Uma incursão no território urbano da cidade de São Paulo através de
seus personagens: estudo psicossocial sobre olhares, imagens e
paisagens – diagnóstico para uma intervenção ambiental
Autor: Cintia Okamura*
Instituição: Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental – CETESB/SMA
Universidade de São Paulo - USP
*Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, especialista em
Psicologia Ambiental pela Université René Descartes - Paris V - França, pesquisadora da
Universidade de São Paulo, pesquisadora (representante brasileira) do grupo de pesquisa
internacional ACI do Ministério da Pesquisa da França, socióloga da CETESB Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental.
Resumo
O presente trabalho delimitou como território da pesquisa uma região do Centro velho da cidade
de São Paulo, onde, por meio de um “mergulho” no campo, objetivou-se compreender como as
pessoas, moradores ou freqüentadores, se relacionavam com aquele território. Nessa incursão,
verificou-se a existência de diferentes segmentos sociais a partilhar os espaços públicos,
formando diversas comunidades fechadas que, ao delimitarem o seu território, acabavam
privatizando esses espaços, produzindo a exclusão do outro, do diferente, configurando, com isso,
uma situação de conflito, ocorrendo uma luta pelo território. Essas comunidades apresentavam
como traço marcante: o agrupamento de pessoas em função de características identitárias
semelhantes. Tendo em vista o constatado, buscou-se representantes das categorias de
identidade social identificadas. Estes representantes foram, por estas categorias, chamados de
personagens. A coleta de dados subjetivos teve como substrato uma entrevista aberta, na qual se
solicitava ao sujeito que falasse sobre a sua vida e, mais especificamente, sobre a sua vida no
bairro; pediu-se também que o entrevistado conduzisse uma trilha, ao lado do pesquisador,
mostrando, comentando e registrando fotograficamente aquilo que ele considerasse importante no
seu território. A análise dos dados obtidos foi efetuada tendo como hipótese que a espacialização
da identidade desses grupos poderia ser o substrato desse conflito, na medida em que o sujeito,
ao se apropriar do espaço, supõe e tem o território como seu. O estudo apontou que a origem do
conflito ancorava-se na estrutura da ordem social, apontando como necessária a desconstrução
da realidade, que se apresenta a nós de forma naturalizada, como um modelo hegemônico.
Introdução: um autor em busca dos personagens
Um pesquisador nunca é neutro e jamais sai ileso de um processo de pesquisa. Ele carrega a sua
história de vida, que, ao se encontrar com a história social do lugar e com a história de vida dos
elementos da comunidade pesquisada, transforma e se transforma, porque o pesquisador é um
ser humano e, portanto, carrega a humanidade consigo, e não uma máquina a computar e a
transformar os dados. Como humano, é constituído pelas experiências vividas.
Ele sente, pressente, observa e é observado, estranha e é estranhado, reconhece e se faz
reconhecer, partilhando com o campo e a comunidade que pesquisa um universo infinito de
experiências. Assim, retomamos a discussão sobre a questão do pesquisador e do seu objeto de
estudo, onde não acreditamos na separação entre os dois, mas sim no processo dialético do
encontro, encontro que possibilita dois diferentes formarem em conjunto um terceiro, que já não
é mais nem só o primeiro nem só o segundo, mas um terceiro que tem um pouco ou nada dos
dois e é por isso que um pesquisador se transforma no decorrer da pesquisa.
No decorrer desta obra surgirão personagens e no papel de narradora desses, que ora falarão por
si mesmos, ora pelo grupo a que pertencem, pretendo ser apenas um instrumento a dar voz aos
personagens que criei “...volta Pirandello, por outros meios, ao princípio da autonomia da
personagem e da obra de arte, que têm vida independentemente de quem as criou.” (Magaldi,
1999, p. 26).
Consideramos esses personagens como autores da sua própria obra (vida) e da história
compartilhada pelo grupo identitário a que pertencem (Ciampa, 1987). Personagem no seu mais
amplo entendimento, personagem dos papéis que lhe foram incumbidos,
A vida impõe ao indivíduo uma forma fixa, tornada em
máscara. O fluxo da existência necessita desta fixação
para não se dissolver em caos, mas ao mesmo tempo o
papel imposto ou adotado estrangula e sufoca o
movimento da vida. Essa contradição é para Pirandello
problema angustiante não só no nível do indivíduo
humano, mas também no da sociedade dentro do fluxo
histórico. (Rosenfeld, 1973, p. 12).
QUANDO TUDO COMEÇOU...
Tento recordar quando iniciei minha (re) inserção no centro da cidade de São Paulo. Por muito
tempo, afirmei que tudo havia começado com o NEA Centro Expandido¹, a idéia de formar um
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1
O Governo do Estado de São Paulo instituiu, por meio do Decreto Lei n° 42.798 de 12 de janeiro de 1998, o Programa Núcleos
Regionais de Educação Ambiental. Tal programa foi instituído levando em conta os princípios do Tratado de Educação Ambiental para
Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, propostos durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento – Rio 92, o qual dispõe no seu Cap. 36, da Seção IV, meios de implantação da Agenda 21. Os núcleos têm como
objetivo integrar, articular e potencializar as ações dos órgãos públicos federais, estaduais e municipais, bem como da sociedade civil,
entidades ambientalistas, comunidades tradicionais, universidades e escolas, para o desenvolvimento de projetos de educação
ambiental em âmbito regional. Esses núcleos devem constituir-se como fóruns de integração e participação interinstitucional para
otimização dos recursos materiais, humanos e financeiros, tendo em vista o desenvolvimento de projetos e ações de educação
ambiental que estimulem o exercício da cidadania, configurando-se, portanto, como um instrumento de ação e mecanismo para o fluxo
de informações ambientais. Assim, foram sendo implantados Núcleos de Educação Ambiental espalhados por todo o Estado de São
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núcleo para tratar das questões ambientais do centro da nossa cidade. Na verdade, hoje, tenho
mais claro que o NEA foi apenas um pretexto, um impulso maior ou o que faltava para eu
mergulhar de vez no local, que se tornou o laboratório da minha pesquisa e que há muito tempo
me encantava. Entre tantos locais, bairros e pedaços que a cidade de São Paulo nos oferece, por
que eu teria escolhido justamente o Centro?
Entre as várias respostas e justificativas que tento encontrar, penso que a vida urbana me fascina
pela sua complexidade e diversidade, ao mesmo tempo em que estar e viver em uma metrópole
como São Paulo nos conduz a uma aventura instigante ao tentarmos compreendê-la. Sempre
achei que o Centro possui uma forte representação simbólica, pois foi onde a cidade de São Paulo
nasceu e tudo começou. São Paulo era apenas uma pequena vila, e o espaço ocupado por ela é o
que hoje chamamos de centro histórico E assim permaneceu por muito tempo, e em menos de um
século se transformou no que é, ou seja, uma verdadeira megalópole, hoje com cerca de 10
milhões de habitantes.
Pensar na transformação, no nascer, no renascer e na morte dos diversos cenários que
compuseram a história da cidade, abarcando a cada época os seus personagens foi o que me
conduziu a esta investigação, cujo objetivo inicial, ainda vago, foi descrever como as pessoas,
moradores ou freqüentadores se relacionavam com aquele território, o centro da cidade de São
Paulo.
Lembro-me de quando iniciei minha (re) inserção no Centro. Chegava neste local com os diversos
papéis que constituíam o meu personagem-pesquisador, primeiramente como socióloga da
Cetesb2 e educadora ambiental, que se juntava com a minha função de pesquisadora do Lapsi3 e
depois como coordenadora do NEA, somado ao fato de eu estar iniciando o doutorado na
Universidade de São Paulo. Nesse momento, o Centro serviu como conciliador de todos esses
papéis, fato que me trouxe um certo alívio e uma alegria momentânea, afinal, tinha a oportunidade
de agregar todos os papéis e todas as instituições que, por vezes, tinha de representar “...em
primeiro lugar, eu posso crer-me alguém, mas sou tantos quantas são as pessoas que me
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Paulo e entre eles surgiu o NEA Centro Expandido (Núcleo de Educação Ambiental do Centro Expandido da cidade de São Paulo), o
qual iniciou as suas atividades no final de 1999 e foi oficializado em dezembro de 2000, agregando as seguintes entidades: Companhia
de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), Secretaria
Municipal do Verde e do Meio Ambiente, Secretarias Municipal e Estadual da Educação, Laboratório de Psicologia Socioambiental e
Intervenção (Lapsi), Instituto Paulo Freire, Ação Local Barão de Itapetininga, Associação Viva o Centro, Associação Vida Natural
(AVN), Grupo Amigos do Meio Ambiente (Grama), Cooperativa de Catadores de Papel e cidadãos, as quais se constituíram no grupo
gestor. O NEA Centro Expandido adotou como área piloto para o início das suas atividades o centro histórico ou o Centro velho da
cidade de São Paulo. A autora deste artigo exerceu o papel de coordenadora do processo de implantação do núcleo.
2
Cetesb – Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental, empresa ligada à Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São
Paulo, cujas ações têm como objetivo o controle da poluição e a preservação do meio ambiente.
3
Lapsi – Laboratório de Psicologia Socioambiental –, com sede no Instituto de Psicologia da USP, é uma iniciativa interinstitucional de
uma equipe de pesquisadores que visa oferecer condições materiais, não-materiais e organizacionais para a sistematização de
resultados de estudos sobre a psicologia socioambiental em São Paulo, estudos estes que até então vinham acontecendo de forma
dispersa. Desta forma, o Lapsi pretende vir a se constituir em um centro articulador de atividades de pesquisa, ensino e extensão
voltadas para a consolidação da área de investigação em psicologia socioambiental e intervenção.
3
contemplam, já que as imagens não se igualam.” (Pirandello, citado por Magaldi, 1999, p. 16).
À medida que fui mergulhando no campo, fui me despindo de tudo; a experiência vivida me
conduzia a outras realidades e a outro entendimento de mim mesma, onde eu ia percebendo que
todos esses papéis e instituições eram meros detalhes diante do que eu encontrava a cada dia.
Não importava mais o que eu era, simplesmente era e, então, nada mais fazia sentido senão
desfrutar do fascinante momento de novas descobertas.
O MERGULHO NO CAMPO
Aos poucos fui (re) descobrindo o Centro: ruas, praças, edifícios, pontos comerciais e de lazer,
locais de trabalho e pessoas que o ocupavam de diversas formas. Seguindo as proposições de
Lynch (1997): cada instante há mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber,
há uma paisagem ou um cenário esperando para serem explorados e a percepção ou não dessa
paisagem dependerá do poder criativo de cada um. Com isso, procurava olhar também para além
da materialidade, buscando outras dimensões e outros significados.
O meu andar foi se tornando mais livre, resultado de uma postura mais despreocupada, pois
realizava, a cada dia, um exercício de desnaturalização da realidade, desconstruindo, com isso, a
forte imagem do perigo e da degradação.
Iniciava-se assim o que eu chamei de primeira etapa do trabalho, que foi o reconhecimento do
campo, ou melhor, o “mergulho” no campo, do qual emergiram diários que continham descrições,
as mais detalhadas possíveis, das ocorrências ambientais vivenciadas.
Assim sendo, posso dizer que a minha atitude enquanto pesquisador no campo foi antropológica,
adotando como prerrogativa importante as proposições de Canevacci (1997): a de querer perderse, de ter prazer nisso, de aceitar ser estrangeiro, desenraizado e isolado.
Para Canevacci (1997, p. 15), o desenraizamento e o estranhamento são momentos fundamentais
“...mais sofridos que predeterminados...”, que permitem atingir novas possibilidades cognitivas,
através de misturas imprevisíveis e casuais entre níveis racionais, perceptivos e emotivos, para
que se refine o olhar urbano. Considerei necessário adotar justamente esta perspectiva, que o
autor chama de oblíqua e polifônica: estranhar toda a familiaridade possível e, ao mesmo tempo,
se familiarizar com as suas múltiplas diferenças.
É a observação observadora. Que não é mais
participante da ação, mas observa também a si própria
como sujeito que observa o contexto. É metaobservação (Canevacci, 1997, p. 31).
Paralelamente, na medida em que mais profundamente penetrava no campo, deixando-me ser
invadida por ele, fui realizando um levantamento de dados sócio-histórico-demográfico relativos ao
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local em estudo. Essas informações foram sendo retiradas de fontes indiretas, mediante a análise
de trabalhos de pesquisa e investigação científica, bem como de trabalhos e estudos
desenvolvidos, na área, por instituições governamentais e não-governamentais.
Com os dados obtidos nessas fontes, verifiquei que os locais que eu estava explorando, e que eu
chamava de Centro, correspondiam ao distrito4 da Sé e ao distrito da República. Assim,
identifiquei que os lugares percorridos na infância faziam parte do que se denomina núcleo
histórico (que hoje faz parte do distrito Sé), chamado anteriormente de Centro velho e com a
minha (re) inserção no Centro, passei a explorar o local que no passado se chamou Centro novo
em oposição ao velho, hoje área do distrito República. A denominação Centro novo veio na
década de 40, quando as atividades, principalmente comerciais e bancárias, se expandiram para
essa área. Hoje, essas duas áreas fazem parte do chamado Centro velho.
Esse levantamento de dados fez-me refletir sobre todas as formas de intervenção realizadas tanto
por instâncias governamentais como pelas não-governamentais. Eu sabia que nos diversos
papéis que desempenhava, como, por exemplo, o de educadora ambiental, estava inserida em um
trabalho de intervenção. Estava claro para mim, conforme colocado por Tassara & Rabinovich
(2001), que a intervenção deve ser possibilitadora de um caminho histórico na direção de uma
verdadeira política ambiental do urbano, respeitando valores tradicionais, sintetizando novas
formas do compartilhar da vida coletiva no espaço urbano, fundamentando decisões técnicas e
políticas de projetação com eles comprometidos.
Entende-se por intervenção, conforme proposto por Tassara (1999), qualquer ato planejado de
ação estratégica sobre uma problemática e que toda intervenção deve ser precedida de um
conhecimento do meio, tanto psicológico quanto socioambiental, para não ser autoritária, sendo o
resultado de uma dialética teoria-prática. Por isso mesmo, cada vez mais reafirmava-se o objetivo
dessa minha (re) inserção no Centro; eu almeja, de fato, conhecer o meio no qual me encontrava
totalmente imersa.
Com esses dados e com a experiência vivida com o mergulho no campo, sentia que se
aproximava o momento em que eu entraria em uma segunda etapa da pesquisa. Concluía que era
preciso delimitar o local de estudo, pois o Centro configurava-se, sem dúvida, em um universo
muito amplo subdividido em distritos, bairros e pedaços. Ali havia uma população de diferentes
origens socioculturais, bem como de diferentes segmentos sociais, inscritos em espaços ou
pedaços, cujos limites físicos ou simbólicos ainda me eram desconhecidos. Um espaço, ou um
segmento dele, recebe o nome de pedaço, segundo Magnani (2000), quando, assim demarcado,
se torna ponto de referência para distinguir determinado grupo de freqüentadores como
pertencentes a uma rede de relações.
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Distrito é a divisão de município ou cidade, compreendendo, geralmente, mais de um bairro.
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E essa escolha realmente aconteceu de uma forma inusitada, que só pode ter sido o resultado de
uma simbiose ocorrida entre o campo e o pesquisador. Ainda hoje me pergunto: não teria sido,
na verdade, o pesquisador o escolhido?
“Já havia passado um ano após a minha primeira (re) inserção no Centro. Era janeiro de 2001. Eu e o
pessoal do NEA estávamos reunidos na Praça da República promovendo um evento. Abordávamos
várias pessoas que por ali passavam, simples transeuntes ou trabalhadores locais, para uma
atividade de arte-educação. Era por volta das 12 horas quando se aproximou, espontaneamente, uma
mulher, que trazia nas mãos uma garrafa contendo água mineral e alguns copos descartáveis. Veio
imediatamente em direção a nós e nos ofereceu gentilmente aquela água. Era um dia típico de verão
em São Paulo. O sol do meio-dia firmava-se no céu, fazendo-nos arder em calor e aquela água fresca
vinha como uma fonte no deserto a refrescar a garganta e o corpo suado. Seu olhar curioso
perseguiu-nos e, imediatamente, perguntou o que fazíamos ali. Expliquei-lhe sobre o NEA e as
atividades que vínhamos desenvolvendo no centro da cidade. Ela achou interessante. Falou-me
quem era, líder de uma associação comunitária, e me levou para mostrar o seu bairro. Naquele
momento, descobri que ela era moradora do local. Então pensei que não havia me deparado ainda
com os moradores do Centro. Entrávamos na Avenida Vieira de Carvalho e na qual ela mostrou-me
edifícios residenciais, lojas, restaurantes, bares e o local onde morava. Apresentou-me o Largo do
Arouche, as atividades ali desenvolvidas pelos moradores e comerciantes, e percorremos a Rua do
Arouche e as suas travessas, como a Ruas Aurora e Vitória, chegando até a Avenida São João e a
Praça Júlio Mesquita. Percebia que nesse instante, ela delimitava o seu território, o que se tornaria o
meu território de pesquisa. À medida que ia me conduzindo, numa rapidez impressionante,
mostrando-me e falando-me do seu bairro e das pessoas que lá freqüentavam, eu descobria um novo
universo. O seu olhar revelava-me coisas antes desapercebidas por mim. No olhar daquela
moradora, encontrava outras atividades e outros significados, além da simples circulação das
pessoas e veículos. Podia ver naquele instante, na escada de um edifício ou na porta de um bar,
pontos de encontro. Olhava agora para as crianças, antes nunca vistas, a brincar pelas ruas e praças.
Me apareciam os comerciantes, antes escondidos nos seus estabelecimentos. Os moradores de rua,
os vendedores ambulantes e outras personagens ainda não vistas se faziam aparecer ou se
apresentavam de forma distinta da que o nosso olhar apressado comumente vê. Configuravam-se
diante de mim grupos identitários que se apropriavam daquele espaço. Nessa experiência, percebi
que se confundiam os papéis, pois de pesquisador me transformava no pesquisado; de observador
do olhar do outro tornava-me o observado; e o olhar do observador se confundiu, muitas vezes, com
o do observado. Era o processo dialético do encontro entre o pesquisador e o seu “objeto” de
estudo...” (Okamura, 2004, p. 10-11).
Após essa experiência, passei a observar de perto o quadrilátero apontado por essa interlocutora
espontânea. Aprofundei o meu olhar e depois de algumas imersões nesse local, já não tinha mais
dúvida, realmente o campo havia me capturado e assim delimitei o território da pesquisa.
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O DESENROLAR DA TRAMA E A DESCOBERTA DOS PERSONAGENS
E assim, o campo havia capturado o pesquisador, narrador-autor, e o território da pesquisa foi
delimitado: uma porção contornada pelas Avenidas Duque de Caxias, São João e Rua Aurora,
tendo, em uma das pontas a Praça da República e, em outra, o Largo do Arouche, unidos pela
Avenida Vieira de Carvalho, que faz a conexão entre as duas praças. No interior desse
quadrilátero, temos as Ruas Vitória, Aurora e Pedro Américo e, próximo à Avenida São João, a
Praça Júlio Mesquita.
Delimitado o território da pesquisa, o “mergulho” no campo prosseguia. Entre as tantas
descobertas que eu fizera, o que passou a chamar minha atenção foi a existência de diferentes
segmentos sociais a partilhar aquele território. E então percebi que se configurava diante de mim
um grande cenário. Os espaços públicos transformavam-se em palcos no meu olhar, nos quais eu
percebia uma delimitação construída pelos seus atores carregada de símbolos e códigos.
Estes atores sabiam qual era a trama de cada um destes palcos e em qual poderiam atuar.
Percebi que cada um deles era constituído de uma comunidade feita da relação face a face e do
espaço geográfico delimitado que, segundo Sawaia (1996, p. 49), são a base cotidiana da
objetivação do conceito de comunidade.
Cada comunidade representava um segmento social, reunindo atores que se configuravam na
minha leitura como grupos de identidade social clara e definida. A identidade social, na opinião de
Mendes (2002), é um cruzamento de atributos pessoais e estruturais, uma categorização derivada
dos contextos sociais, onde decorre a interação social e os participantes nessas redes procuram
criar ideologias e histórias comuns, que integrem e legitimem as suas ações. “Para desempenhar
a contento o seu papel, o ator necessita de um clima favorável, no palco, auspiciado pela justeza
de todas as deixas.” (Magaldi, 1999, p. 26). Mas eram comunidades fechadas que, ao delimitarem
o seu palco, acabavam privatizando o espaço público e produzindo a exclusão do outro, do
diferente.
Nesse instante, perguntei-me: essa privatização do espaço, bem como a exclusão não seriam
produzidas pelo processo de apropriação e espacialização daquelas identidades? Com essas
reflexões, percebia que acabara de construir as minhas primeiras hipóteses que precisariam ser
investigadas.
Buscava, então, apreender como aquelas pessoas ou grupos se relacionavam com aquele
espaço, lembrando, conforme expõe Santos (1979), que a história não se escreve fora do espaço
e não há sociedade a-espacial, pois o espaço, ele mesmo, é social.
Ficava claro o que eu deveria buscar compreender: a inter-relação entre o espaço físico-material e
o campo simbólico, investigando a experiência vivida por cada segmento no espaço público em
estudo.
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Era o teatro da vida diante mim. E por que não? Não estamos a todo o momento a adotar e a
desenrolar papéis? “O tema do teatro é o próprio teatro – o mundo humano; o tema do ator, o
próprio ator – o homem.” (Rosenfeld, 1973, p. 43).
O próximo passo era buscar os representantes de cada segmento social, que encarnavam papéis
em consonância com os seus respectivos grupos de identidade social: os personagens autores e
atores.
MÉTODO(S) DE COLETA DE DADOS
Foi denominada primeira etapa do trabalho o seguinte período: janeiro de 2000, quando iniciei
minha (re) inserção no Centro, até janeiro de 2001, quando delimitei o território da pesquisa.
Neste período, iniciei o mergulho no campo e realizei um levantamento de dados sócio-históricodemográfico relativo ao campo em estudo.
Após a delimitação do território, iniciou-se a segunda etapa do trabalho, onde, diante das
indagações e reflexões advindas da experiência vivida através do mergulho no campo, fui buscar
representantes das categorias de identidade social que eu havia reconhecido por meio do que se
exteriorizava nas pessoas desses grupos. Estes representantes foram, por essas categorias,
chamados de personagens, pois eu observava a manifestação de signos que vinham na forma de
como elas se apresentavam, se manifestavam, falavam e faziam.
A reflexão que se colocava nesse momento era a respeito do método. Como colocam Grosjean &
Thibaud (2001), a vida social é um grande laboratório e a cidade deu lugar a uma longa tradição
de experimentações metodológicas, onde numerosas abordagens de campo foram aplicadas e
inventadas, no domínio da pesquisa, ilustrando como a questão do método é central na pesquisa.
Isto não somente porque as escolhas devem ser coerentes com o objeto, com a perspectiva e
com as hipóteses, mas porque a utilização de novos métodos engaja recortes originais do objeto
de estudo e permite a elaboração de categorias de análise inéditas. Sob este ponto de vista
podemos dizer que o espaço urbano não é um objeto de pesquisa pré-constituído, mas possibilita
uma diversidade de abordagens que, por sua vez, também o define, considerando-se o sujeito
como co-produtor do espaço.
Assim, objetivando verificar como aquelas pessoas ou grupos se relacionavam com aquele
espaço, a experiência vivida por cada segmento, fui buscar retirar dos sujeitos, personagens,
informações da esfera subjetiva, relacionando-as ao seu ambiente. Tendo em vista tais objetivos,
a coleta de dados compreendeu:
• uma entrevista aberta, onde foi solicitado ao sujeito que falasse sobre a sua vida e, mais
especificamente, sobre o seu bairro;
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• a realização de uma trilha conduzida pelo sujeito, onde foi solicitado ao mesmo o registro
fotográfico daquilo que ele considerava importante.
A primeira entrevistada foi a nossa interlocutora espontânea, nomeada como personagem líder
comunitária, cuja entrevista aconteceu em abril de 2001. Com essa primeira experiência, pude
observar que o método escolhido colocava em questão, primordialmente, o modelo que separa o
pesquisador do pesquisado, pois o momento da entrevista é, antes de tudo, um encontro que
deve permitir a ruptura de fronteiras, onde o pesquisador e o outro aprendem a se reconhecer,
engajam juntos um diálogo, apropriam-se e tornam explícito o objeto da pesquisa, estabelecendo
uma relação de confiança. Como colocam Petiteau & Pasquier (2001), a experiência será única, e
não reprodutível, na qual aceitamos o deslocamento das nossas palavras e referências e a
possibilidade de não compreender.
Verificou-se que a história de vida do personagem serviu de fio condutor sobre todo o ciclo da
relação entre o pesquisador e o entrevistado. E a trilha conduzida por este último, bem como o
registro fotográfico solicitado foram instrumentos importantes que permitiram uma aproximação do
olhar do sujeito e uma penetração profunda no campo. Isto porque acompanhar, conhecer e
reconhecer o olhar do outro exigiu o envolvimento do pesquisador em relação ao meio que lhe era
mostrado, desvelado.
A trilha é uma experiência partilhada entre o pesquisador e o entrevistado, onde esse último se
torna um guia e o pesquisador, abandonando a sua leitura, aceita ser conduzido pelo outro,
tornando-se um explorador através da narrativa e do olhar do entrevistado, lembrando que esse
percurso não é apenas um deslocamento sobre o território do sujeito, mas sim um deslocamento
sobre o universo de referência do outro. Este outro não é apenas um testemunho que nos
informa ou confirma nossas hipóteses, mas é aquele que detém o seu universo cultural e se ele
nos transmite, desestabiliza nossos hábitos, nossas referências e análises.
A primeira entrevista apontou claramente os grupos identitários presentes no local, os quais foram
sendo confirmados e complementados pelas entrevistas seguintes. Assim, foram identificados e
selecionados os demais personagens nas seguintes categorias: morador de rua, drag queen,
aposentada, menina de rua, invasora, presidente da ação local, travesti, proprietário de
restaurante, síndico do prédio, executivo, segurança do bairro, homossexual, profissional
liberal e vendedor ambulante.
No total, foram 15 entrevistados e, portanto, 15 personagens. As entrevistas foram realizadas no
período de abril de 2001 a março de 2003. A duração de cada uma delas variou em função da
relação entre o pesquisador e o entrevistado, ou seja, o grau de complexidade dos encontros: o
tempo de reconhecimento e envolvimento e o tempo disponível desse último. As entrevistas e
todas as falas que surgiram durante o percurso da trilha conduzida pelo sujeito foram gravadas,
com a autorização prévia do entrevistado. Transcrevemos integralmente a entrevista e após,
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realizamos a segunda etapa, que consistiu na devolução da mesma ao entrevistado, juntamente
com o registro fotográfico, para que ele lesse e corrigisse o que achasse necessário. Feitas as
correções, ele assinou um termo de acordo apontando se o texto correspondia ao que ele dissera
e em que termos aceitaria a publicação do mesmo, com ou sem a sua identificação.
Embora a maioria tivesse concordado com a sua identificação, por questões éticas, julgamos
conveniente manter o sigilo de todos os entrevistados, adotando um nome fictício para cada um.
Em cada percurso realizado com cada um desses personagens, abria-se um cenário novo. Tudo
estava lá: palco, ornamentos, atores principais e coadjuvantes. A trama desenrolava-se
orquestrada com os movimentos dos papéis desenrolados. Observei que os personagens queriam
falar e, de fato, o fizeram; queriam ser ouvidos e o foram por mim. Nas suas narrativas,
descortinava-se a trama da vida, pois eram autores e atores da sua própria obra (vida):
O ator apenas executa de forma exemplar e radical o
que é característica fundamental do homem:
desempenhar papéis no palco do mundo, na vida
social.” (Rosenfeld, 1973, p.31).
E por que esses personagens me falavam? Ora, eram personagens em busca de um narrador das
suas histórias que se encontrava com o narrador-autor em busca de personagens, um encontro
“perfeito”. Então, eu me transformava em um narrador e ao mesmo tempo autor que apenas
tornou real a autoria que na verdade era a do próprio personagem.
ANALISANDO O CONFLITO
Retomando, havíamos iniciado a incursão no território da pesquisa, com o objetivo de
compreender como as pessoas, moradores ou freqüentadores, se relacionavam com esse
espaço. Nessa incursão, constatamos a ocupação desse espaço público por diferentes
comunidades como: moradores, comerciantes, trabalhadores, executivos, homossexuais, morador
de rua, meninos de rua, vendedor ambulante, entre outros. Durante o dia o local preserva suas
características de centro comercial e de trabalho, e no período noturno o cenário se transforma
em palco de encontro dos homossexuais, atraindo os vendedores ambulantes e o pessoal da vida
noturna, produzindo conflito principalmente com os moradores locais e demais personagens do
dia.
Desta forma, verificamos a existência de diferentes segmentos sociais a partilhar os espaços
públicos, formando diversas comunidades fechadas, que, ao delimitarem o seu território,
acabavam privatizando esses espaços, produzindo a exclusão do outro, do diferente,
configurando, com isso, uma situação de conflito, ocorrendo uma luta pelo território. Partimos,
pois, de uma tese antropológica, onde a exclusão é produzida por comunidades fechadas.
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Após essa constatação, refinando o olhar, verificamos que essas comunidades apresentavam
como traço marcante: o agrupamento de pessoas em função de características identitárias
semelhantes. Com isso, nos apoiamos em uma tese de Psicologia Ambiental, onde a
espacialização da identidade podia ser o substrato de conflitos, na medida em que o sujeito, ao se
apropriar do espaço, supõe e tem o território como seu. E assim o estudo foi apontando que os
conflitos poderiam estar sendo ocasionados pelas diferenças de cada segmento, diferenças estas
entendidas como a imagem do “outro”, a paisagem indesejável, por exemplo, que incomoda o
nosso olhar. Esse “outro” que nega o modelo ideológico vigente, no qual estamos inseridos, e se
apresenta a nós de forma naturalizada.
Tomando como exemplo os nossos personagens homossexuais, o conflito que se estabelece
com os demais personagens seria o de valor moral, pois estes personagens (os homossexuais)
são incitados a um processo de exteriorização do comportamento sexual, tirando a atividade
sexual da esfera íntima, negando o sexo como heterossexualidade reprodutora, bem como o
modelo familiar monogâmico-patriarcal. O nosso personagem executivo coloca a questão da
moral em cheque, ao se referir aos homossexuais, indagando-se: “Que que é moral, que que não
é moral? (...) Eu não sei dizer o que é certo e o que é errado.”
Por outro lado, os nóias (meninos de rua) e o morador de rua negam simultaneamente a família
e a propriedade. Nesse momento, as questões da privacidade do mundo íntimo e da propriedade
– ambas valores burgueses – encontram-se, representando, na imagem desses personagens, o
fim da família e da propriedade.
A personagem invasora, por sua vez, representa uma ameaça à “propriedade privada”, pois,
embora afirme que “não se invade onde tem pessoas mas ocupa-se espaços vazios”, sua ação é
vista como “invasão” de propriedade alheia.
O que caracteriza, então, um espaço público na cidade de São Paulo?
Cabe colocar que não há um espaço público na cidade de São Paulo que seja a convergência das
diferentes categorias sociais que habitam a cidade, isso em função das histórias cultural, social e
material do país e em função do fato de que a característica marcante da nossa realidade é a
divisão da sociedade em dois grandes grupos: as chamadas classes médias, que têm um
comportamento “burguês”, e as chamadas classes populares, que são aqueles que habitam as
“periferias” precárias.
Segundo Vilaça (1998), é importante compreender a conceituação de uma estrutura territorial
urbana, a inter-relação entre os seus elementos e como o seu processo de produção é
comandado pela classe dominante (para nós, ideologia dominante ou modelo hegemônico), tendo
em vista manter o controle – em seu benefício – dos tempos de deslocamento espacial. Para esse
autor, as camadas de mais alta renda controlam a produção do espaço urbano por meio do
controle de três mecanismos: um de natureza econômica – o mercado imobiliário, outro de
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natureza política – o controle do Estado – e, finalmente, o de natureza ideológica, através, por
exemplo, dos meios de comunicação de massa.
Portanto, ao estudarmos formas de apropriação do espaço, em se tratando das classes populares,
as “franjas” ou as “populações marginais” do sistema, é importante entendermos que a “escolha”
do espaço ocorre, primeiramente, em função do que lhes é permitido ou do que lhes “resta”.
Assim, o espaço público em estudo é o local de sobrevivência para a maioria dos personagens,
como o morador de rua, a menina de rua, a invasora, o vendedor ambulante e, em outro nível,
para o segurança do bairro e o proprietário do restaurante, ou, ainda, foi o local onde a
compra do imóvel foi acessível, como é o caso dos personagens aposentada e presidente da
ação local. Mesmo entre os integrados na estrutura básica, observamos uma luta pela
permanência na hierarquia social: como é o caso do personagem executivo, que, para manter o
padrão de moradia, se aloja no Centro, local onde consegue adquirir o imóvel dentro do modelo
desejado. No caso dos personagens homossexual, drag queen e travesti, o Centro, após o
abandono das camadas de alta renda, tornou-se o lugar onde foi possível agregar o seu grupo,
caracterizando também uma situação “marginal”. Podemos dizer que o único personagem que de
fato teve e tem o poder de “escolha” e, portanto, morar no centro foi uma opção, é o personagem
advogado, representante da elite paulistana.
Nesse sentido, entre os nossos personagens encontramos os que estão em “situação marginal”
em seus diversos níveis e formas e, portanto, “marginais” em relação: à moradia, ao mercado de
trabalho, ao modelo familiar e a um valor moral dominante.
Enfim, como se opera a espacialização da identidade? Segundo Felonneau, Fleury-Bahi &
Marchand (2003), para que o indivíduo possa se espacializar, ou seja, se projetar em um dado
espaço, é necessário que este lugar favoreça os processos de identificação e gere uma
consciência emocional de pertencimento suscetível de se exprimir pelo processo de apropriação.
Nesse sentido, a identidade está essencialmente ligada à noção de apropriação, cujo processo,
segundo Canter (1977), transforma um espaço de vida em um outro simbolicamente significante.
Este processo é, fundamentalmente, dinâmico, tendo dois componentes essenciais: um ligado à
ação sobre o espaço e um outro simbólico ligado à identificação do sujeito em relação ao seu
ambiente. Nesse particular, a apropriação é indissociável da identificação.
O termo “apropriação” é polissêmico e controverso; trata-se, de um lado, do processo de
apropriação em si e, de outro, do seu resultado: o objeto, o lugar ou espaço apropriado. Podemos
dizer que a apropriação do espaço tem várias funções, entre as quais podemos mencionar a
social, na medida em que o indivíduo e o grupo, através das práticas de apropriação, afirmam seu
domínio sobre esse espaço.
No nosso caso, podemos dizer que a apropriação individual ou coletiva de um espaço se realiza
sob esse fundo de relações sociais mais ou menos conflituosas, em função dos interesses
específicos de cada um. Os indivíduos que partilham o mesmo lugar chegam geralmente a
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partilhar também o “apego” por esses espaços, o sentido e o significado desses lugares,
afirmando uma identidade comum.
O “apego” seria o investimento afetivo que se exprime não somente por uma marca afetiva dos
elementos desse ambiente, mas também pelo sentimento do indivíduo, ou seja, o fato de ele
manter uma ligação subjetiva forte com esse espaço. E o “enraizamento” seria o sentimento de
pertencimento que se manifesta pela estabilidade e a permanência de uma ligação estabelecida
com um lugar e pela vontade de se inscrever na duração. Se observa o enraizamento quando o
“eu” e o sentimento de identidade pessoal se inscrevem em um lugar (Ratiu, 2003).
O Narrador em Busca de uma Conclusão
Acompanhar o olhar do sujeito foi, quase sempre, uma descoberta do próprio olhar, pois, muitas
vezes, vemos apenas o que precisamos ver, atravessamos nossos dias com viseiras, observando
somente uma fração do que nos rodeia. Assim, como espectadora, tornei-me também sujeito
desse processo.
Os percursos realizados com cada um dos personagens entrevistados apresentavam-se como
(novos) cenários de uma peça teatral. Nesse ambiente, eu identificava as paisagens, que se
transformavam em panoramas com elementos cenográficos, recheados por acontecimentos e
situações inusitadas. As ruas tornavam-se vivas, jorrando movimentos, olhares, faces e as
silhuetas estampavam-se na noite como se os muros, as fachadas e as calçadas se
transformassem em cenários. Eu era uma espectadora assistindo tudo o que me era apresentado.
Um verdadeiro espetáculo estava diante de mim. Eu tentava compreender como essas paisagens
se transformavam em sensações, sonhos, emoções, ao mesmo tempo em que eu tentava
compreender a intimidade e complexidade das relações que unem o ser humano com o seu
ambiente cotidiano. As imagens superpostas e entrelaçadas começavam a ficar mais claras diante
do meu olhar, observava admirada a coexistência de universos e mundos tão diferentes
(Okamura, 2004, p.50). Assim, diante do que se apresentava aos meus olhos, fui identificando
cenas. Cada uma delas era um episódio, uma unidade, um acontecimento, uma situação
particular ou uma ação específica, contendo cada cena o seu palco e os seus atores interagindo
com o ambiente e a paisagem. Em cada paisagem encontrei grupos de pessoas que emergiam
com clareza, configurando-se de diferentes formas em função dos vários momentos do dia ou dos
inúmeros acontecimentos. As paisagens diurnas eram substituídas por outras, novas, ao cair da
noite. Foi assim que desses grupos foram identificados os personagens. Cada um deles foi uma
síntese envolvendo a história do grupo e criando uma unidade cenográfica, mostrando situações,
episódios e paisagens diferentes. No encontro e depoimento de cada personagem, fui verificando
a constituição de diferentes paisagens naquele mesmo ambiente e a transformação do território
em palco, e foi assim que o pesquisador criou o narrador-autor e constituiu uma peça de teatro
como forma de mostrar o conflito que se configura na ocupação desse espaço público, a forma
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como esse território é ocupado de diferentes maneiras no tempo (dia e noite) e no espaço. As
cenas e os atos que constituem a peça são frutos do processo de interação e inter-relação entre a
vivência do personagem narrador-autor nos diversos momentos e situações e a vivência dos
personagens que o primeiro foi encontrando.
Se a proposta é um projeto de intervenção para gerenciar os conflitos, entende-se que tal projeto
deve ser capaz de propor novas estratégias contrárias à hegemonia, buscando caminhos
alternativos, sendo necessária, por exemplo, a desnaturalização do conceito de desenvolvimento,
ou seja, a crítica à racionalidade moderna e o questionamento da direção do desenvolvimento
histórico.
Temos como hipótese, que o aprimoramento de uma tolerância na direção da possibilidade de um
convívio público no partilhar de um espaço público pode ser estimulado através da consciência
das diferenças de cada segmento, da consciência do conflito e da consciência de como é
experimentado e vivido o espaço, entendemos que essa consciência:
...é a capacidade humana para conhecer, para saber
que conhece e para saber o que sabe que conhece. A
consciência é um conhecimento (das coisas e de si) e
um conhecimento desse conhecimento (reflexão).
(Chauí, 1994, p. 117).
Para Chauí (1994):
...embora a subjetividade se manifeste plenamente
como uma atividade que sabe de si mesma, isso não
significa que a consciência esteja sempre inteiramente
alerta e atenta. (p. 117).
Esta autora distingue três graus de consciência:
• a passiva, na qual temos uma vaga e confusa percepção de nós mesmos e do que se passa à
nossa volta;
• a vivida, que é a nossa consciência afetiva, que a autora chama de “egocêntrica”, na qual
percebemos os outros e as coisas apenas a partir de nossos sentimentos com relação a eles;
• a ativa e reflexiva, na qual reconhecemos a diferença entre interior e exterior, entre si e os
outros e entre si e as coisas.
“(..) esse grau de consciência é que permite a
existência da consciência em suas quatro modalidades,
isto é, eu, pessoa, cidadão e sujeito.” (Chauí, 1994, p.
119).
Segundo Chauí (1994), o eu, ou consciência psicológica, é formado por nossas vivências, ou seja,
pelo modo como sentimos e compreendemos o que se passa em nosso corpo e no mundo que
nos rodeia. A pessoa, ou a consciência moral, é a capacidade de compreender e interpretar sua
situação e condição:
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...viver na companhia de outros segundo as normas e
os valores morais definidos por sua sociedade, agir
tendo em vista fins escolhidos por deliberação ou
decisão, realizar as virtudes e, quando necessário,
contrapor-se e opor-se aos valores estabelecidos. (p.
117).
O cidadão, ou a consciência política, representa o indivíduo como portador de direitos e deveres,
como membro portador e defensor de interesses específicos de uma classe social ou grupo,
relacionando-se com a esfera pública do poder e da lei. O sujeito, ou a consciência reflexiva,
forma-se como atividade sensível e intelectual dotada do poder de análise, síntese, representação
e significação:
...o sujeito do conhecimento não é uma vivência
individual, mas aspira à universalidade, ou seja, a
capacidade de conhecimento que seja idêntica em
todos os seres humanos e com validade para todos os
seres humanos, em todos os tempos e lugares (p. 118).
Enfim, Chauí (1992) coloca que:
“...eu, pessoa, cidadão e sujeito constituem a
consciência como subjetividade ativa, sede da razão e
do pensamento, capaz de identidade consigo mesma,
virtude, direitos e verdade.” (p. 119).
Exposta à questão da consciência, fica claro, então, que necessário se faz estimular uma
consciência ativa e reflexiva, ou, como já apontado anteriormente, deve-se estimular a crítica da
racionalidade moderna, conforme proposto por Tassara & Damergian (1996), desvelando a
ocultação do processo de criação simbólico-científico-tecnológico pelo processo produtivo e as
forças, que têm como objetivo o domínio do processo histórico, atuando no sentido de
manutenção do status quo, do qual são representantes, influenciando e persuadindo o momento
contemporâneo como sendo não-transformáveis.
Como colocado por Berger & Luckmann, a relação real entre o homem e o seu mundo é invertida
na consciência. O homem, o produtor de um mundo, é apreendido como produto deste e a
atividade humana, como um epifenômeno de processos não-humanos, sendo a questão central
saber
“...se o homem ainda conserva a noção de que embora
objetivado o mundo social foi feito pelos homens e,
portanto, pode ser refeito por eles.” (Berger &
Luckmann, 1985).
Mas o narrador-autor tem esperança, pois ele acredita na emancipação humana ou na
metamorfose humana, que, segundo Ardans (2001):
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“...pode-se entender como emancipatório tudo quanto
contribua para a expressão dessa capacidade de
metamorfosear-se dos seres humanos, pois é por esse
caminho que os detentores de poder podem ser
enfrentados, coibindo suas contrametamorfoses e as
proibições de metamorfose que cada vez mais
constrangem a vida humana...” (p. 118).
Assim, se a alternativa for uma proposta de intervenção educativa, acreditamos que ela poderá
estimular a emancipação humana – a pedagogia da emancipação, como apontado por Boaventura
(1999) – e tal intento poderá ter, como condição inicial, tornar o sujeito consciente do seu olhar.
Isto porque, entendemos que, ao perceber o próprio olhar, o sujeito poderá perceber a existência
de outros olhares: a existência do “outro” que, muitas vezes, nos incomoda. E suscitando esse
novo olhar, vislumbramos a possibilidade de desnaturalização da realidade, no sentido de
estimular a crítica e atingir a conduta.
Tassara & Darmegian (1996) argumentam que para romper este processo de “dominação”, há a
necessidade de criação de um homem planetário capaz de se relacionar com base em uma ética
de interdependência dos grupos, e não da competição.
Estas autoras propõem como estratégia a organização de zonas cada vez mais extensas de
abertura do universo da locução – sendo tal estratégia baseada no proposto por Habermas (1987)
– e de promoção de redes de diálogos interculturais, como forma de construção de um novo
humanismo. É enfatizado que para a produção desse novo humanismo, é preciso a sobrevivência
da história processada mediante a crítica de sua representação social hegemônica.
Desta forma, um programa de intervenção deve, antes de tudo, “ouvir” os personagens inseridos
no meio em que se quer intervir
“...nem que seja por breves minutos, as suas vozes
devem ser ouvidas...” (Mendes, 2002, p. 526).
Assim, o narrador-autor “ouviu” os personagens que encontrou, descobriu e discutiu o(s)
conflito(s) e se propôs a planejar uma ação estratégica sobre essa problemática. Ele se permite
aqui não saber, mas se propõe, sim, voltar ao palco para interagir com os personagens e “testar”
as hipóteses resultantes deste estudo, que será a continuidade desta pesquisa em um próximo
trabalho. No decorrer da pesquisa, o personagem-narrador-autor transformou-se – não é mais o
mesmo –, pois carrega agora todas as experiências vividas e partilhadas com o campo e com a(s)
comunidade(s) que pesquisou, tendo um compromisso com os personagens que encontrou.
A proposta que se coloca é a realização de um laboratório social envolvendo todos os segmentos
sociais identificados e representados pelos seus personagens, no qual se explicitaria a natureza
do conflito e os mecanismos do modelo hegemônico que o conduzem. Com isso, objetiva-se
estimular a produção de uma consciência reflexiva, que leve à desalienação e à desnaturalização
da realidade, que, por sua vez, podem possibilitar a emancipação do indivíduo.
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No entanto, o narrador-autor está ciente, também, que essa consciência não garante a resolução
do conflito, pois, lembremos, conforme nos diz Pirandello (citado por Magaldi, 1999), do princípio
da autonomia do personagem que tem vida, independentemente de quem os criou.
Assim, a “única” certeza resultante é a de não ter visto tudo. Talvez essa certeza possa parecer
decepcionante ao leitor. Ora, mas ela tem um lado positivo, que é incitar outros personagensnarradores-autores para a continuidade da investigação.
Ao escrever este trabalho, foram múltiplas as vozes que falaram, inclusive oriundas de um diálogo
interno permanente envolvendo lembranças, reflexões, emoções e desejos que, segundo Mendes
(2002), podem ser entendidos como metáforas da conversação, sendo elas
“...essenciais para se perceber como as pessoas
organizam e ancoram o fluxo contínuo e indeterminado
das suas experiências.” (p. 519).
E foi assim que o pesquisador-autor criou o narrador: um narrador dele mesmo – com todos esses
diálogos internos –, um narrador dos acontecimentos, um narrador dos personagens e um
narrador ao mesmo tempo autor.
O pesquisador-narrador-autor entregou-se ao campo, envolveu-se com a comunidade pesquisada
e viveu emoções no encontro com os personagens, estabelecendo, com cada um deles, trocas e
ruptura de fronteiras. Cada personagem foi uma experiência “única”, uma lição aprendida
expressa na sua história de vida e através da narrativa dele, possibilitando-nos conhecer outras
humanidades
“...no jogo sério e cheio de conseqüências da
identificação, não é de se esperar que o analista saia
incólume, mas espera-se um esforço de apresentação
das diferentes perspectivas, numa contribuição
modesta para o sublinhar da humanidade que habita
em todos nós.” (Mendes, 2002, p. 534).
Enfim, o narrador-autor permitiu-se, no decorrer desta obra, expor seus sentimentos e emoções,
que o acompanharam durante todo o processo da pesquisa, pois entende-se que a ciência
também não é neutra quanto aos seus propósitos e filiações políticas, assim como não está livre
da subjetividade de quem a realiza.
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