Ministério da Cultura, Filmes de Quintal e UFMG apresentam 150 festival do filme documentário e etnográfico / fórum de antropologia, cinema e vídeo /1 Este festival é dedicado a Adrian Cowell. 2\ \ sumário apresentação / 7 sessão de abertura / 27 mostra Fernando Coni Campos / 31 mostra cinema dos povos originários Bolívia e México / 45 mostra o animal e a câmera / 83 mostra competitiva nacional / 121 mostra competitiva internacional / 147 sessões filmes de quintal / 165 sessão especial / 173 lançamento / 177 curso dilemas da observação / 181 fórum de debates / 191 mostra de extensão / 201 ensaios e entrevistas / 205 Depoimento: uma guerra declarada / Fernando Coni Campos / 207 Ladrões de cinema / Fernando Coni Campos / 211 Viagem ao fim do mundo / Jean-Claude Bernardet / 216 Ladrões de cinema, ou: quem faz a história? / Jean-Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos / 219 Viagem ao fim do mundo / Jairo Ferreira / 223 Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão / José Carlos Avellar / 226 /3 4\ As mágicas do delegado / Celso Amorim / 231 Depoimento / Julio Bressane / 237 Cinema e vídeo indígena como estratégia de afirmação cultural, social e política dos povos originários da Bolívia / Iván Sanjinés Saavedra / 240 Vídeo comunitário e autorrepresentação / Entrevista com Carlos Efraín Pérez Rojas / 248 Fora da ótica Indígena: zapatistas e realizadores autônomos / Alexandra Halkin / 257 O outro olhar. Vídeo indígena e descolonização / Freya Schiwy / 281 Três paradigmas para pensar o vídeo entre os Kayapó / Diego Madi Dias / 300 Como filmei Nanook do Norte / Robert J. Flaherty / 329 Banghawi: caça ao hipopótamo com o arpão pelos pescadores Sorko do Médio-Níger / Jean Rouch / 340 Os cavalos de Goethe, ou a Alquimia da velocidade / fotografias / 353 O Afeganistão é inconquistável / Arthur Omar / 357 O cinematógrafo visto do Etna (1926) / Jean Epstein / 361 Nossos anos Cahiers / Jean-Louis Comolli e Jean Narboni / 371 programação / 375 índices de filmes e diretores/ 389 créditos / 397 /5 6\ / apresentação /7 8\ \ forumdoc.bh 15 anos* Eu gostava de te oferecer cem mil cigarros, Uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos, um automóvel, uma casinha de lava que tu tanto querias, um ramalhete de flores de quatro tostões... Aqui o trabalho nunca pára. Agora somos mais de cem. (Ventura) 1. O forumdoc.bh foi um projeto coletivo construído na dúvida e na incerteza. Imprecisão, resistência, resíduo. Quando o espetacular ensaiava tudo dominar, quando os donos do capital ameaçavam tomar conta de vez dos humanos e da natureza, da política, da televisão, do cinema de “bilheteria”, da ciência, da arte de galeria, da programação genética, da reportagem televisiva, do jornalismo, dos realitiesshow, de um tipo de festival com pura cara de publicidade, antes que tudo acabasse no roteiro e no pré-estabelecido pelas elites, antes que o mundo acabasse ou que ele se tornasse único e sem diferença, neste momento, foi preciso sonhar, e, paradoxalmente, foi preciso inventar algo menor, periférico, que apostasse na continuação do mundo com o cinema, que rompesse as fronteiras entre a arte e a vida, a ficção e o documentário, e, ainda, que fosse livre e gratuito. Deste sonho nasceu um festival de cinema que não se realiza sob a lógica do “uno” maldito do Estado ocidental, que não é feito por uma só pessoa ou cabeça pensante, mas por muitos, novos e velhos; um festival capaz de abrigar todo tipo de matéria e linguagem, que não é “retocado” pelas imagens tratadas, que aceita as impurezas /9 de registro, de imagem e som, assim como aceita as asperezas e rugas da vida cotidiana; um festival que aposta na inteligência do espectador, na sua capacidade de aceitar e construir um sentido novo a cada imagem e som projetados, mesmo se submetido à duração de longos planos-sequências, ou ao enclausuramento de um quadro ou de um quarto; um festival de cinema que é lugar de encontro, conversas, amizades (novas e velhas!), festas (Rafa, jamais esqueceremos daquela que aconteceu debaixo de chuva na rua Guaicurus – a melhor de todas, quem perdeu, nunca mais verá!), troca de conhecimentos e saberes! Este é o forumdoc.bh! Um festival feito literalmente sob o risco do real (Comolli jamais nos deixará mentir, quando, numa noite, junto com César Guimarães, num buteco, a energia elétrica da cidade acabou, depois de uma tempestade, e tivemos que continuar nossa conversa sem nos ver até que a luz acendesse novamente como se aquele “papo” fosse uma sessão de cinema sem imagem). E vejam, este festival sempre acontece no final de novembro, início de dezembro, quando, em geral, há muita chuva! Isso é para encerrar um ciclo, recomeçar um outro, lavar nossa alma, contra todos os abusos do poder e do dinheiro! Depois de cada experiência de ver a passagem de um filme no forumdoc, é tanta coisa que passa na cabeça que nunca passa! Aquela primeira imagem da índia Tiramantu, no filme Corumbiara! Um olhar pensativo de Chico Mendes, no filme de Adrian Cowell, antecipando a sua própria morte! Morte que viria ser não só dele, mas de muitos outros pequenos e diversos homens e mulheres em luta pela floresta e pelo seu modo de vida simples e harmonioso com outras formas de vida! Não é possível, outros mundos devem ser possíveis! Isto não é só sonho, não é só cinema. Um outro cinema é possível, fora do espetacular! Da rua para a sala de cinema e viceversa, isto “ainda” é possível com o forumdoc. Sim! Ah forumdoc, nossa pequena primavera árabe! 10 \ 2. O filme teve os rolos trocados. O ano era 2001. Foi assim que assisti a São Bernardo em montagem nunca dantes vista, originalíssima, em que o discurso final de Paulo Honório – “devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens” – surgia no meio do filme e não no fim. Fui ver o filme em sua suposta ordem correta quase um ano depois, quando decidi fazer dele o tema de minha monografia de conclusão do curso de Comunicação Social (seu título, que compara o filme de Leon ao livro de Graciliano, é “Redenção e revelação em São Bernardo” - na época eu me permitia brincar com palavras sérias). Passei a fazer parte do “imenso coletivo” do forumdoc somente em 2005, mas nunca me esqueço dessa sessão de São Bernardo com rolos trocados. Um acidente havia reinventado o filme e, com ele, todo o cinema, ou ao menos, a minha história com o cinema. Dez anos e muitos filmes depois, o forumdoc permanece para mim como um tremor na organização comum das coisas, suspensão da ordem, anúncio da novidade, acontecimento imprevisível e imprescindível. 3. Acho que só não participei do primeiro, há quinze anos, porque estava fora do Brasil. Voltando a habitar o patropi, tornei-me habitué do forumdoc, que emergiu da necessidade de reinventar projetos político-culturais coletivos, ironicamente atomizados e esvaziados depois da redemocratização do país. O forumdoc foi e é possibilidade de intervenção coletiva na cena cultural, através da mobilização e do agenciamento de gente em torno, na frente, atrás e através de filmes, que não encontrariam lugar nos circuitos comerciais e normais de exibição. Para mim, que vim do cineclubismo, da distribuição de filmes independentes e da militância política dos anos 1970, o forumdoc possibilitou, de novo e de outro modo, ver e discutir filmes e afins, sons e imagens pouco acessíveis ou inimagináveis, até então. E, reafirmo, possibilitou que isso fizéssemos juntos, que é / 11 mais gostoso. Festival de filmes, afetos e festas, bem que o forumdoc poderia ser chamado também de Festdoc, Afectdoc, ou forumdocfic, a partir da proposição de Birri, juntando aquelas categorias estanques, com que ainda lidamos para perceber que não são mais suficientes. Lembro também os catálogos e cartazes, sempre belos, e que são tudo que o fica quando os sons, as imagens e pessoas se vão, embora incorporados a nós. Outra característica importante do forumdoc é que ele é menor, aberto ao outro e feminino. Só tenho a agradecer por ele existir e já ser mais que uma mocinha. 4. O forumdoc era e é um festival diferente. Não apenas de outros festivais, como diferente a cada vez (como registram os catálogos). Hoje, com um pouquinho de distância, fico admirada com a capacidade que teve o festival de crescer e mudar, mas guardando essa “diferença”, espécie de qualidade – será possível? - tenaz e inconstante. Como defini-la, onde situá-la? Difícil de apanhar, a diferença está em toda parte: na curadoria compartilhada e sempre renovada, bastante resistente a modismos e ao que oferecem os lançamentos; em um gosto pelo encontro que ultrapassa (em muito) a cinefilia e os saberes especializados; nas trocas muito plurais, de que muita gente participa, algumas delas festivas, animadas como poucas; na interseção de cinema e humanidades, antropologia em particular; na valorização da conversa e do debate, que costumam se prolongar para fora do cinema, noite adentro... Morei muito tempo fora de BH, e voltar durante o forumdoc era até estratégico, para reafirmar os laços e o pertencimento a uma cidade que mudava tanto (enquanto nós também mudávamos...) Nesses 15 anos, houve momentos muito belos, especiais, engraçados, desconcertantes, alguns difíceis à beça (ao menos para quem estava nos bastidores), e na dificuldade de fazer uma escolha, guardo aquele que elegi em 2006, no aniversário de 10 anos: 1999, Cine Humberto Mauro, Santo Forte, Eduardo Coutinho, Pierre Sanchis. Para não esquecer! 12 \ 5. 2004. O pretexto não foram os filmes, mas uma festa. Eis o convite: “você não animaria a produzir a festa de encerramento do forumdoc, não?” Mas é claro! E assim fui chegando em uma das tantas reuniões que se espalhavam pelas casas dos forumdoquianos. Dessa vez no Caiçara, na casa da Mi e do Pedro. Rostos desconhecidos continham em seus olhares um brilho raro, um gosto gostoso por aquilo que os reunia. Ao fim dos debates, inflamados, a dúvida geral: “e aí, quais as sugestões de festa você tem?” E para o espanto geral respondi: “pensei em duas coisas: no velho e abandonado prédio da polícia civil da Floresta ou em um puteiro da Guaicurus”. Em meio às hesitações, uma certeza surgiu: “no puteiro da Guaicurus, claro!” E assim fez-se a inesquecível “festa-chuva” do Montanhês e meu acolhimento nessa eterna família. A primeira de uma infinidade de outras festas que se fizeram no dia a dia, em cada olhar, em cada abraço e cada boa tragada de cachaça! Salve forumdoc! Casa minha, escola nossa. 6. Não consigo precisar no tempo meu primeiro contato com o forumdoc. Parece-me que ele sempre esteve lá, como um parente distante com o qual temos um contato esparso e intenso. Lembro-me bem de uma sessão do Peões do Coutinho (o ano não sei dizer) em que saí da Humberto Mauro encantada e com um ânimo renovado por aquelas relações e aquele modo de se fazer documentário. Anos mais tarde caí de paraquedas, não por um acaso, para ser assistente de produção do forumdoc de 2007. Na abertura, novamente Coutinho, agora um pouco diferente, com o Jogo de Cena e o mesmo encantamento. 7. 2006. Ano de Tonacci, Timothy Asch, Chantal Akerman, Eduardo Escorel, Herzog, Sokurov, Glauber, Zezinho Yube, Danièle Huillet, Straub... Conversando com Jean-Claude Bernardet, num almoço em que desempenhava, dentre outras, a tarefa de receptivo pro festival, falávamos de modo geral da utilização do zoom na câmera. No meu / 13 entender, a partir das discussões propostas pelo forumdoc, quando o fotógrafo puxava a imagem enquadrando o rosto do personagem, essa falsa relação de proximidade, parecia sufocá-lo e, ao aproximar mais e mais, os detalhes de olho, boca, nariz, dilacerava esse rosto. Dizia a Jean-Claude que parecia uma tendência do cinema de então e que isso havia criado uma espécie de cacoete: não esperar que o personagem conclua a frase antecipando a mudança do plano para um detalhe, perdendo toda a cena. Jean-Claude o tempo todo solicitava que eu contextualizasse para saber exatamente de que cinema eu dizia. E concluía: “ah bom, é porque você fala por elipses”. Na conversa ficou claro que eu não era contra a utilização de close e super-close ou plano detalhe, lembrando aqui os belos planos de Cassavetes, Godard, Varda, mas que abrir a imagem se tornava algo raro em algumas produções e eu necessitava de que o corpo dos personagens ajudasse a narrar suas memórias. Era a primeira vez, depois de quatro anos de forumdoc, que pensava o fazer cinematográfico não apenas como espectadora, mas também a partir da prática, passando, então, a selecionar ainda mais as referências, não para mimetizar procedimentos, mas senti-los. Jean Rouch! 8. Difícil precisar onde começam histórias, ainda que recentes, ainda que de amor. Recém chegado à Belo Horizonte e à universidade, ouvi murmúrios de que havia, na Faculdade de Ciências Humanas, uma “salinha”. Uma amiga, que havia tentado adentrar a tal sala, no quarto andar do prédio, jurou ter visto um casal que fazia amor. Alguns dias depois, ela partiu a pregar cartazes, que em letras amarelas anunciava o forumdoc.bh.2008, sob uma fotografia em branco e preto que ligava a terra ao céu. No mesmo ano, meses antes, em janeiro, havia me inscrito numa oficina de realização de documentários. Trinta alunos e uma câmera, saímos pelas ruas à procura dos “personagens do real”. Encontrei, numa pequena casa 14 \ no alto de um morro, Dona Vicentina. Todos os domingos, ela caminha até a estação da maria-fumaça para assistir a partida do trem. Natural de Tiradentes, já participou como figurante de miniséries e novelas globais. Acompanhado da equipe técnica e de alguns alunos da oficina, fui incumbido de “dirigir” aquela senhora que em mim despertava imenso afeto. Sem saber o que fazer, o câmera assumiu meu lugar e a conduziu: “diz assim Dona Vicentina: eu amo Tiradentes!” E assim ela o disse. Desmontada a cena, a senhora me perguntou: “E não vai ter nem um cachêzinho, não?” Desmontado eu, respondi: “ô dona Vicentina... quem me dera...” E por aí ficou. Dois dias depois, o curta foi exibido na cidade. Dona Vicentina não assistiu à sessão. Seria isso o documentário? Por sorte, não foi preciso mais do que alguns meses para que eu pudesse descobrir que não. Foi quando conheci a tal salinha. De lá, fui parar na sala nº 06, de um antigo cortiço na Avenida Brasil, onde pessoas se reuniam - em meio a uma estante que parece sempre caber mais um filme para rir, chorar, beber, brigar, fumar, beijar, cantar, dançar, ouvir, sambar. E por ali fiquei. 9. As noites do forumdoc sempre são inesquecíveis e a da abertura em 2004, com a exibição do Nguné Elü, o dia em que a lua menstruou no Centro Cultural da UFMG é a que elejo para rememorar aqui. As imagens da aldeia Kuikuro encantaram a todos nós narrando como a lua durante o eclipse, transforma o cotidiano dos animais, das flautas e da vida na aldeia, revelando outro modo de compreender o fenômeno astral de sombras e penumbras. A música, os cantos, o ritmo que atravessam o filme, num compasso marcado sempre pelo anúncio do dia fatídico, envolveu-me na duração da espera e da festa. A apresentação do Vídeo nas Aldeias no comentário dos realizadores indígenas e coordenadores do projeto de formação, na seqüência do filme, foi o suficiente para que tal imagens, produzidas / 15 a partir de outras perspectivas culturais, continuassem o processo de encantamento sobre meu imaginário. Até hoje, continuam lançando sua mágica sobre mim, instigando a compreensão de que mais do que um cinema do outro, estamos nos tempos de um outro cinema. E que venham as Hiper-mulheres! 10. 1999. Estava ainda no colégio. Tinha um amigo que estudava antropologia. Foi assim o primeiro encontro. Eduardo Coutinho, Arthur Omar, Jem Cohen, Glauber Rocha continuam presentes. Desde então não existia mais o cinema. A palavra ganhava plural no encontro com cada filme, com cada experiência, com cada pensamento. Fui assim aprendendo a ver, a escutar. Esse aprendizado marca minha trajetória. A estrutura do festival era ainda precária. Não sei por que cargas d’água me levaram com a maior urgência para a cabine de projeção. O filme estava mudo. O público também. Algum botão trocado. Desde então não saí mais de lá e continuo imerso na projeção dos filmes do forumdoc. 11. O forumdoc.bh é um espaço onde filmes e pessoas se entrelaçam. Para mim, são os amigos e as imagens para toda uma vida. Mas, sem dúvidas, como rastro e lastro, a presença de Davi Kopenawa no forumdoc.bh de 2006 foi um acontecimento decisivo. Davi veio ao festival para comentar os filmes da “Mostra Timothy Asch” que haviam sido feitos com o seu povo, os Yanomami. Durante vários dias os filmes de Tim Asch nos conduziram pelo universo dos Yanomami, com cenas do cotidiano e de acontecimentos singulares, os quais ainda hoje trago na memória. Vi muitas dessas cenas da janela da sala de projeção, meu local de trabalho naquele ano. Aquela experiência intensa culminou na fala de Davi, e ela soou como um trovão no Humberto Mauro. Seu comentário questionava o trabalho de Asch e do antropólogo Napoleon Chagnon, que acompanhou o cineasta em campo. Davi trazia uma outra perspectiva da imagem, 16 \ calcada em uma cosmologia onde duração e transformação são termos de uma relação sempre tensa. Ali aprendi grande parte do que sei sobre uma outra relação, que o forumdoc.bh não se cansa de apresentar: aquela entre imagem e alteridade. Era o ano de Serras da Desordem, que não por acaso abria o Festival de 2006. O “evento Kopenawa” me acompanha desde então. Na minha memória ele se completa com a deliciosa confraternização que o seguiu, regada a muita cerveja e torresmo! 12. Visões do Subterrâneo. Comecei a frequentar “as rodas” do forumdoc desde a primeira edição do festival, quando cursava a Escola de Belas Artes da UFMG. No início me interessei por Flaherty, e sua imensa alteridade cinematográfica. Após alguns anos, fui convidado pela Júnia Torres para participar do festival. Além de participar das gloriosas comissões das mostras competitivas internacionais, organizei algumas oficinas com nossos distintos convidados. Eles vinham de diversos lugares, entre eles, do Acre, do Xingu, do Rio Tarauacá, da Papua Nova Guiné, e claro, de Minas Gerais. Pouco depois da primeira experiência (nas Oficinas forumdoc), a Amazônia começou a fazer parte de minha vida, depois que fui convidado para ministrar oficinas no Vídeo nas Aldeias, num desses encontros forumdoquianos na Capital das Alterosas. Agora estou aqui, no aeroporto de Belém, partindo para a Guiana Francesa, para a 17ª Oficina para indígenas na Amazônia. Isso é uma febre que não passa, pelo contrário, só aumenta, como a nossa paixão pelo forumdoc, e nosso amor pelo cinema documentário. Mergulhamos todos os anos nessas outras realidades, nesse movimento movido a suor, amor e paixão. Contra o cinema comercial, que esvazia as mentes, procuramos preenche-la com novas visões menos televisivas. Isso é Cinema. Tá falado. / 17 13. Sempre me marcou muito a tarefa do forumdoc de colocar em relação os filmes e os espectadores, e participar dela deu-me sempre a dimensão da miséria à qual estivemos submetidos. Por muitos motivos, desde a dificuldade de conseguir as cópias, políticas atravessadas de conservação ou o esquecimento mesmo, estivemos distanciados das imagens da história do cinema, incluindo a história do cinema feito aqui no Brasil. Por tudo isto, assistir a filmes importantes mas quase inéditos foi sempre um grande momento, mesmo para nós que estávamos organizando o festival. Mais do que isso, o que me ocorre agora para participar desta memória é uma história ainda mais impressionante. Quando fizemos, em 2005, a mostra “Fotógrafos do Documentário Brasileiro”, ao sair da sessão de Porto de Santos de Aloysio Raulino, o próprio realizador veio nos abraçar porque tinha ficado 18 anos sem assistir ao filme que ele mesmo fizera. (a miséria do cinema brasileiro - a não exibição atinge até mesmo os seus próprios realizadores) 14. Tudo começou com um filme de Agnès Varda, projetado em uma película sem restauração, com coloração avermelhada e cheia de arranhaduras. Foi em uma sessão no Centro Cultural da UFMG às três da tarde. Tinha umas cinco ou sete pessoas. A Júnia, o Portella, talvez a Cacá e a Glaura... Depois seguimos direto para o Humberto Mauro, onde assisti outros tantos filmes marcantes exibidos pelo forumdoc. Voltei no dia seguinte, conheci o restante da trupe, fizemos muita festa juntos e logo nos tornamos amigos. Eles me convidaram para a reunião da Filmes de Quintal, que acontecia na salinha do Bráulio no segundo andar do Maleta. Nessa primeira reunião, nós rimos o tempo todo e me senti imediatamente acolhido. Sete longos anos se passaram desde então e muita coisa aconteceu: abrimos a sede na avenida Brasil, organizamos o acervo, levamos o festival para o interior do estado, criamos o Ponto de Cultura junto com os 18 \ movimentos sociais da Serra, Taquaril e Lagoa Santa, publicamos livros, produzimos filmes, promovemos debates e nos mantivemos aguerridos na luta contra os monópolios culturais. Às vezes a gente tem umas crises, discute, diz que não gosta mais; às vezes a gente decide se mudar pra bem longe, do outro lado do mundo, pensando em dar um tempo. Mas não tem jeito: distância nenhuma desfaz os laços dessa amizade. Que eu retorne ao forumdoc, antes que me mate essa imensa saudade! 15. Nem vi como começou, me encontrava alhures, estudava cinema na ilha. Dos filmes vistos ali – “um grande lagarto verde, com olhos de pedra e água” - alguns integrariam anos depois, cruzando o continente, uma pequena mostra de filmes latinoamericanos entre nós. Os filmes exibidos no forumdoc sempre tiveram grandes distâncias a vencer, mesmo os das cercanias. Toda uma aventura separa esses filmes de seu público, ainda que os filmes sejam verdadeiros filmes de ação. Porque neles muito se passa, porque agem no mundo, e sobretudo porque o mundo que fazem ver parece ser um lugar onde - em que pese o emperro - nada já está dado. Nesses anos é com alegria, pois, que me encontro junto a diversos, em cinema, diante das faces e vozes de inimigos vivos, diante de corpos em embate, diante de gestos amorosos. 16. Quanto a mim é uma história que tem vários começos: uma sessão meio perdida pelo campus de “Terra sem pão”; o aviso, por um amigo, na Fafich, do lançamento de um filme de Eduardo Coutinho (quando foi isso Paulinho, 1998, 1999, 2000?), fotografias que passam de mão em mão, o canto de uma música sertaneja, no mesmo ano, em Boca de Lixo. Uma interminável sessão de Sigui Synthèse no Cine Nazaré, com um projecionista que não sabia trocar os rolos de 16mm. Longos e lentos planos - sons - em slow em Horendi. O / 19 aviso, pelo mesmo amigo, de textos que seriam traduzidos, de um crítico cujo nome aparentemente se perdera no passado, Jean-Louis Comolli, e o convite para traduzir um deles - Le dernier evadé. Mais uma sessão quase que perdida, de um filme desconhecido até então Nyamgaton, les fausils jaunes. Uma memorável festa sob a chuva, em uma casa de tolerância no centro de Belo Horizonte - era na Padre Belchior Rafa? - dentre outras memoráveis festas. E ainda continua. 17. Muitos lembraram o dom do forumdoc de ser uma escola. Certamente é. Quase todos nós iniciamos no forumdoc ainda bem verdes no cinema. Pouquíssimos sabiam muito. Pouquíssimos são pajés! Tudo isso passado em corpos também ainda verdes, maleáveis, com o ânimo da juventude... Todavia, o mais raro é que este ciclo não termina de acabar. Talvez, porque mais que o caráter tradicional e burocrático da escola, a formação que o forumdoc requer e distribui tenha alcançado um caráter ritual, onde as experiências são totalizadoras da pessoa, e acontecem integralmente a cada vez. A generosidade e a abertura se encontraram e se reencontram a cada edição. Então, talvez o talento do forumdoc esteja no campo do Dom. Menos que no campo da generosidade. Mais do que no campo da abertura. No terreno da reciprocidade. Bens suntuosos são disputados, são ofertados e cobrados, acrescidos de valor adicional, que é a parte da pessoa que dá. Esse valor não se dissolve, não se neutraliza. É por isso que cada sessão atinge cada um de nós, todos nós, qualquer um de nós, integralmente. 18. Há quinze anos que uma comunidade - amorosa e crítica - se inventa em torno dos filmes: tantos, inúmeros, tão diversos, que já não sei bem quando foi a primeira vez, a sideração que me conduziu a essa partilha. Seres de fuga, as imagens se escondem na memória, trocam de lugar e de tempo. 20 \ 19. Escolher um momento marcante do festival me pareceu difícil. Como destacar apenas um? Tentei, tentei, tentei, mas nenhum veio à memória. Cheguei a me perguntar: será que o festival não me remete a nada? Será que o forumdoc.bh nada liga neste chato coração de dura empatia? Pensei mais um pouco e percebi que não era assim - mesmo a distância das últimas edições, devido aos compromissos profissionais dos últimos anos que dificultam a participação em encontros e reuniões, isso não me afastou da produção. Todos os emails que chegam referentes ao festival são abertos, lidos e respondidos, quando há algo para se acrescentar; e quando dá um tempinho, sempre tento comparecer na sede da Filmes, participar de alguma função no festival etc. Foi então que percebi que o mais essencial de tudo no forumdoc.bh são menos os momentos específicos aí vividos, do que aquilo que estas vivências produzem: o senso de estar junto, sentimento sobre o qual se constrói qualquer relação de coletividade e colaboração. 20. Plano geral: um parágrafo fugidio e migratório, “flutuantes imagens que deságuam instantes”. Primeiríssimo plano: Aloysio Raulino. Periferia da imagem, ao fundo, enquadrado por outra janela que se abre cor de azul bhbus, lê-se: casa para desterrados. Árvores fulminadas e árvores possíveis. Cantos de trabalho, Maxacali, canade-açúcar e invasão. Ritual e despossessão dos filmes além dos trilhos. Corte. Em anos, agora sete, ajudante e costureira de vinheta, de mostra e de oficina, em itinerância e extensão, em comboios ou carros-de-bois, com mulheres e homens condutores. Júnia, Rubim, César, Paulim, Tata, Ana, Glau, Lu, Mi, Belico, Marra, Portela, Claudinha, Flavinha. Pedrim, Os, KK e Ribão. Dona Isabel, Comolli, Gercino, Yayá, Rouch e Bernardet. Emissários do caos, com amor, antes e depois das sessões. Ariel, Carol, Tonacci, Escorel, Di, Martin Maden, Isac, Zezinho, (...). Castelar: ‘Maravilha, Vilhamara’... alguém / 21 me ajude a pensar outro nome pro Buriti-Rei. Inarredável forumdoc, salve salve! 21. Após um intenso esforço em resgatar na memória algum caco que pudesse render alguma história, desisti de tentar romantizar. Porque o forumdoc é mais presente do que passado. É atualização de trabalhos de longos anos; um espaço em constante mudança, de construção coletiva, de exercícios diários de relação, de perspectivas futuras. Uma escola de formação em cinema, onde se é permitido experimentar fazer, teorizar, militar, sonhar, compartilhar, revolucionar, escapar... Contra o deslumbramento, pela iluminação! 22. O ano era 2005. Um vento quente do quase verão belorizontino tremulava os paninhos xadrezes coloridos pendurados pelos corredores da Fafich que anunciavam o forumdoc daquele ano. Eu, que recentemente descobrira minha inaptidão para o jornalismo, fui fisgado e logo em seguida salvo por este festival que hoje debuta. No ano seguinte me alistei como voluntário e participei das primeiras reuniões na casa da Júnia. Ainda não tínhamos sede própria. Foi da cabine de projeção assistindo a belíssimos filmes como os de Pedro Costa que me encontrei. Encontrei também generosos mestres, entre eles um especial: Aloysio Raulino. Não demorou muito pra eu fugir da redação e correr para o quintal. É onde eu gosto de estar. 23. Foi em 1998. Naquela época, ainda estudante da faculdade de medicina, a prática ambulatorial já me colocava frente àquilo que tenho como mais caro nos filmes que, ao longo de 15 anos, assistimos e produzimos - o olhar e a escuta que se direciona ao outro, que vem do outro, aquilo que o atravessa e anima, e nos impregna e transforma. Numa tarde, saída de uma prova de cardiologia, quando decidi abandonar o curso, entrei por acaso no cine Humberto Mauro. 22 \ Na sala escura, Iracema: uma transa amazônica, de Jorge Bodansky. Minha primeira experiência com o cinema ou, pelo menos, um certo cinema. Mais do que questões sobre as fronteiras entre ficção e documentário, o filme me trazia um certo modo de estar no mundo. Tocar o mundo com a ponta dos olhos. Um olhar implicado, engajado, irônico, político. Um certo modo de se fazer cinema que se funda no encontro, no imprevisto dos homens e das paisagens, que se posiciona contra o roteiro, contra as marcações de cena, contra a romantização da floresta e dos povos da floresta, contra o discurso de um Brasil grande. Iracema provocou em mim um deslocamento essencial, aquele que reivindicamos nos filmes que ano após ano apresentamos no festival. Um deslocamento de ponto de vista, de estabelecimentos, de ideologias e discursos, de durações. Por um cinema encarnado, vivo, impuro, pulsante. Por um cinema que se faz gesto e postura. É em nome dele que continuamos. 24. Um convite para trabalhar no forumdoc de 2007 me apresentou um mundo dos mais encantadores: pessoas realmente envolvidas com as temáticas das mostras e ações propostas, interessadas em dar o seu melhor pelo festival, independente se haveria retorno financeiro ou não, por mais que isso seja importante e necessário pra nossa sobrevivência! Isso me fez perceber que ali se juntavam muito mais que parceiros e colegas, e sim pesquisadores, estudiosos e o melhor, amigos! As festas, ora parte integrante e imprescindível das “discussões”, rs, além de mostrar que “a noite é uma criança”, são sempre compostas de muito rock n´roll e de diversão garantida (inclusive com direito a after party chez moi!). É uma selva à qual eu me junto a risos e choros: tem hora que passa uma jaguatirica, outra um leão marinho ou um mico leão dourado, rsrs. Eu achava que era o acaso que tinha me trazido à Filmes de Quintal, mas, pra meu espanto, eis que encontram minha assinatura na ata de / 23 presença do primeiro forumdoc e eu a verifiquei, é realmente verdadeira! Umas amigas me levaram pra sessão de abertura quando vim fazer vestibular em 1997 e assim, mais do que tudo, acreditei que “estava escrito”, e aqui estou contribuindo pro crescimento e comemorando com grande alegria os 15 anos de existência. Vida eterna ao forumdoc! 25. O forumdoc é para mim um fato social total, tratando-se no fundo, como ensinou Marcel Mauss, de misturas. “Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca”. Faz 15 anos que me misturo ao forumdoc ao ponto de me faltar aquele olhar distanciado. “Bons drink!” Vida longa ao forumdoc! 26. “Quando proclamam, ao contrário, que ‘o inferno somos nós mesmos’, os povos selvagens dão uma lição de modéstia que gostaríamos de nos crer ainda capazes de escutar. Neste século em que o homem teima em destruir inumeráveis formas de vida, depois de tantas sociedades cuja riqueza e diversidade constituíam desde tempos imemoriais seu maior patrimônio, nunca, com certeza, nunca foi mais necessário dizer, como o fazem os mitos, que um humanismo bem ordenado não começa por si mesmo. Coloca o mundo antes da vida, a vida antes do homem, o respeito pelos outros seres antes do amor-próprio. E que mesmo uma estadia de um ou dois milhões de anos nesta terra – já que de todo modo um dia há de acabar – não pode servir de desculpa para uma espécie qualquer, nem a nossa, dela se apropriar como coisa e se comportar sem pudor ou moderação.”Parágrafo final das Mitológicas III - Origens das Maneiras à Mesa”. Parte 7: As regras da civilidade capítulo: A moral dos mitos, 1967. Dizem que Lévi-Strauss é um humanista 24 \ (muitas vezes para afirmar que seu pensamento é ultrapassado). Mas o humanismo dele bebeu das civilizações indígenas e é alargado, o humanismo dele, se pode ser afirmado assim, é multinaturalista. Isso na década de 1960. E hoje segue ainda na frente das respostas aos problemas maiores que enfrentamos. Ouçamos os mitos, os índios, e os bons pensadores. Pensadores selvagens. Sejamos minimamente civilizados.Lembrando a silenciosa sessão-homenagem ao centenário de Lévi-Strauss no forumdoc.bh.2008 na qual pudemos ver seus filmes: Cerimônias Funerárias entre os Bororo, Festejos Populares em Mogi das Cruzes e Festa do Divino Espírito Santo. 27. A cumplicidade dos que vieram antes: Jean-Claude, Coutinho, Escorel, Comolli, Vincent, Raulino, Beth, Tonacci, Divino Tsere, alguns dos que se tornaram essenciais. E a força, energia, sorrisos, afetos, paciência, alegria, alegria dos que vieram juntos e depois: todos os meus quintais. Mas também Rouch e Glauber e Varda. Todo mundo virando onça. Iauaretê. Uma pequena comunidade, leve e dispersa - e isso confere um mistério a esse festival - que se materializa nas primeiras filas da sala Humberto Mauro, em um período de breves e densos dias do ano para assistir e conversar sobre filmes, que certamente nunca teríamos chance de ver e compartilhar se não os projetássemos nós mesmos. Foi por isso que fizemos. * Ana Carvalho, Bernard Machado, Bruno Vasconcelos, Carla Maia, Carolina Canguçu, César Guimarães, Cláudia Mesquita, Daniel Ribeiro Duarte, Diana Gebrim, Ewerton Belico, Fabiano Bechelany, Flávia Camisasca, Frederico Sabino, Glaura Cardoso Vale, Jair Fonseca, Júnia Torres, Milene Migliano, Paulo Maia, Pedro Aspahan, Pedro Marra, Pedro Portella, Rafael Barros, Raquel Junqueira, Renata Otto, Roberto Romero, Ruben Caixeta. / 25 26 \ / sessão de abertura / 27 28 \ \ As hiper mulheres / Brasil \ 2011 / cor \ 80’ direção director Carlos Fausto, Leonardo Sette, Takumã Kuikuro fotografia photography Mahajugi Kuikuro, Munai Kuikuro, Takumã Kuikuro trilha musical soundtrack Mulheres Kuikuro montagem editing Leonardo Sette produção production Vincent Carelli, Carlos Fausto contato contact [email protected] Temendo a morte da esposa idosa, um velho pede que seu sobrinho realize o Jamurikumalu, o maior ritual feminino do Alto Xingu (MT), para que ela possa cantar mais uma última vez. As mulheres do grupo começam os ensaios enquanto a única cantora que de fato sabe todas as músicas se encontra gravemente doente. Fearing for his wife’s death, an old man asks his nephew to make the Jamurikumalu, the biggest female ritual of the Alto Xingu (MT) area, so she can sing one last time. The women belonging to this group start rehearsing whereas the only singer who actually knows all songs has fallen severely ill. / cine humberto mauro \ 22 nov / 19h30 / centro cultural UFMG \ 25 nov / 18H / 29 30 \ / mostra Fernando Coni Campos / 31 32 \ \ A gestação do canto / Ewerton Belico Sigamos por certas ruas quase ermas, Através dos sussurrantes refúgios De noites indormidas em hotéis baratos, Ao lado de botequins onde a serragem Às conchas das ostras se entrelaça: Ruas que se alongam como um tedioso argumento Cujo insidioso intento É atrair-te a uma angustiante questão ... Oh, não perguntes: “Qual” Sigamos a cumprir nossa visita. (T.S. Eliot, “A Canção de amor de J. Alfred Prufrock”) Fernando Coni Campos é um dos mais bem guardados segredos do cinema brasileiro. Homem de letras, pintor, designer gráfico, realizador de sete longas-metragem – um dos quais, Morte em três tempos, hoje perdido – e de mais onze curtas-metragem, escassas são as referências a sua obra hoje, com poucas exibições, e parcas referências críticas – ou mesmo memorialísticas – ao seu trabalho. A singularidade de sua trajetória, do qual é sintomática a sociabilidade artística que mobiliza pessoas de círculos criativos tão diversos – Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Gustavo Dahl, Arnaldo Jabor referemse elogiosamente a Fernando Coni – torna ainda mais complexa a tarefa de situar seus filmes, de resto, vítimas da persistente carência de espaços exibidores dedicados a poéticas mais ousadas, assim como da crônica dificuldade de simultaneamente conservar e exibir a produção daqueles que lutaram contra a censura – responsável pela proibição de um de seus filmes, Um homem e sua Jaula, que permanece inédito e será finalmente exibido, quarenta / 33 e dois anos depois de sua finalização, no forumdoc.bh.2011 – e contra a opressiva tutela que uma longa ditadura militar impôs a nossa produção audiovisual, com a cumplicidade de muitos que pretenderam legitimar tal controle. Fernando Coni, em seus depoimentos sobre Ladrões de cinema, insistira sobre o caráter inaugural desse filme, cesura em seu trajeto, reinício de sua carreira cinematográfica posta agora em outros termos, sob o signo da visibilidade: o filme adquire um caráter público, tanto em função de sua comunicabilidade, conquistada às expensas de uma modalidade de expressão pessoal subterrânea, quanto em função de sua concepção pluralística, que alia à sensibilidade erudita do cineasta-leitor Castro Alves e Shakespeare ao samba de Mano Décio da Viola, ao convívio com a Escola de samba Império Serrano e com o Morro do Pavãozinho. Esse corte tem um sentido, também subterrâneo, a ser posto: trata-se do abandono de uma poética – e política – do cinema em linha de ruptura com uma tentativa de “conquista do mercado” sancionada pela aliança cinemanovista com Embrafilme.1 Esse abandono não é único, mas partilhado por outros realizadores cujo trabalho é marcado por reviravoltas similares, tal como podemos ver nessa caracterização de Neville D’Almeida por Artur Autran: A compreensão do cineasta sobre a importância do público dá-se em um momento (metado dos anos 70) no qual o mercado não mais aceitava produtos experimentais mesclados com elementos de apelo popular, e mais, no Rio de Janeiro o domínio da produção por parte da Embrafilme tornava dificílima a feitura de tais filmes, já que a 1 Sobre essa questão, ver: Dahl, Gustavo. “Cinema Novo e Estruturas Econômicas Tradicionais”. In: Revista Civilização Brasileira, n°5/6, 1966; Simis, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996. 34 \ empresa encontrava-se por elementos ligados ao projeto do cinema novo.2 Mas caracterizamos tal passagem de modo insuficiente ainda; deixemos a Fernando Coni Campos a imagem que, para o próprio, melhor a descrevia: “Este longo período underground é a gestação do canto”. A imagem em questão retoma, em chave político-pessoal, uma personagem de fábula: a cigarra, agora não mais imagem da preguiça que se opõe à trabalhadora formiga, mas figura do próprio fazer artístico, que se realiza – e simultaneamente consome – como expressão pessoal somente quando vem à luz enquanto artefato público, contudo gestado em silêncio, na obscuridade dos anos passados no underground.3 Esse laborioso percurso subterrâneo, caminho que, segundo Fernando Coni “chegou a parecer-me meu país”, legou como rastros filmes obstaculizados pela censura oficial (o supracitado Um homem e sua jaula) ou econômica (Sangue quente na tarde fria ou Uma nega chamada Tereza, esse último amputado a posteriori pela intervenção da produtora, sem o consentimento do realizador4). Ou ainda um originalíssimo tour de force, filme signo de uma persona artística paradoxal, Viagem ao fim do mundo, capaz de combinar angústia existencial de proveniência cristã;5 com uma forte sensualidade, expressiva dos dilemas espirituais do engajamento no mundo; e de resolver esteticamente a expressão pessoal em um pletora 2 Autran, Artur. “Os descaminhos do Cinema”. In: Forumdoc.bh.2009 – Catálogo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2009. 3 Ver o ensaio-depoimento-press realease Ladrões de cinema, de Fernando Coni Campos, constante nessa catálogo. 4 Ver o depoimento de Fernando Coni, “Uma guerra declarada”, também constante nesse catálogo. 5 Ver a carta de Lygia Clark a Hélio Oiticica relatando o encontro com o casal Fernando Coni Campos/ Talulah Campos, em Figueiredo, Luciano. Lygia Clark Helio Oiticica – Cartas Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996, p. 62; e Bernardet, Jean-Claude. Viagem ao fim do mundo, constante nesse catálogo. / 35 barroquizante de citações, materializada no uso, mais uma vez muito pessoal, e raro em nosso cinema, do found-footage, da incorporação de material imagético e de comentário sonoro ao próprio universo intradiegético – tradução das tensões que permeiam esse filme ainda sem lugar em nossa historiografia,6 metaforizadas no estilhaçamento de suas referências, entre os mass media, Machado de Assis, T.S. Eliot, Chesterton e Simone Weil. Talvez de modo não casual, essa senda percorrida na marca do paradoxo se encerre com uma insurreição involuntária, vitoriosa porque fracassada, no Mágico e o delegado, em que o martírio do mágico converte-se em vitória da imaginação, em que o poder transformador da criação artística em relação ao mundo social somente tem lugar em um bordel. Esperemos que a retrospectiva de Fernando Coni Campos, a primeira a poder exibir um conjunto tão expressivo de filmes, possa contribuir para arrancar mais uma vez esses filmes da escuridão do underground. 6 Sobre essa questão, ver ainda Bernardet, Jean-Claude. Viagem ao fim do mundo, constante nesse catálogo. 36 \ \ Viagem ao fim do mundo / Brasil \ 1968 / p&b \ 95’ direção director Fernando Coni Campos fotografia photography José Medeiros, Osvaldo de Oliveira, Renato Neumann montagem editing Renato Neumann Uma viagem de avião. Enquanto aguardam a chamada para o embarque, as personagens são apresentadas. Um rapaz encontra uma edição de bolso das “Memórias Póstumas”, de Machado de Assis. Uma vez em vôo, enquanto os outros passageiros lêem jornais e revistas, o rapaz lê Machado de Assis, detendo-se no capítulo “O delírio”, que passa a ser visualizado até o momento em que Pandora grita: “Olha o que tem sido a vida no planeta onde habitas!”. An airplane trip. Characters are introduced while they wait for boarding call. A young man finds a pocket edition of Machado de Assis’s book “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”. Once the plane takes off, as other passengers glance over newspapers and magazines, the young man reads Machado de Assis, drawn to a chapter entitled “The delirium”, which starts to materialize itself until the moment Pandora shouts: “Look at what life has been in the planet you live in!”. / cine humberto mauro \ 01 dez / 19h / 37 \ Um homem e sua jaula / Brasil \ 1969 / p&b \ 73’ direção director Fernando Coni Campos, Paulo Gil Soares fotografia photography Leonardo Bartuti montagem editing Renato Neumann Filme inédito. O pintor Tino, em crise profissional e política, recebe telegrama da sogra, Selma, comunicando sua volta da Europa. Após a morte da esposa, Tino continuará morando com Selma, com quem mantinha relações ambíguas, que agora quer cortar. Fraco perante esse amor impossível, ele pede à empregada Enedina que o tranque em seu quarto. Ali, reaviva a memória através de cartas, bilhetes e fotografias. Tino is a painter who, in the middle of a professional and political crisis, receives a telegram from his mother-in-law Selma informing of her arrival from Europe. After the death of his wife, Tino keeps on living with Selma, with whom he had developed an ambiguous relationship he now wishes to end. Weakened by this impossible love, he asks the housekeeper Enedina to be locked in his room. There, he revives his memories through letters, personal notes and photographs.. / cine humberto mauro \ 03 dez / 19h 38 \ \ Sangue quente em tarde fria / Brasil \ 1970 / cor \ 87’ direção director Fernando Coni Campos, Renato Neumann fotografia photography Renato Neumann montagem editing Renato Neumann Dilma e sua filha são forçadas a dar cobertura, em seu carro, a um assaltante de banco perseguido pela Polícia Rodoviária. Os perigos da aventura aproximam Dilma e seu chofer e, quando o assaltante é preso, resta a ela comunicar ao marido o pedido de desquite. Dilma and her daughter are forced to conceal, in their car, a bank robber being chased by the federal highway police. The dangers derived from this adventure bring Dilma and her chauffeur together, and when the thief is arrested, she is left to inform her husband about a divorce request. / cine humberto mauro \ 28 nov / 19h / 39 \ O mágico e o delegado / Brasil \ 1983 / cor \ 103’ direção director Fernando Coni Campos fotografia photography Mário Carneiro montagem editing Roberto Pires, Eunice Gutman Um mágico e sua parceira chegam a uma pequena cidade do interior da Bahia para apresentar um espetáculo de variedades. No entanto, a mágica dura pouco e logo a cidade volta à sua pobreza habitual. Há uma grande revolta e o delegado prende o mágico. Na cadeia ele é colocado numa cela comum onde já estão quatro outros presos; a presença do mágico quebra a rotina da vida carcerária e uma série de coisas espantosas e maravilhosas começam a acontecer. A magician and his female partner arrive at a small town in Bahia’s countryside to present a variety show. However, magic doesn’t last long and soon the city returns to its custumary poverty. A big riot occurs and the magician ends up arrested by the local sheriff. In jail he is put in an ordinary cell along with four inmates; the magician’s presence alters the prison’s daily routine and a series of amazing and wonderful things begin to happen. / centro cultural UFMG \ 25 nov / 20h / cine humberto mauro \ 04 dez / 19h 40 \ \ Ladrões de cinema / Brasil \ 1977 / cor \ 127’ direção director Fernando Coni Campos fotografia photography Sérgio Sanz, Noilton, Anselmo Serrat montagem editing Sérgio Sanz Durante o carnaval, no Rio de Janeiro, uma equipe de cineastas norteamericanos tem seu material de filmagem roubado pelo bloco de índios que eles documentavam. Os ladrões, favelados do morro do Pavãozinho, resolvem eles mesmos fazer um filme tendo por tema a Inconfidência Mineira. During Carnival, in Rio de Janeiro, a group of north american filmmakers has their filmed material stolen by the carnival block party made of indians they were documenting. The thieves, residents of Pavãozinho favela, decide to make a movie themselves on the subject of the Inconfidência Mineira. / cine humberto mauro \ 29 nov / 21h / 41 \ A pintura de Cláudio Tozzi / Brasil \ 1981 / cor \ 9’ direção director Fernando Coni Campos fotografia photography J. Marreco montagem editing J. Marreco As experiências do artista plástico Cláudio Tozzi em comunicação visual com grandes painéis colocados no centro da cidade; o artista na Bienal; a opinião dos críticos. The experience of visual artist Cláudio Tozzi in the field of visual communication with large pannels placed at the city center; the artist at the Biennial; the critics opinion. / cine humberto mauro \ 04 dez / 19h \ Tarsila do Amaral / Brasil \ 1969 / 12’ direção director Fernando Coni Campos, David Neves Documentário sobre os 50 anos de trajetória artística de Tarsila do Amaral. Documentary in regard to 50 years of Tarsila do Amaral artistic trajectory. / cine humberto mauro \ 03 dez / 19h 42 \ \ O Brasil de Pedro a Pedro / Brasil \ 1973 / cor \ 9’ direção director Fernando Coni Campos fotografia photography Edgar Moura montagem editing Eunice Gutman A história do Brasil, do descobrimento à Independência, através de uma exposição de bonecos da artista plástica Suzana Rodrigues e texto de Fernando Coni Campos. The history of Brazil, from the country’s discovery to its independence, seen through a puppet’s exposition created by the visual artist Suzana Rodrigues and the writings of Fernando Coni Campos. \ Art Nouveau direção director Fernando Coni Campos fotografia photography Edgar Moura A Revolução Industrial criou o produto em série. O estilo ‘Art Nouveau’ visa preservar a singularidade da produção única. O filme revela a presença desse estilo no Brasil do início do século XX. The Industrial Revolution created mass production. ‘Art Nouveau’ artistic style intends to preserve single item production’s singularity. The film reveals this style’s presence in Brazil at the beginning of the XX Century. \ Pelo sertão / Brasil \ 1970 / p&b \ 8’ direção director Fernando Coni Campos O sertão contido na obra do escritor brasileiro Affonso Arinos, através das gravuras de Lívio Abramo. The sertão region as presented by the work of Brazilian writer Affonso Arinos, through the printings of Lívio Abramo. / cine humberto mauro \ 28 nov / 19h / 43 44 \ / mostra cinema dos povos originários Bolívia e México / 45 46 \ \ Os olhos do tigre e os olhos do condor / Júnia Torres, Carolina Canguçu, Milene Migliano Cuando el video se presentó como posibilidad, las comunidades se aprovecharon del medio. Seleccionaron a personas interesadas o ya involucradas en la comunicación para entrenarse en la produccion videográfica y continuar un proceso de revindicación étnica que ya estaba en proceso, por lo menos desde fines de los sesenta, pero que tiene su horizonte más largo en la sobrevivencia y resistencia de los pueblos indígenas durante más de 500 años de colonización. (Freya Schiwy) Se o cinema não é o espetáculo, ousamos nomear os filmes que aqui apresentamos sob o título de “Cinema dos povos originários Bolívia/ México”, mostra que reúne obras e experiências fílmicas realizadas distante dos estúdios e dos roteiros e dentro das florestas e sobre os altiplanos, longe das universidades, dos saberes tecnicizantes e próximos de formadores que são, antes de tudo, sujeitos politicamente situados. Sem o aparato de máquinas e homens outrora mobilizados para produzir o que moldou-se, em uma perspectiva evolutiva, como “a sétima arte”, jovens indígenas apropriam-se de uma tecnologia disponível e barata, de câmeras leves e de um saber que pode ser compartilhado a favor de um cinema que se faz, felizmente,“menor”. Nomear esse conjunto de filmes como “cinema” é antes trazê-los para a companhia do que nos é mais caro – estética e politicamente – produzido pela imaginação ou fabulação humana mediada por imagens e sons. É estender o conceito de cinema para mais distante de nós para aproximá-lo de outros de formas a serem sempre experimentadas, menos montadas, inacabadas, mais abertas, tateantes, inaugurais, alegóricas, potentes. / 47 Um cinema em perspectiva, no qual o lugar de onde vem os filmes importa mais que – ou tanto quanto – sua forma, afinal. Esse é um cinema pelo qual estamos particularmente interessados. Um cinema que sirva para colocar em outros termos um problema que Jean-Claude Bernardet situa no contexto das filosofias da alteridade: Acredito que a filosofia da alteridade só começa quando o sujeito que emprega a palavra “outro” aceita ser ele mesmo um outro se o centro se descolar, aceita ser um “outro” para o “outro”.1 (Bernardet, 2004, p. 10). Um cinema que vem “renovar as lutas políticas a partir da questão tecnológica e da qualificação dos índios para um trabalho decisivo no capitalismo cognitivo: a produção de imagens.”2 (Caixeta de Queiroz, 2004, p. 58). Trazendo um filme para o diálogo que reivindicamos, afirmamos que devemos ver Film socialisme, de Godard, seguindo a entrevista na qual o cineasta declara a morte do autor,3 não apenas como uma metáfora da Europa – um navio de descontentes envelhecidos boiando à deriva em sua própria história –, mas como um manifesto em favor de “uma nova república de imagens”- livre do domínio morto da propriedade corporativa e das leis de propriedade intelectual. Este novo cinema será recortado e colado em um mundo onde os direitos do autor em pouco tempo passarão a ser vistos como tão medievais quanto o droit du seigneur. Em Film socialisme, a linha de fuga possível parece ser traçada por uma jovem negra de fala francesa, com uma câmera 1 BERNARDET, Jean-Claude. Vídeo nas Aldeias, o documentário e a alteridade in “Um Olhar Indígena”, VNA, 2004. 2 QUEIROZ, Ruben Caixeta de. Política, estética e ética no projeto Vídeo nas Aldeias. In: “Um Olhar Indígena”, VNA, 2004. 3 O autor está morto, diz Jean-Luc Godard: entrevista a Fiachra Gibbons, publicada na Folha de São Paulo, em 22/07/2011. 48 \ na mão e uma observação atenta ao nosso entorno, um posto de gasolina... acreditamos que nesse gesto discreto do filme, o diretor nos coloca na perspectiva de sermos esse “outro para o outro”, do qual falávamos acima. Ao considerarmos as vastas possibilidades colocadas por essa “nova república das imagens”, onde inúmeras experiências se constroem também sob a perspectiva indígena e tendo em vista as dificuldades e prejuízos de uma mostra mais panorâmica, optamos por focar experiências localizadas em dois países – Bolívia e México – por apresentarem processos estruturados e longevos e com os quais conseguimos estabelecer uma comunicação que nos permitiu organizar essa pequena e incompleta mostra, se considerarmos as diversas experiências em curso. Os filmes apresentados nos permitem dar visibilidade à fabricação de um cinema que tem seu sentido de existir como enfrentamento entre a sociedade nacional e a resistência coletiva dos originários (mantendo o termo “nativo”) contra as heranças coloniais e suas atualizações contemporâneas. São filmes feitos a partir do interior das próprias comunidades indígenas, discutidos e construídos coletivamente. Ojo de tigre, Ojo del condor, denominações de duas das experiências coletivas de produção audiovisual no México e Bolívia, denominações que não podemos deixar de observar levando a sério a perspectiva indígena – miradas desde dentro das selvas mexicanas e do alto das montanhas andinas. Apresentamos uma seleção que compartilha processos importantes realizados por etnias situadas nesses dois contextos, embora não abarque toda a pluralidade de experiências de apropriação das linguagens e do aparato fílmico em franco acontecimento nesses e em outros lugares. La producción y difusión de video crea redes de intercambio audiovisual que desbordan las fronteras de la nación, al / 49 poner en contacto muy diversas comunidades indígenas y campesinas rurales. De este proceso emerge la creación de una vasta cantidad de documentales, docuficciones, ficciones y también de representaciones videográficas que se escapan de esta clasificación convencional4 (Schiwy, 2011). Com o espaço de reflexão que se abre, queremos tocar algumas das questões que atravessam o conjunto dos filmes aqui organizados: autoria indígena e processos coletivos, vídeo-ativismo e filmes-rituais, metodologias de formação e novas estruturas de comunicação e circulação, constituição do olhar e apropriação dos gêneros cinematográficos, filmar a “cultura” em “oposição” a filmar a cultura,5 o problema posto ao conceito de representação pelas imagens indígenas. Essas e ainda tantas outras reflexões que as obras nos convidarão a enfrentar. Porém se aqui mostramos, procurando revelar e difundir, muito nos será sempre vedado a conhecer, posto que há usos sociais do vídeo sob a perspectiva indígena que “escapam” a nossa possibilidade de os apreender nas salas de cinema: filmes voltados para as próprias comunidades, de circulação restrita e interna, material não traduzido, não editado, ou não editável (quando não há intenção de reduzi-lo às elipses da montagem que não cabem no tempo do ritual), material muitas vezes gravado para logo ser apagado, onde a performance de colocar em cena o corpo que filma já seria, ela mesma, uma das formas do “cinema indígena”. 4 SCHIWY, Freya, “O outro olhar. Vídeo indígena e descolonização”, catálogo forumdoc.bh.2011. 5 Diego Madi, em artigo inédito: “Três paradigmas para pensar o vídeo entre os Kayapó”, publicado nesse catálogo, apresenta uma discussão em torno de experiências indígenas com o vídeo e como estas podem operar sobre a distinção entre cultura com aspas e cultura sem aspas proposta por Manuela Carneiro da Cunha. 50 \ Foi a janela aberta por Divino Tserewahu6 – realizador de filmes importantes como Iniciação do jovem Xavante e Mulheres Xavante sem nome e aqui presente no encontro dos realizadores promovido pela mostra, onde estarão também Carlos Pérez Rojas (México) premiado com os filmes Y el rio sigue corriendo e eyes on what’s inside: the militarization in Guerrero e Matha Zelady Mole (cineasta indígena moxeño trinitaria e comunicadora), além dos formadores Ivan Sanjines (CEFREC/Bolívia) e Vincent Carelli (Vídeo nas Aldeias/ Brasil) – que nos apontou algumas das experiências cinematográficas contemporâneas ainda inéditas em mostras no Brasil. Redes que se vão tecendo, passando por caminhos outros, já que, como aponta Shiwy, no texto publicado a seguir, a crítica de cinema latinoamericano basicamente tem ignorado o campo de produção audiovisual indígena. O termo “cinema dos povos originários” é empregado para denominar as produções audiovisuais dos grupos com os quais o Centro de Información y Realización Cinematográfica / Coordinadora Audiovisual Indígena Originaria de Bolivia (CEFREC/CAIB) tem trabalhado nos últimos quinze anos em parceria com diversos grupos indígenas e campesinos: Aymara, Ayoreo, Araona, Baure, Chiquitano, Canichana, Caniveño, Cayubaba, Chacobo, Eseejja, Itonama, Joaquiniano, Machinei, Moré, Mosetén, Movima, Moxeño, Pakawara, Quéchua, Sirionó, Tacana, Toromona, Yaminahua, Yuracaré, ações que englobam não só a formação de cineastas indígenas, mas também promove a difusão, distribuição e financiamento de projetos de comunicação (rádio, vídeo, TV, web) em diversos contextos sociais 6 O realizador e seus filmes, ao mesmo tempo que afirmam a ideia de um cinema indígena em diálogo com o melhor cinema documental e etnográfico, nos colocam desde nosso encontro em 1998, a profundidade das questões nas quais estamos imbricados nessa mostra, ao reivindicar o desejo de rompimento com a categoria “realizador indígena” em favor de seu reconhecimento como “cineasta ponto final” sem substantivação. / 51 e políticos, consolidando um sistema plurinacional de comunicação. Através das produções via CEFREC/CAIB tais comunidades investem na apropriação dos gêneros cinematográficos presentes nas narrativas ficcionais tradicionais, como o drama, o terror ou o humor e apostam na tradição documental, realizando filmes etnográficos descritivos dos modos de vida desses povos. Em 1996, nasce, na Bolívia, o Plan Nacional Indígena Originário de Comunicación Audiovisual,7 fruto da união de diversas confederações indígenas para a estruturação de um Sistema Nacional de Comunicación Indígena Originario. O CEFREC/CAIB é uma dessas organizações, que surge a partir dos trabalhos do cineasta Jorge Sanjinés em parceria com diversos grupos indígenas, que tem início em 1963 com um curta de 10 minutos, chamado Revolución. Esse curta revela as condições miseráveis da grande maioria dos habitantes de La Paz, indígenas migrantes. Posteriormente, Sanjinés dirigiu longas que compõem um cinema essencialmente andino, como Ukamau (1966), a história da vingança de um campesino índio, cuja mulher foi violada e assassinada por um mestiço; Sangre de condor (1969), com os mesmos atores de Ukamau, denuncia a esterilização de mulheres por um grupo chamado Cuerpo de Paz; e La nación clandestina, de 1989, que apresentamos nessa mostra, como único filme em que os indígenas não assinam a direção. Esse longa-metragem apresenta Sebástian Mamani, um índio aymara que vive em La Paz e decide retornar à sua comunidade em pleno golpe militar boliviano. Esse filme é considerado a obra-prima do grupo Ukamau e Sanjinés, em que fotografia, montagem e dramaturgia realmente impressionam. 7 “Cinema e vídeo indígena como estratégia de afirmação cultural, social e política dos povos originários da Bolívia”, Ivan Sanjinés, publicado nesse catálogo. 52 \ O trabalho de Sanjinés com os índios proporcionou a criação de um centro de referência e formação de realizadores indígenas, que sempre foi autônomo e livre para experimentação, tanto na linguagem dos filmes, quanto nas ações para fortalecer a luta pela afirmação dos direitos dos povos indígenas. Hoje há na Bolívia um Sistema Plurinacional de Comunicação, composto por diversas organizações, centros de produções de rádio e TV. Já se encontram em um processo extremamente avançado pois têm elaborado um Plano Nacional Indígena de Comunicação Audiovisual, de forma a garantir recursos federais permanentes para a consolidação dessa rede. Outra experiência aqui enfocada reúne, pela primeira vez no forumdoc. bh, um conjunto mais abrangente de filmes representantes do vídeoativismo – mas não só – que caracteriza o Promedios/ Chiapas Media Project, ligada à insurgência zapatista contemporânea no México. Alessandra Halkin,8 no texto aqui publicado “Fora da ótica indígena: zapatistas e realizadores autônomos”, remonta ao início da parceria entre realizadores indígenas mexicanos e organizações norteamericanas para estruturação audiovisual dos governos autônomos indígenas do México através da criação do Chiapas Media Project. Desde o início houve um esforço em organizar oficinas de vídeo nas aldeias que fossem ministradas pelos próprios indígenas já iniciados na linguagem audiovisual. Não houve, nesse primeiro momento, oficinas ministradas por não-indígenas, já que existia no México uma iniciativa do uso do vídeo pelos índios como forma de ação política. Halkin contactou essas pessoas e ofereceu estrutura de trabalho a elas. A pesquisadora diz ter focado seu trabalho na captação de 8 Alexandra Halkin. Documentarista, ex-diretora e atual coordenadora internacional do Chiapas Media Project. / 53 recursos para o projeto e na distribuição internacional dos filmes produzidos. A formação de realizadores indígenas seria coordenada por eles mesmos, sendo o contato direto com os brancos mais intenso nos momentos da edição dos materiais. Isso traz à tona uma séria questão da formação de cineastas indígenas, já que poucos dos cinegrafistas formados chegam a dominar o processo de edição. O que percebemos dessa produção inicial do Chiapas Media Project é uma tentativa de reprodução da linguagem televisiva da reportagem, de forma a dar voz a atores sociais que não têm espaço na grande mídia. Ao mesmo tempo, esses filmes não são uma cópia da televisão, mas antes maneiras únicas de apropriação dessa linguagem. Cesar Pérez, realizador mexicano convidado a participar da mostra aqui em BH, reflete sobre seus filmes e assume querer ousar mais na construção das narrativas. Ele, que havia trabalhado em uma TV indígena (TV Tamix em Oaxaca), se tornou formador do Chiapas Media Project, e assim disseminou a antropofagia da televisão pelos originários mexicanos. A minha verdadeira crença e o que ultimamente tem me tocado muito é que me parece importante que se façam documentários com um enfoque social, com compromisso social. Mas também percebi que, incluindo meus vídeos, em termos audiovisuais estamos muito longe da criatividade com que as comunidades se organizam e se movimentam. Vejo meus vídeos e os de outros realizadores sobre esses temas e percebo que, muitas vezes, são muito frios, muito quadrados. E o que eu quero fazer agora é poder captar a criatividade que é característica dos movimentos sociais do México. (entrevista com Carlo Pérez Rojas, publicado neste catálogo). O Promedios/Chiapas Media Project atualmente trabalha na difusão dos vídeos feitos pelas comunidades indígenas e campesinas dos 54 \ estados de Chiapas e Guerrero sudeste mexicano; seu objetivo é facilitar a comunidades campesinas e indígenas, pobres e organizadas a possibilidade de produzir seus próprios materiais audiovisuais e difundi-los. Promedios/CMP se dedica a conseguir os recursos necessários para equipar as diversas regiões donde se trabalha com equipamento de comunicação, capacita os campesinos e os indígenas no manejo de tecnologia de comunicação e distribui as produções dos videastas indígenas nas diversas regiões do mundo. Entre os destaques dos filmes zapatistas estão os filme de Carlos Pérez Rojas sobre a militarização nas comunidades indígenas em Guerrero, onde percebe-se, como em outras produções a presença, inscrição e atuação política do vídeo. Com tais filmes e com sua produção contemporânea pela Mecapal filmes, o realizador tem se destacado em festivais como Sundance, Margaret Mead Film Festival, United Nations Conference on Indigenous Journalism, Festival International de Film d’Amiens e Festival de Cine y Video de los Pueblos Indígenas de América e Wild Spaces Film Festival in Melbourne. Apresentamos também títulos provenientes de outras experiências situadas também no México como filmes produzidos pelo Proyecto Videoastas Indígenas de La Frontera Sur (Dia de muertos en la tierra de los murciélagos e Canción de nuestra tierra), ou Dulce Convivência (produzido por Quemix), Aqui, así nos Curamos (Ojo de tigre) além de um filme não oriundo de projetos de formação, biográfico e ensaístico: El rebozo de mi madre, de Iteandehui Jansen, que nos permitem perceber as diferenças formais se comparados a Chiapas Media Project, embora muitas vezes produzidos no mesmo contexto, vindos das selvas remanescentes da região de Chiapas. Incluímos ainda, sob “licença poética”, um filme de autoria da importante realizadora Jeannette Paillán (mapuche/Chile), o belo Punalka, el alto Bíobío. / 55 Poder assistir as imagens e sons que conectam o realizador e câmera, em conversa com o seu avô, indagando mais uma vez sobre o ritual, aprendendo mais uma vez para trazer a memória ao filme que nos conecta, espectadores à sua realidade, compartilhada principalmente com seus parentes próximos, pois com eles divide o conhecimento de uma língua rara, aponta mais uma vez para a necessidade de se conhecer mais sobre o cinema dos povos originários. Realizar essa mostra é reconhecer que “no mundo indígena, um ritual e um filme nunca são perfeitos, estão sempre inacabados, prontos apenas para o recomeço. E assim, ali, um filme gera e provoca necessariamente outro filme.” (Caixeta de Queiroz, 2008, p. 123).9 Uma mostra, outras mostras. 9 QUEIROZ, Caixeta de Ruben. Cineastas Indígenas e Pensamento Selvagem in Devires, Cinema e Humanidades, FAFICH-UFMG, v.5, n.2, 2008. 56 \ \ Qati Qati / Susurros de muerte / Qati Qati / Whispers of death / Bolívia \ 1998 / cor \ 35’’ direção director Reynaldo Yujra (Aymara) fotografia photography César Pérez montagem editing Juan Cadena som sound Max Silva, Constancio Chileno produção production Maria Eugenia Muñoz, Fernando Alcázar, CEFREC-CAIB contato contact [email protected] Adaptação de conto da região de Carabuco do Lago Titicaca, o filme encena a história de um homem que paga caro por não acreditar nas almas e nos espíritos antepassados presentes na vida cotidiana Aymara. Adapted from a tale of the Carabuco region of Lake Titicaca, this is the story of a man who pays dearly for not believing in the souls and spirits present in everyday Aymara life. / cine humberto mauro \ 30 nov / 19h / 57 \ Qulqi chaleco / Chaleco de plata / Qulqi chaleco / Vest made of money / Bolívia \ 1999 / cor \ 22’ direção director Patricio Luna (Aymara) fotografia photography Santiago San Martín montagem editing Juan Cadena som sound María Eugenia Muñoz e Franklin Cortéz produção production María Eugenia Muñoz e Fernando Alcázar, CEFREC-CAIB contato contact [email protected] Dramatização de um conto tradicional Aymara que propõe uma reflexão sobre a ambição, a avareza e as consequências da acumulação. In this dramatization of a traditional Aymara tale, Satuco hoards money in a vest that he never removes, not even to sleep. When signs tell of his coming death, he shares his secret with a neighbor—and the results are eternal. / cine humberto mauro \ 23 nov / 15h / centro cultural UFMG \ 02 dez / 18h 58 \ \ K’anchary / Para encender la luz del espíritu / K’anchary / To light the spirit / Bolívia \ 2002 / cor \ 45’’ direção director Reynaldo Yujra (Aymara) fotografia photography Cesar Perez montagem editing Juan Guaraní, Reynaldo Yujra, Max Silva som sound Juan Guaraní produção production Daniel Gutierrez, CEFREC-CAIB contato contact [email protected] O vídeo é estruturado a partir do acompanhamento dos médicos tradicionais Kallawayas da comunidade de Chari (La Paz) para conhecer diferentes aspectos da realidade indígena da região e a prática da medicina tradicional, reflexo de uma cosmovisão própria. In a collective production, an Aymara filmmaker follows the Kallawayas, healers and spiritual leaders of the Chari community of La Paz, to learn about the indigenous reality of the region. Traditional medicine practices are documented, providing insights into the Kallawaya world view. / cine humberto mauro \ 30 nov / 19h / centro cultural UFMG \ 02 dez / 18h / 59 \ Wiñay qaman pacha / Cosmovisión de los pueblos indígenas originários / Bolívia \ 2004 / cor \ 30’ direção director Coletiva produção production CEFREC-CAIB contato contact [email protected] Os povos originários vivem uma forte conexão com a Pachamama (Mãe Terra), com os deuses protetores e com sua própria espiritualidade. Atualmente, tanto nas cidades como nas comunidades indígenas, muitas crenças externas apareceram gerando um enfrentamento entre irmãos e conflitos com sua própria cultura. O documentário reflete sobre esta problemática e demanda o direito dos povos indígenas de praticar sua cultura e fortalecer sua identidade. The traditional indigenous people have a strong connection with Pachamama (Mother Earth), protective gods and their own spirituality. Nowadays, both in the city and in indigenous communities, many external beliefs have arisen generating confrontation among brothers and conflicts with their own culture. The documentary reflects upon this problem and demands the right for indigenous people to practice their culture and strengthen their identities / cine humberto mauro \ 23 nov / 15h 60 \ \ El grito de la selva / Cry of the forest / Bolívia \ 2008 / cor \ 97’ direção director Coletiva fotografia photography Cesar Perez montagem editing German Monje som sound Nicolas Ipamo produção production Erika Cavero contato contact [email protected] O filme narra acontecimentos baseados em histórias reais dos anos 1990 e 1996 no contexto da preparação da histórica marcha que os povos indígenas da Amazônia do Beni fizeram até a cidade de La Paz reivindicando por dignidade e território. Aborda o papel e a luta das comunidades e as mulheres indígenas defendendo seus direitos e sua terra. The regional indigenous movement of the 1990s in Bolivia sets the stage for the country’s first indigenous feature film. Communities in lowland Beni are shattered by violence meted out by illegal loggers. Their defense of their lives and lands culminates in protests that change the political landscape of Bolivia forever. / cine humberto mauro \ 03 dez / 17h / 61 \ Suma Quamaña, Sumak Kausay, Teko Kavi / Para vivir bien / Suma Quamaña, Sumak Kausay, Teko Kavi / For a better life / Bolívia \ 2008 / cor \ 55’ direção director Coletiva fotografia photography Vicente Mamani, Jesús Tapia, Cesar Pérez, Max Silva montagem editing Max Silva produção production Victor Hugo Torrez, CEFREC-CAIB contato contact [email protected] O documentário recupera a participação dos povos indígenas originários e camponeses da Bolívia no processo da Assembleia Constituinte, documentando-a desde o início, com as diferentes mobilizações e marchas que protagonizaram as organizações indígenas e campesinas, a instalação da Assembleia na cidade de Sucre, as propostas das organizações indígenas, as agressões dos dirigentes e participantes e os obstáculos superados até a entrega da Nova Constituição do Estado a Presidente da República, em 2007. In Bolivia, a forceful new movement for progressive change has emerged from the indigenous peoples of the country. Indigenous videomakers document the historic process of mobilization by indigenous and peasant organizations, leading to the drafting of a controversial new national constitution that recognizes indigenous autonomy and protects linguistic and cultural diversity / cine humberto mauro \ 24 nov / 15h 62 \ \ Guayé – La lucha del pueblo Ayoreo / Bolívia \ 2010 / cor \ 31’ direção director Coletiva fotografia photography Max Silva montagem editing Max Silva som sound Zaida Cabrera, Tomás Candia, Nicolas Ipamo produção production Francisco Vargas, CEFREC-CAIB contato [email protected] O documentário baseia-se em uma reflexão sobre a cultura, a organização e a luta constante do povo indígena Ayoreo na Bolívia pela verdadeira inclusão no Novo Estado Plurinacional da Bolívia através de dois acontecimentos: o primeiro, uma viagem dos dirigente da CANOB de Decasuté à terra comunitária indígena Guayé (Rincón del Tigre); o segundo, o cotidiano de Josedaté , , uma mulher de muita força e com uma trajetória em defesa do povo Ayoreo, que nos faz refletir sobre a importância de seu povo e de sua cultura. The documentary reflects upon the culture, form of organization and constant struggle of the Ayoreo indigenous people of Bolivia for the inclusion of two events on the New Plurinational State of Bolivia. The first one is a trip from the directors of CANOB from Decasuté to the indigenous land of Gauyé (Rincón del Tigre); the second is the everyday life of Josedaté), a woman of much strengh and with a history of defense of the Ayore people, that makes us think upon the importance of her people and her culture. / cine humberto mauro \ 23 nov / 15h / 63 \ Sirionó / Bolívia \ 2010 / cor \ 56’ direção director Coletiva fotografia photography César Pérez montagem editing Germán Monje som sound Nicolas Ipamo produção production CEFREC-CAIB contato contact [email protected] O dia a dia da comunidade Sirionó de Ibiato nos tempos das ditaduras militares, no final da década de 70 e logo antes da histórica marcha indígena de 1990 pelo Território e pela Dignidade, nos faz refletir sobre a educação e a forma na qual se impôs um modelo alheio às culturas indígenas e de desrespeito ao próprio idioma. A fictional account of the Sirionó community of Ibiato, just before the historic 1990 March for Land and Dignity to the nation’s capital. A revolutionary guerilla fleeing from the dictatorship’s military forces is mistakenly accepted as the teacher the community has been expecting. / cine humberto mauro \ 27 nov / 19h 64 \ \ La nación clandestina / Bolívia \ 1989 / cor \ 128’ direção director Jorge Sanjinés fotografia photography César Perez montagem editing Jorge Sanjinés som sound Juan Guaraní produção production Grupo UKAMAU contato contact [email protected] O filme tematiza a questão da identidade cultural da nação boliviana. Sebastián Mamani, um camponês renegado por seu povo, tenta integrarse a uma sociedade que o descrimina e humilha por sua origem Aymara. Ele retorna ao povoado para se redimir por ter atuado como repressor durante a ditadura. Dançando o “Jacha Tata Danzante” e ele espera apagar seu passado, desejando seu próprio renascimento. The movie centers on a discussion of the bolivian nation’s cultural identity. Sebátian Mamani, a countryman denied by his people, tries be part of a society that discriminates and humiliates him due to his Aymara origins. He returns to his village to redeem himself for engaging in acts of repression during the dictatorship. Dancing the ‘Jacha Tata Danzante’ until his death he expects to erase his past while waits to be reborn. / cine humberto mauro \ 01 dez / 21h / 65 \ Chul stes-bil lum qui, nal / Tierra Sagrada / The sacred land / México \ 2000 / cor \ 19’ direção director coletiva Tzeltal produção production Chiapas Media Project/Promedios contato contact [email protected] Por mais de 500 anos os povos indígenas de Chiapas vêm lutando para recuperar a propriedade de suas terras. Até o levante Zapatista de 1994, grande parte dos povos de Chiapas se sustentava através do trabalho em grandes plantações de ricos proprietários. “Terra Sagrada” descreve a vida nessas plantações, e inclui histórias sobre condições de quase escravidão que remetem a quatro gerações. Produzido no município autônomo “17 de novembro” e editado por videastas indígenas. For more then 500 years indigenous people in Chiapas have been struggling to regain ownership of their lands. Until the Zapatista uprising in 1994, most indigenous people in Chiapas existed by working on large plantations for rich landowners. The Sacred Land describes what life was like on these plantations. It includes stories that go back four generations about slavery-like conditions in which people worked for the rancheros. Produced in the autonomous municipality of “November 17th” and edited by indigenous video makers. / cine humberto mauro \ 24 nov / 15h 66 \ \ Son de la tierra / Song of the earth: traditional music from the highlands of Chiapas / México \ 2002 / cor \ 17’ direção director Jorge fotografia photography Jorge, Amalio e Carlos Efrain montagem editing Jorge e Carlos Efrain som sound Jorge e Carlos Efrain produção production Chiapas Media Project/Promedios contato contact [email protected] Anciãos Tzotzil explicam o significado da música tradicional e o papel dos músicos em suas respectivas comunidades. Presentes no filme festividades, músicas e danças, incluindo o festival de San Andres, a celebração mais importante do ano. Os anciãos discutem a influência da música ocidental e expressam sua esperança da juventude indígena manter suas tradições e cultura. Tzotzil elders explain the significance of traditional music and the role of musicians in their communities. Celebrations, songs and dances are presented including the festival of San Andres, the most important celebration of the year. Elders talk about the influence of western music and dress on youth and express their hopes that indigenous youth will maintain their traditions and culture / cine humberto mauro \ 04 dez / 17h / 67 \ Cuando la justicia se hace pueblo / Reclaiming justice: Guerrero’s indigenous community police / México \ 2002 / cor \ 26’ direção director Carlos Pérez Rojas (Mixe) fotografia photography Hermenegildo Rojas Rmz, Jose Luis, Carlos Pérez Rojas montagem editing Alex Halkin e Carlos Pérez Rojas som sound Jose Luis Matias e Victor Pérez Rojas produção production Alex Halkin e Paco Vazquez, Chiapas Media Project-Promedios contato contact [email protected] “Quando la justicia se hace pueblo” conta a história de 42 comunidades Mixteco e Tlapaneco de Costa Monta - uma região de Guerrero que, frente à injustiça e à corrupção das autoridades locais, criaram a Polícia das Comunidades Indígena (ICP) em 1995. O ICP é uma organização voluntária, eleita por assembléia regional, baseado no sistema de justiça indígena. “Reclaiming Justice” is the story of 42 Mixteco and Tlapaneco communities in the Costa-Monta–a region of Guerrero who, faced with injustice and corruption of local authorities, established the Indigenous Community Police (ICP) in 1995. Based on the traditional Indigenous justice system, the ICP is a volunteer organization elected by regional assembly. / cine humberto mauro \ 29 nov / 15h 68 \ \ La lucha del agua / Water and autonomy / México \ 2003 / cor \ 14’ direção director Coletiva Tzeltal fotografia photography Israel montagem editing Israel produção production Chiapas Media Project/Promedios contato contact [email protected] Muitas das comunidades indígenas de Chiapas não têm acesso à água potável. “Água e Autonomia” volta-se para esse problema e revela de que forma as comunidades Zapatistas trabalham para resolvê-lo. Através da solidariedade e do treinamento proporcionado por pessoas do exterior, várias comunidades vêm construindo seus próprios sistemas de distribuição de água potável. Many of the indigenous communities in Chiapas have no access to potable water. Water and Autonomy looks at this serious problem and how the Zapatista communities are solving it. Through solidarity and training from internationals many communities are now building their own water systems. / cine humberto mauro \ 29 nov / 15h / centro cultural UFMG \ 03 dez / 18h / 69 \ La vida de la mujer en resistencia / We are equal: Zapatista women speak / México \ 2004 / cor \ 19’ direção director Coletiva Tzeltal fotografia photography Nicolasa, Maria, Fredy, Antonio, Manuel, Antonio, Miguel, José Guadalupe, Paulina, Arnulfo, Guadalupe som sound Miguel e José Guadalupe montagem editing Moisés produção production Chiapas Media Project/Promedios Mulheres Zapatistas falam sobre suas vidas antes do levante de 1994 e quais as mudanças ocorreram desde então. O filme apresenta um olhar direto e crítico acerca das relações de gênero dentro de comunidades Zapatistas – quanto as mulheres conquistaram e o quanto elas ainda precisam conquistar. Zapatista women speak about what their lives were like before the uprising in 1994 and how their lives have changed since. A very upfront and critical look at gender relations within the Zapatista communities how far women have come and how far they still need to go. / cine humberto mauro \ 29 nov / 15h / centro cultural UFMG \ 03 dez / 18h 70 \ \ Mirando hacia adentro. La militarización en Guerrero / Eyes on what’s inside: The militarization of Guerrero / México \ 2005 / cor \ 34’ direção director Carlos Pérez Rojas (Mixe) fotografia photography Carlos Pérez Rojas, Mario Viveros, Hermenegildo Rojas, Bruno Varela, Rafa de Villa, Eduardo Jaszi, Rodrigo Cruz montagem editing Alex Halkin e Bruno Varela produção production Alex Halkin, Chiapas Media Project/Promedios de Comunicación Comunitária A.C. contato contact [email protected] O filme discute os efeitos desestabilizadores da presença militar em comunidades indígenas, e como a pobreza e a marginalização crescentes contribuíram para a criação de grupos guerrilheiros armados e a presença do narcotráfico. A constituição mexicana estabelece o papel interno da polícia militar, e Guerrero representa um exemplo de como os militares agem fora das leis constitucionais The Organization of Indigenous People Me phaa (OIPM) share their story but it is really the story of many indigenous communities in Guerrero. Discussed are the destabilizing effects of the military presence on indigenous communities, and how the increasing poverty/marginalization of the population has contributed to the formation of armed guerilla groups and the presence of narcotrafficking. The Mexican Constitution lays out the internal role of the military and Guerrero presents a clear example of how the military acts outside of it’s constitutional mandate. / cine humberto mauro \ 04 dez / 17h / 71 \ La tierra es de quien la trabaja / The land belongs to those who work / México \ 2005 / cor \ 15’ direção director Coletiva Tzotzil produção production Chiapas Media Project/Promedios contato contact [email protected] O vídeo acompanha a situação da cidade de Bolon Aja’aw, localizada no norte do estado, perto do famoso sistema do rio Água Azul. O governo federal vendeu as terras de Bolon Aja’aw a uma companhia privada para a criação de um centro de ecoturismo, sem a permissão dos membros da comunidade. O vídeo documenta um encontro entre autoridades Zapatistas e funcionários do governo mexicano, e oferece um olhar crítico em relação às implicações práticas do assim chamado ecoturismo. The video discusses the situation in the town of Bolon Aja’aw, located in the north of the state near the famous Agua Azul river system. The federal government sold the land in Bolon aja’aw to a private company to create an eco-tourism center without the permission of the community members. The video documents a meeting between Zapatista authorities and Mexican Government functionaries, and offers a critical look at the practical implications of so-called eco-tourism. / cine humberto mauro \ 30 nov / 21h / centro cultural UFMG \ 03 dez / 18h 72 \ \ Planting a seed: autonomous health in Chiapas / México \ 2007 / cor \ 42’ direção director Coletiva (Tzotzil, Tzeltal e Tojolabal) fotografia photography Edilberto, Estela, Timóteo, Charly, Salvador, Reynoso, Israel, Gerardo montagem editing Timóteo, Edilberto, Estela, Nico, produção production The Autonomous Municipalities of Lucio Cabañas, 17 de Novembro, Che Guevara, Vicente Guerrero, 1° de Janeiro, Olga Isabel e Miguel Hidalgo, Chiapas Media Project/Promedios de Comunicacion contato contact [email protected] As comunidades autônomas Zapatistas formaram seus próprios sistemas de saúde, independentes do sistema oficial do governo mexicano, de forma bem sucedida. Em “Planting a Seed” os responsáveis pela saúde e outros membros da comunidade descrevem como gerenciam suas próprias clínicas, ministram oficinas sobre saúde, e continuam a preservar a medicina natural tradicional ao mesmo tempo em que vêm incorporando a medicina ocidental. The Zapatista autonomous communities have successfully formed their own health care system independent of the official system of the Mexican government. In Planting a Seed, health promoters and other community members describe how they run their own clinics, hold health workshops, and continue to use and preserve their traditional natural medicine while also incorporating Western medicine. / cine humberto mauro \ 24 nov / 15h / 73 \ A Cielo Abierto / Under the Open Sky / México \ 2007 / cor \ 37’37’’ direção director José Luis Matías y Carlos Pérez Rojas fotografia photography Carlos Pérez Rojas, José Luis Matías, Gilberto Tecolapa Casarrubias, Emilio Montiel Téllez som sound Gilberto Tecolapa Casarrubias y José Luis Matías montagem editing Carlos Pérez Rojas y José Luis Matías produção production Ojo de Tigre Video contato contact [email protected] O depósito de ouro mais antigo do México se encontra em El Carrizalillo, Guerrero, onde a população vive em extrema pobreza. Em princípios de 2007, as comunidades com títulos sobre essas terras se organizaram para buscar um acordo de arrendamento justo, que incluía benefícios sociais para a comunidade, com a multinacional canadense Goldcorp Mining. A Céu Aberto é a história de uma comunidade que se organizou, lutou e venceu. Mexico’s largest gold deposit is found in El Carrizalillo, Guerrero, where the people live in grinding poverty. In early 2007, community landholders organized in order to seek a fair annual lease payment and social benefits for the communtiy from the Canadian transnational company Goldcorp Mining. / cine humberto mauro \ 04 dez / 17h 74 \ \ Y el río sigue corriendo / And the river flows on / México \ 2010 / cor \ 70’ direção director Carlos Pérez Rojas (Mixe) fotografia photography trilha sonora soundtrack Julio García montagem editing Carlos Pérez Rojas produção production Carlos Pérez Rojas contato contact [email protected] Desde 2003, o governo mexicano tenta construir a barragem da hidroelétrica de “La Parota”, o que inundaria várias comunidades ao sul de Acapulco. Esse documentário retrata comunidades que resistiram a esse projeto, suas vidas, seus trabalhos, e seu amor pela terra. Since 2003, the Mexican government has tried to build the La Parota hydroelectric dam, which would flood several communities south of Acapulco. This documentary portrays the communities that have resisted this project, their lives, their work, and their love of the land. / cine humberto mauro \ 02 dez / 19h / 75 \ El rebozo de mi madre / My mother’s rebozo / México | Holanda \ 2005 / cor \ 75’ direção director Itandehui Jansen (Mixteca/Holandesa) fotografia photography Itandehui Jansen e Matijn Groot som sound Martijn Groot e Aurora Perez montagem editing Katarina Türler produção production Rolf Orthel contact [email protected] Tendo crescido entre as culturas de uma mãe mixteca e um pai holandês, a realizadora empreende uma revisão pessoal de seu povo natal em Oaxaca. Ela reflete acerca das mudanças que identifica e propõe um diálogo com membros da comunidade, documentando sua experiência de migração e retorno. Having been raised amidst the cultures of a mixteca mother and a dutch father, the filmmaker undertakes a personal revision of her village in Oaxaca. She presents a reflection on changes she can identify and suggests a dialogue with community members, documenting her experience about migration and returning home. / cine humberto mauro \ 25 nov / 19h 76 \ \ Nikan ikon ti topajcha/ Aquí así nos curamos / This is how we heal ourselves here / México \ 2003 / cor \ 15’ direção director José Luís Matías (Nahua) som sound Bernardo Alejo Hernàndez montagem editing Gilberto Tecolapa Casarrubias, José Luis Matias Alonso produção production Unidade de Produção Audiovisual Indígena Ojo de Tigre Vídeo Guerrerocontato contact [email protected] Para o povo Nahua de Zitlala, Guerrero, a tradição da medicina realizada com ervas continua sendo utilizada como recurso vital para a saúde da comunidade. To the Nahua people of Zitlala, Guerrero, the medicine tradition based on herbs remains a vital resource to the community health. / cine humberto mauro \ 25 nov / 19h / 77 \ Dulce Convivencia / Sweet gathering / México \ 2004 / cor \ 18’ direção director Filoteo Gómez Martínez (Mixtec) fotografia photography Filoteo Gómez Martínez montagem editing Filoteo Gómez Martínez produção production Quemix contato contact [email protected] O realizador tem como foco a produção de panela (açúcar mascavo) em sua cidade natal em Oaxaca, fornecendo uma compreensão da força e das recompensas do modo de vida indígena. A filmmaker’s focus on the production of panela (raw brown sugar) in his home town in Oaxaca provides insight into the strength and rewards of the indigenous way of life. / cine humberto mauro \ 02 dez / 19h / centro cultural UFMG \ 03 dez / 18h 78 \ \ K’in Santo ta sotz’leb / Dia de muertos en la tierra de los murciélagos / México \ 2002 / cor \ 32’ direção director Pedro Daniel López López fotografia photography Pedro Daniel López López montagem editing Pedro Daniel López López produção production Proyecto Videoastas Indígenas de la Frontera Sur contato contact [email protected] Jovem realizador retoma o contato com seu avô após viajar para o vilarejo do ancião em Zinacantán, Chiapas. Lá ele documenta a festa de Todos os Santos e ritos do Dia dos mortos que não são mais praticados na sua comunidade natal, onde foi adotada uma forma evangélica de Cristianismo. O ancião se apropria das filmagens para transmitir sua esperança de que a juventude indígena dê continuidade a essas tradições. A young filmmaker reconnects with his grandfather when he travels to the elder’s village of Zinacantán, Chiapas. Here he documents the All Saints fiesta and Day of the Dead observances that are no longer practiced in the community where he grew up, which has adopted an evangelical form of Christianity. The elder takes advantage of the filming to convey his hopes for indigenous youth to carry on these traditions. / cine humberto mauro \ 27 nov / 19h / 79 \ Kévujelta Jteklum / Canción de nuestra tierra / México \ 2004 / cor \ 36’ direção director Pedro Daniel López López fotografia photography Pedro Daniel López López som sound David López Pérez montagem editing Pedro Daniel López López produção production Proyecto Videoastas Indígenas de la Frontera Sur contato contact [email protected] Nesse filme, Pedro nos leva à tradição musical de seu avô e de seu bisavô. Nos lembra que eles, como todos os músicos zinacantecos, não só acompanham musicalmente as festas; são os guias do ritual, os “diretores de orquestra” que conhecem todos os passos cerimoniais. Sua música é fundo e forma, e veículo junto com a bebida “pox” e os santos, para chegar a Deus... aos Deuses In this film, Pedro shows us the musical tradition of his grandfather and great-grandfather. He reminds us that, like all zinacanteco musicians, they not only musically accompany the festivities; they are the ritual guides, “orchestra directors” that know all the ceremony’s movements. Their music is background and shape, and a pathway together with “pox” drink and the saints to reach God... the Gods. / cine humberto mauro \ 04 dez / 15h 80 \ \ Nostalgia de San Caralampio / México \ 2004 / cor \ 44’ direção director Comunidade San Caralampio, Pedro Daniel López López, Juan Diego Méndez, Javier Méndez Córdoba, Xochitl Leyva y Axel Köhler fotografia photography Carlos Uriel del Carpio, Juan Diego Méndez, Javier Méndez Córdoba, Axel Köhler, Pedro Daniel López López montagem editing Pedro Daniel López López e Javier Méndez Córdoba produção production Proyecto Videoastas Indígenas de la Frontera Sur contato contact [email protected] As primeiras imagens deste vídeo foram feitas em 1991 a pedido dos moradores da comunidade rural El Guanal, na selva Lacandona. Mais tarde, em 1994, quando aconteceu o levante zapatista, a comunidade de El Guanal se dividiu. Este vídeo nos fala da nostalgia dos guanaleros, agora urbanos, da “terra selvagem prometida”. O vídeo mostra também imagens da festa de San Caralampio, o padroeiro, feitas na cidade de Ocosindo em 2002, agora filmada pelos próprios jovens indígenas. The first images of this video were captured in 1991 at the request of residents from the El Guanal rural community, in the Lacandona jungle. Later on, in 1994, when the Zapatista uprising took place, the El Guanal community was divided. This video speaks of the now urbanised guanaleros, and their nostalgia from a “promised wild land”. The video also shows images from the festivity of San Caralampio, the patron saint, shot in Ocosindo in 2002, that is now portrayed by the young indigenous filmmakers themselves. / cine humberto mauro \ 04 dez / 15h / 81 \ Punalka: el alto Bíobío / Punalka, the upper Bíobío / Chile \ 1995 / cor \ 26’ direção director Jeannette Paillán (Mapuche) fotografia photography Rodrigo Casanova e Pablo Salas montagem editing Jeannette Paillán, Guillermo Molina, Fernando Carrasco produção production Jeanette Paillán, Lulul Mawidha contato contact [email protected] O filme revela o ponto de vista do povo Mapuche que habita o vale do rio Bíobío, no Chile, tendo como foco a ameaça que representa a construção de uma represa hidroelétrica sobre a forma de vida dos Mapuche. The film reveals the Mapuche people’s point of view, living on the Bíobío river valley in Chile, with a special focus on the threat imposed to the Mapuche’s way of life by the building of a hydroelectric dam. / cine humberto mauro \ 27 nov / 19h / centro cultural UFMG \ 02 dez / 18h 82 \ / mostra o animal e a câmera / 83 Hipopótamo Marinho Maxakali ia aaaaa i ii ia aaaaa i ii aaa i a iia hipopótamo do yãmiy cabeça baixa passos lentos aaa ii a aa hipopótamo do yãmiy cabeça baixa passos lentos aaa ii a aa passos lentos aaa ii a aa passos lentos aai dia abiai aai dia abiai diac aabiaí ai diac aaia ô ôôô 84 \ \ O animal e a câmera / Paulo Maia E o que é o amor senão a pressa da presa em prender-se? A pressa da presa em perder-se (Ana Martins Marques, “Caçada”) Um dos temas mais estimulantes da Ciência do Homem, conhecida também por Antropologia, recai sobre a controversa relação (real e conceitual) entre homens e animais, que, em sua exposição e análise, demanda a mobilização de uma série de outras noções correlatas como as de humanidade e animalidade, humanismo e animismo, frequentemente englobadas pelo dualismo mór das ciências sociais e humanas, qual seja, aquele que se refere à distinção radical entre Natureza e Cultura/Sociedade. Nessa partilha, ocioso dizer, os animais são compreendidos como parte da natureza, enquanto os homens – no estilo de um parente traíra –, apesar de animais e partes da natureza, não se identificam (duvide dessa afirmação e de outras) com o reino animal enquanto tal, visto terem adquirido um suplemento ou aplicativo (apps) que possibilitou sua distinção e criação de um reino próprio, a saber, o reino social, i.e, a sociedade. Esse aplicativo, que não é senão um diacrítico, seria a linguagem. O animal não fala, logo, não é um ser social nem político, falar em sociedade é um atributo do homem. / 85 Essa é a lição que tiramos da Constituição Moderna ou da modernidade, que segundo Bruno Latour, se caracteriza por um humanismo exacerbado que separa radicalmente o mundo natural e o mundo social – seja para saudar o homem, seja para anunciar sua morte. Mas o que fazer com outros discursos sobre a natureza e a sociedade, os homens e os animais, que não estão de acordo com nossa partilha moderna entre o mundo natural e o mundo social e nos quais atitudes e práticas com a natureza se dão de formas muito diversas? Como uma visada sobre o animal ou mesmo seu enquadramento cinematográfico pode suscitar e acalorar o debate trans-disciplinar e trans-específico que, como sugerido por Viveiros de Castro, “impõe a dissociação e redistribuição dos predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas que tradicionalmente se opõem sob os rótulos de ‘Natureza’ e ‘Cultura’?” Em outras palavras, como frear a máquina antropológica da filosofia ocidental, aquela denunciada por Giorgio Agamben que impõe a cesura (no interior do homem) entre o humano e o animal? É possível promover tais deslocamentos por intermédio do cinema e da antropologia? Vale recordar que o cinema e a antropologia são de mesma classe de idade, ambos foram se formando nos finais do século de XIX para em seguida, contribuírem, cada um a seu modo, para a constituição do discurso antropológico e cinematográfico modernos. Enquanto Robert Flaherty apresentava ao mundo o magistral Nanook, o esquimó (1922), Bronislaw Malinowsky publicava outra obra magistral, Os argonautas do pacífico ocidental (1922), e ambos trabalhos marcariam os discursos cinematográfico – em especial o documentário – e antropológico de sobremaneira. É possível dizer que Flaherty flertou a antropologia em sua invenção cinematográfica, tal como Malinowsky flertou a fotografia em sua invenção etnográfica, 86 \ esse cruzamento parcial entre antropologia e cinema, sem “forçação de barra”, que a mostra pretende dar continuidade. Esse é o desfio da mostra/seminário “O animal e a câmera” que este texto pretende apresentar e que não é senão uma retrospectiva incrementada – cinematográfica- e-antropologicamente - do percurso ou trilha que o forumdoc vem abrindo nas geraes desde 1997 quando fizemos sua 1a edição que, por sinal, já estruturara de forma fundamental nossa linha de fuga que traçávamos sem muito manejo, mas com muito desejo desde aquela época. A mostra traz portanto uma atualização de filmes já exibidos nesses anos de forumdoc – e não são poucos, não cabendo listá-los -, assim como alguns filmes inéditos em Belo Horizonte e no Brasil. No total, 23 filmes – 14 longas, 5 médias e 5 curtas – serão exibidos e seguidos de 3 conferências, 2 sessões comentadas e 2 mesas redondas, que comporão a mostra/seminário proposta pelo programa de extensão forumdoc.ufmg à programação geral do forumdoc.bh.2011. Se existe um modo emblemático da relação homem-animal é aquele manifesto na caça e na pescaria de animais, este parece ter sido inclusive o cenário/evento preferido, tão logo o cinema se livrou (ao menos tecnicamente) do tripé e dos ambientes cerrados e seus cenários. Nanook inaugura justamente uma série de filmes cujas cenas se dão quase que completamente fora dos estúdios, nas bordas da “natureza” e da “cultura”. A curadoria dessa mostra busca também fundamentar uma certa inclinação metafísica do cinema sobre o tema da caça e da pesca, como se alguns cineastas, assim como Ishmael/Melville, fossem arrastados – aqui a linguagem da caça e da pesca já pode ser plenamente incorporada pelo discurso cinematográfico et al – numa relação em que o que importa, como / 87 diria Deleuze (que apesar de não gostar dos caçadores compreendeu bem a caçaria), é uma relação animal com o animal (devir-animal), que põe em perspectiva as duas principais afecções da alma compartilhadas entre homens e animais, o medo e a coragem. O “animal e câmera” se estrutura em dois grupos (existem outras linhas) de filmes cuja ação cinematográfica gira em torno da execução dos modos emblemados supracitados, ou seja, oscilam entre ideologia da caça e da pesca, por vezes atuando em ambos. Iremos passar por todo um bestiário: focas, morsas, raposas, cachorros, baleias, hipopótamos, leões, girafas, touros, macacos, capivaras, cavalos, vacas e bois, arenques e outros peixes, espíritos, bichos-preguiça, dentre outros. Conheceremos uma série de técnicas corporais e instrumentos, em sua maioria objetos – canoas, barcos, arpões, redes, flechas, laços, espadas, armadilhas de todo tipo – carregados de simbolismo e venenos (agência) que podem ajudar ou atrapalhar a perseguição, o aprisionamento e a morte do animal. Os lugares pelos quais passaremos serão os mais diversos, da floresta tropical às terras e mares gélidos da baía de Hudson, passando pelo Níger e Afeganistão, chegando na paisagem desflorestada do interior de Minas Gerais. Homens, animais e paisagens relacionadas diante da câmera. Nanook, o esquimó (1922), de Robert Flaherty, e Drifters (1929), de John Grierson, são dois filmes inaugurais dessa modalidade (numa época em que o cinema ainda não falava), que encabeçam a curadoria da mostra. O primeiro filme acompanha as vicissitudes de um caçador inuit e sua família na labuta constante pela busca de animais que caçados ou pescados compõem a base da dieta alimentar e da vida espiritual desses povos. Considerado um precursor do documentário, Flaherty inovou como poucos, antecipando o dispositivo rouchiano, ao compartilhar com o outro filmado sua imagem filmada antes 88 \ mesmo de dar cabo ao filme, revelando, assim, parte do dispositivo cinematográfico, equilibrando o jogo, inevitavelmente assimétrico, entre aquele que filma e aquele que é filmado. Drifters, por seu turno, influenciou toda uma geração de “arenques” do documentário inglês, ao propor formas alternativas àquelas da avant-garde do cinema. Jean Rouch, com todo merecimento, tem um lugar especial na mostra, pode-se dizer que os quatro filmes aqui selecionados, Batalha no grande rio (1951), A caça ao leão com arco (1965), Um leão chamado Americano (1968) e Meu primeiro filme (1991) – além de No país dos magos negros (1947), virtualmente presente na curadoria – formam um conjunto de peso dentro da filmografia apresentada na mostra, pois juntamente com outro conjunto de filmes de John Marshal Os caçadores (1957), Equipamento de caça dos Bosquímanos !Kung (1974) e Caça do leão (1974) – e Pierre Perrault – Pour la suite du monde (1962) e La bête lumineuse (1982) –, revelam uma etnografia documental atenta que apresenta um jogo ritual complexo, e repleto de detalhes, entre homens e certos animais, animais especiais. O caráter nostálgico da caça/pesca, assim como o entusiasmo dos caçadores e pescadores, é talvez o aspecto que perpassa a maioria desses filmes que devolvem a essas pessoas simples e corajosas o direito ao ofício dessas práticas de que tanto se orgulham. Vale notar que o fato de filmar uma caçada ou pescaria não é em nada suficiente para que o filme seja considerado enquanto tal; ao meu ver, para que tenhamos um verdadeiro filme de caça/pesca é preciso que a câmera participe da caçada/pescaria, que passe por devir-arma sob o domínio do fotógrafo-caçador, persiga sua presa, inclusive filme o abate. Como nos ensinou Rouch, para preparar um documentário sobre a caça ao leão permaneci longo tempo numa aldeia africana. As filmagens foram feitas num período de mais ou menos seis anos. Para as pessoas desta aldeia / 89 o cinema se tornou uma coisa familiar. Depois deste primeiro filme sobre a caça coletiva ao leão eles me pediram para filmar regularmente as caçadas. Fazer vários filmes sobre o mesmo assunto para eles é absolutamente natural e uma caçada sem a presença da câmera deixou de ser boa. O cinema se tornou parte da cerimônia; a câmera, uma arma para a caça. Outro bloco de filmes que compõem a mostra são aqueles realizados no Brasil. Arraial do cabo (1959), de Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, com sua fotografia apurada, atualiza em terras tupiniquins o dilema já explorado por Flaherty, Grierson e tantos outros, o do avanço inevitável do capital frente às práticas tradicionais de manejo e sustento, a transformação de pescadores em proletários, afastando-os da natureza para alocá-los nas fábricas e indústrias. Em Memória do cangaço (1964), de Paulo Gil Soares, e Rastejador, substantivo masculino (1969), de Sérgio Muniz, é o sertão que se impõe, aos homens, aos animais e à câmera. Nessa mostra esses filmes se ocupam, assim como Os Arara (1983), de Andrea Tonacci, em aproximar as habilidades de caça ao rastreamento de pessoas. Batista e Joaquim Correia Lima, que conhecemos em o Rastejador, caçadores de animais que posteriormente auxiliaram as volantes do cangaço no nordeste brasileiro, são a prova cabal da ligação entre caça e guerra, cuja perseguição e captura de inimigos é a meta. Tonacci, por sua vez, acompanha com sua câmera, que passa a fazer parte, a “frente de atração” dos Arara, grupo indígena karibe do Pará, organizada pela Funai no final dos anos 1970. Os Arara é um dos documentos raros de que dispomos de um acontecimento que obriga a câmera/cineasta a seguir os procedimentos que levam ao primeiro-contato, os devires e os perigos desse polêmico encontro – habilidade de caçadores? Yâkwá, O banquete dos espíritos (1995), de Virginia Valadão, Peixe pequeno (2010), de Vincent Carelli e Altair Paixão, Histórias de Mawari 90 \ (2009), de Ruben Caixeta de Queiroz, Ataka, o ladrão de armadilhas (2011), do Coletivo de Cinema Kuikuro, e Caçando capivara (2009), de Derli Maxakali, Marilton Maxakali, Juninha Maxakali, Janaina Maxakali, Fernando Maxakali, Joanina Maxakali, Zé Carlos Maxakali, Bernardo Maxakali e João Duro Maxakali compõem um outro eixo da mostra, este focado em uma sociologia indígena da relação com os animais dita de vários modos. Filme-ritual está no cerne desse grupo, a relação homem-animal é encenada ritualmente para a câmera. Em Histórias de Mawari destaca-se um plano-sequência em que um grupo de jovens dançarinos waiwai (povo karibe dos estados do Amazonas, Pará, Roraima e da Guiana Equatorial) bailam e cantam portando nas mãos cascos de tracajá (quelônio), que são mostrados para a câmera/cineasta cujo olho não se discerne entre o ocular e a objetiva ou olho de animal, o cineasta que veste a câmera é outra coisa, cantam os waiwai, o olho do bicho-preguiça, e assim eles cantam para o bicho-preguiça, cine-olho: Waymayimo Yeuru... olho do bicho-preguiça. O olho do bichopreguiça é muito bonito. Olha aqui o tracajá! Comemos nosso bicho de estimação. Coitadinho do tracajá! O tracajá está com medo do bicho-preguiça! Nós humanos também temos medo do bicho-preguiça! Ei tracajá, olhe o olho do bicho-preguiça, é mesmo muito bonito! Olhe o que nós ganhamos do bicho-preguiça! Olho bonito, olhe aqui para nós, somos os olhos do fundo! Tracajá tenha cuidado com o bicho-preguiça, senão ele vai te morder. A performance waiwai e o plano-sequência são a mesma coisa sob o solo do perspectivismo ameríndio. Dos filmes acima depreendem uma ecosofia ameríndia cuja relação ou manejo do mundo (Cabalzar org., 2010) — dos rios, das terras, dos animais, das plantas, de objetos, de espíritos, dos deuses, em suma, das pessoas —, denotam lições ecológicas que os programas de desenvolvimento social e / 91 aceleração do crescimento (PACs) insistem em ignorar e silenciar. Yâkwá, O banquete dos espíritos acompanha o ritual de mesmo nome levado a cabo anualmente pelos Enawenê-Nawé, povo aruak do noroeste do Mato-Grosso; filmado na década de 1990, o filme não previa que no ano 2008 os peixes, elemento fundamental do ritual e da dieta enawenê-nawé, não haviam retornado da piracema como de costume. Os Enawenê-Nawé, com toda razão, preocupados com a tragédia da falta de peixes e impossibilitados como estavam de realizar seu ritual anual, exigiram da FUNAI que cobrasse das construtoras das PCH (Pequenas Centrais Hidrelétricas), na bacia do rio Jurema, principais suspeitas de impacto ambiental causando a eliminação dos peixes na região, uma taxa para a compra de três mil quilos de peixe tambaqui a fim de concluírem o ritual Yaõkwá de 2009, este agora filmado pela equipe do Vídeo nas Aldeias para o IPHAN (outro filme virtualmente presente na mostra). Caçando capivara (2009) e Ataka, o ladrão de armadilhas (2011) são filmes frutos da realização de oficinas de realização; o primeiro, de oficinas ministradas por brancos aos realizadores maxakali que assinam a autoria de um filme excepcional, e o segundo, em oficinas ministradas no Xingu pelo cineasta indígena Takumã Kuikuro, que vem ao forumdoc apresentar e discutir seu novo filme em uma sessão especial nomeada Como filmar uma armadilha? Três filmes completam a programação da mostra e são alinhados não por compartilharem características, mas por cortarem na diagonal os eixos que compõem a mostra “O animal e a câmera”, pois são obras um tanto deslocadas do eixo central caça/pesca que denotam outras singularidades e contextos relacionais do humano e do animal, outras linhas de fuga. 92 \ La course de taureaux (1951), de Pierre e Myriam Braunberger, a que tudo indica inédito no Brasil, foi tornado famoso por André Bazin em um ensaio dedicado ao documentário, filme-libelo em favor da tauromaquia, no qual o touro e o toureiro “morrem todas as tardes”. Vale notar o que Bazin nesse ensaio parece ignorar: que o texto narrado em off foi escrito por nada mais nada menos que Michel Leiris, gerando uma camada suplementar na montagem alucinante que o filme apresenta do embate entre homens - toureiros e cidadãos comuns - e touros enfurecidos em arenas de todo tipo. O filme aborda portanto uma prática em franco desaparecimento ou “esfriamento” na Espanha; são cada vez mais frequentes as campanhas que visam a proibição de rodeios e touradas, aqui e acolá, tendo algumas regiões já sancionado leis que impedem a continuidade dessas controversas e distintas tradições. Primate (1974), de Fredrick Wiseman, cúmplice-delator das insti tuições, é outro filme genial que aborda a relação homem-animal por intermédio da ciência chamada de primatologia; desse modo, o filme enquadra o trabalho dos cientistas que estudam o comportamento, desenvolvimento psíquico e mental de primatas encarcerados e dopados em jaulas de laboratórios. O animal aqui é posto à prova e a serviço do saber científico, como propõe mostrar André Dias, escritor e crítico de cinema português, que apresentará uma conferência no seminário “O animal e a câmera” intitulada “Autópsia ‘in vivo’: aspectos da biopolítica em Primate, de Fredrick Wiseman”. Os cavalos de Goethe, ou Alquimia da velocidade (2010), de Arthur Omar, é um filme dedicado à simbólica dos cavalos; nele dois grupos de cavaleiros, em uma zona de guerra do Afeganistão, combatem pela posse de uma carcaça de bode decepado, enquanto o tempo não se atarefa por dilatar as imagens até a imobilidade. São os cavalos os verdadeiros donos dessa visada, é para eles que a força da câmera / 93 se dirige. A invenção cinema-fotográfica de Arthur Omar é sem dúvida uma das mais radicais num uso experimental do dispositivo imagético, como demonstra o trecho que transcrevo de uma recentemente correspondência pessoal na qual o artista admite que a relação câmera/animal é a suprema relação fotográfica, e talvez seja a única possível porque a câmera nada mais sabe do que transformar em animal, já que ela própria é um animal. Desse limite, devemos fazer um infinito, e meu trabalho com a antropologia da face gloriosa não tem sido outra coisa, os meus animais, a descoberta dos animais que não podem ser vistos a olho nu, a caça, em suma, que se dá não por focalização, mas por invenção. Encerrando a mostra e o forumdoc.bh.2011, exibiremos Dersu Uzala (1975), do grande cineasta japonês Akira Kurosawa. Único filme de ficção da mostra, narra o fascinante e trágico encontro entre um explorador do exército russo e um caçador goldi da Sibéria. Nesse ínterim, é toda uma ética e ideologia de caçador que Dersu dispõe a nos mostrar em uma mise-en-scène imensamente cativante. Além dos filmes e a participação de alguns convidados apresentados acima, a mostra/seminário ainda conta com a conferência inaugural “Lições de caça”, na qual Maurício Yekuana (índio yekuana, vicepresidente da Associação Indígena Hutukara) irá nos falar sobre os processos de aprendizagem em jogo quando o assunto é tornar-se um caçador yekuana, povo karibe que vive na divisa entre Roraima, no Brasil, e na Venezuela. Tânia Stolze Lima, eminente etnóloga do povo yudjá do Mato Grosso, conhecido também pelo nome de Juruna, nos brindará com uma conferência na qual irá revisitar sua descrição etnográfica da caça de porcos do mato e do perspectivismo juruna. Lima suspeita que os 94 \ Juruna, quando falam entusiasticamente das caçadas de porcos do mato, não encenam senão o destemor que sentem diante de outrem, animal ou inimigo. Faremos também uma mesa redonda destinada a colocar em cheque ou estabelecer conexões parciais entre “A tecnologia da caça/pesca e do cinema”. Nela estarão presentes Cezar Migliorin, professor, pesquisador e ensaista do cinema, Carlos Emanuel Sautchuk, professor de antropologia e pesquisador de temas relativos a tecnologia de pesca e caça e Uirá Garcia, étnologo cujo trabalho é centrado no estudo das práticas de conhecimento relativas aos animais e da caça com os Awá-Guajá, povo tupi-guarani do Maranhão. Finalmente, uma mesa redonda será dedicada a uma visada mais geral da mostra/seminário, que contará com a participação de André Dias, crítico português já apresentado, Renato Sztutman, antropólogo e professor, com trabalho reconhecido na interface entre a antropologia e o cinema, sendo responsável por uma leitura original da invenção cinematográfica de Jean Rouch, e Paulo Maia, coordenador do programa de extensão forumdoc.ufmg, além de etnólogo e professor. Na sessão de ensaios do catálogo, o leitor encontrará Como filmei Nanook of the North, de Robert Flaherty (1924), Banghawi: caça ao hipopótamo com o arpão pelos pescadores Sorko do Médio-Níger, de Jean Rouch (1948), O Afeganistão é inconquistável (2011), de Arthur Omar. Agradecemos imensamente a Mateus Araújo pelos comentários a respeito da curadoria da mostra, assim como a disponibilização do texto de Jean Rouch supracitado, e a André Dias e Arthur Omar por outras sugestões. / 95 A mostra/seminário “O animal e a câmera” só foi possível graças ao patrocínio da Capes, a que somos muitíssimos gratos, assim como aos apoios do Departamento de Ciências Aplicadas a Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Cenex e da diretoria da Faculdade de Educação, e da diretoria da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH-UFMG), e dos departamentos e programas de Pós-Graduação em Antropologia e Comunicação Social da UFMG. Somos igualmente gratos a Escola de Belas Artes da UFMG, que 15 anos depois volta a abrigar parte da programação do forumdoc.bh.2011. 96 \ \ Nanook of the North / Nanook, o esquimó / EUA \ 1922 / p&b \ 65’ direção director Robert J. Flaherty fotografia photography Robert J. Flaherty montagem editing Robert J. Flaherty, Charles Gelb produção production Robert J. Flaherty contato contact [email protected] Clássico de Robert Flaherty, o filme conta a história de Nanook, um caçador Inuit e sua família na luta pela sobrevivência diante das duras condições da região da Baía de Hudson, Canadá. Robert Flaherty’s classic film tells the story of Inuit hunter Nanook and his family as they struggle to survive in the harsh conditions of Canada’s Hudson Bay region. / auditório sônia viegas FAFICH-UFMG \ 21 nov / 14h / 97 \ Drifters / Reino Unido \ 1929 / p&b \ 61’’ direção director John Grierson fotografia photography John Grierson, Basil Emmott montagem editing John Grierson produção production John Grierson contato contact www.panamint.co.uk John Grierson, que cunhou o termo documentário, fez seu primeiro filme, ‘Drifters’ em 1929 como tributo às frotas de pesca de arenque do Mar do Norte. O filme foi rodado nos então grandes portos de pesca de Lowestoft e Yarmouth, com algumas cenas filmadas em Shetland. John Grierson, who coined the term documentary, made his first film, Drifters in 1929 as a tribute to the North Sea herring fleets. The film was shot around the then great fishing ports of Lowestoft and Yarmouth, with some scenes being filmed in Shetland. / auditório sônia viegas FAFICH-UFMG \ 21 nov / 14h 98 \ \ Bataille sur le grand fleuve / Batalha no Grande Rio / Nigéria \ 1951 / cor \ 33’ direção director Jean Rouch fotografia photography Jean Rouch produção production Jean Rouch, Roger Rosfelder contato contact www.editionsmontparnasse.fr Os pescadores Sorko caçam hipopótamos no rio Niger com arpões. Antes da sua partida, acontece uma cerimônia para perguntar ao espírito do rio sobre o sucesso da caça, o que resulta na captura de dois hipopótamos: uma mulher possuída pelo espírito do rio dança e os pescadores molham-na com água mágica para fortalecerem a coragem diante da empreitada. Um hipopótamo fêmea é morto e um jovem capturado vivo. Mas um macho velho, solitário e feroz, apesar de suas numerosas feridas arpão, consegue escapar depois de danificar a grande canoa dos caçadores. The Sorko fishermen hunt hippopotami on the Niger river with harpoons. Before their departure, a ceremony is held to question the spirit of the river as to the success of the hunt, which results in the capture of two hippopotami : a woman possessed by the spirit of the river dances and the fishermen spray magic water on her to stoke up their own courage. One female hippopotamus is killed and a young one captured alive. But an old male, solitary and fierce, despite his numerous harpoon wounds, succeeds in escaping after damaging the hunters’ great dug-out canoe. / cine humberto mauro \ 26 nov / 20h30 / 99 \ La Chasse au lion à l’arc / A caça ao leão com arco / Nigéria | Mali | Burkina Faso \ 1965 / cor \ 77’25’’ direção director Jean Rouch fotografia photography Jean Rouch som sound Idrissa Meiga, Moussa Hamidou montagem editing Josée Matarasso, Dov Hoenig produção production Pierre Braunberger contato contact www.editionsmontparnasse.fr De 1957 a 1964, Rouch seguiu os caçadores Gaos da região de Yatakala e o filme retraça os episódios desta caça na qual técnica e magia estão intimamente ligadas: fabricação dos arcos e flechas, preparação do veneno, rastreamento e ritual de sacrifício. Mas o velho leão assassino, denominado “Americano”, conseguirá evitar todas as armadilhas, e os Gaos apenas aprisionarão duas de suas fêmeas. Após a caça, os homens contam a seus filhos a história de gaway gawey, a maravilhosa caça aos leões Between the years of 1957 and 1964, Rouch followed Gaos hunters from the Yatakala region and the film rebuilds these hunting episodes in which technique and magic are closely intertwined: the making of bows and arrows, poison preparation, tracking and sacrifice rituals. But the old killer lion, named “American”, will avoid all traps, and the Gaos will only imprison two of his females. After the hunting, men tell the story of “gaway gawey” to their children, the wonderful lion hunting. / auditório da escola de belas artes UFMG \ 22 nov / 14h 100 \ \ Un lion nommé l’Américain / Um leão chamado Americano / Nigéria \ 1968 / cor \ 19’52’’ direção director Jean Rouch fotografia photography Jean Rouch som sound Moussa Hamidou montagem editing Jean-Pierre Lacam produção production Pierre Braunberger contato contact www.editionsmontparnasse.fr Os caçadores gow da tribo dos Bellah decidem vingar a afronta feita pelo leão chamado « americano », que havia escapado em 1965. Eles encontram seu rastro, reconhecível devido a um ferimento causado por uma armadilha, mas o leão se mostra mais esperto que os caçadores e é sua leoa quem é morta. Os caçadores gow da tribo dos Bellah decidem vingar a afronta feita pelo leão chamado « americano », que havia escapado em 1965. Eles encontram seu rastro, reconhecível devido a um ferimento causado por uma armadilha, mas o leão se mostra mais esperto que os caçadores e é sua leoa quem é morta. / auditório da escola de belas artes UFMG \ 22 nov / 14h / 101 \ The hunters / Os caçadores / EUA \ 1957 / cor \ 72’ direção director John Marshall contato contact www.der.org Neste clássico filme antropológico, John Marshall segue uma caçada de uma girafa realizada por quatro homens em um período de cinco dias. Foi filmado em 1952-53 na terceira expedição conjunta SmithsonianHarvard Peabody e apoiada pela família Marshall para estudar os Ju/’hoansi, um dos poucos grupos que ainda sobrevivem da caça e coleta. John Marshall era um jovem quando fez este filme, seu primeiro longa-metragem. In this classic anthropological film John Marshall follows the hunt of a giraffe by four men over a five-day period. The film was shot in 195253 on the third joint Smithsonian-Harvard Peabody sponsored Marshall family expedition to Africa to study Ju/’hoansi, one of the few surviving groups that lived by hunting - gathering. John Marshall was a young man when he made this, his first feature length film. / cine humberto mauro \ 23 nov / 17h 102 \ \ !Kung Bushmen hunting equipment / Equipamento de caça dos Bosquímanos !Kung / EUA \ 1974 / cor \ 37’ direção director John Marshall montagem editing Frank Galvin, Lorna Marshal contato contact www.der.org Este filme mostra em detalhes todas as peças do conjunto de caça dos Ju/’hoansi e como cada peça é feita e usada, da coleta da matéria-prima à fabricação final, incluindo a preparação de flechas envenenadas. !Kung Bushmen Hunting Equipment foi filmado por John Marshall entre 1951 e 1953. This film shows in detail all the pieces in the Ju/’hoansi hunting kit and how each piece is made and used, from the collection of the raw materials to the final fabrication, including the preparation of poison arrows. !Kung Bushmen Hunting Equipment was shot by John Marshall between 1951 and 1953. / cine humberto mauro \ 23 nov / 17h / 103 \ Lion game / Caça ao leão / EUA \ 1974 / cor \ 4’ direção director John Marshall contato contact www.der.org /Gunda, um jovem (que mais tarde se casa com N!ai), finge ser um leão. Ele é “caçado” e “morto” por um grupo de meninos. /Gunda, a young man (who later marries N!ai), pretends to be a lion. He is “hunted” and “killed” by a group of boys. / cine humberto mauro \ 23 nov / 17h 104 \ \ Pour la suite du monde / Canadá \ 1962 / p&b \ 106’ direção director Pierre Perrault, Michel Brault fotografia photography Michel Brault, Bernard Gosselin som sound Marcel Carrière montagem editing Werner Nold produção production Fernand Dansereau contato contact www.onf-nfb.gc.ca Pierre Perrault e Michel Brault foram atraídos para a Ilha dos Coudres por duas razões: a linguagem do povo que vivia nesta pequena ilha no rio Saint Lawrence e as baleias. Durante séculos, os pescadores da Ilha dos Coudres pegaram cachalotes. As almas dos mortos eram invocadas pelo sucesso da pesca e uma técnica única era utilizada: os homens armavam uma armadilha de galhos na areia da costa, na maré baixa, para capturar baleias brancas, uma tradição que foi abandonada em 1920. Pierre Perrault and Michel Brault were attracted to Île-aux-Coudres for two reasons: the language of the people who lived on this small island in the St. Lawrence and the whale. For centuries the fishermen of Îleaux-Coudres had caught belugas. The souls of the dead were invoked for a successful catch, and a unique technique was used: the men sank a trap of saplings into offshore mud at low tide to capture the white whale, a tradition that was abandoned in 1920. / auditório da escola de belas artes UFMG \ 23 nov / 14h / 105 \ La bête lumineuse / A besta luminosa / Canadá \ 1982 / cor \ 127’ direção director Pierre Perrault fotografia photography Martin Leclerc som sound Yves Gendron montagem editing Suzanne Allard produção production Jacques Bobet contato contact www.onf-nfb.gc.ca A caça ao alce, uma tradição no Quebec, é aqui pretexto para investigar a alma quebequense e exaltar seu discurso. Em uma cabana de Maniwaki, habitantes da cidade realizam seu anual retorno à natureza... como se realiza um milagre. Mistérios da caça, que clama por sorte e habilidade, com essa “febre masculina” que difrata sonho e realidade. Prazer de medir forças com os elementos da natureza e conhecer seus limites. Moose hunting, a tradition in Quebec, is a pretext to investigate the Quebec soul and praise its discourse. In a Maniwaki hunt, city inhabitants make their annual encounter with nature… the same way a miracle is performed. Hunting mysteries, calling for luck and ability, with this “male fever” that diffracts dream and reality! The pleasure to measure strength with elements of nature and recognize their boundaries. / cine humberto mauro \ 25 nov / 21h 106 \ \ Primate / EUA \ 1974 / p&b \ 105’ direção director Frederick Wiseman contato contact www.zipporah.com Primate apresenta as atividades diárias de Centro de Pesquisa de Primatas Yerkes. Os cientistas no filme estão preocupados com o estudo do desenvolvimento físico e mental dos primatas. Parte do trabalho experimental mostrado no filme trata da capacidade de aprender, memorizar e aplicar linguagem e habilidades manuais, o efeito de álcool e drogas sobre o comportamento; o controle da agressividade e sexualidade; e outros determinantes neurais e fisiológicos de comportamento. Primate presents the daily activities of Yerkes Primate Research Center. Scientists in the film are concerned with studying the physical and mental development of primates. Some of the experimental work shown in the film deals with the capacity to learn, remember, and apply language and manual skills; the effect of alcohol and drugs on behavior; the control of aggressive and sexual behavior; and other neural and physiological determinants of behavior. / cine humberto mauro \ 24 nov / 19h / 107 \ La course de taureaux / Morte todas as tardes / França \ 1951 / p&b \ 75’ direção director Pierre e Myriam Braunberger fotografia photography Jimmy Berliet, Henri Decae montagem editing Myriam Braunberger produção production Les Film du Panthéon contato contact [email protected], www.filmsdujeudi.com O filme de referência sobre as touradas, aclamado em seu lançamento por ninguém menos do que André Bazin. A arte de tourear, suas regras, seus ritos, seus segredos. O filme destaca matadores celebridade como Dominguin e Manolete. The benchmark film on bullfighting, hailed at its release by none less than André Bazin. The art of bullfighting, its rules, its rites, its secrets. The film highlights such celebrity matadors as Dominguin and Manolete. / cine humberto mauro \ 26 nov / 19h 108 \ \ Memória do cangaço / Brasil \ 1964 / p&b \ 26’ direção director Paulo Gil Soares fotografia photography Affonso Beato montagem editing João Ramiro Melo produção production Thomaz Farkas contato contact www.cinemateca.com.br Em 1936 o mascate árabe Benjamin Abrahão consegue filmar o famoso bando de Virgolino Ferreira da Silva, o “Lampião”. As imagens, antes perdidas, se misturam às entrevistas com alguns cangaceiros que sobreviveram ao período. De outro lado, depoimentos do Cel. Rufino matador confesso de 20 cangaceiros e do cabo Leonício Pereira que cortava as cabeças dos cangaceiros “para que fossem tiradas fotografias”. In 1936 the Arab peddler Benjamin Abrahão managed to film Virgolino Ferreira da Silva’s, Lampião, famous gang. The images, that were considered lost, dialog with interviews with some of the surviving cangaceiros. On the other hand, there are testimonies from Cel. Rufino, self proclaimed killer of 20 cangaceiros “so that photographs could be taken”. / centro cultural UFMG \ 23 nov / 18h / auditório da escola de belas artes UFMG \ 25 nov / 14h / 109 \ Rastejador, substantivo masculino / Brasil \ 1969 / p&b \ 8’ direção director Sérgio Muniz fotografia photography Thomas Farkas montagem editing Sérgio Muniz som sound Sidnei Paiva Lopes produção production Thomaz Farkas contato contact www.cinemateca.com.br Batista e Joaquim Correia Lima são profissionais que trabalharam como rastejadores, pessoas dedicadas a caçar animais e que posteriormente foram usadas para rastrear pessoas, servindo como fiel e eficiente auxiliar nas volantes, durante o movimento do cangaço no nordeste brasileiro. Batista and Joaquim Correia Lima are professional “rastejadores”, crawlers, people dedicated to the hunting of animals and that later on were used to track people down, serving as faithful and efficient assistants to the “volantes”, during the Brazilian cangaço movement. / centro cultural UFMG \ 23 nov / 18h / auditório da escola de belas artes UFMG \ 25 nov / 14h 110 \ \ Arraial do Cabo / Brasil \ 1959 / p&b \ 17’ direção director Mário Carneiro e Paulo César Saraceni fotografia photography Mário Carneiro som sound Mário Carneiro, Paulo César Saraceni montagem editing Mário Carneiro, Paulo César Saraceni produção production Sérgio Montagna, Joaquim Pedro de Andrade contato contact www.cinemateca.com.br Os pescadores de Arraial do Cabo em contraste com a fábrica álcalis que se instala na região: modos tradicionais de produção se entrechocam com os problemas da industrialização. Gravuras de Oswaldo Goeldi abrem filme. The fishermen from Arraial do Cabo in contrast to the sodium carbonate factory taht is settled down in the region: traditional modes of production Clash with the problems of industrialization. Oswaldo Goeldi’s engravings start the movie / centro cultural UFMG \ 23 nov / 18h / auditório da escola de belas artes UFMG \ 25 nov / 14h / 111 \ Peixe pequeno / Brasil \ 2010 / cor \ 3’33’’ direção director Vincent Carelli, Altair Paixão fotografia photography Altair Paixão, Vincent Carelli e Tiago Torres montagem editing Leonardo Sette som sound Altair Paixão, Vincent Carelli, Tiago Torres produção production Vincent Carelli contato contact [email protected] Enquanto todos estão ocupados com a pesca no acampamento Enauênê Nauê... While everyone is busy with the village Enauênê Nauê fishing... / auditório sonia viegas FAFICH-UFMG \ 28 nov / 11h 112 \ \ Yãkwá, O banquete dos espíritos / Brasil \ 1995 / cor \ 54’ direção director Virgínia Valadão fotografia photography Altair Paixão, Vincent Carelli montagem editing Tutu Nunes produção production Fausto Campoli contato contact [email protected] Um documentário em quatro episódios sobre o mais importante ritual dos índios Enawenê Nawê, o Yãkwá. Todo ano, ao longo de sete meses, os espíritos são reverenciados com alimentos, cantos e danças. Documentary in four episodes about the Enawenê Nawê people’s most important ritual, the Yâkwa. Every year for seven months, spirits are worshiped with food, singing and dancing. / centro cultural UFMG \ 28 nov / 18h / auditório sônia viegas FAFICH-UFMG \ 28 nov / 11h / 113 \ Ataka: o ladrão de armadilhas / Brasil \ 2011 / cor \ 10’ direção director Coletivo Kuikuro de Cinema fotografia photography Ahuké Kuikuro, Camilo Kuikuro, Tauaná Kalapalo montagem editing Takumã Kuikuro produção production Carlos Fausto e Leonardo Sette contato contact [email protected], [email protected] Na época das chuvas, os peixes começam a baixar das cabeceiras. Cada família tem seu lugar próprio para colocar as armadilhas de pesca. Mas há sempre os amigos do alheio. Às vezes eles se dão bem, às vezes... During the rainy season, the fish begin to recede from the headwaters. Each family has its own place to put their fish traps. But there are always thieves. Sometimes they do well, sometimes... / centro cultural UFMG \ 30 nov / 18h / sala de tele conferência FAE-UFMG \ 23 nov / 10h 114 \ \ KUXAKUK XAK caçando capivara / Brasil \ 2009 / cor \ 57’ direção director Derli Maxakali, Marilton Maxakali, Juninha Maxakali, Janaina Maxakali, Fernando Maxakali, Joanina Maxakali, Zé Carlos Maxakali, Bernardo Maxakali, João Duro Maxakali fotografia photography Derli Maxakali, Marilton Maxakali, Juninha Maxakali, Janaina Maxakali, Fernando Maxakali, Joanina Maxakali, Zé Carlos Maxakali, Bernardo Maxakali, João Duro Maxakali som sound Derli Maxakali, Marilton Maxakali, Juninha Maxakali, Janaina Maxakali, Fernando Maxakali, Joanina Maxakali, Zé Carlos Maxakali, Bernardo Maxakali, João Duro Maxakali montagem editing Mari Corrêa produção production Rafael Barros, Renata Otto contato contact [email protected], [email protected] Caçadores Tikmu’un saem com seus cães e espíritos aliados em busca da capivara. Cantos, olhares e eventos. Intensidades que se agitam sob um plano de aparente silêncio. Tikmu’un hunters go out with their dogs and allied spirits searching for the capybara. Songs, regards and events. Intensities arise under a shot of apparent silence. / centro cultural UFMG \ 30 nov / 18h / 115 \ Os cavalos de Goethe, ou Alquimia da velocidade / Brasil \ 2010 / cor \ 55’ direção director Arthur Omar fotografia photography Arthur Omar som sound Arthur Omar montagem editing Evângelo Gazos, Ana Dantas produção production Cotex Digital contato contact [email protected] Fotografado em 2002, no Afeganistão, em zona de guerra, o filme apresenta cenas do violento jogo do buskashi. Nesse jogo, dois grupos de cavaleiros combatem pela posse de uma carcaça de bode decepado. As imagens foram captadas com uma câmera amadora de baixa definição, e têm seu tempo dilatado até a imobilidade: nesses instantes, a luta fica suspensa no ar. Segundo o diretor, é um filme “low tech, dedicado à simbólica dos cavalos. Afinal, é sobre o qual vem montado o apocalipse”. Shot in 2002 in Afghanistan, at a war zone, the film presents scenes from the violent buskashi game. At his game, two groups of riders fight for the carcass of a cut off goat. Images were shot by a low definition non professional camera, and their time is dilated until immobility: in these instants, the struggle hangs in the air. According to the director, it is a “low tech movie, dedicated to the horse’s symbolism. After all, it is by riding it that the apocalypse comes. / cine humberto mauro \ 23 nov / 19h30 116 \ \ Histórias de Mawary / Brasil \ 2009 / cor \ 56’ direção director Ruben Caixeta de Queiróz fotografia photography Caco Pereira de Souza som sound Nélio Costa montagem editing Ruben Caixeta de Queiróz, Nélio Costa produção production Cláudia Mesquita, Milene Migliano contato contact [email protected] Em 1994 estivemos na aldeia Mapuera (noroeste do Pará, Brasil) para ver e ouvir as narrativas de um tempo passado, mas hoje ainda inscritas nos corpos, nas palavras, no presente e na vida cotidiana do povo Waiwai. In 1994, we’ve been in the Mapuera village (northwest of Pará state, Brazil) to watch and listen to stories of an ancient time, yet still carved in the bodies, words, in the present and the everyday life of the Waiwai people. / auditório sônia viegas FAFICH-UFMG \ 29 nov / 10h / 117 \ Jean Rouch, Première flm: 1947-1991 / Jean Rouch, Primeiro flme: 1947-1991 direção director Dominique Dubosc e Jean Rouch fotografia photography Dominique Dubosc som sound Patrick Genet montagem editing Dominique Dubosc produção production Kinofilm / La Sept contato contact www.der.org Jean Rouch conta à jovem N’Diagne Adéchoubou a gênese de seu primeiro fillme, No país dos magos negros, que vemos em seguida. Finda a versão oficial do filme, sobre a qual Rouch conversa brevemente com Brice Ahounou e Tam Sir Doueb, Brice projeta sem som a última sequência do filme que mostrava uma cerimônia de possessão, para que Rouch a comente ao vivo, à sua maneira, num tom e num registro muito diferentes daqueles adotados pela equipe das Actualités françaises em 1947, cuja montagem e cuja sonorização desagradaram profundamente o cineasta. Jean Rouch tells the young N’Diagne Adéchoubou about the birth of his first film “In the Land of the Black Magi”, which we subsequently see. When the official version of the film is over, about which Rouch talks briefly to Brice Ahounou and Tam Sir Doueb, Brice screens the movies’ final sequence showing a possession ceremony without sound, so Rouch can comment it live, in his own way, in a very different register and tone from the ones adopted by the Actualités françaises team in 1947, which deeply displeased the filmmaker by its editing and sound design. / cine humberto mauro \ 26 nov / 20h30 118 \ \ Os Arara / Brasil \ 1980-1983 / cor \ 75’ direção director Andrea Tonacci fotografia photography Andrea Tonacci, Adriana Mattoso som sound Adriana Mattoso, Sérgio Pinto, Afonso Alves, Pionim Caiabi, Rita Toledo Piza e Patrick Menget montagem editing Juraci do Amaral Jr produção production Andrea Tonacci contato contact [email protected] Documentação dos preparativos e das expedições da Frente de Atração Arara da FUNAI, no estado do Pará. Com a construção da Transamazônica o território dos Arara (sem contato com o homem branco) é cortado ao meio, e os índios reagem atacando os trabalhadores. Ciente de que todo contato é uma criação de dependência, o sertanista Sydney Possuelo, que também narra reflexivamente os dois episódios, lidera as expedições que tem como finalidade identificar os grupos, quantos indivíduos são, e configurar os limites territoriais para proteger a área de invasores e madeireiras da região. Documentary filmed between 1980 and 1983, about the organization, arguments, preparation and expeditions of the Atração Arara front of Funai, showing attempts to engage on a first peaceful contact with the Arara people, whose land and villages had been cut in half by the transamazonian highway. The narrator is Sydney Possuelo, the same “sertanista” that guided the expeditions, who reflects upon the process, the official posture, the precedents, the consequences and their personal motives. / auditório da escola de belas artes UFMG \ 24 nov / 14h / 119 \ Dersu Uzala / Japão | URSS \ 1975 / cor \ 144’ direção director Akira Kurosawa fotografia photography Fyodor Dobronranov, Yuri Gantman, Asakazu Naka montagem editing V. Stepanovoï som sound Olga Burkova produção production Yoishi Matsue, Nikolai Sizov contato contact www.dvdcontinental.com.br A história de um líder de uma expedição de levantamento topográfico do exército russo que é resgatado na Sibéria por Dersu Uzala, um caçador Goldi, que passa a servir-lhe de guia, dando início a uma forte amizade. Quando o explorador decide levar o caçador para a cidade, seus costumes se confrontam de forma esmagadora com o modo de vida burocrático, fazendo-o questionar diversos padrões da sociedade. The story of the leader of a topographic expedition survey from the Russian army who is rescued in Siberia by Dersu Uzala, a Goldi hunter, who then becomes his guide, giving rise to a close friendship. When the explorer decides to take the hunter into the city, their habits are confronted with an overwhelmingly bureaucratic way of life, and he questions many society’s standards. / cine humberto mauro \ 04 dez / 21h 120 \ / mostra competitiva nacional / 121 / júri \ Ilana Feldman Pesquisadora, crítica, realizadora e curadora. Mestre em Comunicação e Imagem pela Universidade Federal Fluminense e doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. É colaboradora da Revista Cinética. / Daniel Ribeiro Duarte Doutorando em Cinema pela Universidade Nova de Lisboa, curador e realizador. \ Leonardo Vidigal Professor adjunto da Escola de Belas Artes da UFMG. Vice-presidente do Centro de Estudos do Caribe no Brasil-CECAB e integrante da SOCINE. Pesquisa as interações entre as imagens e a música popular no cinema e no audiovisual, em obras ficcionais e documentais. 122 \ \ Let’s play that /Affonso Uchôa, Ewerton Belico, Rafael Barros Cresci sob um teto sossegado meu sonho era um pequenino sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado. Agora, entre meu ser e o ser alheio, A linha de fronteira se rompeu. (Waly Salomão) 1. A seleção para a Mostra Competitiva Nacional do forumdoc.bh. 2011 não parte de conceitos curatoriais prévios. O que houver de sentido e temáticas abrangentes parte do contato com os filmes e não pretende subjugá-los ao desígnio de confirmação de uma ideia. Dos filmes partem o sentido, não o contrário. 2. Em primeiro lugar, a variedade e a multiplicidade. É veramente um lugar-comum marcar a variada gama de expressões, formas e usos de linguagem cinematográfica como marco de uma seleção para mostra competitiva. Porém, para essa mostra de 2011, há uma diferença de matiz nessa diversidade, que a faz deixar de ser simples manifestação evidente da pluralidade inerente ao Brasil e da extrema difusão da filmagem em digital e passa a ser manifestação de um estado de percepção e de relação com o estágio atual do fazer e pensar documentário. 3. Tal variedade tem um ponto de partida e um de chegada: parte-se de um esgotamento com as formas de se fazer documentário: não se adere ao formato da entrevista, ao filme de tema, mas também já não se conforta com o documentário observacional montado à ficção, de foco repousado na ação dos personagens e que tem como premissa certa invisibilidade da câmera. O ponto de chegada é a instauração / 123 da consciência do filme como instância que deflagra e captura os comportamentos, personagens e histórias. A realidade apreendida só existe enquanto realidade que o filme dispara e absorve: não há ingênua pretensão a captação espontânea do real. E, se de fato tal ingenuidade não está presente no documentário desde seu inicio, sobrevivendo como desvio inconsequente de maus cineastas, nesses filmes tal consciência adquire a forma explícita. Os filmes parecem desejar matar o perigo da ingenuidade com excesso, com a ostensiva reiteração da construção formal e dos processos materiais de um filme como fundamentais na construção de sentido. E passamos a ver com frequência expedientes metalinguísticos, imagens de discussões entre a equipe no processo de montagem, entrevistas claramente encenadas, reprocessamento de imagens pré-existentes no mundo, clara presença do diretor, seja em cena, seja como voz por trás da câmera apontando os caminhos do filme in loco, e, mesmo nos filmes mais observacionais e de faceta híbrida entre documentário e ficção (assemelhado, portanto, ao documentário contemporâneo cujo esgotamento mencionamos) há marcações de cena e montagem por demais aparente para nos rememorar a presença do filme como gerador das presenças e significados vistos na tela. 4. Fato necessário é demarcar que o enveredamento pelo caminho observativo, da contemplação distanciada, de enquadramentos rígidos e narrativa centrada na evidenciação do cotidiano de seus personagens não morreu e não poucos filmes nos foram apresentados seguindo tal proceder. A captura de meros fragmentos de presença de seus personagens capturados em plano fixo e aberto, assim como se tornou salvo-conduto para os realizadores fugirem a relação interpessoal e guardarem o lugar seguro da discrição observativa. Os filmes que selecionamos como que escapam, pelas vias da autoconsciência formal e do engajamento intersubjetivo, 124 \ da indiferença de uma contemplação pretensamente neutra que, valendo-se do caráter estático do plano e da duração alongada, renuncia ao risco de qualquer vínculo intersubjetivo. Dois aspectos, portanto se assomam nos filmes apresentados: o já citado desejo de reiterar o filme, a linguagem e forma do cinema como gerador e receptador do real filmado; e a demarcação de que a representação da realidade só é possível pelo empenho dos sujeitos defronte à câmera e mediante ao engajamento do realizador junto aquilo que filma. 5. Consoante a isso, podemos destacar três eixos de investigações e procedimentos dos filmes que compõem a competição nacional do forumdoc.bh.2011. A divisão vai se ressentir de certo didatismo e é necessário desde já ressaltar que certamente tais aspectos não encerram os filmes e eles mesmos podem apresentar mais de um simultaneamente. É a escolha de um aspecto de significação de maior destaque dentro de um filme que guia a separação por meio desses grupos temáticos. 6.1. A memória, a permanência através do cinema de fatos, pessoas e tradições que passam e desaparecem na vida concreta é um desses eixos. A presença fantasmática da morte sempre assombrou a imagem cinematográfica. Sobretudo, assombrou os olhos dos vivos. Nesses filmes vemos o intento de salvar os fatos, pessoas e instantes do implacável passar do tempo. Em Santos-Dumont, pré-cineasta, vemos a conjugação da vida e do cinema através da memória que a imagem cinematográfica gera. Sobretudo há a clara demarcação dessa permanência do tempo no filme como operação técnica, realizável somente via artifício e maquinaria. Em Santos-Dumont: précineasta, a memória é construção e narrativa, processo permeado por escolhas e mediações, tanto da técnica quanto da cultura. Vemos também filmes que operam com o gesto da preservação: filmes, / 125 fatos, pessoas e situações em risco de desaparecimento, como em Bicicletas Nhanderú, Som Tximna Yukunang e Olhar passageiro. São esses filmes conscientes do potencial do cinema de driblar a morte e instaurar um tempo distinto do tempo da vida. Um tempo que permanece no material sensível e se repete a cada projeção, ao invés de passar e acabar. Em Diário de uma busca assistimos a memória como operação que se realiza por meio da voz do diretor, em primeira pessoa, perfazendo o registro político como signo do sofrimento e da perda pessoais em meio a história coletiva. Ou ainda, em Ovos de dinossauro na sala de estar, filme no qual, através do ato do personagem iniciar uma projeção de slides de viagens pessoais, encena-se a operação da imagem do cinema em registrar e lembrar, bem como nos dá a ver a experiência mesma dessa lembrança. Lembrança que advém do registro, o qual envolve limitações e escolhas; e que desse modo nos diz que o fato lembrado é o que permanece por meio do cinema, resistindo adaptado à sua linguagem e condição. O olhar voltado ao próprio registro pode localizar apenas a figuração de uma perda, a evanescência de uma memória que somente resiste ainda como filme. Vó Maria é um filme notável por conseguir figurar tal operação das imagens de modo belo e preciso. 6.2. O anti-naturalismo, a desconfiança perante o caráter espontâneo, do que se coloca frente à câmera atravessa outro conjunto dos filmes que exibiremos. Céu sobre os ombros talvez seja dos casos mais emblemáticos da seleção, pois sua estrutura narrativa de paulatina constituição das personas que atravessam as experiências de cotidianeidades filmadas nos dão a certeza de que personagens de fato se constroem, revelando uma abertura do filme para abrigo da subjetividade de quem ele filmou e, mais que tudo, uma relação entre realizador e atores que passou pelo crivo de dar aos últimos 126 \ “e suas historias de vida e personalidades” a primazia na construção do personagem. Em Oferenda, assistiremos um máximo de simbiose entre o filmador e o filmado, através do expediente de transformar o próprio filme em objeto de culto do ritual que ele filma. Ao registrar uma cerimônia de oferendas ao mar para Iemanjá e ao fim revelar ser o próprio filme a oferenda que a diretora pode jogar às ondas, o filme instaura curto-ciruito na distância entre o realizador e a realidade registrada. Mais que documenta a experiência, o filme se torna a própria, somente possível por meio do processo mesmo do filme. Já em Brasil de Pero Vaz de caminha e em Ex Isto vemos a reencenação de uma ficção fundadora de nossa nacionalidade — e de um pastiche dessa pretensão fundacional — a serviço do encontro documental com a experiência do outro. Porém um outro somente presente no filme através da ficção francamente instaurada sobre ambiente real (Ex isto) ou via procedimento de montagem (Brasil de Pero Vaz de Caminha). Encontro com o outro que pode ser denso, repleto de ambigüidades, pondo em questão os limites éticos desse instrumento de poder, a câmera, como se vê em Laura e Oma. Cruel, problemático ou doloroso, o encontro com o outro se dá mediante e por causa do filme. O que seria uma obviedade ganha contornos mais sérios quando o filme se torna o laço entre a frente e o atrás da câmera, o disparador de um adensamento de relação que passa para a vida. Diante disso ou cessa-se o filme e corta-se, então, a relação (Oma) ou mergulha-se nela sob perigo de por em risco a personalidade e o talento (Laura). Se o engajamento na experiência de outrem é uma questão fulcral do universo documental, questão não apenas fílmica, mas ética, a possibilidade mesma desse encontro é posta em questão em Filme pornografyzme e As aventuras de Paulo Bruscky. O diferencial desses filmes é que eles partem de imagens fundadas na não-relação, seja com apropriação de imagens produzidas em outro contexto e não pelo realizador (Pornografizme) / 127 e imagens sintéticas, de computador, dispensadas do corpo e do real (Paulo Bruscky). 6.3. Se os filmes que escolhemos sobretudo presentificam, eles também tornam visíveis ainda o cotidiano dos silenciados, daquele cuja voz foi subtraída, como em Acercadacana, filme catalisador de um confronto que somente o registro cinematográfico tornou possível, mostrando “o que a Globo não mostra”. Também se tornam audíveis as vozes periféricas, das experiências dos jovens negros em uma grande cidade brasileira, como visto em Lá do leste. Ou ainda daquela cuja vida transcorreu sob a ameaça do poder público, atravessamento do espaço íntimo da casa pelas forças da história, como em Morada. 7. Esses fragmentos não representam eixos curatoriais: emergem do contato com os filmes, sabendo que mais de um dos filmes citados facilmente poderia ser redescrito através de um outro eixo, para além do que mencionamos. De tudo, fica a constatação de um cinema documentário produzido no Brasil recente que questiona a linguagem do cinema e do documentário, a buscando levar a outros rumos e formas. 8. Sobretudo, os filmes: cada qual um universo e um mundo próprios, aos quais não devemos recusar o convite de mergulhar. 128 \ \ Acercadacana / Acercadacana: the sugar cane hedge / Brasil \ 2010 / cor \ 20’ direção director Felipe Peres Calheiros fotografia photography Felipe Peres Calheiros, Luís Henrique Leal som sound Rafael Travassos, Sérgio Santos montagem editing Paulo Sano produção production Diego Medeiros contato contact [email protected] Nos anos 90, com a valorização do etanol e a expansão do latifúndio canavieiro, 15 mil famílias foram expulsas dos seus sítios na zona da mata de Pernambuco. Maria Francisca decidiu resistir. In the 1990’s, with the ethanol’s valorization and the growth of sugarcane agriculture, 15 thousand families were removed from their estates in Pernambuco’s Zona da mata area. Maria Francisca decided to resist. / centro cultural UFMG \ 23 nov / 20h / cine humberto mauro \ 29 nov / 19h / 129 \ As aventuras de Paulo Bruscky / The Adventures of Paulo Bruscky / Brasil \ 2010 / cor \ 19’ direção director Gabriel Mascaro fotografia photography Gabriel Mascaro, Tom Tom som sound Tatiana Almeida, Sonoplastia Second Life montagem editing Tatiana Almeida produção production Gabriel Mascaro contato contact [email protected], [email protected] O artista Paulo Bruscky entra na plataforma de relacionamento virtual “Second Life” e conhece um ex-diretor de cinema, Gabriel Mascaro, que hoje vive, se diverte e trabalha fazendo filmes na rede virtual. Paulo encomenda a Gabriel um registro machinima em formato de documentário de suas aventuras no “Second Life” Visual artist Paulo Bruscky joins the virtual social platform “Second Life” where he meets the former filmmaker Gabriel Mascaro, that nowadays lives, works and enjoys himself through making movies on the virtual network. Paulo asks Gabriel for a documentary form machinima of his adventures on “Second Life”. / cine humberto mauro \ 29 nov / 17h / centro cultural UFMG \ 28 nov / 20h 130 \ \ Bicicletas de Nhanderú / Brasil \ 2011 / cor \ 45’ direção director Sandro Ariel Ortega e Patrícia Ferreira fotografia photography Coletivo Mbya-Guarani de Cinema: Ariel Ortega, Patrícia Ferreira, Alexandre Ferreira, Germano Benites, Jorge Morinico, Cirilo Vilhalba e Léo Ortega som sound Coletivo Mbya-Guarani de Cinema: Ariel Ortega, Patrícia Ferreira, Alexandre Ferreira, Germano Benites, Jorge Morinico, Cirilo Vilhalba, Léo Ortega montagem editing Tiago Campos Torres produção production Olívia Sabino, Patrícia Ferreira contato contact [email protected] Uma imersão no cotidiano e na espiritualidade dos Mbya-Guarani da aldeia Koenju, em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul . An immersion on the everyday events and spirituality of the MbyaGuarani on the Koenju village, in São Miguel das Missões, Rio Grande do Sul. / centro cultural UFMG \ 23 nov / 20h / cine humberto mauro \ 29 nov / 19h / 131 \ Diário de uma busca / Diary, letters, revolutions / Brasil | França \ 2010 / cor \ 105’ direção director Flávia Castro fotografia photography Paulo Castiglioni som sound Valéria Ferro montagem editing Flavia Castro produção production Estelle Fialon, Flavio Tambellini, Flavia Castro contato contact [email protected] Outubro, 1984. Celso Castro, jornalista com uma longa história de militância de esquerda, é encontrado morto no apartamento de um suposto ex-oficial nazista, onde entrou à força. A polícia sustenta que se trata de um suicídio. O episódio, digno de um filme de suspense, é o ponto de partida de Flávia, filha de Celso e diretora do filme. É uma viagem no tempo e na geografia: o filme percorre os cenários do exílio familiar, dos ideais e do fracasso de um projeto político. October, 1984. Celso Castro, journalist with a long history of left-wing political activism, is found dead at the apartment of an alleged former Nazi officer, a place he had broken into. Police sustains the theory of suicide. The episode, worthy of a thriller, is the starting point for Flavia, Celso’s daughter and director of the film. It is a journey through time and geography: the film visits sceneries from the family’s exile, the ideals and failure of a political project. / cine humberto mauro \ 01 dez / 17h / centro cultural UFMG \ 03 dez / 20h 132 \ \ Ex isto / Ex it / Brasil \ 2010 / cor \ 86’ direção director Cao Guimarães fotografia photography Cao Guimarães, Beto Magalhães som sound Marcos M. Marcos montagem editing Cao Guimarães, Marcelo Gomes produção production Beto Magalhães contato contact [email protected], [email protected] Livremente inspirada na obra Catatau, de Paulo Leminski, a narrativa parte da hipótese histórica imaginada pelo poeta curitibano: “E se René Descartes tivesse vindo ao Brasil com Maurício de Nassau?” O filme realiza essa hipótese e acompanha o pai da filosofia moderna em seu périplo pelos trópicos. Sob o efeito de ervas alucinógenas, ele investiga questões da geometria e da óptica diante de um mundo absolutamente estranho. Freely inspired by the work Catatau, by Paulo Leminski, the plot begins with the historical hypothesis imagined by the poet from Curitiba: “What if René Descartes had come to Brazil with Maurício de Nassau?” The film materializes this hypothesis and joins the father of modern philosophy in his journey through the tropics. Under the effect of hallucinatory herbs, he investigates questions revolving around geometry and optics in the face of an absolutely strange world. / cine humberto mauro \ 02 dez / 17h / centro cultural UFMG \ 04 dez / 19h / 133 \ Filme pornografizme / Pornograflick / Brasil \ 2011 / cor \ 9’15’’ direção director Leo Pyrata fotografia photography Leo Pyrata som sound Leo Pyrata montagem editing Leo Pyrata produção production Leo Pyrata contato contact [email protected] Sobre a política dos afetos em tempos de banda larga. On the politics of affection on broadband times. / cine humberto mauro \ 29 nov / 17h / centro cultural UFMG \ 28 nov / 20h 134 \ \ Laura / Brasil \ 2010 / cor \ 77’ direção director Fellipe Gamarano Barbosa fotografia photography Pedro Sotero som sound Fellipe G. Barbosa montagem editing Karen Sztajnberg, John Valle, Fellipe G. Barbosa produção production Fernanda De Capua contato contact [email protected], [email protected] Diretor tenta fazer documentário sobre personagem misteriosa. A filmmaker attempts to make a documentary about a mysterious character. / cine humberto mauro \ 28 nov / 17h / centro cultural UFMG \ 03 dez / 16h / 135 \ Lá do leste / From over on the East Side / Brasil \ 2010 / cor \ 28’ direção director Carolina Caffé, Rose Satiko Gitirana Hikiji fotografia photography Rafael Nobre som sound Tomires Ribeiro montagem editing Karine Binaux produção production Paulo Dantas contato contact [email protected], [email protected] Lá do Leste, do lugar onde a cidade termina (ou começa), chegam rimas, gestos e cores que marcam o espaço. A experiência periférica urbana é a base e o motivo da produção dos artistas de Cidade Tiradentes, que cresceram junto com o distrito paulista e em suas obras dialogam com seus desafios e sonhos. O filme segue a vida e as transformações do street dance, grafite e rap neste lugar considerado o maior complexo de conjuntos habitacionais populares da América Latina. From far east, where the city begins (or ends), come rhymes, gestures and colors that set the space. An urban periphery experience is the basis and motif for the work of artists from Cidade Tiradentes, who grew up along with the district, and that establish a dialogue between their work and the city’s challenges and dreams. The film follows the creation and development of street dance, graffiti and rap on what is considered to be the biggest housing complex in Latin America. / centro cultural UFMG \ 23 nov / 20h / cine humberto mauro \ 29 nov / 19h 136 \ \ Morada / Residence / Brasil \ 2010 / cor \ 78’ direção director Joana Oliveira fotografia photography Matheus Rocha som sound Osvaldo Cruz, Gustavo Fioravante montagem editing Armando Mendz produção production Joana Oliveira, Cristina Maure, Débora Mattos, Luana Melgaço, Janaína Patrocínio, Fernanda Magalhães contato contact [email protected], [email protected] Essa é a história da espera de Dona Virgínia que, há mais de cinquenta anos, aguarda a desapropriação de sua casa. Ano após ano, o governo ameaça destruir o lugar onde ela guarda seu passado e suas memórias vivas. This is the story of Dona Virgínia that, for over fifty years, waits for the expropriation of her house. Year after year, the local government threatens to destroy the place she keeps her past and memories alive. / cine humberto mauro \ 28 nov / 15h / centro cultural UFMG \ 30 nov / 20h / 137 \ O Brasil de Pero Vaz caminha / Brazil by Pero Vaz caminha / Brasil \ 2011 / cor \ 17’40’’ direção director Bruno Laet fotografia photography Fernando Demello, Bruno Laet som sound Bruno Armelin montagem editing Antonia Gama, Bruno Laet produção production Janaina Diniz e Tania Carvalho contato contact [email protected], [email protected] Desencontro de 500 anos entre imagem e som. A voz do estrangeiro retrata um Brasil indígena. A imagem, uma colagem contemporânea. Um olhar atual revive o documento histórico? Ou seria um olhar antigo que desembarca no Brasil de hoje? Significados que se alteram para redescobrir o Brasil do século XXI. 500 years’ dissonance between image and sound. The foreigner’s voice conveys an indigenous Brazil. Image, a contemporary collage. Can a current point of view relive a historic document? Or is it an old regard that lands in Brazil today? Meanings that change themselves to rediscover the XXI Century Brazil. / cine humberto mauro \ 27 nov / 17h / centro cultural UFMG \ 03 dez / 14h 138 \ \ O céu sobre os ombros / The sky above / Brasil \ 2010 / cor \ 72’ direção director Sérgio Borges fotografia photography Ivo Lopes Araújo som sound Bruno Vasconcelos montagem editing Ricardo Pretti produção production Helvécio Marins Jr., Felipe Duarte, Luana Melgaço, Clarissa Campolina contato contact [email protected] O céu sobre os ombros conta a história de três pessoas anônimas, comuns. São histórias inventadas pela vida, de pessoas que vivem num contexto entre o cotidiano, o exótico e a marginalidade. O filme é um gesto para revelar o quanto somos todos tão humanos, e quão semelhantes são nossos medos e desejos. “The sky above” tells the story of three anonymous, ordinary people. These stories are made up by life itself, about people who live on a context between everyday life, exoticism and marginality. The film compresses a gesture that reveals how human we all are, and how alike are our fears and desires. / cine humberto mauro \ 30 nov / 17h / 139 \ Oferenda / A gift to Iemanjá / Brasil \ 2011 / cor \ 17’ direção director Ana Bárbara Ramos fotografia photography Bruno de Sales som sound Guga S. Rocha montagem editing Ana Bárbara Ramos, Ely Marques produção production Ana Bárbara Ramos, Bruno de Sales contato contact [email protected], [email protected] Filme etnográfico ensaístico sobre o ato de entregar presentes a Iemanjá, divindade mítica de origem africana. Cultuada no Brasil desde a chegada dos negros escravos, Iemanjá hoje atraí milhares de devotos a sua festa anual celebrada na beira do mar, no dia 8 de dezembro. Ethnographic film essay about the act of giving offerings to Iemanjá, mythic deity of African origins. Worshiped in Brazil since the arrival of black slaves, Iemanjá attracts today thousands of adorers to her annual celebration at seashore, at the 8th of December. / cine humberto mauro \ 27 nov / 17h / centro cultural UFMG \ 03 dez / 14h 140 \ \ OMA / Brasil \ 2011 / p&b \ 22’ direção director Michael Wahrmann fotografia photography Michael Wahrmann som sound Michael Wahrmann montagem editing Michael Wahrmann produção production Michael Wahrmann contato contact [email protected], [email protected] Ela fala alemão. Eu falo espanhol. Ela não escuta. Eu não entendendo. She speaks german. I speak spanish. She doesn’t listen. I don’t understand. / cine humberto mauro \ 28 nov / 15h / centro cultural UFMG \ 30 nov / 20h / 141 \ Ovos de dinossauro na sala de estar / Dinosaur eggs in the living room / Brasil \ 2011 / cor \ 12’ direção director Rafael Urban fotografia photography Eduardo Baggio som sound Robertinho de Oliveira montagem editing Ana Lesnovski produção production Ana Paula Málaga contato contact [email protected] Ragnhild Borgomanero, 77 anos, estudou fotografia digital e fez cursos de Photoshop e Premiere para manter viva a memória de seu falecido esposo, Guido, com quem reuniu a maior coleção particular de fósseis da América Latina. Ragnhild Borgomanero, aged 77, studied digital photography and learned how to operate Photoshop and Premiere softwares to keep the memory of her late husband, Guido, alive, with whom she gathered the biggest private fossil collection of Latin America. / cine humberto mauro \ 28 nov / 17h / centro cultural UFMG \ 03 dez / 16h 142 \ \ Santos Dumont: pré-cineasta? / Santos Dumont’s mutoscope: early cinema and found footage film / Brasil \ 2010 / cor \ 64’ direção director Carlos Adriano fotografia photography Carlos Adriano som sound Carlos Adriano montagem editing Carlos Adriano produção production Bernardo Vorobow e Carlos Adriano contato contact [email protected] Este documentário parte da descoberta e restauração de um raro e desconhecido carretel de fotografias reproduzidas de um filme mutoscópio, produzido em 1901, em Londres, sobre Santos Dumont (1873-1932). A obra aborda aspectos históricos e artísticos dos primórdios do cinema (pré-cinema, cinema de atrações) e do cinema de reapropriação de arquivo (found footage, filme de reciclagem), por meio de entrevistas, documentos, metáforas visuais e da articulação própria de um ensaio poético. The documentary’s starting point is the discovery and restoration of a rare and unknown photography reel reproduced from a mutoscope film, made in 1901 in London, about Santos Dumont (1873 - 1932). The work approaches historic and artistic aspects from the beginning of Cinema (pre cinema, variety film) and a cinema that appropriates archive material (found footage, recycled films), through interviews, documents, visual metaphors and the articulation of a poetic essay. / centro cultural UFMG \ 28 nov / 20h / cine humberto mauro \ 29 nov / 17h / 143 \ Som Tximna Yukunang / Gravando som / Recording sound / Brasil \ 2010 / cor \ 52’ direção director Karané Ikpeng, Kamatxi Ikpeng fotografia photography Karané Ikpeng, Kamatxi Ikpeng som sound Karané Ikpeng e Kamatxi Ikpeng montagem editing Mari Corrêa produção production Mari Corrêa contato contact [email protected] Os Ikpeng decidem gravar em um CD com os cantos do Yumpuno, um dos momentos mais importantes do grande ritual Moyngo, em que os meninos têm o rosto tatuado com espinho de tucum e carvão extraído da resina do jatobá. Três gerações falam sobre a experiência de passar pelo ritual de iniciação ikpeng, quando deixam a infância para ingressar na vida adulta. The Ikpeng decided to record onto a CD containing Yumpuno songs, one of the most important moments of the great Moyngo ritual, when boys have their faces tattooed with tucum’s thorn and charcoal extracted from resin of the jatobá tree. Three generations discuss ikpeng’s initiation ritual experiences, the moment to leave childhood behind and enter adult life. / cine humberto mauro \ 27 nov / 17h / centro cultural UFMG \ 03 dez / 14h 144 \ \ Um olhar passageiro / A fleeting glance / Brasil \ 2011 / p&b \ 21’41’’ direção director Pedro Carvalho fotografia photography Flávia Balbino som sound Felipe Palmini montagem editing Felipe Palmini, Pedro Carvalho produção production Felipe Palmini contato contact [email protected] Um olhar passageiro conta a história de Juarez, um senhor de 76 anos de idade que trabalha com consertos de câmeras fotográficas analógicas. Com muita simplicidade e humildade Juarez tenta viver em um mundo onde o avanço da tecnologia resultou em sua marginalização. Em meio a prateleiras empoeiradas e respeitando seu próprio ritmo, Juarez resiste ao dia a dia de forma quase poética, mostrando-se portador de uma lucidez sólida e habilidades admiráveis, além de ser um legítimo representante de uma geração que parece cada vez mais fadada ao esquecimento. Um olhar passageiro tells the story of Juarez, a 76 years old man who fixes analog cameras. With much simplicity and humility, Juarez attempts to live in a world where technological advances culminated in his marginalization. Amidst dusty shelves and respecting his own rhythm, Juarez resists everyday life in an almost poetic manner, bearer of a solid lucidity and admirable skills, besides being a legitimate representative of a generation that seems faded to oblivion. / cine humberto mauro \ 30 nov / 17h / centro cultural UFMG \ 04 dez / 18h / 145 \ Vó Maria / Grandma Maria / Brasil \ 2011 / cor \ 6’ direção director Tomás von der Osten fotografia photography Tomás von der Osten som sound Tomás von der Osten montagem editing Tomás von der Osten produção production Tomás von der Osten contato contact [email protected], [email protected] Uma memória em três tempos. Memory in three times. / cine humberto mauro \ 02 dez / 17h / centro cultural UFMG \ 04 dez / 18h 146 \ / mostra competitiva internacional / 147 / júri \ Alexia Melo Bacharel em Comunicação Social e Licenciada em Artes Plásticas. Faz parte do grupo de sócio-fundadores da Associação Imagem Comunitária (AIC) e trabalha com produção audiovisual em Belo Horizonte desde 1993. Participou de diversas intervenções urbanas, entre os anos de 2005 e 2008. Hoje atua como Diretora de Projetos Sociais da AIC. / Cezar Migliorin Professor e ensaísta. Membro do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e professor adjunto do Departamento de Cinema e Vídeo. Membro do Conselho Executivo da Socine. Coordenador do Laboratório Kumã de pesquisa e experimentação em imagem e som. Mantém o Blog Polis + Arte e é colaborador da Revista Cinética. \ Theo Duarte Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. É pesquisador e programador de Cinema. 148 \ \ É necessário trazer fogo e alimento / Bruno Vasconcelos, Carla Maia, Pedro Portella Os homens estão cá fora, estão na rua. A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas também a rua não cabe todos os homens. A rua é menor que o mundo. O mundo é grande. (Carlos Drummond de Andrade, “Mundo Grande”) Nunca um dia assim bonito/ ela e seus fones de ouvido/ a internacional no ouvido (Fellini, “Greve”) Um sentimento instável, ainda que certeiro, se reafirma face aos mais de cento e cinquenta filmes que recebemos para seleção da mostra competitiva internacional: vivemos tempos de transformações, revoluções, primaveras. O mundo está inquieto, em chamas, como comprovam as notícias chegadas das praças do Sol e Tahrir, das ruas de Israel, Índia, Turquia, Grécia, da toda-poderosa Wall Street e – por que não – daqui mesmo de Belo Horizonte, cidade que habitamos, que teve suas ruas tomadas e sua praça tornada praia para abrigar os descontentes com a atual administração. Tempos promissores estes, repletos de manifestações de toda ordem - ou a favor de outras ordens - em que é possível invadir castelos, derrubar ditadores, atear fogo ao próprio corpo, exigir justiça, lutar por novas formas de conviver neste velho e vasto mundo, que apesar de tudo, ainda é nosso. Menor que o mundo, mas parte dele, o cinema parece responder ao apelo das multidões em revolta. Isso se tornou bem claro durante nosso processo seletivo: boa parte dos filmes são movidos pelo desejo revolucionário de lutar por uma vida mais justa, ausente de / 149 explorações, exclusões, perseguições e preconceitos. Era mesmo de se esperar - sabemos bem que o cinema, sobretudo o documentário, está no mundo, nele se inspira, com ele toma forma, age e resiste. A novidade e a surpresa, entretanto, são as maneiras muito originais com que os filmes dão conta desta preciosa e difícil tarefa de expressar as diferentes cores e dores do homem. A vida – e com ela o cinema - sabe mesmo ser surpreendente e múltipla. É assim que um homem é transformado pelo canto e pela graça (Moacir); a surdez ensina a ouvir com pele, olhos, nariz e boca (Sonor); a escassez motiva a invenção, e o lar se torna a terra (Dom); a memória se afirma por vestígios em estilhaços que talvez nos demovam da idéia de buscar nela indícios de verdade (Saskatchewan); um ator negro resiste a parâmetros convencionais de atuação frente aos brancos (La mort de Danton); vídeos de Internet promovem partilha numa nova política tão revolucionária quanto cotidiana (Fragments of a revolution); sons contrastados e surpreendentes paisagens nos perguntam em que medida o homem é o centro das preocupações da arquitetura (Minhocão); fronteiras interditas fazem surgir novos territórios afetivos (Los Ulisses). Que todos repousem em revolta, não em paz, pede o cinema, fazendo da sua própria forma um ato de resistência (Quils reposent en revolte). A matéria bruta – a porção de mundo à qual os filmes se dedicam – é tão variada quanto as formas que toma: pode ser uma infância entre ruínas (Shuan Jun’s childhood); tuaregs - homens sem ocidente - clamando por autodeterminação no deserto (Amanar Tamasheq), mulheres intocáveis em insurreição pela fundação de novas tradições na Índia (Pink Saris), o cotidiano singular no mundo do trabalho (Smolarze). A boa notícia é que, diante de tudo que representa a destruição e a diminuição da potência humana, diante dos poderes que insistem em nos impor sempre mais do mesmo comportamento padronizado, 150 \ esterilizado, anestesiado, há quem resista e grite, em nome e a favor da diferença e da criação. Anunciamos, com alegria e coragem, que desses somos aliados, aceitando o desafio de continuar inquietos neste mundo, o grande mundo que, como previa o poeta, continua crescendo “todos os dias, entre o fogo e o amor”. / 151 \ Qu’ils reposent en révolte (Des figures de guerres I) / May they rest in revolt (Figures of wars) / França \ 2010 / p&b \ 153’ direção director Sylvain George fotografia photography Sylvain George som sound Sylvain George montagem editing Sylvain George produção production Sylvain George contato contact [email protected], [email protected] Construído a partir de fragmentos que se ligam uns aos outros e acabam por se confundir, o filme acompanhou durante três anos (de julho de 2007 a janeiro de 2010) um grupo de imigrantes ilegais na cidade de Calais. Ao mostrar as condições em que vivem esses indivíduos, o filme deixa claro que as políticas de imigração adotadas pelos modernos Estados policiais vão muito além do plano da legalidade: elas criam áreas cinzentas, fissuras e espaços onde a regra não se distingue da exceção. Composed of fragments that refer back and become mixed up with each other, thus creating multiple games of temporality and spatiality, this film shows the living conditions of migrant persons in Calais over a period of three years (July 2007 to January 2010). In so doing, it shows how the policies engaged by modern police States extend beyond the law, and cause gray areas, cracks, indistinct places between the rule and the exception. / cine humberto mauro \ 24 nov / 21h 152 \ / Minhocão \ The big worm / França | Brasil \ 2011 / p&b \ 30’ direção director Raphaël Grisey fotografia photography Raphaël Grisey som sound Girjashanker Vohra montagem editing Raphaël Grisey produção production Raphaël Grisey contato contact [email protected] Um carro com um potente sistema de som reproduz um texto de Eduardo Affonso Reidy sobre os preceitos da arquitetura moderna enquanto circula pelo Conjunto Habitacional Pedregulho, um complexo habitacional projetado por Reidy cuja construção começou em 1946 e é conhecido por seus moradores como Minhocão. O ballet do carro sendo guiado, combinado com as entrevistas, os excertos sonoros do filme “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia” e algumas outras cenas criam o retrato de uma das mais importantes construções do modernismo brasileiro e do contexto social da zona norte carioca. A car with a big sound system broadcasts a text of Eduardo Affonso Reidy on his modern architecture precepts. It drives around the Conjunto Habitacional Pedregulho, a social housing complex build from 1946 by the same architect and also called Minhocão (the big worm) by his inhabitants. The ballet of the driving car, combined with interviews, sound extracts from the fiction film “Lucio Flávio, the passenger of agony” and other scenes, produce a portrait of a major modernist Brazilian building and of the popular northern zone´s context of Rio de Janeiro. / cine humberto mauro \ 23 nov / 21h30 / 153 / Pink Saris / Reino Unido | India \ 2010 / cor \ 96’ direção director Kim Longinotto fotografia photography Kim Longinotto som sound Girjashanker Vohra montagem editing Ollie Huddleston produção production Kim Longinotto contato contact [email protected] Nos primeiros 20 minutos de Pink Saris, Devi parece ser uma das mulheres mais duronas que já apareceram nas telas do cinema. Defensora incansável das mulheres vítimas de maus tratos, não se deixa intimidar por ninguém. Mas quando começa a parecer que a diretora Kim Longinotto está enamorada demais de seu objeto para abordar questões mais delicadas, a megalomania de Devis vem à tona com força total (“Sou o messias das mulheres”) e a arrogância com que trata aqueles à sua volta revela uma faceta sua muito pouco louvável. For the first 20 minutes or so of Pink Saris, Devi comes off as one of the most kick-ass women ever captured on film. A tireless advocate for abused women, she backs down from no one. But just as it starts to seem director Kim Longinotto is too enamored of her subject to pose hard questions, Devi’s megalomania kicks into high drive (“I’m the messiah for women”) and her divalike treatment of those around her reveals her as often far less than noble. / cine humberto mauro \ 25 nov / 17h 154 \ / Sonor / Alemanha \ 2010 / p&b \ 37’ direção director Levin Peter fotografia photography Yunus Roy Imer som sound Stefan Kolbe, Hendrik Schalansky montagem editing Stephan Bechinger produção production Elsa Kremser contato contact [email protected] Sonor conta a história do encontro entre uma ex-bailarina, surda de nascença, e um músico que compõe para o cinema; duas pessoas que, apesar das aparentemente conflitantes percepções sonoras, iniciam juntas uma viagem pelo universo acústico. Em busca de sons, eles exploram espaços sonoros e experimentam diferentes instrumentos, traduzindo suas experiências por meio de uma improvisação musical. Sonor convida a audiência a transformar sua própria percepção dos tons e dos sons. Sonor tells us about the encounter of a film musician and a former ballet dancer, who is deaf by birth. Two people with an apparently conflictive acoustic perception enter the realm of a sound journey. They explore acoustic spaces, experiment with various instruments and seek for sounds. Their experiences are interpreted in a musical improvisation. Sonor is inviting the audience to undergo a chance in its own perception of tone and sound. / cine humberto mauro \ 26 nov / 15h / 155 / La mort de Danton \ The Danton’s Death / França \ 2010 / cor \ 64’ direção director Alice Diop fotografia photography Blaise Harisson som sound Ludovic Escallier montagem editing Amritta David produção production Gilles Padovani contato contact [email protected] Steve tem 25 anos e lembra um daqueles jovens encapuzados que vemos nos noticiários sobre a violência na periferia. E ele era de fato um deles, pelo menos até poucos meses atrás - perambulando com os amigos, dividindo um baseado no vão das escadarias e sonhando com uma vida melhor. Em setembro de 2008, Steve repentinamente decide mudar de vida, e começa a frequentar o curso de formação de atores do Cours Simon, uma das escolas de teatro de maior prestígio na França. O filme o acompanha nesse momento decisivo da vida, mostrando as dificuldades de tamanha transformação. Steve is 25 and looks like one of those hoods spotted in the everyday news on suburban violence. He was actually one of them few months ago. He used to hang around in the staircases with his fellows, sharing joints and dreaming of a better life. In September 2008 he suddenly decides to change his life and starts training as an actor in one of the most prestigious drama schools, “le Cours Simon”. The film follows him at a turning point of his life and depicts the difficulties of such a metamorphosis. / cine humberto mauro \ 25 nov / 15h 156 \ / Fragments d’une révolution \ Fragments of a revolution / França \ 2010 / cor \ 55’ direção director Anonymous fotografia photography Anonymous som sound Anonymous montagem editing Anonymous produção production Gilles Padovani contato contact [email protected] A história trata dos protestos no Irã, em que cidadãos anônimos fizeram, de improviso, o papel de jornalistas, e conseguiram por seus próprios meios burlar a censura oficial. The story is about of iranian protests in which the anonymous citizens improvised themselves “journalist” and they succeeded by their own means to bypass censorship. / cine humberto mauro \ 23 nov / 21h30 / 157 / Moacir / Argentina \ 2011 / cor \ 75’ direção director Tomas Lipgot fotografia photography Victor Narvaez, Tomás Lipgot som sound Rufino Bassavilbaso, Fernando Rivero montagem editing Bruno López, Javier Zevallos produção production Tomas Lipgot contato contact [email protected], [email protected] Moacir dos Santos veio do Brasil há quase três décadas; depois de tanto tempo já é “brasileiro e argentino”, como ele mesmo diz para um (quase) conterrâneo na embaixada de Buenos Aires. Desempregado e entregue a diversos excessos, após diagnóstico de esquizofrenia paranoide, ele foi internado no Hospital Neuropsiquiátrico Borda onde passou grande parte da sua estadia em Buenos Aires. Lá, ele conheceu Lipgot, quem estava trabalhando num outro documentário. É assim que começa a fantástica história de Moacir. Moacir dos Santos left Brazil almost three decades ago; after so much time he is already “Brazilian and Argertinean”, as he himself puts it to an (almost) fellow countryman at the Buenos Aires embassy. Unemployed and driven by excesses, he was committed to Borda Neuropsychiatry Hospital after being diagnosed with paranoid schizophrenia, a place he spent most of his time in Buenos Aires. There he met Lipgot, who was working in another documentary. This is how begins he amazing story of Moacir. / cine humberto mauro \ 26 nov / 15h 158 \ / Smolarze \ Charcoal Burners / Polônia \ 2010 / cor \ 15’ direção director Piotr Zlotorowicz fotografia photography Malte Rosenfeld som sound Ewa Bogusz montagem editing Barbara Snarska produção production Joanna Malicka contato contact [email protected], [email protected] “Um olhar delicado sobre o cotidiano de um casal de carvoeiros, como um conto-de-fadas de um mundo esquecido – porém sem o final feliz com dinheiro e felicidade” – DOK Leipzig Programmer. “A tender observation of a couple of charcoal burner’s daily life, like a fairytale from a lost world – but without the happy end of wealth and happiness” – DOK Leipzig Programmer / cine humberto mauro \ 26 nov / 17h / 159 / Shuai Jun´s Childhood \ A infância de Shuai Jun / China \ 2010 / cor \ 14’ direção director Xingzheng Jin fotografia photography Xingzheng Jin som sound Xingzheng Jin montagem editing Xingzheng Jin produção production Xingzheng Jin contato contact [email protected] Shuai Jun é uma criança de 5 anos que nasceu e cresceu em uma estação de triagem de resíduos. Seu pai trabalha como empacotador e sua mãe faz artesanato. Como as outras crianças, Shuai Jun também quer frequentar a escola, mas seus pais são pobres e a mensalidade é cara demais para sua família. A child, his name is Shuai Jun, 5 years old, who was born and growing up in a waste collection station of the city. His father packs up waste, and his mother handcrafts. He’s like other children, also wanna go to school, but they are poor, they can’t afford the tuition fee. / cine humberto mauro \ 24 nov / 17h 160 \ / Los Ulises \ The Ulysses / Espanha \ 2011 / cor \ 83’ direção director Agatha Maciaszek, Alberto Garcia Ortiz fotografia photography Alberto Garcia Ortiz som sound Agatha Maciaszek montagem editing Cristobal Fernandez produção production Carlos Esbert contato contact [email protected] Em meio à abundante vegetação das montanhas de Ceuta, um enclave espanhol na costa marroquina, 57 imigrantes indianos aguardam seu destino no acampamento clandestino que construíram para evitar sua deportação. Com uma linguagem visual exuberante, o filme os acompanha em sua luta diária pela sobrevivência, enquanto aguardam o dia em que atravessarão os últimos 14 km que os separam da Europa. Conseguirão chegar lá? In the densely forested hills above Ceuta, a Spanish enclave on the Moroccan coast, 57 young Indian immigrants await their fate in a shanty community they’ve built to avoid deportation. With lush visual style, the film accompanies them in their daily trials as they scramble to survive, waiting to cross the last 14 km that separate them from Europe. Will they make it there? / cine humberto mauro \ 26 nov / 17h / 161 / Amanar Tamasheq / Espanha-Mali \ 2011 / cor \ 14’ direção director Lluis Escartín fotografia photography Lluis Escartín som sound Lluis Escartín montagem editing Lluis Escartín produção production Lluis Escartín contato contact [email protected] Um homem entra no deserto. Um homem vive entre os tuaregs. Um homem escuta o que outro tem a dizer, e este pede ao primeiro que filme tudo o que encontrar. Que filme e divulgue além das dunas. Que filme tudo, mesmo aquilo que não compreenda. Que filme, mesmo que o mais importante permaneça invisível. A man walks into the desert. A man lives with the Tuareg. A man listens to another man, and this one asks the other to film everything he finds. To film it and spread the word beyond the dunes. Film everything, even if he does not understand. Film it, even if what’s most important remains invisible. / cine humberto mauro \ 25 nov / 17h 162 \ / Dom \ Home / Rússia \ 2011 / cor \ 95’ direção director Olga Maurina fotografia photography Olga Maurina som sound Alexander Dudarev montagem editing Vera Nikiforova, Olga Maurina produção production Anna Kapkina contato contact [email protected] Três moradores de rua protegem-se do frio em um abrigo feito de compensado, ao lado de uma das últimas estações de Moscou. À medida em que a primavera se aproxima, eles começam a planejar a construção de algo como uma casa. Mas ter um lar significa, necessariamente, uma mudança para melhor? Three homeless hiding from cold in a veneer shelter next to one of Moscow terminal stations. As spring comes they make plans to construct something like a house. Once they find home, would their life turn positive? / cine humberto mauro \ 24 nov / 17h / 163 / Saskatchewan / Canadá | EUA \ 2011 / cor \ 18’ direção director Richard Wiebe fotografia photography Herb, Olga Wiebe som sound Richard Wiebe, Andrew Ritchey montagem editing Richard Wiebe produção production Richard Wiebe contato contact [email protected] Algumas cenas em 16mm e as gravações de um ditafone me apresentam a uma família que eu jamais conheci. Vejo meu pai em 1943, aos sete anos, encarando a câmera. Vejo meus avós, minha tia, meu tio e outros que já se foram. Mesmo tendo nascido décadas depois, na Carolina do Norte, fico imaginando o filme sobre Saskatchewan que faríamos juntos. 16mm footage and Edison Voicewriter recordings introduce to me a family I never knew. I see my dad, age 7, in 1943 stand in front of a movie camera. I see my grandparents, my aunt, my uncle and others now gone. I was born in North Carolina, and decades later, but I imagine the movie we would make together about Saskatchewan. / cine humberto mauro \ 25 nov / 15h 164 \ / sessões filmes de quintal / 165 \ Manoki, Pytámãnãnjulipja / Luta pela terra / Brasil \ 2010 / cor \ 36’ direção director Celso Xinuxi, Alonso Irawali, Manoel Kanuxi montagem editing Carolina Canguçu produção production Vídeo nas Aldeias e Centro de Memória Indígena Manoki contato contact [email protected] A hidrelétrica construída às margens da Terra Indígena Irantxe / Manoki acabou com os peixes da região e os latifúndios de soja e gado destruíram toda a mata nativa ao redor da Terra. A luta atual é pela homologação da ampliação do território, enfrentando a resistência de grandes fazendeiros e a morosidade do governo federal. The hydroelectric plant built at the outskirts of the Irantxe / Manoki indigenous land has made the fish of the region disappear and the soy bean estates and cattle cultivations have destroyed all the native forest surrounding the indigenous land. The present struggle is for the ratification of the land’s territorial expansion, facing resistance from landowners and the government’s slowness. / cine humberto mauro \ 28 nov / 21h 166 \ \ Roda / Brasil \ 2011 / cor \ 72’ direção director Carla Maia, Raquel Junqueira fotografia photography Pedro Aspahan, Sérgio Borges som sound Bruno Vasconcelos montagem editing Bruno Vasconcelos, Raquel Junqueira produção production pesquisa research Marcos Valério Menezes Maia contato contact [email protected] Entre sambas e memórias, compositores, intérpretes e instrumentistas da Velha Guarda do Samba de Belo Horizonte fazem roda. Amidst samba music and memories, composers, performers and instrumentalists from Belo Horizonte’s old school of Samba put together a jamming session. / cine humberto mauro \ 27 nov / 15h / 167 \ Encontro com São João da Cruz / Brasil | Portugal \ 2011 / cor \ 19’35’’ direção director Daniel Ribeiro Duarte montagem editing Daniel Ribeiro Duarte contato contact [email protected] Além de uma grande massa de escritos, a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931-2008) deixou, como espólio, mais de 2000 fotografias. Este filme parte de uma delas, atraído pela anotação no verso, onde se lê: “Encontro com São João da Cruz”. A data da fotografia remete ao começo da escrita d’O Livro das Comunidades, considerado por Llansol como um ‘livro-fonte’. A imagem da fotografia faz pensar a leitura como possibilidade de encontro e deixa entrever o processo de nascimento de uma das figuras fundadoras do texto llansoliano. Beyond a vast amount of writings, Portuguese writer Maria Gabriela Llansol (1931-2008) has left, as her estate, more than 2000 photographs. This film uses one of them as a starting point, attracted by the notes on its back which say: Meeting with São João da Cruz”. The photograph dates back to the beginning of writing O livro das comunidades, considered to be a ‘sourcebook’ by Llansol. The photo makes us see the act of reading as the possibility of an encounter and allows a glimpse into the creation of one of the founding figures of Llansol’s writing. / cine humberto mauro \ 28 nov / 21h 168 \ \ Hölder / Brasil | Portugal \ 2011 / cor \ 11’ direção director Daniel Ribeiro Duarte fotografia photography Daniel Ribeiro Duarte montagem editing Pedro Rufino, Daniel Ribeiro Duarte contato [email protected] O filme faz parte do projeto Europa em Sobreimpressão – Llansol e as Dobras da História, e é composto de imagens filmadas em Tübingen, onde o poeta alemão Hölderlin viveu, encerrado em uma torre, por aproximadamente 30 anos. Às imagens desta paisagem, acrescentam-se os cadernos da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol e a leitura de fragmentos de sua obra relacionadas à do poeta alemão. A loucura, a fuga dos deuses da Grécia e “a paisagem como terceiro sexo” são alguns elementos que norteiam a construção do filme. The movie takes part in the project Europe in Overprints - Llansol and the Folds of History, and is composed by images filmed in Tübingen, where the German poet Hölderlin lived, locked away in a tower for approximately 30 years. Were added to this landscape notebooks from Portuguese writer Maria Gabriela Llansol and the reading of fragments from her work related to the German poet. Madness, the escape of gods from Greece and “the landscape as a third sex” are some of the leading elements of this film. / cine humberto mauro \ 28 nov / 21h / 169 \ Quando os yãmiy vêm dançar conosco / Brasil \ 2011 / cor \ 52’ direção director Renata Otto Diniz fotografia photography Isael Maxakali montagem editing Carolina Canguçu produção production Milene Migliano contato contact [email protected] Isael e Suely são um casal maxakali. São professores, em Aldeia Verde, uma comunidade transferida em 2007 para a Terra Indígena Ad Hãm Yîxux, no município de Ladainha, MG. Apesar de sua história antiga de contato com os brancos, os Maxakali mantiveram sua língua e sua relativa autonomia em relação à sociedade nacional. Muitos velhos, pajés e lideranças maxakali afirmam que sua força provém das relações que mantêm com seus Yamiy, seus espíritos. Isael e Suely têm um desejo ardente de usar a tecnologia em favor de suas tradições, todas elas herdadas dos Yamiy. Gostam de fazer reveberar por outros meios a voz do pajé: tudo está bem, quando os Yamiy vêm dançar conosco. / cine humberto mauro \ 27 nov / 21h 170 \ \ Erosões / Erosion / Brasil \ 2011 / cor \ 35’ direção director Umbando fotografia photography Maurício Rezende montagem editing Oswaldo Teixeira desenho de som sound design Bruno Vasconcelos produção production Rafael Barros, Flávia Camisasca contato contact [email protected] Quadrilátero ferrífero, região metropolitana de BH. É neste território, no meio de uma comunidade em desaparecimento, que se trava uma batalha entre a máquina cinematográfica e as máquinas de exploração mineradoras. The Iron Quadrangle, BH metropolitan area. It is in this territory, in the middle of a vanishing community, that a battle between the cinema and the mining exploration machine is fought. / cine humberto mauro \ 28 nov / 21h / 171 172 \ / sessão especial / 173 174 \ \ A voir absolument (si possible) – dix années aux Cahiers du Cinema, 1963-1973 / França \ 2011 / cor \ 78’ direção director Ginette Lavigne, Jean Louis Comolli, Jean Nardoni fotografia photography Jean-Louis Porte, Marc Séferchian produção production Ina / Distribution Ina contato contact [email protected] O filme revê os dez anos, de 1963 a 1973, no qual um grupo de cineastas, ensaístas, professores e editores se reuniu em torno da revista Cahiers du cinéma. Entre eles, Jean André Fieschi, Jean Narboni, Jean Louis Comolli e Serge Daney. Naquela época – escrevem Comolli e Narboni – a política não era inimiga da beleza, e a teoria, encarregada de dissipar as ilusões, a ideologia e a alienação, convivia com a experiência intensa de ver e discutir os filmes. Época em que a cinefilia e a militância andavam de mãos dadas. E fazer da revista e da experiência do cinema um “front cultural e revolucionário”. The film reviews the ten years, between 1963 and 1973, in which a group of filmmakers, essayists, professors and editors gathered around Cahiers du cinema magazine. Among them, there were Jean André Fieschi, Jean Narboni, Jean Louis Comolli e Serge Daney. At that time – Comolli and Narboni wrote – politics was not an enemy of beauty, and theory, in charge of dispelling illusions, ideology and alienation, coped with the intense experience of seeing and discussing films. A time when cinephilia and militancy walked holding hands. To make both the magazine and the cinema experience a “cultural and revolutionary front”. / cine humberto mauro \ 30 nov / 15h / 175 176 \ \ lançamento / 177 178 \ \ Revista Devires - cinema e humanidades, vol. 7 n.2 O cinema contemporâneo apresenta-se como uma verdadeira agonística das representações, na qual a visibilidade torna-se uma arena de disputa entre diferentes modos de aparição do real e dos sujeitos. Esse embate está ligado a amplas transformações no âmbito do espetáculo (se nos filiamos à tradição inaugurada por Guy Debord) e da biopolítica (se retomamos o conceito de Michel Foucault e seus desdobramentos). Procurando não reduzir o cinema a um lugar de diagnóstico ou de mera tematização da política, o conjunto de textos reunidos no dossiê. Cinema, estética e política” da Revista Devires (v. 7, n. 2) procura abordar o modo como os filmes incorporam, atualizam e respondem — em seus próprios moldes, em sua forma expressiva — a essas transformações. / cine humberto mauro \ 03 dez / 21h / 179 180 \ \ curso / 181 182 \ \ Dilemas da observação / Eduardo Escorel* Data 01 a 03 de dezembro de 2011 Horário 14h às 17h Local Cine Humberto Mauro/ Palácio das Artes Três indagações e uma possível resposta O percurso da observação e a passagem para a ficção 1ª. Qual é a ruptura em relação a A Janela de esquina do meu primo, de E.T.A. Hoffmann,1 realizada em 1840 pelo narrador de O Homem da multidão, de E.A.Poe2? “Com a testa na vidraça, estava deste modo ocupado em perscrutar a massa, quando de repente apareceu um rosto (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco, setenta anos de idade) – um rosto que imediatamente chamou e absorveu toda a minha atenção, por causa da absoluta idiossincrasia de sua expressão. […] ‘Que história fantástica’, pensei comigo mesmo, ‘não estará escrita nesse peito!’ Me veio então um ardente desejo de não perder o homem de vista – de saber mais sobre ele.” 1 Hoffmann, E.T.A., A Janela de esquina do meu primo. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Concluído em abril de 1822 e publicado em maio do mesmo ano, foi a última narrativa completada pelo autor, falecido em junho de 1822 aos 46 anos. 2 Poe, Edgar Allan, O Homem da multidão. Porto Alegre: Editora Paraula, 1993. The Man in the Crowd foi publicado em 1840. / 183 2ª. O que levou Dziga Vertov, na primavera de 1926, a anotar o que segue em seu diário? “Vi Paris adormecida3 ontem no cine-teatro Ars. Fez-me sofrer. Há dois anos tracei um plano que coincide exatamente com esse filme. Tentei seguidamente encontrar uma oportunidade para implementá-lo. Nunca me foi dada essa oportunidade. E agora – o realizaram no exterior. Kino-olho perdeu uma de suas posições de ataque. Intervalo longo demais entre ideia, concepção e realização. Se não nos permitem implementar nossas inovações logo, podemos estar correndo perigo de inventar continuamente e nunca realizarmos nossas invenções na prática”.4 3ª Qual é a nova ruptura feita por Jean Epstein em O cinematógrafo visto do Etna ao descrever a filmagem de Montanha infiel, filme perdido, realizada em junho de 1923? “[…] Todo o poço [do elevador] era recoberto de espelhos. Eu descia rodeado de eu mesmos, de reflexos, de imagens dos meus gestos, de projeções cinematográficas. Cada volta me surpreendia de outro ângulo. Há tantas posições diferentes e autônomas entre um perfil e três quartos de dorso quanto lágrimas no olho. Cada uma dessas imagens não vivia senão por um instante, assim que percebida, perdida de vista, já outra. Só minha memória retinha uma entre infinitas, e perdia duas em cada três. E havia as imagens das imagens. As imagens terceiras nasciam das imagens segundas.”Cada percepção é uma surpresa desorientadora que insulta. Nunca eu 3 Paris qui dort (1924), René Clair [primeiro filme do diretor] 4 Michelson, Annette (ed.), Kino-Eye The Writings of Dziga Vertov. Berkeley: University of California Press, 1984. 1926, 12 de abril, p.163. 184 \ tinha me visto tanto e eu me olhava com terror […] me percebendo outro, esse espetáculo contrariava todos os hábitos de mentir que eu chegara a me fazer a mim mesmo. Cada um desses espelhos me apresentava uma perversão de mim, uma inexatidão da esperança que eu tinha em mim. Esses vidros espectadores me obrigavam a me olhar com a sua indiferença, sua verdade. Eu aparecia para mim numa grande retina sem consciência, sem moral, com sete andares de altura. Eu me via sem ilusões alimentadas, surpreso, desnudado, arrancado, seco, verdadeiro, peso líquido”. Para tentar responder à primeira indagação, partiremos da (a) projeção dos 10’ iniciais de Tishe! (2002), de Victor Kossakovsky. Comentaremos, a seguir, (b) o conto A Janela de esquina do meu primo, de E.T.A. Hoffmann, publicado em 1822; (c) o registro heliográfico de Joseph Nicéphore Niépce, Vista da janela do escritório, feito em 1827; (d) o daguerreótipo de Louis-JacquesMandé Daguerre, Boulevard du Temple, feito em 1838; e (e) o conto de E.A.Poe, O Homem da Multidão, publicado em 1840. Exibiremos, finalmente, Da janela do meu quarto (5’, 2004), de Cao Guimarães e Aterro do Flamengo (2010, 46’), de Alessandra Bergamaschi. Para tentar responder à segunda e à terceira indagação, exibiremos Paris adormecida (35’, 1924), de René Clair. Tomaremos como referência para comentar o filme o texto de Annette Michelson, Dr. Crase and Mr. Clair, publicado em October, Vol 11 (Winter, 1979). Comentaremos, a seguir, O Cinematógrafo visto do Etna, de Jean Epstein, publicado em 1926; Las meninas (1656), de Velázquez e Mão com esfera espelhada (1935), de E.C.Escher. Diante da inexistência do documentário Montanha infiel, filmado por Epstein em 1923, poderemos mostrar um trecho de Le tempestaire, dirigido também por ele em 1947. Exibiremos, finalmente, La Soufrière (30’, 1977 ), de Werner Herzog. / 185 Para tentar uma resposta sintética às três indagações anteriores, avaliando os dilemas da observação exibiremos e comentaremos a versão mais longa do sexto decálogo de Krzysztof Kieslowski, Não amarás (A Short Film about Love, 83’, 1988), comparando o início e o fim com os da versão mais curta (58’, 1988), que integra a série O Decálogo. * Eduardo Escorel Cineasta, tendo iniciado sua carreira profissional como assistente de direção e montador em 1965. Em 1966, dirigiu seu primeiro filme, o documentário Bethânia bem de perto, a quatro mãos com Julio Bressane. Montou, entre outros, Terra em Transe (1967), Macunaíma (1969), Cabra marcado para morrer (1984) e Santiago (2006). Dirigiu os filmes de ficção Lição de Amor (1976), Ato de Violência (1981), Cavalinho Azul (1984) e, entre outros, os documentários Chico Antônio - O herói com caráter (1984), 35 - O assalto ao poder (2002), Vocação do Poder (2005), e O tempo e o lugar (2008). Publicou Adivinhadores de Água – pensando no cinema brasileiro, pela Cosac Naify, em 2005. Desde 2005, coordena curso de especialização em cinema documentário na FGV, no qual também leciona. Foi crítico de cinema da revista Piauí de 2009 a 2011. Escreve atualmente para o blog questões cinematográficas. 186 \ \ Paris Qui Dort / Paris Adormecida / França \ 1923 / p&b \ 34’ direção director René Clair fotografia photography Maurice Desfassiaux, Paul Guichard montagem editing René Clair produção production Henri Diamant-Berger Um sábio louco imobiliza Paris por meio de um raio diabólico, deixando todos os parisienses mergulhados num sono letárgico. Apenas um grupo de jovens, refugiados no alto da Torre Eiffel, escaparam do sinistro plano. Com ironia e poesia, Clair registrou Paris como nenhum outro conseguiu fazer. A wise and crazy man paralyzes Paris through the use of an evil ray, diving all Parisians into a lethargic dream. Only a young group, who had taken refuge at the top of the Eiffel Tower, manages to escape this sinister plan. With the use of irony and poetry, René Clair documented Paris in a way no other director had intended. / cine humberto mauro \ 01 dez / 14h / 187 \ La Soufrière / Alemanha \ 1977 / cor \ 30’ direção director Werner Herzog fotografia photography Edward Lachman, Jörg Schmidt-Reitwein montagem editing Beate Mainka-Jellinghaus produção production Werner Herzog Filmproduktion contato contact [email protected] Ao saber que a ilha de Basse-Terre foi evacuada devido a possível erupção do vulcão La Grande Soufrière, Herzog viaja para a ilha deserta para encontrar um camponês que se recusou a sair As he became aware of the Basse-Terre island evacuation due to the possible eruption of the La Grande Soufrière volcano, Herzog travelled to the deserted island to meet a countryman who refused to leave. / cine humberto mauro \ 02 dez / 14h 188 \ \ Krótki film o milosci / Não amarás / Polônia \ 1988 / cor \ 85’ direção director Krystof Kieslowski fotografia photography Witold Adamek som sound Nikodem Wolk-Laniewski montagem editing Ewa Smal produção production Ryszard Chutkowski contato contact [email protected] Tomek, um jovem tímido que mora com uma velha senhora, observa através de uma luneta a bela mulher que mora no prédio em frente, por quem se apaixona. Tomek, a shy young man who lives with an old lady, observes through a telescope the beautiful woman that lives in the opposite building, with whom he falls in love. / cine humberto mauro \ 03 dez / 14h / 189 190 \ \ fórum de debates / 191 SESSÃO DE ABERTURA 22/11 TERÇA FEIRA – CINE HUMBERTO MAURO 19h30 AS HIPER MULHERES 80’ Carlos Fausto, Leonardo Sette, Takumã Kuikuro Sessão comentada por Leonardo Sette, Takumã Kuikuro MOSTRA FERNADO CONI CAMPOS Mesa redonda 03/12 SÁBADO – CINE HUMBERTO MAURO 21h O CINEMA DE FERNANDO CONI CAMPOS Com: Hernane Heffner, Patrícia Moran, Luis Abramo. Mediação: Ewerton Belico Sessões comentadas 29/11 TERÇA-FEIRA – CINE HUMBERTO MAURO 21h LADRÕES DE CINEMA 127’ Por Jean-Claude Bernardet 01/12 QUINTA-FEIRA – CINE HUMBERTO MAURO 19h VIAGEM AO FIM DO MUNDO 95’ Por Jean-Claude Bernardet 04/12 DOMINGO – CINE HUMBERTO MAURO 19H A PINTURA DE CLAUDIO TOZZI 9’ O MÁGICO E O DELEGADO 103’ Por Jair Fonseca MOSTRA CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS BOLÍVIA/MÉXICO Mesas redondas 30/11 QUARTA-FEIRA – CINE HUMBERTO MAURO 21H Coletivos Audiovisuais Indígenas: formação de realizadores e constituição de redes de comunicação na Bolívia, México, Brasil Com: Ivan Sanjinés, Carlos Pérez Rojas, Vincent Carelli Mediação: Ruben Caixeta 02/12 SEXTA-FEIRA – CINE HUMBERTO MAURO 21H Realização indígena e autoria cinematográfica Com: Maria Zeladi Mole, Carlos Pérez Rojas, Divino Tserewahu, Takumã Kuikuro. Mediação: Carolina Canguçu 192 \ Sessões comentadas 30/11 QUARTA-FEIRA – CINE HUMBERTO MAURO 19h K’anchary / Para encender la luz del espíritu 45´ Reynaldo Yujra Qati Qati / Susurros de muerte 35´ | Reynaldo Yujra Por Ivan Sanjinés, Martha Zeladi 02/12 SEXTA-FEIRA – CINE HUMBERTO MAURO 19h Dulce convivência 18’ | Filoteo Gómez Martinez Y el río sigue corriendo 70´ Carlos Peréz Rojas Comentada pelo diretor 03/12 SÁBADO – CINE HUMBERTO MAURO 17h CINEMA POVOS ORIGINÁRIOS/BOLÍVIA El grito de la selva 97´ | Direção Coletiva Por Martha Zeladi Mole, Ivan Sanjinés 04/12 DOMINGO – CINE HUMBERTO MAURO 17h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS/MÉXICO A Cielo Abierto 37’37’’ | José Luis Matías y Carlos Pérez Rojas Por Carlos Pérez Rojas MOSTRA/SEMINÁRIO FORUMDOC.BH.2011 O ANIMAL E A CÂMERA Conferências 21/11 SEGUNDA-FEIRA UFMG/FAE Auditório Luiz Pompeu de Castro 11h Conferência Inaugural Lições de Caça Por Maurício Yekuana 22/11 TERÇA-FEIRA UFMG/FAFICH Auditório Sônia Viegas 10h Conferência II Autópsia in vivo: aspectos da biopolítica em Primate de Frederick Wiseman Por André Dias 24/11 QUINTA-FEIRA UFMG/FAE Auditório Luiz Pompeu de Castro / 193 10h Conferência III Revisando a caça de porco do mato juruna Por Tânia Stolze Lima Messa redondas 25/11 SEXTA-FEIRA UFMG/FAE Auditório Luiz Pompeu de Castro 10h Mesa Redonda I A técnica de caça e o cinema Por Uirá Garcia, Carlos Sautchuk e Cezar Migliorin 26/11 SÁBADO – CINE HUMBERTO MAURO 21h30 O ANIMAL E A CÂMERA Com: André Dias, Renato Sztutman, Paulo Maia Sessões comentadas 23/11 QUARTA-FEIRA – UFMG / FAE Sala de Teleconferência 10h O ANIMAL E A CÂMERA ATAKA: O LADRÃO DE ARMADILHAS 10´ Como filmar uma armadilha? Por Takumã Kuikuro 23/11 QUARTA-FEIRA – CINE HUMBERTO MAURO 19h30 O ANIMAL E A CÂMERA Os Cavalos de Goethe ou Alquimia da Velocidade 55’ Arthur Omar Por Arthur Omar, João Dumans, Paulo Maia 29/11 TERÇA-FEIRA – UFMG / FAFICH Auditório Sônia Viegas 10h O ANIMAL E A CÂMERA HISTÓRIAS DE MAWARY 58’ Ruben Caixeta Por André Brasil, Ruben Caixeta SESSÃO FILMES DE QUINTAL 27/11 DOMINGO – CINE HUMBERTO MAURO 21h FILMES DE QUINTAL Quando os yãmiy vêm dançar conosco 52’ Renata Otto Diniz Por Isael Maxakali e Suely Maxakali 194 \ Mostra competitiva 28/11 e 30/11 – CINE HUMBERTO MAURO 10h30 ENCONTRO DE REALIZADORES / COMPETITIVA NACIONAL / André Brasil Pesquisador em Comunicação e Cinema. É doutor pela UFRJ e professor do Departamento de Comunicação da UFMG. Desenvolve o projeto “Formas de vida na imagem: performatividade no documentário e na mídia”, abrigado pelo Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência (UFMG). \ André Dias Doutorando na Universidade Nova de Lisboa/Portugal sobre a ambiguidade no cinema moderno, cinefilia e filosofia política contemporânea. Autor de Ainda não começamos a pensar, blog sobre cinema e pensamento que inclui várias entrevistas com realizadores contemporâneos. Organizou a conferência sobre biopolítica com Roberto Esposito e traduziu L’aperto. L’uomo e l’animale de Giorgio Agamben (Edições 70). / Arthur Omar Nasceu em Poços de Caldas (MG), em1948. Realizou trabalhos em cinema, vídeo, fotografia, música, poesia e artes plásticas. O longa-metragem Triste Trópico, crítica ao discurso da antropologia, de 1974, é um dos destaques de sua produção audiovisual, que conta ainda com 11 filmes e 17 vídeos, dentre eles Os cavalos de Goethe ou A Alquimia da velocidade apresentado nessa edição do forumdoc. \ Carolina Canguçu Professora de audiovisual desde 2004. Bacharel em Comunicação Social pela UFMG e Integrante da Associação Filmes de Quintal. Atuou em oficinas de formação em vídeo na Pedreira Prado Lopes (BH), Associação Imagem Comunitária, Escolas Municipais de Belo Horizonte, Lagoa Santa (RMBH) e com indígenas das etnias Maxakali, Huni Kuin, Manoki, Pataxó, Xacriabá, Krenak, Suruí, Xucuru-Kariri, Yawanawá, Kanoê, WaiWai. / 195 / Carlos Emanuel Sautchuk Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Coordenador do Laboratório de Antropologia da Ciência e da Técnica (DAN/UnB) e pesquisador do Centro de Desenvolvimento de Estudos do Esporte e do Lazer (Rede CEDES Ministério do Esporte/UnB). Pesquisa temas relativos a pesca, caça, meio ambiente e sociedades caboclas amazônicas, dentre outros. \ Carlos Pérez Rojas Carlos Efraín Pérez Rojas, realizador da região de Oaxaca, México, trabalha com produções audiovisuais desde 1999, primeiramente como membro do coletivo Video Tamix, posteriormente como Coordenador de Formação e Produção para o Chiapas Media Project. Atua na estação regional TV Tamix de sua comunidade desde 1998. Atualmente, além de dirigir seus próprios filmes, trabalha como fotógrafo-cinegrafista, editor, produtor e formador de realizadores indígenas. Seu trabalho vem sendo exibido em festivais referenciais incluindo Sundance, Wild Spaces Film Festival, Margaret Mead Film Festival, entre outros. / Cezar Migliorin Professor de Departamento de Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador e ensaísta concentrado no cinema e no audiovisual. É membro do Conselho Executivo da Socine (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual). Pesquisa e publica sobre o cinema brasileiro, sobretudo aquele ligado ao campo do documentário em seus aspectos políticos e estéticos. Organizou o livro, Ensaios no real, editado pela Ed. Azougue. \ Divino Tserewahú Divino é diretor, fotógrafo, editor de vários filmes consagrados em importantes festivais nacionais e internacionais como: Wapté Mñoño Iniciação do Jovem Xavante, Aprendiz de Curador, O Poder do Sonho, Mulheres Xavante sem nome. Um dos mais experientes realizadores ligados ao VNA, atualmente trabalha também como formador de novos realizadores de diversas etnias no Brasil. 196 \ / Hernani Heffner Crítico de cinema e conservador-chefe da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, MAM-RJ. Foi pesquisador da Cinédia Estúdios Cinematográficos, tendo coordenado a restauração do acervo dessa produtora. Curou as Mostras “Raízes do Século XXI”, “A Tela Aberta” e “Miragens do Sertão”. É professor de cinema na PUC-RJ e da FGV-RJ. \ Ivan Sanjinés Atual coordenador do Conselho Latinoamericano dos Povos Indígenas CLACPI e diretor do Centro de Formación y Realización Cinematográfica (Bolívia), especialista em comunicação intercultural, processos de capacitação audiovisual, fortalecimento de redes comunicacionais para o desenvolvimento do processo boliviano de comunicação audiovisual indígena, destacado realizador e produtor audiovisual. / Isael Maxakali Fotógrafo de cinema e diretor, co-realizou os filmes Tatakox (2007) Kotkuphi (2010) entre outros. Assina a fotografia do filme Quando os Yãmiy vem dançar conosco, lançado no forumdoc.bh.2011. \ Jair Fonseca Escritor, crítico de cinema, Doutor em Literatura Comparada pela FALE-UFMG, e professor de literatura brasileira e de cinema brasileiro na UFSC. / Jean-Claude Bernardet Crítico de cinema, ensaísta, cineasta e escritor. Foi professor de História do Cinema Brasileiro na ECA-USP e é Doutor em Artes pela mesma instituição. Escreveu o roteiro de O caso dos Irmãos Naves, dirigido por Luís Sérgio Person; e dirigiu São Paulo: Sinfonia e Cacofonia. É autor dos livros Vôo dos anjos: Sganzerla, Bressane um estudo sobre a criação cinematográfica, Cineastas e Imagens do Povo, Aquele Rapaz (ficção), dentre outros. Escreve no blog jcbernardet.blog.uol.com.br / 197 / João Dumans Mestrando em Comunicação e Sociabilidade Contemporânea pela UFMG. Pesquisador de cinema. Foi programador do Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, e curador do Cineclube Curta Circuito. Participou de comissões de seleção, programação e júri de festivais como o forumdoc.bh e o Festival Internacional de Curtas de BH. Atualmente, é um dos programadores da Mostravídeo Itaú Cultural. \ Júnia Tôrres Antropóloga, mestre em Sociologia da Cultura pela UFMG. Organizadora do forumdoc.bh desde 1997. Em 2010 coordenou a pesquisa e mapeamento das Comunidades Tradicionais de Terreiro na Região Metropolitana de Belém, através da Unesco. Como documentarista dirigiu, entre outros: Nos olhos de Mariquinha (codireção: Cláudia Mesquita, 2009), Um olhar sobre os quilombos no Brasil (co-direção Cida Reis, 2007); Aqui favela, o rap representa (co-direção Rodrigo Siqueira, 2003). / Leonardo Sette Participou de oficinas na Escuela Internacional de Cine y Televisión (CUBA, 1999), La Fémis (Paris, 2003) e graduou-se em história do cinema na Sorbonne (2006). Desde 2002 vem participando intensamente do processo de oficinas do projeto Vídeo nas Aldeias, tendo contribuído na formação e nas produções de cineastas indígenas de diferentes povos amazônicos. Em 2008, dirigiu seu primeiro curta-metragem, Ocidente, que recebeu entre outros o prêmio de melhor filme do Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro (Curtacinema). \ Martha Zeladi Mole Comunicadora e cineasta indígena moxeño trinitaria. É membro da Coordinadoria Audiovisual Indígena Originaria de Bolivia CAIB e integrante da equipe responsável pelo Centro de Medios Comunitarios com sede na cidade de Trinidad, Beni (Amazônia boliviana), trabalho imbricado com o Sistema Plurinacional de Comunicação Indígena. Diretora da Rádio indígena Pedro Ignacio Muiba, entre 2009 e 2011. 198 \ / Maurício Yekuana Maurício Ye’kuana nasceu em 1984 na aldeia de Fuduwaduinha, na região de Auaris, Terra Indígena Yanomami, no Estado de Roraima. Filho do atual vice-tuxaua de Fuduwaaduinha, Maurício vem desempenhando importante trabalho como Vice-Presidente da Hutukara Associação Yanomami para defesa dos direitos dos povos Yanomami e Ye’kuana. Maurício vive hoje em Boa Vista. \ Paulo Maia Etnólogo, professor de antropologia da Faculdade de Educação da UFMG, é coordenador do programa de extensão forumdoc.ufmg e da mostra/seminário “O animal e a câmera” do forumdoc.bh.2011. Membro fundador da associação Filmes de Quintal é curador e produtor do forumdoc desde 1997. / Patrícia Moran Ensaísta, crítica de cinema, cineasta e videoartista, dirigiu o filme Plano-Sequência e o vídeo De Tonacci, dentre outros. É professora da ECA-USP e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. \ Renata Otto Diniz Doutoranda pela UnB e mestre pelo Museu Nacional da UFRJ em antropologia social. Trabalha na Fundação Nacional do Índio com procedimentos de demarcação de terras indígenas. Realizou filmes documentários e etnográficos, entre os quais Concórdia de Dona Isabel e Birinaites sob o Viaduto. Integra a produção do forumdoc. bh desde a sua segunda edição. Junto a Isael e Suely Maxakali realizou em 2011 o filme Quando os Yãmiy vem dançar conosco, lançado no forumdoc.bh.2011. / Renato Sztutman Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP). Desde 1995, é pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo NHII e do Grupo de Antropologia Visual GRAVI/LISA, ambos da USP. Foi um dos fundadores e co-editou, entre 1997 e 2007, a revista Sexta-Feira. Suas áreas de atuação são etnologia e história indígena (com foco no problema das cosmopolíticas ameríndias), teoria antropológica e antropologia & cinema. / 199 \ Ruben Caixeta de Queiroz Antropólogo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador do Laboratório de Etnologia e do Filme Etnográfico. Realizador de documentários e co-editor da Devires - Revista de Cinema e Humanidades. Compõe a equipe de organização do forumdoc.bh, do qual é co-fundador. / Suely Maxakali Uma das lideranças indígenas da Aldeia Verde, participou dos projetos de formação em fotografia e realização audiovisual entre os maxakali. \ Tânia Stolze Lima Etnóloga e professora associada do PPGA-Programa de PósGraduação de Antropologia e do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autora do livro Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva (São Paulo/Rio de Janeiro: Editora da Unesp/ISA/NuTI. 2005). / Takumã Kuikuro Nascido em 1983, Takumã é o filho mais velho de Samuagü Kuikuro e Tapualu Kalapalo. Ele vive na aldeia de Ipatse, na Terra Indígena do Xingu, Estado de Mato Grosso. Realizador formado pelo VNA e integrante do Coletivo Kuikuro de Cinema. Seu filme As hiper mulheres foi premiado em importantes festivais brasileiros, como Festival de Cinema de Gramado e Festival de Cinema de Brasília de 2011. Cursa cinema na Escola Darcy Ribeiro no Rio de Janeiro. \ Uirá Felippe Garcia Doutor em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (2011). Desenvolve pesquisa etnográfica, com ênfase nas práticas de conhecimento sobre a caça, junto aos Awá-Guajá, grupo Tupi-Guarani do Maranhão. / Vincent Carelli Indigenista e coordenador do Vídeo nas Aldeias. Realizador de vários filmes, finalizou em janeiro de 2009, Corumbiara, premiado em diversos festivais nacionais e internacionais. 200 \ \ mostra de extensão / 201 SERRA 13/11 domingo 19h Local: Bar do Zé Barriga – Rua Bandonion 487 Próximo à Praça do Cardoso Roda / Brasil \ 2011 / cor \ 72’ Direção: Carla Maia, Raquel Junqueira Fotografia: Pedro Aspahan, Sérgio Borges Som: Bruno Vasconcelos Montagem: Bruno Vasconcelos, Raquel Junqueira Produção e pesquisa: Marcos Valério Menezes Maia Contato: [email protected] Entre sambas e memórias, compositores, intérpretes e instrumentistas da Velha Guarda do Samba de Belo Horizonte fazem roda. CONCÓRDIA 15/11 terça-feira 19h Local: Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário Rua Jataí, 1309 Roda / Brasil \ 2011 / cor \ 72’ Direção: Carla Maia, Raquel Junqueira Fotografia: Pedro Aspahan, Sérgio Borges Som: Bruno Vasconcelos Montagem: Bruno Vasconcelos, Raquel Junqueira Produção e pesquisa: Marcos Valério Menezes Maia Contato: [email protected] Entre sambas e memórias, compositores, intérpretes e instrumentistas da Velha Guarda do Samba de Belo Horizonte fazem roda. AGLOMERADO SANTA LÚCIA 18/11 sexta-feira 15h Local: BH Cidadania – Rua São Tomás de Aquino 640 202 \ Roda / Brasil \ 2011 / cor \ 72’ Direção: Carla Maia, Raquel Junqueira Fotografia: Pedro Aspahan, Sérgio Borges Som: Bruno Vasconcelos Montagem: Bruno Vasconcelos, Raquel Junqueira Produção e pesquisa: Marcos Valério Menezes Maia Contato: [email protected] Entre sambas e memórias, compositores, intérpretes e instrumentistas da Velha Guarda do Samba de Belo Horizonte fazem roda. TAQUARIL 27/11 domingo 19h30 Local: Rua Ramiro Siqueira (ao lado da academia do Montanha) – Taquaril A Lá do leste From over on the East Side / Brasil \ 2010 / cor \ 28’ Direção: Carolina Caffé e Rose Satiko Gitirana Hikiji Fotografia: Rafael Nobre Som: Tomires Ribeiro Montagem: Karine Binaux Produção: Paulo Dantas Contato: [email protected], [email protected] Lá do Leste, do lugar onde a cidade termina (ou começa), chegam rimas, gestos e cores que marcam o espaço. A experiência periférica urbana é a base e o motivo da produção dos artistas de Cidade Tiradentes, que cresceram junto com o distrito paulista e em suas obras dialogam com seus desafios e sonhos. O filme segue a vida e as transformações do street dance, grafite e rap neste lugar considerado o maior complexo de conjuntos habitacionais populares da América Latina, marcado pela exclusão, no qual a população orquestra suas dificuldades com dinâmicas próprias de sociabilidade, moradia, e apropriação do território. / 203 204 \ / ensaios / 205 206 \ \ Depoimento de uma guerra declarada1 / Fernando Coni Campos Em 1968, o filme Viagem ao fim do mundo de Fernando Coni Campos, surpreendia por sua forma irreverente; em 1977, Ladrões de cinema, do mesmo diretor, surpreendia por seu conteúdo estimulante alegórico, crítico-criativo. Dentro do cinema brasileiro, a posição de Fernando Campos é bastante singular: sem ter pertencido aos quadros do Cinema Novo, também não se ligou ao “cinema do lixo”, embora a proposta estética de Viagem absorvesse um determinado tipo de tropicalismo, diferente daquele que seria transado por Joaquim Pedro de Andrade em Macunaíma: o possível tropicalismo contido em Viagem incorporava elementos godardianos. Por tudo isso o depoimento de Fernando Campos - a seguir - parece-nos importante; suas palavras devem ser ,ouvidas com atenção: “O cinema brasileiro está sendo contestado pelos exibidores e distribuidores. O nosso mercado não é nosso. Temos que jazer o que os ‘HOME’ quer. Somos todos marginais no nosso próprio país”. (Nota da Redação) Logo depois de ter conseguido terminar o filme Viagem a fim do mundo escrevi um roteiro que, muito mais que roteiro cinematográfico, já que dificilmente conseguiria produção para ele, e mesmo que conseguisse nunca conseguiria passá-lo nas duas censuras (a policial e a comercial), era um manifesto para uso interno, um plano piloto para futuras realizações. Tupy or not Tupy, era o seu título. O próprio título já denuncia as suas origens oswaldianas e antropofágicas Em 1971, em plena vigência do governo Médici, fui convidado para dirigir um musical com o cantor Jorge Ben. Apesar da dureza do regime ter atingido, nesse governo, o ponto mais agudo de repressão, 1 Texto publicado em Revista de Cultura Vozes, v. 72, n. 6, p. 19-22, ago. 1978. / 207 vivíamos momentos de falsa euforia. O Brasil tinha conseguido no México o tricampeonato de futebol. A maciça propaganda da AERP tentava nos convencer que “Este é um país que vai pra frente”, do “Brasil Grande”, do “Ame-o ou deixe-o”. Ninguém conseguiria deter aquela corrente de noventa milhões dando as mãos. Enquanto isso, a imprensa estava arrolhada; as cadeias cheias, e nos porões das cadeias a tortura campeava solta. Mas tudo isso era subterrâneo. Na superfície, uma grande festa verde-amarela com um com um presidente que torcia pelo Flamengo e ia assistir os jogos no Maracanã com um radinho de pilha encostado ao ouvido, vibrando com o gooooooool e os sujeitos competentes. Jorge Ben nos garantia que vivíamos num país tropical, abençoado por Deus e feliz por natureza, que beleza! O enredo que me foi dado para filmar não refletia essa realidade “edênica”. Era um roteirinho que mais parecia um script de programa de TV. No entanto, a desorganização e as deficiências de produção impediam-me de executar o roteiro proposto e, para não parar o filme, eu era obrigado a fugir do roteiro e a improvisar. Na realidade, cada vez que eu improvisava estava era voltando para idéias e sequências do Tupy or not Tupy. Procurava enfatizar e caricaturar o neo ufanismo que estava nos sendo imposto e, assim, desmascará-lo. Naquela época, o cinema com preocupações políticas e sociais tinha se calado, ou, quando muito, refugiado-se nos subterrâneos do udigrudi. Nos nossos cinemas, apareciam as pornografias coloridas, as comédias de telefone branco do nosso fascismo tupiniquim. Uma nega chamada Teresa, era esse o nome do filme, foi totalmente remontado e desfigurado pela censura e pela produção. Não sobrou quase nada da minha versão original. Para o espectador que não soubesse da minha proposta, o filme não passava de um verdadeiro vexame. Silenciei-me durante cinco anos realizando tarefas burocráticas. Enquanto isso, amadurecia um projeto que 208 \ me era muito caro: a história dos Ladrões de cinema. Em 1976, surgiu a oportunidade de produção para esse filme. Ainda não eram as condições ideais que eu desejara, depois de tantas frustrações em que a má produção refletia-se na realização criando enorme defasagem entre a concepção e a realização, mas era, pelo menos, uma produção que se afigurava decente. Na manhã de domingo de carnaval de 1976, em plena avenida Rio Branco, rodei a primeira seqüência do filme. Ao ver David Zing, Mário Carneiro, Ana Maria Nascimento Silva e Ney Santana representando uma equipe de americanos que documentava o carnaval serem cercados por um grupo de crioulos fantasiados de índios, a impressão que tive é que estava não no asfalto da avenida, mas quase à foz do rio Coruripe com os índios caetés cercando, massacrando e devorando o bispo Pero Vaz Sardinha. Era o dia 1 do ano 1 da era da deglutição. Esse sentimento, impressão, dominou todo o filme e me levou, a mim e ao filme às suas origens: Tupy or not Tupy. Ladrões de cinema tinha que ser uma experiência radical mas, ao mesmo tempo, uma proposta contraditória. A contradição estava em que o filme tinha que assumir a sua condição de marginal marginal com a conotação de o que está à margem da lei, mas não deveria ser marginal na acepção udigrudiana que a palavra ganhou. Não teria de ser um filme maldito, com a implicação romântica de artista maldito, mas popular onde a sua marginalidade residisse na sua criminalidade. Inicia-se um longo processo de desaprendizagem. Não deveria haver distâncias entre o realizador do filme e Luquinha e Fuleiro, realizadores do filme-enredo Tiradentes. Toda a postura, todo o enfoque tinha de ser tão preciso e exato que fizesse com que as pessoas tomassem alguma providência depois de vê-lo. Se isto não fosse alcançado, a câmera e o próprio cinema tinham que ser jogados fora como coisas inúteis e enganadoras. / 209 Lembrava-me de uma história acontecida no sanatório do Engenho de Dentro quando a Dra. Nise da Silveira reuniu alguns artistas para fundar com ela o setor de laborterapía no sanatório. Pincéis, tintas e telas foram distribuídos entre os “doentes”. Coisas muito bonitas surgiram pintadas pelos Rafaéis, os Egídios, os Fernandos Dinis, pelos reis Zulus. Um deles pintou um quadro terrível que denunciava todos os absurdos do pátio do sanatório. Os quadros foram expostos, críticos sobre eles escreveram. Um sucesso. No embargo, todavia, senão, no entanto, entretanto, mas o homem que tinha pintado o Pátio quebrou os pincéis, jogou fora as tintas, rasgou papéis e telas em branco. Fechou-se. Por quê? Perguntavam todos. Ele não respondia. Uma hora, depois de muito ser chateado respondeu: “Pintar pra quê? Eu pintei aquele pátio e ninguém tomou providência”. No momento há uma guerra declarada. Valenti a deflagrou. O cinema brasileiro está sendo contestado pelos exibidores e distribuidores. O nosso mercado não é nosso. Temos que fazer o que os “HOME” quer. Somos todos marginais no nosso próprio país. Só resta ao Fuleiro e ao Luquinha levantarem os braços algemados e os perdigões da vida, numa atitude augusta, paternalmente chamá-los de doces ladrões. Ao longe ouve-se a voz de Cauby - que nos states poderia virar uma vaca que no lugar de leite produz mel - cantando: Conceição, eu me lembro muito bem Vivia no morro a sonhar, Com coisas que o morro não tem ... 210 \ \ Ladrões de cinema / Fernando Coni Campos Nunca gostei da fábula da cigarra e da formiga. A sua moral sempre me pareceu, além de reacionária, profundamente injusta. Mas conversando com Fúlvio Abramo, que sabe quase tudo sobre plantas e bichos, vim a saber que La Fontaine não entendia nada de formigas e muito menos de cigarra. A cigarra não é de maneira alguma a frívola “porra louca” que canta no verão e que precisa pedir abrigo à formiga no inverno. Para ela, simplesmente, não existe inverno. Cantar é uma determinação das poucas horas de vida que a cigarra tem ao ar livre. Para que haja esse canto de verão, foi necessário que a cigarra passasse debaixo da terra sete longos anos. Este longo período underground é a gestação do canto. Mas porque estou eu aqui a falar de cigarras e a malhar La Fontaine, quando o que me pediram foi um texto sobre Ladrões de cinema? Talvez porque foram precisos oito longos anos para realizar este filme e até esta realização o escuro, o subterrâneo, o underground, que chegou a parecer-me o meu país, que virou udigrudi onde estão até hoje meus amigos Rogério Sganzerla e Julinho Bressane. Há muitos anos, morei na rua Saint Roman. Lá tinha uma empregada que morava no morro do Pavãozinho. Chamava-se Natalina e era a mais carnavalesca das pessoas. Infelizmente, para ela, programava mal os seus impulsos amorosos e sempre estava nos meses de janeiro e fevereiro com um barrigão de oito ou nove meses. Invejava a sabedoria de sua mãe, que sempre conseguia ter filhos na época do Natal - “Daí o meu nome Natalina”. O que não impedia que, com barrigão e tudo, ela desfilasse na avenida no bloco do Pavãozinho. Pois bem, certa vez ela convidou a mim e a Talula para membros do júri que ia escolher o samba-enredo do bloco. Naturalmente era um / 211 tema histórico. Naquela noite senti vontade de fazer um filme sobre um episódio da história do Brasil visto pela ótica de um sambista de escola de samba. As cores do bloco do Pavãozinho são verde e branco e estas cores me remetiam ao Império Serrano, ao Mano Décio, a Tiradentes. “Joaquim José da Silva Xavier”. Eu tinha que fazer esse filme. Precisava entrar em sincronismo comigo mesmo. Sempre houve uma enorme defasagem entre a ideação e a realização. A impressão que eu tive quando vi o filme pronto era a de que eu tinha realizado o meu primeiro longa-metragem, longuíssima- metragem com dez anos de duração. E tudo que tinha feito eram seqüências desse filme. Eu sempre fui muito acusado de fazer um cinema muito difícil, muito intelectualizado. Quando eu era muito jovem tive que decidir entre duas coisas que me atraem muito: artes plásticas e poesia. Fiz a Escola de Belas Artes, artesanato e poesia ao mesmo tempo. E cinema para mim foi uma tentativa de conciliar a coisa plástica e a coisa verbal, a palavra. Eu amo a palavra. Se o cinema continuasse mudo eu não faria cinema. O cinema para mim era a possibilidade de juntar duas coisas que eu gosto. A minha formação intelectual é meio sofisticada. Tive formação católica. Com 18 anos passei para o outro lado, tornei-me trotskista. Naquela época, Trotsky era palavrão. Desenvolvi o amor pelo real e não pela ideologia. Se me perguntassem o que é que eu odeio, eu diria que odeio as ideologias e as generalizações. Então os meus trabalhos sempre refletiram essa briga. O Novais Teixeira brincava comigo dizendo que eu era um anarquista católico e eu dizia que era o contrário, um católico anarquista. Um católico que tem uma certa nostalgia da desordem. Essas coisas sempre se fundiram em tudo que eu fiz. Além disso eu sou baiano, profundamente baiano. Na Bahia nasceu Castro Alves, mas também nasceu Junqueira Freire. 212 \ Castro Alves socialmente é de uma importância incrível. Defendeu os escravos. Mas os escravos de Castro Alves têm o cabelo liso. Castro Alves fala em gondoleiro, e por sinal, eu fiz questão de usar no filme um poema de Castro Alves musicado, “O gondoleiro”. Mas já Junqueira Freire fala em saveiro. Junqueira dizia: “canto o povo, me disseram, canto sim, disse eu. O instinto do povo eu tenho. Eu tenho o sangue plebeu.” Tudo isso era uma mixórdia, uma bagunça total. Ladrões de cinema me lembra muito um artigo de Eliot, em que ele fazia uma comparação entre uma peça de Shakespeare e uma peça moderna. Ele figurava isso e dizia que uma peça de Shakespeare tinha sempre uma forma piramidal ou cônica, ao passo que uma peça moderna é sempre um paralelepípedo ou um cubo. E à medida que você faz um corte mais em baixo ou mais em cima você tem sempre figuras repetidas. Até mesmo na obra dele, Eliot, em “A morte na catedral”, por exemplo, todas as faixas são as mesmas faixas. Já em “Romeu e Julieta” é diferente. Se você fizer um corte por baixo, você tem uma história melodramática, que atinge um público de base. Se corta um pouco mais acima, e aí é pirâmide ou cone,você já tem um estudo da sociedade mercantilista. Se fizer um corte um pouco mais em cima ainda, você já tem um estudo sobre as paixões humanas. Um corte mais em cima ainda, você chega ao domínio da palavra. Ela pega de cima a baixo vários tipos de público. Isso foi uma coisa que sempre me impressionou. E há exatamente 12 anos eu venho tentando fazer um filme. E agora eu acho que consegui fazer o meu primeiro filme. Tudo que eu fiz antes foi um ensaio. O filme é uma estrutura aberta. Mas sempre me chateou muito a palavra diretor. A língua italiana é a única que tem uma palavra que se aproxima um pouco - regente. Então, eu tinha a ideia do filme, e por acaso não houve nenhuma discrepância entre a ideia e o filme realizado. Mas era um filme muito complexo em termos de gente, / 213 de pessoas. Eu tinha ator como o diabo. O que eu tinha pela frente não era mole. Eu tinha uma coisa muito fechada, um enredo, e uma liberdade total de realização. Então eu imaginei um negócio louco, commedia dell’arte, jazz, improviso, desafio, partido alto. E tudo que mencionei são estruturas abertas. É claro que eu sabia com quem ia trabalhar. Acho que o lugar de trabalhar não é no set de filmagem. É antes, muito antes. Eu tenho que saber quem são as pessoas. Então, quando eu pego um músico popular, o Mano Décio da Viola, eu vejo uma identificação precisa com o projeto do filme. Aliás, deu-se um fato muito curioso. No roteiro que eu tinha escrito há oito anos, havia dois diretores do filme feito na favela, o Luquinha e o Fuleiro. Luquinha, que é vivido no filme por Milton Gonçalves, era o cara que curtia a palavra, o negócio mais intelectualizado. E Luquinha era Luc, Jean-Luc (Godard), e Lucchino (Visconti). Deu Luquinha. E o Fuleiro, Samuel Fuleiro, vivido por Antonio Pitanga, era o oposto. Tinha que partir para a ação, que é Samuel Fuller. A primeira vez que estive com Mano Décio da Viola, ele me deu parabéns e disse: “puxa vida, o senhor está homenageando o meu compadre Fuleiro, o fundador do Império Serrano”. Aí eu descobri que havia um Fuleiro que era fundador de escola de samba. A tranqüilidade com que Mano Décio musicou os poemas de Castro Alves, era como se fosse a comissão de frente. Castro Alves, Gonzaga e Alvarenga desfilando na comissão de frente. Mas aí deu-se um negócio interessante. Entre a erudição e a cultura meu coração balança. E às vezes eu não acredito muito nisso, não. Precisava chamar algum erudito para dizer se eu estava certo ou não. Se inspiração é aquilo que o compositor popular sente quando ouve uma música erudita, eu apelei para o meu amigo J. Lins, que é um compositor erudito, a fim de dar o toque definitivo. Foi assim, mais ou menos, que se aglutinaram em torno do filme todas as pessoas. Eu quase não dirigi esse filme no sentido tradicional. Porque eu acho que você só sente qualquer coisa quando 214 \ ela não funciona. Você só sente que tem coração quando você tem uma taquicardia. Tudo no filme correu assim. Eu e o Sergio Sanz, por exemplo, quase não falamos. Quando eu pensava uma posição da câmera, ela já estava no lugar. Para mim a grande coisa do trabalho é uma volta ao paraíso, quando o trabalho não custava suor, era uma coisa lúdica. E esse filme para mim foi uma festa. Só isso. / 215 \ Viagem ao fim do mundo1 / Jean-Claude Bernardet Luis Abramo e Patrícia Moran trabalham sobre a obra do pai de Luis: Fernando Coni Campos. Me procuraram. Meu contato com FCC foi breve, se deu principalmente durante a filmagem de Ladrões de cinema. Pedi que, antes do nosso encontro, me mandassem um DVD de Viagem ao fim do mundo, filme de FCC de que guardei uma excelente memória. Hoje tenho certeza de que, quando vi o filme pela primeira vez, percebi que não havia nada semelhante no panorama cinematográfico brasileiro, que ele abria perspectivas em direção ao cinema-ensaio, à possibilidade de elaborar ensaios em filmes, que o pensamento no cinema não precisava se ater à ficção, que o pensamento no cinema podia recorrer à ficção, entre outros instrumentos. Quando revi o filme neste mês de junho de 2011, fiquei petrificado: como era possível que eu não tivesse escrito sobre esse filme? Tentei recompor as circunstâncias da época: - vi o filme pouco depois de sua realização, mas quando? 1968? Antes ou depois do AI 5? - ainda escrevíamos Paulo Emilio Salles Gomes e eu no jornal A Gazeta, ou já tínhamos sido expulsos? N’A Gazeta publiquei cinco crônicas sobre Bressane. No júri do festival de Brasília de 1968, batalhei até O Bandido da luz vermelha conseguir o prêmio. No jornal Opinião, escrevi sobre Triste trópico de Artur Omar, batalhei pelo filme. Eu batalhava pelos filmes que me pareciam renovadores. Por que não aconteceu com Viagem? Teria assistido a Viagem ao fim antes do início de Opinião (novembro 1 Texto originalmente publicado no blog http://jcbernardet.blog.uol.com.br/ em 22/06/11. Consulta realizada em 17/10/11. 216 \ de 1972)? Teria assistido logo depois do AI 5, quando minha situação ficou particularmente difícil? Não consigo reconstituir as circunstâncias mas um fato é certo: sobre esse filme eu não escrevi, e isso eu preciso entender, pois Viagem é exatamente o tipo de filmes pelos quais batalhei. Revendo-o, senti um enorme buraco na minha carreira de crítico por não ter escrito e por não ter participado da sua carreira. Quando Luis e Patrícia chegaram, eu lhes disse que eu queria falar desse enorme buraco. Esse filme foi esquecido e eu contribui para isso, embora o tenha amado quando o vi e tenha percebido nele um desabrochar futuro. Como é possível que o filme tenha caído no esquecimento? Como é possível que, quando dei um curso sobre cinema-ensaio em Porto Alegre, eu não o tenha incluído na programação? Não havia cópia? Então o citasse como um pioneiro do ensaio cinematográfico na filmografia brasileira. Nem isso. Como explicar? Sem dúvida as circunstâncias foram adversas. Mas eu teria encontrado um meio de fazer ecoar esse filme. Um temor me perturba, 43-44 anos depois: o motivo profundo pelo qual silenciei sobre Viagem ao fim do mundo. Silenciei não por causa das adversidades, mas por causa da sua importante vertente religiosa. Não há outra explicação aceitável. O pensamento inquieto de Simone Weil não me era de todo desconhecido. Nem a sua ida à fábrica. Nem o catolicismo operário. A fé angustiada e em dúvida, embora eu não fosse religioso, não me era totalmente estranha. Pascal era um dos autores do século XVII que eu mais tinha lido e com mais paixão. O poema de Aragon “Rien n’est jamais acquis à l’homme”, eu o sabia de cor. Então por quê? Por que eu era um crítico de esquerda, na militância contra a ditadura, num meio cinematográfico e intelectual em que a religião era o ópio do / 217 povo, o que afirmaram vários filmes dos anos 60, numa década em que não demos a devida atenção ao filme do Vaticano II (O pagador de promessas). A revirada religiosa do cinema brasileiro se daria nos anos 70 com Iaô de Geraldo Sarno, O amuleto de Ogum de Nelson Pereira dos Santos e Anchieta José do Brasil de Paulo César Saraceni. Não vejo outro motivo consistente para ter relegado o filme ao esquecimento, ao meu esquecimento, senão a incapacidade em que eu estive de assimilar a sua angústia religiosa. E com isso ter ignorado toda a sua potencialidade estética. Pior do que isso: não ignorei, pois me lembro de ter percebido essa potencialidade, simplesmente a rejeitei e tranquei o filme a sete chaves por causa da sua religiosidade. Revendo Viagem ao fim do mundo, percebi uma falha grave na minha carreira e me senti culpado. Hoje quero colaborar para a reabilitação do filme de FCC. 218 \ \ Ladrões de cinema, ou: quem faz a história?1 / Jean-Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos O filme de Fernando Coni Campos, realizado em 1977, narra a história de um grupo de favelados que, após roubar uma câmera, faz um filme sobre a Inconfidência Mineira. A quebra da representação naturalista deste filme é bastante óbvia, já que o diretor teve o trabalho de filmar o próprio ato de representar, produzir a história. Além disso, há uma série de momentos em que se rompe com o naturalismo ao nível da construção do espaço. Um bom exemplo disso é a cena na qual Marília declama tendo como pano de fundo carros passando numa avenida do Rio de Janeiro. Se comparado com Os Inconfidentes, o processo de heroificação utilizado em Ladrões de cinema não é tão diferente, se bem que este filme se apresente como uma espécie de resposta ao filme de Joaquim Pedro de Andrade. Isto porque Coni Campos insistiu sobre o fato de que quis preservar o herói e afirmar que, embora goste de Os Inconfidentes, o tom crítico o irrita. Tiradentes, em Ladrões de cinema é, indiscutivelmente, portador de uma mensagem popular. O que fixa mesmo a sua imagem é o monólogo das duas Bárbaras (o diretor, num recurso estilístico, desdobrou a personagem Bárbara Heliodora em duas) que, em oposição aos letrados, colocam-no como um revolucionário autêntico e popular. Tiradentes afirma-se é no interrogatório e na forca. Coni Campos conservou a mesma interpretação dos letrados (tal como em Os Inconfidentes): são vazios, covardes e traidores. O longo monólogo das duas Bárbaras os apresenta como sibaritas 1 Texto publicado em BERNARDET, Jean-Claude e RAMOS, Alcides Freire. “Cinema e História do Brasil”. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. / 219 (pessoas com desejo imoderado de luxo e prazeres). Esta visão dos inconfidentes intelectuais como falsos revolucionários - que não ultrapassaram o nível da intriga palaciana - não é uma constante na arte brasileira. A heroicidade opõe Tiradentes aos outros personagens do drama. É sempre ele e os outros, ou eles e o outro, o que se reflete na construção de vários filmes. Ladrões de cinema não foge à regra. Uma figura só atinge o status de herói e de mito quando perde a sua dimensão histórica, para se tornar um modelo ideal. Neste caso específico, ideal de independência, liberdade e nacionalidade. A mi(s)tificação de Tiradentes efetua-se pelo, digamos, complexo crístico que fazem pesar sobre seus ombros. Os cabelos compridos, em geral a barba, a túnica branca, bem como o fato de perdoar o carrasco, aproximam-no do Cristo do Calvário, o que fica claro em diversos filmes: O Mártir da Independência, A Inconfidência Mineira de Carmem Santos e Ladrões de cinema. E é, provavelmente, esta imagem (cabelo, barba e túnica) que apresentava o filme de Paulo Aliano, Tiradentes (1917), a julgar pela fotografia publicada em O Estado de São Paulo (13/12/1917). A cabeça de Tiradentes, esquartejado no painel de Portinari, assemelha-se ao Cristo do Sudário. Coni Campos lembrou que.o ator que interpreta Tiradentes no seu filme chama-se Jesus e afirmou ter sido este um dos motivos que o levou a escolhê-lo para representar o papel. No trabalho de Coni Campos, o filme sobre Tiradentes está sendo feito por cineastas da favela, que são negros. Muitos atores são negros, ou mulatos, interpretando personagens brancos, e o filme preocupa-se com a cultura negra. Por que então o personagem positivo do filme é branco? Explicou Coni Campos que ele pensou na possibilidade de colocar um ator negro no papel de Tiradentes, mas não quis tocar no Tiradentes, justamente para preservar o mito. 220 \ Quanto a fazer um Tiradentes negro, então Coni Campos preferiria fazer Zumbi. Portanto, quer se trate de Os Inconfidentes quer se trate de Ladrões de cinema mantém-se uma oposição entre ele (Tiradentes) e os outros (Cláudio, Alvarenga e Gonzaga). Esta oposição não se dá apenas ao nível do tratamento dos personagens e dos atores, mas ao nível mesmo da própria construção dramática. E isto é reforçado pelo fato de que Tiradentes é sempre tratado com seriedade - quando não com gravidade -, ao passo que os outros são tratados ironicamente ou, às vezes, num tom de farsa. Discutindo a produção da história Qual a classe social que produz o discurso histórico apresentado pelo filme? Em Ladrões de cinema, quem produz o filme sobre Tiradentes são os cineastas da favela. Coni Campos coloca, portanto, o problema da elaboração da história pelo povo. Esta elaboração está ligada à questão dos meios de produção artística, um dos temas fundamentais do filme O roubo ou desapropriação da câmera que passa das mãos dos turistas americanos às mãos dos favelados, muda o foco da produção da história. Como os favelados não possuem uma bagagem cultural que lhes possibilite fazer o filme, procuram uma bibliografia. Esta representa a história produzida pela classe dominante e à qual os favelados têm acesso com dificuldade: é daí que eles vão tirar a SUA história. Coni Campos insistiu sobre este ponto: dessa história, o povo sabe tirar o que lhe interessa e deixar o resto. Verificamos entre Ladrões de cinema e os outros filmes algumas diferenças sensíveis. Esse é o único filme em que o programa de ação dos inconfidentes é citado, nele a preocupação com a escravidão é mais / 221 desenvolvida, a ponto de, no monólogo final, Tiradentes apresentar todos os colonizados como escravos que querem se libertar. No entanto, reencontramos os pontos básicos da interpretação de Tiradentes apresentados pelos outros filmes. Tiradentes é herói. Ele se opõe aos outros conjurados e é herói “popular”. É o herói da independência e da nacionalidade que se impõe, definitivamente, no processo e no martírio. Ele apresenta traços que lembram a figura de Cristo, etc. Disto se extrai a indagação: que reavaliação de Tiradentes o ponto de vista “popular” trouxe - conforme a proposta do filme sobre a história? Este ponto de vista não alterou estruturalmente a interpretação de Tiradentes. Pode-se concluir, então, que os outros cineastas - e, talvez, particularmente Joaquim Pedro de Andrade apresentaram de Tiradentes uma interpretação tão “popular”, quanto os cineastas da favela, o problema dos meios de produção não se tornaria, assim, tão relevante para a questão de uma produção “popular” da história. Esta abordagem “popular” que o filme propõe só adquire algum sentido quando contraposta à visão factual da história. No filme, para caracterizar este tipo de história, Coni Campos utilizou-se de um programa de televisão tipo “O céu é o limite”, em que as perguntas a Tiradentes são inócuas, detendo-se em pormenores totalmente irrelevantes. 222 \ \ Viagem ao fim do mundo1 / Jairo Ferreira 04 de dezembro de 1969 Entre a palavra e o ato desce a sombra. O objeto identificado. O encoberto, o disco voador. A semente astral. A morte é a única liberdade. A única herança deixada pelo Deus desconhecido. O encoberto. O objeto semi-identificado. O desobjeto. O deus-objeto. Digo eu: o Deus de consumo. O grifo é um fragmento de uma das últimas músicas de Gilberto Gil. Poderia se inserir em qualquer momento de Viagem ao fim do mundo (cartaz do Gazetinha), um dos grandes filmes do ano. Se a música é basicamente som, em Objeto semiidentificado a palavra perturba e o som se liberta. Coisa idêntica acontece nesse filme de Fernando Campos: o cinema falado é o grande culpado da transformação, dizia Noel. Trata-se de escapar da redundância: inventar, mesmo que para isso a música passe a ser jornal falado, o cinema se transforme em “livro aberto”, leitura delirante interrompida por um pesadelo visual. A II Guerra foi aquela catástrofe, uma explosão de novas informações em todos os campos, em particular no cinema. A bomba que está para explodir na praça é uma questão de linguagem, uma realidade, um signo visual e, mesmo que o botão não seja acionado, o mito que é o homem médio do século XX é portador de uma neurose cósmica. Gil: “a cultura, a civilização, só me interessa enquanto sirvam de alimento: informação, a loucura, os óculos, a pasta de dentes, a diferença entre o três e o sete”. E por que não?: a maconha, o LSD. Nixon, massacre não revelado no Vietnã, Marighela fedendo no cemitério, o milésimo gol de Pelé, o minicassete, o Volks-Millôr, as 1 Texto originalmente publicado em GAMO, Alessandro. “Crítica de Invenção, os anos do São Paulo Shimbum”. São Paulo, Imprensa Oficial: 2010. Disponível para consulta – e download – em http:// aplauso.imprensaoficial.com.br/edicoes/12.0.813.168/12.0.813.168.pdf / 223 manchetes de Notícias Populares, Okinawa, Tupamaros, Fellini, um fígado espremido entre a platéia de um teatro, o foguete RD-107, o estimulante de 10 centavos, o consumismo maciço, a morte maciça, e o que mais queiram ou não. Viagem ao Fim do Mundo sobrevoa o câncer, se é que tudo isso é um câncer, e, para fundir cucas mil, seu maior defeito é o próprio espectador. Nesse painel de realidade que já não cabe na realidade, a arte deixa de ser arte nova, revela sua face oculta. Fernando Campos partiu de um escritor de século passado, Machado de Assis, para divagar fatos do século 20, um erro fundamental, responsável pela chatura dos comentários literários. Cita Elliot, Chesterton, e ignora Axelos ou Norman Brown, que são do século 20. A visão desse baiano ainda é deslumbrada, antimaldita. Não há dúvida: é um dos filmes mais corajosos, e de mais substância cultural já visto no cinema nacional, mas estaciona na qualidade de painel, sem propulsionar qualquer desconexão evolutiva na linguagem. Lançar informação de primeiro grau não é apenas grudar fragmentos de documentários “chocantes”: inovar mesmo seria concatenar coisa com coisa, engrenar o desengrenado, organizar a linguagem da desordem para apresentar a organização tal qual é. Campos se propõe essa tarefa dificílima, mas para atingi-la faltou-lhe a garra dos grandes gênios do cinema, e o trabalho fica pela metade. Rogério Sganzerla pode não se meter num emaranhado de fatos como esse, mas suas desordens de menor proporção são alinhavadas com planos, enquadramentos e cortes muito mais cinematográficos, onde fica patente um amor pela linguagem, um talento cinematográfico deflagrador que não se encontra presente em Fernando Campos. Evidente: um experimento é um fato consumado. Fim do mundo tem todas as maiores dicas do cinema brasileiro: Soy Loco por ti América e mísseis caindo, Cuba é um câncer?, o câncer é uma 224 \ república independente dentro do organismo, mas qual o sentimento continental do corpo? Terra é sempre Terra, Pandora (Anik Malvil) ou o mais belo nu do cinema nacional, o homem que sabe que vai morrer, e o que importa o filme?, a Terra some no cinema, que some no Cosmos, que some – ou apenas esse espetáculo é mais um capítulo da novela Deus e o diabo, etc. / 225 \ Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão1 / José Carlos Avellar Com certa freqüência Ladrões de cinema corta a linha central de sua narrativa para encaixar ligeiros entreatos, para fazer uma sátira às condições particulares do cinema brasileiro. Além da cena de abertura (um bloco fantasiado de índios rouba a câmera e o gravador de uma equipe de americanos que filmava o carnaval na avenida) e da cena final (os ladrões, algemados saltam de um carro da polícia para a festiva sessão de estréia do filme com o equipamento roubado) existem várias outras anotações ao correr da história. Há por exemplo, o trecho em que o assistente de direção acompanha a filmagem de uma cena com o roteiro na mão para recitar, a meia voz, os diálogos que os atores devem repetir diante da câmera. Ou o trecho em que o mesmo assistente comanda a movimentação dos intérpretes, dizendo quando eles devem entrar ou sair de cena, caminhar para a direita ou esquerda do quadro. Há, outro exemplo, a cena interrompida por um ator que, meio zangado, entra de surpresa no palco e avança na direção da camara para perguntar ao diretor por que motivo ainda não aparecera no filme. E uma outra cena interrompida por um marido ciumento, que não resiste ao ver a mulher interpretar a mocinha abraçada e beijada pelo mocinho, e invade o plano para tirar a mulher da história. Existem também os incidentes em torno das dificuldades para conseguir negativo para filmagem e o desespero do diretor, que dá cabeçadas na parede e pede melhores condições para poder criar, e 1 Texto originalmente publicado no Jornal do Brasil, 1977. 226 \ a amargura do artista incompreendido, Rui Zebra, que atravessa a história abraçado a um roteiro, “O homem do surdo”, que ninguém deseja financiar. E ainda mais importante do que qualquer destas situações em particular, existe um permanente clima de informalidade, de improvisação, de coisa feita sem planejamento algum e que só ganha estrutura e forma por mero acaso. Mais importante porque esse clima representa com perfeição a imagem que a maioria das pessoas tem do cinema brasileiro desde o dia em que ele proclamou que a sua existência dependia só de uma idéia na cabeça e de uma câmera na mão. Esse clima de coisa desorganizada, resolvida em cima da hora, sem aquele, digamos assim, rigoroso planejamento que precede a criação artística que se pretende séria, aparece traduzido com maior clareza em duas cenas do começo do filme: a súbita decisão de encaixar uma homenagem aos gringos pelo Bicentenário da Independência e a apresentação dos atores escolhidos para viver as diversas personagens da história a ser filmada. O que verdadeiramente importa, em Ladrões de cinema, é mostrar a história de Tiradentes encenada em uma favela do Rio, nos caminhos irregulares e estreitos entre duas filas de barracos, diante do boteco, no campo de terra aberto para uma pelada, na quadra de ensaios da escola de samba, ou nos cantos mais sujos do morro, nas valas, na lama e no lixo, que se entulha por baixo dos barracos. O que importa, mesmo, é mostrar a história de Tiradentes com os atores vestindo as fantasias de um desfile de escola de samba. É mostrar a história de Tiradentes representada por pessoas que nunca interpretaram antes, e que vivem ali, na favela que serve de cenário, ou representada por atores que guardem no estilo de interpretação / 227 algo da real precariedade e improvisação do cenário: barracos de madeira e de alguns tijolos descobertos, e mais a lama, o mato, o chão irregular e sujo, e uns poucos degraus de cimento para tornar a subida menos penosa. Nesse filme as relações tradicionais entre o cenário e os personagens se encontram invertidas. Quase sempre, no cinema, o cenário é montado para servir ao movimento dos personagens, para tornar mais clara a ação, para dar apoio às coisas que os personagens dizem e fazem diante da camara. Aqui, ao contrario, as ações e os diálogos são montados para tornar o cenário mais visível e o real ponto de partida parece ter sido o cenário, a favela, e não a história jogada sobre esse cenário. Muitas cenas são valorizadas por sinais do mundo real, que se infiltram no meio da representação quase por acidente, às vezes são pessoas que atravessam a imagem por trás dos atores que dialogam em primeiro plano, ou que arriscam um olhar e um sorriso para a câmera, esticando a cabeça por trás de uma janela ou de uma porta entreaberta. Às vezes são detalhes dos objetos de cena, o desenho irregular e a pintura desbotada das tábuas ou dos tijolos de um barraco, o capim e a sujeira no canto do quadro. Não se trata com certeza, de coisa encaixada na imagem, por um excessivo zelo naturalista do realizador ou do cenógrafo, mas sim de elementos reais que o filme incorpora, assim como se fosse um documentário sobre uma favela, aberta a todos os sinais do cotidiano. Esses sinais são mais importantes que os diálogos e que as ações porque o filme retém da história de Tiradentes apenas alguns dados essenciais, e conta com a cumplicidade do espectador, que adiante de um episódio já conhecido desloca sua atenção da ação propriamente dita para o cenário e para o estilo de interpretação. 228 \ A rigor não se trata de propor uma nova interpretação da Inconfidência Mineira, nem de documentar de que modo esse período de nossa história vive na memória das pessoas que, como os personagens do filme, moram numa favela. Trata-se só de tomar a idéia de Tiradentes como um símbolo de liberdade e jogar essa idéia aí, nesse grupo mais fortemente oprimido da sociedade brasileira. E deixar que esse ideal de liberdade revele o morro tal como ele é O que interessa é mostrar a Inconfidência Mineira encenada numa favela, e por isso, na maior parte do tempo, o espectador vê a encenação como se estivesse por trás da câmera roubada, como se estivesse diretamente diante do filme feito pelos ladrões de cinema Além disso, no entanto, existem os entreatos, as cenas em que o espectador vê a encenação de fora, isto é: na tela aparecem os favelados que vivem a história de Tiradentes e mais os que se encontram por trás da câmera roubada. E aí a platéia não vê mais o filme pelos ladrões de cinema, passa a ver algo equivalente a um documentário sobre a filmagem de uma nova versão da Inconfidência Mineira. Já não se trata, portanto, de mostrar apenas a favela, como um meio oprimido que convive com o ideal libertador, a favela como uma alegoria de todos os grupos oprimidos no país. Trata-se, ao mesmo tempo, de saber como fazer cinema, um cinema inspirado, se é que podemos dizer assim, no exemplo da favela, nessa maneira precária e improvisada de sobreviver num ambiente hostil. Trata-se de descobrir como fazer um cinema que sirva de porta-voz desse ideal de liberdade, um cinema que, para usar a expressão mais comum, seja popular. Antes de qualquer outra coisa, Ladrões de cinema parece um filme diretamente marcado pela preocupação comum a maior parte da / 229 produção brasileira contemporânea: como conseguir roubar o público conquistado pelo cinema feito segundo o modelo imposto pela indústria americana. Algumas soluções parecem influenciadas pelo filme à americana (como, por exemplo, a despedida de Tiradentes antes da viagem para o Rio), ou influenciadas por uma visão distorcida do que se convencionou julgar como a falta de informação do homem do povo (a leitura afetada e cheia de tropeços do livro da Inconfidência). Mas, na maior parte do tempo, o filme se esforça para conseguir uma espécie de tradução cinematográfica de um desfile das escolas de samba. E aí, nesta tentativa de tradução, os momentos mais interessantes são aqueles que, à primeira vista, se mostram mais desarticulados, e, por confronto com o estilo de narração do produto industrializado, pouco movimentados, de ritmo muito lento. Mais interessantes porque estas soluções, que se opõem ao rigor e à correção formal do cinema produzido pela grande indústria internacional, parecem o ponto de partida para uma maneira de filmar capaz de nos retratar com maior fidelidade. E, de fato, o que se procura no cinema é um jeito próprio de filmar, diferente desse comportamento acadêmico que nos leva aqui e ali a interpretar erradamente um personagem (a caricaturar, por exemplo, o que lê atrapalhadamente os nomes franceses), até mesmo os personagens tomados por heróis. 230 \ \ As mágicas do delegado1 / Celso Amorim Le fou est mort C’est une ilê de la mer du Sud... Le magicien blanc joue avec ses serpents dans sa tombe ... (Georg Trackl. Vingt-quatre Poêmes) O filme chama-se O Mágico e o delegado. Mas poderia também intitular-se O artista e o estado ou, mais genericamente, O Intelectual e o Poder. Sua narrativa é simples: dois artistas nômade - um mágico e uma bailarina - acabam de deixar, escondidos, um pequeno hotel de interior sem pagar a conta e chegam a uma cidadezinha às margens do Rio São Francisco, onde tentarão sua sorte. Encontram um associado no dono do cinema local, que tem uma natural capacidade ociosa. Vencidas as resistências da censura, personificada no delegado de polícia, quanto à ousadia da apresentação da bailarina, o casal se prepara para o espetáculo. Mas antes disso, em passeio pelas ruas da cidade, onde se realiza uma feira tipicamente nordestina, o mágico - imprudentemente – resolve exercitar os seus truques com a população. O delírio coletivo causado pelo festim imaginário, propiciado pelo mágico, é seguido de grande frustração, quando o povo percebe a imaterialidade das benesses. Cria-se um clima de revolta, o que leva o delegado a agir “com energia”, encarcerando o mágico. Sua parceira vê-se forçada a refugiar-se numa “casa de moças”. Mas a ação subversiva do mágico prossegue, ameaçando a ordem do presídio, apesar de produzir momentos de rara felicidade nos presos. O prestidigitador é então conduzido a uma solitária, onde cria para si e para os guardas que o observam cenas de incrível gozo – mas 1 Texto publicado na revista Filme Cultura, n. 44, p. 107-9, abr./ago. 1984. / 231 que, como as anteriores, não passam de ilusão. Paralelamente, a dançarina feita prostituta consegue transformar radicalmente o ambiente do bordel, introduzindo nele uma alegria e uma vida antes inexistentes. A ação repressora do poder não tardará em fazer- se novamente sentir. As orgias imaginárias do mágico são percebidas pelo delegado como um acinte à sua autoridade. Na escalada de desafio e repressão, o tratamento rigoroso imposto ao mágico acaba por levá-lo à morte por inanição. Paralelamente, a policia, perturbada pela alegria esfuziante do bordel, e instigada por vizinhos pudicos, faz descer sobre as “meninas” e seus clientes o peso da autoridade. Ao final, o enterro do mágico se revela uma experiência liberadora. Diante da insistência de sua companheira, abre-se o caixão: ao invés do cadáver, uma revoada de pássaros enche a tela. Um filme bonito e singelo, rico em simbolismos e vazado numa linguagem cinematográfica simples e direta. Essencialmente poético, O Mágico e o delegado seria também um filme popular - como os romances de Jorge Amado ou as estórias de cordel – se o povo, contaminado pelas fórmulas da TV e impedido de ir aos cinemas, pela orientação exclusivamente comercial da cadeias exibidoras, ainda tivesse o hábito de frequentar “os teatros de luz e sombras”. É lugar-comum da crítica dizer que um filme (ou livro) permite várias leituras. Mas sem dúvida este é o caso presente. No plano mais imediato, trata-se de uma história tragicômica contada com graça e sem malabarismos formais, que a tornariam inacessível. Alguns personagens beiram exageradamente o caricatural (o delegado especialmente), embora possa ver-se, também aí, um esforço de comunicação com o grande público. Há mesmo, no tom de certas cenas, elementos que aproximariam o filme de Cony Campos da velha chanchada, naquilo que ela tinha de melhor, que era justamente a linguagem despretensiosa e de fácil e imediata apreensão pelo público. 232 \ Num outro plano, entretanto, O mágico e o delegado se afigura corno uma parábola em que interagem basicamente três personagens: o poeta (ou genericamente o artista), o poder e o povo. Um quarto elemento, que dá concreção aos demais e até os une - na medida em que os aproxima da realidade do sexo e do amor (sem desfazer o sonho, no caso da sua relação com o mágico) - é a dançarina encarnada por Tânia Alves, mais próxima por sua sensualidade telúrica de uma Gabriela do que da rumbeira de Mestre Cigano, em Bye-Bye Brasil (em que pese às aparências). Enquanto os outros três são idealtypen num sentido quase weberiano, Paloma é o real na sua dimensão concreta de individual e de mulher. O filme, com sua narrativa direta e clara, nos mostra que o poeta é perigoso - subversivo - porque leva o povo a sonhar, atividade incompatível com os padrões de comportamento por cuja observância o delegado tem que zelar. Este, aliás, é claramente apenas o elo de ligação com uma autoridade superior cuja ausência/presença ele supre e cujos desígnios não questiona nem elabora: simplesmente os subscreve. Nesta relação poeta/poder, o povo aparece mais como objeto do que como sujeito, o que, se não agrada talvez aos que cultivam dele uma imagem mitificada, não se afasta muito da realidade dos fatos, como a temos observado até aqui. Seu grau de consciência é baixíssimo ou mesmo inexistente. Reage por apetites e desejos, nunca por reflexão, o que não exclui que tenha a capacidade de discernir entre o sonho do mágico e a opacidade do poder. Isto, de resto, não lhe chega a ser de grande valia, pois se o filme mostra que há necessidade de pão e poesia e indica como esta poderia chegar ao povo, a primeira daquelas necessidades, afinal a mais básica, não tem como ser suprida. Nem a mágica do prestidigitador nem o materialismo (prático) do delegado a atendem. O Mágico e o Delegado tem limitações que decorrem sobretudo das restrições orçamentárias com que foi produzido. Mas um sopro de / 233 poesia e de autenticidade percorre todo o filme e o toma uma obra valiosa, culturalmente, qualquer que seja o resultado comercial (suponho que modesto) que venha a obter. Mais que isso, nos propõe ele a necessidade de reflexão sobre certos paradoxos do cinema brasileiro e até certo ponto do cinema em geral. Como foi dito antes, o filme tem uma linguagem acessível: a narrativa flui com facilidade, os atores são bons, a fotografia é, em geral, correta e adequada ao que a película se propõe. Em nenhum momento se pode dizer que O mágico e o delegado se torna arrastado ou que a comunicação com o público é obstruída por fatores intrínsecos ao filme. Isto sem falar nos outros méritos apontados. Porque, então, este filme está, como parece ser o caso, previamente condenado a uma carreira comercial medíocre a ter sua circulação restrita, praticamente, aos cinemas de arte e às cinematecas? Uma das razões - a mais óbvia - é que o povo simplesmente não vai ao cinema; quem vai ao cinema é a classe média (sobretudo média alta). E aos padrões desta o filme decididamente não atende. Falta-lhe (o que não é um defeito e sim uma qualidade, a meu ver) o glamour das produções norte-americanas, hoje incorporado à imagística nacional pela TV e, até certo ponto, pelo próprio cinema brasileiro. Por outro lado, não apela para uma abordagem comercial e reificadora do sexo - embora esse esteja realística e poeticamente presente. E, infelizmente, aquela abordagem parece hoje a única forma de arrancar o povo (ou se quiserem o “povão”) do sono cultural em que pacificamente estiola sua inteligência diante dos vídeos e de atraí-lo para as salas escuras. A opção consciente por uma linha popular – mas ao mesmo tempo fiel ao objeto artístico - parece, assim, alienar a classe média sem chegar ao povo na acepção mais ampla. Restam, evidentemente, os intelectuais e os interessados em cinema, mas estes, quando não contaminados pela pasmaceira geral, não chegam, convenhamos, a formar um público. Ou, pelo menos, um mercado. São, quando 234 \ muito, uma claque. Aliás é uma característica das elites (?) culturais brasileiras a segregação, em compartimentos estanques, dos seus segmentos; com algumas exceções, escritores não vêem filmes, músicos não vão ao teatro (a não ser para ouvir música) e cineastas pouco lêem, o que não os impede,entretanto de manifestarem frenqüentemente, de forma equivocada sobra a problemática dos outros domínios2. Este auto-encasulamento em pequenas igrejas torna os nossos círculos de intelectuais presbitérios mutuamente impermeáveis. É possível que vá aí certo exagero, mas a verdade não está longe disto. A fragmentação pode chegar a extremos caricaturais: alguns curtametragistas só relutantemente vão ver filmes de longametragem e a recíproca certamente é verdadeira. Seja como for, a tendência do paroquialismo setorial diminui ainda mais o nosso minguado público, o que se expressa nas baixas tiragens de livros e no numero insuficiente de espectadores de filmes. É preciso pensar que cada intelectual tem, em princípio, um poder de irradiação que vai muito além de sua própria pessoa para estimar-se o efeito negativo dessa falta de comunicação efetiva entre as várias áreas de nossa “intelligentsia”. A parábola de Cony Campos se reproduz, assim, em um terceiro nível: o poeta/mágico/cineasta quer levar o sonho/filme ao povo, mas aqui depende ele do poder/Estado não só por omissão (i.e. “se a censura deixar”) mas também por ação. Não tenhamos ilusões: o “mercado” não gerará jamais as condições para que um filme como 1 Texto publicado na revista Filme Cultura, n. 44, p. 107-9, abr./ago. 1984 2 Os nomes mais respeitáveis não ficam livres destas incursões sem base. Ao final da minha gestão, tive uma troca de canas com Carlos Drummond de Andrade, a qual revelaria, a meu ver, uma visão distorcida do nosso maior poeta em relação a alguns problemas do cinema brasileiro. Mas isto seria matéria para outro ensaio. / 235 O mágico e o delegado - como de resto dezenas de outros títulos seja produzido. Só uma política cultural do Estado pode fazê-lo, no caso, fez. Mas até hoje ela não se revelou capaz de garantir que tais filmes possam ser efetivamente vistos. O que torna inócuo o passo inicial. Este não é um problema da atual administração. E um problema estrutural que transcende qualquer gestão. Glauber Rocha se queixaria amargamente de que A idade da terra tivesse permanecido um ou dois dias em cartaz no cine Guarany (hoje - o que não deixa de ser irônico - batizado com seu nome), enquanto outras produções, rodas fadadas ao êxito em qualquer circuito, aí permaneceriam quatro ou cinco semanas. Na época, eu dirigia a Embrafilme e não soube responder à queixa/crítica que Glauber fez por carta. Não sei se teria condições de fazê-lo agora. Mas estou certo de que uma reflexão muito mais profunda do que a que foi feita até hoje é necessária para garantir aos “mágicos” o direito de enfeitiçar suas platéias potenciais. Isto, é claro, se o Delegado deixar. 236 \ \ Depoimento1 / Julio Bressane Fernando foi um mestre muito longevo para mim. Fui conhecê-lo em meados dos anos sessenta, quando ele me chamou para ser seu assistente em Viagem ao fim do mundo. Eu participei da primeira parte da filmagem, depois as gravações foram interrompidas e só retornaram uns dois anos depois. E eu aprendi muito com ele. Mas só fui perceber isso depois, talvez porque naquele tempo eu não estivesse alerta, ou educado, preparado o suficiente para perceber o que estava acontecendo, aquela maneira extraordinária de filmar, de criar, que Fernando tinha, e que me influenciou muito depois. Porque Fernando tinha uma maneira muito pessoal de fazer cinema: ele envolvia toda a equipe, os atores, os assistentes, os fotógrafos, na criação da cena que ia ser filmada. Para ele era muito importante esse trabalho em equipe. Muitas vezes vi ele filmando o que estava sendo ensaiado, e então, de repente, já tinha uma cena pronta. As coisas que ele queria já tinham sido ditas. Essa maneira de filmar era muito distinta da cartilha de aprendizagem do cinema convencional. O resultado também é impressionante: o Viagem ao fim do mundo é um dos melhores filmes do cinema brasileiro. É um filme de invenção absoluta. Já é possível ver nele o cinema debruçado sobre si mesmo, 1 Texto publicado em CAMPOS, Fernando Coni. “Cinema: Sonho e Lucidez”. Rio de Janeiro: Azougue, 2003. / 237 se refletindo. Uma parataxe muito viva no filme, que convive com um lado espiritual. E tudo isso acabou sendo muito deflagrador para o meu cinema, o que só mais tarde fui perceber. 238 \ \ Fernando Coni Campos / 239 \ Cinema e vídeo indígena como estratégia de afirmação cultural, social e política dos povos originários da Bolívia / Iván Sanjinés Saavedra - CEFREC Bolívia E é que se evidencia um diálogo interessante entre dois campos distintos em que os povos originários da Bolívia ganharam uma presença significativa. Um deles é composto por um governo indígena que teve que aprender a administrar e a renegociar valores e princípios. O outro, em menor escala, é uma iniciativa de comunicação que propõe construir espaços próprios nos meios e mensagens e representar a realidade a partir dos povos indígenas originários; iniciativas nas quais os protagonistas não são profissionais formais com estudos universitários e com títulos, mas representantes comunitários transformados em comunicadoras e comunicadores que estão sob a orientação de suas comunidades e que se atrevem a enfrentar desafios diante das necessidades de suas organizações. Em ambos campos, as noções de vivência, empoderamento, ideologia e política próprias são determinadas como elementos emocionais e mobilizadores através dos quais formas diferentes de fazer política são introduzidas, construídas, feitas visíveis, negociadas e, inclusive, legitimadas. Já há mais de 15 anos, com o impulso das Confederaciones Nacionales Indígenas Campesinas da Bolívia,1 se tem trabalhado na concretização de um Plano Nacional Indígena de Comunicação Audiovisual, uma experiência autônoma a partir da necessidade e visão política estratégica das Organizaciones Indígenas de Bolivia, ao 1 Confederación Sindical Unica de Trabajadores Campesinos de Bolivia, CSUTCB; Confederación de Pueblos Indígenas de Bolivia CIDOB; Confederación Sindical de Comunidades Interculturales de Bolivia CSCIB y desde 2004 la Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originarias de Bolivia Bartolina Sisa y el Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qollasuyo, CONAMAQ. 240 \ lado do CEFREC, Centro de Formación y Realización Cinematográfica e da Coordinadora Audiovisual Indígena Originaria de Bolivia, CAIB. O Plano nacional está sendo transformado, desde 2006, em um Sistema Nacional de Comunicación Indígena Originario y Campesino. De onde vem essa experiência, de que reflexões se alimenta? O que acontece quando indígenas e camponeses decidem assumir o desafio da construção de uma comunicação audiovisual própria? Que objetivos se apresentam quando se propõe uma difusão ampla da imagem indígena?. O Plano Nacional Indígena de Comunicação Audiovisual São comunicadoras e comunicadores das terras altas e baixas, do Chaco, da Amazônia ou do Altiplano que desde 1997 – munidos primeiramente com televisores e motores, depois com projetores de vídeo – vêm percorrendo as comunidades e chegando aos lugares mais distantes para estabelecer pontes de diálogo entre as culturas, de reflexão e de análise; liames de fortalecimento da própria identidade, de reflexão sobre a realidade e de busca de um caminho, da possibilidade de futuro em comum, usando câmeras de vídeo para testemunhar a recuperação e fomento de seu patrimônio vivo, assim como o resgate da memória histórica e cultural.. Esse processo procura estabelecer o acesso amplo ao uso de meios e recursos de comunicação e informação para a concretização das necessidades indígenas, proclamando o direito à comunicação, assim como o direito a serem protagonistas ativos da sociedade nacional e não objetos ou receptores passivos dos meios estabelecidos, propiciando a capacitação, o treinamento e a criatividade indígenas em um marco comunicativo estratégico. Trata-se de um processo integral e que implica constante avaliação e planejamento, assim como metas de médio e longo prazo. Constitui / 241 uma proposta cultural, mas também política, identificada com a luta dos povos indígenas e camponeses e enraizada em seus processos internos de reflexão, na afirmação de identidade, na demanda e necessidade de contato com a sociedade não indígena.. Ultimamente, estamos incursionando por emissões via rádio e fazendo uso das Nuevas Tecnologías de Información y Comunicación (NTICs), com o estabelecimento de páginas web e com uma maior aproximação a outras experiências nesse campo. Hoje existem Sistemas Regionais em várias zonas do país, como em Santa Cruz, Beni (Amazônia) ou ao norte de La Paz, onde se localizam Centros de Produção e Capacitação, e também Unidades de Televisão e Rádio, como a Radio Pedro Ignacio Muiba – emissora de maior alcance e potência da região amazônica, criada em 2009 – assim como o Departamento de La Paz, onde está o Centro de Comunicación Comunitaria, sede do Canal 11 Comunitario Regional, criado em 2003 (primeira televisão indígena comunitária da Bolívia) e da Radio Comunidad (criada em 2008). A produção audiovisual indígena Geramos processos integrais de produção de materiais audiovisuais com base em um trabalho teórico/prático no qual se sobressai uma metodologia de “aprender fazendo”. Por meio desses processos, fortalecemos os esforços dos povos indígenas no uso das tecnologias de informação e comunicação com o intuito de apoiar o fortalecimento de suas culturas, sua autorrepresentação, recuperação e difusão de sua própria imagem e imaginário. Nesses processos, o trabalho coletivo tem um papel fundamental, de compartilhamento permanente com a comunidade que, além de participar na elaboração dos roteiros, atua e contribui na produção. Durante e depois das oficinas, os comunicadores e comunicadoras 242 \ sugerem histórias, temas e idéias, muitas das quais são desenvolvidas posteriormente em filmes documentários e de ficção e também em programas de televisão. A maioria dos filmes e programas centramse na documentação ou recriação de aspectos tradicionais, políticos ou históricos da vida dos povos indígenas. Até o momento, foram elaboradas mais de 400 produções em gêneros como documentário, ficção, docuficção, vídeo educativo, vídeo carta, entre outros; além de mais de 600 programas de televisão. Materiais de ficção ou documentais resultam de um trabalho coletivo entre indígenas e camponeses de diferentes culturas, de um processo de reconhecimento entre uns e outros, que se complementa com sessões noturnas de projeções em comunidades que, em muitas ocasiões, estavam tendo seu primeiro contato com a magia do cinema e, muitas vezes, através do testemunho de sua própria imagem... Quando foi gravado o longa-metragem de ficção El Grito de la Selva, produzido em 2008, que trata do tema da presença de empresas de gado e madeireiras em território indígena e da organização e luta dos povos indígenas em defesa de sua terra, combinavam-se gravações de dia e projeções durante a noite, a partir das quais se tratava tanto do que se havia registrado para obter o olhar crítico da comunidade e suas sugestões, como da melhora dessa ou daquela cena. Esse que constitui o primeiro longa-metragem de ficção produzido por uma equipe indígena na América Latina, teve uma ampla difusão em toda Bolívia e foi um dos materiais mais utilizados para a reflexão sobre os direitos indígenas, tanto nas comunidades como em muitos espaços nas áreas urbanas. Construindo meios e linguagens próprias Uma motivação central para trabalhar uma estratégia ampla de produção audiovisual na Bolívia teve relação com a escolha dos tipos / 243 de mensagens e formatos que seriam aqueles que se adequam mais às necessidades comunitárias.. Nesses 14 anos, existiram muitos espaços de reflexão e de experimentação, por exemplo, através do trabalho com a vídeo carta e do intercâmbio de mensagens entre comunidades e culturas, ou entre regiões, como uma nova visão do educativo. Assim foram trabalhadas mensagens criativas com base em exemplos concretos, desenhos, maquetes, música, canções, etc. Do mesmo modo, muitas produções argumentativas foram trabalhadas, sobretudo porque esse gênero foi o que teve mais sucesso e entrada nas comunidades, já que reflete uma tradição de oralidade com uma rica e permanente transmissão de histórias, mitos, contos e que continua com a facilidade de representação e encenação que descende do cerimonialismo e ritualismo indígenas. Dessa experiência fazem parte filmes que começaram a ganhar prêmios internacionais, ainda que não tivessem sido feitos para festivais. Muitos clips musicais também foram elaborados e mais tarde surgiu o desafio da televisão. Foi importante responder à necessidade de favorecer a presença dos mais de 30 diferentes idiomas indígenas, se bem que em alguns casos também evitando, na medida do possível, abusar da legendagem (pela variedade de idiomas usados) com mensagens que tentam, de certo modo, favorecer a imagem em detrimento do texto. Nos primeiros anos, foi desenvolvido um trabalho exclusivamente focado no interior das comunidades. A reflexão sobre a necessidade da difusão externa apontou, naquele momento (idos de 1999) no sentido de que, ao darem-se a conhecer e se fazerem visíveis, os povos indígenas poderiam ser melhor compreendidos e respeitados, entendendo que a realização e difusão de vídeos é parte de um processo amplo de conscientização focado na mudança das estruturas sociais. 244 \ Mais tarde, pelo ano 2002, a chegada da televisão responderá à necessidade de maior difusão das propostas indígenas no marco sociopolítico nacional, de interpelação e divulgação ampla das culturas indígenas e de seus direitos ao resto da sociedade. Sobre a difusão e distribuição Tudo isso está integrado: os processos de formação, a produção de materiais e mensagens e sua posterior difusão, tanto nas comunidades – o que é uma preocupação central – quanto nas cidades e em diferentes espaços e meios, como a televisão, as universidades, salas de projeção acessíveis e centros educativos e culturais. Além de uma crescente produção de materiais audiovisuais e, recentemente, também de rádio, o Plan Nacional desenvolveu amplas estratégias de distribuição que incluem: campanhas para exibir vídeos nas comunidades indígenas no interior da Bolívia durante todo o ano; organização de mostras de vídeo; jornadas audiovisuais e foros públicos de reflexão nas cidades e participação em festivais regionais, nacionais e internacionais, assim como em seminários e foros de comunicação alternativa. A distribuição também é feita através de programas televisivos e de rádio, como Entre Culturas e Bolivia Constituyente.2 Por outro lado, a produção do programa televisivo Entre Culturas – primeiro programa indígena na televisão boliviana iniciado em 2002 e que se emite até hoje semanalmente– é feita com a contribuição de diferentes equipes de produção para conformar uma vitrine da realidade, cultura e mobilizações dos povos indígenas de diferentes 2 - El programa televisivo Entre Culturas se transmite 2 veces a la semana en el canal estatal nacional, Bolivia TV /Canal 7. Una de estas emisiones, llamada Bolivia Constituyente, es un programa especial con reportajes, entrevistas, debates y notas informativas alrededor del proceso Constituyente. Además, los programas radiales se transmiten en varias estaciones comunitarias, estatales y nacionales. / 245 regiões da Bolívia. Tendo como base a produção de documentários e reportagens, constituíram-se em uma escola e um berço importantes para o treinamento e produção documental e televisiva. Perspectivas deste trabalho na Bolívia Acreditamos que esta iniciativa, sem dúvida, contribuiu para que atualmente o movimento indígena na Bolívia tenha conseguido chegar ao poder, dando outro enfoque para governar, e também para transformar o sistema tradicional em um sistema social e político – antes sempre postergado – que garanta uma participação mais ativa dos diferentes setores na tomada de decisões, de acordo com suas realidades culturais e em função de um autodesenvolvimento integral. Acreditamos nisso, ainda que o processo boliviano tenha um longo caminho pela frente no sentido de vencer os nós das estruturas coloniais e constituir-se em uma alternativa de transformação e de uma nova forma de relação entre as pessoas, coletivos e a mãe terra para concretizar o Viver Bem. Nesse sentido, é importante refletir sobre o vídeo indígena – que tem um importante exemplo na Bolívia – como um novo gênero de produção intelectual que foi sendo constituído buscando superar as limitações da leitura/escritura, que se rebela contra as amarras impostas pela lógica ocidental cartesiana e no qual os conhecimentos tradicionais se reinterpretam e se reavaliam constantemente. Dessa maneira, desde processos coletivos de reflexão e criação, o vídeo indígena foi marcando o final da hegemonia de um certo alfabeto e começando a descolonizar as tecnologias do intelecto. Desse modo, também se vão gerando conhecimentos sustentáveis através de um processo coletivo, audiovisual e oral. Tudo isso em um marco que fala de diálogo intercultural verdadeiro entre iguais que reclamam respeito pelas culturas indígenas e um diálogo franco 246 \ entre as mesmas culturas originárias, sempre desde um ponto de partida de rejeição à exclusão e à marginalização e da exigência de maior participação e respeito pleno aos direitos indígenas, e que já propunha abertamente a necessidade da descolonização, muito antes da chegada do Governo de Evo Morales. Hoje trabalhamos na concretização do Sistema Plurinacional de Comunicación Indígena Originario Campesino e preparamos o terreno para o nascimento da televisão nacional indígena, resultado da somatória de esforços e espaços de trabalho já constituídos, realizando cada dia um pouco mais o sonho cujo marco se estabeleceu em 1996; sonho de construir um cinema próprio, uma comunicação a serviço das comunidades. Tradução: Alessandra Carvalho / 247 \ Vídeo comunitário e autorrepresentação / Entrevista com Carlos Efraín Pérez Rojas Por: Gabriela Zamorano, Assistente de Programas Latino americanos, Centro de Cine y Video, NMAI O começo em Oaxaca GZ: Como surgiu seu interesse em fazer filmes e por que é importante para a sua comunidade e para sua organização que haja indígenas fazendo cinema e vídeo? CP: Meu encontro com o vídeo foi a partir de um chamado de sangue. Minha mãe é de Oaxaca, mas deixou a comunidade quando era muito pequena. Então, eu cresci ouvindo os contos e histórias de minha mãe sobre seu povoado. Quando terminei a fase preparatória na escola, comecei a ter muito interesse em conhecer minha família de Oaxaca. Foi então que iniciei uma busca com o objetivo de me reencontrar com o povoado de minha mãe, com sua história; e também com a intenção de conhecê-la melhor. Quando cheguei ema Oaxaca, conheci TV-Tamix [primeiro projeto de comunicação comunitária em Tamazulapám Mixes, Oaxaca]. Esse foi meu primeiro encontro com o vídeo. A partir dele, começou a despertar em mim muita curiosidade pelo vídeo. Na verdade, tudo começou como uma curiosidade pela tecnologia do vídeo, por essa ferramenta; e também fui contagiado pelo entusiasmo e pela experimentação dos que, naquele tempo, trabalhavam na TV-Tamix. GZ: Você pode falar um pouco sobre TV-Tamix? O que é? Como surgiu? 248 \ CP: A TV-Tamix é uma organização comunitária que surge em 1994 e que se dedicou a fazer rádio e televisão comunitária em Tamazulapám. Lá contávamos com um transmissor de televisão de 10 watts de potência. E desde lá, todo fim de semana transmitíamos alguns programas: um que se chamava Espacio Sagrado e outro que eu mesmo fiz mais tarde, e que se chamava Hoy en la Comunidad. Esse era um programa com crianças. GZ: Eram programas de rádio? CP: De televisão. Também eram feitos documentários sobre os costumes e tradições da comunidade. O encontro que tive com a TV-Tamix me iniciou na realização de documentários. Trabalhando na TV-Tamix fiz câmera para alguns documentários como, por exemplo, o de Këdukj adj (Servir al Pueblo), Permaneciendo (Hoy en la comunidad), e também para esse programa de televisão que eu fazia com as crianças da comunidade. Mas sinto que a experiência que tive na TV-Tamix foi mais como um primeiro contato, no sentido de entender o uso que pode ter o vídeo numa comunidade indígena. Então, eu me somei ao esforço que a TV-Tamix estava fazendo de difundir, por meio do vídeo, a cultura dos Mixes. Resumindo, esse foi o primeiro uso que dei ao vídeo estando em Oaxaca. Mas foi em Chiapas onde me envolvi cem por cento com o vídeo e isso teve a ver com a proposta dos municípios autônomos em resistência. Isso só aconteceu quando fui trabalhar com o projeto Promedios de Comunicación comuni pela autorrepresentação GZ: Como você desenvolveu essa semente, o potencial do uso do vídeo em uma comunidade indígena, estando em Chiapas? Era uma pergunta concreta ou era algo, no vídeo, que te emocionava? Para que serve o vídeo nas comunidades indígenas? / 249 CP: Quando eu cheguei a Chiapas era uma só uma faísca, ainda prevalecia a curiosidade de conhecer o meio. Mesmo já tendo participado em alguns documentários, ainda não tinha muita certeza sobre aonde podia chegar com o vídeo. Estou falando isso de Chiapas porque cheguei lá para dar oficinas de capacitação a pessoas de comunidades, trabalhando com elas e com as autoridades zapatistas. E, ao conviver com eles, conheci a abordagem que estavam dando ao vídeo e achei importante: o vídeo como uma ferramenta de denúncia a violações dos direitos humanos. Esse era um dos objetivos que eles se propunham naquele momento para o uso do vídeo. Havia uma parte muito importante que girava em torno à defesa e denúncia. Acho também que, naquela época (falo de mais ou menos 1998) a guerra de baixa intensidade era um pouco mais crua com relação aos municípios autônomos do que é agora. Talvez seja arriscado afirmar isso, mas o contexto era diferente. Então, fui por esse caminho. Tem um vídeo que fiz para a Red de Defensores Comunitarios, de uso interno, que utilizaram para capacitar e conscientizar comunidades. E, mais adiante, começamos um trabalho coletivo do qual fiz parte, sobre como vincular o vídeo ao processo de autonomia nos municípios indígenas de Chiapas; como ver isso funcionando já como um meio nas mãos das comunidades indígenas, um meio que pudesse ter diferentes usos, além da denúncia e da defesa e que, na minha opinião, teria a ver com o direito à autorrepresentação. O que discutimos a partir disso é a importância de que os povos indígenas contem com seus próprios meios para, desde aí e em primeiro lugar, reivindicar seus direitos como povos e para, em segundo lugar, poder representar-se da maneira como quiserem. Acontece que, estando em Chiapas, víamos que chegava muita gente de fora das comunidades para fazer filmes, documentários, escrever 250 \ livros, fazer fotos, rádio, música, o que eu acho muito importante e que foi muito importante para o movimento zapatista. Mas víamos a necessidade de que também os povos indígenas de Chiapas contassem sua história com sua própria voz e com seus próprios meios. GZ: Isso que você diz sobre a autorrepresentação tem referência com a outra pergunta: por que é importante para sua comunidade, para sua organização ou para o projeto no qual você participa que haja indígenas fazendo cinema e vídeo? Você pode falar mais sobre o direito à autorrepresentação? Quais são as vantagens ou problemas que você vê nesse conceito? CP: Bem, na minha opinião, o trabalho que os povos indígenas de Chiapas estão fazendo não substitui a expressão das pessoas de fora que chegam nessas comunidades. O vídeo é como uma olhada, como uma voz muito importante para poder compreender a complicada realidade dos indígenas, não só de Chiapas, mas também em nível nacional. Por exemplo, para mim, um dos vídeos que eu acho mais importantes dos feitos em Chiapas é Mujeres Unidas, não sei se você viu. Esse vídeo foi feito pelo Município 17 de Noviembre e foi feito porque, naquela época, estavam dando palestras em todas as comunidades do Município sobre a importância das mulheres se organizarem. Elas se organizavam para trabalhar na horta, nos campos de milho e com o feijão. E tiveram a ideia de fazer um vídeo sobre uma comunidade que já estava organizada e funcionando bem para mostrá-lo às outras, onde não havia organização, e assim poder motivá-las. Na minha opinião, esse trabalho é uma experiência bem importante de como o vídeo pode, além de ser uma projeção para os de fora, ter um uso comunitário. GZ: Como um diálogo direcionado às questões internas? / 251 CP: Exato. Vou me enfocar um pouco no caso de Chiapas. Os vídeos que vi feitos por gente de fora estão enfocados nos ícones: no subcomandante, no EZLN [Ejército Zapatista de Liberación Nacional]. E se você os compara com um vídeo realizado por uma comunidade indígena, vai ver que as pessoas que aparecem nele são as de bases, as que estão lá todos os dias vendo o campo de milho, pessoas que não andam com seu gorro ninja nem com sua arma nas costas. Por um lado, para mim o importante de que eles estejam se autorrepresentando é poder mostrar uma faceta do movimento que não se conhece e que, às vezes, acho que nem se quer conhecer, em parte porque o movimento foi bastante idealizado, não é? Novos Direcionamentos GZ: Como você vê seu próprio papel dentro desse processo chamado “vídeo indígena”? CP: Vamos ver se conversando com você eu entendo melhor, porque eu também estou me perguntando. Porque eu me vejo como um... “ativista do vídeo”, por assim dizer. Porque, como você disse, a maior parte do meu trabalho foi capacitar e assessorar comunidades indígenas para que eles realizem vídeos. E ainda que eu também tenha feito documentários, só fiz sobre movimentos sociais. É um tema que eu gosto e com o qual assumi um compromisso. De fato, cada vídeo que fiz – fiz três – são compromissos assumidos com organizações sociais. Algo muito importante e que é necessário dizer é que nas comunidades indígenas não só tem fome, pobreza, dor, mas também propostas. Propostas muito criativas em termos políticos, sociais, econômicos, culturais. E voltando ao tema da autorrepresentação, já vi que representam os índios, em muitos casos, como vítimas, não 252 \ é? O olhar está sempre focado no huarache, ou no menino pelado ou sujo. Eu acho esse olhar muito estreito com relação ao que está acontecendo no interior das comunidades. E, por um lado, o fato de que as comunidades indígenas estejam se mostrando por si mesmas é muito digno. E isso é o que eles falam. Eu pude participar em alguns vídeos feitos em Chiapas e quando as autoridades falavam com o responsável pelo vídeo, que era alguém da comunidade pago para isso, diziam: “faz aí, mas a gente quer aparecer bem na fita”, “que nos mostrem bem fortes”. Porque se os mostrávamos fracos e chorando os outros diriam: “esses Zapatistas não são de nada.” O trabalho que faço sobre os movimentos sociais dos povos indígenas tem a ver com as propostas em nível nacional e também com a situação interna das comunidades. Claro que estou falando dos problemas que existem, mas sempre vou dar uma mensagem que propõe esperança. Porque a ideia é como o vídeo, pode despertar a solidariedade nas pessoas que estão assistindo. Para mim é algo que acompanha o filme: provocar uma reação. Então, no momento me considero um ativista do vídeo. Quando ganhei a bolsa Rockefeller me diziam que eu era um realizador, me faziam acreditar que era um artista. A minha verdadeira crença e o que ultimamente tem me tocado muito é que me parece importante que se façam documentários com um enfoque social, com compromisso social. Mas também percebi que, incluindo meus vídeos, em termos audiovisuais estamos muito longe da criatividade com que as comunidades se organizam e se movimentam. Vejo meus vídeos e os de outros realizadores sobre esses temas e percebo que, muitas vezes, são muito frios, muito quadrados. E o que eu quero fazer agora é poder captar a criatividade que é característica dos movimentos sociais do México. / 253 GZ: Isso soa como um objetivo... CP: É, porque, por um lado, acho que muitos espaços se abriram para o que se chama “vídeo indígena”. Eu não o chamaria assim... na minha opinião é como um vídeo comunitário porque, em quase todos os vídeos – acho que poderia afirmar que em todos – tem um grau de participação da comunidade. As pessoas que eu conheço sempre participam com a comunidade, seja para decidir o tema, na produção, na edição ou em algum momento da realização. E, para mim, esse é o jeito como decidi trabalhar, retomando a coletividade das comunidades, retomando essa forma de trabalho. GZ: Você acha mais interessante reforçar o fato de que é um produto comunitário ao invés de um produto indígena? CP: Sim, sobre isso já se falou um pouquinho. Uma vez estive numa palestra dada por Guillermo [Monteforte] no primeiro Encuentro Hispanoamericano de Video Independiente: Contra el silencio todas las voces. Convidaram Guillermo para falar sobre vídeo indígena. Me lembro que ele dizia que, naquele momento, para ele, não havia vídeo indígena porque, como ele o concebia, era como toda uma expressão e que esse nome não podia estar determinado só pelo fato de que são vídeos feitos por pessoas de uma comunidade indígena. Foi uma palestra muito bonita. Estávamos Guillermo Roberto [Olivares] e eu. Então, eu pensei que algo parecido tinha acontecido com as bandas filarmônicas, a música de instrumentos de vento que chegou da Europa e através da Igreja. Na Serra Mixe está documentado que os primeiros mixes tocaram música soprada com instrumentos europeus para celebrar uma missa. Naquele tempo eram até celebradas em latim. Logo aprenderam a tocar marchas, valsas, aberturas e tudo mais. Mas eles foram “pegando” esse instrumento de procedência europeia e houve um momento em que 254 \ começaram a fazar sua própria música e de lá vem os sones e jarabes mixes, chinantecos, zapotecos. Se apropriaram do instrumento e expressaram suas histórias, suas vidas, suas imagens e sons. Então, nesse encontro, eu dizia que é a mesma coisa o que está acontecendo com o vídeo nas comunidades indígenas, que estamos tendo acesso, ou seja, tivemos a chance de acessar essa tecnologia e estamos num processo de aprendizagem. Vai chegar um momento em que isso será uma expressão própria. Eu queria alcançar isso, e por esse motivo o vídeo sobre movimentos sociais – que é frio, quadrado, com a voz em off – ainda que seja muito importante, me parece que falta criatividade. Eu acho que o termo “vídeo indígena” está mais para o discurso dos antropólogos que fazem vídeo, ou dos cineastas que fizeram vídeo sobre populações indígenas. Acho que alguns dos objetivos era preservar, difundir. São objetivos importantes, mas a verdade, pela minha experiência e pelo que vejo na TV-Tamix, é que não os alcançamos. GZ: Ou que estão reformulando esses objetivos? CP: Exato. De fato chegamos a um ponto em que achamos que já basta de bater na mesma tecla e que devemos fazer coisas mais voltadas para os nossos sentimentos, de expressão mais individual. É o que você falou: repensar. GZ: Então, boa sorte com essa busca. CP: Sim, agora estou vendo que vou ficar aqui em Guerrero um ano ou mais e já estou pensando no que vou fazer no próximo ano. E algo que eu gostaria de fazer é juntar o Gordo [Hermenegildo Rojas], o Charapa [Carlos Martínez], o Noé [Aguilar], e também me incluir nesse grupo. Nos juntarmos uns dois dias para fazer um roteiro / 255 no qual cada um possa viajar e soltar-se. Que seja mais como uma criação livre, sem convencionalismos, e que a gente comece a trabalhar nisso. É que eles são uns talentos natos: o Gordo é um bom músico, faz bons vídeos; Genaro é uma pessoa muito querida e Charapa é louco por computadores. E eu, acho que não me saio mal com a câmera. Então poderíamos formar uma equipe interessane. Tradução: Alessandra Carvalho 256 \ \ Fora da ótica indígena: zapatistas e realizadores autônomos. / Alexandra Halkin1 O trabalho com o vídeo realmente nos comoveu: tem grande importância para ajudar a construir a nossa história indígena. Dá para ver que seremos capazes de fazer muitas coisas pelo nosso bem-estar e pelo futuro de nossos filhos. (Estella, videasta zapatista, abril 2003.) Este é um artigo sobre a importância dos meios de comunicação indígena – tanto em termos de produto como de processo – que oferece um modelo para fazer um meio de comunicação indígena de “boa prática”, cooperativo, transnacional.2 Estas observações baseiam-se em minha experiência pessoal com o Chiapas Media Project (CMP)/ Promedios, uma ONG binacional que provê comunidades indígenas de Chiapas e Guerrero, no México,3 de vídeos, computadores e treinamento. CMP/Promedios treinou mais de 200 índios, homens e mulheres, na produção básica de vídeos, construiu e equipou cinco Centros Regionales de Medios de Comunicación no território zapatista com produção digital de vídeos, pós-produção, áudio e acesso via satélite à Internet; permitiu a produção de 22 vídeos de distribuição internacional e forneceu os meios para a produção de centenas de vídeos utilizados em âmbito interno pelas comunidades indígenas de Chiapas. Sou fundadora, anteriormente diretora e, no momento, coordenadora do Chiapas Media Project/ Promedios. Não acredito – e tampouco é minha intenção afirmar– que CMP/ Promedios seja o único instrumento para facilitar e promover os 1 Documentarista, ex-diretora e atual coordenadora internacional do Chiapas Media Project. 2 Meu agradecimento a Shayna Plaut, que me ajudou a editar este artigo. 3 Em 2000, começamos o trabalho em Guerrero com a Asociación de Campesinos Medioambientalistas de la Sierra de Petatlán. / 257 meios de comunicação audiovisual indígena. Ao contrário, espero compartilhar minha história, incluindo os equívocos, durante os últimos 10 anos, para incentivar outras pessoas no intuito de que se unam a essa luta. Utilizo a palavra “luta” muito conscientemente, já que qualquer pessoa envolvida na mudança social – como um artista, um acadêmico, um ativista ou todos os anteriores – devem estar conscientes do papel que representam na defesa dos Direitos Humanos, especialmente no que diz respeito à apresentação dessas realidades. Neste artigo, enfatizarei os contextos nos quais os meios de comunicação operam como agentes de mudança social: local, doméstica e global. Fui documentarista por mais de 25 anos e, muito cedo em minha carreira, entendi o poder dos meios de comunicação na criação de mudança social. Produzi vídeos sobre a AIDS, sobre os direitos reprodutivos da mulher, sobre desemprego e desapropriação, além de vídeos feitos em Cuba. Através da minha carreira cheguei à conclusão de que os documentários não estão focados só no produto final, mas também no processo. Isso se fez mais claro no final do ano de 1980 quando vi uma pequena produção do Video Sewa, uma organização sediada em Ahmedabad, India, que usa o vídeo como um meio para dar maior poder a mulheres analfabetas, desempregadas ou camponesas autônomas. O vídeo foi filmado por uma mulher que tinha pouca experiência na produção de filmes, portanto a qualidade era pobre. Mas havia algo nas imagens que me tocava. Ficava claro que a diretora não era uma estranha apresentando a história de outra pessoa, mas alguém fazendo um documentário sobre sua própria experiência. Ver esse vídeo me deu a ideia do poder que significaria dar a pessoas marginalizadas acesso à tecnologia audiovisual para que contassem sua história; uma história que não poderia ser contada por mais ninguém. 258 \ Os Zapatistas “Somos índios de diferentes línguas e culturas, descendentes dos antigos povos Maias. Os índios de Chiapas e todos os índios do México sofrem grandes injustiças – saques, humilhação, discriminação e marginalização – há muitos séculos; muitas pessoas em outros lugares do mundo também vivem na mesa situação, na América e também em lugares mais distantes, como consequência da violenta conquista espanhola e, posteriormente, das invasões norteamericanas. Ficamos na mais completa miséria, a ponto de sermos exterminados. Razões que nos obrigaram a que nos levantássemos em armas em 1º de janeiro de 1994 para dizer ‘basta’”. (Comandante David, Oventic, Chiapas, 2003) O Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN/Zapatistas) é uma organização indígena Maia sediada em Chiapas, México. No dia 1º de janeiro de 1994, o EZLN declarou guerra ao Governo mexicano em um levante armado que tomou mais de seis povoados em Chiapas. A razão desse levante foi o fato de que os índios, seus direitos e sua cultura, não eram reconhecidos pela Constituição mexicana e, portanto, eram tratados socialmente e através das leis como cidadãos de segunda classe. A eles eram (e são) negados os direitos garantidos a todos os mexicanos pela Constituição do país. É significativo que os zapatistas tenham escolhido o dia 1º de janeiro de 1994 para o levante, já que essa foi a data em que o Tratado Norte- Americano de Livre Comércio (NAFTA) começou a ter vigência. Sendo essencialmente agricultores, o prospecto do NAFTA teria um impacto significativo na vida dos indígenas de todo México e, mesmo assim, suas preocupações não foram levadas em consideração e sua opinião tampouco foi solicitada.4. 4 O EZLN disse que o NAFTA não beneficiaria os indígenas em particular, nem os pobres de maneira geral, no México. Infelizmente essa previsão tornou-se verdadeira. / 259 Os meios de comunicação sempre foram parte do “arsenal” zapatista. De fato, nos dias que seguiram-se ao levante, os zapatistas (via partidários simpatizantes) usaram a Internet para transmitir sua causa ao mundo. Esse uso estratégico dos meios de comunicação foi para fazer um chamado à sociedade civil internacional no sentido de unirem-se a eles na construção de um novo mundo. Essa apropriação da internet gerou muito interesse internacional e uma investigação em nível global a que, frequentemente, se dá o crédito de ter forçado o governo mexicano a uma trégua,12 dias mais tarde, e a uma negociação com os zapatistas. Mapeando o território Desde 1994, os zapatistas chegaram a ser um “espetáculo”, gerando desde teses de doutorado a conferências e letras de rock.5 Baseandose na grande quantidade de pedidos de entrevistas, visitas oficiais e acesso às comunidades, nossa organização teve que criar um mecanismo para filtrar e controlar nosso tempo e concentração. Apreciamos o interesse no nosso trabalho, mas lutamos para assegurar a reciprocidade. “O que pedimos aos que não são zapatistas, aos que não estão de acordo conosco ou não entendem a justa causa de nossa luta é que respeitem nossa organização. Que respeitem nossas comunidades e municípios autônomos e suas autoridades. E que respeitem as Juntas de Buen Gobierno de todas as regiões, de todas as zonas, que a partir de hoje ficam formalmente constituídas sob o testemunho de milhares de irmãos e irmãs indígenas e não indígenas do México e de muitos países do mundo.” (Comandante David, Oventic, Chiapas, 2003) 5 Uma recente pesquisa no Google usando a palavra “zapatista” mostrou uma lista com 649.000 registros, 740.000 para a sigla “EZLN”. 260 \ Nem todas as comunidades indígenas em Chiapas são zapatistas. As comunidades com as quais trabalhamos são as que se identificam claramente com o zapatismo, também conhecidas como “comunidades civiles zapatistas”, e que se distinguem do braço armado dos zapatistas, o EZLN. Essas comunidades se organizam via autoridades locais, regionais e municipais elegidas através de consenso popular. Elas também têm um sistema de rodízio de governo, as Juntas de Buen Gobierno, que tratam de todos os assuntos relativos à tomada de decisão em seus municípios autônomos. Os membros das Juntas de Buen Gobierno são substituídos a cada 15 dias e são pessoas das comunidades que fazem parte de cada município autônomo. Em algumas regiões, as Juntas de Buen Gobierno tiveram tanto êxito ao mediar conflitos locais (roubo de gado, disputas de terras, etc.) que agora são citadas pelo Gobierno Judicial Local mexicano para mediar questões entre indivíduos zapatistas e não zapatistas. Existem outras comunidades que são partidárias dos zapatistas, mas que não se identificam como tal. No outro lado do espectro estão as comunidades não zapatistas que podem variar de comunidades que se identificam com partidos políticos (PAN, PRD, PRI) a comunidades que apoiam, abertamente, os paramilitares. Muitas dessas organizações paramilitares recebem apoio de fazendeiros locais e, em muitos casos, do Estado e de fundos federais.6 Esse contexto sociopolítico mais amplo é essencial para entender o ambiente em que a CMP/Promedios opera. Em dezembro de 1997, um mês antes de que se fizessem as primeiras oficinas, 45 6 O papel dos paramilitares é promover uma constante ameaça de violência e desestabilização nas comunidades zapatistas. O governo mexicano manipula a situação como se tudo se tratasse de um eterno conflito entre as comunidades ao mesmo tempo em que instiga as cisões internas. / 261 indígenas, na maioria mulheres e crianças, foram assassinados pelas forças paramilitares treinadas pelo governo, ação que é conhecida hoje como o Masacre Acteal. Ao mesmo tempo, o governo mexicano começou a expulsar estrangeiros de Chiapas, incluindo pessoas que trabalhavam pelos Direitos Humanos, com o pretexto de violação da Constituição e por envolverem-se na política interna7. Envolvimento pessoal “Com o propósito de criar um diálogo intercultural – desde o âmbito da comunidade até o âmbito nacional – que possa permitir uma relação positiva entre a variedade de grupos indígenas e entre esses grupos e o resto da sociedade, é essencial dotar essas comunidades de seus próprios meios de comunicação, que também funcionam como mecanismos chave para o desenvolvimento de sua cultura. Portanto, será proposto às autoridades nacionais respectivas que elaborem novas leis com relação às comunicações que possam permitir que os povos indígenas adquiram, operem e administrem seus próprios meios de comunicação.” (Artigo III dos Acuerdos de San Andrés)8 Foi nesse ambiente e com uma, aparentemente impenetrável, capa de censura que os zapatistas reconheceram o poder dos meios de comunicação. Esse era também o ambiente que eles necessitavam para contar sua própria história. Na primavera de 1995, estava 7 Tom Hansen, assessor da CMP/Promedios no seu começo, foi sequestrado e expulso pelas autoridades mexicanas de imigração durante a chegada de uma delegação que trazia equipamento de vídeo para Ejido Morelia em fevereiro de 1998. 8 Os Acuerdos de San Andrés foram documentos assinados entre os zapatistas e o governo mexicano em 1996. Embora os acordos nunca tenham sido reconhecidos pela constituição mexicana, as comunidades zapatistas os utilizaram como um marco para o trabalho, ação que assumiram desde 1996. O vídeo é um exemplo dessas ações. 262 \ produzindo um documentário para uma ONG com sede nos Estados Unidos que levava uma caravana de ajuda humanitária a uma região zapatista. Assim foi como fiz minha primeira viagem ao Chiapas. Durante a produção, terminamos numa comunidade zapatista que tinha cobertura jornalística da imprensa (nacional e internacional), com fotógrafos e câmeras de televisão e de noticiários, todos eles “capturando a história” dos representantes zapatistas e dos membros da comunidade que estavam por ali. É importante destacar que essa presença midiática não era um subproduto da luta zapatista, ao contrário, era fruto de uma intenção meditada por parte da imprensa e dos meios de comunicação (tanto em massa como independentes). Ficava bastante claro que os zapatistas tinham a história; o que não tinham eram os meios para transmiti-la por si mesmos. Enquanto os jornalistas “de fora” estavam “obtendo sua história”, muitas pessoas da comunidade se aproximaram de mim para perguntar sobre minha câmera Hi8 (onde a havia comprado, quanto custava, etc.), demonstrando um claro interesse e consciência sobre esse tipo de tecnologia. Fiquei impressionada com a organização zapatista e com seu interesse óbvio em comunicar sua mensagem ao mundo. Então pensei: aqui tem um grupo de pessoas que, com certeza, se beneficiaria ao ter acesso à tecnologia do vídeo. Antes de ir embora de Chiapas, comecei a conversar com as autoridades zapatistas no sentido de trazer a tecnologia audiovisual para as comunidades e eles se mostraram muito interessados.9 Também falei com os representantes locais das ONGs que tinham relação de trabalho com as comunidades zapatistas. Eles também se mostraram partidários da ideia. Sua relação pré-existente ajudou a facilitar nossa comunicação e nos deu credibilidade dentro das comunidades. 9 O projeto não teria sido possível sem a relação com as ONGs locais. Sempre trabalhamos muito para manter essas relações. / 263 Então, voltei aos Estados Unidos com a semente de uma ideia e também com o consentimento dos zapatistas para pô-la em prática. Nessa etapa do projeto, só imaginava uma oficina ou uma série delas numa região, nunca imaginei que chegaria a ser como foi realmente. Organizando-se “Sempre quis prover as pessoas da região zapatista com equipamentos de vídeo de maneira que eles pudessem comunicar com sons e filmes gravados por eles mesmos aquilo que está acontecendo e o que não está acontecendo no interior de suas comunidades. Estou imensamente satisfeito ao saber que isso, finalmente, vai acontecer.” (Guillermo Monteforte, primeira correspondência, outubro, 1997) Voltei ao México no outono de 1995 e, durante esse período, comecei a fazer contato com pessoas que seriam cruciais para o êxito do projeto. Através de uma série de conexões internacionais, conheci Guillermo Monteforte, um realizador e instrutor que se revelou indispensável. Guillermo estava envolvido com uma iniciativa de fundos governamentais administrada pelo Instituto Nacional Indígena (INI), uma instituição governamental que dava treinamento e tecnologia audiovisual a comunidades indígenas em todo México desde o final dos anos 1980 e começo de 1990.10 Ele também era diretor e fundador do Centro de Video Indígena (CVI), em Oaxaca, um centro criado como parte do programa INI. Guillermo não só estava familiarizado com o trabalho em comunidades indígenas mexicanas, mas também era um realizador profissional muito hábil e com uma sensibilidade especial para ensinar essas habilidades. 10 O Instituto Nacional Indígena agora é conhecido como Comisión Nacional para el Desarrollo de los Pueblos Indígenas (CDI). 264 \ Com base em muitos anos de trabalho exitoso com os realizadores indígenas e suas comunidades, Guillermo foi capaz de criar contatos para potenciais instrutores de vídeo. Naquele tempo, continuávamos pensando que isso só seria uma oficina de duas semanas. Já que ele era o expert, deixei que organizasse o programa de treinamento enquanto eu me concentrava na logística e no financiamento dos equipamentos, tal como foi requerido pelas comunidades. Nessa mesma viagem, conheci David, autoridade zapatista que vivia em Oventic (nas terras altas). Depois de ouvir nossa ideia sobre uma oficina de vídeo, mostrou-se muito interessado e entusiasmado em nos apoiar. Foi também providencial o fato de que Oventic é o Caracol zapatista mais próximo (lugar e centro de reunião para os zapatistas) ao povoado de San Cristóbal de las Casas, onde estávamos nos hospedando e onde finalmente instalamos nosso primeiro escritório.11 David nos sugeriu que entrássemos em contato com as autoridades de Ejido Morelia (localizada perto de Altamirano, nas Cañadas), cidade que estava, em média, seis horas em carro de Oventic.12 Antes de ir embora do México para os Estados Unidos, enviamos uma mensagem através de uma ONG em San Cristóbal para dizer que estávamos interessados em ter uma reunião com as autoridades de Ejido Morelia. Quando voltei aos Estados Unidos, para mim estava claro que a estratégia mIdiática dos zapatistas era um sucesso. Havia informações sobre eles em todo lugar. Rapidamente, percebi que podia utilizar esse interesse para conseguir um suporte financeiro para essa importante iniciativa. Já de volta a Chicago, decidi que a melhor maneira de garantir os fundos para essa oficina seria organizá-la como um intercâmbio cultural juvenil. Como isso 11 Caracol foi previamente conhecida como Aguas Calientes; existem cinco no total. 12 Las cañadas (cânones) foram as zonas onde as novas comunidades zapatistas se localizavam. / 265 acontecia em 1995 – só um ano depois do levante – com muitos dos meios de massa ainda retratando aos zapatistas como lutadores guerrilheiros tratando de tomar o México, senti que seria muito mais fácil conseguir, em primeiro lugar, fundos para estabelecer um intercâmbio cultural, depois equipar e treinar zapatistas como realizadores de vídeo. Atores centrais “É profundamente motivador ver gente jovem reunir-se para construir laços de amizade, cooperação e comunicação. Eu aplaudo sua visão e espero que este projeto inspire futuros intercâmbios culturais com grupos de jovens ao redor do mundo.” (Carol Moseley-Braun, ExSenadora dos Estados Unidos, carta de apoio, 7 de janeiro, 1998) Uma figura chave no recolhimento de fundos para tornar realidade esse projeto foi Tom Hansen (atualmente coordenador nacional da Red Solidaria con México) que, na época, era diretor de Pastores por la Paz, uma ONG com base nos Estados Unidos que havia estado trabalhando em Chiapas desde o levante. Tom ajudou-me a fazer os contatos para recolher fundos para o equipamento inicial. Essa primeira lista de indivíduos foi a base para prover um significativo apoio inicial e até hoje continuam sendo nossos apoiadores.13 Através de um dos contatos de Tom na Cidade do México, conheci José Manuel Pintado, um produtor de vídeo independente que havia me apresentado a Guillermo Monteforte e a Fábio Meltis, que também trabalhava com jovens indígenas na Cidade do México. Fábio me ajudou a organizar os jovens que participaram nessa primeira oficina. 13 Nossa mala direta se compõe de uma lista de pessoas a quem enviamos cartas solicitando doações duas vezes ao ano. 266 \ Outro personagem essencial na formação de CMP/Promedios foi Francisco (Paco) Vázquez, um jovem nahua das proximidades da Cidade do México que participou da primeira oficina. Paco havia estado envolvido nos projetos coletivos de sua comunidade e tinha uma sensibilidade bem formada acerca de como tratar com as comunidades de Chiapas. Sem Paco, o projeto nunca teria avançado além da primeira oficina. Quando o conheci, ele falava fluentemente o inglês – através de aprendizado autodidata – e passou a ser meu companheiro/tradutor, já que eu falava muito pouco o espanhol durante o primeiro ano e meio de projeto. Paco me ajudou a navegar na cultura indígena mexicana e a entender a burocracia do país. Foi, de muitas maneiras, meu protetor nas numerosas vezes que fui detida em barreiras de imigração e pontos de controle do Exército. Street Level Youth Media era a organização de jovens com base em Chicago com a qual entrei em contato para participar na primeira oficina. Era formada por jovens da parte central e mais povoada da cidade, na maioria chicanos. Através de Street Level consegui a isenção do imposto 501-c-3, o que foi muito útil para solicitar fundos. Por outro lado, envolver a Street Level em nossa primeira oficina foi problemático, e depois que terminou esse processo e o cumprimento do requerimento de doação, CMP/Promedios decidiu terminar a relação. Primeira oficina “Para mim é um despertar, porque nem sequer tínhamos visto equipamentos como os que estão agora nas nossas mãos. Agora vemos que podemos fazer esse trabalho.” (Emilio, primeira oficina em Ejido Morelia, fevereiro, 1998) A primeira oficina aconteceu no município autônomo de Ejido Morelia. Através de nossa rede de contatos, fomos apresentados a Miguel, que / 267 foi nossa primeira conexão com a comunidade e com as autoridades regionais e locais. Ele foi uma figura central no planejamento e na evolução do projeto. Foi através dele que começamos a compreender a estrutura de governo das autoridades civis zapatistas. Descobrimos que comunicação e logística eram muito mais fáceis quando uma pessoa da comunidade atuava como “pessoa chave”. Por causa dos grandes eventos políticos e militares promovidos pelo governo mexicano em todo território de Chiapas, demorou dois anos para que fundássemos e organizássemos nossas primeiras oficinas. O massacre de Acteal, em 1977, criou pânico dentro do grupo Street Level Youth Media e tivemos que reorganizar alguns dos nossos planos iniciais14. Em fevereiro de 1998, promovemos as primeiras oficinas binacionais como parte do nosso projeto de intercâmbio cultural juvenil com o nome de Chiapas Youth Media Project; os participantes eram da Street Level Youth Media de Chicago, o grupo de jovens indígenas que trabalhavam com Fábio na Cidade do México e o grupo de realizadores indígenas de Guillermo, vindo de Oaxaca. Essas primeiras oficinas foram realizadas com o suporte de uma doação do Fondo para la Cultura de México-Estados Unidos, com sede na Cidade do México. Chegamos a Ejido Morelia em um momento em que havia muita tensão por causa da extração ilegal de madeira e que finalmente resultou em um enfrentamento físico. Todo incidente ilustrou a dificuldade para organizar o intercâmbio cultural em áreas de muito conflito. A equipe de Street Level queria completa e constante garantia de que “nada aconteceria” e quando aconteceu algo, um incidente menor, entraram em pânico agregando tensão à já tensa situação. 14 Como reação ao ambiente político interno mexicano, cada vez mais volátil, decidimos garantir a segurança da delegação juvenil pedindo aos deputados do Partido Democrático Revolucionario (PDR) que escoltassem nosso grupo dos pontos de imigração até Ejido Morelia. 268 \ O que podemos introduzir e onde podemos fazê-lo? “Estamos dando uma mão aos companheiros aqui em Chiapas que estão interessados em receber essa oficina... A luz acabou e tivemos que usar geradores elétricos da clínica, aí pudemos começar. E os cachorros comeram nossa comida durante a noite anterior e tivemos que voltar (a San Cristóbal) para buscar mais comida. Esses foram diferentes problemas que tivemos ao fazer as oficinas.” (Sergio Julián, indígena mixteco instrutor de vídeo durante a primeira oficina em Oventic, fevereiro, 1998) Durante essas primeiras reuniões com David e Miguel, autoridades zapatistas, perguntamos muitas coisas sobre temas relacionados à infraestrutura, como eletricidade, edifícios a prova de condições climáticas (pelo menos em termos), segurança para a equipe, etc. Em ambos os lugares, Oventic e Ejido Morelia, só havia energia sem cabos, linhas trazidas da rede elétrica da área. Os líderes comunitários explicaram que não havia garantia de eletricidade ou voltagem constante, pelo que entendemos que haveria interrupções inevitáveis no decorrer das oficinas. O primeiro equipamento adquirido foi uma câmera S-VHS, uma de vídeo VHS e sistemas de edição S-VHS. A princípio, aceitamos equipamento usado de nossos simpatizantes, todos dos Estados Unidos. Mas percebemos, rapidamente, que essas doações tinham um período de vida útil muito curto e que se transformavam em um problema. Reconhecemos que as pessoas tentavam ser altruístas ao nos enviar seus equipamentos, mas, rapidamente, aprendi a dizer: “se você não os usa, nós também não precisamos deles!” Os zapatistas precisam de bom equipamento e treinamento, não daquilo que os consumistas norte-americanos, saturados de tecnologia, jogavam fora. / 269 Como nos organizamos? “Percebemos que a televisão estava dizendo só mentiras sobre o que acontecia na nossa Chiapas. Ou colocam ou tiram palavras, mas nunca dizem a verdade. Também achamos que seria bom ter uma câmera porque tem muitos soldados nas nossas terras, em qualquer momento pode acontecer algo. Isso significa que quando os soldados estão batendo em alguém podemos filmar ele, gravar um testemunho e denunciar” (Moisés, realizador zapatista entrevistado em La Jornada, outubro, 2000). Com o sucesso da primeiras oficinas de vídeo de Ejido Morelia e de Oventic, ficou claro que as comunidades zapatistas estavam interessadas em continuar o treinamento. Em março de 1998, decidimos formalizar o projeto como Chiapas Media Project (CMP), uma organização sem fim lucrativos com sede nos Estados Unidos. Apenas iniciado o projeto, percebi claramente que certos aspectos de minha condição cultural (branca, de classe média, educada na universidade, mulher, norte - americana) estavam causando problemas. A minha frustração era mais notória nas longas reuniões com as autoridades zapatistas locais e diante da lentidão na tomada de decisões dentro das comunidades. Minha insatisfação com esse processo criou um atrito no interior do grupo e percebi que minhas forças poderiam ser melhor utilizadas em outra parte. Nesse momento, me desliguei das decisões diárias no México e me concentrei na distribuição e promoção internacional do projeto. Em 2001, nos firmamos no México como Promedios de Comunicación Comunitaria e agora nos referimos a nós mesmos como Chiapas Media Project/ Promedios. Estamos organizados como um coletivo, sem diretor e sem estrutura hierárquica. Temos três pessoas trabalhando em tempo integral e outra em tempo parcial em Chiapas, 270 \ e uma outra que trabalha em tempo integral nos Estados Unidos. Nossa organização tenta refletir a estrutura organizacional das próprias comunidades zapatistas com as que trabalhamos. Nosso trabalho atual em Chiapas é ajudar as comunidades a construir e equipar cinco Centros Regionales de Medios. Vemos nosso papel no sentido de guiá-los para criar uma rede autônoma de meios de comunicação que seja reflexo de suas necessidades. Como ensinamos? “Não é fácil traduzir do ‘castelhano indígena’ ao inglês. Para os que não compreendem alguma língua originária, ao traduzir-se ao castelhano, para começar, tem-se uma mistura complexa de expressões e estruturas que aparentam uma falta de habilidade no falar. No entanto, através desses erros na fala se podem vislumbrar profundas sabedorias, conhecimento e história”. (Guillermo Monteforte, correspondência, abril, 1998) Cheguei ao projeto com muito pouco conhecimento dos meios de comunicação indígenas ou de seus processos. Minha visão primária de CMP/Promedios vinha da minha história como documentarista/ artista e meu interesse e curiosidade estavam enfocados na pergunta: “Que tipo de vídeos produziriam os zapatistas se tivessem os meios e equipamentos necessários?” Na minha cabeça, estava facilitando a formação de realizadores, estava transmitindo habilidades técnicas aos meus companheiros. No verão de 1998, demos a primeira oficina de produção no povoado de La Realidad. Eu estava sentada ao lado de Manuel, uma autoridade zapatista local, que segurava uma câmera nas mãos, quando ele se virou para mim e perguntou: “Não precisamos de permissão especial do governo para usar este equipamento?” Fiquei surpresa com a pergunta e quis saber porque ele estava me perguntando aquilo. Ele respondeu: “Porque todas as / 271 pessoas que vêm aqui sempre têm crachás dependurados que foram dados pelo governo”. Ele estava se referindo à imprensa e, mais tarde durante a discussão, percebi que Manuel pensava que a posse de equipamentos deveria ser antes autorizada pelo governo. No princípio do processo de treinamento em vídeo, éramos bastante conscientes do perigo de trazer “forasteiros” temporais para fazer o treinamento, particularmente na qualidade de “instrutores”. Trazer gente de fora do México não ia funcionar nem do ponto de vista econômico, nem sociopolítico; não queríamos reproduzir o modelo colonial. Com raras exceções, todas as oficinas iniciais de vídeo e de computação, durante os primeiros dois anos, foram dadas por realizadores de Oaxaca ou por parte da equipe mexicana de CMP/Promedios. Nas primeiras oficinas, os alunos eram, principalmente, autoridades locais postos ali para observar e ter certeza de que “não estávamos fazendo nada de mal”. Descobrimos isso logo depois de ter trabalhado com as comunidades por um tempo; percebemos que certas pessoas abandonavam o curso e descobríamos, mais tarde, que eram pessoas em posições de liderança.15 Outra dinâmica que acontecia era a presença de muitos “forasteiros”. Muitas pessoas chegaram e continuam chegando a Chiapas com intenções de ajudar as comunidades. Existe uma tendência nas pessoas que chegam de fazer muitas promessas que não podem cumprir; por isso não voltam. Isso deixa os comunitários alertas com relação aos visitantes que vêm pela primeira vez. Sabíamos, desde o princípio, que não podíamos fazer promessas que não tínhamos condições de cumprir e que o mais importante era a continuidade, manter a presença. 15 Era compreensível que nos tratassem assim considerando a situação em Chiapas quando começamos o primeiro trabalho lá: eram os forasteiros os que, potencialmente, causariam problemas. 272 \ Nunca fui instrutora em nenhuma oficina de produção formal de vídeo ou em trabalhos de pós-produção nas comunidades. Meu papel sempre foi o de consultora técnica, aconselhando sobre equipamentos e conversando com os instrutores. Todos sentíamos que era extremamente importante que os instrutores fossem mexicanos ou, ainda melhor, que fossem indígenas mexicanos. Isso daria continuidade ao processo utilizando gente local que também conectaria os realizadores zapatistas à mais ampla rede de realizadores indígenas no México e na América Latina. Minha intenção sempre foi fazer o projeto crescer o suficiente para que eu pudesse deixar o trabalho nas mãos dos mexicanos. Uma vez que formalizamos o processo, percebemos que isso era um compromisso a longo prazo. Necessitaríamos criar autossustentabilidade onde fosse possível e ter relações de proximidade com os realizadores indígenas em Oaxaca, que facilitariam nossa continuidade no treinamento, fortaleceriam e ampliariam a rede audiovisual indígena. O monstro do financiamento “O Comité Ejecutivo de Fondos fechou acordo para doar $21.400 (USD) para o desenvolvimento do projeto mencionado anteriormente (Chiapas Youth Media Project). A concessão dos fundos designados aos projetos de doação está estabelecida através de um acordo assinado pelo Fondo e pela pessoa que responde como gerente do projeto, que será responsável por assinar o acordo, receber os cheques e manter o Fondo informado sobre o desenvolvimento do processo assim como sobre a aplicação dos valores designados”. (Marcela S. Madariaga, coordenadora do programa. Fondo para la Cultura México-Estados Unidos, carta de notificação do primeiro pagamento, agosto, 1997) / 273 Desde o começo, reconhecemos a vulnerabilidade do projeto e percebemos que precisávamos de elementos de autossustentabilidade e que eles deveriam ser um produto midiático que pudesse ser mostrado, distribuído e vendido. Infelizmente, vender vídeos feitos por indígenas como iniciativa isolada não sustentava o projeto. Sabíamos que estávamos trabalhando dentro de um processo político que era extremamente crítico com o capitalismo internacional e que os zapatistas desconfiavam do apoio governamental e dos interesses corporativos. Precisávamos respeitar esse marco político, equilibrando-o com a realidade da necessidade constante de fundos. Portanto, durante os primeiros cinco anos, a parte norte-americana do projeto se encarregou de assegurar os fundos.16 Como realizadora, eu entendia os custos envolvidos na manutenção do equipamento e sabia que necessitaríamos estratégias criativas para autogerar os fundos. Além de fundos corporativos e de altruísmo pessoal, criamos um sistema de autogeração de fontes de ingresso: venda de vídeos e apresentações universitárias. Quando começamos a discutir com as comunidades sobre o projeto, explicamos que o equipamento era deles e que poderiam fazer o que quisessem, mas se decidissem que não queriam fazer vídeos para consumo externo (como produto para vender fora das comunidades), seria bastante difícil manter o financiamento. Portanto, foi um acordo básico desde o princípio que, para gerar entrada, alguns vídeos deveriam ser vendidos. O primeiro vídeo produzido pelas comunidade, La Familia Indígena, foi feito durante a primeira série 16 Durante os primeiros 18 meses do projeto, recebemos também doações individuais no México via contatos pessoais. Essa decisão foi tomada por inúmeras razões: sustentávamos o perfil de “sem fins de lucro” nos Estados Unidos; as propostas precisavam ser escritas em inglês; eu tinha experiência prévia como produtora e sabia como buscar subvenções; tínhamos alguns contatos de financiamento estabelecidos nos Estados Unidos. 274 \ de oficinas, na primavera de 1998, em Ejido Morelia. Foi bastante simples, um vídeo direto sobre os diferentes papéis e trabalhos de homens e mulheres dentro das comunidades. As pessoas falavam em espanhol (isso foi muito antes de começarem a gravar em seu próprio idioma para melhor distribuição internacional) 17 . Essa fita foi usada como primeiro vídeo promocional pela CMP/Promedios. Organizamos nosso primeiro tour pelos Estados Unidos com esse vídeo e desenvolvemos um modelo viável para fazer apresentações que geraram caixa e aumentaram a visibilidade do projeto. Através dos anos, houve uma mudança significativa na qualidade de produção dos vídeos. Todas as produções (tanto as de uso interno como externo) são submetidas a algum tipo de consenso comunitário sobre temas e conteúdos.18 O que sempre me pareceu interessante é a diferença entre o que as comunidades produzem sobre si mesmas e o que produzem os “forasteiros” sobre eles. Houve uma tendência nos “que vêm de fora” a focalizar a militarização e violência em Chiapas, enquanto as pessoas das comunidades se retratam a si mesmas como sobreviventes envolvidas no aspecto da luta e resistência contra a globalização e o neocolonialismo. As produções em distribuição internacional são documentários focalizados em projetos coletivos como o café, têxteis, educação, agricultura orgânica, etc.19 A grande maioria dos vídeos produzidos para o consumo interno são de reuniões, celebrações, encontros culturais em línguas maias. As pessoas do CMP/Promedios raramente assistem a essas produções. 17 O castelhano foi usado nas primeiras produções porque os vídeos foram exibidos em todas os municípios zapatistas autônomos, nos quais essa é a língua comum. Como o projeto começou a se integrar mais em nível local e regional, as línguas locais começaram também a ser usadas. 18 Essas discussões podem acontecer em âmbito local, regional ou municipal. Os produtores zapatistas fazem vídeos em colaboração com sua comunidade, região e/ou municipalidade. 19 Todos os vídeos de distribuição internacional são traduzidos ao inglês, castelhano e francês. / 275 Atualmente, estamos distribuindo – principalmente através de nosso escritório em Chicago – 24 vídeos produzidos internacionalmente em Chiapas e Guerrero. As vendas de vídeo em 2005 excederam os U$17.000, sendo as universidades os locais que mais garantem essas entradas. Foi só nos últimos anos que as comunidades puderam ver o benefício econômico direto. Atualmente, as vendas de vídeos cobrem as tarifas de conexão via satélite à internet nos cinco Centros Regionales de Medios.20 Em 2003, comecei a tomar parte em grandes conferências acadêmicas como a American Anthopological Association (AAA) e Latin American Studies Association (LASA). A presença nessas conferências tem sido um instrumento para aumentar nossa visibilidade no âmbito acadêmico, incrementando fortemente nossas vendas de vídeo e agregando nomes à nossa mailing list. Uma de nossas principais fontes de entrada autogerada vem dos honorários das apresentações em universidades. Um benefício adicional de fazer essas apresentações em ambiente acadêmico é o contato direto com os estudantes universitários norteamericanos. Para muitos deles, é a primeira vez que ouviram falar de meios de comunicação indígenas. Eles se veem, frequentemente, afetados pelo poder da autorrepresentação. Os vídeos produzidos pelos zapatistas podem ter um efeito muito poderoso, inclusive nos estudantes mais desinteressados. Ver gente organizando-se coletivamente para trabalhar em hortas orgânicas municipais (sem máscaras ou armas), falando de como desejam ser autossuficientes, de não usar fertilizantes químicos e de não aceitar as migalhas 20 Os Centros Regionales de Medios possuem acesso a Internet via satélite. Isso requer um computador que controle a posição e programação da fonte do satélite. As comunidades usam internet para se corresponder, para participar de feiras comerciais distribuindo seus produtos, para estar por dentro das notícias e comunicar-se com outros Centros Regionales de Medios. 276 \ do governo, vai completamente contra a imagem preconcebida (e a desinformação midiática corporativa) dos zapatistas como guerrilheiros armados e interessados só no poder do Estado. Essas apresentações acadêmicas beneficiam a CMP/Promedios de muitas maneiras: aumentando as vendas de vídeos, promovendo, de boca em boca, futuras apresentações, recrutando estudantes e criando sensibilidade com relação à luta indígena e à autorrepresentação. A CMP/Promedios também capta fundos através de recursos filantrópicos. No começo do projeto, decidimos que consideraríamos as doações sempre e quando não estivessem ligadas a influências e que o programa político da fundação em questão não estivesse em choque com os programas políticos das comunidades. Consideramos doações de fundações que não estejam ligadas a programas políticos externos e que, ao mesmo tempo, não estejam em conflito com nosso trabalho.21 Levou tempo identificar que fundações tinham prioridades para doar fundos, as que estavam de acordo com nosso trabalho e que queriam arriscar-se em um projeto como o nosso. O apoio dessas fundações privadas fez possível nosso crescimento como organização. Através dos anos, nos relacionamos com fundações que nos trouxeram problemas. Esses problemas tinham sua origem na necessidade que essas instituições tinham de recriar um contexto cultural preconcebido e, com frequência, totalmente desconectado 21 O que mais nos foi pedido é que colocássemos o nome da fundação em nossos materiais impressos, o que, certamente, estamos felizes em fazer. / 277 do contexto cultural no qual operávamos.22 Percebemos que o apoio de fundações não ia durar para sempre, mas tínhamos a esperança de manter essas relações tempo suficiente para estabelecer a infraestrutura necessária para tornar todos os Centros Regionales de Medios completamente operativos e autossuficientes. Desde o princípio do projeto, temos mantido posições coincidentes sobre o modo de pedir apoios corporativos e, até pouco tempo, decidimos não optar por essa possibilidade. Com a pressão crescente no sentido de gerar grandes quantidades de dinheiro para sustentar os Centros Regionales de Medios e seus equipamentos – que são bastante caros – além de suas necessidades de treinamento avançado, finalmente decidimos buscar fundos corporativos. Em 2004, indiquei uma pessoa da nossa equipe para um prêmio de alto grau em Direitos Humanos auspiciado por uma corporação nos Estados Unidos e conseguimos o prêmio. Ele foi dado a uma pessoa, mas o dinheiro vai para sua organização. Os subsídios corporativos têm seus benefícios, mas também suas desvantagens: normalmente estão cercados de contradição, e o espetáculo e a individualização deles vai contra a filosofia indígena. Buscaremos outro patrocínio corporativo? Acho que é algo que ainda estamos avaliando. Sabemos que, no futuro, precisaremos procurar corporações cujas filosofias sejam mais parecidas às nossas. 22 Muitas fundações têm um foco específico em relações de gênero e querem garantias igualitárias de participação das mulheres. Há uns anos atrás, tínhamos um funcionário de programação que, durante uma reunião com as autoridades locais zapatistas nas regiões de montanha, nos chamou a atenção por não incluir mais mulheres nas oficinas. A insensibilidade cultural assustava (a ideia de que se pode ignorar os processos da comunidade, o contexto cultural em prol de exigir um resultado específico). O incidente criou uma tensão com as autoridades zapatistas que têm, desde 1994, uma Declaración de Igualdad de Derechos e que estão – no contexto de papéis de gênero nas comunidades indígenas no México – a anos luz diante da maioria. 278 \ Conclusão “Instalamos o projetor e um lençol branco sobre a parede de uma das salas de aula. Estava escurecendo e as pessoas começaram a sair e sentar-se na grama... apareceu a primeira imagem: as barras de cores, e escutei “oohs e aahs” ... mas o que impressionou ainda mais que as barras de cores foi ver essas pessoas comovidas por um vídeo produzido em sua própria língua e por sua própria gente: homens, mulheres e crianças com um senso de orgulho e também emoção por serem capazes de ver-se a si mesmos falando de seu trabalho, de sua organização e de sua luta”. (Cruz Ángeles, realizador e voluntário de CMP/Promedios, 2000) Como disse antes, não consigo ver a CMP/Promedios como o único modelo para apoiar as iniciativas midiáticas indígenas, é só um exemplo das inúmeras possibilidades. Na América Latina inteira, existe um número importante e bem sucedido de projetos midiáticos indígenas. Na Bolívia, uma iniciativa nacional de vídeo indígena é a CAIB (Coordinador Audiovisual Indígena de Bolivia), que produziu mais de 150 vídeos em centenas de comunidades envolvidas. No Brasil, o Vídeo nas Aldeias está trabalhando com populações indígenas para produzir documentários de grande feitura demonstrando importantes práticas culturais e a vida comunitária. No Equador, a CONAIE (Confederación de Naciones Indígenas de Ecuador) está produzindo vídeos indígenas por vários anos. Além do mais, há um grande número de pequenas iniciativas cujo trabalho não tem nem reconhecimento nem distribuição. A produção de vídeos e sua disseminação nas comunidades já chegou a ser um traço regular na vida indígena.. Muitos me perguntam como me sinto – como mulher branca, de classe média – trabalhando com comunidades indígenas no México. Aprendi que há um importante papel para os “forasteiros” como colaboradores / 279 das organizações/comunidades indígenas fomentando as iniciativas midiáticas, na transferência inicial de tecnologia audiovisual, na criação de infraestrutura e na sua sustentabilidade. Como pude ver, minha contribuição mais importante foi minha capacidade de reunir fundos iniciais que apoiaram a criação de infraestrutura permanente e meu papel atual na distribuição dos vídeos para uma audiência o mais ampla possível. Utilizando os recursos disponíveis aqui nos Estados Unidos, o fomento do trabalho colaborativo posterior foi a minha contribuição mais importante. Através de meu trabalho com a CMP/Promedios, testemunhei como as comunidades em Chiapas adaptam a tecnologia audiovisual como uma importante ferramenta de comunicação interna, preservação cultural, direitos humanos e como um veículo para comunicar suas próprias verdades, histórias e realidades ao mundo exterior. A habilidade de gravar, editar e distribuir a própria história é vital para o funcionamento da sociedade. Os vídeos controlados pelos povos indígenas têm o poder de fazer conexões entre as comunidades e de propagar a comunicação/informação internacionalmente entre os não indígenas. Todos temos um papel a cumprir no apoio desses importantes processos. “A partir deste grupo de gente jovem, ou de gente não tão jovem, é minha intenção insistir em que aprendam mais, em que se preparem mais para que sejam capazes de dar um testemunho e contar uma história, tudo gravado de maneira que as pessoas possam ver um trabalho que está indo adiante.” (Miguel, autoridade zapatista local, Ejido Morelia, fevereiro, 1998) Tradução: Alessandra Carvalho 280 \ \ O outro olhar. Vídeo indígena e descolonização / Freya Schiwy1 Embora Hollywood siga sendo espaço de produções importantes, com um investimento de capital imenso, agora tem que enfrentar a competição com outras indústrias cinematográficas (Hong Kong, Bollywood) e compartilhar o espaço midiático global com filmes de procedência antes considerada marginal como, por exemplo, o cinema latinoamericano da última década. Além do mais, filmes como Smoke signals (EUA, 1998), Atanarjuat, the fast runner (Canadá, 2001) e Whale rider (Nova Zelândia, 2002) chegaram às salas de exibição comercial, dando sinal de que o cinema e vídeo indígenas também estão fazendo parte dos fluxos midiáticos globais que criam novas geografias audiovisuais. Não só as produções de grande acolhida global são as que chamam a atenção da crítica. Paralelamente ao enorme aumento na produção do cinema argentino, brasileiro, mexicano e do cinema indígena do norte, os movimentos e organizações indígenas na América Latina foram desenvolvendo processos de comunicação com base no vídeo, primeiro analógico e agora, principalmente, digital. A produção e difusão do vídeo cria redes de intercâmbio audiovisual que ultrapassam as fronteiras da nação ao colocar em contato diversas comunidades indígenas e camponesas. Desse processo, emerge a criação de uma vasta quantidade de documentários, docuficções, ficções e também de representações videográficas que escapam a essa classificação convencional. Ainda que o uso da tecnologia audiovisual por organizações indígenas seja múltiplo e descentralizado, até este momento as produções 1 Freya Schiwy é professora da Universidade da Califórnia, Riverside, EUA. Se especializou em cultura e literatura andina, cinema latinoamericano e estudos de gênero. / 281 mais contínuas vêm da Bolívia, do Brasil e do Equador, com filmagens muito diversas também no México e uma crescente atividade videográfica no Chile. Os processos de comunicação audiovisual na América Latina, em sua maioria, foram apoiados pelo CLACPI (Consejo Latinoamericano del Cine y Video de los Pueblos Indígenas), fundado em 1985 por antropólogos visuais e cineastas independentes. No entanto, a produção de vídeo indígena é descentralizada. Em âmbito regional, a tecnologia é usada por organizações indígenas locais cujos membros criam redes de intercâmbio e processos de comunicação audiovisuais distintos, ainda que não sejam isolados. Na Colômbia, por exemplo, o CRIC (Consejo Regional Indígena del Cauca) foi o responsável pela produção de uma série de vídeos que fazem parte de seu programa de educação bilíngue. No Equador, o CONAIE (Consejo Nacional Indígena de Ecuador) foi centro da produção e intercâmbio de vídeos entre diversas culturas indígenas do país. Na Bolívia, CEFREC/CAIB formaram uma rede intercultural e organizaram festivais regionais que extrapolaram as fronteiras nacionais ao difundir documentários, ficções, vídeos educativos e vídeo cartas de lugares diversos do país. Seus “vídeo-pacotes”, compilações de vários vídeos curtos em fita VHS que circulam através de sua rede, incluem também seleções de curtas de Cuba, México e ainda do Canadá. Todos têm também maneiras variadas de aproveitar-se e relacionar-se com as instituições estatais. No México, por exemplo, experimenta-se um processo paulatino de tornar essas instituições independentes do estado e do Instituto Indigenista como promotor de capacitação tecnológica (Cusi-Wortham; Brígido-Corachán). Na Bolívia, manteve-se uma grande distância, além de uma suspeita com relação às instituições estatais. Desde o princípio, trabalharam com bolsas internacionais de organizações governamentais e não governamentais como AECI (Agencia Española de Cooperación Internacional), Mugarik Gabe 282 \ (ONG do país basco) e SEPHIS (organização holandesa Himpele, “Packaging”). No Equador, por outro lado, existe a CONAIE que é uma organização independente do Estado, mas os próprios movimentos indígenas participaram, durante certos períodos, do governo (Walsh). Esses são só uns poucos exemplos. A produção total de vídeos indígenas na América Latina é, certamente, muito mais vasta e complexa e está em constante mudança e expansão. Em vez de oferecer um panorama comparativo – tentativa talvez impossível dadas as dinâmicas às que acabo de aludir – este ensaio está enfocado no trabalho dos comunicadores audiovisuais organizados em torno a CEFREC e CAIB, ressaltando alguns elementos cruciais do impacto e da importância do meio audiovisual para os processos de descolonização que os movimentos indígenas do continente estão levando a cabo. Os vídeos do CEFREC/CAIB, na Bolívia, se destacam por seguir um plano coordenado para a comunicação audiovisual dos povos indígenas na região andino-amazônica. Essas instituições também são conhecidas por uma série de curtas de ficção. Esses curtas, cuja duração varia entre 25 e 50 minutos, compartilham com cineastas do Brasil, do México e da Argentina o desejo em comum de entreter o seu público. No entanto, enquanto a nova geração de realizadores latinoamericanos, como Alejandro González Iñárritu, Walter Salles e estrelas como Gael García (só para citar os mais óbvios) desejam fazer parte da produção cinematográfica em grande escala e aproveitam tanto a estética como também as possibilidades de produção hollywoodianas, os processos de comunicação audiovisual indígena não procuram integrar-se aos espaços comerciais. Comunicadores indígenas, como Reynaldo Yujra, Marcelina Cárdenas, Patricio Luna ou Julia Mosúa, entre tantos outros, fazem uso do vídeo digital para resgatar e reavaliar tradições culturais que foram colocadas em posição subalterna pelo colonialismo e seu legado, / 283 ou integrados ao mercado multicultural como produtos de consumo folclórico. Em vez de buscar uma integração à ordem existente, os comunicadores criaram redes alternativas nas quais se discute o potencial das diversas culturas indígenas do continente como recurso para imaginar alternativas à modernidade neoliberal. Na página web do CEFREC, destaca-se que o Plan Nacional Indígena Originario de Comunicación Audiovisual “está possibilitando a formulação de métodos e instrumentos de comunicação apropriados (e apropriáveis) para a participação, informação e capacitação; a fim de que os povos indígenas possam estar em melhores condições de participar de maneira mais ativa nos processos de desenvolvimento, para que gerem propostas e reflexões conjuntas e influam nos processos de mudança que enfrentam. Por outro lado, o conhecimento e a sabedoria indígenas compartilhados a partir desse plano proporcionam elementos à busca solidária de possíveis pautas de solução para os muitos problemas indígenas em diferentes áreas” (CEFREC, “Plan”, p. 2-3). A comunicação audiovisual indígena faz parte de um processo complexo de descolonização, tanto do próprio olhar como também da maneira como a sociedade nacional percebe as comunidades camponesas e indígenas; esse olhar, como é bem sabido, foi se formando sob a influência de representações literárias, cinematográficas e, cada vez mais, também televisivas. Vários aspectos chamam atenção nas produções indígenas. Primeiro: em vez de destacar uma confrontação entre a sociedade discriminatória e a resistência coletiva ou individual contra os legados coloniais, a maioria dos vídeos representa processos culturais no interior das comunidades indígenas e rurais. Filmes como En busca del guerrero ou Ángeles de la tierra exploram também a pressão urbana sobre os que migram para as cidades e acabam por desejar 284 \ regressar às suas comunidades (En busca del guerrero), ou a história dos que assumem a consciência colonial e negam sua origem étnico-cultural (Ángeles de la tierra). Segundo: com frequência a representação ou “execução” da tradição indígena se faz visível através do corpo feminino, enquanto a perda ou negação cultural se vincula ao corpo masculino. Em vídeos como Qati Qati e Nuestra palabra, essas concepções e execuções de gênero sexual são centrais no processo de descolonização encenado na tela. A construção da diferença racial desliza, por outro lado, em direção a um segundo plano, refletindo um processo de recuperação étnico-cultural que complica qualquer aproximação essencialista à noção de identidade. Além do mais, chama a atenção que tanto os documentários como também as ficções indígenas empreguem uma estética audiovisual muito distinta da representação realista e experimental do cinema de testemunho e anticolonial dos anos sessenta. É mais provável que se “indianizem” os gêneros cinematográficos convencionais, como o filme de terror e melodrama Schiwy, Decolonizing, ao integrá-los, tanto nas tradições de contar e transmitir visualmente a memória social como também a um sistema ético e epistêmico panindígena em construção. Essa assimilação, assim como a negociação com o sistema de estrelas e diretores, aponta para um processo de transformação que não rejeita a modernidade, mas que antes a integra a sistemas culturais e socioeconômicos distintos. Não se defende aqui um retorno a um passado indígena pré-colonial, ainda que a memória social inspire a imaginação com alternativas ao capitalismo neoliberal e sua comodidade do multicultural. Vídeo indígena, a crítica de cinema e os legados coloniais A crítica de cinema latinoamericana basicamente ignorou o campo de produção audiovisual indígena devido, entre outros motivos, ao acesso limitado a esses vídeos, que são distribuídos principalmente / 285 através de redes de comunicação rurais entre comunidades camponesas e indígenas. Apesar disso, seleções da vasta criação indígena também foram mostradas e premiadas em festivais internacionais de cinema e vídeo dos povos indígenas, tanto na América Latina (o último festival aconteceu em Santiago do Chile, em junho de 2004), na Europa (Expo 2000), como também no Canadá (Montreal) e nos Estados Unidos (Nova York, Taos). Já foram exibidas seleções de vídeo indígena da Bolívia em ocasiões como o Festival de Nuevo Cine Latinoamericano em Providence (Rhode Island), em abril de 2003. A razão da pouca atenção crítica direcionada a esses filmes parece provir mais de uma divisão tradicional de disciplinas na qual aquilo que se associa aos índios é considerado antropológico; oposto à criatividade artística do cinema experimental ou comercial. Para a antropologia, essa produção audiovisual também cria dificuldades dada a longa tradição de produção etnográfica visual (que começa com a invenção do cinema) na qual os que carregam a câmera são os antropólogos e não as comunidades indígenas que se vêm na tela (MacDougall, p. 65). A tecnologia audiovisual frequentemente é considerada produto paradigmático da sociedade do espetáculo, e seu uso, como alguns afirmam, só pode levar a sociedades não midiáticas a converterem-se em sociedades ocidentais (Weiner). O tradicional enfoque antropológico nas culturas não ocidentais mascarou a construção do indígena como pré-moderno, crença a partir da qual a investigação antropológica buscou, durante muitos anos, as comunidades mais autênticas, negligenciando ou eliminando de suas reportagens o híbrido ou “transculturalizado” (Starn). Como afirmou James Clifford, anthropological culture collectors have typically gathered what seems ‘tradition’ – what by definition is opposed to modernity. From a complex historical reality (which includes current ethnographic encounters) they select what gives form, structure and continuity to a world. What is hybrid or 286 \ ‘historical’ in an emergent sense has been less commonly collected and presented as system of authenticity. “Os antropólogos compiladores de cultura juntaram como amostragem típica o que parece ser “tradicional” – o que por definição é oposto à modernidade. De uma realidade histórica complexa (que inclui os próprios encontros etnográficos) selecionam o que dá forma, estrutura e continuidade a um universo. Aquilo que é híbrido ou “histórico” em um novo sentido foi menos comumente abarcado e apresentado como um sistema de autenticidade.” (Clifford, Predicament of Culture, 1988, citado em Polen “Auteur desire”, p. 15). Um dos casos mais famosos é o documentário dramatizado Nanook, o esquimó (1922), dirigido por Robert Flaherty, no qual os protagonistas executam na tela um modo de viver antigo que já não corresponde à vida atual (Ginsburg, p. 39). A sensação de que a tecnologia audiovisual seja algo novo para as culturas indígenas é in part the product of the deliberate erasure of indigenous ethnographic subjects as actual or potential participants in their own screen representations “em parte produto da supressão deliberada dos sujeitos etnográficos indígenas como participantes reais ou potenciais de suas próprias representações cinematográficas” (Ginsburg, p. 40). Dados os vínculos íntimos entre esses olhares etnográficos e a construção do imaginário patriarcal e colonial em filmes de ficção hollywoodianos (Kaplan), por um lado, e a participação ou prática de devolver o olhar por parte dos supostos objetos frente à câmera (Rony), é difícil sustentar que o audiovisual seja, de fato, um meio “ocidental”. O suposto esquema binário entre tecnologia audiovisual e culturas indígenas também se dissolve desde o próprio campo da antropologia. Com o autoquestionamento de suas raízes coloniais, a partir dos anos setenta muitos antropólogos se posicionam de acordo com / 287 os movimentos sociais indígenas quanto ao fato de que as culturas indígenas não estão fora da história, senão que elas mesmas são parte da globalização que começa com a conquista das Américas e a partir da qual eles também, como as culturas ocidentais e orientais, experimentaram câmbios e adaptações. Sendo assim, pesquisadores como Faye Ginsburg e Terence Turner se dedicaram a redefinir o campo da antropologia visual que estuda as mudanças de identidade e os usos criativos do vídeo pelas comunidades aborígenes e indígenas. Eles procuram, além do mais, desenvolver uma teoria transnacional dos meios que ajude a abarcar a presença e difusão de diversas formas midiáticas (Ginsburg, Abu-Lughod y Larkin, p. 14). A crítica cinematográfica latinoamericana também assistiu a mudanças de perspectiva. Antes, a ênfase recaía no terceiro cinema, o cinema novo ou o cinema imperfeito, quer dizer, nas estratégias estéticas e práticas de criar um cinema revolucionário e antiimperialista. Agora, muitos enfocam na crítica mais sutil –talvez produzida mais desde o interior– da indústria cinematográfica e dos filmes comerciais ou de baixa qualidade mas de grande acolhida por parte do público. Por outro lado, a noção de um cinema nacional que resiste através da produção destacada de alguns artistas e realizadores – o imperialismo cultural de Hollywood – também se complicou devido às colaborações transnacionais, não só atuais mas também do passado (Alemán). Ao mesmo tempo, se multiplicam no continente as produções em vídeo digital (alguns deles depois são passados a 35mm), rompendo assim as fronteiras tecnológicas (cinema vs. vídeo) e o que sobrevive da distinção entre cultura de elite e cultura de massa, e criando um contexto no qual o meio audiovisual se faz mais e mais acessível. Uma aproximação ao vídeo indígena desde o campo interdis ciplinar dos estudos culturais e da teoria de cinema torna 288 \ pos sível contextualizá-lo em uma longa tradição de busca de práticas anticoloniais, ainda que seja através desse meio que tem sido, principalmente, promotor do capitalismo e do imperialismo hollywoodiano e da construção do imaginário patriarcal e colonial; quebra da separação entre produção criativa intelectual nacional versus arte e pensamento indígenas. Dessa maneira, o vídeo indígena contribui com os debates sobre as novas tendências cinematográficas na América Latina e sua negociação com o mundo globalizado. Também cria aberturas para dar a ver a complexa produção cultural da região em um contexto global no qual os legados coloniais continuam demandando um questionamento crítico sobre o potencial do multicultural. Apropriação midiática e descolonização da alma No entanto, a genealogia que acabo de esboçar aqui (cinema latinoamericano e antropologia visual) corre o risco de perder de vista uma das dimensões mais importantes do vídeo indígena latinoamericano, uma dimensão que os próprios realizadores indígenas enfatizam: a comunicação audiovisual é considerada como uma extensão do uso de outros meios, como a rádio comunitária (“Plan” 1; Iván Sanjinés). Em vez de apreciar o acesso à tecnologia promovido pelo CLACPI em um âmbito continental como um gesto ocidental de dar a câmera aos nativos, aqui se insiste no agenciamento próprio. Quando o vídeo foi apresentado como possibilidade, as comunidades tiraram proveito do meio (Mosúa et al). Selecionaram pessoas interessadas, ou já envolvidas em comunicação, para serem treinadas na produção de vídeo e continuar um processo de reivindicação étnica que já estava em marcha, pelo menos, desde o fim dos anos sessenta, mas que tem suas origens mais remotas nas lutas de sobrevivência e resistência dos povos indígenas durante os mais de 500 anos de colonização. O vídeo, além do mais, é extensão / 289 de uma antiga tradição de transmissão de conhecimentos, memória social e do sentido da identidade étnica através das diversas práticas do corpo (festas, danças, rituais, roupa, comida), através dos contos e mitos, e também através de uma complexa produção visual; por exemplo, em tecidos, cestaria, desenho de cerâmica e inscrição de significados na paisagem. Como formula o CEFREC, “(o) vídeo é um instrumento adaptado às formas tradicionais de transmissão cultural indígena” (CEFREC, “Etapa”). O vídeo indígena latinoamericano, com suas redes transnacionais e suas produções digitais e de baixo orçamento, compartilha o desejo do cinema comercial recente de agradar ao seu público. Se o cinema anticolonial dos anos sessenta experimentava a estética neorrealista, o formato documental e novos gêneros cinematográficos, o vídeo digital indígena usa com frequência um formato documental convencional (alternância de cabeças “talking heads”), e os curtas de ficção fazem amplo uso de elementos hollywoodianos, desde o gênero cinematográfico do terror e do melodrama, até o uso de primeiros planos, que eram rejeitados pelo terceiro cinema anticolonial de Jorge Sanjinés e Grupo Ukamau, que também procuravam dar voz aos povos indígenas da América. No entanto, os comunicadores audiovisuais da Bolívia, Equador, Colômbia, Brasil ou México não se dirigem a um mercado generalizado nem muito menos buscam a maximização dos ganhos. Grande parte do movimento indígena pensa o problema da descolonização a partir de um contexto global no qual já não faz sentido a expulsão do colonizador. Do contrário, o processo da descolonização baseia-se, por um lado, na descolonização da alma; ou seja, em resistir aos efeitos da autodepreciação do capitalismo e seu legado. Por outro lado, baseia-se na integração da modernidade (do colonialismo e seus representantes) a uma ordem alternativa. O líder político aymara, Felipe Quispe, formulou o que se disse antes como a tarefa de “indianizar al q’ara.” (Sanjinés; Mestizaje, p. 165). 290 \ A experiência colonial criou uma divisão entre a cultura latino ame ricana ocidental e as muitas e diversas culturas indígenas. Diferença que o processo de comunicação audiovisual reafirma e converte em recurso para pensar. A “diferença colonial” (Mignolo, p. 14) produz, então, um espaço limítrofe em que o pan-indígena se constrói e se reivindica como alternativa ética às tendências de incorporação ao sistema global, que alguns caracterizam como totalizante e no qual aquilo que está “fora” já não é possível. O cinema e o vídeo não são, nesse contexto, meramente meios de representação. São também performances corporais e práticas sociais. O meio se transforma, em todas as suas dimensões, em expressão da vitalidade das culturas indígenas. A noção de alfabeto como tecnologia do intelecto, culminação de um suposto desenvolvimento civilizatório desde a oralidade, é obsoleta, resíduo do pensamento colonial (Schiwy, “Reframing Knowledge”, especialmente capítulo 4). O vídeo permite um intercâmbio de olhares e perspectivas entre diversos povos indígenas. A estética videográfica de ficção em vídeos como Qulqi, Qati, Oro, Espíritu, Llanthupi, etc., segue essa estratégia de incorporar e transformar o que é útil da cultura ocidental em vez de rejeitar completamente seus códigos (Schiwy, Decolonizing). Os gêneros cinematográficos ocidentais, como o filme de terror, se integram às formas de contos de fantasmas do Altiplano; os elementos dramáticos vinculam-se aos da comédia e dos contos tradicionais sobre a relação entre este mundo e o dos mortos. Como já afirmei em outra ocasião, essa lógica se estende ao processo de edição e ao uso da trilha sonora. Descolonização e gênero sexual Na tela, a ética pan-indígena alternativa é figurada através do corpo. Docuficções como Nuestra palabra, da zona oriental das terras / 291 baixas (Moxos), e ficções como Qati Qati, assinada por Reynaldo Yujra e filmada em sua comunidade de origem no Altiplano Aymara, associam a memória histórica e cultural ao corpo feminino. A encenação corresponde, assim, ao papel social através do qual as mulheres são vistas como mais próximas às raízes culturais – suas práticas sociais na comunidade, a preparação da comida, o cuidado com as crianças e o uso do idioma originário. Em outra ficção do Altiplano, Qulqi chaliku, os que perdem a cultura e transgridem seus princípios éticos ao se tornarem avaros – Satuco (Reynaldo Yujra) – ou ao desejar acumular capital – Cihualcollo (Jesús Tapia) – são todos homens, enquanto que as mulheres encarnam o papel da voz tradicional ameaçada, muitas vezes, violentamente. Por um lado, esse enfoque no gênero insiste na necessidade de pensar os legados coloniais, ou melhor, “no colonialismo do poder”, como um sistema que não só se baseia na construção da raça, numa epistemologia eurocêntrica e numa ordem mundial econômica de profunda desigualdade. Muitos vídeos de ficção do CEFREC/CAIB invertem, assim, o significado de estereótipos de gênero que se empregavam no imaginário colonial. É esse complexo que a descolonização indígena confronta e que também coproduz a ansiedade masculina nos processos de descolonização da alma. No entanto, por outro lado, a participação feminina no mesmo processo videográfico e nos movimentos de mulheres indígenas está mudando, ou começando a questionar, os papéis e responsabilidades tradicionais. Realizadores, responsáveis e estrelas – o outro mercado O filme Llanthupi inaugura o fenômeno da “estrela” no cinema indígena. Aideé Álvarez interpreta, como em El oro maldito, a mulher jovem desejada pelo homem. Seu corpo e seu rosto são destacados 292 \ em primeiros planos e sua figura enfeitava o fotograma de produção que anunciava, em 2001, o filme na página web do CEFREC (CEFREC, “Amor”). No entanto, isso não é cinema comercial e a promoção de Llanthupi faz parte de uma lógica econômica diferente. As culturas indígenas incorporaram, ao longo dos séculos, muitas influências (inclusive as da cultura ocidental dominante). Mesmo assim, a economia do mercado que surge como alternativa ao neoliberal, baseada na reciprocidade e em obrigações mútuas, continua vivendo um processo em que, às vezes, essas relações se transformam e, outras, se reafirmam e se reinventam (Larson, Rivera). Nos anúncios do CEFREC, a imagem feminina atrai os espectadores potenciais das comunidades através de processos de identificação complexos (desejo heterossexual e homossexual, identificação feminina com a protagonista) que emolduram o filme em um olhar patriarcal. Por outro lado, os filmes destacados na página web são distribuídos, em primeiro lugar de importância, por critérios não comerciais, da rede ou em alguns contextos educativos universitários. Os preços variam segundo os recursos dos interessados e nem todos os filmes estão à venda. Sua difusão entre as comunidades conectadas pela rede é grátis. Os próprios vídeos são produzidos através de complicadas relações de reciprocidade e responsabilidade com relação às comunidades. Às vezes, os interessados de fora também são tratados através de relações similares de reciprocidade. Ao mesmo tempo, o fato de que nem todo material em vídeo está disponível para a venda é reflexo de processos ainda não resolvidos de propriedade intelectual das imagens. Essa difusão limitada é também resultado de uma convicção que caracteriza o terceiro cinema boliviano; em particular, a política de distribuição Ukamau. Acredita-se que a recepção dos vídeos, ou seja, a maneira como são interpretados, pode ser controlada através dos contextos em que são exibidos. Sendo assim, uma mostra em uma comunidade / 293 rural apresenta resultados distintos que os de uma mostra para universitários. E esse contexto se diferencia, sem dúvida, de uma mostra comercial organizada ou da difusão privada por pirataria. A criação de “estrelas”, ao se orientar pelo type-casting ou ao reconhecer o talento de alguns comunicadores audiovisuais para atuação (como é o caso de Aidée Álvarez, que executa o mesmo papel de jovem sedutora em Llanthupi e em El oro…), é parte de um processo autorreflexivo que busca possibilidades de incorporar aspectos ocidentais à ordem indígena, em vez de deixar a ordem indígena ser incorporada à ocidental. Acontece algo parecido com a figura do realizador Marcelino Pinto, do Chapare boliviano, zona de cultivo de coca, é responsável pelo roteiro de El oro maldito. Algumas ideias técnicas, como o uso do travelling para enfatizar certa suspensão, foram suas. No entanto, Marcelino insiste em que o vídeo é resultado da produção coletiva do CEFREC, CAIB e da comunidade que participa das filmagens. Antes de que El oro maldito fosse aprovado, seus roteiros foram rejeitados várias vezes pelo coletivo por serem, ou prejudiciais ao projeto de fortalecer a estima das culturas indígenas, ou demasiado arriscados no panorama nacional e internacional de luta contra a cocaína (Mosúa et al; Flores). Reynaldo Yujra, ao contrário, insiste que a ideia do roteiro de Qati Qati está baseada na tradição oral, em contos antigos que não se associam a um único autor individual, mas sim a uma longa história de narradores orais (durante a exibição do filme no festival internacional de Nova Iorque, em 2000). Porém, o diretor também inscreve sua responsabilidade pelo produto fílmico na própria tela. Em Qati, Qati se vê o rosto de Yujra brevemente por duas vezes: de perfil ou em primeiro plano iluminado pela luz azul da lua, que introduz o ambiente misterioso desse conto aterrorizante. Em seu 294 \ documentário K’anchariy (2002), Yujra insiste na figura do diretor documentarista aymara que viaja para pesquisar práticas medicinais entre os Kallawaya Quechua, que falam como personagens diferentes do antropólogo, que ocupa o mesmo lado da diferença colonial que a comunidade que visita. A informação documentada, ao mesmo tempo, faz parte do intercâmbio cultural indígena em vez de se converter em parte do arquivo etnográfico. Esse é um exemplo de comunicação intercultural nas comunidades indígenas que cresce com a produção e distribuição de vídeos; mas também é exemplo de coexistência de indivíduo e coletividade ligados por sistemas de reciprocidade e responsabilidade (e que as perspectivas ocidentais costumam reduzir a mera coletividade protossocialista). Os comunicadores indígenas não se cansam de repetir que o processo audiovisual é coletivo. Os papéis distintos são compartilhados; as decisões sobre roteiro, edição, trilha sonora, estilo cinematográfico ou ainda sobre certas técnicas adaptadas do cinema comercial são discutidas com o grupo intercultural de realizadores indígenas, com os membros do CEFREC e também com as próprias comunidades onde se filma. Por outra parte, se admite a necessidade de tomar uma decisão final sobre o filme. Sendo assim, Marcelina Cárdenas é responsável por Llanthupi e Faustino Peña é o responsável por Espíritú. O CEFREC/CAIB prefere usar o termo “responsável” em vez de “diretor” para marcar a distância com a figura do “diretor-estrela” ocidental. Rejeita-se a ideia romântica do auteur e criador de cinema como arte – que expressa sua personalidade através do meio – em favor de uma conceitualização mais adequada ao “processo integral” que constitui o vídeo indígena (Himpele, p. 358). A comunicação audiovisual indígena redefine o modo como grande parte da América Latina se pensa e se imagina. À medida em que vão expandindo-se as redes de comunicação descentralizadas e os / 295 contatos com as salas de cinema e a televisão nacional, o impacto dos meios indígenas cresce. Nesse processo, os índios já não são marginais nem folclóricos, mas os protagonistas do imaginário e da prática de uma modernidade diferente. O processo contém seus próprios conflitos, lutas pelo poder e diferenças de opiniões. Embora o vídeo indígena, em seus vínculos com as organizações do movimento social, não seja um meio ao alcance de todos, consegue ser expressão de uma visão política, cultural e epistemológica que busca alternativas em vez de assimilação. Os processos de recepção constituem novos espaços para o intercâmbio de ideias, dentro e entre as comunidades e, de maneira crescente, também com as populações urbanas e nos contextos em que se debatem alternativas de integração à ordem dominante. Tradução: Alessandra Carvalho Referências ALEMÁN, Gabriela. An International Conspiracy. 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A produtora Veneta Vídeo, conduzida por equipe interdisciplinar (antropólogos envolvidos com a produção de imagens e profissionais de televisão), permaneceu 45 dias entre os Kayapó-Txukarramãe em 1985 e, já no relato dessa experiência, mas também no trabalho mais sistemático realizado por Terence Turner no início dos anos 1990, aparecem muitos elementos que pude verificar, quase 25 anos depois, em minha pesquisa com os Kayapó da aldeia Môxkarakô. Destacam-se, desde o início, (1) uma preocupação em “registrar o conhecimento”; (2) a “mediação política desempenhada pelo vídeo” e (3) o estabelecimento de uma “comunicação por imagens”. São dinâmicas que procurei descrever e compreender a partir dos verbos “guardar” (a cultura), “estar” (com o corpo) e “comunicar” (cf. Madi Dias 2011). 1 A terra indígena Kayapó (TI KAYAPÓ) está localizada ao sul do estado do Pará e ao norte do Mato Grosso. Autodenominados Mebêngôkre, são cerca de 6 mil pessoas (Funasa 2006) espalhadas por diversas aldeias ao longo do curso superior dos rios Iriri, Bacajá, Fresco, Riozinho e outros afluentes do rio Xingu. Minha pesquisa sobre os usos do vídeo entre os Kayapó esteve diretamente relacionada às atividades do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, e ao Programa de documentação de línguas e culturas indígenas - PROGDOC. Agradeço pelo apoio de José Carlos Levinho e a parceria de André Demarchi. Eliska Altmann, Els Lagrou, José Reginaldo Gonçalves, Octávio Bonet, Ruben Caixeta de Queiroz e, especialmente, Marco Antonio Gonçalves contribuiram decisivamente com comentários instigantes e enorme generosidade intelectual. 2 Doutorando em Antropologia pelo PPGSA-UFRJ. Faz parte do Núcleo de Experimentações em Etnografia e Imagem (NEXTimagem) e do Núcleo de Arte, Imagem e Pesquisa Etnológica (NAIPE); Esteve associado ao Programa de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas - PROGDOC, Museu do Índio - FUNAI (20092011). Colaborador da Mostra Internacional do Filme Etnográfico desde 2008. 300 \ Cultura “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la” A produção audiovisual em contextos indígenas atinge, nesse início de século, um momento de consolidação que parece estar relacionado a um cenário de crescente interesse (geral e indígena) acerca da ideia de cultura.3 A primeira experiência nesse sentido aconteceu em 1966, quando uma série de seis documentários em curta-metragem foi produzida por estudantes indígenas do Navajo’s Project, conduzido em Pine Springs (Arizona, EUA) por Sol Worth e John Adair. Na ocasião, eles se perguntavam what would happen if someone with a culture that makes and uses motion pictures taught people who had never made or used motion pictures to do so for the first time? (Worth & Adair, 1972, p.3) Desde então, iniciativas como essa ganham força em um contexto de hibridismo que marca a contemporaneidade indígena. As mais expressivas envolvem povos nativos norte-americanos, australianos e da bacia amazônica (ver Shohat & Stam 2006, p. 70). A produção indígena de mídia se coloca como um objeto interessante justamente na medida em que faz parte do encontro interétnico, mobilizando problemas essenciais, tais como: tradição e modernidade, representação e autoridade, autenticidade, patrimonialização da cultura, autoria e propriedade intelectual etc. A problemática na qual se insere a presente discussão equivale àquela colocada por José Reginaldo Gonçalves (2007, p. 235249) ao tratar do potencial paradigmático que adquire o conceito 3 Cf. “Zonas de contato: quando ‘cultura’ se torna um conceito nativo (os índios na contemporaneidade)”. Marco Antonio Gonçalves 2010a p. 87-104. / 301 de “cultura”, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, para a interpretação da experiência humana. Caracterizando uma tensão clássica entre concepções “universalistas” e outras “relativistas” (p. 240-241), o autor procura obter rendimentos que para além de reeditar a “velha oposição” - possam “iluminar um outro aspecto: o reconhecimento ou não do caráter ficcional da cultura” (p. 242). Desenvolve uma concepção de cultura como linguagem e representação, enfatizando sua dimensão de “criatividade”. Chega, portanto, à formulação de Roy Wagner, segundo a qual “a antropologia é o estudo do homem ‘como se’ existisse cultura”. Avança em uma discussão sobre “a cultura como conversação”, conforme proposta de Kenneth Burke: a história cultural poderia ser pensada como uma interminável conversa que inclui vários participantes, mobilizando alianças e embates entre diferentes pontos de vista. Sugere então a imagem de uma “sala de debates”, onde entram e saem pessoas. Nenhum dos participantes seria capaz de remontar toda a discussão, uma vez que ela é anterior a cada um daqueles que conversam. Ainda, o diálogo permanecerá em desenvolvimento após que cada um deixe a sala Duas dimensões dessa “conversa” merecem ser exploradas aqui, a saber: (1) a entrada dos índios na “sala de debates” e (2) o modo como a “conversa” tem se estabelecido a partir de novos recursos técnicos e discursivos. Para tratar do primeiro ponto, faremos alusão ao texto recente de Manuela Carneiro da Cunha (2009, p. 311-373) que, ao analisar questões relativas ao direito intelectual sobre conhecimentos tradicionais, parece ajudar com a distinção proposta entre cultura e “cultura”, em que o uso entre aspas permite tratar do conceito considerando a apropriação nativa de um paradigma, até então, caro à teoria ocidental. A autora esclarece que os termos não se referem 302 \ a conteúdos diferenciados, mas também não pertencem ao mesmo universo discursivo. Em um esforço de maior precisão conceitual, sugere que o uso entre aspas se refira às “unidades num sistema interétnico” (p. 356). É flagrante, portanto, a partir dessa perspectiva, o acionamento da categoria “cultura” como canal dialógico que possibilita estabelecer uma relação performatizada (mostrar a cultura para o outro). Tal dialogismo está bem colocado pela ideia de contact zone, de James Clifford, em que o vídeo aparece como um modo de abordar o contato cultural em um sentido que valorize o compartilhamento de códigos a partir de mútua inteligibilidade. Tal formulação “nos permite escapar de uma redução do contato à definição de conjuntos fechados que fazem trocas sempre desiguais” (Gonçalves 2010, p. 87). O segundo ponto se refere justamente ao modo como se estabelecem essas relações. Se estamos tratando da “cultura” como instrumento de afirmação (em que importa a performance), e até como invenção, um paradigma visual parece bastante conveniente como maneira de dar visibilidade aos diferentes pontos de vista em uma “conversa” que passa a incluir novos participantes. O vídeo, então, faz jus ao profetismo de Jean Rouch: “o antropólogo não terá mais o monopólio da observação”, “o filme etnográfico nos ajudará a compartilhar a Antropologia” (cf. Piault, 1996, p. 55). Deve-se assumir, porém, que o desenvolvimento de determinada tecnologia está necessariamente vinculado às circunstâncias sociais e culturais que o sustentam. Em outras palavras, pode se dizer que o audiovisual chega aos povos indígenas como um modo eficaz de relação com a sociedade envolvente justamente em função da importância que a imagem assume, cada vez mais, no mundo contemporâneo. Marco Antonio Gonçalves (2010b), em artigo que analisa diferentes leituras acerca das imagens, identifica uma / 303 passagem da oralidade para a ênfase na cultura visual. Recuperando diferentes concepções da imagem, desde Platão, sublinha o caráter ambíguo das imagens como capaz de colocar questões fundamentais: as leituras imagéticas nos ajudam a compreender conceitos cruciais como os de realidade, representação, simulação, falso, verdadeiro, cópia, original – conceitos que nos guiam na percepção do mundo e na forma como construímos nossas relações sociais. (p. 14) Um grande interesse pela visualidade estaria construindo um mundo “superpovoado por imagens” (p. 17), onde as relações sociais passariam justamente por mediações imagéticas como uma nova forma, por excelência, de concebermos e nos apropriarmos do mundo. Guardar a cultura Ao serem perguntados sobre filmagem, os Kayapó sempre me diziam estar guardando a cultura para seus filhos e netos. A despeito de uma razão prática, no entanto, procurei compreender justamente como guardam por imagens. E uma primeira observação se referiu ao potencial infinito de consumo das fitas, sem que necessariamente conseguíssemos realizar filmagens planejadas, sem que pudéssemos gerar um “bom material” (as aspas relativizam as minhas razões práticas e os meus conceitos nativos). Percebi logo que o consumo das fitas estava diretamente relacionado com uma ênfase na produção de imagens como etapa que se justifica em si mesma, deslocando a importância do conteúdo para a forma, ou melhor, para o processo, para a própria atividade de filmagem, e colocando uma questão sobre o armazenamento, ou seja, sobre o modo como os Kayapó guardam por imagens, já que produzem uma 304 \ quantidade tão grande de material audiovisual. Cumpre destacar que as condições em que as fitas são armazenadas não são ideais, fazendo com que o material filmado se torne rapidamente inutilizável (questão já apontada em Turner, 1992, p. 7). Tendo identificado o problema de armazenamento, notei que o verbo “guardar” merecia ter seu sentido investigado. E então pude relacionar o modo como os Kayapó guardam por imagens a uma dinâmica de (re)produção e uso constantes, algo expresso pelo poema de Antônio Cícero, Guardar, conforme o trecho que segue: Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela. Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro Do que de um pássaro sem vôos. Guardar a cultura, para os Kayapó, parece se referir ao potencial das imagens em “colocar aspas na cultura”, ou seja, sublinham uma potência da imagem em objetivar e mobilizar juízo, apresentando um mundo hiperrealista - uma “representação mais perfeita que o real”, cf. talvez sugerisse Diderot.4 Com a câmera ligada, as concepções nativas de beleza [mejx] são postas em jogo, indicando também um modo correto de se apresentar. Nesse registro, às vezes se tornam problemáticos alguns elementos que na vida cotidiana não são tidos como contraditórios do ponto de vista da autoimagem: etnopensar, como queria Jean Rouch. É nesse sentido que 4 Ver “L’imperfection du vrai”. Gefen, A. (Ed.) La mimèsis. Paris: Flammarion, 2002. / 305 penso ser interessante compreender as imagens como estímulos à criação de contextos rituais e culturais que procuram eliminar as contradições, guardando a cultura em sua sincronia, na medida em que se proliferam as práticas culturais para a filmagem. O vídeo faz as pessoas fazerem as coisas, em uma espécie de devir imagético (Gonçalves & Head, 2009) que produz consciência e reflexividade, destacando as práticas de um fluxo vivido e as objetivando enquanto representações. Uma ênfase na produção das imagens trará complicações interessantes para a tarefa de guardar por imagens. Isso porque as imagens colocam uma ambiguidade própria ao regime imagético na medida em que apontam para a realidade ao mesmo tempo em que não se confundem com ela. Ao explorar o caráter processual do vídeo, em última instância, os Kayapó estão destacando o trabalho do cinegrafista, fazendo questão de não esquecer que aquelas imagens são produtos de um momento pretérito, ou seja, “isso é um filme”. Declaram, assim, uma profunda descrença quanto à capacidade de uma imagem em substituir a realidade, ou seja, “isso não é a realidade”. E então está colocada mais uma questão sobre como guardar por imagens - se as imagens são cópias e, portanto, são falsas (ver Xavier, 2003). O vídeo como alegoria O paradoxo do “guardar por imagens” aparece na medida em que a filmagem denuncia um empreendimento ativo no sentido de preservar, colocando aquilo que se pretende registrar como tradicional no regime do extraordinário. Essa excepcionalidade se torna evidente no riso, que instaura a moldura da brincadeira (Bateson, 1972, p. 138-148). Recorrendo às interações não verbais, Bateson sugeriu a compreensão da mensagem meta-comunicativa “isso é uma brincadeira” a partir de sua eficácia em termos de 306 \ framing (enquadramento). Talvez a mensagem “isso é um filme” possa explicar o riso escandaloso das mulheres e a diversão das crianças, por exemplo, ao verem, em uma televisão, os homens pelados na mata, vestindo apenas um estojo peniano, a “cueca dos antigos”. A transição entre os domínios de cultura e “cultura”, passagem operada pelo vídeo através de uma mudança de contexto, altera profundamente o sentido dos termos: Fazer com que as coisas pareçam exatamente iguais àquilo que eram dá trabalho, já que a dinâmica cultural, se for deixada por sua própria conta, provavelmente fará com que as coisas pareçam diferentes. A mudança se manifesta de fato no esforço para permanecer igual. (Carneiro da Cunha, 2009, p. 372) O vídeo, para além de indicar uma realidade à qual faz referência, enuncia algo sobre a natureza do que está sendo filmado, a saber: seu caráter transitório e de perda. Trata-se, em verdade, de um enunciado indireto que informa e institui uma condição contingente. Nessa mesma direção, recorrendo às definições da teoria literária, e recuperando a sugestão de James Clifford (2008, p. 59-91),5 José Reginaldo Gonçalves caracterizou os discursos de patrimônio cultural como alegorias da nação: As alegorias não apenas ilustram ou expressam uma tal situação de perda, mas também atualizam, em sua própria estrutura, essa combinação de um sentido de transitoriedade e um desejo de redenção. Desse modo, elas não somente expressam um desejo por um passado glorioso e autêntico; elas, simultaneamente, expõem o seu desaparecimento. Estruturalmente, trata-se de uma forma de representação que está baseada na própria desconstrução do seu referente. (Gonçalves, 2002, p. 27) 5 A saber: explorar a dimensão alegórica da etnografia como gênero discursivo. / 307 Nessa perspectiva, os discursos sobre patrimônio podem ser pensados como portadores de um sentido duplo: “desaparecimento e reconstrução imaginativa, perda e apropriação, dispersão e coleção, destruição e preservação, contingência e redenção” (p. 30). O registro das “tradições” kayapó a partir do que “os antigos faziam” torna logo evidente o fato de que as coisas mudaram. Não há mais guerra. O estojo peniano não é mais utilizado. Estamos diante da contradição posta pela atividade de guardar por imagens, uma vez que o vídeo não apenas sugere, mas efetivamente cria um cenário de contingência. O processo de perda não é algo exterior ao discurso de redenção, mas é mesmo constitutivo dessa forma discursiva que mobiliza os sentidos de destruição e preservação de maneira indissociável. Devemos então nos perguntar sobre o quê é guardado pelas imagens. Eu diria que o vídeo coloca-se como uma ferramenta poderosa para guardar a cultura em sua dimensão sincrônica (e não diacrônica). Guardam-se os saberes, as práticas e os fazeres para a câmera. O vídeo faz as coisas acontecerem, encontrando um lugar providencial no interior de uma sociedade Jê, que está sempre lidando com modos performatizados e aparentes de expressão, formas corporais e visíveis, talvez concebendo de forma nativa a cultura com aspas. Corpo “O ciborgue é nossa ontologia; ele nos fornece a nossa política”6 Para a compreensão do trabalho de um cinegrafista Kayapó, não podemos prescindir da dimensão política, ou melhor, biopolítica da relação entre corpo, câmera e um horizonte de alteridade. Acompanhando Donna Haraway, para quem “o conceito de biopolítica 6 Haraway, 2009, p. 37. 308 \ de Michel Foucault é uma frouxa premonição da política do ciborgue” (2009, p. 37), trataremos da relação entre corpo e câmera como um circuito integrado que confunde as noções de “subjetividade” e “objetividade”. Meu objetivo central é apresentar o uso da câmera de vídeo entre os Kayapó como um modo privilegiado de tecer relações com a alteridade em uma perspectiva de “‘alter-objetificação’ e ‘autosubjetificação’” (Gordon, 2006, p. 218).7 Terence Turner já havia descrito um uso do vídeo que faz parte do encontro dos Kayapó com representantes dos governos regional ou nacional, ou mesmo com outros setores da sociedade envolvente.8 Trata-se de um modo de sugerir presença através da mediação política proporcionada pelos recursos audiovisuais, deslocando a atenção para o fato de que os índios passam a operar equipamentos de filmagem e fotografia (ser sujeito ao manipular objetos) e disseminando uma imagem vinculada ao ethos guerreiro kayapó nas mídias nacional e internacional. “Kayapo, in short, quickly made the transition from seeing video as a means of recording events to seeing it as an event to be recorded” (Turner, 1992, p. 7). A ideia de estar através de imagens está profundamente relacionada a uma discussão sobre corporalidade e a uma concepção nativa que privilegia o papel do realizador (cinegrafista) na produção das 7 Seria interessante traçar uma relação entre essas ideias e a teoria de Gregory Bateson, o que não farei aqui por falta de espaço. Sugiro apenas que consideremos níveis diversos de integração sistêmica: o corpo e a câmera como objetos de uma cismogênese simétrica (em que o corpo busca repetir a qualidade da câmera); o “eu” e o “outro” como sujeitos potenciais de uma cismogênese complementar (em que a identidade adquire sujeição em relação com a alteridade-objetivada). 8 A maneira como os Kayapó utilizam o vídeo para marcar presença foi objeto de reflexão de Terence Turner em Defiant Images – The Kayapo appropriation of video, artigo publicado na Anthropology Today em dezembro de 1992 e resultado da palestra de Turner na ocasião da visita de Mokuká Kayapó e Tamok Kayapó ao RAI’s Third International Festival of Ethnographic Film, patrocinado pela Granada Television. / 309 imagens, tratando-se de um processo de construção de corpos e imagens ao mesmo tempo. Investirei, portanto, em uma chave analítica que possa alocar a câmera de vídeo em um regime sóciocosmológico que está baseado no princípio de fabricação dos corpos, mais especificamente tratando do endurecimento do corpo como um processo inerente ao ciclo de vida e, então, sugerindo uma dupla eficácia da câmera: tanto na constituição desse corpo quanto em tornar visível sua qualidade rígida que, por sua vez, informa uma condição específica de sujeito mebêngôkre: sua passagem de objeto a sujeito em um contexto de relação assimétrica. O discurso de Mokuká, proferido na ocasião do RAI’s Third International Festival of Ethnographic Film, é ilustrativo nesse sentido: Do whites alone have the understanding to be able to operate this equipment? Not at all! We Kayapo, all of us, have the intelligence. We all have the hands, the eyes, the heads that it takes to do this work. (Mokuká Kayapó apud Turner, 1992, p. 8) Assim, a pesquisa com vídeo entre os Kayapó coloca a necessidade de atentarmos não exatamente para os filmes que são feitos, mas para aquilo que é feito quando se está filmando. O discurso de Mokuká, na medida em que nos remete a uma relação entre corpo e técnica, permitirá a reelaboração de nossas preocupações: trata-se de entender o que é feito com o corpo por meio de sua relação com a câmera. Essa relação está bem colocada na história sobre o primeiro contato de Mokuká com uma câmera de vídeo, em 1989. Um amigo teria deixado uma câmera com ele no encontro de Altamira, ocasião que congregou diferentes povos indígenas contrários à construção de hidrelétricas na região do Rio Xingu. Em sua narrativa, Mokuká dá ênfase ao fato de que não teve instruções para manipular o 310 \ equipamento. Conta que desenvolveu inicialmente uma relação experimental com a câmera, até que pudesse “se acostumar” com ela. Por fim, em suas palavras, “minha mente entrou na câmera e a câmera entrou em mim”. Quero argumentar que, para os Kayapó, o ato de filmar supõe uma atividade corporal mais do que uma ação baseada na assimilação de gêneros narrativos ou padrões técnicos e estéticos.9 A imagem filmada aparece como produto do desempenho do corpo. Corpos que fazem imagens que fazem corpos10 Uma primeira reflexão sobre imagem e desempenho pode ser empreendida a partir dos termos utilizados para designar as atividades de fotografia e filmagem. Foto e filme são igualmente traduzidos 9 Ver Ingold (2000) para uma concepção instrumental de sujeito (que aparece como influência da filosofia de Heidegger - dasein, ser-no-mundo). Em outra ocasião (Madi Dias, 2011), busquei relações entre o trabalho do cinegrafista Kayapó e a estética do construtivismo russo dos anos 1920. Tal relação é possível no sentido de uma arte anônima, mecânica, que oculta o sujeito. As aproximações são instigantes na medida em que possibilitam aceder à imagem do ciborgue (Haraway, 2009), explorando um potencial agentivo não-humano (Ingold, 2000) e conceituando essas imagens como diretamente relacionadas a um dispositivo sensório-motor (Deleuze 1985; sobre o cinema de Dziga Vertov). 10 As discussões sobre corporalidade se desenvolvem, no interior da etnologia sulamericana, como decorrentes de uma questão colocada por Joana Overing no simpósio Social Time and Social Space, realizado no Congresso de Americanistas de 1976. Se o trabalho dos africanistas havia demonstrado a importância das linhagens e dos grupos de descendência para aquele continente; se as sociedades do Pacífico se encontravam caracterizadas pelos seus circuitos de troca como um fato social total; Overing perguntava “o que é, então, que estrutura as sociedades amazônicas?”. Em artigo clássico de 1979, Seeger et al. sugerem que “as noções ligadas à corporalidade e construção da pessoa são algo básico” (p. 10); ver também Viveiros de Castro 1987. A partir de então, o corpo passa a desempenhar um lugar central como idioma para definir identidade e diferença, objetivando relações sociais nas terras baixas da América do Sul. As reflexões ora apresentadas se valem desse corpus de discussão e exploram o “caráter artefatual do corpo ameríndio” (Cf. Lagrou 2009, cap. 2). Para além do contexto amazônico, lembremo-nos do conceito hegeliano de “objetivação”, revisitado por Daniel Miller (2005) para tratar de um surgimento coincidente entre sujeito e objeto; ou, ainda, da proposição maussiana segundo a qual o corpo é “o primeiro e o mais natural objeto técnico” (Mauss, 2003, p. 407). / 311 por mekaron, palavra que também designa alma/ espírito/ duplo. A atividade de produção dessas imagens, no entanto, apresenta uma diferença importante: fotografia - mekaron kabá; filmagem mekaron ipêx. O ato de tirar fotos, mekaron kabá, remete à ideia de cópia, é também como se referem às cópias de DVDs ou mesmo pode significar “xerox” (de um documento, por exemplo). Filmar, mekaron ipêx, apresenta a dimensão de desempenho da qual nos ocuparemos aqui. Isso porque ipêx está ligado ao ato de construir/ fazer/ desempenhar (construir uma casa, por exemplo). A imagem filmada, diferente da fotografia, é por definição um produto do desempenho humano. E a apreciação dessas imagens pelos índios, bem como o julgamento direcionado a elas, ajuda a compreender a relação estabelecida entre a câmera e o corpo do cinegrafista. Entre os Kayapó, ser um bom cinegrafista não significa necessariamente fazer bons planos, mas ser capaz de manter o quadro e a sequência. A imagem bela tem um caráter menos substantivo que adverbial: a beleza não está na imagem, mas em como ela foi filmada. Em outras palavras, o contexto narrado está em direta relação com o contexto de enunciação. Não raro, ao assistirem a um vídeo, desejam saber quem foi o cinegrafista: por isso, essa é mesmo uma maneira de estar através das imagens - uma vez que a mão do mediador permanece presente, compondo o produto final sobre o qual recairá o julgamento estético. O que deve ser julgado é justamente a condição de produção (a capacidade de quem filma). A reclamação recorrente se dá quando o cinegrafista “treme” (não mantém bem o quadro e/ou a sequência). O julgamento não recai sobre o fim (filme, em seu aspecto de unidade narrativa e coesão interna), mas sobre o processo que deu origem a ele. Valorizam não uma concepção de “criatividade”, em si mesma, mas antes o êxito no cumprimento 312 \ de aspectos formais a serem seguidos, ou seja, um virtuosismo no desempenho da técnica.11 Desse modo, a reclamação de que uma imagem não está boa (punure) pode ser entendida como julgamento à condição do corpo que a realizou: um corpo mole, fraco (rerekre). Ao contrário, uma imagem bonita, realizada de forma correta (mejx), corresponde a um corpo rígido, forte (töjx). A relação entre corpo e imagem sugere que tenhamos simultaneamente uma imagem bela (mejx) e um corpo rígido (töjx) – em oposição ao par imagem ruim (punure) / corpo fraco (rerekre) Tal relação se sustenta em um conceito de beleza que, conforme demonstrado pela literatura mebêngôkre, deve ser tomado em uma perspectiva abrangente – indicando tanto coisas e pessoas belas quanto sentidos moral e eticamente corretos. O gosto por uma imagem bonita/correta poderá dizer sobre uma postura corporal desejável e mesmo necessária à execução da atividade de filmagem. Passemos à contextualização da prática de vídeo na ocasião dos encontros políticos entre os Kayapó e os representantes do governo regional ou nacional. Foi justamente nessas situações em que Terence Turner notou a capacidade dos índios em se fazer presente através do ato da filmagem. Cesar Gordon (2006, p. 209-210) chamou a atenção para o fato de os índios Kayapó serem tão conhecidos pela presença e, ainda mais, pelo exercício de sua bravura em situações notáveis de encontro político com a frente de expansão brasileira, mesmo após o processo de pacificação. O célebre encontro de Altamira, ocorrido em 1989, permanece como exemplo clássico dessa relação entre índios e brancos, marcada por hostilidade, tendo sido descrito por Turner como o equivalente simbólico a uma caçada coletiva (cf. 1991, p. 337-338, Baridjumoko em Altamira). 11 Alfred Gell (2005) descreveu algo semelhante com relação ao trabalho do escultor de madeira nas ilhas Trobriand. / 313 Conforme notou Gordon, nessas reuniões fora da aldeia, os índios se preparam diferente de como normalmente vão à cidade. Em situações cotidianas, utilizam “roupas de branco”, procurando demonstrar civilidade; procuram se apresentar de modo domesticado ou pacífico (uabô ou djuabô). Nas situações de encontro político, então, os “guerreiros” assumem uma postura feroz (àkrê ou djàkrê), tratando da relação com o estrangeiro a partir da lógica da guerra e da predação. Caracterizando essas duas qualidades do ser Kayapó (uabô, àkrê), Cesar Gordon chama atenção para o fato de que Essas características são efetivamente produzidas nas pessoas, mediante uma série de procedimentos controlados de transformação “afeto-corporal”, a que são submetidas desde crianças, e que incluem: ingestão de certos alimentos, ordálios e provas de fogo (no caso da qualidade agressiva); desenvolvimento da audição, do entendimento e do respeito/vergonha (pia’àm), enfim, de uma moralidade comunitária (no caso da qualidade domesticada ou mansa). (Gordon, 2006, p. 218) Desejo chamar atenção para o caráter ambivalente da prática de vídeo no que diz respeito à produção do corpo: não apenas dá visibilidade à condição corporal mas atua também como um modo de constituição da subjetividade àkrê e a consequente objetivação do outro. Opera justamente a passagem de objeto a sujeito e, portanto, mobiliza esses diferentes estados do ser Kayapó, estabelecendo, respectivamente via bravura e mansidão, os pares nós/sujeito (bravos) X eles/objeto (mansos) em uma relação assimétrica. Reside aqui o que Cesar Gordon (2006, p. 218) chamou de “uma inflexão perspectivista do pensamento mebêngôkre”, algo relacionado à alternância entre “dois vetores da relação” com a alteridade e tão bem expresso pelo mito de Àkti, que conta a origem da bravura: 314 \ Antigamente os índios eram mansos, fracos e não tinham armas. Eles viviam a mercê de Àkti, o gavião gigante, que os caçava, carregava-os pelo céu até seu ninho e os devorava. Um dia uma mulher velha foi ao mato com seus dois sobrinhos (netos) pequenos para tirar palmito. Ali ela foi atacada por Àkti diante dos meninos, que fugiram aterrorizados para a aldeia. O pai (ou tio) dos meninos (irmão da mulher devorada pelo grande gavião), movido pelo sentimento de vingança, descobre um meio de liquidar o monstro, transformando seus sobrinhos em super-homens. Ele coloca os meninos dentro de um grotão, alimentando-os com beiju, banana e tubérculos para que cresçam bastante e fiquem fortes. Passamse os dias e é como se os meninos fermentassem dentro d’água. Depois de um tempo eles haviam crescido e se tornado enormes, mais fortes e capazes que qualquer índio. Caçavam antas e outras caças grandes como se elas fossem pequenos roedores. Um dia, então, Kukry-uire e Kukry-Kakrô saem para caçar Àkti munidos de borduna, lança e um apito de taquara, armas feitas pelo tio. Ergueram um abrigo de palha no chão, de onde se via o ninho do gavião. Ao pé da árvore havia uma pilha de restos humanos como ossos e cabelos. Os irmãos atraíram Àkti soprando o apito. A imensa ave descia pronta para o ataque, mas eles escondiam-se no abrigo, deixando-a desnorteada. Fizeram assim muitas vezes, deixando o pássaro cada vez mais furioso e desorientado, até que mostrou sinais de cansaço. Os irmãos, então mataram-no com lança e borduna. Como troféu tiraram as penas de Àkti e puseram na cabeça. Cantaram. Celebraram. Depois depenaram a ave e retalharam-na em pedaços pequenos. Sopraram as penas e elas foram transformando-se em pássaro. As penas maiores deram origem às aves maiores (gavião, urubu, arara) as plumas menores deram aos pequenos pássaros como o beija-flor. (Gordon, 2006, p. 213-214) Gordon passa a examinar a relação entre o mito de Àkti e o mito da origem do fogo, que teria sido roubado da onça (Lévi-Strauss, 1964 / 315 [2004]). “Ambos tematizam ideias mebêngôkre sobre a importância de predar e não ser predado” (Gordon, 2006, p. 216). A atividade do cinegrafista, pensada no contexto do encontro com a alteridade, não pode deixar de acionar um jogo relacional entre objeto e sujeito - posições não marcadas, não absolutas, mas contextuais. O que está em questão é justamente um modo de marcar essas posições e de se fazer sujeito frente ao outro. A câmera como recurso dialógico, que opera uma passagem de objeto para sujeito, só pode ser conduzida por um corpo duro, um corpo firme. Isso porque a qualidade àkrê é aquela que importa para o relacionamento com a alteridade. “É a qualidade da ‘alter-objetificação’ e da ‘autosubjetificação’” (Gordon, 206, p. 218). Para se tornarem “agentes”, os heróis do mito recebem uma dieta especial a base de bananas, beiju e tubérculos. Em outra versão desta narrativa, coletada por Vidal (1977, p. 225), pode-se ler que, além da dieta, os corpos dos garotos foram submetidos a um tratamento com urucum e côco, depois de serem limpos “da sujeira e do melado do peixe” com talhas de palmeiras. Essa preparação do corpo visa ao seu aumento e ao seu fortalecimento para um momento especial de enfrentamento com o inimigo. Depois de matarem o grande gavião, os heróis roubam-lhe as penas, dançam e celebram. Apoderam-se da beleza do inimigo e rapidamente a colocam para funcionar no sistema cerimonial kayapó. A partir dessa perspectiva, podemos compreender a importância da alteridade como horizonte de conquista, em que o vídeo se coloca como um dispositivo de relação. A relação entre o corpo e a câmera ajuda a pensar a prática de vídeo em suas dimensões de permanência e variação: se, por um lado, como demonstrei até aqui, os corpos passam por um processo social de endurecimento/embelezamento; por outro lado, a câmera impõe ao cinegrafista um modo específico de corporalidade, 316 \ proporcionando mesmo a reelaboração das técnicas corporais (Mauss, 2003, p. 399-422). O cinegrafista deve ser capaz de assimilar a agência da câmera, anexando ao próprio corpo as capacidades técnicas do equipamento. A estética do ciborgue (Haraway, 2009) parece ser útil ao sugerir acoplamento, a adição de agentividades ao corpo através de conexões entre matérias heterogêneas e que determinam corporalidades específicas. A especificidade aqui reside na construção de uma capacidade visual que está baseada em todo o corpo (e não em um órgão específico, o olho). Isso porque, para atingir um parâmetro de perfeição dado pelo olho, todo o corpo deve estar engajado na ação de filmagem. A ênfase na ação é importante, pois é justamente o movimento que permite a avaliação estética do corpo através da imagem12. Em uma linguagem cinematográfica, os Kayapó têm no travelling a possibilidade de executar juízo sobre a imagem e, portanto, sobre o corpo que a produziu. Os termos que embasam o julgamento kayapó sobre o vídeo são tanto a rigidez da imagem quanto seu movimento. O quadro deve, então, não tremer e se movimentar. Podemos entender, assim, a recusa pelo uso do tripé. Embora tenhamos sugerido, nas oficinas, o seu manuseio, os alunos preferiam, explicitamente, trabalhar com a câmera na mão, transferindo para o corpo a tarefa e a capacidade do objeto técnico. Axuapé, um dos melhores cinegrafistas, chegou a ser apelidado de Axuapé-mão-de-tripé. 12 É preciso considerar, certamente, a dimensão temporal envolvida no julgamento. Quanto maior a duração de um plano, mais difícil será manter o corpo-câmera em movimento rígido. No entanto, entre os Kayapó, essa percepção do tempo estará necessariamente subjugada ao movimento, pois se trata justamente de apreciar a dispersão do movimento no tempo. Não estamos falando, então, de um tempo puro - conforme aquele caracterizado por Deleuze (1990) como livre da ação e do movimento. / 317 A imagem cronicamente imperfeita Vimos que uma imagem bela terá sido necessariamente produzida por um corpo duro. Estabelecemos, assim, uma classe semântica ampla, que reúne as ideias de auto-sujeição (àkrê), desempenho (ipêx), rigidez (töjx) e produção de beleza (mejx). Resta dizer que a imagem perfeita permanece cronicamente como uma imagem ideal, impossível de ser realizada. A impossibilidade da perfeição continuará falando de dinâmicas próprias aos Jê e aos Kayapó, mobilizando a relação de hierarquia etária. É importante destacar que, entre os Kayapó, “o desenvolvimento afeto-corporal de uma pessoa, do nascimento à morte, pode ser visto como um processo de ‘endurecimento’” (Gordon, 2006, p. 316) – o que nos permitirá relacionar juízo estético e ciclo de vida.13 Algumas pessoas mais velhas eventualmente possuem uma câmera e, com ela, realizam procedimentos de filmagem. Invariavelmente, porém, o uso das câmeras dos projetos se dão por jovens escolhidos pelo conselho dos homens. É preciso, então, diferenciar os usos da câmera realizados pelas diferentes faixas etárias. Os mais velhos parecem exibir um objeto de consumo diferenciado a que tiveram acesso por meio de suas relações particulares, evidenciando uma lógica consequentemente mais pessoalizada. Os mais jovens são os escolhidos para a participação nos “projetos”, são designados pela comunidade para o acesso a recursos disponíveis a partir do contato com os brancos, assunto definitivamente público. O que acontece quando essas imagens, provenientes dos “projetos”, que dizem respeito a toda a comunidade e que são frequentemente exibidas em sessões noturnas, são avaliadas por um público interno? Deparamo- 13 Diferencia-se aqui, através das categorias “jovens” e “velhos”, dois grupos etários presentes no interior de uma mesma classe de idade, a dos Mekrare, “aqueles que já possuem filhos”. Para mais informações sobre ciclo de vida entre os Mebêngôkre, ver: Gordon, 2006, p. 316-321. 318 \ nos aqui com um ciclo vicioso que não permitirá a execução da beleza plena. Isso ocorre porque, como vimos, a imagem bela deverá estar ligada ao desempenho de um corpo duro – que, em sua rigidez, revela a condição de sujeito/bravura. Acontece que os jovens jamais poderão ser tão bons guerreiros quanto os mais velhos. A afirmativa pode ser confirmada pelo uso da palavra “guerreiro”. A princípio, ela se aplica a todos os homens, tanto que o ngà, espaço que ocupa o pátio central da aldeia e classicamente traduzido pela literatura como a “casa dos homens”, é quase sempre proferido pelos índios como a “casa dos guerreiros”. No contexto de divisão e comparação etárias, como nos casos de divisão de alimentos, a palavra tem seu uso reservado aos mais velhos, com a formação de dois grupos: “os guerreiros” e “os jovens”. Dizer que os mais velhos são mais guerreiros significa dizer que são mais bravos/fortes, tendo sua subjetividade àkre mais desenvolvida. A dinâmica descrita pode ser entendida a partir de formulações, já clássicas sobre as sociedades Jê, que destacam sua complexidade sócio-cosmológica e enfatizam o detalhe, a segmentação e a hierarquia (Nimuendaju, 1946; Lévi-Strauss, 1958 [2008, VIII]; DaMatta, 1976; Carneiro da Cunha, 1978; Maybury-Lewis, 1979). A importância da segmentação etária, evidente em diversas atividades rituais e cotidianas, impede que tenhamos uma sessão de visionamento sem as críticas detalhistas dos mais velhos sobre as imagens filmadas pelos jovens participantes dos projetos. Essas críticas são realizadas tanto informalmente quanto em discursos formais proferidos na casa dos homens, onde justamente os mais velhos detêm o poder da palavra. Para os mais velhos, a imagem sempre estará ruim, entenda-se, tremida. Em alguns momentos, a sessão de visionamento parece mesmo um jogo de encontrar / 319 defeitos, através do qual se exerce a diferenciação e a hierarquia. Aí reside, muitas vezes, a maior diversão dos Kayapó: assistir a uma imagem que enfatiza a diferença e a segmentalidade internas e que, assim, por meio de uma dimensão formal, fala da sociedade. Comunicação “Siga as valas que a água escavou, e assim conhecerá a direção do escoamento”14 Se “guardar” (a cultura) permite entender a relação entre a prática audiovisual e um modo de consciência histórica, “comunicar” sugere um uso do vídeo que está preocupado com a geografia. Enquanto utilizam o vídeo para guardar a cultura através do tempo, os Kayapó, ao filmar e comunicar, estão proporcionando dispersão e mesmo a ligação entre diferentes espaços. Se antes tratamos do consumo das fitas mini-DV pelos cinegrafistas (em função de uma demanda colocada pelo visionamento, é verdade), devo dizer que algo consumido ainda com mais avidez pelos Kayapó são os DVDs graváveis. Isso porque para cada fita que se gasta com a filmagem de sessenta minutos, aproximadamente, muitos DVDs serão gravados para que cada um tenha aquelas imagens e, ainda, para que cada pessoa possa enviá-las para seus parentes próximos ou distantes, muitas vezes em outras aldeias, acionando e criando redes dentro e fora da aldeia, mobilizando o sistema de parentesco e de amizade entre os Kayapó, entre si, e com relação aos seus outros Sobre a reprodutibilidade técnica Encontramos uma relação profunda entre as atividades de guardar e comunicar, demonstrando como se tratam mesmo de processos 14 Carlos Castañeda apud Deleuze & Guattari, 1995, p. 20. 320 \ indissociáveis. Isso porque a reprodutibilidade técnica, como definiu Walter Benjamin (2008), na medida em que “permite a reprodução vir ao encontro do espectador, (...) atualiza o objeto reproduzido” (p.168-169). Vimos que essa atualização constante é o que caracteriza o guardar por imagens. É também o que possibilita uma comunicação por imagens que está baseada fundamentalmente no estabelecimento de relações sociais, acionando e também criando redes por meio de um “valor de exposição” (Benjamin, 2008, p. 172). Para Benjamin, podemos compreender a história da arte a partir da variação do peso conferido aos dois vetores, inversamente proporcionais: valor de culto e valor de exposição. “A produção artística começa com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens, é que elas existem, e não que sejam vistas” (p. 173). Com o passar do tempo, e com o advento da reprodutibilidade técnica, teríamos assistido ao enfraquecimento do valor de culto e ao consequente fortalecimento do valor de exposição das obras de arte. O cinema e a fotografia radicalizam esse movimento, fazendo da exibição um momento privilegiado para que as imagens encontrem sua razão de ser – algo que parece fazer bastante sentido para os Kayapó. Procurei então extrair rendimentos diversos de um mesmo fenômeno: encontrei, conforme descrito sobre a imagem guardada, um uso constante e imediato, evocando uma dimensão espaço-temporal da imagem que aparece aqui decomposta: se antes procurei caracterizá-la quanto ao tempo, agora pretendo analisar seus desdobramentos quanto a mobilidade, dispersão, transmissão, deslocamento. Imagem como Mekaron A questão da distribuição nos ajudará a desenvolver uma reflexão sobre imagem como mekaron. Essa é a palavra utilizada na língua / 321 kayapó para designar imagem, fotos e filmes. Aplica-se também, e originalmente, a alma/ duplo/ espírito. Propus anteriormente (Madi Dias, 2011) um desprendimento deste termo (mekaron) com relação àquela noção (imagem) e sugeri que o uso das palavras em português (“imagem”, “filme”) aponta para concepções que não são substancialmente distintas (encontram correspondência em um sistema de signos, langue) mas que se referem a campos diferenciados de aplicação discursiva (parole). Se antes investi em uma variação quanto ao significado desses termos, aqui investigo justamente as aproximações possíveis. Nesse sentido, o exame da relação entre imagem e mekaron poderá contribuir pra o entendimento da dimensão de mobilidade que, em detrimento de um paradigma narrativo, informa a prática audiovisual entre os Kayapó. Em outras palavras, quero argumentar que as imagens kayapó são essencialmente anti-narrativas e essa característica estará bem expressa na concepção de imagem como mekaron, isto é, alma/ duplo/ espírito. Façamos antes uma digressão em direção ao que seria uma concepção imagética efetivamente narrativa. Vejamos o que nos conta Etienne Samain sobre o caso kamayurá: Os Kamayurá não possuem um termo específico para conotar o que glossamos por “mito” ou, ainda, por “história”, “estória” e “narrativa”. Utilizam a palavra “moroneta”, mais abrangente e genérica, para designar toda forma de “explanação”, antes de tudo verbal e narrativa mas que pode ser também de ordem visual e pictórica. É por isso que um “desenho” (ta’angap) traçado sobre o chão (por ex., o nome-tabu de uma pessoa) ou uma “fotografia” serão também designados como moroneta, não somente porque, como observa bem R. J. Menezes (1978, p. 89, nota 9) “são capazes de, desacompanhados da expressão falada, explanar o que registram” mas sobretudo – quero acrescentar – porque ambos são as “réplicas” de uma realidade que somente podem “evocar” 322 \ ou retratar. Em outras palavras, moroneta (história, desenhos, retratos) não são a realidade, mas apenas as representações e as figuras dela, o que remete a um original presente ou ausente sem o qual não existiriam. (Samain, 1991, p. 73) Dois aspectos mencionados por Samain merecem nossa atenção. O primeiro se refere ao estatuto da imagem que, por seu turno, aparece como um ponto possível de encontro entre as concepções kamayurá e kayapó. Trata-se, para os indígenas, de não confundir imagem e realidade – mas destacar a existência de dois termos de uma relação (signo e referente, para utilizar uma linguagem semiótica). Quanto ao segundo ponto, devemos nos perguntar sobre o modo como se estabelece a ligação entre imagem e realidade. Esse ponto expressa o que poderíamos chamar de uma eficácia imagética (o que a imagem faz), em que podemos perceber uma diferença crucial colocada na comparação entre os casos kamayurá e kayapó quanto ao modo de operação da imagem em um regime comunitário. Para os Kamayurá, a relação entre imagem e realidade parece ter base discursiva: ao reunir histórias, desenhos e fotografias em torno de um mesmo significante linguístico (moroneta), temos o compartilhamento de uma classe semântica que indica explanação, estendendo esse sentido a diferentes modos de constituição do discurso e justamente identificando discursividade e imagem. A moroneta se refere a uma realidade original e, assim, aciona um discurso sobre ela. No caso kayapó, a maneira como imagem e realidade se conectam adquire uma dinâmica diferenciada. Axuapé me contou que o mekaron pode aparecer em outro lugar. Quando você está andando na mata sozinho... ou então no meio da noite, quando você acorda e anda pra fora da casa e você vê o mekaron. O filme é a mesma coisa. O filme leva a pessoa pra outro lugar. E aí você pode ver essa pessoa em outro lugar. (diário de campo, 30-07-2010) / 323 Podemos concluir que duas características do mekaron foram emprestadas à imagem: visibilidade (você vê o mekaron) e deslocamento/dispersão (aparece em outro lugar). As imagens, mekaron, não se referem ao mundo a partir de um discurso sobre ele. Elas fazem ver ao mesmo tempo em que levam para outro lugar. Ainda no que diz respeito à relação entre imagem e mekaron, Ana Gabriela Morim de Lima já havia me falado sobre a imagem ser “o pirata da pessoa” – dado obtido em sua etnografia Krahô15 na ocasião em que viajava para a cidade com o objetivo de comprar DVDs para copiar vídeos. Seu informante se referia aos CDs e DVDs piratas, que permitem copiar e difundir materiais originais. “A imagem é o pirata da pessoa” aponta, então, tanto para a problemática da cópia quanto para a dimensão dispersiva que essas cópias assumem em um contexto de rede intra e interétnica. Isso porque um atributo da cópia é o de justamente prover a proliferação e elevar o valor de exposição de uma obra de arte por meio da reprodutibilidade técnica (Benjamin, 2008, p. 165-196). É interessante notar que Manuela Carneiro da Cunha, estabelecendo a oposição entre vivos e mortos como um importante operador classificatório para os Krahô (1978), havia descrito os mekaron justamente por seu caráter estático. Essa estaticidade percorreria toda a fisiologia dos mekaron, que estariam marcados pela ausência de movimento próprio, sendo conduzidos pelo vento. Essa última observação é extremamente importante por demonstrar que, mesmo sendo caracterizado por uma estaticidade intrínseca, o mekaron está necessariamente vinculado ao movimento. Talvez pudéssemos sugerir que o movimento ocasionado pelo vento se identifica com um movimento dado “naturalmente”, ou sem maiores esforços (uma 15 Povo indígena do Tocantins, também pertencente ao tronco linguístico macro-Jê. Dado obtido em comunicação pessoal. Ver Morim de Lima 2010. 324 \ espécie de dispersão por natureza, cf. Madi Dias 2011, item 12 “Difusão por natureza, uma concepção de informação pública”). Considero, por fim, extremamente interessante o modo pelo qual o audiovisual dinamiza as relações sociais entre os Kayapó, tanto internamente (guardando) quanto para com os seus outros (comunicando). Isso porque, se voltarmos à descrição de Walter Benjamin sobre a obra de Proust, chegaremos ao potencial realmente incrível das imagens em propiciar sociabilidade: um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado (leia-se também “o acontecimento comunicado”, eu sugiro) é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. (Benjamin, 2008, p. 37) REFERÊNCIAS BATESON, Gregory. A theory of play and fantasy. Steps to an ecology of mind. New York: Ballantine Books, 1972. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. 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No total, fiz quatro expedições em nome de Sir William, ao longo de um período de seis anos, junto à costa oriental da Baía de Hudson, através das terras estéreis da até então inexplorada península de Ungava, seguindo a costa ocidental da baía de Ungava e a costa austral da Terra de Baffin. Este trabalho culminou com a descoberta do arquipélago da Ilha Belcher na Baía de Hudson — uma massa de terra que ocupa 5.000 milhas quadradas — massa de terra sobre a qual foram descobertas extensos sedimentos de minério de ferro, mas todos de baixa qualidade, embora de futura importância econômica. Como parte do meu equipamento de exploração nestas expedições, incluía-se uma aparelhagem para produção de imagens em movimento. Esperava-se assegurar filmes do Norte e da vida Esquimó, que, de algum modo, poderia ter valor suficiente para ajudar a custear algumas das despesas das explorações. Enquanto invernava na Terra de Baffin, entre 1913 e 1914, foram feitos filmes do país e dos nativos, assim como na expedição seguinte, às ilhas Belcher. Na conclusão das sondagens, o filme, num total de 30.000 pés, foi trazido de volta a salvo, a Toronto, onde, durante a edição do material, tive o azar de perdê-lo completamente por causa do fogo. Embora isso, naquele momento, parecesse uma / 329 tragédia, não estou certo de que não se tratou de uma pequena sorte que ele tenha se queimado, posto que era bastante amador. Meu interesse pelos filmes, daí em diante, cresceu. Novas formas de filme de viagens foram surgindo e o filme da Ilha Johnson do Mar do Sul pareceu-me particularmente ser uma boa amostra do que seria feito no Norte. Comecei a crer que um bom filme, apresentando os Esquimós e sua luta pela existência, no dramaticamente inóspito Norte, poderia possuir um bom valor. Para resumir a história, decidi ir para o Norte novamente — desta vez, completamente devotado ao propósito de fazer filmes. O Sr. John Revillon e o capitão Thierry Mallet, dos Irmãos Revillon, ficaram interessados e decidiram financiar meu projeto. Provouse ser este um acordo feliz, posto que através do vasto sistema de entrepostos peleiros dos Irmãos Revillon que se espalham pelo Canadá setentrional, pude utilizar um destes entrepostos como o núcleo do meu trabalho. Este entreposto estava situado no Cabo Dufferin, no nordeste da Baía de Hudson, a aproximadamente 800 milhas ao norte da fronteira ferroviária setentrional de Ontario. A jornada para lá iniciou-se no dia dezoito de junho de 1920. De canoa com os índios, segui o Rio Moose até à Feitoria Moose na Baía James. Daí para norte, uma pequena escuna me conduziu até meu destino, ao qual cheguei no meio de agosto. Os recursos do entreposto comercial peleiro dos Irmãos Revillon, no Cabo Dufferin, estavam à minha disposição. Um dos alojamentos que compunham o entreposto tornou-se meu, reunindo dormitório e laboratório cinematográfico. Meu equipamento incluía 75.000 pés de filme, um gerador e projetor elétrico Haulberg, duas câmaras Akeley e uma máquina copiadora para que eu pudesse fazer cópias do filme enquanto ele era exposto, e projetar as imagens na tela de modo que os esquimós da região 330 \ pudessem enxergar e compreender quaisquer enganos que viessem a cometer. Dos esquimós que eram conhecidos no entreposto, para o filme escolhi, no total, uma dúzia. Destes, Nanook, um personagem famoso na nação, era meu principal homem. A seu lado, e bem conforme sua aprovação, escolhi três jovens como ajudantes. Isso incluía também suas esposas e famílias, cães em número de aproximadamente vinte cinco, seus trenós, caiaques e apetrechos de caça. Como se por sorte, o primeiro filme feito foi da caça à morsa. Foi de Nanook que primeiro ouvi falar da “Ilha da Morsa”, que é uma ilhota perdida no mar e inacessível aos esquimós durante a estação de águas abertas, pois é longínqua o bastante para não ser visível da terra. Na extremidade sul da ilha, em uma praia batida por ondas, havia, no verão, segundo Nanook, várias morsas, julgando pelos vestígios que foram vistos no inverno por um grupo de esquimós caçando focas, os quais, pegos por uma fratura no gelo, foram forçados a morar lá até a primavera seguinte, ocasião em que eles só conseguiram alcançar o continente ao construir um umiak de peles de foca e troncos, escavando as massas de gelo no mar aberto, que ainda restavam presas à costa. Nanook estava bastante entusiasmado com minha ida, pois, como ele disse “Há muitas luas que eu não caço a morsa do verão”. Quando resolvi fazer a viagem, todo o interior ficou interessado. Já não havia falta de candidatos para a viagem. Todo mundo me fornecia alguma razão particular pela qual deveria ser incluído na expedição. Com um barco de mar aberto de vinte e cinco pés de comprimento equipado com uma vela Leg-O-Mutton (uma vela triangular, como as de windsurf), partimos, com uma multidão de esquimós, suas esposas, crianças e cães aglomerados na praia para nos ver sair. Algumas milhas a partir do entreposto, alcançamos o mar aberto, quando / 331 então por três dias tivemos de ficar na costa esperando por tempo bom o bastante para fazer a travessia. Finalmente alcançamos a ilha em um dia, ao pôr do sol, e desembarcamos naquilo que nada mais era que um amontoado de destroços de pedregulhos e rochedos, de uma milha e meia de comprimento, com espuma de ondas em toda a borda. Em torno do privilégio de uma fogueira de troncos a deriva (troncos são raros no continente), ficamos em vigília até tarde da noite, especulando principalmente sobre as chances de encontrar polvos. Como se a sorte chegasse exatamente na hora em que iríamos nos recolher, de repente veio de Nanook uma exclamação “Iviuk! Iviuk!” e o ladrar de um cardume de morsas ressoou no ar. Quando, cedo na manhã seguinte, nos levantamos, dê-mo-nos conta, para nossa decepção, que a manada de morsas havia retornado ao mar novamente, mas logo depois, e bem próximos da praia, os líderes de um grande cardume de morsas lançavam-se sobre o mar, com suas presas malvadas lampejando no sol. Enquanto estivessem dentro d’água, não haveria filmes a fazer, e então voltamos ao acampamento. Nos dois dias seguintes, fizemos quase uma viagem a cada hora até que finalmente as encontrássemos — uma manada de vinte — adormecidas, refestelando-se na areia da praia. Ainda mais afortunadamente, elas jaziam em um lugar no qual, ao nos aproximarmos, poderiam ser enquadradas de uma visada ligeiramente elevada acima do solo. Atrás da elevação, montei a câmara enquanto Nanook passou o fio no seu arpão, começando a nos esgueirar lentamente sobre o topo. Deste topo até onde elas jaziam, havia não mais do que cinquenta pés, e, até que Nanook engatinhasse até metade desta distância na direção delas, nenhuma das morsas havia se assustado. No resto do caminho, toda vez que a sentinela da manada erguia lentamente a cabeça para olhar ao redor, Nanook deitava-se inerte no chão. Então, quando sua cabeça 332 \ inclinava-se de volta e caia no sono, outra vez Nanook minhocava seu caminho lentamente. Devo também acrescentar aqui que as morsas têm, em terra, uma visão limitada. Pois, para se proteger, ela depende do seu nariz e, uma vez que o vento seja favorável, pode ser seguida bem de perto. Quando estava quase entre elas, Nanook divisou o maior macho, levantou-se rapidamente e com toda força lançou seu arpão. O macho ferido urrou de fúria, com sua enorme massa mergulhando e rebentando no mar (ele pesava mais de 2.000 libras), os gritos dos homens arriscando suas vidas na tentativa de segurá-lo, os berros de combate da manada nos rodeando, companheiros do macho ferido que enxameavam ao redor, presas travadas, numa tentativa de resgate — foi a maior briga que eu já havia visto. Por um longo tempo, ficou-se em um perde-ganha – a equipe repetidamente pedindo-me que usasse a pistola –, mas como a manivela da câmara era então o meu único interesse, fingi que não entendia. Finalmente, Nanook empenhou-se na querela, e foi puxado em direção à rebentação, onde ele era batido pelos pesados mares, incapaz de lograr vantagens na água. Por pelo menos vinte minutos, ficou-se neste cabo-de-guerra. Eu afirmo que eram vinte minutos com segurança, posto que arranquei dali 1.200 pés de filme. Em nosso barco, carregado de carne de morsa e marfim — foi uma tripulação feliz que me trouxe de volta ao entreposto, no qual Nanook e seus amigos foram saudados com fervor. Não perdi tempo para revelar e copiar o filme. A luta da morsa foi o primeiro filme que estes esquimós jamais haviam visto e, na linguagem dos negócios, foi um “nocaute”. A audiência — que se amontoava na cozinha do entreposto quase a ponto de se sufocar, esqueceu-se completamente da imagem – para eles a morsa era real e viva. As mulheres e crianças, nas suas vozes agudas estridentes, juntaram-se aos homens na gritaria de admoestações, avisos e conselhos a Nanook e a sua equipe, à medida / 333 que o filme se desdobrava na tela. A fama deste filme espalhou-se por todo o território. E por todo o ano em que eu lá permaneci, cada família que passava pelo entreposto me suplicava para que lhe fosse exibido o Iviuk Aggie. Depois disso, não demorou para que meus esquimós vissem o aspecto prático dos filmes, de modo que logo abandonaram a sua atitude inicial de riso e troça em relação ao Angecak, isto é, ao Mestre Branco que queria imagens deles — os mais comuns objetos de todo mundo! Daquele momento em diante, estavam todos do meu lado. Quando, em dezembro, a neve começou a cair pesadamente no solo, os Esquimós abandonaram seus topecks de pele de foca e a vila de iglus de neve ergueu-se ao redor do meu entreposto de invernada. Eles cercaram de neve minha pequena cabana até o ocaso com espessos blocos de neve. Ele ficou tão espessamente murado quanto uma fortaleza. Minha cozinha tornou-se seu salão de encontros — havia sempre um balde de cinco galões de chá pousado no fogão, e bolachas-do-mar no barril. Também o meu pequeno gramofone era propriedade comunal. Caruso Farrar, Ricardo-Martin e McCormick alternavam-se com as orquestras de Harry Lauder, Al Jolson e Jazz King. O prólogo de Caruso no Pagliacci, com sua trágica conclusão, era para eles a gravação mais cômica do conjunto. Levava-os a rebentar de rir até rolar no chão. As dificuldades para revelar e copiar o filme durante o inverno eram muitas. A conveniência da civilização da qual mais senti falta era a água corrente. Por exemplo, a lavagem do filme, requeria três barris de água para cada cem pés. O buraco de água, então de oito pés de gelo, tinha de ser mantido aberto durante todo o inverno e a água, coagulada em partículas de gelo, precisava ser retirada, um barril de cada vez, de uma distância de mais de um quarto de milha. Quando 334 \ digo que mais de 50.000 pés de filme foram revelados durante o inverno, sem nenhuma ajuda além da dos meus Esquimós, e na lenta taxa de oitocentos metros por dia, pode-se de algum modo compreender o volume de tempo e de labuta envolvidos. A caça da morsa mostrou-se de tal sucesso que Nanook passou a aspirar coisas maiores. A primeira das coisas maiores iria ser uma caça ao urso no Cabo Sir Thomas Smith, que jaz em torno de duzentas milhas ao norte de nós. “Aqui”, disse Nanook, “é onde a ursa hiberna no inverno. Eu sei, porque já as cacei lá, e me parece que lá poderíamos ter a grande, grande aggle (imagem).” Ele passou então a descrever como, no início de dezembro, a ursa hiberna em vastos aterros de neve à deriva. Não há nada que indique o refúgio, exceto a pequena ventarola ou buraco de ar que é derretido pelo calor corporal do animal. Ele passou então a avisar que ninguém deve andar por ali, pois poderia cair dentro, situação na qual a ursa ficaria furiosa! Seus companheiros permaneceriam junto de mim, cada um de um lado, rifles nas mãos, enquanto eu filmasse (ele estaria, ao menos, garantindo a minha segurança neste negócio). Ele, com sua faca de neve, abriria o refúgio bloco por bloco. Os cães, neste meio-tempo, seriam todos soltos e, como uma alcateia de lobos rodeando a presa, juntar-se-iam ao redor dela, uivando para os céus. Com a porta do refúgio da Senhora Ursa aberto, Nanook, com nada além do seu arpão, estaria preparado e esperando. Os cães acossando a mina — alguns deles arremessados pelo ar por patadas-relâmpago da ursa — Nanook dançando lá e cá (ele encenava a cena no chão da minha cabana usando o arco do meu violino como arpão) esperando para lançar um arremesso de curta distância — este, ele tinha certeza, seria uma grande, grande imagem (aggie peerualluk). Concordei com ele. Depois de duas semanas de preparação, partimos. Nanook, com três companheiros, dois trenós / 335 pesadamente carregados e dois times de uma dúzia de cães. Meu suprimento alimentar compreendia cem libras de porco com feijão, que havia sido cozido em enormes caldeiras no meu entreposto, e então colocados em um saco de lona e congelados. Estes feijões, arrancados com um machado da massa congelada, junto com frutas secas, bolachas-do-mar e chá, compraziam minha provisão de comida. A dieta de Nanook e de seus companheiros era foca e morsa, acrescidas de chá e de açúcar do meu suprimento e, o mais importante de tudo, de tabaco, aquele mais valorizado tesouro do homem branco. Nós partimos em um dia de frio cortante — o dia 17 de janeiro —, com cada contorno de paisagem borrado pelo vento nevado. Por dois dias fizemos um bom progresso, pois o solo em que viajamos estava duro e bem batido pelo vento. Depois deste período, porém, um poderoso vendaval com precipitação de neve arruinou nosso bom curso. Dia após dia, seguimos lentamente nossa jornada. Dez milhas, ou menos, era a média diária de deslocamento. Havíamos esperado cobrir as 200 milhas até Cabo Smith em oito dias, mas depois de passados doze deles, descobrimos que estávamos apenas a meio caminho. Ficamos desencorajados, com todos os cães completamente exaustos e, para piorar ainda, com as provisões de foca e comida para os cães próximas do ponto de esgotamento. A baixa linha costeira a partir da qual havíamos viajado por dias revelou-se, no final, uma miragem enganadora, pendurada no céu, de modo que Nanook não conhecia sua própria localização, e tampouco a nossa posição em relação ao Cabo Smith. Constantemente, à medida que caminhávamos ao longo da monotonia dos dias, nossa proximidade do Cabo Smith tornava-se o assunto supremo de nossas mentes. “Quão próximos estamos?”, a pergunta que vinha de hora em hora, tornou-se o suplício da pobre existência de Nanook. Nas poucas vezes em que ele tentou prever, estava invariavelmente 336 \ errado. Finalmente, viajamos até um ponto onde o Cabo, Nanook estava certo, se encontrava a não mais do que alguns dias de jornada, pois ele estava certo que o havia divisado através da névoa e geada o antigo território de caça de anos anteriores. Durante o dia, seus companheiros acharam que ele estava outra vez enganado. Eles não podiam conter sua impaciência e irritação. O pobre Nanook ficou indignado e, à medida que continuávamos, ele mantinha sua cabeça erguida, recusando-se firmemente a olhar novamente para aquele continente enganador. Estávamos já no limite do nosso feijão quando finalmente alcançamos o Cabo Smith. Nossa cadela líder, de couro marrom, que estivemos nos três dias anteriores carregando em cima do trenó na tentativa de salvá-la, estava morrendo de inanição. Nanook sacrificou-a com seu arpão e, enquanto lançava longe a carcaça, disse: “Acabou-se a comida para os cães”. Bem, de todo modo, havia focas no Cabo, disso estávamos seguros, e além do mais teríamos que permanecer ali durante o dia, de modo que continuamos otimistas o suficiente. A grande massa de terra do Cabo, elevando-se a meros 1.800 pés, postava-se desafiadoramente diante de nós. Pelo cair da noite, alcançamos nossa terra preciosa de ursos e focas e abundância. Estacamos ante a elevação de um antigo terreno de acampamento de Nanook e, abandonando trenós e cães, subimos ansiosamente até um mirante, em busca de uma vista de boas-vindas dos terrenos de foca. Apreciamos lá um momento ou mais, antes de percebermos que o terreno de focas que havíamos procurado era exatamente igual a todo o terreno atravancado pelo qual havíamos viajado — um sólido campo branco, e em nenhum lugar uma pista de caça de águas abertas. Esquecemos sobre a caça ao urso; por duas semanas e meia, buscamos por focas vagando dia após dia seguindo o sopé de gelo quebrado do Cabo. Neste intervalo, duas pequenas focas foram mortas e elas eram exatamente o suficiente para manter os / 337 cães vivos. Por quatro dias, certa feita, ficamos sem óleo de foca e nosso iglu ficou mergulhado na escuridão. Os cães estavam no limite do cansaço, dormindo no túnel do iglu. Sempre que eu quisesse engatinhar porta afora, tinha que levantá-los de lado como se fossem sacas de farinha, pois estavam demasiado cansados e indiferentes para se afastar. A ironia disso tudo é que ursos, havia por toda parte, certa noite, quatro deles passaram a uma centena de pés de nosso iglu, mas os cães estavam fracos demais para uivar para eles ou para detê-los. O meu estoque de comida estava se aproximando das raspas. Por alguns dias estive partilhando-o com os homens. Jamais esquecerei uma manhã amarga, na qual Nanook e seus homens começavam a sair para um dia de caça nos campos de gelo marinhos. Descobri, de repente, que nenhum deles havia tocado minha comida na hora do desjejum. Quando protestei com Nanook, ele respondeu que ele temia que eu ficasse sem! Todavia, nossa sorte mudou no cair da noite, quando Nanook engatinhou para dentro do iglu exibindo um sorriso de orelha a orelha, enquanto gritava as bem-vindas palavras “Ojuk! Ojuk!” (a grande foca). Ele havia abatido uma foca adulta, que era “muito, muito grande” e suficiente para que nós e os cães fizéssemos a jornada, de volta ao sul. Que banquete estes homens fizeram, ao longo daquela noite memorável! Quando acabou, Nanook disse em profundo contentamento, “Agora, estamos fortes de novo e quentes. A comida do homem branco nos deixou muito fracos e frios”. A carne de foca é certamente fonte de calorias no mais alto grau. Quando eu acordei na manhã seguinte, estavam todos ainda adormecidos, com os corpos cobertos de cristais de gelo, com uma camada de vapor flutuando sobre eles no frio ar do iglu. Muito embora o problema do suprimento de comida tivesse sido por ora solucionado, ainda não éramos capazes de viajar, posto que os cães necessitavam serem alimentados. Neste ínterim, caçamos 338 \ por sinais de tocas de urso, seguindo os gigantescos flancos do cabo. Havia rastros em toda parte, mas de tocas, apenas uma, e ainda assim, abandonada. Tivéssemos tempo sobrando, seria apenas questão de dias antes que encontrássemos uma, mas eu tinha uma grande quantidade de filme para fazer no meu entreposto de inverno, e como não houvesse mais tempo para desperdiçar, bastante relutantemente, então, deixamos o Cabo e começamos a trilhar a viagem para casa. Chegamos lá no décimo dia de março e assim terminaram as seiscentas milhas e cinquenta e cinco dias da jornada da “grande imagem” do nosso Nanook. Mas de maneira nenhuma ela foi perdida: eu estava mais rico de um conhecimento mais pleno das excelentes qualidades dos meus valiosos amigos, os esquimós. Tradução: Bráulio de Britto Neves / 339 \ Banghawi: caça ao hipopótamo com o arpão pelos pescadores Sorko do Médio-Níger 1 / Jean Rouch Um dos primeiros estudos etnográficos publicados pelo então jovem antropólogo Jean Rouch, quatro anos antes da defesa de sua tese de Doutorado de Estado na Sorbonne (Essai sur la Religion Songhay, 1952), este artigo até aqui inédito em português constitui um texto modesto mas importante no conjunto de seus trabalhos sobre a prática da caça pelos Songhay. Relatando e explicando exatamente os mesmos fenômenos que ele filmou em 1947 e que seriam desvirtuados na montagem, feita à sua revelia, de No país dos magos negros [Au pays des mages noirs, 1947], o artigo nos permite imaginar precisamente o que deveria ter sido o comentário verbal daquele primeiro filme de Rouch se ele mesmo tivesse podido montá-lo e sonorizá-lo à sua maneira, sem a intervenção das Actualités Françaises. Ele constitui assim uma peça-chave do dossiê que compreende aquele primeiro filme de 1947, o outro filme sobre a caça ao hipopótamo feito como uma resposta a ele, Batalha no grande rio (Bataille sur le grand fleuve, 1950-51), e um terceiro filme, bem posterior (Jean Rouch premier film: 1947-1991, de Dominique Dubosc e Jean Rouch), no qual um Rouch já velho evoca as desventuras do seu primeiro filme e improvisa na sala de projeção um novo comentário para seu bloco final mostrando a sequência das danças de possessão. (Nota de Mateus Araújo) 1 Artigo publicado originalmente no Bulletin de l’Institut Français d’Afrique Noire, Dakar, Tome X, année 1948, p. 361-377, e recolhido bem mais tarde em Jean Rouch, Les Hommes et les dieux du fleuve: Essai ethnographique sur les populations Songhay du moyen Niger (1941-1983). Paris: Editions Artcom’, 1997, p. 63-78. A versão traduzida aqui é a do volume de 1997, sem as 9 fotografias que acompanhavam o texto. [N. dos T.] 340 \ A caça ao hipopótamo com o arpão é uma especialidade dos povos pescadores do Níger. Mas os Somono, Bozo, Sorkawa ou Noupawa reconhecem todos que os Sorko, pescadores Songhay do Norte da curva (boucle) do rio, lhes são superiores nesta pesca especial. De fato, uns são antes de tudo pescadores com a rede, com a cesta (nasse) ou com o anzol, isto é, pescadores de peixes, ao passo que os outros se servem quase exclusivamente do arpão, com o qual pegam alguns peixes grandes, os lamantins, os crocodilos e, sobretudo, os hipopótamos. Os antigos cronistas, Ibn Batouta, El Bekri e Léon, o Africano, já tinham se impressionado com essa pesca especial. Eis o que diz dela Ibn Batouta: “As pessoas desta região se servem para pegar os hipopótamos de um belo expediente. Elas têm lanças perfuradas em cujos buracos passaram fortes cordas. Elas ferem os animais com estas armas. Se o golpe atinge a perna ou o pescoço, a lança penetra nessas partes do anfíbio que elas puxam por meio de cordas até a margem onde o matam e comem a sua carne...” E, como se verá, cerca de dez séculos depois, a descrição ainda continua válida. Inumeráveis canções songhay tematizam a caça ao hipopótamo. A maior parte descreve os altos feitos de Faran Maka, o ancestral de todos os Sorko. Mas, se a habilidade incrível daquele que matava quarenta hipopótamos por dia é particularmente elogiada, é sobretudo a força mágica do primeiro pescador que constitui o tema dessas canções. Nelas, a caça aparece como uma competição mágica entre o hipopótamo e o seu caçador, cujos feitiços acabam sempre por obter a decisão favorável das forças invisíveis. Mas, desde a chegada dos franceses, a caça ao hipopótamo foi proibida, e, apesar de algumas fraudes, desapareceu quase inteiramente. E os Sorko, privados de sua principal atividade, recusando-se muitas vezes com orgulho a aprender a técnica da pesca com a rede, / 341 voltaram-se para necessidades mais espirituais, como a de padre da religião dos espíritos, privilégio de sua hereditariedade; mas os velhos conservaram em toda parte a nostalgia e as tradições intactas dessa grande pesca... Tendo obtido a permissão para matar dois hipopótamos, meus companheiros e eu decidimos caçar esses animais com os pescadores Sorko da região de Firkoun, tentando fazer um filme. O texto que segue é o resumo desta caça. Lugar Trecho [Bief] Labbezenga-Firkoun (Colônia do Niger, circunscrição de Tillabéry, cantão de Ayorou, na fronteira do Sudão e do Niger) Este trecho do rio Níger, de uns quinze quilômetros de comprimento, se situa entre as correntezas de Labbezenga e as de Firkoun. Ali, vivem em permanência uns cinqüenta hipopótamos, cuja residência preferida é a bacia de Yassane. Data Em 23 de agosto de 1946, uma tentativa de caça se fazia com alguns Sorko do vilarejo de Ayorou. Um animal foi isolado, mas conseguiu retornar ao rebanho antes de ser arpoado. Os Sorko desistiram. Essa tentativa infrutífera deixava muitas lições: ela nos ensinou que a caça ao hipopótamo requeria uma minuciosa preparação técnica e religiosa. Nós marcamos um encontro com os Sorko alguns meses mais tarde. Em 13 de janeiro de 1947, descendo o Níger em piroga, encontramos todos os Sorko dos vilarejos de Ayorou, Firkoun, Koutougou, reunidos no vilarejo de Firkoun para construírem lá uma grande piroga especial para a caça ao hipopótamo. 342 \ Na segunda-feira 27 de janeiro de 1947, lançamento desta piroga, depois festa dos espíritos. Na quarta-feira 29 de janeiro, sacrifício sobre os arpões. Na quinta-feira 30 e na sexta-feira 31 de janeiro, caça propriamente dita. No sábado 1º de fevereiro, corte em pedaços do animal morto. Participantes O chefe do cantão de Ayorou, Yabouka (cuja ajuda e amizade nos foram particularmente úteis), reunira sob a autoridade do Sorko Oumarou, do vilarejo de Firkoun, todos os Sorko de seu cantão, ou seja, 12 Sorko do vilarejo de Koutougou, 9 Sorko do vilarejo de Firkoun, 10 Sorko do vilarejo de Ayorou, perfazendo um total de 31 Sorko (eu lembro que para ser Sorko é preciso ser filho de Sorko). Pirogas Esses 31 Sorko dispõem de 10 pirogas comuns de pesca. São pirogas estreitas chamadas “de Gothey”, do nome do mercado onde se compram, formadas de 2 troncos escavados e unidos por uma costura central. Os meios de propulsão são os remos e as varas. Para a navegação rápida nas ervas, as varas são especialmente munidas de uma forquilha de madeira numa de suas pontas. A tripulação é composta de dois ou três Sorko. Uma grande piroga com pranchas costuradas foi construída. Propulsada a vara, sua tripulação é de três homens (os velhos). Construção da grande piroga Desde o mês de setembro, os Sorko foram à savana cortar troncos de garbey (Acacia vereck?), que eles cortaram com machado em pranchas de uns dez centímetros de espessura. Essas pranchas eram conservadas e desbastadas sob a água. Um tronco de tockay / 343 foi cortado e conservado inteiro para formar a proa da piroga. Fibras de disima (da) eram trançadas e enroladas numa cordinha. Em dezembro, o chefe Oumarou e o zarolho Issaka começavam a construir a piroga. Um plano era desenhado sobre o solo e partindo da base da proa segura e erguida, as pranchas eram costuradas formando o fundo (dari) de 5 metros por 1,20 m, com três pranchas unidas. Depois o lado (dewe) de 1,50m de altura era erguido com 4 pranchas superpostas e juntas desencontradas para aumentar a solidez. A popa (likko) terminava a embarcação com três pranchas verticalmente unidas. Todas essas pranchas, talhadas sob encomenda, tinham sido perfuradas com buracos para permitir a costura com corda fina. Esse trabalho foi todo executado pelos Sorko, cujas ferramentas eram machados, enxós, tesouras e facões. Esterco de cavalo fresco era disposto entre as pranchas antes de seu ajuntamento, e em seguida a vedação era feita a faca com ervas lalla, impregnadas de lodo (vedação feita do interior do barco). Três barras de afastamento foram enfim fixadas para aumentar a rigidez desse conjunto volumoso (comprimento: 5m, largura: 1,20m, altura: 1,50m). Esta piroga foi concebida para resistir aos assaltos do hipopótamo, às suas mordidas e às suas investidas. As pranchas são espessas demais para que ele possa quebrá-las, os lados são altos demais para que ele possa derrubar a piroga, que navega muito facilmente, e cujo balanço em caso de ataque muito brutal é ainda acentuado pela tripulação que se coloca sobre o lado oposto ao animal. Normalmente, a construção desta piroga leva um ano. Pronta, ela dura dois anos sem reparo. Em seguida ela se repara por partes, pela substituição de suas peças à medida que elas vão estragando. 344 \ As armas A arma é o zogu, arpão cujo ferro farpado é ligado por uma corda a um flutuador terminal. No momento em que o arpão atinge o animal, o ferro se destaca da haste, a corda se desenrola e o flutuador indica na superfície da água o lugar onde se encontra o animal. Quando um grande número de arpões o atingem, ele fica quase imobilizado, enlaçado nos flutuadores e cordas. Cada Sorko possuía em média três arpões, o que levava a uns cem o número total de arpões. Os próprios Sorko fabricam os arpões. Para esta caça eles completaram o estoque, trabalhando nos arpões durante alguns dias que se seguiram ao lançamento da grande piroga. O ferro (nadyi) farpado de duas ou três pontas foi forjado por um ferreiro. Ele foi gravado com um desenho geométrico, que permite ao seu proprietário reconhecê-lo. O ferro é encabado, madeira em ferro, numa haste (aydonto) de 1,50m, de madeira de kaba. Essa haste foi por sua vez enfiada no flutuador (sede), de madeira de Kollo, espécie de sabugueiro muito leve, cortado em fuso, ou ajuntado em feixe. Uma corda (kerfu) de fibra de disima, com 4m de comprimento, liga o ferro ao flutuador. Ela é enrolada com cuidado graças a pinos enfiados no flutuador. Zogu (a: haste ; b: ferro destacável; c: corda; d: flutuador; e: pino) Uma lança comum (yagyi) fortemente encabada serve para dar o golpe final no animal. / 345 Os ritos Lançamento da grande piroga Em 27 de janeiro, por volta de 15 horas, todos os habitantes da aldeia de Firkoun se reuniram para assistir ao lançamento da grande piroga. O Sorko Bilo amarra uma pequena campainha numa prancha da popa (simples enfeite, diz ele). Depois os Sorko empurram a embarcação para a água. Quatro pescadores sobem a bordo para os testes de estabilidade e balanço que se mostram muito satisfatórios, o barco parecendo muito estável na água. Os dois engenheiros, Issaka e Oumarou, se declaram satisfeitos. Depois a grande piroga é deixada no porto por alguns dias, a fim de que a madeira inche e as costuras se enrijeçam. Festa dos espíritos (hole hori) Assim que a grande piroga é lançada, os tambores se põem a tocar para convidar as pessoas à festa dos espíritos. Esta cerimônia visa provocar a possessão de um dançarino pelo espírito da água, Harakoy Dikko, e pedir a este dono da água, dos peixes e dos hipopótamos, a autorização para matar um dos animais de seu rebanho. A orquestra é composta por quatro tocadores de tambor e um violinista. Ele fica de costas para o sol numa pequena praça na beira do rio. Os espectadores fecham o círculo. Um zima (agente de culto inferior) oficia até o momento em que, a operação estando bem lançada, os Sorko, ocupados em construir seu arpão, se encarregam dela. O zima se põe a dançar, logo seguido pelos seis dançarinos rituais (um homem e cinco mulheres). A orquestra toca sucessivamente as músicas dos diferentes espíritos. E é só ao cair do sol que a jovem dançarina Haddidya é tomada pela crise sagrada. Ela geme, ela chora, ela rola no chão urrando. Ela é possuída pelo espírito Niaberi. Depois, é a velha Gitu que é possuída pelo espírito da água, Harakoy Dikko; Somau, pelo espírito do trovão, 346 \ Dongo; e Mata pelo espírito Haussakoy. Os Sorko se precipitam, cercam o espírito da água e o ajudam a se assentar numa esteira com uma almofada. Os Sorko tomam lugar ao redor. O Sorko Nuhu recita as preces rituais, depois o chefe Oumarou começa o interrogatório. Oumarou – “Nós pedimos para matar o hipopótamo”. Harakoy – “Oumarou, você e seu irmão, o que vocês me fizeram eu não esquecerei jamais (trata-se da tentativa de caça do mês de agosto), eu o protegi e tirei todos os zogu que vocês lhe teriam lançado. Assim, vocês não pegarão nenhum hipopótamo dessa vez Oumarou: “Eu lhe peço perdão. Depois dessa caça eu vou criar um carneiro branco para você”. Harakoy – “Aceito suas desculpas. Há 4 anos que vim a Firkoun, e hoje vou ficar por mais tempo”. (Nesse momento, Harakoy fala com o Sorko Daoudou Gaoudel, que se torna o novo interlocutor): “Se Deus quiser, e se vocês seguirem seu chefe Oumarou, tudo o que caçarem ganharão”. Daoudou – “É isso que eu quero, para ser feliz”. Harakoy – “Sigam Deus e Oumarou. Se ele lhes disser para se levantarem no meio da noite para ir caçar, é preciso se levantar e partir. Se vocês seguirem Oumarou, em um dia, dez Sorko vão lançar seu zogu sobre o hipopótamo e se vocês não discutirem muito entre si, poderão matar dez hipopótamos”. Daoudou –“ Obrigado”. Harakoy – “Estou sozinho no mundo e sempre segui seu avô e todos os seus filhos”. Nesse momento os espíritos Dongo e Haussakoy se assentaram sobre os joelhos de Harakoy que parte lentamente para ser substituído por Bandarou, o espírito cativo. Numerosos espíritos Hauka giram em torno / 347 fazendo um barulho pavoroso. Depois, pouco a pouco, um após o outro, os espíritos abandonam seu médium que fica prostrado e esgotado no chão. É noite alta. O sacrifício de consagração dos arpões Na quarta-feira 29 de janeiro, à tarde, os Sorko reúnem todos os arpões em um só feixe, com as pontas todas reunidas. Três remos novos são também colocados sob os ferros. Um carneiro branco, cor de Harakoy, deve ser sacrificado sobre os ferros dos arpões para consagrá-los. Todos os Sorko se reuniram em volta dos arpões. Bilo Gaoudel coloca o carneiro branco em cima dos ferros. Nouhou lhe corta a garganta. O sangue corre, e para que cada ferro o receba, Bilo passeia o animal degolado em cima deles. Eu não ouvi ninguém pronunciar nenhuma fórmula especial. Os Sorko retomam seus arpões lambuzados de sangue. À noite, o carneiro é comido. A CAÇA Na quinta-feira 30, desde a aurora, os Sorko deixam a aldeia, a princípio pelos seis dias que durará a campanha. Eles vão se estabelecer um pouco a montante numa pequena ilha próxima das colônias de hipopótamos. Lá, durante uma grande parte da manhã, eles verificam, amolam, equilibram seus arpões e os colocam com cuidado em sua piroga. Em seguida, após uma refeição, partem nas pequenas pirogas a reconhecer o habitat dos hipopótamos. Um hipopótamo é localizado por volta das 11 horas sob as folhas da erva do bourgou. Mas os jovens Sorko que jamais caçaram essa presa, perseguem-na em desordem. O animal mergulha e desaparece. Oumarou, o chefe, grita suas ordens. Seguem-se intermináveis discussões. Os Sorko seguem os rastros do hipopótamo, cuja passagem é bastante nítida no meio das ervas. Mas logo que o animal é avistado, os 348 \ mesmos erros recomeçam: com a ajuda do remo, um dos jovens Sorko se aproxima a 20 m, lança seu arpão e erra. O hipopótamo mergulha e, imerso, torna a chegar até a água livre onde tem a superioridade da velocidade. Oumarou, furioso, decide interromper a caça. Todo o mundo volta à ilha. No dia seguinte, sexta 31, toda a flotilha, grande piroga à frente, se dirige para a bacia de Yassane, atualmente inundada. Em torno de 10 horas, a grande piroga acosta numa pequena ilhota onde crescem algumas árvores. Ao longe, ouve-se grunhir os hipopótamos. Ao meio dia, Oumarou dá ordens precisas: as pequenas pirogas se separarão em dois grupos, umas passarão pela água livre, as outras pelas ervas do bourgou. Elas formarão um círculo e cercarão os hipopótamos. A grande piroga se colocará no lugar em que “o caminho dos hipopótamos” encontra a água livre. Sem poder falar, eles deverão avançar muito lentamente para não fazerem barulho e atirar seu zogu com um golpe seguro. Alguns minutos depois, o dispositivo está no lugar. As pirogas formam um círculo de 500m de raio, que se afunila lentamente. Todos os Sorko estão de pé em suas pirogas. O Sorko da frente segura seu arpão erguido, pronto para o arremesso. Durante quase uma hora, imperceptivelmente, as pirogas avançam. No silêncio total só se ouve de vez em quando a respiração barulhenta de um hipopótamo... Enfim um grito ressoa: “mikri mi sangay moni”2. O Sorko Laritou de Ayorou viu um hipopótamo sair para respirar a três metros diante dele, atirou seu arpão que atingiu o animal no meio da cabeça. O animal mergulhou, mas o flutuador que ele arrasta atrás de si movimenta as ervas e indica sua posição. Laritou se retira rapidamente do círculo dos 2 O significado desse grito ritual não é claro. Issaka me dissera em 1942 que era um elogio ao ferro do arpão em “língua sorko”. O chefe Sorko Saley Isa da aldeia de Bosia, na saída do “W” do rio, me declarou que era uma deformação de “sangay mono kursu bani” que são as divisas dos flutuadores. / 349 pescadores, pois é ele, dizem, que o hipopótamo vai tentar atacar. Sob a água, o hipopótamo nada rumo ao lugar onde se encontra Oumarou, que o evita rapidamente: o animal salta fora da água, Oumarou lhe crava um segundo arpão. Agora todas as pirogas se dirigem para o animal ferido, numa desordem indescritível, e os outros hipopótamos despertados em sobressalto fogem de modo tumultuoso. Logo que o animal ferido se mostra, uma verdadeira chuva de arpões cai sobre ele. Depois, as pirogas recuam a toda velocidade para evitar seu ataque. A grande piroga se aproxima. Os três velhos Sorko que a conduzem choram literalmente de alegria. À frente, o zarolho Issaka canta com toda sua força o elogio ao espírito da água “issa beri bulanga...” (o karité do grande rio...), e na popa Kambé e Alidou cantam os elogios ao hipopótamo que vai morrer: “Kurnya dimba nya...” (mãe das correntes...). Os Sorko que esgotaram suas munições se precipitam para a grande piroga para se reabastecerem com novas munições.3 O hipopótamo está agora crivado de arpões. Ele salta no ar, debate-se, mas as cordas dos arpões misturadas às ervas o mantêm prisioneiro. Em alguns minutos o hipopótamo não passa de um emaranhado de arpões entrelaçados. Ele respira com dificuldade. O Sorko Saïdou armado com a lança se desloca usando as cordas e, mirando com cuidado no meio dos arpões, crava fundo a lança atrás da nuca do hipopótamo. O animal esmorece sob uma onda de sangue. Toda essa caça durou alguns minutos, mas quase três horas serão 3 Normalmente os Sorko só deveriam ter lançado alguns arpões e deixado o animal voltar para a água livre onde a grande piroga o teria atacado sozinha: o Sorko da frente agarra um dos flutuadores e deixa o hipopótamo arrastar a grande piroga, esgotar-se em arremetidas vãs sobre essa pesada embarcação, arpoando-o logo que ele re-emerge e matando-o a golpes de lança. Isso simplifica consideravelmente a recuperação do animal morto. É o que foi feito no curso de caças posteriores, mas nesta primeira caça os jovens e ardentes Sorko queriam todos ter um arpão espetado no animal. 350 \ necessárias para recuperar o animal. Os Sorko mergulham para amarrar cordas ao redor das patas do hipopótamo, trazem-no à superfície e retiram com faca essa incrível cabeleira de arpões e de cordas. Depois eles o rebocam até a ilha aonde chegam somente depois do cair da noite. CORTE No dia seguinte, 1º de fevereiro, o animal é cortado em pedaços. Os Sorko se revelam açougueiros muito adestrados. Os fogos se acendem, a carne grelha alegremente. Tudo é comido: pele, intestinos... A carne não consumida imediatamente (não há desta vez) é secada ao sol para ser conservada. A gordura é recolhida com cuidado pelos velhos Sorko que untam com ela sua pele enrugada, e reencontram assim um pouco de sua juventude perdida. CONCLUSÕES Desde fevereiro de 1947 ocorreram duas ou três caças, organizadas por um dos administradores de Tillabéry. Antes das proibições administrativas, os Sorko desta região matavam em média seis hipopótamos por ano. Em todas as outras regiões do Niger onde vivem Sorkos (Egguedesh, Kermachawé, Bamba, Gao, Fafa, Karé kapto Bentia...) nossas informações confirmaram esse fato: os Sorko praticavam antes de nossa chegada uma caça que era quase uma criação de animais. Os rebanhos eram muito bem conhecidos, os próprios animais eram identificados, ganhavam um nome. As caças ao hipopótamo eram como aquela a que assistimos, campanhas coletivas, em que o número de animais a matar era / 351 fixado com precisão. Assim o rebanho se reproduzia normalmente.4 Mas há algo ainda mais grave. Os velhos Sorko são unânimes em dizer que os hipopótamos eram bem mais numerosos antes da chegada dos europeus que eles acusam pela sua desaparição.5 Esse problema é provavelmente muito mais complexo, mas é certo que foram cometidos verdadeiros massacres de hipopótamos com fuzil. Essa caça com o fuzil permite, de fato, sem nenhum perigo, por um simples tiro ao alvo desde a margem matar “a grande caça”. É o tipo exato da caça boba e vaidosa que se reserva à personagem importante ou aos hóspedes distintos em tournée (os Sorko chamam-na de “caça do governador”). Dada a importância que esta caça tem para os pescadores Sorko (razão de existência, prestígio, religião), o entusiasmo com o qual eles a praticam (eles me suplicaram por toda a parte para pedir autorizações de caça) e também a absoluta falta de interesse esportivo que existe em matar com o fuzil esse animal, eu creio que seria bom revisar a regulamentação de sua caça no sentido seguinte: proibição absoluta da caça com o fuzil, autorização de uma ou duas campanhas de caça todos os anos pelos pescadores nativos, com o controle do número de animais abatidos. Isto seria ao mesmo tempo suprimir uma covardia estúpida e devolver a pessoas simples e corajosas o ofício do qual elas se orgulham. Traduzido do francês por Íris Araújo e Mateus Araújo 4 Essa preocupação com a garantia da reprodução do animal que se caça encontra-se hoje entre os pescadores Bozo e Somono da região de Mopti. Zonas reservadas (anamye) existem nos lugares mais profundos do rio (é aí que os peixes se refugiam nas águas fundas). A pesca nestes lugares é muito frutífera, mas como se arrisca por isso mesmo a despovoar o rio, ela é proibida, exceto durante um dia do ano. 5 Félix Dubois escrevia já em 1911 (Notre beau Niger: “Entretanto outras visões amadas se esvaeceram. No fim do dia não vejo mais emergir os grandes focinhos de hipopótamos pesadões e bonachões...” navegando entre Tombouctou e Mopti). 352 \ \ Os cavalos de Goethe, ou Alquimia da velocidade / Arthur Omar / 353 354 \ / 355 356 \ \ O Afeganistão é inconquistável / Arthur Omar Filmes são ginástica para os olhos, uma espécie de musculação ótica. A viagem que fiz ao Afeganistão, em 2002, atravessando regiões devastadas pela guerra, e olhando o povo afegão nos olhos, sem pauta jornalística, foi para mim uma viagem sensorial, e não uma viagem da razão. Haveria alguma outra maneira de falar sobre o Afeganistão? Foi o que procurei fazer com o meu novo filme Os cavalos de Goethe. Em Os cavalos de Goethe, resolvi mostrar do Afeganistão, não uma visão geral ou sintética, mas, ao contrário, partir apenas de um único objeto, o cavalo. O cavalo estaria presente em todas as variações possíveis durante uma hora diante dos olhos do espectador, como uma dança repetida até o ponto do êxtase. O cavalo: olhar para ele com tanta intensidade e com tanta atenção que as cores e formas se tornassem irreais e se dissolvessem para formar novos seres que vão alimentar o nosso olhar com outras informações que a televisão não é capaz de transmitir. Para isso eu tinha que distender o tempo (que é a base da percepção cinematográfica), e assim interferir na velocidade das imagens, para tornar tudo um grande quadro, onde o tempo pareceria suspenso, e às vezes, literalmente pararia. Parado o tempo, o olhar penetra na imagem como o bisturi de um cirurgião na carne de um paciente anestesiado. As posições sujeito e objeto se alteram e se fundem. Não mais um documentário sobre a guerra, mas um documentário com efeitos especiais. Para flexionar os músculos visuais na academia dos sentidos. A título de paradoxo, eu poderia acrescentar à experiência fragmentos de um poema de T. S. Eliot, sobre o tempo suspenso, citar quase na íntegra um quarteto de cordas de Morton / 357 Feldman, e o grito artaudiano de um ator afegão recitando um poema em língua dari, sem legendas. Foram três semanas de aventura, medo e êxtase. Como Delacroix no Marrocos em 1830, Manet no Rio de Janeiro em 1848, Gauguin no Tahiti em 1891, ou Matisse nas ilhas Tuamotu em 1930, também eu, em Bamyian, no Afeganistão central, fui fortemente modificado pela percepção direta da cor. Os ocres do deserto. O degradé dos cinzas nas pedras imensas, que pareciam caídas da Lua. O azul celeste das burkas das mulheres invisíveis, que iam mudando de cor à medida em que nosso comboio avançava para o interior, amarelas, alaranjadas, vermelhas, segundo codificações tribais. E, principalmente, o azul do céu, onde não chove nunca. Goethe construiu sua teoria da cor, no século XVIII, só para explicar o azul do céu. Eu poderia construir um filme inteiro em torno do azul e do amarelo só para explicar a destruição do Afeganistão. Lá, eu descobri o ponto G do azul, se é que isso é possível. Levar a cor azul ao seu ponto máximo, ao orgasmo. Todas as fotos que fiz depois incorporaram essa transfiguração cromática. Para o artista, a guerra e o azul são faces de uma mesma moeda, porque ambos, entre o horror e o sublime, não têm limites na potência da sua intensidade. Em meu trabalho etnográfico em filme e vídeo, sempre retorno à caligrafia árabe ou a pintura chinesa monocromática para buscar inspiração. Para realizar as fotografias e filmes que fiz no Afeganistão, roubei da pintura japonesa uma ideia fabulosa, a de “força do pincel”, tecnicamente o fude no chikara, técnica onde se aprende que quando um objeto é vigoroso, devemos invocar a força presente nesse objeto através da a força física que se aplica no pincel. Ou seja, ele tem que ser pintado vigorosamente, quase que violentamente, aplicando-se “força no pincel”. Seja uma raiz contorcida, a pata de um tigre, uma 358 \ tempestade, as ondas do mar, um rochedo escarpado. Assim, por analogia, criei para mim a ideia, tecnicamente nova, da “força da câmera”. Uma maneira de segurar e movimentar a câmera fotográfica, nada estática, nada realista, manipulada como a técnica do pincel, capaz de dar conta da minha reação emocional diante de certas coisas muito violentas. Trata-se, neste método, menos de escolher um ângulo diferente do assunto, que saber dosar em mim mesmo a força expressiva, maior ou menor, desse “pincel”. Uma técnica dificílima de controle da energia muscular. O que conta é a concentração da mente, e o controle do punho, e não tanto o objeto que o olho está vendo. Filmando um combate, combater junto. Filmando uma dança, dançar junto. Sem procurar reproduzir nada, apenas ser penetrado pelo ritmo. Para filmar o buskashi, o jogo violento de cavaleiros afegãos lutando pela posse de uma carcaça decepada de um bode, eu usei essa “força da câmera”. Isto é, usar a câmera com força, ou a câmera como força, e a força como câmera. Uma técnica onde eu praticamente incorporei, no meu próprio corpo, o movimento dos cavaleiros na arena. Filmei tudo muito de perto, dentro da ação. Muitas vezes, fui atacado com pedradas pela plateia que queria que eu saísse da frente, ou recebendo o peso dos cavalos quando eles resvalavam uns sobre os outros, relinchando. No Afeganistão, logo após a guerra, tudo era tão descontrolado e livre que só quase no final é que eu fui descoberto perdido entre as patas dos animais selvagens, e retirado da pista. Um êxtase só. Tornado possível porque eu carregava uma câmera pequena, que cabia na palma da minha mão, sem equipe, sem plano, e sem o compromisso de fazer belas imagens para um documentário. Só importava a “força do pincel”. / 359 Com o material bruto ali captado, reduzido numa primeira edição a apenas alguns minutos cruciais, por vezes a alguns fotogramas brevíssimos, simples “pinceladas” de luz e carne, comecei a planejar Os cavalos de Goethe, ou Alquimia da velocidade. A ideia era nova para mim, um desafio, porque ia contra a minha natureza rápida. Realizar um filme que fosse lentíssimo, à beira da imobilidade total, e mesmo assim prender a atenção do espectador como se estivéssemos dentro de um filme de ação. E mais, sem dizer uma palavra sobre a guerra, realizar um filme político onde o espectador pudesse receber através dos sentidos, e não da razão, toda a mensagem do filme. 360 \ \ O cinematógrafo visto do Etna1 (1926) / Jean Epstein Sicília! A noite era um olho cheio de olhar. Todos os perfumes gritavam ao mesmo tempo. Uma mola desmontada parou nosso carro cercado de lua como de um mosquiteiro. Fazia calor. Impacientes, os motoristas interromperam a mais bela novela para bater na carroceria a grandes golpes de chave inglesa, injuriando o Cristo e sua mãe com uma fé cega. Diante de nós: o Etna, grande ator que faz brilhar seu espetáculo duas ou três vezes no século e cuja fantasia trágica eu chegava para cinematografar. Toda uma vertente da montanha era somente uma gala de fogo. O incêndio se alastrava ao canto avermelhado do céu. A vinte quilômetros de distância, o rumor chegava por instantes como de um longínquo triunfo, de milhares de aplausos, de uma imensa ovação. Qual ator trágico de qual teatro já conheceu tamanha tempestade de sucesso? A terra doente, mas dominada, abrindo-se em aclamações. Um calafrio seco correu subitamente no solo onde pousávamos nossos pés. O Etna telegrafava os extremos solavancos de seu desastre. Depois fezse um grande silêncio no qual se estendeu novamente o canto dos motoristas. As estradas do Piemonte subetniano tinham sido fechadas por precaução. A cada cruzamento, camisas pretas nos pediam nossa autorização para circular. Mas estes soldados, na sua maioria, não sabiam ler e o prospecto multicor, com que eu embrulhara meu tubo de aspirina, impressionava-os mais do que a autêntica assinatura do Prefeito de Catânia. 1 Até então inédito em português, este texto corresponde ao primeiro capítulo do livro de Epstein Le cinématographe vu de l’Etna (Paris: Les Écrivains Réunis, 1926), traduzido aqui em sua versão reeditada no volume Jean Epstein, Écrits sur le cinéma, tome 1 (1921-1953), Paris: Seghers, 1974, p.131-137. / 361 Em Linguaglossa, os muladeiros nos esperavam diante do front de lava negro, sulcado de púrpura como um belo tapete. Essa parede de brasa avançava por desmoronamentos sucessivos. Sob seu impacto, as casas, mal protegidas por imagens santas, estilhaçavam com um barulho de nozes quebradas. Grandes árvores, tocadas em seu pé, inflamavam-se de repente, da raiz até a copa e queimavam como tochas, roncando. Amanhecia. Mulas inquietas, ventas esticadas, deitavam as orelhas. Homens impotentes rondavam. Belo vulcão! Às suas, eu não vi expressões comparáveis. A queima cobrira tudo da mesma cor sem cor, cinza, fosca, morta. Cada folha de cada árvore, a olhos vistos, passava por todas as tintas e todas 362 \ as rachaduras do outono, retorcida, torrada, até cair enfim, ao sopro do fogo. E a árvore nua, negra, ficava de pé por um instante em seu inverno ardente. Não havia mais pássaros, não havia mais insetos. Como o arcabouço de uma ponte sob um caminhão muito pesado, a terra estriada com finos sulcos era atravessada por um frêmito contínuo. A lava se propagava com o barulho de milhões de pratos quebrados de um só golpe. Bolsas de gás se rasgavam assoviando docemente como serpentes. O cheiro do braseiro, um cheiro sem cheiro, mas cheio de pontadas2 e de amargor, envenenava os peitos até o fundo. Sob o céu, pálido e seco, a verdadeira morte reinava. Batalhões, funcionários, engenheiros, geólogos, contemplavam essa personagem natural de qualidade, que lhes inspirava, a esses democratas, uma idéia do poder absoluto e do direito divino. Como, paralelamente à enxurrada de lava e nas costas de mulas, nós subíamos em direção à cratera em atividade, eu pensava em você, Canudo, que punha tanta alma nas coisas. Você foi o primeiro, eu creio, a sentir que o cinema une todos os reinos da natureza em um só, o da maior vida. Ele põe Deus em toda a parte. Diante de mim, em Nancy, uma sala de trezentas pessoas gemeu em voz alta, vendo na tela um grão de trigo germinar. Surgido de repente, o verdadeiro rosto da vida e da morte, o do terrível amor, arranca tais gritos religiosos. Que igrejas, se nós soubéssemos construílas, deveriam abrigar esse espetáculo em que a vida é revelada? Descobrir inopinadamente, como pela primeira vez, todas as coisas sob o seu ângulo divino, com seu perfil de símbolo e o seu mais vasto sentido de analogia, com um ar de vida pessoal, tal é a grande alegria do cinema. Provavelmente, houve jogos na Antiguidade, e “mistérios” na Idade Média, que suscitavam assim, ao mesmo tempo, tanta piedade e tanto divertimento. Na água crescem cristais, belos 2 No original, «picotements». [N.d.T.] / 363 como Vênus, como ela nascidos, cheios de graças, de simetrias e das mais secretas correspondências. Jogos do céu, assim mundos caem - de onde?- , num espaço de luz. Assim os pensamentos e as palavras. Toda a vida se cobre de signos ordenados. As pedras têm, para crescer e se unir, gestos bonitos e regulares como os encontros de lembranças amadas. Anjos submarinos, órgãos de volúpia, as medusas secretas dançam. Insetos aparecem grandes como couraçados, cruéis como a inteligência, e se entre-devoram. Ah! Temo os futuristas que têm a tentação de substituir os verdadeiros dramas pelos falsos, feitos com qualquer coisa: a aviação e o fogo central, as hóstias consagradas e a guerra mundial. Receio que eles escrevam um drama de cabotinagem para os cristais e as medusas do cinema. O que é necessário imaginar aí? Os cascos de nossas mulas arranhavam o lugar de uma verdadeira tragédia. A terra tinha uma figura humana e obstinada. Nos sentíamos em presença de alguém e à sua espera. Os risos e os apelos deslumbrantes de nossos oito muladeiros tinham se calado. Caminhávamos no silêncio de um pensamento tão comum [a nós todos] que eu o sentia diante de nós como uma décima primeira e enorme pessoa. Não sei se consigo fazer compreender bem a que ponto isto é cinema, esse personagem de nossa preocupação. E que personagem? Acontece de estarmos em presença de um homem idoso e poderoso, apressado, míope e ruim de ouvido. Você espera uma resposta dele, mas o compreende menos ainda do que ele a você, provavelmente porque as respectivas línguas são diferentes e os pensamentos desconhecidos. Eu tinha também como camarada um chinês muito europeu. Uma manhã nós estudávamos as flores do jardim botânico: subitamente meu camarada se enfureceu para valer. Nunca pude penetrar essa cólera e essa tristeza intransponíveis de que ele se cercou, como seu país da grande muralha. Assim, frequentemente, a ponta extrema das sensibilidades nos é inacessível e às vezes uma alma inteira, cheia de 364 \ força e astúcia, nos é vedada. Como diante de uma destas, eu estava diante do Etna. Uma das maiores forças do cinema é o seu animismo. Na tela não há natureza morta. Os objetos têm atitudes. As árvores gesticulam. As montanhas, como este Etna, significam. Cada acessório se torna um personagem. Os cenários se fragmentam e cada um de seus pedaços ganha uma expressão particular. Um panteísmo surpreendente renasce no mundo e o satura. A erva da pradaria é um gênio sorridente e feminino. Anêmonas cheias de ritmo e de personalidade evoluem com a majestade dos planetas. A mão se separa do homem, vive sozinha, sozinha sofre e se alegra. E o dedo se separa da mão. Toda uma vida se concentra subitamente e encontra sua expressão mais aguda nessa unha que atormenta maquinalmente uma caneta carregada de tempestade. Houve um tempo, ainda recente, em que não havia dramas americanos sem a cena do revólver que alguém retirava lentamente de uma gaveta meio aberta. Eu amava esse revólver. Ele aparecia como o símbolo de mil possibilidades. Os desejos e os desesperos que ele representava: a multidão de combinações das quais ele era uma chave; todos os fins, todos os começos que ele permitia imaginar, tudo isso lhe conferia uma espécie de liberdade e uma personalidade moral. Uma tal liberdade, uma alma assim são mais epifenomenais do que as que supomos nossas? Enfim, quando o homem aparece inteiro é a primeira vez que o vemos com um olho que não é, ele tampouco, um olho humano. O lugar para mim de pensar a mais amada máquina viva foi essa zona de morte quase absoluta que cercava a um ou dois quilômetros as primeiras crateras. Os cirurgiões mais cuidadosos preparam campos operatórios menos assépticos. Eu estava deitado na cinza morna e móvel como um pelo de animal grande. A duzentos metros, as correntezas do / 365 fogo surgiam de uma fenda quase circular e desciam a encosta, formando um rio vermelho como as cerejas maduras e largo como o Sena em Rouen. Os vapores cobriam o céu inteiro com um branco de porcelana. Pequenas rajadas de vento bravo e fétido levantavam turbilhões de cinza que volteavam rentes ao solo, estranhas gaivotas vivendo nas beiras da labareda maior. Os muladeiros seguravam pelas ventas as mulas que não havia onde amarrar e que queriam fugir. Guichard, meu operador, como as crianças que brincam muito perto do fogo e a quem, dizem, vai acontecer desgraça, filmava uma fusão cujo valor ninguém adivinhou. Um homem alto apareceu de repente através das fumaças, saltando com uma incrível temeridade, de rochedo em rochedo, à beira da cratera, como o anjo da guarda bizarro desse lugar, é bem verdade, mais propício do que qualquer outro às transmutações da magia. Ele se aproximava a grandes passadas. Era idoso e seco, coberto de cinza até entre os pelos de sua barbicha, com o branco dos olhos muito vermelho, roupas aqui e ali arruivascadas e o ar geralmente feiticeiro. Não estou certo se não era um verdadeiro diabo, mas ele se dizia um geólogo sueco. Falando comigo, ele fazia gestos com um termômetro metálico comprido como um guarda-chuva. Há uma semana este homem vivia muito calmo, na única e imediata companhia do vulcão. A alguns passos de lá ele acampava sob uma tenda onde se via a noite tão claramente como o dia e que o frêmito do solo sacudia com uma corrente de ar contínua. Seus bolsos estavam cheios de pedaços de lava e de papeis. Puxando seu relógio, ele anotou exatamente a hora de nosso encontro. Ele fez com a sua mão em corneta um alto falante e com a boca quase sobre a minha orelha, gritou palavras que eu quase não ouvi: “Hoje parece que tudo deve ficar calmo. Mas ontem, um jornalista italiano desceu daqui meio louco”. Eu já o sabia: ao subirmos, nós o cruzamos descendo com seus guias, abalado e falante. Onde nós estávamos, o barulho era o de uma centena de 366 \ correntezas queimando um viaduto metálico. Em alguns minutos, tal estrondo se tornou silêncio, propício à imaginação. E por toda a parte se estendiam as cinzas. Na antevéspera pela manhã, como eu deixava o hotel para essa viagem, o elevador estava parado desde as seis horas e meia, entre o terceiro e o quarto andares. O porteiro da noite, já por três horas prisioneiro da cabine, agitava sua figura deplorável e soprava suas queixas na altura do tapete. Para descer, tive que tomar a escada grande ainda sem rampa, onde os operários cantavam injúrias a Mussolini. Essa imensa espiral de degraus dizia a vertigem. Todo o poço da escada estava coberto de espelhos. Eu descia cercado de mim-mesmos3, de reflexos, de imagens de meus gestos, de projeções cinematográficas. Cada curva me surpreendia sob outro ângulo. Há tantas posições diferentes e autônomas entre um perfil e um três quartos de costas quantas são as lágrimas no olho. Cada uma dessas imagens só vivia por um instante. Tão logo percebida, logo perdida de vista, já outra. Só minha memória fixava uma delas em meio à sua infinitude, e tornava a perder duas a cada três. E havia as imagens das imagens. As terceiras imagens nasciam das segundas. A álgebra e a geometria descritiva dos versos apareciam. Certos movimentos se dividiam nestas repetições: outros se multiplicavam. Eu deslocava a cabeça e, à direita, só via a raiz desse gesto, mas à esquerda ele se elevava à sua oitava potência. Olhando um depois o outro, eu tomava uma outra consciência de meu perfil. Vistas paralelas se respondiam exatamente, repercutiam, reforçavam-se, apagavam-se como um eco, com uma rapidez bem maior que a dos fenômenos da acústica. Gestos pequeníssimos tornavam-se muito grandes, assim como na Latomia do Paraíso, graças à sensibilidade da rocha, as 3 No original, «entouré de moi-mêmes», a expressão moi-même usada com valor expressivo como um substantivo no plural [N.d.T.]. / 367 palavras sussurradas na Orelha de Dionísio, o tirano, se avolumam e urram com toda a força4. Essa escada sendo o olho de outro tirano, ainda mais espião. Eu o descia como que através das facetas óticas de um imenso inseto. Outras imagens, por seus ângulos contrários, se recortavam e se amputavam; diminuídas, parciais, elas me humilhavam. Pois é o efeito moral de um tal espetáculo que é extraordinário. Cada vista é uma surpresa desconcertante que ultraja. Jamais eu me vira tanto, e me olhava com terror. Eu compreendia esses cães que latem e esses macacos que babam de raiva diante de um espelho. Eu me acreditava um, e percebendo-me outro, esse espetáculo rompia todos os hábitos de mentira que eu chegara a criar para mim mesmo. Cada um desses espelhos me apresentava uma perversão de mim, uma inexatidão da esperança que eu tinha em mim. Esses vidros espectadores me obrigavam a me olhar com sua indiferença, sua verdade. Eu aparecia para mim numa grande retina sem consciência, sem moral, com sete andares de altura. Eu me via privado de ilusões alimentadas, surpreso, desnudado, arrancado, seco, verdadeiro, peso líquido. Eu teria corrido longe para escapar a esse movimento de parafuso em que eu parecia afundar rumo a um centro horrível de mim mesmo. Uma tal lição de egoísmo às avessas é impiedosa. Uma educação, uma instrução, uma religião, tinham me consolado pacientemente de existir. Tudo devia recomeçar. O cinematógrafo, bem melhor ainda que um jogo de espelhos inclinados, proporciona tais encontros inesperados consigo mesmo. A inquietude diante de sua própria cinematografia é súbita e geral. É uma anedota agora comum a dessas pequenas milionárias americanas que choraram ao se verem pela primeira vez na tela. E aqueles que 4 Epstein alude aqui a uma antiga prisão de Siracusa, hoje sítio histórico e arqueológico muito visitado, em que um fenômeno de propagação acústica permitiria, segundo a lenda, ao tirano Dionísio (431-367 a.C.) escutar do lado de fora da caverna (num ponto batizado assim de “Orelha de Dionísio”) o que diziam os presos do lado de dentro. [N.d.T.] 368 \ não choram perturbam-se. Não se deve ver nisso um mero efeito da presunção de si próprio e de uma vaidade exagerada. Pois a missão do cinema não parece ter sido compreendida exatamente. A objetiva da câmera é um olho que Apollinaire teria qualificado de surreal (sem nenhuma relação com esse surrealismo de hoje), um olho dotado de propriedades analíticas inumanas. É um olho sem preconceitos, sem moral, isento de influências, e ele vê no rosto e no movimento humanos traços que nós, carregados de simpatias e antipatias, de hábitos e reflexões, não sabemos mais ver. Por / 369 pouco que se detenha nessa constatação, toda comparação entre o teatro e o cinema se torna impossível. A essência mesma desses dois modos de expressão é diferente. Assim, a outra propriedade original da objetiva cinematográfica é essa força analítica. A arte cinematográfica deveria depender dela. Que pena! Se o primeiro movimento diante de nossa própria reprodução cinematográfica é uma espécie de horror, é que, civilizados, mentimos cotidianamente os nove décimos de nós mesmos (sem que seja necessário citar as teorias de Jules de Gaultier ou as de Freud). Mentimos sem mais saber. Bruscamente este olhar de vidro nos penetra com sua luz amperizada5. É nessa potência analítica que se encontra a fonte inesgotável do futuro cinematográfico. Villiers nunca sonhou uma tal máquina de confessar as almas. E vejo bem futuras inquisições arrancarem provas comprometedoras de um filme em que um suspeito aparecerá capturado, esfolado, traído minuciosamente e sem parti pris por esse tão sutil olhar do vidro. Traduzido do francês por Íris Araújo e Mateus Araújo. 5 No original, «ce regard de verre nous perce à son jour d’ampères». [N.d.T.]. 370 \ \ Nossos anos Cahiers / Jean-Louis Comolli e Jean Narboni Era agosto de 2010. Nós tivemos o desejo – nós, Comolli e Narboni –, tivemos o desejo de reencontrar alguns de nossos antigos camaradas dos Cahiers para filmá-los. Regressar a essa história, a nossa. 19631973. Dez anos, ricos de todas as promessas, de todos os perigos. Perguntar o que poderia restar ainda hoje. Jean-André Fieschi havia morrido um ano antes, tendo sido um dos nossos entre 1962 e 1968. Antes de Jean-André, havia Jean-Pierre Biesse, Serge Daney, Pierre Baudry, Jean-Claude Biette... Por que regressar hoje a esses dez anos, aqueles onde nós tínhamos entrado na equipe da revista, aqueles onde nos encontramos juntos na chefia de redação? O que havia se tornado os membros desse grupo que formávamos? Cineastas, professores, ensaístas, diretores de revistas, seus caminhos não tinham se perdido fora dos trilhos do cinema. O quão diferentes eles poderiam ter sido e o poderiam ser hoje, como uns e outros teriam vivido e sustentado a experiência desse grupo? O que restou das questões que nos eram comuns? Ontem, nós diríamos “nós”; hoje nós diremos “nós”. Esse grupo pertence ao passado e, no entanto, não o enterramos. A nós, é preciso tentar compreender o que foi isso em nossa história, dessa juventude. De um lado, apreciamos como nunca as últimas chamas do grande cinema americano, Ford e suas Seven Women; analisamos e apreciamos, de uma outra maneira, Ford e seu Young Mister Lincoln. Do outro lado, caminhamos pelas ruas de Paris contra o imperialismo americano e protestamos contra a guerra do Vietnã. Um cineasta americano de nosso tempo juntou esses dois lados da moeda; ele foi Robert Kramer. Os filmes dos cineastas principiantes, de Iosseliani a Bertolucci, de Bellocchio a Jancso, de Oshima a Glauber Rocha, de Gilles Groulx a Pierre Perrault, seus filmes nos chegavam de todos / 371 os lados. Em todo lugar, nasciam os cineastas. Os monopólios de Hollywood e da Cinecittà, os estúdios de Boulogne ou de Babelsberg eram contornados. Os impérios se fragmentavam. O espantoso, nós nos dizíamos, era que isso acontecia em todo lugar no mesmo momento ou quase, no mesmo período histórico, 1965-1970, e que tudo isso era contemporâneo das revoltas políticas que, do Japão a Berkeley, da Sorbonne a Fiat, empurraram o mundo. Nós apreciamos o primeiro filme de Philippe Garrel, Marie pour mémoire. Nós apreciamos o primeiro filme de Jerzy Skolimowski, Rysopis (Signes particuliers: néant/Sinais particulares: nenhum). Nós fomos os únicos a apreciar os primeiros filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, Nicht Versöhnt e Othon. Nós pudemos apreciar ao mesmo tempo Nostra signora dei Turchi de Carmelo Bene e Uccelacci e uccellini de Pasolini. Nós pudemos apreciar ao mesmo tempo Gertrud de Dreyer e Les petites marguerites de Vera Chytilova, os irmãos inimigos Vertov e Eisenstein, Godard e Jerry Lewis. Sem ver aí contradição, e isso em tempos de alto teor político. O novo não matava o antigo, mas o realizava, dando-lhe uma nova profundidade, um lugar na história. Parecia-nos ter se tornado impossível pensar a proliferação de novas salas de cinema sem vinculá-la às lutas políticas que lhe eram contemporâneas. Era o momento de força total da visão política do mundo e, à primazia da teoria, deveriam dissipar-se a ignorância, a ilusão, a alienação, a ideologia. A política, então, não era para nós inimiga da beleza. Quando Louis Althusser analisou os aparelhos ideológicos do estado, os AIE, estava ali a ferramenta que precisávamos. 372 \ Nós apreciávamos mostrar aos outros os filmes que nós apreciávamos, os difundir, os fazer conhecidos, correr o mundo para revelá-los. Nós fomos pegos dentro de um movimento conjunto, conduzidos na insurreição geral. Já não gostávamos das negações. Os erros, o dogmatismo, as cegueiras, os impasses da crença politista ou maoísta que foram nossos, seguem o sendo e ainda ficaram por analisar e meditar, e a negação não ajuda em nada. Eis do que nós desejamos falar com nossos antigos camaradas dos Cahiers... Quais eram nossas paixões? Quais, nossas loucuras? Como nós chegamos a juntar a mais exigente cinefilia e a tomada de posição política extrema? Questões que nos colocamos. E depois – entre nós – atuavam também a intimidação ou a pressão das inteligências e das capacidades. O terror, sim, o terror mesmo da amizade rival a mais exigente, o medo exterior e interior ao grupo. Terror também que o exterior político exercia sobre nós, pouco prevenidos que estávamos e pouco praticantes do exercício de conquista do poder, de tomada do poder, de manutenção no poder. Muito ao contrário, esse “poder” nós não queríamos. Supressão, no ano anterior, da “redação em chefe”, instituição de um comitê de redação sem hierarquia nem diferença de salário. Mas também escassez de fotos, estereótipos de escrita, aridez da língua política, isolamento e uma crescente vertigem na fuga em direção à própria armadilha. A revista se tornou uma jangada, que arriscava afundar. Alguns meses sem imagens, alguns números ditos “brancos”, uma sorte de regime seco. Não havíamos nós construído em conjunto uma teoria da frustração do espectador no cinema? Daí a nossa paixão pela prática. Nós quisemos criar com alguns outros um “fronte cultural revolucionário”. Isso remeteu ao “fronte de esquerda da arte” dos / 373 formalistas russos. Esse fronte, o nosso, desmoronou na primeira reunião, em Avignon, no verão de 1973. O tempo não estava mais para as utopias. O movimento de insurgência que havia feito sacudir o velho mundo estava em refluxo. De um lado, iluminavam as velhas lanternas do cinema de qualidade francesa, sempre lá, quinze anos depois do panfleto de Truffaut. E com ele todo um cortejo crítico muitas vezes pouco atento. De outro lado, a “boa” esquerda, boa e bem pensante, boa consciência e bons sentimentos, que era aquela, infelizmente, dos militantes os mais aguerridos, os quais sempre haviam preferido uma mensagem bem quadrada numa forma bem redonda. Ali talvez resida, em toda sua ingênua esperança, o gérmen do que devia se tornar o “fronte cultural”: seus militantes, seus animadores sociais ou culturais, que nós sonhamos trazer a nossas visões, a nossas lógicas, a nossas escolhas. Era certamente impossível, e sem dúvida, vão. Antes do fracasso político do esquerdismo, todas as tendências se confundiram, houve em toda pequena escala o fracasso dessa utopia: amarrar na mesma trama o militantismo político e o militantismo cinéfilo – o nosso. Pierre Overney, militante maoísta, foi assassinado em fevereiro de 72. Seu enterro é a última das grandes manifestações da extrema esquerda na França. Tradução: Douglas Resende 374 \ / programação / 375 376 \ / CINE HUMBERTO MAURO The Hunters 72’ John Marshall 22/11 TERÇA FEIRA 19h30 o animal e a câmera 19h30 SESSÃO DE ABERTURA AS HIPER MULHERES 80’ Carlos Fausto, Leonardo Sette, Takumã Kuikuro Sessão comentada por Leonardo Sette, Takumã Kuikuro 22h30 dj anônimo Jardins internos do Palácio das Artes 23/11 QUARTA-FEIRA 15h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS / BOLÍVIA Qulqi chaleco/ Chaleco de plata 22´ Patricio Luna Wiñay qaman pacha – Cosmovisión de los pueblos indígenas originários 30´ Direção coletiva Guayé – La lucha del pueblo Ayoreo 31´ Direção coletiva Sessão comentada por Júnia Torres 17h o animal e a câmera Lion Game 4’ John Marshall !Kung Bushmen Hunting Equipment 37’ John Marshall Os Cavalos de Goethe ou Alquimia da Velocidade 55’ Arthur Omar Sessão comentada por Arthur Omar, João Dumans, Paulo Maia 21h30 COMPETITIVA INTERNACIONAL Minhocão / The big worm 30’ Raphaël Grisey Fragments d’une révolution/ Fragmentos de uma revolução 55’ Anonymous 24/11 QUINTA-FEIRA 15h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS - MÉXICO/BOLÍVIA Chul stes-bil lum qui, nal / Tierra Sagrada 19’ Direção coletiva Tzotzil - Chiapas Media Project/Promedios Planting a seed: autonomous health in Chiapas 42´ Direção coletiva Tzotzil, Tzeltal, Tojolabal - Chiapas Media Project/ Promedios Suma Quamaña, Sumak Kausay, Teko Kavi / Para vivir bien 55´ Direção Coletiva / 377 17h COMPETITIVA INTERNACIONAL 19h CINEMA DOS POVOS Shuai Jun´s Childhood / A infância de Shuai Jun 14’ Xingzheng Jin Nikan ikon ti topajcha/ Aquí así nos curamos 15´ José Luís Matías Dom / Lar 95’ Olga Maurina El rebozo de mi madre 75´ Itandehui Jansen 19h o animal e a câmera 21h O ANIMAL E A CÂMERA Primate 105’ Frederick Wiseman LA BÊTE LUMINEUSE 127’ Pierre Perrault 21h COMPETITIVA INTERNACIONAL 23h Festa Praba(i)lar 2 Sharawadji Dj Alexandre de Sena – Radiola Picumãh Dj Guto Lovers Nelson Bordello Av. Aarão Reis, 554, Centro Qu’ils reposent en révolte (Des figures de guerres I)/ Que descansem sem paz (Imagens da Guerra) 153’ Sylvain George ORIGINÁRIOS / MÉXICO 26/11 SÁBADO 25/11 – SEXTA-FEIRA 15h COMPETITIVA INTERNACIONAL Saskatchewan 18’ Richard Wiebe La mort de Danton / A morte de Danton 64’ Alice Diop 17h COMPETITIVA INTERNACIONAL Amanar Tamasheq 14’ Lluis Escartín Pink Saris 96’ Kim Longinotto 378 \ 15h COMPETITIVA INTERNACIONAL Sonor 37’ Levin Peter Moacir 75’ Tomas Lipgot 17h COMPETITIVA INTERNACIONAL Smolarze / Carvoeiros 15’ Piotr Zlotorowicz Los Ulises / Os Ulisses 83’ Agatha Maciaszek, Alberto Garcia Ortiz 19h O ANIMAL E A CÂMERA La course de taureaux / Morte todas as tardes 75’ Pierre e Myriam Braunberger 20h30 O ANIMAL E A CÂMERA Bataille sur le grand fleuve / Batalha no Grande Rio 33’ Jean Rouch Jean Rouch, PREMIÉRE FILM / Jean Rouch, primeiro filme 27’ Jean Rouch 21H30 FÓRUM DE DEBATES MESA REDONDA: “O animal e a Câmera” Com: André Dias, Renato Sztutman, Paulo Maia Som Tximna Yukunang/ Gravando som 52’ Karané Ikpeng e Kamatxi Ikpeng 19h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS CHILE/MÉXICO/ BOLÍVIA Punalka: el alto Bíobío 26´ Jeannette Paillán K’in Santo ta sotz’leb / Dia de muertos en la tierra de los murciélagos 32´ Pedro Daniel López López Sirionó 56´ Direção coletiva 21h SESSÃO FILMES DE QUINTAL Quando os yãmiy vêm dançar conosco 52’ Renata Otto Diniz Sessão comentada por Isael Maxakali e Suely Maxakali 28/11 SEGUNDA-FEIRA 27/11 DOMINGO 15h SESSÃO FILMES DE QUINTAL RODA 72´ Carla Maia, Raquel Junqueira 17h COMPETITIVA NACIONAL Oferenda 17’ Ana Bárbara Ramos O Brasil de Pero Vaz Caminha 17’40’’ Bruno Laet 10h30 ENCONTRO DE REALIZADORES/ COMPETITIVA NACIONAL 15h COMPETITIVA NACIONAL OMA 22’ Michael Wahrmann Morada 78’ Joana Oliveira 17h COMPETITIVA NACIONAL Ovos de Dinossauro na sala de estar 12’ Rafael Urban / 379 Laura 77’ Fellipe Gamarano Barbosa 19h FERNANDO CONI CAMPOS LA VIDA DE LA MUJER EN RESISTENCIA / WE ARE EQUAL: ZAPATISTA WOMEN SPEAK 19´ Chiapas Media Project PELO SERTAO 8’ 17h COMPETITIVA NACIONAL O BRASIL DE PEDRO A PEDRO 9’ FILME PORNOGRAFIZME 9’15’’ Leo Pyrata ART NOUVEAU 9´ SANGUE QUENTE EM TARDE FRIA 87’ Fernando Coni Campos, Renato Neumann 21h SESSÃO FILMES DE QUINTAL MANOKI, PYTÁMÃNÃNJULIPJA/ LUTA PELA TERRA 39’ Celso Xinuxi, Alonso Irawali e Manoel Kanuxi ENCONTRO COM SÃO JOÃO DA CRUZ 19’35” Daniel Ribeiro Duarte HÖLDER 11’ Daniel Ribeiro Duarte EROSÕES 35’ Umbando 29/11 TERÇA-FEIRA 15h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS MÉXICO CUANDO LA JUSTICIA SE HACE PUEBLO/ RECLAIMING JUSTICE: GUERRERO’S INDIGENOUS COMMUNITY POLICE 26´ Carlos Pérez Rojas LA LUCHA DEL AGUA / WATER AND AUTONOMY 14´ Chiapas Media Project 380 \ AS AVENTURAS DE PAULO BRUSCKY 19’ Gabriel Mascaro SANTOS DUMONT: PRÉ-CINEASTA? 64’ Carlos Adriano 19h COMPETITIVA NACIONAL BICICLETAS DE NHANDERÚ 45’ Sandro Ariel Ortega e Patrícia Ferreira LÁ DO LESTE 28’ Carolina Caffé e Rose Satiko Gitirana Hikiji ACERCADACANA 20’ Felipe Peres Calheiros 21h FERNANDO CONI CAMPOS LADRÕES DE CINEMA 127’ Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet 30/11 QUARTA-FEIRA 10h30 ENCONTRO DE REALIZADORES/ COMPETITIVA NACIONAL 15h SESSÃO ESPECIAL A VOIR ABSOLUMENT (SI POSSIBLE) DIX ANNÉES AUX CAHIERS DU CINÉMA, 1963-1973 78´ Ginette Lavigne, Jean Narboni, Jean-Louis Comolli 17h COMPETITIVA NACIONAL UM OLHAR PASSAGEIRO 21’41’’ Pedro Carvalho 01/12 QUINTA-FEIRA 14h CURSO DILEMAS DA OBSERVAÇÃO Com Eduardo Escorel PARIS QUI DORT / PARIS ADORMECIDA 34’ René Clair 17h COMPETITIVA NACIONAL O CÉU SOBRE OS OMBROS 72’ Sérgio Borges DIÁRIO DE UMA BUSCA 105’ Flávia Castro 19h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS/BOLÍVIA 19h FERNANDO CONI CAMPOS K’ANCHARY / PARA ENCENDER LA LUZ DEL ESPÍRITU 45´ Reynaldo Yujra QATI QATI / SUSURROS DE MUERTE 35´ Reynaldo Yujra Sessão Comentada por Ivan Sanjinés, Martha Zeladi VIAGEM AO FIM DO MUNDO 95’ Sessão Comentada por Jean-Claude Bernardet 21h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS/BOLÍVIA LA NACIÓN CLANDESTINA 128´ Jorge Sanjinés Sessão comentada por Ivan Sanjinés 21h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS BOLÍVIA/MÉXICO 02/12 SEXTA-FEIRA LA TIERRA ES DE QUIEN LA TRABAJA 15´ Direção coletiva Tzotzil 14h CURSO DILEMAS DA OBSERVAÇÃO Com Eduardo Escorel LA SOUFRIÈRE 30’ Werner Herzog FÓRUM DE DEBATES MESA REDONDA: “Coletivos Audiovisuais Indígenas: formação de realizadores e constituição de redes de comunicação na Bolívia, México, Brasil” Com Ivan Sanjinés, Carlos Pérez Rojas, Vincent Carelli Mediação: Ruben Caixeta 17h COMPETITVA NACIONAL VÓ MARIA 6’ Tomás von der Osten EX ISTO 86’ Cao Guimarães / 381 19h CINEMA POVOS ORIGINÁRIOS/ MÉXICO DULCE CONVIVENCIA 18´ Filoteo Gómez Martinez Y EL RÍO SIGUE CORRIENDO 70´ Carlos Pérez Rojas Sessão comentada por Carlos Pérez Rojas 19h FERNANDO CONI CAMPOS TARSILA DO AMARAL 12’ UM HOMEM E SUA JAULA 73’ Fernando Coni Campos, Paulo Gil Soares 21h FÓRUM DE DEBATES LANÇAMENTO REVISTA DEVIRES CINEMA POVOS ORIGINÁRIOS BOLÍVIA/MÉXICO MESA REDONDA: “O Cinema de Fernando Coni Campos” Com Hernani Heffner, Patrícia Moran. Mediação: Ewerton Belico MESA REDONDA: “Realização indígena e autoria cinematográfica” Com Maria Zeladi Mole, Carlos Pérez Rojas, Divino Tserewahu, Takumã Kuikuro. Mediação: Carolina Canguçu 22h FESTA FORUMDOC.BH.2011 Baile Comemorativo aos 15 anos do festival! Senta a Pua! Rafael no Som Quadra da Escola de Samba Cidade Jardim Rua do Mercado s/número Conjunto Santa Maria (Luxemburgo) 03/12 SÁBADO 04/12 DOMINGO 14h CURSO DILEMAS DA OBSERVAÇÃO Com Eduardo Escorel 15h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS/MÉXICO KÉVUJELTA JTEKLUM, CANCIÓN DE NUESTRA TIERRA 36´ Pedro Daniel López López 21h FÓRUM DE DEBATES NÃO AMARÁS 85’ Kristof Kieslowski 17h CINEMA POVOS ORIGINÁRIOS/ BOLÍVIA EL GRITO DE LA SELVA 97´ Direção Coletiva Sessão Comentada por Martha Zeladi Mole, Ivan Sanjinés NOSTALGIA DE SAN CARALAMPIO 44´ Comunidade San Caralampio, Pedro Daniel López López, Juan Diego Méndez, Javier Méndez Córdoba, Xochitl Leyva y Axel Köhler 17h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS/MÉXICO SON DE LA TIERRA 17’ Direção coletiva Tzotzil - Chiapas Media Project/Promedios 382 \ MIRANDO HACIA ADENTRO. LA MILITARIZACIÓN EN GUERRERO 34´ Carlos Pérez Rojas A CIELO ABIERTO 37’37’’ José Luis Matías, Carlos Pérez Rojas Sessão comentada por Carlos Pérez Rojas 19h FERNANDO CONI CAMPOS A PINTURA DE CLAUDIO TOZZI 9’ LÁ DO LESTE 28’ Carolina Caffé e Rose Satiko Gitirana Hikiji ACERCADACANA 20’ Felipe Peres Calheiros 25/11 SEXTA-FEIRA 18h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS MÉXICO 21h SESSÃO DE ENCERRAMENTO O ANIMAL E A CÂMERA CUANDO LA JUSTICIA SE HACE PUEBLO / RECLAIMING JUSTICE: GUERRERO’S INDIGENOUS COMMUNITY POLICE 26´ Carlos Pérez Rojas DERSU UZALA 144’ Akira Kurosawa Y EL RÍO SIGUE CORRIENDO 70´ Carlos Pérez Rojas \ CENTRO CULTURAL UFMG 20h O MÁGICO E O DELEGADO Fernando Coni Campos 23/11 QUARTA-FEIRA 28/11 SEGUNDA-FEIRA 18h O ANIMAL E A CÂMERA ARRAIAL DO CABO 17´ Mário Carneiro, Paulo César Saraceni 18h O ANIMAL E A CÂMERA YAKWÁ / O BANQUETE DOS ESPÍRITOS 54´ Virgínia Valadão O MÁGICO E O DELEGADO 103’ Sessão Comentada por Jair Fonseca RASTEJADOR, SUBSTANTIVO MASCULINO 8´ Sérgio Muniz MEMÓRIA DO CANGAÇO 26´ Paulo Gil Soares 20h COMPETITIVA NACIONAL BICICLETAS DE NHANDERÚ 45’ Sandro Ariel Ortega e Patrícia Ferreira 20h COMPETITIVA NACIONAL FILME PORNOGRAFIZME 9’15’’ Leo Pyrata AS AVENTURAS DE PAULO BRUSCKY 19’ Gabriel Mascaro SANTOS DUMONT: PRÉ-CINEASTA? 64’ Carlos Adriano / 383 30/11 QUARTA-FEIRA 18h O ANIMAL E A CÂMERA ATAKA: O LADRÃO DE ARMADILHAS 10´ Coletivo Kuikuro de Cinema KUXAKUK XAK / CAÇANDO CAPIVARA 57’ Derli Maxakali, Marilton Maxakali, Juninha Maxakali, Janaina Maxakali, 20h COMPETITIVA NACIONAL OMA 22’ Michael Wahrmann MORADA 78’ Joana Oliveira 02/12 SEXTA-FEIRA 18h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS BOLÍVIA/CHILE QULQI CHALECO / CHALECO DE PLATA 22´ Patricio Luna PUNALKA: EL ALTO BÍOBÍO 26´ Jeannette Paillán CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS/BOLÍVIA K’ANCHARY / PARA ENCENDER LA LUZ DEL ESPÍRITU 45´ Reynaldo Yujra O BRASIL DE PERO VAZ CAMINHA 17’40’’ Bruno Laet SOM TXIMNA YUKUNANG/ GRAVANDO SOM 52’ Karané Ikpeng e Kamatxi Ikpeng 16h COMPETITIVA NACIONAL OVOS DE DINOSSAURO NA SALA DE ESTAR 12’ Rafael Urban LAURA 77’ Fellipe Gamarano Barbosa 18h CINEMA DOS POVOS ORIGINÁRIOS/MÉXICO LA TIERRA ES DE QUIEN LA TRABAJA 15´ Direção coletiva Tzotzil LA LUCHA DEL AGUA / WATER AND AUTONOMY 14´ Direção coletiva Tzeltal LA VIDA DE LA MUJER EN RESISTENCIA / WE ARE EQUAL: ZAPATISTA WOMEN SPEAK 19´ Direção coletiva Tzeltal DULCE CONVIVENCIA 18´ Filoteo Gómez Martinez 20h COMPETITIVA NACIONAL DIÁRIO DE UMA BUSCA 105’ Flávia Castro 04/12 DOMINGO 03/12 SÁBADO 14h COMPETITIVA NACIONAL OFERENDA 17’ Ana Bárbara Ramos 384 \ 18h COMPETITVA NACIONAL VÓ MARIA 6’ Tomás von der Osten UM OLHAR PASSAGEIRO 21’41’’ Pedro Carvalho 19h COMPETITIVA NACIONAL EX ISTO 86’ Cao Guimarães / FORUMDOC.UFMG CAMPUS UFMG FAE/EBA/FAFICH 21/11 SEGUNDA-FEIRA FAE Auditório Luiz Pompeu de Castro 11h O ANIMAL E A CÂMERA Conferência Inaugural: “Lições de Caça”, por Maurício Yekuana FAFICH Auditório Sônia Viegas 14h O ANIMAL E A CÂMERA NANOOK, O ESQUIMÓ 65´ Robert Flaherty DRIFTERS 61´ John Grierson 22/11 TERÇA-FEIRA FAFICH Auditório Sônia Viegas 10h O ANIMAL E A CÂMERA Conferência II: “Autópsia ‘in vivo’: aspectos da biopolítica em ‘Primate’ de Frederick Wiseman”, por André Dias Escola de Belas Artes/Auditório 14h O ANIMAL E A CÂMERA LA CHASSE AU LION À L´ARC/ A CAÇA AO LEÃO COM ARCO 77´25’’ Jean Rouch UN LION NOMMÉ LAMERICAIN/UM LEÃO CHAMADO AMERICANO 19´52’’ Jean Rouch 23/11 QUARTA-FEIRA FAE Sala de Teleconferência 10h O ANIMAL E A CÂMERA ATAKA: O LADRÃO DE ARMADILHAS 10´ Filme comentado: “Como filmar uma armadilha?”, por Takumã Kuikuro Escola de Belas Artes/Auditório 14h O ANIMAL E A CÂMERA POUR LA SUÍTE DU MONDE 106´ Pierre Perrault, Michel Brault 24/11 QUINTA-FEIRA FAE Auditório Luiz Pompeu de Castro 10h O ANIMAL E A CÂMERA Conferência III: “Revisando a caça de porco do mato juruna”, por Tânia Stolze Lima Escola de Belas Artes/Auditório 14h O ANIMAL E A CÂMERA OS ARARA 150´ Andrea Tonacci 25/11 SEXTA-FEIRA FAE Auditório Luiz Pompeu de Castro 10h O ANIMAL E A CÂMERA Mesa Redonda I: “A técnica de caça e o cinema”, por Uirá Garcia, Carlos Sautchuk e Cezar Migliorin / 385 Escola de Belas Artes/Auditório 14h O ANIMAL E A CÂMERA ARRAIAL DO CABO 17’ Mário Carneiro Paulo César Saracen RASTEJADOR, SUBSTANTIVO MASCULINO 8’ Sérgio Muniz MEMÓRIA DO CANGAÇO 26’ Paulo Gil Soares 28/11 SEGUNDA-FEIRA FAFICH Auditório Sônia Viegas 11h O ANIMAL E A CÂMERA PEIXE PEQUENO 3’33’’ Vincent Carelli, Altair Paixão YAKWÁ/O BANQUETE DOS ESPÍRITOS 54’ Virgínia Valadão 29/11 TERÇA-FEIRA FAFICH Auditório Sônia Viegas 10h O ANIMAL E A CÂMERA SESSÃO DE ENCERRAMENTO HISTÓRIAS DE MAWARY 56’ Ruben Caixeta Sessão comentada por André Brasil e Ruben Caixeta 386 \ / endereços CINE HUMBERTO MAURO Avenida Afonso Pena | 1.537 | Centro CENTRO CULTURAL UFMG Avenida Santos Dumont | 147 | Centro CAMPUS UFMG Avenida Antônio Carlos | 6627 / 387 388 \ \ índice de filmes e diretores / 389 390 \ \ índice de filmes A cielo abierto / 74 A pintura de Cláudio Tozzi / 42 Acercadacana / 129 Amanar Tamasheq / 162 Arraial do cabo / 111 Art nouveau / 43 As aventuras de Paulo Bruscky / 130 As hiper mulheres / 29 Ataka: o ladrão de armadilhas / 114 A voir absolument (si possible) dix années aux Cahiers du Cinema, 1963-1973 / 175 Bataille sur le grand fleuve / 99 Bicicletas de Nhanderú / 131 Chul stes-bil lum qui, nal / Tierra sagrada / 66 Cuando la justicia se hace pueblo / 68 Dersu Uzala / 120 Diário de uma busca / 132 Dom / 163 Drifters / 98 Dulce convivencia / 78 El grito de la selva / 61 El rebozo de mi madre / 76 Encontro com São João da Cruz / 168 Ex Isto / 133 Filme pornografizme / 134 Fragments d’une révolution / 157 Guayé – La lucha del pueblo Ayoreo / 63 Histórias de Mawary / 117 Hölder / 169 Jean Rouch, primeiro fillme: 1947-1991 / 118 K’anchary / Para encender la luz del espíritu / 59 Kévujelta Jteklum / Canción de nuestra tierra. / 80 K’in santo ta sotz’leb / Dia de muertos n la tierra de los murciélagos / 79 Krótki film o milosci / Não amarás / 189 !Kung bushmen hunting equipment / 103 Kuxakuk Xak / Caçando capivara / 115 La bête lumineuse / 106 La chasse au lion à l’arc / 100 / 391 La course de taureaux / 108 Lá do leste / 136 La lucha del agua / 69 La mort de Danton / 156 La nación clandestina / 65 La soufrière / 188 La tierra es de quien la trabaja / 72 La vida de la mujer en resistencia / 70 Ladrões de cinema / 41 Laura / 135 Lion game / 104 Los Ulises / 161 Manoki, Pytámãnãnjulipja / Luta pela terra / 166 Memória do cangaço / 109 Minhocão / 153 Mirando hacia adentro. La militarización en Guerrero / 71 Moacir / 158 Morada / 137 Nanook of the North / 97 Nikan ikon ti topajcha/ Aquí así nos curamos / 77 Nostalgia de San Caralampio / 81 O Brasil de Pedro a Pedro / 43 O Brasil de Pero Vaz caminha / 138 O céu sobre os ombros / Pink saris / 139 Oferenda / 140 OMA / 141 Os Arara / 119 Os cavalos de Goethe ou Alquimia da velocidade / 118 Ovos de dinossauro na sala de estar / 142 Paris qui dort /187 Peixe pequeno / 112 Pelo sertão / 43 Pink saris / 154 Planting a seed: autonomous health in Chiapas / 73 Pour la suite du monde / 105 Primate / 107 Punalka: el alto Bíobío / 82 Qati Qati / Susurros de muerte / 54 392 \ Quando os yãmiy vem dançar conosco / 170 Qu’ils reposent en révolte (Des figures de guerres I) / 152 Qulqi chaleco / Chaleco de plata / 58 Rastejador, substantivo masculino / 110 Roda / 167 Sangue quente em tarde fria / 39 Santos Dumont: pré-cineasta? / 143 Saskatchewan / 164 Shuai Jun’s childhood / 160 Sirionó / 64 Smolarze / 159 Som Tximna Yukunang/ Gravando som / 144 Son de la tierra/ 67 Sonor / 155 Suma Quamaña, Sumak Kausay, Teko Kavi – Para vivir bien / 62 Tarsila do Amaral / 43 The hunters / 107 Um homem e sua Jaula / 38 Um olhar passageiro / 145 Un lion nommé l’Américain / 101 Viagem ao fim do mundo / 37 Vó Maria / 146 Wiñay qaman pacha – Cosmovisión de los pueblos indígenas originários / 60 Y el río sigue corriendo / 75 Yãkwá, o banquete dos espíritos / 113 / 393 \ índice de diretores Agatha Maciaszek / 161 Akira Kurosawa / 120 Alberto Garcia Ortiz / 161 Alice Diop / 156 Alonso Irawali / 166 Altair Paixão / 111 Ana Bárbara Ramos / 140 Andrea Tonacci / 119 Anonymous / 157 Arthur Omar / 116 Axel Köhler / 81 Bruno Laet / 138 Cao Guimarães / 133 Carla Maia / 167 Carlos Adriano / 143 Carlos Fausto / 29 Carlos Pérez Rojas / 68, 71, 74, 75 Carolina Caffé / 136 Cefrec/Caib / 60-64 Celso Xinuxi / 166 Chiapas Media Project / 66, 69, 70, 72, 73 Coletivo Kuikuro de Cinema / 114 Comunidade San Caralampio / 81 Daniel Ribeiro Duarte / 168, 169 David Neves / 42 Derli Maxakali / 115 Direção coletiva Tzeltal / 66, 69, 70, 73 Felipe Peres Calheiros / 129 Fellipe Gamarano Barbosa / 135 Fernando Coni Campos / 37-43 Filoteo Gómez Martínez / 78 Frederick Wiseman / 107 Gabriel Mascaro / 130 Ginette Lavigne / 175 394 \ Itandehui Jansen / 76 Janaina Maxakali / 115 Javier Méndez Córdoba / 81 Jean Louis Comolli / 175 Jean Nardoni / 175 Jean Rouch / 99-101, 118 Jeannette Paillán / 82 Joana Oliveira / 137 John Grierson / 98 John Marshall / 102-104 Jorge / 67 Jorge Sanjinés / 65 José Luis Matías / 74, 77 Juan Diego Méndez / 81 Juninha Maxakali / 115 Kamatxi Ikpeng / 144 Karané Ikpeng / 144 Kristof Kieslowski / 189 Leo Pyrata / 134 Leonardo Sette / 29 Levin Peter / 155 Lluis Escartín / 162 Manoel Kanuxi / 166 Marilton Maxakali / 115 Mário Carneiro / 111 Michael Wahrmann / 141 Michel Brault / 105 Myriam Braunberger / 108 Olga Maurina / 163 Patrícia Ferreira / 131 Flávia Castro / 132 Patricio Luna / 58 Paulo César Saraceni / 111 Paulo Gil Soares / 38, 109 Pedro Carvalho / 145 Pedro Daniel López López / 79-81 Pierre Braunberger / 108 Pierre Perrault / 105, 106 Piotr Zlotorowicz / 159 Rafael Urban / 142 Raphaël Grisey / 153 Kim Longinotto / 154 Raquel Junqueira / 167 Renata Otto Diniz / 170 Renato Neumann / 39 René Clair / 187 Reynaldo Yujra / 57, 59 Richard Wiebe / 164 Robert J. Flaherty / 97 Rose Satiko Gitirana Hikiji / 136 Ruben Caixeta de Queiróz / 117 Sandro Ariel Ortega / 131 Sérgio Borges / 139 Sérgio Muniz / 110 Sylvain George / 152 Takumã Kuikuro / 29 Tomas Lipgot / 158 Tomás von der Osten / 146 Umbando / 171 Vincent Carelli / 112 Virgínia Valadão / 113 Werner Herzog / 188 Xingzheng Jin / 160 Xochitl Leyva / 81 / 395 396 \ 150 festival do filme documentário e etnográfico / fórum de antropologia, cinema e vídeo \ 21 de novembro a 04 de dezembro / organização geral e produção executiva Júnia Torres Glaura Cardoso Vale Paulo Maia Carla Maia Ruben Caixeta Rafael Barros Diana Gebrim Costa Flávia Camisasca Milene Migliano Carla Italiano \ mostra fernando coni campos Ewerton Belico / mostra cinema dos povos originários bolívia/méxico Júnia Torres Carolina Canguçu Milene Migliano colaboração Roberto Romero Ana Carvalho Ruben Caixeta \ mostra o animal e a câmera Paulo Maia Fabiano Bechelany César Guimarães Cláudia Mesquita Ruben Caixeta \ mostra competitiva internacional (seleção) Bruno Vasconcelos Carla Maia Pedro Portella / mostra competitiva nacional (seleção) Affonso Uchôa Ewerton Belico Rafael Barros \ mostras competitivas (divulgação e organização) Glaura Cardoso Vale Carla Italiano / curso dilemas da observação Eduardo Escorel produção Glaura Cardoso Ana Carvalho Carla Italiano \ programa de extensão forumdoc.ufmg.2011 coordenador Paulo Maia / co-coordenadores Ruben Caixeta Cláudia Mesquita César Guimarães / 397 / bolsistas Hozienne Reis Passos Roberta Araújo Pedro Leal \ produção logísitca Milene Migliano / tradução e legendagem Flávia Camisasca (Coordenação) Alessandra Carvalho Ana Carolina Antunes Augusto de Castro Bráulio de Britto Neves Bruna Di Gioia Carla Italiano Carlos Jáuregui Carolina Canguçu Débora Braun Douglas Resende Gustavo Silveira Ribeiro Henrique Cosenza Íris Araújo Jayme Barbosa Jonathan Tadeu Laura Torres Lisa Carvalho Vasconcellos Lucas Sander Mariana Ruas Marina Sandim Mateus Araújo Paulo Marra Paula Santos Rodrigo V. de Souza \ legendagem eletrônica 4estações 398 \ / direção de arte Paulo Maia \ projeto gráfico Marilá Dardot / tiara de miçangas Suely Maxakali \ fotografia Bernard Machado Daniel Iglesias / catálogo Glaura Cardoso Vale (Organização) Carla Maia Júnia Torres \ diagramação Ana C. Bahia / revisão Ana Carvalho Carla Italiano Carolina Canguçu Daniel Ribeiro Duarte Fabiano Bechelany Flávia Camisasca Francisca Manuel Milene Migliano Paulo Maia Oswaldo Teixeira Rafael Barros \ vinheta Raquel Junqueira / site Gustavo Teodoro (Design e Programação) Carlos Paulino (Coordenação) Pedro Aspahan (Coordenação) \ cabine de projeção Pedro Aspahan (Coordenação) Bernard Machado (Coordenação) Maurício Rezende Warley Desali Daniel Ferreira / assessoria de imprensa Sinal de Fumaça Comunicação Sérgio Stockler Aline Ferreira \ festival online e cobertura Pedro Aspahan Bernard Machado Francisca Manuel Glaura Cardoso Vale Milene Migliano Pedro Marra / mostra de extensão Fernanda Oliveira Flávia Camisasca Francisca Manuel Marina Sandim Raquel Amaral serra Jansey Valdez Reinaldo Santana parcerias: Aces - Associação Cultural e educativa da Serra e C.R.I.Arte - Comunidade Reivindicando e interagindo com arte taquaril Junio Marques da Silva (Blitz ) parcerias: Centro de Referência Hip Hop Brasil E Crime Verbal barragem santa lúcia Célia Rodrigues Daniele Augusta Doni Oliveira Maurício Rodrigues de Moraes Rodolfo Fonseca parcerias: Cine Beco / Casa do Beco e Espaço BH Cidadania concórdia Isabel Casimiro (Dona Isabel) Isabel Casimira (Belinha) Parceria: Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio de Nossa Sra. do Rosário / momentos festivos Rafa Barros Milene Migliano dj anônimo Sharawadji Dj Alexandre de Sena – Radiola Picumãh Dj Guto Lovers Senta a Pua! Rafael no Som \ assessoria jurídica e financeira Diversidade Consultoria Diana Gebrim / 399 / motorista Luciano Ribeiro \ fundação clóvis salgado (participação) Solanda Steckelberg (Presidente) Cynthia Bernis de Oliveira (Diretora de planejamento, gestão e finanças) Sérgio Rodrigo Reis (Diretor artístico) Sandra Fagundes Campos (Diretora de programação) Cláudia Garcia Elias (Diretora de marketing, intercâmbio e projetos especiais) Patrícia Avellar Zol (Diretora de ensino e extensão) Fabíola Moulin Mendonça (Gerente de artes visuais) \ cine humberto mauro Rafael Ciccarini (Gerente do departamento de cinema) Ursula Rösele (Assessora do departamento de cinema) José Ricardo da Costa Miranda Junior (Assistente do departamento de cinema) Flávia Braga (Produtora do departamento de cinema) Luciene Raquel Lima (Auxiliar de Serviços Administrativos do Departamento de Cinema) / porteiro José Horta de Oliveira 400 \ \ projecionistas Mercídio Alvinho Scarpeli Rufino Gomes Araújo / bilheteria Dercy Rosa \ agradecimentos Jean-Claude Bernardet, Ismail Xavier, Luis Abramo, Ruben Jacobina, Patricia Moran, Paulo Sacramento, Cinemateca MAM - RJ, Hernani Heffner, Gilberto Santeiro, CTAv, Liane Corrêa, Rosangêla Sodré, Ana Beatriz Vasconcellos, Roberto Leão, Natália Soares, Cinemateca Brasileira, Leandro Pardi, Talita Guessi, Alexandre Miyazato, Juliana Santos, Isabel Casemira, Ricardo, Belinha, Guidinha, Toninho, Jô Morais, Arnaldo Godoy, João Bosco Rodrigues, Pedro Coutinho, Instituto Itaú Cultural - Talita Capozzi Goldstein, Fernando Brito (Versátil Home Video), Laura Barbi, Frederico Sabino, Jean Rouch, Courtesy Panamint Cinema, Panamint/UK, Mateus Araújo Silva, Maria Leite Chiaretti, Balafon Produções, Flora Lahuerta, Roberto Romero, Paula K Santos, Eduardo Queiroz, Ricardo Farkas,Cynthia Close (DER), Karma Foley (Smithsonian), Frédérique Ros (Films du Jeudi), Andrea Tonacci, Cristina Amaral, Gustavo Beck, Sérgio Borges, Glauber Rocha, Diego Madi, Ivan Sanjinés, Jorge Sanjinés, Monica Bustillos , Ukamau, Alexandra Halkin, Thomas, Festival Ambulante, Carlos Pérez Rojas, Amalia Cordova, Latin American Program/ Programa Latinoamericano Film + Video Center, Smithsonian National Museum of the American Indian, Vídeo nas Aldeias, Vincent Carelli, Olívia Sabino, Ernesto de Carvalho, Fábio Menezes, Júlio Bressane, Eduardo Escorel, o homem da multidão, Eduardo Coutinho, João Dumans, Departamento de CinemaFCS, Rafael Ciccarini, Úrsula Roesele, Pascale, Bepunu Kayapó, Divino Tserewahu, Delfim Afonso Neto, Jorge Alexandre Barbosa Neves, Ângela Gomes Torres, Edna Torres, Helenise Lamounier de Carvalho, Urzula Groska, Escola de Samba Cidade Jardim, Senta a Pua, Rafa Soares, Afromatajazz, André Xina, Guto Borges, Tamás Bodolay, Rita Velloso, Márcia Spyer, Ana Gomes, Luis Roberto de Paula, Samira Zaidan, Alexandre Santos, Karenina Andrade, Camila Bechelany, Hutukara Associação Yanomami, Noêmia Maxakali, Suely Maxakali, Isael Maxakali, Guto Borges, Hugo Cordeiro, Coletivo Photograph, Pedro Silveira, Takumã Kuikuro, Carlos Fausto, Leo Sette, Israel do Vale, Centro de Memória Indígena Manoki, Leonardo Vidigal, Alexia Neca, Cezar Migliorin, Theo Duarte, Ilana Feldman, João Dumans, Virgínia Guimarães Bahia, Maria Cristina Araújo Rabelo, Carolina Fenati, Arthur Omar, Maria Inês Almeida, Centro Cultural da UFMG, Escola de Belas Artes – UFMG, Ana Tereza Brandao, Joana Meniconi. Aos realizadores que se inscreveram nas mostras competitivas. / associação filmes de quintal Avenida Brasil | 75/sala 06 Santa Efigênia Belo Horizonte/MG CEP 30140-000 | Brasil Telefone: +55 31 3889-1997 31 2512-1987 forumdoc.org.br filmesdequinta.org.br / 401 \ notas 402 \ \ notas / 403 \ notas 404 \ \ notas / 405 REALIZAÇÃO CORREALIZAÇÃO PARTICIPAÇÃO APOIO INSTITUCIONAL APOIO CULTURAL SMITHSONIAN NATIONAL MUSEUM OF THE AMERICAN INDIAN APOIO LOGÍSTICO 406 \ PATROCÍNIO / 407 forumdoc.bh.2011 – 15º Festival do Filme Documentário e Etnográfico / Fórum de antropologia e cinema. Vale, Glaura Cardoso; Maia, Carla; Torres, Júnia (Orgs.). Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2011. 408 p., 105 ilustr. ISBN: 978-85-63837-02-8 1. Cinema - 2. Documentário; 3. Antropologia. I. Vale, Glaura Cardoso; Maia, Carla; Torres, Júnia. II Título CDD 791