Antropolítica No 27 2o semestre 2009 ISSN 1414-7378 Antropolítica Niterói n. 27 p. 1-302 2. sem. 2009 © 2010 Programa de Pós-Graduação em Antropologia UFF Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-900 - Niterói, RJ - Brasil Tel.: (21) 2629-5287 - Telefax: (21) 2629-5288 - http:///www.editora.uff.br - E-mail: secretaria@ editora.uff.br É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Normalização: Caroline Brito de Oliveira Revisão: Ricardo Borges Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica: José Luiz Stalleiken Martins Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP A636 Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia — n. 27, 2º sem. 2009, (n. 1, 2. sem.1995). Niterói: EdUFF, 2009. v. : il. ; 23 cm. Semestral. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. ISSN 1414-7378 1. Antropologia Social. I. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Antropologia. CDD 300 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor Roberto de Souza Salles Vice-Reitor Emmanuel Paiva de Andrade Pró-Reitor/PROPP Antonio Carlos Lucas de Nóbrega Diretor da EdUFF Mauro Romero Leal Passos Diretor da Divisão de Editoração e Produção: Ricardo Borges Diretora da Divisão de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pereira de Moraes Assessoria de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos COMISSÃO EDITORIAL DA ANTROPOLÍTICA Delma Pessanha Neves (PPGA / UFF) Laura Graziela F. F. Gomes (PPGA / UFF) Marco Antonio da Silva Mello (PPGA / UFF) Simoni Lahud Guedes (PPGA / UFF) Editora filiada à Conselho Editorial da Antropolítica Luiz de Castro Faria (PPGA/UFF) (In memorian) Ana Maria Gorosito Kramer (UNAM – Argentina) Anne Raulin (Paris X – Nanterre) Arno Vogel (UENF) Charles Freitas Pessanha (UFRJ) Charles Lindholm (Boston University) Claudia Lee Williams Fonseca (UFRGS) Daniel Cefaï (Paris X – Nanterre) Edmundo Daniel Clímaco dos Santos (Ottawa University) Eduardo Diatahy Bezerra de Meneses (UFCE) Eduardo Rodrigues Gomes (PPGCP/UFF) João Baptista Borges Pereira (USP) Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (UFPE) Lana Lage de Gama Lima (UENF) Licia do Prado Valladares (IUPERJ) Luís Roberto Cardoso de Oliveira (UNB) Marc Breviglieri (EHESS) Mariza Gomes e Souza Peirano (UNB) Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho (UFRJ) Raymundo Heraldo Maués (UFPA) Roberto Augusto DaMatta (PUC) Roberto Mauro Cortez Motta (UFPE) Ruben George Oliven (UFRGS) Sofia Tiscórnia (UBA) Sumário Nota dos editores, 7 Dossiê: Dinâmica de Identidades sociais e politização de alteridades culturais, 9 Apresentação: Comitê editorial da Revista Antropolítica Especificidades da identidade de descendentes de italianos no sul do Brasil: breve análise das regiões de Caxias do Sul e Santa Maria, 21 Miriam de Oliveira Santos e Maria Catarina Chitolina Zanini Novos sujeitos de direitos e seus mediadores – uma reflexão sobre processos de mediação entre quilombolas e aparelhos de Estado, 43 Maristela de Paula Andrade “A retórica da tradição”: notas etnográficas de uma cultura em transformação, 63 Gilmar Rocha Ciranda e profissionalização: reflexões a partir de “Os Coroas Cirandeiros”, 85 Lysia Reis Condé Artigos Entre olhares antropológicos e perspectivas dos estudos culturais e póscoloniais: consensos e dissensos no trato das diferenças, 97 Andreas Hofbauer A construção do objeto quilombo: da categoria colonial ao conceito antropológico, 131 Véronique Boyer Colonização agrícola dirigida e construção de parceleiros tutelados, Pedro Fonseca Leal 155 Cultura jurídica nacional: símbolos e comportamentos autoritários permeados pelo discurso democrático, 183 Débora Regina Pastana Conflitos políticos e intolerância religiosa em Alagoas na Primeira República, 203 Ulisses Neves Rafael Resenhas Livro: BARROS, Benedita da Silva; GARCÉS, Claudia L. López; MOREIRA, Eliane C. Pinto; PINHEIRO, Antônio do Socorro F.(org.). Proteção aos conhecimentos das sociedades tradicionais. Belém: Centro Universitário do Pará – CESUPA / Museu Paraense Emílio Goeldi, 2007. 341 p. Autor da Resenha: Bruno C. Brulon Soares, 225 Notícias do PPGA Relação de dissertações defendidas no PPGA, 233 Relação de teses defendidas no PPGA, 263 IV Jornada de Antropologia dos Alunos do PPGA/UFF, 269 Revista antropolítica: números e artigos publicados, 275 Coleção antropologia e ciência política (livros publicados), 297 Normas de apresentação de trabalhos, 301 Contents Editors note, 7 Dossier: Dynamics of social identities and the politicization of cultural alterities, 9 Foreword: Editorial Committee of Antropolítica Journal Specificities of the identity of descendants of iItalians in southern Brazil: a brief analysis of the regions of Caxias do Sul and Santa Maria, 21 Miriam de Oliveira Santos and Maria Catarina Chitolina Zanini New Subjects of Rights and their Mediators – a reflection on processes of mediation between decendents of runaway slaves and state apparatus, 43 Maristela de Paula Andrade “The retoric of tradition”: ethnographic’s Notes of a culture in transformation”, 63 Gilmar Rocha Cirandas and professionalization: reflections on the group “Os Coroas Cirandeiros”, 85 Lysia Reis Condé Articles Between anthropological perceptions and the perspectives of the cultural and postcolonial studies: consensuses and discordances in the treatment of differences, 97 Andreas Hofbauer The construction of the quilombo object: from colonial category to anthropological concept, Véronique Boyer Directed agricultural colonization and construction of protected sharecroppers, Pedro Fonseca Leal 155 131 Juridical cultures: Legal systems: symbols and authoritarian behavior permeated by the democratic discourse, Débora Regina Pastana 183 Political conflicts and religious intolerance in Alagoas in the First Republic, 203 Ulisses Neves Rafael Reviews Book: BARROS, Benedita da Silva; GARCÉS, Claudia L. López; MOREIRA, Eliane C. Pinto; PINHEIRO, Antônio do Socorro F.(org.). Proteção aos conhecimentos das sociedades tradicionais. Belém: Centro Universitário do Pará – CESUPA / Museu Paraense Emílio Goeldi, 2007. 341 p. Reviewed by: Bruno C. Brulon Soares, 225 PPGA News PhD Thesis defended at PPGA, 233 Thesis defended at PPGA, 263 4th Journey’s Antropology Students of PPGA/UFF, 269 Revista Antropolítica: numbers and published articles, 275 Published Books Coleção Antropologia e Ciência Política, 297 Norms for Article Submission, 301 Nota dos Editores Neste número 27 da Antropolítica, coorespondente ao segundo semestre de 2009, reafirmamos nossa intenção de utilizar este veículo de comunicação para tornar pública nossa produção acadêmica, abarcando o corpo docente e discente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, mas também autores vinculados às redes institucionais com as quais mantemos intercâmbios sistemáticos, bem como acolher, com muita honra, diversos autores que elegem esta revista como meio de publicação de sua própria produção. A demanda por publicação vem se ampliando, condição que tem nos permitido, no processo de leitura dos textos encaminhados, induzir aproximações temáticas e metodológicas entre os inúmeros artigos que nos foram submetidos e aprovados pelos pareceristas. Agregamos, neste número 27, quatro artigos em torno da questão Dinâmica de identidades sociais e politização de alteridades culturais, título de dossiê que corresponde a uma das sessões da estrutura da revista. A pertinência da agregação dos artigos demonstra não só preocupações relativamente comuns de vários antropólogos e seus respectivos programas institucionais, como também revela questões sociais candentes na sociedade brasileira contemporânea. Fomos, assim, sensibilizados a colaborar na expansão do debate em torno de processos de construção de identidades sociais, bem como em torno de investimentos políticos de distinção cultural, com os quais diversos antropólogos colaboram como pesquisadores e assessores, revelando facetas diferenciadas e concomitantes ou complementares do fazer antropológico. Na sessão “Artigos”, a intenção editorial é a agregação de temas diversos, publicados conforme as demandas individuais dos autores. Neste número, apresentamos desde textos de intenções mais teóricas e revisionistas da produção antropológica, como os dois primeiros, até contribuições que acompanham diversas faces da ação do Estado e da construção democrática, além de campos de tensão que permeiam a convivência de diferenciadas ações religiosas. Mediante publicação de resenhas, estimulamos nossos alunos à inserção no mundo acadêmico pelo exercício de tomada de posição frente à bibliografia de interesse mais imediato, bem como acolhemos outras contribuições pertinentes. Nas “Notícias do PPGA”, temos o orgulho de publicar o programa da IV Jornada de Antropologia, comemorativa dos 15 anos de existência do Programa, evento pelo qual os alunos organizam alternativas de debate e contraposição entre nosso corpo docente e discente, mas incluindo como proposta fundamental a participação de professores ou pesquisadores de instituições externas, que 8 assim colaboram na discussão dos trabalhos acadêmicos a que os alunos se dedicam no decorrer do curso, na elaboração da dissertação ou tese. Sendo um evento anual, iniciativa sistematicamente reproduzida pelos alunos, orgulhamo-nos pela demonstração da maturidade intelectual e desvelo com que se profissionalizam. Continuamos a disponibilizar os números publicados da Revista Antropolítica no site www.uff.br/ppga, facilitando assim o acesso dos interessados e honrando os autores que escolhem a revista como meio de circulação de idéias, dando ampla divulgação à reflexão de questões que quiseram tornar públicas. E assim, reafirmamos um dos objetivos da revista, a de circular idéias no campo acadêmico brasileiro, mas também naqueles em que autores e leitores dominam a língua portuguesa. Comitê editorial da Revista Antropolítica - UFF Antropolítica Niterói, n. 27, p. 7-8, 2. sem. 2009 Dossiê: Dinâmica de identidades sociais e politização de alteridades culturais Comitê Editorial da Revista Antropolítica Apresentação Os artigos que compõem este dossiê – Dinâmica de identidades sociais e politização de alteridades culturais – convidam à reflexão sobre conceitos associados como identidade social, memória coletiva e dinâmica cultural, todos bastante utilizados nas ciências sociais, diríamos mesmo, bastante explorados, além de, por vezes, abundantes na linguagem política. Todavia, conforme demostram os autores, também importantes para compreender uma série de fenômenos sociais da contemporaneidade. Muitos desses fenômenos se apresentam mais visíveis no atual contexto socioeconômico e político, de investimentos públicos no sentido da construção de reconhecimentos da diversidade de produção de formas de existência social. Correlativamente, da produção de situações e eventos constitutivos da definição e consolidação do sistema democrático de organização social, de exercício de cidadania representativa. Tais reivindicações políticas pressupõem a produção de diferenciadas formas de pensar e agir, portanto, de reconhecimento da crescente diversidade de referências culturais. Tão recorrentes aqueles conceitos, o leitor, ao identificar a temática geral deste dossiê, pode então imaginar: Mas ainda há o que se dizer sobre identidade social ou tradição cultural? E imediatamente poderíamos responder: Então, por que tantos movimenos memorialistas no atual contexto? 12 Ora, como aqueles conceitos integram a formação dos cientistas sociais e criam os meios de comunicação entre eles próprios e os públicos com os quais têm interesse em interagir, estão na ordem da produção acadêmica, porque também na ordem da produção da vida social. Sendo de usos tão recorrentes, são por vezes descredenciados, tendo em vista significados assim banalizados. Não obstante, são inerentes ao sentido da produção dos cientistas sociais: compreender a capacidade de produção e reprodução das relações sociais segundo parâmetros formulados pela elaboração contextual de significados. Por conseguinte, são de tamanha utilidade e amplitude, como todos os autores demonstram, que eles, por tais circunstâncias, exigem exercícios de explicitação dos conteúdos empregados e dos respectivos processos de constituição. Este exercício metodológico é cuidadosamente praticado em todos os artigos. Frente a questionamentos recorrentes sobre formas de construção de grandes memórias – memórias coletivas politicamente mais assentadas e, assim, supostamente homogeneizadas –, grupos sociais reivindicam a produção de memórias singulares e diferenciadas. Memórias fragmentadas e destinadas a fazer diluir relações de poder que fundamentaram os marcos impositivos de sistemas de posições sociais correspondentes àquelas formas de cristalização de hegemônicas visões de mundo. Sob movimentos de desvalorização de memórias coletivas recomendadas como únicas e, correlativamente, de valorização de memórias múltiplas e questionadoras de história imposta, enfim, diante de processos de luta pelo reconhecimento de singularidades de formas de vida, os antropólogos operam em contextos oportunos para registro e compreensão de formas de constituição de espaços sociais propiciadores dos investimentos na distinção política de grupos sociais. Em todos os casos estudados, os autores focam em pesquisas empíricas em torno de grupos que reclamam o reconhecimento político e o pertencimento social, investindo para que as fronteiras simbólicas dos universos sociais assim reclamados, sejam reconhecidas, ora como conformadoras de comunidades de origem ou de percursos comuns, ora de projeção de destinos sociais estimados, ora de memória coletiva em busca de reconhecimento. Portanto, os artigos trazem como questão fundamental do exercício antropológico, o papel constitutivo e constituinte do imaginário social na institucionalização de práticas e formas de contraposição; reportam à compreensão de práticas de grupos em relação contrastiva, de modos de produção de discursos referenciadores das experiências comuns. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 11-20, 2. sem. 2009 13 Então, desde já se justifica a agregação dos artigos neste dossiê: em todos sendo demonstrado que, para se compreender a natureza das relações sociais vividas pelos grupos que foram privilegiados para efeitos do estudo de situações empíricas, importa compreender como elas são pensadas e vividas, que modos de vida e crenças configuram as identidades sociais. Essas questões analíticas atravessam, diferentemente, todos os textos. Separando o exercício analítico daquele correspondente aos fenômenos delimitados para objetos de pesquisa, os autores insistem na distinção entre as relações conceituais que delimitam seu próprio universo de significações, e aquelas sobre as quais pretendem compreender, para tanto explicando os processos de produção de distinções sociais e políticas de grupos e, assim, de construção de identidades sociais. Todos então investem no combate a concepções objetivistas, essencialistas, primordialistas ou substancialistas da identidade social, da cultura e da tradição, empenhando-se em fazer cair por terra qualquer pretensão inocente de pensar experiências passadas como memorizadas a partir da idéia de conservação e recuperação; mesmo que os agentes, em cada situação, no afã do reconhecimento e de produção da vida social, reivindiquem tais pressupostos. Importante recurso da construção da identidade social, a memória coletiva, tão valorizada no contexto como portadora de atributos de definição da tradição, não pode ser definida como restituição ou reprodução do passado; mas um conjunto de marcas na reconstrução referenciada aos outros que se encontram em jogo nos termos da vida social em causa; ou um conjunto de referências ao passado, fundamentadas neste mesmo jogo social, implicando estratégias de investimentos no que deve vir a ser mediante a contraposição ao que se admite que se foi. A originalidade de cada caso estudado incide sobre a demonstração do como e do porquê tais traços ou atributos sociais são dramatizados e reivindicados no processo de valoração de uns vis-a-vis os outros. Por conseguinte, o que está em jogo é a forma como os homens se tornam seres sociais e culturais se transfigurando e se convertendo por diversas versões coletivamente consentidas. Este tornar-se ser social é, no tempo e no espaço, da ordem da incomensurabilidade. Os casos aqui analisados são apenas alguns exemplos. Destacamos ainda que todos os autores entram em acordo quanto à perspectiva conceitual e metodológica de que a identidade social representa formas de cristalização de conquistas obtidas ou de contraposições, em meio a processos mais ou menos conflitivos, processos que permitem então compreender a construção social da visão de si mesmos vis-a-vis Antropolítica Niterói, n. 27, p. 11-20, 2. sem. 2009 14 o mundo social imediatamente referenciado. Integram os universos de agentes em estudo, tanto aqueles identificados como pertencentes aos grupos sociais em pauta, como os demais agentes em interação e em contraposição. Nós antropólogos argumentamos: tais reflexões pressupõem a valorização do estudo dialógico das relações sociais em causa, a depender da situação social. Defendemos então a relevância da temática deste dossiê, do mesmo modo que afirmamos a diversidade de formas com que individuos e grupos compartilham práticas e representações sociais, sistemas de crenças, de lembranças, de sentidos para a vida coletiva. Tão diversas que só podem ser conhecidas pelo estudo de como se apresentam em cada caso. Iniciamos a organização do dossiê pelo artigo “Especificidades da identidade de descendentes de italianos no sul do Brasil: breve análise das regiões de Caxias do Sul e Santa Maria”, de Miriam de Oliveira Santos e Maria Catarina Chitolina Zanini. Elas colaboram para a reflexão da temática, considerando alguns dos possíveis desdobramentos de processos de imigração, situação especial de provimento na construção de identidades culturais. Assumindo a importância da perspectiva construtivista de análise para pensar os processos e o campo institucional em jogo na constituição identitária, as autoras enfatizam a construção contextual de atributos sociais, expressões de processos de atribuição de significados sociais na interação entre agentes sociais privilegiadamente qualificados pela alteridade. Para valorizar a singularidade situacional do processo em pauta, elas constroem parceria intelectual no estudo comparativo de casos, cada uma demonstrando como os agentes sociais participam de maneiras diferenciadas das definições de modos coletivos de viver e interagir. Os dois casos são selecionados de experiências vividas por descendentes de italianos no estado do Rio Grande do Sul, mas cada um compreendido por contextos próprios referentes aos municípios de Caxias do Sul e Santa Maria. Como o processo de imigração propiciou a convivência de individuos e grupos referenciados a nacionalidades diversas, mesmo que em tese tais experiências fossem respostas a reajustamentos populacionais correspondentes à elaboração e à objetivação de projetos de reprodução familiar valorada pela autonomia da atividade agropecuária e artesanal, as experiências apontam para a diversidade de práticas. Reconstituindose no espaço do outro, imigrantes italianos construíram e responderam à construção de atributos sociais, alguns deles ainda transmitidos como legados a gerações sucessivas. As autoras refletem então sobre a produção Antropolítica Niterói, n. 27, p. 11-20, 2. sem. 2009 15 de sinais de tipificação e adscritivos comuns, tais como valores associados ao pioneirismo, à reafirmação do trabalho e da família, recursos fundamentais para projeção e objetivação de estratégias de ascensão social. Mesmo que haja valores em comum na estruturação dos processos de integração, as autoras demonstram o quanto a denominação imigração italiana está longe de corresponder a um fenomeno homogêneo, como pode insinuar a utilização genérica do termo. Para dar conta da especificidade de cada caso, as autoras destacam os processos de negociação interativa, valorizando a relação entre cultura e identidade, tal como o fazem outros tantos autores com os quais elas entram em acordo, especialmente os que se dedicam àquela reflexão no contexto da globalização. Por esta afiliação, os autores por elas anunciados, também defendem o reconhecimento de qualificações que definem certos universos culturais como culturas hibridas; também advogam o compartilhamento de princípios que orientam o engajamento necessário aos investimentos no sentido da substantivação desejada; e também consideram a institucionalização de símbolos fundamentais à conformação de uma crença coletiva nos modos de distinção de grupos sociais. Relevam então o caráter imaginário da constituição da prática social dos grupos e dos termos da construção de reivindicações socialmente reafirmativas. E, nesses termos, também valorizam a produção de discursividades, algumas socialmente institucionalizadas para efeitos de produção de memória coletiva. Além do estudo dos recursos de textualização discursiva, as autoras tomam como unidade de análise alguns dos eventos significativamente valorizados, recursos operacionais à demonstração dos modos de construção de percursos consagrados de alteridades. Fazem então referência a movimentos sociais, apreendidos pela dinâmica das trajetórias em jogo, que em muito devem sua existência a outros tantos engajamentos coletivos na construção de outras identidades culturais. Para citar um exemplo, destacaríamos a identidade ítalo-gaucha, por meio da qual os agentes integram processos enriquecedores dos sentidos e sinais diacríticos que os grupos utilizam para delimitar as fronteiras de pertencimento, substantivadas na crença numa origem comum ou numa tradição própria. Reafirmando o mesmo princípio metodológico defendido por todos autores que compõem o dossiê, qual seja o entendimento da construção da identidade pela análise do caráter contextual de suas possibilidades de significação, seguimos enfatizando a contribuição de Maristela de Paula Andrade, no artigo “Novos sujeitos de direitos e seus mediadores – uma reflexão sobre processos de mediação entre quilombolas e Antropolítica Niterói, n. 27, p. 11-20, 2. sem. 2009 16 aparelhos de Estado”. A autora demonstra a constituição de campos de mediação cultural, inerentes ao processo de construção institucional de indentidades distintivas. E o faz analisando processos de construção de quilombolas como sujeitos políticos, processos que deslancharam enquanto desdobramentos da luta no sentido de inscrever direitos específicos na Constituição Brasileira de 1988. Os processos de luta não se esgotaram aí. Pelo contrário, a inclusão de tais princípios de definição oficial operou como oportunidade fundamental para a emergência de multiplos processos de reivindicação e luta, não só no sentido da objetivação dos termos inscritos, mas também de sua melhor adequação à diversidade de situações, à viabilidade de produção de meios de representação ou de espaços públicos para encaminhamento de reivindicações. Dado à transversalidade das questões políticas em jogo e à diversidade de sentidos que eram assim produzidos, formas de dependência intelectual foram se constituindo. Exigiu-se assim a construção de mediadores projetados do próprio grupo ou emergidos em outros espaços institucionais integrados a esse campo de mediação cognitiva e de produção de sentigos políticos. Portanto, espaços de aprendizagem da negociação e da representação delegada, mas também de expressão dos desdobramentos das formas de integração social que foram então sendo qualificadas. Destacamos então a demonstração mais sistematizada de Maristela de Paula Andrade, porque tomada como o próprio objeto de estudo, no que tange aos princípios de interdependência ou de construção de redes de interconexão na prática de construção e redefinição de identidades sociais. Entre outras contribuições destacamos no artigo de Maristela de Paula Andrade o exercício demonstrativo da produção de meios e recursos e da redefinição de papéis formais, diante de outros arranjos institucionais e da construção de espaços próprios à visibilidade e à estruturação do que a autora qualifica como questão quilombola. Para construção do sujeito quilombola e todos os atributos inerentes a esta existência social pela participação política e jurídica em questão, diversos recursos se fizeram e se fazem necessários como instrumentos intercambiadores da comunicação entre representantes de posições diferenciadas: jornais, passeatas, congressos, seminários, relatórios, produção de conhecimentos acadêmicos. A diversidade desses recursos corresponde assim à construção da diversidade dos agentes mediadores inerentes aos processos em marcha. Portanto, a contribuição demonstrativa, fundamentada em longo trabalho de pesquisa e assessoria, impede qualquer crença na definição substantivada ou essencializada do quilombola. E nos coloca diante de processos de investimentos no sentido da re-historicização de grupos Antropolítica Niterói, n. 27, p. 11-20, 2. sem. 2009 17 sociais que, outrora, viviam também distintivamente, contudo a partir de outros sinais diacríticos. E entre eles, um dos mais consensualmente reconhecidos, fundamentava-se no privilegiamento do aspecto racial. Prosseguindo na valorização das contribuições demonstrativas da diversidade de situações empíricas, mas também da importância dos cuidados metodológicos sistematicamente anunciados por todos os autores, integramos o artigo de Gilmar Rocha, intitulado “A retórica da tradição: notas etnográficas de uma cultura em transformação”. O autor toma como objeto de análise, diante do contextual processo de espetacularização do circo no Brasil, tal como enfatizam as recentes reapresentações do Cirque du Soleil e a criação proliferante de inúmeras companhias, trupes e escolas de circo em várias cidades do país, a produção de discursos sobre o sentido da tradição em processos de modernização, questão que veio sendo enfatizada por todas as autoras precedentes, mas doravante tomada como unidade analítica pelos autores que se seguem. Instigado pela compreensão dos motivos pelos quais as apresentações e constituições de unidades circenses alcançam tamanho sucesso, o autor constrói a questão analítica em torno dos sentidos que vêm sendo atribuídos à cultura nas sociedades contemporâneas, questão que, como sabemos, percorre as trajetórias de constituição da disciplina antropológica. Como indica o título do artigo, o autor se dedica à análise de sentidos atribuídos à tradição frente ao processo de modernização da cultura circense no Brasil, mas não só: faz revelar especificidades do fenômeno a partir de démarches contrastivas entre o caso estudado – por longo trabalho de campo: o Grande Circo Popular do Brasil (Marcos Frota Circo Show), e a literatura acadêmica e jornalística produzida sobre outros tantos casos de reprodução e reinvenção daquela expressão cultural. O exercício antropológico se situa, por um lado, entre o diálogo produzido a partir da análise da produção acadêmica do caso em foco e, por outro, a partir das múltiplas interpretações a que os antropólogos têm se dedicado quanto às possibilidades de ressignificação do conceito de cultura nas sociedades contemporâneas. O autor do artigo reivindica então o reconhecimento de sua contribuição empírica e epistemológica ao estudo da “eficácia simbólica” da “retórica da tradição”, perfilando, em correlação, um profícuo diálogo com diversos antropólogos contemporâneos, mas também com aqueles que se consagram pelas reflexões em torno da temática da reinvenção da tradição ou da economização da cultura. Quanto a este último aspecto, destacam-se os investimentos no sentido de eleger manifestações culturais estilizadas enquanto fatores enriquecedores e diversificadores de processos de desenvolvimento social Antropolítica Niterói, n. 27, p. 11-20, 2. sem. 2009 18 local ou territorial (e político, para concatenarmos com a contribuição das autoras precedentes). Em consonância com os princípios analíticos cultivados por antropólogos, adverte o autor: o novo não significa ruptura, especialmente quando se contrapõe à tradição. Pelo contrário, tradição e modernidade não são excludentes, porque a modernidade é, até certo ponto, o refundamento ou, para nos valermos de expressão consagrada: “reinvenção da tradição”. Manter a tradição é manter a modernidade, mesmo que politicamente a tradição venha a ser defendida pela competência de quem se coloca acima da vida social e define verdades. Para mais facilmente entrarmos num acordo, basta acompanharmos os diversos campos de concorrência e a expressão de conflitos sociais que subjazem à definição do que é moderno ou tradicional; e assim verificarmos os atos de violência simbólica: o reconhecimento de que a definição não é um dado, não corresponde a uma expressão naturalizada, ainda que seja esta a grande questão que sustenta as lutas simbólicas definidas em campos de poder específicos. Da mesma forma, basta acompanharmos as tentativas de definição dos princípios de inclusão e exclusão, dos de dentro e dos de fora, dos establecidos e dos recem-vindos ou impostores, para reconhecermos que são exercícios de classificação socialmente construídos, como já nos apontavam Durkheim e Mauss. Associando as diversas contribuições dos autores já apresentados, poderíamos estimular os leitores, por uma análise também contrastiva, a refletirem sobre alguns processos de construção distintiva de estilos de vida, de modos de compartilhar e, assim, de pensar se representando, e, em se representando – em geral contrastivamente mas não só, também aos outros eleitos cúmplices diretos ou indiretos de pertencimentos aos mesmos universos de significação e reconhecimento de práticas sociais. Tal é o caso dos que se definem como circenses tradicionais que, geneticamente e por estilo de vida, se pensam fundadores, legítimos definidores do que é a cultura circense. Nesses termos, ela é representada sacralizadamente, levando em conta a contraposição aos modos de construção dos negócios e às formas racionalizadas de uso do corpo que são atribuídas às outras tentativas de representação da reivindicada arte. Este também é o caso do grupo de músicos de ciranda em Paraty, Rio de Janeiro, que se pensam os mais tradicionais, os mais verdadeiros, contrapondo-se aos aventureiros. Não obstante, por esta reivindicação distintiva, promovem as condições para alcançarem o status de profissionais, dotados de racionalidade mínima que esta posição pressupõe. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 11-20, 2. sem. 2009 19 Incorporamos então, entre as diversas contribuições dos autores aqui integrados, aquela apresentada por Lysia Reis Condé, quando também se dedica a refletir sobre a construção social distintiva de identidades, sobre modos de operacionalização de exercícios políticos de produção de sentidos atribuídos à tradição, assim erigida como competência inerente à posição de quem outrora e atualmente foi responsável pela execução da dança. Incluímos, em referência a esses objetivos. No artigo “Ciranda e profissionalização: reflexões a partir do ‘Os Coroas Cirandeiros’”, produtos da dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense, Lysia Reis Condé considera a valorização da tradição como prestação de serviços, num contexto socioeconômico de implementação do turismo como atividade econômica municipal. Mediante tal proposta, analisa o processo pelo qual a ciranda, como ela mesma define: saber e forma de se expressar musicalmente outrora aprendidos como atributos da socialização de agricultores e pescadores em seus meios de origem, passou a ser oferecida sob a forma de serviço cultural no município de Paraty, RJ. Entre e correlativamente aos diversos grupos que disputam as oportunidadades de prestação desse serviço e que, por vezes, concorrem na definição da ciranda como verdadeiramente tradicional, a autora, por perspectiva relacional, analisa a experiência social dos integrantes do grupo “Os Coroas Cirandeiros”. Assim se integrando no campo de prestação de serviços culturais, especialmente voltados para turistas nacionais e estrangeiros, os componentes de “Os Coroas Cirandeiros” empenham-se, mediante desejo compartilhado, para serem socialmente reconhecidos pelo exercício dessa atividade cultural economicamente redimensionada e, também como músicos profissionais. Este desejo em grande parte alimenta e é alimentado pela dotação de recursos, inclusive financeiros, para enfrentamento dos desafios e dilemas inerentes à sistemática prestação de serviços. Nessa condição pretendida, poderiam, frente aos demais, se firmarem competitivamente no mercado turístico. Em consenso – por nós sinalizado – com os demais autores, Lysia Reis Condé investe na demonstração do contexto econômico e social em que a ciranda, enquanto expressão da singularidade histórica da formação cultural de habitantes do município, veio a ser valorizada como recurso importante na definição das particularidades turísticas do município de Paraty. Isto, quanto ao desenvolvimento local da economia e das atividades produtivas para os moradores, ladeadas por outros investimentos econômicos na construção de hotéis e pousadas, infraestrutura capaz de Antropolítica Niterói, n. 27, p. 11-20, 2. sem. 2009 20 permitir o engajamento de outros, no caso positivamente qualificados e recebidos como turistas. Mesmo na condição de itinerantes ou passageiros, os turistas povoam o sistema de imagens dos produtores culturais, não só no sentido do pressuposto atendimento do que estes desejam ver, mas também da valorização do que é ou vem sendo um paratyense. O artigo da última autora vem então enriquecer a apresentação deste dossiê, pelo destaque da contribuição demonstrativa dos recursos materiais e discursivos, imaginativos e dialógicos de definção da tradição na modernidade, processo que implica conflitos na definição legitima do que é a tradição. Enquanto desejo político do grupo em foco, só pode ser atendido pela inclusão de elementos e significados que venham a assegurar tal definição no contexto vigente, isto é, nas condições em que as relações entre os diversos agentes sociais em jogo vão se configurando. Concluiríamos chamando a atenção para a contribuição dos autores perfilados, no que tange à problematização das dificuldades que vêm sendo enfrentadas pelos cientistas sociais para acompanhar os processos vigentes de mudanças. Os processos sociais em sua complexidade não têm correspondido aos investimentos mais lentos da construção de termos e categorias conceituais ou de linguagens e sistema de representações adequados à expressão do que se advoga ser compreendido. Então, paradoxalmente pouco compreendido, quando nos deparamos com a ausência de termos correspondentes ao que se quer explicar. Então, tende o cientista social para o uso de metáforas indicadoras das tentativas de aproximação interpretativa. É o caso de diversos autores que estudam processos de mudanças sociais pela designação ou reconhecimento de que houve transformações, mas que só podem ser pensadas pela contraposição tipificadora ao que supostamente era o fenômeno social, isto é, seu ponto inicial, embrião a partir do qual se tentou demonstrar os percursos dos desdobramentos. Essas dificuldades são reconhecidas por adjetivações com pretensões conceituais, como bem demonstra o uso, à torto e à direito, do qualificativo novo: novos movimentos sociais, novas ruralidades, novos atores, novos mediadores, novas instituições, novos processos, etc. Os autores deste artigo, desenhando uma problemática de pesquisa e refletindo sobre ações sociais contextualmente significativas, elaboram análises sobre dinâmicas de modos de construção social, quais sejam: os que expressam o dinâmico exercício de se produzir e se reproduzir socialmente, contínuo mas não repetitivo. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 11-20, 2. sem. 2009 Miriam de Oliveira Santos* Maria Catarina Chitolina Zanini** Especificidades da Identidade de descendentes de Brasil: breve análise das regiões de Caxias do Sul e Santa Maria*** italianos no sul do * Professora Adjunta – UFFRJ. Pesquisadora Associada do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios – NIEM. Endereço: Rua Tomaz Coelho, 80/402 – Vila Isabel, Rio de Janeiro –RJ, CEP.: 20540110. Tel.: (21) 22689271. E-mail: <mirsantos@uol. com.br>. ** Professora Adjunta – UFSM. Pesquisadora Associada do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios – NIEM. Endereço: Caixa Postal 5046 – Agência Campus UFSM, Santa Maria – RS, CEP.: 97110-970. Tel. (55)22263583. E-mail: <[email protected]> *** Uma versão preliminar desse artigo foi apresentada na VII Reunião de Antropologia do Mercosul. A identidade de descendente de italianos, “italianos do Rio Grande do Sul”, “talian”, “ítalo-gaúchos” ou simplesmente “italianos” é construída por meio de alguns sinais adscritivos comuns, tais como o pioneirismo, o elogio à família enquanto valor, da religião e, principalmente, da reafirmação do trabalho como estratégia de ascensão social. São esses os símbolos escolhidos, que servem como tipificação diacrítica do grupo e elementos de contraste em relação aos demais “brasileiros”. Entretanto, no próprio Rio Grande do Sul existem diferenças com relação à trajetória de construção das italianidades. Neste artigo, pretende-se efetuar um contraponto etnográfico entre a região de colonização da serra gaúcha, especialmente Caxias do Sul, e a colonização ocorrida na região central do estado, principalmente, em Santa Maria e região. Palavras-chave: identidade; imigração italiana; colonização. 22 Iniciamos este artigo ressaltando: aquilo que se costuma chamar genericamente de “imigração italiana” tem pouco de homogêneo, apresentando diversas especificidades, entre elas: locais de origem do imigrante na própria Itália, geografia da terra hospedeira, clima, inserção econômica. Muitas vezes, é mais fácil encontrar semelhanças entre a imigração italiana e alemã para o Rio Grande do Sul do que entre a imigração italiana para São Paulo e para o Rio Grande do Sul. Mesmo dentro do Rio Grande do Sul, deparamo-nos com diferenças significativas entre o desenvolvimento de Caxias do Sul e o da Quarta Colônia de Imigração Italiana (ex-colônia Silveira Martins).1 Por outro lado, podem ser encontradas semelhanças entre a colonização de Caxias do Sul e cidades de colonização alemã, até de outros estados, como, por exemplo, a de Blumenau, em Santa Catarina, onde, analogamente a Caxias, instaurou-se uma forte burguesia comercial e industrial vinculada à colonização, que incentivou a manutenção de uma distintividade baseada na etnicidade (SEYFERTH, 1974; ROCHE, 1969). Esses contrapontos nos serviram de inspiração para, de forma breve, problematizar as diferenças no interior de um processo que poderia parecer coeso e homogêneo, como é a revitalização e reivindicação das italianidades, mas que apresenta, em sua dinâmica, cruzamentos com outras questões sociais e políticas mais amplas, internas e externas ao contexto brasileiro, que exigem dos pesquisadores trânsitos interdisciplinares e constate vigilância epistemológica acerca do fazer etnográfico. Identidade e construção de identidade Interessa-nos, especialmente, a relação entre cultura e identidade, na forma enunciada por Goffman (1978). Este autor afirma que a cultura é produzida por meio de negociações no âmbito das interações sociais, em uma posição bastante próxima à de Firth (1974), para quem a cultura é socialmente produzida, em consonância com a organização social. Mas o autor que melhor se adapta ao que observamos no Rio Grande do Sul é Stuart Hall. Segundo Hall, percebe-se, atualmente, uma desintegração das identidades nacionais pela tendência da homogeneização cultural da globalização. Em função disso, há um reforço das identidades nacionais e 1 A antiga colônia Silveira Martins abrange trechos do que atualmente é conhecido como os municípios da Quarta Colônia: Silveira Martins, Agudo, Nova Palma, Faxinal do Soturno, Ivorá, Pinhal Grande, São João do Polêsine, Restinga Seca e Dona Francisca. Parte de seu território inicial foi desmembrado em 1888 e dividido entre os municípios de Santa Maria, Cachoeira do Sul e Júlio de Castilhos. Contudo, devido à municipalização crescente no estado, algumas dessas localidades se emanciparam e hoje possuem vida administrativa própria. A Quarta Colônia está situada no interior do estado, próximo à cidade de Santa Maria. Em Agudo, Dona Francisca e Restinga Seca a colonização foi mista: alemães e italianos. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 23 de outras locais e particularistas, em virtude da resistência ao processo de globalização. Como síntese desse choque, as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades, que ele denomina híbridas, estão tomando o seu lugar (HALL, 1999). Com essas afirmações, Hall nos dá pistas interessantes e inovadoras para compreender o contexto cultural do Rio Grande do Sul como parte de um processo mundial, no qual culturas locais e nacionais se mesclam com aspectos novos trazidos pela globalização e resultam no que o autor vai chamar de “culturas híbridas”. 2 Contudo, essa reafirmação do regional não é totalmente nova. Já em 1963, Freyre, em um artigo escrito originalmente em inglês, afirmava: Alguns estudiosos da situação internacional como ela se tem desenvolvido no mundo desde a revolução Industrial da Europa – a conquista industrial do mundo baseada em ideais de estandardização de todos os países, de acordo com os padrões dos Estados capitalistas mais poderosos – reconhecem a necessidade de um regionalismo criador em oposição aos muitos excessos da centralização e da unificação política e da cultura humana, estimuladas não só política mas economicamente por forças e interesses imperialistas. Os que assim pensam têm como fundamental que um crescente número de unidades culturais diversas contribuiria para a estabilidade do mundo, prevenindo a formação e a expansão de imperialismos e impérios. (FREYRE, 2000, p. 119) Hall também nos auxilia a perceber que a revalorização da cultura italiana e da “diferenciação” cultural, que os descendentes de italianos habitantes das cidades de Caxias do Sul e Santa Maria pretendem ter em relação aos demais “brasileiros”, não é um fenômeno local, inserindo-se num contexto mundial de valorização das identidades locais. Por isso, buscaremos analisar como as identidades dos imigrantes italianos e seus descendentes são socialmente construídas mediante a noção de cultura compartilhada. É importante lembrar que existe um duplo estatuto na questão da identidade. De um lado, trata-se de um processo em construção e, de outro, pressupõe substantivação na qual os agentes sociais decidem acreditar. Alguns autores, como Cohen, afirmam que a identidade étnica está ligada a interesses corporativos. Segundo esse autor, a etnicidade é instrumentalizada e acionada nos momentos em que é relevante, e a instrumentalização política da etnicidade é usada como arma para adquirir privilégios 2 Cabe observar que Emílio Willems, em um trabalho no qual se propunha observar a assimilação de imigrantes alemães pela sociedade brasileira, vai utilizar o mesmo termo. Para ele, os colonos alemães estavam produzindo no Brasil uma “cultura híbrida” (WILLEMS, 1980). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 24 (COHEN, 1979). No entanto, é importante lembrar que a identidade étnica até pode ser manipulada e utilizada para atingir determinados objetivos de alguns grupos corporados, mas que não se resume a isso, já que o grupo pode preexistir ao interesse corporativo. Em um artigo inédito sobre a identidade brasileira, Schneider chama a atenção para o fato de que a construção de uma identidade envolve a “construção de uma origem “histórica”, e que essa construção envolve também não apenas origens míticas ou mitológicas, mas uma “leitura específica” de determinados fatos históricos” (SCHNEIDER, 2003, p. 1).3 Schneider aponta ainda para um “culto à imigração”, fruto da visão positiva que os brasileiros têm da Europa, e para o fato de que a cultura do descendente de imigrantes aparece, discursivamente, como diferente daquilo que é considerado tipicamente brasileiro4 (SCHNEIDER, 2003). Assim, objetivamos mais do que responder a questões que salientam a universalidade entre a diversidade das italianidades: elencar o quanto os contextos nos quais esses grupos se inseriram fizeram com que negociassem sinais diacríticos que lhes possibilitassem sobrevivência grupal e manutenção de fronteiras. Como exemplo, podemos citar, em Caxias (RS), a uva e suas simbologias como algo “italiano”; em Silveira Martins (RS), a batata, sustento das famílias. Em Caxias, a riqueza; na Quarta Colônia, certa nostalgia por não se considerar uma colônia próspera. Enfim, elementos que permitem ao antropólogo encontrar as diversidades no interior de um processo comum: a etnicidade. Em ambas, Caxias e Santa Maria, observa-se a italianidade como sentimento de pertencimento baseado numa origem que dialogou historicamente com vários períodos da vida regional e nacional, cada uma a seu modo. Seu apogeu simbólico se deu após os festejos do Centenário da Imigração Italiana no estado, em 1975, quando já havia uma elite intelectual e econômica capaz de produzir uma discursividade acerca de si mesma, salientando o quanto esse grupo havia contribuído para o desenvolvimento e riqueza do estado. Em Santa Maria, os resultados dessa revitalização apareceram na década de 1980, com a fundação de entidades italianas patrocinadas por membros das camadas médias e altas, que visavam promover a cultura italiana. O que se observaria, a partir de então, em todo o estado, era uma crescente efervescência de entidades italianas, associações, círcoli, corais 3 O trabalho foi apresentado no PPGAS do Museu Nacional e a versão preliminar do artigo foi gentilmente enviada ao autor. 4 De acordo com Ferreira (1999, p. 153): “Nos discursos correntes, o brasileiro aparece bastante desqualificado. Como são discursos pronunciados por brasileiros, cabe perguntar quem são os verdadeiros brasileiros ou os brasileiros ideais – espelhamento que parece remeter-se ao europeu, aprofundando sempre a inferioridade brasileira, ao defrontar-se com o olhar discriminador do colonizador”. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 25 etc., que buscariam promover a italianidade. São processos particulares que ainda requerem muitos estudos para que suas dinâmicas possam ser compreendidas e analisadas. Contudo, o que para nós foi estímulo para as pesquisas é a força encontrada nesse tipo de reivindicação. As italianidades guardam um conjunto de especificidades que, seja do ponto de vista simbólico ou pragmático, merecem ser melhor estudadas. As análises a seguir, sobre Caxias ou Santa Maria, foram fruto de pesquisas etnográficas realizadas pelas autoras. Santos (2004) defendeu tese sobre a simbologia da Festa da Uva em Caxias. Zanini (2002, 2006) defendeu tese sobre a construção da trajetória de italianidade em Santa Maria e região. Ambas continuam a estudar esses e outros grupos migratórios, objetivando a melhor compreensão dessas dinâmicas, que não são privilégio dos descendentes de italianos mas presentes também em outros grupos étnicos no Brasil, tanto no meio urbano como no rural. Os “Italianos” de Caxias do Sul Ao estudar os grupos étnicos, Barth (2000) chama a atenção para as linhas divisórias que separam os grupos humanos através da criação e manutenção de fronteiras simbólicas e distintivas. No caso específico da cidade de Caxias do Sul, houve uma dissolução das fronteiras entre as identidades regionais (na época da grande imigração, apesar do passaporte italiano, as pessoas consideravam-se venetas, trentinas, lombardas etc.) e a fusão dessas identidades em uma nova, a de “italianos” ou “descendentes de italianos”. 5 Essa fusão ocorreu por meio de uma alteração dos critérios de pertencimento a uma coletividade. Não significou, entretanto, incorporação plena à identidade nacional brasileira, mantendo-se uma identidade diferenciada, vinculada ao processo migratório. Observamos que, em Caxias do Sul, a ênfase está, sobretudo, nas orientações valorativas básicas, pois ser ítalo-gaúcho ou “de origem” italiana, remete a um determinado tipo de comportamento: trabalho duro, honestidade, religiosidade, moralidade. E apesar de, nos últimos anos, o estudo da língua italiana e a participação em corais e grupos de dança com vestimenta típica terem se transformado em atividades bastante 5 No entanto, é necessário ressaltar que até hoje existem na cidade, além do Centro Cultural Ítalo-Brasileiro, o Circolo Trentino de Caxias do Sul e a Associação Vêneta de Caxias do Sul. Parece-nos que o mecanismo que opera na manutenção dessas identidades regionais é o mesmo que faz com que os descendentes de italianos prefiram ser considerados “ítalo-gaúchos” a “ítalo-brasileiros”. Afinal, o desenvolvimento desigual do Norte e do Sul da Itália faz com que os descendentes de Trentinos e Vênetos tenham mais “prestígio” do que genéricos “descendentes de italianos”. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 26 valorizadas, o que continua sendo basilar para o pertencimento é o aspecto moral. No entanto, embora o aspecto moral seja prioritário, a distinção baseiase na reivindicação de uma origem étnica específica, por parte dos descendentes de imigrantes italianos chegados a Caxias do Sul a partir de 1875. A reivindicação progressiva dessa distinção é formulada especialmente por residentes da zona urbana do município. Reivindicação que é reforçada a partir da criação da Festa da Uva em 1931. Frosi (1998, p. 166) assinala que: [...] O uso da fala dialetal italiana é, muitas vezes, artificial na boca de falantes urbanos. Ela não tem aí uma função de comunicação e de transmissão de cultura. Ela é usada como um instrumento para demarcar um espaço próprio, uma identidade cultural local, um perfil de determinado grupo humano ítalo-brasileiro regional. Os descendentes de italianos que residem em Caxias do Sul delineiam-se como um grupo diferenciado no interior da sociedade nacional, apresentando sinais diacríticos que conformam o seu reconhecimento enquanto grupo. Os habitantes da região reportam essa identidade como característica dos descendentes de imigrantes italianos, que se instalaram na região a partir de 1875. As lideranças da cidade falam em “ítalo-brasileiros”, “ítalo-gaúchos” ou “descendentes de italianos”. O povo refere-se a si mesmo como “italianos” ou “italianos do Rio Grande do Sul”. Em Caxias do Sul, observamos que uma pequena elite de descendentes de imigrantes detinha o poder político e econômico. Porisso, ao contrário do que aconteceu em outras zonas de imigração, mesmo durante o período no qual a campanha de nacionalização foi mais forte, de 1930 até 1954, os prefeitos foram descendentes de italianos, inclusive Dante Marcucci, nomeado durante o Estado Novo e que ficou no poder até 1947. Euclides Triches, prefeito de Caxias do Sul no período de 1951 a 1954, secretário de obras públicas do estado em 1955, foi eleito governador em 1972. Giron (1994, p. 41) ressalta que: Das listagens dos empresários apresentados como as maiores empresas industriais e comerciais da Região, no Álbum comemorativo de 1925, nenhum dos nomes era de brasileiros. A burguesia era constituída por italianos natos, ou, no máximo, de filhos de imigrantes. Sob o ponto de vista econômico, estavam plenamente integrados ao capitalismo nacional. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 27 Ao poder econômico sucede rapidamente o poder político. Machado observa que: A escolha do nome de Miguel Muratore e depois de Dante Marcucci, integrantes da Associação dos comerciantes para governar o Município de Caxias do Sul, permitiu que as elites locais chegassem ao poder público municipal [...]. (2001, p. 254). A cidade é um espaço aberto e disputado por grupos distintos, sendo também palco privilegiado de disputas, classificações e segregações. Além disso, é na cidade que vai se concentrar a elite colonial: comerciantes e industriais no início e, um pouco mais tarde, intelectuais e políticos. Nesse processo, ocorre uma hibridização cultural: por um lado, a elite se afasta dos valores dos grupos rurais e se aproxima dos valores da elite brasileira e, por outro, constrói para si uma identidade distinta da elite luso-brasileira. Na década de 1950, construiu-se a identidade de imigrante italiano, marcada pela imagem do colono progressista, desenvolvido, pioneiro que havia se transformado em industrial. Nessa mesma época, aqueles que permaneciam como colonos (rurais) eram vistos como símbolo de atraso. A idéia de progresso era de desenvolvimento urbano, industrialização, grandes edifícios, enfim, a transformação da “colônia” de imigrantes pioneiros na grande metrópole civilizada e civilizadora, que servia de modelo de desenvolvimento ao resto do país. Portanto, ser italiano era positivo, ser colono negativo. A dicotomia rural/urbano correspondia à dicotomia colono/italiano. Contemporaneamente, observamos uma revalorização do campo (e do colono) e a fusão das duas identidades anteriores em uma só: o colono italiano. Segundo Lagemann: A interpretação heróica, fazendo do colono bem sucedido econômica ou politicamente um verdadeiro ‘self-made-man’, é perfeitamente compatível a um sistema ideologizado pela ‘democracia agrária’. Dentro dessa perspectiva, existe a possibilidade democrática, livre, de ascensão social. Por uma decisão individual, exclusivamente pelos próprios méritos, ultrapassam-se as barreiras da pobreza, ignorância, isolamento e da insignificância. Assim, quem teve sucesso no empreendimento, merece ser cultuado. É o culto do vencedor. Vêm daí as trajetórias imaginárias do colono de mãos calejadas rumo ao sucesso nas diversas áreas, seja o comércio, indústria, política, etc. Chega-se, seguindo esse caminho, a colocar o imigrante como o civilizador, o que tudo iniciou, incluindo a industrialização. (LAGEMANN, 1980, p. 118) Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 28 Ou seja, os políticos e a elite “de origem” contribuíram para a construção e cristalização da imagem do imigrante como pioneiro e civilizador. No Álbum Comemorativo dos 75 Anos da Imigração Italiana, encontramos: “[...] Entre os árdegos pioneiros de 1875 e os lutadores de hoje, não vai diferença maior que nos métodos e meios de trabalho. A vontade de vencer, o ânimo na luta, a ambição de melhorar e ir para diante, a vibração, o entusiasmo, as virtudes e os defeitos são os mesmos”. 6 De acordo com Maestri (1999, p. 191), essa “interpretação heróica da colonização” surge em função da “universalização e generalização de depoimentos singulares sobre as dificuldades vividas pelo imigrante italiano, nos primeiros tempos, no Rio Grande do Sul”, isto é, parte dos relatos e das biografias dos primeiros imigrantes. Emerge também em função de “uma visão hipercrítica da organização do movimento colonizador pelas autoridades nacionais”, em que as dificuldades dos tempos iniciais da colonização são maximizadas e as providências tomadas pelas autoridades brasileiras para o desenvolvimento da colônia convenientemente esquecidas. 7 Maestri considera que existe uma “leitura hagiográfica da história da colonização”, leitura que é encampada pelos meios de comunicação, adquirindo “foro científico ao se propor como interpretação hegemônica do fenômeno migratório” (MAESTRI, 1999, p. 191). Deriva daí um discurso etnocêntrico demarcador de fronteiras étnicas, que aparece tanto nos depoimentos quanto na historiografia. Exemplo paradigmático desse “culto ao vencedor” é a inauguração, em 1946, do busto de Ábramo Eberle, na Praça Vestibular, em Caxias do Sul. Lê-se na inscrição da placa: “Pioneiro do Progresso Caxiense”. No entanto, uma leitura atenta da sua biografia aponta para o fato de que ele não era um “colono” qualquer. Ao narrar a partida da família Eberle da Itália, Franco relata que o pai de Ábramo Eberle: Vendeu a granja, saldou suas dívidas, tirou uma pequena quota para as despesas imediatas de viagem e o restante foi investido na compra de objetos que, segundo opinavam seus amigos já estabelecidos no Rio Grande, ofereciam boa margem de lucro. Trouxe, assim, um lote de chapéus para homens e para mulheres, mudas de videira, macieiras, 6 Discurso do Sr. Alceu Barbedo, Procurador Geral da República e orador oficial designado pela Comissão da Festa da Uva. Apud Bertaso; Lima (1950, p. 22). 7 As primeiras exposições de produtos coloniais são organizadas pelos administradores das colônias. No Rio Grande do Sul, há incentivo à policultura, na busca de melhores culturas, e o governo chega, inclusive, a trazer agrônomos e técnicos da Itália para orientar os colonos em suas culturas. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 29 cerejeiras e outras plantas de produção comercial, além de caldeiras e alambiques de cobre. (FRANCO, 1943, p. 31) Ou seja, longe de ser o pobre pioneiro aliciado pelas promessas dos agentes de colonização, Eberle e sua família vêm para o Brasil por conta própria, já informados sobre as condições de vida e trazendo um bom sortimento de mercadorias para iniciarem-se no comércio. Comércio que permitiria a acumulação de capital para a indústria. Ábramo Eberle vendeu de vinho a colônias, passando por diamantes. Como nos lembra Wolf (2003, p. 238), [...] o nacionalismo italiano postulava um Estado criado por membros de uma elite urbana, uma Itália criada ‘a fim de criar italianos’. Esse nacionalismo não apela para um Volk original, mas insiste no conceito de cilvità (as qualidades da civilização) [...]. Ao construir o lugar do pioneiro, colonizador e civilizador para si, os imigrantes italianos e seus descendentes determinaram também o lugar dos outros moradores da terra: para os negros e índios o papel de selvagens e incultos; para os descendentes de portugueses, o papel de pessoas sem refinamento, de maneiras rudes e portadores de uma religiosidade católica distinta daquelas que traziam os italianos, julgamento já expresso no apelido pelo qual eles são conhecidos: “pêlo duro”, uma designação regional (no resto do país se conhece como “casca grossa”). Ao contrário das grandes cidades, em especial São Paulo, onde aparece ainda hoje o estigma do italiano grosso, pouco educado – “casca grossa”, “carcamano” – (CARELLI, 1986), em Caxias do Sul o grau de coesão grupal permite que os estigmatizados como grossos sejam os descendentes de portugueses e também aqueles considerados “brasileiros”, alcunhados genericamente de “negri”. Durante a Segunda Guerra Mundial, ser “italiano” era uma categoria negativa, mas, a partir do final da guerra, observamos uma reelaboração que aponta o imigrante italiano como o civilizador, aquele que transformou a selva em cidade por meio do suor de seu rosto. A cultura “italiana” é assumida como um elemento de diferenciação, porque promovedora de progresso e riqueza. Há uma construção histórica de uma identidade, ligada a determinados comportamentos, que estão associados ao sentido de pertencimento a um grupo. Acontece, nesse caso, um privilegiamento de natureza biológica (a descendência italiana) para explicar fenômenos sociais, inclusive, o desenvolvimento econômico de Caxias do Sul. A culAntropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 30 tura adquire assim um significado classificatório, implicando a noção de superioridade e inferioridade, num discurso que hierarquiza as etnias. Da mesma maneira que Cohen8 fala em uma retribalização, podemos apontar para uma reetnização, na qual indivíduos que se transferem do campo para a cidade enfatizam e exageram a sua identidade e exclusividade cultural, com objetivos políticos e econômicos. Mas isso não quer dizer que tal identidade seja desprovida de outros significados não instrumentais – afetividade , espírito de comunidade, valores compartilhados etc. Giron também aponta para a relação entre o discurso laudatório e a economia. A autora sublinha que “o imigrante heróico, trabalhador, econômico e realizador da economia gaúcha é a imagem que o grupo [de descendentes de imigrantes italianos] criou sobre seus feitos” (GIRON, 1980, p.66). Em suma, a construção de uma identidade contrastiva em relação à sociedade nacional surge quando o grupo se diferencia – separando colonos e citadinos – mas, principalmente, quando tal postura começa a se mostrar vantajosa, levando, inclusive, nos últimos anos, à incorporação e reelaboração de valores e costumes camponeses por parte da população urbana. Os “Italianos” em Santa Maria (RS) e região A imigração italiana para a região central do Rio Grande do Sul teve início em 1877, feita em levas familiares, principalmente oriundas do norte da Itália. Eram católicos, mas alguns com influência da maçonaria (que marcou, de certa forma, aquele processo migratório). A maior parte era de camponeses. A colônia Silveira Martins, contudo, foi construída com um centro urbano e alguns imigrantes para lá se dirigiram. No início do processo igualou-se ao que foi descrito anteriormente com relação a Caxias do Sul. Aqueles indivíduos orientavam suas existências guiados pela crença religiosa, desejo de ascensão social e motivados pela possibilidade de manutenção de uma ordem familiar idealizada, na qual o pai era o patrão e os filhos mão-de-obra, fosse enquanto camponeses ou nas pequenas empresas domésticas. Nessas hierarquizações, pouco espaço cabia às mulheres, fosse na busca de sua própria ascensão social ou na possibilidade de se tornarem proprietárias ou empreendedoras, caracte8 Segundo Sprandel (1992, p. 9), “Em 1969, Abner Cohen em, Custom and politics in urban Africa, definiu como retribalização o processo pelo qual o indivíduo pertencente a grupos tribais que se transferem para as cidades, enfatizam e exageram a sua identidade e exclusividade cultural, com objetivos políticos e econômicos. A retribalização pode ser entendida como uma manipulação sóciocultural da formação de novos agrupamentos políticos, e como resultado da interação entre grupos étnicos dentro de um contexto de novas situações políticas”. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 31 rística que, nos relatos, possui uma face eminentemente masculina. Sua imagem foi construída à sombra da imagem masculina. Ela trabalhava, mas não usufruía da sua produção de riqueza; criava filhos, educava-os nas normas cristãs, tornando-os aptos ao trabalho e à disciplina, mas era alijada da parte pública da produção da riqueza. Sobre os primeiros colonos há poucos relatos (LORENZONI, 1975; POZZOBON, 1997; ANCARANI, [19--]). Dois deles são especialmente ricos, pois foram escritos por imigrantes e, posteriormente, traduzidos e publicados por seus descendentes: Julio Lorenzoni (1975), que tinha 14 anos quando sua família migrou, em 1877, e Andréa Pozzobon (1997), com 22 anos quando sua família migrou, em 1895. Nesses relatos, percebe-se a dinâmica do processo migratório: a pobreza daquelas populações, o aliciamento por agentes, padres, parentes, entre outros, e a vinda para a América, na expectativa de uma melhora nas condições de vida. O contraste entre o mundo do qual provinham ( Europa) e o aqui encontrado (matas, índios, negros, comida e muita terra), fez com que os relatos de ambos apresentassem o encontro com a natureza brasileira e sua diversidade. A noção de processo civilizador se inicia nesse encontro narrativo acerca do mundo americano. Como ressalta Pratt (1999), em sua análise de relatos de viajantes, essa zona de contato9 possibilita a representação desse encontro como uma anticonquista, numa nova forma narrativa, na qual a presença do europeu civilizador é naturalizada, e sua autoridade é representada como civilização e não como invasão, “fazendo uma impressão mais de inocência do que de intervenção” (PRATT, 1999, p. 27). Eles chegam, dominam e domesticam o que antes era considerado natureza e espaço vazio e se sentem autorizados para isso. Os relatos de Lorenzoni e Pozzobon (estes, ambos homens, letrados, oriundos do norte da Itália), narrados em tom pessoal, podem ser considerados dessa forma. Em suas apresentações da natureza, como salientaria Pratt, há um certo colonialismo classificador acerca do outro e do mundo encontrados. Esses imigrantes eram vênetos, lombardos, trentinos, friulanos, mantovanos etc. Não se sentiam italianos no sentido de um pertencimento a um Estado Nacional, numa Itália que acabara de se unificar de direito (1870) e a contragosto de muitos. Consideravam-se habitantes de um paese que possuía características específicas, adoravam santos específicos e, em algumas situações, falavam, inclusive, dialetos particulares e incompreensíveis, como relata Lorenzoni quando narra a travessia 9 Para a autora, zona de contato seria aquele espaço de encontros coloniais “...onde os povos que estavam separados geográfica e historicamente entram em contato e estabelecem relações duradouras, envolvendo normalmente a coerção, a desigualdade racial e o conflito irresolvível” (PRATT, 1999, p. 30). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 32 oceânica. Ele salienta que, no navio que os trazia para o Brasil, alguns não se entendiam. Contudo, algo os unia: eram migrantes pobres em sua maioria, despossuídos, e essa experiência os tornava iguais, apesar das diferenças culturais. A lembrança de terem participado de um processo comum, apesar das diferenças, pode ser observada ainda hoje entre os descendentes, mesmo que de regiões distintas. A invocação do passado, da figura do pioneiro, daquele antepassado que migrou, que efetuou a ruptura, é algo forte. Alguns desses imigrantes são ainda lembrados por meio de fotos de passaportes e documentos copiados e transformados em quadros, que são exibidos nas paredes das salas de estar, seja residenciais ou comerciais e de serviços. Ao receberem os lotes, agregavam-se de acordo com os pertencimentos regionais (vide a nominação das localidades Val de Buia, Val Feltrina, Val Verones, Linha dos Mantuanos etc). O processo de assentamento nos lotes e de produção foi animador nos primeiros anos, permitindo que as famílias vivessem bem, como ressalta Lorenzoni. Essas diferenciações, mantidas nas localidades de habitação mas generalizadas ao se tornarem “os italianos”, foram absorvidas pelos descendentes nas situações de interação social fora da colônia. Fato alterado contemporaneamente devido às novas dinâmicas dos processos identitários em níveis transnacionais. Esses descendentes têm reivindicado origens dentro da origem: se autodenominam friulanos, trentinos, lombardos, vênetos e gostam de salientar isso. Assumem a condição genérica também, numa negociação de alteridades, mas ressaltam suas particularidades orientados, em parte, pelas dinâmicas identitárias da própria Itália que favorece os descendentes de acordo com as regionalidades de origem e estabelece convênios e agenciamentos orientados pelo critério de antecedência do imigrante pioneiro, o antepassado, transformado no iniciador da saga familiar. A colônia Silveira Martins foi desmembrada e extinta em 1888 e seu território dividido entre os municípios de Júlio de Castilhos, Santa Maria e Cachoeira do Sul. O centro urbano no qual começara a colônia ficou sendo distrito de Santa Maria e, em 1987, emancipa-se, tornando-se o município de Silveira Martins, conhecido como o “berço da colonização italiana local”. A colônia, próspera em seu nascedouro não conseguiu progredir como aquelas da serra gaúcha, em especial Caxias do Sul, considerada a “pérola das colônias”, questão que tem motivado estudos na região. A elite da colônia Silveira Martins migrou para Santa Maria e para outras localidades e não reinvestiu seu capital econômico (e humano) em nível local. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 33 Não houve também o desenvolvimento de indústrias, como ocorreu na serra. Os camponeses pobres também migraram, criando redes de deslocamento muito interessantes de se estudar. Havia seleção de membros que rumavam para os centros urbanos para se tornarem operários, trabalhar no comércio ou em serviços. Geralmente os pais e alguns filhos permaneciam na colônia, recebendo, muitas vezes, o valor do salário daquele membro que se deslocara. Essas redes se alastravam, permitindo a circulação de mão-de-obra e também de pessoas da colônia para Santa Maria, no caso, a situação de pesquisa que mais de perto acompanhei. Essas pessoas eram hospedadas por parentes ou padrinhos, e as mulheres, que trabalhavam como empregadas domésticas, residiam com os patrões que eram, em sua maior parte, migrantes e descendentes de italianos que haviam ascendido economicamente, formando já distinções baseadas no sucesso da empreitada migrantista, muitas vezes, no interior da mesma família. Essa circulação deve ser compreendida como estratégia de sobrevivência da condição de camponês, porque com lotes de 22 hectares, em média, muitos deles em terrenos acidentados, a sobrevivência não era fácil, o que favorecia e impelia essas migrações internas e a busca por novas oportunidades de renda, que não estivessem assentadas somente no trabalho com a terra. Em Santa Maria, cidade econômica e politicamente mais importante na região, a reivindicação de uma italianidade positivada acompanha o trajeto das reivindicações em nível nacional e estadual. Na década de 1980, criam-se as primeiras agregações que, em 1991, transformam-se na Associação Italiana de Santa Maria. Em 1994, a cidade recebe uma Agência Consular. Aliada a essas entidades, há a criação constante de circoli, que são entidades que possuem vínculo com as regiões italianas, tais como: Circolo veneto, Circolo Lombardo, Circolo Emiglia-Romana, entre outros. Em nível local, os acontecimentos do período do Estado Novo também marcaram os descendentes de italianos e fizeram com que, no período pós-Segunda Guerra Mundial, as italianidades fossem vivenciadas de forma mais discreta e ressentida. O Estado Novo havia deixado marcas, ao proibir que os descendentes e os imigrantes falassem seus dialetos, que se reunissem publicamente e que se deslocassem livremente. Houve uma série de repressões que, localmente, permaneceram na memória dos descendentes (vide ZANINI, 2005b, 2006) como um sinal adscritivo importante, embora nem sempre bem compreendido.10 Zanini denominou esse processo de “memórias em construção”, pois revelavam, justamente, o percurso de construção das alteridades locais 10 Compreendemos memória no sentido atribuído por Halbwachs (1990): uma construção sobre o passado, efetuada no presente, por meio das categorias de sentido atuais dos descendentes. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 34 e quais seriam os sinais adscritivos que estavam tendo significado para o grupo. Processo esse que a autora considera em constante atualização, orientado por dinâmicas interativas locais, nacionais e transnacionais, inclusive fazendo uso das novas mídias, o que transforma a italianidade numa noção privilegiada para os estudos étnicos. Considerações finais Foi importante para o desenvolvimento deste artigo, com base em pesquisas empíricas, compreender a trajetória do movimento de reivindicação da identidade ítalo-gaúcha, sua constituição e negociação como uma estratégia de manutenção do grupo e, também, como um símbolo de classificação social, que está em constante dinâmica. Muitos dos descendentes que reivindicam a identidade ítalo-gaúcha hoje o fazem por acreditar que essa identidade lhes agrega valor e contribui para a diferenciação social. Ser ítalo-gaúcho é mais valorizado do que se denominar, simplesmente, brasileiro. Diríamos, assim, que essa reivindicação é uma estratégia de distinção no interior de um mercado regional e nacional de bens simbólicos, embora os italianos do Rio Grande do Sul não se identifiquem com os estereótipos atribuídos aos italianos de São Paulo, por exemplo, considerados menos religiosos e distintos daqueles daqui (ZANINI, 2005b). Além disso, mediante a inserção nas redes desses grupos, as possibilidades de ascensão social ampliam-se, uma vez que a marca da identidade ítalogaúcha passa a ser um diferencial, que permite ter acesso, por exemplo, à cidadania italiana, trabalho no exterior, bolsas de estudo e a uma rede de contatos que os situa entre iguais e entre pessoas que, idealmente, valorizariam as mesmas coisas: trabalho, poupança, família, religiosidade. O importante para compreender a invocação da italianidade desses imigrantes são os sinais diacríticos que o grupo utiliza para delimitar suas fronteiras de pertencimento, a construção de tradições e de sentidos para essas tradições. É interessante a observação de Oro (1996, p. 621), ao salientar que os descendentes de italianos do Rio Grande do Sul não negariam suas identificações como brasileiros e gaúchos, mas reivindicariam uma “identidade étnica plural”, hibridizada. Salientaríamos: são “ítalo-brasileiros”, “ítalo-gaúchos”. Essas hibridizações, contudo, são negociadas nos contextos interativos, de acordo com situações que se estabelecem. Ora é mais lucrativo se denominar simplesmente de italiano, lombardo, ítalo-gaúcho e assim por diante. Portanto, são possibilidades de os indivíduos agregarem valor a si, reivindicando a identidade e se Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 35 identificando como descendentes de um grupo tido como empreendedor, progressista e ordeiro nas representações atuais. Tal afirmação se coaduna com as observações de Hall (1999). A etnicidade, vista por esse prisma, seria uma forma de reação à homogeneização imposta por padrões sociais dominantes. No contexto das negociações identitárias, a cultura seria um elemento a ser considerado dinamicamente e não como fonte imutável de pertencimento grupal, com o que concordamos amplamente e sobre o que nossas pesquisas etnográficas constantemente nos alertam. Encontramos, em Caxias do Sul, uma liderança étnica ligada à burguesia comercial de origem colonial, com a identidade étnica fornecendo uma rede de proteção social. A etnicidade foi mobilizada pela elite dominante como recurso e estratégia para manter o controle. Nesse caso, a cultura é utilizada também como instrumento político (JENKINS, 1997). Deste ponto de vista, a etnicidade se desdobra como uma ideologia, no sentido que Gramsci (1978) dá ao termo, ou seja, como um cimento que unifica as práticas e pensamentos de um determinado grupo social. Surge aí o conceito de lealdade ao grupo e de uma identidade local. No caso do grupo que estudamos, há uma clara hierarquização de identidades: a identidade local (de origem) sobrepõe-se à regional e à nacional. Os descendentes de italianos consideram, de acordo com as negociações, que a sua identidade mais significativa é a identidade local de “italianos”, sem, contudo, renegar seu pertencimento à pátria brasileira. Como dizem: são brasileiros “de origem italiana”. O que pensamos ser relevante do ponto de vista das discursividades acerca da italianidade(s) é: com a ascensão econômica e política da parcela da população de migrantes e descendentes que enriqueceu, há versões acerca da trajetória dos “italianos no estado”, que se torna hegemônica e legítima, a ponto de virar quase uma história oficial, na qual são ressaltadas dificuldades e união do grupo e apagadas ou minimizadas as dissensões. Nesse sentido, pesquisas etnográficas alertam para as complexidades internas nesses processos de reivindicação de pertencimento e também para o importante papel exercido pelos agenciadores étnicos, ainda pouco estudado. Na história oficial daquela região, não é ressaltado o contexto em que se deram a imigração e o povoamento do Rio Grande do Sul, mas aquelas virtudes que são pensadas como “inatas”dos imigrantes trabalhadores, honestos, bons católicos, criativos, persistentes, apegados à família e a poupadores. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 36 O sangue seria uma metáfora, conforme ressaltado por Seyferth (2004).11 Ele é usado narrativamente para definir ou invocar a índole ou o caráter do descendente, ressaltando o quanto a identidade, potencialmente, seria inata. Isso, conforme observamos em nossas etnografias, é uma retórica, pois os descendentes se sabem negociadores identitários e são cientes de que a italianidade pode se tornar mais ou menos visível, de acordo com seus interesses, portanto, não seria tão substantivada ou inata assim. Observamos, nesse caso, a imposição de uma ideologia dominante como senso comum. Segundo a teoria gramsciana, as ideologias mais ativas e orgânicas interferem no senso comum e nas tradições. É isso que observamos em Caxias do Sul. As idéias da elite caxiense são não apenas hegemônicas, mas também parte do senso comum da região. É preciso lembrar, porém, que, para Gramsci, ideologia não é uma “falsa consciência”, mas reprodução e transformação (ROUANET, 1978). Porém, tão importante quanto esse aspecto de possibilidades de criar discursividades e transformá-las em representações com “força”, é que os descendentes de imigrantes italianos, sejam de Caxias do Sul ou de Santa Maria, são negociadores em potencial. As italianidades são mesclas de pragmatismo com valorações, sentimentos e uma infinidade de elementos selecionados nos contextos de fronteiras. Isso, pensamos, torna esse tema apaixonante para a Antropologia. Abstract The identity of the descendants of Italians, “Italian of Rio Grande do Sul”, “Talian,” “Italian-gauchos” or simply “Italian” is constructed by some common signs ascriptions, such as pioneering, the compliment to the family as value of religion and particularly the reaffirmation of the work as a strategy of social ascension. These are the chosen symbols, which serve as the group and typing diacritical elements of contrast in the other “Brazilian.” However, in the Rio Grande do Sul, there are differences with respect to the construction of Italian history. This article is intended to make a contrast between the ethnographic region of colonization of the mountain gaúcha, especially Caxias do Sul, and settlement occurred in the central region of the state, mainly in Santa Maria and region. Keywords: identity; italian immigration; colonization. 11 A afirmação da autora é em relação aos teuto-brasileiros, mas acreditamos que pode ser utilizada também em relação aos descendentes de italianos. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 37 Referências ANCARANI, Umberto. Monographia sobre a origem da ex-colonia italiana de Silveira Martins 1877-1914. Revista Commemorativa do Centenário da Fundação da Cidade de Santa Maria-RS 1814-1914, [S.l.], [19--]. BATTISTEL, Arlindo I.; COSTA, Rovílio. Assim vivem os italianos: vida, história, cantos, comidas e estórias. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: EDUCS, 1982. BATTISTEL, Arlindo I. Colônia italiana: religião e costumes. Porto Alegre: EST, 1981. BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: LASK, Tomke (Org.). O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000. BERTASO, Henrique D’Avila; LIMA, Mário de Almeida (Org.). 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Antropolítica Niterói, n. 27, p. 21-41, 2. sem. 2009 Maristela de Paula Andrade** Novos sujeitos de direitos e seus mediadores – uma reflexão sobre processos de mediação entre quilombolas e aparelhos de Chefe do Departamento de Sociologia e Antropologia/UFMA, Professora do Programa de Pós-Gradua ção em Ciências Sociais/ UFMA, Coordenadora do Grupo de Estudos Rurais e Urbanos. Tel.: (98) 33018325, (98) 88239261. Email: <saudadem@uol. com.br>. Ultimas Publicações: Conflitos agrários e memória de mulheres camponesas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, p. 445-451, 2007; Expropriação de grupos étnicos, crise ecológica e (in) segurança alimentar: problematizando as noções de fome e pobreza. Revista Pós Ciências Sociais, São Luís, v. 2, p. 37-60, 2007; Os gaúchos descobrem o Brasil: projetos agropecuários contra a agricultura camponesa. São Luís: EDUFMA, 2008; Terra de índio: identidade étnica e conflito em terras de uso comum. 2. ed. São Luís: EDUFMA, 2008. * Texto apresentado no GT “Transformações sociais e projetos políticos em concorrência”, durante a 33º Reunião Anual da Anpocs, 2009. ** Estado* Este artigo trata da constituição de um novo sujeito de direitos – os quilombolas – e do campo de mediação em que se viu envolvido desde a inserção do Artigo 68 na Constituição Brasileira de 1988. A partir da análise de situações empíricas envolvendo os quilombolas de Alcântara, Maranhão, busca-se problematizar o fato de que, para existir publicamente, para encaminhar suas reivindicações, esses novos sujeitos de direitos passaram a depender de uma grande diversidade de estruturas e agentes de mediação que se interpuseram entre eles e as instituições nacionais e internacionais. Palavras-chave: Alcântara; quilombolas; conflitos agrários; mediação. 44 Introdução Os quilombolas: um novo sujeito de direitos, um novo campo de estudos, novos mediadores Desde 1988, quando se insere na Constituição o Artigo 68, resultado do reconhecimento pelo Estado Brasileiro de sua dívida para com os descendentes de escravos,1 e a partir de quando milhares de grupos camponeses,2 em todo o Brasil, passam a adotar a identidade de quilombolas para interlocução com a burocracia estatal, muito se tem escrito sobre eles. Passaram a circular nos meios acadêmicos tanto elaborações teóricas, com o objetivo de construir modelos explicativos que pudessem contribuir para a interpretação das transformações sociais e dos problemas provocados pelo surgimento desse novo sujeito de direitos, inclusive ressemantizando velhos conceitos (ALMEIDA, 1998b) (ALMEIDA, 1998a), quanto trabalhos etnográficos ancorados no registro e análise de situações empíricas particulares. Cremos, porém, que pouca atenção se tem sido dada ao fato de que, para existirem publicamente, para realizarem a interlocução política com instituições supracomunitárias, esses grupos passaram a depender de toda uma rede de mediadores, desde aqueles que foram erigidos como seus próprios representantes, aos antropólogos (que foram conclamados a dizer quem eram esses sujeitos de direitos), aos advogados (atuando em entidades não-governamentais ou dentro do próprio Estado), aos funcionários de órgãos oficiais, aos gestores públicos e de empresas. Enfim, agentes sociais especializados no que se poderia denominar questão quilombola, passaram a deter autoridade para dizer quem são, onde e como vivem e quais os direitos desses grupos. Ao passarem a existir como sujeitos políticos coletivos criaram-se movimentos, associações, entidades, em nível estadual, nacional ou local, no âmbito das quais mandatários passaram a assumir o papel de porta vozes (BOURDIEU, 1984), atuando em organizações específicas, que se fundam sobre recortes étnicos e raciais, para além dos sindicatos de trabalhadores rurais. Espalhados em vários povoados do interior de praticamente todas as unidades da federação, esses grupos já existiam conforme diversificadas formas de organização social e compartilhamento de identidades específicas várias, construídas historicamente, a maior 1 Uma genealogia do emprego de termos como pretos, terras de preto, quilombos, remanescentes de quilombos e outras foi realizada em outro texto. Ver Paula Andrade (2003). 2 O debate sobre o conceito de camponês, na literatura antropológica, é bastante amplo e não vamos retomálo aqui. Neste texto, o estaremos utilizando num sentido igualmente largo, para indicar grupos que vivem fundamentalmente do cultivo da terra, da exploração dos recursos pesqueiros, da extração de recursos florestais e animais, com base no trabalho familiar. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 45 parte delas ancoradas em fundamentos étnicos. Já vinham lutando pela permanência em seus territórios, por meio do sindicato de trabalhadores rurais, de associações de moradores no nível do povoado, com apoio da Igreja Católica e de outros mediadores tradicionais (WOLF, 1984, p. 12), conforme cada conjuntura. A partir de 1988, novas entidades de representação assumiram papel de intermediação, agregando-se àqueles mediadores mais tradicionais. Alguns autores viram nesse processo o resultado do esgotamento das formas clássicas de representação e de mobilização política – o Sindicato, o partido político – e a inauguração de outras, mais plásticas e diversificadas, construídas a partir de situações localizadas e específicas, e com base em identidades como as de atingidos, pela construção de barragens, hidroelétricas, portos, indústrias ou outros empreendimentos de grande porte (ALMEIDA, 1994). Em alguns casos essa identidade foi provocada pela própria ação oficial – caso já referido dos atingidos – e, em outros, assistiu-se a uma passagem ou uma combinação de antigas categorias de autodenominação como pretos, moradores de terras de preto, de terras de santo, de terras de índio, ressaltando o seu fundamento étnico, para a de quilombolas simplesmente. Os movimentos, entidades, organizações da sociedade civil ligadas ao chamado movimento negro passaram a utilizar a expressão comunidades negras rurais e, atualmente, comunidades negras rurais quilombolas. Os aparelhos de estado, numa estratégia da condescendência (BOURDIEU, 1994, p. 121) passaram a adotar vários desses termos e expressões. Neste artigo pretendo problematizar o fato de que para existir publicamente, encaminhar suas reivindicações, os quilombolas passaram a depender de uma grande diversidade de estruturas e agentes de mediação que se interpuseram entre eles e a nação para utilizar os termos de Wolf (2003, p. 75) quando trata seu material sobre o México e analisa “a rede de relações de grupos que conecta as localidades e as instituições nacionais”: Essa não é uma questão presente apenas no caso dos quilombolas. Para existir publicamente como sujeito político coletivo, para sair da condição da existência atomizada e ser reconhecido como sujeito de direitos, qualquer segmento ou categoria social necessita de portavozes que falem em seu nome, que façam com que o problema vivido individualmente, privadamente, se imponha na arena pública como problema social. (LENOIR, 1998, p. 85-88) No caso de Alcântara essas redes se estendem entre as localidades e organismos nacionais e supranacionais como OEA e OIT. A ligação Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 46 dos quilombolas (famílias de camponeses, pescadores, artesãos, extrativistas, espalhados em povoados do interior, e até mesmo grupos em áreas urbanas, de estados de todo o Brasil), passou a se realizar com essas instituições nacionais e supranacionais por meio de uma rede de mediadores, constituída de antropólogos, advogados, parlamentares, integrantes do Ministério Público, pesquisadores, clérigos, jornalistas e outros profissionais, que passaram a apoiá-los em suas reivindicações e a realizar a mediação entre eles e a sociedade mais ampla. Suas reivindicações chegaram às instituições nacionais por meio de uma série de porta-vozes, agentes sociais também organizados em movimentos e associações, instituídos como os que passaram a deter a fala autorizada nos assuntos relativos aos quilombolas. Portanto, neste artigo, penso ser interessante tomar como objeto de estudo questões relativas à delegação, às formas de representação e às contradições advindas da movimentação desses intermediários (WOLF, apud SILVERMAN, 1977, p. 293-294; SILVERMAN, WOLF, 2003, p. 253-294) que se colocam entre os quilombolas, os aparelhos de estado e outras instituições, tendo como inspiração situações empíricas apreendidas em contexto de trabalho de campo. Tento refletir também sobre as estratégias de abordagem e tentativas de submissão ou cooptação dos quilombolas, de parte das instituições nacionais – oficiais ou privadas – que se utilizam da intermediação de agentes sociais locais. O Centro de Lançamento e os quilombolas de Alcântara Antes de entrar na discussão central desse artigo – o papel dos mediadores – creio ser necessário situar o leitor, em linhas gerais, quanto ao caso de Alcântara. Imaginada pelos militares nos anos 1980 como um “vazio demográfico”, Alcântara tornou-se um problema – jurídico e social – a partir da Constituição de 1988, que garantiu aos chamados remanescentes de quilombos o direito a titulação de seus territórios. Em 2004, como resultado da luta pela permanência em seu território, que resultou na elaboração de um laudo antropológico solicitado pelo Ministério Público Federal (ALMEIDA, 2006a), a Fundação Palmares, do Ministério da Cultura, reconheceu o território étnico de Alcântara, integrando 152 comunidades, termo aqui utilizado como unidades sociais registradas em localidades chamadas povoados. Posteriormente, o INCRAMA identificou 157 comunidades, com aproximadamente 17 mil e 500 pessoas. As famílias que integram essas unidades sociais vivem de pesca, Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 47 agricultura e extrativismo, baseando sua economia no uso comum dos recursos naturais. Constituem-se como populações tradicionais segundo a legislação nacional e internacional. São grupos protegidos por lei pelo fato de sua dinâmica cultural representar patrimônio contemplado na Constituição Federal (artigos 215 e 216 e artigo 68 dos ADCT) e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Alguns anos após um decreto de desapropriação por utilidade pública, em 1980, 312 dessas famílias foram deslocadas compulsoriamente dos seus lugares, à beira do oceano, e instaladas em lotes, nas chamadas agrovilas. Nesses novos locais não podem se reproduzir material e socialmente, pois, são áreas distantes do mar e constituídas de solos arenosos, inviabilizando a pesca e a lavoura. Ainda hoje não receberam títulos das terras e das casas entregues pela Aeronáutica. Os jovens casais são proibidos de edificar novas residências. Essa situação pode ser considerada como limpeza étnica, pois as jovens gerações são obrigadas a migrar para a periferia de Alcântara e de São Luís, proibidas de viver nos territórios de seus ancestrais. Por ter tratado esses brasileiros como não cidadãos e provocado uma grave desestruturação ambiental e social no município como um todo,3 o Brasil responde perante a Câmara Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Nas agrovilas, famílias foram separadas, sua soberania alimentar foi duramente atingida, a realização de festas e rituais foi seriamente comprometida e impedido o contato com cemitérios antigos. Há também uma ação interposta junto à OIT – Organização Internacional do Trabalho – no mesmo sentido, já que são cerca de 30 anos de descumprimento da legislação, de desrespeito a acordos lavrados em cartório ou estabelecidos judicialmente. No litoral, a luz elétrica e o telefone chegaram há pouco tempo. Recentemente, as famílias que permaneceram no litoral do município foram atingidas pela ação de empresas ligadas à Alcântara Cyclone Space, binacional brasileiro-ucraniana, cuja constituição está relacionada à expansão do Centro de Lançamento de Alcântara, por meio da qual o Brasil pretende alugar a base de lançamento a países estrangeiros. Em 2008, passados oito anos da instauração de uma ação civil pública, no âmbito da qual o Ministério Público cobra do Estado brasileiro a titulação do território quilombola, empresas contratadas pela binacional 3 Em outubro de 2008 o Sr. Leonardo dos Anjos e a Sra. Militina Serejo, de Brito e Mamuna respectivamente, estiveram, como peticionários, junto a essa Comissão, em Washington, prestando depoimentos. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 48 brasileiro-ucraniana Alcântara Cyclone Space intrusaram povoados do litoral onde pretendiam implantar inicialmente seis e, depois, três sítios de lançamento. Realizaram inúmeras perfurações, suprimiram vegetação sem licença do IBAMA, destruíram caminhos e roçados, devastando margem de rios. Ameaçadas em suas condições de existência, as famílias reagiram, instalando barreiras e obrigando as empresas a se retirar. Diante da resistência das famílias, em fins de 2008 foi homologado um acordo judicial acerca da titulação do território, segundo o qual as empresas não realizariam quaisquer obras no território quilombola, recuando para dentro dos 8700 hectares já detidos pelos militares. As partes se comprometiam, ainda, a não recorrer judicialmente, porém o governo brasileiro já desrespeitou esse acordo, tendo o Ministério da Defesa recorrido da decisão. A atuação dessas empresas corresponde a múltiplos interesses atuais envolvendo o governo brasileiro e empresas ligadas ao mercado aeroespacial, guardando íntima relação com uma história de interferência sobre a vida desses grupos, que se estende por mais de 20 anos. O que se constata no momento, tanto nas agrovilas quanto nesses povoados do litoral, é resultado de um processo histórico que se desenrola por quase três décadas. Os povoados Mamuna, Baracatatiua, Brito, Mamuninha, Retiro, Mato Grosso, Itapera, Canelatiua, Ponta de Areia e outras localidades, são classificados de acordo com uma taxonomia nativa, de beira de costa. Conforme foi demonstrado noutro trabalho (PAULA ANDRADE; SOUZA FILHO, 2006), as famílias desses povoados de beira de costa são responsáveis, hoje, pela produção e manejo dos estoques de alimentos não apenas às comunidades em questão, mas também àquelas das agrovilas. O uso comum dos recursos naturais, característica fundamental da economia desses grupos, além de obedecer a regras específicas, definidas coletivamente e acatadas de modo consensual, é orientado por princípios de base étnica que garante o atendimento das necessidades imediatas e preserva os recursos para apropriação futura. Essa forma de se relacionar com o ambiente natural define uma sustentabilidade ecológica (LIMA; POZZOBON, 2005) própria, orientada pelo que a antropologia denomina de saber local (ESCOBAR, 2000), por um savoir faire camponês, caracterizando uma arte da localidade (PLOEG, 2000). Tais sistemas de conhecimento, conformando um modo próprio de se relacionar com a natureza e formas particulares de organização social com especificidades sociais, históricas e étnicas, têm sido utilizados como Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 49 referência na caracterização desses grupos como remanescentes de quilombos e populações tradicionais (ALMEIDA, 2006a). Não por serem considerados resquícios do passado que rigidamente se conservem e se reproduzam ao longo do tempo, mas por sua dinâmica interna representar um patrimônio social e cultural contemplados tanto na Constituição Federal (artigos 215 e 216 e artigo 68 dos ADCT) quanto na Convenção 169, da qual o Brasil é signatário. O lugar e a posição da pesquisadora O material empírico que suscita as reflexões apresentadas a seguir se origina de trabalhos de campo realizados em Alcântara, no Maranhão, em povoados diretamente atingidos pela implantação e tentativa de expansão do Centro de Lançamento de Alcântara, em território atualmente reconhecido por setores do governo brasileiro como devendo ser titulado aos quilombolas.4 Refere-se ainda, a resultados de pesquisas realizadas para fins acadêmicos e de formação de alunos; a levantamentos para a produção de peças solicitadas pelo Ministério Público Federal no Maranhão (PAULA ANDRADE; SOUZA FILHO, 2008) ou para a redação de artigos veiculados em periódicos de grande circulação nacional; a sistematização de informações para subsidiar a ação dos chamados atingidos em situações diversas de interlocução com seus antagonistas. Esse material empírico diz respeito, ainda, a organização de informações para atuação como perita em audiência na Comissão de Direitos Humanos da OEA, juntamente com dois representantes dos quilombolas. Neste sentido, este artigo resulta da adoção de uma perspectiva próxima daquela classificada como sociologia pública, tal qual conceituada por Burawoy (2006) ou da antropologia do desenvolvimento como entendida por Viola (2000), Olivier de Sardan (1995) e Bierschenk (2008). Resulta, portanto, do envolvimento com o caso de Alcântara desde a participação como antropóloga no Ministério de Reforma e Desenvolvimento Agrário, antigo MIRAD, no período da Nova República (1985-1987). Depois disso, desenvolvi trabalhos de pesquisa sobre: insegurança alimentar provocada pela implantação do Centro de Lançamento em povoados de pescadores e pequenos agricultores, com recursos do antigo Ministério Extraordinário 4 Apesar de a Fundação Cultural Palmares ter reconhecido numa faixa contínua, o território ocupado por 154 povoados quilombolas, o que constituiria o território étnico de Alcântara, tal como caracterizado no laudo pericial; apesar de existirem acordos judiciais homologados pela Justiça Federal no Maranhão, reconhecendo que o Estado Brasileiro, por meio de seus órgãos específicos, deva titular essa grande área e entregá-la aos quilombolas, outros setores como a Casa Civil, o Gabinete de Segurança Institucional, o Ministério da Defesa, têm interferido politicamente e, de fato, a portaria do INCRA que delimita o território nunca foi publicada, tendo sido convocada uma audiência de conciliação pela AGU. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 50 de Segurança Alimentar – MESA – e do CNPq (PAULA ANDRADE; SOUZA FILHO, 2006); as estratégias de resistência camponesa ancoradas em identidades étnicas; os sistemas de conhecimento, apropriação e manejo dos recursos naturais por esses grupos étnicos vis-à-vis as transformações provocadas pela implantação da Base e, finalmente, sobre as referências culturais do patrimônio imaterial desses grupos com recursos do IPHAN (PAULA ANDRADE; SOUZA FILHO, 2009). Ao longo dessas décadas que transcorrem entre 1985 e os dias de hoje, tive a oportunidade de acompanhar a movimentação dos atuais quilombolas em sua interlocução com parlamentares, representantes de órgãos oficiais brasileiros e internacionais – ONU e OEA –, além da empresa Alcântara Cyclone Space e suas contratadas. Nesses trabalhos tive a oportunidade de conviver com os moradores de povoados situados no litoral do município ou nas chamadas agrovilas, onde famílias foram assentadas compulsoriamente pelos militares nos anos 1980. Essa convivência vem-se dando em suas próprias casas, nos seus lugares de residência e trabalho e também durante a realização de audiências públicas na sede do município, nos povoados ou na capital São Luís. São audiências oficiais, assembléias, reuniões, que envolveram a presença não apenas de representantes dos povoados, mas de entidades de assessoria e apoio de Alcântara, São Luís ou de outros estados do Brasil, além de parlamentares, representantes de organismos internacionais, funcionários de empresas interessadas no Centro de Lançamento, representantes de ministérios e órgãos governamentais. Os mediadores, os quilombolas e as situações de conflito com a Alcântara Cyclone Space Como vimos até aqui, constata-se que o surgimento desse novo sujeito de direitos provocou transformações em vários campos: intelectual, jurídico, da própria organização desses camponeses e seus mediadores, dos aparelhos de estado e das políticas públicas. A partir de 1988, registra-se um esforço de parte de historiadores, arqueólogos, mas, principalmente, de antropólogos, para elaborar um arcabouço conceitual de modo a renovar os modelos explicativos e, assim, dar conta dos processos sociais que eclodiram em todo o país envolvendo esses novos sujeitos de direitos. No caso dos estudos do campesinato maranhense, se nos anos 1970 as categorias analíticas adotadas eram propriedade comunal, campesinato comunal (MOURÃO, 2007) (PRADO, 2007), no final dos anos 1980 e 1990 a categoria analítica que se impôs adotou os termos da categoria nativa Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 51 uso comum para indicar o sistema específico de apropriação e manejo da terra e demais recursos básicos, passando-se a falar em terras de uso comum (PAULA ANDRADE, 1999). Por outro lado, o Estado por meio de seus diferentes aparelhos, paulatinamente, a partir dos anos 1990, também tenta ir ao encontro das demandas desses grupos, promovendo políticas públicas específicas e adotando uma “estratégia da condescendência”. Os aparelhos de Estado buscam, estrategicamente, adotar a mesma linguagem dos movimentos aos quais se dirige. Assiste-se a uma etnicização das políticas públicas, aparecendo na agenda dos órgãos governamentais, sobretudo dos anos 1990 em diante, uma série de programas e projetos específicos para quilombolas, como se não fosse tarefa do Estado levar eletrificação rural, educação, infra-estrutura a todas as comunidades rurais e não apenas àquelas que fossem identificadas, classificadas, reconhecidas como quilombolas. No caso de Alcântara, no auge da resistência à expansão do Centro de Lançamento de Alcântara e da luta pelo reconhecimento e titulação do território quilombola, chegou-se a assistir a presença combinada de 11 ministérios e a proposta de deflagração de 166 ações oficiais no município, cuja avaliação mereceria atenção e ainda está por ser realizada. Paralelamente, surgem e se reforçam estruturas de mediação que se interpõem entre a sociedade mais ampla e os camponeses que adotam a identidade de quilombolas – associações em nível municipal, estadual e nacional, movimentos organizados, entidades de apoio e assessoria. O Estado elege alguns agentes, no âmbito dessas organizações que falam em nome dos quilombolas, com representação estadual e nacional, para serem os interlocutores privilegiados na implementação de políticas específicas de recorte étnico para esses segmentos. Pode-se dizer que essas organizações, fundadas para articular as ações com vistas à defesa dos direitos dos quilombolas, principalmente àquele relativo à titulação dos territórios desses grupos, se especializaram na gestão de recursos públicos e passaram a se constituir em interlocutores exclusivos dos órgãos estatais, elidindo a presença do órgão de classe dos trabalhadores rurais. Estamos diante, portanto, de vários processos sociais que transcorrem em distintos campos – acadêmico-científico, da burocracia estatal, da sociedade civil – envolvendo porta-vozes dos quilombolas, produtores de conhecimento, funcionários de órgãos oficiais, representantes do Estado, operadores do Direito e de empresas estatais e privadas, agentes de organizações da sociedade civil, em vários estados da federação. Tais processos dizem respeito, em última instância, aos conflitos envolvendo a existência de grupos que reivindicam um passado escravo como Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 52 fundamento do direito à permanência em seus territórios. A própria discussão acerca da distinção dos conceitos de terra e território ganha a cena acadêmica, jurídica e política, envolvendo distintas posições entre aqueles que se fixam nos direitos patrimoniais e aqueles que defendem os direitos mais amplos de grupos étnicos. Em Alcântara, as lutas contra a implantação do Centro de Lançamento, chamado simplesmente de Base, transcorrem ao longo dos últimos 24 anos e ganham um de seus marcos na tentativa das famílias de reagir contra o deslocamento compulsório promovido pelos militares nos anos 1985 e seguintes. Naquele momento, o órgão de classe dos trabalhadores rurais5 assume a liderança dessas lutas, apoiado em mediadores externos – intelectuais, principalmente antropólogos, religiosos e advogados. Mais tarde, no final dos anos 1990, surge um movimento autodenominado atingidos (pela Base de Alcântara) e, nos anos que se seguem, há um afastamento das antigas lideranças sindicais do controle e direção das lutas num momento em que estava em jogo não mais a implantação, mas a expansão da Base. Paralelamente, no mesmo período, na metade dos 1990, surgem organizações de comunidades negras rurais quilombolas em nível estadual e nacional, que foram conclamadas a se associar a centenas de comunidades espalhadas por vários municípios. Tais organizações passaram a gerenciar recursos para os chamados “projetos”, como resultado das políticas de recorte étnico implementadas nos dois governos Lula. Outras entidades estaduais ligadas ao movimento negro ou de apoio às lutas camponesas e em prol dos direitos humanos perderam protagonismo nesse momento, assim como a luta pela terra deixou de estar no foco das mobilizações. A gestão de projetos de construção de casas de farinha, residências, inclusão digital e outras iniciativas voltadas à atuação junto à criança quilombola, ao jovem quilombola, à mulher quilombola, passou a contrastar com a mobilização nas décadas anteriores, quando a luta pela terra mostrava sua face mais aguda, com altos índices de despejos, destruição de casas, assassinatos de camponeses, de líderes religiosos e outros profissionais a eles ligados. Naquelas décadas, as atividades das entidades de apoio e assessoria se voltavam maciçamente para a assistência jurídica e os advogados apareciam como mediadores fundamentais entre as camponeses e as instituições nacionais. No caso de Alcântara, o movimento que surge no final dos 1990, enfatizando a situação dos atingidos pela Base, termina se fundindo com as movimentações dessas organizações de comunidades negras rurais, tornadas 5 Atualmente há duas entidades de representação dos trabalhadores rurais, no município e em nível estadual Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 53 as principais clientes das políticas governamentais e as interlocutoras oficiais para assuntos atinentes aos quilombolas. Seus dirigentes passam a se constituir como interlocutores privilegiados em Brasília, para assuntos quilombolas, terminando por sobrepor a delegação para tratar de políticas públicas àquela para intermediar a resolução dos conflitos entre atingidos e a Base. Muitas vezes, a negociação dos chamados projetos termina elidindo as exigências de embates com os órgãos oficiais, uma vez que os intermediários que discutem políticas e benefícios para os quilombolas são os mesmos porta-vozes das reivindicações dos atingidos de reconhecimento e titulação do território étnico de Alcântara. Em grande parte dos casos esses mandatários de organizações de perfil étnico e racial, constituídos como porta-vozes dos quilombolas, são oriundos dos próprios povoados que passam a ser designados de comunidades negras rurais. Alguns deles, a partir do controle dessas organizações, passaram a ocupar cargos dentro dos aparelhos de estado, em nível estadual ou nacional, mudando de posição, mas conservando sempre a função de mediadores entre os quilombolas e as instituições nacionais. Há, porém, situações específicas em que esses que passam a ser os representantes, a falar em nome de, a representar os quilombolas, são pessoas de origem camponesa, porém já radicadas no meio urbano e com habilidades e capital cultural distintos daqueles detidos pelos que vivem nos povoados, cultivando e pescando. Há situações, inclusive, de indivíduos que, tendo origem camponesa e tendo ocupado cargos em instituições nacionais, tornam-se esses interlocutores bilíngues: que podem falar a língua dos representados e se comunicar com as instituições nacionais. Conquistam o papel de porta-vozes pelo fato de se comunicarem com os dois sistemas – local e nacional – fluentemente.6 Deste modo, os quilombolas, como sujeito coletivo, passam a estar conectados com grupos na sede do município, na capital do estado e na capital do país, por meio de relações com ex-integrantes de suas próprias comunidades ou de pessoas da sede do município galgaram postos nessas organizações representativas e que controlam poder e recursos fora dessas comunidades. São integrantes de grupos orientados para a nação, para utilizar os termos de Wolf (2003, p. 73-91) que fazem a mediação entre o todo maior e os grupos orientados para a comunidade. Estes grupos orientados para a comunidade são formados por pessoas que residem 6 Em trabalhos de campo realizados entre os Tenetehara, nos idos de 1970, no âmbito da Comissão Pró-Índio do Maranhão, observávamos que muitos indígenas que haviam morado com não-indígenas na infância e juventude, tinham servido ao Exército e, na volta a sua comunidade, tornavam-se lideranças e mediadores entre uns e outros. A idéia de que eram uma espécie de intermediários politicamente bilíngues nos surgiu naquele momento, em discussões com Murilo Santos. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 54 nos povoados, cultivando e pescando e, muitas vezes, exercendo o cargo de professores que residem no local. Atualmente, são dirigentes de associações de moradores, que cuidam dos interesses das famílias que residem no local. Conforme Wolf, nessa malha de conexões característica das sociedades complexas, as funções de mediação implicam no exercício do poder de algumas pessoas sobre outras, provocando conflitos e acomodações tanto no nível local (dos povoados, das comunidades), quanto em nível supra comunitário. Nesses processos são estabelecidas alianças em que agentes locais buscam reconhecimento externo e podem adotar um comportamento manipulador a fim de atingir seus próprios interesses. Eles se tornam os intermediários econômicos e políticos das relações nação/comunidade, função que traz suas recompensas [...] indivíduos capazes de atuar em termos de expectativas tanto orientadas para a comunidade como para a nação tendem a ser selecionados para a mobilidade. Eles se tornam os intermediários econômicos e políticos das relações nação-comunidade, função que traz suas recompensas (WOLF, 2003, p. 83). Entre o mandato para falar em nome de e a usurpação da palavra do outro, da posição do outro, o limite é tênue. Mesmo porque essas organizações de representação estadual e nacional passam a se mover em arenas onde se disputam interesses diversos, o que resulta em conflitos, no estabelecimento de alianças, em acomodações distintas. Nessa arena, das quais o antropólogo não se furta, esses intermediários se movem também a partir de múltiplos interesses. O caráter desinteressado da delegação nada mais é que uma das faces da usurpação, do “mistério do ministério” (BOURDIEU, 1984). Desde o surgimento dos quilombolas como novos sujeitos de direitos, desenha-se, portanto, em todo o país e, no caso analisado, em Alcântara, uma arena em que se movem integrantes das próprias comunidades, seus porta-vozes colocados na sede do município e na capital do estado, representando as organizações de comunidades negras rurais, assim como funcionários de órgãos oficiais. Advogados e outros profissionais atuando em entidades não-governamentais e em entidades confessionais, antropólogos realizando pesquisas na área e atuando no INCRA, parlamentares de todos os matizes ideológicos e partidários, integram essa arena onde se disputa a autoridade da fala legítima em nome desses sujeitos e onde se enfrentam, também, diferentes interesses na condução do que parece Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 55 ser o móvel de todos: a titulação do território quilombola e a defesa dos direitos desses homens e mulheres. A relação com os mediadores – duas situações emblemáticas Para o caso de Alcântara, gostaría de examinar duas situações que me parecem emblemáticas dos conflitos e acomodações de que fala Wolf, envolvendo os quilombolas dos povoados e os agentes colocados nas diferentes redes de mediação, dentre as quais poderíamos distinguir, grosso modo, pelo menos duas: a constituída por organizações de recorte étnico e racial (que assumem a representação dos quilombolas em nível estadual e nacional), e organizações da sociedade civil que se colocam como assessores e apoiadores desses grupos.7 Em 2008 se inicia o que as empresas denominam de “serviços de préengenharia” em áreas indicadas pela Agência Espacial Brasileira como próprias para a expansão do Centro de Lançamento de Alcântara, nas quais se edificariam novos sítios de lançamento a serem explorados pela empresa binacional brasileiro-ucraniana e por outros países com os quais o Brasil viria a estabelecer acordos. Passou a estar em jogo a apropriação de ampla faixa do território quilombola de Alcântara, ou seja, de todo o litoral do município, não apenas para as atividades relacionadas ao Cyclone 4, como também no sentido de reservar áreas para futuros empreendimentos ligados ao mercado aeroespacial (PAULA ANDRADE; SOUZA FILHO, 2008). Principalmente três povoados do litoral8 passam a se defrontar diretamente com engenheiros e outros funcionários dessas empresas, começaram a circular em suas áreas. Diante do avanço das empresas, observo reações distintas, de parte de famílias desses povoados, no tocante à intrusão em seus territórios e à relação com aqueles funcionários. Num primeiro caso (povoado 1), os funcionários não chegaram sequer a se aproximar do núcleo de casas, pois o presidente da associação de moradores se reuniu com um grupo de homens e fez com que voltassem de onde estavam, na área de praia que circunda o povoado. No segundo caso ( povoado 2), rompendo com a posição dos mediadores, inclusive com os pesquisadores – antropólogos e estudantes – que 7 8 Certamente a complexidade e a dinâmica que envolve a movimentação dessas redes exigiria esforços de interpretação que excedem as pretensões desse artigo. A omissão dos nomes desses lugares é proposital, por questões éticas. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 56 pesquisam na área, com religiosos que os apóiam e também com seus vizinhos mais próximos, as famílias estabeleceram “negociação” com as empresas. Foram procuradas por altos funcionários da ACS e da ATECH, que lhes prometeram benefícios por meio da implantação de infraestrutura (energia elétrica, telefone, água e estrada) e empregos imediatos. Várias pessoas do povoado passaram a se empregar temporariamente com as subcontratadas dessas empresas para serviços de guias na área, desmatamento, serviços domésticos (lavagem de roupa e preparação de comidas).9 Nesse povoado, portanto, as empresas se fizeram presentes sem problemas e maiores conflitos e os mediadores, até então reconhecidos como representantes de todos os quilombolas do município, assim como os pesquisadores, que apoiavam as ações de resistência contra essas empresas, foram avisados para não se apresentarem no povoado. Na outra situação se encontra um povoado vizinho ao povoado 2, intitulado povoado 3. Neste, alguns funcionários das empresas, sobretudo engenheiros, já haviam estabelecido relações comerciais com algumas famílias que mantêm pequenos comércios no lugar. Nesse momento, esses técnicos passam a exercer o papel de mediadores entre as famílias e a direção das empresas, que por sua vez têm conexão direta com ministérios, tendo alguns de seus diretores, muitas vezes, sido ministros de estado.10 Ou seja, nesse momento, as tarefas de mediação entre as instituições nacionais e até mesmo supranacionais são realizadas por técnicos que se apresentam nesses lugares como pessoas que “apenas querem realizar o seu trabalho”. Desta forma, parte dos moradores do povoado 3 recebe esses novos agentes, que ali comparecem para fazer compras, conversar informalmente. O conflito se inicia quando, não respeitando as fronteiras físicas entre povoados, as empresas, que alegavam estar realizando trabalhos de “pré-engenharia”, sediadas com suas máquinas no povoado 2, passaram a penetrar no povoado 3, devastando babaçuais, atingindo roçados, ameaçando de destruição as cabeceiras do rio que serve as famílias. Nesse momento, em um ato repentino e não esperado pelos mediadores que até então se tinham alçado à condição de porta-vozes dos quilombolas do município, as famílias se reúnem e 9 Não vem ao caso analisar aqui as estratégias de que se utilizaram os funcionários dessas empresas em sua aproximação com as famílias, procurando dirigir-se a pessoas indicadas por vereadores e funcionários da Prefeitura e não àqueles formalmente constituídos como representantes da associação de moradores. Este é um tema para outro trabalho já em andamento. 10 O Sr. Roberto Amaral, presidente da Alcântara Cyclone Space, foi ministro de Ciência e Tecnologia e ocupou também, em alguns momentos, a presidência do PSB – Partido Socialista Brasileiro. Deputados federais ligados a esse partido ou a seus aliados, tem se movimentado na Câmara e em outras instâncias do executivo federal, no sentido de propagar a incompatibilidade da existência dos quilombolas em seus territórios e o que tem sido classificado como “desenvolvimento do país”, “interesse nacional” e “progresso” dessas próprias comunidades. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 57 interrompem o trabalho das máquinas, obrigando-as a parar durante meses e meses enquanto movimentavam outras instituições nacionais (IBAMA, Ministério Público, Ministério do Desenvolvimento Agrário). Essa resistência terminou determinando o estabelecimento de um acordo judicial em que a empresa ACS concordava em recuar para dentro dos 8700 hectares já detidos pelos militares e sob controle do CLA. A resistência dessas famílias surpreendeu os mediadores que vinham anunciando e agindo no sentido do estabelecimento das chamadas “ações compensatórias”, tomando por irreversível a expansão do CLA em todo o litoral do município. A ação direta de enfrentamento das máquinas das empresas corresponde à dinâmica da própria rede de mediadores, envolvendo antropólogos, ecólogos, advogados, estudantes, religiosos, mas não se pode dizer, igualmente, que até mesmo esses agentes, tenham deixado de se surpreender com a firmeza da negativa das famílias em permitir que as empresas dessem continuidade a seus trabalhos. Considerações Finais No caso dos quilombolas, agentes sociais que não podem se fazer ouvir por si próprios, que não ocupam a condição de cidadãos plenos na sociedade brasileira, desprovidos de capital cultural, de informações, de acesso às instituições nacionais, é patente que passam a existir à medida que constituem representantes, seus porta-vozes (BOURDIEU, 1984, p. 50). Para sair da existência atomizada devem constituir o porta-voz, de modo a aceder à condição de sujeito coletivo. Esse porta-voz deve sua existência à necessidade da objetivação desse novo sujeito coletivo em movimentos, organizações, associações várias que, por sua vez, nomeiam ou elegem mandatários. Só por meio dessas organizações os quilombolas passam a existir como pessoa moral, como agentes sociais com existência pública. Para que sejam reconhecidos como tal, além dos representantes que falam por eles, há ainda o especialista reconhecido oficialmente como capaz de reafirmar, de acordo com os cânones da ciência, a condição quilombola do grupo e, como se não bastasse, o grupo deverá estar inscrito em uma instituição oficial, cadastrado como sujeito coletivo e, assim, receber a chancela que lhe permitirá ter reconhecido seu território pelo Estado brasileiro. No caso de Alcântara, em vários dos momentos de seu processo de resistência, algumas comunidades assumem papel de destaque, passando a desempenhar papéis especializados no tocante ao todo maior (o território Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 58 étnico de Alcântara), conforme cada momento do enfrentamento do Estado brasileiro, seja ele representado pela Agência Espacial Brasileira, a Infraero, a direção do Centro de Lançamento de Alcântara, a Casa Civil, a ACS e os diferentes ministérios e órgãos por meio dos quais se dá a manifestação do poder público. Deste modo, no momento do remanejamento compulsório, nos anos 1980, as famílias remanejadas para as agrovilas, representadas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais assumiram a frente da resistência, promovendo atos de enfrentamento, negociando com a Aeronáutica e estabelecendo acordos. Nas etapas que se sucederam, após a consolidação do remanejamento e todas as consequências socialmente trágicas para aquelas famílias, a resistência foi se deslocando para outras áreas geográficas do município e sendo assumida pelas famílias que ainda seriam atingidas em função da implantação de novos sítios de lançamento. As comunidades do litoral e aquelas que deveriam receber os futuros remanejados, conforme planejamento da Agência Espacial Brasileira, passaram a ser o foco da resistência, registrando-se um deslocamento geográfico dos enfrentamentos. Outro foco paralelo de embates se observou de parte daqueles que já haviam sido remanejados décadas atrás e que buscavam reapropriar terras, estabelecendo roçados nas áreas açambarcadas pela Aeronáutica, mas o grande embate com os militares e com outros aparatos de Estado passou a girar em torno da tentativa de expansão do Centro de Lançamento de Alcântara e de instalação de sítios de lançamento para aluguel a outros países em todo o litoral do município. Nesse momento, comunidades do litoral passaram a se insurgir contra seus antagonistas sem, necessariamente, passar pelo controle dos portavozes colocados no município, na capital ou mesmo em Brasília. Tentaram negociar diretamente com as empresas ou resistiram e obrigaram as máquinas a parar, reação esta que levou a um recuo do empreendimento daquela binacional para dentro da área já controlada pelos militares. Tentando negociar diretamente com essas empresas ou empreendendo ações diretas de embargo dos trabalhos da ACS, parecem ter prescindido dos mediadores, dos porta-vozes naquele momento. Isto foi possível porque o próprio campo da mediação está em constante movimento e transformação. Sendo assim, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais voltou a assumir o papel de porta-voz dos quilombolas de Alcântara, inclusive para efeito de representação judicial, movimento que não se fez, igualmente, sem o apoio e a assessoria e, portanto, sem a mediação, de uma série de profissionais colocados em distintas organizações. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 43-61, 2. sem. 2009 59 O próprio fato de estar redigindo este texto nos insere nesse campo dinâmico e complexo e indica que não deixamos de assumir uma posição. As questões, as contradições, resultantes da inserção, como intelectuais, nesse campo, estão totalmente em aberto para discussão. Abstract This article deals with the formation of a new subject of rights – quilombolas – and the field of mediation in which he has been involved since the insertion of Article 68 in the 1988 Brazilian Constitution. From the analysis of empirical situations regarding the quilombolas of Alcântara, Maranhão; we aim at problematizing the fact that these new subjects of rights in order to exist publicly and forward their claims, came to depend on a variety of structures and mediation agents which intervened between them and the national and international institutions. Keywords: Alcântara; quilombolas; land conflicts; mediation. Referências ALMEIDA, A. W. B. de. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara: laudo antropológico. Brasília, DF: MME/MDA/MDS, 2006a. . Quilombos: sematologia face a novas identidades. In: FRECHAL-Terra de Preto: quilombo reconhecido como reserva extrativista. São Luís: PVN/SMDDH/CCN, 1996. . Quilombos: tema e problema. 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Este título é uma clara referência ao trabalho de José Reginaldo Gonçalves (1996), a quem agradeço os ensinamentos e a amizade. Desnecessário dizer que as idéias aqui desenvolvidas são de responsabilidade, única e exclusiva, do autor. Nos últimos anos assistimos a um verdadeiro processo de espetacularização do circo no Brasil, sendo exemplares as recentes reapresentações do Cirque du Soleil, a criação de inúmeras companhias, trupes e escolas de circo em várias cidades do país às propostas lúdicopedagógicas de arte-educação das ONG’s dirigidas às crianças e adolescentes em situação de risco social. A compreensão das razões desse sucesso leva a um exercício de reflexão antropológica sobre o significado do circo e o sentido da cultura nas sociedades contemporâneas. Especificamente: o texto apresenta uma análise do discurso sobre o sentido da tradição frente ao processo de modernização da cultura circense no Brasil a partir do trabalho de campo realizado junto ao Grande Circo Popular do Brasil (Marcos Frota Circo Show) anos atrás. Palavras-chave: circo; cultura; tradição; moderni zação. 64 “O homem que inventou o circo teve uma previsão do céu.” (Cecília Meireles) O Circo em Cartaz O circo está em moda. Nunca se falou tanto de circo ou se lançou mão de sua imagem como nos últimos anos. Do sucesso dos espetáculos Saltimbancos (2007), Alegria (2008), Quidam (2009) do Cirque du Soleil às performances circenses de crianças nos sinais de trânsito nas ruas das grandes cidades brasileiras, o circo hoje parece fazer parte da paisagem cultural do país. Mas a verdade é que os espetáculos apresentados na televisão, passando pela criação de inúmeras companhias, trupes e escolas de circo em várias metrópoles do Brasil às propostas lúdico-pedagógicas de arte-educação aplicadas a crianças e adolescentes em situação de risco social, encobrem o fato de que as razões do sucesso do circo, hoje, são bem mais antigas e têm dimensões internacionais. Ao menos desde os anos 1960, alguns performers e artistas populares começaram a divulgar a idéia de um “circo social” que, posteriormente, ganharia o qualificativo de “novo circo”. É nesse contexto que surge a proposta do Cirque du Soleil no Canadá em 1984; no Brasil, pode-se destacar a experiência do Grande Circo Popular do Brasil (Marcos Frota Circo Show), criado em 1991. No entanto, o circo continua ainda bastante desconhecido se considerarmos o número de publicações sobre o assunto em território nacional. Assim, contrariando o entusiasmo do historiador Coxe (1988) que, baseando-se nas estimativas de Raymond Toole Scott em Circus and Allied Arts, declara haver mais de 16 mil títulos de livros, artigos e pesquisas sobre circo no mundo, no Brasil, observa a historiadora Ermínia Silva, “muito pouco se escreveu e se escreve sobre o circo” (1996, p. 20). Com efeito, a “moda do circo” aliada à pouca divulgação dos estudos sobre o circo no país, por si só, justificaria toda e qualquer reflexão sobre o significado do circo frente às políticas culturais desenvolvidas na sociedade brasileira atualmente. Mas outras razões podem ser apresentadas, sendo a principal o fato de que a compreensão do fenômeno da espetacularização pela qual passa hoje o circo, deve ser visto à luz do processo mais amplo de ressignificação do próprio conceito de cultura nas sociedades contemporâneas. Nessa perspectiva, a análise em foco parte da caracterização do circo no mundo moderno seguida das discussões em torno do conceito de cultura no contexto dos anos 1980, tendo como paralelo o movimento Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 65 de divulgação do chamado “novo circo”; e, na sequência, apresenta o caso do Grande Circo Popular do Brasil (Marcos Frota Circo Show) com o objetivo de ilustrar a “eficácia simbólica” da “retórica da tradição” como parte do processo de construção político-cultural da imagem do circo na sociedade brasileira contemporânea.1 O Fetichismo da Cultura É no mínimo curioso, falarmos em processo de espetacularização do circo quando, durante muitos anos, o mesmo foi considerado ao menos pelos norte-americanos “o maior espetáculo da terra!”. Por outro lado, embora alguns pesquisadores encontrem em um longínquo passado histórico as raízes do circo, sua forma moderna é datada de 1768, quando o então ex-militar de cavalaria Philip Astley passou a cobrar pelas apresentações acrobáticas dos ginetes correndo céu aberto sobre o dorso nu dos cavalos no espaço circular do picadeiro, na cidade de Londres. Portanto, o circo surge no contexto das sociedades urbanas modernas como uma das primeiras modalidades de espetáculo de massa da indústria de diversão de fins do século XIX. Nessa perspectiva, pode-se aproximar o circo do conjunto de manifestações e símbolos que passaram a integrar com o tempo o imaginário nacional de algumas sociedades modernas, como nos sugere Eric Hobsbawn (1984) em sua análise das tradições inventadas. Haja vista o que nos diz Saxon, que a despeito de sua origem inglesa e “apesar da concorrência do cinema, da TV e de um sem-número de distrações surgidas no século XX, o circo continua a ser, confirmando um dito popular nos Estados Unidos, ‘tão norte-americano como uma torta de maçã’” (1988, p. 34). Processo semelhante pode ser observado com o futebol no Brasil. Com o tempo, o circo se legitimou como símbolo da identidade norte-americana ao mesmo tempo que se tornou um ícone de cultura internacional. O desenvolvimento do “circo americano” desde fins do século XIX é, nesse caso, paradigmático.2 Com efeito, quando hoje se fala em surgimento de um ”novo circo” a partir da década de 1980, não significa uma novidade no sentido estrito do termo. Do ponto de vista histórico, o circo parece estar em constante 1 2 A “eficácia simbólica” aparece pela primeira vez em Lévi-Strauss (1967) e tem uma dimensão performativa na medida em que a linguagem (do xamã) pode ser vista como um sistema de significados por meio do qual (o doente) pode organizar e formular o sentido da sua “má sorte” (doença). É neste sentido, que penso numa “eficácia simbólica” da “retórica da tradição”, ou seja, como a produção de um sentido que visa legitimar ou autenticar as experiências do “novo circo” hoje. Ver Rocha (2009c). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 66 processo de reinvenção desde sua institucionalização no mundo moderno. É suficiente lembrar ainda as inúmeras transformações ocorridas no plano interno em relação à organização social e produção do espetáculo quanto, no externo, no campo das representações sociais que formam o seu imaginário social.3 No Brasil, o entusiasmo dos modernistas com o circo-teatro nos idos de 1920, enquanto símbolo legítimo e genuíno de cultura popular capaz de expressar o sentido de brasilidade, não foi suficiente para estancar as mudanças e a perda de prestígio sofrida pelo circo até bem pouco tempo. Passados 50 anos, somente em fins da década de 1970, o circo começou a ser redescoberto pelos cientistas sociais e elevado à objeto de estudo sociológico.4 Hoje assistimos a um movimento de retorno à tradição que não é exclusividade do circo.5 Nesse sentido, a redescoberta do circo é parte de um processo mais amplo de renovação do significado da cultura, datada em fins dos anos 1960, que tem no desenvolvimento do cultural studies bem como na análise gramsciana sobre o papel dos intelectuais na organização da cultura nas sociedades modernas, além da projeção da teoria da carnavalização de Bakhtin no Brasil, isto para não falar das discussões político-ideológicas em torno da cultura popular no quadro do pensamento cepecista no país e das orientações internacionais da Unesco sobre a constituição do patrimônio imaterial, alguns de seus melhores exemplos.6 No entanto, destaque especial cabe às obras A Interpretação das Culturas, de Clifford Geertz (1998), publicado em 1973, e The Invention of Culture, de Roy Wagner (1981), original de 1975, na medida em que podem ser vistas como duas importantes fontes de inspiração e reflexão epistemológica sobre o conceito de cultura na perspectiva da antropologia simbólica contemporânea. Lúcia Lippi Oliveira sintetiza a questão nos seguintes termos: Nos dias de hoje, os discursos sobre patrimônio enfatizam seu caráter de construção ou invenção, derivado das concepções antropológicas de cultura, que passa a ser tomada como sistema simbólico, como estrutura de significado pelas quais os homens orientam suas ações. Outra novidade no campo foi a categoria de patrimônio imaterial ou intangível. É preciso reforçar que os bens que configuram o patrimônio têm, ao 3 Nesse caso, a leitura das memórias circenses representa uma boa estratégia para se acompanhar as transformações do circo ao longo do tempo; ver, por exemplo, Orfei (1996). 4 Ver Rocha, Gilmar (2003, 2008); processo semelhante ocorre com a malandragem no Brasil, ver Rocha (2006). 5 Ver, por exemplo, Abreu & Chagas (2003) e Cardoso e Bacelar (2007), para os campos do patrimônio e da religião, respectivamente. 6 Rocha (2009a) apresenta um histórico deste processo no Brasil tendo como foco o campo das Ciências Sociais. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 67 mesmo tempo, um sentido prático e simbólico. Fala-se de objetos que têm “ressonância”, que fazem a mediação entre passado e presente, entre imaterial e material, entre alma e corpo, que são condição e efeito de determinada modalidade de autoconsciência. (2008, p. 135) Assim, no que diz respeito à política cultural propriamente dita no Brasil, apesar da especificidade conjuntural brasileira dos anos 1960/1970, vivida sob o signo do fechamento político, o governo militar acompanhava em parte as orientações internacionais para a política cultural. Se, de um lado, desde o início dos anos 1970, as primeiras conferências internacionais sobre política cultural põem em destaque o papel da cultura no processo de desenvolvimento social, por outro lado, isto não impediu que a cultura fosse usada como estratégia política do Estado em busca de apoio de setores intermediários da sociedade, observa Ortiz (1985) e outros.7 Assim, em 1975, o governo assumindo o papel de “mecenas” elabora um Plano Nacional de Cultura onde se previa a criação e remodelação de uma série de instituições no campo das artes e da comunicação como, por exemplo, EMBRAFILME, FUNARTE e RADIOBRÁS, com fins a potencializar o controle ideológico sobre a produção dos bens culturais no país. Até este momento a cultura parece intimamente associada ao processo de desenvolvimento do país mais conhecido como “milagre econômico brasileiro”. Somente depois dos anos 1980, a cultura deixa de ser vista como apêndice do desenvolvimento econômico e passa a gozar de um relativo prestígio e autonomia a ponto de Rubens Bayardo (2007) destacar a tendência geral de uma inversão cujo resultado é a “culturalização da economia” na qual se tem um processo de “instrumentalização da cultura para fins econômicos”. O autor alerta para o perigo do fetichismo da cultura quando observa: Diversos usos de la cultura terminam haciendo con ella una utopia, un bálsamo, una mención políticamente correcta, un apêndice decorativo, um fetiche disponible para mágicas soluciones, sin haber pasado por un análisis reflexivo del concepto y de sus usos (p. 87). É dentro deste quadro de mudanças de paradigmas e de orientações para a política cultural de salvaguarda do patrimônio imaterial que se situa o “novo circo”, hoje espalhado pelo mundo, pode ser visto nas experiências do Archaos, Cirque O, Circus Oz, Ra Ra Zoo, Villa Smart’s Circus, Althoof, Circo Price. Mas a julgar pelo sucesso de bilheterias e de circos fixos e espetáculos itinerantes apresentados em várias cidades do mundo, o Cirque du Soleil aparece como a experiência mais bem sucedida do “novo 7 Sobre a política cultural no Brasil a partir dos anos 1970, ver Miceli (1984). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 68 circo”. O resultado mais visível dessa nova proposta de circo tem sido a transformação do circo, ou melhor, da arte circense em um negócio capaz de concorrer com outras formas de espetáculos produzidos pela sociedade de consumo contemporânea.8 Segundo alguns pesquisadores, tudo começou nas ruas, ou melhor, a partir das performances de artistas de rua que resolveram reaproximar o circo de suas origens. Sem desprezar as tradições circenses, o “novo circo” incorpora elementos de dança, teatro, televisão, cinema, música, técnicas de alpinismo etc, ficando muito próximo de um espetáculo multimídia no qual se apresenta um “enredo”. Haja vista espetáculos como “Caiu do Céu” (produção franco-brasileira que lembra a estória de Asas do Desejo (1987), filme de Win Wenders), no qual se narra o encontro de anjos e seres humanos em um ambiente urbano ao ritmo de rap, rock, danças de ruas, técnicas de alpinismo e artes circenses; isto para não falar dos inúmeros espetáculos do Cirque du Soleil, tais como, Saltimbancos, Alegria, Quidam etc, nos quais a renovação da própria linguagem do espetáculo circense não significa o abandono das “técnicas corporais” tradicionais que garantem a eficácia dos números artísticos. O “novo circo”, antes de ser um tipo específico de circo parece ser um movimento de renovação da arte circense. Isto porque, paralelamente às experiências de alguns circos que se definem como “novo circo”, ocorre uma explosão de escolas e trupes em todo mundo. Assim, o “novo circo” corresponde a todo esse movimento que envolve trupes circenses, escolas de circo e alguns “novos circos” propriamente dito.9 Na verdade, o “novo” não significa necessariamente uma ruptura com a tradição. Tradição e modernidade não são excludentes, ao contrário, hoje, ser tradicional, até certo ponto, significa ser moderno. E, dialeticamente, ser moderno, significa voltar à tradição ou fundar uma tradição. Aqui, a “volta à tradição” tem servido de inspiração ao “novo circo”. No Brasil, ainda parecem tímidas as experiências do “novo circo”, ficando restritas ao espaço e movimento das companhias e trupes circenses externas ao “mundo do circo” tradicional. A princípio, as novidades circenses que hoje despertam a atenção de crianças e adultos no mundo 8 No Brasil, comparado a outras expressões de cultura de massa tais como a música e o cinema, o circo ainda está longe de apresentar o mesmo desempenho financeiro e ter o mesmo prestígio que os circos nas culturas anglo-saxã. Por outro lado, o que parece caracterizar o chamado “novo circo”, além do discurso ecológico de proteção aos animais, a renovação estética do espetáculo e o uso do circo como instrumento de política pública com fins à promoção da cidadania e educação das crianças e adolescentes em situação de risco social, é o efeito sedutor sobre setores das classes médias urbanas. 9 Na verdade, este é um movimento amplo e complexo que, neste momento, só podemos apontar sua existência, sem contudo poder analisa-la, em vista das inúmeras experiências desenvolvidas na Europa, Ásia e América, ao menos desde os anos 1920 do século passado. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 69 inteiro, parecem ter origem fora das lonas de circo. Por sua vez, isto não impede que se reconheça o papel de inovação desempenhado por alguns circenses ao longo da história do circo, embora sempre vistos como casos isolados e resultado da genialidade e talento dos mesmos. Considerados expressôes da cultura tradicional, poucos circos parecem reunir elementos artísticos e administrativos que possibilitem o qualificativo de inovador ou moderno. No Brasil, os circos Orlando Orfei, Tihany e Spacial mereceram em algum momento essa qualificação.10 Recentemente, o Grande Circo Popular do Brasil (Marcos Frota Circo Show) passou a engrossar a lista daqueles que, de algum modo, têm contribuí do para manter viva a tradição e ao mesmo tempo a modernidade do circo. Mas não é sem conflitos que essa reinvenção acontece. Vejamos.11 O Grande Circo Popular do Brasil (Marcos Frota Circo Show) O Grande Circo Popular do Brasil, propriedade do ator Marcos Frota, da Rede Globo de Televisão, foi criado em 1991. Em mais de 20 anos de existência, o GCPB participou de inúmeros programas de televisão e eventos culturais de projeção nacional como, por exemplo, os shows beneficientes Criança Esperança e a 3ª edição do Rock in Rio no Maracanã em 2001. Até o momento de realização da pesquisa em 2003, o GCPB era parte de um complexo organizacional no qual estavam envolvidos a agência de produção, organização e promoção de espetáculos artísticos e eventos culturais, Marcos Frota Produções Artísticas Ltda, sediada no Rio de Janeiro, o Instituto Cultural e Assistencial São Francisco de Assis (ICASFA) com sede em Limeira, interior de São Paulo, além de um exército de funcionários técnicos, administradores e artistas que trabalham na produção do espetáculo do circo passando pelo processo de montagem e produção artística à divulgação publicitária e de marketing. Especificamente, o GCPB contava com a participação de aproximadamente 150 pessoas em sua estrutura e organização, além de um aparato arquitetural de lonas, caminhões, carros de divulgação, geradores de energia e sistema 10 Essa atribuição dada à tradição e aos talentos individuais constitui um traço fundamental na constituição e interpretação da cultura brasileira, a este respeito ver As Invenções do Cotidiano, de Everardo Rocha (2003). 11 A análise a seguir tem como referência básica minha tese de doutorado em antropologia cultural intitulada Corpo e Alma de Uma Cultura Viajante – Um Estudo Antropológico do Grande Circo Popular do Brasil (Marcos Frota Circo Show), defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2003. Doravante o nome do circo será abreviado para GCPB e as citações extraídas do trabalho serão referenciadas somente com o número da página. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 70 de iluminação etc, somando um patrimônio avaliado em torno de 500 mil dólares, segundo informação de seus administradores. Minha pesquisa sobre circo iniciada anos atrás, como parte do processo de doutoramento, foi marcada por uma dramática experiência empírica que somente os trabalhos de campo são capazes de nos provocar. Lembrando o que diz Evans-Pritchard (1978) sobre o quanto o trabalho de campo pode nos surpreender exigindo uma mudança de orientação do olhar antropológico, também eu, inicialmente, embora estivesse interessado no simbolismo corporal no circo, tive de desviar, temporariamente, minha atenção para o problema que invadia o discurso do artista de circo tradicional. Em outras palavras, naquele momento, os “circenses tradicionais” estavam mais interessados em falar das condições de trabalho, dos conflitos com a administração, das ameaças que as escolas pareciam representar, do que sobre o papel específico do corpo na cultura do circo. O conflito vivido pelos artistas tradicionais com a administração do circo representava um conflito maior que pode ser traduzido no binarismo: os “de dentro” e os “de fora”. Esse drama, porque na verdade a maneira como o conflito se desenvolve no cotidiano do circo revela-se por meio de pequenos “dramas sociais”, segundo a formulação de Turner (1994), pode ser observado nas falas de um de seus diretores à época e, na sequência, de um artista tradicional: Agora, que tem dez anos que a gente está na estrada, primeiro ninguém acreditava que Marcos queria ter uma lona, quando Marcos começou a ter uma lona todo mundo falou “vamos ver quanto dura. Não dura um mês”. É uma brincadeira, mas a gente não encarou como uma brincadeira, a gente enfrentou esse desafio. A coisa foi, foi, já temos uma geração saída daqui, que está lá no trapézio. Então, hoje começou a incomodar profundamente. Por que? A crise chegou a um ponto que os artistas de circo resolveram se reunir em seminário os direitos e deveres. Então questiona a existência de uma pessoa que não é de circo, dessa tradição, veja a ironia, como se Marcos fosse e tivesse o perfil de um dono de circo, ele nunca conviveu com os donos de circo, porque ele nunca se convenceu, ele nunca assumiu realmente esse papel de dono de circo. Tanto que a gente sabe que o circo tradicional é vertical, o dono de circo, o secretário, o capataz. A gente sentia em muitos momentos que as famílias do circense tradicionais exigiam de Marcos um perfil mais forte que dava segurança. A maneira de Marcos tratar o problema que não tem um perfil de um dono de circo também balançou muito as pessoas, com uma certa insegurança no começo, vai Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 71 para frente ou não vai. Hoje isso nem se questiona, mas hoje passou a incomodar fora. (p. 61) Para o circense tradicional, uma das fontes dos conflitos reside no tratamento diferenciado dado aos artistas que vem “de fora”: Isso aí, o circo deu muita mordomia. Aqui tem o artista que é de tradição de circo que tem seu trailler, e o que não é de circo, que não é de família tradicional de circo, que vem e fica no hotel, e tem outros que é de circo e vive no hotel. Quer dizer, o circo paga hotel para o artista, isso não existe. Acho que tem que estar todo mundo no mesmo barco. Se o dono ou o gerente quer ficar lá fora, mora lá fora, mas todo dia tem que estar presente aqui dentro do circo para poder todo mundo ter seu valor. (p. 62) Tais falas revelam dois modelos de circo: de um lado, o circo tradicional onde a estrutura obedece a uma rígida hierarquia imposta pelas famílias apoiadas no princípio da tradição; do outro lado, um modelo empresarial de circo que visa estabelecer uma organização racional descentralizada baseada nos pressupostos modernos da igualdade social e liberdade individual. Acontece que a estrutura organizacional do GCPB era composta basicamente por um grande número de artistas tradicionais e suas famílias (aproximadamente 70%), e os “outros”, a administração do circo e o pessoal de suporte técnico (“peão”), pessoas oriundas “de fora” do mundo do circo. A começar pelo proprietário do circo Marcos Frota.12 Considerado o “Embaixador do Circo no Brasil” e um de seus principais renovadores do circo na atualidade, a imagem pública de Marcos Frota tem sido objeto de controvérsias e polêmicas no mundo do circo. Sobre ele pesam inúmeras representações contra e a favor. Mas não pretendo estender, neste momento, o rosário de acusações que marcam as relações sociais no cotidiano do circo. Tais acusações revelam problemas tanto de ordem administrativa quanto problemas relacionados à visão de uns sobre os “outros” como as representações em torno do artista tradicional de circo visto como “cigano”, “gente preguiçosa” etc, quanto a do “aventureiro” e do “cirqueiro” pessoas interessadas somente em ganhar dinheiro com o circo, como será visto à frente. Atrás dessas mútuas acusações e questionamentos entre os “de dentro” e os “de fora”, reside uma concepção de circo cujo reconhecimento e legitimidade passa pelo significado do moderno e do tradicional. Afinal, como declara um circense: 12 Lembrando a condição do estrangeiro, inicialmente, Marcos Frota é alguém que gera desconfiança sendo colocado sob suspeita. Na verdade, Marcos Frota pode ser visto como um “mediador”, no sentido dado a este termo por Velho & Kuschinir (1996) e, como tal, ele é alguém que tem ajudado a divulgar e a manter viva a tradição do circo ao mesmo tempo que leva para dentro dele a linguagem de outras expressões artísticas. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 72 Tem gente que não é de circo e se torna muito mais circense que o próprio circense. O Marcos é um exemplo. O Marcos é doente pelo circo. É um exemplo de um cara que é um bom circense sem ser tradicional. É ou não é? (p. 81). Com efeito, afirmações como essa nos ajuda a relativizar a noção de tradicional e a problematizar a noção de moderno no mundo do circo e, em consequência, o próprio significado de circo. A Retórica da Tradição O circo tradicional, na definição de Hotier (1997), apresenta as seguintes características: a) o espaço circular; b) presença dos animais, pois a tradição do circo ocidental nasce com o cavalo; c) presença do palhaço; d) um espetáculo concebido para estimular as emoções e não para provocar uma reflexão do tipo intelectual; e) um espetáculo concebido segundo uma repartição funcional das emoções estimuladas pelos diferentes números; f) uma dimensão estética na medida em que o espetáculo de circo é feito para gerar a admiração diante da beleza; g) um espetáculo no qual se exclui a vulgaridade verbal e gestual, assim como o exibicionismo sexual, o sadismo, o masoquismo e a violência. Mas, para o artista tradicional o circo é, antes de tudo, um “organismo vivo”, pois é a sua casa, é a sua vida. “O circo é meu trabalho, é a minha vida, entendeu? Eu vivo disso”, me declara um artista de família tradicional. Contudo, não se trata simplesmente de trabalho, o circo se torna uma “metáfora viva” da própria vida: O circo para mim é tudo, é minha vida, eu vivi dentro disso aqui. Tudo que eu sei de comportamento humano, eu posso dizer que eu aprendi dentro do circo. Conviver com várias nacionalidades, com várias pessoas. O circo não tem maldade nenhuma, ele chega na cidade e trás alegria, diversão... ele é universal, não tem uma... é uma coisa pura. Eu acho que o circo não vai morrer nunca. Pode se modernizar de vários motivos, mas ele não vai acabar, só se ninguém tomar uma atitude sobre isso, se deixar o circo cair aos pedaços... ninguém se preocupar em manter os artistas, dar o devido respeito que merece, ter aquela relação entre o chefe e o empregado, o artista e o dono do circo, se tiverem aquela relação boa, aquele respeito um com o outro, o circo não vai acabar nunca. Trazendo alegria, diversão para todo mundo, é uma atividade que a gente faz, que faz bem para o corpo, para alma. Por exemplo, quem está no circo, na minha opinião, não envelhece só rejuvenesce. O circo é uma saúde. (p. 77) Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 73 O circo deve ser visto como estilo de vida e visão de mundo. O circo não é só uma maneira de viver, morar e trabalhar, é também uma maneira de pensar. O circo corre nas veias, está no sangue, não sai do pensamento, dizem os circenses. O circo é ao mesmo tempo casa e empresa, arte e trabalho. Como me disse certo dia um circense: “moramos no trabalho e viajamos com nossa casa”. É dentro desse quadro de referência que a noção de tradição e/ou tradicional aparece antes como um elemento de classificação social do que como resultado de uma herança genética. Em um sentido amplo, a tradição adquire uma função retórica no discurso circense mais do que representação de uma realidade. O circense não está fechado à modernidade, embora seja visto e classificado na maioria das vezes como “tradicional”. O recurso à tradição consiste numa forma de estabelecer uma diferença com o artista que vem “de fora”, diz o circense: Eu o que eu posso falar para você é uma coisa até delicada, eu dou uma maior força isso que o Marcos quer fazer montar uma universidade, conseguir montar em cada cidade uma universidade. Pegar o pessoal tradicional de circo, que já estão com idade mais avançada, e ficar parado num lugar e sendo professor, dando aula, pegando essas crianças de rua, esse pessoal que gosta de circo, que vem e se apaixona pelo circo, aprender... eu acho importante. Só que isso vem atrapalhar um pouco os artistas de circo, porque o pessoal de circo já vem de berço. Já nasce com serragem no sangue. E esse pessoal, pelo o que eu vejo, eles vem pelo o que eles acham bonito no circo, então, pelo o que eu conversei com alguns alunos, eles não vão seguir a vida inteira no circo, é como se fosse um hobby para eles. E isso vem atrapalhar um pouco os artistas tradicional do circo. (p. 83, grifos nossos) A metáfora do sangue é fundamental nesse processo de classificação. O circense é aquele que tem “serragem no sangue” ou “serragem nas veias”. É como se o circo fosse uma questão de atavismo biológico. Outros circenses acentuam a diferença entre o tradicional e o artista da escola de circo, por exemplo, diz um empregado do circo “eu, sinceramente, não estou discriminando não, mas eu acho que o artista feito na escola não é artista não”. Quando perguntado por quê, ele responde: “o artista tem que ser feito de geração em geração” (p. 83). O circense tradicional é o resultado não só de uma genética ou de uma hereditariedade; ele também é fabricado aos poucos, todos os dias dentro do circo. Há uma certa representação de “pureza” nessa fala. À exemplo do estudo de Abreu Filho (1980) sobre a família numa cidade do interior de Minas Gerais, a categoria “sangue” é um vetor de transmissão de qualidades físicas e Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 74 morais no sentido de ser formadora da personalidade do artista. O sangue transmite as qualidades boas ou ruins do circense. Ser tradicional, nesse contexto, significa antes ser portador de certa qualidade que pode ser observada nas performances corporais do artista circense: “Se você chega numa escola de circo você vê que um cara que vai abrir um triplo e um mortal ele foi feito na escola de circo porque o tradicional de circo, você viu como esse moleque voa aí? Esse moleque é um gato pra voar...” (p. 84). A tradição é substancializada no discurso e no corpo circense. Referindo-se a qualidade do artista vindo de fora, diz o circense, e você vê, esse pessoal não tem uma qualidade, eles querem fazer, eles não sabem o perigo e o risco que tem. Eles querem subir no trapézio, eles querem dar 2, 3, 4, 5 voltas, mas eles não sabem o perigo que tem, que é um troço que é perigoso. E só o pessoal do circo, que vem desde pequeno que sabe, que vive o com o perigo que tem (p. 84). Ter qualidade, conviver com o risco, sentir o perigo são dados vistos e considerados naturais. Outros circenses falam de coragem, humildade e alegria como qualidades imprescindíveis ao artista. Perseverança e força de vontade também são ingredientes necessários à formação de um artista de qualidade. De um outro ponto de vista, essa qualidade também passa, até certo ponto, pelos aspectos externos ao corpo, pois: A primeira [coisa] para mim é saber fazer bem. A segunda é ter responsabilidade com o trabalho dele, que a maioria tem. O circense tem essa vantagem, ensaia no horário normal, procura fazer bem feito. Tem alguns que não valem nada, mas a maioria são ótimos no que fazem, com responsabilidade. Difícil você escutar um falar “não vou entrar no espetáculo hoje, porque estou com dor de cabeça, ou porque meu pé está doendo”. O circense não faz isso, já as pessoas que entram no circo já quer ficar com o corpo mole. É por isso que eles tem essa diferença. Eu acho que é. Eu acho. Não sei se é isso ou se não é. Porque eles pensam assim não corre na veia. (p. 84) Responsabilidade, fazer bem, dedicação, respeito à “grande família circo” constituem alguns dos principais atributos da identidade circense. Mesmo aqueles que nasceram no circo e não levam a sério os valores instituídos pela família circense correm o risco da desqualificação. A categoria “cirqueiro” é um indicativo disso, diz o circense: O circense é aquele que nasceu dentro do circo. Porque tem o cirqueiro, a gente pode falar aqui, é que nem se fosse um cigano. Ele quer ganhar dinheiro. Vamos supor, você monta um circo e vai ganhar diAntropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 75 nheiro. Então você tá pouco se ligando com o artista, com a qualidade do espetáculo, é um cirqueiro [...]. tem três versão aí: tem o dono de circo, que vem de berço, tem esse que nem o cigano mesmo, vem para ganhar dinheiro, vamos supor, você mesmo, você que não é de circo, você pega e monta o circo, você viu que deu renda então você só quer ganhar [...]. (p. 85) O circo não é só um negócio, é um estilo de vida. O circo é uma questão de corpo e alma. Creio que nenhuma outra afirmação traduz melhor toda a carga emocional e cognitiva que o circo guarda do que a que me foi narrada por um circense ao explicar a “aura” (leia-se magia) do circo. Mesmo não tendo nascido em circo, a eloquência das palavras dessa circense é bastante reveladora do efeito mágico produzido pelo circo: “Olha, acho que quero morrer no circo”. Para o circense tradicional, ou para aquele que “se tornou um tradicional” o circo é um estilo de vida no sentido de ser uma maneira de viver, sentir e pensar o mundo. O circo não é moda. Aliás essa é exatamente a principal crítica que o circense faz aos que vêm de fora. Julgam que o artista vindo de fora não tem compromisso com o circo e a arte circense. Em nome da arte, da vida, do circo, que o circense se vê no compromisso de ter que se sacrificar pelo circo. Compromisso que exige do artista, no extremo, ter de trabalhar no picadeiro mesmo quando acaba de receber a notícia da morte da mãe, é o que conta o palhaço Arrelia (1997) em sua autobiografia. A falta de compromisso do artista que vem de fora, na visão do circense, põe em risco a vida do circo. O risco não se restringe aos preparativos nem aos números durante o espetáculo: ele se faz presente e está vivo no cotidiano do circense. Nesse sentido, o artista ou o peão que vem de fora, representa sempre uma ameaça à ordem do circo. Como diz um circense, referindo-se ao pessoal administrativo, “ninguém lá da diretoria, né, não tem, não tinha vínculo nenhum com o circo”. Com relação ao artista, diz um outro, “tá entrando gente no circo que não tem nada a ver com isso e tá denegrindo o nome do circo”. Como sugerem os estudos sobre a percepção do risco social, o risco é uma interpretação subjetiva dos indivíduos sobre aquilo que consideram ser uma ameaça à sua integridade física e moral. Talvez, agora, fique mais fácil compreender o significado da definição, apresentada anteriormente, do circo como um lugar de saúde; bom para se criar os filhos, sem maldade, com segurança, enfim, um lugar sem vícios. Lembro que uma das primeiras representações que me foi fornecida pelos circenses era a de que o circense é uma pessoa “sem vícios”. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 76 Os circenses de mais idade reafirmavam categoricamente a virtude e, até certo ponto, a “pureza” dos filhos não só em termos de uma suposta “bondade natural” (grifo nosso), assim como, em razão de levarem uma vida sem vícios. O circense não bebe e não fuma, mesmo porque isso seria extremamente prejudicial às suas performances artísticas. Em tom de brincadeira falava-se que ao chegar a um barzinho certamente um circense pediria um copo de leite ao invés de uma dose de bebida alcoólica qualquer. A diferença é que, para o circense tradicional, o circo não é um hobby, uma moda, um meio de vida ou profissão como outra qualquer. Ao contrário, o circo é a sua vida; em outro sentido, é o seu vício.13 Mas a suposição de um circo puro, original, “perdido no tempo”, revela-nos mais um sistema de classificação do que uma realidade de fato. Afinal o artista tradicional de circo está aberto, de certa forma, a toda sorte de experiências e novidades modernas. Como todo mundo, ele gosta de conforto e da facilidades promovidas pelas tecnologias do mundo informatizado. Assim, no que diz respeito à minha experiência de campo, a família surgia mais como uma categoria de classificação e menos como uma “realidade” que pudesse ser pura e simplesmente definida por relações de consaguinidade ou instituição detentora de um saber específico. Família servia para falar tanto de “relações de sangue” quanto de “relações de trabalho”. Em nome da tradição, da “pureza de sangue”, da natureza especial do artista tradicional de circo, ameaçando de morte pela “invasão dos aventureiros” o “circo-família”, esconde-se um processo de “autenticação” do circo.14 Mas, outro é o ponto de vista dos “de fora”. Circo se Aprende na Escola Em 2001, Marcos Frota lançou as bases da Universidade Livre do Circo (UNICIRCO) no exato momento em que acontecia no Brasil o Primeiro Festival Mundial de Circo, realizado em Belo Horizonte. Estes dois eventos são de grande importância para o entendimento dos rumos que o circo vem tomando nos últimos anos. 13 Mesmo ações aparentemente destituídas de significação memorialística como o processo de montagem do circo, acabam por acionar um conjunto de representações que evocam a tradição, ver Rocha (2009b). 14 O conceito de família merece uma atenção especial na análise do mundo do circo em vista do fato de carregar uma tensão entre o ideal tipo da consanguinidade e, na prática, operar por meio das alianças e reciprocidades. Na verdade, à exemplo do discurso sobre o patrimônio cultural no Brasil, o “circo-família” parece sofrer um processo de autenticação que se assemelha ao que Gonçalves (1996) denominou de “retórica da perda”. Na mesma linha de reflexão da historiadora Ermínia Silva (1996) sobre a família de circo no Brasil, recentemente tive acesso ao trabalho de Afonso (2002) sobre o circo em Portugal, cujo título “Os Circos não Existem” é, significativamente, uma reafirmação da importância da família, pois, o que existe é a família de circo, observa a antropóloga. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 77 Fazendo eco à proposta do “novo circo”, o GCPB, através da UNICIRCO, manifesta a sua “função social”, ou em termos mais usual sua “responsabilidade social”. É sabido que as escolas de circo têm desempenhado um papel importante no sentido de formar novos artistas de circo e novas trupes circenses. É nessa perspectiva, que se situava a incipiente experiência da UNICIRCO. Este projeto teve como pressuposto a idéia da não utilização de animais em circo, a continuidade da arte circense, a promoção do desenvolvimento total (físico, psíquico e sociocultural) da criança, tendo como base uma pedagogia da convivência e do lúdico. Como se vê, o discurso de renovação da arte circense estende-se também ao próprio circense e não somente à renovação estética do espetáculo e às crianças carentes em situação de risco social. Em uma das atividades propostas no documento “Temporada 2001 – Belo Horizonte” encontram-se oficinas para os filhos de artistas circenses e de outros trabalhadores do circo. Além das atividades de “contação de história”, “teatro”, “mímica”, “música”, “confecção de bonecos e brinquedos com material reciclado”, destacam-se os objetivos: “aperfeiçoar a convivência grupal, familiar e comunitária, tornando-a cada vez mais harmoniosa e solidária; intensificar a curiosidade do saber e do fazer, ampliando a perspectiva do mundo ao redor; estimular o desempenho escolar, através de práticas lúdicas e atividades alternativas centradas nas artes e na cultura circense”. Ao final, seria o próprio artista tradicional o maior beneficiado. Em tese, a idéia era a de valorizar o “fazer” (leia-se saber) do artista tradicional detentor de uma “técnica corporal” específica.15 Mas este projeto mereceu inúmeras críticas do artista tradicional. A começar pela denúncia de falta de participação na elaboração do projeto, bem como, da falta de recursos técnicos à sua implantação. Por exemplo, desabafa um circense, na minha opinião está tudo errado. Eles estão fazendo umas coisas aí que não dá para entender. Pegar o aluno, ensaiar em três semanas aí, mostrar o que é o circo e tal em três semanas... Depois eles pega e vão... dá um diploma para cada um deles, né? Você acha que isso está certo? (p. 115). Para quem faz do circo sua vida, é difícil entender os resultados práticos de uma oficina de acrobacia ou trapézio de 60 horas. E continua o circense: 15 Essas orientações encontram-se no “documento” de circulação interna, na verdade, um planejamento das atividades do GCPB para a temporada de 2001, em Belo Horizonte. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 78 [...] não, não tem a mínima possibilidade. Se você fizer ali, você fez é milagre, com o tempo que você tem, a qualidade do seu trabalho, o que eles estão te oferecendo para você ensinar as pessoas. É muito pouco as condições, a estrutura, não tem nada, não tem nada. Não tem um aparelho para você ensinar uma pessoa a fazer uma determinada coisa, um salto com segurança, como... se um rapaz desse aí machucar aí, quebrar o pescoço e morrer aí, e aí? (p. 115) Do outro lado, a idéia de “circo social” tornou-se um dos pontos mais polêmicos do Primeiro Festival Mundial do Circo, realizado em Belo Horizonte em 2001. Naquele momento, um dos expositores denunciava o quanto o chamado “circo social” pode gerar expectativas frustrantes nos menos avisados. Não se pode esperar que todas as crianças se tornem artistas de circo e que todos um dia trabalhem no Cirque du Soleil, dencunciava um dos palestrantes. Isso não significa que os projetos sociais desenvolvidos em muitas comunidades carentes não tenham apresentado resultados positivos. Mas é preciso olhar com cautela as posturas mais messiânicas.16 O próprio Festival pode ser visto como palco de um conflito mais amplo e profundo sobre o “espaço” do circo. Sem dúvida alguma, uma das questões mais salientes discutidas durante os seminários durante o Festival era a criação de um sistema de “referências para esta importante manifestação cultural” que é o circo e, em particular, a escola de circo, assim se manifestou um expositor. Isso significa que, se a partir de agora circo também se aprende na escola, faz-se necessário normatizar, criar regras, definir currículo mínimo. Significa que a legitimação das escolas de circo como veículos alternativos de educação e promoção da cidadania para crianças e adolescentes em situação de exclusão e risco social deveria passar por um processo de institucionalização junto aos órgãos oficiais de Educação do Estado. Ao menos essa foi a tônica e a principal reivindicação de alguns dos principais donos e representantes de escolas de circo durante o Festival. É significativo o fato da iniciativa de realização do Festival ter partido da Escola Nacional de Circo do Rio de Janeiro, da Spasso Escola Popular de Circo, de Belo Horizonte, e da Circo Escola Picadeiro, de 16 Acreditar que por meio do circo as crianças e os adolescentes irão adquirir cidadania, significando melhoria nas condições de vida como, por exemplo, trabalhar em um circo, ainda é um sonho tanto para as crianças e adolescentes quanto para os idealizadores de projetos sociais dessa natureza. O problema é que por de traz de muitos projetos sociais escondem-se às vezes interesses menos nobres do que promover a cidadania de crianças em situação de risco. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 79 São Paulo. Se, circo se aprende na escola, então faz-se necessário sua institucionalização e, portanto, sua normatização.17 De fato, o Festival acabou por revelar outros interesses e conflitos envolvidos nesse “drama”. Toda essa história parece conter uma profunda ironia. Quando se olha para história do circo no Brasil, vê-se que o circo foi tradicionalmente alvo de perseguições e preconceitos, ora da parte do Estado ora da parte dos setores das classes dominantes da sociedade brasileira.18 Curiosamente, hoje o circo é apresentado exatamente como um instrumento de promoção da cidadania, formação educacional e profissional, de crianças pobres, carentes e marginais. O circense que sempre reclamou da falta de incentivo do governo em criar condições de melhoria de vida e de trabalho, no mínimo passa a ver com desconfiança os projetos das escolas de circo. Ele que sempre foi considerado um “cigano” (no sentido de alguém “sem endereço fixo”), alguém à margem da sociedade, sem garantia trabalhista, sem cidadania, vê o circo transformar-se no instrumento de promoção da cidadania dos “outros”.19 As escolas de circo são uma espécie de “outro” do circense. Dependendo do ponto de vista, o “outro” muda sua “natureza”, o que faz dele não um pólo fixo da relação com o “eu”. Assim, as escolas de circo parecem representar um duplo papel (que oscila entre o “mesmo” e o “outro”) para o circense: de um lado, acentuando o sentimento de ameaça e abandono à exemplo das crianças em situação de risco social quando ele se vê desrespeitado, do outro lado, quando aparecem como uma espécie de “aposentadoria” enquanto recompensa e reconhecimento social por sua dedicação à arte ao longo da vida. Contudo, mais do que um problema conjuntural, esse como outros conflitos são parte de uma história em que os embates entre os “de dentro” e os “de fora” se revela um problema de ordem estrutural que, nesse momento, não é possível analisar em profundidade.20 Resumindo: o chamado circo tradicional é uma invenção moderna que pode ser rastreada nos discursos sobre o circo. A própria noção de tradi17 18 Diferentemente do “mundo do samba”, a idéia de escola no “mundo do circo” é relativamente nova. Fico tentado a pensar que essa novidade sugere uma relação de poder entre o saber e o “fazer”, embora este “fazer” signifique um modo de saber específico. Durante o período do trabalho de campo tive a oportunidade de ver um aluno de escola de circo “fazer” malabares tendo como referência uma espécie de partitura (tal qual as partituras de música) na qual estava registrada a sequência de movimentos de um determinado modo de jogar a clave. Isto pode ser observado no trabalho de Duarte (1995). 19 Apesar das críticas aos projetos sociais envolvendo o circo, o discurso circense tende a destacar a importância do circo para a formação humana e a promoção da cidadania das crianças e dos adolescentes em geral, contudo, muitas vezes era o “outro” (o “de fora”) contra o qual o circense se posiciona tendo em vista o fato de que ele representa ameaça e perigo. 20 Na verdade, a compreensão desse problema, discutido na tese, tem como eixo a cultura da viagem no circo. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 80 ção é constitutiva da modernidade, lembra Giddens (2002). Até mesmo o suposto “fim da tradição” dever ser relativizado, pois segundo o sociólogo: O fim da tradição não significa que a tradição desaparece, como queriam os pensadores do Iluminismo. Ao contrário, ela continua a florescer em toda parte em versões diferentes. Mas trata-se menos – se é que se pode dizê-lo assim – de tradição vivida de maneira tradicional. Viver a tradição de maneira tradicional significa defender as atividades tradicionais por meio de seu próprio ritual e simbolismo – defender a tradição por meio de suas pretensões à verdade. (p. 53) Tradição e modernidade não se opõem, ao contrário são complementares, pois, segundo Ricoeur, toda “tradição vive graças à interpretação; é por este preço que ela dura, isto é, permanece viva” (1988, p. 28). Assim como para um artista a tradição funciona como selo de qualidade, para o circo a tradição funciona como autenticação da sua modernidade. No Brasil, hoje, a evocação da tradição ganha contornos de modernidade. È moderno ser tradicional. Neste sentido, modernidade e tradicionalidade não são duas condições naturais, antes, podem ser vistas como categorias de pensamento que acionam um sistema de classificação e de significados sociais orientando as interpretações não só de circenses tradicionais e modernos bem como dos antropólogos nesse processo de (re)invenção do circo no mundo contemporâneo. Abstract In recent years we have watched to a real spectacularization process of circus in Brazil, being illustrations since the recent shows of Cirque Du Soleil, the creation of many companies, troupes and school of circus in most cities of the country to the proposal of playfulness in the educational process of NGO´s art-education directed to children and adolescent in social risk situation. The understanding of the reasons of this success guides us to an exercise of anthropological reflection about the meaning of circus and the sense of culture in contemporary societies. Specifically, the text shows an analysis of discourse over the sense of tradition regarding the process of modernization of circus culture in Brazil based on the fieldwork realized with Grande Circo Popular do Brasil (Marcos Frota Circo Show) years ago. Keywords: circus; culture; tradition; modernization. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 63-83, 2. sem. 2009 81 Referências ABREU FILHO, Ovídio. Raça, sangue e luta: identidade e parentesco em uma cidade do interior. 237f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)–Museu Nacional, Universidade Federal Fluminense, 1980. ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DO&A, 2003. 320p. AFONSO, Joana. Os circos não existem. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002. 198p. ARRELIA (Waldemar Seyssel). Arrelia: uma autobiografia. São Paulo: IBRASA, 1997. 162p. BAYARDO, Rubens. Cultura & desarrollo: nuevos rumbos y más de lo mismo? In: NUSSBAUMER, Gisele Marchiori (Org.). 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Palavras-chave: ciranda; turismo; prestação de serviços. * Mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. 86 No presente texto1 analiso o processo pelo qual ex-agricultores, por meio de processo de migração para a sede do município de Paraty, RJ, e inserção em mercado de trabalho assalariado ou de aposentadoria, puderam assegurar a prestação de serviços culturais fundados em conhecimentos musicais, adquiridos como atributos de socialização em seus meios de origem. Refiro-me aos integrantes do grupo musical de ciranda,2 “Os Coroas Cirandeiros”, no atual contexto, empenham-se em ser reconhecidos socialmente como componentes de grupo artístico musical. A legitimidade dessa reivindicação se fundamenta no fato de esse grupo estar organizado por especialidade de um saber musical valorizado como tradição, no município em apreço. Na condição de grupo guardião de conhecimento tradicional ( a ciranda) puderam oferecê-la como serviço cultural aos que a Paraty se dirigem à procura de consumo de produtos culturais, não sem buscar lhes assegurar benefícios provenientes da nova posição social assumida: a ampliação de rendimentos e a possibilidade de reproduzirem-se como grupo e serem prestigiados por um saber e experiência até bem pouco desconsiderados. A compreensão da construção de legitimidade da condição de músicos profissionais, assim como da construção de quadro institucional configurador de condições sociais capazes de possibilitarem o acesso à situação pretendida, requer o entendimento da correlação de processos de mudanças sociais e econômicas ocorridas no município de Paraty, os quais possibilitaram a revalorização da ciranda em período próximo – quais sejam: os decorrentes da implementação de políticas de valorização de patrimônios e os decorrentes de nova orientação das práticas econômicas, associadas a investimentos no setor de turismo. Atualmente, Paraty encontra-se inserida num amplo circuito de cidades brasileiras que, através de seus gestores, investem na atividade turística como importante setor de atividade econômica e concorrem entre si na oferta de bens e serviços que lhes possam garantir um diferencial nesse mercado do qual fazem parte. No caso específico de Paraty, a permanência de boa parte do conjunto arquitetônico, composto por sobrados e casarios erigidos, em sua maioria nos séculos XVIII e XIX, e a presença de manifestações culturais que se referem a práticas de sociabilidade associadas ao período colonial – além da localização geográfica 1 Constituído por reflexões que resultaram do estudo realizado para a obtenção do grau de mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. 2 Gênero musical difundido no litoral sul do estado do Rio de Janeiro e litoral norte do estado de São Paulo, expressão das influências do contato de europeus portugueses com os habitantes da região. Em Paraty, constituía uma das músicas dançadas que compunha o chiba – designação dada aos encontros festivos com música, dança e comida, ocasiões de sociabilidade de agricultores e pescadores – hoje inexistente. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 85-96, 2. sem. 2009 87 do território, o mar e a vegetação de mata Atlântica – se constituíram em importantes bens agregadores de valor turístico. Tais bens, reconhecidos como patrimônios, notadamente os designados como histórico e/ ou cultural, natural, e mais recentemente, imaterial, conferem a Paraty um caráter peculiar, em meio à disputa pelo reconhecimento da oferta diferenciada de produtos turísticos – o de locus privilegiado condensador de patrimônios. A constância das construções de estilo colonial por longo período de tempo foi consequência da estagnação econômica pela qual o município passou entre os anos de 1855 até meados do século XX, motivo pelo qual não sofreu as interferências de processos de expansão econômica que alteraram a configuração socioespacial das sedes municipais de outros municípios do estado do Rio de Janeiro. Contudo, a valorização do conjunto arquitetônico pouco alterado e, mais recentemente, a valorização de manifestações culturais expressivas de reconhecida tradição e, portanto, como bens a serem preservados, foram consequências de diferenciados processos. Dependeram, dentre outros, da atuação de agentes, governamentais ou não, comprometidos com a causa da proteção aqueles patrimônios culturais. Na esfera de atuação governamental, cabe destacar as políticas implementadas a partir do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, que conferiram ao município novos status relativos ao campo discursivo do patrimônio em momentos distintos: em 1945, Paraty foi considerada Patrimônio Histórico Estadual; em 1958, foi tombada pela então Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tanto no livro referente a sítios de valor arqueológico, etnográfico e paisagístico como no referente a belas-artes. Em 1966, o município foi elevado à categoria de Monumento Histórico Nacional.3 Essas políticas alcançaram legitimidade com o apoio e empenho de agentes locais envolvidos com o trabalho social de produção de um passado,4 mais especificamente com o trabalho de construção da memória coletiva entre os Paratyenses. Dentre esses, os fundadores do Instituto Histórico e Artístico de Paraty (IHAP), instituição criada em 1976 com o objetivo de recuperar a memória histórica da cidade e formar a consciência de preservação dos patrimônios histórico e cultural. As ações empreendidas por tais agentes salvaguardas de patrimônios – alguns deles nascidos no próprio 3 4 Cf. Souza (1994, p. 99). Estou referenciada pelas reflexões de Arantes (1984), nas quais qualquer tentativa de reconstrução do passado é realizada no presente e nos termos do presente. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 85-96, 2. sem. 2009 88 município ou que para lá retornaram após terem terminado o ensino universitário, e outros, pesquisadores, por profissão ou diletantismo – visavam não só a pesquisa e recuperação de documentos e objetos de considerado valor histórico, mas, sobretudo, valorizar manifestações culturais reconhecidas como tradições, as quais conferissem sentido ao passado que ajudavam a construir. Os esforços no sentido de valorizar práticas culturais reivindicadas como tradições contaram com a adesão de alguns segmentos sociais, dentre os quais moradores antigos saudosos das expressões de sociabilidade vivenciadas por eles no passado; pessoas de fora e intelectuais que passavam a visitar cada vez com maior frequência a cidade; empresários do comércio e da rede hoteleira, os quais dependiam dos recursos patrimoniais para vender seus serviços; e agentes da administração municipal, integrantes da recém-instalada Secretaria de Turismo e Cultura, interessados em ampliar as possibilidades de exploração turística de patrimônios para atrair um número maior de visitantes e investimentos ao município. A ação conjunta IPHAN/IHAP/Secretaria de Turismo e Cultura, com o apoio de membros da comunidade local, resultou na revalorização de várias manifestações culturais, religiosas e laicas, e ressignificação de outras já existentes, classificadas, em seu conjunto, como expressão de tradição e vistas, a partir de então, também como bens passíveis de serem oferecidos no mercado turístico. A procissão do Fogaréu, evento religioso que constitui um dos ritos de celebração da Semana Santa, foi uma dessas manifestações que havia deixado de existir a muitos anos, mas que desde 1984 passou a ser realizada com regularidade. Já a festa do Divino Espírito Santo, evento de maior destaque na programação turística da cidade, assim como a festa de Santa Rita ganharam novas feições, mais de acordo com o passado que se queria exaltar. Também a festa de São Pedro, realizada desde 1956 em uma capela na Ilha do Araújo, principalmente por pescadores residentes do local, adquiriu outras dimensões desde que foi associada ao mercado turístico. Disputas esportivas ( canoagem, natação, windsurfe e pesca de camarão) foram introduzidas na programação, além de premiação conferida ao barco melhor decorado na procissão marítima, depois designada para esse fim. Por se realizar em local de reconhecida beleza natural, atraiu, para além da festa, investimentos do setor hoteleiro e passou a integrar o roteiro de visitas das pessoas interessadas no turismo ecológico. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 85-96, 2. sem. 2009 89 Tais mudanças são uma demonstração de que os objetivos e as circunstâncias de realização dessas manifestações não são as mesmas que os guardiães da memória e da tradição buscam enfatizar. Mais do que a continuidade com um determinado passado, o que a presença delas atesta é a configuração de novas relações instituidoras de um presente, associadas com o desenvolvimento da atividade turística no município. A construção do serviço A imposição desse mercado turístico associada a um ambiente social de culto às tradições possibilitou a alguns músicos tocadores de ciranda, em sua maioria ex-agricultores e pescadores que migraram para a sede municipal, oferecerem como produto seus saberes musicais adquiridos como parte do processo de socialização em seus meios de origem. Respaldados e imbuídos dos discursos de exaltação dos costumes antigos, referenciais da identidade dos Paratyenses, puderam oferecer, sob a forma de serviço, para tanto, o principal capital cultural acumulado possível de ser convertido em atrativo para os visitantes com interesse voltado para os aspectos históricos de Paraty. Uma atividade realizada não a partir da vontade exclusiva de si mesmos, nem tampouco de uma suposta visão empreendedora; mas objetivada como necessária, tanto para seus executores como para os agentes de valorização da memória social ou aqueles dedicados à atividade empresarial do turismo, nesta convergência, todos orientados por propósitos asseguradores da continuidade de práticas culturais assim reafirmadas como tradição. Atualmente, além de “Os Coroas Cirandeiros”, há cinco grupos constituídos de apresentação da ciranda em Paraty que competem entre si e com os demais atrativos culturais oferecidos aos turistas pela atenção e reconhecimento dos mesmos. Interessa-me compreender a construção do serviço prestado pelo primeiro, que se fundamenta na ciranda valorizada como tradição ou perpetuação de seus princípios estruturantes e distintivos. Antes mesmo de constituirem-se em grupo, no sentido de adotarem um nome que os identifica, alguns dos integrantes do “Os Coroas Cirandeiros” – aqueles que obtiveram o aprendizado da ciranda através de sucessivas gerações – já vinham sendo solicitados para apresentarem-se em eventos festivos (festas de aniversário, casamento) e, eventualmente, para mostrar a alguns turistas e empresários, em sua maioria provenientes de São Paulo, uma música considerada, naquele momento, como Antropolítica Niterói, n. 27, p. 85-96, 2. sem. 2009 90 constitutiva da “alma” dos Paratyenses, expressão da cultura, associada ao popular, de seus habitantes. Vez ou outra, algum proprietário de pousada contratava, sob cachê, a apresentação dos reconhecidos “tocadores de ciranda” para entreter os hóspedes, assim como proprietários de estabelecimentos comerciais (restaurantes e bares), pagavam uma determinada quantia para que os músicos ficassem em frente aos estabelecimentos com o objetivo de atrair os turistas para aqueles locais. Em diversas ocasiões, moradores que apreciavam manifestações representativas de experiências coletivas pretéritas, solicitavam a presença dos cirandeiros. Para a execução da ciranda era e ainda é desejada a junção de alguns instrumentos de corda: viola, violão,5 cavaquinho e bandola,6 e de percussão, pandeiro ou adulfo,7 mas nem sempre possíveis de serem associados devido a não-disponibilidade de um ou outro músico. A cada apresentação, novos arranjos eram feitos para compor uma equipe geralmente constituída de duas ou três pessoas relativamente fixas, sendo as demais “catadas”, conforme a expressão de um deles. As duas pessoas mais velhas (idade e permanência) no “Os Coroas Cirandeiros” – ambas conhecedoras da ciranda do tempo em que era tocada e dançada junto a outras músicas nos encontros festivos de moradores da região rural de Rio dos Meros – foram as primeiras do grupo a associarem-se para atender aos pedidos de apresentação não só da ciranda, mas também da Folia de Reis. Por essa ocasião, alguns pesquisadores interessados no estudo de práticas culturais se dirigiam a Paraty com o objetivo de registrar a riqueza do repertório de manifestações que, diante do impacto das transformações sociais e econômicas, eram secundarizadas ou se encontravam sob ameaça de desaparecimento. Assim como os pesquisadores, alguns visitantes, representantes de uma classe média reconhecida como mais intelectualizada, ao chegarem a Paraty, iam ao encontro dos músicos que tocavam ciranda, interessados nas especificidades da cultura local, contribuindo para dar-lhes reconhecimento e, ao mesmo tempo, para atribuir-lhes a autoridade de verdadeiros guardiães da memória da ciranda, os únicos capazes de falar sobre ela. 5 6 7 De uso mais recente. Bandolim tenor adotado em período próximo. Instrumento pouco usado nos dias atuais, semelhante ao pandeiro, porém produzido de forma artesanal com madeira de boa envergadura e couro de cabrito ou cotia, preferencialmente. Diferencia também do pandeiro por não possuir aperto, alcançando-se o som desejado pelo atrito do couro com as mãos ou esfregando o couro no chão. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 85-96, 2. sem. 2009 91 A administração municipal, atenta às transformações em curso, passa a considerar a ciranda como produto cultural genuíno, propiciando, por seu intermédio, apresentar Paraty às pessoas de fora. E a inclui em alguns eventos da programação turística, mesmo que de maneira intermitente. Da mesma forma, alguns bailes do clube da cidade passaram a acontecer sob a música dos cirandeiros. O conjunto desses atos ajudava a consagrar a ciranda como produto turístico e tradição. Com o acelerado e contínuo aumento da chegada de visitantes ao município, o fundador do grupo propõe a um companheiro músico e alguns outros instrumentistas menos regulares, tocarem em uma das ruas do centro histórico, local de maior concentração do trânsito de turistas. O depoimento do primeiro, contando como foi o convite aos outros músicos, exprime bem os atuais parâmetros para a exibição da ciranda: Gente, pra gente não esquecer as nossas tradições, vamos ficar numa beira da rua aí, né. Tocando pros turistas ver. E procuramos a rua do Comércio, que ali é a rua do Comércio. Então, eu digo [referindo-se ao momento presente]: – É o seguinte, pra gente não ficar vazio, colocamos o chapéu... junto com a gente. E não pedimos ninguém para colocar dinheiro. Aqueles que passar, achar que tem que pôr alguma coisa, é bem vindo, né. Então, é o que acontece. A gente vai pra lá sempre, né. Ficamos lá. E os turistas em volta da gente, ali aplaudindo, né. A justificativa dada para a decisão de ocuparem a rua do Comércio e tocarem “pros turistas ver” foi para não esquecerem as tradições, ou seja, da mesma forma que, para constituir-se produto, a ciranda tem de ser vista (e assim consumida), para ser validada enquanto tal, precisa também estar referendada pela crença na atualização de um modelo consagrado como tradição – altamente valorizado no mercado em questão. Estando a ciranda consagrada com o produto turístico, pode-se lograr, por intermédio dela, alternativa de renda para esses, que desde então, se pensam como transformados em profissionais da música. O vasto repertório de atividades realizadas pelo grupo – apresentações em pousadas, ruas do centro histórico, casas de particulares, festas religiosas e laicas, e até mesmo em outras localidades –, apesar de não ocupar integralmente o tempo destinado às tarefas devotadas ao trabalho e nem se constituir na única ocupação entre seus membros, caracteriza o desejo de profissionalização da atividade de músico, a despeito da crença dos defensores da tradição, que creditam na atividade atual a continuidade de um costume de outrora. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 85-96, 2. sem. 2009 92 O comentário de um deles a respeito do que fazem, demonstra com clareza esse argumento: Eu considero um trabalho, não considero uma ciranda, né. O sujeito diz: – Ah, vai tocar a ciranda? Eu digo: – Não, eu vou fazer um trabalho. [...] Não vou dizer que eu vou tocar uma viola, eu vou fazer um trabalho, né. [...] Trabalho como se eu fosse trabalhar de enxada, fosse fazer qualquer coisa. [...] E é um trabalho pesado, né. [...] Não pode brincar, é um trabalho sério. Se brincar, vira bagunça, né. Ao contrapor o trabalho sério à brincadeira, este integrante está referindo-se exatamente ao sentido que tinha a ciranda quando ela se constituía, sob a forma de música e dança, em uma das maneiras de expressar a sociabilidade de agricultores e pescadores que residiam em regiões localizadas no entorno da sede municipal de Paraty até os idos de 1950. Naquele contexto socialmente referido, as reuniões festivas entre moradores vizinhos, designadas chiba, aconteciam para celebrar datas comemorativas (Natal, Ano Novo), devoção a algum santo (São João e São Pedro os mais reverenciados), ajutório, ou mesmo para reunir as pessoas em festa. Da mesma forma, ao dizer com convicção que não é a ciranda o que eles fazem, o mesmo não está posicionando-se de encontro às expectativas daqueles que contribuem para legitimar a ciranda como prática tradicional. Já se sabe que um discurso, quando reconhecido e legitimado, produz a existência do que enuncia.8 Por isso todos eles reconhecem a ciranda como um trabalho que fazem para “manter” ou “não esquecer” as tradições. A atual ocupação de músico foi inclusive definida por um deles como um trabalho, por vezes, pesado. Esse membro alega que as apresentações do grupo na rua do Comércio podem alcançar duas horas ininterruptas, sem intervalo para descanso. Quando fazem uma pausa, com duração em torno de no máximo 20 minutos, é para beber água, levada por eles, ou para ir a um banheiro próximo. Como os músicos dependem da atenção dos turistas que transitam incessantemente pela rua do Comércio, qualquer pausa mais delongada pode deixar escapar boas oportunidades de remuneração. Porque, de acordo com o relato do mesmo: “os turistas brasileiro, estrangeiro que estão ali próximo da gente... se a gente parar, ter um entrevalo, eles vão embora, né. Então eles ficam ali assistindo, né. Então a gente vai direto, né”. 8 Cf. Bourdieu (1996, p. 109). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 85-96, 2. sem. 2009 93 Dilemas e desafios à profissionalização As atuais formas de exibição pública da ciranda, como prestação de serviços culturais, implicaram na exigência de adaptação desses músicos a novos modos de exposição, sob formato de grupo musical, com o objetivo de possibilitar a conquista da atenção do público de turistas espectadores. No entanto, tal exigência se coloca como uma tarefa de difícil alcance, conforme pude observar nas três ocasiões em que estive em Paraty para buscar informações e contatos capazes de alargar minha compreensão sobre a contextual construção da ciranda como um serviço. A partir do acompanhamento das atividades realizadas pelo grupo e também das conversas e desentendimentos entre seus integrantes, pude constatar a irregularidade da presença de alguns membros em compromissos assumidos pelo responsável do grupo, assim como a saída de uma pessoa e a incorporação de outra num intervalo de nove meses, período que compreendeu minhas incursões ao campo de trabalho. Em algumas ocasiões, presenciei a apresentação do grupo em número reduzido de duas pessoas, e, em outras, a apresentação se deu com a associação de músicos que não integravam formalmente, o grupo. Estas constatações me levaram a indagar sobre a constituição da equipe de músicos, centrada num núcleo estável capaz de assegurar adesões mais ou menos ocasionais. Com esta forma de composição, como poderiam corresponder às exigências de compromissos artístico-musicais orientadas por calendários organizados por interesses a eles imediatamente alheios? Pautando-me na autoatribuição da equipe de “Os Coroas Cirandeiros” como grupo e nas orientações constitutivas do fazer antropológico – que se fundamenta na conceitualização de sociedade como um constructo social, um empreendimento humano – torna-se imprescindível pensar as autodesignações não como originadas em si mesmas ou a partir de livres escolhas individuais, mas pensá-las como representações sociais, resultado de processos de exteriorização e internalização de significados produzidos a partir do convívio social e sempre articuladas de forma sistêmica, ou seja, a um conjunto de outras representações e categorias. Ao se referirem como grupo associado em torno de alguns músicos, os integrantes de “Os Coroas Cirandeiros”, estão expressando a necessidade de vir a ser grupo estável ou capaz de superar os problemas decorrentes da imprevisibilidade e continuidade da prestação de serviço. Desejo manifesto pela necessidade de se imporem no mercado turístico em condições de concorrência e em conformidade com as representações e Antropolítica Niterói, n. 27, p. 85-96, 2. sem. 2009 94 expectativas daqueles que crêem consistir uma equipe de músicos que personificam uma determinada tradição. Essa representação configura-se como declaração de intenção, uma vez que insistentemente manifestam aspiração de tornarem-se grupo. Faltam-lhes características por eles reclamadas continuamente: a existência de objetivos e regras comuns reconhecidas por seus integrantes e certa disponibilidade de tempo exigida para dedicação à atividade. Há também outros empecilhos: a recorrente rotatividade de músicos e a concomitância de outras ocupações profissionais entre seus membros, além da ausência de um capital cultural empresarial, capaz de orientá-los na maximização dos benefícios e minimização dos riscos desse empreendimento. Estes obstáculos acabam por transformar a tarefa de constituir o desejado grupo estável como um projeto, em certos contextos dramatizados como agonístico e inalcançável, permeado por disputas, desentendimentos e conflitos entre os que se propõem a ele aderir. As tensões decorrem, geralmente, do dilema enfrentado pelos integrantes do grupo em tentar compatibilizar o desejo de profissionalizarem-se na atividade musical com a necessidade de serem reconhecidos como grupo expressão de tradição. O desafio consiste em operar, de modo concomitante, com duas lógicas distintas de organização, por meio das quais o grupo tenta assegurar sua existência. Em muitas situações, as divergências se evidenciam quando critérios são reclamados para a organização profissionalizada frente a arbitrariedades justificadas pela devoção a hábitos costumeiros, ainda que haja alternância entre as posições assumidas pelos membros – ora prevalecendo o argumento da tradição, ora o do profissionalismo – de acordo com os interesses em questão. É o caso, por exemplo, da exigência de desempenho e habilidade musical, por vezes requerida como condição para a participação e permanência de integrantes junto ao grupo – tendo em vista o aprimoramento da prestação do serviço – mas que, em situações específicas, é ignorada em detrimento da valorização do dom e sabedoria tradicionais, atributos daqueles que, no caso das referências do grupo em apreço, vivenciaram uma forma de sociabilidade vicinal. Não sem motivo, as incongruências e incompatibilidades para se constituírem como profissionais da música, sendo para isso necessário se adequarem a princípios de agregação pautados pelo compartilhamento de regras e objetivos inerentes à condição pretendida, mas fundamentados Antropolítica Niterói, n. 27, p. 85-96, 2. sem. 2009 95 na crença na tradição enquanto prática pretérita, para a qual a existência do grupo parece se assegurar por princípios de auto-evidência. Se a realização da condição profissional se coloca como uma busca de difícil alcance, dadas as dificuldades de reproduzir os pressupostos de apresentação exigidos para esse fim, a prestação do serviço estará assegurada, desde que garantida a base sobre a qual ela se sustenta: uma tradicional manifestação cultural. Abstract The paper presents an analysis of the process by which the ciranda – knowledge and way of expression trhough music once learned as attributes of the socialization of farmers and fishermen in their means of origin – is now offered in the form of cultural services in the city of Paraty, RJ starting from the experience of members of the group “The Crowns Cirandeiros. The text demonstrates the shared desire among the group members for social recognition of the activity as performed by professional musicians as well as the challenges and dilemmas to establish themselves competitively in the tourism market in the desired condition. Keywords: ciranda; tourism; services Referências ARANTES, Antonio Augusto (Org.). Produzindo o passado. São Paulo: Brasiliense, 1984. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 1996. 188 p. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. (Org.). 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Este artigo busca aprofundar a reflexão sobre a maneira como a antropologia e os estudos culturais e pós-coloniais têm tratado a questão das diferenças, mais especificamente o tema das identidades no mundo atual, envolvido cada vez mais por aquilo que se convencionou chamar de globalização. Assim, procura-se apontar convergências e divergências entre diferentes tradições acadêmicas e argumenta-se em favor de uma inspiração mútua entre elas, com o objetivo de superar fraquezas analíticas localizadas em cada uma delas. Palavras-chave: diferença; identidade; teoria antropológica; teoria pós-colonial. * Professor assistente, Doutor em Antropologia, na UNESP – Campus Marília. Endereço: R. Paranaguá, 192, ap. 122, Centro, Londrina – PR, Cep: 86.020030. Email: <andreas. [email protected]>. Telefone: (043) 3324-5010. 100 O uso do hijab (véu) por muçulmanas residentes na Europa ocidental tem causado grande polêmica em torno da questão da imigração e da convivência entre diferentes grupos humanos. E mais do que isto: tornou-se também referência emblemática no debate entre aqueles que defendem políticas multiculturalistas e os que exigem uma total assimilação cultural dos imigrantes ou mesmo a sua expulsão. Os argumentos usados nesta discussão vêm revelando de modo cada vez mais nítido as múltiplas facetas do “símbolo véu”, que pode assumir significados sociopolíticos bastante variados e pode até assumir conteúdos ideológicos que se opõem um ao outro. De um lado, o hijab vem sendo associado por seus opositores à submissão e à exploração da mulher: eles/elas vêem nele um sinal que expressa a opressão da mulher pelo homem e que, desta forma, reafirma o patriarcalismo e o machismo. Já os/as defensores/as do hijab projetam nele uma afirmação étnico-religiosa e/ou da liberdade individual e, neste sentido, para alguns o véu simboliza o direito a liberdades individuais e coletivas no país acolhedor; assim, seu uso pode ser visto também como um ato de resistência contra forças assimilacionistas. O exemplo do véu coloca e recoloca, portanto, não apenas aos legisladores dos países ocidentais a questão complexa de como avaliar a(s) diferença(s) e como lidar com elas, mas serve também como exemplo paradigmático para a reflexão acadêmica sobre as diferenças na contemporaneidade. No mundo atual, marcado por fluxos de capitais, informações e também, mesmo que de forma controlada pelos países ricos, de pessoas, há uma gama cada vez maior de referências culturais à disposição dos sujeitos, fato que contribui também para a criação de incertezas a respeito do significado das coisas. São tais incertezas que obrigam os sujeitos a serem, por meio de processos de identificação, mais e mais ativamente criadores de significado. As discussões em torno do véu podem, portanto, ser vistas como um exemplo de que vivemos numa época marcada por uma profunda crise da representação e, ao mesmo tempo, por processos e jogos identitários cada vez mais complexos. Estudos semióticos e pós-modernos falam, por exemplo, da dissociação entre significante e significado, ou seja, de um processo de autonomização dos significantes em relação aos significados provocada pela hiper- ou pós-modernidade. Sabemos desde Saussure que a relação entre significante e significado é – por princípio – uma relação arbitrária. Mas, ao mesmo tempo, os estudos linguísticos clássicos sustentavam que existe um consenso social que atribui significados aos significantes e que fundamenta, desta forma, sim, uma relação – de certa maneira – sólida e Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 101 duradoura entre significante e significado. Caso contrário, argumentavase, a comunicação entre os seres humanos estaria posta em xeque ou tornar-se-ia muito difícil, quase inviável. No entanto, no contexto do capitalismo tardio, há indícios fortes de que estas “pontes” – relações estáveis entre significantes e significados – começaram a ruir. Diante desta situação se torna também, evidentemente, cada vez mais difícil fazer qualquer comentário sobre as diferenças humanas. A importância da cultura Para tematizar a complexidade da questão das diferenças no mundo de hoje, proponho analisar duas perspectivas que têm dado contribuições importantes para esta reflexão: a tradição antropológica que, desde os seus primórdios, tem colocado no centro de suas reflexões a questão das diferenças humanas; e a perspectiva dos estudos culturais e pós-coloniais, que surgiu dentro de uma tradição sociológico-filosófica que incorpora, inclusive, reflexões dos estudos literários. Pretendo apontar as semelhanças e divergências teóricas embutidas nestas “correntes”, para, ao final, argumentar em favor de uma inspiração mútua entre elas, com o objetivo de superar fraquezas analíticas localizadas em cada uma delas. Comecemos pelos principais passos que foram responsáveis pela elaboração dos conceitos paradigmáticos de cultura e de identidade bem como por suas diversas interpretações, a partir de um viés antropológico. Sabe-se que na segunda metade do século XIX, as diferenças entre os seres humanos eram atribuídas pelos cientistas, geralmente, a processos evolutivos e/ou a essências raciais-biológicas. Neste momento da constituição e da institucionalização da antropologia moderna, a grande maioria dos antropólogos era adepta do evolucionismo social. De acordo com esta perspectiva, as diferenças culturais eram concebidas como etapas da história (evolução) da espécie humana, que era entendida como um “aprimoramento gradual” do homo sapiens. Consequentemente, os povos “primitivos” eram tratados pelos cientistas como verdadeiros representantes da “infância da humanidade”. O interesse dos evolucionistas pelos “povos primitivos” justificava-se, portanto, em boa medida pela idéia de que o conhecimento sobre eles contribuiria para entender melhor a origem (as raízes) da “sociedade ocidental”. O fato de que os evolucionistas acreditavam numa única força civilizatória explica também porque Edward Burnett Tylor, fundador da antropologia Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 102 britânica, tratou, na sua clássica definição de civilização e cultura1 como sinônimos; explica ainda porque, de acordo com as análises de George Stocking Jr. (1982, p. 81), utilizou, em toda a sua obra, a palavra “cultura” somente no singular. Sabemos também que, para além do pensamento evolucionista social existia uma tradição de pensamento que via na força da biologia o fator principal das diferenças entre os seres humanos; e que estas duas abordagens se mesclavam e sobrepunham, por vezes, nas argumentações dos cientistas da época. Coube a Franz Boas, judeu-alemão radicado nos Estados Unidos, desafiar os determinismos (tanto o determinismo evolucionista como o racialbiológico) que marcavam as visões acadêmica e popular das diferenças humanas. Boas recuperaria a noção do “Volksgeist” (“espírito de um povo”), elaborada por pensadores alemães como Herder e Hegel, para renovar a idéia de cultura: ele iria tratá-la como uma totalidade orgânica, como a vida psíquica de um povo. Este antropólogo, que teve um papel fundamental na consolidação da antropologia como disciplina nos EUA, insistiria não apenas na idéia de uma pluralidade de culturas, mas opor-se-ia também a subjugar o mundo das culturas a “leis naturais”. Outro ponto importante: Boas reivindicaria uma separação conceitual rigorosa entre raça, entendida como herança biológica, de um lado; e cultura(s), vista(s) como o(s) mundo(s) da simbolização, de outro lado (BOAS, 1949). Foi desta forma que Boas conseguiu subtrair a noção da “diferença” do “reino da natureza”, isto é, de um mundo dominado por características inatas, e remetê-la a um espaço conceitual próprio para se pensar os mundos da simbolização criados pelos próprios seres humanos. Sabe-se também que as idéias de Boas abririam o caminho para a consolidação e a defesa do chamado “relativismo cultural” (sobretudo entre os seus discípulos, como R. Benedict, M. Mead e outras/os), segundo o qual, em sua formulação clássica, as culturas humanas são tratadas como sistemas de valores irredutíveis uns aos outros – uma perspectiva que, em última análise, impossibilita um julgamento qualitativo dos diferentes costumes e comportamentos culturais a partir de quaisquer outros parâmetros que não os locais. Esta noção sistêmica e sincrônica das culturas, como entidades coesas e homogêneas, marcaria, no fundo, todas as grandes teorias antropológicas do início do século XX: não apenas o culturalismo norte-americano, mas também o funcionalismo e o estruturalismo lhe seriam tributários. 1 “Cultura ou civilização, no seu sentido etnográfico amplo, é aquele complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes, e qualquer outra capacidade e hábito adquirido pelo ser humano como membro de uma sociedade” (TYLOR, 1871, v. 1, p. 1). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 103 A concepção sistêmica de cultura ganharia mais dinâmica a partir da década de 1970 e 1980, quando pesquisadores, como p.ex. P. Bourdieu (1972) e M. Sahlins (1981), começaram a conjugar a noção de sistema com usos particulares e estratégicos de partes do repertório sociocultural, em virtude de interesses pessoais e grupais. Tais mudanças de perspectiva analítica foram interpretadas por Sherry Ortner, no clássico artigo “Theory in Anthropology since the Sixties” (1984), como uma reação ao paradigma estruturalista que, segundo esta pesquisadora, predominou na produção antropológica durante a década de 1960. Com base na crítica de que o estruturalismo nega a relevância do sujeito intencional sobre o processo social e cultural, e também qualquer impacto significativo da história (“evento”) sobre a estrutura, alguns estudiosos buscaram elaborar modelos teóricos alternativos nos quais tanto os agentes quanto os eventos tivessem um papel mais ativo (ORTNER, 1984, p. 137-138). Teria sido desta forma que termos como prática, ação, interação, experiência, performance, mas também agente, ator, pessoa, self, indivíduo e sujeito começaram a ganhar uma centralidade cada vez maior em trabalhos antropológicos. Interessava agora entender não somente como o sistema molda a prática, mas sobretudo também como o próprio sistema é moldado pela ação dos agentes sociais: isto é, como a prática contribui para reproduzir o sistema/estrutura e como o sistema/estrutura pode ser transformado/a e/ou mantido/a pela prática (ORTNER, 1984, p. 152154). Foram preocupações teóricas como estas que introduziram e deram destaque à noção de “agenciamento” (agency) em estudos antropológicos. Uma outra perspectiva analítica foi aberta por C. Geertz (1989), que propôs novo paradigma para a antropologia, que repercutiria fortemente, inclusive, fora da disciplina, já que visava a erradicar as fronteiras entre ciência e arte. Sabemos que a chamada antropologia interpretativa, que aborda culturas como textos interpretáveis e, em princípio, não conclusivos, abriu o caminho para uma crítica radical à antropologia, impulsionando processos que a literatura especializada denominaria de virada literária, virada dialógica e virada reflexiva. Uma nova geração de antropólogos, que deram um passo além em relação ao projeto interpretativo geertziano e que seriam rotulados de pós-modernos, já não acredita na possibilidade de chegarmos, na análise, a um plano intersubjetivo em torno dos significados dos signos, tal como Geertz supunha. Seu objetivo declarado, agora, é romper com os “monólogos” que, segundo eles, dominavam as monografias antropológicas clássicas (inclusive, os textos “clássicos” de Geertz da década de 1970). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 104 Para isto, era necessária a elaboração de estratégias que permitissem expressar as múltiplas vozes, a polifonia, que, de acordo com estes autores, cria e recria a vida em sociedade. Os antropólogos pós-modernos centrariam assim as suas atenções na relação dialógica entre pesquisador e pesquisado, tida como responsável pela produção de conhecimento. Inspirados em Foucault, alguns procuram analisar, em primeiro lugar, como se articulam – por meio dos discursos – as relações de poder. Evidentemente, quando se parte de noções como estas, a representação em si torna-se um grande problema analítico e o conceito de cultura pode correr o risco de entrar numa crise profunda. De fato, houve antropólogos que passaram a reivindicar o abandono do conceito de cultura. Num texto famoso (“Writing against culture”, 1991), Lila Abu-Lughod, antropóloga nascida no Egito e que leciona nos EUA, caracteriza a cultura como “uma ferramenta essencial para a fabricação de alteridades” e propõe substituí-la por termos como “prática” ou “discurso”. De acordo com a autora, diferentemente de “cultura”, estes conceitos (prática, discurso) não sugerem “homogeneidade” e “holismos”, mas enfatizam outras características que Abu-Lughod considera mais importantes nos processos culturais: dinâmicas, subjetividades e processos de transformação. Outros pesquisadores, como James Clifford, que se vê como historiador e crítico da antropologia, concordam que cultura é uma idéia profundamente comprometida, mas preferem não abrir mão do uso do conceito. Ao mesmo tempo, Clifford afirma que as noções clássicas de “integridade cultural” não têm como sobreviver aos processos de fragmentação que o mundo pós-industrial impôs. Ele entende que no mundo atual, as fronteiras, todas as fronteiras, são “incertas” e sujeitas a negociações. Portanto, para Clifford não existem tampouco seres humanos que pertencem a um único lugar, a uma única cultura. Já não há mais estes espaços com limites fixos; e provavelmente eles nunca existiram, sugere ele. De acordo com este pesquisador, somos todos viajantes e é neste sentido que ele usa também a metáfora da “cultura como viagem” (CLIFFORD, 1995, p. 56).2 2 Clifford afirma ainda que a pesquisa antropológica deveria concentrar-se em novas localizações: nas fronteiras que ele entende como lugares de hibridação, de luta e de transgressão. É que, de acordo com Clifford, são as experiências de fronteira que produzem visões políticas poderosas, as quais teriam a capacidade de gerar aquilo que ele chama de “cosmopolitismos discrepantes”, isto é, posturas cosmopolitas que geram fricção e que dão impulsos para as transformações (CLIFFORD, 1995, p. 67-70). Idéias como estas aproximam-se bastante daquelas apresentadas por autores nomeados, neste ensaio, pós-coloniais (cf. p.ex. Bhabha). As críticas a tais reflexões se assemelham também. A ênfase na relação dialógica como fonte da produção de conhecimento e a incorporação dos princípios da análise discursiva fariam com que a atenção fosse desviada de uma avaliação de diferenças em termos de valores, epistemologias, mitologias, teologias, políticas e economias, etc. presentes nas diversas formas de vida das pessoas. E este movimento contribuiria para reduzir a idéia da cultura a um “marcador da diferença” (differencing) que tenderia a dissolver tudo que tem sido caro à antropologia até recentemente (cf. as críticas de Sahlins aos antropólogos pós-modernos, em SAHLINS, 1997, p. 43-44). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 105 Paralelamente às (re)formulações e discussões sobre a validade do conceito de cultura, a noção de identidade começava a ganhar cada vez mais importância nos textos antropológicos. Este conceito foi emprestado das áreas da psicologia e da filosofia, num momento em que alguns pesquisadores perceberam que as teorias clássicas a respeito da cultura – elaboradas pelo funcionalismo, culturalismo norte-americano, estruturalismo – não davam conta de temas importantes de análise, tais como questões relacionadas com disputas de poder, conflitos dentro e entre os grupos (especialmente os conflitos interétnicos), etc. Sobretudo aquela idéia que orientava implicitamente os diversos estudos clássicos, segundo a qual existiria uma correlação entre espaço, grupo e cultura, começava a ser questionada. Tornava-se cada vez mais perceptível que esta suposição não correspondia mais ao mundo da segunda metade do século XX. Deslocando as atenções para as fronteiras Foi neste contexto que conceitos como “identidade étnica” e “etnicidade” entraram no vocabulário dos antropólogos. Cita-se geralmente a introdução à coletânea Grupos étnicos e suas fronteiras, publicada por Fredrik Barth em 1969, como o texto que teria introduzido a noção de “identidade étnica” na reflexão antropológica.3 Neste ensaio, hoje tido como clássico, Barth argumenta, entre outras coisas, que o “grupo étnico” não deve ser visto meramente como um “suporte”, como uma “unidade portadora de cultura”. É que, argumenta o autor, se procedermos desta forma, a definição do conceito “grupo étnico” não se diferenciaria substancialmente do uso da velha idéia de raça contra o qual a antropologia tem polemizado desde os tempos de Boas. Barth argumenta que a relação entre cultura e identidade étnica (entre fronteiras de uma cultura específica e de um grupo específico) não é obrigatoriamente uma relação simples de “um para um” (BARTH, 1969, p. 14). Se nas monografias clássicas a “identidade grupal” era tomada geralmente como algo “dado”, algo que não precisaria ser examinado e explicado, a análise de Barth visa agora a diferenciar claramente entre 3 Sabe-se, porém, que vários outros cientistas deram contribuições importantes para a idéia da “identidade étnica” antes de F. Barth. Assim, podemos lembrar, p.ex., as reflexões do antropólogo Evans-Pritchard sobre o princípio de segmentação entre os Nuer (no livro Os Nuer, 1940) ou ainda as considerações do sociólogo M. Weber a respeito da importância de processualidades, contrastividades e de subjetividades na formação dos “grupos étnicos” (no seu clássico Economia e sociedade, 1922). Entre outros trabalhos que foram fundamentais para dar início à reflexão sobre identidade étnica poderíamos citar Custom and politics in urban Africa (COHEN, 1969), Beyond the melting pot (GLAZER; MOYNIHAN, 1963); Ethnicity (editado por GLAZER; MOYNIHAN, 1975); e no Brasil, os trabalhos de Roberto Cardoso de Oliveira (p.ex., Identidade, etnia e estrutura social, 1976) e de Manuela Carneira da Cunha (“Etnicidade: da cultura residual mas irredutível”, em CUNHA, 1986). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 106 organização social e cultura (VILLAR, 2004, p. 171). Barth mostra, por exemplo, que existem grupos étnicos com – relativamente grandes – variações culturais internas como existem, às vezes também, fronteiras nítidas entre pessoas cujos padrões e valores culturais não se diferenciam substancialmente, ou seja, entre pessoas que são – “culturalmente falando” – muito parecidas. O que determina a definição e redefinição da(s) fronteira(s), diz Barth, não é necessariamente a diferença cultural “real observável”, e sim muito mais as “relações” que existem entre as pessoas (os grupos) e, acima de tudo, a maneira como as diferenças são percebidas pelos agentes sociais. Ou seja, de acordo com este autor, a razão da “identificação” (e da diferenciação) não está tanto em diferenças que existem “objetivamente”, mas em diferenças que são concebidas pelos próprios agentes como socialmente relevantes. Barth iria enfatizar ainda a processualidade e contextualidade da identidade étnica, quando chama a atenção para aquilo que ele denomina de “emblemas de diferença”: ocorre que, em determinados contextos e em virtude de interesses particulares, as pessoas (indivíduos e grupos) selecionam do seu repertório cultural (vestimenta, língua, moradia, etc.) algum signo (“traço diacrítico”) para delimitar-se de outros e para exibir uma identidade comum. Reflexões como estas têm sido usadas para ajudar a explicar processos de etnicização (etnogênese) que podem ser provocados por situações de conflito. Assim, estudos antropológicos recentes inspirados em Barth mostraram de que maneira, com o acirramento dos conflitos na exIugoslávia e em Ruanda, hibridismos culturais existentes – aqueles laços socioculturais que ligavam as pessoas além de diferentes “tradições” e proveniências, começavam a ser reprimidos e “subrepresentados” no cotidiano das pessoas. Em pouco tempo, correspondendo a visões identitárias pregadas pelos líderes, as pessoas passaram a sentir-se obrigadas a fazer opções que as tornavam “ou”/”ou”; no caso da ex-Iugoslávia: ou sérvios, ou croatas ou muçulmanos; em Ruanda: ou tutsis ou hutus. Vimos, portanto, que Barth começa a abordar o grupo étnico mais como uma estratégia que orienta e organiza as interações sociais. Partindo desta perspectiva, este antropólogo reivindicaria também que o ponto central da pesquisa antropológica não deveria ser o “conteúdo das culturas” (cultural stuff), mas muito mais “a fronteira étnica que define o grupo”. Assim, as reflexões deste autor propõem deslocar o foco da análise da constituição interna (valores, costumes) para as fronteiras, mais especificamente, para a criação e manutenção das fronteiras do grupo. Mais recentemente, Barth seria criticado por alguns antropóAntropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 107 logos (p.ex., VILLAR, 2004) que o acusaram de ter elaborado uma noção de identidade que aparece como resultado de uma livre escolha dos indivíduos: análise que tenderia a conferir uma onipotência quase total ao agente social e ignoraria a importância de sistemas, estruturas e padrões culturais. De qualquer forma, parece lícito afirmar, que, de certa maneira, as reflexões deste antropólogo bem como a introdução do conceito de identidade abriram uma nova frente investigativa: a das perspectivas subjetivas sobre a questão das diferenças humanas. O conceito “identidade étnica” abriria espaço na análise para o olhar dos próprios pesquisados sobre aquilo que os diferencia dos “outros”. Não há evidentemente, hoje, concordância total entre os antropólogos no que diz respeito ao uso e ao conteúdo do conceito de identidade étnica. Mas podemos talvez destacar alguns pontos que me parecem “consensuais” para a grande maioria. Em primeiro lugar, a “identidade étnica” não deve ser pensada como uma “entidade em si”. Recentemente, alguns antropólogos (p.ex., ERIKSEN, 2003) têm argumentado, inclusive, que seria “mais correto” usarmos o termo “identificação” no lugar de “identidade”, já que o tema diz respeito a “processos contínuos” e não a uma coisa que pode ser “possuída” ou “perdida”. Neste sentido, a maioria dos especialistas no assunto entende que identidades são construções profundamente marcadas pelas diversas relações em que os sujeitos estão inseridos e envolvidos e pelos contextos em que vivem. Além disso, vários pesquisadores têm chamado a atenção para o fato de que hoje os sujeitos e grupos estão convivendo com e envolvidos em vários processos identitários paralelamente; eles estariam mergulhando em diferentes “fluxos culturais” e, desta forma, bricolando “múltiplas identidades” (CASTELLS, 2002). Dependendo dos contatos e relações dos sujeitos e grupos com determinados contextos e espaços, ocorreriam identificações diferentes e tais processos seriam vivenciados pelos agentes sociais ou como experiências complementares ou como vivências conflitantes entre si. Outros cientistas buscam análises alternativas. Assim, G. Lins Ribeiro, p.ex., recupera a noção de “níveis de integração sociocultural”, cunhados por Julian Steward, em 1951. Este conceito deveria ajudar a pensar as diferentes formas de sociabilidade que marcam a vida dos sujeitos na era da globalização exacerbada. Ele constituiria um instrumental metodológico adequado para entender melhor os laços de pertencimento que os agentes sociais constroem a partir de suas múltiplas atuações em diferentes âmbitos espaço-socioculturais (planos local, regional, nacioAntropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 108 nal, internacional e transnacional). Assim, seria possível analisarmos a pluralidade e a multidimensionalidade do fenômeno da identidade, sem cairmos numa abordagem pós-moderna extremada que tende a abordar a criação de identidades como um jogo em que os indivíduos teriam plena liberdade e pleno domínio sobre as suas escolhas identitárias. Ribeiro chama a atenção para o fato de que “os processos de autoidentificação são atravessados por diferentes lealdades a diferentes níveis de integração” (RIBEIRO, 1997, p. 3-4,14). As transformações relativamente recentes ocorridas no contexto da globalização criaram, é importante frisar, novos desafios para a reflexão antropológica e instigaram diversos pesquisadores a refinar a sua reflexão sobre o conceito de identidade. A análise a seguir, de contribuições recentes de Thomas Hylland Eriksen, deveria servir como um exemplo de como o tema da diferença no mundo globalizado pode ser abordado a partir de um instrumental antropológico. Eriksen associa a ascensão da categoria “identidade étnica” no pensamento antropológico com mudanças de enfoque que ocorreram dentro da disciplina. Se até relativamente pouco tempo atrás as variações culturais eram vistas pelos pesquisadores como um “valor em si” e mereciam, inclusive, ser fortalecidas diante das imposições do mundo moderno, nas últimas décadas – devido ao acirramento de processos da globalização, mas também às críticas pós-modernas, pós-estruturais e pós-coloniais –, idéias fundantes como “autenticidade” e “tradição” começaram a ser revistas. Eriksen (2001, p. 3) lembra ainda que os críticos do holismo cultural apontaram não apenas para o fato de que existem grandes variações internas dentro de cada cultura, mas mostraram também que “ideologias tradicionalistas”, que enfatizam as “raízes” e a “pureza cultural”, surgem com frequência no contexto de processos de modernização e globalização. Assim, cada vez mais antropólogos teriam se convencido de que o foco de análise já não devia mais ser “as diferentes culturas ’em si’”, mas a maneira como os agentes sociais fazem uso dos símbolos culturais em situações específicas. De acordo com este raciocínio, analisar a “cultura como ela é” sem levar em consideração o dinamismo que envolve o “agenciamento”, afirma Eriksen, torna-se uma prática antropológica ultrapassada que – assim soa a acusação – contribui para promover uma idéia essencializada da cultura. Dito isto, Eriksen critica, ao mesmo tempo, aqueles usos do termo “identidade” que passam a idéia de que o indivíduo é um “significador que flutua livremente”. “O indivíduo não é um sujeito que cria a partir do Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 109 nada”, escreve Eriksen (2001, p. 17), opondo-se a certos “excessos” que localiza em abordagens marcadamente pós-modernas (nas avaliações de Z. Bauman). Ele enfatiza a importância da perspectiva construtivista na análise identitária, mas ao mesmo tempo chama a atenção para o fato de que os signos, que se tornam marcadores da identidade de um indivíduo ou de um grupo, não são escolhidos de forma aleatória, e sim fazem parte da experiência do cotidiano das pessoas (ERIKSEN, 1991, p. 12). De acordo com Eriksen, cada pessoa é portadora de um grande número de identidades em potencial, mas apenas algumas delas tornam-se socialmente relevantes e “fazem a diferença no seu dia-a-dia” (2001, p. 13). Com o objetivo de chamar a atenção para certos limites que se impõem aos sujeitos na negociação das suas identidades (nos processos de identificação), Eriksen distingue, nas suas análises, dois aspectos da “identidade étnica”: um imperativo, outro situacional.4 Assim, Eriksen argumenta que um negro emigrado será, na Europa, inevitavelmente “identificado” como “estranho” pela maioria da população local. Neste caso, a margem de negociação é mínima e, para este sujeito, a identidade torna-se mais imperativa do que situacional.5 No entanto, de acordo com Eriksen, há sempre no “pacote identitário” – isto é, no conjunto de processos de identificação que o indivíduo vive –, algumas “identidades” que admitem mais possibilidades de manipulação do que outras. Eriksen entende que, na maioria das situações, há alguma margem de negociação para os processos de inclusão e exclusão. Portanto, para ele, não existe uma imposição total, nem no caso das “identidades imperativas”, da mesma maneira que seria uma utopia acreditar na existência de uma escolha totalmente livre nos processos identitários. De modo geral, diz Eriksen (2004, p. 163), o elemento imperativo mostra-se mais forte nos processos identitários que têm lugar em sociedades chamadas de tradicionais do que naqueles que ocorrem em sociedades marcadas pela (pós-)modernidade ocidental. Enquanto a sociabilidade pós-moderna exige flexibilidade, adaptações e contextualizações constantes das individualidades, as perspectivas subjetivas em sociedades “tradicionais” aparecem frequentemente controladas por normas coletivas. Sendo o contraste um dos elementos importantes da identidade, afirma Eriksen (2004, p. 166), a maioria das identidades é – em princípio – 4 A idéia de que a identidade étnica é tanto “imperativa” como “situacional” já pode ser encontrada nos escritos clássicos de F. Barth. 5 Como exemplos de identificações impositivas o autor menciona aquelas relacionadas com o parentesco e com a língua-mãe. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 110 “ou”/”ou”: a pessoa sente-se ou homem ou mulher, ela “é” ou branco ou negro, ou cristão ou muçulmano etc. No entanto, se olharmos para a realidade mais de perto, perceberemos que ela se apresenta muitas vezes de forma mais complexa e menos ordenada. Recorrendo aos seus estudos na ilha de Trinidad, o pesquisador chama a atenção para o grupo dos “douglas”, que surgiu a partir da convivência entre os afrotrinidadenses (na sua maioria, cristãos) e os hindu-trinidadenses (na sua maioria muçulmanos ou hindus) e tornou-se um grupo intermediário entre as duas comunidades principais. De acordo com Eriksen, tais processos de hibridação e crioulização, característicos da colonização nas Américas, tornam-se hoje cada vez mais frequentes mundo afora. Em contextos como este, surgem e expandem-se zonas ambíguas que tendem a substituir as fronteiras antes claras, conclui Eriksen. Em recente artigo, “Crioulização e criatividade” (2003), Eriksen investiga a criatividade em processos identitários no mundo globalizado, a partir do exemplo da chamada segunda geração de imigrantes na Europa. Ele localiza três tipos principais de “estratégias identitárias”: a) identidade pura, de acordo com o autor, seria escolhida por tradicionalistas ou puritanos. Trata-se de uma opção que costuma ser oferecida aos jovens por líderes religiosos e por políticos que buscam promover políticas de identidade. Este tipo de identidade promete aos jovens uma vida ordenada e regrada. Ao estabelecer fronteiras firmes, inibir ou proibir negociações em torno de valores e moral, conseguiria frequentemente oferecer às pessoas uma sensação de segurança, neutralizando ambiguidades e o caos que muitos sentem na sua vivência diaspórica. De acordo com Eriksen, “identidades puras” ajudam as pessoas que vivenciam no cotidiano atos de discriminação e sofrem humilhações e exclusão social a estabelecer uma visão positiva sobre si próprias e seu grupo. O preço a ser pago seria uma certa alienação em relação à “sociedade receptora”, uma situação que não deixaria de provocar também certas frustrações no meio deste grupo. b) identidade hifenizada, que o autor avalia como uma tentativa de ligar duas categorias (ou “vivências”): p.ex., a tradição turca com a alemã. Eriksen relata que, nestes casos (de jovens que se vêem como turcosalemães), ocorre frequentemente que dentro de casa vive-se como no interior da Anatólia (isto é, segue-se a maior parte dos costumes turcos); nos espaços públicos (rua, escola etc.), no entanto, os jovens turcos-alemães tendem a se comportar como qualquer outro alemão. O autor lembra que as “identidades hifenizadas” ainda pressupõem que existam fronteiras claras entre grupos. No cotidiano, as pessoas Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 111 mudam frequentemente os códigos (code switching) quando atravessam “fronteiras” e passam de um espaço cultural para outro. Trata-se de um procedimento que ocorre com a maior naturalidade, sem grandes questionamentos nem constrangimentos da parte dos jovens. c) identidade crioula, diferentemente da “identidade pura” e da “identidade hifenizada”, esse terceiro tipo de identidade não reconhece a existência de culturas puras. Enquanto a “identidade pura” e a “identidade hifenizada” continuam tendo como referência a noção boasiana clássica de “cultura” (um “todo complexo e homogêneo”), a “identidade crioula” apresenta tal grau de mistura que já não faz sentido buscar nela “hífens” ou “fronteiras”. Como exemplo de uma “identidade crioula”, Eriksen cita jovens imigrantes que vivem na Alemanha, identificam-se como muçulmanos, mas ao mesmo tempo costumam comer carne de porco e tomar bebidas alcoólicas. Têm relações sexuais antes do casamento, mas aceitam, ao mesmo tempo, que os seus pais arranjem o seu casamento. Frequentam, num dia, a mesquita e, no dia seguinte, vão dançar numa discoteca. Acompanham tanto canais de TV turcos, como assistem a TV alemã, etc. Se as “identidades puras” buscam impedir a crioulização, continua Eriksen em sua análise, as “identidades hifenizadas” são tentativas de usar os dois velhos “mapas” para atribuir sentido (significado) ao novo território: usam as velhas referências culturais como orientação no novo contexto. Já as “identidades crioulas” descartam “os mapas antigos” (velhas noções de cultura) e procuram desenhar um “novo mapa” (“novos padrões”) (ERIKSEN, 2003, p. 233).6 Hoje, juntamente com estes processos, seria perceptível em praticamente todas as sociedades uma tensão entre “valores” apresentados como “tradicionais” e “valores” que enfatizam a “liberdade e escolha individual”. Se o 6 Eriksen ainda deixa claro que os três tipos de identidade por ele formulados não pretendem descrever um processo cronológico linear. Ao contrário: frequentemente, acontece que, num primeiro momento da imigração, na busca de uma melhora na sua condição de vida, a primeira geração não entra diretamente em choque com a sociedade “receptora” e mantém uma relação com as suas tradições religiosas e os seus costumes que Eriksen chama de relaxed. Ou seja, as pessoas continuam praticando uma série de tradições culturais que as remetem à sua origem (turca, sérvia etc.), mas sem fazer questão de exibi-las em público, sem enaltecê-las diante do resto de sociedade e sem vinculá-las a reivindicações políticas. Num segundo momento, porém, podem ocorrer mudanças de atitudes, sobretudo entre aqueles da “segunda geração” que têm dificuldade em ascender socialmente (dificuldade de conseguir um trabalho mais digno e mais bem remunerado do que aquele que os seus pais executaram). Quando membros desta geração, que já cresceram na diáspora e que desde a sua infância estão confrontados (na escola, via mídia, etc.) com a propagação dos valores supremos do mundo ocidental moderno (as máximas dos Direitos Humanos, como igualdade entre seres humanos, entre sexos, “grupos étnico-raciais” etc.), percebem ou avaliam que não são tratados – na prática – de acordo com estes valores, afirma Eriksen, partes da segunda geração se rebelam e respondem com “puritanismo cultural” e/ou com reivindicações que visam à implementação de “políticas identitárias” (ERIKSEN, 2003, p. 234). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 112 autor localiza neste fenômeno uma tendência universal, chama ao mesmo tempo a atenção para o fato de que a relação entre o poder (manutenção) da tradição e a liberdade individual da modernidade varia de lugar para lugar. Dependendo do contexto, ocorrem diferentes articulações desta tensão que, evidentemente, exerce uma influência importante sobre a formação das identidades locais (ERIKSEN, 2004, p. 163). Eriksen mostra que, no mundo atual, a maioria das sociedades é envolvida por forças antagônicas que são características do e intrínsecas ao processo da globalização e agem diretamente sobre a construção das identidades. De um lado, percebemos a disseminação de hibridismos, sincretismos – mistura de culturas, que caminha com processos de migração, de desterritorialização e de desenraizamento de grandes populações, além de ser facilitada e instigada por novas tecnologias e novas formas de comunicação. Paralelamente a este fenômeno, articulam-se projetos políticos que propõem como estratégia de luta o retorno às raízes culturais e/ou a afirmação das diferenças. Pode-se encontrar esta estratégia identitária que tende a promover a essencialização das diferenças, tanto em discursos que reivindicam direitos coletivos para minorias étnicas e/ou religiosas como em discursos que defendem os interesses de um grupo socialmente reconhecido ou mesmo majoritário.7 Eriksen tem argumentado que as trocas culturais, as contínuas influências mútuas não levaram ao fim das fronteiras identitárias. Ele entende as forças centrípetas ou uniformizadoras da globalização e as forças centrífugas ou fragmentárias das políticas identitárias como dois lados de uma mesma moeda. Os esforços em torno da implementação de políticas identitárias surgem, portanto, de acordo com Eriksen, como uma tendência complementar ou ainda como uma consequência direta (trueborn child) dos processos de globalização (ERIKSEN, 2007, p. 145-146). Quanto mais as pessoas se tornam semelhantes, afirma o antropólogo norueguês, mais começam a se preocupar em aparecer como diferentes umas das outras. E quanto mais elas procuram “ser diferentes”, mais semelhantes elas se tornam (ERIKSEN, 2007, p. 146). Isto porque, segundo Eriksen, existem hoje algumas maneiras estandartizadas de expressar “unicidade” e “diferença” que são globalmente reconhecidas e aceitas e tornam os diferentes grupos “comparáveis” uns aos outros (ERIKSEN 2004, p. 168). 7 A “nova direita“ na Europa, p. ex., reivindica o direito à manutenção da „cultura nacional“ e da „identidade nacional“ que sente ameaçada por aquilo que entende como „invasão dos imigrantes“. Nos seus discursos, já não recorre mais ao clássico discurso da superioridade racial, mas apropria-se de instrumentos „modernos“ para a defesa de suas posições, como se pode notar no discurso de grupos como a Liga Nord (Itália), a Frente Nacional (França). etc. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 113 A preocupação com a “comparabilidade”, da qual nos fala Eriksen, tem como referência principal o plano legal: isto é, o plano dos direitos nacionais e internacionais, as obrigações dos Estados nacionais em relação aos organismos internacionais (ONU), especialmente no que diz respeito ao tratamento de grupos minoritários. Para Eriksen, a exibição pública de roupas e penteados tidos como tradicionais, a “retomada” de práticas musicais “tradicionais” e de usos culinários “regionais” etc., aparecem hoje como elementos recorrentes por meio dos quais os grupos procurariam “sinalizar diferenças” e ganhar mais “visibilidade”. Pode-se perceber que pessoas e coletivos, nos mais diversos lugares do planeta, procuram desenvolver estratégias semelhantes para apresentar-se e representar-se como grupos homogêneos e coesos, com o objetivo de serem reconhecidos pelo legislador como “minorias”, isto é, como “entidades coletivas” para as quais o legislador prevê direitos particulares. Ou seja, para poderem ser reconhecidos como grupo, pessoas e coletivos tenderiam a assumir um mesmo “padrão de reconhecimento”. Eriksen avalia, assim, que vivemos um momento em que está se desenvolvendo uma espécie de “gramática comum” que se torna cada vez mais globalmente estandartizada e que rege a articulação das “diferenças”. Ele localiza nestas transformações recentes um paradoxo: de um lado, existe no mundo globalizado uma ânsia cada vez maior de enfatizar e de destacar diferenças; de outro lado, o “agenciamento das diferenças”, isto é, a maneira como as diferenças são articuladas, segue cada vez mais o mesmo padrão. E mais: a assunção deste padrão – desta gramática específica – pode até levar à transformação de algumas das “características fundamentais” que “originalmente” constituíam “traços distintivos” do grupo. Parafraseando Eriksen, poderíamos concluir que a homogeneização na maneira de articular a diferença seria, nestes casos, o preço do reconhecimento. A afirmação do sujeito moderno e a sua fragmentação na era pós-moderna Quero agora abordar algumas contribuições valiosas para a reflexão sobre as diferenças que estão inseridas numa outra “tradição”, à qual poderíamos chamar de sociofilosófica, e que se concentra, em suas análises, na sociedade ocidental. O filósofo canadense Charles Taylor, que vem se dedicando há décadas, à filosofia das ciências sociais, argumenta que, na modernidade, a identidade é formada e definida pela existência ou inexistência de reconhecimento.8 Ao elaborar esta tese no seu já clássico 8 Agradeço as contribuições e sugestões de Raquel Kritsch para a el\aboração e síntese das idéias de Taylor. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 114 As fontes do self (1989), Taylor procura mostrar que a noção de pessoa sofreu importantes alterações ao longo da história do Ocidente. Durante muito tempo, o lugar do sujeito era determinado por fatores externos à pessoa, que estavam ligados a noções como “status” e “honra”, fundamentos das hierarquias sociais.9 Assim, em sociedades deste tipo, tradicionais e hierarquizadas, a “identidade” das pessoas era “regulada” por meio dos papéis sociais. Taylor denomina estas “identidades” de “socialmente derivadas”, já que se baseavam em categorias sociais que eram tomadas pelos sujeitos como algo dado, exterior a eles, e que, portanto, raramente sofriam algum tipo de questionamento. E eram elas, as “identidades socialmente derivadas”, que sustentavam e garantiam também o reconhecimento social da pessoa. Taylor sustenta ainda que o fato de que, em tempos pré-modernos, as pessoas não falassem em “identidade” e “reconhecimento” não significa que elas não tivessem tido aquilo que hoje chamamos de “identidade”, e sim deve-se muito mais a um contexto social específico em que questões como estas eram demasiadamente descomplicadas para serem tematizadas (TAYLOR, 1995, p. 57; 1992, p. 34). Taylor procura mostrar que as trocas mercantis e as mudanças sociais introduzidas na era moderna promoveriam, entre outras coisas, uma mudança no paradigma ético, que teria reflexos importantes sobre a noção de pessoa. Aos poucos, explica ele, as pessoas começam a se conceber como seres com profundidade interna, ou seja, como unidades que carregam um valor em si (que têm sua própria medida, marca da originalidade de cada ser humano) e, desta forma, caracterizam-se pela dignidade. Diferentemente da honra, sustentada por relações sociais assimétricas, afirma Taylor, a dignidade, e isto é importante, era articulada como uma categoria comum a todas as pessoas; portanto, como uma categoria universalista e potencialmente igualitária. Assim, o paradigma da dignidade, que, aliás, segundo Taylor, é o único conceito compatível com a democracia, passa paulatinamente a substituir o da honra — um processo que permitiria mais adiante a individualização da identidade. Com a modernidade, então, aquilo que posteriormente será chamado de “identidade da pessoa”, vem a ser construído a partir “de dentro”, e não mais pela posição social do sujeito. Ocorreria, portanto, uma individualização da identidade, a qual traria consigo o ideal de que todos os seres humanos deveriam ser autênticos consigo mesmos. Ocorre também, de acordo com Taylor, que, neste processo, as noções de “bem” e “mal” deixam de ser determinadas de fora (por Deus e/ou outras ordens exteriores) e passam a ser percebidas como algo enraizado nos sentimentos dos próprios 9 Cf. também algumas das reflexões elaboradas por L. Dumont na sua obra O individualismo (1985). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 115 sujeitos. É por esta razão que a busca da autenticidade passa a constituir um ideal: agora, ser autêntico é ser, em primeiro lugar, verdadeiro para comigo (Rousseau), e não só para com Deus; o que implica também ser verdadeiro para com a minha originalidade (a medida da minha dignidade), que só eu conheço (Herder). Taylor lembra-nos ainda neste contexto, que foi Herder quem divulgou a idéia de que o ser humano possui uma medida do bem e da justiça que lhe é própria; e que foi este filósofo alemão quem defendeu o princípio da originalidade não apenas no plano individual, mas também no plano coletivo – uma noção, aliás, que inspiraria antropólogos como F. Boas a desenvolver as suas reflexões sobre as culturas humanas. Esta concepção da identidade como oriunda de dentro de cada ser, explica Taylor, daria origem ainda a uma “política da diferença” que visa ao reconhecimento da identidade única, singular de indivíduos ou grupos. Podemos perceber com clareza em nossos dias uma das consequências deste desenvolvimento: a reivindicação por reconhecimento já se tornou uma mola propulsora da ação política, tanto individual quanto coletiva. Entretanto, diferentemente da “identidade socialmente derivada”, a “identidade interiormente derivada”, que agora passa a ser “pessoal e original”, já não goza de um reconhecimento a priori. A partir da “virada da subjetividade” provocada pela modernidade, o reconhecimento precisa ser conquistado ativamente pelos sujeitos. E isto só é possível, segundo Taylor, por meio do diálogo e da luta permanente com outros relevantes (Hegel). A autodefinição, que supõe a aquisição de linguagens humanas de expressão repletas de significado, só pode ocorrer por meio de “interações comunicativas” e da disputa com outros “eus importantes”. Ora, se a formação bem como a manutenção da identidade é dialógica, isto implica a negociação com terceiros, o que, por sua vez, supõe o reconhecimento. Vários sociólogos importantes (como p.ex. Hall) já chamaram a atenção para o fato de que a idéia da “identidade” ganha importância apenas com a “modernidade”. Alguns autores (Dittrich e Radtke) argumentam que a pergunta “quem sou eu?” cria incertezas apenas a partir do momento em que já não há uma explicação hegemônica do mundo (crise das grandes religiões, crise das ideologias), a partir do momento em que várias interpretações do mundo começam a se estabelecer numa única sociedade e “convivem” numa relação de concorrência. Assim, Stuart Hall (2001, p. 39), por exemplo, afirma que a preocupação com a identidade surge devido à falta de “inteireza”. Segundo Hall, as transformações no mundo pós-industrial, a dinâmica acelerada (a mobilidade, as novas formas de transporte, as novas formas de comunicação), as fragmentações e os novos arranjos na organização Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 116 social e na organização dos espaços que o capitalismo moderno tem ocasionado em todos os âmbitos da vida social, fariam com que os indivíduos e os grupos já não se sentissem “totalidades coesas”. Hoje, na era da pósmodernidade, há cada vez mais indícios de que a coerência das coisas e dos sujeitos está se esvaindo. Os indivíduos envolvem-se em múltiplos processos identitários paralelamente, a partir dos quais parecem estar “bricolando” os “seus” significados. Assim, a fixação de qualquer identidade torna-se sempre temporária e provisória. Mais recentemente, o tema da “identidade” ganharia uma nova importância dentro da sociologia, a partir do momento em que alguns autores, hoje geralmente associados aos estudos pós-coloniais, começaram a fazer críticas às premissas da teoria da modernização (COSTA, 2006, p. 83-85), chamando a atenção, entre outras coisas, para o fato de que a noção clássica do sujeito cartesiano iluminista constituiria, acima de tudo, um ideário construído no momento da expansão colonial, uma “autorepresentação” que visaria afirmar um self europeu em oposição aos colonizados em ultramar. Tanto o “sujeito racional iluminista”, que se fundamenta numa identidade autocentrada, formulada pela razão, quanto a noção mais moderna do “sujeito sociológico”, que se forma e se transforma por meio de diálogos com outras identidades e outros mundos culturais externos, propagariam e afirmariam a existência de uma espécie de essência interna nuclear do ser humano (um “eu verdadeiro”). De acordo com autores como Hall, esta idéia da “identidade completa”, que está presente tanto no sujeito cartesiano como no sujeito sociológico, nunca se realizou, nem mesmo no mundo ocidental, e revela-se hoje o produto de uma fantasia ocidental que não se sustenta mais diante da enorme variedade de identidades possíveis (HALL, 2001, p. 7). A partir de reflexões como estas, a questão das diferenças seria repensada não somente no plano dos indivíduos, mas também no plano das coletividades. Princípios destes questionamentos podem ser percebidos nos chamados “estudos culturais”, que se desenvolveram na Grã-Bretanha, especificamente, em torno do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) em Birmingham. Partindo de preocupações diferentes daquelas da antropologia clássica, os estudos culturais tendem a abordar a cultura, em primeiro lugar, como um campo no qual disputas por poder,10 conflitos em torno de significados e processos de identificação e diferenciação são articulados e negociados. Ou seja, ao invés de destacar a força integrativa 10 Ao argumentar que os estudos culturais concebem a cultura como um campo (espaço) dentro do qual as relações de poder são negociadas, Marchart defende a idéia de que, no fundo, a categoria central dos estudos culturais não é a da cultura, mas a da política. O autor usa, evidentemente, uma noção dilatada do conceito de política, algo que ele chama de „práticas de fixação hegemônicas que embarcam todo campo social [...] e não somente o sistema político“ (MARCHART, 2008, p. 222). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 117 e homogeneizadora das culturas, os estudos culturais procuram chamar a atenção para a ausência de consensos em questões relacionadas a valores e significados nas sociedades atuais. Ao trabalhar especialmente com recortes de classe social, gênero, idade e grupos étnico-raciais, procuram entender a criação e reformulação de diferenças e fronteiras inerentes ao processo da modernização e da chamada globalização. No fundo, o foco analítico giraria em torno de três conceitos básicos: cultura, poder e identidade. Sabe-se que os estudos culturais passaram, desde a sua fundação, por várias fases e sofreram diferentes influências que marcariam as suas análises. Assim, um dos pioneiros dos estudos culturais, Raymond Williams, que partia de uma perspectiva marxista (materialismo cultural), recorreu à noção da hegemonia, elaborada por Gramsci, para repensar a idéia de cultura e, desta forma também, criticar a relação mecanicista que, de acordo com ele, marcava o modelo marxiano clássico que opunha infraestrutura a superestrutura. Outra fonte de inspiração seriam as idéias de Althusser sobre a noção de ideologia e, no caso de alguns autores, certas reflexões psicanalíticas (Lacan). A partir da década de 1970, concepções estruturalistas e pós-estruturalistas começaram ganhar mais importância, de maneira que em muitos trabalhos mais recentes sobressaem-se, por vezes, reflexões teóricas que seguem premissas da análise de discurso (Foucault,11 Derrida). Num dos seus ensaios, “A identidade cultural na pós-modernidade” (HALL, 2001), Stuart Hall, figura central na consolidação dos estudos coloniais – foi diretor do CCCS de 1968 a 1987 –, analisa o efeito do fenômeno da globalização sobre as identidades coletivas. Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global, afirma Hall, tanto mais ganhamos a impressão de que as identidades flutuam livremente, como que desvinculadas de tempos, lugares, histórias e tradições específicas. “Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades”, escreve 11 As reflexões de Foucault sobre a relação entre discurso, saber e poder teriam um impacto importante sobre diversos pesquisadores ligados aos estudos culturais e pós-coloniais. A rejeição da noção de poder como um objeto que pode ser possuído por determinados sujeitos e/ou grupos e o reconhecimento do poder como uma força não somente repressiva, mas também produtiva que permeia o corpo social e opera como um regime de verdade levou Foucault a concentrar sua reflexão nos discursos que ele entende como práticas que formam e moldam, de maneira sistemática, objetos e pessoas a respeito dos quais eles falam. Na medida em que Foucault compreende que os discursos nunca apenas descrevem, mas criam relações e canais de autoridade, constroem e posicionam os sujeitos, a noção de representação deixa também de ser mero “retrato da realidade”: passa agora a ser constitutiva dos sujeitos e do mundo no qual eles vivem e se articulam. Ao abordar os discursos como campos do poder que produzem significados e posicionam e ordenam sujeitos, Foucault também abriu, implicitamente, o caminho para o desenvolvimento de um “outro olhar” sobre a questão das “diferenças culturais e/ou identitárias”, que não deixa de pôr em xeque perspectivas clássicas desenvolvidas na disciplina da antropologia (FOUCAULT, 1980, 1982). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 118 o autor, “dentre as quais parece possível fazer uma escolha” (HALL, 2001, p. 75). Este “efeito de supermercado cultural” seria potencializado ainda pela difusão do consumismo. Ao mesmo tempo, Hall chama ainda a atenção para tentativas de reconstruir identidades purificadas que buscam restaurar a coesão, “fechar a tradição” frente ao hibridismo e à diversidade. Neste contexto, refere-se a fenômenos recentes, tais como o do “fundamentalismo”, que ele caracteriza como uma forma de revival do nacionalismo e do absolutismo étnico e religioso (HALL, 2001, p. 92-94). No fundo, Hall aponta três possíveis consequências da globalização para a formação das identidades: a) desintegração das identidades nacionais, em decorrência de processos de “homogeneização cultural”; b) fortalecimento das identidades nacionais e de outras identidades locais como “respostas” à globalização; e c) surgimento de novas identidades híbridas (HALL, 2001, p. 69). O autor detecta, portanto, forças contraditórias que se manifestam como uma tensão entre o global e o local. Ao lado de uma tendência que aponta para a homogeneização global, articula-se também um fascínio, cada vez mais forte, pela diferença e pela mercantilização da “etnia” e da “alteridade”. Ou seja, juntamente com o impacto do “global”, surge um novo interesse pelo “local”. Hall lembra, neste contexto, que nem o liberalismo, nem o marxismo previam um “tal resultado”. Tanto liberalismo quanto marxismo sustentavam que o apego ao local daria gradualmente lugar a valores e identidades mais universalistas e cosmopolitas. Entendiam que o nacionalismo e a etnia eram formas arcaicas de sociabilidade – algo que seria “dissolvido” pela força revolucionária da modernidade. De acordo com essas “metanarrativas” da modernidade, previa-se que os “apegos irracionais” e/ou afetivos ao local e ao particular seriam gradualmente substituídos por identidades mais racionais e universalistas. Entretanto, escreve Hall, a globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do “global”, nem a persistência do “local” (HALL, 2001, p. 97). Percebe-se que em diversos trabalhos dos estudos culturais (Grossberg e Hall), a identidade começa a ser tratada como um efeito do poder. A idéia da identidade e da diferença centrar-se-ia na seguinte questão: quem tem o poder de definir quem fará parte do grupo e quem não; quem será incluído e quem será excluído? Partindo de uma tal perspectiva, a identidade apresentava-se, evidentemente, como uma questão fundamentalmente política. Juntamente com esta reflexão, articulou-se uma crítica aos modelos binários tidos como característicos do pensamento ocidental moderno, que teriam fundamentado e petrificado as diferenças entre “nós” e “os outros” e que impossibilitariam uma melhor compreensão das relações de poder. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 119 Desestabilizando os binarismos Preocupações como estas orientarão os trabalhos de autores chamados de pós-coloniais, cujas reflexões se sobrepõem e se mesclam, por vezes, com as dos estudos culturais. Nas suas análises, a questão da identidade está diretamente ligada à articulação de uma crítica à história do Ocidente, ao colonialismo, e mais especificamente, às grandes narrativas que, de acordo com eles, criaram uma oposição entre o Ocidente e o “resto do mundo”. Incorporando premissas teóricas fundamentais de Foucault a respeito da relação entre discurso, saber e poder, a perspectiva pós-colonial faria críticas viscerais às formas de representação que o Ocidente moderno desenvolveu. Sustentaria que as idéias discriminatórias sobre os chamados selvagens e primitivos foram fulcrais para fundamentar a criação da idéia iluminista de um sujeito autônomo que se entende como autodeterminado e superior em relação aos “seres não civilizados” (VARELA, 2005, p. 16). Uma grande preocupação dos pós-coloniais seria, portanto, denunciar como a articulação dos diversos binarismos criados pelo discurso colonial (nós-eles, colonizadores-colonizados, cidadão-súdito etc.) guia não somente a produção de conhecimento, mas justificou também intervenções políticas que incluíam, com frequência, o uso da violência. No livro Orientalismo, publicado em 1978 e frequentemente lembrado como texto fundacional do pós-colonialismo, Edward Said procura mostrar como o discurso colonial produziu ao mesmo tempo os sujeitos colonizadores e os colonizados e, mais especificamente, como o Oriente foi “inventado” por construções narrativas elaboradas por “orientalistas”, ou seja, por pessoas que se diziam peritos em assuntos orientais. Argumenta, portanto, que os textos dos especialistas ocidentais não teriam criado somente conhecimento, mas teriam gerado a própria realidade que eles pretendiam descrever. Embora Said entenda que a idéia do Oriente é produto de um discurso dominante, ele a desqualifica, paradoxalmente, como uma representação “errônea”, o que significa implicitamente que ele imagina haver uma representação “correta” do Oriente. Uma nova geração de pensadores pós-coloniais criticaria, portanto, que a abordagem de Said, que denuncia a oposição entre Ocidente e Oriente como decorrência de uma estrutura de dominação, não põe em xeque este dualismo, mas contribui, em última instância, para estabilizá-lo e/ ou aperfeiçoá-lo. Autores como Homi Bhabha detectam na obra de Said uma perspectiva ainda totalizante que continua tratando tanto o Oriente como o Ocidente como entidades homogêneas e essencializadas. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 120 De acordo com Bhabha (1994, p. 72), ao insistir na estrutura binária clássica entre colonizador e colonizado, Said recusa-se a refletir sobre ambivalências e ambiguidades que surgem nos processos de colonização, as quais Bhabha concebe como fontes essenciais para o surgimento de projetos contra-hegemônicos. Bhabha entende que o discurso colonial nunca foi tão uniforme como ele próprio se apresentava e não foi capaz de operar por meio de uma forma tão incontestável, sem distúrbios e irrupções como sugere a análise de Said. As identidades por meio das quais o colonialismo pretendeu fixar “senhores” e “subjugados” revelaram-se – surpreendentemente – instáveis e frágeis, afirma Bhabha, o que permite a ele questionar a própria existência de uma oposição binária clara entre colonizadores e colonizados. Para ele, os sujeitos colonizados teriam, sim, a possibilidade de iniciar processos de negociação e questionamentos nas fissuras do discurso dominante; desta forma, seria possível causar fricção no processo colonizador. Na sua argumentação, Bhabha baseia-se também em reflexões fundadas na análise de discurso. Afirma que a tentativa de fixar o significado não podia ser alcançada plenamente, uma vez que no processo de “tradução” de idéias particulares e de teorias produzidas na metrópole surgiriam inevitavelmente hibridações. O contexto colonial não permitiria uma repetição do original sem modificação, de maneira que o processo de tradução – a repetição num outro contexto – abrirá inevitavelmente brechas e fissuras no “texto” original. Ao operar com conceitos como hibridação, “mímica”, e “terceiro espaço”, Bhabha procura não apenas reavaliar o tema da resistência, mas também elaborar um novo quadro conceitual para tematizar a questão da diferença em si. Assim, a noção da mímica, concebida como uma “repetição com diferença”, ajuda-o a defender a idéia de que a imitação no contexto colonial não deve ser vista meramente como um ato de submissão incondicional ao colonizador. Pelo contrário: o seu lado escorregadio faria com que ela se tornasse ao mesmo tempo semelhança e ameaça; e faria, portanto, com que ela pudesse ter um potencial subversivo, qual seja, o de minar as grandes narrativas do colonialismo. Seguindo este raciocínio, Bhabha referir-se-ia à hibridação não como uma junção de dois elementos que dão vida a um terceiro, mas muito mais como aquilo que ele denomina “terceiro espaço”: um momento que torna possível novos posicionamentos dos sujeitos; um momento em que os signos são deslocados de seu referencial hegemônico e ainda não foram inscritos num outro sistema de representação totalizante. É este Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 121 deslocamento que, para Bhabha, caracteriza o momento da hibridação do signo (BHABHA, 1994, p.185).12 Percebe-se que na análise de Bhabha a diferença já não é tratada como uma fronteira entre dentro e fora, mas transforma-se num locus dentro do “próprio centro” (HEIN, 2006, p. 41-42). A transposição das fronteiras para o interior das culturas transforma a cultura num lugar incerto de significação. Com o desaparecimento de fronteiras nítidas entre as culturas, surgem sobreposições e interstícios (o “terceiro espaço”) aos quais Bhabha atribui a origem de inovações e transformações. Autores como Bhabha vêem, portanto, nas classificações binárias o modo ocidental, logocêntrico de apreender o mundo que teria constituído a base para a construção das estruturas modernas de dominação. Estas classificações teriam criado a ilusão de representações completas – “bem acabadas” – que não deixam resíduos. Para argumentar contra tais essencialismos, os autores pós-coloniais recorrerão a reflexões do filósofo francês Derrida sobre a “différance”. As reflexões de Derrida partem da constatação de que nenhum contexto discursivo particular esgota plenamente o repertório de significações atribuíveis a um signo; e que significantes e significados nunca se correspondem inteiramente. A seguir, ele explica que palavras (signos) não são a “coisa em si”; isto é, o signo não é uma presença (ele não coincide com a coisa). Mas, esclarece este pensador, nós temos a ilusão de ver o signo como uma presença, ou mais exatamente, nós temos a ilusão de ver no signo a presença do referente, embora saibamos que o referente só exista como traço de uma presença que nunca se concretiza. De acordo com este filósofo, o signo carrega em si o traço daquilo que ele substitui e o traço daquilo que ele não é, ou seja, precisamente a diferença. Assim, Derrida entende também que palavras (signos) podem ser definidas somente por meio de outras palavras das quais elas diferem (différer). Desta maneira, ele chega a formular que o significado é adiado (différé) por meio da articulação de uma cadeia infinita de significantes. Em suma, de acordo com Derrida, o signo é caracterizado por duas características ou duas noções contempladas pelo verbo francês différer: a) pelo adiamento da presença; b) pela diferença relativamente a outros signos. São estas as duas características essenciais, que sintentizam o 12 Para Bhabha, o momento da hibridação é fortuito, aleatório; é uma interação contingente que independe da vontade dos sujeitos. Ou seja: de acordo com estas idéias, o ato subversivo não pode ser controlado, em última instância, pelos sujeitos. Desta forma, a concepção teórica de Bhabha não abre espaço para abordar aquilo que outros autores chamam de agency. Costa avalia que é impossível extrair das idéias de Bhabha uma teoria ou estratégia para a resistência e/ou para a transformação social, como diversos movimentos sociais vêm fazendo (COSTA, 2006, p. 94, 100-102). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 122 neologismo “différance” criado por Derrida e que fundamentam, em termos teóricos, o rompimento com a idéia da “diferença preexistente” (“diferença ontológica”). E é a instabilidade inerente à produção de significado, descrita pelo termo “différance”, que serve aos pós-coloniais também como argumento de que a “prisão simbólica” imposta pelos discursos hegemônicos discriminatórios e estereotipados pode ser rompida e que, portanto, as lutas contra-hegemônicas fazem sentido. Podemos perceber que diversos autores ligados ao pós-colonialismo recorreram, de fato, à idéia da “différance” para fundamentar o combate àquela grande narrativa que opõe o Ocidente ao resto do mundo (“The West and the rest”, nas palavras de Hall). Entende-se que este discurso, que remonta ao período colonial, tem reduzido a história moderna a uma ocidentalização paulatina e heróica do mundo, omitindo ao mesmo tempo que, por meio da expansão colonial, diferentes historicidades e temporalidades foram violentamente fundidas e mescladas (HALL, 2003, p. 113-115). A descontrução desta polaridade (West/rest) torna-se, portanto, um dos objetivos mais importantes do projeto pós-colonial. Trabalhos pós-coloniais mais recentes têm investido, inclusive, na construção de soluções teóricas que permitam servir de base a lutas contra-hegemônicas que sejam distintas de uma mera inversão da valorização deste par conceitual “o Ocidente e o resto”. Percebe-se, portanto, que a maioria dos pós-coloniais atuais já não se contenta com as “estratégias de inversão”, elaboradas pelos movimentos anti-colonialistas e anti-racistas históricos, tais como, por exemplo, o panafricanismo e a negritude: estratégias que teriam buscado atribuir conotações positivas àqueles conceitos (por exemplo, à categoria “negro”) que teriam posto os não-ocidentais não apenas em oposição, mas também numa posição subalterna em relação ao “mundo ocidental civilizado”. Para os pós-coloniais, não se trata mais de dar voz aos oprimidos. Busca-se agora uma descolonização da própria imaginação, da maneira de pensar. Este raciocínio aponta para uma crítica que não seja simplesmente anticolonialista, seguindo os exemplos históricos. Compreende-se agora que a luta anti-colonial “clássica” ocorreu ainda dentro da episteme colonial; aponta-se para o fato de que esta luta se deu, ainda, por meio da “reificação”, isto é, por meio da fixação da suposta diferença entre o colonizador e o colonizado, na forma de movimentos nativistas e nacionalistas. O ponto aqui é a constatação de que a estratégia contra-hegemônica predominante não rejeitava a essencialização das diferenças (as oposições colonizador-colonizado, branco-negro), mas buscava apropriar-se dos Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 123 conceitos reificados impostos com o objetivo de atribuir-lhes novos significados de teor afirmativo e positivo (por exemplo, “black is beautiful”). Os pós-coloniais exigem, no entanto, uma outra atitude.13 O objetivo declarado é a descontrução de todo tipo de essencialismo na concepção das diferenças humanas: exige-se agora a diluição crítica de todas aquelas fronteiras vistas como legados do colonialismo, de um lado, e das lutas anti-coloniais, de outro lado (COSTA, 2006, p. 89). Desta forma, o projeto pós-colonial procura, no fundo, “reinscrever” o colonizado na modernidade; entretanto, não mais como “o outro” do Ocidente, e sim como parte integrante e constitutiva daquilo que foi construído – discursivamente – como moderno. Reflexões pós-estruturais, que têm marcado profundamente o ideário pós-colonial, abriram novas perspectivas para pensar o(s) sujeito(s) e a(s) identidade(s) individuais e coletivas. Ao invés de abordar os sujeitos como “substâncias” (identidades independentes), passa-se a concebêlos como construções discursivas: como sinais flutuantes nas cadeias de significação que perdem e ganham a sua significação no jogo semântico da diferenciação (COSTA, 2006, p. 98-99). Compreende-se, portanto, que sujeitos e identidades são parte das cadeias de significação. Não são anteriores à linguagem, mas construídos dentro de discursos. Os pós-coloniais argumentam, assim, que são os discursos que produzem um lugar para o sujeito, que abrem um espaço para um posicionamento. “Articulação” é o conceito-chave usado por Hall para descrever este 13 Embora adepta do desconstrutivismo, Spivak admite que em determinadas situações históricas grupos subalternos precisam recorrer ao “essencialismo estratégico”, que ela entende como uma prática subversiva com um objetivo político claro. Ela adverte, porém, que o essencialismo estratégico deve ser usado por um tempo determinado; caso contrário, pode provocar abusos e atitudes totalitárias (SPIVAK, 1998). Autores como Hall e Gilroy reconhecem também a importância dos movimentos históricos negros que organizaram a resistência contra o colonialismo e o racismo em torno de uma noção essencializada de identidade. Mas reivindicam, ao mesmo tempo, uma revisão desta estratégia. Hall argumenta que “[n]ão existe garantia, quando procuramos uma identidade racial essencializada da qual pensamos estar seguros, de que esta sempre será mutuamente libertadora e progressista em todas as outras dimensões” (HALL, 2003, p. 347). Se nos basearmos em noções essencializadas de identidade, será impossível fazer uma crítica a oprimidos que podem ser também opressores de oprimidos. “Chegamos ao fim da inocência”, ao fim da imaginação inocente de “sujeitos negros essencializados”, conclui Hall (apud SOLOMOS, 2002, p. 166). De forma semelhante, Paul Gilroy tem atacado, nos seus escritos mais recentes, o uso do conceito “raça” pelo discurso militante negro e por partes da cultura negra, uma vez que considera que a idéia de raça está muito comprometida com as atrocidades da modernidade (colonialismo, imperialismo, escravidão e fascismo), tendo desumanizado tanto as vítimas como aqueles que se beneficiam do discurso racial. Ele acredita que invenções tecnológicas e inovações nas áreas biológicas e médicas possibilitarão transformar a nossa visão sobre o corpo humano e, desta forma, contribuirão para desafiar os velhos discursos da “raciologia” científica. Diferentemente daqueles que rejeitam o conceito de raça por considerá-lo não-científico, Gilroy entende que o legado da raça (raciologia) não pode ser simplesmente negado; primeiro há de se reconhecer a força deste ideário e confrontar-se com esta história para, num segundo passo, poder superá-la. Este seria o caminho para conseguirmos construir um pensamento pós-racial (GILROY, 2000, p. 37,43). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 124 posicionamento e reposicionamento constante dos sujeitos: nesta linha de argumentação, articular quer dizer tanto expressar uma idéia como conectar diferentes elementos a uma nova unidade. Portanto, de acordo com a abordagem pós-colonial, sujeitos e discursos constituem-se simultaneamente; ou melhor: indivíduos e coletivos só podem se articular por meio de discursos. Com o uso do termo “novas etnicidades”, cunhado por Hall (1991), a perspectiva pós-colonial posiciona-se contra as velhas concepções essencializadas de grupo étnico e procura enfatizar exatamente esta dimensão discursiva na construção das identidades coletivas. Podemos perceber, portanto, que esta noção pós-colonial de identidade compartilha com a perspectiva antropológica alguns pontos: a) a postura anti-essencialista; b) a idéia de que a identidade deve ser tratada como um processo contínuo, como uma construção social que é articulada (definida e redefinida) dentro de contextos sociais e históricos específicos; e c) a idéia de que os processos de identificação são permeados por interesses, disputas por poder, conflitos etc., e articulam-se hoje frequentemente em consonância com estratégias de luta política que visam à implementação de direitos especiais (individuais ou coletivos). Comentamos também que um dos grandes objetivos da reflexão póscolonial é elaborar uma crítica ao mundo ocidental, às teorias clássicas da modernização: busca-se desestabilizar e, quiçá, superar os binarismos ocidentais vistos como uma espécie de ferramenta que tem legitimado a repressão, a exclusão e a discriminação de grandes partes da humanidade. Vimos ainda que a incorporação da idéia da différance no pensamento pós-colonial serviu aos cientistas como instrumento para questionar e rejeitar o pressuposto moderno a respeito da identidade substancialista dos sujeitos. E mais: possibilitou também a articulação de idéias que visam a derrubar concepções homogêneas e essencialistas de identidade, cultura e de raça, além de ter ajudado a fortalecer tendências que procuram valorizar a diversidade, a multiplicidade, a heterogeneidade e os hibridismos nas vivências humanas. A perspectiva antropológica, de outro lado, presta-se evidentemente também a desenvolver críticas às consequências, muitas vezes nefastas, do colonialismo e capitalismo para as diversas populações mundiais. Ao mesmo tempo, tem-se concentrado, tradicionalmente, sobretudo na compreensão da produção cultural local e nas estratégias que os pesquisados elaboram, recorrendo às “tradições” locais e transformando-as na interação frequentemente conflituosa com “outros mundos” – num processo em que ocorrem apropriações, traduções, hibridismos e sincretismos. Poderíamos dizer que enquanto os pós-coloniais aproximam-se da questão da diferença “de fora para dentro”, centrando a sua reflexão numa Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 125 perspectiva mais macro, a antropologia tende a inverter a direção do percurso analítico: busca uma compreensão da diferença que parte “de dentro” para, a partir daí, olhar “para fora”. Se o “lado forte” das pesquisas antropológicas sempre foi o trabalho etnográfico minucioso que cria uma sólida base para a compreensão das alteridades, o olhar relativizante que abriu as portas para compreender de dentro “outras culturas” fez com que não poucas monografias clássicas tendessem a evitar abordar questões como conflito, poder, discriminação e desigualdade. Não é por acaso que estudos antropológicos que seguem o modelo do relativismo clássico foram e são acusados de justificar desigualdades sociais, atos de violência e de discriminação. De fato, são relativamente poucos os antropólogos que se dedicaram ao estudo de tais temas espinhosos; e são poucos os que participam dos grandes debates públicos atuais em torno de reflexões que envolvem diretamente a questão das diferenças, tais como políticas de identidade, multiculturalismo, direitos humanos, migração etc. (cf. a crítica de ERIKSEN, 2006). De outro lado, pode-se perceber que os estudos pós-coloniais não desenvolveram nenhum interesse específico em investigar a existência e importância de diferentes formas de pensar e de organização social, ou ainda de diferentes sistemas de valores, éticas e ontologias — e não investiram, portanto, na elaboração de nenhum instrumental teórico que permitisse estudar funções, padrões ou estruturas culturais etc. Em várias abordagens ganha-se a impressão de que os autores rejeitam a possibilidade de pensar cultura como algo que possa orientar a percepção e a ação dos sujeitos. Vimos que já os estudos culturais “clássicos” trataram as culturas, em primeiro lugar, como um espaço dentro do qual as relações de poder são negociadas. Sherry Ortner localiza nos estudos que seguem a orientação pós-colonial14 um certo paradoxo. De um lado, pretendem abrir espaço para a articulação de formas de resistência contra as grandes narrativas e projetos hegemônicos; de outro, recusam-se a conhecer de perto e a falar sobre os mundos daqueles que resistem. Para esta antropóloga norte-americana, a atitude dos pós-coloniais desestimula a prática etnográfica e enfraquece as culturas, tende a torná-las ralas (thinning culture15). A dissolução do sujeito em “efeitos subjetivos” não pode ser a única resposta à noção do sujeito reificado, reivindica 14 Ortner refere-se aqui especificamente aos chamados “subaltern studies“ que se inspiram nos trabalhos desenvolvidos por Gayatri Spivak (“Can the subaltern speak?”, 1998). 15 Sahlins tem se preocupado igualmente com o impacto dos pensamentos foucaultiano e gramsciano sobre o estudo da(s) cultura(s). Num texto repleto de aformismos e expressões sarcásticas, Waiting for Foucault, still, este eminente defensor do conceito antropológico de cultura contra-ataca ao afirmar, entre outras coisas, que uma certa vanguarda de pesquisadores teria transformado o poder numa espécie de “buraco negro intelectual” que engole os mais diversos conteúdos culturais. Num outro trecho, Sahlins critica explicitamente o “modismo” de substituir o conceito de cultura pelo de discurso (2002, p. 20, 61). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 126 Ortner. Ao invés de desconstruir os sujeitos, dever-se-ia mostrar como os agentes sociais são socialmente e culturalmente construídos e como cada cultura, cada subcultura e cada momento histórico constrói sua própria forma de agenciamento (agency), seus próprios modos de implementar o processo de refletir sobre o self e o mundo [...]”. “Agency não é uma entidade que exista à parte da construção cultural [...] (ORTNER, 2006, p. 57). No fundo, poderíamos dizer, seguindo a crítica de Ortner, que tanto a perspectiva pós-moderna quanto a pós-colonial “mais radical” tendem a transformar “o outro” num “efeito do(s) discurso(s)”. Neste contexto, é bom lembrarmo-nos de que lugar os pós-coloniais nos falam, levando a sério, desta forma, uma exigência analítica dos próprios autores póscoloniais: em muitos casos, trata-se de vozes de intelectuais provenientes do chamado Terceiro Mundo (por exemplo, Hall, Said, Spivak, Bhabha) que atuam em universidades européias ou estadunidenses e, aparentemente, preocupam-se, em primeiro lugar, com uma inserção mais justa dos “povos periféricos” no mundo da globalização. Assim, as suas reflexões são permeadas, não raras vezes, por perspectivas mais normativas. Se voltarmo-nos para o complexo exemplo do hijab, com o qual abrimos este ensaio, podemos afirmar que tanto a perspectiva antropológica como a pós-colonial podem nos fornecer orientações teóricas válidas e competentes para a compreensão deste emaranhado multifacetado de significantes e significados. Assim, a interpretação do véu como sinal da luta contra forças assimilacionistas não precisa obrigatoriamente contradizer a interpretação do hijab como símbolo da submissão da mulher. A avaliação depende não somente dos diferentes pontos de vista culturais/ societais, mas depende também de processos no fundo imprevisíveis que ocorrem na articulação dos signos. Se os estudos antropológicos chamam a nossa atenção, em primeiro lugar, para os diferentes significados que são produzidos pelos diversos grupos humanos nos diversos contextos culturais, os ensinamentos pós-coloniais alertam, entre outras coisas, não somente para o impacto que os discursos hegemônicos têm sobre as formas de representação, mas também para a instabilidade e provisoriedade na produção dos significados em si. Em muitas análises, podemos perceber hoje, inclusive, bricolagens e mesclas criativas das mais diversas concepções teóricas. Se estes arranjos e sobreposições podem ser justificados como adaptações às necessidades da complexidade pós-moderna, parece-me importante não perdermos de vista as premissas muitas vezes divergentes embutidas em cada uma Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 127 dela. Não para construirmos muros ou reafirmarmos fronteiras entre disciplinas ou tradições analíticas, mas para o bem da compreensão e da reflexão. É que toda concepção teórica aponta para alcances analíticos e vieses de interpretação específicos, de maneira que diferenças e diferenças não dizem sempre respeito à mesma coisa. Acredito que as análises antropológicas podem aprender com várias das críticas pós-coloniais e devem procurar incorporá-las; como entendo também que os estudos pós-coloniais devem ser enriquecidos por preocupações mais antropológicas. Talvez assim venha a ser possível darmos melhor conta da complexidade e sutileza analíticas que o “estado” deste mundo cada vez mais globalizado requer. Mas para isto, ainda serão construídas pontes teóricas mais seguras entre estas duas perspectivas. Abstract Concepts like culture and identity are no monopoly of any particular academic discipline. There is instead a dispute, rarely explicitated, over the use of and the analytical value attributed to those categories. This article intends to deepen the reflexion about the way how Anthropology and the Cultural and Postcolonial Studies have dealt with the problem of difference, specifically with the topic of identity in the contemporary world affected more and more by what usually is called globalization. It intends to show convergences and divergences between different academic traditions and argues for a mutual inspiration between them in order to overcome analytical weaknesses localized in each of them. Keywords: difference; identity; anthropological theory; postcolonial theory. Referências ABU-LUGHOD, Lila. Writing against culture. In: FOX, Richard (Org.). Recapturing anthropology: working in the present. Santa Fe, New Mexico: School of American Research Press, 1991. p. 137-62. BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: Ed. da Unesp, 1997. p. 187-227. . Introduction. In: BARTH, Fredrik (Org.). 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Antropolítica Niterói, n. 27, p. 99-130, 2. sem. 2009 Véronique Boyer* A construção do objeto quilombo: da categoria colonial ao conceito antropológico** Após a promulgação do artigo 68 na Constituição brasileira de 1988, a antropologia começa a se interessar pela “emergência” de uma identidade quilombola numa sociedade que associa o quilombo ao passado. Pesquisadores pretendem submeter a noção antiga de quilombo a um processo de ressemantização, no intuito de transformá-la num conceito pertinente para apreender a realidade de novas formas de mobilização política. Para entender qual seria a singularidade dos grupos chamados quilombolas, os autores refletem sobre a natureza de suas diferenças com o resto da população, bem como tentam identificar os domínios da vida social, cultural e política onde se manifestam. Este artigo se propõe a examinar os rumos desta reflexão antropológica sobre o quilombo, chamando atenção para o que é comum a todas as abordagens, mas também para o que as distingue, indicando em que termos – pressupostos e perspectivas – as análises foram desenvolvidas. Palavras-chave: quilombo; antropologia; resemantização; Brasil. * ** CNRS/MASCIPO Pelas reflexões críticas e estimulantes observações, quando da leitura da primeira versão deste artigo, agradeço a Patricia Birman, Agnès Clerc-Renaud e Mariana Pantoja. E pela leitura atenta de uma versão mais adiantada, agradeço ainda a Anne-Marie Losonczy, embora assuma toda a responsabilidade pelas análises aqui propostas 132 Num artigo publicado em Afro-ásia, o antropólogo americano Richard Price (2000, p. 264) sugere ao governo do Suriname se inspirar do exemplo do seu vizinho brasileiro para garantir os direitos territoriais dos Saramaka, um dos grupos oriundos dos descendentes de escravos africanos fugitivos na região guianense. Pois, cem anos após a abolição, o Brasil se comprometeu oficialmente a assegurar a proteção dos quilombolas, o artigo 68 da Constituição de 1988 estipulando explicitamente que o Estado deve reconhecer o seu direito à propriedade da terra: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos. No mesmo ano, o governo institui por lei federal, uma estrutura administrativa encarregada de “formula[r] e implanta[r] políticas públicas que têm o objetivo de potencializar a participação negra brasileira no processo de desenvolvimento, a partir de sua história e cultura”.1 No seu site, a Fundação Cultural Palmares (Fcp) anuncia já ter contabilizado 1 289 “comunidades remanescentes de quilombo” suscetíveis de beneficiarem-se do artigo 68, mas indica que o conjunto totalizaria 3.524. Este último número poderia se revelar ainda abaixo da realidade já que, segundo O Estado de São Paulo,2 organizações não-governamentais as estimam em 5 mil. Grupos que aspiram ao reconhecimento como quilombolas aparecem no território de todos os Estados – com exceção de Roraima e do Acre e com uma concentração maior na Bahia, no Maranhão, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Sul. O aumento significativo na quantidade de “comunidades quilombolas” (que as atribuições efetivas de terra têm dificuldade de acompanhar)3 acontece assim a partir do momento em que ser quilombola significa ter acesso a direitos diferenciados. Jean-François Véran indicou que, promulgado na ocasião do centenário da Abolição, o artigo 68 apareceu como uma concessão simbólica obtida pelos movimentos militantes […] para reabilitar a experiência histórica da resistência à escravidão frente a tese dominante de uma ‘escravidão dócil’ (1999, p. 54). 1 Cf. <http://www.palmares.gov.br/ >. 2 Cf. edição do dia 4/ 01/ 2009, disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,grupos-temdificuldade-para-provar-origens-quilombolas,302630,0.htm>. O nome destas ONGs não está citado. 3 Se, en junho de 2009, 102 títulos de propriedade dizendo respeito a 95 territórios quilombolas tinham sido emitidos, 830 demandas ainda estavam esperando (Incra, jun. 2009). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 133 Com efeito, para o movimento negro, a presença destes grupos rurais testemunha da “continuidade do espírito de resistência” (VERAN, 1999, p. 59), outrora ao esclavagismo e agora ao sistema capitalista. A idéia de “remanescência do quilombo” se construiu desta forma a partir da “relação entre um objeto histórico e um projeto político” (1999, p. 4). Na sua relevante análise das disputas e negociações entre os diferentes atores sociais para dar um sentido à noção, J.-F. Véran nota que os antropólogos ocupavam um lugar de destaque ao lado dos militantes, dos representantes das instituições e dos juristas. Entretanto, a antropologia tinha-se desinteressado pelo quilombo durante quase 30 anos. Do fim do século XIX, nos anos 1960, estudos compararam e contrastaram o quilombo rural, percebido como forma obsoleta de resistência à sociedade escravagista, à vitalidade dos cultos afro-brasileiros urbanos,4 mas este tema foi depois abandonado pelos historiadores. Durante os anos 1990, é claramente reinvestido por antropólogos curiosos da emergência de uma identidade quilombola numa sociedade que associa o quilombo ao passado. Os pesquisadores pretendem pensar essa noção datada (SCHWARCZ, 1999, p. 304), desempoeirando-na ou “re-semantizando-na”, a fim de transformá-la num conceito pertinente para apreender a realidade de novas formas de mobilização política onde as questões fundiárias são centrais. A partir deste momento, a volumosa produção não deixa de se ampliar com a publicação de livros e artigos, a defesa de teses de mestrado e doutorado, e a redação de laudos periciais – dos quais não tratarei por falta de espaço. Prosseguindo na trilha aberta pelos trabalhos de Jean-François Véran, propõe-se aqui de examinar os escritos acadêmicos dos antropólogos. Para circundar e compreender qual seria a singularidade dos grupos chamados quilombolas, os autores se indagam sobre a natureza de suas diferenças com o resto da população, e tentam identificar os domínios da vida social, cultural e política onde se manifestam. No entanto, o seu ponto de partida não é necessariamente o mesmo, bem como a sua abordagem e a ordem de mobilização dos instrumentos conceituais da disciplina. Certas obras – a de Alfredo Wagner Berno de Almeida – são estudos críticos que procuram elaborar o quilombo enquanto objeto intelectual, a partir de uma reavaliação dos elementos habitualmente utilizados para caracterizá-lo. Outras (de José Maurício Arruti), se interessam pelos processos em curso, construção da alteridade, emergência de demandas “etnicas” e o papel das instituições. Outras ainda, talvez o maior número, objetivam mostrar como é possível intervir no campo 4 Entre outros, Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edison Carneiro e Roger Bastide. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 134 social para que os grupos possam contemplar o seu “direito à diferença cultural e à reprodução de suas práticas econômicas e sociais, bem como o respeito pelos seus saberes tradicionais” (O’DWYER, 2002, p. 20)5. Apesar dessas diferenças, os argumentos construídos muitas vezes se entremeiam, a ponto de sistematicamente se reforçarem. Neste campo de estudo em plena expansão, as questões teóricas sempre têm preocupações ligadas a um projeto de sociedade que promova, para conseguir a equidade social, um tratamento diferenciado dos grupos de população. O fato é mais perceptível nos trabalhos antes mencionados, onde a antropologia é concebida não só como “meio”, permitindo a implementação das políticas públicas a favor dos quilombolas, como também, tanto quanto possível, fonte de novos conhecimentos científicos. Por isto, não obstante os autores debaterem sobre a definição de quilombo aceita pelo Estado, as suas discussões se situam no quadro predefinido das orientações e das categorias adotadas por este, sem que elas sejam nunca submetidas à análise. Esta tensão entre programa científico e compromisso militante atravessa, de ponta a ponta, a literatura – ainda que em graus diversos e segundo configurações variáveis. Convém então chamar a atenção para o que é comum às abordagens, mas também para o que as distingue, mostrando como a reflexão para atualizar a definição da noção colonial e passeista de quilombo foi levada, a partir de que termos e constatações, segundo quais perspectivas e com quais limites. Todavia, antes de indicar as variações na construção e na administração da prova da diferença dos quilombolas, é indispensável descrever o quadro geral que constitui o embasamento, explícito ou não, das diferentes interpretações. A reparação de uma dívida Com o seminário organizado pela Unesco e coordenado pelo antropólogo Arthur Ramos nos primórdios dos anos 1950, inicia-se uma longa série de pesquisas a respeito do que costuma-se chamar “relações raciais”.6 Mais adiante, nos anos 1980 e 1990, vários estudos evidenciaram, com dados demográficos, as profundas desigualdades entre “Negros” e “Brancos”7 em diferentes áreas: acesso a educação, ao mercado de trabalho, nível de remuneração, taxa de mortalidade infantil, expectativa 5 Trato deste tema num outro artigo (no prelo) 6 Não faz parte desse artigo analisar o projeto da Unesco, nem examinar as diferntes contribuições trazidas nesta ocasião. Para isto, ver Schwarcz (1999) e Hofbauer (2006). 7 Coloco maiúsculas a Negro, Branco e índio para indicar que trata-se de categorias sociais. No primeiro uso destas palavras, coloco aspas para insistir nesse ponto. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 135 de vida, saneaento básico etc. Na maior parte desses trabalhos, centrados na exclusão social de setores específicos da população e na reprodução da desigualdade, a raça é entendida “como um princípio classificatório fundamental e estrutural na sociedade brasileira” (SCHWARCZ, 1999, p. 293). Essa linha de pesquisa surgiu nos anos 1990, põe em destaque a situação desfavorável aos negros mas, ao retomar a idéia de cultura de um ponto de vista menos essencialista, sua atenção se volta antes de mais nada para a dimensão política das identidades. É neste contexto de maior interesse para as dinâmicas e recomposições identitárias, bem como para os movimentos sociais e as mobilizações políticas no campo, que se desenvolve a produção científica sobre as “comunidades negras rurais”, apreendendo-as enquanto quilombos, exemplo paradigmático de uma etnicidade negra. A primeira pedra da edificação da diferença quilombola é uma verdade histórica inegável: a sociedade que se constitui após a chegada dos portugueses no início do século XVI, nessa parte do Novo Mundo que denominariam Brasil, baseia-se na violência e no trabalho forçado – primeiro dos índios (“negros do país”) até o diretório pombalino de 1758 expressamente o proibir; em seguida dos escravos importados da áfrica. A historiografia8 lembrou várias vezes a importância do sistema escravagista, que perdurou quase quatro séculos até a sua abolição em 1888. Tanto para a exploração de recursos naturais e a organização da produção quanto para a manutenção e a reprodução de relações sociais hierarquizadas, o Brasil ainda hoje carrega essas marcas. As disparidades socioeconômicas persistem de fato entre os descendentes de escravos e os filhos e netos dos proprietários, uma esmagadora maioria dos primeiros concentrando-se entre as categorias sociais carentes enquanto os segundos entre os mais ricos. Entre os “pobres”, os negros, cuja cor de pele seria um marcador evidente de uma ancestralidade escrava, devem também enfrentar as manifestações de um racismo mais perverso que a roupagem da cordialidade o dissimula. à discriminação social, vem se sobrepor uma discriminação racial. Nesse contexto, alguns autores defendem que só a antropologia é capaz de transformar “um problema social [isto é a correlação entre cor da pele e posição na hierarquia social, em] um problema socioantropológico” (RUSSCZYK, 2007, p. 165), e mais exatamente numa questão teórica: a dos quilombos. Alguns antropólogos vão além desta constatação da fragilidade social dos descendentes dos antigos cativos. Assim, Ilka Boaventura Leite (2000, p. 334) não se contenta em observar que a abolição não proporcionou uma 8 Para uma recente revisão bibliográfica, ver Armelle Enders (2008). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 136 melhora de suas condições de vida. Ela sustenta que este período correspondeu à acentuação de sua exclusão social. Ao passo que a manumissão dos escravos (seja pela compra da sua liberdade ou através do benefício da Lei do Ventre Livre (1871)) sempre dependia de uma contrapartida paga aos donos, a supressão da escravidão não previra nenhuma disposição e compensação para favorecer a integração enquanto cidadãos à sociedade pós-escravagista. Portanto as desigualdades socioeconômicas se perpetuaram duradouramente. Outro elemento anterior a Lei áurea é mencionado como fator concorrente à permanência destas: a Lei de terras promulgada em 1850 que, rompendo com o anterior regime das sesmarias, proíbe qualquer aquisição de terra a não ser pela compra.9 A única exceção notável à aplicação da nova regra diz respeito aos escravos “recompensados” por uma parcela da sua participação à guerra do Paraguai (1864-1870). Raros cativos conseguirão as somas exigidas para aceder à propriedade fundiária graça aos fundos de emancipação; os outros, isto é a imensa maioria, estarão na incapacidade de adquirir a sua terra nos termos doravante previstos pela lei. As terras ocupadas por estes eram geralmente obtidas por testamento ou por uma concessão acordada pelo dono ainda vivo. Em certos casos, escreve A. W. B. de Almeida, foram transferidas a “algumas das chamadas ‘comunidades negras’ de hoje [por um proprietário que as acionou] para lutar no passado contra os quilombos” (2002, p. 57). A informação é longe de ser simplesmente anedótica, pois significa que a atual categoria de quilombo acolha tanto os descendentes de escravos foragidos quanto os filhos de cativos mandados pelos seus donos para combatê-los. O que parece então unir uns e outros é o estatuto de escravo de seus antepassados. Entretanto, e esse fato derruba a hipótese, certos grupos hoje qualificados de remanescentes de quilombos foram fundados por homens “livres”, procurando melhores condições de sobrevivência em terras afastadas. Afinal de conta, o denominador comum de todas essas situações, independentemente das circunstâncias particulares de cada uma delas, é ter permanecido fora de qualquer transação mercantil. 9 Segundo G. Treccani, José de Souza Martins apontou para as implicações desta mudança numa conferência pronunciada no Palácio do Desenvolvimento em 2000: « é sempre bom lembrar que a Lei de Terras foi aprovada quase que simultaneamente com a aprovação da Lei que prohibe o tráfego negreiro para o Brasil. A Lei de Terras foi uma condição para o fim da escravidão. Em todos os meus trabalhos eu disse que num país em que a terra é livre, como era no regime sesmarial, o trabalho tem que ser escravo. Num país em que o trabalho se torna livre, a terra tem que ser escrava, isto é, a terra tem que ter preço e dono, sem o que haverá uma crise nas relações de trabalho » (MARTINS, 2000, p. 1 apud TRECCANI, 2006, p. 76). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 137 Essa característica tornou problemática, ontem e ainda hoje, o reconhecimento pelo Estado do direito dos quilombolas à propriedade das terras onde estão estabelecidos. Assim, este levou raramente em conta as doações ou os testamentos em seu favor e não se empenhou muito para regularizar as ocupações duradouras, embora informais. Mais ainda, fechou os olhos quando grandes proprietários ou poderosas empresas se apoderaram de suas terras, inclusive recorrendo a capangas. Observando que a questão fundiária foi sistematicamente tratada como um problema policial e que a justiça apoiou na maioria das vezes os mais fortes, alguns autores (entre os quais TRECCANI, 2006) cotejam a condição passada de escravo com aquela também presente, de agregado, e até postulam uma equivalência entre elas, na medida em que ambas estão embasadas no trabalho forçado. Todavia, a ausência de documentos comprovando a propriedade fundiária e a apropriação da força de trabalho de homens mantidos, por um patrão, num estatuto subordinado não são fatos que dizem respeito só aos quilombolas. A mobilização do Mst e as reivindicações dos sindicatos de trabalhadores rurais mostram que a questão agrária – a concentração das terras e a sua redistribuição – é um problema interessando a maior parte da população. E se é possível que o modelo da relação patrãoagregado remeta ao elo entre o escravo e seu dono, bastaria ler alguns trabalhos para se convencer que este é princípio estruturante do conjunto da sociedade agrária brasileira.10 É provavelmente por esta razão que os especialistas dos quilombos argumentam um terceiro registro, específico aos Negros. Estes se distinguem dos outros excluídos que foram vítimas da ideologia dominante do embranquecimento, que dissimula o racismo contra eles e se traduziu pelo recurso a uma imigração européia maciça. A história oficial, que não presta homenagem aos elementos culturais trazidos pelos africanos, nem a sua contribuição na formação da sociedade, e tampouco a resistência frente a um sistema iníquo, os reduziu à invisibilidade social. Signo da força atual desta ideologia e do fato de que o Brasil ainda se vê numa fase de embranquecimento, aponta de modo perspiciaz Leite (2000, p. 346), o artigo 68 está incluído no Ato das disposições constitutionais transitórias: parece desta forma implicitamente entendido que os Negros são destinados, cedo ou tarde, a desaparecer. Portanto, a Abolição não poderia ser considerada como um processo acabado. O Estado e a sociedade têm uma dívida histórica para com os grupos de populações explorados, espoliados, exterminados, que 10 Só para a Amazônia onde trabalho, ver por exemplo Araújo (1993) e Lima; Alencar (2000). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 138 reconheceram e agora devem cumprir. Historiadores e antropólogos lembram que as Constituições de 1934, 1967 et 1969 fracassaram na suas tentativas de reduzir as disparidades pela proclamação da igualdade de todos os indivíduos perante a lei. Chegou então a hora de tomar outro caminho. E, mesmo que o artigo 68 não passasse de um gesto simbólico do governo da época em direção dos militantes do movimento negro, o constante aumento das demandas de regularização fundiária no quadro das possibilidades jurídicas que ele abriu atesta sua percepção como eficaz ponteiro para pressionar as autoridades. Junto às cotas reservadas aos Negros na entrada da universidade ou de certas administrações, a atribuição de títulos de propriedade às “comunidades remanescentes de quilombo” concretizaria ações compensatórias indispensáveis ao reequilíbrio das chances, além de constituir um reconhecimento da sua participação à sociedade nacional. O quilombo: da criminalização passada à resistência presente, do direito à antropologia Um dos grandes avanços da Constituição de 1988 é o de operar uma inversão do pensamento jurídico prevalecente até a Abolição, atribuindo um valor positivo a agrupamentos sociais antes negativamente percebidos. Referências ao quilombo aparecem na literatura colonial no século XVII para designar qualquer habitação com cinco escravos foragidos reunindo-se em torno de um pilão, objeto que atesta uma atividade de produção autônoma. As autoridades julgavam estes estabelecimentos, tão modestos, como crime contra a ordem escravagista, que devia ser combatido pela tropa. Com o artigo 68, o Estado rompe definitivamente com a estigmatização do quilombo, já que se compromete a conceder direitos específicos e diferenciados aos descendentes dos escravos fugitivos, em particular sobre as suas terras. A fundação, criada nesta ocasião para representar e defender os interesses da população negra, recebe, de modo significativo e altamente simbólico, o nome de um quilombo. No entanto, não se trata de um quilombo qualquer. O nome escolhido é o do maior e mais resistente: Palmares, situado no sertão da capitania de Pernambuco (estado de Alagoas), resistiu ao longo do século XVII e somou até 20 mil pessoas, antes de ser destruído pelo poder colonial em 1695, depois de dois anos de repetidos assaltos (ENDERS, 2008, p. 50). A fundação, como esclarece o termo “cultural” acrescentado a seu nome, recebe a incumbência de preservar e promover as “manifestações afroAntropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 139 brasileiras”.11 Deste ponto de vista “cultural”, os quilombos chamam a sua atenção da mesma forma que os cultos de possessão cujo mais renomado é o candomblé, isto é, enquanto exemplo relevante da contribuição africana à formação da sociedade brasileira. Os “modos de fazer e de viver das comunidades remanescentes”, que se supunha ao mesmo tempo pertencer e caracterizar uma tradição singular, são considerados como bens imateriais de um patrimônio brasileiro que convém proteger (VÉRAN, 1999, p. 56).12 Elevando as terras quilombolas à condição de território cultural nacional, a Fcp se propõe a trabalhar para garantir a possibilidade do etnodesenvolvimento, repertoriando os grupos suscetíveis de serem integrados nesta categoria. Os meios da sua ambição só lhe serão dados em 1992, quando um decreto ratifica o seu estatuto. No entanto, a Fcp será o alvo das críticas de um movimento negro, lamentando o seu imobilismo e a sua concorrência com o Incra que não entende abandonar-lhe a tarefa de regularizar as terras, sejam elas quilombolas (VÉRAN, 2003, p. 62). Em 1995, ano comemorativo da memória de Zumbi, último rei de Palmares e figura emblemática da resistência quilombola, as “comunidades remanescentes” tornam a ocupar um lugar de destaque no palco político nacional. O problema da regulamentação do artigo 68, em suspenso desde a sua promulgação, ficou nesse momento incontornável. E juristas, parlamentares, militantes do movimento negro, que se enfrentavam para saber o que se devia entender por quilombo hoje, se voltaram para os pesquisadores em ciências sociais. A produção científica sobre os quilombos – as questões levantadas e as propostas sugeridas, a insistência sobre os novos significados – teve uma influência notável sobre o rumo das discussões e o sentido dado à definição legal. Assim, para Girolamo Domenico Treccani, jurista de formação e leitor assíduo dos historiadores e antropólogos, a legislação em vigor leva em conta “três elementos constitutivos complementares e inseparáveis” (2006, p. 84) que caracterizam a experiência quilombola: cada um dos grupos é formado de indivíduos unidos por uma relação “preconstituída”, isto é, a sua origem se encontra no passado pois são remanescentes; são organizados de maneira coletiva, a identidade sendo assumida por uma “comunidade” e não por uma pessoa; enfim, todos passaram por um mesmo “acontecimento” histórico: foram quilombos.13 O primeiro critério permitiu operar um “deslocamento semântico” e uma 11 Cf. <http://www.palmares.gov.br/>. 12 Os artigos 215 et 216, complementando as disposições do artigo 68, dão relevo a esta dimensão. 13 Esses critérios têm eco naqueles que são habitualmente considerados no caso indígena: uma presença desde os tempos precolombianos, um coletivo povo, a tragédia da Conquista (Mariana Pantoja, comunicação pessoal). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 140 “inversão simbólica” entre o indivíduo e o grupo na leitura do artigo artigo 68: a formulação “remanescentes de comunidades de quilombo” devia ser entendida como “comunidades remanescentes de quilombo”.14 Quantos aos dois últimos, a sua interpretação foi determinante para saber, por uma lado, sob qual forma seria legalizada a terra e, por outro lado, quem poderia se beneficiar. A questão das modalidades foi juridicamente resolvida bastante rapidamente por decretos de aplicação prevendo que o título atribuído aos quilombolas não seria individual, mas sim coletivo.15 Por inovadora que fosse a decisão num país onde a norma de referência é a propriedade rural privada individual, era, contudo, perfeitamente compatível com a habitual representação do quilombo fundado por escravos africanos foragidos em lugares isolados, longe das aglomerações: os antigos quilombolas vivendo supostamente à margem do mundo dos Brancos e de suas regras, os seus legítimos descendentes só podiam ter também valores e um outro modo de funcionamento. Insistindo sobre sua diferença quanto a sociedade nacional, as disposições eram capazes de satisfazer tanto os defensores da causa quilombola quanto seus adversários apegados ao caráter excepcional do quilombo – este levando aparentemente a promessa de uma regularização fundiária limitada. A questão dos beneficiários do artigo 68 era, sem dúvida nenhuma, a mais fundamental, já que a resposta dada teria efeitos diretos sobre o número de grupos contemplados pela sua aplicação. Foi resolvida rebatendo radicalmente as representações a respeito dos quilombos. Com efeito, pesquisadores, entre os quais Flávio Gomes (1996), começaram a mostrar que, longe de estarem física e economicamente retraídos, eles estavam às vezes instalados na proximidade das fazendas e das vilas, mesmo nas cidades, e que mantinham relações inclusive comerciais com seus habitantes. Logo, ficou evidente que a relação dos quilombolas com a sociedade dominante não se teceu sistematicamente no registro do conflito e da ilegitimidade, e que o isolamente tão posto em relevo era, afinal de contas, uma ficção que pouco tinha a ver com a realidade histórica. Além disto, aqueles trabalhos indicavam que a população dos quilombos não era homogênea, nem na sua origem, nem no seu estatuto: ao lado de escravos fugitivos, índios, mestiços e brancos livres. Ao declarar que um título de propriedade seria conferido a grupos morando na terra de um antigo quilombo e tendo por ancestrais negros foragidos – isto é, colocando a condição de um passado de luta aberta e durável –, o 14 Ver Jean-François Véran (2003, chap. II). 15 Além do que, as terras não podem ser vendidas. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 141 artigo 68 não conseguia dar conta do que tinham sido verdadeiramente os quilombos. Faltava saber o que eles eram hoje. Foi essencial a intervenção de antropólogos que tinham participado de um projeto sobre “comunidades negras rurais”16 e publicado em 1994 um documento onde pleiteavam um reexame da noção. Esses pesquisadores, afiliados a Associação Brasileira de Antropologia, tiveram papel decisivo […] ao indicar a necessidade de se perceberem os fatos a partir de uma […] dimensão que venha incorporar o ponto de vista dos grupos sociais que aspiram à vigência do direito atribuído pela constituição Federal (O’DWYER, 2002, p. 18). No seu entender, a noção de quilombo não deve ser definida a partir da historiografia, mas dos grupos sociais que exigem presentemente o seu reconhecimento como quilombolas. O grupo de trabalho, institucionalizado no mesmo ano e funcionando com uma dotação da Fundação Ford, se transformou em 1996 numa comissão Terras de Quilombos encarregada de “organizar e planejar as ações da Aba [,… de] assessorar a diretoria em ações extremas que exigissem contato com órgãos do Judiciário e do Ministério Público” (LEITE; OLIVEN, 2002, p. 10). Ao explicitar a missão confiada à comissão, a Aba se engajou publicamente, enquanto associação científica, numa política preconizando o desenvolvimento de um diálogo com os representantes das instituições oficiais do Estado. Desta forma, pretendia-se legitimamente, por um lado, não abandonar ao direito um objeto antropólogico e, por outro lado, defender os interesses “dessas populações historicamente sofridas e espoliadas em seus direitos e na sua condição humana” (LEITE; OLIVEN, 2002, p.11). Conhecedores das formações sociais contemporâneas as mais evocatórias do quilombo, isto é as “comunidades negras rurais”, estes antropólogos indicaram que o artigo 68 define os grupos atuais pelo o que não eram mais, e frisaram que, por isto, o projeto da FCP era “mais voltado para o passado e para o que idealmente teria ‘sobrevivido’ sob a designação formal de ‘remanescentes das comunidades de quilombos’” (ALMEIDA, 2002, p. 46). Para eles, a diversidade das condições de sua fundação atesta de forma clara que a insurreição não podia ser adotada como critério da experiência histórica dos quilombolas. Posto que os quilombos foram várias vezes destruídos e reconstruídos mais adiante na mata, as “comunidades remanescentes” não se encontram necessariamente nos lugares 16 Ver Schwarcz (1999) para uma reflexão critíca sobre os estudos sobre o Negro no Brasil e Véran (2003, p. 94-104) para uma análise da passagem do estudo das comunidades negras rurais ao estudo dos quilombos. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 142 ocupados outrora por escravos foragidos. Nem as fugas concretizadas os caracterizariam tampouco de modo absoluto. Era preciso considerar todas as fugas não realizadas, que estas tenham se traduzido por uma ajuda pontual, que o projeto tenha falhado ou findado com uma recaptura (ALMEIDA, 2002, p. 61). Por fim, no intuito de corresponder a realidade de hoje, foi argumentado que a nova categoria jurídica devia ser capaz de acolher “comunidades quilombolas” que nem são descendentes de antigos quilombos – por exemplo, as famílias de escravos libertos que compraram suas terras (ALMEIDA, 2002, p. 68). Ao limitar o passado histórico contemplado ao período escravagista, e insistir tanto sobre a perenidade do estabelecimento e a continuidade da filiação biológica quanto sobre a permanência de elementos socioculturais, a letra do artigo 68 prevalecia sobre o seu espírito. Essa leitura literal, revelando-se inadequada e demasiadamente restritiva, foi determinante no sentido de proceder a uma “ressemantização” do vocábulo quilombo. Todos os atores presentes durante as negociações, inclusive a Fundação Cultural Palmares que insistiu num primeiro momento sobre o critério da continuidade do grupo com a sua situação no período pré-Abolição, aderiram a esta proposta.17 A antropologia se impôs como a disciplina científica mais apta a levar a termo a ruptura com a concepção discriminante do quilombo, pois, longe de se contentar em recolher genealogias e de reconstituir os deslocamentos das populações para comprovar a presença efetiva de quilombos, procurou esclarecer o passado a partir da percepção que os grupos têm de si próprios, sua história, presente e futura. Sua contribuição consistirá em demonstrar, apoiando-se sobre o trabalho de campo, que a noção remete a configurações sociais variáveis e extremamente flexíveis, e o que se entende por resistência pode assumir formas bem diversas. Mas ambicionava-se também construir um modelo geral com as ferramentas intelectuais forjadas, identificando os traços culturais e/ ou sociológicos que caracterizam todas as “comunidades negras rurais” atuais independetemente das circunstâncias particulares da sua formação. 17 Na definição da Fundação Cultural Palmares, o denominador comum dos quilombos são os valores de liberdade, resistência e trabalho em comum: « As denominações quilombos, mocambos, terra de preto, comunidades remanescentes de quilombos, comunidades negras rurais, comunidades de terreiro são expressões que designam grupos sociais afros-descendentes trazidos para o Brasil durante o período colonial, que resistiram ou, manifestamente, se rebelaram contra o sistema colonial e contra sua condição de cativo, formando territórios independentes onde a liberdade e o trabalho comum passaram a constituir símbolos de diferenciação do regime de trabalho adotado pela metrópole » (<http://www.palmares.gov.br/>). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 143 A “ressemantização” do quilombo pela antropologia Se o problema dos beneficiários do artigo 68 pôde parecer em parte resolvido, ele se revelou mais problemático a medida que surgiam demandas por parte de grupos se considerando até agora “posseiros”, “trabalhadores rurais” ou “populações tradicionais” – para nem evocar o caso dos quilombos urbanos. O quilombo continua portanto a ser o objeto de redefinições sucessivas em numerosos trabalhos procurando incansavelmente alargar o campo de aplicação do vocábulo, sem todavia renunciar a conservar-lhe uma espeficidade. Estes partem da constatação que nem as abordagens marxistas – percebendo os quilombos como resistência à opressão –, nem as abordagens tipológicas, que classificavam-nos segundo o tamanho ou as atividades econômicas, foram capazes de relativizar a noção em relação a sua definição histórica, tampouco conseguiram liberá-la da camisola arqueológica (MARQUES, 2008, p. 22). Os autores se propõem então encontrar perspectivas inovadoras a partir da coleta de dados e/ou de uma reflexão crítica sobre a bibliografia. Pode-se grosso modo distinguir as análises que insistem mais sobre as noções de modo de produção e/ou de territorialização daquelas recorrendo à etnicidade e/ou à raça enquanto construção social. Por sua vez, Almeida se interessa desde os anos 1980 pelos conflitos agrários no estado do Maranhão e pelo processo de demarcação das terras, na época, indígenas. Depois, as duas temáticas (crise da estrutura fundiária e direitos das “comunidades tradicionais”) serão estreitamente associadas a estudos sobre as “identidades construídas no conflito” por grupos sociais particulares. Para Almeida, as lutas travadas pelos sindicatos de trabalhadores rurais revelaram a inadequação das categorias censitárias utilizadas pelo Ibge e categorias cadastrais do Incra. Pois, observa ele, muitas formas de apropriação de recursos naturais não fazem intervir a noção de unidade de exploração definindo o “estabelecimento”, nem são individualizadas como o pressupõe o “imóvel rural” submetido ao imposto fundiário. Uma rubrica “ocupações especiais” foi criada para incluir as situações ditas de “terras de uso comum”, que não correspondem nem a “terras coletivas”, nem a “terras comunais, no sentido emprestado pela feudalidade” (ALMEIDA, 2002, p. 45), e que os atores sociais podem chamar de terras de preto, terras de santo ou terras de índio.18 Aproximando as ditas “terras de preto” do quilombo reconhecido pelo legislador, e após ter mostrado a necessidade de relativizar os elementos que definiam este no passado, o antropólogo julga indispensável “romper com o dualismo geográfico atribuído ao quilombo, que faz com que seja 18 Ver Almeida (1989) para um examem destas diferentes apelações. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 144 entendido como oposição à plantation e como o que está fora dos limites físicos da grande propriedade territorial” (ALMEIDA, 2002, p. 54). Com efeito, a queda dos preços da monocultura no mercado internacional favoresceu a multiplicação de “situações de autoconsumo [por] famílias de escravos que mantinham uma forte autonomia a pouca distância da casa-grande” (ALMEIDA, 2002, p. 54),19 das quais participavam os quilombolas quando eram capturados. Em razão da importância deste fenômeno – qualificado por Almeida de aquilombamento da propriedade dos donos – na “formação de uma camada de pequenos produtores familiares” (ALMEIDA, 2002, p. 59), o autor afirma que “a questão do denominado ‘quilombo hoje’ passa também pelo entendimento do sistema econômico intrínseco a essas unidades familiares, que produzem concomitantemente para o seu próprio consumo e para diferentes circuitos de mercado” ALMEIDA, 2002, p. 51). As “comunidades”, outrora chamadas “negras rurais” e hoje “remanescentes de quilombo”, se caracterizam por modalidades próprias de apropriação e gestão do território: cada grupo doméstico cuida da sua casa, sua roça e seu quintal, mas é coletivamente que são tomadas as decisões sobre o uso da terra e dos outros recursos naturais. O que é comum a todas é a sua capacidade de resistência à propriedade privada da terra pela constituição de formas autônomas de produção. Uma análise crítica da noção de quilombo deve então começar por se perguntar, não “como as agências definem, ou como uma ONG define, ou como um partido político define [estes grupos sociais], mas como os próprios sujeitos se autorepresentam e quais são os critérios políticoorganizativos que norteiam as suas mobilizações e forjam a coesão em torno de certa identidade” (ALMEIDA, 2002, p. 68). Esses critérios são essenciais no que permitem “relativizar o peso de uma identidade definida pela comunidade de língua, pelo território, pelo fator racial ou por uma origem comum” (ALMEIDA, 2002, p. 73). Almeida indica que “há agentes sociais de ascendência indígena que […] estão se autodefinindo como pretos” enquanto outros, “que poderiam ser classificados como negros se encontram mobilizados em torno da defesa das chamadas terras indígenas” (ALMEIDA, 2002, p. 69, grifos do autor).20 As ditas terras de preto são assim uma forma de uso comum a considerar entre outras que “estão se impondo”, num jogo onde diversas “identidades coletivas estão sendo sucessivamente afirmadas” (ALMEIDA, 2002, p. 72): 19 Para o estado do Maranhão, o autor encontra « situações de autoconsumo e de autonoia a pouca distancia da casa-grande », atestando que o grande proprietário já « não era mais o organizador absoluto da produção » desde a segunda metade do século XVIII (ALMEIDA, 2002, p. 54). 20 Esta reflexão é aprofundada por José Maurício Arruti (1997, 2006). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 145 Está-se diante de uma diversidade de autodefinições referidas a tais situações sociais que muitas vezes contrariam concomitantemente tanto as disciplinas militantes quanto os critérios dos técnicos da burocracia administrativa, ambos apoiados em fatores supostamente objetivos e fiéis a clivagens pretensamente científicas (ALMEIDA, 2002, p. 71). A abordagem socio-histórica proposta por Almeida tem o grande mérito de integrar à análise as relações econômicas e políticas nas quais está presa a maior parte dos grupos sociais no meio rural, fornecendo chaves importantes para entender a formação deste campesinato. Apresenta igualmente a vantagem de abrir novas pistas para pensar a flexibilidade das identidades assumidas pelos grupos, e em particular as reivindicações atuais de alguns deles enquanto quilombolas. Para Almeida, a identidade étnica, antes de mais nada situacional e política, deve ser abarcada do ponto de vista de “estratégias contingentes” (ALMEIDA, 2002, p. 74) para, entre outros, garantir direitos sobre um território: “a existência do grupo emana da construção de um repertório de ações coletivas e de representações em face de outros grupos. Trata-se de investigar etnograficamente as circunstâncias em que um grupo social determinado atacou uma categoria, acionando-as ao interagir com outros” (ALMEIDA, 2002, p. 74-75). De fato, convém notar: o que é qualificado como modo de produção próprio dos quilombolas, é aliando uma área de uso coletivo da terra e plantações privadas, não é de modo algum exclusivo a eles. Essa apropriação da terra, que o advogado José Helder Benatti (1997) chama posse agroecológica, também é o fato daqueles que a literatura designa como “populações tradicionais”, isto é, seringueiros, ribeirinhos etc. Contudo, na conclusão do seu artigo, quando pretende resituar o objeto quilombo num contexto mais amplo, o autor dá a impressão de tentar se distanciar duma abordagem meramente sociopolítica que poderia aplicar-se a muitos grupos sociais. Pois, após ter deixado claro que o quilombo deve se emancipar da “investigação arqueológica” e da “definição de historiadores e de geógrafos”, afirma que não pode ser reduzido ao “raio de ação de agrônomos, que o tomam simplesmente como problema agrário” (ALMEIDA, 2002, p. 79). Desta forma, convida para a prática de outro exercício onde a Identidade quilombola está apreendida numa perspectiva mais restritiva e supostamente mais de acordo com os cânones da “antropologia mais recente”, sendo que esta: permitiu conceituá-los [...] como grupos étnicos que existem ou persistem ao longo da história como um ‘tipo organizacional’, segundo Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 146 processos de exclusão e inclusão que possibilitam definir os limites entre os considerados de dentro ou de fora. Isso sem qualquer referência necessária à preservação de diferenças culturais herdadas que sejam facilmente identificáveis por qualquer observador externo, supostamente produzidas pela manutenção de um pretenso isolamento geográfico e/ ou social ao longo do tempo. (O’DWYER, 2002, p. 14) Esses pesquisadores não pretendem que a continuidade das “comunidades remanescentes” com os antigos quilombos passe exclusivamente ou obrigatoriamente pela descendência biológica dos seus habitantes com as famílias de escravos. Nem que a singularidade da sua organização ou da sua cultura se deixe facilmente perceber. Sustentam que foram historicamente constituídas e que seus “limites” podem ser discernidos quando se leva em conta as dinâmicas de pertencimento. A idéia de que os “processos de exclusão e inclusão” estão no princípio da identidade quilombola, está presente num artigo de Ilka Boaventura Leite: a partir da Abolição, inicia-se a longa etapa de construção da identidade destes grupos, seja pela formalização da diferenciação étnico-cultural no âmbito local, regional e nacional, seja pela consolidação de um tipo específico de segregação social e residencial dos negros, chegando até os dias atuais (LEITE, 2000, p. 338). As unidades sociais que resultaram, “mutáveis e instáveis” (MARQUES, 2008, p. 48), são parecidas àquelas dos índios do nordeste estudados por João Pacheco de Oliveira, e chamados “misturados” por oposição aos índios “puros” da Amazônia. Esta figura do índio parece se tornar, implícita ou explicitamente, um paradigma para entender o que é ser quilombola hoje: os índios “emergentes” ajudariam a pensar os Negros “emergentes” porque, como eles, estão engajados num processo de redescoberta da sua identidade étnica e de mobilização política para que o Estado atenda a seus direitos.21 Apesar de a identidade dos quilombolas se apresentar de modo mais nítido em situações de conflito – o que remete ao argumento de Almeida –, não deveria se deduzir que esses grupos, enquanto coletivos distintos do conjunto nacional, só existem na relação contrastada com um Outro ameaçador, nem que a sua consciência de si próprio num registro étnico não se alimenta de elementos independentes de contextos sociopolíticos. 21 A comparação entre os dois é um dos temas do livro de J. M. Arruti (2006). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 147 O conceito de territorialização, retirado da obra de João Pacheco de Oliveira,22 foi fundamental para evitar que as análises entrassem num beco sem saída. Pois, a eventual imperceptibilidade ou invisibilidade da “diferença” quilombola no dia-a-dia não devia questionar sua realidade e da sua irredutibilidade. Para os especialistas dos quilombolas, a terra não é um simples espaço físico e sua importância excederia a de um meio de produção econômico. Antes de tudo, trata-se de um território “socialmente ocupado” (CHAGAS, 2007, p. 228), isto é, mapeado pelas relações sociais que sustentam a reprodução cultural da “comunidade”. Além do seu grau de “autonomia camponesa” e da sua afirmação étnica e política, os quilombolas se caracterizariam pelo fato de que a identidade e o território são indissociáveis (MARQUES, 2008, p. 25): a “territorialização étnica [aparece] como modelo de convivência com os outros grupos na sociedade nacional.” (LEITE, 2000, p. 338) Aliás, é por que as terras são tidas por “essenciais como instrumento de identidade cultural e antropológica” (TRECCANI, 2006, p. 91) que a demarcação territorial seria tão complexa: “não se trata de terras, mas de concepções identitárias” – o que a teoria antropólogica chama “etnicidades” lembra o autor na mesma página (TRECCANI, 2006, p. 15). Neste contexto, a obtenção de direitos territóriais significaria mais para um grupo do que garantir a sua condição de sobrevivência. A propriedade da terra ofereceria a possibilidade de se conscientizar da sua diferença e de preservar as suas práticas culturais: “dispor deste território representa apropriar-se da própria história do grupo, das relações de lealdade e solidariedade, do parentesco, da religiosidade, da ritualidade festiva e das expectativas futuras projetadas sobre ele” (CHAGAS, 2001, p. 228). Em outros termos, o território concretiza a etnicidade. No entanto, a partir do momento em que as análises do quilombo seguem a Escola do contato interétnico da antropologia indígena, adotando uma perspectiva onde o território se articula ao parentesco enquanto “princípio de constituição social” (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 196), elas se expõem à crítica formulada por Eduardo Viveiros de Castro contra aquela: a etnologia amazônica vem demostrando como muitas das formações sociais daquela região convertem continualmente o ‘território’ (a coresidência) em parentesco, ao definirem os residentes de um mesmo 22 A « noção de territorialização é definida como um processo de reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o passado » (OLIVEIRA, 1998, p. 55). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 148 grupo local como ‘parentes’ [...] No caso do modelo que Oliveira parece estar concebendo para os indios do Nordeste, é o parentesco que se converte em território. É como se nessa situação o conceito de mistura corporal – os índios misturados- necessitasse de uma contrapartida na pureza territorial – os territórios íindígenas distintos reivindicados pelos índios. (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 196-197) Ora, ainda que, sem dúvida, segundo modalidades outras que aquelas das sociedades ameríndias referidas por E. Viveiros de Castro, a antropologia, urbana e rural – inclusive das populações “misturadas” amazônicas –, indicou a importância do modelo do parentesco para pensar as relações sociais em grupos que frequentemente afirmam que “os vizinhos são os parentes mais próximos”,23 há então como pensar que esta reformulação da corresidência em parentesco, presente nos povoados que não se mobilizam em torno de identidade étnica, também é observável nas “comunidades quilombolas” – estas sendo, aliás, por vezes, de parentes dos primeiros, por aliança ou filiação. Privilegiar tal abordagem permitiria restituir ao tecido social toda sua densidade. Todavia, seria preciso livrarse, de antemão, do a priori da predominância de uma lógica territorial na formação desses grupos, assumindo que a determinação de limites geográficos acabados só faz sentido, para eles, no contexto de trâmites para a regularização fundiária, frente a um Estado que não conhece outra linguagem senão a das fronteiras. Como conclusão provisória No artigo citado na introdução, Richard Price estima que, de um ponto de vista político, os “destinos [dos Saramaka no Suriname e dos quilombolas no Brasil] vieram a se entrelaçar” (2000, p. 265). Os grupos oriundos dos africanos escravos, aspiram a uma proteção legal garantindo a sua permanência nas suas terras. No entanto, esses objetivos comuns não significam que haja um reconhecimento mútuo de um destino solidário, e ainda menos uma identificação de uns com os outros. De resto, o comentário do antropólogo vem após outro, algumas linhas antes, onde julga que, para os Saramaka, “poucos dos afro-brasileiros classificados como remanescentes de quilombo seriam vistos como quilombolas”. Com efeito, os Saramaka sempre viram o mundo dividido entre “nós” e “eles”, e aqueles que eles consideram como o Outro, também os vêem desta forma. O seu corpus de crenças, o seu idioma, as posturas corporais, as regras matrimoniais, entre outros, constituem signos patentes da distância cultural. Como R. Price deixa claro, não precisa de “antropólogos para 23 Por exemplo, Boyer (1993). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 149 demonstrar sua notável ‘diferença’ cultural/social/política, que é evidente até mesmo para o olho menos avisado” (2000, p. 264). Contrastando com esta situação, a “diferença” dos quilombolas, redescobrindo a sua identidade e formalizando atualmente a sua distinção, não se imporia a qualquer um como uma certeza indiscutível: nem ao grande público, e quiçá nem aos próprios quilombolas! Parece tão sutil, que necessita da atuação de profissionais em ciências sociais para torná-la visível. Porisso, os estudos sobre os Saramaka se desenvolveram em torno de outras problemáticas diferentemente dos trabalhos sobre os quilombolas brasileiros. Os primeiros se concentraram sobre esta sociedade peculiar a fim de entender, dar conta e analisar as suas lógicas específicas. Os segundos procuraram, principalmente, evidenciar e explicitar a singularidade dos quilombolas em relação com o resto da população. A reflexão dos antropólogos não partiu da realidade empírica e das categorias locais. Foi norteada por uma exigência política superior: conservar uma noção colonial que voltava a aparecer nas agendas do Estado e do movimento negro urbano à condição de esvaziá-la do seu antigo sentido para imputar um novo conteúdo. O paradoxo da singularidade quilombola é que esta se constrói na interação do Estado, dos intelectuais, das organizações internacionais, dos movimentos sociais e das populações locais. Jean-François Véran (2003, p. 116) distingue uma abordagem “situacional” do quilombo (“reportando-se à logíca específica de mobilização de um grupo preso num contexto de interações” ) de uma outra, “substencialista” (“que se apoia sobre um certo número de critérios tangíveis remetendo à essência do que é um grupo étnico” ). Mas observa que “longe de se relevar a suas contradições, essas duas definições coexistem e se confundem num vai-e-vem dedutivo, que aprisiona o objeto num círculo analítico dentro do qual ele não pode ser objetivado” (VÉRAN, 2003). De fato, vale notar que o trabalho de redefinição do quilombo leva os autores a rearticular constantemente as mesmas palavras (territorialização, etnicidade, autonomia da produção), que incansavelmente se permutam como referências incontornáveis e em raciocínios circulares. A dimensão situacional da diferença quilombola “construída no conflito”, advogada por Almeida, não conseguiu emancipar-se do quilombo como “métafora para pensar o grupo” (LEITE, 2000, p. 339). Foi o preço a pagar para que a noção colonial possa se tornar pouco a pouco um conceito autorizando a “redução sociológica dos casos empíricos em uma mesma categoria” (ARRUTI, 2008, p. 329). A perspectiva destes pesquisadores é, na verdade, subentendida pela idéia de que “as pessoas e grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 150 diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza” (SANTOS, 2000, p. 47 apud CHAGAS, 2007, p. 232). Igualdade e diferença são desta forma tratadas como dimensões distintas de um jogo político que os grupos sociais poderiam, e até devem, se apoderar. O sentimento que os inspira é certamente generoso, e ninguém pode permanecer insensível, considerando que a redefinição do quilombo não só o transformou num “conceito”, mas também numa categoria jurídica inclusiva, permitindo a um grande número de populações tentar aceder a direitos sociais e territoriais. Este último ponto é quanto mais importante que a multiplicação dos estudos sobre quilombolas se acompanhou de uma inscrição cada vez pronunciada no campo político e institucional. O interesse crescente da Aba para o quilombo e os grupos quilombolas se traduziu por uma mudança do lugar ocupado pela temática dos “territórios negros” no organograma da Associação. No ano 2000, a Comissão de Assuntos Territoriais integrou antropólogos especialistas do tema, “de modo a incluir a questão das terras de quilombos, tanto quanto a das terras indígenas, no problema da distribuição da terra no país” (LEITE, 2002, p. 10). Eliane Cantarino O’Dwyer, a coordenadora do projeto inicial sobre as “comunidades negras rurais” que foi reconduzido como Grupo de Trabalho permanente, dirige hoje uma comissão especial de apoio à Presidência, relativa aos laudos que devem ser produzidos na ocasião das demandas de regularização fundiária. Desta forma, as problemáticas dos pesquisadores se ampliaram, e se infletiram de discussões teóricas para preocupações mais concretas e mais aplicadas. A institucionalização dessa linha de pesquisa traz algumas interrogações sobre o devir do espaço até agora muito livre proporcionado pela Aba, para discussões críticas e comparativas sobre as diferentes formas de mobilização sociopolítica. Assim, será que sua contribuição à definição e à promoção das políticas públicas destinadas aos quilombolas não a levaria a assumir também um papel onde é esperado dela que ateste a identidade dos grupos sociais? Com efeito, a missão pericial que os antropólogos aceitam cumprir pelo Estado não é (sem deixá-los numa posição ambígua) junto às populações com as quais trabalham. Convém, portanto, prosseguir na análise das relações complexas entre programa científico e projeto político, bem como do papel que supostamente seria do antropólogo e da antropologia neste contexto. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 131-153, 2. sem. 2009 151 Abstract After the enactment of the article 68 of the 1988 Brazilian Constitution, Anthropology became interested in the emergence of a quilombola identity in a society where quilombo is supposed to belong to the past. Researchers intend to submit the old notion of quilombo to a process of evaluating its semantics (“re-semanticization” ). They aim to transform it into a concept enabling to understand the reality of new forms of political mobilization. To identify and understand the singularity of groups called Quilombola, these authors question the nature of their characteristics and the areas of social, cultural and political life where it is possible to comprehend them. It is therefore necessary to identify what is common to different approaches, but also what distinguishes them by pointing out how the reflection and discussion to update the definition of the concept of quilombola was conducted, from which assumptions, with which terms and according to which perspectives. Keywords: quilombo; anthropology; re-semantization; Brazil. Referências Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, E. (Org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002. p. 43-81. . Terras de preto, terras de santo, terras de índio: uso comum e conflito. In: CASTRO, E. M. R. de; HÉBETTE, J. (Org.). Na trilha dos grandes projetos: modernização e conflito na Amazônia. 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Uma das estratégias criadas pelos agentes governamentais para alcançar os objetivos que orientavam tais princípios foi a formulação e implantação da Política Oficial de Colonização Agrícola, pela qual a região Amazônica deveria ser povoada a partir da distribuição de parcelas de terra de até 100 hectares, para serem exploradas por pequenos agricultores vindos de outras partes do país. Neste artigo, apresento uma análise dos investimentos realizados por agentes do Estado na sistematização de normas para a condução da política oficial de colonização agrícola, referenciados ao Projeto de Assentamento Dirigido Rio Juma, criado em 1982 por porta-vozes do INCRA. Palavras-chave: política de colonização agrícola; poder tutelary; Amazonas * Doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. 156 Em diferentes contextos sociais de configuração da sociedade brasileira, diversos segmentos e setores produtivos e gestores governamentais produziram representações referenciadoras de intervenções confluentes e/ou contrastantes sobre a Amazônia. Por volta da década de 1970, no plano governamental, a região fora recorrentemente encarada como espaço a ser povoado e domesticado para fins de exploração “racional” da terra e dos recursos naturais. Para o setor agroexportador, ela representou a possibilidade de apropriação de rapina e ampliação da concentração fundiária, tanto pela implantação de projetos agropecuários como meramente especulativos. Para outros setores empresariais (banqueiros, industriais, exploradores de mineração, construtores de grandes obras etc.), a região representou a possibilidade de expansão dos lucros em diferentes áreas de atuação, ainda na modalidade produtiva ou especulativa da terra. Ao segmento camponês, expropriado ou sob escassez de terra em outras regiões do país, a Amazônia significou a possibilidade de acesso a recursos naturais para produção familiar, embora essa apropriação fosse, muitas vezes, irrealizada. Atualmente, assiste-se ainda aos efeitos da militância dos ambientalistas nacionais e estrangeiros sobre a região. Sob invisibilidade nacional, reconhece-se, entretanto, as representações produzidas pelos olhares e vivências dos diferentes povos indígenas e dos hoje reconhecidos “povos” e “comunidades tradicionais” que há muito habitam na região. Portanto, muitas são as Amazônias que referenciam os sentimentos e imaginários sociais tanto no Brasil como no Exterior e que configuram significados a projetos políticos de intervenção regional. Levando em conta a política oficial de colonização no estado do Amazonas, as ações estatais postas em prática por agentes vinculados a instituições do governo federal, até o início dos anos de 1980, resultaram em projetos disciplinadores das formas de apropriação e gestão da terra e dos recursos naturais, mas também da vida social, política e econômica dos eleitos ou reivindicantes beneficiários. Ainda nos anos de 1940, no estado do Amazonas, foram criados: o Projeto Integrado de Colonização Bela Vista, abrangendo uma área de 300 mil hectares, incidindo sobre os municípios de Manacapuru, Manaus e Codajás; e a Colônia Agrícola Nacional do Amazonas, que passou, posteriormente, a ser denominada Núcleo Colonial do Amazonas. Na década de 1970, contudo, foi criado o Projeto Integrado de Colonização Tabatinga, no alto rio Solimões, com 1.212,287ha. E em 1982, foi criado o Projeto de Assentamento Dirigido Rio Juma, no sudeste do estado, numa área de 689.000ha, às margens da rodovia Transamazônica, abrangendo, Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 157 na época da criação, os municípios de Novo Aripuanã e Borba, ambos em 1987 dando origem ao município de Apuí.1 Outros projetos foram criados por iniciativa do governo estadual do Amazonas: as Colônias Agrícolas Cláudio Mesquita, Manaus-Caracaraí ou Rio Branco, Ifigênio Sales e Rio Preto, esta última com 50.000 ha e 225 famílias, todas no município de Manaus; e Novo Amazonas, no município de Itacoatiara.2 A partir dos anos de 1980, amplia-se a atuação dos governos federal, estadual e municipais na constituição de diferentes modalidades de projetos territoriais no Estado. Nos municípios da calha do Rio Madeira, a intervenção governamental resultou na produção de diferentes formas de apropriação de uso da terra e dos recursos naturais (Quadro 1). Tais projetos e suas particularidades, quanto ao tipo ou forma de regulação, ao público alvo, aos objetivos e às formas de obtenção da terra, testemunham ações expressivas de diferentes contextos sociais e políticos, de mobilização dos agentes sociais em luta pelo direito de acesso à terra e aos recursos naturais, bem como pelo direito de permanecer no território, preservando suas formas tradicionais de apropriação e uso, em processos de atribuição de significados próprios à terra e aos recursos naturais. 1 2 Dados extraídos de: IPEA et al. (1972); MDA/INCRA/SIPRA (consultado em 2007); SCHWEICKARDT (2001). IPEA et al. (1972). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 Antropolítica 9712,21 40401,18 PAE Matupiri PAE Jenipapos 560900 5439,13 PA Paquequer 1012108,36 Total Nova Olinda do Norte 108411,76 138435 PAE Tupana Igapó-Açu PAE Maripiti 69812,55 PAE Trocanã 3400,83 PA Piaba 687633,55 4414,67 PA Puxurizal PAE Abacaxis 161700 4425100 Borba 4119100 Novo Aripuanã PA Acari 93958,29 Total 9500 34344,9 PA Matupi PAE Onças 4828200 2543571,52 Total Manicoré 627822,62 PAE São Benedito 689000 1226748,9 PA2 Rio Juma PAE Aripuanã-Guariba 5424000 101397,6518 PAE1 Botos Apuí 3307200 Área(ha) Humaitá Município/ Tipo de Projeto 374 29184 1215 400 200 300 100 111 104 31098 1773 18196 1198 200 395 70 533 44327 7660 80 80 7500 17451 200 38559 População/ Capacidade de Assentamento (Famílias) 416 887 321 58 202 72 107 127 873 1083 196 389 58 440 6740 54 47 6639 148 Famílias Assentadas Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Esfera Quadro 1 – Tipos de Projetos de Assentamento nos Municípios da calha do rio Madeira 27/11/1998 27/12/2006 23/12/2005 10/06/2005 17/12/2004 18/11/2002 20/07/1992 28/08/1992 11/08/2006 12/05/2000 24/09/2001 20/07/1992 23/12/2005 23/12/2005 30/08/1982 23/04/2004 Data de criação 158 Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 Antropolítica 2973 37596,51 326020,51 2982000 PAE Acará PAE Novo Jardim Total Canutama 26137,27 Área(ha) 34218500 PDS3 Gedeão Total Total Geral: 27 Municípios 3893397,182 11898,8 PAE – Total: 15 PDS – Total: 1 160 3237 11570 14967 263491 Capacidade (Nº de Famílias) 623 160 305 158 36909 298 11463 703 50 262 100 291 29907 123 84676 1174 500 300 População/ Capacidade de Assentamento (Famílias) 126 2610 9691 12427 Famílias Assentadas 446 126 175 145 317 734 50 262 92 330 122 1077 362 299 Famílias Assentadas Fonte: INCRA (1 Projeto de Assentamento Agroextrativista; 2 Projeto de Assentamento; 3 Projeto de Desenvolvimento Sustentável) 946301 PA – Total: 11 4851596,982 11898,8 PA Paciá Projetos 9017,1 5221,37 PA Umari 6922900 Lábrea 18120 141818 PAE Canaã PA São Francisco 12670 133936 PA Sampaio 759900 Autazes PA Engenho 565610,38 Total 889200 287098,62 PAE Abacaxis II Itacoatiara 273072,63 Área(ha) PAE Curupira Município/ Tipo de Projeto Esfera Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal Federal 29/03/2007 28/10/1999 02/04/1996 29/04/1993 08/07/2005 07/07/2005 15/12/2004 20/03/1992 29/11/2000 10/06/2005 21/12/2004 Data de criação 159 Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 160 Da leitura dos dados sistematizados no Quadro 1, imediatamente se impõe o reconhecimento da magnitude dos projetos em termos de área de terra e número de famílias a serem assentadas. Na década de 1980, foi criado um projeto com previsão de assentamento de um número de famílias jamais repetido. Na década de 1990, oito projetos foram criados, abrangendo os municípios de Manicoré, Novo Aripuanã, Borba, Nova Olinda do Norte, Autazes, Canutama e Lábrea, numa área total de 250.927 hectares, com previsão de absorção de 3.836 famílias. O processo oficial de apropriação de terra no estado do Amazonas ainda se expandiu no início deste século, abrangendo 16 projetos, nos municípios de Humaitá, Apuí, Manicoré, Borba, Nova Olinda do Norte, Itacoatiara, Autazes e Lábrea, somando uma área de 3.911.670 ha, destinada ao assentamento de 3.631 famílias. Neste artigo, considero analiticamente os desdobramentos de múltiplas e diferenciadas versões da política oficial de colonização agrícola implantada no sul e sudeste do estado do Amazonas, priorizando os modos de objetivação de programas e normativos que revelavam a intervenção estatal, mas também as formas de produção de recrutamento e de engajamento dos agentes sociais que foram localizados3 no Projeto de Assentamento Dirigido Rio Juma (PAD Rio Juma), criado em 1982 por porta-vozes do INCRA. Para melhor compreensão do objeto de estudo em apreço, destaco que o intuito explícito dessa criação fôra ordenar o processo de ocupação da região sudeste do estado do Amazonas, que se intensificara a partir do final da década de 1970, e, assim, possibilitar a exploração “racional” do solo e dos recursos naturais da região. Projeto de Assentamento Dirigido Rio Juma Criado através do decreto nº 238/82 para assentar 7.500 famílias, os porta-vozes do INCRA advogavam para o Projeto de Assentamento Dirigido (PAD) Rio Juma o status de maior assentamento da América Latina. O PAD Rio Juma integrava-se a um conjunto de ações do Governo Militar, motivado pelos lemas “unir gente sem terra a uma terra sem gente” e “integrar para não entregar”, objetivados no Plano de Integração Nacional (PIC), lançado em julho de 1970. O PIC orientava as políticas de colonização e de desenvolvimento implementadas na Amazônia naquele período e visava integrar aquela região aos mercados nacional e estrangeiro. A 3 Segundo Seyferth (2009, p. 47): “no século XIX e início do século XX, o termo ‘localização’ era empregado para designar o ato de recebimento (por compra) e exploração de um lote colonial (destinado à agricultura) equivalente, portanto, ao que atualmente conhecemos como ‘assentamento’”. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 161 rodovia Transamazônica (BR-230), que teve sua construção anunciada em março de 1970, conjuntamente com outras rodovias, também era parte das políticas adotadas pelo Governo Militar e visava criar condições para a ocupação daquela região por diversos segmentos da sociedade e por diferentes setores da economia, nacionais e estrangeiros. Segundo Soares: o objetivo definido no projeto de implantação [do Projeto de Assentamento Dirigido Rio Juma] era constituir-se em alternativa para absorver o fluxo migratório proveniente de Rondônia e do Acre, através da BR-319 que liga Porto Velho (RO) a Humaitá (AM), onde se liga à rodovia Transamazônica. Esse Projeto serviria como ‘instrumento de ordenação de ocupação de terras do Amazonas, evitando instruções e posses desordenadas’. E pressupunha ‘a expansão da fronteira agrícola, a criação de novos empregos, além de contribuir para a auto-suficiência regional de gêneros alimentícios de primeira necessidade’” (SOARES, 1999, p. 98). Gerido principalmente por agentes estatais vinculados ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, para a constituição do PAD Rio Juma foram recrutadas, por agentes desta instituição, famílias de colonos da região sul do país, principalmente do estado do Paraná, para serem localizadas em lotes que variavam de 40 a 100 ha (com a predominância dos lotes de 60 a 80 ha). Os agentes do INCRA ficavam responsáveis pela obtenção e distribuição de terras; organização territorial; administração do Projeto; assentamento das famílias; estabelecimentos das unidades agrícolas; implantação de infraestrutura física; educação; saúde e previdência social; habitação rural; empresa cooperativa, crédito e comercialização.4 As famílias selecionadas pelos agentes do INCRA receberam transporte, do local de origem até o Projeto; ferramentas, recursos e assistência técnica, para iniciar o trabalho nos lotes, além de recursos para habitação. Os recursos financeiros transferidos duraram de oito meses a um ano. Como um dos objetivos do PAD Rio Juma era a produção de gêneros alimentícios de primeira necessidade para suprir o mercado regional, os parceleiros5 foram, ao longo do processo de implantação do Projeto, estimulados a produzir: arroz, milho, mandioca, pimenta do reino, café, guaraná, cacau, entre outros produtos. Para que os parceleiros aderissem ao cultivo 4 5 Schweickardt (2001, p. 45); Soares (1999, p. 91). Cf. Art. 4o, Inciso VII, da Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964, “Parceleiro”, aquele que venha a adquirir lotes ou parcelas em área destinada à Reforma Agrária ou à colonização pública ou privada. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 162 destes produtos, a liberação de recursos para a produção agrícola estava condicionada à incorporação deles ao plantio orientado para a produção de mercadorias. Além do crédito, a política de produção e distribuição de sementes e mudas, assim como o atendimento com assistência técnica, também estavam vinculados aos produtos valorizados pelos agentes estatais responsáveis pelo Projeto. Dessa forma, os recursos e serviços disponibilizados pelos agentes estatais funcionaram como instrumento de controle governamental e direcionamento da produção agrícola. No decorrer do processo de “arrecadação” das glebas de terra (num total de duas) para fins da política de colonização oficial e criação do PAD do Rio Juma, foram localizadas posses em seu interior, totalizando 10.710ha. Posteriormente elas foram regularizadas pelo INCRA: 31 por Licenças de Ocupação (L.O) e 45 por Contratos de Promessa de Compra e Venda (CPCV) (SOARES, 1999, p. 98). A localização de áreas já ocupadas na delimitação da terra destinada ao PAD Rio Juma confirma, no perímetro do Projeto, a existência tanto de famílias que anteriormente à sua criação, ali se dedicavam ao extrativismo, atividade complementada por uma agricultura conjugada com criação, todas voltadas prioritariamente para o autoconsumo; mas também aí se confirma a existência de grandes propriedades. Todavia, esse processo, justo porque formalmente designado pela qualificação dirigido, com o lançamento do I Plano Nacional de Reforma Agrária (1985-9) pelo governo federal e, consequentemente, com a criação de novas vertentes políticas sob a modalidade de Projetos de Assentamento de Reforma Agrária pelos agentes do INCRA, foi relativamente abandonado pelas intenções estatais intervencionistas. Os recursos antes destinados aos projetos de colonização oficial passaram a ser canalizados, privilegiadamente, para as áreas de assentamento de reforma agrária, e, concomitantemente, novas modalidades de investimentos e ações governamentais foram aplicadas em novas áreas. Visando se enquadrar institucionalmente nas novas referências governamentais de condução da reforma agrária, isto é, na nova política de distribuição de recursos e serviços governamentais, os agentes estatais responsáveis pela gestão do Projeto Rio Juma alteraram a categoria do Projeto, passando sua denominação de Projeto de Assentamento Dirigido a Projeto de Assentamento do Rio Juma (SOARES, 1999, p. 92). Mesmo com a mudança de categorização do Projeto, os recursos governamentais destinados a torná-lo viável continuavam escassos. Parte deles, quando chegava, vinha com atrasos que comprometiam o calendário Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 163 agrícola. A morosidade na liberação e a escassez dos recursos repassados pelo governo federal aos administradores do Projeto comprometiam não só as atividades agrícolas, mas também a execução das obras de infraestrutura. Por exemplo: a) a construção e melhoria de estradas, travessões e vicinais, que ligam os lotes à estrada principal, tornando inviável o escoamento da produção e a mobilidade dos parceleiros; b) a construção dos postos de armazenamento e de beneficiamento dos produtos agrícolas; c) a aquisição de maquinários para atividade agrícola; d) a construção dos edifícios para implantação dos serviços em educação e saúde; e) os serviços de assistência técnica, de ensino e atendimento médico, para os quais faltavam recursos e pessoal. Estima-se que logo nos primeiros anos do Projeto, cerca de 2.600 famílias tenham sido assentadas, das quais apenas 40% permaneceram no assentamento. Da criação do projeto, em 1982, até o ano de 2005, estima-se que foram assentadas 6.134 famílias no total, mas, destas, apenas 503 receberam o título definitivo da terra.6 Estima-se ainda que a taxa de ocupação dos lotes do Projeto não tenha ultrapassado, até os dias de hoje, cerca de 40% da capacidade prevista. Isto sugere que dos 6.134 lotes distribuídos até 2005, apenas cerca da metade esteja ocupada nos termos previstos pelo caráter formal da elaboração do projeto. Em consequência, a situação da população local, constituída majoritariamente por parceleiros, mas acrescida de uma pequena parcela de agricultores mobilizados por movimentos de migração “espontânea”, que ocuparam então terras do entorno do Projeto, foi se agravando de forma significativa, especialmente em meados da década de 1980. A precariedade da situação fez com que parte dos agricultores reivindicassem apoio junto ao Governo do Estado do Amazonas, mediante a criação do município de Apuí, o que ocorreu através da Lei nº 1826, de 30 de dezembro de 1987, com uma área de 54.240 km2 (5.424.000 ha). Para os moradores da região, a criação do município representava uma possibilidade de melhoria na economia local, na infraestrutura e na prestação dos serviços básicos do recém-criado município. Após tal criação, os repasses de recursos dos governos federal e estadual possibilitaram a melhoria nos serviços de educação, saúde e infraestrutura do município, principalmente na área onde se estabeleceu a sede municipal. Mas não representou a conquista da autonomia, da emancipação frente os agentes do INCRA. Com a condição de Município, ainda hoje, os parceleiros (oficiais e não-oficiais) que vivem e produzem no interior do PA Rio Juma, estão afiliados a duas instituições em termos de demanda e aten6 MDA/INCRA – Sistema: SIPRA. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 164 dimento dos recursos –INCRA e prefeitura municipal – diferentemente da concepção autonomista de outros projetos de colonização dirigida. Constituído a partir do desmembramento dos municípios de Novo Aripuanã e Borba, não houve qualquer ato dos governos estadual e federal no sentido de desmembramento de terras para serem destinadas à administração municipal de Apuí. Assim, até o momento do trabalho de campo desta pesquisa, em 2007, a maior parte das terras do município estava dentro da faixa definida como “indispensável à segurança e ao desenvolvimento nacionais”,7 sob a gestão do governo federal, na figura dos agentes do INCRA. A sede do município está localizada dentro da área arrecadada e destinada ao Projeto de Assentamento Rio Juma. A partir de 2004, parte das terras da União que estavam fora da área do Projeto foram convertidas em unidades de conservação, geridas por agentes vinculados ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA). Sob a gestão do governo do estado do Amazonas, estão 2.825.932,823 hectares, ao sul do município, que criou, através dos agentes vinculados ao Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas (IPAAM), entre 2005 e 2006, um conjunto de nove unidades de conservação, de diversas categorias, mosaico de unidades de conservação a que foi atribuído como “objetivo principal ([...] conter o avanço da grilagem de terra e o consequente desmatamento da região” (SECRETARIA DE ESTADO DO MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ESTADO DO AMAZONAS, 2007). 7 Cf. Art. 1º Decreto-Lei Nº 1.164, de 1º de abril de 1971. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 Antropolítica Proteção Integral Uso Sustentável Uso Sustentável Proteção Integral Parques Nacionais – Total: 2 Floresta Estadual – Total: 4 Reserva de Desenvolvimento Sustentável – Total: 6 Parque Estadual- Total: 2 Reserva Extrativista – Total: 2 2 3 4 5 6 Nova Olinda do Norte e Borba Humaitá Canutama Novo Aripuanã Novo Aripuanã Novo Aripuanã Manicoré, Humaitá, Novo Aripuanã, parte do estado de Rondônia Manicoré Manicoré Manicoré Apuí e Novo Aripuanã Apuí Apuí Apuí Apuí Apuí Apuí Apuí Apuí Município 880608,51 1165972,12 1098272,52 873570 2154070 6627104,74 22354,86 468790 802023 589611,28 – 72296,33 873570 216108,73 304146,28 83381 150465,31 113606,43 185946,17 492905,28 808312,18 224290,82 336040,07 – 883257 Área (ha) 454611,59 Fonte: Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS); Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Uso Sustentável Uso Sustentável Floresta Nacional – Total: 3 Total Geral: 19 1 Uso Sustentável Uso Sustentável FLONA de Humaitá Uso Sustentável FLONA Balata-Tufari RDS Canumã Uso Sustentável RDS do Juma RESEX do Lago do Capanã Grande Uso Sustentável Uso Sustentável FLOREST de Manicoré Proteção Integral Uso Sustentável RESEX6 do Guariba RDS do Rio Madeira Uso Sustentável RDS Bararati PAREST do Guariba Uso Sustentável FLOREST de Apuí Uso Sustentável Uso Sustentável FLOREST do Sucundurí Proteção Integral Uso Sustentável PAREST5 do Sucundrí PARNA Campos Amazônicos Uso Sustentável RDS4 Aripuanã RDS do Rio Amapá Uso Sustentável Uso Sustentável FLOREST3 do Rio Aripuanã Proteção Integral PARNA2 Juruena Tipo Uso Sustentável FLONA1 Jatuarana Nome da Unidade de Conservação Quadro 2 – Unidades de Conservação nos Municípios da calha do rio Madeira Esfera Estadual Federal Federal Estadual Estadual Estadual Federal Estadual Federal Estadual Estadual Estadual Estadual Estadual Estadual Estadual Estadual Federal Federal 2005 2004 2005 2006 2006 2005 2006 2005 2004 2005 2005 2005 2005 2005 2005 2005 2005 2005 2005 Ano de Criação 165 Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 166 A análise dos dados apresentados no Quadro 2 permite concluir que, de um total de 6.627.104,74 ha utilizados para a implantação de 19 unidades de conservação nos municípios da calha do rio Madeira, no período de 2004 a 2006, 4.872.926,23 ha foram destinados à criação de 15 unidades de conservação de uso sustentável, cujo objetivo básico é “compatibilizar a conservação da natureza como uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais”,8 permitindo a permanência dos moradores que tradicionalmente ocupam a área, e 1.754.178,51 ha foram convertidos em unidades de conservação de proteção integral, que tem como objetivo principal “preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais”,9 não tolerando a existência e ocupantes em seu interior nem a exploração dos seus recursos naturais. O município de Apuí guarda certa excepcionalidade em relação a outros municípios do estado do Amazonas, por se constituir de terras centrais, com acesso apenas rodoviário, porque distante de leitos de rios navegáveis. O município interliga-se a oeste com a sede de Humaitá através da BR-230 (Transamazônica), não pavimentada, num trecho de aproximadamente 400 km; a leste liga-se com o Estado do Pará, também através da Transamazônica, uma distância de 300 km, até a cidade de Jacareacanga (PA); ao norte liga-se com o município de Novo Aripuanã, através da AM-174, estrada não pavimentada, num total de 292 km. Existem ainda duas vias de acesso por estradas não pavimentadas ao rio Aripuanã (navegável no período de cheia). A primeira distante 120 km do município de Apuí, onde se localiza a comunidade de Prainha, e a segunda no chamado “Porto Juma”, próximo à cidade de Novo Aripuanã, cujo acesso se dá através de ramal na altura do km 130 da AM -174. A partir da localidade de “Porto Juma”, o rio Aripuanã torna-se navegável todo o ano (SOARES, 1999, p. 98-9; SDS/AM, 2007, p. 15). A unidade político-administrativa em foco conta com uma extensa rede hídrica constituída pelos rios Juma, Acari, Sucundurí, Aripunã e Juruena. No entanto, estes só são navegáveis no período das cheias (inverno amazônico), pois, durante a vazante (verão), a redução do nível da água, o grande número de corredeiras e a exposição do leito rochoso impedem a navegação e dificultam o acesso por via fluvial a várias localidades do município e da região (SOARES, 1999, p. 98-9; SDS/AM, 2007, p. 15). Mesmo com as melhorias na infraestrutura, nos serviços básicos de atendimento à saúde e à educação, de assistência técnica e do crescimento da economia, a situação do município ainda é descrita como de precarie8 Cf. Art. 7o do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, Lei No 9.985, de 18 de julho de 2000. 9 Ibidem. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 167 dade, no que diz respeito à responsabilidade do exercício dos poderes públicos federal, estadual e municipal (SOARES, 1999; SDS/AM, 2007). A despeito de a situação do município ser reconhecida como precária, agora configurada como unidade totalizante mais perceptível, como se pode depreender pelos dados estatísticos, entre os anos de 1991 e 2006, a sua taxa de crescimento populacional foi de 243,06%, deslocando-se de uma população de 5.732, em 1991, para 19.664 habitantes, em 2006 (ver tabelas 1 e 2). Tabela 1 – População residente no Município de Apuí10 POPULAÇÃO 1991 5.732 1996 11.048 2000 13.864 2006 19.664 Fonte: IBGE, 1991, 1996, 2000 e 2006 Tabela 2 – Taxa de crescimento do município de Apuí11 TAXA DE CRESCIMENTO 96/2000 25,48% 91/96 92,74% 91/2006 243,06% Fonte: IBGE, 1991, 1996, 2000 e 2006 Para o ano de 2007, o IBGE estimou uma população de 17.451 pessoas no município. No período de 1991 a 2000 houve uma oscilação na distribuição da população, passando a população rural de 59,54%, em 1991, para 55,81%, em 2000 (Tabela 3). Tabela 3 – População urbana e rural residente Apuí – anos de 1991, 1996 e 2000 no município de Ano 1991 1996 2000 Urbana 2.319 4.434 6.126 % 59,54 59,86 55,81 Rural 3.413 6.614 7.738 % 40,46 40,14 44,19 Total 5.732 11.048 13.864 Fonte: IBGE, 1991, 1996, 2000. Após essa breve descrição da situação empírica de análise, reflito sobre os mecanismos através dos quais os agentes do INCRA tentaram estabelecer uma relação de poder tutelar frente aos designados beneficiários do Projeto em pauta. Por este exercício, não pretendo advogar qualquer exceção para o caso, que resultaria na crença de que as intenções dos 10 Organizado por SDS/AM (2007). 11 Organizado por SDS/AM (2007). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 168 agentes em jogo, independentemente da posição que vier a privilegiar, se realizam como projetadas. Pelo contrário, por representar um bom exemplo das formas de expressão do Estado em seus investimentos objetivantes, dado que neste contexto a organização social da nação foi alterada pela relativa e crescente hegemonia de valores fundados nos ideais democráticos, redefinindo e deslegitimando muitas das realizações fundadas na crença dos acertos do autoritarismo, o caso em pauta permite a compreensão da agência estatal pelo caráter dinâmico da vida política e dos agentes sociais integrados como parceleiros como sujeitos políticos e econômicos dotados de capacidade contextual e relativa de construção de alternativas e de desdobramentos mais atinentes aos recursos privados e públicos em jogo. O processo de constituição do parceleiro As políticas governamentais de colonização agrícola na Amazônia, isto é, aquelas postas em prática pelos governos que constituíram o Regime Militar no Brasil (1964-85), apresentavam mecanismos diversos de seletividade e de disciplinamento dos comportamentos econômicos, sociais e políticos dos supostos beneficiados. Tais mecanismos preconizavam que, para o sucesso da ação colonizadora e integradora, o Estado deveria agir no sentido de tornar viável e, mais que isso, estimular a entrada na região de agentes sociais e econômicos mais aptos a por em prática os modelos de colonização e de desenvolvimento idealizados no interior das agências estatais, todavia sob forte influência dos interesses do capital nacional e estrangeiro. Nos termos da colonização agrícola oficial, os pretendentes à condição de parceleiro deveriam corresponder aos atributos definidos nos regulamentos estatais, de modo a se constituírem como desejáveis12 à ação colonizadora e integradora do Estado. Segundo o regulamento do INCRA, para se tornarem beneficiários da política de colonização oficial, os candidatos a parceleiro deveriam “possuir conhecimento agrícola dirigido para exploração específica e dispor de recursos financeiros e experiência na obtenção de crédito bancário”,13 além de “demonstrar capacidade empresarial para gerência do lote na forma planejada”14 pelos agentes do Estado. Nesta perspectiva, os supostos beneficiários, dado que se integraram a um projeto político em construção multifatorial, deveriam estar abertos a constantes mudanças comportamentais, incorporar e gerir tecnologias e relações sociais e econômicas apropriadas aos 12 Ver Ramos (2006). 13 Oliveira (1989, p. 93-94). 14 Art. 64, inciso V, do Decreto Lei no 59.426, de 27 de outubro de 1966. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 169 objetivos e exigências definidas no projeto. Enfim, deveriam responder em tese aos recursos de engajamento propostos pelos agentes gestores do Projeto, embora tais respostas dependessem dos recursos que eles próprios se acreditavam portadores e dos que imaginavam corresponder aos que lhes eram designados ou atribuídos. Para os idealizadores da política de colonização dirigida, um dos princípios fundamentais da intervenção estatal sobre os processos de ocupação e exploração de terras devolutas15 era “promover o aproveitamento econômico, mediante o exercício de atividades agrícolas, pecuárias e agroindustriais”.16 Ela seria aplicada, privilegiadamente, utilizando terras públicas17 em áreas de vazio demográfico. A noção de vazio demográfico trazia, portanto, duas idéias centrais: a primeira dizia respeito à noção de espaços desocupados ou com população rarefeita ou dispersa que precisavam ser incorporados à economia e sociedade nacionais; e a segunda estava ligada à idéia de aproveitamento econômico racional da região a ser colonizada. Dessa forma, eram reconhecidos pelos agentes estatais, como espaços de vazio demográfico, aqueles que: estavam desocupados ou eram ocupados por povos e comunidades dispersos ou rarefeitos, que utilizavam técnicas rudimentares para a exploração do solo e dos recursos naturais, com baixo requinte tecnológico e com pouca capacidade de transformação ou domesticação da natureza, capazes de produzir artigos, em quantidade e qualidade, adequados somente a uma economia de subsistência, com pouca ou nenhuma relação com o mercado, pois a organização da produção estava fortemente atrelada aos princípios ordenadores do sistema de organização social dos grupos. A colonização oficial deveria ser realizada em terras já incorporadas ao Patrimônio Público ou que viriam a sê-lo. Ela seria efetuada, preferencialmente, nas áreas: I) ociosas ou de aproveitamento inadequado[...]; V) de desbravamento ao longo dos eixos viários, para ampliar a fronteira econômica do país.18 Tinha como objetivos: I) a integração e o progresso social e econômico do parceleiro; II) a melhoria do nível de vida do trabalhador rural; III) a conservação dos recursos 15 Art. 3º, parágrafos 1º a 4º, da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. 16 Art. 5º, do Decreto nº 59.428, de 27 de outubro de 1966. 17 Art. 9º, incisos I a III do Estatuto da Terra, Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. 18 Art. 56, do Estatuto da Terra, Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 170 naturais e a recuperação social e econômica de determinadas áreas; e IV) o aumento da produção e da produtividade no setor primário.19 Nas “regiões economicamente ocupadas em que predominava economia de subsistência e cujos lavradores e pecuaristas careciam de assistência adequada”,20 a política de colonização visava: “a) ao aproveitamento de área cuja exploração fosse inadequada e acarretasse o uso predatório dos recursos naturais, ou cujos proprietários não dispusessem de meios para adoção de práticas conservacionistas; b) ao aproveitamento de áreas incluídas em planos preferenciais de implantação de grandes obras de infraestrutura”.21 Planejada para as áreas de vazio demográfico,22 a política de colonização oficial, materializada em diferentes tipos de projetos, foi elaborada mediante a crença de que os agentes estatais modelavam em estado bruto, podendo criar mecanismos disciplinadores do espaço social em formação e dos agentes sociais sobre os quais agiriam. Os parceleiros corresponderiam assim a posições ocupadas segundo um sistema hierárquico de gestão da terra e dos recursos naturais. A estratégia de recrutamento e deslocamento de pequenos agricultores da região Sul do país para a constituição do Projeto de Assentamento Dirigido do Rio Juma, posta em prática pelos agentes do INCRA, já respondia a esta contradição. Para o espaço vazio eram deslocados homens imaginados em estado ideal de existência para efeitos do projeto. Buscava-se recrutar famílias de pequenos produtores e trabalhadores rurais que correspondessem à imagem positivamente valorizada pelos agentes estatais, isto é, ao parceleiro desejado. Mas não só, também diminuir a tensão social de disputa pela terra, gerada pelo processo de concentração fundiária e, consequentemente, de cercamento das pequenas propriedades, que se agravavam na região Sul do país. Em resumo, associavam-se duas intenções mais amplas: viabilizar e gerir o processo de ocupação de áreas de vazio demográfico; e dar andamento à política estatal de eliminação de “minifúndios”,23 sobretudo nas regiões de pressão fundiária. O processo de recrutamento não se deu de forma aleatória, tanto no que diz respeito aos agentes recrutados, quanto à localidade onde se desenrolou, privilegiando, para o Projeto de Assentamento Diri19 Art. 57 do Estatuto da Terra, Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. 20 Art. 43, inciso III, do Estatuto da Terra, Decreto nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. 21 Art. 6º do Decreto nº 59.428, de 27 de outubro de 1966. 22 Art. 11 do Decreto nº 68.153, de 1º de fevereiro de 1971. 23 Art. 4º, inciso II e IV, da Lei nº 4.504, de 30 de dezembro de 1964. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 171 gido Rio Juma, os desejáveis da região sudoeste do Paraná, sobretudo do município de Francisco Beltrão e outras unidades municipais vizinhas. Assim como em outras épocas, as campanhas dos governos militares, do período 1964-1985, de estímulo às migrações, seja de população seja de capital, para a Amazônia, elevavam-na à condição de eldorado. As propagandas promovidas pelos agentes estatais exaltavam a vocação ao empreendedorismo e as possibilidades que a região guardava para o desenvolvimento de atividades na agricultura e pecuária e a exploração mineral, hídrica e industrial. As estradas, sobretudo a Transamazônica, eram a grande promessa para a “conquista e colonização” da região, possibilitando, principalmente, a circulação e escoamento de mercadorias e de pessoas. Para assegurar credibilidade à política de colonização oficial, o governo federal, como já apresentados, acenava com recursos múltiplos e totalizantes, amplamente divulgados nos meios de comunicação pelos agentes estatais. Estas promessas eram o carro chefe da propaganda governamental para atrair agricultores com limitadas condições de expansão da unidade de produção familiar nas suas regiões de origem. Assim sendo, os agentes estatais pretendiam engajar sujeitos sociais que correspondessem à gestão de expectativas vislumbradas ou que estivessem abertas à indução de comportamentos correspondentes à condição de parceleiros. Buscando atrair principalmente o produtor rural cuja unidade de produção se enquadrava na definição de “minifúndio”, segundo o Estatuto da Terra, os agentes estatais prometiam parcelas de até 100 hectares, o que, para esses agricultores, era impossível de se conseguir no Paraná. A promessa de terra farta e fértil, onde “se plantando tudo dá”, produziu expectativas e certa euforia quanto às possibilidades de melhoria das condições de produção e reprodução social e econômica dos agricultores, o que “atraiu muita gente da cidade de Francisco Beltrão e das cidades vizinhas, na época da seleção”.24 Estimulou-se, dessa forma, o engajamento necessário à ação migratória. A construção da imagem positivada da migração para a Amazônia fora associada à construção de uma imagem negativa, de uma situação de precariedade e de escassez, sobretudo de terra, vivenciada pelos supostos beneficiários nos seus locais de origem. Em oposição, estimulava-se, através das propagandas, a construção do ideário de uma possível situação de fartura, um lugar da riqueza, projetada para um futuro, processo a ser alcançado mediante deslocamento para a Amazônia. 24 Entrevista cedida em 17/07/07. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 172 Para a legitimação da política de colonização oficial, os agentes estatais procederam no sentido de divulgar, privilegiadamente, seu aspecto social em detrimento do seu real interesse, econômico e político. Pensada pelos agentes estatais enquanto uma política de distribuição de recursos que pretendia atender a agentes específicos, sua implementação corresponderia à retórica da construção social, política e econômica do beneficiário,25 isto é, do parceleiro modelar. Neste sentido, Foucault (1979, p. 284), ao desenvolver sua análise sobre o tema da governabilidade e elaborar o que ele denominou teoria do governo, dá a seguinte contribuição: O governo é definido como uma maneira correta de dispor as coisas para conduzi-las não ao bem comum [...] mas a um objetivo adequado a cada uma das coisas a governar. O que implica, em primeiro lugar, uma pluralidade de fins específicos [...]. Portanto, uma série de finalidades específicas que são o próprio objeto do governo. E para atingir estas diferentes finalidades deve-se dispor as coisas. [...] no caso da teoria do governo não se trata de impor uma lei aos homens, mas de dispor as coisas, isto é, utilizar mais táticas do que lei, ou utilizar ao máximo as leis como táticas. Fazer, por vários meios, com que determinados fins possam ser atingidos. [...] a finalidade do governo está nas coisas que ele dirige, deve ser procurada na perfeição, na intensificação dos processos que ele dirige e os instrumentos do governo, em vez de serem constituídos por lei, são táticas diversas. Mecanismos para a constituição e reprodução do poder tutelar Para a constituição do beneficiário desejável, os agentes estatais planejaram um conjunto de ações que pretensamente funcionariam, por um lado, como mecanismos de indução de comportamentos dos supostos beneficiários; e, por outro, que levariam à constituição de uma relação de 25 Segundo Neves (1997a, p. 78), “Especialmente nos casos de políticas sociais, as instituições estatais operam com um modo de ação baseado na desorganização despolitização para a organização-politização específicas. Através de uma classificação e de um enquadramento, expresso especialmente pela categorização que ressalta problemas e carências, o beneficiário deve-se adequar a uma etiqueta, processo que pressupões a criação de novos espaços de luta, novas questões, novas identidades e novos modos de incorporação de comportamentos, mesmo se a reação se orienta pela recusa ou resistência”. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 173 poder tutelar26 dos agentes estatais sobre os parceleiros, resguardada por uma relação de troca de favores, de “dádiva”, no sentido de Mauss (2003). Assim estava previsto no Decreto no 59.428, de 27 de outubro de 1966: aos candidatos a parceleiro poderão ser concedidas as seguintes facilidades: a) transporte de estação viária, ou porto marítimo ou fluvial até a sede do núcleo; b) crédito para alimentação durante a primeira fase da implantação; c) prioridade no trabalho a salário ou empreitada, em obra ou serviço do núcleo, durante o período de carência, desde que não prejudique a exploração de sua parcela; d) assistência médica até a consolidação do núcleo; e) suprimento de mudas, sementes, adubos, inseticidas, fungicidas e utensílios agrícolas, para pagamento a prazo além do período de carência; f) prestação de serviços gerais de preparação da parcela pelo prazo referente à implantação do núcleo; g) implantação de benfeitorias previstas no projeto (Art. 75). A seleção, o deslocamento e a localização dos “parceleiros” Buscando corresponder às expectativas dos agentes da colonização, no processo de constituição da autoimagem do parceleiro modelar, os candidatos tinham de conhecer os atributos definidores da condição desejada, descritos nos regulamentos da política de colonização oficial, a saber: “exerçam, ou queiram efetivamente exercer, atividades agrárias e tenham comprovada vocação para seu exercício; comprometam-se a residir com sua família na parcela, explorando-a direta e pessoalmente; possuam boa sanidade física e mental e bons antecedentes; demonstrem capacidade empresarial para gerência do lote na forma projetada”;27 e espírito associativista.28 Exigia-se, também, pela descrição oficial do 26 Para Oliveira Filho (1988, p. 224-225), “em geral o aspecto mais destacado da tutela, aquele que a envolve de uma necessidade e que a pretende justificar, é a dimensão educativa, pedagógica, de que se reveste a relação (suposta de aprendizado e proteção) entre tutor e tutelado. Este último é sempre aquele sobre o qual se supõe que disponha de um conhecimento parcial ou deformado dos códigos culturais dominantes. [...] A finalidade da tutela é justamente transformar, através de uma ensinamento e uma orientação dirigidas, tais condutas desviantes em ações e significados prescritos pelos códigos dominantes. Assim a tutela é fator de controle do grupo social sobre um conjunto de indivíduos potencialmente perigosos para a ordem estabelecida, uma vez que partilham, junto com os infratores, de condutas vistas como anti-sociais. [...] À diferença de outras formas mais explícitas e utilitárias de dominação, a relação da tutela se funda no reconhecimento de uma superioridade inquestionável de um dos elementos e na obrigação correlata, que esse contrai (para com o tutelado e com a própria sociedade envolvente) de assistir (acompanhando, auxiliando e corrigindo) a conduta do tutelado de modo que o comportamento deste seja julgado adequado – isso é, resguarde os seus próprios interesses e não ofenda as normas sociais vigentes” (OLIVEIRA FILHO, 1988). 27 Art. 64, incisos II, III, IV e V, do Decreto nº 59.428, de 27 de outubro de 1966. 28 Art. 63, da Lei nº 4.504, de 30 de Novembro de 1964. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 174 perfil do candidato a beneficiado, para a constituição do Projeto de Assentamento Dirigido do Rio Juma, que os “parceleiros devessem possuir conhecimento agrícola dirigido para exploração específica e dispor de recursos financeiros e experiência na obtenção de crédito bancário” (INCRA, 1983, p. VII/IX apud OLIVEIRA, 1989, p. 93-4). Com o processo seletivo, os agentes da colonização almejavam atrair não só os que em família tivessem vocação ao exercício da atividade agrícola, mas também e principalmente, aqueles que demonstrassem capacidade empresarial para gerência do lote na forma projetada pelos agentes estatais. “Associativismo” e “Gerir o lote na forma projetada” representavam aspectos importantes do perfil do parceleiro, uma vez que no processo de implantação do Projeto estes seriam recorrentemente mobilizados pelos gestores do Projeto, já que este era um processo, sobretudo, de disciplinamento29 e indução dos comportamentos sociais, políticos e econômicos dos supostos beneficiados em processo de mutação. Dessa forma, o parceleiro, tal como Neves (1997, p. 75) aponta para o assentado correspondente do I Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA), era socialmente concebido, pelos agentes da colonização, como o sem raiz, ser ambíguo que se socializava num mundo em transformação ou em conversão, cujas marcas derivavam dos objetivos do processo e da legislação (NEVES, 1997b, p. 75). Feita a seleção dos beneficiados, os agentes da colonização procediam ao agendamento e à organização das viagens. Em 1983, saíram as primeiras famílias encaminhadas para o PAD Rio Juma, que foram conduzidas de ônibus, fretados pelos agentes do INCRA, do município de Francisco 29 Segundo Foucault (1977, p. 153): O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo.Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até as singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéricas, segmentos combinatórios. A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. [...] O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame (FOUCAULT, 1977, p. 153-172). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 175 Beltrão ao local do Projeto de Assentamento Dirigido do Rio Juma, em uma viajem que podia durar cerca de uma semana ou mais, como precisou um dos entrevistados: “Foi no ano de 1983, nós saímos dia 24 de agosto e chegamos dia 1o de setembro de 1983”.30 Conjuntamente ao processo de seleção dos desejados, o financiamento do deslocamento era mais uma ferramenta adotada pelos agentes da colonização para o exercício do poder tutelar. A atração daqueles que correspondiam à imagem do parceleiro modelar, cujos comportamentos fossem adequados aos definidos nos regulamentos oficiais para o projeto de colonização, não se operava, fundamentalmente, através da interdição à entrada daqueles que fugiam ao padrão de comportamento adequado, mas sim através de favores que estimulassem uma parcela dos migrantes a se adequarem ao modelo idealizado pelos agentes da colonização. Dessa forma, o financiamento do deslocamento e a definição do destino dos parceleiros pelos agentes da colonização funcionavam como ações do mecanismo de construção de uma relação de troca de favores,31 entre agentes diferentemente posicionados, de modo a induzirem comportamentos que pretendiam resultar na construção do parceleiro. Neste processo, à passagem e aceitação no processo seletivo, à viagem financiada pelos agentes da colonização e à chegada no local de destino, seguia-se a identificação e a localização do beneficiário na parcela de terra. O ato de recebimento do lote representava, tanto para o beneficiário como para os agentes do INCRA, a objetivação da primeira etapa do processo de colonização que se materializava na terra e, consequentemente, na constituição de uma relação formal entre os beneficiários e os agentes da colonização. Ambos agentes envolvidos estavam munidos de obrigações e direitos geridos por regulamentos legalmente instituídos, substantivados no contrato de colonização.32 No ato da localização do parceleiro em sua parcela de terra, no Projeto de Assentamento Dirigido do Rio Juma, ele assinava o Contrato de Assentamento com o INCRA. O Contrato definia os direitos e deveres das partes, ficando os agentes do INCRA responsáveis por: “destinar ao parceleiro, uma parcela de terra do referido Projeto, para que nela resida com sua família e exerça atividades agrícolas, com finalidade de torná-la produtiva”. Para que o Projeto alcançasse seus objetivos, os agentes do INCRA assumiam os seguintes compromissos: 30 Entrevista concedida em 23/07/07. 31 Ramos (2006, p. 168-169). 32 Art. 67, do Decreto nº 59.428. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 176 a) medir e demarcar as parcelas; b) implantar a infraestrutura física básica, correspondente a construção de estradas, escolas e ambulatórios; c) conceder ao parceleiro concessão de empréstimo Crédito Alimentação e Auxílio Habitação; d) expedir documento de terra ao parceleiro, se cumpridas as condições do Contrato e demonstrar capacidade profissional para a exploração da parcela. Ficava definido, também, que o INCRA “não desenvolveria no Projeto atividades de caráter permanente, tais como assistência técnica à saúde e à educação, comprometendo-se, no entanto, a diligenciar junto aos órgãos competentes no sentido de prestarem apoio ao parceleiro, nessas áreas”. O contrato dava ênfase às seguintes obrigações do parceleiro: a) residir em sua parcela, explorando-a direto e pessoalmente; b) atender à orientação do INCRA, com vista a sua plena capacitação profissional; c) ressarcir ao INCRA as despesas previstas na clausula anterior, acrescidas o juros de 6% ao ano, em prestações anuais, prestações estas a serem pagas juntamente com aquelas correspondentes ao valor da terra nua. A relação entre os agentes do INCRA e o parceleiro podia ser rompida caso o parceleiro a) não demonstrasse capacidade profissional durante o período de dois anos, a contar da data de sua localização na parcela; b) deixasse de cultivar direta e pessoalmente a parcela durante o período de 3 (três) meses, salvo motivo de força maior da Administração do Projeto; c) deixasse de residir no local de trabalho ou em área pertencente ao Projeto, salvo justa causa reconhecida pela Administração do Projeto; d) desmatasse indiscriminadamente, sem imediato aproveito agrícola do solo ou deixar de obedecer aos dispositivos da Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965 (Código Florestal); e) se tornasse elemento de perturbação para o desenvolvimento dos trabalhos por má conduta ou inadaptação à vida comunitária. Nestes casos, o contrato seria rescindido e o parceleiro perderia o direito à aquisição da parcela de terra. O contrato objetivava o caráter crucial do planejamento, cujos agentes da colonização pretendiam definir direitos e deveres englobantes a cada um dos agentes diferentemente posicionados, para assim uniformizar comportamentos. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 177 A Assistência Técnica e o Crédito Os instrumentos de controle e de indução de comportamentos produtivos e políticos ocupavam papel de destaque no processo de constituição do parceleiro. Cada uma das etapas do processo de constituição de ex-colonos, da região Sul, em parceleiros, no Projeto de Assentamento Dirigido Rio Juma, visava reforçar o poder tutelar dos agentes do Estado. Dessa forma, as políticas de assistência técnica e de crédito ocupavam lugar central no conjunto de procedimentos e mecanismos acionados pelos agentes da colonização para a constituição do agricultor modelar. No planejamento dos agentes estatais, o estabelecimento do clima de cooperação entre o beneficiário e o Estado, no aproveitamento da terra, que garantiria a integração social e ativa participação do agricultor e sua família no processo de desenvolvimento rural, só seria possível através da preparação educacional e da formação empresarial e técnico-profissional do parceleiro. Para alcançar a “capacitação plena” e, consequentemente, a adesão do agricultor ao projeto de colonização, os agentes estatais procederiam no sentido de fornecer-lhes os seguintes meios, (supostamente) possibilitadores da conversão: i) assistência técnica; ii) produção e distribuição de sementes e mudas; iii) criação, venda e distribuição de reprodutores e uso da inseminação artificial; iv) mecanização agrícola; v) cooperativismo; vi) assistência financeira e creditícia; vii) assistência à comercialização; viii) industrialização e beneficiamento dos produtos; ix) eletrificação rural e obras de infra-estrutura; x) seguro agrícola; xi) educação, através de estabelecimentos agrícolas de orientação profissional; xii) garantia de preços mínimos à produção agrícola. Através da assistência social, técnica e fomentista, os agentes da colonização pretendiam estimular a produção agropecuária, de forma a que ela atendesse não só ao consumo nacional, mas também à possibilidade de obtenção de excedentes exportáveis, alcançando dessa forma o desenvolvimento rural.33 Dessa forma, os serviços de assistência social, técnica e creditícia tinham um forte componente pedagógico que, aos olhos dos agentes estatais, tinham importância central para que os objetivos estabelecidos para a Política de Colonização Oficial fossem alcançados. As atividades de assistência técnica tinham os seguintes objetivos: a) planificação de empreendimentos e atividades agrícolas; b) elevação do nível sanitário, através de serviços próprios de saúde e saneamento rural, melhoria de habitação e de capacitação de lavradores e criadores, bem como de suas famílias; c) criação do espírito empresarial e a formação 33 Art. 73 do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 178 adequada em economia doméstica, indispensável à gerência dos pequenos estabelecimentos rurais e à administração da própria vida familiar; d) transmissão de conhecimentos e acesso a meios técnicos concernentes a métodos e práticas agropecuárias e extrativas, visando à escolha econômica das culturas e criações, à racional implantação e desenvolvimento, e ao emprego de medidas de defesa sanitária, vegetal e animal; e) auxílio e assistência para o uso racional do solo, execução de planos de reflorestamento, obtenção de crédito e financiamento, defesa e preservação dos recursos naturais; e f) promoção, entre os agricultores, do espírito de liderança e de associativismo.34 Os técnicos agrícolas atuavam ora como pedagogos, estimulando, auxiliando e transmitindo, para os parceleiros, os conhecimentos que julgavam necessários e adequados para o bom desempenho da produção, ora como fiscais, avaliando se os parceleiros estavam adotando suas orientações e se as atividades inerentes ao processo produtivo estavam sendo executadas em conformidade com o planejado. Além dos produtos que eram definidos pelos gestores do Projeto, a forma de gestão da unidade produtiva também estava sob vigilância dos técnicos agrícolas, sob risco de rescisão contratual.35 Para o acesso aos equipamentos necessários ao modo de produzir estimulado pelos gestores do Projeto e ao recebimento dos recursos e serviços oferecidos pelos agentes estatais, os parceleiros deviam adotar o associativismo como forma de organização econômica e política.36 No processo de implantação do PAD Rio Juma, os agentes governamentais definiram que em cada vicinal37 os parceleiros deveriam constituir uma associação ou cooperativa, que seria atendida com maquinário e equipamentos a serem utilizados de maneira coletiva pelos seus membros.38 Por conseguinte, para que a retórica da projeção estatal da sociedade desejada, não basta difundir um eldorado em si. Os recursos que o tornam viável são partes desta mesma retórica e da possibilidade de construção 34 Art. 75, Parágrafo 4º, da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. 35 Art. 77 do Decreto nº 59.428, de 27 de outubro de 1966. 36 Art. 67, parágrafo 2º, alínea “b”, do Decreto nº 59.428, de 27 de outubro de 1966. 37 Estradas que fazem a ligação dos lotes ou parcelas com a estrada principal. 38 Neves (1997b, p. 74-75), ao analisar o processo de assentamento dos assentados do Projeto de Assentamento Novo Horizonte, observa: “ Por ser uma construção intelectual qualificada pela modelagem e ressocialização, o assentado é forjado como um modo geral de ser. Sua participação no processo é formal, qualificando a demonstração de princípio. Sua identidade corresponde ao da representatividade formal, mediada pelo associativismo ou irmanação em torno de atribuídos interesses comuns. A participação associativista desempenha um papel de resolução lógica da contradição inerente à idealização de um processo de mudança que pressupões o modelado, isto é, aquele que em princípio deve receber as marcas que lhes são atribuídas”. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 179 de engajamentos duradouros ou celebrantes, mas capazes de fazer crer as apostas de deslocamentos familiares, apostas construídas mediante outras condições sociais, mas passíveis de operarem por afinidades eletivas. Considerações finais No caso em apreço, os mecanismos de indução de comportamentos acenados pelos agentes do INCRA para estimular e conduzir o processo de colonização, possibilitam apontar para a constituição de uma relação de poder tutelar, pela qual os beneficiários, os parceleiros, no sistema de crenças que suporta tais ações, mormente em contextos políticos autoritários, corresponderiam a pressupostos relativamente inerentes ao exercício estatal: a resposta relativamente adequada de criaturas dos agentes do Estado. Por isso, neste texto, privilegiei a demonstração de um dos investimentos, dos agentes estatais quando referenciados à constituição de meios para incorporar nacionalmente a região amazônica enquanto área ocupada e produtiva. E assim me posionando, enfatizei algumas das diversas regulamentações e idealizações, que diversamente foram instituídas conforme o contexto sociopolítico. Isto não significa que a pesquisa da qual este artigo é uma das textualizações, tenha apenas sido referenciada por uma transversalidade privilegiadora das ações centrais dirigidas aos espaços periféricos e operacionalizada por diversos agentes mediadores. Em Leal (2009), também abordei os modos de construção dos parceleiros diante desses constrangimentos e precariedades, todavia, por tal perspectiva analítica, constituidores de alternativas à criação de modelos próprios e práticos, diversos e concorrentes, orientados por valores outros, como o da reprodução ampliada do patrimônio familiar, tal como também acenada pela legislação, embora portadora de outros significados. A delimitação do módulo mínimo redimensionada pela grandeza quantitativa, de minifúndios no Sul para 100ha na Amazônia, já é expressiva de pontos de encontro e desencontro. Enquanto para os produtores que aderiram ao projeto, o módulo mínimo corresponde ao início de um processo de ciclo de formação do patrimônio familiar, para agentes estatais e olhares externos a essa dinâmica de reprodução social, o módulo mínimo é também o máximo ou ponto de encerramento da intervenção. Dessa discordância quanto aos desdobramentos, muitas das incompreensões sobre os processos de redistribuição de terra se alimentam, não só neste caso como também em quase todos os demais projetos de colonização ou de assentamento. Portanto, pontos de interseção e acordos são necessários para o engajamento dos agentes sociais, Antropolítica Niterói, n. 27, p. 155-182, 2. sem. 2009 180 mas as condições de colocação em prática são tão distanciadas que por vezes aparecem como produtos de valores e referências inesperadas ou indesejadas, especialmente para os agentes estatais. A importância da análise deste caso, pelo que tange à institucionalização do projeto, destaca-se ainda por ele ter sido criado em contexto de transição de elaborações de referências gerais para as políticas fundiárias – nos extertores da legitimidade dos projetos de colonização dirigida e na efervescência da elaboração da política de reforma agrária, que veio a ser regulamentada no I PNRA, em 1985. Por tais circunstâncias, os meios de aplicação de regras inicialmente valorizadas foram flexibilizados, sem que o projeto correspondesse aos ideários que promoveram os Projetos de Assentamentos. O caso revela as faces dinâmicas e relativamente contraditórias das ações estatais, desde que não se deixe cair na tentação de pensar a ação do Estado como sistema harmônico, mas na transição em jogo para o contexto estudado, da constituição de palavras de ordem e tomada de posição que contrapunham o autoritarismo a formas de participação popular e à construção coletiva da sociedade em outras instâncias de representação política e de decisão, como demonstra a afiliação centralizada ao governo federal ou localizada ao governo municipal. Abstract In the years that corresponded to the period of the Military Regime in Brazil (1964 -85), the Amazonian was target of several government projects whose guiding beginnings were the national security, integration and modernization. One of the strategies created by the government agents to reach the objectives that guided such beginnings was the formulation and implantation of the Official Politics of Agricultural Colonization, when the Amazonian region should be populated from the distribution of land portions of up to 100 hectares, for they be explored by small farmers comings of other parts of the country. In this article, I present an analysis of the investments accomplished by agents of the State in the systemization of norms to conduct of the official politics of colonization agricultural, the Project of Driven Establishment Rio Juma, created in 1982 for spokesmen of INCRA. Keywords: politics of agricultural colonization; tutelary power; Amazônia. Referências BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Coletânea de legislação e jurisprudência agrária e correlata. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2007. (Tomo I e II). 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Revista Estudos de Sociologia, São Paulo, v. 10, 2007; O “Estado punitivo” brasileiro e a “democracia representativa elitista” de Boaventura de Souza Santos. Revista CRONOS, Natal, v. 8, 2007. Endereço: Rua Virgulino de Oliveira, 215, Nova Piracicaba – Piracicaba/SP – CEP: 13.405 – 067. E-mail: [email protected]. Telefone: (019) 3413-3809. Este artigo reporta a análises e conclusões formuladas a partir de observações sobre a justiça penal brasileira e que deram origem a tese intitulada “Justiça Penal no Brasil Atual: Discurso democrático – prática autoritária”. Focalizando especificamente a cultura jurídica nacional, este texto procura associar a manutenção do autoritarismo no controle penal à tradição conservadora do campo jurídico brasileiro. Palavras-chave: controle penal; cultura jurídica; autoritarismo. 184 Atualmente podemos afirmar que o Poder Judiciário mostra-se resistente em assumir sua responsabilidade política na consolidação democrática nacional. Os fatores dessa resistência são muitos, e no Brasil, à semelhança do observado por Boaventura de Souza Santos (1996) em Portugal e em outros países, destaca-se o conservadorismo dos juristas. Esses “operadores do Direito”, como gostam de ser chamados, são formados, na grande maioria, em faculdades intelectualmente engessadas, dominadas por concepções retrógradas da relação entre Direito e sociedade. Há também o desempenho rotinizado, centralizado na Justiça punitiva e legalista, politicamente hostil à Justiça conciliatória e tecnicamente despreparado para ela. Impera, por sua vez, uma cultura jurídica cínica que não leva a sério a garantia dos direitos, uma vez que em largos períodos conviveu ou foi cúmplice de maciças violações dos direitos constitucionalmente consagrados. Conforme avalia Santos (1996), o despreparo dos juristas, combinado com a tendência de se refugiarem nas rotinas e no produtivismo quantitativo, faz com que a oferta judiciária se torne altamente deficiente, o que, de certa maneira, contribui para a erosão da legitimidade dos tribunais. É bom ressaltar, todavia que esse “despreparo” é, neste artigo, compreendido muito mais como um estratagema de uma classe que ao orquestrar um dos poderes do Estado, não o querendo desafinado aos seus interesses, dita as notas a serem seguidas. Aqui, estamos reafirmando o olhar de Pierre Bourdieu (2001, p. 211) pois esse campo profissional, caracterizado por sua trajetória social, mantém uma “cumplicidade objetiva” que na maioria das vezes é imperceptível aos olhos daqueles que não fazem parte desse universo. É certo que a prática dos agentes encarregados de produzir o Direito ou de aplicá-lo deve muito às afinidades que os unem [...] aos detentores do poder temporal, político ou econômico. A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada às formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões do mundo. Segue-se daí que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes. (BOURDIEU, 2001, p. 241-242) Repetidas vezes, no transcorrer da história, observou-se a associação dos juristas à elite dominante. De fato, durante toda a modernidade, e Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 185 mesmo antes, a posse dessa espécie de capital cultural, que é o capital jurídico, bastou para garantir posições de poder. Não há, portanto, como negar que, a partir do liberalismo burguês, o Direito se materializou cada vez mais como a ordem de uma classe. No Brasil essa ordem vai se consolidando ao longo do processo de colonização portuguesa, assentada em uma cultura jurídica que, já naquele momento, trazia as condições contraditórias da retórica formalista e igualitária, bem como da prática patrimonialista. Essa ordem mantém-se, em grande medida, nos dias de hoje, claro que com os aperfeiçoamentos que o próprio sistema capitalista introduziu no decorrer da história. Conforme atesta Eugenio Raúl Zafaroni (2002, p 77), ainda hoje o campo jurídico seleciona seus integrantes: [...] dentre as classes médias, não muito elevadas, e lhes cria expectativas e metas sociais da classe média alta que, enquanto as conduz a não criar problemas no trabalho e a não inovar para não os ter, cria-lhes uma falsa sensação de poder, que os leva a identificar-se com a função (sua própria identidade resulta comprometida). Assim, evidente que o campo jurídico tem produzido e reproduzido, ideologicamente, em diversos momentos da história brasileira, montagens políticas e representações jurídicas, que revelam uma estrutura normativa e sistematizada, com funções específicas de controle social autoritário. Daí a constatação de que o Direito brasileiro constrói sua especificidade, com base numa tradição legal definitivamente marcada por uma formação social elitista, formalista e antidemocrática (BORGES FILHO, 2001). Tem-se assim, na histórica estratificação social do Brasil, a contradição clássica entre uma elite dominante que perpetua uma ordem jurídica que a privilegia, e as classes populares submetidas à Justiça daquela elite. Essa estrutura jurídica, que no começo do século XX ainda estava sob o controle da dominação agrária, agora, face à uma nova dinâmica socioeconômica, ajusta-se mantendo seu caráter positivista e legalista. É dessa forma que se consolida a cultura jurídica no Brasil ao longo de todo o transcorrer do século XX, apegada de forma extrema à normatização jurídica e suas feições liberais-burguesas. Assim, o Direito é reduzido a um mero sistema de normas que se limita a dar sentido jurídico aos fatos sociais à medida que são enquadrados no esquema normativo vigente. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 186 Quando examinamos uma cultura jurídica qualquer, todavia, se faz necessário reconhecer todos os integrantes do campo que ela congrega. Segundo Bourdieu (2001, p. 212): [...] o campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o Direito, quer dizer, a boa distribuição ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima e justa do mundo social. Em outras palavras, o campo jurídico se apresenta como o espaço de exclusividade da interpretação da norma e, consequentemente, da resposta legal dada aos conflitos levados a ele. Esse complexo campo, que abrange também as organizações do Ministério Púbico e, parcialmente, as Delegacias de Polícia, é organizado territorial e hierarquicamente, possuindo inúmeros personagens cujas responsabilidades específicas, compreendidas internamente como exercício de micro poderes, são, em sua maioria, desconhecidas da população. De acordo com Maria Teresa Sadek (1999, p. 12), o público em geral desconhece não apenas o funcionamento desse campo como também é incapaz de distinguir os papéis e as funções de cada um de seus agentes. Pode-se afirmar que o grau de desconhecimento é universal, não havendo correlação positiva entre escolaridade e conhecimento. Ou seja, mesmo pessoas com grau universitário não possuem conhecimentos mínimos sobre o sistema de Justiça e seus diferentes operadores. Não é raro que ignorem a existência de dois agentes inteiramente distintos como o são o juiz e o promotor. O delegado de polícia sequer é visto como pertencente ao sistema de Justiça. (SADEK, 1999, p. 12) Para um corpo que deseja manter-se neutro, imparcial e distante da sociedade e que busca, ainda que de forma implícita, proteger os interesses dominantes, até porque se identifica com eles, nada mais apropriado do que a ignorância social sobre suas competências e responsabilidades. No entanto, eles próprios sentem certo desconforto em não terem reconhecida sua importância e autoridade. Segundo Sadek (1999, p. 12), inúmeras vezes, durante sua pesquisa, ouviu promotores queixarem-se de que eram constantemente indagados sobre quando seriam promovidos, tornando-se um juiz. Ou, mesmo um juiz, entre indignado e surpreso, relatando ter sido cobrado por não ter saído de seu gabinete para prender um criminoso. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 187 Na missão aparentemente esquizofrênica de garantir os preceitos da cidadania sem macular as bases dessa sociedade desigual e classista, verifica-se que a lógica interna desse campo acaba por se impor aos que nele trabalham (juízes, promotores, advogados, e serventuários da Justiça) consolidando a idéia de que justiça se faz de forma ritualística e contemplativa. Mais do que isso, dentro desse campo, além da existência do interesse comum, vale dizer, da perpetuação de uma prestação jurisdicional autoritária e excludente, há também os interesses de cada personagem do Judiciário que, em confronto, tornam a Justiça ainda mais arbitrária e incompreensível. Sobre esses conflitos internos dedicou especial atenção a socióloga Maria Glória Bonelli. Ela analisou as interações e competições profissionais entre juízes, promotores, advogados, delegados de polícia e funcionários de cartórios judiciais que lidam institucionalmente com a questão da Justiça. Tendo como referência uma comarca específica, Bonelli (1998, p. 185) pôde averiguar que “as relações entre as profissões engendram um mundo próprio, com uma dinâmica interna que lhe é peculiar, pensada como um universo com autonomia relativa frente a outras esferas, tais como o mercado ou a política”. A dinâmica dessas relações, segundo a autora, é marcada tanto pelas disputas intraprofissionais quanto pelas interprofissionais. A primeira delas refere-se à competição entre os pares e está relacionada à própria estratificação de cada ocupação, a segunda examina as disputas entre profissões que atuam em áreas de fronteira. No primeiro caso, Bonelli (1998, p. 200) verificou que os entrevistados apresentavam um estereótipo da conduta profissional que desaprovavam, para se distinguir desse modelo e construir sua trajetória de uma forma positiva. Assim, a competição intraprofissional se manifestava na denúncia, por parte dos informantes, dos comportamentos inadequados de seus companheiros de profissão qualificados como inativos, morosos, incompetentes, corruptos, violentos ou apadrinhados. Entre os diversos profissionais, a disputa ocorre em torno do poder e do prestígio. Ela verificou que no topo da hierarquia profissional (evidenciado pelas profissões de juiz, promotor de justiça e advogado) o cotidiano é tenso e marcado por disputas. Já nas profissões hierarquicamente inferiores, o que predomina é a deferência social. Os funcionários judiciais são decisivos nesse processo da construção da deferência aos juízes e promotores, “porque procuram obter para a sua posição profissional Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 188 algo desse reconhecimento do público, desse temor, desse respeito” (BONELLI, 1998, p. 210). Ela constatou que a formalidade extrapola o ambiente das audiências, se incorporando ao cotidiano do fórum com frequência. Assim, mesmo a condição de funcionário de escalão subalterno é reelaborada, para o público externo, pela criação de uma conduta de superioridade, de po der, que o funcionário incorpora à sua imagem, para caracterizar a forma como quer ser identificado. “O fato de trabalhar vinculado ao terceiro poder da República brasileira acaba marcando o tratamento que destina à clientela, ao assumir para o seu cargo a condição de autoridade, de terceiro poder, junto a quem precisa da Justiça” (BONELLI, 1998, p. 211). Em estudo antropológico, Gessé Marques Jr. (1996) chegou à mesma conclusão. Ao analisar algumas características do funcionamento interno e cotidiano dos fóruns, ele descreve sua experiência da seguinte maneira: [...] O funcionário, a funcionária-chefe e a ascensorista expressam um poder de autoridade que se aplica facilmente aos que procuram os fóruns. Apesar de não terem poder de decisão – como os funcionários graduados – eles se apropriam da ‘aura de autoridade’ que a instituição representa. (MARQUES JR., 1996, p. 31) Essas constatações contribuem para a crítica explicitada nesta tese, vale dizer, a ausência de uma dinâmica democratizante no interior do campo jurídico, ainda que seu discurso dominante proclame o contrário. Em um ambiente marcadamente autoritário como o fórum – que deveria ser mais um espaço de defesa dos direitos do cidadão – inevitável é a produção e reprodução da imagem de cidadão como aquele que pede e espera um favor por parte da autoridade à qual recorre. É sob essa perspectiva que Rosângela Batista Cavalcanti (1999) compreende a intensificação da fragilidade cidadã nesse ambiente. Diante dos intrincados caminhos do sistema de Justiça e da situação de completo estranhamento, muitos indivíduos tornam-se ainda mais fragilizados e, no espaço do fórum, acabam sendo exageradas as suas condições de apatia e despreparo. Como um ser apático e despreparado, a rigor, não consegue exercitar o seu papel de cidadão detentor tanto de direitos quanto de responsabilidades , as relações que se estabelecem no fórum frequentemente assumem um caráter de proteção e/ou descaso, por parte dos agentes do sistema, e de sensação de incapacidade, por parte da maioria dos cidadãos que procura pela Justiça formal. (CAVALCANTI, 1999, p. 47) Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 189 Sadek (1999) também relatou essas disputas internas em suas pesquisas: [...] O juiz vê o promotor como um agente que retarda a sentença, como alguém que pode dificultar o seu trabalho, já que tem atribuições que interferem no processo e, no limite, como alguém estranho à justiça e sem responsabilidade. Tais críticas tenderam a se acentuar após a Constituição de 1988, que conferiu maiores poderes ao Ministério Público, tornando-o independente tanto do Executivo quanto do Judiciário. O promotor crítico, de seu lado, identifica no juiz um burocrata do julgamento, um agente passivo, ao contrário dele, que tem o poder de iniciar uma ação. (SADEK, 1999, p. 15) De fato, promotores e delegados disputam prerrogativas funcionais, como por exemplo, a competência para presidir a elaboração do inquérito penal,1 e os juízes, por sua vez, não reconhecem os poderes constitucionais do Ministério Público além de, via de regra, ignorarem a atuação do delegado. O cotidiano desse campo é marcado pelo predomínio hierárquico e por disputas profissionais entre as ditas autoridades. Esse cenário articulado a partir de forte conteúdo autoritário, reflete a preocupação de cada ator com a construção de sua identidade profissional, autonomia e legitimidade, e retrata, ao mesmo tempo, o descaso para com aquele que mais interesse tem no serviço prestado por todos, o cidadão excluído. Todos esses conflitos internos apontam para uma Justiça pouco preocupada com as questões políticas decorrentes do processo de democratização. Essa lógica interna, com suas lutas e corporativismos, mantém presente a necessidade da ritualística, da formalidade, da neutralidade, da aura de autoridade e do próprio temor. O campo jurídico, independente da profissão, reproduz o subjugo da dominação autoritária, conveniente apenas para a ampla burguesia, ao permitir que o corporativismo e o profissionalismo prevaleçam sobre o interesse público. A disputa pelo poder simbólico no mundo jurídico é, portanto, a maior evidência de que este campo está longe de querer democratizar-se. Outras características e símbolos presentes em todo o campo jurídico evidenciam o Direito como um instrumento autoritário de dominação. O local onde trabalham os operadores jurídicos, por exemplo, destaca1 O inquérito policial é um procedimento administrativo, anterior à ação penal, mantido sob a guarda do Escrivão de Polícia e presidido pelo Delegado de Polícia (§ 4º art. 144 Constituição Federal). Trata-se de instrumento formal de investigações, compreendendo o conjunto de diligências realizadas pela autoridade policial (delegado de polícia) para apurar o fato criminoso. De natureza preparatória, o inquérito é destinado a reunir os elementos necessários à apuração de uma infração penal e de sua autoria. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 190 se como uma arquitetura simbólica impactante. O fórum sempre ocupa um lugar de destaque na organização física da cidade e sua aparência grandiosa, assim como a igreja, desperta temor e reverência. Esse traço além de revestir de importância e autoridade a imagem da Justiça, também funciona como um fator de inibição. Segundo Sadek (1999, p. 13): As pessoas não entram neste espaço público sem demonstrar recato e, mesmo, constrangimento. Estrategicamente, as salas reservadas ao juiz não são de fácil acesso. Normalmente, localizam-se no segundo andar, situação espacial que estimula a imagem do juiz como de alguém distante, fechado em seu gabinete, uma autoridade com a qual não se mantém contato, insensível a pressões. O juiz não recebe o público, só entra em relação direta com a população quando a pessoa passou para uma das seguintes categorias: vítima, acusado ou testemunha. E mesmo nestes casos, as pessoas não falam o que desejam, mas respondem às questões por ele formuladas e sempre em um tom bastante formal. A reverência devida ao juiz é estimulada pêlos funcionários que dividem com o juiz o espaço do fórum. Estes tratam o juiz com deferência, cerimônia e respeito e, em geral, dificultam o acesso do público às salas ocupadas pela magistratura. Mesmo durante as audiências, quando o juiz, o Ministério Público e as partes envolvidas finalmente se reúnem em um mesmo ambiente, as fronteiras invisíveis se mantêm intactas. Em Justiça, documentário dirigido por Maria Augusta Ramos2 no ano de 2004 e que retrata o cotidiano do sistema de Justiça Penal no Rio de Janeiro, pode-se observar atentamente a disposição dos lugares na sala de audiência. O juiz se coloca no patamar superior, uma vez que sua mesa está disposta muito acima das demais. O réu fica defronte ao juiz, mas sem poder encará-lo, pois sua visão não alcança o olhar do magistrado. O promotor, em uma mesa um pouco mais baixa e ao lado do juiz, embora esteja atuando em defesa da sociedade, parece simplesmente pactuar com o magistrado. Quase não se manifesta e, quando o faz, dirige-se somente ao juiz. A defensoria pública, que deveria estar ao lado do acusado, inclusive orientando o seu depoimento, coloca-se distante do mesmo, sequer 2 A cineasta passou vários dias filmando o transcorrer de processos criminais, acompanhando as audiências de interrogatório, oitiva de testemunhas, sentenças, e, paralelamente, a vida dos magistrados, da defensoria pública e dos réus desses processos. Nesse documentário fica explícito, para aqueles que não pertencem ao campo jurídico, todo o autoritarismo presente na Justiça Penal brasileira. Ao apresentar juízes, cujas posturas evidenciam o desejo por repressão severa ao criminoso, o documentário aponta para a idéia de que tais magistrados atuam como “guardiões da sociedade” na “guerra contra o crime”. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 191 podendo encará-lo. Ao acusado, muitas vezes, é negado um primeiro contato com a defensoria pública antes do seu interrogatório e, durante o mesmo, sequer pode observar as expressões do seu defensor. Geralmente o juiz tem suspenso na parede, atrás de si, um tradicional crucifixo3 católico, representando certo aval da “Justiça divina” para com a Justiça dos homens. Essa associação, que no passado legitimou tiranias, discriminações e perseguições; parece, ainda hoje, acenar para a resignação daquele que está sendo julgado. Além de violar a liberdade de culto religioso, essa união promíscua entre Estado e Igreja, simbolicamente, sacraliza as decisões judiciais que, como dogmas, passam a ser incontestáveis. Aliás, não é só a presença do crucifixo na sala de audiência que no remete à condenação religiosa. Como bem destaca Tamar Oliva (2006), inúmeras palavras do vocabulário jurídico-penal são heranças do vínculo secular que liga o crime à religião. Culpa, reprovação, arrependimento, perdão, confissão. Os termos parecem extraídos de uma pregação religiosa, porém aqui são trazidos em colorido algo diverso. Palavras basilares no vocabulário jurídico-penal, encontram-se na verdade todas elas insculpidas no texto do vigente Código Penal brasileiro. (OLIVA, 2006, p. 11) Enfim, esse ambiente hostil, intimidatório e humilhante, marcado por fronteiras intransponíveis, rechaça qualquer possibilidade de espontaneidade por parte das classes populares. Ao contrário, o cidadão brasileiro mais humilde ainda tem orgulho de nunca ter entrado em uma delegacia ou num fórum. Para ele, a única justificativa para estar presente nesses ambientes é ter cometido alguma infração ou estar sendo acusado de algo negativo. Não está presente no seu imaginário que é justamente nesses espaços que ele pode exercer, em parte, sua cidadania.4 Além disso, a própria fala, nesse meio, é enigmática e por vezes totalmente incompreensível para o leigo em Direito, vale dizer, para praticamente todo o cidadão que não se encaixa na definição de “operador do Direito”. Essa tendência em criptografar o mundo jurídico é até mesmo incentivada pelos próprios juristas. 3 Segundo o Tribunal de Ética da OAB de São Paulo (parecer 3048/04) “a presença do crucifixo nas salas de júri e dos advogados é um alerta para o cometimento de um erro judiciário que não deve ser esquecido. Curiosamente quem julga fica sempre de costas para o símbolo. 4 Não que seja necessário sempre a interferência Judiciário na concretização dos direitos, mas não deixa de ser uma via importante. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 192 Há, inclusive, em algumas grades curriculares de cursos de Direito, a disciplina “linguagem jurídica”, cujo objetivo é desenvolver a competência do aluno no domínio do linguajar forense e dos brocardos jurídicos. A linguagem forense constitui modalidade de linguagem técnica. Nos estudos doutrinários, nas sentenças, nos acórdãos, nas petições, nos arrazoados, utiliza-se uma linguagem específica. Advogados, juízes, membros do Ministério Público observam, nos seus escritos, uma linguagem própria, diferenciada da linguagem literária e da comum. (GONÇALVES, 1990, p. 11) Nesse sentido é a lição de Miguel Reale (1994, p. 8), considerado um baluarte no mundo jurídico, quando afirma que “os juristas falam uma linguagem própria e devem ter orgulho de sua linguagem multimilenar, dignidade que bem poucas ciências podem invocar” Ele segue orientando o acadêmico de Direito que às vezes, as expressões correntes, de uso comum do povo, adquirem, no mundo jurídico, um sentido técnico especial [...] sendo por isso necessário que os mesmos dediquem a maior atenção à terminologia jurídica, sem a qual não poderão penetrar no mundo do Direito. Por fim alerta que quem está cursando uma faculdade de Direito deve conhecer “os elementos preliminares indispensáveis para situar-se no complexo domínio do Direito, cujos segredos não bastará a vida toda para desvendar”. Como se observa, estão presentes nesse discurso a exaltação da obscuridade semântica que mantém incompreensível o campo jurídico, protegendo-o das críticas provenientes do vulgo, além da constatação de que o Direito é muito mais um segredo do que uma ciência. A ciência jurídica, como discurso que determina um espaço de poder, é sempre obscura, repleta de segredos e silêncios, constitutiva de múltiplos efeitos mágicos e fortes mecanismos de ritualização, que contribuem para a ocultação e clausura das técnicas de manipulação social. Enigmático, coercitivo e canônico, o conhecimento do direito responde em alta medida às nossas subordinações cotidianas e à versão conformista do mundo que fundamenta a sociedade instituída. (WARAT, 1996) Nessa perspectiva, o Direito tem se prestado a fechar-se em “contradições” e bloquear-se diante da sua função comunicativa. Há uma ausência de adequação entre o discurso e a prática do Direito, o que leva à sua paulatina perda de legitimidade. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 193 Isso se reflete no uso de argumentos truncados que são decorrência de uma ciência jurídica formal, hermética e pautada por dogmas puristas e ‘mitos’, que acabam, em alguns casos, por levar o Direito a uma situação de franca impossibilidade de regulação. (RAVA, 2003) Para Bourdieu (2001, p. 213) isso se observa porque, de modo diferente da hermenêutica literária ou filosófica, a prática teórica da interpretação de textos jurídicos não tem nela própria a sua finalidade; diretamente orientada para fins práticos, e adequada à determinação de efeitos práticos, ela mantém sua eficácia à custa de uma restrição da sua autonomia. Essa foi justamente a constatação de uma pesquisa feita pelo IBOPE5 em 2003. O levantamento constatou que uma parcela significativa da população passa alheia aos dizeres jurídicos em processos básicos da esfera da Justiça. Em Justiça (RAMOS, 2004), essa realidade fica também muito clara. Nas audiências retratadas evidencia-se a “muralha da linguagem”6 existente entre os juízes e o cidadão comum.7 Das audiências retratadas, conclui-se facilmente que o réu não entende a linguagem do juiz e esse, por sua vez, não compreende a realidade vivida pelo réu. Por temer não relatar direito os fatos que implicaram na sua acusação, muitas vezes a fala do réu apresenta-se confusa e apelativa; o que torna suas alegações frágeis e, em certos casos, suspeitas.Verifica-se também o pouco tempo dado ao acusado para se explicar perante o juiz. Sua fala é várias vezes interrompida e reelaborada pelo juiz que, de forma superficial, traduz para o escrevente, o relato. Aqui se observa o que Luis Eduardo Soares chama de “desconstituição do sujeito”. Comentando o documentário, ele destaca como o acusado fica invisível aos olhos do juiz. Toda a informação sobre o acusado ou sobre os fatos devem estar de acordo com o relatado nos autos, pela polícia ou pelas testemunhas, por exemplo. O juiz não procura compreender o acusado, “ele dilui sua imagem tornando-o mais uma voz a exigir sentença, objeto de um juízo reificado e desumanizado” (RAMOS, 2004). Como diz a juíza Fática Maria Clemente, “o mundo do juiz está dentro dos autos” (Ramos, 2004), sendo o acusado mero adereço, totalmente dispensável. Isso explica a dramática audiência que dá início ao documen5 Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística 6 Expressão consagrada por Vito Giannotti (2004) no livro Muralhas da linguagem. 7 Como exemplo, o que para um dos acusados é “rua”, para a juíza Clemente, apontada no documentário, vira uma ‘artéria’. Essa mesma juíza usa o termo “encrepado” para se dirigir ao réu, ao invés de simplesmente acusado (RAMOS, 2004). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 194 tário, presidida pelo juiz Roberto Ferreira da Rocha. Ele, durante quase todo o interrogatório, não enxerga o acusado que está prostrado à sua frente em uma cadeira de rodas. O acusado relata sua situação bizarra de justamente estar sendo acusado de fatos que, pela sua condição física deficiente,8 seriam impossíveis de serem praticados por ele. Mesmo o acusado relatando sua condição para o juiz, ele só se deu conta do absurdo da situação quando olhou para baixo e viu a cadeira de rodas. Como não ouviu uma palavra sequer do depoimento do acusado perguntou com certo constrangimento: “Que que você tem? Está doente? Você já está assim há muito tempo? Quando você foi preso você não estava em cadeira de rodas, estava? Você foi preso já em cadeira de rodas!” (sic). Diante da situação, não perdeu o ar de repreensão e finalizou dizendo: “A defensora pública vai analisar essa sua situação e vai pedir os direitos que ela achar que você merece” (sic) (RAMOS, 2004). Conforme Geraldo Prado,9 juiz que também participou do documentário, o modelo ideal de um processo penal numa sociedade democrática deve permitir a todos os participantes, a todos os atores, estarem numa relativa igualdade de posições. O réu de um processo deve ter condições de verbalizar a sua história, porque não há nada mais dramático para um ser humano do que ser julgado por um pedaço da sua história. É como se a nossa vida fosse um filme, mas o julgamento criminal fosse uma fotografia, ou seja, um trecho daquele filme é capturado, congelado e submetido a julgamento. Existem muitas justificativas que as pessoas podem apresentar, e o mínimo que você pode esperar de um processo em que seres humanos podem perder a liberdade é que todos os sujeitos falem, compreendam o que o outro fala e sejam compreendidos. Zafaroni (2002, p. 77) também faz essa crítica ao relatar o que ele denomina “burocratização do segmento judicial”. Ele afirma que o campo jurídico isola seus integrantes “até da linguagem dos setores criminalizados e fossilizados (pertencentes às classes mais humildes), de maneira a evitar qualquer comunicação que venha a sensibilizá-los demasiadamente com a sua dor”. Nas audiências retratadas em Justiça (RAMOS, 2004) fica claro, por exemplo, que os juízes não ouvem os relatos dos acusados a respeito das torturas policiais sofridas. Trata-se de informação que parece não 8 Sua condição contestava veementemente a acusação de que pulou o muro para invadir um domicílio. 9 Entrevista de Geraldo Prado à Carta Maior em 23/02/2005, a respeito de sua participação no documentário Justiça de Maria Augusta Ramos. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 195 ser pertinente para a apuração dos fatos e que passa, portanto, a ser desconsiderada. A violência e a corrupção policial se naturalizam e em praticamente nenhum momento os policiais são confrontados em seu depoimento. Essas armadilhas da linguagem e esses limites da fala diferenciam os papéis nesses teatros sociais que são as audiências. Esses mecanismos distinguem as classes sociais e, ao estabelecerem essas diferenças, tornam impossível qualquer julgamento justo. O acesso à Justiça, um dos pressupostos de sua democratização, se dá inicialmente pela compreensão, por todos que a ela recorrem, de seus procedimentos e resultados. Geraldo Prado destaca que essa impossibilidade de comunicação por emprego de linguagens distantes e intocáveis impede; por um lado, que o juiz compreenda o que o réu diz e, por outro, que o réu entenda o contexto da sua acusação. Imagina o que é ser o réu, saber que aquilo que você falar pode influenciar na sua absolvição ou condenação, e você não saber o que falar. Essa impossibilidade de comunicação é marca de um sistema penal discriminatório, que despreza o sujeito que vai ser julgado e não facilita nem um pouco um mecanismo de tradução da linguagem ou da fala dos acusados para o juiz. (RAMOS, 2004) Como resposta às críticas dessa natureza, a AMB lançou em Brasília, em setembro de 2005, a Campanha pela Simplificação da Linguagem Jurídica, que, segundo a mesma, pretendia aproximar o Poder Judiciário da sociedade. Embora a proposta fosse combater o uso do chamado “jurisdiquês”, sendo para tanto empreendidos trabalhos no sentido de “conscientizar a comunidade jurídica de que era necessário alterar a cultura linguística dominante na área do Direito” para que os cidadãos pudessem entender o desempenho da Justiça, o próprio presidente da AMB naquele momento, o juiz Rodrigo Collaço, destacou que o objetivo não era “defender a vulgarização da linguagem jurídica, nem estimular o desuso de termos técnicos necessários para o contexto jurídico”. Segundo o presidente “há uma série de excessos na linguagem jurídica que podem ser banidos sem prejuízo” e era nesse sentido que a campanha iria operar (UNB – Agência – 1/9/2005). Nessa fala fica uma questão sem resposta: os excessos na linguagem jurídica podem ser banidos sem prejuízo de quê? Embora o discurso não explicite, e num primeiro momento possa até fazer referência ao exercício Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 196 jurisdicional, na realidade, o que esse campo jurídico quer ver protegida é a autoridade dos seus operadores e os interesses preservados na sua atuação. Trata-se, portanto, de uma campanha que propõe apenas uma satisfação simbólica à sociedade, incapaz de comprometer os privilégios desse corpo profissional. Se é certo que a dominação incide também sobre a comunicação, e o pertencimento a um grupo ou classe social determina a diferente linguagem a se utilizar no cotidiano, o “jurisdiquês” funciona como uma forma de exclusão ativa. De acordo com Gianotti (2004, p. 98-99), “quem a usa, a menos que esteja falando com seus pares, exclui milhões de outros que não pertencem ao seleto grupo de quem sabe, de quem fala, ou de quem lê uma linguagem de poucos”. Não sem razão que a juíza Clemente se defende em certo momento de Justiça afirmando que embora a audiência seja também uma reunião de técnicos, “que falam a mesma língua”, quando ela se dirige ao acusado “fala a língua do réu” (RAMOS, 2004). Sem perceber, ela reproduz o fosso entre os personagens que ela própria nega existir. Enfim, como atesta Maria Ignez Kato, defensora pública também retratada no documentário, “a linguagem do Direito é feita para não ser compreendida, porque é uma linguagem da dominação, do controle. Assim, não pode, de fato, ser uma linguagem de acesso direto e livre” (RAMOS, 2004). Também por meio do discurso é possível observar o olhar discriminador de alguns juízes em relação aos acusados nas audiências. O juiz Rocha, durante um interrogatório relatado em Justiça, pergunta ao acusado: “Já trabalhou alguma vez?” (RAMOS, 2004). A compreensão de que o acusado é um desocupado voluntário ultrapassa seu inconsciente e escancara, na sua fala, uma discriminação de classe que em muito lembra o discurso trabalhista da era Vargas. Em outro momento a juíza Clemente ri quando um acusado lhe diz, durante o interrogatório, que tem passado fome na prisão, pois a cadeia onde se encontra não serve o jantar. No seu sorriso fica explícito, não só sua condenação moral, mas um certo prazer em verificar o suplício daquele réu. A esse respeito, o documentário também relata um fato muito frequente no mundo forense: juízes fazendo julgamentos morais sobre os acusados. No documentário, um dos acusados de receptação estava num carro com Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 197 três mulheres e vivia com uma outra mulher, que estava grávida. Em dado momento a juíza Clemente questiona o acusado: “como é que você estava num carro com três mulheres se você tem sua mulher em casa, que está grávida?” (RAMOS, 2004). O adultério do réu em nada interessa à juíza. Ela não tem poder para fazer julgamentos morais dessa natureza, mas ainda assim seu posto lhe dá essa oportunidade. Nenhum réu vai contestá-la dizendo que isso é assunto somente seu, pois certamente isso irá prejudicá-lo. Essa atitude ilustra o ar repressor que envolve muitos magistrados, como se eles fossem exemplos de virtude e moral. Nas palavras de Nalini (1994, p. 39): [...] Para preservar a imparcialidade e a independência, atributos sobre os quais se funda a segurança da Justiça humana, é vedado ao juiz conviver em normal relacionamento. [...] Cidadão acima de qualquer suspeita, deve sobrepairar entre os demais, garantido-se a tranquilidade propiciadora do julgamento isento. [...] Postura inerte, contida nos cânones ortodoxos que inspiram o traçado do perfil ideal do Juiz: o reino do Juiz não é deste mundo. Ao contrário, os inúmeros casos10 revelados recentemente sobre juízes que praticam nepotismo, desvio de verbas, superfaturamento de obras e compras, vendas de sentenças e de ordens de soltura; além de outras posturas eticamente questionáveis, têm reduzido consideravelmente a fé e confiança dos brasileiros na autoridade moral desse corpo profissional. Outro fato muito comum e que reproduz as diferenças sociais presentes no mundo forense, é a avaliação da personalidade do acusado pelo juiz que preside o processo. Ao condenar um dos acusados, Clemente aplica uma pena rigorosa, acima do mínimo legal, e justifica sua decisão dizendo ter o réu “personalidade voltada ao crime e conduta social perigosa ao convívio comunitário”. Mas como a juíza analisa a personalidade do acusado? Ela tem conhecimento especializado para isso, ou desvendar a personalidade de um indivíduo é tarefa especifica dos profissionais da área da saúde? 10 Nesse momento em que a mídia evidencia a operação Furacão, mostrando a ação da Polícia Federal ao prender juízes e desembargadores suspeitos de vender sentenças favoráveis à máfia dos bingos e caça-níqueis, é oportuno lembrar a prisão de 23 pessoas, em agosto de 2006, envolvidas em uma organização criminosa que agia na Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia, acusada de desviar cerca de R$ 70 milhões no pagamento de serviços, compras e obras superfaturadas. Entre os presos o presidente do Tribunal de Justiça de Rondônia, desembargador Sebastião Teixeira Chaves, um procurador do Ministério Público e um juiz de Direito. A Operação Dominó, assim denominada pela polícia federal, identificou que tal organização exercia influência sobre agentes do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Tribunal de Contas e do Poder Executivo. Naquele momento a polícia federal informou também que tinha indícios de que mais magistrados e membros do alto escalão do Ministério Público e do Poder Executivo estavam envolvidos na quadrilha. Sobre o assunto, confira a edição do jornal O Estado de São Paulo de 05/08/2006. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 198 O que parece um equívoco isolado é, na verdade, prática corriqueira no mundo forense. Quando se trata de avaliar a personalidade de outrem o campo jurídico cria inúmeras receitas. Em princípio, o julgador amparase no senso comum que o faz supor que podemos compreender uma outra pessoa por analogia ao nosso comportamento. Ele geralmente raciocina dessa forma, comparando as manifestações exteriores do acusado com as suas. Assim, conhecendo alguns padrões de temperamentos (por exemplo, uma predisposição agressiva) e suas formas de manifestações visíveis (discussões, ameaças etc.), ao reconhecê-los no acusado, conclui logo o julgador que, tal como a sua experiência pessoal, trata-se de uma personalidade agressiva. O juiz Aníbal Bruno (1969, p. 95), aclamado entre os penalistas, ao comentar o Código Penal, explica a avaliação da personalidade exatamente dessa forma. Diz o jurista: “o juiz tem de proceder à investigação da personalidade através das suas manifestações no mundo exterior, pela observação do comportamento habitual do sujeito, dos modos pelos quais procura, em geral, resolver os seus problemas na vida”. Ele parte do inexplicável pressuposto de que seus padrões de conduta são universais, corretos e suficientes para a determinação da personalidade do agente. A teoria jurídica dominante também não vê maiores dificuldades em analisar a personalidade do acusado. Pelo contrário, há autores que até ensinam como o juiz deve avaliá-la. Paulo José da Costa Jr (2000. p. 163) explica que: [...] se o acusado revelar uma personalidade de acentuada indiferença afetiva, de analgesia moral, deverá haver exacerbação da reprimenda imposta. Se não revelar traços de agressividade, mostrando tratar-se de meliante que visa ao lucro sem ostentar a brutalidade, deverá ser concedido ao acusado um tratamento mais benigno. Júlio Fabrini Mirabete (2003, p. 293) a define como “as qualidades morais, a boa ou má índole, o sentido moral do criminoso, bem como sua agressividade e o antagonismo com a ordem social”. Conforme destaca Fábio Wellington Ataíde Alves (2006, p. 10): A doutrina dominante deixa claro que, para o Código Penal, a acepção da personalidade deve ser compreendida em sentido vulgar. Assim, Roberto Lyra analisa a personalidade do agente fora do ambiente clínico, sem pesquisa psicológica, unicamente perquirindo sobre a participação do réu no círculo cívico, isto é, sobre a sua conduta como pai; filho; esposo; amigo; profissional etc. [...] Deste modo, dando azo à elevação Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 199 da pena-base, comumente deparamo-nos com expressões judiciais que infligem ao agente — sob o comando de uma falsa retórica da personalidade — o porte de personalidade desvirtuada; personalidade distorcida; personalidade desviada; personalidade voltada à prática delitiva; personalidade perigosa; personalidade anti-social; personalidade comprometida pela falta de valores éticos e morais; personalidade voltada para o mal etc. Todas estas expressões, extraídas da jurisprudência e muito semelhantes à legislação penal do início do século passado, exprimem a retórica da personalidade distorcida, cuja fórmula-padrão empresta importância a um modelo de perversidade e predisposição do acusado para praticar más ações. Como se observa são definições que enfatizam a moral e que não dão importância alguma à falta de formação profissional adequada, por parte do juiz, para a realização de tal avaliação. Enunciados pseudocientíficos que transformam a personalidade do acusado em um “retrato três por quatro”, permitindo ao juiz reduzí-lo a um estereótipo, evidentemente desvinculado da realidade. Há inúmeras jurisprudências que acompanham esses tropeços da teoria entendendo que “por sua natureza, a criminalidade violenta de regra já evidencia má personalidade e acentuada periculosidade do agente” (TACRIM-SP- AC Rel. Azevedo Franceschini JUTACRIM 36/310) ou ainda, mais especificamente, que “a gravidade do delito de assalto revela desde logo no agente uma distorção psicológica, rompendo os freios da moral e da religião” (TACRIM-SP AC Rel. Octávio E. Roggiero JUTACRIM 42/190). Não há como não concluir que a consideração da personalidade do acusado pelo juiz, seja pela desinformação de natureza psicológica ou pela distância mantida em relação ao homem comum do povo, explicita também o abismo que existe entre cidadania e Justiça Penal no Brasil. Outro símbolo que retrata a distinção de classes sociais no ambiente jurídico é a indumentária. Praticamente todos os funcionários da Justiça, de juízes a escreventes, vestem-se de maneira formal. Homens de terno e mulheres de tailleur desfilam pelos corredores dos fóruns entre os réus e seus familiares maltrapilhos. Os juízes, para explicitar ainda mais sua autoridade, vestem por cima de seus trajes uma toga preta.11 11 O uso da toga preta pelo juiz também nos remete ao significado litúrgico das vestimentas dos padres. Segundo a igreja católica, revestido dos paramentos, o sacerdote não é um simples membro da sociedade; é o funcionário sagrado que exerce função pública. Simbolicamente, também o juiz, ao vestir a toga, deixa de ser um particular e os seus atos passam a ser públicos, vale dizer, em nome do interesse coletivo. Entretanto, mais do que distinguir entre função privada e função pública, nos dias atuais, a permanência dessa indumentária serve muito mais para reforçar a sacralização da magistratura, cuja imagem venerável contribui na composição do ethos autoritário da profissão. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 183-202, 2. sem. 2009 200 Em Justiça chama atenção a preocupação da Juíza Clemente com sua toga. Na verdade, por ter sido promovida a desembargadora, ela ganharia uma toga nova, mais imponente. Contudo, ao ver-se diante da antiga sentiu certo apego à peça; como se nela estivesse impregnada certa parcela de sua autoridade, resolvendo, então, levá-la para o novo ambiente de trabalho. É evidente, portanto, que todo o cenário jurídico, mais a forma de se vestir e de falar de seus operadores, apresentam-se como símbolos que ostentam o poder e fortalecem a aura de autoridade desses profissionais pouco preocupados em democratizar seu campo, melhorando assim a prestação jurisdicional que oferecem. Essas observações reforçam, portanto, nosso argumento de que o campo jurídico, permeado por uma cultura autoritária, não atua em uma perspectiva democratizante, embora seus discursos digam exatamente o contrário. Desde a postura distante, imparcial e pragmática à imagem idealizada de autoridade, passando pelo reforço ao corporativismo; todos esses fatores evidenciam um campo autoritário, pouco preocupado com a democratização da Justiça e, portanto, nada responsável com a consolidação democrática nacional. Abstract This article reports analyses and conclusions formulated from comments about Brazilian Criminal Justice and that they had given to origin the thesis “Criminal Justice in Current Brazil: Democratic speech practical authoritarian”. Focusing specifically national legal culture, this text looks for to associate the maintenance of the authoritarianism in the criminal control to the conservative tradition of brasilian legal field . Keywords: criminal control; legal culture; authoritarianism. Referências ATAÍDE ALVES, Fábio Wellington. A retórica da personalidade distorcida: a personalidade do agente em julgamento. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 168, 2006. BONELLI, A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social, São Paulo, v. 10, n. 1, 1998. BORGES FILHO, Nilson. O Direito da razão ou a razão do direito: um breve histórico constitucional brasileiro. Revista Jus Navegandi, Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001. 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In: SALA do artista popular. Rio de Janeiro: CNFCP/IPHAN, 2005. p. 7-26. ISSN 14143755; Operação Xangô: uma etnografia da perseguição. Estudos Afro-asiáticos, Rio de Janeiro, 2004. ISSN 0101-546X. Os primeiros anos do século XX, época em que o governador Euclides Malta esteve à frente do poder em Alagoas, foram marcados por uma sucessão de revoltas populares, tendo aquele governador como seu principal agente. O objetivo deste artigo é reconstituir a trajetória política desse governador e identificar alguns dos elementos que culminaram na sua deposição em 1912, entre os quais a “Operação Xangô”, nome pelo qual ficou conhecido no Estado o episódio que implicou na destruição das principais casas de culto daquela capital e de municípios próximos. Palavras-chave: Euclides Malta; Primeira República; Operação Xangô. 204 Introdução O objetivo aqui é proceder à análise dos acontecimentos políticos que se desenvolveram no Estado de Alagoas, Brasil, por volta das primeiras anos do século XX, época em que o governador Euclides Malta esteve à frente do poder por mais de uma década, concorrendo para tornar o período conhecido por “Era dos Maltas”, inclusive porque, mesmo quando não esteve como representante máximo de Executivo no Estado, garantiu que pessoas ligadas a ele assumissem a administração pública, conservando, portanto o seu poder político no local. O interesse nesse empreendimento reside no fato de que, a partir de sua biografia, será possível identificar alguns dos elementos que culminaram na sua deposição em 1912, bem como na “Operação Xangô”, nome pelo qual ficou conhecido em Alagoas o episódio que implicou na destruição das principais casas de culto daquela capital e de municípios próximos. Essa análise, portanto, tem início a partir da consideração de um elemento básico da sua biografia: sua condição de bacharel, aspecto importante para demarcar as particularidades de um perfil que, naquelas circunstâncias, aciona vários símbolos de prestígio, para se fazer reconhecer. Um Bacharel anacrônico Euclides Malta inicia seu mandato como governador no dia 12 de junho de 1900, mas seu ingresso na política deu-se precocemente e por via bem comum na época, sobretudo para quem procedia de família de proprietários rurais como ele (TENÓRIO, 1997). Quero me referir ao modelo que ficou conhecido como a “praga do bacharelismo” (HOLANDA, 1995, p. 157), tendência, que teve forte influência na formação da mentalidade brasileira e que consiste numa supervalorização de certos símbolos, entre os quais destacavam-se: carreiras liberais, título de doutor e prestígio da palavra escrita. Foi por essa via que Euclides Malta enveredou pela carreira pública, já num período bem posterior à fase áurea daquele fenômeno. Portanto, pode-se dizer que tendo nascido em 1861 – no período “interessantíssimo” em que, segundo Gilberto Freyre, nasceram muitos brasileiros cujas biografias serviriam de lastro a interpretações sociológicas dessa época de transição da vida nacional –, ele seria um autêntico representante da ascensão social desse segmento (FREYRE, 1990, p. 255). A finalidade do bacharel Euclides Malta nesse período era: assegurar o poder familiar, já garantido pela tradicional condição de grandes proAntropolítica Niterói, n. 27, p. 203-223, 2. sem. 2009 205 prietários rurais e pela patente de Alferes de Milícia do seu pai – outra insígnia do privilégio de classe superior ocupando postos de comando, conservados por brancos ou quase brancos (FREYRE, 2000). Euclides Malta parece incorporar vários traços da ambivalência que marca essa passagem entre dois tempos e dois mundos distintos. Por exemplo: é um caso típico de individuo que buscou através da valorização da educação, mais especificamente da formação em Direito, o caminho para ingressar na vida política, porém, sem dispensar outros atributos, de ordem mais afetiva, adquiridos no interior de uma família tradicional e acionados como importantes credenciais na constituição de sua própria estirpe. Importante destacar a aliança com o Barão de Traipu, que alinhava uma das figuras políticas de maior peso em Alagoas naqueles primeiros anos de ajustamento da política às imposições do novo regime republicano. Convém esclarecer que Barão de Traipu, por si mesmo uma figura bastante ambígua, foi um dos últimos baluartes da Monarquia em Alagoas, e que, apesar de ter aderido às idéias republicanas, como, aliás, a maioria de seus colegas monarquistas, conservou o título nobiliárquico adquirido no regime anterior, inclusive durante o exercício do seu mandato de governador e na chefia do partido conservador no sul de Alagoas. Isso demonstra a fragilidade dos quadros republicanos alagoanos que se afirmaram em meio à sobrevivência dos velhos políticos do Império. Aliás, como na própria capital da República, sendo que nos recônditos da Federação, a elite oriunda dos quadros da Monarquia que se apresentou na produção do processo de estabilização institucional da Primeira República, não se orientava pelo discurso cientificista e pela competência técnica que marcou a geração de republicanos positivistas (SEVCENKO, 1988, p. 33). A aproximação entre o Barão de Traipu e Euclides Malta se dá através do casamento com a filha daquele, o que revela mais um traço desse hibridismo que marcou a trajetória do jovem bacharel, que se manifesta através da utilização desse antigo recurso de aliança, traço típico de sociedades tradicionais, para garantir o acesso a um regime cuja maior característica era a suposta modernização de sua estrutura política. Assim, seria em função do apoio recebido do Barão de Traipu, de quem se tornou conselheiro, que Euclides Malta teria conseguido esse acesso aos meios políticos. Inicialmente, ocupou cargos menos vistosos como – promotor publico, professor do Liceu de Penedo. Posteriormente, o primeiro mandato propriamente político, como deputado estadual, em cuja função participou da Assembléia Constituinte. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 2031-223, 2. sem. 2009 206 Gilberto Freyre, no capítulo referente à ascensão do bacharel e do mulato faz menção a essa possibilidade reservada aos jovens doutores (casamento com uma moça rica ou de família poderosa), o que garantia, inclusive a alguns moços inteligentes, mas pobres, o ingresso na carreira política. Muitos deles chegaram a ser deputados e até mesmo ministros do Império. Euclides Malta apesar de proceder de um reduto econômico mais favorável, não recusou as vantagens que uma aliança dessa natureza lhe proporcionaria, entre as quais, o papel de genro conselheiro, função tão prestigiada nesse processo de ascensão política dos bacharéis dentro das famílias, conforme atesta o próprio Freyre: Se destacamos aqui a ascensão dos genros é que nela se acentuou com maior nitidez o fenômeno da transferência de poder, ou de parte considerável do poder, da nobreza rural para a aristocracia ou a burguesia intelectual. Das casas-grandes dos engenhos para os sobrados das cidades. (FREYRE, 2000, p. 612) Assim sendo, Euclides Malta irá representar a figura que estabelece a ponte entre as estruturas arcaicas de poder, comandadas por coronéis semianalfabetos, dentre os quais o Barão de Traipu figurava como um dos menos ilustrados, e essa nova geração de bacharéis emergentes, inteligentes, mas sem cultura, que circulavam em torno da classe dominante, da qual no mais das vezes, figuravam apenas como ilustres ornamentos. No auge do atrito que mais tarde marcaria o relacionamento entre Euclides Malta e o Barão de Traipu, o jornal A Tribuna fornece-nos uma descrição bem singular deste último: “[...] era um matuto rico, mas de pé rachado, cheio de defeitos, de promodes, de antonces, de Nanje eu, etc...” (PIPAROTES, 1907, p. 1; MENDONÇA JUNIOR, 1966, p. 76-78). Outra observação a respeito convém ainda ser feita. Trata-se das formas de tratamento utilizadas pelos presidentes da província, impressas nos relatórios, falas e mensagens. O título de Doutor só aparecera, pela primeira vez, na fala que o Presidente da Província João Lins Vieira Cansansão pretendia dirigir à Assembléia Legislativa, em 3/5/1840. Gilberto Freyre, na obra já referida, afirma que só a partir de 1845, em pleno domínio do segundo Império é que os homens formados começam a ser indicados para a administração de províncias (FREYRE, 2000, p. 610). O valor argumentativo disso consiste no fato de que o grau de bacharel só será utilizado pela primeira vez nos relatórios alagoanos, em 15/4/1901, coincidentemente, por Euclides Malta. Essa tradição foi mantida nos relatórios posteriores, inclusive por seus aliados. Muitos, porém, na falta de tal titulação, lançavam mão das patentes militares adquiridas Antropolítica Niterói, n. 27, p. 203-223, 2. sem. 2009 207 por reputação. Isso nos faz relembrar as análises de Sérgio Buarque de Holanda, segundo o qual: Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de nobreza. (HOLANDA, 1995, p. 83) Euclides Malta e o “Tempo de Política”1 A “Era dos Maltas”, nome pelo qual ficou conhecido o longo período em que essa família esteve à frente da política alagoana, apresenta-se como uma ruptura à estrutura administrativa no Estado, naquele tempestuoso início da República. Para ter-se uma idéia da volatilidade que o antecedeu à frente do executivo estadual, basta conferir a relação de governadores que assumiram essa função desde a proclamação da República em 1889 até o início do primeiro mandato daquele governante em 1900. Foram 17 mandatos, exercidos em pelo menos três situações por integrantes de juntas governativas, que apesar do curto período à frente do poder, exerceram a difícil tarefa de facultar a exequibilidade da administração no Estado. No geral, os mandatos não iam além de alguns dias ou meses, sendo poucos os que o cumpriram por mais de um ano. Em apenas quatro períodos administrativos, inclusive três deles imediatamente anteriores à ascensão de Euclides Malta ao poder, a gerência dos negócios públicos pôde ser exercida por um tempo mais largo. Desse modo, na medida em que consegue cumprir os três anos para os quais tinha sido eleito, além de garantir a sua substituição pelo irmão Joaquim Paulo Vieira Malta, e reassumir depois o mesmo posto para o cumprimento de mais dois mandatos, Euclides Malta irá representar um corte no modo de se fazer política no Estado, além de servir como paradigma para as administrações futuras. Portanto, a “Era dos Maltas”, pode ser tomada, embora com cautela, como “A criação de um outro cotidiano”, que não elimina o que está dado, mas interfere profundamente na sua maneira de operar (PALMEIRA; HEREDIA, 1997, p. 170).2 1 A expressão “tempo de política” aqui utilizada para dar título a este tópico, é inspirada nas contribuições de Moacir Palmeira e Beatriz Heredia, que no texto “política ambígua” usam-na para se referir ao período específico das eleições, em que a atividade política desenvolve-se em toda sua potencialidade. É possível compreender o longo período dominado por Euclides Malta, como marcado por uma certa liminaridade, integrada por todos aqueles elementos que permeiam essa condição (PALMEIRA; HEREDIA, 1997). 2 Em artigo mais recente Moacir Palmeira amplia a noção de “tempo histórico”, relacionando-a com outras noções de “tempo” que permeiam o imaginário das populações camponesas do Nordeste brasileiro, as quais esse autor utiliza para se referir a outras situações da vida social, tais como: festas, safra, plantio, quaresma, greve ou ainda personalidades, instituições e fatos (PALMEIRA, 2002, p. 171-177). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 2031-223, 2. sem. 2009 208 No período em que Euclides ingressa definitivamente na política alagoana, o Brasil assistia à implementação de grandes transformações. O Presidente da República Campos Sales (1898/1902) deu prosseguimento e viabilidade ao projeto republicano iniciado por Prudente de Morais (1894/1898), primeiro presidente civil do novo regime e representante da oligarquia cafeeira paulista. Seu projeto político implicou na restrição dos militares no poder, encerrando assim, o ciclo militarista da Primeira Republica. Em contrapartida, favoreceu à ascensão das oligarquias civis, que apesar de já terem obtido algum destaque desde o início da República, reclamavam uma participação mais efetiva na vida política do país. Sob sua batuta, forma-se o Grande Clube Oligárquico, espécie de frente comum da qual ele, na condição de Presidente da República, torna-se o chefe de partido (CARDOSO, 1977, p. 45-47). Campos Sales prossegue com esse projeto, por um lado, consolidando a participação do núcleo republicano civil de São Paulo e, por outro, inaugurando o chamado “pacto oligárquico”, que significou a disseminação do poder oligárquico para além de suas fronteiras locais. A “Política dos Governadores”, outro nome pelo qual também ficou conhecido o mesmo pacto, propunha uma troca de favores entre o presidente e os governos estaduais. Esse é também o nome dado ao sistema, que depois de controlados os focos abertos de oposição, caberia organizar a política, de um modo tal que as “chefias naturais” – expressão direta da dominação oligárquica local – tivessem mecanismos explícitos de funcionamento. O propósito dessa nova política seria alcançar a unidade do governo, atacando o problema estadual, através da direção de uma minoria. Segundo Edgar Carone, esta representação aristocrática é o cerne do pensamento vigente, o qual defende como garantia de estabilização das atuais oligarquias no poder, o fim das oposições em favor de um maior controle do processo eleitoral sob a tutela das oligarquias estaduais (CARONE, 1975). Euclides Malta se beneficiará da ordenação política que se apresenta nesse período. Ele próprio um fiel representante em Alagoas das elites agrárias, garantirá sua posição no mapa oligárquico que se desenha por todo o país. Com tal respaldo, deitaria raízes profundas na política alagoana, pacificando os ânimos da classe agrária açucareira, evitando a polarização política entre grupos de Maceió e Penedo ou entre regiões e assegurando o comando indiscutível da política local. Nas sucessivas campanhas em que se elegeu, lançou mão do modo peculiar de fazer política de tais governadores e que tanto caracterizou esse período da nossa história: fraudes eleitorais, duplicatas e violências contra opositoAntropolítica Niterói, n. 27, p. 203-223, 2. sem. 2009 209 res, atuação marcante da figura do coronel e a presença da indefectível instituição voto de cabresto e do “curral eleitoral”. Contudo, o ato político de maior repercussão promovido por Euclides Malta ainda como governador e também como chefe do Partido Republicano de Alagoas, uma vez que o Barão de Traipu declarando estar cansado retirara-se da atividade política, deu-se por ocasião da escolha do seu sucessor, no caso seu próprio irmão, para concorrer ao cargo de Governador no pleito que se realizaria em 19/04/1903.. A participação de Euclides Malta nesse processo, já vinha se fazendo sentir há algum tempo, desde quando influencia sua bancada na elaboração de uma reforma constitucional de última hora. Pelas novas bases, a Assembléia suprimiu palavras restritivas, que inviabilizavam a eleição do seu irmão. Entre as consequências dessa manobra consta, portanto, a ruptura política com seu sogro e preceptor (Barão de Traipu). Desde o inicio do mandato de Joaquim Paulo Vieira Malta (12 de junho de 1903), exatamente pelos artifícios desenvolvidos pelo irmão, a família Malta torna-se alvo de ataques constantes da oposição, embora sem a consistência que a situação exigia. Durante esse período, tem-se a presença de uma oposição que esbravejava através da imprensa, mas aos poucos vai adquirindo força e aglutinando nomes de peso da política local, em torno de um novo partido que se autoproclamou de “o verdadeiro” Partido Republicano do estado. Esta nova agremiação reuniu um grupo de pessoas insatisfeitas e dispostas a formar uma oposição ao governo estadual. Contudo, a autonomia política do Partido Republicano em nenhum momento esteve ameaçada, a exemplo das sucessivas eleições realizadas no período. O fato de Euclides Malta manter essa superioridade política em Alagoas, pelo que ficou demonstrado nas sucessivas vitórias do grêmio sob sua coordenação, nos vários pleitos realizados, deve-se menos à presença efetiva de uma oposição combatente do que ao modo como se procediam as eleições no estado, de um modo geral: A partir da criação desse novo partido, e com as cisões que ele provocou nas hostes do antigo Partido Republicano chefiado por Euclides Malta, o debate transfere-se para a Capital Federal, onde antigos aliados, agora ocupando lugares distintos da tribuna, atacam-se a cada sessão. Os motivos vão da suposta traição do Barão de Traipu pelo seu genro, até as reformas da Constituição alagoana e a ilegalidade da eleição de Joaquim Paulo. O grau de acirramento das querelas políticas e a constante utilização por parte dos políticos alagoanos das tribunas da câmara dos Antropolítica Niterói, n. 27, p. 2031-223, 2. sem. 2009 210 deputados e da assembléia dos senadores na capital federal, entretidos na faina de esmiuçar a política estadual de Alagoas, chega a tal ponto, que os jornais do Rio de Janeiro passam a denunciar a inutilidade daquelas discussões: Cousas da Política – O chamado caso de Alagoas não tem razão de occupar a attenção do público, e menos de tomar mais tempo aos trabalhos da Câmara e do Senado [...]. O que alli occorreu nada mais é do que se tem passado nos demais estados, com as devidas excepções (Jornal do Brasil apud POLÍTICA alagoana, 1904, p. 1) Em função da composição das chapas para o triênio 1906/1909, quando chega o momento de acertar a substituição do então governador, novos enfrentamentos entre antigos desafetos reacendem-se. A renúncia definitiva de Joaquim Paulo ao cargo de governador acontece apenas 12 dias antes do pleito, no dia 31/03/1906, embora desde o dia primeiro de novembro de 1905, já se encontrasse afastado do exercício do cargo, do qual fora licenciado de sua candidatura ao cargo de juiz seccional para ir tratar pessoalmente no Rio de Janeiro, “respeitando sempre o modelo constitucional”, conforme atesta A Tribuna. Quem assume é o vice-governador eleito coronel Antônio Máximo da Cunha Rego, o qual permanecera no poder de primeiro de novembro de 1905 a 12 de junho de 1906, quando Euclides Malta assume seu segundo mandato. Esta não seria a primeira vez que bandos armados ameaçavam invadir a capital, a fim de garantir o ingresso ou a permanência de algum político no poder. Parte desse batalhão de homens era formada de detentos que vez por outra, sobretudo na semana-santa o governador do Estado, usando das prerrogativas que o seu cargo lhe conferia, perdoava o resto da pena a que foram condenados. O clima de tensão verificado na capital durante o processo sucessório é agravado pela presença daqueles “facínoras beneficiados pela munificência governamental”, que em momento oportuno e quando solicitados, concorriam juntamente com o Batalhão Policial para garantir a ordem, reprimindo qualquer manifestação contrária ao Governador ou aos chefes políticos a ele associados, conforme já insinuara o mesmo jornal de oposição (PAULO Malta..., 1905, p. 1). Depois que assumiu seu segundo mandado como chefe máximo do executivo, Euclides Malta enfrentaria outras turbulências. Ainda em 1906, pouco depois de ter assumido pela segunda vez o mandato de governador do Estado, ele manda empastelar o jornal oposicionista Correio Antropolítica Niterói, n. 27, p. 203-223, 2. sem. 2009 211 de Alagoas; o único que nos últimos três anos apresentara uma oposição mais sistemática às suas manobras políticas. Aliás, esses primeiros meses de sua administração estiveram marcados por forte tensão, em parte, devido aos boatos espalhados pela cidade de que sua cabeça encontrava-se a prêmio, como também, pelo grande número de nomeações verificadas no Batalhão Policial, motivo pelo qual a cidade viu-se tomada, alguns dias, pela presença de homens vindos do interior, sob a justificativa de garantir uma transição política tranquila e sem surpresas. No mais, este segundo mandato correu como os demais: em meio a muitas negociatas e transações de caráter duvidoso, como por exemplo, uma nova reforma na Constituição do Estado, que garantiria a Euclides Malta sua reeleição para o último e definitivo mandato, repetindo medidas semelhantes já tomadas em outros estados como Pará, Ceará, Pernambuco – onde também predominava o estilo autocrático de fazer política. Em 12 de março de 1909, Euclides Malta é reeleito, sem “o protesto sequer de um voto que discrepasse da unanimidade da votação”. A oposição, como era de se esperar e se utilizando dos recursos disponíveis, contesta e denuncia o modo suspeito como foi realizado o pleito, sem no entanto, obterem eco aos seus reclames. Durante a segunda administração de Euclides Malta, o Partido Republicano dominava quase absolutamente, tanto as cadeiras da Assembléia Legislativa, como as chefias municipais – 51 órgãos espalhados pelo estado, cuja unanimidade em favor da indicação do nome de Euclides teria garantido a constitucionalidade da reeleição. No entanto, as condições de governabilidade pareciam cada vez mais insustentáveis: No rol desses acontecimentos é que surge o movimento salvacionista, diretamente associado, em nível nacional, à campanha eleitoral para sucessão de Afonso Pena em 1910, cujo principal nome era o de Hermes da Fonseca, com o apoio fundamental de Pinheiro Machado, antigo aliado na capital da República, de Euclides Malta. Segundo Douglas Apratto Tenório, a parte crítica da questão reside no fato de que, se inicialmente as oligarquias regionais foram responsáveis pelo fortalecimento, no quadro nacional, do sistema federativo, diante desse retorno dos militares à cena política, sua presença tornou-se um empecilho aos ideais renovadores apregoados pelo candidato eleito, Hermes da Fonseca (TENÓRIO, 1997, p. 112-113). O caso mais evidente da ruptura de antigos setores oligárquicos com aqueles que ainda se mantinham governando nos estados é o de Pinheiro Machado, criador do Partido Republicano Conservador o qual congregou, ainda que provisoriamente e sem muito entusiasmo, os Antropolítica Niterói, n. 27, p. 2031-223, 2. sem. 2009 212 setores oligárquicos nos Estados. Diante do fracasso do seu projeto, Pinheiro Machado vê-se às voltas com a campanha salvacionista, à qual adere, sacrificando antigos aliados a fim de assegurar seu prestígio junto ao Presidente eleito. Foi por sua influência que Euclides Malta prestou apoio à candidatura de Hermes da Fonseca. Porém, quando a campanha antioligárquica desencadeia-se, a cabeça desse governante seria uma das primeiras a rolar. Contudo, a campanha sucessória nos estados, entre fins de 1911 e começo de 1912, assumira uma feição que não tinha como ser modificada. A candidatura do general Clodoaldo da Fonseca, filho de Pedro Paulino da Fonseca, primeiro governador republicano de Alagoas e parente do presidente Hermes da Fonseca, de cujo gabinete militar era chefe, apresenta-se como a mais concorrida naqueles tempos de retorno do militarismo. O convite para que aderisse às hostes do Partido Republicano já fora feito por Euclides Malta em suas inúmeras viagens à capital federal. Contudo, quem acabou conquistando sua confiança foram os oposicionistas do Partido Democrático e sua candidatura, contagiou diversos segmentos da sociedade, desde os coronéis do interior até as camadas médias urbanas, todos empenhadas no mesmo projeto político, qual seja, a derrubada da oligarquia maltina, atualizando em Alagoas sob o nome de “soberania”, o movimento que em nível nacional convencionara-se chamar “Salvação” (TENÓRIO, 1997, p. 114). O quadro agrava-se com o surgimento, no dia 17 de dezembro de 1911, da Liga dos Republicanos Combatentes em Homenagem a Miguel Omena, sob os auspícios de Fernandes Lima, outro importante articulador da oposição no estado, e um dos principais responsáveis pela derrubada de Euclides Malta do poder. É com o aval desse líder oposicionista que a Liga irá espalhar o terror em Maceió. Se as condições de governabilidade já se encontravam afetadas pelo clima de animosidade semeado pela oposição, com a instalação da Liga, o combate e as perseguições tornam-se mais efetivos e concretos. Eles fecharam estabelecimentos públicos, distribuíam boletins insultuosos contra os partidários do Legba,3 afugentavam inimigos políticos nas ruas e em suas próprias casas, forçando muitos deles a escapar vexatoriamente pelos fundos das residências, como foi o caso do intendente, do vice, e depois o próprio governador. A primeira vez, em fins de janeiro, quando depois de enfrentam e desarmarem a guarda do Palácio do Governo, forçam-no a também escapar pelos fundos e viajar até o vizinho Estado de Pernambuco, em 3 O significado do termo Leba ou Legba e a razão porque Euclides Malta e seus correligionários foram associados a essa entidade do panteão afro-brasileiro serão discutidos em tópico posterior. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 203-223, 2. sem. 2009 213 busca de refúgio, local em que permanece por mais de um mês, em constante contato com a Capital Federal, aguardando garantia policial para retomar o poder. No dia 10 de março, por volta do meio dia, Euclides Malta volta a Maceió, protegido por um forte aparato policial. Sua chegada é bastante tumultuada. O clima de terror se espalha pela cidade e os comerciantes assustados, cerram as portas dos seus estabelecimento. A Companhia de Trilhos Urbanos suspendeu o tráfego dos veículos e nos lugares em que o cortejo passava, entre o desembarque no Porto do Jaraguá e o Palácio dos Martírios, a população insultava a comitiva, enquanto os sinos das igrejas dobravam os finados. No mesmo dia, depois de ter assumido suas funções, Euclides Malta sofre novo revés. Às cinco e meia da tarde, depois de percorrerem as principais ruas do centro, uma massa popular que integrava o Centro Cívico Alagoano PróClodoaldo, concentra-se na praça dos Martírios em frente ao Palácio do Governo, onde seria realizado um meeting. Tendo resistido à intimação dos soldados do 8º Batalhão, para que interrompessem aquele comício e à consequente ordem de prisão contra suas lideranças, os manifestantes entraram em confronto com a força policial, composta naquela ocasião por não mais que 80 soldados. Resultou da troca de tiros, vários feridos, entre eles o Tenente Brayner, nomeado por Euclides Malta para o cargo de secretário do Interior e que viria a falecer dias depois; o Major Jatobá e o auxiliar do comércio João Carlos de Albuquerque. Contudo, causou maior comoção entre os manifestantes a morte do poeta e orador Bráulio Cavalcante, jovem liderança oposicionista de Alagoas, recentemente chegado a Maceió poucos dias após ter concluído o bacharelado em Ciências Sociais e Jurídicas na Faculdade do Recife e cujo funeral foi acompanhado por cerca de 8 mil pessoas, transformando-se num grande ato de protesto. Na manhã do dia 13, um dia após a tão aguardada eleição, quando o resultado já estava mais ou menos definido e a vitória dos candidatos oposicionistas, assegurada, o Revmº Manoel Lopes, preclaro diocesano, dirigiu-se ao Palácio dos Martírios onde convenceu Euclides Malta a renunciar. Só então a vida voltou ao normal na Capital. O “papa do Xangô alagoano” e suas incursões pela Religião Os centros espíritas, como também eram conhecidas as casas de culto afro-brasileiros de Alagoas, no período da administração de Euclides Antropolítica Niterói, n. 27, p. 2031-223, 2. sem. 2009 214 Malta, nutriram-se de uma certa complacência por parte do poder público. Da capital e de outros municípios do interior, vez por outra, eram encaminhadas às autoridades competentes, solicitações para que fosse garantida a realização dos cultos, bem como a integridade física dos seus praticantes, constantemente ameaçada pela população local. Ao que tudo indica, o governador de Alagoas, parece ter dedicado bastante atenção a essas práticas, ou pelo menos, fez valer as constituições federal e estadual, garantindo através dos seus destacamentos, o funcionamento desses cultos, razão pela qual talvez, tenham surgido as acusações que mais tarde os adversários políticos fariam a Euclides Malta, acerca de sua suposta ligação com os terreiros da cidade onde, segundo se dizia, ele buscava proteção para se manter por tanto tempo no poder. As notícias sobre a represália a esses cultos no período, por parte da polícia, eram incipientes. A primeira vez em que se constatou uma prisão, tendo por motivação a acusação de “bruxaria”, ocorreu em meados de 1901. Tem-se assim, a punição de uma determinada atividade mágicoreligiosa, considerada marginal desde os tempos coloniais, mas que, a partir da República, com a sua regulamentação pelo Estado, gerou um embate sobre a legitimidade do combate e da perseguição a elas. A partir do caso em tela, a acusação que recai sobre a acusada, “uma tal” de Santina, enfatiza muito mais a exploração da prudência e confiança alheias, do que a própria feitiçaria. Talvez uma tentativa de mascarar o objeto real da detenção, amparando-se no dispositivo legal tanto do Código Penal como da Constituição. Em momento posterior, poucos dias depois de Euclides Malta ter transferido temporariamente sua residência para o bairro do Alto do Jacutinga, usando como justificativa o tratamento de saúde de um dos seus filhos, os jornais da Capital noticiaram a devassa a um terreiro existente naquelas cercanias, resultando também em detenções. Bico Doce é mestra de Maracatu, solemnidade que se effectua quando há necessidade de falar com o pae, que é o nome da divindade acceita pela gyria boçal della e de seus frequentadores. A Casa estava cheia de crentes e é ornada de búzios, de latas, de cabeças (osso) e quanta coisa sugestiva pode obter aquella gente ignara e parva.O Sr. Capitão Braz Caroatá pôz termo aquela joça, mandando para a cadeia treze devotos, sendo sete homens e seis mulheres entre as quaes a celebre Maria Bico Doce. Temos informação de que o santo tem estado alli na cabeça de muita rapariguinha, durando no máximo três a quatro dias, em que ellas ficam sonambulas para fins que reclamam seria providencia contra a tal bico doce e seus cúmplices. (POLÍTICA alagoana, 1904, p. 1) Antropolítica Niterói, n. 27, p. 203-223, 2. sem. 2009 215 Supõe-se ser um período de muita movimentação no calendário das celebrações religiosas, uma vez que naquela data celebravam-se em Maceió várias festividades, entre as quais, o novenário de São Gonçalo, cujo início coincidiu com a data das detenções. É possível que a festa organizada por Bico Doce já viesse se desenrolando há alguns dias, como é comum em alguns terreiros mais tradicionais, que reservam às vezes uma semana para comemorar o santo da casa. Existem indícios de que o lugar onde se realizavam os festejos era mesmo uma casa de Xangô e sua existência já devia ser do conhecimento das pessoas do local, o que tornava impossível escapar ao controle das autoridades policiais. Isso leva a crer que seu funcionamento contava com a aquiescência dessas autoridades. A reprimenda sofrida naquele fatídico ano de 1904 se dá, talvez em função do incômodo que porventura os atabaques estivessem causando, interrompendo dessa maneira o sossego que a família de Euclides Malta buscou no bairro. A partir de 1903, embora por um curto período de tempo, tornam-se comuns os pedidos de autorização para o funcionamento, senão de casas propriamente de culto religioso, pelo menos de certo tipo de divertimento que guardava com aquelas práticas religiosas inúmeras aproximações. Trata-se dos folguedos populares das mais diversas espécies como fandangos, congos, reisados, presépios, marujada e o próprio maracatu que dentre todos, era o que mais se aproximava do Xangô, tanto pelos aspectos estéticos e rítmicos, como pelo fato de seus organizadores serem também pessoas ligadas àquela religião. Tais situações remetem a uma característica básica do relacionamento entre o poder oficial, através dos seus aparelhos de controle, e os grupos populares responsáveis pela organização dos folguedos, o qual se encontra marcado por uma certa ambiguidade. Interesses forjados culturalmente talvez expliquem essa aparente contradição presente na classificação dessas práticas religiosas, bem como na sua receptividade ou negação, o que resulta, por um lado, em atitudes hostis para com manifestações que em outras situações são legitimadas e permitidas.4 Assim, fica a impressão de que com exceção das prisões relatadas, aquelas práticas religiosas parecem ter se beneficiado da benevolência do governador que pode ter pago um preço muito alto pela associação do seu nome com essas casas de culto. Contudo, não é de todo descabido pensar que um político daquela envergadura, na posição de representante máximo do poder estadual, fizesse suas visitas às casas de cultos 4 Sobre essa “esquizofrenia” em relação às religiões afro-brasileiras e seus desdobramentos seculares, cf. Fry (1998, p. 439-471); Dantas (1988); Maggie (1992). Antropolítica Niterói, n. 27, p. 2031-223, 2. sem. 2009 216 africanos ou que consultasse os orixás sobre os destinos reservados à sua carreira eleitoreira. Aliás, esse refluxo da política sobre a religião já foi bastante explorado por inúmeros estudiosos em outras localidades (Cf. RIO, 1976; RODRIGUES, 1935). Alguns meses após a posse de Euclides Malta como senador, em 8 de maio de 1904, da própria tribuna daquela Câmara, na capital federal, surgem as primeiras insinuações acerca de supostas associações do exgovernador com integrantes dos xangôs de Alagoas, conforme se pode depreender da polêmica envolvendo o nome de dois funcionários do Estado levados por ele em sua comitiva para o Rio de Janeiro. Um deles era mais conhecido pela alcunha de Manoel Inglês e na crônica alagoana é descrito como “negro retinto, ótimo cozinheiro, residente na Ladeira do Brito e dono de afamado terreiro de Maceió” (LIMA JUNIOR, 2001, p. 154). A ligação desse antigo servente da Recebedoria do Estado com o ex-governador de Alagoas seria bastante alardeada através dos órgãos oposicionistas, Jornal de Debates e Correio de Alagoas. Contudo, a quantidade de material disponível sobre o assunto é irrisória, o que impede discernir a veracidade de certas acusações. Além da matéria de 1906, que trazia as associações mais diretas entre o governador e as casas de culto, e outras menos enfáticas, quase nada se falou a respeito. Interessante notar que, mesmo no auge dos ataques desferidos pelos adversários políticos de Euclides Malta, quando inclusive a campanha sucessória de 1911 já estava definida, essa associação quase não aparece. Durante todo o segundo semestre daquele ano, o jornal Correio de Maceió dedica todos os seus editoriais a atacar as últimas medidas administrativas de Euclides Malta, e até mesmo desencavando manobras políticas realizadas em gestões anteriores. As referências aos terreiros de Xangô aparecem muito sutilmente, mais especificamente, em dois momentos, na coluna intitulada “Boatos e Boatinhos”, onde o articulista, “Pretinho dos Boatos”, no auge das acusações contra aquele Governador, escreve: “É voz corrente [...] que, quando o Dr. Euclides Malta sente qualquer dificuldade política, nota-se que funcionam ou trabalham todas as casas de Xangô, existentes nesta cidade” (BOATOS e boatinhos, 1911, p. 2). Na mesma coluna, dias depois, o assunto voltaria a baila: Fala-se [...] que sua majestade não desceu de seus aposentos no domingo e hontem; está acamado e a caldos de galinha; que alguns esculapios reaes consultados, diagnosticaram tratar-se do mal triste governamental e receitaram emplastos adhesivos. [...] que os xangôs trabalharão todos os domingos, o que quer dizer: a oligarchia está moribunda... (BOATOS e boatinhos, 1911, p. 2) Antropolítica Niterói, n. 27, p. 203-223, 2. sem. 2009 217 Somente o Jornal de Alagoas na série de matérias intituladas “Bruxaria”, escritas por ocasião do Quebra de 1912, estabelecera de modo mais direto essa ligação. Em inúmeras passagens assistimos essa ligação sendo explicitamente indicada. Esse jornal traz inúmeras denúncias de que a frequência do governador a essas casas ia além da simples curiosidade ou como forma de prestigiar, com fins eleitoreiros, as atividades ali desenvolvidas. Sabia-se que entre o nefasto governo do Sr. Euclides Malta e as inúmeras casas de feitiçaria barata, profusamente espalhadas pela cidade, existia a mais estreita afinidade. Sabia-se que a grande força em que o inepto oligarca apoiava o seu governo era o Xangô, e com essa confiança no fetiche ignorante mantinha em completa debandada todos os outros poderes orgânicos do Estado [...] Sabia-se que o Sr. Euclides Malta e os áulicos palacianos assiduamente frequentavam esses antros endemoniados, que entre nos, para escarneo de uma população inteira, constituiam ameaçadores e perigosos focos de indolência e prostituição. (JORNAL de Alagoas S, 1912, p. 1) No período em que se verifica a destruição das casas de Xangôs de Maceió, o terreiro supostamente frequentado por Euclides Malta era o da Tia Marcelina, situado na antiga rua da Aroeira, nas imediações da atual praça Sinimbu. Esse teria sido um dos primeiros focos das perseguições realizadas pela turba enlouquecida, ainda no primeiro dia de fevereiro, quando as suas instalações foram invadidas por mais de quinhentas pessoas, segundo o jornalista do Jornal de Alagoas que se encontrava no local, na ocasião. Foi num dos aposentos dessa casa, mais especificamente no que se convencionou chamar de Peji, que foram encontrados retratos que atestaram essa ligação entre o Governador e os xangôs: Dizia-se que o ‘Xangô’, o pupilo do Sr. Euclides Malta, trabalhava por ordem deste para que morressem antes das respectivas eleições os intemeratos Cel. Clodoaldo da Fonseca e o Dr. Jose Fernandes de Barros Lima [...]. Em muitas dessas casas foram encontrados documentos preciosos que a sofreguidão do povo destruiu e nos quartos reservados e escondidos as vistas dos profanos, ardiam velas em redor de figuras grotescas que eles fantasiavam ser o Cel. Clodoaldo da Fonseca ou o Dr. Jose Fernandes. Debaixo das vestes de um ‘leba’ ídolo com chifres, foi encontrado um retrato do Cel. Clodoaldo da Fonseca, virado de cabeça para baixo, como refém de futuros acontecimentos. [...].Um bode sacrificado a ‘Oxalá’ tinha pendurado no pescoço o retrato do Cel. Clodoaldo da Fonseca Antropolítica Niterói, n. 27, p. 2031-223, 2. sem. 2009 218 e esse bode, entre acaçás, moringas, pratos, moedas de cobre e outros ingredientes estava destinado a ser enterrado na praia. Em outras foram achados dois retratos do Cel. Clodoaldo e do Dr. Fernandes Lima, sob um montículo de barro fedorento e aluminado por quatro velas de sebo.Eis todo o cortejo bestial que cercava e prestava mão forte ao Governo do Sr. Euclides Malta. (JORNAL de Alagoas, 1912, p. 1) As acusações contidas nas matérias publicadas no referido jornal, referemse ao período que culminou com a campanha persecutória contra uma possível permanência de Euclides Malta no poder. O epíteto de Leba a que elas se referem e que recairia sobre Euclides Malta e seus correligionários, deve porém, ser buscado numa versão mais plausível, no caso, um livro de crônicas Alagoas Pitoresca, escrito por Edu Blygher, onde é relatada a situação em que o governador ficou conhecido por aquele designativo: Chico Foguinho, o pioneiro dessa seita entre nós, nos primeiros passos para a sua constituição foi a Palácio, acompanhado dos seus irmãos Japyassu, Cesário Thompsom, Chico de Teça e vários outros crentes, [...] e convidaram o Governador, para honrar com a sua presença, a sessão inicial dos ofícios inaugurais do culto aludido. Euclides, dentro do seu velho princípio, em virtude do qual, melhor seria estar bem com todos, do que ter alguém ou alguma coisa que lhe pudesse fazer algum mal, aceitou o convite e lá se foi para a tal inauguração do Xangô do Foguinho, na rua Santa Maria. Em lá chegando, Japyassu, como que introdutor diplomático e palavra passada com a irmandade, aclamou o seu chefão Euclides, como representante máximo de Deus Leba, ou seja, o Papa do Xangô alagoano. Euclides meio embaraçado com a surpresa, recebeu, todavia, aquela honraria, como uma simples palhaçada e com sua proverbial bondade e indiferença a uns tantos preconceitos sociais, dentro sempre do seu inseparável princípio já anunciado [...] submeteu-se ao ‘Beija mão dos fiéis’, coroou os santos, desde o maior ao menor e ao terminar toda essa cerimônia ritual, ao retirar-se, chamou Chico Foguinho e toda a corja macumbeira e disse-lhes: Bem, está tudo certo e faço votos pela felicidade de todos vocês, mas eu os advirto de que, acima desse tal de papado está o meu poder secular. Em caso, pois de conflito entre os dois, podem ficar certos, o papa de vocês desaparece, para ficar o governador zelando pelo bem estar do povo que governa. E, outrossim, declaro, ainda que para evitar massadas e nova visita ao templo xangoriano, como papa não devo andar muito a mostra, de modo que, Antropolítica Niterói, n. 27, p. 203-223, 2. sem. 2009 219 sem arredar o pé do vaticano farei de lá, tudo que julgar necessário aos interesses de vocês. E retirou-se com grande séquito de papalinos [...]. [...] E está aí, salvo melhor juízo, a origem do lebismo nas Alagoas. Só tempos depois do Euclides fora do Governo, é que veio ele saber dessa história do seu papado e da razão por que seus amigos eram chamados Lébas...E ao pôr-se ao par de tudo isso, dando uma gargalhada, declarou: ‘nunca tal coisa se deu na minha vida, e nem nunca sequer, por curiosidade, entrei nessas casas de macumbas e feitiçarias’[...] E como estas, foram muitas acusações que lhe fizeram. (BLYGHER, 1951, p. 12-14) Este é sem dúvida o depoimento mais extenso encontrado sobre a suposta ligação de Euclides Malta com os terreiros de Xangô de Maceió, embora sua utilização deva ser feita com cuidado, por assumir em suas últimas linhas a forma de uma defesa que se tornou recorrente entre os tinham apreço pelo ex-governador, os quais tentaram livrá-lo do estigma de macumbeiro que o perseguia. Essa contestação sempre se apresenta quando o objeto dos ataques é alguém de grande projeção nos meios políticos, o que não significa dizer que as suspeitas levantadas sejam totalmente descabidas ou exclusivas de uma época. Sendo ou não fidedignos tais relatos, é o fato de estarem associados à figura do então governador que torna as casas de culto vulneráveis à devassa que se inicia naquele fatídico 2 de fevereiro. Esse período, portanto, coincide com uma mudança na direção dos ventos. Os tempos não eram mais os mesmos. A tranquilidade daqueles dias, nos quais a realização dos toques nos terreiros se dava de forma corriqueira, com a aprovação das autoridades locais, estava com seus dias contados. A situação política exigia cautela e moderação, já que o papa do Xangô alagoano, grande protetor daquelas casas achava-se afastado de suas funções governamentais. Porém, obrigação com orixá é coisa sagrada e quando entra na cabeça do devoto, não tem cristão que a demova. A vingança veio a cavalo e abateu-se sobre aquelas casas como uma tempestade. Os pais e mães de santo de Maceió pagaram caro pelas suas alianças. Nenhum deles pode rogar a proteção dos orixás e se o fizeram, estes não lhes valeram. Quando ecoou o grito de guerra, “Quebra!”, os “cabras” da Liga que a essa altura não deviam obediência a qualquer autoridade, nem terrena, nem sobrenatural, caíram com toda sua fúria sobre os terreiros. Os primeiros a serem atingidos foram aqueles que se localizavam nas proximidades da sede da liga. A “súcia” enfurecida entrava porta adentro quebrando tudo que encontrava pela frente, fazendo jus à determinação do líder, e batendo nos filhos de santo que se demoraram na fuga. DiverAntropolítica Niterói, n. 27, p. 2031-223, 2. sem. 2009 220 sos objetos sagrados, utensílios e adornos, vestes litúrgicas, instrumentos utilizados nos cultos, foram retirados dos locais em que se encontravam e lançados no meio da rua, onde se preparavam grandes fogueiras. Entre rosários e colares de ofás, colocava-se também imagens de santos representativas do Leba ou foram expostas a zombaria durante o cortejo que ainda percorreria outras casas de culto situadas nos arredores. A procissão errante, composta de quase 500 pessoas invadiu os recintos ainda em atividade, transformando aquela manifestação num verdadeiro carnaval, formato que certas revoltas populares assumem em algumas ocasiões históricas. Móveis e utensílios eram queimados no próprio lugar onde se encontravam, enquanto outros tantos paramentos e insígnias usados nos cultos eram arrastados para fora dos terreiros, para arderem na grande fogueira montada. Na confusão, alguns dos filhos de santo conseguiam escapar. Os que insistiram em permanecer no local sofreram toda sorte de violência física. Muitos dos objetos utilizados pelos filhos de santo nos cultos daquela casa perderam-se ou foram desviados em função do seu valor econômico, como pulseiras e braceletes de prata, e anéis de ouro cravejados de pedras semipreciosas, cujo paradeiro até hoje se desconhece. Outros objetos como esculturas e fetiches foram conservados e conduzidos para a sede da Liga dos Republicanos Combatentes, para serem expostos à visitação pública. Com alguns dos instrumentos que minutos antes serviam ao embalo dos cultos e uma revoada de alfaias exibidos nas extremidades de varas, a turba percorreu inicialmente algumas ruas da Levada, em direção ao centro da cidade, agregando em seu cortejo novos adeptos, atraídos pelo ruído desusado e gargalhadas zombeteiras, confiante de que se tratava de uma das prévias do bloco dos Morcegos em adiantada hora da noite. A presença de Manoel Luiz da Paz à frente daquele cortejo, com suas indefectíveis muletas, atestava a identificação da agremiação. Depois de terem percorrido os principais xangôs do centro da cidade, muitos combatentes já cansados de tanta devassa retornaram à sede da Liga, acompanhando o presidente da entidade, para depositar os objetos apreendidos durante a devassa, que seriam expostos à visitação pública por dias. Os demais manifestantes que residiam em áreas mais afastadas da cidade, sem dispor dos bondes que àquela hora já tinham interrompido seus serviços, iam por conta própria estendendo a quebradeira a esses locais mais remotos, enquanto se deslocavam para suas casas. Confiantes na falta de policiamento da cidade, decorrente do grande número de deserções na força pública que compunha o Batalhão Policial verificado Antropolítica Niterói, n. 27, p. 203-223, 2. sem. 2009 221 nos últimos dias, iam perturbando o sossego dos moradores das ruas por onde passavam com gritos e exclamações sem termo, apavorando os donos de xangôs e obrigando-os a escapar na calada da noite para lugar incerto, deixando para trás, objetos sagrados que não podiam ser conduzidos em sua fuga. Durante todo o fim de semana prossegue a investida aos terreiros espalhados pela cidade. Na sexta-feira da semana seguinte, morria no Rio de Janeiro o Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores. Em sua homenagem o Presidente da República baixou um decreto adiando os festejos carnavalescos para o mês de abril seguinte. O povo, no entanto, não cumpriu a determinação do executivo, brincando os dois carnavais. Na época, o jornal carioca A Noite satirizou o episódio, publicando em suas páginas os versos seguintes: “Com a morte do barão/ tivemos dois carnavá/ ai que bom, ai que gostoso/ Se morresse o ‘marechá’”, para se referir ao Marechal Hermes da Fonseca, Presidente da República. É possível que em Maceió, na mesma época, a população tivesse evocado esses versos, acrescentando à quantidade de brincadeira da glosa original, mais um carnaval que eles haviam brincado uma semana antes. Abstract The first years of the 20th century in the Governor Euclides Malta was ahead of power in Alagoas, were marked by a succession of popular, having one Governor as its main agent. The purpose of this article is the path it Governor and identify some of the elements that culminated in its deposition in 1912, including the “Operation Shango” by which was known in the Alagoas episode involving the destruction of the main houses of worship that capital and municipalities. Keywords: Euclides Malta; First Republic; Operation Shango. Referências BLYGHER, Edu. Alagoas Pithoresca. Maceió: Imprensa Official, 1951. BOATOS e Boatinhos. Correio de Maceió, Maceió, ano 6, n. 201, p. 2, 11 dez. 1911a. BOATOS e Boatinhos. Correio de Maceió, Maceió, ano 6, n. 203, p. 2, 14 dez. 1911b. BRUXARIA. Jornal de Alagoas, Maceió, ano 5, p. 1, 04 fev. 1912. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 2031-223, 2. sem. 2009 222 CARDOSO, Fernando Henrique. Dos Governos Militares a PrudenteCampos Sales. In: FAUSTO, Boris (Org.). História geral da civilização brasileira: o Brasil Republicano. v. 3. São Paulo: Difel, 1977. CARONE, Edgar. A República Velha. São Paulo: Bertrand Brasil, 1975. 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Antropolítica Niterói, n. 27, p. 2031-223, 2. sem. 2009 RESENHAS BARROS, Benedita da Silva et al. (Org.). Proteção aos conhecimentos das sociedades tradicionais. Belém: Centro Universitário do Pará – CESUPA: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2007. 341 p. Bruno C. Brulon Soares* * Museólogo. Mestre em Museologia e Patrimônio. Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista do REUNI vinculado ao Departamento de Antropologia. Pesquisador do Laboratório de Educação Patrimonial (LABOEP) nesta mesma universidade. Email: <[email protected]>. Tel.: (21) 2609-6184. As instituições e os pensadores que se dedicam ao estudo da preservação dos saberes tradicionais e do patrimônio cultural em geral, no Brasil, hoje, representam um conjunto heterogêneo de agentes e pontos de vista que envolve simultaneamente a academia e as entidades governamentais. O livro Proteção aos conhecimentos das sociedades tradicionais, organizado por Benedita Barros, Claudia Garcés, Eliane Moreira e Antônio Pinheiro, é composto por 19 trabalhos de autores de diferentes nacionalidades que tratam do contexto político, jurídico e cultural que envolve a proteção dos saberes ameaçados de determinados grupos na América do Sul, e analisam como as discussões na região se relacionam com o cenário internacional. Os textos que constituem esta coletânea são resultantes dos trabalhos apresentados no Seminário Internacional “Proteção aos Conhecimentos das Sociedades Tradicionais”, realizado em Belém, no Pará, em novembro de 2005 – evento representativo dos complexos debates acerca da temática proposta, tendo sido realizado a partir da parceria de instituições que historicamente vêm estabelecendo vínculos de naturezas variadas com o contexto discutido, entre elas o Centro Universitário do Pará (CESUPA), o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e o Instituto Amazônico de Pesquisas (IMANI) da Universidade Nacional da Colômbia. As visões expostas tiveram como ponto de partida uma concepção da proteção dos conhecimentos tradicionais que se autoapresentou como ampla, buscando uma abordagem não fragmentada e indo além, portanto, do enfoque dos Direitos de Propriedade Intelectual (DPI) e da Convenção sobre a Diversidade Biológica 228 (CDB), que, como relatam alguns dos autores, enfatizam a proteção aos conhecimentos associados à biodiversidade visando a garantir aos seus detentores uma repartição que possa ser pensada como “justa” – para quem? – e “equitativa” – com base em quê? – dos benefícios oriundos da utilização destes conhecimentos. Assim, os primeiros textos apresentados partem do contexto internacional em que são concebidas políticas percebidas como universais – ou universalizantes – para se estabelecer, nas diversas localidades, aquilo que pode ser entendido como “justiça” e “igualdade” nos variados embates políticos. No texto de Teodora Zamudio Conocimento tradicional en el ámbito internacional, vê-se claramente como vem se desenhando uma política internacional que pretende ser encampada pelos governos nacionais, e que promove a noção de conhecimento tradicional como bem a serviço da humanidade – e, logo, suscetível de ser assimilado ao mercado do Ocidente, obedecendo a suas leis próprias. As disputas locais por este valioso patrimônio de grupos que, em geral, não reconhecem o Estado em que territorialmente encontram-se inseridos, tornam-se internacionais no alcance do interesse que despertam. Como é apontado no artigo de Teodora Zamudio, cabe a comunidades indígenas e ao movimento indígena internacional a tarefa de interpretar os processos de elaboração normativa dos quais estes grupos são comumente alienados. Por exemplo, como explica a autora, graças à iniciativa do movimento indígena internacional, o Convênio sobre a Diversidade Biológica (CDB) está sendo interpretado sob uma perspectiva tendente a integrar os “povos indígenas” como sujeito diretamente interessado em todo o processo relativo ao acesso e à utilização de seu conhecimento tradicional. Os casos narrados acerca do conhecimento de grupos indígenas no Brasil ou em países vizinhos são pensados por grande parte dos autores em relação às diretrizes internacionais que, em geral, os definem e definem os modos de apropriação de sua herança pela ótica do mercado. No texto Regime internacional de proteção dos conhecimentos tradicionais: é possível chegar a um consenso?, Eugênio Pantoja lembra que ameaças como a da biopirataria – na forma do registro do princípio de recursos biológicos brasileiros por empresas de países estrangeiros – torna a questão da proteção dos conhecimentos tradicionais iminente para regiões essencialmente diversas como a Amazônia. Por meio da dinâmica da apropriação indevida do patrimônio, aquilo que é da esfera local é internacionalizado ao lhe ser atribuído valor de mercado. Mas como permitir que os pequenos produtores dos grupos que detém estes saberes em disputa e as empresas obtenham lucro conjuntamente e de forma ‘sustentável’ – Antropolítica Niterói, n. 27, p. 227-232, 2. sem. 2009 229 ambiental e socialmente? Pantoja questiona se seria realmente possível chegar a um consenso sobre um regime internacional de proteção dos conhecimentos tradicionais. Os conflitos são ainda mais complexos quando a diversidade legal é colocada em debate, na medida em que se torna flagrante no relato de alguns dos autores o paradoxo entre uma região em que países próximos e que apresentam características comuns não possuem um marco jurídico regional para regular o assunto e, atuando como uma força que se impõe muitas vezes verticalmente neste cenário fragmentado, o mercado global busca alcançar a formulação de parâmetros universais para gerir os impasses e facilitar o acesso aos conhecimentos dos grupos que vivem fora dele. Para Pantoja, uma possível solução se daria através da contribuição de legislações regionalizadas que contribuiriam para a construção de uma pirâmide da base para o topo, e não o inverso como vem sendo feito em muitos dos casos. Claudia López Garcés, no texto Proteção aos conhecimentos das sociedades tradicionais: tendências e perspectivas, aponta que as relações assimétricas entre sociedades tradicionais e as empresas transnacionais, que caracterizam, ainda hoje, os processos de acesso e intercâmbio de conhecimentos, colocaram em discussão a necessidade de estabelecer mecanismos jurídicos que regularizassem essas relações. Segundo ela, é possível afirmar que os conhecimentos tradicionais são aqueles produzidos pelas sociedades possuidoras de traços culturais específicos que as diferenciam das sociedades nacionais em que estão imersas; estes conhecimentos constituem sistemas dinâmicos que se atualizam constantemente. As duas afirmações, entretanto, denotam a possibilidade de uma série inesgotável de ambiguidades e paradoxos que definem a complexidade das abordagens ao tratarem destes conhecimentos objetivamente. Traçando historicamente o desenvolvimento dos debates sobre o tema, a autora lembra que é a partir da década de 1990 que a discussão sobre a proteção dos conhecimentos tradicionais se viu atrelada à necessidade de proteger os recursos genéticos como patrimônio natural dos países em desenvolvimento. Ela recorda, ainda, que, até o início desta década, a legislação internacional considerava os recursos naturais e os conhecimentos associados como patrimônio da humanidade, o que garantia o livre acesso para quem desejasse utilizá-los, e que resultava numa situação desfavorável para as pessoas que, na prática, os detinham e deles já faziam uso. Mas, como ela mesma não deixa de apontar, até o momento, apesar das políticas que buscam estabelecer relações classificadas como harmônicas e mecanismos de compensação em relação a estes povos, Antropolítica Niterói, n. 27, p. 227-232, 2. sem. 2009 230 é o enfoque do mercado que tem predominado nas discussões sobre a necessidade de proteção destes conhecimentos que vêm se apresentando de variadas formas, como produtos, patrimônios ou mercadorias. Como lembra Edgar Bolívar em seu artigo “La naturaleza”a proteccíon de los saberes tradicionales: el caso del Yoco entre los Airo Pai de la Amazonia peruana a discussão contemporânea acerca dos conhecimentos tradicionais gira em torno de temas como a aplicação de novas tecnologias, os assuntos de propriedade intelectual, a gestão da biodiversidade ou os direitos culturais, refletindo em suma interesses e posições políticas divergentes sobre o assunto. Ao analisar o uso tradicional de um vegetal amazônico, o yoco, e a sua profunda relação com a cultura indígena airo pai o secoya, o autor chama a atenção para o conflito entre sistemas de conhecimento diferentes. A própria natureza – e as diversas formas de concebê-la – é, portanto, culturalmente construída e socialmente produzida, tanto pela modernidade e o capitalismo, como pelas sociedades tradicionais aqui estudadas. E as divergências de pensamento não se limitam a este ponto: é preciso ainda, como tentam fazer alguns dos autores mesmo que de forma insuficientemente crítica, questionar o que significam conceitos tais como os de ‘conhecimentos tradicionais’, ‘patrimônio’ e ‘biodiversidade’ para estes grupos, para o mercado e para os cientistas que tentam entendê-los. Ao pesquisar as interferências entre as noções de propriedade e os regimes nativos de circulação de conhecimento entendidos de maneira ampla e os novos modelos de propriedade e circulação de conhecimentos postos na agenda desses povos pelos debates sobre o patrimônio, Marcela Stockler de Souza tem como ponto de partida no texto A dádiva indígena e a dívida antropológica: direitos universais e relações particulares o problema do patrimônio cultural tal como emerge de debates e iniciativas recentes no âmbito do Estado, da sociedade civil e, principalmente, das próprias comunidades no sentido da proteção e revitalização de práticas culturais indígenas. Esta autora questiona a prática de pesquisa junto a esses povos, indagando sobre o papel do antropólogo de “criar” ou “materializar” a “cultura indígena” em seus livros e artigos, na produção de um conhecimento (mais ou menos tradicional) que é seu e não necessariamente daqueles que por ele são estudados. A questão gira em torno das próprias categorias de estudo e daqueles responsáveis por produzi-las, e, com isso, busca-se voltar o olhar sobre o tema central para o antropólogo, pensando a sua autoridade de especialista nestes contextos e o poder de mediador entre as diversas instâncias em conflito. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 227-232, 2. sem. 2009 231 Dominique Gallois, em Culturas indígenas e processos de patrimonialização, a partir do trabalho com grupos indígenas do Amapá e do norte do Pará, chama a atenção para os impactos acarretados pelas experiências de promoção cultural indígena que estão se multiplicando em algumas partes do país. A questão de que trata a autora é a de que enquanto se multiplicam iniciativas de “resgate”, recuam perigosamente as alternativas que visam incrementar um efetivo conhecimento a respeito dos patrimônios imateriais indígenas, e, neste processo o uso das noções de cultura, tradição e ancestralidade acaba esvaziado de qualquer sentido preciso. Assim, partindo das críticas apresentadas ao longo do livro, se pensamos na concepção dos antropólogos de que saberes tradicionais só têm vitalidade quando são transmitidos de acordo com as formas de enunciação próprias de cada grupo, como é entendido o produto que deixa estes contextos ditos tradicionais e vai para o mercado? Esta questão, que permeia a reflexão da maioria dos autores da obra, leva a pensar na categoria de patrimônio como algo deslizante e pouco precisa nos discursos contemporâneos, e portanto digna de ser relativizada. Um outro ponto de relevância que pode ser discutido a partir da leitura dos textos é a recorrente – mas ainda não predominante – conceituação do patrimônio a partir da idéia de patrimônio total ou integral, já que assimila em uma só noção todo o conjunto de esferas em que ele é concebido, indo contra as tentativas tradicionais das políticas de Estado de utilizar o conceito como ferramenta de fragmentação das culturas. Segundo Carla Belas, em seu trabalho O conceito de patrimônio imaterial e a prática dos inventários culturais, a idéia de que o meio ambiente local fornece boa parte da matéria-prima para a produção dos bens culturais de determinada região leva a pensar também na intrínseca relação entre diversidade biológica e diversidade cultural, que já vem sendo considerada pelos inventários e os planos de preservação e salvaguarda. Esta talvez seja uma das possíveis razões pelas quais, como apontam Bruno Mileo, Cíntia Costa e Eliane Moreira no texto Convenção da Diversidade Biológica e Acordo TRIPS: uma análise conciliadora, é hoje tão polemizada a problemática das patentes biotecnológicas, aqui já mencionadas, que vem, segundo os autores, suscitando conflitos entre o sistema de propriedade intelectual e o sistema de acesso aos recursos do patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados a estes. O que se lê nas entrelinhas da problemática apresentada pelo tema central proposto aos autores no Seminário Internacional que gerou a obra analisada, é um conjunto de dilemas provenientes da interpretação ilusória Antropolítica Niterói, n. 27, p. 227-232, 2. sem. 2009 232 deste cenário de disputas em que as “comunidades” são entendidas como entidades homogêneas ou fragmentos organizados destacados do todo, e o imenso conjunto de interações microscópicas que as constituem, que poderiam servir para se entender soluções individualizadas para cada caso estudado, são ignoradas nos processos de objetivação e apropriação do que se chama de uma ‘cultura’ do Outro. A falha, portanto, em muitas análises apresentadas atualmente no que concernem os debates acerca do patrimônio no Brasil é a forte tendência à reificação de uma relação ultrapassada do ‘nós’ dominantes, de um lado, e o ‘eles’ dominados ou suscetíveis de sê-lo, do outro. Sendo assim, pensar o patrimônio em sua integralidade, mais do que considerar a totalidade dos elementos de uma ‘cultura’ como um todo integrado, significa contemplar todas as relações de força presentes no contexto de interação que compõem determinado grupo. O patrimônio, portanto, é total na medida em que não pode ser pensado de forma precisa e desprovida de ingenuidade sem que seja entendido no bojo de todas as relações através das quais é produzido e disseminado. Desta feita, o próprio papel do antropólogo como especialista passa a ser problematizado nos trabalhos que tratam do conhecimento dos grupos de regiões diversas que ganham o rótulo insustentável de ‘sociedades tradicionais’. Finalmente, o fino diálogo entre os diferentes autores na construção do debate aqui esboçado tem relevância ao ilustrar e trazer à tona, de maneira representativa, os problemas, as ambiguidades e as ‘zonas de sombra’ dos estudos patrimoniais no Brasil nas últimas décadas, e revela sumariamente os pontos em que uma antropologia crítica pode ajudar a desatar alguns dos apertados nós que caracterizam este campo que se constitui na justaposição de disciplinas diversas e de conhecimentos variados – ainda que não necessariamente opostos. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 227-232, 2. sem. 2009 NOTÍCIAS DO PPGA 235 RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA CURSO DE MESTRADO EM ANTROPOLOGIA 1 título: Um abraço para todos os amigos Autor: Antonio Carlos Rafael Barbosa Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 16/1/1997 2 Título: A produção social da morte e morte simbólica em pacientes hansenianos Autor: Cristina Reis Maia Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 2/4/1997 3 Título: Práticas acadêmicas e o ensino universitário: uma etnografia das formas de consagração e transmissão do saber na universidade Autor: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa:16/6/1997 4 Título: “Dom”, “iluminados” e “figurões”: um estudo sobre a representação da oratória no Tribunal do júri do Rio de Janeiro Autor: Alessandra de Andrade Rinaldi Orientador: Prof. Dr. Luiz de Castro Faria Data da defesa: 3/1/1997 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 236 5 Título: Mudança ideológica para a qualidade Autor: Miguel Pedro Alves Cardoso Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 7/10/1997 6 Título: Culto rock a Raul Seixas: sociedade alternativa entre rebeldia e negociação Autor: Monica Buarque Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 19/12/1997 7 Título: A cavalgada do santo guerreiro: duas festas de São Jorge em São Gonçalo/Rio de Janeiro Autor: Ricardo Maciel da Costa Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 23/12/1997 8 Título: A loucura no manicômio judiciário: a prisão como terapia, o crime como sintoma, o perigo como verdade Autor: Rosane Oliveira Carreteiro Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 6/2/1998 9 Título: Articulação casa e trabalho: migrantes “nordestinos” nas ocupações de empregada doméstica e empregados de edifício Autor: Fernando Cordeiro Barbosa Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 4/3/1998 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 237 10 Título: Entre “modernidade” e “tradição”: a comunidade islâmica de Maputo Autor: Fátima Nordine Mussa Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 11/3/1998 11 Título: Os interesses sociais e a sectarização da doença mental Autor: Cláudio Lyra Bastos Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 21/5/1998 12 Título: Programa médico de família: mediação e reciprocidade Autor: Gláucia Maria Pontes Mouzinho Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 24/5/1999 13 Título: O império e a rosa: estudo sobre a devoção do Espírito Santo Autor: Margareth da Luz Coelho Orientador: Prof. Dr. Arno Vogel Data da defesa: 13/7/1998 14 Título: Do malandro ao marginal: representações dos personagens heróis no cinema brasileiro Autor: Marcos Roberto Mazaro Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 30/10/1998 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 238 15 Título: Prometer-cumprir: princípios morais da política: um estudo de representações sobre a política construídas por eleitores e políticos Autor: Andréa Bayerl Mongim Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 21/1/1999 16 Título: O simbólico e o irracional: estudo sobre sistemas de pensamento e separação judicial Autor: César Ramos Barreto Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 10/5/1999 17 Título: Em tempo de conciliação Autor: Angela Maria Fernandes Moreira-Leite Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 15/7/1999 18 Título: Negros, parentes e herdeiros: um estudo da reelaboração da identidade étnica na comunidade de Retiro, Santa Leopoldina – ES Autor: Osvaldo Marins de Oliveira Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 13/8/1999 19 Título: Sistema da sucessão e herança da posse habitacional em favela Autor: Alexandre de Vasconcellos Weber Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 25/10/1999 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 239 20 Título: E no samba fez escola: um estudo de construção social de trabalhadores em escola de samba Autor: Cristina Chatel Vasconcellos Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 5/11/1999 21 Título: Cidadãos e favelados: os paradoxos dos projetos de (re)integração social Autor: André Luiz Videira de Figueiredo Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 19/11/1999 22 Título: Da anchova ao salário mínimo: uma etnografia sobre injunções de mudança social em Arraial do Cabo/RJ Autor: Simone Moutinho Prado Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 25/2/2000 23 TÍTULO: Pescadores e surfistas: uma disputa pelo uso do espaço da Praia Grande Autor: Delgado Goulart da Cunha Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 28/2/2000 24 TÍTULO: Produção corporal da mulher que dança Autor: Sigrid Hoppe Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 27/4/2000 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 240 25 TÍTULO: A produção da verdade nas práticas judiciárias criminais brasileiras: uma perspectiva antropológica de um processo criminal Autor: Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 21/9/2000 26 TÍTULO: Campo de força: sociabilidade numa torcida organizada de futebol Autor: Fernando Manuel Bessa Fernandes Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 22/9/2000 27 TÍTULO: Reservas extrativistas marinhas: uma reforma agrária no mar? Uma discussão sobre o processo de consolidação da reserva extrativista marinha de Arraial do Cabo/RJ Autor: Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 29/11/2000 28 TÍTULO: Patrulhando a cidade: o valor do trabalho e a construção de estereótipos em um programa radiofônico Autor: : Edilson Márcio Almeida da Silva Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 8/12/2000 29 TÍTULO: Loucos de rua: institucionalização x desinstitucionalização Autor: Ernesto Aranha Andrade Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 8/3/2001 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 241 30 TÍTULO: Festa do Rosário: iconografia e poética de um rito Autor: Patrícia de Araújo Brandão Couto Orientador: Profª Drª Tania Stolze Lima Data da defesa: 8/5/2001 31 TÍTULO: Os caminhos do leão: uma etnografia do processo de cobrança do Imposto de Renda Autor: Gabriela Maria Hilu da Rocha Pinto Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 7/8/2001 32 TÍTULO: Representações políticas: alternativas e contradições – das múltiplas possibilidades de participação popular na Câmara Municipal do Rio de Janeiro Autor: Delaine Martins Costa Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 27/9/2001 33 TÍTULO: Capoeiras e mestres: um estudo de construção de identidades Autor: Mariana Costa Aderaldo Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 29/10/2001 34 TÍTULO: Índios misturados: identidades e desterritorialização no século XIX Autor: Márcia Fernanda Malheiros Orientador: Profª Drª Tania Stolze Lima Data da defesa: 17/12/2001 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 242 35 TÍTULO: Trabalho e exposição: um estudo da percepção ambiental nas indústrias cimenteiras de Cantagalo/ RJ – Brasil Autor: Maria Luiza Erthal Melo Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva, Prof. Dr. Carlos Machado de Freitas (co-orientador) Data da defesa: 4/5/2001 36 TÍTULO: Samba, jogo do bicho e narcotráfico: a rede de relações que se forma na quadra de uma escola de samba em uma favela do Rio de Janeiro Autor: Alcyr Mesquita Cavalcanti Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 20/12/2001 37 TÍTULO: Mãos de arte e o saber-fazer dos artesãos de Itacoareci: um estudo antropológico sobre socialidade, identidades e identificações locais Autor: Marzane Pinto de Souza Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 6/2/2002 38 TÍTULO: Do alto do rio Erepecuru à cidade de Oriximiná: a construção de um espaço social em um núcleo urbano da Amazônia Autor: Andréia Franco Luz Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 27/3/2002 39 TÍTULO: O fio do desencanto: trajetória espacial e social de índios urbanos em Boa Vista (RR) Autor: Lana Araújo Rodrigues Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 27/3/2002 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 243 40 TÍTULO: Deus é pai: prosperidade ou sacrifício? Conversão, religiosidade e consumo na Igreja Universal do Reino de Deus Autor: Maria José Soares Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 1/4/2002 41 TÍTULO: Negros em ascensão social: poder de consumo e visibilidade Autor: Lidia Celestino Meireles Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 1/4/2002 42 TÍTULO: A cultura material da nova era e o seu processo de cotidianização Autor: Juliana Alves Magaldi Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 20/7/2002 43 TÍTULO: A Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, Goiás: polaridades simbólicas em torno de um rito Autor: Felipe Berocan Veiga Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 1/7/2002 44 TÍTULO: Privatização e reciprocidade para trabalhadores da CERJ em Alberto Torres/RJ Autor: Cátia Inês Salgado de Oliveira Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 4/7/2002 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 244 45 TÍTULO: Cada louco com a sua mania, cada mania de cura com a sua loucura Autor: Patricia Pereira Pavesi Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 7/1/2003 46 TÍTULO: Linguagem de parentesco e identidade social, um estudo de caso: os moradores de Campo Redondo Autor: Cátia Regina de Oliveira Motta Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 7/1/2003 47 TÍTULO: Vila Mimosa II: A Construção do Novo Conceito da Zona Autor: Soraya Silveira Simões Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 20/1/2003 48 TÍTULO: Tão perto, tão longe: etnografia sobre relações de amizade na favela da Mangueira no Rio de Janeiro Autor: Geovana Tabachi Silva Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 20/1/2003 49 TÍTULO: O mercado dos orixás: uma etnografia do Mercadão de Madureira no Rio de Janeiro Autor: Carlos Eduardo Martins Costa Medawar Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 20/1/2003 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 245 50 TÍTULO: Para além da “porta de entrada”: usos e representações sobre o consumo da canabis entre universitários Autor: Jóvirson José Milagres Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 10/6/2003 51 TÍTULO: E o verbo (re)fez o homem: estudo do processo de conversão do alcoólico ativo em alcoólico passivo Autor: Angela Maria Garcia Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 12/6/2003 52 TÍTULO: Le souffle au coeur & damage: quando o mesmo toca o mesmo em 24 quadros por segundo (Louis Malle e a temática do incesto) Autor: Débora Breder Barreto Orientador: Profª Drª Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto Data da defesa: 24/6/2003 53 TÍTULO: O faccionalismo xavante na terra indígena São Marcos e a cidade de Barra das Garças Autor: Paulo Sérgio Delgado Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 24/6/2003 54 TÍTULO: Cartografia nativa: a representação do território, pelos guarani kaiowá, para o procedimento administrativo de verificação da Funai Autor: Ruth Henrique da Silva Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 27/6/2003 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 246 55 TÍTULO: Nem muito mar, nem muita terra. Nem tanto negro, nem tanto branco: uma discussão sobre o processo de construção da identidade da comunidade remanescente de Quilombos na Ilha da Marambaia/RJ Autor: Fábio Reis Mota Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 27/6/2003 56 TÍTULO: Pendura essa: a complexa etiqueta de reciprocidade em um botequim do Rio de Janeiro Autor: Pedro Paulo Thiago de Mello Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 30/6/2003 57 TÍTULO: Justiça desportiva: uma coexistência entre o público e o privado Autor: Wanderson Antonio Jardim Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima, Profª Drª Simoni Lahud Guedes (co-orientadora) Data da defesa: 30/6/2003 58 TÍTULO: O teu cabelo não nega? Um estudo de práticas e representações sobre o cabelo Autor: Patrícia Gino Bouzón Orientador: Prof. Dr. José Sávio Leopoldi Data da defesa: 5/2/2004 59 TÍTULO: Usos e significados do vestuário entre adolescentes Autor: Joana Macintosh Orientador: Profª Drª Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes Data da defesa: 16/2/2004 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 247 60 TÍTULO: A cientifização da acupuntura médica no Brasil: uma perspectiva antropológica Autor: Durval Dionísio Souza Mota Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima; Profª Drª Simoni Lahud Guedes (co-orientadores) Data da defesa: 19/2/2004 61 TÍTULO: Das práticas e dos seus saberes: a construção do “fazer policial” entre as praças da PMERJ Autor: Haydée Glória Cruz Caruso Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 19/2/2004 62 TÍTULO: O processo denunciador – retóricas, fobias e jocosidades na construção social da dengue em 2002 Autor: Anamaria de Souza Fagundes Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 29/3/2004 63 TÍTULO: Rua dos Inválidos, 124 – a vila é a casa deles Autor: Marcia Cörner Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 29/3/2004 64 TÍTULO: Santa Tecla, Graça e Laranjal: regras de sucessão nas casas de estância do Brasil Meridional Autor: Ana Amélia Cañez Xavier Orientador: Profª Drª Eliane Catarino O’Dwyer Data da defesa: 25/5/2004 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 248 65 TÍTULO: Desemprego e malabarismos culturais Autor: Valena Ribeiro Garcia Ramos Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 31/5/2004 66 TÍTULO: Dimensões da sexualidade na velhice: estudos com idosos em uma agência gerontológica Autor: Rosangela dos Santos Bauer Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 9/6/2004 67 TÍTULO: Lavradores de sonhos: estruturas elementares do valor cultural na conformação do valor econômico. um estudo sobre a propriedade capixaba no município de vitória Autor: Alexandre Silva Rampazzo Orientador: Profª Drª Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 26/7/2004 68 TÍTULO: Responsabilidade social das empresas: quando o risco e o apoio caminham lado a lado Autor: Ricardo Agum Ribeiro Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 28/1/2005 69 TÍTULO: A escolha: um estudo antropológico sobre a escolha do cônjugue Autor: Paloma Rocha Lima Medina Orientador: Profª Drª Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 3/2/2005 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 249 70 TÍTULO: Agricultores orgânicos do Rio da Prata (RJ): luta pela preservação social Autor: Pedro Fonseca Leal Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 23/2/2005 71 TÍTULO: Uma comunidade em transformação: modernidade, organização e conflito nas escolas de samba Autor: Fabio Oliveira Pavão Orientador: Prof. Dr. José Sávio Leopoldi Data da defesa: 28/2/2005 72 TÍTULO: Esculhamba, mas não esculacha: um relato sobre uso dos trens da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, enfatizando as práticas e os conflitos relacionados a comerciantes ambulantes e outros atores, naquele espaço social Autor: Lênin dos Santos Pires Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 28/2/2005 73 TÍTULO: O porteiro, o panóptico brasileiro: as transformações do saber-fazer e do saber-lidar deste trabalhador Autor: Roberta de Mello Correa Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 18/3/2005 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 250 74 TÍTULO: Tempo, trabalho e modo de vida: estudo de caso entre profissionais da enfermagem Autor: Renata Elisa da Silveira Soares Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 8/4/2005 75 TÍTULO: Espaço urbano e segurança pública: entre o público, o privado e o particular Autor: Vanessa de Amorim Pereira Cortes Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 18/4/2005 76 TÍTULO: Vida após a morte: salvo ou condenado? Autor: Andréia Vicente da Silva Orientador: Profª Drª Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 9/5/2005 77 TÍTULO: Dramas sociais, realidade e representação: a família brasileira vista pela TV Autor: Shirley Alves Torquato Orientador: Profª Drª Laura Graziela F. F. Gomes Data da defesa: 11/5/2005 78 TÍTULO: Consumidor consciente, cidadão negligente? Autor: Michel Magno de Vasconcelos Orientador: Profª Drª Laura Graziela F. F. Gomes Data da defesa: 18/5/2005 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 251 79 TÍTULO: Paixão pela política e política dos Paixão: família e capital político em um município fluminense Autor: Carla Bianca Vieira de Castro Figueiredo Orientador: Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra Data da defesa: 6/3/2006 80 TÍTULO: Quando a lagoa vira pasto: um estudo sobre as diferentes formas de apropriação e concepção dos espaços marginais da Lagoa Feia–RJ Autor: Carlos Abraão Moura Valpassos Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 6/3/2006 81 TÍTULO: O dono da rota: etnografia de um vendedor no centro urbano do Rio de Janeiro Autor: Flavio Conceição da Silveira Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 6/3/2006 82 TÍTULO: Os caminhos da Maré: a turma 302 do CIEP Samora Machel e a organização social do espaço Autor: Lucia Maria Cardoso de Souza Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 7/3/2006 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 252 83 TÍTULO: Os ciganos de calon do Catumbi: ofício, etnografia e memória urbana Autor: Mirian Alves de Souza Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 9/3/2006 84 TÍTULO: Disque-denúncia: a arma do cidadão. Processos de construção da verdade Central Disque-denúncia do Rio de Janeiro a partir da experiência da Autor: Luciane Patrício Braga de Moraes Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 9/3/2006 85 TÍTULO: Quando o peixe morre pela boca: Os “casos de polícia” na Justiça Federal Argentina na cidade de Buenos Aires Autor: Lucía Eilbaum Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 10/3/2006 86 TÍTULO: A dádiva no mundo contemporâneo: um estudo do dom monádico Autor: Fabiano Nascimento Orientador: Profa Dra Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 10/3/2006 87 TÍTULO: A fumaça da discórdia: da regulação do consumo e o consumo de cigarros Autor: Patrícia da Rocha Gonçalves Orientador: Profa Dra Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 10/3/2006 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 253 88 TÍTULO: Família, redes de sociabilidade e casa própria: um estudo etnográfico em uma cooperativa habitacional em São Gonçalo, RJ Autor: Michelle da Silva Lima Orientador: Profa Dra Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 10/3/2006 89 TÍTULO: Identidade, conhecimento e poder na comunidade muçulmana do Rio de Janeiro Autor: Gisele Fonseca Chagas Orientador: Prof. Dr. Paulo Gabriel Hilu Pinto da Rocha Data da defesa: 10/3/2006 90 TÍTULO: Comércio ambulante na cidade do Rio de Janeiro: a apropriação do espaço público Autor: Marcelo Custódio da Silva Orientador: Prof. Dr. José Sávio Leopoldi Data da defesa: 10/3/2006 91 TÍTULO:Revitalização urbana em Niterói: uma visão antropológica Autor: André Amud Botelho Orientador: Profª Drª Laura Graziela F. F. Gomes Data de defesa: 31/3/2006 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 254 92 TÍTULO: Educandos e os educadores: Imagens Refletidas. Estudo do processo de constituição de categoria ocupacional Autor: Arlete Inácio dos Santos Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data de defesa: 28/4/2006 93 TÍTULO: Sobre a disciplina no futebol brasileiro – uma abordagem pela Justiça Desportiva Brasileira Autor: André Gil Ribeiro de Andrade Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data de defesa: 25/5/2006 94 TÍTULO: Polícia para quem precisa: um estudo sobre tutela e repressão do GPAE no Morro do Cavalão (Niterói) Autor: Sabrina Souza da Silva Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data de defesa: 30/6/2006 95 TÍTULO: Mobilidade espacial e campesinato: gestão de alternativas escassas Autor: Gil Almeida Félix Orientadora: Profa Dra Delma Pessanha Neves Data da defesa: 30/6/2006 96 TÍTULO: A igreja ortodoxa antioquina na cidade do Rio de Janeiro: construção e manutenção de uma identidade religiosa diaspórica no campo religioso brasileiro Autor: Houda Blum Bakour Orientador: Prof. Dr. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Data da defesa: 27/2/2007 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 255 97 TÍTULO: O programa justiça terapêutica da vara de execuções penais do Rio de Janeiro Autor: Frederico Policarpo de Mendonça Filho Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 27/2/2007 98 TÍTULO: Etnicidade, processo de territorialização e ritual entre os tuxá de rodelas Autor: Ricardo Dantas Borges Salomão Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O´Dwyer Data da defesa: 28/2/2007 99 TÍTULO: Tempo(s) ecológico(s): um relato das tensões entre pescadores artesanais e ibama acerca do calendário de pesca na lagoa feia – RJ Autor: José Colaço Dias Neto Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 6/3/2007 100 TÍTULO:Atafona: formas de sociabilidade em um balneário na região norte-fluminense Autor: Juliana Blasi Cunha Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 6/3/2007 101 TÍTULO:Com que roupa eu vou? códigos que orientam as escolhas do vestuário feminino na classe média do Rio de Janeiro Autor: Solange Riva Mezabarba Orientador: Profª Drª Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 9/3/2007 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 256 102 TÍTULO:Notting hill: notas etnográficas sobre um british carnival Autor: Iara Gomes de Bulhões Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 6/6/2007 103 TÍTULO:Maranhão sou eu: tambor de mina e construção identitária – o caso do terreiro cazuá de mironga, em serpédica – rj Autor: Wilmara Aparecida Silva Figueiredo Orientador: Profa Dra Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 31/8/2007 104 TÍTULO:A praia de copacabana: uma reflexão sobre algumas das estratégias de construção e manutenção da imagem de um espaço de consumo e lazer da cidade do rio de janeiro Autor: Flávia Ferreira Fernandes Orientador: Profa Dra Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes Data da defesa: 31/8/2007 105 TÍTULO:Ciranda e prestação de serviços: os coros cirandeiros em busca da profissionalização Autor: Lysia Reis Condé Orientador: Profa Dra Delma Pessanha Neves ata da defesa: 10/9/2007 106 TÍTULO:Família e redes de parentesco em uma política da velhice: análise de um programa governamental de gestão do envelhecimento Autor: Felipe Domingues dos Santos Orientador: Profa Dra Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 31/1/2008 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 257 107 TÍTULO:Sobre o modo de justificação dos ascensos e descensos nos organismos governamentais dos dirigentes do partido justicialista (p.j.) de Salta, Argentina, nos anos 1995-2005 (narrativas de obediência e lealdade) Autor: Maria Fernanda Maidana Orientador: Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra Data da defesa: 6/3/2008 108 TÍTULO:Diga espelho meu, se há na avenida alguém mais feliz que eu! estudo sobre identidatidade e memória da g.r.e.s união da ilha do governador Autor: Paulo Cordeiro de Oliveira Neto Orientador: Prof. Dr. José Sávio Leopoldi Data da defesa: 11/3/2008 109 TÍTULO:Entre barracões e módulos de pesca: pescaria e meio ambiente na regulação do uso de espaços públicos na barra do jucu Autor: Marcio de Paula Filgueiras Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 24/3/2008 110 TÍTULO:Processos de construção e comunicação das identidades negras e africanas na comunidade muçulmana sunita do rio de janeiro Autor: Cláudio Cavalcante Júnior Orientador: Prof. Dr. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Data da defesa: 10/4/2008 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 258 111 TÍTULO:Explicadoras na nova holanda: um processo informal de escolarização Autor: Beatriz Arosa de Mattos Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 25/4/2008 112 TÍTULO:Na “pegação”: encontros homoeróticos masculinos em juiz de fora Autor: Verlan Valle Gaspar Neto Orientador: Prof. Dr. Ovídio Abreu Filho Data da defesa: 25/4/2008 113 TÍTULO:Feijoada completa: reflexões sobre a administração institucional e dilemas nas delegacias de polícia da cidade do rio de janeiro Autor: Érika Giuliane Andrade Souza Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 30/4/2008 114 TÍTULO:Gosto não se discute: atores, práticas, mecanismos e discursos envolvidos na construção social do gosto alimentar infantil entre crianças de 0 a 10 anos Autor: Bonnie Moraes Manhãs de Azevedo Orientador: Profa Dra Laura Graziela F.F. Gomes Data da defesa: 4/8/2008 115 TÍTULO:A viagem da gente de transformação: uma exploração do universo semântico da noção de transformação em narrativas míticas do noroeste amazônico Autor: Felipe Agostine Cerqueira Orientador: Profa Dra Tânia Stolze Lima Data da defesa: 29/8/2008 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 259 116 TÍTULO:De volta para casa: a vida nas residências terapêuticas e o trabalho dos cuidadores, em barbacena – mg Autor: Rafael Pereira Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 2/9/2008 117 TÍTULO:Vitória sobre a morte: a glória prometida o “rito de passagem” na construção da identidade das operações especiais Autor: Paulo Roberto Storani Botelho Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 5/9/2008 118 TÍTULO:Os trabalhadores da política: uma corrente do pt de niterói Autor: Bruner Titonelli Nunes Orientador: Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra Data da defesa: 25/9/2008 119 TÍTULO:A busca pela união: estudo sobre o modo de atuação de uma liderança comunitária Autor: Leandro Mascarenhas Matosinhos Orientador: Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra Data da defesa: 26/9/2008 120 TÍTULO:A gente faz de tudo um pouco: um estudo de construção social de trabalhadores nas relações familiares e de vizinhança Autor: Julia Mitiko Sakamoto Orientador: Profa Dra Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 30/9/2008 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 260 121 TÍTULO:Um olhar sobre a cena do graffiti no Rio de Janeiro Autor: Ana Lúcia Peres Leal Orientador: Marcos Otávio Bezerra Data da defesa: 12/03/2009 122 TÍTULO:De sol a sol, em luta por um lugar ao sol: a guarda municipal e os ritos, conflitos e estratégias do espaço público carioca. Autor: Marcos Alexandre Verríssimo da Silva Orientador: Roberto Kant de Lima Data da defesa: 23/03/2009 123 TÍTULO:Analfabetismo: problema social e desonra pessoal? Autor: Tatiana Arnaud Coutinho Cipiniuk Orientador: Delma Pessanha Neves Data da defesa: 24/04/2009 124 TÍTULO:“Politicagem” e dependências políticas: controle, trocas e negociações Autor: Monique Florêncio de Aguiar Orientador: Jair de Souza Ramos Data da defesa: 29/04/2009 125 TÍTULO:A construção social de trabalhadores através da educação profissional: tentando “ser alguém na vida” Autor: Izabella Lacerda Pimenta Orientador: Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 30/04/2009 126 TÍTULO:Do encanto ao desencanto: mudanças na percepção do projeto do Comperj pela vizinhança do empreendimento Autor: Pedro da Silva Santos Orientador: Marcos Otávio Bezerra Data da defesa: 27/05/2009 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 261 127 TÍTULO:Entre a caserna e a rua: o dilema do “pato”: uma análise antropológica da instituição policial militar a partir da Academia de Polícia Militar Dom João vi Autor: Juliana Lima Ribeiro Orientador: Roberto Kant de Lima Data da defesa: 12/08/2009 128 TÍTULO:O olhar indígena: ativismo étnico e produção audiovisual em Campo Grande Autor: Marta Castilho da Silva Orientador: Sidnei Clemente Peres Data da defesa: 24/08/2009 129 TÍTULO:Se meu carro falasse... Ele teria muito a dizer! Um estudo do carro, seus usos e representações no trânsito da cidade do Rio de Janeiro Autor: Marisa Dreys da Silva Xavier Orientadora: Laura Graziela F. F Gomes Data da defesa: 25/08/2009 130 Título: Outro jornal, outras notícias: uma contribuição à análise antropológica da produção telejornalística. Autor: Kássio Pinto da Motta Orientador: Julio César de Souza Tavares Data da defesa: 26/08/2009 131 TÍTULO:Novela brasileira – um estudo sobre o lugar e a representação do trabalho Autor: Marisa Silva Rodriguez Orientadora: Laura Graziela F. F Gomes Data da defesa: 27/08/2009 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 262 132 TÍTULO:OS animais são muito mais que algo somente bom para comer Autor: Rafael Fernandes Mendes Junior Orientadora: Tania Stolze Lima Data da defesa: 28/08/2009 133 TÍTULO:Preventório 21: um estudo de caso sobre as apropriações e usos sociais de um projeto local de desenvolvimento sustentável” Autor: Érica da Cruz Barbosa Orientador: Marcos Otávio Bezerra Data da defesa: 22/09/2009 134 TÍTULO:Se o privado vira público: uma análise dos tratamentos de caso de “violência doméstica contra a mulher” no município de São Gonçalo (RJ) Autor: Maria de Paula Godoy Garcia Orientador: Roberto Kant de Lima Data da defesa: 03/11/2009 135 TÍTULO:Marcel Gautherot e Édison Carneiro: a imagem fixa e a dinâmica do folclore – estudo a partir do acervo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Autor: Juliana Lima Ribeiro Orientadora: Lygia Baptista Pereira Segala Pauleto Beraba Data da defesa: 23/11/2009 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 235-262, 2. sem. 2009 263 RELAÇÃO DE TESES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA 1 TÍTULO: A mulher-sujeito:subjetividade, consumo e trabalho Autor: Cesar Ramos Barreto Orientador: Prof. Dr. José Sávio Leopoldi Data da defesa: 29/9/2007 2 TÍTULO: O ritual judiciário do tribunal do júri Autor: Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 9/3/2007 3 TÍTULO: Igualdade e hierarquia no espaço público: análise de processos de administração institucional de conflitos no município de niterói Autor: Kátia Sento Sé Mello Orientador: Prof.Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 29/3/2007 4 TÍTULO: O direito ao lugar: situações processuais de conflito na reconfiguração social e territorial no município de itacaré – BA Autor: Patrícia de Araújo Brandão Couto Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 30/3/2007 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 263-267, 2. sem. 2009 264 5 TÍTULO: A adolescência na medicina: um olhar antropológico Autor: Fernando César Coelho da Costa Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 20/4/2007 6 TÍTULO: Das reportagens policiais às coberturas de segurança pública: representações da ‘violência urbana’ em um jornal do rio de janeiro Autor: Edílson Márcio Almeida da Silva Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 25/4/2007 7 TÍTULO: Sobre culpados e inocentes: o processo de criminação e incriminação pelo ministério público federal brasileiro Autor: Gláucia Maria Pontes Mouzinho Orientador: Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra Data da defesa: 28/9/2007 8 TÍTULO: Cruzada de são sebastião no leblon: uma etnografia da moradia e do cotidiano dos habitantes de um conjunto habitacional na zona sul do rio de janeiro Autor: Soraya Silveira Simões Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 26/2/2008 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 263-267, 2. sem. 2009 265 9 TÍTULO: Campo intelectual e gestão da economia do babaçu: dos estudos científicos às práticas tradicionais das quebradeiras de coco babaçu Autor: Cynthia Carvalho Martins Orientador: Profa Dra Delma Pessanha Neves Data da defesa: 28/2/2008 10 TÍTULO: Maneiras de beber: sociabilidades e alteridades Autor: Ângela Maria Garcia Orientador: Profa Dra Delma Pessanha Neves Data da defesa: 28/2/2008 11 TÍTULO: O melhor de niterói é a vista do rio. políticas culturais e intervenções urbanas: mac e caminho niemeyer Autor: Margareth da Luz Coelho Orientador: Profa Dra Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes Data da defesa: 7/3/2008 12 TÍTULO: Do mito ao... cinema: a incestuosa gemeidade. um close sobre a figura dos gêmeos nas narrativas contemporâneas Autor: Débora Breder Barreto Orientador: Profa Dra Lygia Baptista Pereira Data da defesa: 13/3/2008 13 TÍTULO: Entre a estrutura e a performance: ritual de iniciação e faccionalismo entre os xavantes da terra indígena são marcos Autor: Paulo Sérgio Delgado Orientador: Profa Dra Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 31/3/2008 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 263-267, 2. sem. 2009 266 14 TÍTULO: A semântica do intangível. considerações sobre o registro do ofício de paneleira do espírito santo: ritual de iniciação e faccionalismo entre os xavantes da terra indígena são marcos Autor: Lucieni de Menezes Simão Orientador: Profa Dra Lygia Baptista Pereira Segala Data da defesa: 30/4/2008 15 TÍTULO: Identidade(s) e nacionalismo em cabo verde Autor: João Silvestre Tavares Alvarenga Varela Orientador: Profa Dra Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 25/4/2008 16 TÍTULO: Legados e alteridades culturais: migrantes nordestinos no Rio de Janeiro Autor: Fernando Cordeiro Barbosa Orientador: Delma Pessanha Neves Data da defesa: 29/01/2009 17 TÍTULO: Por trás da notícia: um olhar etnográfico sobre os ritos de interação numa redação de jornal Autor: Pedro Paulo Tiago de Mello Orientador: Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 29/01/2009 18 TÍTULO: Produções de (des)crenças na atuação do estado: etnografia em espaços de disputa entre moradores da periferia de Porto Alegre e agentes de estado Autor: Heloísa Helena Salvatti Paim Orientador: Delma Pessanha Neves Data da defesa: 13/02/2009 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 263-267, 2. sem. 2009 267 19 TÍTULO: Brasileiros, bolivianos ou indígenas?: construções identitárias dos Camba no Brasil Autor: Ruth Enrique da Silva Orientador: Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 19/02/2009 20 TÍTULO: Cidadãos em toda parte ou cidadãos à parte?: demandas de direitos e reconhecimento no Brasil e na França Autor: Fabio Reis Mota Orientador: Roberto Kant de Lima Data da defesa: 20/02/2009 21 TÍTULO: A eficácia da acupuntura: uma abordagem cultural para além da técnica Autor: Durval Dionísio Souza Mota Orientador: Roberto Kant de Lima Data da defesa: 04/03/2009 22 TÍTULO: Entre ruas, becos e esquinas: por uma antropologia dos processos de construção da ordem na lapa carioca Autor: Haydée Glória cruz Caruso Orientador: Roberto Kant de Lima Data da defesa: 30/04/2009 23 TÍTULO: Colonização dirigida nas terras do sem fim: formas contraditórias de gestão estatal e parceleiros em descompasso legal. Autor: Pedro Fonseca Leal Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 21/12/2009 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 263-267, 2. sem. 2009 269 PROGRAMA DA IV JORNADA SEGUNDA-FEIRA 30/11/2009 17h às 18h - Auditório ICHF Mesa de Abertura Participantes: Antonio Claudio Lucas da Nóbrega (Pró-Reitor PROPPi) Francisco de Assis Palharini (Diretor ICHF) Simoni Lahud Guedes (Coordenadora do PPGA) Coordenação: Marcelo Jermann 18 às 20h -Auditório ICHF Celebração 15 anos do PPGA - Debutando Experiências e Trajetórias Participantes: Simoni Lahud Guedes Delma Pessanha Neves Roberto Kant de Lima Eliane Cantarino Marco Antônio da Silva Mello Antonio Rafael Barbosa Edilson Márcio da Silva Coordenação: Martin Curi Antropolítica Niterói, n. 27, p. 269-273, 2. sem. 2009 270 TERÇA-FEIRA - 1 /12/2009 9 às 12h GT1 - Lazer, sociabilidades e apropriações do espaço (dia 01/12/2009 às 09:00 sala 516 bl. ‘O’) Elaine Rodrigues Perdigão – “Nas cordas da viola: a migração nordestina nos versos do repente.” Felipe Berocan Veiga - “O Ambiente Exige Respeito”: o lugar das gafieiras na genealogia dos espaços destinados à dança de salão carioca Rodrigo Coutinho Andrade - As diferentes formas de apropriação do carnaval na cidade do Rio de Janeiro no processo de modernização (1850 – 1920) Debatdor: Diego Araoz (IFCS-UFRJ) Coordenação: Izabella Lacerda 13:30 às 16h GT2 – Religião e Simbolismo na Contemporaneidade (dia 01/12/2009 às 13:30 sala 516 bl. ‘O’) Mauro Pereira Junior - O Raelianismo e sua cosmologia: ciência e religião em novos modos de pensamento Daniel Martinez de Oliveira - Experiência e Autenticidade no Santo Daime Mariana Emiliano Simões - Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Arturos- Notas sobre o processo de pesquisa Mariana Pettersen Soares - Qual o papel do ritual dos “Encomendadores de Almas” nos dias de hoje? Debatedor: Renata Menezes (MN) Coordenação: Bruno Brulon 16:30 às 18:30h - Auditório ICHF MESA 1: Dilemas Metodológicos: Novas fontes de pesquisas e dificuldades de acesso ao campo Participantes : María Elvira Díaz-Benítez(MN) Antropolítica Niterói, n. 27, p. 269-273, 2. sem. 2009 271 Antonio Rafael Barbosa (UFF) Sandra Sá Carneiro (UERJ) Coordenação: Daniel Martinez QUARTA-FEIRA - 02/12/2009 9 às 12h GT3 - Variações do Fazer Antropológico (dia 02/12/2009 às 09:00 sala 516 bl. ‘O’) Letícia Luna Freire – O que uma Visita Guiada pelo ‘Nativo’ Pode Revelar ao Etnógrafo Hilaine Yaccoub - A Autoridade Etnográfica em Questão: os usos da etnografia nas pesquisas de marketing Verlan Valle Gaspar Neto – Antropologia Biológica no Brasil hoje: esboço para um possível retrato Debatedor: Fernando Rabossi (IFCS-UFRJ) Coordenação: Pedro Pio 13:30 às 16h GT4 - Ressignificações do Urbano (dia 02/12/2009 às 13:30 sala 516 bl. ‘O’) Paola Figueiredo dos Santos Souza - Encontros e despedidas dos catadores do Lixão de Itaoca Lidia Canellas - Mercado Popular da Uruguaiana: uma etnografia acerca do “m² mais caro” do Centro do Município do Rio de Janeiro Pedro Guilherme M. Freire - Um estudo etnográfico do processo de “revitalização” urbana na área portuária da cidade do Rio de Janeiro Debatedor: André Videira (UFRRJ) Coordenação: Hilaine Yaccoub 16:30 às 18:30h GT5 - Identidades e Representações (dia 02/12/2009 às 16:30 sala 516 bl. ‘O’) Juliano Gonçalves da Silva – Filmes Indígenas Latino-Americanos: um Antropolítica Niterói, n. 27, p. 269-273, 2. sem. 2009 272 paradigma em construção? Izabella Lacerda Pimenta – Trabalho e educação profissional: experiências e discursos sobre o que é ser técnico Frederico Policarpo de Mendonça Filho -“Ser Afetado” pelos Discursos Acerca das Drogas e o “limite moral” dos consumidores: apontamentos sobre a continuidade e descontinuidade no consumo de drogas Bruno C. Brulon Soares - Uma Visita ao Museu do ‘Outro’: texto, palco ou campo de batalha? Alana Cristina Gomes da Silva - O Reflexo do Eu no Espelho Coletivo: identificação e discurso nos grupos de narcóticos anônimos Shirley Alves Torquato - Entre o Prazer e o Drama: consumo e distinção social na Nova classe média Debatedor: Adriana Vianna (MN) Coordenação: Lidia Canellas QUINTA-FEIRA 03/12/2009 9 às 12h GT6 - Conflitos sob uma perspectiva antropológica (dia 03/12/2009 às 09:00 sala 516 bl. ‘O’) José Colaço Dias Neto - “Pescador que é Pescador Enfrenta até o IBAMA!”: reflexões sobre racionalidade e ética ambiental Iara Gomes de Bulhões -Parque Estadual da Serra da Tiririca Um Parque Ecológico Urbano e Povoado Elisa Cotta de Araujo - Vazanteiros e quilombolas do Rio São Francisco: a emersão de identidades no contexto de conflitos ambientais Monique Florencio de Aguiar - Escolhas Políticas e Moralidades Debatedor: Maria Pita (UBA) Coordenação: Marta Fernandez 13:30 às 16h GT7 - Antropologia do Esporte no país da Copa 2014 (dia 03/12/2009 às 13:30 sala 516 bl. ‘O’) André Gil - Futebol: Arte, Força ou Resultados? – Sondagens sobre os limites das dicotomias “indivíduo x sociedade/natureza x cultura” Antropolítica Niterói, n. 27, p. 269-273, 2. sem. 2009 273 Pedro Pio Azevedo de Oliveira Filho – Futebol e Representações Sobre Masculinidade: um estudo de caso Martin Curi - O estádio Engenhão no Rio de Janeiro: espaço dos torcedores? Debatedor: Arlei Damo (UFRGS) Coordenação: Izabella Lacerda 16:30 às 18:30h - Auditório ICHF Mesa 2: Ética e Antropologia - suas relações Participantes: Luis Rojo (UFF) Eliante Cantarino (UFF) Julio Tavares (UFF) Brigida Reinoldi (Pesquisadora Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas /Universidad Nacional de Misiones (Argentina) e Pesquisadora associada al NECVU/IFCS/UFRJ) Coordenação: Juliano Silva Antropolítica Niterói, n. 27, p. 269-273, 2. sem. 2009 274 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 269-273, 2. sem. 2009 Revista Antropolítica ARTIGOS PUBLICADOS 277 Revista no 1– 2o semestre de 1996 Artigos Brasil: nações imaginadas José Murilo de Carvalho Brasileiros e argentinos em Kibbutz: a diferença continua Sonia Bloomfield Ramagem Mudança social: exorcizando fantasmas Delma Pessanha Neves Ostras e pastas de papel: meio ambiente e a mão invisível do mercado José Drummond Conferências Algumas considerações sobre o estado atual da antropologia no Brasil Otávio Velho That deadly pyhrronic poison a tradição cética e seu legado para a teoria política moderna Renato Lessa Resenha Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Marisa G. Peirano Laura Graziela F. F. Gomes Revista no 2 – 1o semestre de 1997 Artigos Entre a escravidão e o trabalho livre: um estudo comparado de Brasil e Cuba no século XIX Maria Lúcia Lamounier O arco do universo moral Joshua Cohen A posse de Goulart: emergência da esquerda e solução de compromisso Alberto Carlos de Almeida In córpore sano: os militares e a introdução da educação física no Brasil Celso Castro Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 278 Neoliberalismo, racionalidade e subjetividade coletiva José Maurício Domingues Do “retorno do sagrado” às “religiões de resultado”: para uma caracterização das seitas neopentecostais Muniz Gonçalves Ferreira Resenhas As noites das grandes fogueiras – uma história da coluna Prestes José Augusto Drummond Os sertões: da campanha de Canudos, Euclides da Cunha; O sertão prometido: massacre de Canudos no nordeste brasileiro Terezinha Maria Scher Pereira Revista no 3 – 2o semestre de 1997 Artigos Cultura, educação popular e escola pública Alba Zaluar e Maria Cristina Leal A política estratégica de integração econômica nas Américas Gamaliel Perruci O direito do trabalho e a proteção dos fracos Miguel Pedro Cardoso Elites profissionais: produzindo a escassez no mercado Marli Diniz A “Casa do Islã”: igualitarismo e holismo nas sociedades muçulmanas Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Quando o amor vira ficção Wilson Poliero Resenha Nós, cidadãos, aprendendo e ensinando a democracia: a narrativa de uma experiência de pesquisa Angela Maria Fernandes Moreira-Leite Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 279 Revista no 4 – 1o semestre de 1998 Artigos Comunicação de massa, cultura e poder José Carlos Rodrigues A sociologia diante da globalização: possibilidades e perspectivas da sociologia da empresa Ana Maria Kirschner Tempo e conflito: um esboço das relações entre as cronosofias de Maquiavel e Aristóteles Raul Francisco Magalhães O embate das interpretações: o conflito de 1858 e a lei de terras Márcia Maria Menendes Motta Os terapeutas alternativos nos anos 90: uma nova profissão? Fátima Regina Gomes Tavares Resenha Auto-subversão Gisálio Cerqueira Filho Revista no 5 – 2o semestre de 1998 Artigos Jornalistas: de românticos a profissionais Alzira Alves de Abreu Mudanças recentes no campo religioso brasileiro Cecília Loreto Mariz e Maria das Dores Campos Machado Pesquisa antropológica e comunicação intercultural: novas discussões sobre antigos problemas. José Sávio Leopoldi Três pressupostos da facticidade dos problemas públicos ambientais Marcelo Pereira de Mello Duas visões acerca da obediência política: racionalidade e conservadorismo Maria Celina D’Araújo Revista no 6 – 1o semestre de 1999 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 280 Artigos Palimpsestos estéticos y espacios urbanos: de la razón práctica a la razón sensible Jairo Montoya Gómez Trajetórias e vulnerabilidade masculina Ceres Víctora e Daniela Riva Knauth O sujeito da “psiquiatria biológica” e a concepção moderna de pessoa Jane Araújo Russo, Marta F. Henning Os guardiães da história: a utilização da história na construção de uma identidade batista brasileira Fernando Costa A escritura das relações sociais: o valor cultural dos “documentos” para os trabalhadores Simoni Lahud Guedes A Interdisciplinaridade e suas (im)pertinências Marcos Marques de Oliveira Revista no 7 – 2o semestre de 1999 Artigos Le geste pragmatique de la sociologie française. Autour des travaux de Luc Boltanski et Laurent Thévenot Marc Breviglieri e Joan Stavo-Debauge Economia e política na historiografia brasileira Sonia Regina de Mendonça Os paradoxos das políticas de sustentabilidade Luciana F. Florit Risco tecnológico e tradição: notas para uma antropologia do sofrimento Glaucia Oliveira da Silva Trabalho agrícola: gênero e saúde Delma Pessanha Neves Revista no 8 – 1o semestre de 2000 Artigos Prolegômenos sobre a violência, a polícia e o Estado na era da Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 281 globalização Daniel dos Santos Gabriel Tarde: Le monde comme féerie Isaac Joseph Estratégias coletivas e lógicas de construção das organizações de agricultores no Nordeste Eric Sabourin Cartórios: onde a tradição tem registro público Ana Paula Mendes de Miranda Do pequi à soja: expansão da agricultura e incorporação do Brasil central Antônio José Escobar Brussi Resenha Terra sob água – sociedade e natureza nas várzeas amazônicas José Augusto Drummond Revista no 9 – 2o semestre de 2000 Artigos Desenvolvimento económico, cultural e complexidade Adelino Torres The field training project: a pioneer experiment in field work methods: Everett C. Hughes, Buford H. Junker and Raymond Gold’s re-invention of Chicago field studies in the 1950’s Daniel Cefaï Cristianismos amazônicos e liberdade religiosa: uma abordagem histórico-antropológica Raymundo Heraldo Maués Poder de policía, costumbres locales y derechos humanos en Buenos Aires de los 90 Sofía Tiscornia A visão da mulher no imaginário pentecostal Marion Aubrée Resenha Reflexões antropológicas em tópicos filosóficos Eliane Cantarino O’Dwyer Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 282 Revista no 10/11 – 1o/2o semestres de 2001 Artigos Profissionalismo e mediação da ação policial Dominique Monjardet The plaintiff – a sense of injustice Laura Nader Religião e política: evangélicos na disputa eleitoral do Rio de Janeiro Maria das Dores Campos Machado Um modelo para morrer: última etapa na construção social contemporânea da pessoa? Rachel Aisengart Menezes Torcidas jovens: entre a festa e a briga Rosana da Câmara Teixeira O debate sobre desenvolvimento entre o Brasil e os EUA na década de cinqüenta W. Michael Weis El individuo fragmentado y su experiencia del tiempo Carlos Rafael Rea Rodríguez Igreja do Rosário: espaço de negros no Rio Colonial Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros In nomine pater: a ciência política e o teatro intimista de A. Strindberg Gisálio Cerqueira Filho Terra: dádiva divina e herança dos ancestrais Osvaldo Martins de Oliveira Resenha Estado e reestruturação produtiva Maria Alice Nunes Costa Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 283 Revista no 12/13 – 1o/2o semestres de 2002 Artigos Transição democrática e forças armadas na América Latina Maria Celina D’Araújo Mercado, coesão social e cidadania Flávio Saliba Cunha Cultura local y la globalización del beber. De las taberneras en Juchitan, Oaxaca (México) Sergio Lerin Piñón Romaria e missão: movimentos sociorreligiosos no sul do Pará Maria Antonieta da Costa Vieira “O estrangeiro” em “campo”: atritos e deslocamentos no trabalho antropológico Patrice Schuch A transmissão patrimonial em favelas Alexandre de Vasconcelos Weber A sociabilidade dos trabalhadores da fruticultura irrigada do platô de Neópolis/SE Dalva Maria da Mota A beleza traída: percepção da usina nuclear pela população de Angra dos Reis Rosane M. Prado Povos indígenas e ambientalismo – as demandas ecológicas de índios do rio Solimões Deborah de Magalhães Lima Raízes antropológicas da filosofia de Montesquieu José Sávio Leopoldi Resenhas A invenção de uma qualidade ou os índios que se inventa(ra)m Mercia Rejane Rangel Batista China’s peasants: the anthropology of a revolution João Roberto Correia e José Gabriel Silveira Corrêa Revista no 14 – 1o semestre de 2003 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 284 Dossiê Esporte e modernidade Apresentação: Simoni Lahud Guedes Em torno da dialética entre igualdade e hierarquia: notas sobre as imagens e representações dos Jogos Olímpicos e do futebol no Brasil Roberto DaMatta Transforming Argentina: sport, modernity and national building in the periphery Eduardo P. Archetti Futebol e mídia: a retórica televisiva e suas implicações na identidade nacional, de gênero e religiosa Carmem Sílvia Moraes Rial Artigos As concertações sociais na Europa dos anos 90: possibilidades e limites Jorge Ruben Biton Tapia A (re)construção de identidade e tradições: o rural como tema e cenário José Marcos Froehlich A pílula azul: uma análise de representações sobre masculinidade em face do viagra Rogério Lopes Azize e Emanuelle Silva Araújo Homenagem René Armand Dreifuss por Eurico de Lima Figueiredo Revista no 15 – 2o semestre de 2003 Dossiê Maneiras de beber: proscrições sociais Apresentação: Delma Pessanha Neves Entre práticas simbólicas e recursos terapêuticos: as problemáticas de um itinerário de pesquisa Sylvie Fainzang Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 285 Alcoólicos anônimos: conversão e abstinência terapêutica Angela Maria Garcia “Embriagados no Espírito Santo”: reflexões sobre a experiência pentecostal e o alcoolismo Cecília L. Mariz Artigos Visões de mundo e projetos de trabalhadores qualificados de nível médio em seu diálogo com a modernidade tardia Suzana Burnier O povo, a cidade e sua festa: a invenção da festa junina no espaço urbano Elizabeth Christina de Andrade Lima Antropologia e clínica – o tratamento da diferença Jaqueline Teresinha Ferreira Mares e marés: o masculino e o feminino no cultivo do mar Maria Ignez S. Paulilo Resenhas Antropologia e comunicação: princípios radicais José Sávio Leopoldi Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética Fátima Portilho Criminologia e subjetividade no Brasil Wilson Couto Borges Revista no 16 – 1o semestre de 2004 Homenagem Luiz de Castro Faria: o professor emérito por Felipe Berocan da Veiga Dossiê Políticas públicas, direito(s) e justiça(s) – perspectivas comparativas Apresentação: Roberto Kant de Lima Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 286 Drogas, globalização e direitos humanos Daniel dos Santos Detenciones policiales y muertes administrativas Sofía Tiscornia Os ilegalismos privilegiados Fernando Acosta Artigos Estado e empresários na América Latina (1980-2000) Álvaro Bianchi O desamparo do indivíduo moderno na sociologia de Max Weber Luis Carlos Fridman A construção social dos assalariados na citricultura paulista Marie Anne Najm Chalita As arenas iluminadas de Maringá: reflexões sobre a constituição de uma cidade média Simone Pereira da Costa Resenhas Ética e responsabilidade social nos negócios Priscila Ermínia Riscado Novas experiências de gestão pública e cidadania Daniela da Silva Lima Uma ciência da diferença: sexo e gênero Fernando Cesar Coelho da Costa O consumidor artesão: cultura, artesania e consumo em uma Sociedade Pós-Moderna Colin Campbell Por uma sociologia da embalagem Franck Cochoy Revista no 17 – 2o semestre de 2004 Dossiê Por uma antropologia do consumo Apresentação: Laura Graziela F. F. Gomes e Lívia Barbosa Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 287 Pobreza Da Moralidade Daniel Miller O consumidor artesão: cultura, artesania e consumo em uma Sociedade Pós-Moderna Colin Campbell Por uma sociologia da embalagem Franck Cochoy Artigos A Antropologia e as políticas de desenvolvimento: algumas orientações Jean-François Baré Arquivo público: Um segredo bem guardado? Ana Paula Mendes de Miranda A concepção da desigualdade em Hobbes, Locke e Rousseau Marcelo Pereira de Mello Associativismo em rede: uma construção identitária em territórios de agricultura familiar Zilá Mesquita e Márcio Bauer Depois de Bourdieu: as classes populares em algumas abordagens sociológicas contemporâneas Antonádia Borges Resenhas Modération et sobriété. Études sur les usages sociaux de l’alcool Fernando Cordeiro Barbosa Governança democrática e poder local: A experiência dos conselhos municipais no Brasil Débora Cristina Rezende de Almeida Uma ciência da diferença: sexo e gênero Fernando Cesar Coelho da Costa Revista no 18 – 1o semestre de 2005 Dossiê Responsabilidade social das empresas, segundo as Ciências Sociais Apresentação: Eduardo R. Gomes Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 288 Responsabilidade social e globalização: redefinindo o papel das empresas transnacionais no Brasil Letícia Helena Medeiros Veloso A modernização de valores nas relações contratuais: a ética de reparação antecede o dever de responsabilidade? Paola Cappellin Business, politics and the surge of corporate social responsibility in Latin America Felipe Agüero Artigos Xamanismo e renovação carismática católica em uma povoação de pescadores no litoral da Amazônia Brasileira: questões de religião e de gênero Raymundo Heraldo Maués e Gisela Macambira Villacorta Conexões transnacionais: redes de Advocacy, cooperação Norte-Sul e as ONGs latino-americanas Pedro Jaime Parentesco e política no Rio Grande do Sul Igor Gastal Grill Diversidade e equilíbrio assimétrico: discutindo governança econômica e lógica institucional na União Européia Eduardo Salomão Condé Homenagem Eduardo P. Archetti (1943-2005) In Memoriam Pablo Alabarces Resenha Livro: O desafio da colaboração: práticas de responsabilidade social entre empresas e Terceiro Setor Rosa Maria Fischer Autora da resenha: Daniela Lima Frtado Revista no 19 – 2o semestre de 2005 Dossiê Fronteiras e passagens: fluxos culturais e a construção da etnicidade Apresentação: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto e Eliane Cantarino O’Dwyer Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 289 Etnicidade e o conceito de cultura Fredrik Barth Etnicidade e nacionalismo religioso entre os curdos da Síria Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Entre iorubas e bantos: a influência dos estereótipos raciais nos estudos afro-americanos Stefania Capone Os quilombos e as fronteiras da Antropologia Eliane Cantarino O’Dwyer Artigos Engajamento associativo/sindical e recrutamento de elites políticas: “empresários” e “trabalhadores” no período recente no Brasil Odaci Luiz Coradini Crônicas da pátria amada: futebol e identidades brasileiras na imprensa esportiva Édison Gastaldo O duro, a pedra e a lama: a etnotaxonomia e o artesanato da pesca em Ponta Grossa dos Fidalgos Arno Vogel e José Colaço Dias Neto De antas e outros bichos: expressão do conhecimento nativo Jane Felipe Beltrão e Gutemberg Armando Diniz Guerra Resenha Livro: A revolução urbana Henri Lefèbvre Autor da resenha: Fabrício Mendes Fialho Livro: Ser polícia, ser militar. O curso de formação na socialização do policial militar Fernanda Valli Nummer Autora da resenha: Delma Pessanha Neves Livro: Reflexões sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches Bruno Latour Autora da resenha: Verlan Valle Gaspar Neto Revista no 20 – 1o semestre de 2006 Dossiê Da técnica, estudos sobre o fazer em sociedade Apresentação: Gláucia Silva Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 290 Sobre a distinção entre evolução e história Tim Ingold A potência do fogo e a bifurcação da história em direção à termoindústria. Da máquina de Marly, de Luís XIV, à central nuclear de hoje Alain Gras As duas faces da incerteza: automação e apropriação dos aviões Glasscockpit Caroline Moricot Um laboratório-mundo Sophie Poirot-Delpech Artigos A poética da experiência: narrativa e memória Diego Soares Neocomunidades no Brasil: uma aproximação etnográfica Javier Lifschitz Liberdade e riqueza: a origem filosófica e política do pensamento econômico Angela Ganem, Inês Patricio e Maria Malta Resenhas Livro: Ciência e desenvolvimento José Leite Lopes Autora da resenha: Cátia Inês Salgado de Oliveira Livro: Le temps du pub. Territoires du boire en Anglaterre Josiane Massart-Vicent Autora da resenha: Delma Pessanha Neves e Angela Maria Garcia Revista no 21 – 2o semestre de 2006 Dossiê Antropologia, mídia e construção social da realidade Apresentação: Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes “Cantando espalharei por toda a parte, se a tanto me ajudar engenho e arte”: propaganda, técnicas de vendas e consumo no Rio de Janeiro (1850-1870) Almir El Kareh Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 291 Identidades flexíveis como dispositivo disciplinar: algumas hipóteses sobre publicidade e ideologia em sociedades “pós-ideológicas” Vladimir Safatle Remediação e linguagens publicitárias nos meios digitais Vinícius Andrade Pereira Artigos O sorriso da lua Eli Bartra Alimentos transgênicos, incerteza científica e percepções de risco: Leigos com a palavra Renata Menasche Técnicos e usuários em programas de assistência social: encontros e desencontros Heloísa Helena Salvatti Paim A economia moral do extrativismo no médio Rio Negro: Aviamento, alteridade e relações interétnicas na Amazônia Sidnei Peres Educação e ruralidades: por um olhar pesquisante plural Jadir De Morais Pessoa Resenhas Livro: Buenos vecinos, malos políticos: Moralidad y política en el gran Buenos Aires. Buenos Aires: Prometeo, 2004. 283 p. Sabina Frederic Autor da resenha: Fernanda Maidana Resenhando o conceito de “Double Bind” de Gregory Bateson em seis autores das ciências humanas contemporâneas Autora da resenha: Mônica Cavalcanti Lepri Revista no 22 – 1o semestre de 2007 Dossiê Democracia, espaço público, estado e sociedade em uma perspectiva comparada Apresentação: Roberto Kant de Lima e Fábio Reis Mota Organisation et pouvoir: pluralité critique des régimes d’engagement Laurent Thévenot O caleidoscópio identitário dos professores dos liceus do ensino Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 292 oficial nos anos 1960: julgamentos críticos e disposições práticas José Manuel Resende Violencia institucional y sensibilidades judiciales. El largo camino de los hechos a los casos Maria Josefina Martínez A formação do Estado em Angola na época da globalização Daniel dos Santos Artigos Introdução a O que é um animal? Tim Ingold Um mundo sem antropologia Clara Mafra Discutindo classificações raciais, étnicas e o racismo no futebol brasileiro a partir de um olhar desconstrutivista Marcel Freitas Defendendo privilégio: os limites da participação popular em Salvador, Bahia Bernd Reiter Resenhas Livro: La relation médecins-malades: information et mensonge da autoria de Sylvie Fainzang Autora da resenha: Jaqueline Ferreira Revista no 23 – 2o semestre de 2007 Dossiê A Política e o Popular: reflexões sobre militância e ações coletivas Apresentação: Marcos Otávio Bezerra Militantes políticos y militantes sociales: reconocimiento, persona y espacio publico Sabina Frederic Mobilizações de bairro, repertórios de ação coletiva e trajetórias pessoais Marcos Otávio Bezerra Militantismo partidário e experiência de poder. O caso do PT no Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 293 Distrito Federal Daniella de Castro Rocha Para além do MST: o impacto nos Movimentos Sociais Brasileiros Marcelo C. Rosa Artigos A sociologia da capacidade crítica Luc Boltanski e Laurent Thévenot O ensino religioso em sala de aula: observações a partir de escolas fluminenses Emerson Giumbelli Reflexões sobre a figura do narrador como “guardiã da memória” no distrito de Icoaraci, Belém (PA): incursão etnográfica na barbearia São Jorge Flávio Leonel Abreu da Silveira e Pedro Paulo de Miranda Araújo Soares O luto dos arrozeiros: uma etnografia dos impactos sociais da seca de 2005 numa cidade dos pampas gaúchos Carlos Abraão Moura Valpassos Desastre e Indiferença Social: o Estado perante os desabrigados Norma Felicidade Lopes da Silva Valêncio, Victor Marchezini e Mariana Siena Resenhas Livro: Carman, Maria. Las trampas de la cultura: los intrusos y los nuevos usos del barrio de Gardel Autora da resenha: Michele Andrea Markowitz Livro: Bestor, Theodore. Tsukiji – The fish market at the center of the world Autora da resenha: Wilma Leitão Revista no 24 – 1o semestre de 2008 Dossiê De volta ao mundo da vida de pernas pro ar: Contribuições para os estudos em corporeidade, linguagem e memória da capoeira Apresentação: Julio Cesar de Tavares Da “destreza do mestiço” à “ginástica nacional”: narrativas nacionalistas sobre a capoeira Matthias Röhrig Assunção Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 294 A memória do corpo na narrativa de mestre João Grande Maurício Barros de Castro Adaptação em movimento: o processo de transnacionalização da capoeira na França Daniel Granada da Silva Ferreira A luta da capoeira: reflexões acerca da sua origem Paulo Coêlho de Araújo e Ana Rosa Fachardo Jaqueira Angola e o Jogo de Capoeira Maduka T. J. Desch Obi Artigos Imigração brasileira na Guiana: entre elocubrações e realidade Isabelle Hidair Caminho Niemeyer: os “usos” da cultura em Niterói Margareth da Luz Coelho A socialização das meninas trabalhadoras Joel Orlando Bevilaqua Marin Entre muros e rodovias: os riscos do espaço e do lugar Eduardo Marandola Jr Resenhas Deslocamentos, movimentos e engajamentos: as formas plurais da ação humana na perspectiva de Laurent Thévenot Autor da resenha: Fabio Reis Mota Revista no 25 – 2o semestre de 2008 Dossiê Estudos de imigração: novas abordagens e perspectivas Apresentação: Márcio de Oliveira e Jair de Souza Ramos Tempo e estudo da Assimilação Nancy L. Green A imigração: o nascimento de um “problema” (1881-1883) Gérard Noiriel O papel dos agentes administrativos na política de imigração Alexis Spire Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 295 Artigos Observação flutuante: o exemplo de um cemitério parisiense Colette Pétonnet Itinerários ocupacionais, juventude e gestão de empregabilidade Delma Pessanha Neves Performance e empreendimento nos assaltos contra instituições financeiras Jania Perla Diógenes de Aquino A colonização alemã na região central do Rio Grande do Sul – capital social e desenvolvimento regional José Marcos Froehlich, Everton Lazzaretti Picolotto, Heber Rodrigues Silva e Matheus Alegretti de Oliveira Narrar, redigir e escrever: o diário nos prontuários da assistência social Isabelle Csupor e Laurence Ossipow Resenhas Livro: Pétonnet, Colette. L’observation flottante: l’exemple d’un cimetière, parisien, L’Homme, oct-déc. 1982, XXII (4r),p. 37-47 Autor da resenha: Soraya Silveira Simões Livro: Marques, Ana Claudia (Org.). Conflitos, política e relações pessoais. Fortaleza, CE: Universidade Federal do Ceará/Funcap/CNPq – Pronex; Campinas, SP: Pontes Editores, 2007. Autor da resenha: Leonardo Vilaça Dupin e Sheila Maria Doula Livro: Carneiro, Sandra Sá. A pé e com fé: brasileiros no Caminho de Santiago. São Paulo: Attar, 2007. 277p. Autor da resenha: Sílvia Regina Alves Fernandes Revista no 26 – 1o semestre de 2009 Dossiê Família e sociedade: paternidade e maternidade em questão Apresentação: Grupo de Trabalho Transmissão de patrimônios culturais Quando tecnologia, lei e família convergem: questões de gênero e geração em conexão com testes de paternidade Claudia Fonseca Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 296 Restitución de niños desaparecidos: usos políticos del parentesco en la justicia Sabina Regueiro De casa em casa, de rua em rua... na cidade: “circulação de crianças”, hierarquias e espaços sociais Maria Angélica Motta-Maués, Daniele Greice Lopes Igreja e Luiza Maria Silva Dantas Família conjugal, precariedade de provisões e matrifocalidade Delma Pessanha Neves Artigos A globalização subdesenvolvida: Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso e a formação de uma escola de pensamento latino-americana (1945-2000) Afrânio Garcia De objetos y prácticas en el mundo de la justicia: los “efectos judiciales” Deborah Daich As relações entre Executivo e Legislativo e o neoliberalismo no Brasil Leandro Ribeiro da Silva e Soraia Marcelino Vieira El Tinku: escenario cultural de la violencia ritualizada Facundo Medina Portilla e Sebastián Cohen Os participantes e promotores do Fórum Social Mundial e as bases do militantismo Odaci Luiz Coradini Luta pela terra e assentamentos no Sudeste do Pará Fernando Michelotti Resenhas Livro: FERRANTE, Vera Lúcia Botta, WHITAKER, Dulce Consuelo Andreatta. Reforma agrária e desenvolvimento: desafios e rumos da política de assentamentos rurais. Brasília: MDA; São Paulo: Uniara (co-editor), 2008. Autor da resenha: Paula Campos Pimenta Velloso Livro: CORRÊA, Maria Terezinha. Princesa do Madeira: os festejos entre as populações ribeirinhas de Humaitá-AM. Autor da resenha: Elaine Rodrigues Perdigão Antropolítica Niterói, n. 27, p. 277-296, 2. sem. 2009 297 COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. Os fornecedores de cana e o Estado intervencionista Delma Pessanha Neves Devastação e preservação ambiental no Rio de Janeiro José Augusto Drummond A predação do social Ari de Abreu Silva Assentamento rural: reforma agrária em migalhas Delma Pessanha Neves A antropologia da academia: quando os índios somos nós Roberto Kant de Lima Jogo de corpo: um estudo de construção social de trabalhadores Simoni Lahud Guedes A qualidade de vida no Estado do Rio de Janeiro Alberto Carlos Almeida Pescadores de Itaipu (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Roberto Kant de Lima Sendas da transição Sylvia França Schiavo O pastor peregrino Arno Vogel Presidencialismo, parlamentarismo e crise política no Brasil Alberto Carlos Almeida Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro Antônio Carlos Rafael Barbosa Escritos exumados – 1: espaços circunscritos – tempos soltos L. de Castro Faria Violência e racismo no Rio de Janeiro Jorge da Silva Novela e sociedade no Brasil Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro Simoni Lahud Guedes Antropolítica Niterói, n. 27, p. 297-299, 2. sem. 2009 298 17. Modernidade e tradição: construção da identidade social dos pescadores de Arraial do Cabo (RJ) (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Rosyan Campos de Caldas Britto 18. As redes do suor – a reprodução social dos trabalhadores da pesca em Jurujuba (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Luiz Fernando Dias Duarte 19. Escritos exumados – 2: dimensões do conhecimento antropológico L. de Castro Faria 20. Seringueiros da Amazônia: dramas sociais e o olhar antropológico (Série Amazônia) Eliane Cantarino O’Dwyer 21. Práticas acadêmicas e o ensino universitário Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto 22. “Dom”, “Iluminados” e “Figurões”: um estudo sobre a representação da oratória no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro Alessandra de Andrade Rinaldi 23. Angra I e a melancolia de uma era Gláucia Oliveira da Silva 24. Mudança ideológica para a qualidade Miguel Pedro Alves Cardoso 25. Trabalho e residência: estudo das ocupações de empregada doméstica e empregado de edifício a partir de migrantes “nordestinos” Fernando Cordeiro Barbosa 26. Um percurso da pintura: a produção de identidades de artista Lígia Dabul 27. A sociologia de Talcott Parsons José Maurício Domingues 28. Da anchova ao salário mínimo: uma etnografia sobre injunções de mudança social em Arraial do Cabo/RJ (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Simone Moutinho Prado 29. Centrais sindicais e sindicatos no Brasil dos anos 90: o caso Niterói Fernando Costa 30. Antropologia e direitos humanos (Série Direitos Humanos) Regina Reyes Novaes e Roberto Kant de Lima Antropolítica Niterói, n. 27, p. 297-299, 2. sem. 2009 299 31. Os companheiros – trabalho e sociabilidade na pesca de Itaipu/RJ (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Elina Gonçalves da Fonte Pessanha 32. Festa do Rosário: iconografia e poética de um rito Patrícia de Araújo Brandão Couto 33. Antropologia e direitos humanos 2 (Série Direitos Humanos) Roberto Kant de Lima 34. Em tempo de conciliação Angela Moreira-Leite 35. Floresta de símbolos – aspectos do ritual Ndembu Victor Turner 36. Produção da verdade nas práticas judiciárias criminais brasileiras: uma perspectiva antropológica de um processo criminal Luiz Figueira 37. Ser polícia, ser militar: o curso de formação na socialização do policial militar Fernanda Valli Nummer 38. Antropologia e direitos humanos 3 Roberto Kant de Lima (Organizador) 39. Os caminhos do leão: uma etnografia do processo de cobrança do imposto de renda Gabriela Maria Hilu da Rocha Pinto 40. Antropologia – escritos exumados 3 – Lições de um praticante L. de Castro Faria 41. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural Arjun Appadurai 42. Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana Victor Turner 43. Políticas públicas de segurança, informação e análise criminal Ana Paula Mendes de Miranda e Lana Lage da Gama Lima 44. O caminho do mundo: mobilidade espacial e condição camponesa numa região da Amazônia Oriental Gil Ameida Felix Antropolítica Niterói, n. 27, p. 297-299, 2. sem. 2009 45. Políticas públicas de segurança e práticas policiais no Brasil Lenin Pires e Lucia Eilbaum (organizadores) 301 Normas de apresentação de trabalhos 1. A revista Antropolítica, do programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF, aceita originais de artigos e resenhas de interesse das Ciências Sociais e da Antropologia em particular. 2. Os textos serão submetidos aos membros do Conselho Editorial e/ou a pareceristas externos, que poderão sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo. 3. Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8 páginas, no caso das resenhas. Eles devem ser apresentados em duas cópias impressas em papel A4 (210 x 297 mm), espaço duplo, em uma só face de papel, bem como em disquete ou CD no programa Word for Windows, em fonte Times New Roman (corpo 12), sem qualquer tipo de formatação, a não ser: • indicação de caracteres (negrito e itálico); • margens de 3cm; • recuo de 1cm no início do parágrafo; • recuo de 2cm nas citações; e • uso de itálico para termos estrangeiros e títulos de livros e periódicos. 4. As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com as seguintes informações; sobrenome do autor em caixa alta; vírgula; data da publicação; vírgula; abreviatura de página (p.) e o número desta. (Ex.: PEREIRA, 1996, p. 12-26) 5. As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser apresentadas no final do texto. 6. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, obedecendo às normas da ABNT (NBR-6023). Livro: MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 208p. (Os Pensadores, 6) LÜDIKE, Menga, ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. Antropolítica Niterói, n. 27, p. 301-302, 2. sem. 2009 302 FRANÇA, Junia Lessa et al. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. 3. ed. ver. e aum. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1996, 191 p. Artigo: ARRUDA, Mauro. Brasil: é essencial reverter o atraso. Panorama da Tecnologia, Rio de Janeiro, v. 3, n.8, p. 4-9, 1989. Trabalhos apresentados em eventos: AGUIAR, C. S. A. L. et. al. Curso de técnica da pesquisa bibliográfica: programa-padrão para a Universidade de São Paulo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO, 9., 1977, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: Associação Rio-Grandense de Bibliotecários, 1977. p. 367-385. 7. As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa reprodução gráfica. Elas deverão ser identificadas com título ou legenda e designadas, no texto, como figura (Figura 1, Figura 2 etc.) 8. Os textos deverão ser acompanhados de título e resumo (máximo 250 palavras) em português e inglês, bem como de 3 a 5 palavras-chave também em português e em inglês. 9 Os textos deverão ser precedidos de identificação do autor (nome, instituição de vínculo, cargo, título, últimas publicações etc.), que não ultrapasse 5 linhas. 10. Os colaboradores na modalidade artigos terão direito a três exemplares da revista; e na modalidade resenha, a um exemplar. 11. Os originais não aprovados não serão devolvidos. 12. Os artigos, resenhas e demais correspondências deverão ser enviados para: Comitê Editorial da Antropolítica Programa de Pós-Graduação em Antropologia Campus do Gragoatá, Bloco “O”, sala 325 24210-350 - Niterói, RJ Tels.: (021) 2629-2866 Antropolítica Niterói, n. 27, p. 301-302, 2. sem. 2009 * Comprando oito números, pague somente R$ 80,00 Nome: _____________________________________________________ Deposite o valor da(s) obra(s) em nome da Universidade Federal Profissão: ___________________________________________________ Fluminense/ Editora (Banco do Brasil S.A., agência 4201-3, con-ta Especialidade: ______________________________________________ 170500-8), depósito identificado nº Endereço: __________________________________________________ 15305615227047-5. ____________________________________________________________ Envie-nos o comprovante de depósito, através de carta ou fax, juntamente Bairro: ______________________________ CEP: _____________-___ com este cupom, e receba, sem qualquer despesa adicional, a Cidade: _____________________________________ UF: ___________ encomenda em sua residência ou Telefone: ( ______ ) __________________________________________ local de trabalho. Desejo adquirir a Revista Antropolítica nos 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10\11 12\13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 , ao preço de R$ 13,00 cada*. PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br) após a implementação de um Programa Socioambiental com vistas à ecoeficiência e ao plantio de árvores referentes à neutralização das emissões dos GEEs – Gases do Efeito Estufa. Este livro foi composto na fonte Myriad Pro corpo 8 Impresso na Gráfica e Editora Progressiva Ltda., em papel Offset 75g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa) produzido em harmonia com o meio ambiente. Esta edição foi impressa em abril de 2010. Tiragem: 400 exemplares