para o dia, a conservação iconográfica abstrata dos antiquários cedia lugar a uma conservação real”. O primeiro passo para essa transformação foi a
transferência dos bens do Clero e da Coroa para a nação. O
segundo, a batalha ideológica: conservar não apenas Igrejas
Medievais, mas a totalidade do patrimônio nacional, transcendendo as barreiras do tempo e do gosto.
É somente no século XX, porém, que o monumento
histórico entra em sua fase de consagração, atingindo o auge
na década de 1960, com a Carta de Veneza. De 1820 a 1960,
marca-se a evolução da teoria e prática da conservação dos
monumentos históricos nos países europeus, o desenvolvimento da arqueologia e da história da arte e as alterações de
gosto, chegando até às vanguardas de Le Corbusier. A unidade do período é dada pelos reflexos da Revolução Industrial.
Diante dos novos conflitos e das modificações inseridas pela Revolução Industrial, o monumento histórico inscreve-se sob o signo do insubstituível, frente à racionalização da
produção, da substituição da arte por produtos, da estandardização da produção humana. Mas ao mesmo tempo em que
ocorre essa valorização, as transformações dos modos de vida
e da organização espacial das sociedades urbanas tornam obsoletos os aglomerados urbanos antigos, sendo que os monumentos que neles se encontram afiguram-se como obstáculos
e entraves a serem eliminados ou destruídos para ceder lugar
aos novos modos de urbanização.
Na Carta de Atenas de 1933, que trata do urbanismo
moderno de Le Corbusier, a valorização da cidade histórica
ocorre paralela e contraditoriamente à sua desvalorização.
Afirma-se que os valores arquitetônicos serão salvaguardados
se constituírem a expressão de uma cultura anterior e se corresponderem a um interesse geral. Não deixa claro, no entanto,
quais seriam os valores que caracterizariam um edifício como
digno de ser preservado. Há, pois, a possibilidade de manipu-
8-
CHOAY, p.100.
108
lar esses valores de acordo com a conveniência de aplicação
do urbanismo moderno, o que fica evidente ao se afirmar que
não se deve preservar o elemento prejudicial ao urbanismo
moderno. Outra desvalorização do patrimônio refere-se à
destruição da ambiência dos monumentos: a arquitetura torna-se um monumento isolado. É somente em 1964, com a
Carta de Veneza, que se instaurará a Carta Internacional sobre
Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios.
Nos primórdios das discussões sobre conservação e
restauro, Ruskin e Viollet-le-Duc ensejaram discussões acirradas a respeito da conservação e restauração: termos de significação distinta que desencadearam duas vertentes principais
de teorias sobre monumentos históricos – as propostas de
Viollet-le-Duc e as críticas de Ruskin.
Viollet-le-Duc, como ativo construtor, propõe a intervenção física, a restauração; Ruskin, em termos quase sagrados,
defende a preservação e o respeito à memória do construtor
ou proprietário original. Travadas em meados do século XIX,
essas discussões, ainda hoje, não estão bem esclarecidas. Há,
no entanto, a distinção entre preservação, manutenção, reparo
e restauração, classificando-se os graus de intervenção em um
monumento. As polêmicas ressurgem a cada obra, como um
corpo vivo único que deve ser diagnosticado e estudado em
todas as suas peculiaridades.
A postura de Viollet-le-Duc é reconstruir segundo a
visão idealizada do estilo predominante. Não há um estudo
arqueológico e uma busca da verdade arquitetônica e, normalmente, faz-se a complementação da obra atendendo ao gosto
do intelectual. A polêmica instaura-se já nessa intervenção de
‘complementação’ da obra, inicialmente empregada na ‘restauração’ de esculturas. Recentemente, pensa-se que seja mais
interessante manter alguns elementos incompletos, tanto na
escultura como na arquitetura – como irá defender Camillo
Boito – mas, deve-se considerar que a arquitetura deve possuir uma estrutura estável e a garantia de seu uso. Atualmente,
considera-se que as necessárias complementações devem ser
feitas respeitando as características gerais da obra, como gabarito, material e proporção, mas este elemento novo deve
ser facilmente identificável como não original. Viollet-le-Duc
estabeleceu outra teoria, considerando que fosse feita a com-
109
plementação no mesmo estilo da obra primitiva. A doutrina e
a prática de restauração implementadas por Viollet-le-Duc resumem-se nas suas próprias palavras: “Restaurar um edifício
não é mantê-lo ou refazê-lo; é restabelecê-lo em um estado
completo que pode não ter existido nunca em um dado momento”10 e na sua concepção ideal dos monumentos históricos. Na intervenção no castelo Pierrefonds, observa-se a
invenção de várias etapas do complemento e a destruição de
vários elementos não concordantes. Apesar dessa atitude, em
seu discurso teórico, afirma que, quando houver, numa obra
a ser restaurada, características primitivas e as características
de uma primeira intervenção, é importante que as duas características sejam preservadas, se possível, ou que se preserve a
última intervenção. E diz ainda que o restaurador deve fazer
sobressair os traços dessas modificações, em vez de dissimulá-las. Ao contrário disso, em Pierrefonds foram destruídos
os ‘anexos’ da construção, numa tentativa de ‘limpar’ o estilo
predominante e escolhido pelo intelectual.
Um ponto concordante de sua teoria é a respeito da
necessidade de mudança de função do edifício, em decorrência do progresso. Segundo ele, não se pode negligenciar o lado
prático da arquitetura para se encerrar totalmente no papel
de restaurador de antigas disposições fora de uso. Assumir a
mudança de uso não é ceder às necessidades do presente, mas
compreender que o melhor meio para conservar um edifício
é encontrar para ele uma destinação. A esse respeito também
escreveu Ítalo Calvino11. Claro que, se a restauração não for
feita seguindo uma norma e garantindo a manutenção das características culturais da obra, mesmo com uma nova função,
não se tratará de restauração, mas de uma simples reforma.
Em contraposição, Ruskin funda o anti-scrape movement,
instaurando, de forma radical, sua crítica contra a restauração12. Talvez a visão de destruição viesse das obras que estavam sendo restauradas na época, completadas quase que aleatoriamente. A associação dos estudos arqueológicos à arquitetura beneficiou as obras de restauro, garantindo sua maior
fidelidade às características originais.
Apesar de seu tom radical, considerou que a restauração viesse a ser uma necessidade, mas com uma ressalva:
esta deve ser feita honradamente, não através de mentiras. A
9-
“Mas, se for o caso de refazer, em
estado novo, porções do monumento das quais
não resta traço algum, seja por necessidades de
construção, seja para completar uma obra mutilada,
então o arquiteto encarregado da restauração deve
imbuir-se bem do estilo próprio ao monumento
cuja restauração lhe é confiada”. (Viollet-le-Duc,
Restauração, p.53)
10-
Viollet-le-Duc, Restauração, p.29.
11-
“Mas foi inútil a minha viagem para
visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel
e imutável para facilitar a memorização, Zora
definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo
mundo” (CALVINO, p.20)
12-
“Sobre a conservação da arquitetura
que possuímos, o verdadeiro sentido da palavra
restauração (...) significa a destruição mais
completa que um edifício pode sofrer, destruição
da qual não se poderá salvar a menor parcela,
destruição acompanhada de uma falsa descrição do
monumento destruído. Restaurar o que foi belo em
arquitetura é impossível, tanto quanto ressuscitar os
mortos” (RUSKIN, p.256).
110
conservação continua, porém, a ser a sua grande defesa. A necessidade da restauração consistiria em descuidar dos edifícios
para que eles tivessem que sofrer essa intervenção. Portanto,
se houver cuidado com os edifícios, não haverá necessidade
de restaurá-los. Trata-se, justamente, da visão atual de conservação, manutenção, reparo e restauro. Para tanto, as casas, a
sua arquitetura sagrada, deveriam ser construídas solidamente, com os melhores materiais, de forma a durarem décadas.
Mesmo que aparecessem sinais de deterioração, seriam sinais
da verdadeira glória do edifício, o sinal da idade, prova da sua
durabilidade e de que a memória do proprietário estaria sendo preservada e que um legado estaria sendo deixado para as
gerações futuras.
Ainda hoje, a conservação deve ser vista como prioridade, e a restauração deve ser feita em casos em que a percepção da importância de um monumento seja feita tardiamente.
Portanto, o estudo das questões culturais de uma sociedade
deve ser incentivado. O valor cultural deve permitir que obras
sejam conservadas constantemente, possibilitando seu uso no
cotidiano, como integrante da vida urbana. Esta conservação
ou restauração não deve, no entanto, impedir o desenvolvimento e modificação do espaço urbano de acordo com as necessidades da sociedade, mas sim integrar-se a ela. Não deve,
tampouco, configurar um cenário de fachadas; deve, mesmo
assumindo novos usos, continuar interagindo com o seu entorno.
Ainda no debate sobre a restauração, para além de
Ruskin e Viollet-le-Duc, Camillo Boito extrai o melhor de
cada autor antecessor e elabora uma síntese sutil. A Ruskin
ele deve sua concepção da conservação dos monumentos baseada na noção de autenticidade; com Viollet-le-Duc, postula
a prioridade do presente em relação ao passado e afirma a
legitimidade da restauração.
Todas essas discussões são muito pertinentes, pois são
a essência do desenvolvimento dos conceitos atuais de conservação e restauro. Depois da sua compreensão, é chegada a
hora da confrontação do cenário prático da aplicação dessas
teorias: o cenário da indústria cultural.
A partir da década de 1960, ocorre um aumento quantitativo do culto do patrimônio cultural e a globalização dos
valores e das referências ocidentais, expansão simbolizada
111
pela atuação da UNESCO13 a partir de 1972, responsável
pela proclamação da universalidade do sistema ocidental de
pensamento e de valores quanto ao tema da conservação e
restauração. Com essa intenção de ‘democratização do saber’
e erradicação das diferenças, o desenvolvimento da sociedade do lazer encontra sua capitalização no ‘turismo cultural’.
Mas há muito que ser discutido a respeito da globalização dos
conceitos europeus e dos seus efeitos sobre a observação dos
monumentos históricos.
Primeiramente, há a necessidade de se discutir como
incorporar modelos teóricos estrangeiros que possam identificar nas obras de um país os valores a serem preservados.
Deve-se considerar que o significado atribuído a uma certa
obra advém da cultura da nação em que está inserida. Por
isso há necessidade de valorização da cultura local em contraposição à simples aceitação não antropofágica dos modelos estrangeiros. Talvez a dominação dos conceitos europeus
explique as dificuldades encontradas por alguns países para
compreender e aceitar regras de preservação patrimonial. Há,
portanto, clara necessidade de discutir a autenticidade dos valores culturais, daquilo que uma nação deve reconhecer como
valor a ser preservado. Acredita-se que deva ser preservado
não só o estilo de determinada época, mas aquilo que a população considera como parte de sua memória e essencial para o
reconhecimento do espaço, ou seja, aquilo que permite a sua
identificação com o espaço com o qual ele convive.
O descaso com essa valorização da memória de um
povo em geral, visando a uma identidade cultural universal,
reflete-se na valorização, unicamente, de cidades que possuam
algum interesse turístico, por isso questionamos: Qual o valor
de um patrimônio preservado tão-somente para o turismo? E
o caso das cidades que não possuem tal interesse ou tal público? Essa população não teria direito à memória?
Com o turismo cultural, há a possibilidade de a cultura
perder seu caráter de realização pessoal, tornando-se empresa
e, logo, indústria. Por sua vez, os monumentos e o patrimônio
histórico adquirem dupla função: obras que propiciam saber
e lazer, postas à disposição de todos, mas também produtos
culturais, fabricados, empacotados e distribuídos para serem
consumidos. Ocorre uma metamorfose do seu valor de uso e
apreciação em valor econômico. O turismo cultural, em fun-
13-
Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura.
112
ção do aumento dos lucros, incumbe-se de explorar os monumentos por todos os meios, a fim de multiplicar indefinidamente o número de visitantes.
Com essa busca incansável pelo maior lucro, os métodos de conservação e restauro acabam sendo prejudicados.
Estabelece-se um antagonismo entre dois sistemas de valores
e dois estilos de conservação. Numa valorização da apreciação
cultural pura, estão aqueles que seguem as teorias de Boito e
Giovannoni. Perseguindo a rentabilidade, estão aqueles que
praticam métodos já condenados no século XIX. São estes
últimos os que mais produzem na sua sociedade contemporânea, sob o marketing da ‘valorização patrimonial’, não tanto em
seu sentido de valorização cultural, mas econômica.
Como dito no início da discussão, todos os princípios,
regras e preceitos, devidamente argumentados e refinados
nos últimos duzentos anos, pareciam estar plenamente estabelecidos e aceitos pela sociedade e pelos intelectuais, mas o
mercado dominou a atuação no campo estudado, e todo o
desenvolvimento intelectual de séculos subjugou-se aos interesses econômicos. Busca-se a valorização rentável acima de
qualquer teoria, de qualquer especialização ou de qualquer valor de identidade cultural.
3.2 Preservação de Conjuntos Urbanos
As discussões a respeito da preservação de conjuntos urbanos iniciam-se com as transformações advindas da
Revolução Industrial, já no século XIX, e com as obras de
Haussmann, em Paris. Segundo Choay14, Haussmann destruiu
malhas urbanas inteiras em nome da higiene, do trânsito e da
estética. Há que se considerar, porém, que naquela época, a
maioria daqueles que defendiam os monumentos do passado
também concordavam sobre a necessidade de uma modernização radical das cidades antigas e de sua malha urbana. Assim, o sentido da preservação de conjuntos urbanos ocorreu
na contramão do desenvolvimento do urbanismo moderno.
Apesar da contemplação e exaltação dos encantos e belezas
antigas, ainda não havia o entendimento da cidade como um
14-
CHOAY, p.175.
113
patrimônio específico que pudesse ser conservado da mesma forma que um monumento histórico. Contudo, a noção
de patrimônio urbano histórico, acompanhada de um projeto
de conservação, surge na própria época de Haussmann, mas
na Inglaterra, com Ruskin, seguido por Camillo Sitte e por
Giovannoni, considerados os fundadores da nova disciplina,
à qual Cerda dá o nome de urbanismo.
Devido a fatores culturais, esses conceitos só serão
absorvidos no século XX e, mesmo entre a II Guerra Mundial
e a década de 1980, houve pouquíssimos historiadores que
trabalharam com a questão do espaço urbano. Esse retardamento da compreensão do espaço urbano como valor histórico também advém das dificuldades no estudo das cidades,
devido à sua escala, à sua complexidade e à falta de cadastros e
documentos cartográficos, que impediam o entendimento dos
modos de produção e de transformação desses espaços. Hoje,
no entanto, segundo Choay15, assiste-se a um florescimento
de trabalhos sobre a morfologia das cidades pré-industriais e
das aglomerações da era industrial.
Ruskin, segundo Choay16, desperta a consciência sobre a cidade antiga e sobre as intervenções que lesam as suas
estruturas ou a sua malha urbana, exatamente no momento
das grandes obras de Paris (1860), mas não o faz de forma explícita. A sua defesa não é a da conservação de cidades e conjuntos históricos: combate apenas pela vida e sobrevivência
da cidade ocidental pré-industrial, num sentido apaixonado
e moralista. Para ele, as cidades antigas devem ser habitadas
como no passado e são a garantia da identidade humana: quer
viver a cidade histórica no presente, conservando a sua malha,
que é a essência da cidade, constituída pela arquitetura doméstica, extremamente valorizada por esse intelectual.
Na obra do arquiteto e historiador Camillo Sitte (18431903), segundo Choay17, a cidade pré-industrial aparece como
um objeto pertencente ao passado, e a historicidade do processo de urbanização, que transforma a cidade contemporânea, é assumida em toda a sua extensão e positividade. Dessa
forma, a cidade antiga, tornada obsoleta pelo desenvolvimento da sociedade industrial, não deixa de ser reconhecida como
figura histórica. As idéias de Sitte18 originam-se da constatação da feiúra da cidade contemporânea, ou da sua carência
de qualidade estética, frente à beleza das disposições espa-
15-
CHOAY, p.177.
16-
CHOAY, p.180.
17-
CHOAY, p.182.
18-
As idéias de Camillo Sitte foram
desenvolvidas no livro Der Städtebau nach seinen
künstlerischen Grundsätzen, de 1889.
114
ciais das cidades antigas. Mas defendem a análise racional dos
grandes sistemas arquitetônicos do passado como um meio
através do qual possamos descobrir princípios imutáveis que
nos auxiliem na elaboração de um novo sistema para as novas
condições históricas. Assim, tanto Sitte como Viollet-le-Duc
propõem procurar os caminhos de uma criação contemporânea que corresponda às exigências originais de uma civilização avassalada por uma completa transformação técnica,
econômica e social. Ambos não militaram pela preservação de
centros antigos, apenas manifestaram a preocupação de salvar
as velhas cidades da destruição completa.
O italiano G. Giovannoni (1873-1943), arquiteto, restaurador, historiador da arte, engenheiro e urbanista, é o primeiro a nomear o ‘patrimônio urbano’, que adquire sentido
e valor não tanto como objeto autônomo de uma disciplina
própria, mas como elemento e parte de uma doutrina original
da urbanização19. Das análises morfológicas estabelece uma
doutrina de conservação, a Carta Del Restauro Italiana de 1931,
sempre considerando a cidade como organismo estético e cinético: atribui simultaneamente um valor de uso e um valor
museal aos conjuntos urbanos antigos, integrando-os numa
concepção geral da organização do território. Dessa forma, os
núcleos antigos podem recuperar uma atualidade que lhes havia sido negada por Viollet-le-Duc e Sitte. Atualidade de usos,
desde que neles não se implantem atividades incompatíveis
com sua morfologia.
Para a cidade histórica, considerada monumento e tecido vivo, Giovannoni estabelece, então, três grandes princípios:
1- Todo fragmento urbano deve ser integrado num plano
diretor local, regional e territorial, que simboliza sua relação
com a vida presente.
2- O conceito de monumento histórico não pode designar
um edifício isolado, separado do contexto das construções no
qual se insere, pois o entorno do monumento mantém com
ele uma relação essencial.
3- Os conjuntos urbanos antigos requerem procedimentos de
preservação e restauração análogos aos que foram definidos
por Camillo Boito para os monumentos. Através dos conceitos de autenticidade, hierarquia de intervenções e estilo de
restauração, Boito (1835-1914) estabeleceu os fundamentos
19-
CHOAY, p.194.
115
críticos da restauração como disciplina, baseados em estudos
de Ruskin e Viollet. Em primeiro lugar, assumida a necessidade da restauração, esta não deve, em nenhuma hipótese, correr
o risco de ser passada por original. É imperioso que se possa
identificar a inautenticidade da parte restaurada. Propõe também três tipos de intervenção nos monumentos, de acordo
com a sua idade e estilo: para os monumentos da Antigüidade,
uma restauração arqueológica; para os monumentos góticos,
uma restauração pitoresca, que se concentre no esqueleto;
para os monumentos clássicos e barrocos, uma restauração
arquitetônica que leve em conta os edifícios em sua totalidade.
Transpostos para as dimensões do fragmento ou do núcleo
urbano, eles têm por objetivo essencial respeitar sua escala
e sua morfologia e preservar as relações originais que neles
ligaram unidades parcelares e vias de trânsito. Também não se
podem excluir os trabalhos de recomposição, de reintegração,
de desobstrução. Admite-se, portanto, uma margem de intervenção limitada pelo respeito ao ambiente, assim, tornam-se
lícitas, recomendáveis ou mesmo necessárias, a reconstituição,
desde que não seja enganosa, e sobretudo determinadas modalidades de demolição.
A teoria de Giovannoni antecipa, de forma simultaneamente mais simples e mais complexa, as diversas políticas
das ‘áreas protegidas’ que foram desenvolvidas e aplicadas na
Europa a partir de 1960. Contém, igualmente, segundo Choay20, seus paradoxos e dificuldades.
De acordo com a Carta de Veneza, de 1964, definese monumento histórico não mais somente como a criação
arquitetônica isolada, mas compreende também o sítio urbano ou rural. Os então chamados sítios monumentais devem
ser objeto de cuidados especiais que visem a salvaguardar sua
integridade e assegurar seu saneamento, sua manutenção e
valorização. Sobre eles incidem os mesmos critérios de conservação e restauração elaborados para as obras isoladas, que
visam a salvaguardar tanto a obra de arte quanto o testemunho histórico.
A conservação de monumentos deve ser entendida
como uma manutenção permanente e é sempre favorecida
pela utilidade do monumento. A adaptação de usos é, portanto, desejável, mas não deve alterar a disposição ou a decoração
dos edifícios. A conservação de um monumento também im-
20-
CHOAY, p.203.
116
plica a preservação do entorno, de tal forma que o esquema
tradicional seja conservado e toda construção nova ou toda
intervenção que possa alterar as relações de volume e de cores
seja proibida.
A restauração, pelo contrário, deve ter caráter excepcional e fundamenta-se no respeito ao material original e aos
documentos autênticos. Essa intervenção termina onde começa a hipótese, e todo trabalho complementar, reconhecido
como indispensável por razões estéticas ou técnicas, destacarse-á da composição arquitetônica e deverá ostentar a marca
dos tempos atuais. Será sempre precedida e acompanhada
de estudos arqueológicos e históricos do monumento, sendo
permitido o emprego de todas as técnicas modernas de conservação e construção, desde que as tradicionais se revelem
inadequadas. Além disso, as diversas fases necessárias para a
edificação do monumento devem ser respeitadas de acordo
com seus valores, que não devem ser julgados somente pelo
autor do projeto.
Por último, todo trabalho de conservação ou restauração será sempre acompanhado da elaboração de uma documentação precisa sob a forma de relatórios analíticos e críticos, documentação que deve ser depositada nos arquivos de
um órgão público e posta à disposição de pesquisadores.
A Carta de Washington21, de 1986 e 1987, vai complementar a Carta de Veneza. Ela define os princípios e os
objetivos, os métodos e os instrumentos de ação apropriados
a salvaguardar a qualidade das cidades históricas, a favorecer
a harmonia da vida individual e social e a perpetuar o conjunto de bens que, mesmo modestos, constituem a memória da
humanidade. Entende-se por salvaguarda das cidades históricas as medidas necessárias à sua proteção, à sua conservação
e restauração, bem como a seu desenvolvimento coerente e
à sua adaptação harmoniosa à vida contemporânea. Para ser
eficaz, a salvaguarda das cidades e bairros históricos deve ser
parte essencial de uma política coerente de desenvolvimento
econômico e social e ser considerada no planejamento físico territorial e nos planos urbanos em todos os seus níveis.
É também essencial e indispensável a participação e o comprometimento dos habitantes da cidade. Não se deve jamais
esquecer que a salvaguarda das cidades e bairros históricos
diz respeito primeiramente a seus habitantes. Como última
21-
Carta Internacional para Salvaguarda
das Cidades Históricas. ICOMOS – Conselho
Internacional de Monumentos e Sítios. Esta carta
diz respeito mais precisamente às cidades grandes
ou pequenas e aos centros ou bairros históricos
com seu entorno natural ou construído, que,
além de sua condição de documento histórico,
exprimem valores próprios das civilizações urbanas
tradicionais.
117
recomendação, as intervenções em um bairro ou em uma cidade histórica devem realizar-se com prudência, sensibilidade,
método e rigor. Dever-se-ia evitar o dogmatismo, mas levar
em consideração os problemas específicos de cada caso particular.
No Brasil, é a Carta de Petrópolis22 que estabelece
diretrizes para a conservação de cidades ou bairros históricos. Como destaque, apresenta a defesa da polifuncionalidade
como uma característica do sítio urbano histórico. Diante disso, a sua preservação não deve ocorrer à custa da exclusividade de usos, nem mesmo daqueles ditos culturais, devendo,
necessariamente, abrigar os universos de trabalho e do cotidiano, onde se manifestam as verdadeiras expressões de uma
sociedade heterogênea e plural. Guardando essa heterogeneidade, deve a moradia construir-se na função primordial do
espaço edificado, haja vista a flagrante carência habitacional
brasileira. Desta forma, especial atenção deve ser dada à permanência no sítio histórico urbano das populações residentes
e das atividades tradicionais, desde que compatíveis com a sua
ambiência.
3.3 Os Órgãos de Preservação no Brasil
Deve-se entender a formação da mentalidade brasileira, a respeito dos conceitos de preservação, inserida num
contexto internacional do pós I Guerra Mundial. Há a necessidade de reconstrução dos países, mas também a manutenção e fortalecimento das culturas nacionais. O urbanismo
moderno surge como a opção do novo; a preservação, como
a manutenção dos bens culturais e a valorização da história e
da identidade de um povo em determinada época.
No Brasil, os conceitos de preservação são formulados e oficializados no Decreto Lei n° 25, de 1937, que cria o
IPHAN, antigo SPHAN. Desde o início da criação desse órgão, as intervenções em patrimônios históricos são polêmicas,
baseadas em opiniões pessoais isoladas e não em um conjunto
de normas que balizassem as intervenções. Em alguns casos,
chega-se ao ponto de “(...)restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momen-
22-
A Carta de Petrópolis, de 1987,
é resultado do 1° Seminário Brasileiro para
Preservação e Revitalização de Centros Históricos.
118
to”23. Na verdade, até hoje, muitas intervenções de restauro
apresentam-se equivocadas.
Respeitar a autenticidade do patrimônio, diferenciar o
novo do original, permitir a reversibilidade das intervenções,
assegurar usos compatíveis com o espaço preservado e garantir a sua ambiência são premissas para o restauro. São os
bons exemplos da prática da restauração que serão capazes de
disseminar pela sociedade os verdadeiros valores de respeito
ao patrimônio histórico. Não se trata apenas de uma conscientização a respeito da necessidade da preservação de bens
de valor histórico e artístico, mas da conscientização de que
é preciso ter cuidado com aquilo que se insere visualmente
no meio urbano, mais especificamente, com a identificação
da sociedade com o espaço que a rodeia, tanto em relação ao
velho quanto ao novo. O velho nos faz retornar às lembranças
de uma época remota, valorizando a existência dos antepassados; o novo cria a identidade do povo com a época que
estão vivendo, o presente e a sua produção. Surge a dúvida:
a sociedade atual terá o que preservar? É preciso, realmente, questionar todos esses conceitos da identidade, para que a
preservação não se restrinja apenas ao passado, estendendose aos questionamentos de nosso legado para o futuro.
Há necessidade de os órgãos públicos, voltados à preservação, apresentarem-se mais atuantes no meio social atual.
Ao contrário, escondem-se, refugiam-se, isentam-se das críticas à atualidade e dificultam o acesso aos documentos do
passado. Se “um país sem passado não tem futuro”, é preciso
avaliarmos a atuação desses órgãos. Se a educação no Brasil
fosse prioridade para os governos, entendida como a única
forma de assegurar o real desenvolvimento do país, talvez os
caminhos a serem perseguidos para a valorização do patrimônio cultural fossem menos tortuosos. Na Itália, quanto valor
se dá à educação e à aproximação das crianças aos bens culturais! Quanto ao Brasil, não é a sua história recente, nos seus
quinhentos anos, que lhe tira o mérito de atuar na valorização
da cultura. Não se valoriza a cultura porque não existe cultura
de uma minoria, sendo esta a única detentora do conhecimento e dos meios para produzi-lo. A cultura de um país organiza-se em âmbito nacional, em termos de nação, e a nação é
constituída de todo o seu povo.
A fase heróica do Serviço do Patrimônio Histórico e
23-
Viollet-le-Duc, Restauração, p.29.
119
Artístico Nacional, SPHAN, tratada por Maria Cecília Londres Fonseca24, caracteriza-se pelo único período em que houve uma forte busca de uma identidade ideológica dentro de
um órgão desse nível. Mesmo que na prática possa haver muita crítica com relação às formas com que se deram os processos de tombamento de bens culturais, foi muito importante a
conceituação inicial, talvez até mesmo para que se possa rever
o processo conceitual e avaliar o porquê da situação atual,
de descaso por parte do governo e de uma falta de unidade
intelectual.
Foi no auge das discussões intelectuais no Brasil, na
década de vinte, que os modernistas levantaram o debate sobre o patrimônio nacional. Enquanto nas artes propunha-se a
produção de uma identidade nacional, a partir da antropofagia
e de uma arte genuinamente brasileira, na arquitetura, a princípio, era o ecletismo que vigorava. Gregori Warchavishick,
por exemplo, para aprovar o projeto da primeira casa modernista, em 1928, teve que desenhar ornamentos neoclássicos
na fachada, mas não os construiu com a desculpa de falta de
dinheiro, isso para burlar a imposição desse estilo pela Prefeitura. Portanto, havia um impasse entre a produção de uma
identidade nova, através de uma revolução artística, e a valorização de um passado recente. A figura do maior modernista
brasileiro, Mário de Andrade, expressa muito bem essa aparente contradição. Na sua atuação artística e também frente ao
Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo (1930),
expressava uma produção inovadora através de uma visão
crítica do Brasil europeizado e da necessidade de valorização
dos traços primitivos da nossa cultura, assim como a defesa
da educação. Para ele, o reconhecimento de uma identidade
nacional viria dos estudos das raízes populares.
É justamente através do Modernismo, invocando a
realidade nacional, que vai ocorrer a sua identificação com
o patrimônio na figura da arquitetura colonial e do Barroco.
Há uma integração entre modernidade e tradição. O Barroco
de Minas Gerais é percebido como a primeira manifestação
cultural tipicamente brasileira, possuindo, portanto, a origem
da cultura brasileira. Essa relação baseia-se também na leitura
produzida pelos arquitetos modernistas, que viam afinidades
entre os princípios construtivos do período colonial e os princípios da arquitetura moderna brasileira. Há, portanto, uma
24-
FONSECA, Maria Cecília Londres. O
Patrimônio em Processo – Trajetória Política Federal de
Preservação no Brasil. Rio de Janeiro, UFRJ/Minc/
IPHAN, 1997.
120
relação de continuidade. Iniciava-se a valorização do patrimônio nacional baseada na arquitetura. Sua importância já é percebida com o tombamento de Ouro Preto ainda em 1933.
A atuação de Mario de Andrade, tratando de produção intelectual, foi excepcional, mas Fonseca aponta para a
efetivação da participação dos modernistas na produção da
identidade nacional somente no momento em que um governo tomou como a base do seu fortalecimento a produção
intelectual desses modernistas, como forma de persuasão da
população. O Estado Novo passou a ser apresentado como o
representante legítimo dos interesses da nação, recorrendo-se
às tradições culturais brasileiras para legitimá-lo. Ao mesmo
tempo em que os intelectuais modernistas adquiriam espaço,
os radicais sofriam com a censura e a repressão política, enquanto a educação da massa era reduzida a um conhecimento instrumental. A produção intelectual era controlada pelo
governo, com o objetivo de criar uma massa cultural homogênea, sem que houvesse espaço para expressões populares
isoladas. A cultura deveria representar a nação como um todo.
As conseqüências dessa negação da educação como forma de
dominar ou restringir a ação das massas podem ser percebidas hoje. A educação estadual, tendo as Universidades como
exceção, já que predominantemente elitistas, não possui valor
algum, não havendo uma política educacional séria, na qual
se fundamente o desenvolvimento do país. O grande problema, aparentemente, é a economia, não obstante é a educação
que estrutura um país. Como assegurar que os órgãos de preservação tenham prestígio e atuem com rigor conceitual se,
constituindo a cultura a base de sua atuação, o governo deixa
esta instância para segundo ou mesmo último plano? A cada
um o seu trabalho. Faz-se mister reconhecer a falha do sistema como um todo e não só a falha dos arquitetos nos casos
polêmicos de intervenções sobre o patrimônio.
É nesse contexto do Estado Novo que é criado, em
1936, o SPHAN, sob direção de Rodrigo Melo Franco de
Andrade. Apesar do autoritarismo, a produção cultural desse órgão não era vista pelo governo como um instrumento
de persuasão e não estava relacionada com os interesses de
direcionamento educacional getulista. Dessa forma, conseguiu-se manter com plena autonomia, o que também significou afastamento dos interesses populares. O indeferimento
121
do anteprojeto de Mário de Andrade expressa claramente que
as principais questões que deveriam ser excluídas da lei de
preservação seriam as aproximações com o povo. Ao contrário, Mário enfatiza essa questão e classifica a arte como
manifestação erudita e popular e defende que a aproximação
da massa aos monumentos se daria através do valor histórico
dos bens, procurando, justamente, a identidade cultural com
a população. Dentro desse pensamento, inclui-se a idéia dos
museus municipais, que valorizariam a arte reconhecida pelo
povo como de interesse para preservação da cultura. Haveria
plena participação do povo. A valorização do popular é, sem
dúvida, o traço marcante da atuação de Mário de Andrade. Infelizmente, não foi o seu ideário o que foi seguido no SPHAN
e muito menos a sua teoria educacional, na qual propunha a
coletivização do saber e não a mera instrumentalização da população. Rodrigo M. F. de Andrade concordava com Mário a
respeito de ser a educação o único meio para criar na população um sentido do patrimônio, ou seja, criar um envolvimento
da população com a sua história. Mas o SPHAN acabou deixando para outros a tarefa de educar as massas e constituiu-se
como uma instituição meramente técnica.
O projeto aceito como instrumento base do SPHAN
é Decreto-lei n° 25, de Rodrigo M. F. de Andrade, e estava voltado, basicamente, para garantir ao órgão os meios legais para sua atuação, principalmente em relação à questão
do direito à propriedade. Não havia a preocupação com uma
conceituação teórica para balizar as decisões de tombamento.
Muitas vezes, bastava a autoridade do avaliador para justificar
uma decisão, obedecendo-se a critérios pessoais. Além disso,
houve muito mais preocupação com o valor artístico dos bens
do que com o seu valor histórico, diferentemente da proposta
de Mário de Andrade. Dessa forma, a constituição do patrimônio no Brasil foi realizada a partir de uma perspectiva predominantemente estética, não havendo uma difusão clara da
justificativa do valor cultural desses bens.
Aliada a perspectiva estética a uma política educacional de não difusão do saber, o patrimônio constituiu-se como
alvo de interesse apenas dos intelectuais, havendo um nítido
afastamento das camadas mais populares, além de uma falta
de conhecimento do valor cultural da preservação dos bens
de valor histórico.
122
Em relação ao Estado de São Paulo, o órgão de preservação estadual, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São
Paulo – CONDEPHAAT –, surgirá apenas em 1968, com
suas atribuições somente confirmadas pela constituição estadual de 1989. É no início da década de 1980, porém, que
será realizado um estudo sistemático destinado a inventariar
os bens culturais do Estado, incluída a região da Mogiana,
por Gustavo Neves da Rocha Filho. Nesse estudo de 1982,
buscou-se explorar apenas as cidades fundadas até meados
do século XIX, incluída Casa Branca. Procurava-se conhecer
o acervo cultural do Estado, a fim de programar e incentivar
um inventário mais completo, tanto pelo próprio Condephaat quanto pelas comunidades locais, e promover a defesa de
alguns bens. Delimita-se a área de estudo à mancha urbana
referente ao ano de 1940, e a arquitetura é classificada pela sua
tipologia, sem considerar, no entanto, nenhuma construção
ferroviária. Faz-se também uma sugestão de edifícios que deveriam ser inventariados e tombados prioritariamente. Vinte
anos depois, alguns desses imóveis já haviam sido demolidos,
sem que se realizassem inventários sobre a cidade. O único
imóvel tombado é o Instituto de Educação Francisco Tomás
de Carvalho, de 1932, com abertura do processo de tombamento aprovada em Sessão Ordinária de 27.07.1987, Ata
n°75225. Assim também o único bem natural com processo
de tombamento aberto é a Reserva de Cocais. Outro processo
foi aberto sobre as casinhas da Rua Waldemar Panico26, ainda
que por iniciativa da própria população.
Essa descentralização da atuação pública sobre a preservação e tombamento de monumentos históricos também
atingirá os municípios do interior do Estado. Em Casa Branca, é no ano de 1985, sob coordenação do Prefeito Walter
Eduardo Pereira Avancini, que se iniciam as tentativas de criar
um órgão de preservação municipal, o Serviço do Patrimônio Artístico, Cultural, Histórico, Paisagístico, Arqueológico
e Natural de Casa Branca27 (SEPACHANP). “A criação deste
serviço parte da premissa de que todas as comunidades mais
desenvolvidas do Planeta preservam o seu patrimônio (...) (e)
aproveitamos o ensejo para dizer que este momento possui
um significado histórico para nosso Município (...)”28, haja
vista a iniciativa ímpar que, no entanto, será frustrada.
25-
O referido imóvel tem, a partir de
27.07.1987, assegurada sua proteção, conforme
o artigo 134 do Decreto Estadual n°13.426
de16.03.1979 e sob penas previstas no Artigo 165
do Código Penal Brasileiro.
Decreto Nº 13.426, de 16 de março de 1979
Artigo 134 — Os bens tombados não poderão ser
destruídos, demolidos, mutilados ou alterados, nem
sem prévia autorização do Conselho, reparados,
pintados ou restaurados, sob pena de multa a ser
imposta pelo mesmo Conselho de até 20 (vinte)
por cento do respectivo valor, neste incluído o do
terreno, se for o caso, e, sem prejuízo das demais
sanções aplicáveis ao infrator.
§ 1.º — Na hipótese de alienação onerosa dos bens
referidos neste artigo, de propriedade de pessoas
naturais ou jurídicas de direito privado, a União, o
Estado e os Municípios terão nessa ordem, direito
de preferência para aquisição, obedecido o processo
estabelecido para a espécie, pelo Decreto-lei federal
nº 25, de 30 de novembro de 1937.
§ 2.º — A alienação gratuita, a cessão de uso, a
locação ou a remoção de qualquer bem tombado,
deverá ser comunicada ao Conselho com
antecedência mínima de 30 (trinta) dias.
§ 3.º — Os bens tombados, pertencentes ao Estado
e aos Municípios só poderão ser alienados, ou
transferidos de uma para outra dessas entidades,
comunicado o fato ao Conselho.
§ 4.º — No caso de transferência da propriedade do
bem imóvel tombado, inclusive por sucessão “causa
mortis”, competirá ao serventuário do Registro
de Imóveis competente efetuar, “ex-officio”, as
respectivas averbações, das quais dará ciência ao
Conselho.
§ 5.º — Os bens tombados ficam sujeitos a
inspeção periódica do Conselho.
§ 6.º — Na hipótese de extravio ou furto de
qualquer bem tombado, o respectivo proprietário
deverá comunicar a ocorrência ao Conselho dentro
de 15 (quinze) dias, sob pena de multa de 20%
(vinte por cento) do valor do bem.
26-
“De acordo com o que dispõe o artigo
142 do Decreto 13.426 de 16.03.79, notificamos
a todos os interessados que o Colegiado do
Condephaat, em sua sessão ordinária de 28 de
fevereiro de 2005 , Ata n°1354, deliberou aprovar
o parecer do Conselheiro Relator, favorável à
abertura do processo de estudo de tombamento dos
seguintes bens, localizados no Município de Casa
Branca”:
1. Imóveis situados na Rua Waldemar Panico n°131,
s/n°, 151, 155 e 136;
2. Trecho da Rua Waldemar Panico com
pavimentação original em pedra;
3. Marco celebrativo da Guerra do Paraguai situado
na Rua Waldemar Panico.
Nos termos do parágrafo único do já citado
artigo 142 e do artigo 146 do mesmo Decreto, a
deliberação ordenando o tombamento ou a abertura
do processo de tombamento assegura, desde
logo, a preservação do bem até decisão final da
autoridade competente, ficando, portanto, proibida
qualquer intervenção que possa vir a descaracterizar
a referida área, sem prévia autorização do
Condephaat, além de poder ser punido o
123
Com a criação deste Serviço do Patrimônio, estabelece-se que ele funcionará em parceria com o Museu Municipal
e será constituído por dez membros29 indicados pelo Sr. Prefeito Municipal, que não receberão vencimentos. Tal diretoria
deverá submeter à aprovação do Prefeito um Estatuto que
regerá suas atividades, que será publicado em 10.08.1985, seguindo orientações da Legislação Federal e Estadual. Nesse
Estatuto, incorre-se no mesmo desacerto dos demais órgãos
brasileiros: não há a referência sobre qual postura teórica será
seguida para as tomadas de decisão frente à conservação e restauro e sobre uma metodologia para escolha de imóveis que
deveriam ser tombados. Além disso, o Serviço do Patrimônio
não se constitui como um órgão municipal efetivo, com funcionários concursados, sendo composto apenas por membros
da sociedade e do Legislativo Municipal, de forma voluntária.
Também não há nenhuma referência a iniciativas educacionais
que possam conscientizar a população e esclarecê-la sobre a
atuação do Serviço, já que é atingida diretamente pelas decisões daquele órgão. Houve sim uma tentativa de aproximação
com essa população, através da realização da “I Mostra de
Fotografias Antigas de Casa Branca”30 e de uma palestra sobre
patrimônio histórico31, mas sem maiores conseqüências.
Em janeiro de 1986, o Serviço do Patrimônio de Casa
Branca entra com o pedido de tombamento dos seguintes
bens32:
1. Móveis da Câmara Municipal
2. Calçamento de pedras não aparadas na Rua Waldemar
Panico
3. Bosque Municipal (ACCPE)
4. Antigo prédio da Prefeitura Municipal (Praça Dr. Barreto)
5. Praça Barão do Rio Branco
6. Praça Barão do Rio Pardo
7. Praça Dr. Barreto
8. Praça Barão de Mogi Guaçu
9. Praça Dr. Carvalho
10.Praça Ministro Costa Manso
11.Praça Rui Barbosa
12.Praça 25 de outubro (Bairro São João)
Em julho de 1986, começam a aparecer os primeiros
descumprimento do acima disposto com as sanções
penais previstas no artigo 63 da Lei Federal n°9605,
de 12.12.1998”. (Diário Oficial Poder Executivo
– Seção I – São Paulo, 115 (89) – sexta-feira, 13 de
maio de 2005, p.38)
Decreto Nº 13.426, de 16 de março de 1979
Artigo 142 — O tombamento de bens se inicia pela
abertura do processo respectivo, por solicitação
do interessado ou por deliberação do Conselho,
tomada “ex-officio”.
Parágrafo único — A deliberação do Conselho
ordenando o tombamento ou a simples abertura
do processo, assegura a preservação do bem até
decisão final da autoridade, pelo que o fato será
imediatamente comunicado à autoridade policial
sob cuja jurisdição se encontre o bem em causa para
os devidos fins.
Artigo 146 — A abertura do processo de
tombamento, quando da iniciativa do proprietário,
ou a notificação deste nos demais casos, susta desde
logo, qualquer projeto ou obra que importe em
mutilação, modificação ou destruição dos bens em
exame.
LEI Nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998
Art 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação
ou local especialmente protegido por lei, ato
administrativo ou decisão judicial, em razão
de seu valor paisagístico, ecológico, turístico,
artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico,
etnográfico ou monumental, sem autorização da
autoridade competente ou em desacordo com a
concedida:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
27-
Prefeitura Municipal de Casa Branca,
Estado de São Paulo, LEI Municipal N° 1.278 de 09
de julho de 1985
28-
Prefeitura Municipal de Casa Branca,
Estado de São Paulo, Mensagem à Câmara
Municipal N° 14/85
29-
A primeira Diretoria do Serviço do
Patrimônio de Casa Branca foi constituída em
30.11.1985 pelos seguintes membros:
1. Prof. Geraldo Majella Furlani (Presidente do
Serviço)
2. Prof. Rômulo Augusto Correa de Araújo
3. Dr. Sérgio Pistelli
4. Sr. Adolfo Legnaro Filho
5. Arq. Laís Helena Monteiro da Silva
6. Prof. Edgard Alcântara de Oliveira Guerreiro
7. Eng. Araken Ribeiro de Paiva
8. Prof. Ganymedes José Santos de Oliveira
9. Profa. Osnilda Paiva Aga
10. Profa. Maria Helena Horta
30-
Mostra realizada de 20 a 27 de outubro
de 1985, sob coordenação de Laís Helena Monteiro
da Silva e Adolpho Legnaro e apoio da Prefeitura
Municipal, da Comissão de Defesa do Patrimônio
Histórico, Artístico, Paisagístico, Cultural e
Arqueológico de Casa Branca e do Museu Histórico
Pedagógico Afonso e Alfredo de Taunay.
31-
Palestra proferida pelo arquiteto Luís
Menechino.
124
problemas sobre o efetivo funcionamento do Serviço33. Em
ofício, a Comissão do SEPACHANP solicita ao Prefeito a
aprovação do projeto de lei que altera a natureza do órgão,
que de cunho meramente consultivo ou opinativo passe a ser
de essência deliberativa, a fim de que seja dotado de poder
decisório e despojado de seu cunho decorativo, haja vista a
sua constituição utópica destituída de qualquer ação prática,
como comprovam os pedidos de tombamento de bens públicos sem nenhuma resposta ou ação. Tais solicitações não
devem ter sido atendidas, pois nesse mandato do Prefeito Sr.
Walter Eduardo Pereira Avancini (1984-1988) não há mais registros da atuação do SEPACHANP, segundo material disponibilizado pela Câmara Municipal de Casa Branca.
Novas discussões somente aparecerão no próximo mandato político (1988-1992), do Prefeito Sr. Geraldo Majella
Furlani. Em 1989, é apresentado ao então prefeito novo projeto de lei34 para criação e funcionamento do Serviço do Patrimônio Artístico, Cultural, Histórico, Paisagístico, Arqueológico e Natural de Casa Branca, com o novo nome SPACHPAN.
Dessa vez, o projeto parece mais bem estruturado em termos
legais, cabendo à Prefeitura Municipal adotar as providências
necessárias para o funcionamento do órgão35, assegurandolhe recursos financeiros e materiais necessários, e funcionará
junto à Divisão de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal, valendo-se do pessoal daquela seção para satisfazer às
normas legais do controle e prestação de contas. Novamente
a herança do SPHAN, que estabelece um órgão burocrático
sem que haja uma preocupação e uma postura teórica sobre
os princípios do patrimônio histórico. Não se cria um departamento: sobrecarrega-se uma divisão já existente.
Novamente aparecem os mesmos problemas da gestão
anterior: as ações teóricas não têm respaldo prático. Em ofício
de 28 de junho de 1989, do presidente do SPACHPAN, Ganymedes José, ao Prefeito Geraldo Majella, solicita resposta a
todos os ofícios enviados à Prefeitura desde 1986, incluindo
reclamação sobre a demolição do antigo prédio da Prefeitura,
na Praça Dr. Barreto. Quem haveria autorizado a demolição,
sem a consulta do SPACHPAN, se sobre o mesmo imóvel
já havia sido pedido o tombamento? Numa nova tentativa,
o SPACHPAN envia outro ofício36 ao Prefeito, sugerindo o
tombamento dos seguintes bens:
32-
Prefeitura Municipal de Casa Branca,
Ofício n° 04/86, de 24.01.1986.
33-
Prefeitura Municipal de Casa Branca,
Ofício 07/86.
34-
Projeto de Lei N° 0442/89, de autoria do
vereador Sérgio Pistelli, aprovado em 23.06.1989.
35-
O Conselho do SPACHPAN, em 1989,
era constituído pelos seguintes membros:
1.Ganymedes José Santos de Oliveira (Presidente)
2. Dr. Antônio José Chinez
3. Vereador Antônio José Nunes de Carvalho
4. Vereador Antônio Sandoval
5. Profa. Licínia Amélia Pereira Avancini
6. Profa. Luizinha Lauretti
7. Profa. Maria de Lourdes Maschietto V. de
Andrade
8. Profa. Osnilda Paiva Aga
9. Dra. Regina Célia Basile Moffa
10. Profa. Yvone Ferriolli
36-
Ofício 06/89, de 4 de setembro de 1989
e Ofício 11/89, de 7 de novembro de 1989.
125
1. Móveis da Câmara Municipal
2. Calçamento de pedras não aparadas na Rua Waldemar
Panico
3. Bosque Municipal (ACCPE)
4. Ipês da EEPSG Dr. Francisco Tomaz de Carvalho e
demais árvores que ali houver, inclusive pau-brasil
5. Palmeiras Imperiais, Praça Dr. Barreto
6. O que restou do prédio da Prefeitura Municipal (Praça Dr. Barreto)
7. Praça Barão do Rio Branco
8. Praça Barão do Rio Pardo
9. Praça Dr. Barreto
10.Praça Barão de Mogi Guaçu
11.Praça Dr. Carvalho
12.Praça Ministro Costa Manso
13.Praça Rui Barbosa
14.Praça 25 de Outubro (Bairro São João)
15.O cemitério do Cocais
16.A antiga Capela dos Leprosos, saída para Tambaú
17.A casa de morada do Prof. Edgard Guerreiro, na Pra-
97- Foto da Praça Dr. Barreto, local da antiga
Prefeitura do Município de Casa Branca, década de
1980, foto cedida por Dulce Horta.
ça Rodrigues Alves, n° 110.
No mesmo ofício 11/89, o Spachpan se pronuncia com
relação ao caso do prédio da Prefeitura na Praça Dr. Barreto,
pois “(...) embora tenhamos solicitado o tombamento do que
havia restado do prédio da antiga Prefeitura, todo o remanescente foi atirado ao chão”37, e o terreno, ainda hoje, dezesseis
anos depois, continua vazio.
Frente ao descaso da Prefeitura diante da atuação e solicitações do Spachpan e após demolições e nenhum tombamento efetivo, uma comissão daquele órgão reúne-se com o
Condephaat, em 15 de fevereiro de 1990, numa tentativa de
reestruturar o órgão municipal. Como uma ducha de otimismo ou um banho de água fria, a representante do Condephaat38 afirma que:
“(...) é preciso que os elementos incumbidos da preservação da memória da cidade não se sintam frustrados
facilmente e, se conseguirem realizar 10% do que imaginavam, já será uma grande produção. Porque a luta pela preservação da memória de uma comunidade esbarrará constantemente com a má vontade em geral das pessoas que
não sabem o que é e como se concretiza um tombamento.
98- Foto da Praça Dr. Barreto, local da antiga
Prefeitura do Município de Casa Branca demolição do prédio - década de 1980, foto cedida
por Adolfo Legnaro Filho.
99- Projeto proposto para a reforma do antigo
prédio da Prefeitura de Casa Branca, na Praça Dr.
Barreto, década de 1980. Foto cedida por Adolfo
Legnaro Filho. Não consta a autoria do projeto.
126
Além do mais, vivendo dias de consumismo e grande sede
de escalada imobiliária, não há o interesse de se preservar
“velharias”. (...) Somente daqui a algum tempo, depois de
muito trabalho educativo, principalmente com crianças e
jovens (nas escolas), conseguiremos formar uma geração
que respeite a memória que se deseja preservar”. (Rita de
Cássia, arquiteta do Condephaat no ano de 1990)
Sob esse ponto de vista, são sugeridas várias atividades
para a elaboração de um esquema de trabalho, como mapeamento dos bens de interesse para serem preservados; uma
classificação desses bens, elencando prioridades; elaboração
de incentivos aos proprietários dos bens tombados, para conservação e restauração; desvinculação do órgão da Prefeitura, com autonomia para decisões próprias, mas com verba
pública para se manter, utilizando trabalho gratuito de seus
membros; estabelecimento de núcleos dentro dos quais estejam vários bens tombados, com o objetivo de facilitar a sua
preservação; elaboração de estudos técnicos sobre o imóvel
a ser tombado, como o histórico e o levantamento de suas
características; elaboração e realização de campanhas educativas, via rádio, jornal e outros veículos da mídia, bem como
atuação direta nas escolas; inventário do maior número de
imóveis possível, mesmo que não haja interesse para tombamento, deixando seu registro para a posteridade; incentivo à
cultura através de um museu de rua; estruturação do órgão
com engenheiros, arquitetos e advogados para a instrução dos
pedidos de tombamento; e consulta constante do Condephaat, para evitar decisões contrárias àquelas já estabelecidas por
este órgão. Tendo em vista essas recomendações, percebemos
que o Condephaat, mesmo tendo as suas próprias dificuldades de atuação, mostra disposição em auxiliar os Municípios a
estabeleceram seus próprios órgãos de preservação, valorizando a preservação de bens de interesse local.
Todas as tentativas de reorganizar o Spachpan são, no entanto, novamente frustradas. Em 18 de março de 1990, este
órgão publica artigo em um jornal39 local suplicando a ajuda
e a participação da população, numa tentativa de conscientizá-la do valor da preservação da história da cidade e do valor
desse órgão, que deveria ser de interesse público. Mas o fim
parece irremediável frente à carta de demissão de Ganymedes
José40.
37-
Ofício 11/89, de 7 de novembro de 1989,
do Presidente do SPACHPAN, Ganymedes José, ao
Prefeito Geraldo Majella.
38-
A engenheira Rita de Cássia, nesse ano de
1990, era a representante do Condephaat na cidade
de Amparo.
39-
Gazeta de Casa Branca
127
Inesperadamente, em 13 de junho de 1990, o Prefeito
Municipal Geraldo Majella envia à Câmara Municipal projeto
de lei41 que visa à autorização legislativa para tombamento de
vários bens do município de indiscutível interesse histórico e
cultural, listados para serem preservados pela Municipalidade.
O projeto inclui os seguintes bens móveis e imóveis:
1. Os móveis da Câmara Municipal
2. O calçamento de pedras da Rua Waldemar Panico
3. O casarão de propriedade de Edgard Alcântara de
Oliveira Guerreiro, sito à Praça Ministro Costa Manso, n°110
4. O cemitério do Cocais
5. A antiga Capela dos Leprosos, na saída para Tambaú, do lado esquerdo da vicinal Prof. João de Pádua
Lima
6. A Santa Casa de Misericórdia
Em 19 de julho de 1990, são declarados de interesse histórico todos os bens móveis e imóveis acima relacionados, e as
leis42 são aprovadas pela Câmara e sancionadas pelo Prefeito.
Os imóveis não chegam a ser tombados, não podendo incidir sobre eles a legislação municipal de bens tombados pelo
Município. O processo de preservação desses bens é, então,
interrompido novamente.
Em 22 de agosto de 1990, é constituído um novo Conselho do Spachpan. Em 8 de fevereiro de 1991, pelo decreto N°
1.139, são declaradas áreas de preservação ambiental a Reserva do Cocais e a Lagoa do Aterradinho.
Após essas deliberações sobre a preservação dos referidos
bens, não há menção, nos documentos fornecidos pela Câmara, de outras atitudes que o Spachpan possa ter tomado frente
ao patrimônio histórico da cidade. Mas o Condephaat continuou sua política de incentivar a criação e reestruturação de
órgãos municipais de preservação, tanto que, em 7 de junho
de 2002, foi enviado ao Prefeito Municipal de Casa Branca,
na época o senhor Sckandar Mussi, convite para participação
no Seminário “Preservação do Patrimônio Cultural no Âmbito Municipal”, que contou com a presença de especialistas
na área que trataram de temas sobre a política de preservação e recuperação do patrimônio cultural, dando ênfase às
discussões para a viabilização da criação e aperfeiçoamento
40-
Em 13 de abril de 1990, escreve
Ganymedes José Santos de Oliveira ao Prefeito
Geraldo Majella Furlani:
“Depois de longa reflexão, e sem me atrever a
plagiar Rui Barbosa, venho à presença de Vossa
Senhoria para:
1. Agradecer a confiança em mim depositada,
quando de minha nomeação para a presidência do
Spachpan local;
2. Informar que:
a. De tanto enfrentar tropeços e bem
pouco haver conseguido realizar neste órgão;
b. De tanto ver os ideais desmoronando
diante de interesses materiais;
c. De tanto ouvir mais comentários
negativos do que receber apoio em prol de nossa
causa;
d. De tanto ver triunfar a vitória da
ociosidade;
e. De tanto merecer, deste país, mais
punição do que respeito por meu trabalho cultural
(escritor);
f. De tanta descrença no atual Governo
que, assaltando-me à mão armada, tira-me a
estabilidade econômica e o direito de não poder,
com dignidade, tratar-me clinicamente servindo-me
dos proventos que amealhei com honestidade no
correr dos anos;
g. De tanto curtir a revolta de assistir
ao aplauso dos políticos cínicos que gargalham
de nossa derrocada financeira, mas que mantêm
polpudos salários;
h. De estar farto de resistir aos embates
de injustiça;
i. De ter a consciência tranqüila de já
tanto haver doado para esta cidade e este país;
j. De haver perdido a coragem e as forças
físicas, em virtude de uma enfermidade cardíaca;
l. De tanto ver tantos vagabundos
vivendo tranqüilamente, sem pagar impostos,
recebendo assistência governamental e sem sofrer
ônus ou desgastes emocionais,
Comunico a Vossa Senhoria que estou
optando pela ociosidade, não mais me interessando
em trabalhar nem pelo bem desta comunidade
e nem pelo bem do país. Assim sendo, rogo
escusas por meu fracasso funcional e, em caráter
irrevogável, apresento minha demissão do encargo
que tão zelosamente me foi oferecido”.
41-
Prefeitura Municipal de Casa Branca,
Mensagem à Câmara N° 35/90
42-
As Leis abaixo transcritas foram cedidas
pela Câmara, mas há a falta de uma, a 1.547, não
fornecida.
Lei Municipal N° 1.545, de 19 de julho de 1990:
Art. 1° - Fica declarada de interesse histórico e
cultural, devendo, por isso, ser preservada pelo
Município, o prédio da Santa Casa de Misericórdia,
sito à Praça Dr. Carvalho, n° 204.
Art. 2° - O Poder Executivo mandará fotografar as
faces exteriores do mencionado prédio, para que
seu aspecto arquitetônico seja permanentemente
conservado.
Art. 3° - Ficam vedadas modificações na sua
fachada.
128
dos Conselhos Municipais do Estado de São Paulo. Não há
menção oficial da participação do senhor Prefeito, apenas a
presença do senhor Adolfo Legnaro Filho, diretor do Museu
Histórico da cidade de Casa Branca. Não houve, no entanto,
repercussão visível. O Spachpan continua desativado.
Nota sobre a abertura do processo de tombamento pelo
Condephaat das casas 131, 151 e 165 da Rua Waldemar
Panico, em Casa Branca, publicada em 13 de maio de
2005 no Diário Oficial do Estado de São Paulo.
Mesmo tendo sido publicada a abertura do processo de tombamento desses imóveis em Casa Branca, em abril de 2006
ocorreu quase a demolição completa da edificação número
151.
Abaixo, as fotos antes e depois da demolição.
100- Foto da casa número 151 da Rua
Waldemar Panico em março de 2006.
101- Foto do conjunto das casas 131,
151 e 165 da Rua Waldemar Panico em
março de 2006.
Art. 4° - A preservação de que trata esta lei não
atinge a ala nova, situada na parte interna do prédio.
Art. 5° - Revogadas as disposições em contrário,
esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Lei Municipal N° 1.546, de 19 de julho de 1990:
Art. 1° - Fica declarada de interesse histórico e
cultural, devendo, por isso, ser preservada pelo
Município, a Capela dos Leprosos, situada na saída
para Tambaú, do lado esquerdo da estrada vicinal
Prof. João de Pádua Lima, no sentido Casa BrancaTambaú.
Art. 2° - O Poder Executivo mandará fotografar
a mencionada capela, para que seu aspecto
arquitetônico seja permanentemente conservado,
sendo vedada qualquer modificação.
Art. 3° - A mencionada capela deverá ser objeto de
constante conservação.
Art. 4° - Revogadas as disposições em contrário,
esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Lei Municipal N° 1.548, de 19 de julho de 1990:
Art. 1° - Fica declarada de interesse histórico e
cultural, devendo, por isso, ser preservada pelo
Município, a casa de morada sobrado, pertencente
ao Dr. Edgard de Alcântara de Oliveira Guerreiro,
sito à Praça Ministro Costa Manso, n° 110, antiga
Praça Rodrigues Alves, neste Município (de Casa
Branca).
Art. 2° - O Poder Executivo mandará fotografar as
faces exteriores do mencionado prédio, para que
seu aspecto arquitetônico seja permanentemente
conservado.
Art. 3° - Ficam vedadas modificações nos forros,
assoalhos, portas, janelas e caixilhos de todas as
dependências, bem como seu aspecto divisório.
Art. 4° - O mencionado prédio, objeto de
constante conservação, deverá vir a ser ocupado,
preferencialmente, com atividades culturais,
educacionais ou assistenciais.
Art. 5° - Revogadas as disposições em contrário,
esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Lei Municipal N° 1.549, de 19 de julho de 1990:
Art. 1° - Fica declarado de interesse histórico e
cultural, devendo, por isso, ser preservada pelo
Município, o calçamento de pedras na antiga Rua do
Comércio, hoje denominada Rua Waldemar Panico,
neste Município (de Casa Branca).
Art. 2° - O Poder Executivo mandará fotografar o
local, para que seu aspecto seja permanentemente
conservado.
Art. 3° - Revogadas as disposições em contrário,
esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Lei Municipal N° 1550, de 19 de julho de 1990:
Art. 1° - Ficam declarados de interesse histórico e
cultural, devendo, por isso, serem preservados pelo
Município, os móveis pertencentes ao patrimônio
da Câmara Municipal, constantes de uso reservado aos senhores vereadores durante as sessões as
edilidade (...).
Art. 2° - O Poder Executivo mandará fotografá-los,
para que sejam permanentemente conservados,
ficando vedada qualquer modificação nos mesmos.
Art. 3° - Revogadas as disposições em contrário,
esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
102- Foto do conjunto das casas 131, 151 e 165 da Rua Waldemar Panico em
abril de 2006. Foi mantida apenas a parede externa frontal do imóvel 151.
129
Capítulo IV
Propostas
O valor das cidades é revelado em expressão poética:
a sua exuberância não se equipara à riqueza da vida urbana.
A memória associa-se ao cotidiano. Da mesma forma, Ruskin
afirma que a importância da mais bela das cidades depende
não da riqueza de seus palácios, mas da primorosa e zelosa
decoração das habitações, até mesmo nas menores. A cidade
é, então, lembrada não pelos seus monumentos, pelas suas
construções e objetos espetaculares, mas pela imagem acolhedora que ela transmite, através da vida que existe nela.
Discute-se a preservação do que poderia ser chamado de arquitetura do cotidiano, a arquitetura residencial ou,
Partindo dali e caminhando por três dias em direção ao
levante, encontra-se Diomira, cidade com sessenta cúpulas de
prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas lajeadas
de estanho, um teatro de cristal, um galo de ouro que canta
todas as manhãs no alto de uma torre. Todas essas belezas
o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades.
Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa noite
de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as
lâmpadas multicoloridas se acendem juntas nas portas das
tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de uma mulher que
grita: uh!, é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido
uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes.
(CALVINO, p.11).
até mesmo, comercial. Uma arquitetura não exuberante, mas
significativa como representação dos modos de vida de uma
época. É assim classificada a arquitetura de Casa Branca a ser
preservada. Uma arquitetura e um desenho urbano de uma
época em que a vida citadina, nesse sertão, era simples e pacata. Uma vida caipira, sertaneja. A cultura de cidades do interior paulista.
4.1 O quadro urbano a ser preservado
103- Mapa da Proposta de Tombamento dos
conjuntos urbanos.
Conjunto 1
Conjunto 2
130
1, 2, 3
5
4
6
104- Mapa dos imóveis de interesse histórico e
arquitetônico situados no centro de Casa Branca.
Destaca-se em vermelho os imóveis que possuem
maior interesse para tombamento como patrimônio
histórico.
1- Rua Waldemar Panico 131
2- Rua Waldemar Panico 151
3- Rua Waldemar Panico 165
4- Rua Waldemar Panico 183
5- Rua Waldemar Panico 236
6- Rua Waldemar Panico 102
7- Rua Mestre Araújo 72
8- Rua Mestre Araújo 20
9- Praça Barão do Rio Pardo 239
10- Igreja Nossa Senhora do Rosário
11- Praça Barão do Rio Pardo 10
12- Praça Barão do Rio Pardo esquina com Dr.
Menezes (Hotel Alvorada)
13- Rua Barão de Casa Branca 415
131
7
8
9
11
10
12
13
14
15
16
17
14- Rua Barão de Casa Branca esquina com Narciso
Marques 371
15- Rua Barão de Casa Branca 91
16- Rua Dr. Menezes 109
17- Rua Dr. Menezes s/n
18- Rua Dr. Menezes 59
19- Praça Barão de Mogi Guaçu 50
20-Praça Barão de Mogi Guaçu s/n
21- Praça Barão de Mogi Guaçu 174
22- Praça Barão de Mogi Guaçu 188
23- Praça Barão de Mogi Guaçu 95
24- Praça Barão de Mogi Guaçu 120
25- Igreja Nossa Senhora das Dores
26- Rua Capitão Horta 758
27- Rua Capitão Horta 447
28- Rua Capitão Horta 442
29- Rua Capitão Horta 390
30- Rua Capitão Horta 368
31- Rua Capitão Horta 338
32- Rua Capitão Horta 324
33- Rua Capitão Horta 216
34- Rua Capitão Horta 206
35- Rua Capitão Horta 165
36- Rua Coronel José Júlio s/n
37- Rua Coronel José Júlio 94
38- Rua Coronel José Júlio 33
39- Praça Barão de Mogi Guaçu esquina com Luiz
Piza
40- Praça Barão de Mogi Guaçu esquina com Luiz
Gama
41- Rua Coronel José Júlio s/n
42- Estação Casa Branca da Estrada de Ferro
Mogiana
43- Praça Rui Barbosa 14
44- Praça Rui Barbosa 73
45- Rua Coronel José Júlio 29
46- Rua Coronel José Júlio 33
47- Rua Coronel José Júlio 73
48- Rua Coronel José Júlio 101
49- Rua Coronel José Júlio 133
50- Rua Coronel José Júlio 118
51- Rua Coronel José Júlio 159 e 165
52- Rua Coronel José Júlio 231
53- Rua Coronel José Júlio 230 e 234
54- Rua Coronel José Júlio 251
55- Rua Coronel José Júlio 242
56- Rua Coronel José Júlio 261
57- Rua Coronel José Júlio 260
58- Rua Coronel José Júlio 279
59- Rua Coronel José Júlio 284
60- Rua Coronel José Júlio 374
61- Rua Coronel José Júlio 448
62- Rua Coronel José Júlio conjunto 490
63- Rua Coronel José Júlio conjunto 758
64- Rua Coronel José Júlio conjunto 771 e 775
65- Rua Coronel José Júlio 796
66- Rua Coronel José Júlio 829
67- Rua Coronel José Júlio 854
68- Rua Coronel José Júlio 841
69- Rua Sete de Setembro 110
70- Rua Sete de Setembro 152
71- Rua Sete de Setembro 164
72- Rua Sete de Setembro 244
73- Praça Ministro Costa Manso 136
74- Praça Ministro Costa Manso 249
75- Rua Altino Arantes s/n
76- Rua Altino Arantes esquina com Duque de
Caxias - Igreja Presbiteriana
132
18
19
20
21
22
77- Instituto de Educação Franscisco Tomaz de
Carvalho
78- Rua Luiz Piza 353
79- Rua Luiz Piza s/n
80- Rua Lacerda Franco 715
81- Rua Lacerda Franco s/n
82- Rua Lacerda Franco 395
83- Rua Napoleão Sasso esquina com Duque de
Caxias
84- Santa Casa de Misericórdia
85- Rua Ipiranga 339
86- Rua José Gerônimo de Vasconcelos 93
87- Rua Ângelo Stefanine 306
88- Avenida Dorotheo Barbosa s/n
89- Rua Alfredo P. Mendonça 270
90- Rua Alfredo P. Mendonça s/n
91- Rua Santo Antônio 457
24
23
27
26
25
28
29
30
31
32
35
33, 34
36
133
37
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
51
52
53
134
55
56
58
59
60
61
62
63
64
65
66
67
68
54
57
69
70
71
135
72
75
76
83
77
79
78
80
74
73
81
84
82
85
86
87
88
89
90
91
136
Propõe-se a preservação urbana e arquitetônica orga-
nizada em dois conjuntos, além de alguns imóveis isolados,
como mostra o mapa da página 131:
Primeiro Conjunto: tombar o desenho urbano, o calçamento original da Waldemar Panico, inclusive as pedras que ainda
existem sob as calçadas de cimento, o calçamento de paralelepípedo, o gabarito do trecho e de parte do entorno, bem
como o tombamento de alguns imóveis.
Rua Waldemar Panico
Rua Mestre Araújo
Praça Barão do Rio Pardo
Praça Dr. Barreto
Rua Doutor Menezes
Praça Barão de Mogi Guaçu
105- Trecho da Rua Waldemar Panico, próximo à
Estrada para Tambaú, constituído de pedras não
aparadas. Março de 2006.
Segundo Conjunto: tombar o desenho urbano, o prédio da
estação de trem com a praça e o gabarito da rua Coronel José
Júlio.
Estação da Estrada de Ferro Mogiana
Praça Rui Barbosa
Rua Coronel José Júlio
Imóveis isolados: imóveis destacados no mapa.
4.2 Morfologia dos conjuntos urbanos a serem preservados
Os dois conjuntos urbanos, propostos para serem incluídos num plano de preservação, possuem a mesma característica: organizam-se ao redor de praças, o centro irradiador
do crescimento urbano. No primeiro, duas praças com função
religiosa; no segundo, uma praça com função comercial – ambos bastante característicos dos períodos históricos correspondentes: do século XVIII, passando pela constituição da
freguesia, com a Igreja do Rosário no século XIX, até a constituição da vila, em 1841, e a determinação do local da Igreja
106- Rua Waldemar Panico, 152. Sob a calçada de
cimento, foram encontradas as mesmas pedras não
aparadas que compõem o trecho final da rua. Maio
de 2006.
137
Nossa Senhora das Dores; da chegada da Estrada de Ferro
Mogiana, em 1878 e o ressurgimento do comércio. São essas
praças, antes com funções claramente definidas, religiosas e
leigas, os poucos espaços públicos da cidade atual.
Contrariamente à realidade da maior parte das cidades
fundadas em períodos anteriores, a praça, a partir do século
XVIII, deixa de se situar marginalmente no traçado urbano
ou no encontro de diferentes malhas da cidade, correspondentes a sucessivas unidades de crescimento. A estrutura formal da praça já não vai resultar da progressiva regularização,
realizada ao longo dos séculos, do espaço que havia sido eleito
para a implantação dos principais edifícios institucionais da
cidade. Pelo contrário, nos traçados urbanos setecentistas, a
praça é pensada desde o início como o centro da cidade, em
termos simbólicos, espaciais e funcionais. Dessa forma, podemos considerar Casa Branca, estruturada em torno de três
praças principais, inserida nesse contexto, apesar de ter sofrido uma intervenção reguladora somente em 1814, quando,
apesar da intervenção da Coroa, o domínio religioso ainda se
fazia presente.
No entorno da primeira praça, Largo do Rosário, primeiro foram organizadas as casas dos açorianos, a Câmara, a
cadeia e o cemitério. Depois, surgem os dois primeiros núcleos
escolares, a casa que abrigou o núcleo Rubião Júnior e a outra
que abrigou a Escola Normal. Ainda, recentemente, também
ali se localizava a Prefeitura, em casarão já demolido.
No entorno da segunda praça, da Igreja Matriz, aglomeram-se os casarões dos cafeicultores, em seu período áureo. Nas proximidades, também foram construídos o edifício
sede da Câmara e Cadeia e o Mercado Municipal.
Ao redor da terceira praça, a estação de trem e hotéis
107- Casa que abrigou a Escola Normal, no Largo
do Rosário, antes da construção do prédio na Praça
Doutor Carvalho. Hoje este casarão foi dividido em
dois imóveis e parte dele abriga um supermercado,
projeto que manteve apenas a fachada da edificação
(fachada pintada de verde na foto ao lado.
O desenho da casa original é de Pantoja (p.36) e as
fotos são de março de 2006.
1-
TEIXEIRA & VALLA, p.255.
138
para os comerciantes. As funções institucionais principais da
cidade organizavam-se, portanto, no entorno de praças. Ainda
hoje, o núcleo administrativo não se deslocou. O centro histórico é o centro da vida urbana, com a Prefeitura ocupando
o prédio da antiga estação de trem da Mogiana.
No começo da povoação, o restrito circuito público
abrangia um ou outro largo de estreitas ruas e becos, como
o suposto largo da primitiva capela de 1811, na confluência
das ruas do Comércio e dos Mineiros, atual Praça Honório
de Syllos. Outro largo, o do Rosário, também subjugava-se a
funções eclesiásticas, bem como o da matriz Nossa Senhora
das Dores. De fato, os poucos largos antecediam, geralmente,
capelas ou igrejas e como tal subordinavam-se ao clero. A
mudança somente ocorrerá com a Independência e com a República, quando pátios de capelas e igrejas passam a integrar
e a aumentar a superfície que constitui o chão público. Com
essa mundanização do espaço, iniciam-se outras manifestações laicas: a atenção com o gabarito mínimo das vias, a criação de novas praças ligadas a funções e edifícios mundanos,
como as estações ferroviárias e as escolas oficiais, e o aparecimento do jardim público. Segundo esse ponto de vista de
Murillo Marx, entretanto, essa laicização de espaços pios teve
como herança uma velha rede de espaços públicos, acanhados
e mal cuidados. Praças constituídas de antigos largos diante de
capelas e igrejas ou simples alargamentos de ruas. E ruas que
ligavam terreiros cristãos.
Casa Branca, como freguesia, constitui-se no início do
tempo em que perdem força as normas eclesiásticas, as ordens
religiosas, as confrarias e suas respectivas construções. É justamente nesse período, com a proximidade da Independência
e, posteriormente, com a República, que se multiplicam novas
fundações urbanas em muitas regiões, ostentando, inclusive,
outra conformação, como as cidades do oeste paulista e no
sul mineiro, de acordo com Murillo Marx. Não obstante, essas novas fundações continuam dominadas por sua matriz e
pelo adro, largo ou praça da matriz, praças em torno das quais
gira a vida e o melhor esforço edílico.
Nessas fundações dos séculos XVIII e XIX, surgirão
também outros edifícios, religiosos ou não: o hospital, o largo
da estação e o mercado. Sob preocupações laicas, expressam
um urbanismo calcado em questões higiênicas e estéticas, em-
2-
MARX, 2003, p.107.
3-
MARX, 2003, p.130.
139
bora as povoações não tenham ignorado os séculos em que
tantas igrejas e seus respectivos adros imperaram sobre acanhados conjuntos urbanos e mereceram a maior das atenções
coletivas.
O mercado demora a aparecer e o faz, primeiramente,
de forma tímida, com as ‘casinhas’. A casa de Câmara e a cadeia também são humildes, em casas de aluguel. Só no fim do
século XVIII vão ganhar sede própria. É a partir do final do
XVIII, sob o governo de Morgado de Mateus, que os espaços
públicos passam a ser definidos mais claramente – método
aplicado no princípio de muitas vilas que, por motivos geopolíticos, tratou de erigir.
Ao mesmo tempo em que as delimitações do espaço
público se definem e se mundanizam, o uso também se modifica. Associados aos ritos eclesiásticos, missas e procissões,
praças e ruas perdem essas funções, tornam-se espaço para
manifestações culturais laicas. Hoje, entretanto, a maioria se
restringe a espaços de circulação e vias de tráfego, mesmo
sem o adequado recolhimento e equipamentos para o estar e
a permanência coletiva. Durante todo o Brasil colônia e mesmo após a Independência, o cenário da vida urbana era de
recolhimento, com destaque apenas para as manifestações religiosas e políticas. Somente com a ferrovia e a intensificação
da população urbana surgem novas atividades no espaço público, como o comércio e atividades recreativas. Portanto, esse
uso restrito atual também se trata de uma questão cultural.
Outra causa desse uso subestimado dos espaços públicos é o próprio trato por parte do poder público. A princípio, os cuidados com o espaço público eram obrigação dos
moradores e vereadores. Capinar e limpar ruas e pátios constituíam responsabilidade de cada um diante de sua testada ou
terreno, principalmente por ocasião de datas litúrgicas. O mobiliário urbano também se compunha exclusivamente de símbolos católicos, como cruzes e imagens. É somente a partir
da segunda metade do XIX que surgem novos equipamentos
urbanos.
Apesar da cobrança sobre os moradores e da forte
presença da Igreja, houve, por quatro séculos, segundo Murillo Marx, um estado de permanente descuido do espaço
público. Trata-se de quatrocentos anos de secularização do
espaço público, de um lento processo de regulamentação de
108- A Rua Waldemar Panico e o descuido com a
manutenção da pavimentação de paralelepípedo.
Fato que ocorre em vários outros locais da cidade
de Casa Branca. Foto de março de 2006.
109- A Praça Honório de Syllos e seu entorno.
O descuido com o espaço público também está
presente nas praças. O mato cresce, o lixo espalhase pela rua e não há equipamento público adequado.
Foto de março de 2006.
4-
MARX, 2003, p.155.
5-
MARX, 2003, p.163.
140
normas que, até hoje, em muitas cidades, ainda estão sendo
elaboradas, por exigência do Estatuto da Cidade. Essa laicização do chão público esclarece, outrossim, os modos de administração desse espaço, uma seqüência histórica de leis genéricas destituídas de qualquer rigor, que, ainda hoje, explicam o
desleixo com o trato desses espaços.
O quadro aqui apresentado, refere-se, em seu aspecto
histórico, apenas ao centro histórico de Casa Branca, atual
centro administrativo e econômico. O mau trato do espaço
público, contudo, estende-se por toda a cidade. Nos bairros
periféricos, ocorre a ausência de espaço público adequado.
Poucas são as praças, a maioria sem arborização nem equipamentos adequados. Faltam áreas de lazer que, comodamente,
foram substituídas pelos espaços das escolas, que, por uma
determinação Estadual, passaram a receber a população nos
finais de semana. Paradoxalmente, ainda existem muitos terrenos vazios nesse centro histórico, fruto de demolições de casarões do período cafeeiro, como se pode observar nas fotos
antigas quando comparadas com as atuais.
Diante de tais características, da oferta de terrenos em
locais privilegiados e da demanda por serviços que atendam às
necessidades coletivas da população, há que se pensar numa
política pública, de forma a resgatar o valor social desses lotes subestimados e de garantir a preservação dos imóveis que
ainda existem.
110- Entorno da Praça Dr. Barreto, local da antiga
sede da Prefeitura do Município de Casa Branca.
Foto cedida pelo Museu de Casa Branca, sem
data. Foto do imóvel na década de 1980, cedida
por Dulce Horta, e o seu estado atual. O terreno
permanece vazio por mais de 16 anos.
111- Localização de alguns
terrenos vazios no centro
de Casa Branca sobre foto
aérea 2000.
141
O valor social da terra deve não só estar relacionado
ao uso público e coletivo, mas a todo e qualquer uso que contribua para a valorização da vida urbana, incluídos os usos privados. Toda e qualquer intervenção na cidade, especialmente
nesse centro histórico, deve ser calcada por um Plano Diretor,
que regulamente o uso e a ocupação, por meio de um zoneamento que discipline o gabarito, a taxa de ocupação e o índice
de aproveitamento do solo, bem como recuos. É preciso, portanto, orientar a ocupação territorial da cidade e restringi-la,
mas também incentivá-la.
Logo, é fundamental o conhecimento da evolução
urbana da cidade. Faz-se necessário entender o processo de
urbanização para compreender as razões da paisagem citadina
atual. Só assim é possível alterar esse desenho urbano e propor novos conceitos para os futuros crescimentos da cidade.
112- Terreno vazio entre a Praça Honório de Syllos
e a Rua Luiz Gama. Foto de março de 2006.
113- Terreno localizado na esquina da Praça Barão
de Mogi Guaçu com a Rua Coronel José Júlio.
As fotos antigas, à esquerda, mostram o casarão que
ali existia. Foto cedida pelo Museu de Casa Branca.
As duas fotos acima mostram o estado atual do
terreno: vazio.
142
114- Terreno localizado na esquina da Praça Barão
de Mogi Guaçu com a Rua Pedro Toledo, ao
lado da Igreja Nossa Senhora das Dores. Fotos
antigas cedidas pelo Museu de Casa Branca e foto
atual do terreno, que abriga um posto de gasolina
desativado.
4.3 Discussão das propostas
Para uma efetiva ação e intervenção, como um planejamento urbano abrangente, ou como um planejamento territorial, a agregar urbano e rural, tomam-se como premissa
as considerações de Gustavo Giovannoni sobre o patrimônio histórico em escala urbana. A cidade, considerada em seu
conjunto do novo e do velho, como cidade historicizada, deve
ser abordada como um organismo único, composto por seus
pormenores. Dessa forma, os bens de interesse histórico específico não devem ser dissociados do conjunto da cidade, da
sua morfologia, da sua ocupação, dos seus usos, da vida citadina. Para tanto, a cidade deve ser submetida a um planejamento urbano que também incorpore questões de preservação do
patrimônio histórico.
Giovannoni discute a convivência entre toda a diversidade urbana, entre os edifícios novos, os velhos e os de interesse histórico/cultural; entre as diversas formas de ocupação
e ordenamento do solo. A valorização da cidade está em preservar a diversidade de percepções visuais, garantir a complexidade espacial, que traz a cada indivíduo a possibilidade da
fuga da monotonia, a quebra do estático, do óbvio.
6-
Discussões nesse mesmo nível estão
sendo travadas no Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal
de Pernambuco, dentro do Centro de Conservação
Integrada Urbana e Territorial.
Segundo os estudos do Centro de Conservação
Integrada, CECI, a gestão da conservação
integrada urbana e territorial é um novo campo
disciplinar que procura reunir teorias, conceitos e
experiências reais, de modo a formar uma prática
planejada de ação pública para a conservação e
o desenvolvimento das cidades contemporâneas.
Surgiu da convergência de duas matrizes de
pensamento do planejamento urbano e territorial
contemporâneo: da conservação integrada,
formulada inicialmente pelo urbanismo progressista
italiano, nos anos 1960/70, e que encontrou sua
expressão maior no Manifesto de Amsterdã, de
1975; do desenvolvimento sustentável, elaborado
a partir dos preceitos apresentados pela Comissão
Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
que levou à Agenda 21 e a seus desdobramentos
urbanos.
A conservação integrada é um princípio
fundamental para a conceituação do
desenvolvimento sustentável urbano, especialmente
porque restabelece a cidade como um artefato
histórico-cultural que estabelece o nexo entre
as gerações. Nesse sentido, a cultura aparece
como uma dimensão de mesma importância que
a economia e a política em qualquer estratégia
de implantação de políticas de desenvolvimento
sustentável.
A conservação integrada é alcançada pela aplicação
de técnicas de restauração sensíveis e pela escolha
correta de funções apropriadas no contexto de
áreas históricas, levando em conta a pluralidade
143
Gordon Cullen também chama a nossa atenção para
esses aspectos. A vida urbana é complexa e, muitas vezes,
contraditória. Interferir nesse espaço é, portanto, tão complexo como organizar a própria vida. É por isso que tais ações
devem advir de um conhecimento amplo e profundo do objeto alvo, e da percepção e do entendimento da cultura e das
tradições que incidem sobre determinado espaço e sua população. Essas intervenções são extremamente necessárias,
principalmente quando o interesse capitalista sobrepõe-se ao
interesse público, quando o valor econômico subjuga a cultura e a tradição, distorcendo a memória de forma a acarretar a
perda da identidade cultural de uma comunidade.
Como primeiro passo para esse planejamento urbano do município de Casa Branca, propõe-se a identificação
e seleção dos imóveis e trechos urbanos que devem ser preservados e reconhecidos como patrimônio histórico do município, inclusive os que devem ser efetivamente tombados.
Neste trabalho, sugere-se a preservação de dois trechos urbanos, incluindo alguns imóveis e o desenho urbano, bem como
ações que garantam a percepção desses espaços através de
restrições para o seu entorno. Estas são apenas sugestões que
deveriam ser avaliadas por um conselho que compusesse o
órgão de preservação do município.
A preocupação específica sobre esses dois trechos urbanos não impede a discussão desses conjuntos inseridos na
escala da cidade. Em termos morfológicos e especificamente arquitetônicos, nos perímetros delimitados como área de
modificação urbana restrita, deve-se garantir a harmonia dos
conjuntos através da restrição de gabarito, de uso, da ocupação do solo e da instituição de níveis de preservação.
Nos trechos da Rua Waldemar Panico e Mestre Araújo, considerando as características dos imóveis selecionados
para serem tombados, o gabarito das construções deve ficar
restrito a 4m (3m+1m), tendo em vista a presença de casarões
de porão alto do início do século XX. Em relação à implantação no lote, devem-se seguir as normas atuais, respeitando
as necessidades de ventilação e insolação. Nesse trecho, não
há necessidade de instituir a NP-3, pois as modificações já
são bastante marcantes. Convém considerar também que, em
todo esse trecho da Rua Waldemar Panico até a Praça Barão
de Mogi Guaçu, seja preservado tanto o calçamento de pedra
de valores, tanto econômicos quanto culturais,
e visando julgamentos equilibrados. Quanto
ao desenvolvimento sustentável, este deve ser
entendido como a capacidade de a humanidade
assegurar que se supram as necessidades do
presente sem comprometer a capacidade das futuras
gerações de suprir suas próprias necessidades.
A conservação urbana integrada, CI, teve
origem na experiência de reabilitação do centro
histórico de Bolonha, nos anos 1970, conduzida
por políticos e administradores. Posteriormente,
os mesmos princípios foram aplicados em cidades
italianas e espanholas. Nos dois casos, serviu como
argumento para a construção de uma imagem
política de eficiência administrativa, justiça social e
participação popular.
As primeiras aplicações da CI foram feitas em
áreas residenciais antigas nas periferias dos
centros históricos, com destaque na recuperação
da estrutura física, econômica e social, mantendo
os antigos habitantes. Posteriormente, a ênfase
recai sobre espaços públicos, áreas verdes e de
recreação e na conversão de grandes edificações
em equipamentos sociais, de uso coletivo. Buscavase também a integração das áreas periféricas dos
centros urbanos, por meio de políticas de transporte
coletivo de massa gratuito, como em Bolonha.
Nos anos 1980/90, a proposta da CI abandonou o
cunho ‘social’ e passou a ser encarada como uma
forma de ‘revitalização’ de áreas centrais deprimidas
ou obsoletas. Nesse sentido, associou-se à proposta
de recuperação econômica e do valor imobiliário
dos estoques de construções, especialmente
daqueles protegidos por instrumentos legais de
tombamento, localizados em áreas centrais. A
revitalização formou um dos esteios das políticas
neoliberais em nível municipal. Transformaram
a conservação urbana em estratégia de agregação
de valor à economia urbana e em instrumento
poderoso de atração de investimentos privados
supra-regionais ou internacionais. Essas políticas
aceitam que os bons resultados compensam
socialmente a expulsão dos habitantes e
pequenos negociantes, por meio do processo de
‘gentrificação’, que é o resultado da revitalização de
áreas históricas, deterioradas e obsoletas, no qual
as áreas passam por um processo de valorização
das propriedades imobiliárias, atraindo usuários
que pagam rendas mais altas. A partir da ECO
92, a CI aliou a questão ambiental à social, o que
representou um retorno às concepções abrangentes
do planejamento urbano, em escala territorial.
Declaração de Amsterdã e os conceitos da
Conservação Integrada:
- o patrimônio arquitetônico contribui para a
tomada de consciência da comunhão entre história
e destino.
- o patrimônio arquitetônico é composto de todos
os edifícios e conjuntos urbanos que apresentem
interesse histórico ou cultural.
- o patrimônio é uma riqueza social; sua
manutenção, portanto, deve ser uma
responsabilidade coletiva.
- a conservação do patrimônio deve ser considerada
como objeto principal da planificação urbana e
144
não aparada como o calçamento de paralelepípedo. Isso não
só garante a preservação das características originais da cidade, em seus diferentes momentos históricos, como garante
também a manutenção de um tráfego leve, devidamente apropriado à escala urbana desse trecho da cidade. Além disso,
esses calçamentos têm a vantagem de permitir a infiltração da
água sem aquecer o ambiente, diferentemente do que ocorre
com a pavimentação asfáltica. Como alternativa ao paralelepípedo – fora dos dois trechos urbanos a serem tombados, mas
ainda dentro do perímetro do centro histórico –, pode-se adotar o bloco intertravado em seus diversos formatos, elemento
de fácil manutenção e substituição.
Quanto ao uso, em todo esse trecho, deve ser predominantemente residencial, com permissão restrita ao comércio, aos serviços e ao uso institucional. O comércio deve ser
apenas local, como padarias, pequenos mercados, lojas e farmácias. O uso institucional e de prestação de serviço não deve
produzir ruídos excessivos, nem transtornar os moradores ou
provocar uma alteração muito significativa no trânsito.
O tráfego de veículos pesados também deve ser proibido nesse trecho acima citado e desviado para as ruas Luiz
Gama e Luiz Piza, para que as trepidações não afetem as estruturas dos imóveis tombados, acelerando a sua deterioração.
Serão permitidas apenas carga e descarga de veículos autorizados. Deve-se prever também incentivos aos proprietários
de imóveis tombados, para que os conservem e restaurem
quando necessário, como descontos ou isenção do IPTU por
certo período de tempo, atitude já prevista no Projeto de Lei
N° 0442/89, do vereador Sérgio Pistelli, sobre a criação e funcionamento do Spachpan.
No trecho em torno da Praça Barão do Rio Pardo,
Praça Dr. Barreto, Rua Dr. Menezes e Praça Barão de Mogi
Guaçu, os usos, ocupação do lote e restrições do tráfego são
os mesmos citados acima, mas o gabarito das construções
pode elevar-se até 7m (2 X 3m+1m), tendo em vista que nesses locais as construções existentes hoje são de outra escala,
pois já aparecem construções de dois pavimentos.
No segundo trecho proposto para a preservação do
desenho urbano e de alguns imóveis, no entorno da Praça Rui
Barbosa, seguindo pela Rua Coronel José Júlio, o uso deve ser
predominantemente comercial e institucional, respeitando a
territorial.
- as municipalidades, principais responsáveis pela
conservação, devem trabalhar de forma cooperada.
- a recuperação de áreas urbanas degradadas
deve ser realizada sem modificações substanciais
da composição social dos residentes nas áreas
reabilitadas.
- a conservação integrada deve ser calcada em
medidas legislativas e administrativas eficazes.
- a conservação integrada deve estar fundamentada
em sistemas de fundos públicos que apóiem as
iniciativas das administrações locais.
- a conservação do patrimônio construído deve ser
assunto dos programas de educação, especialmente
dos jovens.
- deve ser encorajada a participação de organizações
privadas nas tarefas da CI.
- deve ser encorajada a construção de novas obras
arquitetônicas de alta qualidade, pois serão o
patrimônio de hoje para o futuro.
Pré-requisitos para a CI
- sensibilização da sociedade para a importância dos
bens culturais.
- garantir a manutenção e conservação das
qualidades e valores da configuração urbana e
arquitetônica.
- assegurar a manutenção do que existe de
específico, incorporando novos objetivos sociais e
econômicos.
- promover o contínuo monitoramento do estado
de conservação e estratégias de sustentação.
- elaboração de inventários físico-arquitetônicos e
de documentação histórica.
- o estabelecimento de ato administrativo
regulamentando o sítio como patrimônio cultural.
-a criação da comissão do sítio, com a representação
dos diversos grupos sociais presentes na sociedade.
Modelo de Aplicação da CI. Etapas:
1- Análise e Valorização
2- Negociação
3- Proposições
4- Monitoramento e Controle
5- Plano de Desenvolvimento Local
6- Programa de Educação Patrimonial
7- Legislações Urbanísticas e Tributárias
A Gestão da Conservação Urbana no Brasil
Com a nova Constituição de 1988, o Governo
Federal desobrigou-se das políticas públicas locais,
transferindo a responsabilidade para os Municípios,
que foram forçados a elaborar estratégias específicas
de desenvolvimento local. Em todas as experiências,
buscou-se a formação de uma nova ‘imagem’ da
cidade. Num mundo globalizado, onde localidades
competem diretamente por investimentos
produtivos, o que decide a competição são as
especificidades das localidades e suas imagens.
No Brasil, a aplicação de políticas locais de
desenvolvimento, voltadas para a revitalização de
áreas urbanas consolidadas ou históricas, é uma
novidade. Aparecem casos bastante polêmicos,
como o Pelourinho, em Salvador, e o Bairro do
Recife, em Recife.
145
escala urbana e as suas características históricas e atuais. No
entorno da Praça Rui Barbosa, o gabarito poderá chegar a
10m (3 X 3m+1m). Ao longo da Rua Coronel José Júlio, o
gabarito poderá chegar a 7m (2 X 3m+1m), respeitando a
largura da rua, que é bem estreita e de mão única, e as construções históricas ali existentes.
Em todo o centro histórico, identificado no mapa,
o gabarito das construções não poderá exceder 13m (4 X
3m+1m), respeitando a escala das ruas, com exceção para os
lotes frente às avenidas Luiz Gama e trecho da Luiz Piza, resguardando as suas devidas proporções, onde o gabarito poderá chegar a 16m (5 x 3m+1m).
Em todo esse tecido urbano identificado como o
centro histórico, a malha urbana existente atualmente deve
ser preservada. A partir de todo esse estudo realizado até o
momento, e considerando a escala reduzida dessa cidade e
desse centro histórico, consideram-se os espaços públicos ali
existentes adequados, não sendo indicadas modificações do
espaço. Deve-se incentivar, no entanto, espaços públicos no
entorno desse centro e nos bairros periféricos, e incentivar
ou até mesmo obrigar a ocupação de terrenos vazios nesse
centro histórico, através dos mecanismos previstos no Estatuto da Cidade10, que garantam a função social da terra, para
impedir uma ação da especulação imobiliária.
Com essas diretrizes gerais, pretende-se garantir a
qualidade do espaço urbano através da adequada convivência
entre a cidade antiga, que se transforma, a cidade tombada e
a cidade nova, que se constrói a cada dia. Para viabilizar todas
essas ‘restrições’ no centro histórico, deve-se prever o adensamento urbano e a verticalização em outros trechos da cidade,
de forma a não impedir o seu desenvolvimento; ao contrário,
incentivar o adensamento ordenado e com qualidade espacial, visualizando uma cidade de porte médio não espraiada,
mas concentrada adequadamente, de forma a garantir a acessibilidade e a circulação. Para tanto, a verticalização deve vir
acompanhada de um plano viário, que preveja o leito carroçável e o passeio público adequados; um plano paisagístico e
ambiental, que garanta a preservação de áreas de mananciais,
de matas ciliares, de áreas de contenção das boçorocas e de
matas virgens. Deve-se também prever local adequado para o
Aterro Sanitário, garantindo a não ocupação de seu entorno.
7-
Nesta monografia de conclusão de curso,
estamos considerando apenas o núcleo urbano
sede do município de Casa Branca e não todo o
município, que é composto por mais dois núcleos,
Venda Branca e Lagoa Branca.
8-
Níveis de Preservação (segundo o DPH
da Prefeitura de São Paulo):
NP-1: preservação integral dos edifícios, interna e
externamente, admitindo-se reparos sem alteração
da forma, estrutura, material e demais características
arquitetônicas relevantes.
NP-2: preservação das características arquitetônicas
externas dos edifícios, admitindo-se reformas
internas compatíveis com a conservação das
fachadas, cobertura e componentes arquitetônicos
externos.
NP-3: corresponde à definição de características
arquitetônicas externas – ritmo de vãos, proporções,
inclinação de coberturas, materiais – para
reformas em edificações existentes ou para novas
construções, visando à sua harmonização com
aquelas classificadas como NP-1 ou NP-2.
9-
A metodologia adotada para a definição
dos gabaritos máximos das construções em áreas
no entorno de imóveis tombados é a mesma
adotada em alguns trabalhos do Departamento
do Patrimônio Histórico da Prefeitura de São
Paulo. Utilizam-se 3m para cada pavimento e mais
1m como margem de tolerância, permitindo a
construção, por exemplo, de caixas d’água e uso de
pés-direitos mais altos.
10-
O projeto de lei (Projeto de Lei n.
5.788/90), conhecido como Estatuto da Cidade,
foi aprovado em julho de 2001, e está vigente
desde 10 de outubro desse mesmo ano. A partir
desse momento, o capítulo da política urbana
da Constituição de 1988, em combinação com o
Estatuto da Cidade e o texto da Medida Provisória
n. 2.220, dão as diretrizes para a política urbana do
país, nos níveis federal, estadual e municipal.
O Estatuto da Cidade prevê mecanismo de
intervenção urbana, como forma de garantir a
função social da cidade e da propriedade urbanas.
Dentre eles, destacamos nesta monografia, como
instrumentos de indução do desenvolvimento
para levar à ocupação de terrenos vazios ou
subutilizados: parcelamento, edificação ou utilização
compulsórios; IPTU progressivo no tempo;
desapropriação com pagamento em títulos; direito
de preempção; e criação de Zonas Especiais de
Interesse Social, ZEIS.
11-
Pelo texto da Constituição de 1988, o
Plano Diretor é o instrumento básico da política
municipal de desenvolvimento urbano (artigo
182). Cabe ao Plano Diretor cumprir a premissa
constitucional da garantia da função social da
cidade e da propriedade urbanas. Ou seja, é o Plano
Diretor o instrumento legal que vai definir, no nível
municipal, os limites, as faculdades e as obrigações
envolvendo a propriedade urbana. Deverá explicitar
de forma clara qual o objetivo da política urbana.
Deve partir de um amplo processo de leitura
da realidade local, envolvendo os mais variados
146
Para garantir o pleno atendimento do Plano Diretor11,
deve-se reestruturar a Prefeitura. Deve ser constituída uma
Secretaria do Planejamento Urbano, composta por arquitetos,
engenheiros e profissionais de diversas áreas. A esta secretaria
devem estar ligados o Departamento de Patrimônio Histórico, Departamento de Habitação e Áreas Públicas e Departamento do Meio Ambiente. Propõe-se esta estrutura visando
a um planejamento urbano e territorial integrado, atendendo
ao conjunto da área urbana e rural. Dessa forma, o órgão de
preservação municipal, o Spachpan, existente perante a lei,
mas inativo, deve ser modificado. Primeiro, é imprescindível
a sua profissionalização, daí a necessidade da constituição de
um Departamento com funcionários concursados, que inclua
um corpo de arquitetos, engenheiros, historiadores e sociólogos e que possua verba pública própria, advinda da Secretaria
de Planejamento Urbano.
Dentro do Departamento do Patrimônio Histórico,
deve-se prever um Estatuto12 de atuação frente às questões
de conservação e restauração dos bens tombados e também
uma metodologia para inventariar os bens do município e critérios para selecionar aqueles que devem ser tombados. Com
essa proposta, supomos que a ação local de um órgão de preservação municipal seja mais eficiente que a atuação de um
órgão estadual, no caso o Condephaat, principalmente pela
distância. A ação deve ocorrer próxima à população e atingir a
comunidade: deve fazer parte da vida dessa população. Como
premissa, a Secretaria do Planejamento Urbano deve agir de
forma conjunta com a Secretaria da Educação. A população
deve ser conscientizada constantemente da importância do
planejamento urbano para a vida em sociedade e não somente
sobre o patrimônio histórico, já que a ação para a preservação
desses bens é uma forma de planejamento urbano, daí a necessidade de estar inserida e prevista no Plano Diretor.
Para a atuação da Secretaria da Educação, em relação
específica a essa conscientização sobre o planejamento urbano e sobre a preservação do patrimônio cultural, pode ser
permitida a terceirização desse ‘serviço’, através do incentivo
a atividades extracurriculares, culturais e educativas, junto às
escolas, de forma a atingir crianças e seus familiares13. A inserção do assunto na grade curricular das escolas de ensino fundamental é uma conduta interessante. O orçamento deveria
setores da sociedade. A partir disso, vai estabelecer
o destino específico que se quer dar às diferentes
regiões do Município, embasando os objetivos e as
estratégias. (Brasil. Estatuto da Cidade (2001), p.43)
12-
O Estatuto do Departamento do
Patrimônio Histórico deve ser abrangente em
relação às questões de conservação e restauro
do patrimônio, para não incorrer em erros de
intervenção. É preciso buscar um equilíbrio
entre as várias teorias existentes, para evitar a
falsificação. Segundo palavras de Beatriz Kühl,
deve-se considerar que não há apenas uma forma
de se avaliar os monumentos históricos, mas
várias, cada qual de pertinência relativa. Além
disso, toda avaliação ou julgamento comporta
certa subjetividade, daí a importância de que
os profissionais envolvidos na conservação do
patrimônio tenham uma sólida formação histórica e
estética, principalmente, para se buscar o equilíbrio
entre a subjetividade e a objetividade dessas análises.
“A questão da conservação de monumentos
históricos deve ser discutida e enfrentada dentro da
realidade de cada época, e o fato de, futuramente,
as soluções serem, provavelmente, diversas, não nos
exime da responsabilidade pela sua preservação.
Ainda que não haja consenso e, muitas vezes,
nem mesmo coerência nas abordagens, não se
deve renunciar ao exercício da razão e da crítica”
(KÜHL, p.482).
Os vários conceitos de restauração:
Restauro arqueológico: introduz o princípio
da ‘distinguibilidade’. Permite a recomposição ou
consolidação do monumento, mas as intervenções
ou adições devem ser distintas da obra original.
Restauro estilístico: não há distinção entre
os componentes restaurados e os originais;
os acréscimos são eliminados para que as
características do estilo principal sejam ressaltadas.
Restauro romântico: preservação da matéria
original do monumento; respeito às modificações
e ampliações posteriores; respeito absoluto pela
edificação em seu estado atual; repulsa pela
intervenção.
Restauro histórico: o monumento é visto como
documento. As intervenções devem se basear em
dados concretos fornecidos pela pesquisa histórica
e pelo próprio objeto de estudos; permite-se a
reconstrução.
Restauro moderno: monumentos como
documentos da história da civilização. Devem ser
preservadas as adições e modificações no decorrer
do tempo e conservadas as marcas da passagem
do tempo. Prefere a consolidação à reparação, e
a reparação à restauração; as intervenções devem
ser distintas da obra original através do uso de
materiais diversos; todo trabalho de restauro deve
ser documentado e ter marcas que o identifiquem.
Restauro científico: confere grande importância
aos valores históricos e documentais de um
monumento, dando a eles maior relevância que aos
elementos formais. Restauração baseada em estudos
rigorosos.
Restauro crítico: passa-se a dar maior importância
ao caráter artístico e estético da obra, à sua
mensagem formal. Permite-se a reconstrução e a
147
prever contratos anuais de empresas encarregadas de organizar eventos, palestras, seminários, cursos, festas e apresentações culturais. Dessa forma, a população seria incentivada a
tomar parte da vida social e cultural da cidade sem ser obrigada. O aprendizado seria mais fácil, já que espontâneo, além de
efetivo e duradouro.
4.3.1 Proposta de intervenção
Como forma de viabilizar o aprofundamento dos estudos sobre o patrimônio histórico da cidade de Casa Branca,
propomos a construção de um edifício adequado para abrigar
museu e arquivo municipal, o que possibilitaria a organização
dos documentos históricos, haja vista que, atualmente, o museu da cidade localiza-se em um antigo prédio da Prefeitura,
localizado fora do centro da cidade, sem uma estrutura física
que comporte sua função.
Acrescentam-se ao programa dessa nova edificação
usos compatíveis com a carência da população por espaços
culturais e de lazer. O novo edifício comportaria, então, um
programa complexo, agregando as funções de museu, arquivo municipal, salas para acesso grátis à internet, espaço para
leitura, café, espaços para palestras e cursos gratuitos, além de
área de lazer ao ar livre com pistas de skate e pequeno parque
infantil, por exemplo. Com esse programa procura-se integrar
lazer e cultura e aproximar a comunidade das atividades relacionadas à preservação do patrimônio histórico do Município.
A escolha do local do projeto advém da constatação
da necessidade de um espaço público que acolha a população
e atenda às suas carências, que contribua também para a valorização do patrimônio histórico.
Escolhemos para o projeto o terreno vazio entre a
Praça Honório de Syllos e a Rua Luiz Gama. Com isso, pretendemos valorizar o patrimônio cultural desse primeiro eixo
de ocupação do território de Casa Branca, como forma de
reafirmar o seu caráter histórico diante da população casabranquense, integrando-o à vida social urbana.
anastilose.
Restauro analógico: faz uso de técnicas
tradicionais e reposições idênticas.
13-
Tomam-se como exemplo as atividades
realizadas pela Fazenda Pinhal, em São Carlos,
em parceria com a Prefeitura daquele Município.
A Semana Pró Casa do Pinhal é realizada em São
Carlos desde 2001, com o objetivo de estimular os
valores de preservação e o acesso ao patrimônio
histórico-cultural do Município, através de
atividades para alunos da rede municipal e da
Universidade Aberta da Terceira Idade (UATI), para
professores e para o público em geral. Neste ano de
2006, estão programadas para os meses de maio e
junho, visitas à Fazenda Pinhal, que receberá todos
os alunos da 3ª série do Ensino Fundamental e da
Educação de Jovens e Adultos (EJA), ampliando
o caráter educativo do evento e promovendo a
inserção das visitas como recurso pedagógico. A
UATI também consolidará sua participação, com
a visita dos alunos de seus dois campi a Pinhal. Em
2006, portanto, a Fazenda deverá receber mais de
mil e duzentos visitantes.
O tema da Semana Pró Casa do Pinhal deste
ano de 2006 é a Cultura e História Afro-Brasileira:
contribuição da população negra em São Carlos, buscando
atender a uma demanda por conteúdos que
abordem a participação do negro na história local
e a conseqüente ampliação dos personagens desta
história.
Dessa forma, além das visitas dos estudantes, estão
programadas palestras para o público em geral e
oficinas para públicos específicos: professores,
monitores e profissionais da área cultural e
educacional. O evento prevê atividades ligadas à
cultura negra, com danças, música, exposições de
fotografias e artes plásticas abertas ao público. (Pró
Casa do Pinhal, São Carlos)
115- Mapa com a localização do terreno para a
construção do projeto proposto (marca verde).
148
Propomos que a entrada principal dessa edificação es-
teja voltada para a Rua Luiz Gama, que, pelas suas dimensões,
comportaria melhor o uso coletivo voltado para o lazer. Na
Rua Waldemar Panico e Praça Honório de Syllos, propomos
apenas o acesso para o museu e arquivo através de uma praça.
Separa-se o uso do lazer do cultural apenas por uma questão
funcional, devido à preocupação de não se alterar a caracaterística residencial daquele local.
116- Foto do terreno proposto para o projeto, na
Rua Florinda de Souza (antiga Rua dos Mineiros)
Praça
Honório
de Syllos
Rua Luiz Gama
Rua Mestre
Araújo
Rua Barão de
Casa Branca
117- Foto do terreno proposto para o projeto, com
uma das frentes para a Praça Honório de Syllos.
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Rua dos M
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118- Sequência de croquis para o projeto do edifício
e praça propostos.
150
Considerações Finais
Ao longo desta monografia, discutimos a respeito do
histórico, da evolução urbana, do urbanismo e do patrimônio
cultural de Casa Branca com o intuito de trazer à tona o valor
cultural dessa cidade do interior paulista. Enquanto nos estudos anteriores sobre essa localidade destacava-se a colonização açoriana e a intervenção da Coroa portuguesa, pretendemos conhecer também a ocupação sertanista, dos ‘paulistas’
e ‘mineiros’. Levantamos dúvidas sobre conceitos afirmados
há tempos e questionamos o desenho urbano, o traçado de
ruas e praças. Houve uma grande procura do entendimento
desse espaço, em seus aspectos físicos, arquitetônicos e urbanísticos, e em seus aspectos culturais, para que pudéssemos
propor formas de intervenção para garantir a preservação de
seu patrimônio coletivo.
As propostas clamam por ações imediatas, com alterações na estrutura administrativa do Município, tendo em vista que este poder torna-se o responsável pelo planejamento
urbano integrado. A escala reduzida da cidade permite tais
intervenções, que devem ser aperfeiçoadas e discutidas por
um conselho que elabore o Plano Diretor e por membros de
um departamento do patrimônio histórico, em uma ação conjunta com a secretaria de planejamento urbano e em parceria
com a população, além de parcerias para concretizar restaurações e projetos de conservação de alguns edifícios da cidade.
O trabalho apenas começou. A cidade de Casa Branca
precisa discutir questões urbanas, precisa envolver-se com a
vida citadina. Em parceria com outros arquitetos da cidade e
com membros da sociedade, tentamos, agora, organizar grupos de estudo sobre a cidade e eventos para o debate sobre
patrimônio histórico com a população.
Além disso, as questões colocadas por todo o trabalho
estão em aberto para discussões, passíveis de serem aprofundadas em um futuro mestrado.
151
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Anexo I
Registro de Imóveis da Rua Waldemar Panico
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de Casa Branca.
155
156
Anexo II
Revista Cigarra, década de 1910 - provavelmente de 1916.
157
Esta monografia foi composta em
Garamond corpo 9/12/13/14 e 16 e
impressa em papel sulfite 90g/m² na
Impressora Epson CX 4700, em São
Paulo/SP, em junho de 2006.
158
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Evolução Urbana de uma Cidade no Interior Paulista