A Teoria da Ação de Aristóteles e a Noção Gramatical
de Vontade no Segundo Wittgenstein
Geraldo das Dôres de Armendane∗1
Resumo: Tendo como ponto de partida a teoria da ação aristotélica que trata da relação entre movimento (kínesis) e
atividade humana (energeia), este artigo busca esclarecer a noção wittgensteiniana de vontade, presente nas
Investigações Filosóficas, seções 611-628. Se para Aristóteles a vontade é intencional e teleológica, para
Wittgenstein a vontade é uma questão gramatical. Segundo o pensador austríaco, não há um “projeto mental”
anterior a uma ação corporal, pré-existente na mente humana, nem “essências” e nem “entidades ocultas” por trás da
vontade, bastando-se, assim, entrar no jogo de linguagem e entender as suas regras.
Palavras-chave: Vontade; Movimento; Teoria da Ação de Aristóteles; Wittgenstein
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O tema da ação ocupa um lugar central na tradição filosófica ocidental. A teoria da ação é formada
por dois conceitos fundamentais: a noção de movimento (kínesis) e de atividade humana (energeia). A
princípio esse tema era amplo demais para ser explicitado pela filosofia, pois quando se falava de ação,
que tipo de operar devia ser explicado, o movimento da natureza ou a atividade humana? Além do mais, a
atividade humana devia ser compreendida como quaisquer outros movimentos da natureza? Aristóteles
foi quem primeiro tratou de delimitar o significado genérico desse termo, buscando situá-lo
especificamente no âmbito do operar humano. Desse modo, o filósofo estagirita tratou de compreender e
justificar a ação, tendo como fonte e princípio o próprio ser humano.
Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein faz a seguinte observação: “Quando eu levanto o meu
braço é meu braço que se levanta. E surge o problema: o que é que sobra se do fato de eu levantar o
braço, eu subtrair o fato de meu braço se levantar?” (IF∗§ 621, 1994). Com isso, o filósofo austríaco
introduz o tema da ação no âmbito do debate da filosofia analítica contemporânea. Nesse caso, qual é a
diferença entre o simples movimento humano de ‘levantar o braço’ e a vontade?
Este artigo busca esclarecer a concepção de vontade no segundo Wittgenstein, tal como aparece nas
Investigações Filosóficas, seções 611-628, tendo como ponto de partida a teoria clássica da ação
Mestrando em Ética e Epistemologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e professor do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI).
∗
1
O presente texto foi inicialmente concebido para ser apresentado na I Jornada de Pesquisa do Mestrado em Ética e
Epistemologia da UFPI - Universidade Federal do Piauí, de 03 a 04 de dezembro de 2009.
∗
Doravante, passarei a utilizar a sigla IF para designar a obra Investigações Filosóficas de Wittgenstein.
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aristotélica. Para isso, num primeiro momento, (i) busca-se compreender a teoria da ação de Aristóteles;
em segundo, (ii) analisar a noção de vontade de Wittgenstein nas Investigações; em terceiro, (iii)
relacionar a teoria clássica da ação de Aristóteles com a concepção de vontade no segundo Wittgenstein e,
a partir daí, verificar se é possível subtrair uma teoria da ação do pensamento do filósofo austríaco.
I - A TEORIA DA AÇÃO ARISTOTÉLICA
A teoria clássica da ação aristotélica concebe o significado do agir humano como teleológico. Nesse
sentido, no simples ato humano de ‘levantar o braço’, o que está diretamente oculto é o fim em absoluto
(NATALI, 1996, p.110-111). Aristóteles foi quem tratou de desenvolver uma teoria da ação focada no ser
humano como fonte e princípio do agir. Segundo o filósofo estagirita, para as ações que os seres humanos
praticam, existe alguma finalidade que desejam por si mesma, tal finalidade deve ser o bem e o melhor
dos bens (EN∗ 1, 1, p. 17).
Com isso, Aristóteles buscou distinguir as ações que são realizadas no campo do necessário, ou melhor,
de um modo que não pode ser diferente do que é; das que se realizam no campo do possível, ou seja, de
uma maneira que pode ser diferente do que é. Ele situou o necessário no reino da natureza ou no campo
das ciências teoréticas, como a matemática, a física e a filosofia primeira, por exemplo.
É no campo do possível, segundo Aristóteles, que se situam as ações humanas. No reino humano, ou
melhor, no mundo do que é contingente, estão incluídas as produções (poieses) e as ações praticadas
(práxis) dos seres humanos. O fazer, para o filósofo estagirita, é diferente do agir, pois o fazer relacionase com a criação e não com a ação. A origem da ação, por sua vez, é a escolha (aíresis)4, e a origem da
escolha está no desejo e no raciocínio dirigido a algum fim (telos) (EN 6, 1139b, 2. p. 114-116). Natali
salienta que,
Aristóteles usa sempre exemplos de ações nos quais é fácil distinguir práxis e poiesis. Exemplo de
poiesis: construir uma casa, curar um doente; exemplos de práxis são organizar um coro ou uma oferenda
votiva, golpear o inimigo, opor-se ao exército invasor, oferecer um banquete de núpcias; exemplos de práxis
má são: cometer adultério, fugir do campo de batalha abandonando o escudo, implorar para ser morto para
evitar a dor, etc. Como se vê, todos os exemplos de ações muito complexas (1996, p. 112).
∗
4
Passarei a utilizar a sigla EN para designar a obra de Aristóteles, Ética a Nicômaco, e METAPH, para Metafísica.
Segundo Aristóteles, a escolha (αιρεσιζ) difere tanto da vontade (βονλησιζ), que diz respeito aos fins, quanto da
escolha deliberada (προαιρεζιζ), que estabelece as várias coisas (ações e meios) que devem ser atuadas para
alcançar determinados fins. De acordo com Giovanni Reale, a escolha é a ação que elege e coloca concretamente em
ato as coisas consideradas realizáveis. Cf. REALE, G. História da Filosofia Antiga, v. 5. Trad. Henrique C.Lima
Vaz.; Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2001, p. 98.
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Höffe observa que para Aristóteles, a ação está diretamente relacionada com o desejo (órexis) 6, com
o querer 7 e com a vontade (boýlesis) 8 humana. O desejo humano consiste no ansiar por um fim
previamente dado, a eudaimonia, que significa felicidade. O reconhecimento consciente desse fim pela
escolha pertence essencialmente à vontade dos agentes racionais, incluindo a possibilidade de ter
conhecimento do bem e, apesar disso, praticar o mal (2008, p. 187). De acordo com Aristóteles, uma
pessoa que agiu por ignorância não agiu voluntariamente (ákon). Somente pode ser considerado ato
voluntário (ekón) aquele que tem como fonte o próprio agente, quando este conhece as circunstâncias
particulares em que está agindo (EN 3 1111b 1, p. 52).
Desse modo, a teoria clássica da ação aristotélica está essencialmente relacionada com a ética.
Höffe ressalta que para Aristóteles a vida humana como um todo deve ser entendida não como um mero
produzir, mas somente como um agir. O agir humano deve elevar a mera vida pura e simples (zen) ao
êxito da vida (eu zen), que significa a felicidade, e isto é característico do ser humano como ser racional
(2008, p.178).
A escolha, para Aristóteles, parece estar intimamente relacionada com a excelência moral. O objeto
da escolha é algo que está ao alcance do ser humano, ou seja, é aquilo que o ser humano deseja após uma
deliberação e, assim, passa a desejar em conformidade com essa deliberação (EN 3 1113a,3, p. 56). Com
isso, afirma com Höffe, Aristóteles situa o agir humano, que tem como fim uma boa vida (eu zen), no
6
Para Zeferino Rocha, Aristóteles inicialmente usou órexis (ορεξις) para designar desejos irracionais. Depois se
tornou o termo genérico para designar tanto o desejo racional quanto os desejos irracionais. Cf. nota de rodapé,
ROCHA, Z. O desejo na Grécia Clássica. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, III, 1,
84-116, 2000, p. 107. Marcos Zingano ressalta que em Aristóteles, a diferença entre desejo natural ou animal
(irracional), é que os animais têm sempre impulso (θυµοζ) e apetite (επιθιµια), pois através desses dois tipos de
desejos, os movimentos dos animais podem ser explicados por suas conexões causais, possibilitadas pela
discriminação sensitiva particulares. Por outro lado, o desejo humano (racional) é sempre um desejo proposicional,
há impulso e apetite sempre acompanhados de razão. Com isso, para Aristóteles, existem três tipos de desejos
humanos: o impulso (θυµοζ), o apetite (επιθιµια) e o querer (βονλησιζ), todos eles são proposicionais e todos se
aplicam à deliberação. Cf. ZINGANO, M. Estudos de Ética Antiga. 2ª ed. São Paulo: Discurso editorial/Paulus,
2009, p. 185-86.
7
Em Aristóteles o querer se traduz também como boýlesis (βονλησιζ). O querer é uma espécie de desejo que
provém da parte racional da alma e que se aplica à escolha deliberada (προιρεσσιζ). Há, porém, uma diferença
entre o querer e a escolha deliberada. Aristóteles afirma que o querer diz respeito aos fins, enquanto a escolha
deliberada diz respeito aos meios (EN 4, 1112b, p. 54-55 ).
8
Os gregos antigos e, particularmente, Aristóteles, desconheciam a noção de vontade (βονλησιζ) como
modernamente a conhecemos. Os latinos traduziriam o termo vontade por (voluntas). Esse termo ganhou um
significado forte com o pensamento cristão, sobretudo, na Idade Média. Contudo, parece ser anacrônico falar de
vontade em Aristóteles. A doutrina da deliberação (προιρεσσιζ) aristotélica, por outro lado, parece suprir essa
carência de significado. Por desconhecer essa noção, Aristóteles foi levado a sustentar que só deliberamos sobre os
meios e nunca sobre os fins. ZINGANO, M. Estudos de Ética Antiga. 2009, p. 167.
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âmbito das escolhas pragmáticas, comprometidas com a felicidade, tal escolha deliberada é denominada
prohaíresis9 (2008, p. 181).
Segundo Höffe, em Aristóteles aquele que confiar na parte racional da decisão deve preparar-se
para uma atitude intelectual, denominada phrônesis, que significa prudência (2008, p. 182). De acordo
com Vaz, a phrônesis representa o tema central do Livro VI da Ética a Nicômaco e do Livro V da Ética a
Eudemo. O Livro VI da Ética a Nicômaco deve ser considerado o centro de equilíbrio de toda a
construção da ética aristotélica e o texto fundador da teoria prática como sendo intrínseca e constitutiva
da práxis (2000, p. 145).
Segundo Vaz, Aristóteles tratou de situar a phrônesis no centro do universo da práxis, buscando
apresentá-la como a primeira das virtudes dianoéticas, a virtude da razão reta (orthós lógos) que trata de
estabelecer a medida (métron) razoável entre os extremos da práxis humana. Aristóteles considera, com
isso, a existência de certo padrão que determina o meio entre o excesso e a carência, para que o ser
humano possa agir em conformidade com a reta razão (2000, p. 104-106).
Höffe observa que para Aristóteles, contam-se como prudentes aqueles animais que dispõem de
uma capacidade de precaverem-se, como por exemplo, as formigas e as abelhas. Com relação ao ser
humano, o filósofo estagirita admite que exista uma “prudência maquiavélica”, do mesmo modo que há
uma prudência da serpente e uma esperteza da raposa. Por outro lado, quando se trata de virtudes morais,
entende-se por phrônesis ou sabedoria prática, a virtude que trata de deliberar acerca do bem e do mal, do
justo e do injusto, do correto e do incorreto para o ser humano (2008, p.182).
Em Aristóteles, a phrônesis representa a ética suprema por excelência. Ela indica a vivência prática,
a habilidade do homem sábio de deliberar bem sobre o que é bom e conveniente para si mesmo, não em
relação a um aspecto particular como, por exemplo, quando alguém quer saber que tipo de coisa concorre
para a boa saúde e para o vigor físico, e sim acerca das coisas que nos levam a viver bem de um modo
geral (EN 6, 1140a 5, p. 116). Vaz salienta que para Aristóteles, o “varão prudente”, o phrônimos, se
constitui no modelo de realização concreta do bem. Com isso, Sócrates passou a representar para a
filosofia, o modelo ético do “varão prudente”, do mesmo modo em que Péricles representou para o
universo político, pois ambos uniram em suas vidas a teoria e a prática (1999, p.149).
Segundo Natali, em Aristóteles, a vida ética deriva de um processo complexo de adestramento do
indivíduo. No início, o agente ético necessita da orientação de outras pessoas para exercitar-se na vida
virtuosa, para que depois, sozinho, possa habituar-se a ser bom, a realizar ações belas e, com isso,
experimentar a sensação de prazer em realizá-las finalmente de um modo pleno e consciente (1996, p.
104).
Por fim, Natali observa que para Aristóteles seria ridículo querer demonstrar que existe um
princípio autônomo no mundo da physis, bem como seria ridículo também querer demonstrar que existe
em nós um princípio que nos permite intervir no mecanismo da physis (ibid.; p. 111). De acordo com o
filósofo estagirita, as ações humanas implicam movimento (METAPH III, 2, 996a 27) que têm como
9
A proaíresis (προαιρεζιζ) ou escolha deliberada, segundo Aristóteles, é uma espécie de desejo deliberado
acompanhado de razões. Cf. nota de rodapé, ZINGANO, M. Estudos de Ética Antiga, 2009, p. 186. Segundo
Giovanni Reale, a proaíresis representa o momento decisório do agir ético e, portanto, o coração da moral. Cf.
REALI, G. História da Filosofia Antiga, v. 5, p. 98.
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eficácia o próprio agir humano. A ação humana, do ponto de vista formal, é energeia e, do ponto de vista
material, é composta de kínesis. Sendo assim, energeia e kínesis constituem um agir com fim em si
mesmo cujo resultado é a eficácia da ação e do agente, fonte e princípio de sua própria ação.
II - A NOÇÃO WITTGENSTEINIANA DE VONTADE NAS INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS
Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein afirma que “o querer é tão-somente uma experiência”,
poder-se-ia dizer (a ‘vontade’ é tão somente representação). Ela vem quando vem, não posso produzi-la
(IF§ 611, 1994, p. 213). Desse modo, o pensador austríaco busca dissolver a ideia contemplativa da
vontade presente em sua primeira obra, o Tractactus Logicus-philosophicus. Segundo essa concepção, a
vontade fenomênica constitui um evento ordinário que simplesmente nos ocorre e que se relaciona de
forma contingente às nossas ações (GLOCK, 1997, p. 379).
Em seguida, Wittgenstein trata de aprofundar essa crítica, buscando diferenciar o movimento
voluntário do involuntário. Segundo o pensador austríaco, o simples movimento corporal humano de
‘levantar o braço’ constitui um ato voluntário, uma ação que fazemos. Outros movimentos físicos do
corpo, como por exemplo, as fortes batidas do coração, não dependem do nosso controle, portanto, são
involuntários (IF§ 612, 1994). Com isso, Wittgenstein situa os atos voluntários no campo da ação, que
tem como fonte e princípio o ser humano.
No movimento voluntário de levantar o braço não existe uma ‘representação da vontade’, nem uma
‘sensação interna’ atuando sobre o ser humano como um fenômeno mental sutil que só revela uma
introspecção atenta (CUTER, 2008, p. 36). A observação que Wittgenstein faz na seção a seguir explicita
melhor esse ponto: “quando ‘eu levanto o meu braço’, é meu braço que se levanta. E surge o problema: o
que é que sobra se do fato de eu levantar o meu braço eu subrair o fato de meu braço se levantar?” (IF§
621, 1994, p. 215). Como é possível saber isso? Para isso, o pensador austríaco busca atacar a posição
defendida por James conhecida como “sensação cinestésica” e a “ideia transcendental” de vontade. De
acordo com a noção de sensação cinestésica, a vontade de realizar determinado ato vem sempre
acompanhada da memória de sensações prévias do movimento, assimilando, desse modo, vontade a
desejo.
Segundo Wittgenstein, essas sensações não podem autorizar as declarações que fazemos sobre nós
mesmos, visto que as identificamos embasados em movimentos voluntários de nosso corpo. Outra
posição criticada por Wittgenstein na seção 620, das Investigações, é a ideia ‘transcendental’ de vontade
como um ponto sem extensão, uma ‘ponta de uma agulha’, onde o sentido de fazer do agente está
desvinculado de qualquer experiência, constituindo, por assim dizer, uma força mental inefável (GLOCK,
1997, p. 380-81). Essas duas posições enfatizam a ideia de impotência do ser humano frente à vontade e
ao querer.
O querer não é considerado uma espécie de desejo, ele tem que ser a própria ação humana.
Ninguém fica parado diante de sua própria ação. Por exemplo, no ato de falar, de escrever, de levantar
algo, de aspirar, de tentar, de esforçar-se para falar e de escrever (IF§ 615, 1994, p. 214.), a pessoa age
simplesmente. Quando alguém busca desenhar um círculo e deseja desenhá-lo sem errar, exprime o seu
desejo de que a sua mão possa movimentar-se dessa e daquela forma. Ou ainda, quando alguém toma a
decisão de levantar o seu braço quando der 5 horas e busca descrever a sua ação futura: “E veja! meu
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braço se levanta quando dá 5 horas”. Nesse caso, pode-se descrever o ato voluntário proferindo sentenças,
mas na realização do ato mesmo, o “veja” fica suprimido. Não digo, no entanto, “veja, o meu braço se
levanta!”, eu simplesmente o levanto. Nesse sentido, o movimento voluntário é caracterizado pela
ausência de admiração (ibid.; § 627-28, p. 217), bastando, contudo, que tentemos identificar o agir real
como algo na experiência, como algo produzido, e não como um motor imóvel da ação (GLOCK, 1997,
p. 381).
O querer, segundo Wittgenstein, não é um projeto mental anterior a uma ação corporal, préexistente na mente humana. Ele acontece a exemplo das dores estomacais pelo excesso de comida. É
nesse sentido, segundo o pensador austríaco, que o querer pode ser produzido pelo ser humano. Ao pular
na água, por exemplo, produz-se em nós o querer nadar. O querer não é o nome de uma ação nem de uma
ação voluntária. Essa ideia equivocada, no entanto, vem do fato das pessoas imaginarem o querer
enquanto uma provocação imediata, não causal, a exemplo de um nexo causal que parece ser produzido
por um mecanismo que junta duas peças da máquina (IF§ 613, 1994, p. 214). Sendo assim, ao
movimentar ‘voluntariamente’ o braço, o ser humano não se serve de um meio para produzir um
movimento, nem mesmo o seu desejo pode ser considerado como um meio (ibid.; § 614). Na seção
614, Wittgenstein critica a ideia de uma ‘imagem mentalista’ simultânea ao desejo. Nesse sentido, ao
querer que uma pessoa levante o seu braço direito, alguém estaria tendo um sentimento característico do
desejo acompanhado por uma imagem mental da coisa desejada. Essa noção mentalista pode ser
denominada “teoria alucinatória do desejo”, ou melhor, o sentido da sentença ‘levante o seu braço
direito’, assim como o objeto de todos os estados e processos intencionais de alguém, seria uma espécie
de alucinação – uma imagem ou uma cópia mental daquilo que a pessoa quer dizer, desejar, temer, crer e
duvidar (CUTER, 2008, p. 24).
Para o filósofo austríaco, não há “entidade oculta” nem nexo causal por trás da realização de um
movimento corporal, como no movimento humano de levantar o braço. Em vez de postular entidades
metafísicas por trás do movimento e da vontade, devemos lançar mão daquilo que está à vista de todos
nós e que ninguém duvidaria, ou melhor, devemos lançar mão do uso da linguagem que é fruto de um
aprendizado. Sendo assim, para que eu possa usar os nomes e as sentenças em português, de uma maneira
inteligível, é necessário que eu tenha aprendido português, antes de tudo. Com isso, os critérios para
alguém obedecer à ordem de ‘levantar o braço’ são dados pelas regras que os seres humanos dominam a
partir do momento em que aprendem a falar, ou seja, pela gramática. Segundo Siqueira, em Wittgenstein:
Os critérios que possuímos para “saber” se o que “temos” é uma vontade, um desejo ou uma intenção
(sendo esta senão uma pequena parte de nossa ampla, vaga, fluida, errática e movediça rede de termos
psicológicos), não podem ser caudatários da experiência empírica, nem aquela do senso comum nem aquela
depurada em uma teoria – seja sociológica, psicológica ou antropológica, que nos modelasse e decidisse
previamente o sentido dos termos; mas devem sim ser resultados, ainda que, a princípio, apenas negativos, da
investigação terapêutica, minuciosa e panorâmica, dos usos de palavras em seus contextos particulares. O
critério para saber se o que tenho é uma vontade é gramatical: não é “empírico” nem “transcendental” – seu
fundamento pragmático não é “natural” nem “universal”. E isso quer dizer que o critério tem caráter
convencional, normativo (a priori), contextual, e está profundamente enraizado em nossas formas de vida.
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[...] O problema da vontade não pode ser outra coisa, enquanto problema filosófico, senão o de uma confusão
conceitual promovida, antes de mais nada, pelo próprio discurso filosófico (seguido de perto pelo científico,
literário, religioso, político, moral e do senso comum) devido, antes de tudo, àquilo que se quer fazer com
este conceito – e não ao fato de o “fenômeno” ser “em si” ou “para nós” muito sutil ou complexo. Usamos e
abusamos da vontade, como razão e como causa, para explicar as ações próprias e alheias. Com que sentido?
Ao colocarmos esta questão podemos ver como um pseudo-problema filosófico se converte em autêntico
problema gramatical, um problema de compreensão dos limites do sentido do uso de uma palavra que pode
ser elucidado através de descrições gramaticais perspícuas. (SIQUEIRA, 2009, p. 15-16).
Para Wittgenstein, a vontade não é fonte de nossas ações voluntárias e nem repousa sobre a
presença ou ausência de elementos volitivos adicionais nem algo que acontece fora de nosso controle.
Com isso, o pensador austríaco abalou, de um lado; a noção de autonomia da vontade anterior ao agir
humano; de outro, a concepção de filosofia da mente davidsoniana de que não causamos as nossas ações.
Assim como Schopenhauer, o filósofo austríaco, nega que o libertarismo seja reivindicado pela
experiência de vontade, mas, por outro lado, tenta evitar o determinismo da vontade, afirmando que
mesmo que as nossas ações, de algum modo, venham seguir leis da natureza, não significa que estejamos
“coagidos” por elas (GLOCK, 1997, p. 382).
III - A RELAÇÃO ENTRE A NOÇÃO WITTGENSTEINIANA DE VONTADE E A TEORIA DA AÇÃO
ARISTOTÉLICA
É possível estabelecer alguma relação entre a noção wittgensteiniana de vontade e a teoria clássica
da ação aristotélica? De acordo com o que foi exposto até aqui, pode-se fazer as seguintes observações,
buscando identificar os elementos semelhantes e distintos entre Wittgenstein e Aristóteles:
Em primeiro lugar, percebe-se que o Wittgenstein das Investigações Filosóficas e Aristóteles
aceitam a noção de que o ser humano é princípio e fonte de sua ação. Sendo que, em Aristóteles, a
vontade é intencional e anterior a própria ação; em Wittgenstein, por sua vez, a vontade não é um
fenômeno intencional, ou seja, não consiste numa representação que pré-existe na mente humana. Ela é
produzida e controlada pelo próprio agente humano quando esse realiza a sua ação.
Vontade, para Aristóteles, tem um significado teleológico. Em Wittgenstein, por sua vez, não há
nenhuma entidade oculta e nenhum nexo causal por trás do movimento e a vontade. Com isso, os
movimentos voluntários dos seres humanos são destituídos de qualquer finalidade em vista da perfeição
do agente ou do objeto. Para o pensador austríaco, a noção de vontade é, antes de tudo, pragmática. Ela
não tem, no entanto, perspectiva metafísica e nem ética, como postulava a teoria clássica aristotélica.
Wittgenstein situa a vontade no âmbito das práticas humanas. Nesse caso, o que diferencia o
movimento voluntário do involuntário não está no que ocorre em nossa mente, mas no contexto
linguístico, naquilo que o ser humano é capaz de fazer, tendo como critério o uso da linguagem que é
fruto de um adestramento.
Percebe-se que em Aristóteles, o aprendizado das virtudes consiste num treinamento. Nesse
aspecto, pode-se observar certa aproximação entre Aristóteles e Wittgenstein, pois ambos aceitam a
naturalização das ações humanas, ou melhor, tanto para Aristóteles quanto para Wittgenstein, o
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significado das ações humanas consiste na prática das próprias ações. Da parte de Aristóteles, as ações
estão relacionadas com o campo da ética e, em Wittgenstein, por sua vez, com o campo pragmáticolinguístico. Em Aristóteles, ninguém nasce bom, mas aprende a ser bom por meio do hábito (hexis).
Wittgenstein, por sua vez, reconhece que a aquisição da linguagem é fruto de um treinamento, sendo que
parte desse aprendizado consiste no “ensino ostensivo” das palavras que não se confunde com “definição
ostensiva”, ou seja, com a denominação das coisas pelas palavras (FAUSTINO, 1995, p.15).
Desse modo, para Wittgenstein, em vez de nos ocuparmos em examinar o significado da vontade
representada em nossa mente, conforme postulava a teoria clássica aristotélica, devemos voltar para o uso
das próprias palavras, dentro de um contexto linguístico. Por exemplo, quando peço a alguém para
levantar o seu braço esquerdo, a pessoa vai levantá-lo, não havendo nenhuma outra razão para não
levantá-lo, se entender a língua que eu falo. Para obedecer a minha ordem, a pessoa não precisa examinar
uma cadeia de eventos que, segundo a tradição da ação, começaria com a representação da vontade em
minha mente que passando pela minha boca, iria até os ouvidos da pessoa, em seguida até sua mente, para
terminar no movimento de seu braço (CUTER, 2008, p. 19).
Segundo Wittgenstein, para alguém obedecer a minha ordem, basta que entre no jogo de linguagem
e entenda as suas regras, pois “se até um leão pudesse falar, nós não seríamos capazes de entendê-lo” (IF,
1997, p. 289), porque não fazemos parte do jogo de linguagem desse animal, que constitui, por assim
dizer, parte de sua forma de vida, pois entender um jogo de linguagem significa compreender uma forma
de vida.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Considerando o que foi exposto até aqui sobre a noção Wittgensteiniana de vontade nas
Investigações Filosóficas, é possível abstrair uma teoria da ação do pensamento do filósofo austríaco?
Estudiosos contemporâneos sobre o tema da ação como Natali, consideram que Wittgenstein com o
exemplo standard de ação humana como um movimento simples de ‘levantar o braço’, está na origem do
debate contemporâneo acerca desse tema. Por sua vez, a discípula de Wittgenstein, Anscombe, parte da
ideia da distinção entre movimento voluntário e não voluntário presente na seção 612, das Investigações.
Na referida seção, Wittgenstein trata de resolver o problema da ação com uma investigação mais
elementar sobre movimento e vontade (p.111).
Por tudo isso, ao introduzir e aprofundar a discussão sobre a concepção de vontade nas
Investigações Filosóficas, buscando dissolver o problema da representação e da intencionalidade da
vontade como uma entidade pré-existente na mente humana, e procurando inserir a vontade na ação
mesma, controlada pelo agente humano, cujo significado do agir é o uso linguístico nos diferentes
contextos de formas de vida (lebensform), consideramos, desse modo, que Wittgenstein colaborou para o
reposicionamento das questões concernentes à teoria da ação na filosofia contemporânea.
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Abstract: Taking as starting point the Aristotle’s theory of action that deals with the relationship between movement
(kinesis) and human activity (energeia), this article seeks to clarify the wittgenteinian notion of will, in
Philosophical Investigations, sections 611-628. If on Aristotle’s view the will is intentional and teleological, on
Wittgenstein’s view the will is a grammatical issue. According to the Austrian thinker, there is not an existing
"mental project" in the human mind before a bodily action nor "essences" or a hidden “entity” behind the will, so it’s
enough entering the language-game and understanding its rules.
Keywords: Will; Movement; Aristotle’s theory of action; Wittgenstein.
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