II Colóquio da Pós-Graduação em Letras UNESP – Campus de Assis ISSN: 2178-3683 www.assis.unesp.br/coloquioletras [email protected] UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE MÃE SUSANA NO LIVRO ÚRSULA, DE MARIA FIRMINA DOS REIS EM 1859 Aline Eiko Hoshino (Graduanda – UNESP/Assis – FAPESP) RESUMO: Analisar as representações afro-brasileiras, por meio do livro Úrsula de Maria Firmina dos Reis, considerada a obra-prima da autora, escrita em 1859. Busca-se perceber como o livro trata as questões raciais e de gênero em especial na personagem feminina de Mãe Susana. Através dessa análise buscam-se as representações da sociedade escravocrata do Maranhão do século XIX, através dos olhos da escritora Maria Firmina. PALAVRAS-CHAVE: Escravidão; mãe Susana; representação. Ao escolher como fonte uma obra literária em vez de um documento, um historiador se volta para essa obra como um leitor diferente. Sua tarefa é ao mesmo tempo narrativa e interpretativa. Como afirma Lucien Febvre (1992): “a literatura se configuraria neste caso como forma pela qual se difunde e socializa a sensibilidade de uma dada época junto ao seu público”. Porque a literatura trabalha com uma ficção, muitas vezes ela é deixada de lado, porém como ressalta Pesavento, é na literatura que se é capaz de resgatar a sensibilidade, o que torna o documento literário uma rica fonte historiográfica. A união entre literatura e história é possível, além do “fato de que as obras literárias possuem em seus conteúdos riquíssimas informações sobre uma teia de códigos culturais, convenções e citações” (COSTA, 2007, p.27). Além do mais, é relevante perceber que a literatura é um elemento para que as mulheres possam falar e escrever sobre si. Portanto, quando Maria Firmina escreve, fica aberta uma entrada para que ela possa expressar a sua subjetividade e criar sua história. No livro, aparecem personagens africanos e a pesquisa procurará entender em específico uma personagem feminina africana: Mãe Susana, presente na trama. A obra coloca os escravos agindo em pé de igualdade com os senhores, e seguindo seus próprios códigos éticos. No caso, Mãe Susana, personagem que cuida da mãe de Úrsula, morre não apenas porque não quer trair o casal (Úrsula e Tancredo), mas 46 sim porque se nega a ajudar o vilão (Tio de Úrsula). Ou seja, ela possui um posicionamento a despeito das consequências e mantêm-se firme nesta posição. Maria Firmina nos transmite a impressão de retratar em seu livro situações cotidianas de escravos que realmente existiram e, dá indícios de que certamente conhecia as redes abolicionistas para a libertação de escravos que se generalizaram na época do Império. Além disso, há uma mistura entre ficção e realidade, já que Maria Firmina usa o nome de muitas de suas amigas em suas obras como a Escrava e em poesias, que a pesquisa posterior provou que eram escravas. Logo, o objetivo geral desta pesquisa é analisar a representação feminina construída por Maria Firmina dos Reis no romance Úrsula e sua perspectiva sobre a escravidão e liberdade no período. Trata-se de uma mulher afro-descendente escrevendo sobre uma escrava e sua sociedade e deixando fluir uma forte carga autobiográfica, uma contribuição rara entre as produções literárias da época. Entender como a autora realiza a representação leva-nos a pensar neste conceito e aqui aproximamo-nos da ideia de representação de Durkheim em sua obra Sociologia e filosofia (1970). Para Durkheim a representação é uma parte da memória coletiva, ou seja, quando Maria Firmina escreve sua obra, ela está construindo sua leitura sobre o escravo e também a leitura que a sociedade tem dele. Ou seja, a autora constrói segundo o olhar dela e dentro de sua época. Nossa perspectiva é entender as representações, sob a perspectiva de gênero, construídas por Reis; estas se tornam muito enriquecedoras para entender a escrava mãe Susana. Entendemos por gênero um termo usado para teorizar a questão da diferença sexual e de papéis na sociedade, ou seja, como se constroem as diferenças que há entre o homem e a mulher. Houve três gerações de estudo de gêneros. As duas primeiras trabalharam com a mulher e com a construção da sua identidade, como Susan Paulson, Saffiotti, entre outras. Já a terceira geração passou a estudar o relacional na construção de papéis femininos e masculinos. No período de 1980, esta diferença foi problematizada e percebeu-se que havia também diferenças entre as próprias mulheres e homens, já que cada um tem uma identidade e vem de um contexto. Neste sentido, as lésbicas, as mães solteiras e as operárias têm suas próprias identidades coletivas e singulares, embora façam parte do grupo feminino. Ao enfatizarmos o olhar da escritora e sua identidade remetemo-nos a leitura de Joan Scott, que enxerga a categoria gênero através de duas proposições: A 47 primeira é que o “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas. A segunda é que o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1990, p.21). Na obra Úrsula a intenção é buscar estas referências de gênero. Adriana Barbosa de Oliveira (2007) observa a aguda leitura de mundo presente no romance Úrsula por parte da escritora Maria Firmina. Oliveira mostra em sua tese que os personagens sofrem o domínio patriarcal, e que o patriarcado é o causador da desigualdade entre os homens e as mulheres. Em sua tese, Oliveira também coloca a questão do preconceito, dos sentimentos e das dificuldades e diferenças entre homens e mulheres, que é uma condição insuperada na obra, embora Maria Firmina postule novos comportamentos em um período onde ainda havia pouco apoio social a emancipação escrava. Assim, desenvolve-se uma história e uma contribuição junto à historiografia que pode fornecer estudos dedicados ao gênero e a história afro-brasileira. História que envolve as aspirações, relações e a complexidade das experiências vividas pelas mulheres escravas, e principalmente as representações e olhares que recaem sobre elas na sociedade, em especial na questão afetiva. Na obra, assim como ocorrera no período escravista, o senhor de escravos tem por função o domínio e o controle destes; contudo, não é todo escravo que ele consegue manter sob seu domínio, visto que Mãe Susana não se submete a esta hierarquia, justamente por ser ela de uma visão de mundo antiescravista. Através da temática de gênero, essa não-submissão à hierarquia será mais bem entendida. Pela lógica do período, Mãe Susana deveria ser submissa a Fernando P. (vilão da história) e ela não o é. Já que sendo Fernando P. homem e senhor de escravos ele exerceria duplamente um poder. Primeiro por ser homem (o homem domina a mulher), segundo por ser senhor (o senhor domina os escravos). A figura de Mãe Susana quebra a representação criada pela sociedade, sobre a mestiça e sobre a negra. Ou seja, longe de ser a mulher submissa, sem pensamentos e ações próprias, Mãe Susana se afasta da figura da escrava obediente caracterizada nos romances. Numa época em que a mulher não tem voz, e que a representação das mulheres escravas em obras como de Bernardo Guimarães (A escrava Isaura) é vista de modo racista na época (para o autor só existe beleza na mulher branca), Mãe Susana aparece diante de nós criando sua própria identidade e contando sua história: — Vou contar-te meu cativeiro. 48 Tinha chegado o tempo da colheita e o milho e o inhame e o mendubim eram em abundância nas nossas raças. Era um destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã risonha, e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim eu estava triste, e não sabia, era a primeira vez que em afligia tão incompreensível pesar [...] E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível... a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava-pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo da minha alma, só vós o pudestes avaliar! (REIS, 1988, p.82). Mãe Susana ao contar a história de seu cativeiro para o neto (Túlio), procura mostrar que ser homem livre com sua alforria nem sempre significa liberdade. Mãe Susana tenta mostrar para Túlio que mesmo liberto, não está livre, pois na sociedade brasileira a distinção entre escravo e liberto não passava de um logro, já que Túlio ia continuar a dever humildade e obediência mostrando quão diferente eram as expectativas dos senhores e dos libertos. Além disso, a figura dessa escrava é muito importante, e como informa Eduardo de Assis Duarte a respeito de Mãe Susana: Essa voz feminina emerge, pois, das margens da ação para carregála de densidade, do mesmo modo que sua autora, que também emerge das margens da literatura brasileira para agregar a ela um instigante suplemento de sentido: o da afro-brasilidade (DUARTE, 2004, p.278). Referências bibliográficas BARBOSA, Adriana de Oliveira. Gênero e etnicidade no romance Úrsula, de Maria dos Reis. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2007. CHALHOUB, Sidney. Diálogos político em Machado de Assis. In: História Contada: Capítulos de História Social da Literatura no Brasil. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1998. COSTA, Renata. Subjetividades femininas: mulheres negras sob o olhar de Carolina Maria de Jesus, Maria Conceição Evaristo e Paulina Chiziane, 2007. 49 DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura, Política, Identidades. Belo Horizonte: UFMG, 2005. ______. 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