Mulheres na ciência: problematizando discursos e práticas sociais
na constituição de “mulheres-cientistas”
Fabiane Ferreira da Silva1
Paula Regina Costa Ribeiro2
Resumo
Este artigo é o recorte de uma pesquisa sobre a trajetória de mulheres no campo da ciência. A
produção de entrevistas semi-estruturadas com mulheres cientistas atuantes em Universidades
públicas e Institutos de Pesquisa constitui o corpus de análise deste estudo. Assim, procuramos
compreender como se dá a inserção e a participação feminina na ciência moderna, constituída em
bases quase exclusivamente masculinas. Entendemos a ciência como um construto sociohistórico
que institui e regulamenta normas, saberes e verdades. No artigo, analisamos uma das entrevistas
que narra as motivações para a escolha da profissão, a trajetória acadêmica e profissional e as
dificuldades encontradas nesse percurso. Tal narrativa nos possibilita problematizar alguns discursos
e práticas sociais que estiveram e estão implicados na constituição dos sujeitos, neste caso, na
constituição de mulheres cientistas, ensinando-lhes modos de ser e de agir como mulheres e de
pensar e atuar com relação à ciência.
Palavras-chave: Mulheres; Gênero; Ciência; Narrativas.
Introdução
Numa perspectiva histórica a ciência tem se caracterizado como uma atividade masculina. Entretanto,
isso não significa dizer que as mulheres não participaram da produção do conhecimento científico.
Houve época em que a ciência era produzida no ambiente familiar e neste caso, as mulheres
envolveram-se com atividades científicas, seja observando astros com o uso de telescópios, seja
analisando plantas, insetos ou outros animais, juntamente com seus pais, maridos ou irmãos
cientistas (SCHIEBINGER, 2001). As mulheres também produziram um grande conhecimento sobre o
uso de plantas e ervas medicinais, além de serem responsáveis pelo acompanhamento de partos e
nascimentos (SCHIEBINGER, 2001; TOSI, 1998).
Contudo, a partir da formalização das ciências e a mudança dos laboratórios e observatórios do
ambiente familiar para dentro das universidades, a participação da mulher ficou mais restrita. Por
muito tempo, com exceções, as mulheres não puderam desenvolver pesquisas científicas nem
mesmo como auxiliares, já que até recentemente eram impedidas de freqüentar as instituições de
ensino, pois a elas cabia assumir o cuidado da casa, dos filhos e do marido. Cabe destacar que as
universidades embora tenham sido criadas aproximadamente no século XII, só passaram a admitir
1
Mestre em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutoranda em Educação em
Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E-mail: [email protected].
2
Doutora em Ciências Biológicas pela UFRGS. Professora Associada do Instituto de Educação e dos Programas de PósGraduação em Educação Ambiental e Educação em Ciências da FURG. E-mail: [email protected].
1
mulheres em seu quadro de discentes e docentes no final do século XIX e início do século XX
(SCHIEBINGER, 2001). De acordo com Maffia (2002), as primeiras universidades que admitiram
mulheres foram: a da Suíça em 1860, a da França em 1880, a da Alemanha em 1900, a da Inglaterra
em 1870, bem como, nesse mesmo período também ocorreu o movimento de admissão das mulheres
na academia brasileira. Com relação ao Brasil, cabe destacar, que o ingresso de mulheres em
instituições de ensino superior deu-se com a “Reforma Leôncio de Carvalho”, em 1879, que
estabeleceu o ensino para todas as crianças e passou a permitir a inserção das mulheres nas
instituições de ensino (LIMA, 2002).
Segundo Maffia (2002), na Inglaterra aconteceu algo interessante com relação à inserção das
mulheres na academia, pois em 1869, ano da criação do primeiro college, de Virton College, no qual “as
mulheres podiam estudar, mas não recebiam o título; faziam provas, mas não estavam nas atas; então,
elas não podiam trabalhar” (p. 32). Somente doze anos depois, em 1897, conseguiram que lhes
entregassem os títulos que correspondiam aos estudos realizados nas universidades, o que gerou todo tipo
de manifestações, uma vez que as mulheres que estudavam eram consideradas um perigo social
(MAFFIA, 2002). Já as Academias de Ciências mais antigas – a Royal Society de Londres fundada
aproximadamente em 1640 e a Academia de Ciências de Paris em 1666 – só passaram a admitir mulheres
a partir de 1945 e 1979, respectivamente, ou seja, tiveram que passar mais de trezentos anos para que
estas academias recebessem mulheres (MAFFIA, 2002).
Assim, o mundo da ciência se estruturou em bases quase exclusivamente masculinas, ora
excluindo as mulheres, ora negando as suas produções científicas, através de discursos nada
neutros. Apesar dos mecanismos de exclusão, sejam pelos processos formais, pelos discursos
científicos que ao naturalizarem as diferenças entre homens e mulheres determinam os lugares
sociais ou até mesmo pelos processos culturais de invisibilização de mulheres cientistas ao longo da
história, as mulheres, em maior ou menor representatividade, estiveram presentes e atuantes na
história das ciências.
Atualmente, é possível perceber o número significativo de mulheres em muitas universidades do
país entre discentes e docentes, contudo, apesar dessa crescente presença feminina no mundo da
ciência, ainda se evidencia que essa participação vem ocorrendo de modo dicotomizado ou ainda
está aquém da presença masculina. De acordo com Garcia e Sedeño (2006), a participação das
mulheres nas ciências se encontra, mundialmente, em torno de 30%, já em altos postos estima-se
que em torno de 5 a 10%. Entretanto, essa taxa ainda é menor nas áreas consideradas masculinas,
como por exemplo, a física. Nesse sentido, tanto a representação desproporcional de mulheres e
3
4
homens na ciência quanto à segregação horizontal e a progressão vertical constituem questões
problemáticas que têm atraído a atenção de pesquisadores/as, feministas e autoridades públicas.
3
A segregação horizontal ou territorial refere-se à divisão sexual nas áreas do conhecimento, ou seja, as mulheres estão mais
presentes em alguns setores e atividades do que em outros, caracterizando determinadas áreas em femininas ou masculinas
na ciência. Ver Shiebinger, 2001.
4
A progressão vertical ou hierárquica refere-se à exclusão das mulheres ao topo da carreira, dos postos de decisão e de
reconhecimento, produzindo o fenômeno denominado “teto de vidro”. Nesse sentido, a expressão “teto de vidro” é utilizada como
metáfora que significa a invisibilidade dos obstáculos que limitam e dificultam a ascensão das mulheres na carreira
2
Melo e Lastres (2006), ao traçarem um quadro da inserção feminina no sistema de pesquisa científica
e tecnológica nacional, tendo como base os dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), argumentam “que apesar do crescimento expressivo do número de mulheres com
formação universitária no Brasil, a participação feminina na produção do conhecimento ainda está aquém
da presença feminina na universidade” (p. 132). Segundo as autoras, as mulheres atuam em todas as
áreas do conhecimento com maior ou menor participação, o que evidencia o esforço feminino na busca por
mudanças. Entretanto, as autoras chamam a atenção para o viés sexista que impregna a ciência, pois
mulheres e homens participam de campos científicos diferentes, uma vez que a maioria masculina está
concentrada nas ciências agrárias e veterinárias, engenharias e principalmente a física, enquanto a maioria
feminina está nas ciências biológicas e nas humanidades.
Essa distribuição dicotomizada também é constatada na Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), os dados de 2008 dessa agência de fomento mostram que
dos 3559 pesquisadores/as que apresentam projetos financiados correspondentes às áreas de
ciências biológicas, ciências exatas e da terra, engenharias e ciência da computação, 2146 são
homens enquanto 1413 são mulheres (SILVA e RIBEIRO, 2009). Na FAPERGS, é possível perceber
a significativa participação das mulheres na química, na matemática e na área de ciências biológicas,
na qual o número de mulheres é superior ao número de homens, correspondendo às discussões
teóricas sobre a feminização dessa área (MELO e LASTRES, 2006). A relação entre mulheres e
homens é bastante diferente em outras áreas, tais como, a ciências agrárias, a ciências da
computação e, sobretudo a Física.
Entretanto, embora as estatísticas evidenciem que as mulheres têm participado cada vez mais das
atividades de ciência e tecnologia no Brasil, sendo que em algumas áreas elas ultrapassam expressivamente o
número de homens, por outro lado, elas ainda não avançam, com raras exceções, em cargos e posições de
destaque e reconhecimento. De acordo com dados divulgados no Encontro Brasil – Reino Unido sobre Mulheres
5
e Ciências , o número de bolsas em produtividade de pesquisa distribuídas pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) anualmente tem os homens como seu público principal. As
mulheres representam apenas 34% do número de bolsistas, e em algumas áreas, como engenharia elétrica, a
porcentagem de mulheres que requisitam bolsas só chega a 5%. Os dados revelam ainda que, quanto maior a
hierarquia acadêmica ou cientifica, menor é a participação feminina. Essa exclusão hierárquica das mulheres no
cenário nacional foi amplamente discutida no Encontro Brasil – Reino Unido sobre Mulheres e Ciências. Com os
diagnósticos divulgados durante o evento foi concluído que nos níveis mais altos da bolsa de Produtividade e
Pesquisa a maioria dos pesquisadores é do sexo masculino, inclusive nas áreas tidas como femininas, enquanto
que nos níveis iniciais da carreira, o número de mulheres é bem mais
profissional, uma vez que não existe barreiras formais que justifiquem o fato das mulheres não conseguirem ascender profissionalmente
na mesma proporção que os homens. Shiebinger (2001) também discute o conceito de “teto de vidro”.
5
O Encontro Brasil – Reino Unido sobre Mulheres e Ciências foi realizado em fevereiro deste ano, com o objetivo de articular entre os
pesquisadores a formação de uma rede de pesquisa voltada para o público feminino e ainda incentivar a consolidação de políticas
públicas visando à maior inserção e participação das mulheres em todos os campos da ciência no Brasil e em outros países.
Informações disponíveis em: http://www.cnpq.br/saladeimprensa/noticias/2010/0202.htm.
3
expressivo. Segundo Panizzi, “essa situação de desigualdade no mundo acadêmico só irá deixar de
existir se forem tomadas medidas de incentivo à participação das mulheres na ciência, principalmente
nas engenharias, computação, matemática, física e filosofia, que é composto em sua maioria por
homens” (SALA DE IMPRENSA DO CNPQ, 2010a).
Considerando as proposições apresentadas, algumas questões se colocam: O que faz com que o
número de mulheres ainda hoje seja consideravelmente menor do que o de homens na ciência, em várias
áreas do conhecimento? Porque as mulheres cientistas no Brasil ainda não avançam tanto em cargos e
posições de destaque e reconhecimento? Por que tão lentamente as mulheres se inserem no campo da
ciência? Quais foram os acontecimentos políticos, econômicos, sócio-históricos que produziram e ainda
produzem efeitos na inserção das mulheres nas ciências? Como se dá a trajetória de mulheres na ciência
moderna, marcada por um viés androcêntrico?
São perguntas complexas que permeiam os estudos feministas sobre gênero e ciência e que nos
motivam a investigar sobre essa temática. Desse modo, a partir da análise das narrativas de algumas
mulheres cientistas de universidades públicas e instituições de pesquisa do Rio Grande do Sul sobre
suas trajetórias no campo da ciência é que buscamos possibilidades de entendimento para essas
6
questões .
Nesse sentido, utilizamos como metodologia a investigação narrativa a fim de conhecer e tornar
visível a situação das mulheres na ciência, as barreiras e dificuldades que elas encontram nesse
campo, os processos de constituição das identidades, os discursos e as práticas sociais que
inscrevem os sujeitos, questões que são importantes para uma compreensão mais ampla das
relações de gênero na ciência. A utilização da narrativa como método de investigação justifica-se em
função do entendimento de que somos seres contadores de histórias, somos seres que individual ou
socialmente, vivemos vidas narradas.
A partir das contribuições de Larrosa (1996; 2002), entendemos a narrativa como uma prática social
que constitui os sujeitos, pois é no processo de narrar e ouvir histórias que os sujeitos vão construindo
tanto os sentidos de si, de suas experiências, dos outros e do contexto em que estão inseridos. Para
Larrosa (1996), a narrativa é uma modalidade discursiva, na qual as histórias que contamos e as histórias
que ouvimos, produzidas e mediadas no interior de determinadas práticas sociais, passam a construir a
nossa história, a dar sentido a quem somos e a quem são os outros, constituindo assim as identidades –
de gênero, sexual, étnico/racial, religiosa, profissional, de classe social, de mãe/pai, filha/o, esposa/o, entre
outras. É nesse complexo jogo narrativo que aprendemos a construir a nossa identidade, a dar sentido a
quem somos. Dessa forma, segundo o autor, quem somos, não é algo que encontramos ou descobrimos,
como se fizesse parte da essência de cada um, mas é algo que inventamos, construímos e modificamos
nessa gigantesca e polifônica conversação de narrativas que é a vida e que inclui as pessoas com quem
nos relacionamos e cujas histórias nos relacionamos.
6
Este estudo refere-se à pesquisa de doutorado “As mulheres na ciência e tecnologia: vozes, tempos, lugares e trajetórias”
que desenvolvemos no Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências da FURG.
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Assim, a história das mulheres na ciência é constituída por muitas histórias, é uma história polifônica
construída por muitas vozes, discursos e práticas sociais. Partindo do pressuposto de que a investigação
narrativa permite a utilização de diversos instrumentos para a produção dos dados, elegemos como instrumento
de pesquisa a realização de entrevistas individuais semi-estruturadas.
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Neste artigo, analisamos uma das entrevistas que foi realizada com uma engenheira a qual
narra as motivações para a escolha da profissão, a trajetória acadêmica e profissional e as
dificuldades encontradas nesse percurso, a fim de problematizarmos alguns discursos e práticas
sociais que estiveram e estão implicados na constituição dos sujeitos, neste caso, na constituição de
mulheres cientistas, ensinando-lhes modos de ser e de agir como mulheres, como cientistas e de
pensar e atuar com relação à ciência.
Para tanto, organizamos o artigo da seguinte forma. Inicialmente, contextualizamos um pouco da história de
vida da entrevistada a partir do que apreendemos da sua narrativa. Num segundo momento, analisamos as
justificativas para a escolha profissional, procurando entender as motivações, os contextos e condições que
possibilitaram essa decisão. A seguir, discutimos a engenharia como um espaço masculino, enfatizando as
estratégias e mecanismos desenvolvidos pela participante da pesquisa para enfrentar os obstáculos e barreiras
vivenciados ao longo do curso. Finalizamos a discussão argumentando sobre a importância de conhecer e tornar
visíveis a história de mulheres no mundo da ciência, pois as mesmas evidenciam os processos de exclusão, as
dificuldades, os preconceitos, as estratégias desenvolvidas para superar essas questões, constituindo as
mulheres cientistas. Desse modo, visamos contribuir com os estudos que buscam compreender as relações de
gênero na ciência e a produção dos sujeitos, mulheres e homens, nesse contexto, tendo em vista a constatação
de que estudos sobre gênero na ciência ainda permanecem incipientes.
Um breve retrato da mulher desta história
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Silvia é a primogênita de um casal que teve duas filhas. O pai, que começou a trabalhar muito cedo foi fiscal da
receita federal, mas sonhava em ser engenheiro. A mãe, dona de casa, queria ter trabalhado no espaço público.
No ensino fundamental, Silvia argumenta que já tinha interesse pela área da ciência, era curiosa e gostava de
inventar “coisas”. No ensino médio, gostaria de ter feito o curso de Eletrotécnica no Colégio Técnico Industrial
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Prof. Mário Alquati (CTI), mas não fez porque na época só tinha meninos. Após o ensino médio, decidiu fazer
engenharia civil na Universidade Federal do Rio Grande, porque naquela época já havia mulheres nesse curso.
Concluído o primeiro ano de Engenharia Civil, decidiu fazer Engenharia elétrica na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Fez mestrado em Ciências da Computação na mesma universidade e doutorado em Informática
e Telecomunicações - Centre National de la Recherche Scientifique. Atualmente é professora adjunta
7
Para a realização desta entrevista elaboramos um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido informando à participante os
objetivos e procedimentos a serem adotados ao longo da pesquisa.
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Cabe destacar que na divulgação dos dados da pesquisa optamos por manter o nome das participantes, questão que foi
combinada durante a realização das entrevistas.
9
Atualmente o CTI passou a integrar o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) como
Campus Rio Grande.
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da Universidade Federal do Rio Grande, na área de Engenharia da Computação, com ênfase em
Inteligência Artificial e Robótica. Silvia atua em dois Programas de Pós-Graduação da FURG,
Modelagem Computacional (Mestrado) e Educação em Ciências (Mestrado e Doutorado). Silvia é
casada e tem uma filha.
(Re)lembrando escolhas e caminhos: as motivações para ingressar na
engenharia
Por que tu escolheste a engenharia? Como se deu essa escolha? Essas foram as perguntas que
deram início a entrevista realizada com a Silvia na sua sala de permanência na universidade em que
atua. Desse modo, com essas questões iniciais tínhamos como propósito conhecer um pouco da
história de vida da Silvia, as escolhas, as motivações, os interesses que a levaram a ingressar na
engenharia.
Ao justificar a escolha da profissão a Silvia argumenta:
“Eu sempre gostei muito de ciências exatas, na verdade eu sempre tive muita facilidade, eu tinha muita
facilidade com matemática e física assim, era simples pra mim tratar com física e matemática. Por outro
lado, eu sempre fui meio aham, assim muito curiosa, sempre tive muita curiosidade, sempre inventava
coisas, vivia inventando coisas. [...] La pela sexta ou sétima série eu dizia que eu queria ser cientista [...], e
ser cientista pra mim era trabalhar com química em laboratório. Essa era a visão que eu tinha. Então eu
queria ser cientista e queria trabalhar com vidrinhos e coisas. Tinha aqueles kits de laboratório, sabe
aqueles kits de química? Adorava brincar com aquilo, vivia no quintal brincando com coisas assim de
inventar. [...] me lembro eu no quintal mexendo em coisas, não sei da onde essa coisa de mexer, inventar.
Inventava instrumento musical, inventava milhões de coisas. Eu não sei se as crianças inventam, acho que
inventam. A gente olha muito pra gente assim, mas tu ta dizendo pra falar de mim. [...] Então o inventar
coisas misturado com a facilidade de matemática e física fizeram com que eu achasse que seria legal pra
mim eu fazer alguma coisa em termos de exatas. Até me lembro de conversar com o meu pai e meu pai
dizer assim: _é tu pode ser professora de matemática, tu pode ser professora de física, tu pode ser
engenheira, engenheira talvez seja melhor, porque tem aquela coisa social. Lembro-me do meu pai dizendo
isso. Aí no final acabei optando, no final do terceiro ano do segundo grau por fazer engenharia civil que era
a engenharia mais... era a união da física e matemática. Com essa coisa do pai dizer que tu tens que ser
engenheira, acabei fazendo.”
Ao analisarmos essa narrativa percebemos que as motivações que levaram a Silvia a optar pela
engenharia estão relacionadas principalmente às habilidades e características necessárias para
ingressar nesse campo e o papel importante que o pai desempenhou nessa escolha. Tais
habilidades, na visão da Silvia referem-se ao gosto pelas ciências exatas, principalmente a facilidade
com a matemática e a física, e ao fato de ser muito curiosa e inventar coisas. Nessa mesma direção,
a Silvia argumenta que sempre quis ser cientista, e ser uma cientista para ela estava relacionado com
as atividades de laboratório, e neste caso, com a invenção, manipulação, experimentação,
observação...
Os aspectos que emergiram da narrativa da Silvia sobre sua escolha pela engenharia nos
levaram, num primeiro momento, a pensar/problematizar a concepção tradicional de ciência
considerada objetiva, neutra e universal, tendo a física e a matemática como referenciais de rigor e
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exatidão científica. Essa concepção, ainda dominante, tem como base o pressuposto de que um método é
o que vai definir o que é a ciência e o caminho cientificamente “correto” de produzir conhecimento, através
da lógica, da racionalização, da observação e da experimentação, tendo o espaço do laboratório como
locus de investigação do conhecimento científico. Essa estrutura está sustentada principalmente no
empirismo, mecanicismo, positivismo e na visão cartesiana. Nessa perspectiva, a razão, a lógica, o
quantitativo, o controle e a previsibilidade, a objetividade são aspectos que caracterizam uma
prática/produção intelectual como ciência, logo é considera não-ciência tudo aquilo que não se adequar a
esses discursos e práticas.
Tais fundamentos da ciência moderna têm sido criticados há muito tempo, especialmente entre os
epistemólogos, como Thomas Kuhn (2007), em A estrutura das revoluções científicas, Paul Feyerabend
(2007), em Contra o método, entre outros. Segundo Souza (2002), tais análises críticas introduziram um
novo capítulo na história da filosofia da ciência, mudando de modo decisivo essa concepção até então
predominante. Nessa direção, passam a ser problematizados os pressupostos da ciência, a linearidade,
objetividade e exatidão do método científico; a neutralidade e inocência da ciência, uma vez que a prática
científica está fundamentada em uma teoria, está comprometida com interesses sociais, econômicos e
políticos; a universalidade da ciência que decorre das leis da natureza; o laboratório como lugar de
produção da ciência. A partir de tais problematizações, determinadas correntes teóricas passam a discutir
a ciência como um construto social, cultural e histórico implicada em sistemas de significação e relações de
poder.
Com estas breves considerações a narrativa da Silvia nos leva a pensar que na sua constituição enquanto
aluna, pesquisadora, engenheira, cientista ela foi sendo interpelada pelos discursos que enfatizam a concepção
tradicional de ciência, uma vez que muitas dessas visões tradicionais perpassam diversas instâncias sócias, tais
como a escola, a universidade, a mídia, etc. Com isso não queremos dizer que o entendimento de ciência da
Silvia se resume as questões apresentadas por ela, o que buscamos foi analisar alguns enunciados sobre
ciência que emergiram nessa narrativa.
Além dessa questão, é importante destacar o incentivo do pai para que ela fizesse um curso de
engenharia, tanto em função do desejo de ser engenheiro e não ter tido a possibilidade de estudar,
como também da representação social que um curso de engenharia apresenta. Nas palavras da
Silvia:
“Meu pai foi fiscal da receita, ele começou a trabalhar muito cedo na época não precisava curso
superior, ele não pode fazer curso superior, mas ele é o cara mais engenheiro que eu conheci mesmo
sem ser engenheiro. E aquela coisa de filha mais velha, somos duas irmãs, então aquela coisa meio
que de projetarem... Ele projetou mais ou menos em mim talvez o que ele quisesse ser, também tem
essa questão. Teve, tem um pouco disso, eu acho que teve um pouco de projeção, ele sempre quis
ser, estudar engenharia e não teve possibilidade, e eu acho que ele sempre projetou desde pequena,
então eu tive um pouco disso também.”
No nosso entender, o desejo do pai em ser engenheiro influenciou a Silvia na escola profissional.
Além disso, a partir do contexto narrado, talvez possamos afirmar que o fato do pai não ter tido filhos e ela
ser a filha mais velha, tenha contribuído para que ele incentivasse a filha a fazer um curso de engenharia,
projetando nela a realização do desejo de ter sido engenheiro.
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Contrapondo-se a essa questão vivenciada pela Silvia, Velho e León (1998) destacam que os pais e
professores “têm função relevante no sentido de encorajar e motivar os meninos, mas não as meninas,
para a Matemática. Esta passa, então, a ser vista como “coisa de meninos”, conflitante com a identidade
sexual das meninas, ‘mais difícil’ e “menos útil” para elas” (p. 313). Para as autoras esse aspecto
vivenciado antes mesmo do ingresso das mulheres nas universidades pode ser uma das causas para o
pequeno envolvimento delas na Física e nas Engenharias. Deste processo de diferenciação de “papéis”
resulta a concentração de mulheres e homens em campos diferentes da ciência, embora atualmente a
proporção de mulheres tenha crescido nas ciências, em geral, e na Física e Engenharias em particular, a
representatividade feminina ainda é inferior e o viés sexista que perpassa a ciência ainda persiste.
Nessa direção, cabe destacar o contexto econômico, político e social dos anos 80, período em que a
Silvia ingressou na engenharia. Socialmente a engenharia tem reconhecida influência nos rumos
profissionais possibilitando oportunidades de inserção num mercado de trabalho amplo e diversificado.
Historicamente, o ingresso das mulheres tanto nas engenharias como em outras áreas no Brasil, deu-se
em função da convergência de vários fatores. Para Lombardi (2005), deve-se principalmente às
transformações culturais ocorridas a partir da década de 60 no Brasil que estimularam as mulheres a
acrescentarem ao seu projeto de vida a construção de uma carreira profissional e também a expansão das
vagas em universidades que favoreceu a concretização do anseio feminino pela profissionalização,
ampliando as possibilidades das mulheres para além daquelas áreas tradicionais tais como enfermagem e
magistério. Por outro lado, de acordo com a autora, determinadas profissões, tais como a arquitetura, a
odontologia, a engenharia, a medicina, o jornalismo, as ocupações jurídicas, vinham passando por
profundas mudanças que abriram novas possibilidades de inserção para as mulheres que nelas se
formaram a exemplos dos processos de especialização e assalariamento em detrimento da anteriormente
predominante autonomia profissional, trazendo também modificações nas suas representações sociais,
com repercussões no nível de prestígio e status atribuído aos profissionais.
Nesse sentido, de um modo geral, tais aspectos constituíram as condições de possibilidade para a
inserção das mulheres em áreas como a engenharia. Entretanto, embora com a crescente presença das
mulheres na engenharia, de maneira geral, a presença das mulheres em determinadas áreas da
engenharia ainda é muito pequena, caracterizando a engenharia como uma profissão tradicionalmente
masculina (CABRAL, 2006; LOMBARDI, 2005).
Retomando a entrevista com a Silvia, ela narra que no final do ensino médio decidiu que queria fazer
um curso de engenharia, entretanto, como não sabia bem que especialidade da engenharia seguir, ela
acabou optando pela engenharia civil em função de ser um curso que tinha um número equivalente de
mulheres e homens. Numa perspectiva de gênero sobre esses cursos, as pesquisas quantitativas mostram
que a engenharia civil e a engenharia química são as áreas da engenharia mais abertas à presença
feminina (LOMBARDI, 2005). Silvia ao justificar a escolha pela engenharia civil argumenta: “até pensei em
fazer a engenharia mecânica, também tinha o rolo, a engenharia mecânica não tinha mulher, só tem
homem. E eu não sabia bem o que era cada engenharia, então
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decidi me escrever pra civil. Aí eu fiz um ano de civil em Rio Grande.”
Dando continuidade à entrevista, ela conta que desistiu da civil e foi fazer o curso de engenharia
elétrica na UFRGS:
“Eu fiz vestibular em 86 e entrei em 87. Aí eu fiz, mas bah sabe não era bem a minha praia. Tinha um
colega meu que entrou junto comigo e ele dizia: _ ai Silvia vai fazer um troço em Porto Alegre, porque
engenharia civil sei lá, tu já te imaginou fazendo plantas, tu gosta mesmo é de cálculo, de física,
porque tu não faz vestibular em Porto Alegre pra engenharia elétrica?Aí na época, eu comecei no
primeiro ano de engenharia civil na FURG tem as disciplinas de cálculo e as disciplinas de física, física
II, que é eletricidade e magnetismo, eu tive um professor que hoje ele é meu colega aqui, ele dava
uma aula fantástica assim de física II, e esse colega meu me botando pilha. Ele dizia: _Vai tu ta
perdendo tempo, vai pra Porto Alegre. E eu comecei a ver a parte de física II e eletricidade, e aí eu
disse: ai quer saber de uma coisa, o que eu quero não é isso aqui que eu to fazendo, o que eu quero
é um troço mais assim. Aí me inscrevi pro vestibular na UFRGS em engenharia elétrica. E na época
tinha um rolo na elétrica que hoje não existe mais, tinha reserva de mercado pra computação, foi bem
no início que começaram a vender esses computadores, todos eles eram fabricados no Brasil. E era
um curso que na época assim era dez, porque todas as pessoas que saiam, saiam empregadas por
essas empresas de fabricação de computadores, então tinha um valor agregado a engenharia
elétrica, que era super alto, que hoje já não é tanto, virou um pouco pro lado da computação essa
parte. Então eu entrei na engenharia elétrica na época de reserva de mercado de todas as empresas
que construíam computadores, tinha várias empresas sendo criadas dentro da própria UFRGS, aquilo
lá fervilhava a coisa, por conta de toda a nacionalização da eletrônica, tudo era feito no Brasil, e a
UFRGS, Porto Alegre era um dos pólos. Então foi quando eu resolvi fazer e aí fui pra lá, e aí lá
realmente assim, lá eu era a única mulher. Eu já te contei né, nos éramos 98 que entramos, tinha
duas, tinha eu e outra.”
Ao analisarmos essa narrativa percebemos que no momento de decisão entre uma engenharia e
outra pesou a identificação da Silvia com a física e a matemática, bem como a possibilidade de já sair
com um emprego garantido após a conclusão do curso. Fazendo uma aproximação com o argumento
utilizado pelo pai para incentivar a filha na escolha profissional, que era o status social do curso, aqui
percebemos que o argumento dela pelo curso de engenharia elétrica não reside no entendimento do
pai, mas sim na segurança profissional que teria fazendo um curso de engenharia, em função do
contexto social, econômico e político que o curso de engenharia elétrica passava na década de 80 no
país, principalmente, em função do desenvolvimento da computação nesse período.
Assim, ao longo desta seção buscamos mostrar algumas das condições de possibilidade que
fizeram com que a Silvia traçasse a sua escolha profissional. No narrar-se emergiram o desejo de ser
uma cientista, a identificação com a física e com a matemática, o incentivo do pai e do amigo, a
possibilidade de inserção no mercado de trabalho, o crescente desenvolvimento da engenharia
elétrica no país, entre outros aspectos que estiveram implicados na sua constituição enquanto mulher
e cientista.
A seguir, analisamos alguns aspectos da trajetória acadêmica da Silvia, bem como as
dificuldades encontradas nesse percurso, os preconceitos, os desafios, as estratégias diárias para
permanecer num ambiente predominantemente masculino.
A engenharia elétrica: espaço masculino, presença feminina!
“Aí eu fui pra Porto Alegre, entrei na UFRGS, lá sim que começou essa coisa mais de ser a
única mulher no meio. Aí lá é complicado...”
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Segundo Lombardi (2005), o surgimento da engenharia moderna se dá a partir dos séculos XVII e
XVIII, dentro de condições históricas específicas, tais como, de um lado a Revolução Industrial e, de
outro, o Iluminismo. Historicamente a engenharia tem se caracterizado como uma atividade
masculina, uma vez que as mulheres timidamente começaram a ingressar nesse campo somente a
partir dos anos 20 (LOMBARDI, 2005). Nas últimas três décadas têm sido registrados aumentos
significativos do número de mulheres nas engenharias, entretanto a representatividade feminina
ainda é muito reduzida. Conforme anunciamos em outro momento, dados mais recentes do CNPq
mostram que na engenharia elétrica, a porcentagem de mulheres que requisitam bolsas só chega a
5%.
Tais considerações corroboram com a narrativa da entrevistada, quando destaca ser a única
mulher em um curso por excelência masculino.
Retomando a narrativa da Silvia sobre sua inserção e trajetória na engenharia elétrica, uma
questão que chama atenção, e é constantemente reforçada por ela ao longo da entrevista, refere-se
às dificuldades e preconceitos vivenciados durante o curso. Conforme refere:
“Lá é complicado, lá assim, quando tu chega à sala de aula na elétrica, não sei hoje em dia, deve ser
a mesma coisa, tu tens que provar que tu não é burra, assim, qualquer professor que te olha ele te
olha já com preconceito de que tu não era pra ta ali. [...] e tu passa cinco anos lá dentro com esse
estigma e trabalhando pra provar que tu ta ali porque tu tens que ta ali, entendeu? Ao ser perguntada
se isso a incomodava, ela fala: Incomoda. Depois tu aprende, depois tu acostuma, tu aprende, vou te
dizer assim ó é ruim, é super ruim, é uma situação, é uma coisa que eu não tava acostumada, porque
eu não fiz curso técnico, fiz Joana D’Arc, era um monte de guria na aula, quando tu chega lá e tu te da
conta disso e tu senta na aula assim, a maneira como o professor te trata, todos eles, não tinha
exceção assim, mas aí depois teus colegas também, teus colegas também, tu sente a mesma coisa,
todo mundo é o mesmo sentimento, olham pra ti e dizem tu não tem que ta aqui, porque tu não ta
fazendo odonto?”
Essa narrativa cria condições para pensarmos nos espaços sociais que os sujeitos devem
ocupar de acordo com seu sexo. É nesse contexto que o gênero se impõe: os homens são “naturalmente”
dotados das habilidades e características exigidas pelas ciências hard, enquanto que as mulheres,
exatamente porque são desprovidas, também na sua essência, dessas mesmas habilidades, são
“naturalmente” destinadas às ciências soft (SOUZA, 2002). Desse modo, o meio científico reproduz as
representações de gênero produzidas sociohistoricamente, uma vez que mente, razão, objetividade esteve
sempre associada ao masculino, enquanto sentimento, emoção,
subjetividade, ao feminino, posicionando assim os sujeitos. Portanto, a engenharia elétrica não se
constitui como um espaço permitido para as mulheres, uma vez que elas não possuem as habilidades
e características necessárias para atuar nesse campo. Desse modo, seria mais lógico que as
mulheres ingressassem em áreas mais femininas, mais condizentes com sua condição de gênero,
como por exemplo, a odontologia.
Nessa direção, é importante desestabilizar a noção da existência de um determinismo biológico,
ou seja, que homens e mulheres constroem-se como masculinos e femininos pelas diferenças
corporais e que as características biológicas funcionam como justificativa para as desigualdades,
diferenças e posicionamentos sociais. De acordo com Louro, “teorias foram construídas e utilizadas
10
para ‘provar’ distinções físicas, psíquicas, comportamentais; para indicar diferentes habilidades
sociais, talentos ou aptidões; para justificar os lugares sociais, as possibilidades e os destinos
‘próprios’ de cada gênero” (2004, p. 45). Para exemplificar esse entendimento, podemos citar o
pressuposto de que a mulher, por apresentar determinadas características biológicas, possui um
instinto materno, estando, na sua essência, a condição de ser mãe; ou ainda que as mulheres são
excessivamente emocionais, dominadas pelos hormônios, que o lado esquerdo do cérebro por ser
mais desenvolvido caracteriza a facilidade da mulher em falar, entretanto em função do lado direito
onde recebe a capacidade matemática e a capacidade de organização espacial, ser menos
desenvolvido na mulher dificulta a aprendizagem da matemática, da física, ou seja, das ciências
exatas em geral. Tais discursos constituem-se como barreiras produzidas com o aval da ciência que
ao descreverem o corpo feminino naturalizam em uma falta de condições cognitivas que as expulsam
necessariamente dos lugares de produção de conhecimento, isto é, toda essa produção de
conhecimento, que conta com o respaldo da ciência, serve de argumento para determinar os lugares
sociais que os sujeitos, homens ou mulheres, podem e devem ocupar. Pensar assim é perceber o
gênero não apenas vinculado a sua natureza biológica, mas sim que esses entendimentos são
inteiramente construídos na e pela cultura.
Nessa perspectiva, para Marília Gomes de Carvalho (SALA DE IMPRENSA DO CNPq, 2010b),
em função da representação da mulher como passiva, frágil, doméstica e mãe, “a mulher em todas as
instâncias tem que provar sempre que tem competência, o que não é igualmente cobrado dos
homens”. Para a autora, por causa desta visão, a mulher enfrenta mais dificuldades que os homens,
que já possuem historicamente o ethos de serem vistos sempre como os mais fortes, os líderes e os
mais competentes. Relacionando as considerações de Lima (2008), aos nossos propósitos, as
mulheres na engenharia, neste caso, a elétrica, são pessoas “fora de lugar” e por isso são levadas a
provar sua capacidade de sobrevivência, daí a busca da perfeição, do “fazer mais” como tentativa de
provar suas habilidades, de provar que não é “burra” e que merece estar nesse lugar.
Entretanto, muitas mulheres não conseguem resistir nesse ambiente e desistem. Como podemos
perceber no seguinte excerto:
“Eu tenho colegas que desistiram, que fizeram odonto, que não chegaram ao final porque não
aguentaram, e não são, e aí que ta olha o estranho, acho que é importante pra ti, eram meninas
extremamente inteligentes só que o estigma é tão grande que elas eram tachadas como burrinhas,
fizeram vestibular pra odonto, uma delas, que é o caso da NOME, fez pra odonto, estudou, passou na
UFRGS sem cursinho, sem nada e fez o curso assim perfeito de odonto entendesse? Então é uma
pessoa extremamente capaz, mas que dentro da elétrica era tachada como burra, porque a maneira
da mulher se portar é diferente, a gente tem outras, é uma coisa que na época eu ficava assim, bah
uma disciplina que eu não me saia bem como os outros se saiam pô como é que, pô me ralei nisso,
mas depois eu comecei a entender que a gente pensa de outro jeito, a maneira como a mulher
encara, como a mulher trata os problemas, hoje eu vejo isso porque eu tenho meninas que trabalham
comigo é outro tipo de inteligência, entendeu. Que dentro desse ambiente fechado masculino, que é,
por exemplo, o curso de engenharia elétrica e como pro homem determinadas habilidades é mais
complicado, essas habilidades acabam não sendo mais desenvolvidas dentro do curso, então por isso
que quando tu entra homem dentro de um curso como esse, tu tem muito mais facilidade de te colocar
bem do que tu entrando mulher, porque as habilidades que a mulher geralmente tem mais, que ela se
da melhor, elas nesses cursos elas não são desenvolvidas.”
11
Nesse ambiente predominantemente masculino, como é o caso da engenharia elétrica, as
mulheres acabam desenvolvendo determinados mecanismos e estratégias de sobrevivência,
principalmente para se protegerem das situações de violência e assédio. Sobre esse aspecto a Silvia
fala:
“[...] nessa época então eu já tinha feito regime, eu era alta, morena, era direitinha, vamos dizer assim,
era a única mulher e aquela coisa bom um bando de homem na tua volta tu a única mulher, morava
sozinha então tinha uma série de coisas que... podiam ter pessoas que se aproveitassem, vir mais pro
teu lado por outro sentido, só que eu tenho, eu vou falar do meu marido, ele é meu namorado desde
que eu fui pra Porto Alegre com 17 anos, eu fui e ele foi, cada um foi pra uma casa mas a gente foi,
então desde o primeiro dia de aula eu apareci com ele. [...] Era uma pessoa muito presente na minha
vida, tipo assim, ele ia me buscar sempre na UFRGS, porque sozinha, ele passava lá e me pegava,
então meus colegas sempre tiveram essa imagem de que a Silvia era... tinha um namorado sério,
firme que, então isso era uma coisa que meio que me protegia dessa coisa de assédio que existe por
tu ser... existe por tu ser a única mulher no meio de um bando de homens, então esse lado eu sempre
envolvi muito ele. Então tinha janta eu levava, tinha festinha eu levava pra até me proteger dessa
coisa assim, pra dizer assim pelo menos esse lado eu vou ser mais ou menos que nem vocês, não
tem chance de vocês tentar chegar mais perto de mim pra tentar alguma coisa, eu sou que nem
vocês, eu tenho namorado fixo, entende, esse tipo de coisa é uma coisa importante, então com
namorado firme eu conseguia pelo menos marcar um pontinho ali de dizer ó mais ou menos eu só
igual a vocês, porque vocês não dão em cima de um colega, vocês também não vão dar em cima de
mim porque eu tenho namorado firme, que ta sempre comigo, que é um cara legal, não sei o que, eu
passava muito isso.”
Nessa narrativa percebemos que andar sempre com o namorado, levá-lo nas festas do curso,
torná-lo uma figura presente na sua vida fazia parte das estratégias utilizadas pela Silvia para ser
respeitada e se prevenir do assédio dos colegas.
Nessa mesma direção, outro mecanismo de defesa adotado pela Silvia refere-se a não utilização
de determinados marcadores femininos. Em relação a isso Silvia comenta que fazia o possível para
não chamar a atenção dos colegas.
“Não pintava a unha, não fazia cabelo. Secar o cabelo com secador foi uma coisa que eu nunca fiz na
vida, também eu nunca fiz isso antes, eu nunca fui muito perua, agora que eu sou mais perua, mas
antes não, mesmo antes de ir para Porto Alegre e me meter num bagulho só de homem, eu nunca fui
muito dessas coisas, mais ou menos assim, mas dentro da engenharia elétrica bah se eu fosse muito
arrumada eu chamava muita, chama muita atenção por ser a única mulher entendeu, então eu usava
aquela... eu sempre dizia isso pros guris, não podia chamar mais atenção do que os brinquedos sabe,
acho que não é da tua época, Baby Consuelo tinha uma música dos barrados na Disneylândia porque
eles diziam que não podiam chamar...
eles não deixaram ela e o Pepeu Gomes entrar na Disneylândia porque tinham os cabelos não
sei o que, então eles não podiam chamar mais atenção do que os brinquedos. Então eu vivia
dizendo isso: _eu venho assim porque não dá pra chamar mais atenção do que os brinquedos,
então isso acontece assim, eu tinha esse cuidado de não chamar muita atenção, não chamar
muita atenção, ter um namorado fixo.”
Nessa narrativa percebemos como ela abandonou determinados adornos e comportamentos
“tradicionalmente” femininos para aumentar sua credibilidade como estudante de engenharia. Para
adaptar-se ao convívio com seus pares masculinos ela não secava o cabelo, não pintava a unha de
vermelho, não andava “muito arrumada”, tornando-se de alguma forma invisível como mulher. Para
Schiebinger (2001, p. 152) “o abandono dos atavios da “feminilidade” não só é geralmente necessário
para uma mulher ser levada a sério como cientista, mas é com frequência importante também para
12
evitar atenção indesejável à sua sexualidade”. Desse modo, a narrativa da Silvia nos leva a pensar que
andar muito arrumada, com roupas mais femininas, secar o cabelo com o secador e principalmente pintar a
unha de vermelho, marcador tipicamente feminino e ligado à sedução, devem ser evitados para que as
mulheres não chamem a atenção dos homens evitando com isso de serem assediadas, tornando-se mais
próximas dos homens e da seriedade da ciência.
Ao longo desta seção apresentamos excertos da narrativa da Silvia acerca das suas impressões sobre ser
mulher numa área predominantemente masculina, das dificuldades e situações vividas. A partir do que
apreendemos da sua narrativa, percebemos que a sua formação profissional implicou entre outros aspectos
numa luta constante pelos mesmos direitos dos colegas homens, pela afirmação profissional, pela conquista de
um espaço, pela realização de seus desejos.
Considerações finais
Transitar na narrativa da Silvia sobre as motivações para a escolha da profissão, a trajetória
acadêmica, as dificuldades encontradas, as estratégias desenvolvidas para se proteger, entre outros
aspectos, nos possibilitou discutir e problematizar alguns discursos e práticas socioculturais que,
estiveram e estão implicados na sua constituição enquanto mulher, engenheira, cientista,
pesquisadora, etc., ensinando-lhes modos de ser, agir, de pensar e atuar com relação à ciência.
Nesse sentido, transitar na sua narrativa implica entender que os comportamentos e as atitudes dela,
de seus familiares e colegas não podem ser compreendidos fora dos contextos sociais e culturais em
que estão inseridos.
Ao analisarmos a narrativa da entrevistada percebemos que o campo científico tecnológico
(re)produz os discursos e as práticas sociais que constituem mulheres e homens, uma vez que as
diferenças entre os papéis sociohistoricamente construídos de mulheres e homens produzem efeitos
nas escolhas profissionais, na formação de pesquisadores/as, no desequilíbrio entre mulheres e
homens em determinadas áreas do conhecimento. Tais aspectos têm raízes profundas, que
envolvem a própria história da humanidade e a construção das identidades femininas e masculinas ao
longo dos tempos.
Para finalizar, destacamos que as questões, sucintamente apresentadas aqui representam apenas algumas
reflexões sobre gênero e ciência. Olhar de forma mais atenta e crítica para as relações de gênero na ciência
implica em problematizar determinadas “verdades” cristalizadas na história, contribuindo, talvez com outros
modos de fazer, outros modos de olhar, de viver e de vir a ser. Nesse sentido, argumentamos sobre a
importância de desenvolver pesquisas na perspectiva de gênero, pois conhecer e tornar visível a história de
mulheres no mundo da ciência pode possibilitar a efetiva inserção e participação das mulheres nesse contexto,
configurando-se como uma estratégia fundamental para a minimização das desigualdades que caracterizam a
sociedade brasileira. Assim, acreditamos que discutir a produção de diferenças, desigualdades e preconceitos de
gênero na ciência pode contribuir, para a construção de uma sociedade mais justa e mais igualitária, no que se
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refere não somente ao gênero, mas também as articulações de gênero com outros marcadores
sociais, tais como raça, classe social, sexualidade, religião, etnia, etc.
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