UFMA Universidade Federal do Maranhão Caminhadas de universitários de origem popular UFMA UFMA Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão. O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores. Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa Organização da Coleção: Monique Batista Carvalho Francisco Marcelo da Silva Dalcio Marinho Gonçalves Aline Pacheco Santana Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ Coordenação: Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo C183 Caminhadas de universitários de origem popular : UFMA / organizado por Ana Inês Souza, Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009. 120 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular) Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. ISBN: 978-85-89669-41-2 1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I. Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. V. Universidade Federal do Maranhão. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. CDD: 378.81 Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Organizadores Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa UFMA Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ Rio de Janeiro - 2009 Coleção Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministério da Educação Fernando Haddad Ministro Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD André Luiz de Figueiredo Lázaro Autores Abimaelson Santos Pereira Alexsandro Costa Ferreira Ana Paula de Albuquerque Martins Cláudia Nunes da Silva Danielle Lima Costa Secretário Eldimir Faustino da Silva Junior Armênio Bello Schmidt Elieser Barros Madeira Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI Eliete da Silva Cruz Leonor Franco de Araújo Coordenação Geral de Diversidade – CGD Iracema Andrade Luz Jardiane Moura Abreu Jefferson Veras Rodrigues Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Jorge Luiz Barbosa Jailson de Souza e Silva Coordenação Geral Maria Cristina Bunn Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFMA Maria Helena Seabra Soares de Brito Coordenação Acadêmica Jonivaldo Lopes Santos Josenira dos Santos Veras Lidiana Diniz Azevedo Lourdilene de Fàtima Teixeira Ferreira Lucélia Cristina Carvalho Ferreira Lucileide Martins Borges Marcio Vinícius Campos Borges Maria Domingas Ferreira Castro Fernanda Santos Pinheiro Maria de Lourdes Andrade Pereira Coordenação Executiva – Campus I Maya Dayana Penha da Silva Emilene Leite de Sousa Paulo Leles Neto Coordenação Executiva - Campus II Raquel Moreira Meireles Silva Carlos André Sousa Dublante Ricardo Waldrean Melo da Silva Articulador e Monitor na parceria com o Programa Escola Aberta Rogério dos Santos Cardoso Universidade Federal do Maranhão Natalino Salgado Filho Reitor Antônio José Silva Oliveira Vice-Reitor Antônio Luis Amaral Pereira Pró–Reitor de Extensão Prefácio A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental. A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma intensa e sistemática esses objetivos. Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e, por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas. Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS, UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC, UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar, UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB. Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma, ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de 1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao menos 35 bolsistas. práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais. Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19 publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social. Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais justa e uma humanidade cada dia mais plena. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Ministério da Educação Observatório de Favelas do Rio de Janeiro Sumário Apresentação Maria Cristina Bunn ............................................................................................. 9 Respiro a minha arte Abimaelson Santos Pereira ................................................................................ 11 Motivações que me levaram a alcançar meus objetivos Alexsandro Costa Ferreira ................................................................................. 15 Memorial Ana Paula de Albuquerque Martins .................................................................. 18 Primeiro capítulo Cláudia Nunes da Silva ...................................................................................... 21 Memorial Danielle Lima Costa ........................................................................................... 30 O périplo de um perdedor de tempo Eldimir Faustino da Silva Junior ...................................................................... 34 Participações especiais Elieser Barros Madeira ....................................................................................... 39 Projeto “Conexões de Saberes” Eliete da Silva Cruz ............................................................................................ 42 “É caminhando que se faz o caminho...” Iracema Andrade Luz .......................................................................................... 45 Detalhes de uma história inesquecível Jardiane Moura Abreu ....................................................................................... 52 A luta antecede a vitória Jefferson Veras Rodrigues .................................................................................. 57 Vencendo desafios Jonivaldo Lopes Santos ...................................................................................... 61 De onde vim e para onde eu quero ir agora Josenira dos Santos Veras .................................................................................. 64 Meus pais, minha vida Lidiana Diniz Azevedo ........................................................................................ 69 In Memorian Lourdilene de Fátima Teixeira Ferreira ............................................................ 71 Tudo vale a pena, se a alma não é pequena Lucélia Cristina Carvalho Ferreira .................................................................. 76 Os primeiros passos de uma formação contínua - a educação Lucileide Martins Borges ................................................................................... 80 Marcio Vinícius Campos Borges Marcio Vinícius Campos Borges ........................................................................ 85 Pequenas ações para uma grande oportunidade Maria Domingas Ferreira Castro ...................................................................... 89 Pão, educação e arte Maria de Lourdes Andrade Pereira ................................................................... 91 História de uma vida de lutas Maya Dayana Penha da Silva ............................................................................ 95 Diário de superação Paulo Leles Neto ............................................................................................... 100 Até a última gota Raquel Moreira Meireles Silva ........................................................................ 104 Eu pela vida Ricardo Waldrean Melo da Silva ..................................................................... 110 História de vida Rogério dos Santos Cardoso ........................................................................... 115 Apresentação Os autores que expõem aqui suas histórias de vida, seus sofrimentos, sonhos, realizações, esperanças, representam o segmento da sociedade que o “Projeto Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares” objetiva abarcar – a juventude que traz em sua trajetória a marca da exclusão social. Criado em dezembro de 2004 pela SECAD/MEC em parceria com o Observatório de Favelas, o Programa Conexões de Saberes tem entre seus objetivos dar suporte à permanência e à qualificação de estudantes de origem popular na Universidade e, capacitá-los para o desenvolvimento de ações sociais transformadoras nas comunidades de origem. No caso do estado do Maranhão, a Universidade Federal está localizada em São Luís, distante geograficamente de inúmeros municípios de origem dos estudantes com perfil para ingresso no Programa e nas comunidades de entorno da Universidade. Assim como desenvolvido em 33 universidades federais, o Programa na UFMA iniciou em 2006. Daquele período temos o registro e a produção do primeiro grupo de conexistas nesta publicação. Percebemos nos escritos aqui apresentados, a expressão e realização do primeiro momento de diálogo entre a universidade e as comunidades populares. Os representantes daquelas comunidades, os estudantes universitários de origem popular selecionados para participarem do Conexões, trazem à tona a realidade social desigual de nosso país. Estes jovens autores, ao relatarem suas trajetórias tatuadas pelas feridas sociais, impõem à universidade brasileira encarar o cenário do Brasil real. Numa realidade como a maranhense, com os piores indicadores sociais do Brasil, em que grande parte da população tem o menor poder aquisitivo do país, com quadro de concentração de renda e poder acintosos, a Universidade Federal do Maranhão tem a rica oportunidade, a partir da experiência do Programa Conexões, de enxergar verdadeiramente quem é a comunidade acadêmica que a constitui. E dessa percepção, a possibilidade de assumir a responsabilidade social e política, de construir instrumentos de democratização do saber e de emancipação dos sujeitos que fazem a Universidade. A inserção social destes estudantes, a partir de sua qualificação, e a participação das comunidades populares nas ações extensionistas construídas pela Universidade e protagonizadas por estudantes oriundos daquelas realidades, traz efetivamente o potencial transformador desejado por aqueles que têm compromisso com a educação pública e de qualidade neste país. Os relatos corajosos dos 25 bolsistas do Programa Conexões da Universidade Federal do Maranhão vêm a compor com as experiências similares de outras universidades do país, um brado em defesa de políticas educacionais inclusivas e permanentes para a juventude brasileira. Universidade Federal do Maranhão 9 É com alegria e orgulho que parabenizo os autores deste “Caminhadas”, certa de que ocuparão os espaços sociais que desejarem se as Instituições deste país assegurarem condições de acesso e permanência no ensino superior. Vejo na continuidade e aperfeiçoamento do Programa Conexões de Saberes um destes caminhos. Profa. Dra. Maria Cristina Bunn Coordenadora Geral Programa Conexões - UFMA Respiro a minha arte Abimaelson Santos Pereira * A vida é uma incógnita que a cada dia deve ser resolvida; caso contrário, os dias passarão e teremos a angustiante sensação de que, enquanto o mundo gira, nossa mente o acompanha, e a vida segue sem um foco fixo, sem um objetivo, ou sem uma meta a ser cumprida. Se a mente acompanhar este movimento cíclico do planeta de forma não perceptível, a nossa razão de ser, aprenderemos com a vida, “mais cedo ou mais tarde” que, sem um foco, sem uma meta ou sem um objetivo, não chegaremos a lugar algum ou, talvez, até possamos chegar a algum lugar devido à relatividade que a vida nos oferece, contudo, nem sempre o caminho proposto pelo acaso é o mais satisfatório. É incrível como existe uma gama de caminhos que traça a nossa trajetória, basta que o sol se levante para nos depararmos com pessoas e/ou situações que podem transformar todo o nosso universo, e é neste ponto que mora o grande perigo. Saber dizer sim e saber dizer não aos acontecimentos que nos rodeiam, sobretudo quando estamos em um ambiente que chega a ser febril e poético, nocivo e vital, que nos leva sempre aos extremos, que nos proporciona sempre a utilização de um ou de outro, nos coloca entre querer viver ou querer apenas manter-se vivo. Refiro-me ao que a sociedade denominou periferia, mas não “periferia1” como encontramos nos dicionários, e sim uma periferia nomeada pela classe alta de nossa hostil sociedade como lugar onde a marginalidade impera, onde ser negro é sinônimo de marginal. Mas essa sociedade não sabe que é na periferia que a arte acontece, onde a cultura é vivenciada e produzida, posto que a classe alta por si só não produz cultura, exceto aquela cuja meta é simplesmente comercial. Em meio a esse turbilhão de caminhos é que se desenvolve a minha simples e desafiadora vida, simples pelo fato de crescer em meio a muita pobreza financeira, e desafiadora devido às grandes possibilidades de ganhar dinheiro fácil, mas por mais cruéis que sejam as condições estruturais de um bairro pobre por falta de políticas públicas, ter uma base familiar que nos dê sustento para ultrapassarmos nossos limites é essencial. Mesmo com as dificuldades, sempre tive grande força familiar acompanhando minha formação, posto que o Estado nunca cumpriu com seu papel no pólo que resido. Quando falo de cumprir papel, não me refiro a políticas de assistencialismo, mas a intervenções contínuas e práticas, através das sonhadas políticas públicas, e de um trabalho cultural que vise à formação, tanto voltada para o mercado de trabalho, quanto para o desenvolvimento críticosocial e ideológico, tendo como foco alcançar uma formação que integre de crianças a idosos. * Graduando em Licenciatura em Teatro na UFMA. 1 cf.HOLANDA: “Numa cidade, a região mais afastada do centro”, p. 528. Universidade Federal do Maranhão 11 Sabemos que a educação básica ainda é um dos grandes meios de transformação social, é a partir da escola que somos instruídos a decodificar regras e normas de nossa sociedade, onde aprendemos as regras do jogo, onde nos deparamos, de forma mais precisa, com os conceitos em torno do certo e do errado e ficamos cientes de direitos e deveres, sobretudo, de onde somos lançados para o mundo. Todavia, essa instituição, como se encontra hoje, é um dos maiores meios de propagação de vários tipos de preconceitos, às vezes de forma bem sutil e outras vezes de forma bem clara, fazendo da escola, a vilã da sua formação. Na educação básica, aprendi muitos conceitos e o porquê de muitos questionamentos vivenciados pelo homem. Algumas dessas aprendizagens nunca serviram de fato para o meu desenvolvimento como cidadão e outras me instruem diariamente, mas existe algo que a escola não me ensinou e tive que aprender dentro do seu universo: aprender a viver e a escapar das armadilhas que o espaço educacional nos traz. Orgulho-me de relatar que estudei em uma das escolas mais cobiçadas no Maranhão, o CINTRA, e é de lá que tenho grande base da vida, porque a instituição me ensinou a refletir quando precisei, e a convivência com fatos nos leva a decisões. Quando estava no Ensino Médio, percebi que disciplinas como Teatro, Filosofia e Sociologia deveriam ter um respaldo maior das instituições de ensino, pois nos levam a questionamentos essenciais em relação ao mundo. Paralelo à formação educacional escolar, quem sempre teve um papel primordial na minha caminhada, ou quem sabe “corrida social”, foi a Pastoral da Juventude. Grande parte da minha experiência com trabalhos na comunidade deve-se a esta Pastoral que sempre me carregou no colo e me ensinou a ser sujeito da minha própria história. Infelizmente a escola ainda não nos proporciona o fato de sermos protagonistas do nosso teatro, mas sim, que possamos construir uma vida voltada para a formação profissional, sem uma visão aplicada das relações sociais, de quem é você na sociedade e qual seu papel, e nem tão pouco no que se refere à história do nosso povo, à origem da nossa cultura e das nossas tradições religiosas. Cabe então, procurarmos meios de transformar nossa história em páginas concretas e definidas; saber fazer história, e a Pastoral da Juventude ajudou na construção da minha. Um dos capítulos deste maravilhoso e inacabado livro que se chama vida, reservo ao poder de transformação que a arte causa, em especial a arte que respiro e que me consome, que me faz levantar todos os dias e perceber que vale a pena lutar por uma meta, por um objetivo, por um foco, é o Teatro, aquele que me encanta, me define, mostra que a vida pode ser diferente e que posso transformar sonhos em realidades; que posso, através desta arte secular, ajudar na educação de um povo que é educado historicamente a se esconder por detrás de máscaras, imposições que são feitas por meio do Estado e da mídia. É tempo de derrubarmos todas as máscaras que nos são impostas, e o Teatro é instrumento fundamental para o reconhecimento da história de cada ser humano, o elo entre o meu eu interior e o meu mundo exterior. Meu primeiro contato com este universo fictício, concomitantemente real, foi ainda na 8a série, e com o passar dos tempos, pude ver que não poderia fazer outra coisa na minha vida como forma de trabalho. Os anos foram passando e então acontece o grande momento de todo estudante secundarista, a hora de prestar vestibular, e sem ter nenhuma dúvida, escolhi Teatro Licenciatura. O Vestibular, sem sombra de dúvida, é um desafio que mexe muito com o plano psicológico de cada um, sobretudo quando se participa de um seletivo que deixa clara a ineficiência de avaliar quem entra na universidade. Um processo seletivo que não prova a 12 Caminhadas de universitários de origem popular capacidade intelectual de ninguém e que, em vez de incluir, exclui. Mas estava disposto a passar por essa etapa da vida, mesmo sabendo que seria um grande desafio ter que mostrar minha capacidade perante um processo totalmente desacreditado, mas que, por sua vez, é o único meio de ingresso na instituição de ensino superior público. Todavia, fui em frente e consegui ser aprovado segundo os critérios utilizados pela Universidade, mesmo sem subsídios financeiros suficientes para fazer um curso pré-vestibular ou uma revisão teórica, pois todo rendimento que dispunha em tal momento foi destinado ao pagamento da absurda taxa de inscrição do vestibular. A universidade era o começo de uma nova vida, posso afirmar que ela é “A descoberta de um mesmo novo mundo2”. É como descobrir um universo que já existe, todo dia uma luta diferente, uma busca por sobrevivência, lugar em que encontramos vários semblantes, uns se intitulam elite pensante ou intelectuais, mas que, na maioria das vezes, entram titulados de calouros e conseguem se formar e não deixam de ser calouros; outros que conseguem ultrapassar barreiras e alguns que simplesmente passam pela universidade, um espaço onde a segregação social é mais que nítida. De um lado, encontramos uma assistência absoluta às áreas de saúde e tecnologia, e de outro, um descaso com as áreas das ciências humanas e sociais. Descaso este às vezes camuflado por reformas fictícias na estrutura física, sobretudo dos cursos de Licenciatura. Triste realidade. Porém, o que me dá mais fervor para conseguir ultrapassar os limites e romper com as máscaras existentes na universidade. É óbvio que, por mais problemática que seja a estrutura de uma universidade pública, existem fatores positivos agregados à formação. Os programas e projetos de acesso e permanência merecem destaque, pois são através deles que muitos estudantes conseguem manter e administrar a vida acadêmica, programas como bolsas trabalho, fiscalização do vestibular, bolsa de língua estrangeira, bolsa alimentação e outros. É bem verdade que a universidade é um espaço amplo de discussões e formações diversas no que se refere à estrutura educacional que temos nos dias contemporâneos. Um envolvimento direto entre o educador e o educando e a transformação da educação básica. Ressalta-se ainda a luta do movimento estudantil de esquerda por uma universidade plural, gratuita e laica, onde o educando possa ter respeitados seus direitos e exercer com vigor os seus deveres. Sinto-me bem em tentar decodificar a natureza acadêmica. Todos os dias são para buscar a redescoberta deste universo fantasmagórico e realista. Existe uma luta constante em não nos deixarmos ser engolidos por uma estrutura que muitas vezes pode ser massificadora e cruel. Um dos grandes ganhos que tive até este momento na universidade é a participação no programa “Conexões de Saberes”. O convívio com pessoas de outros cursos de graduação, e conseqüentemente, uma troca de experiências profissionais e de vida, serve para estruturar ainda mais a formação pessoal e coletiva. Tal programa é de suma importância para a comunidade, assim como para a academia, pois é um espaço destinado a um diálogo aberto e sincero entre o conhecimento científico e o empírico. Contudo, como todos os programas, o “Conexões” tem seus problemas estruturais, que acabam empurrando um pouco o processo a ser desenvolvido na sua prática em prol da população circunvizinha da universidade, mas 2 Título de um espetáculo teatral encenado no ano de 2006 na Universidade Federal do Piauí por uma companhia teatral maranhense chamada “Xibé cia. Cênica”, na primeira Semana de Arte Noêmia Varela. Universidade Federal do Maranhão 13 é um programa de grande relevância, pois nos capacita a um diálogo aberto e diferenciado acerca do acesso e permanência na universidade. Ainda existe muito a ser melhorado, mas estamos dando passos largos com o programa “Conexões de Saberes”. O próprio seminário nacional do programa e o fórum Nacional de Estudantes de Origem Popular e nos deixam claras a grande preocupação em proporcionar o acesso e a conseguinte permanência na instituição de ensino público superior. A corrida continua, pois a vida é uma batalha inacabável, onde somos opressores e oprimidos, condutores e condução, somos fruto da soma dos nossos antepassados e respiramos um presente deixado de herança. Nossa função é só uma: transformar, ser agente transformador da sociedade através da educação e da ligação entre o que é denominado científico e o que é denominado empírico. Ainda falta muito para a sociedade se mostrar como uma via de mão dupla, onde tanto posso dar como posso receber, onde posso transformar e me deixar ser transformado. Existem muitas pessoas que agem desta maneira, mas são apenas exceções. Contudo, em um futuro que esperamos que não seja muito distante, essas pessoas serão maioria e é nessa certeza que, a cada levantar do Sol, levanta a esperança de um país melhor, digno do seu povo, e sobretudo, voltado para o povo, perpassando por todas as camadas sociais, estruturando assim cada família, dando dignidade e educação de qualidade a todos. E essa ainda é a minha busca. E a sua, você já descobriu? 14 Caminhadas de universitários de origem popular Motivações que me levaram a alcançar meus objetivos Alexsandro Costa Ferreira * Minha história de vida é marcada por muitos desafios e muita superação. Sempre morei com meus pais e com minha irmã, que se chamam: Maria Antonia Costa Ferreira (minha mãe), José Luis Costa Ferreira (meu pai), Alessandra Costa Ferreira (minha irmã) e, há mais ou menos 4 anos, ganhei mais uma irmã, a Brenda, uma afilhada dos meus pais, como se fosse minha irmã. Meus pais sempre priorizaram os meus estudos. Mesmo nos momentos mais difíceis, eles fizeram questão de não abrir mão dos nossos estudos. Minha trajetória para chegar até a universidade começou no Colégio “Henrique de La Roque”, uma escola particular, onde, graças aos meus pais, consegui uma bolsa para estudar. Lá, estudei do jardim (alfabetização) até a 4ª série do Ensino Fundamental; todo esse tempo com bolsa de estudos. A partir da 5ª série, tive que mudar de escola, pois a bolsa que meus pais ganhavam para custear meus estudos foi interrompida, fazendo com que eu tivesse de mudar de uma escola particular para uma escola pública. No princípio, não queria sair da minha antiga escola. Como meus pais tinham perdido o beneficio da bolsa de estudos, tive que me mudar para outro colégio. Essa foi mais uma etapa da minha vida em que pensei que não ia conseguir me adaptar a essa nova escola, não só a ela, mas também, em ter que conhecer outras pessoas. Muito pelo contrário, me adaptei muito rápido. A escola na qual estudei da 5ª à 8ª séries do Ensino Fundamental chama-se “Bandeira Tribuzzi”. Nessa escola, vivi grandes momentos da minha vida, encontrei grandes amigos e me identifiquei muito com o ambiente escolar. Nessa escola, vivi momentos maravilhosos como minha primeira namorada, grandes amigos e professores que me ensinaram não só em sala de aula, como também, me revelaram grandes histórias de vida e me ensinaram a ter força e garra para os obstáculos que ela nos coloca. No final de 1996, prestei exame para duas escolas públicas, CEFET e “Liceu Maranhense”. Fui aprovado nesta última, onde vivi grandes momentos da minha juventude. Conheci grandes amigos, participei da seleção de futsal, uma das minhas paixões. No “Liceu” passei três anos maravilhosos. Lá, vivi grandes momentos, conheci pessoas que marcaram muito minha vida. No ano de 1999, meu ciclo no “Liceu” terminou, pois concluí o 3º ano do Ensino Médio, e a partir daí , começou uma grande batalha para entrar na Universidade. * Graduando em Geografia na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 15 No ano 2000, comecei a estudar para meu primeiro vestibular, consegui uma nova bolsa de estudos para fazer um curso pré-vestibular. Nesse ano, prestei vestibular para Educação Física, infelizmente não consegui ser aprovado, apesar de todo esforço que havia feito. No ano seguinte, em 2001, não desisti de prestar o vestibular, só que, ao invés de fazer para Educação Física, descobri uma grande paixão: a Geografia. Nesse ano, consegui aprovação, infelizmente só na 1ª etapa. Em 2002 tentei novamente o vestibular para Geografia, agora em 2 universidades: UFMA e UEMA, porém, mais uma vez, não consegui a aprovação. Para mim foi um dos piores momentos, pois cheguei a perder as esperanças de cursar o Ensino Superior. Nesse mesmo ano, em meados do mês de junho, quando eu já estava à procura de um emprego, surgiu um programa do governo estadual chamado “Vestibular da Cidadania”, que consistia em um curso preparatório para o vestibular, cujo objetivo era beneficiar estudantes oriundos de escolas públicas, que contariam com uma bolsa no valor de 100 reais. Meu pai insistiu para que eu fizesse a inscrição para o programa. Eu não queria fazer, mas com muita insistência, fiz a inscrição nas provas. Participei das provas de classificação para o curso, graças à insistência do meu pai. Para nossa satisfação, consegui ser aprovado para o programa “Vestibular da Cidadania”. A partir daí, começou uma nova fase na minha vida, me dedicava exclusivamente aos estudos, pois estava recebendo para estudar; me dediquei como nunca, estudava no curso pela manhã e pela tarde, e à noite estudava em casa e acordava às 4:30h para voltar a estudar. Em 2003, foi um ano muito especial na minha vida, um dos mais importantes de todos que já vivi, pois nesse ano prestei vestibular com a certeza de que iria conseguir uma vaga. Então, fiz as provas para as mesmas universidades, e no dia 3 de fevereiro de 2003, prestei vestibular para a UFMA, conseguindo aprovação na 1ª etapa. A partir daí, a rotina de estudos se intensificou, fiz a 2ª etapa com muita convicção de que iria passar. Quando terminei a prova, falei para mim mesmo: “Missão Cumprida! Dei o melhor de mim, agora é só esperar o resultado”. No dia 13 de março de 2003, saiu o resultado. Eu estava em casa com dois primos. Foi quando eu falei: “Vamos à UFMA ver o resultado?” Pois eu já estava muito ansioso. Ao chegarmos lá, deparamos com muita gente, era tanta gente que eu não consegui olhar onde estava a listagem do meu curso, saí do local e fiquei esperando abrir espaço para que eu pudesse olhar a lista dos aprovados. Cinco minutos depois, olhei meus primos voltando do mesmo lugar onde eu estava, dando-me uma grande notícia: “Alex, teu nome esta na lista!” Não acreditei e falei: “Vocês estão brincando?” Tive que ir lá e comprovar com meus próprios olhos e lá estava meu nome: Alexsandro Costa Ferreira, aprovado em 13º lugar. Vibrei muito e agradeci a Deus por tudo, peguei o telefone e liguei para casa para dar a grande noticia. Meus pais também vibraram muito. Quando cheguei em casa, todos me abraçaram e meu pai começou a chorar e eu também comecei a chorar. Lembrei que foi graças à insistência deles que consegui essa grande vitória. Só que minha trajetória de conquistas não pára por aí, também fiz o vestibular para a UEMA e também lá consegui ser aprovado para o mesmo curso. Mas acabei optando por ficar só na Federal, pois moro no Bairro que fica em frente à UFMA. Minhas conquistas também não se limitaram somente aos estudos. Nesse mesmo ano conheci uma pessoa maravilhosa chamada Mara Francy que Deus colocou na minha vida, uma pessoa que, junto com minha família e Deus, me dá forças para superar a cada dia os obstáculos. 16 Caminhadas de universitários de origem popular Depois da euforia de passar no vestibular, vivi um grande dilema, pois meu pai perdeu o emprego e só minha mãe continuou trabalhando; estávamos passando por grandes dificuldades financeiras. Com isso, eu vi meus pais fazendo o maior esforço para pagar as contas e colocar comida em nossa mesa. Vendo todo esse esforço de meus pais, pensei outra vez em desistir para poder procurar um emprego. Contudo, meus pais não deixaram com que eu desistisse, dizendo para que nunca abrisse mão dos meus ideais, que era sempre cursar um ensino superior e assim alcançar meus objetivos. Graças a Deus, meu pai conseguiu um emprego e eu, graças ao esforço dos meus pais, não tive que desistir da universidade. Hoje, estou no 7º período do curso de Geografia da Universidade Federal do Maranhão e estou aqui relatando um pouco da minha vida, até chegar à universidade e deixar aqui um pequeno recado: sempre procure motivações para alcançar seus objetivos. No meu caso, a minha motivação foram meus pais. Universidade Federal do Maranhão 17 Memorial Ana Paula de Albuquerque Martins * Devo confessar que a idéia de escrever sobre mim, sobre a história da minha vida, inicialmente, me assusta, e na verdade, me deixa sem palavras. Pensei muito, antes de iniciar, imaginando como tornar público algo tão reservado, que é a forma como me percebo ou como percebo a minha história. Fiquei procurando uma maneira de escrever tentando não ser superficial, o que aconteceria se levasse em conta somente o receio de que as pessoas me vejam, e por outro lado, sem deixar desveladas coisas realmente íntimas, que dizem respeito somente a minha existência. Decidi então iniciar pelo que me trouxe a este programa, que foi a possibilidade de refletir e estabelecer mecanismos de intervenção num dos campos mais críticos da universidade: o acesso das camadas populares ao Ensino Superior. Isto se torna importante na minha trajetória, porque, desde o Ensino Fundamental, que cursei numa escola pública perto da minha casa, a idéia que tinha de universidade era a de um espaço que nunca poderia ocupar, dadas as contingências materiais e sociais. Lembro-me da primeira vez em que entrei na UFMA, tinha uns 11 anos, acho que era um Congresso de Química. A minha turma veio participar de um dos momentos do congresso. Hoje, eu paro para pensar e recordo que nem cogitava a hipótese de chegar a ser estudante daquela universidade, pois era uma coisa muito distante. Na minha realidade, a meta era concluir o Ensino Médio, no máximo um curso profissionalizante, que realmente cheguei a fazer, o de Informática no CEFET-MA, quando estava concluindo o 3º ano. Mas o diferencial na minha história, como de muitos de origem popular, foi o suporte familiar. Meus pais, apesar de não terem concluído o Ensino Básico, sempre deram muita importância à nossa educação, oferecendo o necessário para continuarmos estudando, sem ter que trabalharmos. Meu pai, Francisco Paulo, nasceu em Barreirinhas, veio para São Luís com 11 anos, sozinho, absolutamente sozinho. Apesar de nosso relacionamento (meu e dos meus irmãos) com ele tem sido sempre complicado, pois ele é um homem de personalidade forte e um tanto quanto reacionário, sempre tive profunda admiração por ele. É um homem de luta, que trabalha para conseguir o que quer. Costuma nos dizer que duas vezes em sua vida perdeu tudo que tinha, mas não se desesperou, levantou e trabalhou para ter tudo novamente. Acho que isso herdei dele, nunca me desespero, sempre junto todas as forças para continuar adiante. * Graduanda em Psicologia na UFMA. 18 Caminhadas de universitários de origem popular Minha mãe, Maria do Livramento, nunca se conformou de não ter podido continuar estudando, concluiu apenas o Ensino Fundamental, então transferiu para seus filhos a responsabilidade de ter nos estudos a possibilidade de alçar vôos mais altos. Mãe de três filhas, Maria de Nazaré, Solange e eu, nunca nos educou para o casamento, aliás, esse é o último dos planos de nossas vidas, sempre nos incentivou a estudar e a trabalhar para sermos independentes, principalmente de um possível marido. Enfim, percebi que tenho mais dos meus pais do que posso imaginar. Comecei a aprender a ler com a minha mãe aos quatro anos, de forma que, quando ingressei na Educação Infantil, já estava quase alfabetizada. No Ensino Fundamental, fui “a mais inteligente da turma”, a “queridinha” dos professores, tanto que, na 2a série, os outros alunos não falavam comigo, nunca entendi ao certo o porquê. Nessa época foi preciso a professora conversar com toda a turma para que eles voltassem a se relacionar comigo. Outro aspecto importante dessa primeira fase da minha vida escolar é que, desde a 1a série, fui líder de turma, aquela responsável pela disciplina da turma na ausência dos professores. Isso me distanciava um pouco dos outros alunos, muitos tinham ódio de mim, mas ainda consegui fazer alguns amigos. Fora da sala eu era outra. Descontraída, me divertia muito com as amigas. Passei sem dificuldades por essa etapa, pelo menos no que se refere ao rendimento escolar. Fiz os seletivos para o “Liceu Maranhense” e para o CEFET-MA. Mas acabei ingressando neste último e acho que foi a melhor escolha que poderia ter feito. Lá eu comecei a viver; conheci muita gente interessante, muitas realidades distintas das que vivera até aquele momento. Pouco antes de iniciar o Ensino Médio, entrara para a Pastoral da Juventude (PJ), na Igreja Católica da minha comunidade, num grupo de jovens chamado JEPVS , em que pude começar minha vida de militância. Nunca fui muito religiosa e acho até a simbologia e os ritos da Igreja Católica muito interessantes, mas vi, nesse movimento social, a oportunidade de intervir na realidade e nas consciências das pessoas daquela comunidade. Fazíamos muitas atividades culturais, sociais e políticas. Naquela época, a Pastoral da Juventude era um movimento muito forte, e para todos que participam dela, uma escola de vida. Na UFMA reencontrei muita gente da PJ. Fico me perguntando por que não existem mais jovens como aqueles, parece que a “mística” da juventude acabou, o sentimento de coletividade parece não mais nos impulsionar, as injustiças nos parecem agora “naturais”. Talvez estejamos internalizando efetivamente os valores da sociedade capitalista contemporânea e entrando muito cedo no mundo competitivo do mercado de trabalho. Nossos sonhos, ideais, ideologias, parecem ter esmorecido… Quando fui para o CEFET-MA, logo conheci algumas pessoas que compunham o GRÊMIO “Edson Luis” e engajei-me rapidamente no movimento estudantil, tanto que, com dois meses de aula, estávamos em passeata contra a UMES, entidade que vinha negligenciando o direito dos estudantes de meia-passagem, com fraudes na emissão de carteiras. Desde então, o movimento estudantil tem sido parte da minha vida. Costumo dizer que o CEFET-MA foi para mim uma preparação para o clima da universidade, tínhamos quase total responsabilidade e liberdade com relação à nossa formação. No terceiro ano, comecei a fazer curso técnico de informática nessa mesma instituição, dessa forma estudava dois turnos (manhã e tarde) e não tinha muito tempo para pensar nas provas do vestibular, mas me inscrevi em Psicologia. Confesso que até hoje não sei Universidade Federal do Maranhão 19 direito por que escolhi esse curso; na verdade, não achava que aquela escolha seria a última, a única, aquilo que eu faria para o resto da vida. Sempre fiz mil coisas ao mesmo tempo e mudar de idéia não seria muito difícil. Comecei minha vida acadêmica em 2003 e até me interessava o curso de Psicologia. Mas o fato é que nunca fui muito de gostar de assistir às aulas, sempre preferi os livros aos professores. E me interessava mais participar de palestras, debates, encontros. Na época, o assunto em pauta no movimento estudantil era a famigerada Reforma Universitária. Nesses debates, conheci o grupo que estava na gestão do DCE-UFMA, grupo político com o qual me identifiquei e do qual faço parte até hoje. Nessa época, estava na gestão do Centro Acadêmico de Psicologia e tentávamos estabelecer no curso um clima de integração e politização. Em 2006, foi lançado o edital do “Conexões de Saberes” na UFMA e logo me interessei pela temática e objetivos do programa, principalmente pela possibilidade de dar visibilidade às comunidades polares e à democratização do espaço acadêmico. Como já tinha vivência em trabalhos com a minha comunidade, o projeto trouxe-me a ampliação dessa intervenção, com vistas a mostrar que as comunidades populares são espaços de construção de conhecimento, cultura e ciência. 20 Caminhadas de universitários de origem popular Primeiro capítulo Cláudia Nunes da Silva * Tudo vai mudar, quando essa luz se acender, você vai me conhecer, vai me ver de um jeito que nunca viu. Eu tenho sede de som, eu tenho fome de luz, tenho a força, tenho o dom, don’t you know quem eu sou? Remember my name, vem pro meu lado forever, vem pra bem dentro de mim, vem que vou longe, vou fundo, vem que eu te faço feliz, vou te contar meus segredos, você vai rir e chorar, vou te mostrar o meu mundo, vou te tirar pra dançar... Sandra de Sá Este é um momento difícil, singular e inexplicável. Tantas foram as adversidades, os conflitos, os medos e as dores que tive na vida! Sem alguma possibilidade de compartilhar, sem visibilidade, e de repente, tenho que fazer umas caminhadas. Tenho que lembrar de tudo. De cada tormento, de cada paixão e alegria. Tenho que me entregar a um infinito vazio, do caderno, que desemboca num mundo de conhecimentos e o passaporte para essa “viagem” é minha vida. E eu sou a dominadora, senhora de um passado que hesito, mas tenho que reviver. Na solidão que compartilho com o papel, surgem as cores e os segredos de minha vida, que começa quando dois nordestinos resolveram “tentar a vida na cidade grande”. Minha mãe, mulher guerreira, filha de uma família originária de uma terra de pretos - o Jejuí - desejava ter uma vida diferente da que levava no interior do Maranhão. Foi morar com tios, trabalhar e estudar em São Paulo. Meu pai conta que os meus avós fugiram de uma aldeia indígena e foram morar num povoado denominado Baiacuí. Homem de grande índole, que desde os oito anos trabalhava em uma quitanda, e após realizar o primeiro sonho de sua vida, ter uma havaiana para calçar, decidiu alçar vôos mais altos e ir também para a cidade onde eu nasceria. Um índio, uma negra. Dois nordestinos numa cidade cheia de conflitos sociais, numa sociedade impregnada pelos conflitos raciais e uma única proteção: os sonhos. Além dos sonhos, as filhas. Uma delas surge nessa história em 1981, no mês de outubro, no dia trinta. Era eu, nascia mais uma Cláudia em São Paulo, mais uma moradora da periferia, mais uma descendente de nordestinos, mais uma filha da esperança. * Graduanda em Ciências Sociais na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 21 Esperança compartilhada com muitos amigos. Lembro-me de que morávamos num bairro onde a maioria dos domiciliados era nordestino. Uma época muito feliz. Morava no Capão Redondo, lugar onde a ação do Estado não é percebida e os moradores sempre elaboram estratégias de sobrevivência. O Centro Comunitário é uma delas. Lugar para onde eu caminhava diariamente, para conviver com outras crianças e com a arte. Onde se compartilham esperanças, sofrimentos, paixões e alegrias. Lembro-me das festas que minha mãe organizava com as outras mulheres. Elas conseguiam alimentos, brinquedos, material escolar e distribuíam tudo isso para as crianças do bairro. Sempre era uma festa. O único problema dessa época era que meus pais tinham que sair muito cedo de casa para trabalhar, sempre durante a madrugada e só retornavam muito tarde, quando eu e minha irmã já estávamos dormindo. Mas esse sacrifício era sempre recompensado nos finais de semana e com a alegria de ver as filhas na escola. Para completar a nossa alegria, minha irmã mais velha havia passado no seletivo da escola técnica e parecia que o sonho de ver as duas filhas enveredando pelos caminhos da educação estava muito perto de se concretizar. Tive uma infância tranqüila, recheada de prazeres. Mas quando cheguei ao conturbado e apaixonante mundo da adolescência, parece que o mundo de conto de fadas em que vivia desfez-se numa nova realidade, cheia de medos e desilusões. A primeira grande decepção, foi a rejeição de meu corpo negro. Haveria uma peça na escola, os critérios para a participação no evento eram as boas notas, estudar a história da índia “Mani” e ter bom comportamento. Desses critérios, não me enquadrava em apenas um: bom comportamento. Mas mesmo assim, me esforcei, até parei de brigar com os meninos da escola. Fazia questão de dizer que meu pai era índio, nunca tive tanto orgulho disso, tinha tanta certeza de que seria eu a escolhida. No dia da escolha, a professora contou mais uma vez a história da indiazinha, era a mais bela de toda a aldeia, a mais delicada, a mais inteligente, a mais desejada, Mani era a “tal”. E eu, toda convencida, achava que seria a própria. Mas na hora a professora anunciou a escolhida, e era Vivian, a menina mais branca da sala. Eu não falei nada. Apenas me entreguei ao batuque do meu peito. Mas lembro-me de que alguns colegas perguntaram à professora se existia índia branca. E a resposta: “Mani era, pois foi dela que surgiu a mandioca para os índios comerem e mandioca é branca”. E pronto, estava dado o veredito da detentora do conhecimento. E eu não poderia participar da encenação, pois existia uma índia branca como Mani, mas não negra como eu. Essa peça era para a semana do folclore da escola, da qual todos tinham que participar. Fui recrutada junto com as outras meninas negras para dançar uma música da dupla de cantores, Sandy e Junior. Detestei. Mas era uma imposição da professora. Dessa forma, iniciei a adolescência com a revolta de ser negra e a culpa de não ser bonita como Mani. Passei a adolescência namorando meninos que só existiam em meus pensamentos e que me enxergavam “bela” como Mani. Todas as aproximações com meninos reais eram rapidamente bloqueadas. Logo, passei a adolescência sem namoros reais. Mas esse era o menor de meus problemas. Minha irmã estava na escola técnica, fazia um curso muito caro, Desenho e Construção Civil. Meus pais tinham que fazer horas extras e todo dinheiro arrecadado ainda era insuficiente para custear os gastos com sua formação. Minha mãe perdeu o emprego na fábrica e minha irmã, a vaga na escola técnica. E com a crise financeira vieram muitos conflitos familiares. 22 Caminhadas de universitários de origem popular Eu tinha quinze anos, nunca havia vivenciado conflitos em casa, não da espécie dos que estavam ocorrendo. Minha mãe retornou com as duas filhas para o Maranhão. Meu pai continuou em São Paulo, trabalhando. Nossos problemas financeiros se agravavam cada vez mais. E, naquele momento, ainda tínhamos que conviver com a saudade. Logo, minha mãe começou a trabalhar como doméstica, morávamos na casa em que ela trabalhava. Uma nova realidade com a qual demoraria muito para me acostumar. Foram muitas as idas e vindas de minha irmã e de meus pais, sou a única da família que nunca retornou a São Paulo. Já estava com dezessete anos, a idade adulta já se aproximava. Já tínhamos uma casa, mas persistiam os problemas financeiros. Tinha que começar a eleger prioridades. E a educação foi a opção escolhida. Continuava estudando em duas escolas, fazia um curso técnico e outro regular. Cursei todo o Ensino Médio com muitas privações. Todos os dias levava, a pé, uma hora para ir e outra para voltar do colégio, talvez isso não fosse grande sacrifício, se o sapato que usava não fosse dois números menores que o tamanho do meu pé, pois havia sido uma doação e não tínhamos dinheiro para comprar outro. Todos os dias, quando atravessava a ponte do São Francisco, pensava no lugar para onde estava indo, não para a escola, mas imaginava a que lugares aquela caminhada iria me levar. Que caminhos ainda iria percorrer na vida. Quais os resultados de tanto sacrifício. E parecia que a ponte nunca acabava. Tínhamos apenas o suficiente para as necessidades primeiras, sem nada de supérfluos. E, às vezes, o “supérfluo” era algo muito necessário. Cursei todo o Ensino Médio com muito sacrifício, meu e de meus pais. Um dia percebi que meus pais não estavam se alimentando direito, para garantir que eu tivesse duas refeições por dia. No meio de tantas dificuldades, resolvi procurar um emprego. Trabalhei como vendedora de planos de saúde e de cartelas de bingo. Entre tantos problemas, tínhamos ainda de ter forças para continuar lutando. Do nosso amor e de nossa esperança, e assim prosseguimos nossas caminhadas. Tive que aprender a cuidar de mim muito cedo, pois meus pais constantemente arranjavam empregos temporários em São Paulo, minha irmã foi embora, pois havia passado no vestibular e eu aqui permanecia. Queria fazer faculdade, tinha que sobreviver e lutar. Um dia eu e algumas amigas do bairro em que morava (Ilhinha) abrimos um novo caminho nas nossas vidas e nas vidas de muitos outros que ali moravam. Resolvemos dar aulas de reforço para as crianças. Pedimos roupas usadas, fizemos um brechó e com o dinheiro compramos materiais didáticos, e finalmente fundamos a Casa do Guri. Como não tínhamos dinheiro para pagar uma sede, ficou decidido que a escolinha funcionaria em minha casa. Começamos com trinta crianças, e logo esse número aumentou para duzentas e quarenta. Tínhamos um grande problema, ou duzentos e quarenta problemas bem pequenininhos. Precisávamos alimentar as crianças, comprar material escolar, comprar remédios e ainda distribuir semanalmente uma sopa para a comunidade. Isso sem contar com os nossos problemas pessoais. Algumas precisavam trabalhar, outras estavam estudando para o vestibular. Tínhamos que dar aulas e preparar outras meninas que estivessem dispostas a fazer o mesmo, sem ganhar dinheiro para isso. Resolvemos ensinar as crianças a fazer artesanato. A idéia seria criar uma fonte de recursos, para que não fosse mais preciso sair todas as semanas pedindo roupas nos bairros vizinhos. Enquanto eu dava aulas de reforço, organizava as atividades da Casa do Guri e ainda tinha que estudar para o vestibular. Universidade Federal do Maranhão 23 Na primeira tentativa, fiz vestibular para Comunicação Social. Era a profissão que mais admirava. Já na primeira etapa, a decepção. Então, resolvi me afastar, sem me ausentar totalmente das atividades da casa. Fiquei um ano apenas conseguindo recursos, sem dar aulas de reforço. Estudava dia e noite, e quando saiu o resultado da primeira etapa, lá estava o meu nome. Consegui passar em décimo quinto, na última vaga para o curso desejado, Comunicação Social. Era uma alegria, não só minha, mas também das crianças, de minhas amigas e dos meus pais. Fiz a prova de segunda etapa muito confiante. No mesmo ano, quando saiu o resultado da Universidade Estadual do Maranhão, um amigo passou e parecia que a luta para chegar à universidade finalmente tinha chegado ao fim. Mas quando foi anunciado o resultado final do vestibular da UFMA, uma nova frustração. E dessa vez, ainda pior, tinha perdido a bolsa de estudos no cursinho. Mas minha família mais uma vez decidiu fazer um novo sacrifício por mim. Dessa vez havia me conscientizado de que o problema não era somente meu, mas do próprio sistema educacional. Tinha a certeza de que havia estudado e de que as vagas eram insuficientes para a demanda. Nesse ano, um professor e amigo, Carvalho, me aconselhou que eu não ficasse muito triste, como se isso fosse possível. O argumento era que deveria acreditar que aquele não seria o curso certo e naquela turma não encontraria as pessoas que fariam diferença em minha vida. Mais um ano de estudos para o vestibular, dessa vez estudava sozinha, porque, dos meus amigos, um já havia passado no vestibular e os outros tiveram que trabalhar o dia inteiro e não tinham mais tempo e nem disposição para estudar. Continuava na Casa do Guri, dessa vez resolvi dar aulas sem me preocupar muito com os recursos da casa. Como não tínhamos muitas contribuições, o número de crianças diminuiu para cento e trinta. Matriculei-me no cursinho noturno, com ajuda de meus pais e de minha irmã; estudava pela manhã e dava aulas à tarde. Sem muitas expectativas de passar no vestibular, dedicava-me mais à casa do que aos estudos. Finalmente, chegou a hora de me inscrever no concurso. Havia lido sobre o curso de Ciências Sociais e conversado com algumas pessoas sobre a profissão. Resolvi prestar vestibular para este curso. Agora me lembro daquele dia. Era nove de março, meu pai estava comigo no campus da UFMA. Ele esperaria até o fim. Sempre que fosse preciso, sei que estaria lá. Com sua bondade, amor e sabedoria. E foi nesse dia que o poeta de minha vida, homem que me fez amar as letras e os versos, escreveu este poema pra mim. Vestibular Um senso em moroso apenso Frondoso ao rigor imenso Rebuscas áureas do pensamento E vai! É hora de esboçar conhecimentos Nas raízes desse campo cultural É um labirinto penoso e cru Refuta a sensibilidade do ser Sob tensão do rosto carrancudo Quando fecha-se o portão ferrudo 24 Caminhadas de universitários de origem popular O destino pede novo caminho E vai! Todos são concorrentes pensativos A lembrar das matérias puras Revisadas ao pé da explicação Cada acerto percentua pontos E cada nota reboca à vaga Induzida que na porta escapa Porque sai, num possível erro ingrato E vai! A tensão leva a hora a fora Pela chance que no mundo agora Não é mais parte da revisão É o próprio vestibular, arguto É a sala... onde está o fiscal Dos anseios, o devaneio não fala Mas eleva a sensação que pulsa Quem espera, imagina a sala E vai! Vi no pensamento tecendo Como vencer a batalha Tudo fecha num refrão papudo Nas instâncias enleadas do estudo O incentivo venceu o medo E vai! Esse campus, é fusão embrionária Refratárias de muitas pretensões O vestibulando pesca sem arpões Nesse mar de fictícios tubarões Agora, Josés, Moises e Joãos As Terezas, Marias e Claudias Mais os Raimundos, Pedros e Sebastiãos Porém, a elite é a maioria preparada Raros são domésticos e operários É a vida fechada sem sacrários E vai! Por isso o tempo determina O fechamento desse dia rotular Pra selar na prova, a decisão Nesse suor que aflita a face O esforço cerebral passa nas mãos Ao transcrever a sua folha de respostas Respostas essas, certas ou não É hora da verdade sem propostas As matérias, reunidas em questão Universidade Federal do Maranhão 25 Por último, vem o degrau ingrato Compilação final: a redação E vai! O horário marcado se reduzindo Pelo tempo que não pode esperar Nesse ponto, para tudo ou continua Pelo saber, da razão de estudar Que a sorte acompanhe a todos Nessa imensa maratona sem redoma Capiosamente chamada: Vestibular Adalberto Santos da Silva (No prelo) Na primeira etapa o resultado já não foi muito promissor, passei em vigésimo sexto lugar para um curso que oferecia apenas dezoito vagas. Tinha certeza de que não conseguiria passar. Pensava na tentativa anterior em que havia me classificado dentro das vagas e não consegui passar e imaginava que agora seria muito mais difícil. Mesmo assim, fiz a segunda etapa. Um mês depois, minha expectativa foi confirmada. Fecho os olhos e sinto a emoção daquele dia. Eu havia mentido para minha mãe dizendo que o resultado do vestibular não sairia naquele dia, ela me fez acreditar que havia “caído na minha conversa” e saiu para ouvir o resultado na casa de um vizinho. Ouvi vários nomes da lista de Ciências Sociais: Simony, Rafael, Denise, Otávio, Fabrine..., mas o meu não estava lá. Entreguei-me às águas que caíam descontroladas em meu rosto. Parece que perdia a consciência de mim, e as minhas amigas e crianças da casa e meus pais vinham em meu socorro. Já não tinha mais alternativa. Afastei-me totalmente da casa e fui procurar trabalho. A única coisa que consegui foi um emprego de doméstica. Iria cuidar de uma senhora e só poderia ir para casa uma vez por mês em troca de míseros cem reais. Tinha muito medo do que pudesse acontecer comigo. Estava decidida a fazer um novo vestibular para Ciências Sociais, mas sabia que não teria condições de estudar, pois estaria muito atarefada com as atividades do trabalho, como aconteceu com minhas amigas e tantas outras Cláudias, Anas, Lucélias, Raqueis, Mayas...mulheres negras e de origem popular. Ainda tinha esperança de continuar estudando, e, na última semana antes de começar a trabalhar, resolvi ir até o cursinho e pedir mais uma vez uma bolsa de estudos, que havia perdido no ano anterior. Fiquei lá durante horas na porta olhando para o prédio e pensando o que poderia acontecer, mas não tive coragem de entrar. Quando estava indo embora, avistei um amigo, era Denis. Ele veio em minha direção e estava chorando muito. Pensei em mil coisas: mortes, doenças, acidentes. Ele me pediu que o acompanhasse, mas eu resisti, queria antes saber o que estava acontecendo. Incrivelmente senti a dor da morte, e parece que ela me concebeu. Não sei explicar o que se passava nesse momento, havia passado semanas muito triste com a decepção do terceiro vestibular e naquele momento sentia-me contagiada por uma emoção da qual não sabia o motivo. Tinha apenas a confiança num amigo que sabia, tinha um segredo que se transformaria em um forte motivo para me emocionar. Depois, percebi que meu pai também estava chegando, muito transtornado. Ele me falou com os olhos, que eu tinha que ir imediatamente para casa. Eu não hesitei à ordem de um pai. Foram os dez minutos mais longos de minha vida, eu corria e parecia que a distância 26 Caminhadas de universitários de origem popular só aumentava. Quando cheguei, a casa estava lotada, minha mãe gritava muito e todos celebravam. Minha mãe me disse: “Minha filha, corre que a universidade mandou te chamar”. Tinha que seguir por um novo caminho. A emoção tomou conta de mim, eu ria e chorava, gritava e tudo parecia um novo sonho. Abracei meus pais, parecia que naquele momento nossa luta havia chegado ao fim, sentimos que nosso sacrifício tinha valido a pena. De repente, já estava a caminho da universidade. Tinha que fazer a matrícula com urgência, pois as aulas já haviam começado dois dias antes. Fui o mais rápido que pude à universidade. Foi um momento de emoção ímpar em minha vida. Nem sabia direito o que aquele momento significaria. Quando cheguei, fui recebida por uma colega de turma, Socorro, que me orientou sobre todos os procedimentos que deveria tomar para efetuar minha matrícula. Eu corria pelo Campus dando risadas e gritava para todos que eu tinha sido chamada. Na mesma semana, fui recebida pelo coordenador de curso, era Carlão. Eu nem imaginava a importância que ele teria em minha vida. Ele me chamou para fazer parte do grupo de estudos que ele coordenava, o Grupo de Estudos Ritmos da Identidade, vinculado ao Núcleo de Estudos Afro Brasileiros. Logo aceitei a proposta do professor. Nesse grupo entrei em uma nova realidade, estava convivendo com pessoas que se preocupavam em refletir sobre a condição da população negra e nele passei a me apaixonar pela minha condição de negra e a me orgulhar pela história de meus ancestrais. Retornava a um conto de fadas que logo acabaria com as dificuldades que um curso de graduação proporciona aos estudantes de origem popular. Mais uma vez tinha que caminhar horas para chegar ao mundo do conhecimento. Tinha várias despesas com as cópias, pois os livros disponíveis na biblioteca não são suficientes. E ainda, a dificuldade em me acostumar com os conteúdos acadêmicos. Nesse novo mundo, com o qual não tive contatos anteriores, tive vários amigos, muitas paixões. O novo conhecimento, a antropologia, o movimento estudantil, os amigos e Lili, companhia para todos os momentos da vida, com quem compartilhei idéias, aflições, alegrias, saudades, decepções e esperanças. A quem entregueime aos caminhos desconhecidos da volúpia que arde na loucura dos apaixonados. Com quem descobri os devaneios do amor. Mas mesmo com a presença de Lili em minha vida, a trajetória na academia deu-se através de contínuos enfrentamentos. O maior deles foi reconhecer que a universidade preserva as desigualdades sociais e reproduz a meritocracia do vestibular. Sabia que, uma vez na universidade, poderia almejar uma bolsa de estudos, mas para isso deveria estar nos critérios acadêmicos, notas, coeficiente de rendimento, tudo “em dias” com a falsa neutralidade dos sistemas de recrutamento dos “melhores” estudantes. Esse era o caminho que deveria percorrer, pois necessitava ter uma bolsa para me manter no curso de graduação. Mas ele não foi fácil, pois não estava acostumada com o conhecimento acadêmico. Tinha dificuldades com as leituras e tinha sempre que estudar mais, para poder acompanhar os conteúdos das disciplinas. Fiz minha inscrição para o seletivo do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica-PIBIC com a ajuda de dois professores muito importantes em minha vida, Álvaro e Benedito. Tive êxito. Conhecia um novo mundo e me entregava a ele, apaixonadamente. Nessa época, passei a integrar o Grupo de Estudos Rurais e Urbanos, coordenado pela professora Maristela. A cada dia me envolvia mais com a pesquisa que desenvolvia no PIBIC. Durante dois anos fui bolsista de Universidade Federal do Maranhão 27 iniciação científica. E ao mesmo tempo, era coordenadora do Centro Acadêmico, estagiava na Secretaria de Estado (para onde ia diariamente a pé), fazia disciplinas da graduação, dona-de-casa, professora. Muitas Cláudias para pouco tempo e pouco espaço. Estava muito feliz, sentia-me independente e motivada a enfrentar os preconceitos que ainda me cercam: racismo, desigualdade social, machismo e homofobia. E esses enfrentamentos me proporcionaram muitas paixões e prazeres. Continuava caminhando, percorrendo lugares onde enfrentava o preconceito e com o pensamento bem adiante, no amargo gosto do desconhecimento do futuro. Sem saber que caminhos me esperavam. À medida que o período de iniciação científica chegava ao fim, aproximava-se de mim um grande desespero. Parecia que as dificuldades do início da graduação retornavam e eu não sabia o que fazer. Ainda estava no sexto período e tinha pelo menos um ano de graduação. A uma semana do início do sexto período, soube de um edital que estava selecionando estudantes de origem popular para fazer parte de um programa de extensão, do qual eu nem sabia o nome. Fiz minha inscrição e fui selecionada. Era o “Conexões de Saberes”. Poderia concluir a graduação com certa tranqüilidade, mas o “Conexões” não foi apenas um meio de permanecer na universidade. Foi mais uma paixão. Espaço em que compartilhei minha vida com outras Cláudias, chamadas Daniele, Eliete, Lourdilene, Josenira, Lidiana, Lucileide. Foi o momento em que reconheci em outros estudantes minha própria luta, minha história. Vários foram os aprendizados nesse grupo. Nesse momento da vida, dei as mãos a outros vinte e cinco estudantes que, como eu, já haviam percorrido caminhos tortuosos para chegar à universidade. E juntos, trilhamos uma nova caminhada, cujo destino era a democratização da universidade. Uma caminhada cheia de conflitos, concessões, amores e vitórias, agora, somos todos ligados pelas dificuldades que enfrentamos e pelas emoções que vivemos. Quando estava cursando o sétimo período, a UFMA deliberou em Conselho Superior a adoção de um programa de Ações Afirmativas para estudantes negros, indígenas e oriundos de escolas públicas. E o maior responsável por essa deliberação foi o NEAB, que trouxe o debate às instâncias deliberativas da universidade. Finalmente, a universidade começa a perceber quais caminhos deve tomar para a democratização do conhecimento. É chegado o momento em que a universidade se abrirá para novos caminhos e abarcará o discurso e os passos de outros estudantes negros, indígenas e de origem popular. Quando penso em todas as transformações que ocorreram em minha vida, nas pessoas, paixões e oportunidades que tive no curso de Ciências Sociais, lembro-me das palavras do amigo Carvalho e tenho a certeza de que ele estava certo. Finalmente, chego ao oitavo período. Vou sair do “Conexões”, o motivo me causa muita alegria. Aproxima-se o dia oito de março, importante para mim e para tantas outras Cláudias, Marias, Jardianes, Iracemas, Regimeires, Fernandas, Carlas. Neste dia apresentarei minha Monografia de Conclusão de Curso. É chegada a hora de alçar vôos mais altos. De começar novas caminhadas. Quando fecho os olhos, penso em todas as angústias e sofrimentos da vida. Lembro-me dos sacrifícios e sinto o cansaço de quem já percorreu caminhos longínquos. Mas ainda não posso descansar. Tenho que continuar a caminhada que foi iniciada por um menino de pés descalços. Logo, serei mais uma outra Cláudia, Cientista Social, quem sabe depois Antropóloga. Conhecerei novos caminhos e farei novas conexões. Tenho que prosseguir minha caminhada e viver o Segundo Capítulo de minha vida. 28 Caminhadas de universitários de origem popular Como fosse um par, que nessa valsa triste se desenvolvesse ao som dos bandolins.. E como não, e por que não dizer que o mundo respirava mais se ela apertava assim Seu colo, como se não fosse um tempo em que já fosse impróprio se dançar assim Ela teimou e enfrentou o mundo se rodopiando ao som dos bandolins. Como fosse um lar seu corpo a valsa triste iluminava e a noite caminhava assim E como um par o vento e a madrugada iluminavam a fada do meu botequim. Valsando como valsa uma criança que entra na roda e a noite tá no fim, Ela valsando só na madrugada, se julgando amada ao som dos bandolins. “Bandolins”- Oswaldo Montenegro Universidade Federal do Maranhão 29 Memorial Danielle Lima Costa * Nasci no mês de maio, exatamente no dia doze. Acho que minha mãe ficou mais preocupada que alegre com minha vinda, era mãe solteira e trabalhava, nesta época, em casa de família. Sua mãe e irmãos moravam no interior do Estado, ela veio para a cidade ainda pequena com o intuito de estudar, morava na casa das freiras até ir trabalhar em casa de família. O objetivo principal de sua vinda para a cidade foi adiado e ela só conseguiu terminar o segundo grau depois do sétimo filho, com quase trinta anos. E assim, foi que essa guerreira me ensinou a lutar e a ser muito otimista. Quando eu estava com alguns meses de vida, minha mãe se casou. Então seu marido assumiu minha paternidade, uma vez que meu pai biológico não assumira essa responsabilidade. Assim, foi que ganhei um super pai, ele é a pessoa mais honesta e generosa que conheci. Ele vinha de dois outros casamentos e já tinha cinco filhos. Com minha mãe gerou mais sete, dos quais morreram dois. Deste modo, hoje, totalizamos dez irmãos e todos muito diferentes uns dos outros. Minha infância foi muito simples, sempre estudei em escola pública. A fase da educação infantil foi toda em escolinha comunitária, numa comunidade próxima da minha. Eu, meus irmãos e os vizinhos caminhávamos em grupo cerca de cinco quilômetros por dia. Em nosso trajeto para a escola, era tudo muito divertido, principalmente quando chovia ou quando, na volta da escola, alguém sentia dor de barriga. Neste período, tudo se tornava diversão, até as dificuldades do dia-adia. No geral fomos crianças felizes, mesmo com todas as dificuldades, mesmo quando tínhamos que carregar, na cabeça, água de longe para o gasto diário e ajudar os pais nas pedreiras, separando as pedras britas (utilizadas na construção civil) para vender, o que era e ainda é atividade principal de muitos de meus vizinhos e de meu pai, quando ficava desempregado. As lembranças de minha infância são muito vivas em minha memória. Entre as mais marcantes, estão as recordações de minha avó, a qual chamávamos carinhosamente de Mamãe Ciuta, nos livrando das surras da minha mãe. Das brincadeiras com os vizinhos, uma delas era a guerra de pedradas nos quintais de casa. Dessas brincadeiras sempre saía alguém com a cabeça quebrada. Uma das recordações mais tristes é de meu irmão, o “Chico Preto”, que foi para o garimpo em Serra Pelada e nunca mais voltou. Sabemos que está vivo, mas não temos notícias dele há muito tempo. Minha adolescência foi uma transformação psicológica e social alucinante, da qual eu tive pavor. Engravidei com quinze anos. Esta situação foi um fato que marcou minha existência profundamente e sobre a qual não quero comentar aqui. Deste episódio, nasceu * Graduanda em Filosofia na UFMA. 30 Caminhadas de universitários de origem popular um garoto e uma mãe. Passavam mil coisas na minha cabeça, não sabia nada daquela minha nova tarefa, cuidar de um filho era um desafio. Todavia, minha mãe e minha família foram essenciais, pois assumiram essa jornada comigo. Não parei de estudar, estava na 8a série. Minha mãe, incentivadora insistente, não deixou que eu desistisse de estudar, me apoiando em tudo. Sempre fui boa aluna, mas quando mudei de escola para uma outra no centro da cidade, fiquei logo reprovada na primeira série do Ensino Médio, no “Liceu Maranhense”. Foi uma decepção para minha mãe, pois ela pensava que eu faltava às aulas, mas na verdade não conseguia me adaptar àquela realidade tão distinta da minha, me sentia “um peixe fora d’água”. O maior público desta escola, eram pessoas de classe média. Para estudar lá, era necessário ser aprovado no seletivo da instituição. Quando repeti a série, a escola formou uma turma só de reprovados. Foi nesta turma turbulenta e “reclamona” que me encontrei, ganhei amigas das quais ainda lembro com carinho, e consegui concluir o Ensino Médio com entusiasmo. Ainda cursando o Ensino Médio, comecei a participar ativamente da igreja católica, que minha mãe já freqüentava; logo, formamos um grupo de jovens. Eu era da coordenação, juntamente com outras colegas, e depois de algum tempo, nos integramos à Pastoral da Juventude (PJ) de nossa paróquia. Aqui, queridos, passei por mais uma transformação radical. Fiz amigos que amo muito, são pessoas “pé no chão”, com os quais aprendi muito. Nós aprendemos juntos a “fazer a hora”, sem ficar esperando acontecer. Não tínhamos nenhum recurso financeiro, mas fazíamos encontros de jovens com mais de cem participantes, viajávamos para as romarias no interior do Estado, fazíamos cursos de formação, acampamentos de lazer e etc... era trabalho duro, necessitava de muita responsabilidade, se não os padres, os pais, e até os outros jovens perdiam a credibilidade em nós. Os melhores momentos, os mais divertidos e também profundos, que vivi, remontam ao período da PJ. Nesta fase, nutri um Eros que me incendiava e fazia com que eu fosse uma militante enraizada em princípios cristãos, da teologia da libertação. Namorar era um verbo que nesta época sabíamos conjugar bem; me apaixonei algumas vezes, mas namorei pouco e descobri que a vida é muito mais do que as experiências do cotidiano, aprendi um significado que transcende as coisas finitas e as relações simbólicas. Foi na Pastoral da Juventude que entendi o que significava a universidade pública, que a gente tinha que fazer o vestibular, que ele não era fácil, e que eu tinha poucas chances, mas que era necessário fazê-lo. Eu, a essa altura, já terminara o Ensino Médio e não tinha emprego, só os “bicos” que fazia de vez em quando. Aqui, começou o terror, precisava trabalhar, mas eu queria fazer faculdade e não conseguia nada. Então, quando dois amigos meus, de grupos de jovens, passaram no tal do vestibular, quando ouvi o nome de Gerson e de Geane no rádio, Ah! parecia que era o meu. Acreditei na possibilidade da aprovação, dediquei-me de corpo e alma para conseguir uma vaga. Os empecilhos foram os primeiros a bater em minha porta, não conseguia estudar sozinha e não estava preparada para fazer a prova, não tinha com que pagar nem as passagens, imagine um cursinho. Então, comecei a popularizar que queria fazer o vestibular, mas que não tinha como realizar esse desejo. Comecei a estudar sozinha, mas era muito difícil, e depois de algum tempo, minha amiga Monika, da PJ, ficou sabendo através de outros que, no convento das irmãs de São José de São Jacinto, que ficava num bairro de classe média, funcionava um cursinho comunitário; o PRENEC – Pré-vestibular para Negros e Carentes; então, eu fui verificar, ver como era aquilo, se eu poderia participar. Universidade Federal do Maranhão 31 O cursinho funcionava no período noturno e para lá eu fui com minha amiga Monika. Quando lá chegamos, não havia cadeira para que nos sentássemos. Então, fiquei na expectativa de um precioso assento. A secretária do cursinho não gostou de mim, não gostava que eu ficasse lá, não deixava eu assinar a freqüência e nem falava comigo. Então dei uma de esperta e comecei a chegar mais cedo pra arrumar uma cadeira. Quando alguém ficava em pé, todos olhavam pra mim, eu fingia que não era comigo. Depois se acostumaram com minha presença. Ah, eles faziam isso comigo porque já havia passado o período de inscrições e não havia mais vagas, mas acabaram deixando que ficasse porque sempre havia desistências. Seis meses depois, fizera amigos como Jojó, Nilcilene e Nélio Brasil e já estávamos pleiteando a direção do cursinho. Conseguimos a vitória e iniciamos o trabalho duro de reanimar alunos e professores voluntários. O primeiro passo consistiu em formalizar, legalizar a instituição, campanha para atrair voluntários para dar aulas, para ajudarnos a formalizar pedidos de financiamento, engajamento nas lutas referentes às populações afrodescendentes. Assim, expandimos o nome do cursinho e ajudamos a formar o Conselho Municipal de Afrodescendentes, junto com outras instituições do movimento negro. A Universidade tomou conhecimento de nossa existência, começamos a pedir isenção das taxas do concurso, não conseguíamos para todos, então, saímos pedindo de porta em porta, para todas as pessoas que acreditávamos que pudessem ajudar, e deste modo, não ficávamos sem prestar o concurso. Depois de bater em várias portas, encaminhamos um projeto ao MEC para custear as despesas do cursinho. Conseguimos financiamento por dois anos e aí pairou uma certa tranqüilidade. A aprovação veio no segundo vestibular. Fui aprovada no curso de Filosofia da Universidade Federal e no curso de História da Universidade Estadual. Foram dois anos de tortura, comendo farofa de ovo na casa das colegas para estudar o dia todo, almoçar em casa era impossível, morava muito longe e as passagens sempre custavam caro. Uma das maiores dificuldades que encontrara, foi garantir o dinheiro da passagem, quando papai não tinha e eu não conseguia nenhum “bico”. O PRENEC me ajudava, mas logo chegou uma professora nova que me ajudou muito com o transporte, principalmente para que eu não faltasse às suas aulas. Ela conseguiu um estágio para mim para que eu pudesse custear minhas despesas. As coisas melhoraram a partir daí. “Caloura” foi a primeira palavra que ouvi no Campus e que guardo como um regalo depois de muita labuta. A empolgação não durou muito, pois o estágio acabara e já não tinha com que custear as despesas de um curso superior. Neste período, as amizades me salvaram: as freiras com quem me relacionei na PJ me encaminhavam para todo tipo de atividade, para as quais eu ia sem nem mesmo perguntar o que era. Nesta jornada, conseguiram um curso de formação que tinha como eixo de estudo o desenvolvimento sustentável em comunidades quilombolas. Depois do curso, fui chamada para trabalhar durante um tempo. Estava no primeiro período da universidade, e a esta altura, já morava separada de minha mãe, em companhia de um amor que começou no PRENEC. Aquela experiência aproximou-me ainda mais de uma realidade excludente e muitas vezes desumana. Todavia, entendi que minha missão apenas começara. Findado este trabalho, voltei a ficar dependente, agora do companheiro e de trabalhos esporádicos. 32 Caminhadas de universitários de origem popular O Conexão de Saberes foi uma porta que se abriu. O contato com alunos de outros cursos e até de outras universidades do país se intensificou e meu olhar começou a ir mais longe. A bolsa ajuda muito, principalmente com a aquisição de livros e outros materiais didáticos. A auto-estima, renovada neste espaço, me faz sonhar com a possibilidade de cursar um Mestrado. Tenho uma forte sensação de que vou conseguir! Acredito firmemente que ainda conseguirei morar e trabalhar na comunidade onde cresci e não verei meu filho com a mesma “sorte” de muitos amigos da minha infância. Rezo e também trabalho muito nas atividades comunitárias para que o sonho sonhado ainda na PJ se torne realidade, que as pessoas não percam a esperança de virar esta página cruel da humanidade, e que se lancem a esse propósito. Que a espiritualidade, a la Gandhi e Francisco de Assis, sejam o fio condutor desta jornada. Universidade Federal do Maranhão 33 O périplo de um perdedor de tempo Eldimir Faustino da Silva Júnior – Dyl Pires* “A felicidade de entender é maior que a felicidade de sentir e de imaginar.” Jorge Luis Borges Chamo-me Eldimir Faustino da Silva Júnior (o ortônimo) e Dyl Pires (o heterônimo). Nasci no dia 1 de setembro de 1970, em São Luís-MA. Portanto, um pouco depois do golpe militar e da tão festejada conquista da seleção brasileira de futebol, e um pouquinho antes da maior revolução teatral acontecida em nossa cidade: o laboratório de expressões artísticas-LABORARTE. Devo, nas linhas que comporei mais adiante, traçar uma espécie de mosaico desta minha trajetória existencial, levando em consideração o ponto em que a vida escolar toca a minha caminhada. Assim, começarei a recordar um misto de realidade e ficção a partir do momento em que soube que havia passado no vestibular. Digo realidade e ficção, porque assim como o poeta Carpinejar: “avanço na idade e não sei discernir o que foi vivido do que foi contado. Tenho dúvidas se minha infância é realmente o que vivi ou o que sonhei nela”. Creio que, uma semana depois do resultado, me veio uma espécie de insight que dava conta do desenho cíclico da minha vida, e de quanto em quanto tempo as grandes transformações aconteciam nela. Na hora me soou como uma epifania, revelada pelo fato de ter sido aprovado para o Curso de Teatro da Universidade Federal do Maranhão. Comecei a refletir (aparentemente sem nenhuma espécie de superstição) que o número sete (isto mesmo, o número sete!) era por demais presente no meu ainda parco existir. Parco, mas nem por isso menos intenso. Repentinamente, comecei a explicar tudo através deste número significativo para a dimensão mística que ocupa, ou não, o imaginário de todos. Bom, a partir daí, voltei a 1970, e logo de cara fui constatando que o tal sete estava no meu ano de nascimento. Era o começo. O mundo das letras e das imagens iniciava em 1974, no que chamávamos de primeiro período do jardim (Ed. Infantil). Foi lá na escola Dom Francisco, que existe até hoje na Praça da Alegria. Permaneci até 1976, e de tudo ficou na minha memória a preocupação dos professores para que não ultrapassássemos os limites do jardim; coisa que freqüentemente ocorria com a devida punição: ficar de castigo no quartinho escuro da escola. * Graduando em Teatro na UFMA. 34 Caminhadas de universitários de origem popular Em 1977, sete anos depois do meu nascimento, e bem depois da fase de familiarização com outro espaço, que não o meu lar, ingresso na primeira série do primário (Ensino Fundamental). Era a época das congas e das kichutes. A escola se chamava Sotero dos Reis, bem ali na Rua São Pantaleão. À época, creio que o colégio era o último a inspirar respeitabilidade dentro do ensino público. Aprendi muitas coisas. Algumas relacionadas diretamente com os estudos, outras, com as travessuras daquela faixa de idade e com o desejo da carne que começava a formar suas primeiras manifestações pontiagudas em mim. Recordo-me dos nomes de alguns professores: Odeth, Nócia, Terezinha, Benedita (minha primeira referência de professor no estilo linha-dura) e também do porteiro que se chamava Batista. Este percurso que vai até 1980, me trouxe a igreja, onde fui sacristão por uns dois anos, o desejo de ser padre, o primeiro discurso como orador da turma e uma pequeníssima encenação sobre o Bumba-meu-Boi (a grande imagem mítica da minha infância), em que eu fazia um pequeno papel, não me recordo bem se de um lobo, ou de um cão. De 1981 a 1984 (período ginasial), estudei (por intermédio de uma bolsa integral) no Colégio Henrique de La Rocque, na Rua do Passeio. O máximo de envolvimento artístico que se cometia por ali era jogar bola ou participar da banda marcial da escola. Entre meus professores, lembro-me de Elisio (o carrasco da Matemática), Dalva (a doce estrela de Português) e Heloisa, de História (o fetiche de alguns colegas, inclusive meu). Lembro-me também que a escola possuía a disciplina Educação Artística, que era ministrada pelo professor que havia me conseguido a bolsa (e meu padrinho) Jorge Itacy, na época já famoso babalorixá “Jorge da Fé em Deus”. Não me lembro do conteúdo da disciplina. Mas sei que nem ela, nem a banda marcial e nem a encenação me marcariam a alma naquele instante. Em 1984, sete anos depois de ter entrado para o Sotero dos Reis, descobri o karatê, o atletismo, e sobretudo, o futebol. O grande acontecimento para mim daquela época foi ter entrado para a turma dos meninos que eram mascotes do Sampaio Corrêa Futebol Clube. Guardo até hoje duas fotos de jornais, já bastante envelhecidas, reveladoras daquele momento. De 1985 a 1989, estudei na escola Dr João Bacelar Portela (antigo segundo grau), no bairro Ivar Saldanha. Três professores especialmente me vêem à mente: a professora de Português Jaciara, cuja casa freqüentava com alguns colegas, o professor de Física Augusto (da estirpe dos linha-dura) e o professor Campelo, que acabara me reprovando por causa de sérios desentendimentos na sala de aula (de um lado ele me alegava negligência para com a sua matéria, do outro eu me defendia dizendo que ele não sabia tornar a matéria sedutora para mim). No Bacelar Portela, fiz Eletrotécnica. Não sei bem por que. Um ano depois percebi que a alta voltagem que me interessaria seria a do álcool e a da boêmia. Portanto, eu já cultuava sem saber uma particular necessidade báquica. Em 1990 foi um ano vazio e de intransponíveis fantasmas... em 1991, sete anos após ter me deslumbrado com a história do futebol, descobri definitivamente o caminho das leituras, de um conhecimento outro que só perpetuariam as dúvidas que já possuía acerca da natureza humana e do sentido de tudo isso, ou da falta de. No período que vai de 1991 a 1998, eu me deparei com amigos músicos, artistas plásticos, cantores e sobretudo poetas e atores. Primeiramente foi a literatura que me desbravou, mostrando-me, juntamente com os amigos, algumas leituras e todas as experiências mundanas e estéticas daquele instante, o caminho que construiria o poeta. Isso por volta de 1991. Lembro-me de que, em 1992, conheci duas pessoas super-importantes para a minha vida. A mineira Tereza, motoqueira e Universidade Federal do Maranhão 35 dona do posto de gasolina ao lado do Clube Lítero Português e a maranhense, compositora e cantora, Célia Leite. Ambas, cada uma a seu modo, me influenciaram sem nem perceberem. A primeira, com seu jeito fortemente espontâneo e com uma vontade de viver a vida de forma sempre apaixonadamente perigosa; a segunda, por ter me trazido o diálogo possível entre a timidez que em mim preponderava e a loucura que se ocultava por trás dela, pronta para dar o salto no instante certo. Célia foi mais além. Um dia, depois de ter lido alguns poeminhas que eu havia escrito, confundiu a minha assinatura ao final dos textos e cismou que ali estava posto o nome Dyl (não necessariamente com esta grafia). A partir daquele momento, comecei a me chamar Dyl e acrescentei às três letrinhas o sobrenome da família, Pires, herança do meu avô materno, Raimundo Nonato Lisboa Pires. Abro um parênteses aqui para registrar que fui educado por três mulheres: Maria de Lourdes Santos Pires (minha mãe), Eldilene Santos (minha irmã) e Terezinha de Jesus Rodrigues (outra mãe). As três me abriram as portas do universo feminino. O único de fato que importa. Dyl Pires surgiu então para construir, juntamente com alguns amigos, Jorgeane, Catarina, Gilberto, Gissele, Jales, Natan, Bioque, Ailton, Hagamenon e Ricardo, um percurso intelectual e estético que o ajudaria a amadurecer o olhar para as coisas da vida e para as coisas do seu interior desassossegado e febril. Passados quinze anos, penso que Eldimir permaneceu um menino de fé, como inversamente está no poema do Leminsky, que poucas vezes se manifesta frente a um Dyl Pires que tem o desencanto como um pensamento concluso em sua vida, acredita no caráter ficcional da existência e se percebe fantasmal. Eldimir, apaixonado por futebol e pelas brincadeiras da infância que não o libertavam nunca. Dyl, apaixonado por literatura, teatro e pelos “subterrâneos” do existir. Um tem compaixão, o outro é irônico e niilista. Um se irmana misticamente com o mundo, o outro tem em Joyce, Beckett, Hilst e Borges a medida exata para profanar e demolir o que não deveria nem ter existido: a vida. Eldimir acha que a vida é um estágio de beleza em permanente espanto, por isso vale a pena ser vivida; Dyl acha, assim como o saudoso ator Gianfrancesco Guarnieri, que “só um homem que não sabe das coisas pode achar graça na vida”... e por aí vão as diferenças desta solidão dolorosamente singular. Em 1993, conheci o ator Uimar Junior que me levaria a fazer duas performances, além do serviço de contra-regra no espetáculo “Joana”, monólogo adaptado do texto Gota D’ água, de Chico Buarque e Paulo Pontes. A encenação do lobo ou do cão começava a uivar fortemente em mim. Dois anos antes, o ator Jonatas Tavares (que fez o Creonte, no “Édipo Rei” da Coteatro) vira para mim numa passagem de ano e diz: “Você deveria fazer teatro. Tu tens cara de ator”. Em 1995, a atriz paulista Lucia Gato põe dez reais nas minhas mãos e me impele a ir à Cooperativa Oficina de Teatro-COTEATRO (coordenada por Tácito Borralho) fazer a minha inscrição para o Curso de Formação de Ator. Tudo isso porque, em 1993, eu e Gilberto Goiabeira dissemos que iríamos fazer nossa inscrição no Curso. Ele foi. Eu, somente sob pressão, dois anos depois. De 1995 até os dias de hoje, eu fiz as peças “A Bela e a Fera”, “Morte e Vida Severina”, “Paixão-Segundo Nós”, “Viva El Rei D. Sebastião”, “Auto do Boi”, “Auto de Natal”, “Torres de Silêncio”; performances, recitais, ajudei a fundar três grupos: um de poesia, outro de performance, e outro de teatro, e fiz dois vídeos: “Cartas”, para o cineasta Frederico Machado e “Guarnicê 2000 e Outros Souvenires”, para o cineasta Carlos Reinchembach . Em 1994, participei de duas oficinas de poesia, cujo objetivo maior era instigar o imaginário para a criação poética. O poeta, performer e jornalista Paulo Melo Souza foi o coordenador do evento. Mais à frente nos tornaríamos amigos e começaríamos a cumprir juntos um papel estético 36 Caminhadas de universitários de origem popular onde a poesia e a arte da performance comporiam o vivo diálogo entre espíritos que se inquietam rumo à fabulação do real. Paulo, juntamente com o também poeta, amigo e crítico de arte, Couto Correa Filho, contribuíram bastante para o início da minha formação literária. Ambos me abriram as portas de suas bibliotecas, num ato explícito de “bondade envenenada”. À la Genet, “eles me contagiaram com o seu mal para poderem se libertar dele.” Couto Correa Filho, grande anfitrião, fez de sua casa a “Movelaria Guanabara”1 da minha geração, promovendo memoráveis encontros regados à literatura, artes, vinhos e boa comida. Em 1996, tive meus primeiros poemas selecionados para compor a Antologia Poética Safra 90, obra editada pela Secretaria de Cultura do Estado que tinha por finalidade apresentar a minha geração. Em 1998, sete anos após a descoberta definitiva das leituras, recebo duas premiações na área da literatura: o primeiro lugar no XXIV Concurso Literário e Artístico Cidade de São Luís e o primeiro lugar no XII Festival Maranhense de Poesia. Ambos realizados, respectivamente, pela Fundação de Cultura do Município-FUNC e pela Universidade Federal do Maranhão-UFMA. A premiação da FUNC possibilitou, em 1999, o lançamento do meu primeiro livro de poemas: O Círculo das Pálpebras. Ainda em 1998, começo a me inquietar e a me angustiar profundamente com o processo teatral maranhense e decido começar a escrever nos principais jornais da cidade comentários críticos sobre nossas produções. O único crítico teatral da cidade, Ubiratan Teixeira, abraça a idéia e me felicita num artigo de fim de ano, no seu espaço de crônicas no jornal O Estado do Maranhão. No ano de 1999, além do lançamento do livro, passo a integrar o grupo de comentaristas do Programa Cultural, apresentado pela jornalista Maria José Costa, na rádio Mirante-AM. Na virada de 2000 para 2001, fui indicado pelo artista plástico e amigo Binho Dushinka para fazer uma seleção para monitor da Mostra do Redescobrimento que comemoraria os 500 anos do Brasil. Participei de todo o processo e ao final consegui ficar. Os cinco meses que permaneci por lá (a exposição aconteceu no Convento das Mercês) foram esteticamente os mais viscerais da minha existência. Sobretudo no que tange aos estudos do módulo do inconsciente e da arqueologia. Em 2002, fui outra vez premiado no Concurso Literário e Artístico Cidade de São Luís. Desta feita, agraciado com o segundo lugar pela obra O Círculo da Vertigem. De 2002 para 2003, ministrei oficinas de produção textual voltadas para a terceira idade e trabalhei como monitor nas exposições A Herança Cultural da China e Mostra Fotográfica de Artefatos Indígenas, ambas, realizadas pela galeria de arte do SESC. Em 2004, tive outros poemas selecionados para participar da seção “Dom Casmurro”, do jornal literário O Rascunho, de Curitiba. Ainda neste ano, consegui ser selecionado para fazer uma oficina de interpretação para ator com o grupo “Lume”, de Campinas, em São Paulo. Fui, fiz e me perturbei o suficiente para perceber que preciso ancorar naquelas plagas. São Paulo está para além da esfera de bairro ou cidade que caracteriza, por exemplo, o Rio de Janeiro, que conheci recentemente. São Paulo é o mundo. Para este ilhado andarilho que já residiu nos seguintes bairros de São Luís: Santo Antonio, Macaúba, Belira, Liberdade, Bairro de Fátima e Cohatrac e atualmente reside no Tambaú, município de Paço do Lumiar, ir para Sampa redimensionaria a relação de conflito com esta limitada geografia. A busca por uma geografia de “exílio” potencializaria minha geografia imaginária. 1 Reduto de intelectuais e artistas maranhenses no final da década de 40 Universidade Federal do Maranhão 37 Agora em 2005, após ter ido a Porto Alegre participar do V Fórum Social Mundial, experiência ótima por ter propiciado um saudável embate entre o desencantado que em mim habita e o “torcedor de ocasião”, ingresso no Curso de Teatro da Universidade Federal do Maranhão. Estar na universidade nunca fez parte do meu projeto de vida. Na verdade, nunca tive um projeto de vida. Exatamente por isso, tive mais implicações que o lugar-comum dos que simplesmente passaram. Demorei muito tempo para estar na universidade. Nunca senti em mim uma vocação acadêmica clamando entre meus neurônios. Aliás, nunca senti em mim uma vocação para especialista. E não poderia ser diferente já que passei os últimos treze anos sendo um autodidata. Nunca precisei de uma instituição escolar me impondo a consciência para a necessidade de estudar. Sempre estudei porque era e é uma maneira de falsear algum entendimento sobre a vida. Hoje me desencanto com facilidade até das minhas principais paixões: a literatura, o teatro, o amor pela carne e o vinho (Dão, de preferência!). De alguma forma estranha e inusitada, tal condição me trouxe para cá, para dentro do Curso. Vim para a discussão, a boa discussão. Vim para potencializar o “equilíbrio precário” em todos os seus sentidos, como bem o faz o Abujamra no seu “Provocações”. Acredito que só exista diálogo vivo entre antagônicos, fora disso, o que há são apáticas concordâncias entre os que mormente contemplam e se contentam com tal condição. Evoé, Baco!!! 38 Caminhadas de universitários de origem popular Participações especiais Elieser Barros Madeira * “Se não houver frutos, valeu a beleza das flores Se não houver flores, valeu a sombra das folhas Se não houver folhas, valeu a intensão da semente.” Henfil Nasci em São José de Ribamar, cidade balneária, situada a 32 km de São Luís, na parte oriental da Ilha; o município é também um importante centro de peregrinação e romarias. Para meu irmão mais velho, essa localidade possuía (ou possui) analogia com a cidade de “O Bem Amado”- novela exibida pela TV Globo nos anos 70 do século XX. Tal comparação, segundo ele, se deve à extrema pobreza que existia nas duas cidades: a real e a fictícia. Meus pais nasceram em São João Batista, mas moraram em Monção, município da Baixada Maranhense, e chegaram à capital maranhense na primeira metade dos anos 50; posteriormente, mudaram-se para São José de Ribamar, no final da década citada. Meu pai, que era fabricante de caixões, resolveu se estabelecer em “Ribamar” por achar que, na região, havia uma carência de profissionais deste oficio. Minha mãe, que possui um temperamento forte, o seguiu, mesmo a contragosto, reflexo de uma educação provinciana. Sou penúltimo filho de Dona Isabel com Salustiano, numa família com doze filhos. Apenas dois não sobreviveram: a quarta e a última filha que morreu com apenas quatro meses, tornando-me o caçula da família. Essa linhagem é composta por quatro mulheres e seis homens. Embora meus pais não possuíssem educação escolar suficiente, eles sabiam o quanto isso era importante para os filhos. Motivo pelo qual por nenhum momento abandonamos a escola. Destaco aqui a importância da minha mãe, não que tenha havido omissão do meu pai para o desempenho dessa função. Dona Belinha alfabetizou todos os filhos, tivemos a prerrogativa de iniciar os estudos sabendo ler e escrever. Seu método de ensino era bastante rigoroso, porém eficaz. Do lado paterno, aprendemos a não supervalorizar coisas frívolas (festas) e a respeitar a vida - não queria animais silvestres dentro de casa. Ele, assim como minha mãe, nos corrigia quando errávamos. * Graduando em História Licenciatura na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 39 Minha fase infanto-juvenil foi marcada por momentos bons e ruins. Andei de bicicleta, nadei nos igarapés e joguei bola. Porém, jogar bola na rua foi complicado, pois um dia me levaram à delegacia por causa disso. A culpa foi de um vizinho recém-chegado à rua que era evangélico e que não gostava dessa atividade na sua porta. O meu argumento de defesa foi que não havia atentado ao pudor durante essas “peladas” vespertinas. Nossa família, passou por muitas privações, principalmente em São José de Ribamar, pois lá eram raras as oportunidades de emprego. Logo, minha mãe, sempre perspicaz, incentivou meu pai a se mudar para São Luís. Filhos crescendo desempregados não é bom. Mudamos então para a capital maranhense, eu estava com cinco anos. Nós nos estabelecemos, primeiramente, no Sá-Viana - bairro popular próximo à UFMA-depois, nos mudamos para a Vila Embratel, bairro onde moro até hoje. Essa mudança nos trouxe uma grande expectativa de vida: meus irmãos trabalhando, aumento da renda familiar etc, porém, a tragédia abateu nossa família: meu pai faleceu. Eu estava com quatorze anos quando isso aconteceu. Este fato marcou, para mim, a conscientização do rumo que minha vida iria ter. Direcionei meus objetivos para a educação, com a intenção de concluir o segundo grau (Ensino Médio). A família tornou-se matriarcal, não que antes houvesse patriarcalismo inflexível, pois essa linhagem não vivia sob nenhuma “ditadura paterna”. Não parei de estudar, contudo, não desejava um curso superior, e sim um emprego. Até certo ponto, essa idéia era interessante porque eu não tinha maturidade para escolher a área. Concluí o Ensino Fundamental na Escola “Francisco de Assis Ximenes Aragão”, localizada na Vila Embratel. Meu Ensino Fundamental foi precário, porque as aulas eram ministradas pela televisão; logo, se alguém tivesse uma dúvida em qualquer disciplina, nem sempre era auxiliado pela professora. Nesse período, fui reprovado na 3ª série. No Ensino Médio estudei no “Liceu Maranhense”, escola pública de maior prestígio em São Luís. Essa afirmativa se deve à grande presença de estudantes universitários procedentes dessa escola. Aqui, também repeti o ano (1º série), porém, a cobrança foi maior por causa dos gastos com passagens e livros. Estudava no período da tarde; anos antes, um dos meus irmãos estudou lá à noite e comentou que existia uma diferença de ensino do período diurno para o noturno. Ele quase não tinha aula de Física e Química. No ano seguinte, a minha reprovação, fui o destaque da sala por ter apresentado as melhores notas. Ao concluir o Ensino Médio, passei por uma “fase negra”, imaginando que, com esse diploma de conclusão, conseguiria um emprego facilmente, seria independente, e depois pagaria um cursinho preparatório para entrar na Universidade. Aos 16 anos, tive consciência da minha negritude da pior forma possível e a polícia tem participação especial nesta conscientização. Era um domingo à tarde e estávamos dentro da área da Universidade Federal quando fomos abordados por três policiais militares que faziam a segurança da Instituição. Éramos cinco pessoas, das quais dois eram negros, eu e um amigo; estávamos comendo mangas. Quando eles pararam o carro, o outro rapaz negro, desesperado, adentrou o matagal. Eu, ciente que comer mangas não constitui uma infração grave, esperei uma advertência verbal. O que não aconteceu. Fui surrado e xingado, enquanto os outros eram advertidos. Infelizmente, algo semelhante aconteceu no início de 2006, novamente dentro da área da UFMA. Os seguranças da empresa particular, prestadora de serviço a essa Universidade, me abordaram agressivamente e pediram minha identificação porque achavam que não tinha (ou tenho) o estereótipo de um universitário (negro, cabeludo e trajando bermudas). Esses fatos demonstram que tanto a polícia, quanto a segurança privada, são compostas por pessoas despreparadas. 40 Caminhadas de universitários de origem popular O acesso à universidade foi longo e árduo, pois prestei meu primeiro vestibular anos depois. Foi horrível, não estudava em cursinho, nem trabalhava, fiz porque havia passado na isenção da taxa. O curso escolhido foi Física Licenciatura, na UFMA. Levei “bomba”. Em 1999, comecei a trabalhar como ajudante de carpintaria com o meu terceiro irmão, porém, fiquei isento na UEMA (Universidade Estadual do Maranhão) e o curso escolhido foi o mesmo do primeiro vestibular, bem como o resultado. Percebi o quanto era (ou é) difícil trabalhar e estudar ao mesmo tempo. No ano seguinte, isento novamente, me escrevi no curso de Desenho Industrial. Desejava ainda a área técnica, mas percebi que os meus conhecimentos sobre as Ciências Exatas eram ínfimos. O resultado não foi diferente dos anteriores. Em 2001, como estava desempregado, passei a lecionar aulas particulares e, caso não ficasse isento, poderia pagar a inscrição. Todavia, ganhei a isenção novamente, e o curso escolhido pertencia à área de humanas: Letras, estimulado por uma amiga que lecionava numa escola do Ensino Médio, aqui no bairro. A concorrência me eliminou. No ano seguinte, foi muito bom, porque fui indicado para ensinar Matemática do Ensino Fundamental no programa governamental “Capacitação Solidária”. Em março do mesmo ano, iniciaram-se as atividades do CVARTE (Centro de Vivência e Arte), ONG da qual sou sócio-fundador. O objetivo dessa organização, é a realização de trabalhos voltados para minha comunidade. Nesse ano, não prestei nenhum vestibular. O ano de 2003, apesar do desemprego, foi marcante, pois comecei a ministrar aulas a duas garotas do Bairro da Liberdade que estudavam no Colégio “Santa Teresa” (considerada uma das melhores escolas privadas de São Luís). Além disso, por estar participando do “Vestibular da Cidadania”, uma ação conjunta entre a UEMA e a UFMA, ganhei a isenção nas duas universidades. Dessa vez, faltou muito pouco para passar, mas fiquei estimulado para o ano seguinte. Os cursos escolhidos foram da área de humanas: Ciências Sociais, na UFMA e História Licenciatura, na UEMA. No início de 2004, antes da realização das provas, comecei a trabalhar como educador do PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) da PAMEM (Pastoral do Menor), o que me proporcionou uma experiência rica no magistério. As crianças dessa “Escolinha” estavam em situação de risco, pois algumas passavam por problemas graves ocorridos dentro de suas famílias. Nós, os educadores, analisávamos o comportamento desses garotos e garotas para depois encaminhálos ao Psicólogo da Pastoral. Quando saiu o resultado do vestibular em 25 de fevereiro de 2004, uma vizinha me chamou para os parabéns pela minha conquista (nem sabia que tinha passado). Permaneci no PETI somente um ano, porque era inevitável trabalhar e estudar simultaneamente, no período vespertino. Esse vestibular, foi o único em que não fiquei isento, tive que pagar a taxa de inscrição. Iniciei, com muita ansiedade, na Universidade Federal do Maranhão, o curso de História Licenciatura em 20 de setembro de 2004, após minha sétima tentativa em mais de seis anos de luta (houve ano em que fiz dois vestibulares em universidades diferentes). Como foi relatado, minha vida foi marcada por participações especiais: positivas (minha família e meus amigos) e negativas que contribuíram (e ainda contribuem), para tornar-me um protagonista forte nessa trajetória de lutar, pois estou apenas começando minha história. Relembrando a bela canção do Renato Russo: “A nossa história não está pelo avesso assim, sem final feliz, teremos coisas bonitas pra cantar... E até lá, vamos viver, temos muito ainda por fazer...” Universidade Federal do Maranhão 41 Programa Conexões de Saberes Eliete da Silva Cruz * A chuva que caía na ilha de São Luís do Maranhão, em 31 de maio do ano 1980, não somente representava um fenômeno natural, como também, marcava minha vinda ao mundo, transbordando de alegria os meus pais, senhora Ruth e senhor Raimundo Cruz, que, sem motivo expressivo, me deram o nome de Eliete. É impossível descrever minha existência, meu ser, sem considerar o trabalho dos meus pais. Eles doaram toda dedicação e amor a minha vida que logo se tornou reflexo deste compromisso humano. Minha mãe, era uma simples doméstica na qual encontrei o referencial quanto ao posicionar-se diante do mundo, e assim, herdei dela a persistência, a força para lutar diante das adversidades e a sensibilidade para apreciar cada segundo da vida; já meu pai, servidor público, ensinou-me a amar a educação e a tê-la como ideal. Foi a partir dessa visão de mundo que, aos quatro anos de idade, comecei a freqüentar a escola intitulada SESI, uma escola pública onde estudei por dez anos. Nesta instituição fui apresentada ao fantástico mundo das letras, e aos cinco anos, li meu primeiro livro cujo título era: Meu barquinho amarelo, através do qual não só exercitava minha leitura, como ainda viajava pelo mundo da imaginação, excitada pelas mais belas figuras que constituíam a obra. Momento espetacular para mim, pois, mais do que aprendiz, posicionei-me como anunciadora aos meus parentes e coleguinhas das boas-novas sobre o desvelar da leitura. Tudo o que queria, nesse momento de descoberta e conquista, era ler tudo e para todos. Extasiada pelo maravilhoso ato de ler, adentrei no Ensino Fundamental ansiosa pelas novas formas de aprendizagem, convicta da minha capacidade de desbravar este novo estágio de educação. Não encontrei dificuldades nas novas disciplinas que cursei, afinal, não sou autodidata, porém, dedicação, observação e facilidade por compreender aquilo que me é ensinado, constam como minhas características e conseqüentemente obtinha aprovação em todas as séries. Os dez primeiros anos de minha vida escolar foram preponderantes para a minha chegada ao Ensino Médio. Nestes anos, conheci bons professores, construí laços de amizade que atualmente ainda vigoram, sofri preconceitos religioso e racial, e por todos esses fatores, neguei a intolerância humana, optando pelos melhores sentimentos através dos quais o homem pode construir um mundo melhor. * Graduanda em Filosofia UFMA. 42 Caminhadas de universitários de origem popular Em 1994, tive que me desligar do meu segundo lar, o SESI, porque não havia em tal escola o segundo grau, hoje, Ensino Médio. Iniciava-se, assim, a busca por uma vaga em escolas secundaristas, no entanto tal empreitada não foi árdua, afinal, a direção escolar do SESI encaminhou-me, sem a necessidade de participar dos eventuais processos seletivos, já que tinha obtido no Ensino Fundamental um bom histórico escolar, com boas notas e bom comportamento, a várias escolas estaduais com essa graduação de ensino, cabendo a mim a opção por uma delas. Não optei por nenhuma das alternativas disponíveis. Então, por influência dos meus pais que acreditavam na garantia de um emprego advindo de educação profissionalizante, participei do processo seletivo do CEFET e logrei êxito, tendo sido aprovada. Cursei minha nova fase escolar no CEFET, adquirindo conhecimentos necessários para minha aprovação no vestibular e descobrindo aquilo que não queria para minha vida: ser uma técnica em eletrotécnica. No término do curso, em 1999, para decepção da minha família, não consegui estágio, muito menos um emprego nas empresas conveniadas com o centro tecnológico. Assim, enveredei-me pelo caminho dos vestibulares tanto nas Universidades Federal e Estadual do Maranhão, como até mesmo no CEFET. Analogamente à inexistência de brilho dissipado pelo Sol quando a chuva encena seu papel no palco da natureza, a luminosidade da minha vida estava ofuscada pelas reprovações nos vestibulares. Foram três anos sem vitória nos processos seletivos, e sobretudo, sem adentrar no mercado de trabalho, vindo o desânimo e a insegurança que me levaram ao estado de inércia. Nesse momento de improdutividade, minha família, em especial meus pais, demonstraram todo o carinho e a crença em mim, fazendo-me ver as adversidades no mundo e que a postura guerreira diante delas é o diferencial. Então, resolvi participar da seleção para o cursinho prévestibular da cidadania, promovido pelo Governo do Estado. O fator determinante para minha decisão foi o valor da bolsa que seria fornecido aos aprovados no seletivo. Fui aprovada, e como prenúncio de uma conquista maior, cursei todo o pré-vestibular no prédio da Universidade Federal do Maranhão. Destino? Estava freqüentando a universidade dos meus sonhos, como aluna de cursinho, é claro! Mas habituava-me e sentia-me como parte do atraente mundo acadêmico. Influenciada pela pouca concorrência e pelas belas aulas de filosofia no cursinho, optei por este curso no vestibular. A chuva passara, cedendo lugar ao Sol que irradiava seu brilho na minha vida, tocando as sementes lançadas nas mais diversas fases da minha existência, pelos meus pais e educadores. Fui aprovada para o Curso de Filosofia oferecido pela UFMA, e no mesmo período, conquistei meu primeiro emprego, que exigia tempo integral, gerando incompatibilidade de horário com meu curso. Mais uma vez houve a necessidade de escolher. A intervenção do meu pai foi primordial, ainda que não apreciasse a minha opção acadêmica, estudante de Filosofia, pois seu amor maior era pela educação em seus mais variados graus. Logo, eu podia deixar o trabalho e seguir os estudos, tendo certeza do seu esforço financeiro para comigo, nesta nova fase de estudante. Em 2003, adentrei na universidade, universo aspirado desde os primeiros anos de vida escolar e que deixava de ser enigmático a cada período cursado. Posicionava-me cada vez mais como ser consciente do dever humano no qual nada permanece idêntico a si mesmo; assim, minha vida é um processo contínuo de inacabamento e as buscas, sejam elas espirituais, sejam emotivas ou sociais, são incessantes diante de cada conquista. Universidade Federal do Maranhão 43 No jogo da existência humana, acredito ser personagem fundamental a fim de participar e interagir com o público adolescente, pois, em minha caminhada, o objetivo principal é trabalhar como professora, tendo como meio a formação acadêmica, não só na graduação, mas em um Mestrado cursado num país de língua inglesa, a exemplo do Canadá. Acredito também, em conformidade com Heráclito, ser o movimento a realidade verdadeira. Assim, continuo minha caminhada! 44 Caminhadas de universitários de origem popular “É caminhando que se faz o caminho...” Iracema Andrade Luz * Caro leitor, escrever este memorial não significou apenas falar sobre mim, mas também, relembrar vários acontecimentos marcantes em minha vida que são muito significativos no que diz respeito a minha vida universitária. Confesso, que não foi fácil relembrar certos momentos difíceis, mas espero contribuir para que outros se sintam capazes de ir em busca de seus ideais. Falar de mim, antes de tudo, é falar dos precursores da minha história, meus pais. Estes que, apesar de toda uma luta para chegarem onde estão, buscam também ver em seus filhos o retrato dos sonhos não realizados. Em especial, minha mãe: mulher honesta, guerreira e otimista que, apesar de tudo, conserva em seu rosto a alegria e a esperança de dias melhores. Meus pais Minha mãe chama-se Tânia. Ela nasceu em 1963, em São Luís, capital do Estado. Filha de mãe solteira, sentiu na pele todas as conseqüências de uma família desestruturada. Sua infância, como ela sempre diz, “não tive”, ficou marcada apenas pelas companhias de sua avó e de sua tia que a criaram até os cinco anos, pois sua mãe teve que trabalhar em “casa de família” para seu sustento. Em seguida, foi morar com a mãe e o padrasto e mais tarde com três irmãos, permanecendo com eles até os quinze anos. Neste período, viveu o regime conservador que lhe era imposto a todo momento, principalmente pela mãe que era bastante rigorosa nesse sentido. Começou a trabalhar com treze anos, conferindo-lhe a mesma herança de sua mãe: “casa de família”; isso porque precisava suprir suas necessidades e ter sua independência. Contudo, por motivo de doença, parou aos dezesseis anos. Logo após, só restou fazer pequenos “bicos” para ajudar no sustento da família. Estudou do jardim até a 5ª série em escola pública, repetindo a 1ª série devido ao fraco ensino. O restante do ginásio até o 2º ano do antigo 2º grau foram cursados em escola particular, dos quais da 6ª até a 8ª série era bolsista. Os dois anos do 2º grau, ela mesma custeou com o que ganhava no seu trabalho. Alguns anos depois, repetiu todo o 2º grau, por causa de um problema de documentação escolar, só que como técnica em contabilidade. * Graduanda em Matemática na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 45 Meu pai chama-se Bento. Ele nasceu em 1955, no interior de Montes Claros, município de Pinheiro, Maranhão. É o segundo de uma família de dez filhos, dos quais dois faleceram ainda quando crianças. Conviveu com seus pais até os sete anos. Em seguida, foi morar com seus avós maternos e alguns tios em Mundico, no interior de Pinheiro. Nesta época, iniciou a escola primária, tendo concluído a alfabetização. Nas horas vagas, ajudava seu avô na roça e fazia alguns “bicos”. Devido ao alistamento militar, veio para capital, acomodandose em casa de parentes. Para manter-se na capital, continuou fazendo “bicos”, e através deles, cursou o ginásio. Já o 2º grau, chamado de educação geral, cursou em escola federal, só que incompleto (1º e 2º ano). Aprendeu, através de grandes dificuldades, a profissão de pedreiro, e por causa dela, fez um curso de mestre de obras por correspondência, o qual até hoje lhe serve de grande ajuda. Meus pais se conheceram quando meu pai veio para a capital. Nessa época, minha mãe tinha nove anos e diz não se lembrar de papai, mas ele diz que ela tinha antipatia por ele, principalmente quando ele dizia que um dia se casariam. Com o decorrer do tempo, foram se conhecendo melhor e assim resolveram namorar, só que por correspondência, pois minha mãe viajou a trabalho para a Bahia. Após um ano, ela voltou e então se casaram. Eles casaram-se em 1980. Meu pai com vinte e cinco anos e minha mãe com dezesseis. Moraram primeiramente na casa dos meus avós paternos, mas como dizem: “Quem casa quer casa”. Minha mãe logo tomou a iniciativa. Então, mudaram-se para um quarto alugado, ou melhor, um casebre caindo aos pedaços, quando, depois de algum tempo, compraram um terreno e fizeram uma casa de taipa no atual lugar onde moro, Gancharia. Neste lugar não havia água, luz ou tráfego de qualquer veículo, apenas mato e umas poucas casas e ruas cheias de lama, que às vezes transbordavam com a água da chuva. Dessa relação, nasceram quatro filhos: Eduardo, eu (Iracema), Ribamar e Elvis. Como nascemos um em cada ano, minha mãe decidiu que não teria mais filhos após o seu último parto e optou pela ligadura de trompas. Meus irmãos Dos meus irmãos gostaria de dar destaque ao Ribamar, pois ele é o motivo da luta de cada dia em nossa família, ou melhor, da minha mãe. Ele é a “criancinha” da família, assim como também é tratado, ou seja, uma criança especial. Tudo começou ainda na sua infância, pois ele era diferente em seu modo de agir em relação aos outros irmãos. Embora tivesse sempre o acompanhamento de pediatras, estes nada diziam. Então, quando completou quatro anos, já na escola, a falta de integração social reforçou a idéia de que algo não estava bem com ele. Auxiliada por um amigo médico, minha mãe foi indicada por uma carta de recomendação ao Dr. Fernando Ramos, atual reitor da UFMA, para acompanhar meu irmão, pois, nessa época, não só havia muita burocracia, como também ele só atendia quem era paciente dele. Fernando Ramos dizia que meu irmão era surdo-mudo, contudo minha mãe observava o contrário no dia-a-dia. Assim, Ribamar foi encaminhado para um eletroencefalograma e uma audiometria, o que até hoje ele não deixa fazer. No eletroencefalograma foi apontada uma disritmia (pequena lesão no cérebro). Então, o médico o encaminhou para a APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) e para uma escola com jardim para classe especial. Ele freqüentou a APAE por doze anos, lá, fez tratamento com fonoaudiólogos, 46 Caminhadas de universitários de origem popular psicólogos, neuropediatras, psicomotricistas, entre outras atividades para seu desenvolvimento, além da escola, é claro, onde passou dois anos no jardim classe especial, e três anos desenvolvendo trabalhos como tapeçaria, pintura, entre outros. Além disso, freqüentou um ano de classe especial regular em uma escola pública. Nesse período, meu irmão começou a utilizar remédios controlados paralelamente com o tratamento, fazendo com que minha mãe trabalhasse informalmente para custear seu tratamento. Como se pode notar, a vida de minha mãe era bastante corriqueira e ao mesmo tempo cansativa, mas apesar de tudo, era compensada com a tentativa de uma vida “normal” para meu irmão. Eduardo, meu irmão mais velho, sempre foi calmo, organizado e preocupado em ajudar a família. Apesar de ser um pouco ciumento, minha relação com ele sempre foi amigável. Ele fez o curso técnico em eletrotécnica no ETEMA, mas concluiu como Educação Geral, antigo 2º grau, por motivos que irei comentar mais adiante. Elvis, meu irmão caçula, como dizem, é a “bênção” da família. Desde a infância era motivo de preocupação, pois sempre vinha da escola com algo novo para contar e remendar, pois vivia causando lesões no corpo por causa de suas travessuras. Embora fosse um pouco rebelde, quando o assunto eram notas, tirava as melhores, isso até a 4ª série. Da 5ª série em diante, já em uma outra escola, começou a relaxar nos estudos, faltava muito às aulas por causa de vídeo-game com os colegas, e com muita dificuldade, terminou o ginásio. O 2º grau, como era de se esperar, não foi muito diferente, abandonou algumas vezes, mas enfim, terminou. Hoje, trabalha de ajudante com meu pai e está atrás de um emprego melhor, mesmo que seja na construção civil. Minha relação com ele é amigável na medida do possível, pois não gosto da sua falta de bom senso em relação aos nossos pais. 1982 meu nascimento Nasci no dia 27 de fevereiro de 1982, em São Luís, capital do Estado. Devido à ocupação da minha mãe com meus outros irmãos e à escola ser muito longe, tive que morar com minha avó materna e com uns tios. Eduardo também já vivia com eles devido a alguns problemas de saúde e ao fato de o hospital ser muito distante da nossa casa. Desse período, quase não tenho recordações e as que lembro ainda não foram as melhores, pois Eduardo e eu não gostávamos do conservadorismo de nossa avó. Além do mais, eu tinha um problema muito comum em crianças da minha idade, não conseguia controlar os meus esfíncteres. O que não só me fazia sentir mal, como me provocava medo, porque apanhava. Em função disso, demorei bastante para superar esta fase. Lembro-me também, das horas de estudo com minha tia Elza, irmã da minha mãe. Ela era quem nos ensinava os deveres de casa, mas não tinha paciência para isso. Um exemplo se deu quando eu estava aprendendo os encontros consonantais. Ela falava, repetia, e quando chegava a minha vez, não conseguia pronunciar corretamente e aí puxava minhas orelhas e me beslicava. Até hoje, tenho dificuldades com alguns deles. Fase escolar Estudei sete anos na Escola Comunitária “Criamor”, situada no Anjo da Guarda, próximo à casa da minha avó materna. Lá, cursei do jardim até o primário. Nesta escola aprendi, além das matérias, os bons costumes com disciplina e também sobre a pessoa de Jesus Cristo. Universidade Federal do Maranhão 47 No jardim, apenas me lembro do meu problema com os esfíncteres e dos desfiles à fantasia no sete de setembro. No primário, eu achava estranho o meu nome, não gostava, pois me perguntava de onde papai o havia tirado, sendo tão diferente dos outros. Gostava de estudar, e mesmo que não gostasse, teria de ser obrigada a isso, porque meus pais, ou melhor, minha mãe, exigia de mim e dos meus irmãos como forma de “compensar” seus esforços com a nossa educação. Nessa fase, participei das antigas rodas de tabuada, que me davam medo e me obrigavam a estudar de qualquer jeito, senão era castigada através da psicologia tradicional, ou seja, apanhava nas mãos com uma tábua. Foi exatamente isso que aconteceu certa vez. Fiquei não só com as mãos vermelhas, como inchadas. Em 1993, já no ginásio, estava em uma escola pública chamada “Unidade Integrada ‘Y’ Bacanga”, situada num bairro próximo ao Anjo da Guarda. Fui transferida para lá porque meus pais não tinham como me manter na antiga escola, o que já havia acontecido com o Eduardo, e mais adiante, aconteceria com Elvis. Nesta escola, a maior dificuldade que encontrei no início foi a divisão de professores por disciplina, o que ocasionou certa confusão na minha cabeça. Na 6ª série, descobri que algo que já tinha sido tão fácil de aprender se tornara um “bicho de sete-cabeças”, parecendo até piada hoje. A matemática causava uma confusão de assuntos, fórmulas que eu imaginava como iria absorver. Durante esse ano, mudaram os professores dessa disciplina três vezes e cada um chegava dizendo algo novo do jeito que queria. Indicado pela minha última professora, procurei um professor particular, o seu afilhado William que não só me ajudou a passar, como nos tornamos amigos inseparáveis. Ele foi de grande ajuda no que diz respeito não só à Matemática, mas também, quanto ao incentivo que sempre me deu para lutar pelos meus ideais. 1996 Na 8ª série a minha preocupação era cursar um curso técnico no CEFET. Sonhava com a idéia de ter uma formação e trabalhar. Então, me preparei em cursinho onde William era professor, e assim, encarei o Provão no final de 1996. Enquanto adolescente, não dei trabalho, pois fui educada desde a infância para um amadurecimento precoce e também não queria ser mais um motivo de preocupação para meus pais. Vivia para os estudos e para a igreja, sendo que, na igreja, era catequista, o que me dava muita alegria. Hoje, a igreja se tornou uma peça fundamental em minha vida, pois, além da catequese, estou no grupo de jovens, na liturgia e também na coordenação geral. Gostaria de mencionar que, em maio desse ano, a vida da minha família deu uma grande reviravolta, com a 1ª crise convulsiva de Ribamar. Ele teve oito crises consecutivas e foi parar no Pronto-socorro. Com a crise, seu quadro clínico se transformou. Houve uma regressão em todos os aspectos. Começou a se alimentar muito pouco ou quase nada, entre outros comportamentos difíceis de entender, principalmente a agressividade. Desde a primeira crise, nunca mais foi o mesmo. Continua tendo crises só que mais leves, evoluindo assim seu quadro clínico, o que o tem tornado mais dependente de minha mãe. Levando em conta seu novo comportamento, no ano posterior, a sua neuropediatra detectou um retardo mental. Como não passei no CEFET, o jeito foi cursar o 2º grau no ETEMA (Escola Técnica Estadual do Maranhão), em 1997. Não fiz um curso técnico por lá porque, a partir desse ano, tinha sido extinto. Lá, me senti um pouco desmotivada em relação à metodologia de alguns 48 Caminhadas de universitários de origem popular professores que tornavam a disciplina muito chata. Nesse período, tentei novamente para o CEFET e não consegui passar outra vez. 1998 Em maio desse ano, houve uma nova mudança no quadro clínico de Ribamar. Ele teve a 1ª crise psiquiátrica que reforçou sua agressividade, tendo que ser amarrado na cama para evitar a internação, pois minha mãe temia pelos maus tratos se isso acontecesse. Contudo, foi inevitável, mas ela pôde acompanhá-lo. Assim, ele passou três dias internado, e em conseqüência, adquiriu o vírus Guilliam Barré, provocando-lhe cegueira por quinze dias, paralisia dos membros inferiores e de toda a coordenação motora por oito meses. Foi transferido para outro hospital e passou um mês e vinte e seis dias se tratando. Logo após, foi encaminhado para o Sarah, onde ficou dez dias e depois voltou para casa a fim de continuar se recuperando. Nesse período, sua psiquiatra detectou um autismo infantil. 1999 Cursando o 3º ano, lembro-me de que meus amigos se preocupavam com o vestibular e eu nem pensava em tentar, por achar que não tinha aprendido o suficiente para isso e que, para passar, precisava fazer um cursinho para o qual não tinha dinheiro para pagar. Pensava que, ao terminar o 2ª grau, tinha que conseguir um emprego para ajudar de alguma forma minha família. Após dois meses da recuperação de Ribamar, veio outro momento difícil, talvez o mais difícil. Eduardo estava no 3º ano de eletrotécnica, sonhava com o término do curso e com novas perspectivas que lhe poderia proporcionar, foi quando uma simples bolada mudou sua vida. Diante das dores, inchaço e da falta de apoio, minha mãe resolveu levá-lo ao Sarah, sendo encaminhado para o Aldenora Belo e lá descobriram que aquilo que parecia uma simples lesão era mais grave do que imaginavam. Era um câncer maligno, chamado osteossarcoma. A partir daí, começou a luta não só pelo combate ao câncer, como também em relação aos gastos para o tratamento, já que ele não poderia ser feito por aqui devido à falta de recursos. Como minha mãe tinha uma irmã em Brasília, pediu-lhe que marcasse uma consulta no Sarah o mais depressa possível, enquanto a nossa família se virava pedindo ajuda aos familiares, amigos, igrejas, entre outros, para conseguirmos uma passagem de avião. Como minha mãe não podia acompanhá-lo, minha avó se encarregou dessa tarefa. Após a consulta no Sarah, ficou internado, fazendo novos exames, e através de uma junta médica, chegaram a um acordo e mais à realização da quimioterapia para a redução do tumor. Logo após, fez a 1ª cirurgia para a retirada do tumor, graças a Deus com sucesso. Como ficou com um buraco entre as articulações do joelho, teve que fazer uma 2ª cirurgia para um enxerto, sendo colocada uma platina, o que o impossibilitou de dobrar o joelho. Ele e minha avó passaram dois anos sem vir até São Luís, e depois da última cirurgia, passaram a vir mensalmente e depois anualmente, até que ele conseguisse a alta definitiva. As passagens, após mais ou menos um ano em que começou a vir para São Luís, passaram a ser fornecidas pelo Sarah, gratuitamente. Hoje, passados dois anos da alta, apesar de ter ficado com um encurtamento de seis centímetros, leva uma vida “normal”, superando a cada dia suas limitações e aproveitando mais ainda esta nova oportunidade que Deus lhe deu. Universidade Federal do Maranhão 49 Amigo Leitor, você deve perguntar-se onde está o meu pai nesta história toda, não é mesmo? Infelizmente, desde a 1ª crise do Ribamar, ele já estava bebendo muito. Aquilo que já tinha sido um esporte tornou-se uma prisão da qual ele não conseguia sair. Na época da doença do Eduardo, seu alcoolismo, juntamente com o fumo, estava demais. Por isso, ele, diante desses problemas, esteve basicamente ausente, sendo apenas mais uma das preocupações. Atualmente, curado desses vícios após sua conversão, é uma nova pessoa, comprometida com a família. 2001 Fiz mais uma vez a prova para o CEFET para os cursos de Telecomunicações, 1ª opção e Desenho Industrial, 2ª opção. Enfim, passei! Passei para a 2ª opção devido à pontuação. Embora tenha ficado contente com a notícia, queria mesmo era Telecomunicações. Cursei dois anos nesta escola recebendo uma ajuda de custo como bolsa trabalho. Foi nessa época que comecei a pensar em vestibular. Com a ajuda de uma amiga, consegui fazer um cursinho, como bolsista. Ao final do curso técnico, tentei o 1º vestibular para Arquitetura e Urbanismo na UEMA (Universidade Estadual do Maranhão) e também para Ciências da Computação na UFMA, mas não passei nem na primeira etapa. 2002 Terminando o curso no CEFET, consegui um estágio, com ajuda de custo, num escritório de Arquitetura e Design. Lá, conheci na prática a área que pensei que fosse exercer, mas não me identifiquei com ela. Tentei de novo o vestibular, tanto para UFMA, quanto para a UEMA nas áreas já mencionadas, e me decepcionei novamente. 2003 Nesse ano repensei minhas escolhas quanto à concorrência e principalmente quanto à vocação, e resolvi fazer algo com a qual me identificasse e me desse prazer em cursar. Então, pensei em Matemática, Pedagogia ou Serviço Social na UFMA, mas como não era bem nas disciplinas específicas dos cursos de Pedagogia e Serviço Social, resolvi fazer para Matemática, já que com os cálculos tinha mais facilidade, e além do mais, gostava muito da idéia de ser professora dessa disciplina. 2004 Quando fiz a 1ª etapa, não tinha em mente que iria ser aprovada, devido às decepções anteriores. De qualquer forma, tentava não ser pessimista e me concentrar em meus objetivos. Ao saber que estava na 2ª etapa pela 1ª vez, tive a força que precisava para confiar mais em mim, no meu potencial. Terminei a prova acreditando que meu lugar era na universidade, e por isso, merecia estar lá. A minha ansiedade era tanta quanto a data do resultado que parecia não chegar, e ao mesmo tempo, uma grande expectativa de saber se o meu nome estava entre os aprovados. Quando saiu o resultado, eu não estava em casa, mas minha mãe, ouvindo a Rádio Universidade, foi a primeira a saber da minha aprovação. Ao chegar perto de casa, parecia que estava tendo uma festa quando os vizinhos me abordaram, dando-me a notícia, mas não acreditava no que eles diziam. Foi quando olhei minha mãe radiante, e ao me dizer, tive a 50 Caminhadas de universitários de origem popular certeza de que era verdade, e não um sonho. Jamais esquecerei o orgulho que vi em meus pais, ao terem a certeza de que sua única filha era uma universitária. Foi como se dissessem: “Valeu o nosso esforço! Valeu tudo o que passamos!” Sempre vi a universidade como um espaço restrito a poucos, mas dizia a mim mesma: “Se alguém que é mais experiente do que eu pode, por que eu não posso?” E passar significou a confirmação disso, entretanto, quando entrei, percebi que não era preciso apenas entrar, mas permanecer. E permanecer, realmente, é a parte mais difícil. Nesse sentido, o “Conexões de Saberes” tem me ajudado bastante, pois me proporcionou não só uma ajuda financeira, como também, a minha valorização como pessoa. Além da nova família que encontrei, é claro! Embora meu curso tenha um certo grau de dificuldade, amo a idéia de me tornar uma professora de Matemática e não entendo por que muitas pessoas discriminam o fato de uma mulher cursar Matemática. Para mim tem o mesmo valor de quem faz Medicina ou Direito, ou qualquer outro curso. E não me considero uma louca pela minha opção, mas uma vitoriosa por saber que poucos têm a coragem que tenho. Enquanto universitária, vejo que subi apenas mais um degrau em meu caminho, mas precisarei subir muitos outros. Agradeço muito a Deus pelas maravilhosas pessoas que colocou em minha vida, em especial minha família, que são a motivação para seguir em frente. Além da minha família, há várias pessoas que estiveram e estão sempre comigo, mas como não daria para mencionar o nome de todos, agradecerei em nome deles através dos meus amigos William, Antonia, Marcos Colins, Mauro Sérgio, Iolanda (UFMA), que sempre me orientaram, motivaram e principalmente, me disseram quando pensei em desistir: “Coragem! Você pode e vai conseguir!” Do meu futuro espero apenas que Deus me dê muita saúde, porque, em relação ao que preciso, posso ir em busca: como um trabalho, uma especialização e em breve construir uma família ao lado de Manoel, meu noivo. Este que, desde quando nos conhecemos, sempre esteve comigo, me apoiando e torcendo para que eu fosse uma vencedora! De coração, obrigada meu amor! Universidade Federal do Maranhão 51 Detalhes de uma história inesquecível Jardiane Moura Abreu * Nome Meu nome, Jardiane, foi escolhido pela minha mãe mesmo antes de casar-se. Ela diz que não sabe onde ouviu esse nome pela primeira vez, apenas sabe que era um nome que lhe chamava muita atenção, e que escolhera para ser o nome de sua primeira filha. Um nome muito bonito, vocês não acham? 22 anos Nasci em 15 de outubro de 1984, às 21h50m na maternidade Benedito Leite, na cidade de São Luís, filha primogênita do casal Maria do Rosário de Moura Abreu e Agostinho Lindoso Abreu. Segundo minha mãe, a sua gestação foi cheia de complicações. Ela conta que não podia andar sozinha na rua que, sem mais nem menos, caísse desmaiada. Ao nascer, pesei dois quilos e quatrocentos e cinqüenta gramas, fui um bebê saudável até o sétimo mês de vida, porém, a partir do oitavo mês, tive início de pneumonia e asma; esta última, perdurou até os sete anos de idade. Quando criança, vivia internada em hospitais. Meu pai, conta que certa vez, chegou a brigar com uma enfermeira, pois ela não conseguia puncionar minha veia para administrar o medicamento e me furou várias vezes, o que deixou meu pai muito irritado. Ele diz que eu não podia ver ninguém vestido de branco que logo chorava. Talvez o fato de eu estar boa parte de minha vida dentro de hospitais, me levaram desde criança a ter vontade de seguir a carreira de enfermeira. O medo que se transformou em desejo, um sonho que ainda não foi totalmente realizado. Rua Gardênia Ribeiro Gonçalves, 10, Ivar-Saldanha Já morei em quatro casas diferentes. Quando nasci, morei no bairro Sá Viana em uma casa que meus pais alugaram. Um dia, minha mãe, saiu para comprar algumas coisas e me deixou dormindo, porém, antes que ela voltasse, acordei e comecei a chorar. Uma vizinha, muito amiga dela, que também tinha uma filha de idade muito próxima da minha, me ouviu e foi até minha casa, pulou a janela, me levou para a casa dela, me amamentou e me escondeu. Quando minha mãe chegou e não me encontrou, começou a chorar desesperadamente, imaginando, que alguém havia me levado, foi então que a vizinha me entregou a ela e por isso tenho hoje uma “mãe de leite”. Foi no Sá Viana que dei meus primeiros passos com 10 meses de vida. * Graduanda em Educação Física na UFMA. 52 Caminhadas de universitários de origem popular Quando tinha 1 ano e 4 meses, nos mudamos para o Bairro de Fátima, para a casa do tio Martins, falecido recentemente. Segundo minha mãe, lá a casa era dividida por uma cortina, de um lado morava meu tio, irmão do meu pai, com a esposa e os filhos, e do outro lado meus pais e eu. Ela diz que certo dia, durante a noite, todos dormiam e as luzes estavam apagadas, o papagaio que eles criavam, naquela noite, não parou de chamar pelo nome de minha mãe. Achando estranho, ela se levantou e ligou as luzes, e aí ela percebeu que na rede em que eu dormia havia uma cobra enrolada na corda. Ficou desesperada, tirando-me rapidamente. Saímos de lá por causa do meu tio. Quando minha mãe saía, ao retornar, encontrava suas coisas jogadas na rua, o que fazia com que brigasse com meu tio, e para não causar discórdia entre irmãos, resolveu mudar-se mais uma vez. Uma boa recordação daquela casa foi quando pronunciei a primeira palavra. Querem saber qual? “Papai”. Com 1 ano e 8 meses, fomos morar no bairro chamado Alemanha, na casa de outro tio, Julião. Minha mãe, já estava grávida do meu irmão Jefferson, que nasceu no dia 9 de setembro de 1986. Desde pequena, sempre fui muito cuidadosa com minhas coisas, é até engraçado falar disso. Quando minha tia emprestava alguma coisa de minha mãe, eu, sem demora, corria para a casa dela e a trazia de volta. As minhas falas eram: “Isso é da minha mãe, me dá”. “Possessiva essa menina, não?”. Depois de algum tempo, meus pais conseguiram reunir dinheiro suficiente para comprar sua primeira casa própria, quer dizer, era apenas um terreno, de muita importância para todos. Adeus casa alugada, adeus casa de parentes, uma nova vida, um novo início. Meus pais construíram uma casa de barro e taipa para onde nos mudamos. Eu tinha cinco anos de idade e podem ter certeza: este foi o início da melhor fase de minha vida, foi quando iniciei meu ciclo de amizades, pois até então, só tinha primos para brincar. Moro até hoje nessa casa e os melhores momentos de minha vida estão nela: risos, lágrimas, vitórias, derrotas, tudo o que tenho conseguido e até mesmo o que já perdi. Mesmo assim, sinto-me feliz. Meu pai, Agostinho Lindoso Abreu Meu pai nasceu no dia 29 de fevereiro de 1964, porém, na sua documentação, consta a data de 12 de março de 1965, pois foi registrado, por descuido, somente nesta data. Ele morou na cidade de São João Batista até os 15 anos, vindo para São Luís em 1979 a pedido de irmãos mais velhos para que conseguisse emprego. Em poucos dias, conheceu o rapaz que era filho do dono de uma padaria que lhe ofereceu emprego. Por coincidência, o dono da padaria, seu Dico, conhecia meu pai, pois era seu conterrâneo. Meu pai então, foi morar com a família desse senhor, pois até então estava hospedado na casa de uma namorada que arranjara. Porém, o relacionamento deles não durou muito tempo. Ele aprendeu sua profissão de padeiro justamente nesse período e a exerce até hoje, tendo o seu próprio negócio. Por mais que ainda não tenha terminado o Ensino Fundamental, ele sempre lutou para não deixar faltar nada para seus filhos, prova disto era quando recebia o décimo terceiro salário. A primeira coisa que comprava era o material escolar dos filhos, ele sabia o valor da educação e o quanto era muito difícil pagar por ela. Um susto que tive em relação ao meu pai, foi quando eu tinha 11 anos. Ele desmaiou enquanto se banhava e ficou por vários minutos desacordado. Depois deste episódio, começou a ter crises de vômito acompanhado de sangue, bem como crises de melena (fezes com sangue), o que o levou a ficar internado por meses a ponto de necessitar de três bolsas de sangue para transfusão. Ele estava com úlcera nervosa. Graças a Deus, tudo ocorreu bem e hoje eu o tenho junto a mim. O que antes era uma úlcera, regrediu para uma gastrite. Universidade Federal do Maranhão 53 Minha mãe, Maria do Rosário de Moura Abreu Minha mãe nasceu no dia 20 de fevereiro de 1965, morou durante 15 anos na cidade de Caxias. Em junho de 1980, deixou sua cidade natal para vir morar em São Luís. Meus avós acreditavam que aqui na cidade ela teria uma melhor educação escolar e por isso mandaram-na com a esposa do primo do meu avô para cá, e desde então, começou a trabalhar como empregada doméstica na mesma casa em que morava. Foi então que, em uma festa de carnaval do ano seguinte, meus pais se encontraram, trocaram olhares e em poucos minutos meu pai tirou minha mãe para dançar. Um detalhe importantíssimo: minha mãe não sabia dançar muito bem, mas mesmo assim, aceitou o convite. Foi então que, começaram a namorar. Um namoro que perdurou por quatro anos, e em 2 de Janeiro de 1984, se casaram. Neste mesmo ano, minha mãe engravidou pela primeira vez. Mamãe terminou o Ensino Médio em 2004, juntamente com meu irmão. Depois de muita luta, consegui fazer com que ela voltasse a estudar, pois, quando resolveu casar-se, abandonou os estudos por falta de tempo e cansaço. Trabalha como empregada doméstica até hoje, e por incrível que pareça, na casa da filha da senhora que a trouxe para a cidade. Laços são Laços. Solteira e apaixonada Até hoje, tive dois namorados, o primeiro aos treze anos, fazia parte do meu grupo da igreja. Além de morarmos na mesma rua, namoramos durante 6 anos e 8 meses, cheguei mesmo a pensar que iríamos casar, mas não era esse o nosso futuro. Posso dizer que somos amigos até certo ponto, não guardo mágoa e nem rancor dele, fomos felizes até onde podíamos ser. O segundo namorado foi aos 21 anos. Eu o conheci no grupo “Afro Omnirá de Cururupu”, um grupo do movimento negro sobre o qual muito se falava e do qual comecei a fazer parte a partir de 12 de outubro de 2005. Foi lá então que me apaixonei. Ele é o mestre da bateria do grupo e eu faço parte do corpo de dança. Fiquei surpresa quando descobri que ele estava interessado em mim, algo recíproco estava acontecendo, e em 28 de fevereiro de 2006, resolvemos namorar e estamos juntos até hoje. Sabe aquela história de unir o útil ao agradável? Pois é, adoro dançar e saber que através da dança posso conscientizar muitas pessoas da luta que os negros quilombolas enfrentam hoje, o porquê delas, suas razões. Fazer com que compreendam o mundo do negro, me deixa satisfeita. Chegada à universidade No primeiro período (1989), estudei na escola “Moranguinho”, escola comunitária do bairro em que eu morava. Chorei muito no primeiro dia de aula pedindo para que me levassem de volta para casa. Lembro-me da minha primeira professora. Daria, era seu nome. Participei ativamente de todos os eventos que eram organizados, datas comemorativas como: festas de dia das mães, pais, São João etc. Estudei todo o jardim de infância lá. Com sete anos (1992), iniciei a primeira série na escola municipal “Luís Viana”, porém, ela entrou em reforma e fui transferida para a escola CIEP. Na segunda série (1993), saí do CIEP para fazer a segunda série na escola estadual “Montezuma”. Lá, cursei até a 4 a série. Era uma das melhores alunas da escola, o que me fazia ganhar muitos prêmios a cada fim de semestre, tais como, livros, caixas de bombons e estojos. 54 Caminhadas de universitários de origem popular Em 1996, retornei para o “Luís Viana”, onde cursei da 5a à 8a série. Ao término do Ensino Fundamental, fiz uma prova para uma das mais cobiçadas escolas da cidade, “Liceu Maranhense”, onde obtive aprovação. Assim, em 2000, iniciei meu Ensino Médio, uma vitória conseguida, motivo de muita alegria tanto para mim, quanto para meus pais. Agora, restava o vestibular, e em pouco tempo estaria frente a frente com ele. Ano de 2003, meu primeiro vestibular. Fiz vestibular para Enfermagem no vestibular tradicional da Universidade Federal do Maranhão e não passei; chorei muito por não ter conseguido. Nesse mesmo ano, fiz seletivo para o PSG da UFMA para o curso de Medicina, e na Universidade Estadual do Maranhão, para Biologia. Também não consegui aprovação. Muitos fracassos em apenas um ano. Decidi, então, que não ficaria sem fazer nada, pois nunca fui de ficar muito tempo parada. Iniciei um curso técnico de Enfermagem de dois anos; eu já gostava da área e me apaixonei mais ainda por ela. Para pagar o curso, todos os dias eu guardava três reais que minha mãe me dava de uma entrega de pães que ela fazia, e foi assim que consegui fazer meu curso, tendo me formado em 15 de outubro de 2005. Comemorei tanto minha formatura quanto meu aniversário. Em 2004, prestei meu segundo vestibular. Lembro que, quando fui escolher o curso, levei em consideração o fator tempo que era justamente o que eu não tinha no momento. Então, como eu iria estudar se o curso técnico tomava boa parte desse tempo? Eu não queria tentar Enfermagem novamente para ter um resultado não satisfatório. Então, resolvi escolher outro curso com o qual eu pudesse me identificar, foi quando, ao ler o nome dos cursos disponíveis, vi o de Educação Física. Nele não havia a disciplina Química como específica e era uma área que me interessava, pois, durante toda minha vida escolar e mesmo fora da escola, pratiquei esporte, fui envolvida com toda atividade física. O resultado foi a aprovação, e hoje, não troco meu curso por nada nesse mundo. Lembro que não desisti do sonho de ser enfermeira um dia. Dou graças a Deus, todos os dias de minha vida, por todos os momentos que ele me proporcionou e proporciona. Quando fiquei sabendo do projeto “Conexões”, logo me interessei. Inscrevi-me, e quando soube que havia sido selecionada e que iria passar por uma entrevista, tive um pouco de medo. No dia da entrevista, ao entrar na sala, vi todos aqueles coordenadores e imaginava o que poderiam me perguntar. A partir daí, vi que deveria apenas relatar um pouco do que vivia e ainda vivo e pronto: fui selecionada. Tenho aprendido muito com o Projeto e me sinto verdadeiramente honrada por fazer parte da história de muitos que ali estão, pois temos muito em comum, no que defendemos, e acima de tudo, no que queremos. Empregos Antes de tentar arranjar emprego, trabalhei informalmente vendendo bebidas em festas de carnaval, o que me garantiu renda para que pudesse pagar alguns cursos profissionalizantes. Comecei a trabalhar formalmente com dezesseis anos. O primeiro serviço que consegui foi em uma fábrica de bebidas, mais especificamente refrigerantes, onde trabalhava como degustadora. O segundo foi em uma padaria que tinha convênio com a fábrica de bebidas; nela, trabalhava como demonstradora de tortas e do lançamento de um refrigerante. O Universidade Federal do Maranhão 55 terceiro foi em um supermercado. Depois consegui emprego em uma loja de confecções. Após estes, comecei a trabalhar na minha área: educação física, dando aulas de ginástica localizada, futsal, ginástica laboral e natação, inicialmente em projetos da universidade e depois em clube. Igreja Um fator que influenciou muito na pessoa que sou hoje foi a minha inserção na igreja. Tinha sete anos quando meus pais finalmente resolveram me batizar e para isso eu tinha que fazer catecismo durante um ano. Fui batizada com oito anos, juntamente com meu irmão que tinha seus seis anos. A partir de então, iniciei minha vida cristã, fiz primeira comunhão, participei do grupo “Persevérico”, e logo em seguida, fui crismada. Fui catequista de uma turma de iniciação para primeira comunhão e depois para uma turma de preparação para a Crisma. Foi na igreja que percebi o quanto eu era importante para a minha sociedade e o quanto poderia fazer por ela. As ações sociais que realizava me faziam sentir responsável. Hoje, participo de um grupo de jovens chamado “Renascer”. Nele, discutimos vários temas referentes ao modo de vida dos jovens de hoje e o que o grupo pode fazer para melhorar isso, claro que nos âmbitos religioso e social. Agora... Inspirada em Joe Kemp, posso dizer-lhes qual foi a melhor época da minha vida. Bem, esta é minha resposta filosófica aos muitos detalhes que puderam ler sobre minha vida e digo-lhes: quando nasci e respirei pela primeira vez o ar da minha cidade, aquela foi a melhor época da minha vida; quando fui para a escola pela primeira vez e aprendi as coisas que sei hoje, aquela foi a melhor época da minha vida; quando arrumei meu primeiro emprego, passei a ter responsabilidade e a ser paga por meu esforço, aquela foi a melhor época da minha vida; quando me apaixonei pela primeira vez, aquela foi a melhor época da minha vida; quando recebi o meu primeiro sacramento, aquela foi a melhor época da minha vida. E hoje, tendo 22 anos, continuo apaixonada pela minha vida, pela minha história, pelo meu passado, bem como pelo meu tempo presente, pelo meu hoje, pelo meu agora. Essa é a melhor época da minha vida! 56 Caminhadas de universitários de origem popular A luta antecede a vitória Jefferson Veras Rodrigues * Falar da minha trajetória significa voltar ao passado para resgatar a árdua caminhada da minha vida. Todos os acontecimentos que vivi, foram, sem dúvida, difíceis de superar. Sendo mais um dos excluídos do sistema, tive que buscar na esperança, na fé em Deus e na coragem a força para seguir em frente, em meio aos desafios da vida. Nasci em São Luís do Maranhão, no bairro chamado Sá Viana, situado muito próximo da Universidade, filho de dona Francisca e de seu Daniel. Assim que nasci, minha mãe se separou do meu pai, o qual nunca tive o privilégio de conhecer; ele também nunca me procurou e eu não sei por que. Devido à necessidade de trabalhar para me sustentar, minha mãe foi embora para São Paulo e só se correspondia através de cartas ou telegramas. Quando fui começando a entender a vida, comecei a ter saudades dela, pois todos os meus colegas tinham mãe por perto, somente eu não. Em São Paulo, ela casou-se e teve uma filha de nome Cássia, uma irmãzinha para que eu não fosse filho único. Fiquei sendo criado por minha avó. Nesse tempo, eu tinha pouco mais de um ano de idade, ainda estava mamando quando ela foi para São Paulo, o que me acarretaria problemas posteriormente. A minha infância foi muito dolorida, pois quase sempre me encontrava doente, vítima da falta de aleitamento materno; fui uma presa fácil de várias doenças ao longo de toda a minha infância, tais como: sarampo, catapora, pneumonia etc. No meio de tantas doenças, a única pessoa que estava perto de mim era minha avó, foi ela quem cuidou de mim, matriculou-me no colégio, assistiu às reuniões da escola. Senti-me verdadeiramente protegido por ela até a idade em que estou agora. Por não ter uma boa condição, tive que trabalhar desde muito cedo, aos nove anos de idade. No começo trabalhei vendendo sacola no Mercado Central da cidade, o que durou três anos. Paralelamente a isso, trabalhei na feira livre da cidade, ajudando a carregar sacola. Fazia isso diariamente, quase não tinha tempo para estudar, brincar ou conhecer novas pessoas, ir à biblioteca ou à praia. Aos doze anos de idade, comecei a vigiar carro na Universidade, onde hoje estudo. Vigiei carros durante dez anos da minha vida. Nesse período, conheci várias e várias pessoas, de todos os tipos, algumas zangadas, outras amigáveis, fiz até amigos nessa empreitada, nunca vou me esquecer dos companheiros amigos que lá deixei. Eu estava crescendo e queria dar um novo rumo para a minha vida, pois sabia que aquilo não iria durar a vida toda, por isso, eu tinha que arrumar um trabalho mais digno. * Graduando em Ciências Imobiliárias na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 57 Sempre tentei ser uma pessoa dedicada aos estudos desde pequeno, não gostava de faltar às aulas, nem de chegar atrasado à sala de aula. Lembro-me de que, na 6a série, olhei meu boletim e vi que não tinha nenhuma falta, posteriormente seria escolhido o melhor aluno daquela série. O Ensino Médio foi muito difícil, porque, muitas vezes, eu não tinha como comprar o livro que o professor indicava. Muitas vezes eu não tinha como comprar o passe escolar, aquilo ia de encontro a minha assiduidade na escola. As conseqüências de tudo isso vieram imediatamente, logo comecei a faltar à escola. Os professores não sabiam da minha dificuldade, nem meus colegas de classe. Minha avó, muitas vezes, ficava angustiada por presenciar essa situação. Eu via, muitas vezes, ela preocupada no quarto, mas o que ela pôde fazer para me ajudar ela fez, não só por mim, mas com os meus tios que também passavam pelas mesmas dificuldades financeiras. Nesse momento, comecei a me entristecer e a pensar que nunca iria terminar o Ensino Médio. Em meio a tantas dificuldades, terminei o tão sonhado Ensino Médio. Nesse momento, comecei a pensar no meu futuro. Tentei arrumar um serviço, mas não consegui, principalmente por ser inexperiente. Então, comecei a fazer cursos profissionalizantes, mesmo assim, não tive sucesso em arranjar trabalho e eu não sabia o que fazer no futuro. Só pensei em fazer vestibular na minha vida quando terminei o Ensino Médio, no momento de tantas indefinições acerca de meu futuro. A maior dificuldade em fazer vestibular era justamente o ensino público deficiente que todo aluno de escola pública tem. Essa era a barreira a ser derrubada. Eu não tinha dinheiro para fazer cursinho nem pagar a taxa do processo seletivo, além do mais, as pessoas me chamavam de doido, porque, segundo elas, eu não tinha qualquer chance da passar em vestibular. Isso tudo fez com que eu ficasse um pouco desanimado. No ano de 2003, surgiu uma propaganda na televisão do Governo de Estado. Ela se referia a um processo seletivo que o governo iria fazer para dar um cursinho preparatório para o vestibular, além de uma bolsa de ajuda de custo de cinqüenta reais. Eu de imediato me interessei, mas havia um detalhe: seria necessário primeiro passar em uma prova, porque a concorrência era muito grande e as vagas, poucas. Eu fiz minha inscrição e comecei a estudar todo o assunto do Ensino Médio, pois este era o conteúdo da prova. Fiz a prova, e depois de um mês, veio o resultado: eu tinha passado, fiquei muito feliz, como se tivesse passado no vestibular, os vizinhos ficaram contentes e meus colegas também. Comecei a fazer o cursinho que tinha duração de seis meses. O lugar onde ficavam as instalações do cursinho era distante e também havia muita insegurança da minha parte porque o lugar era arriscado e o curso era ministrado durante a noite. Nesse período, eu ficava dividindo as atenções entre os estudos e o trabalho, e estudava toda madrugada. O tempo ia passando e eu continuava a estudar e a trabalhar, e a hora do vestibular estava chegando. Terminei o cursinho dois dias da prova do vestibular para o qual já tinha conseguido a taxa de isenção. Eu já tinha o que eu queria: o cursinho e a inscrição do vestibular. Faltava apenas uma coisa: fazer a prova. Eu, ainda inexperiente, ficava toda hora pensando na tão sonhada missão: passar no vestibular. Contava nos dedos os dias que faltavam para fazer a prova. No dia da primeira etapa da seleção, eu estava muito inquieto, cheguei ao local de provas faltando ainda duas horas para o seu início. Fiz a prova ocupando todo o tempo que tinha disponível. Fiquei contente com minha prova, agora, só faltava esperar o dia do resultado que, por sua vez, não tardou, tendo saído após quatro dias da prova. Durante esses 58 Caminhadas de universitários de origem popular quatro dias, eu não dormi direito, só pensando nesta tão bendita prova. Passado o tempo, saiu o resultado, e eu havia passado, fiquei tão, tão contente que não estava acreditando nesse feito. Foram precisos dois dias para que eu pudesse acreditar nessa primeira vitória. Minha cabeça dava milhões de voltas em torno de tudo, mal conseguia almoçar, até a fome deu lugar à alegria. Faltava ainda derrubar a outra muralha que era tão forte quanta a primeira, o nome dela se chamava segunda etapa, aqui, as provas eram discursivas e havia a famosa redação, o pesadelo de todos os vestibulandos. Eu também segui essa regra, pois tinha uma letra que sobrinho de dez anos ganhava, mas eu consegui aperfeiçoar esta caligrafia antes da segunda etapa da prova. Durante o período que antecedeu a segunda etapa, a minha jornada de estudo praticamente dobrou, nem fui ao trabalho nesse período, só ficava estudando e pensando como seria a prova. O dia da prova tinha chegado, e eu mais uma vez estava muito ansioso. Já tinha terminado as duas provas discursivas e estava alegre, porque elas foram muito boas. Só faltava a redação, fiz o esboço, tudo certo, mas quando chegou à hora de passar a limpo, nesse momento parece que caiu tudo sobre minha cabeça, eu tinha “caído na real”: eu estava na segunda etapa da prova da UFMA, simplesmente não estava conseguindo passar a redação a limpo, a mão tremia como se fosse uma furadeira, além disso, suava intensamente, estava chegando a ponto de molhar a folha de redação, tentei descontrair pensando em outras coisas até que consegui melhorar. Passei uma hora e meia com todos esses imprevistos. Comecei, então, a escrever devagar até o fim. Demorou um mês para sair o resultado. Nesse tempo, eu estava cheio de expectativas de conseguir a vaga na almejada universidade. Passaram-se os dias e o resultado saiu: eu havia passado. Foi a maior alegria, não tinha cabeça para nada. Nesse dia, fui a pessoa mais famosa do Maranhão, dei entrevista, fui manchete de primeira página nos jornais de alta circulação. Eu não contava com tudo isso, pessoas que eu nem conhecia me cumprimentaram. Na minha casa foi uma alegria só. Aqui vale agradecer a Deus e a uma pessoa que, sem dúvida, foi a minha maior inspiração, que eu certamente jamais vou esquecer, o nome dela é a Dona Domingas, minha avó, essa sim, merece tudo e um pouco mais. O meu maior presente por ter passado no vestibular, foi sem dúvida, ser um exemplo para várias pessoas, que se inspiraram em mim para dar a volta por cima. Pessoas que não acreditavam mais no futuro e agora voltam a estudar. Ser referência para as pessoas me deixa muito contente e me dá forças para seguir em frente na Universidade. A minha aprovação no vestibular da UFMA não significa uma guerra ganha, e sim, apenas uma batalha. Quando comecei a estudar, passei a ter várias dificuldades financeiras, como, por exemplo: dinheiro para comprar livros, tirar cópias etc. Ainda não tinha trabalho, até que ganhei uma bolsa para ajudar a custear as despesas. Ela tinha um valor simbólico, mas me ajudou bastante no início. No mês de março de 2006, fiquei sabendo da seleção para fazer parte do “Conexões de Saberes”, fiquei muito interessado em fazer parte, primeiro porque eu preenchia todos os requisitos exigidos. O programa tem tudo a ver com minha história, as atividades fazem parte de uma verdadeira interação entre a universidade e comunidade. No programa “Conexões de Saberes”, eu vivo com pessoas que fazem parte da mesma classe social, há uma harmonia baseada na história de cada componente, eu me sinto orgulhoso por estar diariamente interagindo em minha comunidade. Universidade Federal do Maranhão 59 A minha caminhada até a Universidade foi e é difícil, foram grandes os problemas, as dificuldades. Vivendo excluído do sistema, tive muitas vezes que recuar e/ou avançar. Sem dúvida, é muito difícil para uma pessoa que vive às margens da sociedade passar no vestibular. Para isso acontecer, ela terá que ter muita determinação e coragem para enfrentar as dificuldades pelas quais passamos durante a trajetória, não desanimando com o primeiro, nem com o segundo ou terceiro obstáculo, mas prosseguindo avante com a certeza de que irá conseguir alcançar sua meta. Agradeço a Deus e a todos aqueles que, direta ou indiretamente, me ajudaram a alcançar o meu objetivo. No meio das adversidades, consegui entrar em uma Universidade. A batalha agora é terminar a graduação. 60 Caminhadas de universitários de origem popular Vencendo desafios Jonivaldo Lopes Santos * Há um provérbio popular de que “toda regra tem sua exceção”. Eu sou a prova viva desta afirmativa. Talvez você, leitor, ficará sem entender por alguns instantes, mas ao passo que eu for contando a minha história, você entenderá e com um pouco de sorte se tornará um defensor ferrenho deste dito. Se “agosto é o mês do desgosto”, minha mãe contesta com toda convicção, pois eu, Jonivaldo Lopes Santos, nasci no dia 07 de agosto de 1976, para a alegria geral da minha mãe e da família dos Lopes. Abandonado por meu pai antes mesmo de nascer, membro de uma família de pescadores e lavradores de poucas letras, mas de um entendimento notável, pois, diante da realidade na qual viviam, sempre tiveram a visão de que a educação é uma das principais ferramentas capazes de gerar cidadãos e melhorar a qualidade de vida daqueles que optam por obtê-la. Por isso, minha mãe e meus avós incessantemente me davam apoio, principalmente, nas horas de desânimo, quando, em algumas situações, reclamava da qualidade física da escola. Muitas vezes ouvi o meu avô, de saudosa memória, falar com seu tom suave e calmo: “Meu filho, quem faz a escola é o aluno”, então, resolvi acatar esta reflexão e os frutos foram sendo colhidos gradativamente. São estes passos que passarei a expor. A minha trajetória escolar inicia-se aos sete anos de idade, quando, pela primeira vez, iria freqüentar uma escola, ainda que minha inserção no processo da alfabetização já tivesse se iniciado em casa com a minha mãe - a mais excelente educadora que já tive - que sempre deu prioridade à educação, transformando-se na minha primeira alfabetizadora. Quando cheguei à escola, já tinha conhecimento do alfabeto e sabia formar as sílabas, fator determinante para um início com sucesso na longa caminhada rumo ao conhecimento. Era um aluno dedicado que gostava muito de ler. Lembro-me da maneira ansiosa com a qual aguardava os novos livros, podendo ler novas histórias das quais me recordo de algumas até hoje. Alguns fatos dessa época são inesquecíveis, como o episódio da roda de tabuada com direito a bolo de palmatória para quem errasse. A minha série, a 2ª, ainda não participava, mas eu, movido pela curiosidade, resolvi participar, para meu desespero mais tarde. Quando a roda começou, eu, que não tinha estudado tabuada, comecei a apanhar bolo da turma. Para piorar a situação, minha mãe resolveu nesse dia e hora visitar-me na escola a fim de saber como eu estava me comportando. Eu não posso afirmar com veemência que bolo de palmatória é remédio para quem não gosta de estudar tabuada, mas comigo funcionou de tal forma que nunca mais apanhei na roda. * Graduando em Turismo na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 61 A carreira escolar foi tão promissora que, antes da 1a série, já sabia ler e escrever; adorava as histórias do livro da 1a série intitulado É hora de ler. Na 2a série, a grande novidade ficou por conta da chegada da nova professora oriunda de Cururupu, município do qual faz parte a Prainha, povoado em que residia. A professora Bibi - como era chamada - e sua família, foram e continuarão sendo parte da minha própria família; foi ela quem apostou na minha capacidade e quando apenas eu, de uma turma de aproximadamente vinte e cinco alunos, passei da 3a para a 4a série, sentindo ela que teria dificuldades em ministrar aula para apenas um aluno da 4a série, matriculou-me numa escola em Cururupu e levou-me para morar em sua casa, iniciandose, assim, um novo momento na minha vida. Dou graças a Deus por ter aproveitado a oportunidade, pois como uma flecha lançada: uma vez perdida, nunca mais voltará. Sem dúvida: se não fosse por essa ação solidária da professora Bibi, talvez eu não estivesse neste momento escrevendo este memorial. Alegrame saber que, em uma sociedade egoísta, capitalista, interesseira, ainda há pessoas como esta educadora e sua família; são pessoas como estas que nos fazem continuar acreditando na generosidade, no caráter e na bondade. Em Cururupu aprendi várias lições para toda a vida, uma delas é a necessidade de se ter um objetivo e lutar para alcançá-lo, mesmo que aparentemente seja quase impossível foi o meu caso. No ano seguinte, nos mudamos para São Luís, onde dei prosseguimento a minha carreira escolar. Fui estudar em uma escola pública denominada “Sousândrade”, localizada no Bairro do Lira, onde concluí o Ensino Fundamental. Nesse período, passamos por muitas dificuldades, pois minha casa estava em construção e apenas minha mãe trabalhava para manter a família e ainda arcar com as despesas escolares, mas como nossa educação era prioridade, não deixamos de freqüentar a escola. Um ano depois, meu avô conseguiu um emprego, fato que foi recebido com muita alegria, pois, a partir de então, houve uma melhora em nossa situação financeira, colocando um ponto final em nosso momento de crise. Assim, como no Ensino Fundamental, o Ensino Médio também transcorreu em instituição de ensino público, tudo ocorreu sem anormalidades e eu concluí no tempo previsto. Sem nenhuma informação por parte da instituição de ensino onde eu estudava sobre a importância do vestibular e por me sentir despreparado, decidi adiar este sonho, ainda que incentivado pela minha mãe. Vendo a necessidade financeira da minha família, procurei, sem mais delonga, uma fonte de renda que proporcionasse ajuda para minha mãe e meu avô, únicos que possuíam renda até o momento. Um ano após a conclusão do Ensino Médio, tive a minha primeira experiência de trabalho, mas o sonho de ingressar no ensino superior não tinha morrido, estava apenas adormecido, dadas as circunstâncias que me foram impostas. Movido pelo incentivo da minha família, prestei vestibular pela primeira vez em 1999, não obtendo sucesso nesta investida. Após outras tentativas, prestei vestibular em 2005 para Turismo, quando finalmente conquistei o sonho do Ensino Superior. Com o Ensino Superior, inicia-se uma nova etapa da minha vida. Encaro a universidade como uma ferramenta a nossa disposição, sendo de nossa inteira responsabilidade o rumo a ser tomado. Quando ouvi falar do Programa “Conexões de Saberes”, fiquei surpreso e ao mesmo tempo feliz por esta iniciativa do governo que visa à permanência com qualidade dos alunos de origem popular nas universidades. É louvável esta ação que estabelece um diálogo mais sólido entre as universidades e as comunidades populares, sem apresentar apenas a academia como produtora do conhecimento, mas também, levando em conta, o saber popular. Essa união contribuirá para a democratização do Ensino Superior em nosso Estado. 62 Caminhadas de universitários de origem popular Este espaço poderia ser preenchido com inúmeras experiências da minha vida familiar e escolar e assim teria concluído este memorial com sucesso, mas desta forma seria eu insensato, ingrato, pois faltariam os agradecimentos a tantas pessoas que de alguma forma contribuíram para que este sonho se tornasse realidade. Agradeço a princípio àquele que está no controle de todas as coisas, Deus, o todo poderoso, nosso pai celeste, sem Ele, eu jamais teria conquistado as batalhas que a vida nos impõe em todas as esferas; a minha amada mãe, mulher de luta, amável e de um coração enorme e bondoso, melhor amiga, a jóia mais preciosa que possuo nesta vida, a minha mais fiel incentivadora; a minha avó, por quem eu tenho muito amor, pela motivação, embora que a sua maneira; ao meu avô, de saudosa memória. Gostaria muito que pudesse compartilhar esta alegria, pois o meu sonho era o sonho dele. Mas como os planos de Deus não são iguais aos nossos, um ano antes da minha conquista do Ensino Superior, ele faleceu. À minha família como um todo; a minha princesa que sempre me incentiva e me ajuda com os trabalhos acadêmicos e sempre me atura quando chego às vezes preocupado ou apreensivo com alguma tarefa; à família da minha querida professora Bibi, pela força que me deu quando mais precisava. Enfim, a todos que, de forma direta ou indireta, contribuíram para que esse objetivo se tornasse realidade. “Na vida, você só será aquilo que quiser ser.” Jonivaldo Lopes Santos Universidade Federal do Maranhão 63 De onde vim e para onde eu quero ir agora Josenira dos Santos Veras * Acima de tudo o amor “13 1Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, se eu não tivesse o amor, seria como sino ruidoso ou como símbolo estridente 2 Ainda que eu tivesse o dom da profecia, O conhecimento de todos os mistérios e de toda ciência; ainda que eu tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse o amor, eu não seria nada.” (I COR 13:1 e 2) A vida, a meu ver, é complexa e envolta em mistérios. Por que bons momentos são esquecidos? Por que os momentos tristes persistem em nossa memória? Por que me esqueci da primeira palavra que pronunciei; do meu primeiro passo; do primeiro sabor que degustei; do meu primeiro sentimento? Meu nome é Josenira, sou parda, tenho 21 anos e sou natural de São Luís – Ilha do Maranhão. Resido no bairro Jardim São Cristóvão, prefeitura de São Luís, e atualmente passo mais tempo na Universidade Federal do Maranhão, onde sou estudante do curso de Letras. Faço também outro curso de licenciatura: Geografia, na Universidade Estadual do Maranhão. Minha família é de crença cristã, católica e é composta por seis pessoas: meu pai José; minha mãe Maria Virgínia, eu, meus irmãos: Jonas (primogênito), Josué e Raimunda, que convive conosco desde os seus dois anos. Papai e Jonas são técnicos agrícolas, porém somente meu irmão exerce a profissão; minha mãe é dona de casa; o Josué possui o Ensino Médio completo e a Raimunda está na 7ª série do Ensino Fundamental. * Graduanda em Letras na UFMA. 64 Caminhadas de universitários de origem popular Eu sou uma pessoa divertida, de certo modo reservada e completamente apaixonada pela minha família, conseqüentemente sou muito caseira, mas não dispenso ir ao cinema com meus amigos. Gosto de ouvir músicas, cantar. Gosto da natureza e de tudo que ela pode oferecer de bom. Nela vejo o “dedo de Deus”, através de sua perfeição. Por falar Nele, agradeço-lhe todos os dias pela família, amigos e tudo que colocou em minha vida. Minha velha infância Considero a infância a melhor fase da minha vida. Ela foi repleta de momentos maravilhosos e mágicos, que foram compartilhados com meus irmãos, primos e minha melhor amiga: Heliana. Minha vida estudantil iniciou-se cedo; estudei no Jardim de Infância “Tico e Teco” desde o maternal até a alfabetização, meus irmãos estudavam na Instituição de Ensino Fundamental “Nossa Senhora Sagrado Coração” (ambas pertenciam à Igreja Católica do bairro). A escola, hoje extinta, ficava cerca de 30 minutos – de caminhada – da minha casa, aproximadamente 10 minutos em um veículo qualquer. Eu e meus irmãos éramos levados por papai em sua bicicleta e geralmente voltávamos com nossa mãe a pé. Minha rotina era mais ou menos assim: acordava muito cedo; seguia hábitos higiênicos e alimentares; ia para escola às 06:45; saía da escola por volta de 12:00. Chegava em casa, tomava banho; almoçava; descansava e/ou dormia; ao acordar, fazia minhas atividades escolares, depois brincava com minha amiga Heliana e minha prima Mariana de escolinha ou casinha, ou subíamos na goiabeira do quintal e ficávamos horas e horas “curtindo” o vento forte em nossa casa da árvore. Ao final da tarde, tomava banho; jantava e assistia à TV. Depois de um dia “exaustivo”, dormia na minha rede, mas antes da “fada-de-olhos” tocar meus cílios, balançava-me alto, bem alto, sem medo. Tudo se resumia a uma grande e interminável brincadeira... Nesse período de brincadeiras e travessuras, papai ficou desempregado, todo o dinheiro que conseguia (oriundo de “bicos” de pedreiro) era destinado às contas e mensalidades, o pãode-cada-dia foi por muito tempo fiado. Papai, sem “bicos”, sem dinheiro, sem saída, fez um empréstimo junto ao banco (como muitos outros pelos quais passamos e que também foram superados), porém meus pais nunca deixaram que dormíssemos um dia sequer com fome. Lembro-me de um momento que me foi muito especial: quando li pela primeira vez frases distintas da cartilha da escola, a frase era: “Lula não, Collor sim” e estava “pichada” no muro da base aérea do Aeroporto Carlos Cunha; muro que corta vários bairros de distrito do Tirirical. Outros momentos importantes de que me lembro foram a vinda do Papa João Paulo II ao Maranhão e quando meu irmão Jonas não ficou de recuperação pela primeira vez... Novos rumos... No final de 1992, o “Tico e Teco” fechou. Eu havia terminando a alfabetização, meus irmãos já cursavam o Ensino Fundamental, meu primo Paulo estava no segundo período. Foram todos estudar na Escola Comunitária “Marly Sarney”, no Ipem São Cristóvão, agora pela tarde. Papai conseguiu um novo emprego como vigia, conseqüentemente houve melhorias em nossa qualidade de vida, além disso, continuou com os “bicos” de pedreiro, pois era vigia somente à noite. Universidade Federal do Maranhão 65 Minha rotina mudou: acordava por volta das 06:00, tomava um café reforçado, ia brincar por cerca de duas horas; merendava sucos naturais ou as próprias frutas (maracujá, abacate, manga, limão, goiaba, murta, ata, coco) colhidas no quintal, depois ajudava minha mãe (varrendo a casa, enchendo litros com água, enxugando louças, etc.), enquanto meus irmãos auxiliavam meu pai no serviço de pedreiro. Almoçava ao meiodia, ia para a escola. Chegava em casa às 06:00; fazia minhas atividades escolares; depois assistia ao meu desenho animado favorito: “Cavaleiros do Zodíaco”, jantava e depois ia dormir. Em 1992, tinha 10 anos e fazia a 4ª série, era uma boa aluna. Nesse período aprendi a cozinhar com a supervisão de minha mãe. Nesse ano, lembro-me, papai ficou desempregado novamente. A diferença naquele momento era que compreendíamos (eu e meus irmãos) a situação em que nos encontrávamos. Várias foram as vezes em que almoçávamos somente feijão cozido com água e sal , feito no fogareiro de barro – o feijão plantado no quintal e o fogareiro feito por papai... Na metade de 1996, papai conseguiu um novo emprego de vigia, em uma escola primária, perto da casa da minha avó. Na “Marly Sarney”, estudava bastante, pois nunca fiquei de recuperação e valorizo o “suor” de meus pais... Você não sabe o quanto eu caminhei... Papai trocou de emprego: deixou a escola que vigiava todas as noites e passou a vigiar uma empresa, a uma quadra de nossa casa, em dias alternados. Meus irmãos cursavam o Ensino Médio: Jonas na Escola Agrotécnica Federal do Maranhão e Josué no “Liceu Maranhense”; a Raimunda fazia o jardim, em um bairro vizinho ao nosso, para o qual eu a levava e buscava todos os dias, junto com o meu primo Raimundo José. O Ensino Fundamental foi um período de muitas descobertas, fiz muitas amizades. Foi também um período de grandes perdas e nascimentos na minha grande família. A minha rotina mudou um pouco: além de levar a Raimunda para a escola, fazia a “feira” da casa e ministrava aulas particulares. No final do ano 2000, fiz os seletivos para o “Liceu” e CEFET, mas não fui aprovada em nenhuma delas. Valeu a pena... Em 2001 fui estudar no “Almirante Tamandaré”. Nessa escola cursei apenas a 1ª série do Ensino Médio, mas as séries seguintes cursei no “Liceu Maranhense”. No “Almirante” fiz grandes amizades, conheci novos bairros, realidades, conheci também a indiferença e desigualdades por parte do Estado em relação à educação: estrutura deficiente, professores faltosos, grande número de alunos evadidos e repetentes: sistema educacional defasado, porém conheci também pessoas que tentavam reverter este quadro, através de planejamento e ações inteligentes. O ano de 2001 foi muito importante para mim: meu pai foi aprovado no seletivo da Escola Agrotécnica Federal do Maranhão para o curso de Técnico Agrícola; meu irmão Jonas conseguiu um bom emprego em Balsas (interior do Estado), em sua área de formação; conheci minha amiga Karla; foi o ano do lançamento do CD do “Red Hot Chili Peppers – Californication”. No final de 2001, Karla insistiu para que fizéssemos o seletivo para o “Liceu” novamente; fui aprovada, mas ela não. 66 Caminhadas de universitários de origem popular Em 2002 fui cursar a 2ª série no “Liceu”, ambiente semelhante ao “Almirante”, salvo a sua estrutura: bem melhor, afinal o “Liceu” é considerado o melhor colégio público do Estado. No “Liceu” fiz grandes amizades e em especial com Dayanna e Liana, minhas duas “irmãs”. No “Liceu” desenvolvi várias pesquisas e trabalhos interdisciplinares relacionados aos bairros da capital sobre a importância turística e ecológica da Ilha Cajual, e a importância e características dos Estados brasileiros. Os dois últimos trabalhos foram produzidos para a Jornada anual da escola. Durante três anos (2001, 2002, 2003), fiz os seletivos do Programa de Seleção (PSG) da UFMA e Programa de Acesso ao Ensino Superior (PASES) da UEMA, obtive boas classificações, principalmente porque não fiz nenhum tipo de cursinho, porém não havia decidido as opções de curso: Agronomia? Letras? História? No final de 2003, papai terminou seu curso de Técnico Agrícola. Nesse período cheguei a uma solução sobre as minhas opções de cursos no vestibular: decidi por Letras na UFMA e Geografia na UEMA. Ainda em dezembro de 2003, fiz as duas etapas do PSG da UFMA e, em janeiro de 2004, enquanto esperava ansiosa pelo resultado do PSG, estudava para o PASES, pois as datas das provas se aproximavam. Eu estava ciente de que seria aprovada na UFMA devido à minha boa colocação na primeira etapa, por ter feito uma “boa” prova de língua portuguesa e literatura e provas razoáveis de espanhol e redação. Contudo, tinha certeza também de que o mesmo não ocorreria na UEMA: tinha feito provas difíceis e a concorrência era grande. Em março saiu o resultado: fui aprovada em ambos, para minha alegria e satisfação de toda a família. Ingressei na UFMA em abril. Acordava muito cedo, pois a instituição fica uma hora e meia do meu bairro, principalmente se o percurso é feito por transporte coletivo. Saía da UFMA por volta de meio dia e chegava em casa às 14:00 horas. Foi também nesse período que meu irmão mais velho foi transferido de Balsas para uma fazenda em Chapadinha, ou seja, para mais perto de casa, para a alegria da família! No começo todas as minhas despesas foram bancadas pelo meu pai, depois por meus dois irmãos. Era uma situação difícil porque muitas vezes sabia que meu pai não tinha dinheiro e o via pedindo emprestado para eu comprar passe escolar; tirar fotocópias e adquirir outros materiais. A situação ficou mais delicada quando comecei o curso de Geografia na UEMA, com a duplicação da despesa. Ao longo de dois anos, a rotina estressante da UFMA foi me desestimulando pouco a pouco; não tinha como evitar comparações entre os dois cursos: a UEMA ficava a quinze minutos de ônibus da minha casa; e o curso era noturno; a turma, no que se refere a sua origem, possuía histórias de vida semelhantes a minha (mesma classe social, residentes da periferia e etc.), consequentemente éramos muito unidos. Em contrapartida a UFMA era distante de casa, a turma muito desunida, o curso era diurno e a estrutura da UFMA débil: biblioteca defasada, com muitos livros bem antigos e/ou mal conservados; poucos computadores para fazermos trabalhos, muitas greves, etc. No curso de Letras, conheci muitas pessoas interessantes: Thiago foi a primeira delas, depois veio Elenir, Priscila, Daphne, Jonas, Marco Anderson, a turma do período anterior ao nosso... o mesmo aconteceu no curso de Geografia. Atualmente estou no sexto período de Letras e de Geografia, deveria estar no sétimo de Letras, pois estou atrasada devido às greves... se alguém perguntasse: “Valeu a pena fazer o curso de Letras?” Decerto não saberia responder. Acredito que os pontos negativos e Universidade Federal do Maranhão 67 positivos se alternam. Mas, pela minha experiência de vida, percebo a carência de ações afirmativas no tocante ao ingresso e permanência de estudantes de origem popular na universidade, pois muitos estudantes “estudam” muito, sem condições de freqüentar cursinhos pré-vestibulares. Depois de muitas tentativas sem sucesso, são aprovados no seletivo vestibular e, ao ingressarem na universidade, vêem seus sonhos acabarem devido a problemas financeiros, a “detalhes” que modificam toda uma história de luta e persistência. Terminam por fazer de um sonho ou realização uma frustração ou desassossego. Canción de Amor Quisiera ser convexo para tu mano côncava. Y como un tronco hueco para acogerte en mi regazo y darte sombra y sueño Suave y horizontal e interminable para la huella alterna y presurosa de tu pie izquierdo y de tu pie derecho. Ser de todas las formas como água siempre a gusto en cualquier [...vaso siempre abrazándote por dentro. Y también como vaso para abrazar por fuera al mismo tiempo. Como el água hecha vaso tu confín – dentro y fuera – sempre [...exacto. Gerardo Diego 68 Caminhadas de universitários de origem popular Meus pais, minha vida Lidiana Diniz Azevedo * Sou filha de Raimundo Azevedo e Lídia Diniz, ambos negros oriundos, respectivamente, de Penalva e Alcântara, cidades do interior do Maranhão. Possuem apenas o Ensino Fundamental incompleto e exerciam, naquela época, as profissões de pedreiro e empregada doméstica. Conheceram e se casaram na Liberdade, um bairro da periferia de São Luis onde, até hoje, moramos, e tiveram quatros filhos: Lidiana, Ana Lídia, Adriana e Leandro. Eu e meus irmãos tivemos uma infância com poucos recursos, pois minha mãe tinha que trabalhar em média 10 h por dia e sete vezes por semana, chegando a andar mais de cinco quilômetros da nossa casa até o seu emprego, para economizar sua passagem e comprar o pão no dia seguinte. Nós nunca passamos fome, mas a maioria das nossas roupas e sapatos era doada; os brinquedos eram apenas os imaginários e, apesar de tudo isso, me lembro com saudades desse período, já que nossos pais nos ofereceram o essencial para o desenvolvimento humano: amor e educação. Nas séries iniciais, estudei na escola comunitária “Olhar de Maria” e foi uma experiência um pouco desagradável, porque a sala de aula era lotada. Os últimos alunos que chegavam se sentavam no chão, sem contar as brigas. Em uma delas, fui vítima de agressão. Na terceira série do Ensino Fundamental, fui para a escola municipal “Mario Andreazza” onde conheci um professor chamado Elias, um dos que contribuíram significativamente para a minha vida. Elias era professor de Matemática, morador da comunidade. Além de lecionar, ele se comportava como um pai dentro da sala de aula. Contava-nos várias historias de sua vida acadêmica, as alegrias por ter cursado o Ensino Superior e principalmente os preconceitos que sofria por ter sido o único negro em sua turma. Em minha turma, a maioria dos alunos era negra e moradora da periferia. Estávamos ali apenas obter notas e passar de ano. Éramos desinteressados, e isso o incomodava muito, pois ele queria fomentar em nós o desejo de aprender e com isso sempre nos questionava sobre o que queríamos para o nosso futuro. Se queríamos, por exemplo, “contribuir” para a continuação desta desigualdade social da qual éramos vítimas. Com o passar do tempo, ele conseguiu conscientizar a maioria da turma e começamos a nos interessar pelos estudos, despertando-nos a vontade de cursar uma universidade. Acho que ele cumpriu o seu papel enquanto professor – o de fomentar em seus educandos uma certa conscientização de mundo, compreendendo assim a lógica que rege esta sociedade em que vivemos. * Graduanda em Pedagogia na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 69 No Ensino Médio, estudei na escola estadual “Nerval Lebre Santiago”, onde a falta de professores e livros foi um dos entraves a ser vencido. Os meus pais mal tinham a condição de comprar o fardamento escolar. Sem ele, éramos impedidos de assistir às aulas. A conseqüência desses fatos foi o total despreparo para fazer um vestibular. Com a conclusão do Ensino Médio, comecei a trabalhar em uma loja como vendedora externa e posteriormente como vendedora interna, mas a vontade de estudar continuava. Meu salário dava apenas para pagar um cursinho comunitário e foi o isso que fiz. Como fiquei mais de três anos longe dos livros, custei a pegar o “ritmo”. Como conseqüência, fiquei reprovada no meu primeiro vestibular, mas não desisti e, no ano seguinte, fui aprovada para o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Maranhão, onde conheci a minha amiga Maria de Lourdes, uma das pessoas responsáveis por eu estar participando do projeto “Conexões de Saberes”. Dentro dos muros da universidade, mais desafios a serem vencidos. Na sala de aula, me sentia um pouco deslocada, pois não vivia a mesma realidade da maioria dos meus colegas, o discurso dos textos, dos professores, das avaliações era algo inédito para mim, sem contar a questão financeira, já que me despediram pouco antes de começar o curso. Começou a fluir em mim o desejo de abandonar o curso e procurar um novo emprego. Estava muito desanimada e sentia que meu rendimento acadêmico não estava sendo satisfatório. Foi quando participei da seleção para o programa “Conexões de Saberes” e, para minha felicidade, passei e encontrei mais vinte e quatro “conexistas”, maravilhosos por sinal, que enfrentavam desafios parecidos com os meus. Com a convivência com este grupo, a minha auto-estima foi aos poucos se reestruturando e o problema foi amenizado. O mais importante: o crescimento de minha conscientização enquanto sujeito atuante nessa sociedade. Hoje, me considero uma aluna mais atuante, cada vez mais apaixonada pelo meu curso. Os meus pais, ambos funcionários públicos, continuam sendo o nosso “porto seguro”. Espero um dia poder retribuir-lhes um pouco dos sacrifícios vividos por eles para nos oferecer o essencial, sempre com dignidade. Por isso o que faço é por eles e para eles, em nome do grande amor que nutro por esse casal maravilhoso. 70 Caminhadas de universitários de origem popular In Memorian Lourdilene de Fátima Teixeira Ferreira * O meu nome é Lourdilene de Fátima Teixeira Ferreira, sou natural de São Luís Maranhão, nasci no dia 08 de maio de 1975, às 13:00 da tarde, num dia de domingo. Costumo dizer que vim ao mundo num dia e mês especial, o mês das flores, das mães, das noivas e de Nossa Senhora de Fátima, quando, por coincidência do destino, nasci no dia das mães e numa data em que é comemorado o dia da Vitória. Sou filha de uma mulher guerreira que lutou muito durante toda sua vida para vencer as dificuldades que a vida lhe apresentava, minha saudosa mãe se chamava Izis de Jesus Teixeira e, quando criança, sofreu muito por causa de problemas familiares, porém um dos motivos desses problemas foi o falecimento de sua mãe, que a deixou com mais três irmãs. Com muita dificuldade em poder criar e educar suas filhas, meu avô resolveu entregar minha mãe e uma de suas irmãs que se chamava Lélis para o meu bisavô que ficaria responsável pela educação de ambas. Durante o tempo em que ficou sob dos cuidados do meu bisavô, perdeu o contato com a sua família e somente aos 18 anos de idade reencontrou-se com seu pai; foi um momento marcante, pois não sabia onde morava sua família. Mesmo diante dos obstáculos, sempre se mostrou uma mulher forte, independente e de boa índole. Essas características foram fundamentais para a formação da personalidade de suas filhas. Toda a minha vida estudei em escola pública, iniciei minha vida escolar com 6 anos de idade, no Jardim de Infância “ Solfia Silva”, localizado na Rua Boa Esperança s/n, na Vila Passos, bairro em que moro até hoje. Nessa escolinha geralmente quem estudava eram as crianças que moravam próximas. Lembro-me de que, quando ingressei nessa escolinha, já sabia escrever o meu nome e ler algumas palavras. A pessoa responsável pelo meu primeiro contato com o mundo da escrita e da leitura foi a minha querida e única irmã Izilene que considero como minha segunda mãe. Quando nasci, ela estava com onze anos de idade e teve que passar a estudar no horário noturno para cuidar de mim, porque minha mãe trabalhava como doméstica na casa de uma família conhecida em São Luís e, com um mês do meu nascimento, teve que voltar a trabalhar para não perder o emprego que era sua única fonte de renda para nos sustentar, já que meu pai não assumiu a minha paternidade. Izilene assumiu o papel de educadora na minha vida, abriu-me a porta de um mundo até então desconhecido: “O mundo do conhecimento”. * Graduanda em Bibliotecnomia na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 71 Quando chegava da escola, minha irmã passava horas e horas me ensinando a tabuada e a soletrar a Cartilha do ABC. No início tive muitas dificuldades em aprender e muitas vezes fiquei até de castigo, porque minha irmã não admitia a pouca assimilação que tinha dos assuntos que estudava. Lembro-me com muita saudade da minha professora conhecida como Bulica, era uma jovem sorridente e atenciosa com seus alunos. Ela sempre me tratava com carinho e às vezes até me deixava em casa. Essa fase escolar foi bastante enriquecedora para mim, pois foi o período em que mais me diverti, pois os alunos participavam de brincadeiras recreativas todos os dias e das festinhas de comemoração como: Páscoa, Dia do Índio, São João e Natal. No ano de 1982, ingressei na Escola “Sotero dos Reis” onde estudei no turno vespertino do antigo primário. Nessa época a Secretaria de Educação era responsável pelos lanches e materiais didáticos como livros, cadernos, lápis, borracha que eram distribuídos aos alunos. A 1a série foi importante para mim, pois aprendi a fazer cópia, ditado e leitura de textos. Gostava muito também da aula de Educação Artística, vivia desenhando bonecas em cadernos de desenho. A minha professora pedia sempre aos pais dos alunos que comprassem cadernos de caligrafia para exercitarem a escrita e é por isso que tenho hoje em dia a letra bonita e legível. Na 2a série, minha professora se chamava Madalena e as atividades em sala de aula eram feitas em grupos de alunos ou equipes, como era chamados na época. Na sala ficavam duas estagiárias secundaristas do Curso de Magistério que auxiliavam a professora nas atividades em sala de aula. Muitas vezes, a professora ficava conversando e dando conselhos aos alunos sobre a importância do estudo e das famílias em nossas vidas. Na 3a série, foi a fase mais difícil para mim, pois, de todas as disciplinas, Matemática era aquela com a qual mais tinha dificuldade. Todos os dias a professora Auxiliadora fazia a sabatina da tabuada, tinha dificuldades com ela e, todas as vezes em que errava na hora da sabatina, ficava impossibilitada de ir participar do recreio. Diante dessa situação, a professora resolveu comunicar a minha mãe sobre as minhas dificuldades com a Matemática. A partir desse momento, passei a estudar todos os dias a tabuada e percebi o reconhecimento da minha professora pelo meu esforço. Na 4a série começava a ser responsável pelos meus estudos, conseguia estudar e resolver sozinha as atividades escolares; era o início da minha independência estudantil. Nessa fase já tinha sonhos profissionais de ser advogada, cantora e jornalista. Tirava notas boas e percebia o orgulho no rosto da minha irmã quando ia buscar o meu boletim na escola. Da 5a à 8a séries do Ensino Fundamental, estudei na escola “Unidade Integrada Sousândrade”, onde tive que me esfoçar muito para ter êxito em todas as disciplinas. Algumas vezes tive até professor particular para me ensinar, pois minha mãe não queria que ficasse reprovada. Na minha casa o estudo sempre foi colocado como uma necessidade para o nosso crescimento pessoal e profissional. No ano de 1991, tive que passar por uma seleção para poder estudar no “Centro de Ensino do 2° grau Coelho Neto”, onde fiz o curso profissionalizante Técnico em Administração. Nessa época já pensava no vestibular, mas, como fazia um curso técnico profissionalizante, percebia a dificuldade que teria quando prestasse vestibular, porque o conteúdo das disciplinas não estava sendo ministrado corretamente pelos professores. Isso com certeza no futuro seria um problema para os alunos que almejavam ingressar na universidade. Nessa época ainda sentia o desejo de prestar vestibular para Direito e Jornalismo. 72 Caminhadas de universitários de origem popular Durante o Ensino Médio, tive algumas experiências profissionais: fui estagiária durante seis meses da Divisão de Direitos e Deveres (DDD) da Universidade Federal do Maranhão. Esse estágio me foi bastante enriquecedor, pois aprendi a realizar algumas atividades do serviço público como: digitação de documentos, entrada e saída de documentos via protocolo e atendimento ao público. Tinha a ilusão, nesse período, de que conseguiria emprego facilmente, mas tudo aconteceu de modo contrário, pois, após o término, fiquei um bom tempo procurando emprego. Resolvi prestar vestibular. Como tinha sido isenta da taxa de inscrição, nessa época o vestibulando tinha direito a duas opções de curso; resolvi então concorrer a uma vaga em Direito e outra em Jornalismo, mas infelizmente não fui aprovada, porque o meu Ensino Médio foi muito deficiente. Foi então que percebi a necessidade de freqüentar um curso Pré–Vestibular, mas a condição financeira em que me encontrava não permitia o acesso a um cursinho, porque o custo das mensalidades era tão alto que às vezes chegava a quase um salário mínimo. Mesmo com muita dificuldade financeira, minha mãe resolveu investir no meu sonho de ingressar numa universidade pública e me pediu que procurasse um curso que fosse acessível a minha condição financeira. Consegui me matricular num cursinho, mas estudei apenas por poucos meses, pois minha mãe adoeceu devido a problemas com diabetes e hipertensão arterial, tendo que ficar internada durante muito tempo e então começaram a surgir os obstáculos que me impossibilitariam de realizar o meu sonho de passar no vestibular. Diante de tanta dificuldades, comecei a pensar em soluções para voltar a estudar, então resolvi procurar um emprego. Um belo dia pela manhã, minha irmã me avisou que uma empresa que fica próxima a minha casa, no bairro da Areinha, estava fazendo cadastro de pessoas para trabalhar em serviços gerais. Cheguei a essa empresa às 9:00 e só consegui me cadastrar às 17:30. Essa empresa se chama SERVI-SAN e tinha obtido o contrato de licitação para prestar serviço na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Após duas semanas em que tinha me cadastrado, fui chamada para trabalhar. Por ironia do destino, o primeiro local em que prestei serviço para essa empresa foi a Biblioteca Central que passava por reformas. Lembro-me que passava horas limpando livros, pois o meu expediente começava às 13:00 e terminava às 21:00. Com um mês em que estava trabalhando, minha mãe faleceu. Sofri muito, mas, para aliviar minha dor, resolvi me agarrar aos ensinamentos deixados por ela que sempre me falava que com estudo se vence tudo. Com essa perda a necessidade, a vontade e a determinação de passar no vestibular aumentaram. A Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) resolveu criar um cursinho conhecido como SOS; fiz a seleção, passei e consegui estudar durante um ano no turno noturno. As aulas eram ministradas pelos professores da universidade e recebíamos gratuitamente todo o material didático. Quando chegou o período de inscrição para o vestibular, decidi por Biblioteconomia que oferecia 50 vagas. Fui bem classificada para a segunda etapa e confiante na aprovação. No entanto, para minha surpresa, quando saiu o resultado, fiquei como excedente, o que me desestimulou muito. Acabei me acomodando e passei uns três anos sem fazer vestibular por algum tempo. Foi uma das piores atitudes que tomei na minha vida. Mesmo distante dos estudos, sentia que algo me faltava, tinha uma sensação de vazio. Foi então que resolvi começar a lutar de novo pelo sonho de ingressar na universidade. Voltei a estudar em cursinhos particulares e Universidade Federal do Maranhão 73 fiz vestibular para Filosofia, mas não fui aprovada nem na primeira etapa, mas dessa vez não ia desistir do meu ideal. Voltei a estudar no turno matutino no cursinho da UEMA que dessa vez se chamava cursinho da Cidadania, assistia aula por televisão, pois a metodologia de ensino utilizada dessa vez pelo cursinho era o Telensino. Quando terminava a aula, ia direto para o trabalho, pois continuava trabalhando em serviços gerais na UFMA. Chegava em casa cansada, mas mesmo assim pegava os meus livros e apostilas e ficava estudando até tarde da noite. Resolvi me inscrever mais uma vez no vestibular e mais uma vez para Biblioteconomia que oferecia somente 26 vagas. Fui classificada em quarto lugar para este curso, foi então que percebi que o meu sonho já era uma realidade. Quando saiu o resultado da 2° etapa, estava aprovada, fiquei muito feliz porque sabia que a minha luta e vitória para ingressar na universidade mudaria a minha vida para melhor. Mas como nem tudo é felicidade, fiquei desempregada depois de oito anos em que trabalhava na empresa terceirizada que prestava serviço para a UFMA. Fiquei muito triste e muito preocupada, porque estava fazendo alguns cursos para me reciclar como curso de computação e não sabia como iria me manter na universidade tendo despesas com materiais didáticos: cópias, livros e digitação de trabalhos acadêmicos, mas a minha irmã se prontificou logo a me ajudar nesse momento difícil, para que não desistisse de estudar na universidade. Quando estava no final do 2° período, fui chamada para comparecer na secretaria do Centro de Ciências Sociais (CCSO) da UFMA. Era o senhor Raimundo dos Santos, secretário do CCSO, que queria falar comigo. Ao chegar à sala, fui abordada com a seguinte pergunta: Você está com sua documentação? Respondi que estava e ele me disse que, a partir daquele dia, seria estagiária da secretaria do CCSO. Durante minha permanência na secretaria do CCSO, aprendi a executar várias atividades administrativas, tive liberdade para usar o computador para digitar os meus trabalhos acadêmicos. Não posso deixar de falar de Lourenço Pinheiro (in memorian) que muitas vezes fazia encadernação das minhas cópias. Alcy Bastos e Maria Clara me contavam histórias da Universidade quando ainda era Fundação. Agradeço de coração ao senhor Raimundo pela oportunidade profissional e peço a Deus que abençoe todos os outros funcionários e agradeço a todos pelos ensinamentos que tive durante os dois anos em que fui estagiária do CCSO. Foi através da internet, acessando a página da UFMA, que vi o edital do “Conexões de saberes” e fiquei interessada em participar porque, além de estar oferecendo 25 bolsas, o projeto ainda era de extensão. O que mais chamou a minha atenção foi o fato de esse projeto ser baseado no Observatório das Favelas do Rio de Janeiro, sendo voltado para o estudo e pesquisa de comunidades. Decidi me inscrever no último dia para participar da seleção, fiquei muito nervosa no dia da entrevista e fui avaliada por três coordenadores: Profa Fernanda, Álvaro e Maria Helena. Lembro-me de que falei de tudo que entendia sobre pesquisa de campo e sobre a minha visão em relação a comunidades periféricas. Hoje vejo o “Conexões” como um Projeto inovador na universidade que busca inserir o estudante de origem popular em espaços sociais, tentando diminuir a desigualdade social através de ações afirmativas. O projeto visa também qualificar o aluno de origem popular através de oficinas voltadas para o conhecimento científico para que o aluno possa desenvolver atividades de pesquisa e extensão nas comunidades populares. 74 Caminhadas de universitários de origem popular Atualmente tenho uma visão social mais humana, sem preconceitos ou estereótipos e devo tudo isso ao “Conexões de saberes”. Agradeço aos coordenadores por todos os ensinamentos. “Os que têm oportunidade de se consagrar aos estudos científicos deverão ser os primeiros a por seus conhecimentos a serviço da humanidade”. Karl Marx Universidade Federal do Maranhão 75 Tudo vale a pena, se a alma não é pequena Lucélia Cristina Carvalho Ferreira * De tudo, ficaram três coisas: A certeza de que estamos sempre começando... A certeza de que precisamos continuar... A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar... Portanto devemos: Fazer da interrupção um caminho novo... Da queda um passo de dança... Do medo, uma escada... Do sonho, uma ponte... Da procura, um encontro... Certeza - Fernando Pessoa Um dos versos de Fernando Pessoa resume bem a minha caminhada: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Filha única de um pedreiro e de uma dona de casa, tive uma infância tranqüila. Seu Antonio e Dona Josecília se esforçaram muito para me dar uma boa educação que refletisse na minha criação como um todo. Morávamos no bairro da Madre Deus, um local repleto de festividades e berço da cultura popular ludovicense. A duas quadras dali, ficava a casa de meus avós maternos, seu José Toim e dona Lucília, dos quais eu sou a primeira neta. Logo, não é difícil imaginar que passei grande parte de minha infância na casa dos meus avós, aonde ia para brincar com meus primos, todos mais novos que eu. Praticamente fui criada pela minha avó que, em certos aspectos, me mimou muito. Lembro-me da rotina dominical de ir à missa logo pela manhã cedinho, sempre acompanhada de vovó que me incentivou a fazer a Primeira Comunhão. Vovô tem um sítio numa localidade chamada Gapara, na área Itaqui-Bacanga; um sítio por sinal enorme, que hoje está dividido entre seus nove filhos. Como naquela época ainda não * Graduanda em Geografia na UFMA. 76 Caminhadas de universitários de origem popular existia a ponte que atualmente liga o centro da cidade à região do Itaqui-Bacanga, ele embarcava seus netos em uma canoa e nos levava para lá; era muito divertido e eu gostava muito disso. Comecei minha vida escolar aos quatros anos. As lembranças do Jardim de Infância são muito vagas, mas uma delas é marcante: lembro que minha mãe nunca ia me buscar – por razões que desconheço até hoje, o certo é que eu tinha que vir com a professora Rosa que, além de amiga de minha mãe, morava na mesma rua de minha avó. Terminada a fase do Jardim, comecei a percorrer o caminho da escola primária e fui estudar na Escola Sotero dos Reis, que ficava próxima ao bairro da Madre Deus. Foi uma fase nova, cheia de experiências desconhecidas para uma menina de sete anos: fazer novos amigos, ter uma professora que não queria mais saber de pinturas e desenhos. Na sala de aula e fora dela, sempre fui quieta e tímida. Sentava na fileira do lado da parede, na última carteira e estudava com gosto, sentia-me feliz quando trazia lição de casa. Logo, tirar boas notas nunca foi problema para mim. Quando eu estava na 3ª para a 4ª série, meu pai abandonou o emprego de pedreiro em uma construtora de edifícios que era responsável pela construção de vários edifícios do bairro do São Francisco. Com o valor da rescisão trabalhista recebida, decidiu abrir um comércio varejista no Mercado Central, foco do comércio popular da Capital. Nos fins de semana, eu estava sempre lá para ajudá-lo e então aprendi a trabalhar no caixa, na venda, com a balança, enfim, com as atividades corriqueiras de um pequeno comércio popular. Quando terminei o primário, fui cursar o Ensino Fundamental na Escola Sousândrade, cuja vaga minha mãe conseguiu na última hora. De lá não guardo nenhuma boa recordação, muito pelo contrário: fiquei reprovada na 5ª série – juntamente com metade da turma - por questões pessoais de uma das professoras. Minha mãe tinha escondido do meu pai esse fato e, como mentira sempre tem pernas curtas, ele acabou descobrindo e ficou tão furioso que brigou comigo e com mamãe. Em parte ele estava certo, mamãe realmente não deveria ter escondido minha reprovação e nem eu ter omitido a notícia, porque papai sempre se esforçou para me dar um estudo de qualidade, dentro de suas possibilidades. Passada essa fase, fui matriculada na Escola Benedito Leite, lá tive que começar de novo e fiz daquela oportunidade a diferença: passei em todas as séries com excelentes notas. Nessa época meu pai havia perdido o ponto comercial no Mercado Central e tivemos que montar o comércio na própria residência. Foi uma fase muito difícil, já que a casa só tinha quatro cômodos e a sala havia se transformado em ponto comercial. O certo é que, com o comércio em casa, papai não me deixava mais sair. Tinha que ficar no comércio e só saía de casa, praticamente, para ir à escola. Tive uma adolescência mal vivida, totalmente reprimida. Nesse ponto meu pai atrapalhou muito meu desenvolvimento, não deixou que eu vivesse essa fase em sua plenitude, o que me tornou uma pessoa ainda mais retraída e tímida. Por volta de 1998, tinha terminado o Ensino Fundamental e participei do processo seletivo no CEFET-MA (Centro Federativo Tecnológico do Maranhão), mas não passei. Acabei por estudar no anexo do CEGEL (Complexo Educacional Governador Edson Lobão), depois fui transferida para a Escola “BCA” (Bernardo Coelho de Almeida), onde terminei meu Ensino Médio. Eu havia me disposto a prestar vestibular para o programa seriado da UFMA, o PSG. Com muito custo ingressei no Processo de Seleção Gradual ainda na 1ª série Universidade Federal do Maranhão 77 do Ensino Médio, a muito custo porque além de não ter conseguido o dinheiro necessário para a inscrição, minha mãe começou a manifestar sérios problemas de saúde, dando início a uma fase de depressão psíquica. Por outro lado, nossa família encontrava-se em uma situação financeira delicada, o comércio estava falindo e meu pai não conseguia emprego devido à idade. Eu já estava com 20 anos e meu pai insistia para que eu procurasse um emprego e só depois pensasse em Universidade. Mas eu queria continuar meus estudos, ter um curso superior, ter uma profissão que me possibilitasse crescer, adquirir conhecimentos. Mesmo contrariando meu pai, fui atrás dos meus sonhos. Estudei sozinha, pois não tinha como pagar um cursinho, chegava a estudar até 14 horas por dia, sem nenhum descanso. Quando cheguei à 3ª etapa do PSG, eu já havia terminado o Ensino Médio. Após todas as provas, cheguei à fase da prova dissertativa. Minha primeira opção tinha sido o Curso de História. Lembro que, no dia 31 de maio de 2001, fiquei sabendo do resultado: eu não havia sido aprovada! Sofri uma decepção tão grande que me marcou muito. Meu pai não se conformou por eu não ter passado. Nesse instante percebi que, no fundo, ele esperava mais isso do que eu mesma, brigou muito comigo, me falou coisas horríveis que me magoaram. Eu estava sentada na cama chorando muito quando algo me surpreendeu: minha mãe, que praticamente havia se anulado para a vida, ausentando-se de acompanhar meu crescimento, vivendo em uma outra realidade distante daquela presente em nossas vidas, abraçou-me bem forte e disse que um dia eu iria passar no vestibular, com um pouco de calma, minha hora iria chegar, não era preciso chorar... Por volta de 2002, nossa situação financeira tornou-se mais crítica ainda. Meu avô então, vendo aquela situação, convenceu meu pai a ir morar no sítio do Gapara. No começo, papai relutou muito, mas, sem outra opção, acabou aceitando e então lá fomos nós recomeçarmos a vida. Com a mudança para o Gapara, nossa casa da Madre Deus ficou alugada. No terreno do Gapara, de imediato, papai construiu uma casa de taipa, toda rebocada por cimento e, para buscar nosso sustento, passou a plantar hortaliças as quais eram vendidas para os moradores da região. Com o dinheiro do aluguel da casa da Madre Deus e com o que rendia da venda de verduras e hortaliças, meu pai investiu mais uma vez em uma pequena mercearia e construiu uma casa de alvenaria. Nesse mesmo ano, resolvi fazer vestibular de novo, mais uma vez optei pelo Processo de Seleção Gradual. Para me manter e conseguir pagar a inscrição, resolvi dar aulas particulares de reforço para alunos do Ensino Fundamental. Ensinava pela manhã e pela tarde e estudava nos intervalos entre uma aula e outra. À noite, entrava pela madrugada, com uma caneca de café na mão e com os olhos fincados nos livros. Quando eu estava muito cansada, chegava até mesmo a me debruçar sobre os livros e dormia. Em 2003, a condição psíquica de minha mãe se agravou definitivamente e ela entrou em um estado de esquizofrenia, já não articulava corretamente o pensamento, passando a viver em um mundo somente seu. Nesse mesmo ano, conheci o homem que viria a ser futuramente meu namorado. Ele estava cursando os últimos períodos do Curso de Psicologia na UFMA e exerceu um papel super importante em minha vida e na caminhada rumo à Universidade; ajudou -me muito com os estudos e incentivou-me bastante a não desistir de meus sonhos. O Ben, que hoje é meu amado, começou como meu vizinho e era ele quem corrigia minhas redações; aos poucos fomos nos aproximando mais e mais e, com o tempo, o amor nasceu como uma sementinha que nasce em solo fértil, crescendo forte e bela. 78 Caminhadas de universitários de origem popular Em 2005, era a última etapa do PSG. Dessa vez escolhi o curso de Geografia, pela afinidade e porque achava bonito o papel do geógrafo na sociedade. No dia da prova, estava tranqüila, fiz uma boa prova e estava na expectativa do resultado. No final de abril, saiu o resultado e, para minha surpresa, havia passado em 5o lugar, entre as 12 vagas ofertadas pelo curso. Fiz a prova dissertativa e passei. No dia do resultado, lembro que estava ouvindo a Rádio Universidade na expectativa de conferir a lista dos aprovados, quando, por volta das 11 horas, começou a ser divulgado o resultado. Nessa hora a emoção bombeava fortemente o coração, sem parar. Por incrível que pareça, no exato momento em que ia ser divulgada a lista dos aprovados para o Curso de Geografia, simplesmente faltou energia no bairro e eu fiquei desesperada. Entretanto, minutos depois, o telefone público que fica próximo tocou. Era o Ben que, como um anjo anunciador da boa nova, me trouxe a melhor das notícias da minha vida: eu tinha passado no vestibular seriado (PSG) em 8° lugar. Meu pai e Ben me prepararam uma festa no fim de semana seguinte. Ao sabor de uma feijoada, toda a minha família apareceu para me parabenizar. No 2o semestre de 2005, ingressei na Universidade realizando um sonho: estudar na UFMA e fazer um curso que é maravilhoso. Minha turma, sem palavras, amei tê-los como amigos. Ainda no 1° período, ingressei no NEPA (Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais). Para mim foi importante, conheci novos amigos, comecei a me interessar por assuntos sobre questões ambientais e aprendi a realizar pesquisas na área e, também, a superar a timidez. Meu curso funciona no período vespertino-noturno, mas eu passo o dia todo na UFMA. Pela manhã, em dias alternados, vou ao NEPA e ao curso de língua estrangeira, ofertados pelo Curso de Letras, onde estudo inglês e espanhol. Com isso os gastos para me manter na universidade foram aumentando a cada dia: cópias, alimentação, livros, passagens, impressões, enfim. Meu pai não tinha muito para me dar, e nessa parte Ben me ajudava. Fiquei sabendo do Programa Conexões de Saberes pelo Ben. Como eu me encaixava no perfil do projeto, resolvi me inscrever. Participei da seleção e, para minha surpresa, passei. Vinte e cinco novos amigos que antes mal conhecia (só os via pelos corredores da universidade) se tornaram um pouco minha família. São vinte e cinco trajetórias de pessoas que, assim como eu, tiveram em suas caminhadas também dias ensolarados e dias nublados. Com o programa implantado na UFMA, tivemos a visita do Jailson de Souza, coordenador do Observatório de Favelas. Participamos das oficinas e do Seminário Nacional que ocorreu no Rio de Janeiro, em novembro de 2006. Foi nesse evento que pude conhecer a dimensão do Programa Conexões de Saberes e sua importância para cada um de nós, que faz parte dessa família grandiosa. Espero terminar minha graduação e continuar os estudos, pensando no Mestrado e Doutorado. Atuar em minha profissão e poder dar aos meus queridos pais um conforto, uma velhice mais tranqüila. Ao lado do Ben, ter a certeza de que podemos fazer desse encontro o começo da construção de nossa história. Continuo, nessa caminhada, tentando realizar meus sonhos profissionais, pessoais e familiares, com passos firmes e objetivos. E, como Pessoa, estou certa de que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Universidade Federal do Maranhão 79 Os primeiros passos de uma formação contínua - a educação Lucileide Martins Borges* “Devemos ser a mudança que desejamos ver no mundo” Gandhi A escolha pelo curso de Pedagogia deve-se, sobretudo, às falhas encontradas no decorrer da minha escolarização, na certeza de que, para transformar minha realidade de origem, precisaria promover em mim tal mudança. A mudança que busquei é a mudança que desejo ver no mundo: um mundo de oportunidades, onde todos possam ter acesso à educação de qualidade.Começarei a ser agente dessa mudança na realidade que está ao meu alcance e, quem sabe, quando mais pessoas começarem a semear as sementes da transformação, teremos um país onde todos tenham acesso à educação. Sou natural de Bequimão – Maranhão, município do litoral ocidental maranhense. Tenho oito irmãos (sete mulheres e um homem) e sou a quinta filha de Paulino Álvares (pedreiro) e Arcângela Lemos (auxiliar de serviços gerais). Em 1989, com 5 anos de idade, fui pela primeira vez para a escola – Unidade Integrada Dr. Antônio da Costa Rodrigues - onde comecei a cursar a educação infantil. Não me lembro de muitos detalhes dos dois primeiros anos escolares, porém tentarei registrar os fatos mais marcantes. Em 1990, passei para o 2º período, popularmente chamado, naquela época, de cartilha, em decorrência do material didático que utilizávamos. Fazíamos leituras nas cartilhas maiores, eram frases soltas e palavras com sons repetidos do tipo: “A babá é Bia”; “Ivo viu a uva”. Em 1991, já na 1ª série, estudava em classe multisseriada, juntamente com minha irmã Lucilene, embora ela fosse mais velha. Um dia, não sei por qual motivo, a professora a colocou de castigo, ajoelhada de frente para a parede, próxima à porta – era mais que um castigo: era uma humilhação, pois as pessoas que passavam na rua olhavam-na ali ajoelhada. Fiquei indignada, mas não podia fazer nada. Em 1992, na 2ª série, continuava a estudar no período da manhã, assim como nos anos anteriores. Com aprovação na 2ª série, comecei a cursar a 3ª no ano seguinte, no período da tarde. Sentia um pouco de medo, pois era muito pequena e estudava com a turma da 4ª série. Nesse período estudei junto com outra irmã, a Tereza, que, por sinal, é mais velha do que eu * Graduanda em Pedagogia na UFMA. 80 Caminhadas de universitários de origem popular quatro anos, e assim havia muitos outros alunos com idade avançada, o que me causava certo constrangimento. Houve vezes em que chorava na turma porque não conseguia responder às atividades sozinha; as explicações da professora eram muito rápidas e não conseguia acompanhar, principalmente quando da aula de Matemática. Foi a partir desse período que comecei a estudar mais e a me concentrar nas aulas, sem medo de errar. Pensei da seguinte forma: “se as outras pessoas aprendem, eu também posso aprender”. Mesmo com muitas dificuldades, choros, erros e acertos, fui aprovada e passei para a 4ª série. Em janeiro de 1994, com 10 anos de idade, vim para São Luís morar com uma senhora chamada Lindomar, irmã da minha madrinha Marlinda. No início estava gostando da idéia de vim morar na cidade grande, mas, quando cheguei, senti medo de ficar longe dos meus pais e dos meus irmãos, embora soubesse que tinha duas tias morando na mesma cidade. Chorei uma semana inteira com vontade de voltar para o interior, até o dia em que minha prima Lidiane foi me buscar e levou-me para a casa dela. De lá eu voltaria para o interior, na companhia de um senhor chamado Zé. De volta para casa, fui matriculada na mesma escola onde até então havia estudado. Agora estava mais tranqüila em relação à turma; os colegas eram os mesmos, em sua maioria. Estudei muito e passei de ano com boas notas, mesmo diante das péssimas condições da escola que, às vezes, não tinha sequer bancos suficientes para acomodar os alunos. Lembrome de um certo dia em que fiquei a tarde inteira de cócoras, para poder copiar a aula com o caderno apoiado no assento do banco. Terminadas as séries iniciais do Ensino Fundamental, fiquei preocupada, pois não havia escola do ginásio em Pontal (povoado em que morava), somente no centro de Bequimão e em comunidades distantes para as quais não havia meios de transporte disponíveis. A única opção era sair para estudar fora, nos municípios vizinhos, tais como: São Bento, Perimirim, etc. Mas para mim havia um grande problema: eu era a filha mais velha dos irmãos que ainda moravam em casa e, por este motivo, não podia sair para estudar fora. Precisava ajudar minha mãe a cuidar dos meus irmãos menores e da casa, já que ela passava a manhã inteira na escola onde trabalhava (e ainda hoje trabalha) e o meu pai passava o dia inteiro fora de casa, trabalhando como pedreiro. Fiquei o ano de 1995 sem estudar, ou melhor dizendo, sem estar matriculada, mas indo para a escola revisar os conteúdos da 4ª série. Essa era uma prática costumeira, dizia-se que a pessoa estava encostada, mas o compromisso era o mesmo dos que estavam matriculados. Em 1996, minha mãe e minhas irmãs mais velhas conversaram sobre o tempo em que eu havia perdido repetindo a quarta série por falta de escola e chegaram à conclusão de que não poderia mais ficar sem estudar. Foi aí que minha mãe decidiu falar com uma tia minha para eu morar na sua casa, em São Luís. No dia 21 de janeiro de 1996, vim para São Luís e aqui permaneço até hoje. Fui matriculada na escola municipal Olinda Desterro, localizada no bairro Vicente Fialho, na qual estudei da 5ª à 8ª séries. O primeiro ano na nova escola foi de muitos impactos, primeiro porque não é nada fácil para uma garota de 12 anos sair de perto de sua família, no interior, e vir morar com parentes na cidade; segundo porque há um contraste muito grande na mudança de uma escola do interior para uma escola da capital, embora fosse da rede municipal e ficasse localizada num bairro popular de São Luís. O impacto foi muito grande, a cobrança era maior e eu me sentia inferior aos outros alunos, pois percebia que meu nível de conhecimento não era igual ao dos demais. Universidade Federal do Maranhão 81 Foi na 5ª série do Ensino Fundamental, na escola “Olinda Desterro” e com a ajuda da professora Conceição, professora de Português, que eu percebi a escrita errada do meu nome. Neste momento me questionei: será que os professores das séries anteriores nunca tinham observado tal erro? O porquê de tamanha falha? Não conseguia acreditar que tantas vezes escrevi meu nome no caderno de atividades e os professores nunca haviam observado tal erro. Após consultar meu registro de nascimento, constatei que até os 12 anos de idade não havia sido alfabetizada ortograficamente, pois, além disso, cometia muitos outros erros na escrita das palavras. Agradeço, carinhosamente, a professora Conceição. Foi muito válido e prazeroso ter aprendido Língua Portuguesa com ela: uma professora rígida, às vezes brincalhona, às vezes zangada. Na sexta série, tive muita dificuldade em compreender Matemática, talvez pela mudança freqüente de professores: foram três em apenas um semestre – Joseli, Roberto Carlos e Maria do Carmo. Obtive notas baixas no 1º semestre e fiquei com medo de reprovar, mas com a professora Maria do Carmo consegui recuperar as notas e aprender o conteúdo. No segundo semestre letivo de 1997, chegou um novo professor de Matemática, Edvan Lopes, uma referência para mim, pois sua história de vida é semelhante à minha. Um ano depois, descobri que ele era oriundo do meu município e daí ficamos amigos. Ele me estimulou muito a prosseguir nos estudos, principalmente quando fiz o seletivo para a escola de Ensino Médio, do qual falarei mais à frente. Em 1999, na 8ª série, tive muitos professores bons, que marcaram minha vida escolar: professora Socorro, conselheira e amiga; professora Marise, historiadora crítica; professora Maria da Paz, carismática e dedicada; professora Doralice, a Dora, meio mãe, meio irmã, querida por todos; e o professor Edvan, meu estímulo, que continuou a ser meu professor até o momento em que saí da escola. Fui muito estimulada, como já mencionei anteriormente, a fazer o seletivo para a escola Liceu Maranhense, mas por pouco não perdi o prazo das inscrições. Meus colegas de turma e eu ficamos sabendo no último dia e tivemos que passar o dia inteiro correndo atrás dos documentos para fazer inscrição; até as aulas foram suspensas naquele dia. Enfim, conseguimos nos inscrever! No dia da prova, estávamos no horário brasileiro de verão, saí de casa ainda na escuridão, sem saber ao certo o local onde faria a prova. No ônibus, perguntei sobre a localização da escola e várias pessoas disseram que iam para o mesmo bairro. Eu então os acompanhei. Quando saiu o resultado, num dia de sábado, estava na escola aguardando a professora chegar para repor as aulas atrasadas, por motivo de greve.. quando olhei meu nome no jornal, pulei de alegria, mas ao mesmo tempo fiquei triste porque minha melhor amiga, a D’kéfia, não havia passado. Passaram apenas dois colegas de turma, o Ribamar e o Michel. Em 2000, começou uma nova fase na minha vida escolar: o Ensino Médio. Experiência riquíssima de novas amizades, novos conhecimentos, novos mestres, tudo era novidade. No dia 4 de fevereiro, ainda estávamos no horário de verão, saí bem cedo de casa, ainda estava escuro, a escola era no centro da cidade e a ansiedade pelo novo era grande. Quando cheguei ao Liceu não conhecia quase ninguém, apenas os dois colegas de turma que também haviam sido aprovados no seletivo. A nova escola era imensa, se comparada com a antiga. A recepção foi ótima. A escola era cheia de normas, tanto que, quando fiz minha matrícula, recebi logo o manual do aluno. 82 Caminhadas de universitários de origem popular Passados alguns dias de aula, fiz amizade com uma colega de turma, a Janaína de Araújo, que, por sinal, foi minha companheira de estudo durante todo aquele ano, principalmente nos trabalhos escolares e sem contar nas inúmeras sextas-feiras em que ficávamos o dia todo na escola por causa da Educação Física que acontecia no turno da tarde. Ficávamos o dia inteiro apenas com um lanche, na maioria das vezes biscoito com refrigerante - cada uma levava o seu biscoito e dividíamos o refrigerante. Estudávamos muitas tardes na biblioteca do SESC (Serviço Social do Comércio), localizada próximo ao Liceu. No ano seguinte, mudei para uma turma na sua maioria procedente do turno vespertino; fiz novas amizades, mas Janaína continuava sendo a amiga de estudos, ainda que estudássemos em turmas diferentes. Nesse período fazia um curso de pintura pelo Programa de Capacitação Solidária na Associação Comunitária do meu bairro. Era ótimo, pude reencontrar alguns colegas do Ensino Fundamental e conhecer muitos lugares novos, sem contar as pinturas que fazíamos, pois gosto muito de pintar e até pretendo fazer um curso de Artes Plásticas. Ganhava R$50,00 por mês e isso me ajudou bastante, inclusive para pagar a primeira inscrição do vestibular. Na 2a série fui aluna do professor João Batista, o vice-diretor da escola, muito temido por todos devido a sua rigidez, tanto como professor quanto como vice-diretor. Não tive problemas com ele, muito pelo contrário, sempre fui uma aluna esforçada e me destacava em sala de aula. Desde quando entrei no Liceu, fui motivada a fazer o PSG (Programa de Seleção Gradual) da UFMA. Na primeira etapa não obtive muito sucesso. Embora tivesse estudado, meu rendimento foi em torno de 3 mil e poucos pontos, mas na segunda etapa me superei: fiz 5 mil pontos e fiquei cheia de expectativas. Em 2002, pedi transferência de matrícula para o período noturno porque precisava trabalhar e, mais uma vez, mudei de turma. Agora eu estudaria numa turma bastante diversificada; os alunos, em sua grande maioria, advinham de outras escolas e até mesmo de outros Estados, como era o caso de Rackel - uma mineira amiga e confiante. Mesmo estudando no turno da noite, não conseguia emprego, pois não tinha nenhum curso técnico. A falta de emprego me preocupava bastante, estava no último ano do Ensino Médio e tinha que pagar a taxa de inscrição do PSG, que agora seria o dobro das etapas anteriores: R$ 60,00. Eu precisava trabalhar para arcar com as despesas dos meus estudos. Em agosto de 2002, saí da casa da minha tia, na qual morava há quase sete anos, e fui morar com uma família, para a qual fazia os serviços domésticos e era remunerada com R$ 200,00. Pedia todos os dias para que Deus me ajudasse a sair daquela casa. Estudava para o PSG de madrugada, porque não tinha tempo durante o dia. Quando fui aprovada em 5º lugar na primeira fase da 3ª etapa, fiquei muito feliz, pois sabia que meu sonho de passar no vestibular estava cada vez mais perto de se realizar. Tinha apenas uma semana para estudar e fazer a segunda fase e me virava da forma como podia: de madrugada, nos fins de semana, qualquer tempo livre era para estudar. Fiz a prova muito confiante. Esperei ansiosamente pelo resultado. No dia 22 de março de 2003, quando ouvi meu nome na rádio, gritei de alegria: “Passei!” 6º lugar para Pedagogia Noturno, na Universidade Federal do Maranhão. Alguns meses depois fui morar com minha irmã Tereza no Residencial Paraíso, bairro próximo à Universidade. Mas, surgiu um novo problema: precisava trabalhar para me manter no meu Curso e não conseguia emprego. Universidade Federal do Maranhão 83 Em janeiro de 2004, por intermédio de dois amigos do curso, consegui uma bolsaestágio na Biblioteca Central da UFMA. Trabalhava quatro horas por dia e recebia uma bolsa no valor de R$ 130,00. Apesar de ser pouco, dava para eu comprar meus passes escolares e tirar as xérox dos textos. Quando estava no 3º período do Curso, fiquei sabendo que o projeto de extensão “Jovens com a Bola Toda” - UFMA/IAS (Instituto Airton Senna) faria uma seleção para contratar uma educadora bolsista do curso de Pedagogia. Fui fazer a prova. Depois de dois dias, fui saber o resultado e vi minha aprovação. Que alegria! Era tudo que eu precisava. Além da experiência, ganharia uma bolsa no valor de R$ 160,00 para trabalhar três dias (3h/dia). No final de 2005, fiquei sem local para morar, pois minha irmã, com quem eu morava até então, vendeu a casa e foi embora para outro bairro, arriscado e muito distante da Universidade. Fiquei sem saber o que fazer. Então fui até o Núcleo de Assuntos Estudantis (NAE), da UFMA, me informar sobre a existência de vagas na Residência Estudantil. Chegando lá, fui informada de que não havia vagas, mas como conhecia algumas residentes, procurei uma delas, a Marilda, que me informou que havia um sistema de hospedagem para os casos de urgência. Fui até à Residência e fiz o pedido de hospedagem. Sendo aceita pelas moradoras, mudei-me para o Lar Universitário “Rosa Amélia Gomes Bogéa” (LURAGB) no dia 15 de janeiro de 2006. Algum tempo depois, fui chamada para fazer seleção de estágio numa escola da rede particular, porém no dia seguinte recebi um telefonema da coordenação do “Farol da Educação” (rede de bibliotecas escolares do Estado do Maranhão) para estagiar como auxiliar de biblioteca, optei pelo último por ser melhor remunerado e com menor carga horária. Seis meses depois, encontrei Zartur, o coordenador do projeto JBT, do qual participei durante oito meses, e ele me perguntou se estava sabendo das inscrições para o Conexões de Saberes. Informou-me sobre o processo seletivo e disse que aquele era o último dia de inscrições. Fui em casa, peguei minha documentação e fiz a inscrição. Depois de alguns dias, fui chamada para a entrevista na qual fui aprovada e passei a compor o quadro de bolsistas do Programa Conexões de Saberes. E hoje estou aqui contando um pouco da minha caminhada... 84 Caminhadas de universitários de origem popular Por Marcio Vinícius Campos Borges Marcio Vinícius Campos Borges* Minha história se inicia em 23 de setembro de 1983, numa pequena casa localizada no interior do Estado do Maranhão, um povoado chamado Bom Viver, próximo à cidade de Pinheiro, na Baixada Maranhense. Nasci numa família bastante humilde, composta na época por 10 pessoas: meus pais, Maria do Livramento Silva e Hipólito (não me recordo de seu sobrenome) e 8 irmãos. Sobreviviam apenas da renda que meu pai, de quem pouco sei a respeito, trazia para casa. A situação financeira de meus pais biológicos não ia muito bem: dez bocas para serem alimentadas com uma pequena renda mensal, era um ônus quase que insustentável. Primeiro eles resolveram entregar uma de minhas irmãs, Andréia, com 4 anos, a uma família de pinheirenses cujas posses poderiam lhe garantir um futuro mais promissor, depois, foi a minha vez; minha mãe conta que relutou muito em nos entregar a outras famílias, mas a situação não era fácil, meus pais não estavam conseguindo sequer nos alimentar bem e o desejo de ver filhos seus com oportunidades mais realistas de “ser alguém na vida” fez a diferença no momento da decisão. Mas minha “viagem” rumo ao encontro de uma nova família não terminaria tão rápida. Com 4 meses de nascido, fui entregue a uma senhora, Wilma, acho que esse era seu nome, com quem fiquei mais ou menos durante 15 dias e sobre quem algumas vezes só ouvi falar. Desconheço o motivo pelo qual não pude permanecer junto a ela, tudo que sei é que, passados alguns dias, ela resolveu que era hora de eu partir, mas não “retornei à casa do pai”, como o filho pródigo da história bíblica, fui conviver com uma outra família, dona Darcy e seu esposo Lobão, que já tinham dois filhos na época, Marcus e Márcia, meus atuais irmãos, minha atual família. Não posso dizer que tive uma infância traumatizante por causa da minha adoção, porque não tive. Meus pais, principalmente meu pai, não faziam distinções entre mim e seus outros filhos, sempre tive tudo que quis, na medida em que suas condições podiam me garantir. Fiz jardim de infância, e estudei no mesmo colégio em que meus outros dois irmãos estudaram durante toda minha infância e adolescência até a conclusão do Ensino Médio. Era uma instituição filantrópica, mas que cobrava uma pequena mensalidade para “manutenção”. Meus pais atuais nunca esconderam de mim minha verdadeira origem, e nem podiam. Minha mãe biológica sempre me visitava e fazia questão de dizer que ela era, sim, “minha verdadeira mãe”. Algumas tias e algumas vezes minha própria mãe tentavam “inculcar” na * Graduando em Odontologia na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 85 minha cabeça que eu deveria me revoltar pelo fato de meus pais biológicos terem me entregado a uma outra família, como se eu tivesse sido rejeitado. Diziam elas: “E meus outros irmãos? Não tiveram condições de sustentá-los? Por que eu o escolhido?”. Devo agradecer, em primeiro lugar, a Deus, foi Ele que não permitiu que atitudes como essas enchessem meu coração de rancor e amargura, pois nunca consegui sentir ódio dos meus pais biológicos. Meu primeiro contato com o mundo do conhecimento foi na escolinha Semente do Saber, um jardim de infância recém-inaugurado na cidade e de cuja primeira turma participei. Por dois anos estive lá e aprendi bastante. Tive excelentes professoras (as tias) das quais me recordo em vagas lembranças e colegas de turma, com alguns dos quais mantenho contato até hoje. Os fatos mais marcantes durante minha primeira infância foram, sem sombra de dúvida, as famosas Festas Juninas. Minha mãe sempre era escolhida para fazer o mingau de milho e eu sempre dançava na quadrilha. Lembro-me de uma vez em que fui escolhido junto com uma garota de minha turma para sermos rei e rainha da Festa de São João, porém, tínhamos que disputar com uma outra dupla de crianças. Minha mãe tinha que arrecadar dinheiro vendendo alguns bilhetes, e é claro, venceria a dupla que vendesse mais. Ela passou dias nas ruas arrecadando dinheiro com as vendas, e recordo-me como se fosse hoje, nós vencemos e eu ganhei um carro enorme de brinquedo. Assim que saí do jardim de infância, fui matriculado no Colégio Pinheirense, a instituição filantrópica que cobrava uma taxa, no qual concluí os Ensinos Fundamental e Médio. É evidente que eu não gostava de estudar e isso me rendia umas boas chineladas na “poupança”. Minha mãe me obrigava a estudar e eu tinha o dever de ser o melhor. Minhas notas escolares não podiam ser menores que 9,0, numa instituição de ensino cuja média era 8,0. Era surra na certa se eu chegasse em casa exibindo alguma nota baixa. Não sei se essa psicologia retrógrada tem algum fundo de verdade, mas parece que a tentativa deu certo. Nunca necessitei de professores particulares e fazia meus deveres de casa sozinho, já na 4ª série do Ensino Fundamental. Esforçava-me para ser o melhor aluno da sala e adquirir o espírito de competição que me foi ensinado. Nessa escola, os boletins eram entregues duas vezes ao ano, a cada semestre. Neles, era discriminada a colocação do aluno na sala de aula. E quem era o primeiro colocado no ranking? Eu. Meus pais ficavam orgulhosos de mim e diziam sempre que eu teria um futuro brilhante; comparavam-me, às vezes, com meus outros dois irmãos, que não davam à mínima para os estudos, mas isso os magoava. Dois fatos marcaram essa fase da minha vida: o falecimento do meu irmão caçula e do meu avô. A gravidez da minha mãe não foi problemática, entretanto, o parto foi complicado e realizado prematuramente, parece-me que seus pezinhos foram luxados no trabalho de parto. Meu irmão era bonito e aparentemente saudável. O que não sabíamos é que ele era portador de uma grave doença cardíaca congênita, e depois de 48 horas de nascido, veio a falecer. Foi traumático para meus pais a sua perda, principalmente, para minha mãe. Pouco tempo depois, numa das viagens que costumava fazer pelos povoados nas redondezas de Pinheiro, meu avô, que pesava na época mais de 100 quilos, sofreu uma parada cardiorespiratória, e pela falta de recursos médicos da região, não pôde ser atendido com urgência, falecendo em seguida. Foi o primeiro ser humano adulto que vi deitado em um caixão e isso me abalou fortemente. Meus avós, foram meus pais na infância, convivi com eles durante anos. Após seu falecimento, fui morar definitivamente com meus pais. 86 Caminhadas de universitários de origem popular Já quando estava prestes a entrar no conturbado mundo da adolescência, vieram os maiores problemas de toda minha vida. Não consigo entender até hoje o verdadeiro motivo que levaram minha mãe a me rejeitar. Foi uma época conturbada! A gente não conseguia se entender por alguns motivos e acabávamos discutindo, passávamos dias sem nos falar. Por vezes ela dizia se lamentar por ter-me acolhido como filho e isso me machucava muito, e ainda machuca. Algumas pessoas diziam que isso acontecia por causa do ciúme que ela sentia do meu pai, que demonstrava mais amor por mim que por ela. A situação sempre se agravava quando eles discutiam e não era incomum que brigassem. Minha mãe descontava sua raiva em cima de mim e acho que era por vingança. Foi também nesse tempo que meu irmão mais velho resolveu se casar pela primeira vez, e depois pela segunda e por último, pela terceira vez. Meu pai sempre aparentava dar mais atenção às esposas do meu irmão que à sua própria esposa. Isso a magoava muito. Perdi a conta das vezes em que houve discussões na minha casa. Não suportava mais aquela situação. Tudo melhorou quando meu irmão finalmente decidiu ir embora de casa com sua esposa e filhos. Na 7ª série do Ensino Fundamental, houve um acontecimento que me fez rever minha família biológica, o falecimento do meu pai. Soube do seu falecimento através do meu pai atual. O mais interessante de tudo é que reagi de forma inesperada. Imaginava que, se um dia isso acontecesse, não me importaria, mas eu chorei e senti sua falta. Chorei por alguém que havia visto rapidamente apenas uma vez, ou como se tivesse convivido com ele durante toda minha vida. A verdade é que não me recordo dele, nem mesmo de seus traços faciais. Foi nessa época que conheci muitos de meus irmãos, e a partir daí, comecei a manter um maior vínculo com minha primeira família. Quando ingressei no Ensino Médio, comecei a ter um forte desejo de entrar na universidade. Imaginava que somente dessa forma poderia conseguir “um lugar ao sol”. Mas havia uma contradição nisso. Passei todo o Ensino Fundamental competindo para ser sempre o melhor, porém, quando comecei o Ensino Médio, essa minha ânsia por competição e vitória foi se apagando, não que eu não gostasse mais de estudar, não era isso, só não valorizava mais o estilo competidor que meus pais, em especial minha mãe, haviam me ensinado. Isso é tão verdade que houve uma ocasião em que, no 1º ano do Ensino Médio, fiquei pela primeira vez de recuperação em uma disciplina, e pode parecer mentira: fiquei feliz em perder! Para mim, foi um acontecimento inédito, ímpar em toda minha vida. Ora, alguém que passou todo o Ensino Fundamental exibindo boletins que diziam ser o melhor, já não suportava mais pousar como “o garoto perfeito que precisa ser seguido”! Coisas como essas me enojavam. Passei os três anos do Ensino Médio me preparando para o vestibular e sempre estudava muito. No fundo eu sabia que, se não conseguisse ingressar na Faculdade Pública, meu sonho de ter um curso superior jamais se concluiria. Não queria seguir pelo mesmo caminho que meus outros dois irmãos seguiram, porque, ao concluírem o Ensino Médio, pararam de estudar por falta de recursos financeiros. Na cidade onde eu morava, não havia cursinho pré-vestibular e aqueles que desejavam ter uma melhor preparação para enfrentar o vestibular precisavam pagar professores particulares. Meu pai nunca fez isso por mim e não seria agora que faria. Mas não desisti por isso. Sozinho ou com alguns amigos, eu sempre estudava. Completei o Ensino Médio em 2001, e a cada ano, desde 1999, participava do Programa de Seleção Gradual (PSG) da Universidade Federal do Maranhão, atualmente extinto. Esse programa realizava provas desde o 1º ao 3º ano do Ensino Médio com o objetivo de selecionar Universidade Federal do Maranhão 87 alunos para a universidade. Nessa época, havia o PSG e o Vestibular Tradicional. Participei dos dois processos seletivos. No Vestibular Tradicional, me inscrevi para Farmácia, mas só fui aprovado na primeira etapa. No PSG coloquei o curso que realmente almejava, Odontologia, no qual fui aprovado. Foi uma nova fase da minha vida. Como meus pais residiam em Pinheiro, eu teria que morar com alguém em São Luís, só assim poderia estudar. Minha irmã havia se mudado há pouco tempo para a capital e seria com ela que iria morar. Ficou sempre claro para mim, desde o começo, que fui aceito não por vontade própria. Desejei fortemente nunca ter ido viver ali. Foram quatro anos, desde que entrei na faculdade, em 23 de outubro de 2002, que convivi com minha irmã, seu esposo e meu sobrinho, que nasceu pouco tempo depois. Não foi fácil! Por algumas vezes, pensei em desistir de tudo, mas meu desejo em crescer como pessoa dentro da Universidade e as portas que seriam abertas após a conclusão do curso me fizeram repensar. Evidentemente que não posso dizer que não houve bons momentos. É óbvio que sim! Mas foram poucos. Ela saía de casa por dias, indo “visitar” a sogra, que morava na mesma cidade, e me deixava “ao deus dará”. O maior problema nisso tudo era a alimentação. A geladeira ficava, na maioria das vezes, vazia. Meu Deus, era um sufoco! Às vezes não tinha o que comer, mas preferia ficar calado e não contar para meus pais, porque sabia que, se contasse, minha situação só pioraria. Até hoje eles não sabem disso. “Mas um dia a casa cai”. E numa das viagens que ela costumava fazer para Pinheiro, nossa terra natal, resolvi que não havia a menor possibilidade de continuar vivendo ali, já não agüentava mais aquela situação. Fui embora para a casa de uma amiga minha, Dinalva, hoje uma irmã para mim. Foi ela quem me acolheu! E lhe sou grato por tudo! Na faculdade, as coisas não iam muito bem. Optei por um curso relativamente caro, fato que desconhecia. Na Odontologia, temos que comprar materiais e instrumentos de estudo e não temos a permissão de atender pacientes sem antes tê-los adquirido. Meu pai ainda conseguiu, com bastante esforço, comprar meus primeiros instrumentos, porém, quando cheguei ao 7° período, a situação financeira deles ia de mal a pior. Decidi que não podia continuar o curso nessas condições, era a hora de trancá-lo. Falei a alguns amigos meus de sala de aula que havia decidido parar o curso por falta de recursos econômicos. O que eu não sabia é que o destino me guardava uma grande surpresa. Meus amigos se reuniram às escondidas e me presentearam com o resto do material que estava faltando. Deus meu, eles me salvaram! Jamais terei como pagá-los por isso! São muitas as dificuldades, mas não há esforço incapaz de vencê-las. Hoje estou no 9º período do curso de Odontologia e prestes a me formar. Atualmente, a UFMA adotou o sistema de cotas para negros e estudantes de escolas públicas, uma ação afirmativa que representa um salto em busca da igualdade social, na tentativa de incluir os menos favorecidos no espaço universitário. Mas existe uma dúvida que me atormenta: como estudantes de escolas públicas e negros de baixa renda poderão subsistir em um curso que exige de seus alunos um poderio econômico semelhante ao de cidadãos pertencentes a níveis sociais de prestígio? Essa é uma responsabilidade do Governo Federal que deverá lhes garantir condições igualitárias de estudo. Em um curso no qual aproximadamente 90% dos alunos são oriundos de classes sociais altas, já é hora de ações como essas entrarem em cena, com o objetivo único de desmoronar as regras impostas, cujas raízes históricas só favorecem a classe social dominante. 88 Caminhadas de universitários de origem popular Pequenas ações para uma grande oportunidade Maria Domingas Ferreira Castro * Durante nosso tempo aqui neste mundo, coisas acontecem conosco que nem conseguimos imaginar, muitas vezes, o porquê. No entanto, devemos continuar buscando o melhor que acreditamos para nossa vida e assim vai chegando o momento em que iremos entender a razão de acontecimentos inesperados durante nossa jornada. Bem, falo isto porque falar sobre nossa vida não é algo fácil, principalmente, porque existem determinados fatos que acontecem e dos quais não entendemos a razão. Eu, por exemplo, nasci em uma família muito pobre e de muitos irmãos no interior do Maranhão. Você entende o que é isso? Pois é, isto quer dizer que lá onde nasci nao existia nenhum tipo de recurso que pudesse me fazer imaginar que um dia estaria em uma universidade e escrevendo agora sobre minha caminhada. É, mas a vida nos reserva surpresas, e quando menos esperava, com sete anos, fui para uma cidade menos pobre que a minha e lá consegui aprender o alfabeto e até a decodificar algumas palavras; mais tarde, saí daquela simples cidadezinha e vim para São Luís e é aqui, por incrível que pareça, que começam as minhas maiores dificuldades. Tive que começar a trabalhar na casa de uma família quando tinha apenas dez anos de idade, para conseguir sobreviver aqui e poder estudar... esse tipo de coisa aqui é muito comum: crianças serem trazidas do interior do Maranhão para trabalharem como empregadas domésticas ou babás de outras crianças, e na maioria das vezes, serem maltratadas na casa de famílias que têm um pouco mais de condição financeira, e pelo que vejo, infelizmente, isso não é só no Maranhão, e sim no Brasil todo. Felizmente no meu caso, mesmo não sendo boa a vida que levava na casa dessa família, tive a oportunidade de estudar (isso graças à exigência que meu querido pai fez: só viria com essa família se me colocassem para estudar), o que muitas meninas que são trazidas de interiores muito pobres de nosso Estado não têm. Muitas apenas são trazidas para trabalhar e trabalhar sem direito a nada. Infelizmente, é uma atitude indigna de muitas famílias que agem dessa forma aqui no Maranhão, pois esse tipo de ação só faz destruir a pouca esperança que essas crianças têm ou desejam ter. Embora tenha sido uma das partes mais difíceis da minha vida, foi (talvez) decisiva para que eu estivesse hoje, aqui, escrevendo sobre minha caminhada na vida... nessa época, comecei logo a estudar a 1a série do Ensino Fundamental e continuei até a 8a série. Tinha um sonho: conseguir estudar em uma escola melhor da que estudava da 5a à 8a (CEMA), pois * Graduanda em Geografia na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 89 lá o ensino era muito ruim: era a televisão que transmitia as aulas, e como a maior parte das escolas públicas, não ensinava o aluno a aprender, antes de decorar conteúdos. Então, quando terminei a 8a série, fiz prova para cursar o Ensino Médio no Colégio Universitário(COLUN) e lá consegui uma vaga e foi nela que pude melhorar meu aprendizado. Com ajuda de alguns professores, no fim da 3a série, fiz o Vestibular e passei para o curso de Geografia. Agora, por mais absurdo que pareça, começa uma outra etapa também difícil. Nessa época, já não estava mais na casa da família para onde vim, e sim na terceira casa, mas não gostava de ter que viver dependendo deles para me manter na universidade (mesmo sendo eles bem diferentes da primeira família e me incentivarem um pouco ao estudo, não podiam me sustentar, praticamente, de graça para que eu estudasse, já que agora quase não tinha mais tempo para ficar em casa e ajudar no trabalho doméstico), pois, para cursar o curso, era bem mais custoso. Então precisava encontrar um emprego, foi quando fiz seleção para estágio no Núcleo de Assuntos Estudantis da UFMA e consegui uma bolsa que dava para manter os passes e as cópias dos textos. Fiquei lá durante dois anos, o prazo máximo estabelecido e encontrei pessoas que puderam me ajudar muitas vezes, pois elas sabiam das dificuldades financeiras que tinha para me manter no curso, entre outras. O “mundo”, é na maior parte das vezes, cruel e para poucos “bonzinho”; falo desse sistema que os homens estabeleceram para governar nossas vidas e ações da forma que lhes convêm, nos dizendo que devemos aceitar o que nos é imposto e não lutar para conseguir sair dessa imposição ridícula; não sei se me entendem, mas falo do sistema econômico vigente, pois tudo é um processo: se temos escolas públicas para todos, porém de péssima qualidade, conseqüentemente, a universidade pública é para todos (contudo, para todos os que têm condição financeira para chegar até ela e se manter lá), o que sabemos que são poucos. Temos exemplos, na universidade, da não condição de acesso e permanência de alunos oriundos de famílias pobres. Em primeiro lugar, o número de vagas oferecidas são poucas; então, na maioria das vezes, quem entra na universidade são os filhos de pais com uma condição financeira razoável. Quando os estudantes pobres conseguem ingressar, encontram, de chofre, entre outras, a dificuldade de permanecer no curso; pois muitas vezes não têm como se manter, e foi o que quase acontecia comigo se não tivesse conhecido alguém muito especial e se não tivesse também conseguido o Programa Conexões de Saberes. Assim, posso dizer que são pequenas ações, mas de grande valor que fazem a diferença na vida de muitas pessoas. Digo isso porque, na minha vida, sempre foram oportunidades muito pequenas que tive, mas que, somadas, tornaram-se uma OPORTUNIDADE. Um dos meus desejos e anseios na vida é poder de alguma forma contribuir com crianças e jovens que passam por situações semelhantes à minha (até mais difíceis) para que um dia possam escrever suas caminhadas e perceberem que suas vidas tomaram um rumo bom e esperançoso devido às pequenas oportunidades que se tornaram condição sine qua non para a saída da caverna escura em busca da luz do sol. Enfim, hoje, eu sei que cada momento bom ou ruim nos é dado para que possamos valorizar e aprender que o importante é o agora, já que ele é o nosso presente e o futuro nele é construído. 90 Caminhadas de universitários de origem popular Pão, educação e arte Maria de Lourdes Andrade Pereira * Quando a busca de um sonho vai dar em um Rio - de Janeiro que desemboca no Complexo maré de realizações! A saga de uma nordestina, Maria de Lourdes em busca de uma vaga na universidade de sua identidade e felicidade. Essa história que vou lhes contar, confunde-se com a história de qualquer mulher nascida no Brasil, país onde a força da natureza esculpiu os montes verdejantes, as montanhas, as praias de águas azuis esverdeadas, a fina areia branca, a terra roxa, barrenta e vermelha como a pele dos homens ameríndios que por aqui os portugueses encontraram. Nessa “pátria amada, explorada, idolatrada, salve-salve”, salvaram-se alguns milhões de seus primeiros descendentes, entre eles uma gente de tez escura, que eram reis em sua terra africana, aportando aqui em viagens dantescas, pilhados em navios por onde provavelmente meus antepassados também vieram: eu sou mestiça, filha de um homem branco e uma mulher negra, mas caracterizada como pele “parda”, mesmo com toda a minha cara-pálida. No resgate dessa história da qual hoje me orgulho de contar, sinto que é como se eu falasse pelo coração e a memória dos sentimentos que muitas mulheres registraram e sentem. Para algumas, talvez lhes faltem as palavras, porque a educação foi pouca; para outras, talvez falte a poesia, e para outras tantas quem sabe, a coragem de poder dizer: somos diferentes numa sociedade de desiguais, tidos como iguais. Uma parte desta história de brancos e negros, se escreve e se prescreve, às vezes sem letras, às vezes sem o aval da academia, por onde agora me insiro. Alfabetizada numa escola pública aos sete anos de idade, sem antes haver freqüentado o jardim, minha vida escolar nunca foi um mar de rosas, ou flores. E por falar em mar, do mar cabralino, do mar português de Pessoa, do mar ludovicense que conheceu os homens e mulheres arrastadas por correntes, hoje, arrastamos lembranças, e com nossa luta, a vontade de trazer igualdade, liberdade e cidadania, que ainda não é fato. * Graduanda em Pedagogia na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 91 Eu nasci e me criei no mar, contando conchas, caranguejos, testemunhando a expressão maior da natureza e do amor divino por nós, pensando em minha origem. Um dia, esse mar maranhense me levou ao mar carioca, mas pensava: onde terminam ou começam essas águas? No mar português? No Atlântico? Nas águas nada pacíficas do Pacífico? Por que os homens conseguem achar e por limites no mar e na vida dos homens e mulheres? Limites estes que a língua e a fala sacramentam, aumentando as diferenças e desigualdades sociais. Um dia eu sonhei tão alto, que só olhar o mar não bastava, precisava saber onde ele daria, porque enchia, porque era verde, cantá-lo, comentá-lo, encantá-lo com as l e t r a s, que me fariam navegar por ele e ir para onde eu sonhasse: era uma dádiva juntar as sílabas uma a uma e perceber que depois elas tinham vida própria, que eu podia ser o que quisesse e desejasse. A primeira palavra que aprendi a escrever foi “bola”, eu achava que era a palavra mais linda do mundo, e me “embolei” no mundo, pois, lendo e sendo alfabetizada, descobri que o mundo era redondo, que ele dá muitas voltas, e nessas voltas que a vida dá, estou virando o jogo das condições parcas e difíceis de uma infância pobre, nascida em uma família que se desestruturou, que da desunião de duas pessoas que povoaram o mundo com seis filhos e muitos sonhos, surgiu uma Maria de Lourdes, nordestina, mestiça, que vos apresento. No começo de minha vida familiar, não sentia as dificuldades, não tinha noção dos problemas afetivos que envolviam meus pais: ignorava que meu pai se casara por pressão, que ele era um homem “mulherengo” e que minha mãe corria o risco de ficar sem marido. Nem sabia que ele só se casara com minha mãe por ela ser negra e sua mãe ter prometido aos pais dela que ela não ficaria desonrada, o jovem branco não fugiria do seu compromisso com a jovem negra, acho que minha avó quis ser “justa”, reparar erros ancestrais e cometeu outros ainda maiores. Quando eu contava oito anos de idade e me embrenhava pelo mundo das palavras, fomos transferidos para Belém do Pará. Perdemos o ano escolar e fomos sustentados por minha avó Maria de Lourdes que tem um papel fundamental nessa história. Éramos duas famílias vivendo com uma pequena pensão (eu, meus cinco irmãos, meus dez tios por parte de pai), meu tio Jomar; generosamente enviava pequenas remessas de dinheiro para sua mãe, que sustentava todos: filhos e netos. Os heróis existem em todas as histórias, a minha está cheia deles, pois sem minha avó e meu tio, eu teria perecido. Meu pai dizia estar trabalhando em São Luís, para nos dar “uma vida melhor” e cinco anos se passaram. Em Belém, eu não olhava o mar: era longe, distante, e quando o vi pela primeira vez, achei estranho: suas águas eram doces! Em São Luís, jamais passamos fome, pois meu pai tirava o sustento das águas que eram fartas de pescado e crustáceos. Conheci a cara da fome, junto com a dor e a saudade de meus pais, acho que isso doía mais que a falta de comida. Nessa época, sofri de desnutrição aguda, minha avó precisou tirar-me da escola, pois eu desmaiava com freqüência, ela tinha receio de que eu viesse a morrer no caminho para a escola (que fosse cair, bater com a cabeça). Eu ganhara um livro de minha professora e o lia todos os dias, era a história de uma loba que alimentara um casal de gêmeos: Rômulo e Remo, os fundadores da cidade de Roma, meu único elo com a educação enquanto sonhava em voltar a estudar. No nosso retorno à Ilha, meus pais estavam separados, ele havia constituído outra família, estava desempregado, não tínhamos casa, morávamos em um barraco (feito de papelão e palha), num bairro de classe média no centro da cidade, com dois cômodos e cozinhávamos a lenha. Ele continuava fazendo suas incursões ao mar para pescar, contar 92 Caminhadas de universitários de origem popular histórias, nos ensinar coisas da vida. Voltei à escola, mas as pressões para estudar à noite eram muitas: eu sentia vontade de ajudar no meu sustento, no de meus irmãos menores (dos quais eu tomava conta) e queria muito ajudar minha mãe que, sem instrução, estava em situação pior que a nossa. Morávamos com nossa madrasta. Como minha mãe não tinha de onde tirar nosso sustento, meu pai ficou com nossa guarda. A literatura entrou na minha vida de vez, renovaram-se as esperanças, alguns adolescentes recorrem às drogas quando querem fugir dos problemas, minha droga era os livros! Eu lia, escrevia, sonhava, construía mil castelos: era fada, rainha, bruxa, princesa, protagonista, antagonista, bedel e o juiz de meus personagens e sonhava que um dia queria ser escritora. Estava apaixonada por um certo Carlos Drumond, Mário de Andrade, Luiz Vaz de Camões, eu li Os Lusíadas aos quatorze anos e me apaixonei pelos cantos V e IX, O Gigante Adamastor que fora transformado no temido “Cabo das tormentas” e o episódio da “Ilha dos Amores” onde descobri como havia surgido um dos apelidos de São Luís de que eu mais gosto. Ainda havia Eça de Queiroz e seu maravilhoso romance Os Maias; Érico Veríssimo com sua doce Clarissa (acho que queria ser ela) e Ziraldo com a linda história: O menino mais lindo do mundo. Eu colecionava histórias, entrevistas sobre autores literários, além de gostar muito de ler enciclopédias. No entanto, era considerada uma aluna “fraca”, meus cadernos eram recheados de desenhos, poemas, meus e de meus escritores famosos. Tudo o que sou e tenho, devo à minha paixão desvairada pela arte e pela literatura, pois, resgataram-me de um futuro fadado à violência, abandono e/ou prostituição que me rondava. Na fase adulta, tinha amigos universitários, mas a academia era um sonho inatingível: eu mal havia completado o Ensino Fundamental, parei de estudar na 7a série para poder trabalhar. Nas provas do supletivo, sempre ficava devendo as disciplinas Física e Matemática. Não freqüentava as aulas, apenas estudava o conteúdo para realizar o “provão”. O fato é que me inscrevi no vestibular de 1999 para a UFMA, sem haver concluído meus estudos, sem o diploma de segundo grau; ninguém acreditava que eu iria conseguir, pois não fizera cursinho, estudava sozinha na biblioteca e tinha uma estratégia: não podia zerar as matérias Física e Matemática e me esmerava em fazer excelentes pontos em Português, História, Geografia, aquelas que eu conseguira aprender apenas lendo sozinha e onde sempre me saíra bem. Quando consegui a aprovação no vestibular de 1999 para Artes, com o jornal nas mãos, onde se podia ler a minha aprovação, procurei a Secretaria de Educação do Maranhão, implorando pela chance de tirar meu diploma (ainda não estava na época do “provão”). Fora marcada uma “banca especial” para mim, com questões sorteadas referentes ao conteúdo que correspondia às disciplinas: Física e Matemática do antigo 2º grau. Em nenhum momento eu pensei que não conseguiria atingir os pontos necessários. Os conteúdos que não aprendera em Matemática durante toda a minha vida, fora obrigada a aprender em 30 dias, tempo que tive para estudar e realizar as provas para a banca especial. Hoje, faço o meu segundo curso na UFMA, Pedagogia (com esforço já realizei inclusive uma pós-graduação). Quando obtive a aprovação naquele ano, me debulhei em lágrimas de emoção e o “sal” delas que me turvaram a vista, lembraram-me Pessoa no seu poema “Mar português”: “Ó Mar salgado, quanto de teu sal, são lágrimas de Portugal?” E me questiono, quanto do sal do mar de São Luís representa o sal e o choro dos excluídos, dos nossos antepassados trazidos à força, quanto representa o sal dos milhares de jovens que não conseguem uma vaga na Universidade Federal do Maranhão, ou do Rio de Janeiro, Bahia, Minas... quanto ainda precisamos chorar? Universidade Federal do Maranhão 93 Essa experiência de vitória ensinou-me algumas coisas: a primeira é que Lenin tinha razão quando dizia: “sonhos existem, acredite neles”, a outra foi que não adianta ninguém lhe falar que você pode, enquanto você não falar isso a si mesmo! Quando se quer muito uma coisa, não existem obstáculos que o impeçam, você fica imbuído de uma força divina maior que as dificuldades, você enxerga que consegue, pois sabe que é capaz! Mas fico me questionando enquanto cidadã, enquanto estudante, enquanto profissional da educação: quanto aos que ainda não são capazes de descobrir em si essa “força de superação?” Será que todos nós precisamos amargar tanta negação e desaprovação, ou lutarmos desesperadamente por algo que por direito nos pertence e a Constituição deveria nos garantir? Nessa história que ainda escrevo, que com a bênção da PROEX-UFMA eternizo, tenho um sentimento de profundo amor e gratidão por meus pais, meus professores, meus amigos, meus amados irmãos conexistas, minha cidade e meu bairro onde tenho um vínculo umbilical, a Liberdade e sobretudo pelo mar de São Luís, que me levou ao mar do Rio de Janeiro, ao Complexo Maré de realizações, onde pretendo ganhar o mundo que há muito tempo me ganhou, me fez nascer, crescer e multiplicar. “Quando o MAR e o CÉU se juntam, eles formam a palavra MARCELO e juntos, o céu e o mar pelas mãos divinas, fez o criador surgir o horizonte, pra onde a poesia e a poeta não se cansam jamais de olhar”. 94 Caminhadas de universitários de origem popular História de uma vida de lutas Maya Dayana Penha da Silva * Sou Maya Dayana Penha da Silva, nascida de uma guerreira chamada Yone da Cruz Penha, que se tornou a esperança, o objetivo e a inspiração da minha luta neste mundo elitista. Caríssimos leitores, escrever sobre minha história de vida foi uma tarefa muito difícil. Confesso que fiquei com medo. Não de ter a minha vida retratada em algumas páginas, mas de como começar a redigir. O que lembrar? Do nascimento? Dos traumas? Dos nomes dos meus professores?... Entrei em desespero, pois nunca escrevi bem (sinceramente, sempre fugia das aulas de português)! Então, para iniciar, tive o auxílio de minha mãe. E assim, inicia-se o meu memorial. Em 1976, na rua Riachuelo, bairro João Paulo, na cidade de São Luís do Maranhão, Yone inicia sua profissão de ajudante de lavadeira, junto com seus três irmãos: Irlan, Irlanda e Izaura. Ofício de sua mãe Yolanda (mãe solteira) que, mesmo com tanta dificuldade, priorizava o estudo dos seus filhos. Assim, minha mãe levou a vida até concluir o antigo colegial no colégio Luís Viana, onde conheceria o fiscal de ônibus Raimundo Nonato da Silva. No ano seguinte, agora no colégio Gonçalves Dias, no 1º ano do Curso Técnico de Enfermagem, minha mãe começou a namorar Raimundo Nonato. Os encontros entre eles eram possíveis devido ao curso de arte que era oferecido à noite aos alunos de baixa renda. E em uma noite de pura arte, em 1981, provavelmente no mês de abril, EU fui gerada. Após alguns meses, minha mãe abandonou o tão sonhado Curso de Enfermagem devido à gravidez. Geralmente, quando as famílias esperam a chegada de um bebê, há muita festa, mas quando eu nasci, não foi um dia de alegria para os familiares, pois, além de não ser casada, minha mãe teve complicações no parto: eclâmpsia. Deste modo, no dia 25 de janeiro, em um final de tarde chuvoso, minha mãe dava entrada na Maternidade Benedito Leite, na cidade de São Luis, e foi levada à sala de operações, toda amarrada para não se machucar. Então, o desespero, a aflição e o medo apoderaram-se da minha avó, pois, neste tipo de parto, a chance das duas vidas em jogo se salvarem era mínima. E aí a tristeza dos meus familiares. Mas às 20 horas, EU nasci, com algumas seqüelas que me acompanhariam para sempre. * Graduanda em Química na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 95 Passados alguns dias, já estava na casa da minha avó, onde mamãe morava, bairro da Alemanha. Foi uma surpresa enorme para os curiosos do bairro que, por muito tempo, levaram a história do meu nascimento às rodinhas de conversas de rua como um milagre. Quando completei dez meses, tivemos que mudar de casa, pois aquela em que morávamos era alugada, e a dona a pediu de volta, para alugá-la por um preço melhor. Mudamos para a casa de minha bisavó Maria José, no antigo endereço da minha avó Yolanda, no bairro do João Paulo. Nesta, foi cedido um quarto improvisado no fundo do quintal, no qual moravam nove pessoas: meu avô José, minha avó Yolanda, tio Irlan, tia Irlanda e meus três primos: André, Mayra e Andréa, eu e minha mãe. Moramos treze meses neste quarto. Durante este período, tive pneumonia devido ao fraco organismo (conseqüência do parto). Fui internada no hospital Santa Casa, no centro da cidade de São Luís, no qual fiz uma cirurgia toráxica. Lá, quase passei meu primeiro aninho de vida. Entretanto, depois desta vitória, meu pai, que financeiramente ajudava na minha despesa, desapareceu completamente. Por esta razão, minha mãe herdou o ofício de sua genitora. Ano de 1985. Vitória de um sonho, meus avós José e Euzamar compraram uma casa. Naquele momento “nossa”, localizada no bairro Matadouro, atualmente Liberdade, onde moro até hoje. E foi neste ano que iniciei minha vida escolar. Com quatro anos, comecei a freqüentar a escolinha Jardim de Infância Pato Donald, onde vivi tempos inesquecíveis com minhas tias Darlene e Sônia. Neste mesmo período, mamãe se casou com Welberson Nascimento. Deste relacionamento nasceram as minhas três irmãs: Soraya, Sâmara e Mayara. No ano de 1989, iniciei o antigo ensino primário na Escola Comunitária Evandro Ferreira de Araújo Costa, no mesmo bairro. Nesta, fiz a 1a e 2a séries. Continuei o primário no Colégio Luis Viana. Ao terminar o antigo primário, duas tragédias me abalaram, ou seja, dois falecimentos. O primeiro da minha irmã Sâmara, que estava internada no hospital Djalma Marques- Socorrão I. E, em menos de um ano, seria Mayara (a caçula), que faleceu por negligencia médica. Este é um fato que até hoje ocorre nos hospitais públicos, onde muitas vezes, ou quase sempre, nós, seres humanos, principalmente os pobres, somos tratados piores que animais irracionais: sem valor, sem carinho, simplesmente um nada. Mesmo tendo direitos constitucionais que nos amparam. Minha mãe sofreu muito com as perdas, e a dor dela fazia tristeza em meu coração, pois não podia ajudar a minha guerreira. Mas ainda assim, superamos esta batalha. Continuei no Colégio Luis Viana, agora na 5a série, e com mais alguns dilemas cresci. No ônibus não podia entrar pela porta dianteira, tinha que pagar passagem. Fiquei triste, a escola era distante, teria que acordar cedo, e caminhar um longo percurso, para não chegar atrasada. Acordei cedo, e no caminho, tive uma idéia. Vou passar por baixo da catraca. E foi assim até o início da 6ª série. Quando, em um certo dia, ao tentar passar, uma cobradora meteu o pé que quase pegou no meu rosto. Passei, mas o ônibus parou e ela gritou em alto tom: - Desce, você já deve pagar passagem! Desci e esperei o outro ônibus para iniciar a carreira de “bico”; deste modo terminei a 6ª série, com bastante esforço. Nas séries restantes, minha mãe transferiu-me para o turno vespertino. Continuei como “biqueira” até quando fui forçada a aposentar-me, pois um motorista já me conhecia, e certa vez, quando ia dar o bico, ele acelerou... caí e machuquei a testa, os joelhos. Lentamente 96 Caminhadas de universitários de origem popular levantei-me, a parada estava lotada. Lembro-me de que algumas pessoas olhavam-me com pena, outras zombavam, e o que mais me entristeceu é que algumas me olhavam como uma delinqüente. Assim, optei por fazer caminhadas até a escola. Com a proteção de Deus, terminei o colegial. Fiz o processo seletivo para estudar no colégio Liceu Maranhense que, além de ser um dos melhores colégios públicos, não tinha taxa de inscrição. Diferente do sonhado colégio federal, o CEFET, que exigia o pagamento de uma taxa a pagar. Por isso adiei o sonho de um curso técnico. No ano de 1996, fui aprovada para estudar no Liceu, e no ano seguinte, tive uma surpresa: no dia 10 de janeiro, quando Raimundo Nonato, meu pai, veio passar as férias em São Luís com sua nova família, trouxe meu irmão que se chama Marcelo para me conhecer. Depois, retornaram a Paraupebas, no Estado do Pará, e nunca mais os vi. Quando começaram as aulas no Liceu, observei que tinha dificuldade para copiar as anotações do quadro. Comuniquei isso a minha mãe. Consultei-me com o Dr. Clodomir e com vários outros médicos no hospital Pan-Diamante que atestaram que eu estava com atrofia do nervo óptico direito. O veredito da família foi a não aceitação. Mas com a graça de Deus, a outra visão suprimiu a falta. No ano seguinte, tive um grande abalo emocional: a minha avó Yolanda tinha falecido. Recordo-me, era 29 de maio de 1998. Vovó chorava muito, parecia que estava se despedindo, não quis comer, e o pior: não quis tomar “Jesus”, seu refrigerante preferido. Só abraçava os netos e chorava, e às 17 horas e 30 minutos, coincidentemente, no final de tarde chuvosa, ela faleceu. Neste infortúnio, senti uma solidão enorme, pois era minha avó que escutava meus lamentos. Contudo, o doce companheirismo das amizades, dos quais destaco Joyce, Valdira; a turma dos “sem passagem”: Jenilde, Cristiane, Célia e Mara Janaina, que mais tarde apresentou-me a Camila. Assim, com muita luta, terminei o Ensino Médio. Lembro que, apesar de todos os períodos difíceis, nunca desisti. Nem mesmo as chuvas, cadernos molhados etc. Mas terminei. No mesmo ano, prestei vestibular para a UEMA para o curso de Química e não passei. Resolvi procurar um emprego, porque meus familiares viviam comentando que eu vivia só estudando e não arrumava um serviço. Fui à batalha, mas não consegui nada, pois não tinha uma formação além do Ensino Médio. Consegui, através da minha tia Raimunda, um curso de garçonete, com o qual tive a minha primeira experiência profissional no Hotel Vila Rica. Mas novamente entrava no mundo dos desempregados. Parti mais uma vez para a luta: fui ser vendedora de planos de saúde odontológicos, ganhando por comissão. Como não tive sucesso com as vendas, retornei aos estudos. Fiz outro processo seletivo para o Ensino Médio . Passei e iniciei o estudo no Complexo Educacional Governador Edson Lobão - CEGEL onde deparei com o novo sistema de ensino implantado pela governadora Roseana Sarney: o Tele-ensino, que consistia em aula transmitida pela televisão, com o auxílio de um monitor. Este sistema, não teve muito êxito. Muitos diziam que era por falta de informação dos monitores; outros, afirmavam que o governo implantou o sistema para ganhar a eleição. No entanto, mais uma vez Deus foi misericordioso comigo. O meu monitor era professor de Química, que se chamava Juliano. A matéria que amava. Incentivada pelo professor, tentei o vestibular para o curso de Química da UFMA. Fui aprovada na primeira fase, mas não passei na segunda... tive incentivos dos amigos e dos professores para continuar. Já na família, só minha mãe me incentivava. Universidade Federal do Maranhão 97 Em 2002, iniciei as aulas no CEGEL, retornando à luta, agora com apoio. Entrei em um cursinho da Cidadania, ministrado por ex-alunos universitários e outros que, mesmo ainda não estando na universidade, tinham o desejo de ajudar outras pessoas como eu a realizar seus sonhos. Fiz um ano de cursinho, mas não prestei vestibular, pois ainda sentiame despreparada para a guerra. Tentei, então, o curso técnico no colégio universitário - “COLUN”, no bairro da Vila Palmeira. Passei para o curso de administração. Alegre, mas em alguns instantes angustieime por não poder cursar. Tinha que pagar uma taxa de R$ 50,00 na matrícula (taxa única). Retornei aos estudos indo todas as manhãs para o cursinho do CEGEL, onde obtive o dinheiro para a matrícula do COLUN, graças ao coordenador Renato Melo. Contudo, tive que abandonar o cursinho em função do curso de administração. Mesmo afastada do cursinho, continuei a estudar para o vestibular com alguns amigos que continuaram a freqüentá-lo. Nossos estudos eram sempre auxiliados pelo Edilson, um amigo que cursava Matemática na UFMA; estudávamos em uma casa em construção. Éramos: Aldagisa, Luis Carlos, Thaina, Milca, Luis Fernando e outro a quem peço desculpas pelo esquecimento. Tentei novamente o vestibular para o curso de Química Licenciatura e Bacharelado. Passei na primeira etapa. Mas na segunda etapa, novamente não passei. Mesmo assim, fiquei alegre porque meu amigo Luis Fernando havia passado para o curso de Matemática. Pela milésima vez, iniciou-se a minha jornada de estudo. Agora, um pouco mais atarefada, tinha começado o meu estágio no Hospital Dutra, do curso de administração, e à tarde tinha aula no COLUN. Mas encontrei um tempinho para continuar os estudos para o vestibular; arrumei um novo grupo composto pelos meus amigos da igreja. Alguns do grupo do qual participava: o grupo de oração Divino Espírito Santo, da renovação carismática católica. Este grupo, tinha um nome popular: F.O. (farofa de ovo). Os farofeiros eram: Ingrid, José William (Zeca), Rita, Jailson, Sharlene, Thaina - mentora do nome do grupo, e Fernando que ajudava ministrando as aulas de Matemática. A felicidade reinou neste grupo, pois orávamos e estudávamos. E todos ajudavam-se: quem sabia português, ministrava essa disciplina e assim sucessivamente. Neste período, havia conhecido Jadeylson Ferreira, que se tornaria meu namorado, e que me incentivou a continuar os estudos. Quatro de julho de 2004: fui chamada como excedente para a UFMA. Iniciei as aulas na Universidade Federal do Maranhão. Creio que cheguei à UFMA pela misericórdia de Deus. Mas apareceram as primeiras provações: falta de dinheiro para transporte, cópias, professores “imcompreensivos”. Então, senti que a universidade não era universal com direitos iguais, e sim, uma balança de desigualdades. A ajuda veio da minha tia Sônia que custeou as minhas despesas. Ops... não pense que esqueci da ajuda do cursinho da cidadania do CEGEL. Por isso, retornei a ele como monitora voluntária de Química. Não demorou muito. Lá estava em apuros... havia esquecido dois livros de Química na Biblioteca Central da UFMA. Desespero e aflição. Como pagar?... Decidi então trancar o curso, pelo menos um turno. Informei na Coordenação do Curso. Esperei o período acabar. Já estava tudo certo, havia recebido duas propostas de emprego integral: uma no Hospital Dutra, como auxiliar de administração e outra na loja Ponte Magazine como vendedora. Então, no penúltimo dia de seleção do Programa Conexões de Saberes, a minha coordenadora, professora Gilza, me informou sobre a seleção. E, no último dia, fiz a inscrição. 98 Caminhadas de universitários de origem popular Hoje, faço parte do Programa Conexões de Saberes, que me ajudou a permanecer no meu curso. E não poderia terminar sem agradecer a Deus por sempre proteger-me. À minha mãe por acreditar na minha capacidade. E a todos os amigos e familiares, membros da igreja que oravam por mim. E assim, continuarei até alcançar todos os meus objetivos. “Mas, em todas essas coisas somos mais do que vencedores por meio daquele que nos ama.” Romanos 8:37 Universidade Federal do Maranhão 99 Diário de superação Paulo Leles Neto * “Descontente dos doutores e dos livros, resolvi procurar a verdade em mim próprio e no grande livro do mundo.” René - DESCARTES A história da minha vida, daria não simplesmente para escrever uma parte desse livro, mas todo ele. A princípio pode parecer exagero, mas assim que terminá-lo, vocês verão que não menti. Origem Nasci num povoado do Município de Timbiras, no Estado do Maranhão, que tinha por nome Flores dos Leles. E, se você, pensou que esse povoado era de minha família, acertou. No entanto, não pude aproveitar a vida na zona rural, pois, dois anos após meu nascimento, meus pais resolveram se mudar para uma cidade próxima chamada Codó, a vinte cinco quilômetros de minha cidade natal. Minha querida mãe, Maria Eunice Mesquita Leal, e meu pai José Raimundo Curcino, ambos naturais de Timbiras, tiveram que amargar uma infância sem oportunidades para estudar, brincar etc. Minha mãe, que ficou órfã de mãe aos seis anos de idade, teve que amadurecer mais cedo. Daí em diante ela teve por vários motivos que sofrer a realidade de não poder estudar, como era seu desejo. Nem mesmo ingressou na primeira série do Ensino Fundamental. Meu pai foi pouquinho menos infeliz, visto que conseguiu ingressar e cursar até a segunda série do Ensino Fundamental. Enfim, meu pai, bem como minha mãe, tiveram dois casamentos. Meu pai teve um filho, Sebastião, com sua esposa, enquanto minha mãe teve três filhos com seu primeiro marido: Edílson, Edivan e Emilton. Da união deles, resultaram cinco irmãos: José Raimundo Filho, Auricina, Francisco, Eu e Euricilene. Destes filhos, somente eu ainda não constituí família. Infância e escola primária Chegando a Codó, no ano de 1988, comecei uma história quase inacreditável de vida, de menino pobre, negro, sem perspectiva, pois possivelmente seria apenas mais um excluído, mas que almejava um futuro que para muitos estaria quase que fora do alcance. Dentro desse * Graduando em Matemática na UFMA. 100 Caminhadas de universitários de origem popular momento quero destacar o meu primeiro professor, que tinha por nome Paulo Leles, meu avô materno. Ele me ensinou a importância de buscar no conhecimento científico uma das oportunidades que a vida oferece, a ascensão social, um dos mitos do Capitalismo. Sabendo hoje desse mito, busco fazer com que a ascensão social se torne realidade, juntamente com um conjunto significativo de pessoas, que ainda não é o bastante, mas que deu início a essa luta com muita vontade e segurança de que vamos conseguir. Meu avô representa para mim o marco inicial de uma trajetória quase perfeita. Quase perfeita porque, logo no meu primeiro dia de aula, tive que amargar a decepção de não ter sequer um lápis para levar para a escola, que se chamava Unidade Escolar Irmã Flávia, atual Unidade Escolar João Temístocles, distante uns cento e cinqüenta metros de casa. Por conta da decepção e do fato de não entender a realidade que me cercava, chorei muito. Tanto que minha mãe quis me forçar a ir, também por não entender naquele momento o que eu estava sentindo, ou por conhecer a realidade tão bem que, ao invés de me explicar, resolveu me obrigar. Neste momento, um colega da mesma escola viu o que se passava e resolveu me presentear com um lápis. Resolvi não aceitar, pois, por incrível que pareça, naquele momento, entendi o que se passava e sabia que deixaria minha mãe muito triste se aceitasse. Desse dia em diante, fazia tudo o que uma criança tinha direito, mas passei a cumprir com meu dever de maneira dobrada. Sempre estudando muito. Minha 1a série marcou tanto que até hoje me lembro de quase toda a turma. Ali vivi um ótimo momento da minha infância. Além disso, concluí essa série em apenas um semestre, resultado dos ensinamentos do meu avô. Ao concluir a 4a série do antigo ensino primário, não sabia se sorria ou se chorava, visto que as amizades que eram tão importantes, iam não se desfazer, mas enfraquecer. Enfim, tivemos uma festa organizada pela professora Marlene, de Matemática, juntamente com as demais professoras da escola. Além disso, aos onzes anos de idade, tinha uma nova preocupação: encontrar vaga em uma das duas melhores escolas de minha querida Codó. Tarefa um pouco difícil. Vou explicar. É que, aos onzes anos, tive que correr atrás desta vaga, pois minha mãe e meu pai, apesar de todo o incentivo que me davam, estavam sempre procurando trabalho para conseguir nos dar o “pão de cada dia”. Meio que com medo da vida, saí e consegui uma vaga para estudar no Centro Educacional Municipal Senador Archer, a segunda melhor escola da cidade. Após a matrícula, qualquer ser humano poderia ver no meu rosto a criança mais feliz do mundo. Meu Ensino Fundamental Aqui, no primeiro dia de aula, tive que encarar um diretor linha-dura, que não permitia a entrada de alunos na escola sem calças compridas, tênis e blusa de farda. No entanto, este diretor, permitiu que eu entrasse de bermuda somente no primeiro dia. Depois desse triste fato, pude desfrutar da segunda melhor escola do meu município. Fiz novas amizades. Mais tarde, conheci o meu melhor amigo, Raimundo Saudades - rapaz muito inteligente, dedicado aos estudos, alguém que sempre estava buscando aprender e aperfeiçoar seus conhecimentos. Além dele, conheci outros não menos inteligentes, mas que omitirei. Aqui, apesar de todas as dificuldades enfrentadas por mim e minha família, vivi o melhor período de toda a minha vida. Aqui também, conheci professores, ou melhor, amigos para a vida toda. Universidade Federal do Maranhão 101 Meu Ensino Médio Período de superação. Aqui senti na pele, ou melhor, no estômago, a sensação de ter que ir ao colégio sem sequer tomar café da manhã. Fato tão criticado no seriado “Chaves”, exibido no SBT. Sempre, às nove da manhã, não conseguia estudar, ou melhor, prestar atenção nas aulas por conta da fome que sentia. Tantas vezes não tomei café que, certo dia, por não agüentar de fome, deixei a escola antes do último horário, logo no primeiro ano do Ensino Médio. Aqui também, conheci muita gente. No Centro de Ensino Médio Luzenir Matta Roma, minha escola de Ensino Médio, o meu dia começou a ficar mais corrido, pois ia para a escola pela manhã, para a biblioteca pela tarde, já visando o vestibular. Foi aí que, por volta de julho de 2001, mês do meu aniversário, o amigo Aslan Natécio, no último dia de pedido para isenção para o Programa de Seleção Gradual (PSG), da Universidade Federal do Maranhão, convidou a mim e a alguns amigos para que fizéssemos o pedido de isenção para que pudéssemos participar. Somente eu e três amigos conseguimos a tão sonhada isenção. Desse fato, já se pode perceber que o vestibular é um processo de exclusão, e não de “seleção”, como querem transparecer as universidades. Chegado o dia da prova (nós, como bons calouros, chegamos consideravelmente adiantados), estávamos muito nervosos e ansiosos por começar. Enfim, nossas provas não foram tão boas, mas para os calouros que éramos, estávamos felizes com o resultado. Após aprovação no primeiro ano do Ensino Médio, ficou no ar a ânsia de saber com quem iríamos estudar no ano seguinte. Contudo, para nossa surpresa, nada mudou, continuamos estudando com os mesmos amigos do ano anterior, exceto com os que ficaram reprovados. Por volta de julho de 2002, pedimos novamente isenção para que assim pudéssemos fazer a segunda etapa do PSG. Ao saber do resultado, a decepção tomou conta de nossa face, pois nenhum de nós ficou isento. Aí surgiu outra questão: E agora, como e o que fazer? Visto que não tínhamos dinheiro para pagar nossas inscrições. Foi aí que alguns começaram a ficar pelo caminho. Neste momento, pensei em desistir, pois não encontrava saída, ou melhor, dinheiro para pagar a inscrição, que até então custava R$ 30,00. Foi aí que falei com mamãe no antepenúltimo dia de inscrição, que me deu a brilhante idéia de falar com minha irmã, Auricina, e ver se ela poderia me mandar R$ 30,00 para eu fazer minha inscrição. Por sorte, ela tinha o dinheiro. Expliquei-lhe a situação e ela se prontificou a me ajudar. Penúltimo dia, lá fui, fazer minha inscrição. Infelizmente, nenhum dos meus amigos conseguiu o dinheiro para fazer a inscrição. Ao final, acreditei que fiz boa prova. No terceiro ano, a história com relação ao PSG da segunda etapa se repetiu e eu não tinha dinheiro para pagar a inscrição. Só que, já prevendo o acontecimento, pedi o dinheiro com certo tempo de antecipação a minha irmã. Ela tinha aproximadamente R$ 70,00, dos quais me mandou sessenta, valor cobrado no momento da inscrição para a terceira etapa do PSG. Com isso, ficou também inviável fazer o vestibular tradicional paralelo ao processo citado, pois não tinha dinheiro, nem a quem pedir, para fazer outra inscrição do mesmo valor. Como não tinha outra solução, fiz somente o PSG e aguardei o resultado. Resultado e ingresso na Faculdade Após o resultado no PSG: algo quase inacreditável. Depois de quinze dias após a realização da prova do Programa de Seleção Gradual, da Universidade Federal do Maranhão, procurei o Campus VII, na minha cidade, e não obtive o resultado da prova. Como não tinha 102 Caminhadas de universitários de origem popular conhecimento do que era o vestibular e da importância de um curso superior na vida de um ser humano, não procurei mais saber do resultado, até mesmo porque pensei não ter sido aprovado. No dia 13 de março de 2004, recebi um telegrama da Universidade Federal do Maranhão convidando-me para sua recepção de calouros que aconteceria dia 19 do mesmo mês. Neste momento, surgiu novamente a dúvida se eu tinha sido aprovado ou não. Foi aí que resolvi ir até o Campus VII para saber de fato o que tinha acontecido para eu ter recebido aquele convite. O rapaz do Campus informou-me que eu tinha sido aprovado para cursar Matemática na Universidade Federal. Procurei minha mãe e meus amigos para contar que eu tinha sido aprovado na UFMA. À noite, dirigi-me até o Centro de Capacitação Tecnológica do Maranhão (CETECMA), de Codó, para estudar Química. Falei o que tinha acontecido para minha professora, hoje minha amiga Ivanize. Em seguida, verificamos qual a minha classificação no processo seletivo. Fui o décimo quarto colocado no processo. Logo depois, ela perguntou-me se já havia feito minha matrícula, pois tinha sido aprovado para o primeiro semestre de 2004. Falei que não. Ela se surpreendeu, pois desse modo eu havia perdido o dia da matrícula. Ali, naquele momento, entendi que tinha vivido um paradoxo entre o dia mais feliz e o dia mais triste de minha vida. Quase chorando, fui para casa contar para meus pais o acontecido. Eles ficaram muito tristes, pois sabiam do meu esforço. Ivanize me aconselhou a vir até São Luís, à Universidade Federal do Maranhão, tentar, pelo menos, obter novamente a vaga para o segundo semestre, visto que eu tinha sido aprovado para o primeiro semestre. Resolvi seguir seu conselho e saí de casa, pela primeira vez, em busca do meu futuro. Cheguei à UFMA por volta das dez horas da manhã do dia 16 de março de 2004. Neste dia, estavam matriculando os excedentes. Dirigi-me até uma das pessoas encarregadas de matricular os calouros e expliquei-lhe o que havia acontecido. Consegui minha vaga, pois a senhora responsável falou-me que o pessoal excedente de Matemática não tinha comparecido para se matricular. Feita a matrícula, liguei para uma amiga de Ivanize para que ela pudesse me buscar na Universidade. Depois de almoçar com ela, tive que procurar as casas de estudantes que existem em São Luís para que futuramente pudesse morar em uma delas. Consegui encontrar a Casa do Estudante Universitário do Maranhão (CEUMA), onde me hospedei por dois dias antes de voltar para minha cidade. Quando retornei a São Luís para estudar, já sabia pelo menos onde ficar. Consegui uma bolsa-trabalho fornecida pela Universidade onde eu prestava vinte horas semanais de trabalho: atendimento ao público etc. Com isso, pude prosseguir o curso e hoje estou cursando o sexto período de Matemática. Vou concluí-lo ano que vem. Sei que vou ter novo desafio pela frente, mas estou conseguindo realizar um dos meus maiores sonhos. Esta é minha impressionante história de vida. Universidade Federal do Maranhão 103 Até a última gota Raquel Moreira Meireles Silva * A história de minha vida começa com a história de meu pai. Nasci em São Paulo, cidade fria e triste. Conceituo assim a cidade onde nasci e vivi os meus primeiros dezoitos anos, porque foram muitas as dificuldades pelas quais passamos até chegar ao lugar onde estou hoje, a universidade. Meu pai deixou, há alguns anos, o Maranhão para buscar melhorias de vida na “cidade prometida” - São Paulo. Porém, as experiências foram lhe tolhendo os sonhos. Quando chegou à cidade, com dezoito anos, logo teve que trabalhar, pois mal tinha dinheiro para comer e ninguém podia ajudá-lo. Seu pai havia fugido, abandonado a família. Minha avó, costureira, não tinha como enviar dinheiro para ele em São Paulo. Foi meu pai que sempre trabalhou, desde criança, vendendo calções nas ruas de São Luís para ajudar na renda da casa. Agora, sozinho, não contava com ninguém. Trabalhando de vigia em um edifício da grande São Paulo, conheceu minha mãe, mais velha do que ele cerca de vinte anos. Após um ano casados, tiveram meu irmão José Ribamar, cujo nome é em homenagem ao pai. Dois anos após o seu nascimento, eu nasci. Morávamos num apertado quarto de Santo Amaro, onde vivíamos em meio ao cheiro de cebola advindo dos sacos que levavam para vender na feira. Sempre vi meu pai disposto ao trabalho. Mesmo não tendo lembranças da minha mãe, a história contada sobre a sua vida, neste período em que conheceu e se casou com meu pai, mostra que, também, era uma mulher esforçada. Além das vendas na feira, trabalhou em casas de família como doméstica. Um ano após o meu nascimento, minha mãe, que sofria da doença de Chagas e nunca havia feito um tratamento, teve o seu quadro doentio agravado. Por isso ela precisou deixar a casa, onde prestara seus serviços e encontrar alguém que a substituísse. Em dezembro de 1982, meu pai e minha mãe vieram a São Luís e aqui conheceram uma jovem chamada Maria Garcês, que, em parceria com minha avó, ensinava Lições Bíblicas para crianças das comunidades da periferia de São Luís, através da entidade evangélica APEC (Aliança pró-evangelização das crianças). Garcês trabalhava de doméstica em casas de família para se sustentar. Poucos dias antes da chegada de meus pais a São Luís, ela pediu demissão da última casa na qual prestou seus serviços. Sabendo da procura de minha mãe e da situação de desemprego de Garcês, minha avó sugeriu aos meus pais o nome da amiga. * Graduanda em Pedagogia na UFMA. 104 Caminhadas de universitários de origem popular Encontrada a pessoa que ocuparia o cargo de doméstica na casa de onde minha mãe demitiu-se, em janeiro de 1983, estávamos de volta a São Paulo. Porém, Garcês não pôde assumir o trabalho na casa onde os antigos patrões de minha mãe a esperavam, pois o estado de saúde de minha mãe se agravou, impossibilitando-a de realizar tarefas, por isso, Garcês ficou cuidando de nós, enquanto meu pai trabalhava: pela manhã na feira e à tarde na falida CMTC (Companhia de Transporte Coletivo), onde era cobrador. Meu pai chegava somente de madrugada. Mesmo cansado, por várias vezes precisou carregar minha mãe, com fortes dores no corpo, até o hospital. Como se sabe, a realidade dos serviços públicos de saúde no Brasil nunca foi humano, nunca valorizou o pobre como um ser digno de direitos. Consta até na Constituição que temos o direito à saúde, vida, moradia etc., mas estes direitos nos são negados quando precisamos ser atendidos por tais serviços que pagamos por meio dos impostos. Com minha mãe não foi diferente, no hospital recebia apenas um analgésico e era liberada para casa, sem passar por uma avaliação mais cuidadosa dos médicos. A última crise pela qual minha mãe passou, é relatada por Garcês: por um beco entre casas paupérrimas, meu pai subiu as escadas - se é que se podem chamar aquelas tábuas sobrepostas de maneira desordenada de escada -, carregando consigo minha mãe que sofria fortes dores. Internada, minha mãe chamou Garcês e pediu duas coisas: que não deixasse meu pai judiar de meu irmão que era muito travesso e que nos levasse até a janela do quarto onde estava para, ao menos, poder se despedir de nós, pois crianças não podiam entrar no hospital. Garcês atendeu ao pedido. Da janela do quarto minha mãe se despediu de nós. Fico hoje imaginando o que deveria ter passado em seu pensamento: sabendo que a morte estava próxima e não havendo mais nada a ser feito, deixava duas crianças no mundo. Quantos sonhos ela deveria ter tido, para nós, quantas expectativas… apenas naquele instante, contudo, eu não tinha consciência do que estava acontecendo, pois era uma criança de dois anos de idade e não podia entender a dor de uma mãe que se vai, sem poder mais sonhar com o futuro de seus filhos. No dia seguinte, quando meu pai chegou ao hospital, recebeu a notícia. Minha mãe havia falecido. Era 31 de julho de 1983, quatro dias após o aniversário de meu irmão. Não me lembro do fato, mas choro a perda de quem eu nunca pude conhecer para amar. Passados onze meses da morte de minha mãe, Garcês e meu pai se casaram. Não acredito ter sido um casamento movido pelo amor, mas pela situação em que ambos se encontravam. Meu pai, sozinho, a cuidar de duas crianças ainda pequenas, e Garcês também, sozinha, sem parentes para lhe dar ajuda. Ou talvez ela tivesse aceitado o compromisso de se casar porque se comoveu com o apelo de minha mãe momentos antes de morrer. Enquanto meu pai e Garcês organizavam suas vidas, eu e meu irmão passamos uns meses na casa de minha avó em São Luís. Em julho de 1984, voltamos para São Paulo. Mudamos de Santo Amaro para Barueri, cidade da Zona Norte. Em Barueri, minhas primeiras lembranças são da Pré-Escola onde comecei aos quatro anos. Era quase uma hora de caminhada até a escola. Quando tinha bicicleta, meu pai me levava. Lembro que sempre tive medo de mudanças. Sentia-me insegura, e quando chegava à escola, não queria entrar na sala de aula, principalmente, se a aula já houvesse começado. O uniforme da escola obtive no último período, o jardim três, pois, como nossa renda era mínima, eu era a única criança que não tinha o uniforme da turma. Nas fotos dessa época, eu apareço sempre de azul em meio às outras crianças de vermelho. Universidade Federal do Maranhão 105 Com sete anos comecei a estudar numa escola perto de casa onde meu irmão já fazia a 3a série. Nossa vida em Barueri era muito pacata. Como não tínhamos parentes perto, nem amigos, vivia para os estudos e para a igreja que freqüentávamos aos domingos. Por volta dos dez anos, comecei a freqüentar a única biblioteca da cidade. Andava uma hora para buscar livros da Série “Vaga-lume”. As leituras me fascinavam, me levavam a lugares nunca antes visitados. De todas as obras que li, não me lembro bem de seus enredos, mas uma marcou a minha vida: Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Este autor me fez ver as injustiças sociais e o porquê de talvez a vida do pobre ser tão seca, às vezes até de sentimentos, pois é difícil sorrir quando a barriga clama por um pedaço de pão. Quando olhava meu pai lutando tanto para ter uma vida melhor e nunca desistir da educação de seus filhos, relacionava a história a nossa vida. Na escola não podíamos faltar. Nossa segunda mãe nos acompanhava nos estudos, ia às reuniões, assinava os boletins, e se alguma coisa não ia bem, ela dizia para meu pai que logo tomava as providências de nos aconselhar a buscar sempre o melhor. Recordo-me de quando meu pai saiu, após doze anos de prestação de serviço, da CMTC. Com o dinheiro que recebeu, tentou montar uma oficina de móveis que não prosperou. Perdeu todo o dinheiro. Uma Variant velha que havia comprado pegou fogo. Tudo perdido. Diante desta nova situação, passamos por dificuldades financeiras. Era o início do ano, não tínhamos condições de comprar material escolar. Lembro que fiz um bilhete pedindo a meu pai que comprasse um caderno de dez matérias para eu levar no primeiro dia de aula. Ele não respondeu ao meu pedido, pois não queria dar explicações sobre a situação de crise pela qual passávamos. Minha madrasta foi quem conversou conosco e aconselhou que não pedíssemos nada a meu pai naquele momento, pois ele não teria condições de nos atender. Então, fui à oficina onde restavam somente as máquinas sem utilidade, naquele período, e algumas coisas velhas. Busquei, entre os cadernos velhos, algumas folhas que sobraram do ano anterior. Colei as folhas e fui para a escola, não deixaria de estudar nunca. Lembro-me bem da chinela, que em São Paulo é conhecida por Havaiana, metonímia da marca. Este foi o meu calçado; as folhas coladas, o meu caderno. Porém, aqui, louvo a atitude de um professor de Geografia que não ficava culpando o governo ou qualquer outra instância para mostrar que possuía alguma consciência crítica sobre a situação de desigualdade neste país. Era a segunda semana de aula, quando ele pediu aos alunos os exercícios dos livros para corrigi-los. Convém ressaltar que estes livros eram emprestados da Secretaria de Educação aos alunos. Entreguei os exercícios respondidos nas folhas coladas. Ele não teve a atitude paternalista de perguntar se passava por alguma necessidade financeira, até porque, era visível a situação. Não precisava de nenhuma palavra “política” vazia de significado para minha vida, e sim, de cadernos, e foi isso que ele proveu. Com muita discrição, foi à secretaria da escola, pegou três cadernos de brochura, e na hora em que todos os alunos já haviam saído para o intervalo, ele entregou-os a mim. Fiquei muito feliz por receber aqueles bens tão preciosos, cadernos, onde eu escreveria minhas tarefas e aprenderia lições que foram além das letras que estavam na atitude humana daquele professor. Passado um ano após a saída da CMTC, meu pai conseguiu emprego na loja “Móveis Taurus”, hoje falida. A situação financeira foi melhorando. Já estávamos na metade do ano letivo, mesmo assim, ele comprou cadernos para mim e meu irmão. Nesse trabalho, meu pai andava a pé mais de três horas para chegar às casas onde deveria montar os móveis, pois, 106 Caminhadas de universitários de origem popular recebendo por comissão, o dinheiro ainda não era o suficiente para atender todas as nossas necessidades. Meu irmão mais velho, quando entrou para o antigo primeiro ano do segundo grau, passou a estudar à noite, e assim, durante o dia, ajudava meu pai nas montagens. Juntos, conseguiram fazer um número considerável de montagens e puderam comprar alguns bens para nossa família, como as bicicletas que serviram de meio de transporte no trabalho. Após três anos casados, Garcês e meu pai tiveram Samuel. Em 1990, nasceu Tiago. Este último filho do casal começou a manifestar no período em que passávamos pela crise financeira uma alergia que provocava graves irritações na pele. Através de exames, foi diagnosticada intolerância à lactose. O dinheiro ainda era pouco, mas economizando com algumas coisas não tão necessárias, os remédios foram comprados e meu irmão fez o tratamento. Nossa vida financeira era instável, houve períodos em que tivemos o razoável para sobreviver, e períodos de crise em que comemos apenas arroz com manteiga. Quando estava no terceiro ano do Ensino Médio, passamos novamente por uma crise financeira. Por isso, terminado o último ano do nível médio, resolvi aceitar o convite de minha tia para tentar a faculdade em São Luís, pois aqui, seria mais fácil fazer um curso superior, tendo em vista o custo de vida mais baixo em relação a São Paulo. No dia 22 de janeiro de 2000, vim para a capital do Maranhão. Enquanto tentava o vestibular em São Luís, a loja de móveis, onde meu pai trabalhava, faliu e já não era possível contar com a ajuda do meu irmão mais velho que estava no quartel. Consciente das dificuldades financeiras pelas quais minha família passava, comecei a trabalhar em uma escola. Ganhava mal, cem reais por mês, mas era a forma de me manter sem recorrer a meu pai. Assim, com o dinheiro que recebia, investia nos estudos. Não tendo certeza qual curso faria, tentei vários cursos nas duas Universidades públicas de São Luís. Os três primeiros vestibulares que tentei para a Universidade Federal, foram para o curso de Educação Artística, não obtendo, contudo, resultado positivo. Na Universidade Estadual tentei para os cursos de História; Arquitetura e Urbanismo, e por fim, Administração. Também não consegui aprovação em nenhum destes vestibulares. Foram quatro anos fazendo vestibular e me angustiando cada vez mais, pois as condições objetivas me mostravam que nunca poderia alcançar um nível superior. O único desejo que tinha na vida, como até hoje tenho, era continuar meus estudos. Eu dizia que queria ser doutora, ser gente importante, ocupar um lugar que por direito eu tinha a consciência de que era meu. “A universidade não é pública?” Eu pensava, porém: “Como poderia competir com os alunos das escolas particulares que se prepararam para estar no nível superior?” Diante das dificuldades, desejei voltar para São Paulo, mas me perguntava: “Fazer o quê?” A única razão que eu encontrava para a vida estava em prosseguir nos estudos. Então, soube do vestibular da cidadania promovido pela Universidade Estadual do Maranhão. Fiz a prova e passei em quadragésima colocação para a turma que funcionaria na própria Universidade. Meu pai ficou feliz com esta aprovação. Eu confesso que também fiquei, porém não satisfeita, pois queria fazer um curso superior e não somente um cursinho. O cursinho na realidade foi válido pela ajuda da bolsa de cinqüenta reais e pelo material que recebia. No período do vestibular, realizei as provas da Universidade Federal e da Universidade Estadual. Considerei a prova do vestibular da Universidade Federal a mais difícil dentre aquelas realizadas nos quatro anos em que tentei vestibular. As questões de História, as específicas do meu curso, estavam muito complexas. Desestimulei-me, já vinha pensando Universidade Federal do Maranhão 107 que não passaria mais uma vez, me sentia uma desgraçada no mundo. Indagava-me o que queria da vida. Sentia-me fracassada, pois, naquele momento, mesmo tendo a certeza do curso que escolhera, Pedagogia, não conseguia ter um bom resultado. No dia seguinte, continuei indo ao cursinho do Vestibular da Cidadania, pois ainda faltava basicamente um mês para as provas da Universidade Estadual. Quando saiu o resultado dos aprovados nas provas da primeira etapa da Universidade Federal, consegui aprovação em quinqüagésima segunda colocação. Nesse período, já estava morando com minha madrasta e meus dois irmãos mais novos na casa que tinha sido da minha falecida avó. Porém, não quis contar-lhes de imediato a notícia. Minha tia foi quem viu o meu nome em um jornal e me ligou parabenizando-me. Ainda não estava satisfeita. Fui, receosa, para a segunda etapa. A prova pareceu bem mais simples que a primeira. O tema da redação estava relacionado com a temática da novela que estava sendo transmitida na televisão naquele período, “Celebridade”. Enquanto esperava o resultado final do vestibular da segunda etapa, fiz as provas da Universidade Estadual com esperanças de passar pelo menos nesta. Neste período em que me preparava para as provas dos vestibulares do ano de 2004, a escola, onde lecionava, faliu. O prédio onde funcionava a escola era pequeno, e como os proprietários eram meus parentes, me dispuseram uma sala para ensinar reforço escolar, enquanto não vendiam o prédio. Foi numa manhã, nesta escola, que escutei os fogos de artifício. Era o resultado final do vestibular da Universidade Federal que estava sendo divulgado. Corri para a Cidade Operária, bairro que distava meia hora de caminhada da escola onde estava. Pedi para minha tia me deixar ouvir o resultado na rádio. Mas os aprovados para o Curso de Pedagogia já tinham sido anunciados. Almocei com minha tia e voltei para a escola à tarde. No dia seguinte, saí às seis horas, como de costume. Fui lecionar as aulas de reforço escolar. Depois de uma hora e meia de caminhada, chegando próximo ao prédio, vi uma senhora, no seu comércio, lendo o jornal do dia. Pedi-lhe o jornal. Novamente a cena de quatro anos se repetia: procurar meu nome entre trinta e seis pessoas. Encontrei o meu: trigésima segunda colocação. As lembranças de uma vida vêm à tona: as caminhadas; o esforço do meu pai para nos ver progredindo na vida e buscando um futuro melhor; as economias que fiz naquele ano para pagar a taxa do vestibular, pois não queria mais depender da ajuda financeira de minha tia; a distância do meu pai que estava em São Paulo, trabalhando de montador de móveis em outra loja para sustentar sua família em São Luís e também conseguir o dinheiro para comprar sua passagem de volta à terra deixada há vinte e cinco anos. Enfim, o percurso que fiz para conquistar uma vaga na universidade pública, assim como as pessoas que fizeram parte desta caminhada, me vieram à memória. À noite, quando cheguei a minha casa, liguei para meu pai em São Paulo que, ao receber a notícia, me disse palavras encorajadoras. Nunca me esquecerei. Meu pai sempre apoiou as minhas escolhas. Ele pode até não concordar com algumas decisões que tomo, mas ele não me desencoraja na conquista dos meus sonhos; ele prefere permanecer neutro e deixar que eu trace o meu destino. Hoje, ele confessa que tinha dúvidas quanto a minha permanência na Universidade, visto que, no período, estávamos vivendo com basicamente cem reais por mês, com ajudas de parentes e eu me sustentando com as aulas do reforço escolar. 108 Caminhadas de universitários de origem popular Minhas tias também são pessoas significativas. Por isso, não posso deixar de fazerlhes referência neste memorial, pois, cada uma delas, sempre que puderam, me ajudaram, ora me incentivando a continuar a estudar, ora brigando comigo a fim de que despertasse para a busca dos meus sonhos, ou mesmo nos momentos em que a minha tia da Cidade Operária abria as portas de sua casa para me deixar dormir quando percebia que algo não ia bem comigo. Elas são pessoas que estarão para sempre em minhas memórias. Nunca as esquecerei, pois fazem parte desta minha caminhada. A Universidade foi um sonho conquistado. No começo, novos desafios. Faltava o dinheiro para as cópias dos textos. Professores politizados no discurso, mas na prática pouco se importavam se o aluno tinha ou não condições de fazer um trabalho digitado. Dou graças a Deus, porque, no Curso de Pedagogia, há pessoas humanas na minha turma. Elas me ajudaram muito. Simone tirou cópia de um texto logo no início. Como não tinha dinheiro, pedi emprestado o texto de uma amiga e fichei-o. No dia da apresentação, apresentei o trabalho com as anotações feitas no caderno. Simone soube, por uma das integrantes do meu grupo, como havia estudado para aquela apresentação. Então, no dia seguinte, sem dizer nada ou fazer aquelas perguntas imbecis cheias de vãs piedades, me entregou o texto. Outras estudantes da turma também foram muito generosas comigo: Ester, que várias vezes me convidou para digitar meus trabalhos na casa de sua irmã; Francilene tem sido uma companheira nos estudos. Fazemos trabalhos, construímos artigos para que sejam apresentados em encontros e seminários vinculados à área da Educação. No ano de 2005, em que a universidade ficou paralisada devido à greve dos professores, realizamos uma pesquisa numa escola pública do bairro da Santa Clara; foi enriquecedor, pois, estivemos dois meses perto das crianças com diversos problemas sociais. Queríamos falar de alfabetização, mas percebemos que este processo vai muito além de ensinar as crianças a ler e a escrever. Desta experiência, aprendemos muito sobre os valores humanos e como a sociedade tem visto o processo de alfabetização. Por fim, falo de Keila que, tendo computador conectado à internet em casa, sempre nos avisava de algum evento ou oportunidade para estágio. Ela primeiro me convidou para participarmos de uma oficina de leitura na Vila Embratel. Foi uma excelente experiência. E depois, foi ela quem me avisou do Programa Conexões de Saberes. Sou grata a Deus por me conceder amigas tão humanas que sabem valorizar, respeitar e construir amizades que vão além de simplesmente estarmos juntas. Hoje, faço parte desse Programa, tenho aprendido a conviver com outras pessoas de cursos diferentes, e é válida a experiência. Sei que as dificuldades sempre existirão, porém é gratificante quando elas são superadas. Como eu sempre falo com minha amiga Francilene: “Vamos até a última gota e ela sempre será infinita, pois é insaciável”. Estar ao nível da Graduação não me satisfaz, quero mais. Sonho com o título de Doutorado, não que eu queira somente prestígio social, mas que, através dos títulos, possa estar contribuindo de forma significativa com a esfera pública, parafraseando Henry Giroux. Não escolhi Pedagogia em vão. A cada período em que vou estudando as bases teóricas que fundamentam o curso de Pedagogia, ao mesmo tempo em que vou às escolas fazer pesquisas, confirmo a minha escolha de atuar profissionalmente na área da Educação. Universidade Federal do Maranhão 109 Eu pela vida Ricardo Waldrean Melo da Silva * 1 Introdução Sou Ricardo Waldrean Melo da Silva e me apresento como integrante de um pequenogrande núcleo familiar composto por seis membros da família, um mascote e várias outras pessoas unidas por laços afetivos de amizade. Para mim, a história humana resulta do somatório de contribuições individuais das trajetórias de vida que, por sua vez, são influenciadas pela sociedade e o meio circundante, numa troca e entrelaçamento simultâneos que nos conduzem ao envolvimento com histórias de outros, sendo assim, os “carpinteiros do universo”. Com base neste princípio, busquei oportunidades de contribuir para a obra universal, superando as minhas dificuldades e ajudando as pessoas à minha volta a melhorar suas vidas. Ao longo deste texto, contarei algumas das limitações que a vida parecia tentar me impor e como consegui vencê-las, ou ainda estou em fase de superação. 2 De onde vim Nasci no final da década de 1970, na periferia da cidade de Belém-PA e tive uma infância bastante pobre, porém, FELIZ e muito rica em experiências diversas que me deixaram mais preparado para “enfrentar” a vida, e acredito que me tornaram uma pessoa bem melhor do que se não as tivesse vivenciado. Sou o primeiro filho de um casal que se uniu baseado unicamente na vontade de ficarem juntos e serem felizes, quero dizer ainda sem nenhuma estrutura financeira que os mantivesse. Isso fez com que passássemos - nasci pouco mais de um ano após terem se casado e meus irmãos nos dois anos seguintes – por sérias necessidades. Para quem conhece as áreas periféricas de Belém, passei toda a minha infância vivendo em casinhas de tábuas que são construídas suspensas por estacas – algo equivalente às palafitas ribeirinhas tão comuns em áreas de invasão com pouca assistência governamental, lembrando que, vivíamos de favor com parentes; todos passavam por muitas dificuldades e ninguém dispunha de emprego fixo – a renda que sustentava a família vinha de “bicos”, nunca sabíamos com quanto dinheiro poderíamos contar para passar o mês. Essa situação, perdurou por praticamente toda a minha infância. * Graduando em Física na UFMA. 110 Caminhadas de universitários de origem popular A Taberninha (mercearia) representou para nós o momento de transição para uma situação financeira um pouco melhor. Após um longo período morando de favor na casa de minha tia, meu pai conseguiu uns poucos recursos com os quais teve a idéia de alugar uma casinha de apenas um compartimento, e comprou um quilo ou litro de cada produto da cesta básica e montou um pequeno comércio. Nesta fase, construímos nossa primeira casa própria. Mas em decorrência de reparos nas ruas do bairro, nossa rua ficou intrafegável e a taberna teve que ser fechada por falta de freguesia. E voltamos à situação anterior, com a diferença de que agora tínhamos a nossa própria casa. 3 Por onde passei Até os onze anos, vivi (nas condições já citadas) em Belém-PA, quando meu pai recebeu o convite de familiares de minha mãe que moravam no Amazonas para mudar-se para lá com a possibilidade de aprender a trabalhar na área de telecomunicações e arrumar um trabalho nessa área - na época, em franca expansão na região Norte. Atraídos pela vontade que meu pai tinha de “aprender” uma profissão e melhorar as condições de vida da família, decidimos que mudaríamos para Manaus-AM. Realizamos a mudança com nossos poucos bens materiais e lá estávamos mais uma vez a morar de favor na casa de parentes. Lembro que meu pai se esforçava muito para aprender os procedimentos de instalação dos cabos da rede de telecomunicações (embora tenha começado abrindo valas e carregando escadas). Ele havia gostado da área e tinha um trabalho fixo, embora com um salário que não fizera diminuir as nossas dificuldades, mas tínhamos esperança de que, quando meu pai aprendesse, passaria a ter um cargo com salário melhor. Acabou não sendo possível continuarmos na cidade, pois ficamos sem condições de nos sustentar naquele Estado, e depois de um ano sofrendo necessidades, retornamos a Belém-PA, com a diferença que, desta vez, meu pai tinha uma profissão que possibilitou a nossa vinda para São Luís-MA, em melhores condições, comparativamente àquela época. Meu pai tinha uma profissão numa área que oferecia empregos em Belém. Ele conseguiu um trabalho e recebeu uma proposta para vir trabalhar aqui, em São Luís do Maranhão, pois a empresa fechou contrato para realizar instalações telefônicas no Estado. 4 Na vida da escola e na escola da vida Como era de se prever, sempre estudei em escola pública. Com isso, descobri bem rápido que teria que aprender a tirar o que havia de melhor dela e a suprir as muitas deficiências por ela deixadas. Na escola Minha carreira estudantil começa no ano de 1984, quando tinha cinco anos. Foi quando descobri que a vida era bem maior do que meu próprio mundo. Tenho inúmeras boas e más recordações dessa época. A escola em que comecei a estudar se chamava “Chapeuzinho Vermelho”. Lá, comecei a conhecer as letras e as pessoas. No primeiro ano em que estudei, foi maravilhosa a sensação de capacidade ao cobrir a letra “a”. Fiquei encantado de poder fazê-la de vários tipos e tamanhos; o difícil foi não ter a mesma facilidade com a letra “b”, processo tornado muito doloroso pela professora que, Universidade Federal do Maranhão 111 no auge de sua competência profissional, dizia que eu deveria ver melhor a letrinha para poder seguir as linhas pontilhadas. Para isso me enchia de “cascudos” e/ou esfregava minha cabeça no papel que estava sobre a carteira. Isso representou o maior trauma da minha vida escolar. Na verdade, até hoje nunca entendi o que a dor tem a ver com aprendizagem. É certo que me esforçava desesperadamente para aprender tudo o que aquela professora ensinava para evitar seus abusos, mas não adiantava nada: ela sempre me batia. Tempos depois, ela começou a dizer que me odiava por eu ser parecido com um homem que a fez sofrer. Neste período, pude observar que havia diferença entre as pessoas (até então todas eram iguais para mim). Na escola, as crianças e familiares que tinham melhor aparência eram bem melhor atendidas e donas da atenção das professoras. Em 1987, minha família e eu nos mudamos de bairro, e conseqüentemente, eu teria que mudar de escola. Comecei a estudar na escola José Alves Maia. Parece que eu havia esquecido muito do que a escola tinha representado para mim, e quando voltei à escola, levava na cabeça o que minha mãe me dizia: “A escola é o lugar onde as pessoas vão para aprender e colaborar de alguma forma com as outras”. Embora ainda criança, foi difícil saber que estava enganado, pois os alunos dessa escola eram muito bagunceiros, não prestavam atenção às aulas, nem faziam os exercícios, apenas brincavam e brigavam. E eu, que não tinha grupo, apenas ficava em meu lugar, observando e fazendo minhas tarefas; quando muito, brincava com meus lápis e canetas (fingindo que eram aviões ou naves espaciais). Por eu ser tão calmo em sala de aula, a professora dizia que eu não era normal e deveria ter algum problema. Por este motivo, minha mãe foi chamada inúmeras vezes ao colégio para ser orientada a buscar ajuda médica para resolver meu “problema”. O interessante é que os mesmos princípios de geração de energia que faziam com que as minhas espaçonaves funcionassem são os que fazem, hoje, com que alguns dos doutores da UFMA, onde curso Licenciatura em Física, se debrucem sobre um projeto inovador, que representa uma proposta bastante promissora para suas carreiras científicas. Em Manaus, mantinha a mesma postura em sala de aula: ficava isolado, fazia as tarefas e ninguém me notava. Mesmo com este comportamento dito anormal, eu era um bom aluno, e quando os(as) professores(as) não implicavam comigo, me destacava nas notas. A partir da 8ª série do Ensino Fundamental, comecei a estudar em São Luís. No ano de 1998, iniciei o Ensino Médio na escola César Aboud. Encontrei excelentes professores, mas devido à falta de ânimo de outros, preferi me transferir para o colégio “Edson Lobão” (CEGEL). A essa data, já havia superado - não esquecido - alguns dos traumas escolares da infância, já tinha um comportamento mais aceitável e sonhava entrar numa universidade, com a escolha do curso já feita, refletindo algumas das minhas brincadeiras preferidas quando criança. Alguns dos meus professores, comentavam sobre a dificuldade que seria para nós, alunos das escolas públicas, passarmos no vestibular. Eu comecei a me aproximar deles e a perguntar como poderia fazer para tornar o meu sonho menos difícil; pedia orientações, sugestões e materiais. Fiz amizade com colegas que também pensavam em ingressar na universidade, e começamos a estudar juntos. 112 Caminhadas de universitários de origem popular Não tinha recursos para pagar cursinho preparatório ou comprar livros, mas tinha muita vontade de passar no vestibular para Física. Então, foi neste período que iniciei um projeto social que ainda hoje existe. Formamos o grupo Cursinho da Cidadania e começamos, além de estudar em grupo, a dar aulas (cada um na matéria com a qual tinha afinidade) a outros alunos da mesma escola em fase de preparação para o Programa de Seleção Gradual (PSG) da UFMA e demais vestibulares. No terceiro ano, me dediquei mais ainda aos estudos. Os colegas do grupo e eu passávamos os sábados e domingos na escola estudando em uma sala cedida pela direção. Agora, eu pensava que precisava passar, mesmo não estudando nas ditas boas escolas, nem freqüentando cursos especializados. Fiz a última etapa do PSG e, graças a Deus, fui aprovado logo na primeira tentativa, sendo a primeira pessoa da minha família a passar no vestibular. Minha aprovação fez com que meus familiares e alguns amigos da infância se sentissem estimulados para fazê-lo também; incrivelmente até mesmo aqueles que nem sequer cogitavam essa hipótese, passaram a perceber que realmente é possível uma pessoa pobre chegar à UNIVERSIDADE! Eu e a academia Na universidade aprendi que a confiança no próprio potencial e na capacidade, é um elemento imprescindível para o sucesso; também, a formação de um bom grupo de colaboradores, e principalmente, aquela esperança que dizem ser a última que morre. Passei por momentos de quase desespero nos quais, se não tivesse conseguido ter uma relativa frieza para ir até a última possibilidade, não teria conseguido êxito, como ocorreu nos primeiros períodos em que eu era obrigado a jantar na UFMA apenas água com a farinha que levava de casa. Percebi, rapidamente, a presença de alguns professores que parecem ter o objetivo de reprovar muitos de seus alunos. Um deles disse, certa vez, enquanto ministrava uma disciplina, que a turma “não era muito interessante”. O resultado foi a reprovação de quase todos os alunos. Contudo, conheci também grandes mestres que expressam com clareza o desejo de ensinar, que estimulam lindamente o aprendizado, e é por este aprendizado e pelas oportunidades de crescimento intelectual e pessoal, que pretendo poder retribuir à sociedade. 5 No bairro Sempre fomos muito caseiros, geralmente não saímos para festas, preferíamos ficar em casa, comportamento que não era bem aceito pelos vizinhos. Eu concordava com minha família e tínhamos o seguinte lema: “não perdi nada na rua; se sair, posso encontrar algo que não faça bem”. Pode parecer estranho, mas para uma criança que vê uma briga de faca e facão, que resulta em muito sangue, começa a fazer sentido. Eu era feliz com a família, livros e TV (quando conseguimos uma - na minha adolescência). Isso me bastava. Na verdade, meus pais conseguiam fazer com que - mesmo com tantas dificuldades - fôssemos felizes juntos, e como retrata o filme “A Vida é Bela”, mesmo em meio a uma “guerra”, era possível sermos felizes; a diferença era que sabíamos que corríamos perigo diariamente. Universidade Federal do Maranhão 113 Nessa época, eu pensava que, quando crescesse, tentaria uma forma de não deixar que outras pessoas caíssem na marginalidade como aquelas que a cada dia trilhavam este rumo. Continuo acreditando que as pessoas não nascem, más contudo as dificuldades as empurram para a marginalidade. 6 Na família Por apresentar uma personalidade calma, dentre meus irmãos, fui o que menos “aprontou” e raramente apanhava. Só decepcionava na hora da sabatina - neste instante eu sabia que ia apanhar e que não tinha jeito de escapar - esta era também uma desculpa -, estratégia de meu pai para eu “ser castigado”, pois a regra na casa era: “Por um pagam todos”; e quando meus irmãos faziam alguma coisa errada, sempre vinha a sabatina. Como eu raramente “saía da linha”, meu pai se sentia culpado em me punir segundo suas regras, assim, encontrou esta forma educativa. Hoje, eu acredito que há males que vêm para bem, pois, graças a isto, aprendi a multiplicar e a ter gosto pela Matemática. Entendi com isto que, quanto mais soubesse, menos sofreria na vida. Em casa, costumava ser o intermediador entre meus irmãos, que viviam brigando e disputando - entre outras coisas - a atenção de nossos pais. 7 Como cheguei ao “Conexões” O destino tem suas maneiras de agir! Depois de conversar com uma amiga que naquele momento tinha alguns problemas particulares, notei que havia no mural um “convite”, para participar deste projeto. Como eu estava precisando realizar alguma atividade de ajuda ao próximo, e a mim mesmo, saí imediatamente para preparar todos os requisitos solicitados para o programa. Infelizmente, não fui aprovado no seletivo - não porque não me enquadrasse nos requisitos do Programa -, mas porque haviam outros candidatos maior pontuação que eu. No entanto, fui o primeiro na lista de espera e assim que um dos bolsistas (um dos mais engajados) saiu, fui chamado para participar do Projeto. Isso foi motivo de muita alegria para toda minha família, pois a minha bolsa veio representar a principal fonte de renda devido ao desemprego de meu pai naquele momento. 8 Perspectivas para o futuro Pretendo especializar-me para dar aulas e realizar pesquisas em universidades, realizando o sonho de infância: ser um cientista. Num futuro próximo, trabalhar com crianças que tenham inclinações para o estudo das ciências e das artes. Gostaria também, de poder desenvolver um centro educacional que trabalhe a cidadania como princípio fundamental da vida e da sociedade, instruindo nas diversas áreas do conhecimento, como os de defesa do consumidor, noções de direito constitucional, informática, e outros, que tenham como fim o engajamento-social em projetos diversificados. 114 Caminhadas de universitários de origem popular História de vida Rogério dos Santos Cardoso* Único fruto de uma relação inter-racial, carrego características de ambos os lados da família, mas identifico-me mais com a parte materna, devido à proximidade da criação e das relações de vínculo mais próximas, morando no mesmo bairro, e quando das mudanças (assunto que abordarei mais tarde), sempre morando muito próximo de parentes maternos. O relacionamento de meus pais foi marcado de forma bem interessante. Mamãe morava com uma tia minha (Maria Júlia) em meados de1982, e por morar com minha tia, teve muitas vezes que cuidar dos meus primos, dentre os quais ela sempre demonstrou um afinco maior com o sobrinho mais velho (Mário Sérgio). Por meio dele, conheceu papai. Benedito, na época esposo de tia Júlia, é negro. Mário Sérgio tinha o costume de ir ao encontro de “Sabonete” (apelido do pai dele), quando este vinha do trabalho e descia do ônibus. O grande problema é que todos os homens que desciam na mesma parada de ônibus e que tinham a fisionomia parecida com a do pai dele eram recebidos por ele como sendo seu pai, e em especial, Domingos (meu pai). Esse costume de confundir as pessoas com seu pai se tornou um grande problema para minha mãe, que era quem cuidava dele. Em meio a essas confusões de Sérgio em relação às pessoas que pareciam com seu pai, ele acabou fazendo com que os meus pais se conhecessem. Sendo fruto de um relacionamento de pessoas com certa experiência, devido a relacionamentos anteriores em que houve outros filhos, nasci em uma época crítica da conjuntura nacional, saindo de uma ditadura militar que durara vinte e um anos, permeada de problemas na área econômica: os planos econômicos e a inflação eram figuras carimbadas na vida cotidiana da população. Assim, mesmo com a experiência de meus pais, passamos por muitas dificuldades devido a esses momentos históricos do país, mas surgiu uma criança que carregou a esperança de vida de pais que se uniram para formar uma família e investir sobre ele os seus sonhos. Por isso, logo após o meu nascimento, meu pai viajou para o Estado de Mato Grosso em busca de emprego, onde trabalhou por dezenove meses. Com o dinheiro recebido, ajudou a suprir as necessidades da família que ficara no Maranhão. Nesse meio tempo, já tinha certa noção de mundo, e por não ter a figura do meu pai presente na primeira infância, tratei de substituí-la por um menino (filho de uma vizinha) que eu chamava de Babal. Desta época mamãe conta que, certa vez, caiu uma grande tempestade e a casa onde morávamos ainda não estava com o telhado completo, e quando a chuva chegou, foi um corre-corre, pois, com a casa descoberta, os poucos móveis que tínhamos estavam sendo * Graduando em Física na UFMA. Universidade Federal do Maranhão 115 encharcados pela água da chuva, e ela não podia fazer nada por estar cuidando de mim. Foi quando algumas vizinhas chegaram para nos ajudar com relação aos móveis e outra com uma capa para levar-me para sua casa. Com o passar do tempo, chegou o momento de ir para a escola: foi uma experiência muito interessante. Na época, tinha o prazer de levantar bem cedinho (por volta das cinco da manhã) para ir direto ao banheiro tomar banho, com medo de perder aula. Tinha um afinco muito grande para com a escola devido à consciência de minha mãe. Mesmo sob protesto de minha avó materna que dizia que seu netinho não tinha condições de estudar devido aos seus problemas de visão (miopia, astigmatismo e nistagmo horizontal, que faz com que eu balance a cabeça com se estivesse sempre negando tudo). Ela nunca desistiu de ver seu filho entrando em uma universidade. Para espanto de meus pais, eu sempre tive prazer em estudar no período da manhã, pois tinha prazer em levantar bem cedo. Minha vida escolar sempre esteve ligada a mudanças de cidade em busca de melhores oportunidades de emprego para meus pais, e em especial, para minha mãe. Essas mudanças começaram no ano de 1991, quando minha mãe foi convidada para trabalhar com o prefeito da cidade de Barreirinhas-MA (minha avó materna era cozinheira na casa do prefeito, e minha mãe acompanhara o processo das Diretas-Já, tendo participado da Constituinte). Fui morar com ela em Barreirinhas, enquanto meu pai ficou em São Luís. Morei lá um ano, o tempo de duração do contrato de mamãe, e terminei a Pré-Escola. Então, ocorreu uma nova mudança para São Luís. Antes de começar a 1ª série, minha mãe teve bastante dificuldade em matricular-me, em virtude de ter apenas seis anos. Quando comecei a 1ª série na Unidade Escolar Vila Embratel. Para meu tormento, meu nome não estava em nenhuma lista de alunos da 1ª série, e enquanto resolviam esse problema, tive que assistir aula na sala da minha tia (prima de papai) e experimentar suas unhas em minhas orelhas. Passada uma semana, resolveram meu problema, encontrando uma turma em que estudasse, e não podia ser melhor. Fui para a sala cuja professora era a vizinha à direita da minha casa. Era ótimo! As filhas dela escreviam para mim e eu nunca voltava para casa sozinho, pois já tinha encontrado minhas companhias. Ao final do ano, passei despreocupadamente. Surgiu outra mudança para Barreirinhas. No mês de julho de 1992, minha mãe foi convidada para participar da campanha de um dos candidatos a prefeito de Barreirinhas, e ao final da eleição, o candidato para o qual ela trabalhara, ganhara a eleição. Então, em 1993, mudamos novamente para Barreirinhas e mais uma vez meu pai permaneceu em São Luís, sob o argumento de serviço e isso acabou fazendo com que ele não estivesse presente na minha vida do modo que sempre quis. Em 1993, comecei a cursar a 2ª série na Unidade Escolar João XXIII, onde tenho como lembrança os momentos de estudo da tabuada que era feita com a famosa palmatória. Em 1994, outra mudança de escola; mudança esta que não aparece no meu Histórico Escolar. Fui para a Unidade Escolar Matos Carvalho, onde cursei a 3ª série e tenho como lembrança de lá os momentos de cantar o Hino Nacional antes de ir para a aula. 1995, mais uma mudança de escola, agora sob o pretexto de estarem colocando-me numa escola melhor. Fui para a Unidade Integrada Joaquim Soeiro de Carvalho. Desta escola tenho ótimas lembranças, lembro-me das brincadeiras no pátio, das aulas de Educação Física (que sempre eram futsal) e das brigas na saída da escola. No caminho pra esta escola, havia uma casa onde criavam perus, e lembro-me de que, ao ir para a escola, algumas vezes esses perus corriam atrás dos alunos, e era uma grande brincadeira ficar insuflando os perus 116 Caminhadas de universitários de origem popular à corrida. Em 1996, fui obrigado a ter que estudar no período vespertino, e foi nesse ano que tive a minha primeira nota abaixo de sete. A disciplina era Programa de Saúde, e o que mais me marcou foi o fato de que a nota baixa não foi pelas respostas, mas pela ortografia. Outra lembrança que carrego desta escola são as diretoras que ligavam para a Prefeitura para avisarem de cada bagunça que eu fazia na escola (e não foram poucas), para avisar das brigas, das vezes em que dava “rasteira” em colegas de sala, mas a pior das lembranças foi a da vez em que briguei com o filho da professora de Ciências (um cara metido e que, ao tirar um nota abaixo de nove, chorava literalmente para os professores darem ponto para ele). Ela disse-me que iria ficar reprovado. Lembro-me de que estudei consideravelmente até que, no 3º bimestre, já estava aprovado em Ciências. Este ano também foi ano de eleição e o candidato que o prefeito apoiava ganhou, mas por pressão de meu pai que já morava conosco (ele foi morar conosco no final do ano de 1994), minha mamãe deixou o emprego e voltamos para a capital. Com o sonho do plano real de estabilização econômica e emprego para todos. A saída de Barreirinhas representa novamente mudança de escola e uma volta à escola onde estudei a 1ª série, mas agora teria que enfrentar uma nova forma de ensino: a televisão. Passei somente uma semana na escola, e desta semana me lembro de diversos momentos que me marcaram profundamente, tais como: ter que assistir aula por uma televisão, a ausência da figura de um professor para cada disciplina, a ameaça constante do pessoal mais velho na escola em querer me bater, e em especial, ter que pagar merenda para dois rapazes (por ter um alto índice de repetência na escola, e eu nunca ter ficado reprovado, era um dos mais novos da sala e o mais baixo) para que eles fossem meus “seguranças”. Hoje, acho que eram eles que mandavam os outros me fazerem medo pra que eu pagasse merenda para eles. Mas graças a Deus, a semana passou. O processo pelo qual mamãe passou para que eu pudesse sair do “Vila Embratel” foi muito grande: foi à Secretaria de Educação do Estado às 07h da manhã e só chegou em casa às 23h (isso porque a matrícula era chamada de “Bem Fácil”), mas, depois de muita dificuldade, consegui mudar de escola. Então comecei a estudar na Unidade Integrada América do Norte, na Vila Embratel. Foi o momento de formar amigos, mas como parte de pessoal onde moro já estudava nesta escola, não tive muita dificuldade; além do mais, uma prima estudava comigo na mesma sala e um primo estudava na série anterior. Por meio deles, conheci aqueles que não conhecia. Mas nem tudo eram flores, a escola era muito pequena para a quantidade de alunos, foi então que dividiram as salas de aula nos seguintes horários: 07h10 às 10h55, 11h00 às 14h55 e das 15h00 às 19h20. Nesta divisão de horários, acabei tendo que estudar das 15h00 às 19h20, e não tinha coisa melhor do que ir para a escola depois de dormir no início da tarde. Lembro-me de que, nos finais dos horários de aula, tínhamos o costume de desligar o interruptor das lâmpadas e ficar na sala passando a mão em tudo o que encontrávamos pela frente. Neste mesmo ano (1997), tive contato com um grupo cristão que até então nunca havia conhecido: os Adventistas do Sétimo Dia, que começaram uma série evangelística próximo de minha casa. Logo após esta série, eu e meu pai resolvemos nos batizar nesta igreja, e no dia 27 de setembro de 1997, fomos batizados para honra e glória de Deus. Mas o comportamento na escola ainda não era dos melhores, com as brincadeiras, com a conversa, o mini-game, e em especial, as brigas; acabava sendo um dos mais indisciplinados, mas as notas eram sempre algumas das melhores da sala. A familiaridade com a Matemática sempre Universidade Federal do Maranhão 117 se destacava, em compensação a Língua Inglesa era a “pedra no sapato”, mas sempre dava um jeito de escapar dela, fazendo trabalhos para repor as notas baixas e assim por diante. No final do ano, estava aprovado, já com a expectativa da 7ª série. segundo alguns, esta série era o “bicho-papão” do 1º Grau. No ano seguinte, as brincadeiras aumentaram, pois, agora tinha um vizinho estudando na mesma sala (ele tinha sido expulso de sua antiga escola), foi aí que minha bagunça foi potencializada em toda a sua plenitude, “gazear” aula, bagunçar, colocar chiclete na cadeira dos professores, fumar, cheirar solvente, foram algumas das coisas que fiz na companhia dele, mas quase todas elas por pressão de grupo, para sentir-me parte dele. Foi nesta época que também entrei numa “galera” chamada abreviadamente de C.A. (Caçadores de Aventura). Nessa “galera” tive o primeiro e único contato com a maconha (acredito que não fez efeito em mim). Paralelo a isso, permanecia na igreja. Lembro-me de uma briga marcante que tive com um menino de uma outra área do bairro (rua 2), que na época era famosa por sua gangue e que já havia matado algumas pessoas, em que quebrei a boca dele e ele saiu dizendo que ia me pegar no dia seguinte, na entrada da escola. Disse que ia trazer a “galera” dele para resolver o problema, foi então que a diretora da escola soube da briga e avisou para os meus pais que, ao saberem do meu feito, foram logo tratando de tentar solucionar esse problema. No outro dia, não fui para a escola, e papai foi à casa do avô do menino para resolver a situação. Dois dias depois, pude voltar para a escola, sem risco de vida. Foi então, que minha mãe começou a notar a minha mudança em casa, o tipo de música que ouvia, o jeito de andar e as companhias com quem me envolvia, e começou a brigar para que, deixasse de andar com aquelas companhias, mas não adiantavam muito suas conversas. Uma forma que eu utilizava (sem que nem eu mesmo percebesse) eram as minhas notas que sempre permaneceram entre as melhores da turma. No final do ano, lá estava eu aprovado, querendo dar uma de dono da minha vida, sem perceber o mundo que estava me cercando. No meio de todo esse clima, fomos estudar no C.E.E.F.M. Profª. Dayse Galvão de Sousa. Uma das características do pessoal da minha sala era andar sempre um grupo de no mínimo quinze alunos pelo meio dos corredores da escola, mas por ironia, dois membros da galera da rua 2 estudavam na minha sala, mas os ânimos entres nós nunca se elevaram. Novamente tive contato com a televisão como professora, mas agora não tive mais chance de fugir dela, foi então que, em meio as peripécias que aprontava na escola, deixei meu nome duas vezes no Livro da Capa Preta (um livro onde eram anotadas as faltas graves dos alunos, e quem tivesse três faltas graves era expulso da escola). Uma por causa das placas de tombamento das carteiras, e outra por causa de uma bebida alcoólica que alguns membros da minha sala levaram para uma festa que estava sendo realizada na escola, e eu, pensando que fosse um refrigerante, acabei botando no meu copo. Ao prová-la, fui logo cuspindo o líquido, e para meu azar, acabou caindo no meu uniforme. Quando o diretor chegou, me levou para diretoria e começou a pressionar para que eu contasse quem havia levado a bebida, mas como nunca fui de botar culpa nos outros, disse que não era minha e não sabia quem era que havia levado para a sala. Mas em meio a tudo isso, passei por um momento de escolha na vida, como relatei anteriormente: minha mãe começou a pressionar para que eu deixasse algumas companhias e três fatos foram cruciais para a minha escolha: o envolvimento com as atividades do Clube de Desbravadores Tribo de Judá, a vontade de estudar no Liceu Maranhense e as lágrimas 118 Caminhadas de universitários de origem popular de uma mãe que já não sabia mais o que fazer para libertar o filho de certas companhias. Motivado pelos argumentos acima, comecei a estudar para a seleção do Liceu Maranhense.Como prêmio por minha mudança de atitude, fui agraciado com a melhor notícia da minha vida até então: fui aprovado na seleção do Liceu, e o melhor: o resultado saiu num Sábado (dia sagrado para adoração ao meu Deus). Agora já havia mudado meu estilo de vida, começara a me envolver mais profundamente com as atividades da igreja de que sou membro, e acabei deixando de ter contato com o pessoal que costumava conviver anteriormente. Com isso, meu relacionamento com meus pais, melhorou consideravelmente. Ao passar na seleção, sabia que a partir dali tinha a oportunidade de traçar novos caminhos e descobrir um novo estilo de vida. Com essa idéia fixa encarei a nova escola, agora com a experiência de alguém que já havia passado por momentos de altos e baixos na vida, mas consciente do meu papel na família e também com foco para o que queria alcançar (na época meu primo Sérgio, o mesmo que fez o papel de cupido para o relacionamento dos meus pais, havia acabado de passar no vestibular da UFMA) e tinha na mente que não poderia perder o foco. Escola nova, vida nova, Liceu Maranhense. No primeiro dia de aula, ganhei o apelido que carrego até hoje, Black; além disso voltei a estudar no período matutino, o melhor, no meu ponto de vista. Naquele dia já comecei bagunçando com dois alunos da mesma sala, apesar de nunca tê-los visto na vida, mas sabia que não podia perder o foco. Fiquei numa turma relativamente boa, embora existisse a formação dos grupos, que sempre se formam numa sala. Nós éramos bem unidos e eu tinha livre passagem em todos os grupinhos que se formaram na sala. Outra característica da nossa turma era a de sermos poucos homens, o que facilitava a formação do time de futebol (como nunca fui bom em futebol, acabei sendo um dos membros do banco que sempre entrava no segundo tempo do jogo). Surgiu, nesse momento, outro empecilho na minha vida escolar: a Química. Matéria que me levou para a primeira prova final da minha existência. Ao término daquele ano, não mais era conhecido pelo nome, e sim, pelo apelido. Neste ano, participei do meu primeiro acampamento como desbravador, foi uma ótima experiência. Havíamos passado o ano todo estudando para o Programa de Seleção Gradual da UFMA, mas sabia que não estava preparado para a prova, e então surgiu a oportunidade de fazer a prova para o CEFET-MA. Fiz e fui aprovado para o curso de Materiais, mas por causa da minha situação financeira, não tive condições nem de fazer a matrícula. A aprovação na prova do CEFET tirou um fardo das minhas costas em relação à nota no PSG I, mas no final acabei sendo bem, sucedido na prova, para minha surpresa. 2001, 2ª série do Ensino Médio. Já sabia que área iria seguir: Física. Era a matéria com a qual mais me identificava. Além disso, não queria cursar Matemática, pois Sérgio já o cursava, e não queria ser a sombra dele. Aprendi jogar xadrez neste ano, e a partir daí, jogava no meio das aulas, no corredor, na saída, em quase todos os lugares. Fiz deste jogo um estilo de vida e o argumento que eu usava era que era um jogo de cálculo, como as matérias com que sempre tive afinidade. Lembro-me das aulas de Biologia, História e de Língua Portuguesa, em que tive não professores, mas mestres. No PSG II tive uma queda de produção, mas nada muito significativo. Terceirão, já era agora veterano, e como tal, tinha que sair “impondo” autoridade sobre todos os calouros que pudesse encontrar pela frente, mas não era apenas isso: era meu último ano. Tinha que ter foco muito mais do que nos outros anos, mas sempre carregando Universidade Federal do Maranhão 119 comigo o xadrez. No ano anterior, papai tinha ido para Barreirinhas trabalhar e nunca mandava dinheiro algum para mamãe ou para mim. Já estava no seu segundo ano em Barreirinhas e nada tínhamos que ele houvesse conseguido. Foi aí que minha mãe foi aprovada no seletivo da prefeitura de São Luís para agente de Saúde, e mesmo ganhando menos de um salário-mínimo na época, conseguíamos milagrosamente (aí vejo a intervenção de Deus) suprir as necessidades que tínhamos. Este ano era também um ano decisivo para mim e para todos da minha turma: era o meu último PSG. Estávamos todos ligados em nossos estudos, seguíamos um roteiro detalhado das disciplinas e dos assuntos que iriam cair na prova, nunca estudara tanto na minha vida. No mês de abriu de 2003, (num Sábado), logo ao chegar da igreja, recebi o telefonema de um colega de turma com a notícia de que havia passado no PSG em segundo lugar para o curso de Física. Foi aí que senti o maior prazer da minha vida: ver minha mãe chorando de alegria ao saber que eu havia passado e iria cursar uma faculdade. Duas semanas depois, já estavam começando as aulas. O início foi bem complicado, pois trazia falhas de formação no Ensino Médio além do vício do xadrez. Em 2004, tive a primeira experiência de morar sozinho. Minha mãe foi para Barreirinhas e meu pai já estava por lá, então tive que passar a viver sozinho (minha mãe sempre me dizia que ela estava me criando para a vida). Paralelo a isso, obtive minhas primeiras reprovações: reprovei em três disciplinas em que estava matriculado. Foi então que tomei noção de que já havia passado a época das brincadeiras. No quarto período, concentrei-me em todas as disciplinas que estava cursando, mas infelizmente, reprovei novamente em Física II. Desta vez reprovei consciente de que havia dado o meu melhor, e não podia culpar-me de ter relaxado (na prova final quem “colou”, passou, mas preferi ficar reprovado, preservando assim minha consciência limpa: Quarto mandamento da Lei do Desbravador). Neste mesmo período, terminei a Classe de Líder de Desbravadores e fui investido no Camporee Reedificai o Templo (acampamento de todos os Clubes de Desbravadores de uma determinada região); na época já era diretor associado do Clube Tribo de Judá. Já o ano de 2005, foi o ano da “virada de mesa”, consegui passar em Física II. A partir daí, o tabu das reprovações foi vencido, ainda era diretor associado do Clube, mas agora acumulava o cargo de regional associado. Ajudei com a organização do Camporee “Com os olhos no Céu”, e no curso comecei a me organizar. Neste mesmo ano, conheci uma pessoa que me marcou muito, Raquel, mantivemos um relacionamento por nove meses, mas por ela pertencer a uma família branca, a pressão de seus familiares começou a afetar nosso relacionamento. Ao perceber que ela estava no meio de um conflito entre mim e a família dela, resolvi terminar o nosso relacionamento (é pedir demais para alguém de 16 anos escolher entre família e namorado). Aprendi uma lição para toda a vida. Até então, achava que poderia resolver todos os problemas que surgissem diante de mim, sem machucar-me, mas depois dessa experiência, descobri que certas situações estão além de minhas possibilidades de solução. Já o ano de 2006, foi um ano de descobertas, fui eleito para ser diretor do Clube de Desbravadores Tribo de Judá. Sob minha direção, tive a oportunidade de organizar o primeiro Camporee do clube intitulado Heróis da Fé (título esse que vivi até o último momento em toda a sua plenitude). Pude, através do cargo de direção, ajudar no desenvolvimento dos membros do clube dos pais, e assim, da comunidade da Vila Embratel; comunidade que sempre me acolheu de braços abertos e com quem tenho uma relação de respeito e de carinho. 120 Caminhadas de universitários de origem popular