I UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS COORDENAÇAO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MARIA DA GLÓRIA FRANCO A TRADIÇÃO CULTURAL ESPANHOLA REVISITADA: Uma leitura de Tiempo de Silencio, de Luis Martín-Santos NITERÓI 2008 II MARIA DA GLÓRIA FRANCO A TRADIÇÃO CULTURAL ESPANHOLA REVISITADA: Uma leitura de Tiempo de Silencio, de Luis Martín -Santos Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor. Área de Concentração: Estudos Literários. Subárea: Literatura Comparada. ORIENTADORA: Profa. Dra. Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento Niterói 2008 III MARIA DA GLÓRIA FRANCO A TRADIÇÃO CULTURAL ESPANHOLA REVISITADA: Uma leitura de Tiempo de Silencio, de Luís Martín-Santos Niterói, de de 2008. BANCA EXAMINADORA MEMBROS EFETIVOS _____________________________________________________ Profª Drª Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento (orientadora) Universidade Federal Fluminense _____________________________________________________ Profª Drª Lygia Vianna Rodrigues Peres Universidade Federal Fluminense ______________________________________________________ Profª Drª Silvia Inés Cárcamo de Arcuri Universidade Federal do Rio de Janeiro ______________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Roberto Esteves Universidade Estadual Paulista ______________________________________________________ Prof. Dr. Julio Aldinger Dalloz Universidade Federal do Rio de Janeiro MEMBROS SUPLENTES __________________________________________________ Profª Drª Lívia Reis Universidade Federal Fluminense __________________________________________________ Profª Drª Eline Marques Rezende Universidade Federal do Rio de Janeiro IV A Sonia, menina flor, irmã muito querida e eternamente lembrada. V AGRADECIMENTOS Às Professoras do Departamento de Literaturas Hispânicas da UFF, Profª Drª Lívia Reis, Profª Drª Lygia Vianna Rodrigues Peres e Profª Drª. Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento cujos créditos oferecidos ao longo do período de nossa pósgraduação nesta instituição, forneceram pilares básicos para a construção de nosso conhecimento e viabilizaram a transformação de nossos planos e projetos nesta tese. À Profª Drª. Lygia Vianna Rodrigues Peres e a Profª Drª.Eurídice Figueiredo, membros da banca de nosso projeto de tese, pelas valiosas críticas e sugestões que, oferecidas no julgamento e na avaliação daquele projeto, se constituíram em contribuições fecundas para o direcionamento de nossos estudos e amadurecimento de nossas opções para redação desta tese. A minha orientadora, Profª Drª. Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento, pela competência e segurança ao apontar caminhos para o nosso trabalho, pela paciência e acolhimento generoso, pelo entusiasmo e estímulo constantes. A Magnólia, mestra e amiga, que não sem motivo tem nome de flor e nasceu no dia da poesia, minha homenagem agradecida pela chama entusiasmada com que nos alimentou e, com isso, nos fez acreditar que podíamos terminar este trabalho. VI Haverá um livro sem pai, um volume órfão neste mundo? Um livro que não seja descendente de outros livros? (…) Haverá criação sem tradição? E também será que a tradição poderá sobreviver sem a renovação, sem uma nova criação, sem um novo florescimento da eterna narrativa? CARLOS FUENTES VII RESUMO Esta tese estudou o romance de Luis Martín-Santos, Tiempo de Silencio, analisando os aspectos mais marcantes de sua construção estrutural que, não somente o distinguem como obra de ruptura com o realismo social dos anos 50, como também o caracterizam como obra literária que abre novos caminhos para a narrativa do pósguerra espanhol. Assim, neste estudo, foi dada ênfase: ao realismo dialético do romance, conceito criado por seu próprio autor para distinguir essa nova maneira de conceber a realidade; a sua característica polifônica percebida nas vozes de seus personagens ao expressar suas diferentes visões de mundo; a sua forte tendência intertextual que, ao trazer para seu texto outros textos, conduz seu leitor pelos muitos séculos da tradição histórica e cultural da Espanha. Palavras-Chave: Luis Martín-Santos; Narrativa Espanhola Contemporânea; Realismo Dialético; Polifonia e Intertextualidade; Espanha de pós-guerra. VIII RESUMEN Esta tesis estudió la novela Tiempo de Silencio, de Luis Martín-Santos, analizando aquellos aspectos mas sobresalientes de su construcción estructural que no solamente la apuntan como una obra de ruptura con el realismo social de los años 50, como también la caracterizan como obra literaria que abre nuevos senderos para la narrativa española de posguerra. Así se puso énfasis: en su realismo dialéctico, concepto establecido por su propio autor para distinguir esa nueva manera de concebir la realidad; en su característica polifónica percibida en las voces de sus personajes, mientras expresan sus distintas visiones; en su fuerte tendencia intertextual que, al traer para su texto muchos otros textos, conduce su lector por los muchos siglos de la tradición histórica y cultural de España. Palabras-Clave: Luis Martín-Santos; Narrativa Española Contempoánea; Realismo Dialéctico; Polifonía e Intertextualidad; España de la postguerra. IX ABSTRACT This thesis studied Luis Martin-Santos’ novel, Tiempo de Silencio, analyzing those main aspects of its structural construction that not only mark it as a breaking point with the social realism of the fifties, but also turn it into a literary work that opens new paths to the post-war narrative literature in Spain. Thus emphasis was laid on its dialectic realism, a concept coined by its author to stress this new way of conceiving reality; on its polyphonic characteristic perceived both through its characters voices, as they express their different points of view; on its strong intertextual tendency that, establishing dialogs between the text of the novel and many other texts, allows the reader to follow centuries of Spanish historical and cultural tradition. Key-Words: Luis Martín-Santos; Contemporary Spanish; Narrative; Dialectic Realism; Polyphonics and Intertextuality; Post Civil War Spain. X SUMÁRIO A Tese.....................................................................................................................1 Introdução...............................................................................................................2 Capítulo 1: TIEMPO DE SILENCIO EM TEMPOS DE SILÊNCIO .......................12 1.1. Tempo, História, Memória e Vida........................................................14 1.2. Dolorosamente Segue a Vida..............................................................19 1.3. Posição e Significado de Tiempo de Silencio na Narrativa Espanhola de Pós-Guerra.....................................................................................28 1.4. As Muitas Possibilidades Interpretativas.............................................36 1.5. O Caminho Escolhido: A Questão do Romance .................................38 1.6. O Realismo Dialético de Martín-Santos...............................................43 Capítulo 2: A PRIMEIRA PALAVRA JAMAIS É NOSSA......................................53 2.1. Dialogismo e Polifonia em Tiempo de Silencio......................................55 2.2. Tiempo de Silencio: Romance da Modernidade Tardia..........................68 2.3. Primeiro Percurso pela Tradição Cultural Espanhola .............................73 2.4 Percurso Intertextual pelo Século de Ouro.............................................84 2.4.1. D. Pedro e D. Quixote: Heróis da Decadência............................89 2.4.2. Ironia e Sarcasmo em Quevedo e Martín-Santos.....................102 Capítulo 3: GOYA, ARTE ESPANHOLA ENTRE DOIS SÉCULOS....................114 XI 3.1. O Complexo Diálogo dos Textos...........................................................116 3.2. A Intertextualidade na Referência ao Quadro de Goya........................120 3.3. Novas Razões para a Presença de Goya .............................................129 3.3.1. Primeiro Núcleo da Obra de Goya............................................134 3.3.2. Segundo Núcleo da Obra de Goya ...........................................134 3.3.3. Terceiro Núcleo da Obra de Goya............................................135 3.3.4. Quarto Núcleo da Obra de Goya..............................................137 3.3.5. Quinto Núcleo da Obra de Goya ...............................................141 3.3.6. Sexto Núcleo da Obra de Goya................................................146 3.3.7. Entrelaçamentos Finais.............................................................152 Capítulo 4: LABIRINTO E PARÓDIA NO TEXTO DE LUIS MARTÍN-SANTOS.153 4.1. A Geração de 98: Origem e Interpretação de um Conceito ...................154 4.2. Baroja e Martín-Santos: Confluências e Influências...............................166 4.3. A Leitura em Ação..................................................................................185 4.4. Caminhos para Dialogar com a Realidade.............................................193 Conclusão...........................................................................................................207 Referências Bibliográficas...................................................................................211 ANEXO 1.............................................................................................................218 1 A TESE Na epígrafe de Carlos Fuentes encontramos um caminho a ser seguido neste estudo. Suas indagações, secundadas pela afirmativa de Jorge Luis Borges de que todos os livros versam sobre outros livros, ao infinito, se constituirão no pressuposto que esta tese validará em sua análise do romance espanhol Tiempo de Silencio de Luis Martín-Santos. Esta tese busca, portanto, comprovar que não só a riqueza da criação literária reside na força de sua tradição, principalmente quando revisitada pelo olhar sensível, reflexivo e crítico do escritor, como também que esta tradição sobrevive graças a obras como este romance de Martín-Santos, cujas sólidas e profundas raízes culturais a trazem até seu leitor. Esta análise de Tiempo de Silencio, ao percorrer labirintos intertextuais criados pelo seu autor, vai ao encontro de outros textos e de temas culturais caros à literatura espanhola e mostra que este procedimento literário de Martín-Santos, de utilização do recurso intertextual, não só o afasta do realismo social de sua geração, como evidencia sua busca por um caminho narrativo renovado que culmina na produção de uma obra, sem dúvida, universal, porém histórica, geográfica, temática e culturalmente espanhola. 2 INTRODUÇÃO Morte e vida não se opõem: viver e morrer sobrepõem-se, ligam-se da mesma forma ao seio procriador da terra e do corpo, entram da mesma maneira como fases necessárias no conjunto vivo da vida em eterna andança, em eterna renovação. MIKHAIL BAKHTIN Para Eduardo Portela uma tese de doutorado deve ser um esforço de criatividade sem ser jamais, segundo ele, “um ato puramente didático”. (PORTELA, 1981, p. 25). Por ser um trabalho de cunho reflexivo, ela deve buscar, equilibradamente, fundir seu discurso de conhecimento com uma escritura flexibilizada também aberta ao espaço destinado à imaginação. Entretanto é importante reforçar a idéia de que, embora se tenha aberto espaço à fantasia, será a razão, estribada em firmes pressupostos teóricos, que conduzirá à reflexão pelos caminhos da análise textual. Como também acreditamos que o sujeito estudioso da literatura tem algo do pensador, do filósofo, seu estudo e leitura crítica da obra literária devem capacitá-lo a ampliar horizontes de compreensão, evitando perspectivas teóricas enclaus uradas, apoiadas em suportes restritivos que o levem a uma leitura cega e a uma interpretação acanhada de seu objeto. Já no título desta tese – A TRADIÇÃO CULTURAL ESPANHOLA REVISITADA: Uma leitura de Tiempo de Silencio de Luis Martín-Santos – se procura deixar evidente uma determinada maneira de olhar o texto literário, uma certa preocupação leitora e crítica sustentada por uma teoria de investigação literária que busca o desvelamento do texto a partir da escuta de vozes e ecos que permeiam sua trama textual. 3 E será assim, na procura, na elucidação e no aclaramento dessas vozes e alusões que se concentrará o esforço de leitura, de interpretação e de análise deste texto escolhido como objeto desta tese. E por que, especificamente, este livro, esta obra? Várias foram as razões que nos levaram até ela. Sem dúvida, pesaram os comentários entreouvidos no meio acadêmico de que um professor a havia lido e considerado leitura indispensável, de que um outro a havia considerado obra literária espanhola de destaque, de que no departamento de tal universidade, ela fazia parte dos textos de leitura curricular na pós-graduação, enfim, todas essas ponderações elogiosas, muitas até emocionadas, sobre esta obra despertaram nosso interesse e nos levaram ao acercamento dela, não só com a curiosidade de Pandora, como também com o desejo de encontrar nela prazer igual ao que seu texto proporcionara àqueles cuja leitura precedera a nossa. E mais ainda, na época em que cursávamos o Mestrado, aqui na Universidade Federal Fluminense, este texto fazia parte do rol de leituras da disciplina Literatura Espanhola de Pós-guerra, ministrada por nossa orientadora, Profª Drª Magnólia B. B. Nascimento, cuja entusiasmada apresentação do mesmo nos levou, em definitivo, a elegê-lo como texto de estudos. Entretanto, cabe lembrar que, ao buscarmos fruição e prazer na leitura de Tiempo de Silencio, sabíamos que estávamos correndo sério risco uma vez que poderíamos detestar o livro, achá-lo tedioso ou pesado. E mais, sabíamos que, caso isso ocorresse, teríamos que abandoná-lo, deixá -lo de lado e seguir as sábias palavras de Jorge Luis Borges que sempre havia aconselhado seus alunos a não lerem um livro porque era famoso, ou porque era moderno, ou porque era antigo. Dizia ele: Se um livro for maçante para vocês, larguem-no; mesmo que esse livro seja o Paradise Lost ou o Quijote que para mim não são maçantes. Mas, se há um livro maçante para vocês, não o leiam: Esse livro não foi escrito para vocês. A leitura deve ser uma das formas de felicidade, de modo que eu lhes aconselharia que lessem muito, que não se deixassem assustar pela reputação dos autores, que continuassem buscando uma felicidade pessoal, um gozo pessoal pois esse é o único modo de ler. (BORGES, 2002, p. 390) Felizmente, após sua escolha, e ao longo de todo esse tempo transcorrido, de lá do curso do Mestrado no ano 2000 até hoje, este romance não nos desapontou. 4 Muito pelo contrário, por nos termos apaixonado por ele, passamos a lê-lo como carta que pede a nossa resposta. Descobrimos nele um incrível filão de estudos e uma crescente fonte inspiradora de paixão. Basta dizer que além dele ter sido tema de nossa monografia de disciplina, de nossa dissertação de Mestrado, e agora, também tema de nossa tese de doutoramento, ele continua a nos desafiar e encantar a cada releitura. Só mesmo um texto instigante e envolvente como Tiempo de Silencio poderia despertar tanto entusiasmo e fornecer campo tão fértil para diferentes estudos e abordagens de sua escritura, realizados através de uma verdadeira pedagogia do desejo, como a que praticamos ao longo desses sete anos, mantendo viva a chama da busca de seu entendimento e procurando, mais que desejar saber, saber desejar. E nele mais nos deteríamos “se não fora /pera tão longo amor, tão curta a vida” (CAMÔES, 1963, p. 106), e os prazos da CAPES. Nosso percurso de estudo dos liames intertextuais, que permeiam este romance, nos levou ao encontro de textos que o antecedem e o influenciam. O esforço de entendimento de intertextos nesta obra foi essencial porque um dos motivos de sua permanência e importância para a narrativa espanhola contemporânea se deve também a estas apropriações, transformações e alusões a outros textos de que se utilizou seu autor na elaboração de sua arquitetura textual. Além do mais, por ser esta uma obra de ruptura com a tradição literária de seu momento histórico, caracterizado pela vertente do realismo histórico e do realismo social, um estudo desta natureza recoloca a discussão tanto sobre a consciência da história cultural como ta mbém do desenvolvimento da palavra escrita enquanto atividade que traz à tona a questão da continuidade e da descontinuidade do processo literário e da conformação da tradição. Como esta tese está desenvolvida no âmbito da literatura comparada, campo de estudos onde não existe uma orientação única a ser seguida, optamos pela definição de C. Pichois, A. M. Rousseau e P. Brunel sobre literatura comparada que, a nosso ver, parece conciliar os distanciamentos que envolvem esta disciplina no que concerne às posições divergentes de suas duas maiores escolas: a francesa e a americana. Para eles, literatura comparada é: 5 a arte metódica, pela pesquisa de vínculos de analogia, de parentesco e de influência, de aproximar a literatura dos outros domínios de expressão ou do conhecimento ou, para sermos mais precisos, de aproximar os fatos e os textos literários entre si, distantes ou não no tempo ou no espaço (…) a fim de melhor descrevê-los, compreendê-los e apreciá-los. (ROUSSEAU, PICHOIS & BRUNEL, 1995, p. 140). E, no complemento desta definição, eles nos lembram de que os fatos e os textos literários analisados podem fazer parte da mesma tradição ou podem pertencer a domínios lingüísticos e culturais distintos. Cabe ressaltar que a metodologia da literatura comparada não se restringe a ser apenas sinônimo de comparação. A comparação neste estudo não foi entendida como método específico e sim, como uma ferramenta, um procedimento mental um ato lógico decorrrente do pensar diferencial, paralelo a uma atitude dedutiva. Contudo, como comparar é procedimento de forte presença, tanto na estrutura do pensamento humano, quanto na própria maneira de organizar sua cultura, evitamos, neste estudo crítico-comparataivo, empregar a comparação como recurso preferncial. Analogias, paralelismos, estabelecimento de relações de semelhanças e dessemelhanças e antagonismos se constituíram em procedimentos que, junto com a comparação, foram direcionando os caminhos desta tese cujo propósito não se restringe ao estabelecimento de “relações interliterárias ou afinidades, mas, acima de tudo, visa explicá-las com relação à história” (NITRINI, 1997, p. 96) e à cultura nas quais esta obra está inserida. Como esta tese abrange a questão da narrativa, mais especificamente do romance, tomamos como ponto de partida a visão bakhtiniana do gênero enquanto construção polifônica que permite entender como seu texto se produz, se constrói, como absorve o que está a sua volta e se qualifica como produto eminentemente secundário. É essa base teórica que permeia as questões concernentes às relações que os textos tramam entre si – suas intertextualidades – a partir das quais encontramos a presença efetiva de um texto em outro, através dos procedimentos de apropriação, citação, alusão, imitação, cópia ou paródia. Gérard Genette, Michel Riffaterre e Linda Huntcheon se constituem no elenco principal de teóricos cujos conceitos serão utilizados nas abordagens interpretativas dessas questões. Quanto aos aspectos ligados à composição do romance que precisam ser compreendidos à luz de uma visão que dê conta da arquitetura elaborada por 6 Martín-Santos para apresentar seu painel panorâmico da Espanha dos anos 40, vamos procurar seguir uma linha teórica que também parta de Bakhtin, de sua visão do romance situado na história e na sociedade e que, sendo ambas, história e sociedade, também textos, são lidas pelo escritor que nelas se insere ao reescrevêlas. Essa linha passa pela visão luckacsiana do gênero, e se complementa em Lucien Goldmann, Jacques Leenhardt e Terry Eagleton. Dividiremos este estudo em capítulos procurando dar-lhes um certo ordenamento, inclusive, de cunho cronológico. Entretanto, faremos de nosso primeiro capítulo, por ser o de abertura de nosso texto, aquele que vai inicialmente situar-se no tempo do romance de Martín-Santos para contextualizá-lo dentro do seu momento histórico-literário, responder ao quando, o quê e onde de sua trama, de seu autor e de seu momento literário, mas que irá, principalmente, discutir a intricada questão do gênero, uma vez que o próprio autor, na época de sua publicação, levantou uma polêmica discussão quanto à inserção de sua obra em uma nova categoria, a do realismo dialético, e não mais no realismo social. O romance contemporâneo encontra-se em um momento histórico, onde o fracionamento cultural o leva a uma busca de ruptura e de abandono de formas tradicionais de expressão, o que vai conduzi-lo por caminhos amplos, abertos aos experimentalismos e, por serem por vezes tão inovadores, podem levar também a um distanciamento com seus leitores. Todavia, como coloca Bella Josef, “a natureza problemática do romance contemporâneo deixa margem à interpretação subjetiva do leitor, co-participante da tarefa de criação” (JOSEF, 1986, p. 67). Essa crise ficcional do século XX leva também o autor contemporâneo a buscar expressar uma realidade mais profunda e ao mesmo tempo ambígua, uma dimensão que possa ir além da realidade fragmentada que o circunda para, ao ultrapassá-la, fazer-se em totalidade. Daí resulta essa necessidade de um desvendamento de suas raízes, de suas origens, de suas formas menos visíveis para que se possa obter uma visão mais ampla da obra. Por isso nosso centramento, neste primeiro capítulo, no momento literário de Tiempo de Silencio, nos anos 60, e sua inserção naquelas linhas históricas e literárias esgotadas que então o circundavam, para, de forma mais clara, encontrarmos aqueles aspectos que fazem deste romance uma obra que se constitui em um produto novo dentro do panorama da literatura realista da pós-guerra espanhola. Cabe aqui também observar que a versão de Tiempo de Silencio que 7 utilizaremos para este estudo é a editada pela Seix-Barral em 2001, em sua quadragésima oitava edição. Já no capítulo seguinte nos debruçaremos sobre o texto de forma mais específica e minuciosa para nele encontrar os fios textuais que nos conduzirão aos temas culturais e aos escritores da tradição espanhola que ali ecoam. E deste capítulo em diante vamos nos ater àquela seqüência cronológica de que falávamos anteriormente. Como a seqüência desse percurso ficaria muito extensa para um único capítulo, resolvemos, por uma questão de distribuição do conteúdo, e de organização do pensamento, dividi-la em dois capítulos. Um que se estenderá até o século XVII e que se centrará fundamentalmente no Século de Ouro, em torno de Cervantes e Quevedo, e o outro que irá abrigar temas e autores da Geração de 98, em torno de Ortega y Gasset, abrangendo o final do século XIX e o início do século XX. Esses dois capítulos, entretanto, não são seqüenciais pois, como haveria entre eles a lacuna do século XVIII, decidimos colocar então entre o Século de Ouro e a Geração de Prata, a pérola preciosa daquele século espanhol, Francisco Goya y Lucientes que, nascido na metade do século, e graças a uma longevidade rara para sua época, vive até 1828, produzindo uma obra que se estende portanto até o século XIX. E será em torno de Goya que o capítulo três se desenvolverá com um tipo de análise intertextua l que se fará através do diálogo literatura/outras artes, objetivando levantar os possíveis motivos da presença explícita de Goya no texto de Martín-Santos. Desse terceiro capítulo seguiremos para o quarto e último da tese, ao qual já nos referimos, e nele retornaremos aos intertextos literários introduzidos pelo gancho que Goya nos proporciona, tanto pelo prenúncio da modernidade de seu talento, quanto pelo gérmen esperpêntico detectado em sua obra por Valle-Inclán. Este escritor, juntamente com Pio Baroja e Ortega y Gasset compõem a tríade em que o capítulo se apoiará para desenvolver a análise dos fios de referências, alusões, encontros e desencontros entre o pensamento e a escritura deles e de MartínSantos. Podemos ainda dizer que nesses capítulos de análise intertextual vão aflorar aqueles temas recorrentes que marcam o texto e pontilham mais vivamente suas linhas de significação. São temas tais como a questão da tauromaquia, da ciência e 8 da raça que, devido a sua forte presença no âmbito da sociedade espanhola, se constituem em verdadeiros mitos sociais dessa cultura. Esses mitos aproximam Tiempo de Silencio não mais tanto à Odisséia de Homero e seu bravo Ulisses, e sim ao de James Joyce, pois Martín-Santos apresenta seu herói, Pedro, também como um Ulisses moderno, porém decaído, apático, pálido reflexo do modelo clássico. Esses mitos dão forma a uma espécie de máscara de mitos que, tocados pela vara mágica da ironia, vão, ao invés de esconder e mascarar, revelar a verdadeira face da Espanha dos anos quarenta. Será dentro desta perspectiva de desvelamento dos temas culturais espanhóis tradicionais e dos usos míticos que analisaremos a obra de Martín-Santos como um romance que busca a desmitificação da Espanha da pós-guerra civil e tem seu universo ficcional construído nos moldes de um romance desmitificador, em torno de um personagem que tipifica o efeito alienante, desumanizador e castrador que o poder exerce sobre o indivíduo de forma autoritária e violenta. A sobrevivência desse poder demanda uma estratégia que aprisione cada vez mais esse indivíduo em silenciosa apatia e conformidade, e para tal não abre espaço para o desenvolvimento de projetos coletivos cuja ausência leva ao conseqüente aniquilamento e esquecimento das mais significativas heranças tradicionais, instâncias definidoras de um traço histórico-cultural comum. E essa herança, substituída por valores e mitos sociais oriundos da ideologia do poder dominante para moldar os indivíduos a eles submetidos, se fragiliza e se situa nos limites do esgotamento. Como diz Paul Ricoeur, “com efeito, uma herança só é viva enquanto pode ser reinterpretada, criativamente, em situações novas”. (RICOEUR, 1990, p. 150). Esse foi o caminho que Martín-Santos escolheu: revisitar sua herança cultural e, ao reinterpretá-la criticamente, evitar seu esgotamento e ainda mostrar a seu leitor o quanto essa herança cultural está viva. Para auxiliar no suporte teórico dos aspectos ligados à caracterização de Tiempo de Silencio como romance desmitificador, serão usadas referências teóricas encontradas em Michel Zeraffa, Lukács, especialmente para o aspecto da ironia e os detalhados estudos de Jo Labanyi sobre mito e história voltados para o romance contemporâneo espanhol e os de Stacey Dolguin sobre o romance desmitificador espanhol. 9 Martín-Santos, ao construir seu romance sobre fortes alicerces intertextuais, instaura o diálogo passado/presente apontando para uma recriação e para um momento novo direcionado a um futuro que vem resgatar a força em declínio da produção cultural de seu país . Nesse intelectual vigoroso, Espanha encontra então seu melhor representante e, com certeza, como bem observa Juan Carlos Curutchet, um fundador, no sentido de desbravador de um caminho narrativo novo ao qual deu sua valiosa contribuição para o desenvolvimento de uma produção estética de peso. As construções intertextuais são consideradas, como coloca Linda Hutcheon, “não a destruição de um passado. Na verdade, parodiar é sacralizar o passado e questioná-lo ao mesmo tempo”. (HUTCHEON, 1991, p. 65). Sua presença no texto, de modo freqüentemente irônico, recontextualizando situações, coloca em discussão o entendimento da noção de paródia “como abertura de texto e não de fechamento”. (HUTCHEON, 1991, p. 166). Trabalhar com as questões intertextuais do romance é também uma forma de evidenciar o quanto esta obra de Martín-Santos se constitui em uma leitura “exigente y difícil” (SANZ VILLANUEVA, 1986, p. 837), para seu leitor. Não se quer dizer com isso que não seja obra assimilável, realmente, ela não é, talvez, de fácil assimilação, entretanto, esses seus traços não chegam a se constituir em obstáculo a que a maioria dos leitores, e não somente críticos literários e acadêmicos, o leiam com prazer e deleite. É certo, sem dúvida, que a leitura que dá conta do texto de Martín-Santos deve ser atenta e perspicaz o bastante para perceber seu refinamento literário; deve ser paciente e cuidadosa para encontrar seus desvãos, percorrer seus labirintos e ler nas suas entrelinhas porque, devido ao momento de forte controle social em que foi escrito, algumas de suas idéias e mensagens estão camufladas pela ironia, disfarçadas pelo aprisionamento em um jogo de revela/esconde que seu autor consegue realizar valendo-se de uma expressão barroca e oblíqua. Suas ambigüidades estão no texto sob a forma da ironia e do sarcasmo com que fala de temas que, certamente, não eram caros aos censores franquistas e com que apresenta e critica o universo social onde seus personagens derramam seu sangue, suor e lágrimas. Tiempo de Silencio é obra que trabalha pela renovação literária, porém, de forma aparentemente contraditória, permanece fiel às suas raízes e tradições. Contudo, nem por isso seu autor deixou-se ficar de costas para as novas influências 10 que chegavam então, inclusive de fora de seu país. Ele foi um escritor atento à cultura de seu tempo, um espanhol universalista que, através de sua obra, reivindica seu direito de participar da herança cultural do mundo em que vive, mesmo tendo que sofrer as agruras de sua época e pagar o preço pelo enfrentamento e confronto com esse tempo histórico áspero e intolerante. Outro aspecto que esta tese vai procurar enfatizar diz respeito às posições críticas de Martín-Santos, a saber: a de não negar a história, e sim, pelo contrário, ir buscar nela um ponto de apoio para sua narrativa; a de expor, de forma lúcida e crítica, a tendência humana à mitificação; a de usar sua abordagem mítica, com o uso da ironia, para contrapor-se ao discurso estético oficial do franquismo. Esta tese procura mostrar que a obra de Martín-Santos é resultado de uma interação dialética, definida por ele próprio de realismo dialético, entre dois aspectos: a sua criação artística e a realidade viva a seu redor, nas quais ele gravou e imprimiu a marca de sua percepção pessoal, deixando transparecer seus valores éticos e sua visão de mundo. Além de todos os referenciais teóricos já citados é preciso que se acrescente que um bom número de publicações e estudos de professores e pesquisadores que fizeram suas análises de Tiempo de Silencio serão de grande valia para o estudo que esta tese fará da obra de Martín-Santos, em especial, os daqueles que se detiveram mais longamente em suas análises como: Suárez Granda, Alfonso Rey, Juan Carlos Curutchet, Carlos Jerez-Farrán, Julián Paley, Eduardo Galán-Font, Dale Knickerbocker, Gozalo Sobejano, Sanz Villanueva, Jo Labanyi e Esperanza Saludes. Esta tese procurará ainda compreender a atitude de Martín-Santos de apropriar-se da palavra do outro e trazê-la para seu texto, procurará compreender seu caráter seletivo enquanto capacidade crítica de escolher do alheio aquilo que lhe interessa evidenciando com isso o quanto, escrever no seu tempo, em plena modernidade tardia, significa, sem dúvida, reescrever. Esse escritor, esse instigante intelectual espanhol, oscilando entre identificação com o universal e a afirmação do particular, da crítica aos valores de sua Espanha, viveu seu processo de dilaceramento mas soube equilibrar a simultaneidade dessas duas inclinações que, sem dúvida, lhe geraram angústias e contradições, mas que também puderam levá-lo ao encontro de sua autonomia cultural que, por sua vez, não se situa na recusa de olhar para fora de suas fronteiras, mas sim na capacidade crítica desse seu olhar. 11 Será, portanto, difícil interpretá-lo sem utilizar lentes ecléticas de análises pois somente elas permitião que algumas de suas características mais significativas sejam reveladas. Ao analisarmos sua concepção textual, seus parâmetros, as constâncias que afloram em seu texto, talvez estejamos procurando respostas as nossas próprias inquietações e angústias. Escrever sobre Martín-Santos é mais que uma experiência acadêmica. Nas páginas de seu romance aprendemos a selecionar e aplicar conceitos literários, percebemos a modificação não só de nossa própria maneira de conceber o fenômeno literário como também sentimos necessidade de ampliar e aprimorar nossa percepção sobre os diversos caminhos da interpretação textual para que as teorias críticas possam responder as nossas indagações enquanto leitora diante de texto tão denso. Nas páginas de seu romance também encontramos a felicidade preconizada por Borges, nos identificamos com idéias, valores e verdades que flutuam no seu texto, aceitamos seu convite ao desconsolo mas, mergulhada nelas vamos fazer, exatamente como antes fez seu próprio autor, um exercício de liberdade. 12 1. TIEMPO DE SILENCIO EM TEMPOS DE SILÊNCIO O fósforo é o portador mais antigo da tradição viva. Eu sou pela tradição viva, capaz de acompanhar a correnteza da modernidade. Que riquezas poderás extrair delas! Subscrevo a grande palavra de Javrés: “De l’autel des ancêtres 1 on doit garder non les cendres mais le feu. ” MURILO MENDES Por ter sido a Espanha um país que vivenciou, no século XX, episódios históricos marcantes, seria impossível ignorá-los ou relegá-los a um nível secundário de importância, deixando-os de lado ao se estudar uma obra literária não somente produzida em época onde a história se mostrou tão decisiva no traçado dos caminhos que trilhou este povo, como também por ser, ela própria, um painel vivo de uma fração destes tempos. Por conseguinte, ainda que esta tese não vise construir um panorama da história da literatura espanhola do século XX, este capítulo, para contextualizar com mais precisão o romance Tiempo de Silencio, se detém nos momentos de especial significado na história da nação espanhola para evidenciar o quanto esses momentos foram determinantes para o desenvolvimento dos caminhos estéticos da sua produção cultural. Como não é “possível aludir aos textos literários sem levar em conta o seu contexto histórico” (GONZÁLEZ, 1996, p. 117) e, principalmente, por estarmos diante de uma obra cuja realidade múltipla abarca aspectos sociais, históricos, filosóficos e literários, faz-se fundamental o estudo tanto do tempo em que ela foi produzida, qua nto do tempo em que ela se desenrola pois, só assim, se pode 1 Do altar dos ancestrais deve se guardar, /não as cinzas mas o fogo. (T.A.) 13 compreender como seu autor construiu seu discurso relatado “por um contemporâneo, (seu autor/ narrador), que fala sobre um contemporâneo (seu personagem Pedro), para seus contemporâneos (seus leitores)”. (BAKHTIN, 2002, p. 405). 14 1.1 TEMPO, HISTÓRIA, MEMÓRIA E VIDA Embora correndo o risco de contradizer um dos mais conceituados historiadores do nosso tempo, Eric Hobsbawm, que, em sua obra Era dos Extremos. O breve século XX, dizia que o longo século XIX só termina quando eclode a Primeira Guerra Mundial, em 1914, nos atrevemos a dizer que, na Espanha, o século XX inicia-se, senão do ponto de vista estritamente histórico-cronológico, certamente, do ponto de vista literário, três anos antes. Isto é: começa em 1898, ano que coloca um ponto final na disputa política entre a Espanha e os Estados Unidos com o reconhecimento da independência de Cuba pelo governo norte-americano, fato este que, mais do que levar à queda do último reduto colonial espanhol nas Américas, decreta o fim da Espanha imperial, de um passado que remonta aos tempos de Felipe II. Esse momento de fragilização política, devido ao impacto negativo da perda de Cuba, se contrapõe, entretanto, a um tempo de reconhecida pujança cultural em que, apesar do tropeço, da queda, do momento de débâcle, de necessidade de absorção desse duro golpe no ego e no orgulho nacionais, vê surgir “la generación del 98”. Centrada em pensadores e intelectuais como Ortega y Gasset, Eugenio D’Ors e Gregório Marañón e uma plêiade de escritores como Miguel de Unamuno, Ramón del Valle-Inclán, Azorín, Antonio Machado, Pio Baroja, Perez de Ayala e Gabriel Miró, essa geração, pela alta qualidade de sua produção cultural, não somente consolida “un período floreciente para la prosa narrativa española” (BROWN, 1998, p. 23), como também estende o rastro de sua produção pelas três primeiras décadas do século XX, mantendo, ao longo delas, aquele seu elevado nível de qualidade. De tal quilate foi o nível dessa produção que o termo ÉPOCA DE OURO, cunhado para designar aquele período em que pintores, artistas e escritores como Cervantes, Gôngora, Calderón, Quevedo, Lope de Vega, Tirso de Molina viveram e produziram suas obras, é parafraseado pela expressão ÉPOCA DE PRATA, para designar, nesse momento, essa geração de escritores e intelectuais da prosa espanhola. Coube a ela imprimir, através da influência que sua produção exerceu, marcas profundas em escritores de gerações posteriores, sendo Luis Martín-Santos um bom exemplo dessa influência como veremos no capítulo que vai apontar os 15 diálogos estabelecidos entre seu romance Tiempo de Silencio e a geração de 98, notadamente com El Árbol de la Ciência, de Pio Baroja e com a retomada que Martín-Santos faz do conceito de esperpento de Valle-Inclán ao trazê -lo para sua obra. O cenário em que vivia Espanha nesse início de século era de grande instabilidade política com quedas constantes de gabinetes ministeriais, convocações e realizações de greves gerais, com repressão às manifestações reivindicatórias, conflitos nas ruas, isto tudo coroado pelos atritos e pelas dificuldades em manter a posição espanhola no Marrocos. Com tantas dificuldades políticas e econômicas para enfrentar internamente, Espanha opta por afirmar sua neutralidade durante a Primeira Guerra Mundial (19141918), o que lhe vai permitir fortalecer seu exército, melhorar suas reservas cambiais reabsorvendo, em grande parte , seu endividamento externo e, quase totalmente, sua dívida interna. Com essa estratégia política, Espanha pôde adquirir o controle e a posse de suas estradas de ferro, abrir novas ferrovias e novas indústrias como também modernizar seu parque siderúrgico. Apesar da aparente idéia de melhoria econômica, o país vive uma estrutura social dual, de contraste entre a prosperidade de algumas poucas regiões industrializadas, como a do desenvolvido parque têxtil catalão, e a pobreza das vastas regiões agrárias. A essa dualidade sócio-econômica soma-se a dualidade política com o aparecimento de duas fortes correntes antagônicas oriundas principalmente da Catalunha, uma de inspiração democrática e constitucional, nascida da vitória dos aliados da primeira guerra mundial, e outra, de agitação revolucionária, nascida das Juntas de Defesa ligadas aos militares. O fator complicador dessa situação dual aparece com a evolução do grupo catalão anti-monarquista que se movimenta, em parte, no sentido socialista e, por outra parte, no sentido de diferentes variedades de revolução sindicalista ou anarquista. Daí se desenvolverão as tendências separatistas que formarão uma aliança tríplice ao somar-se ao grupo catalão os autônomos bascos e os da Galícia para lutar pela separação. Fora do território peninsular, a guerrilha marroquina dava trabalho às tropas espanholas e em 1921 ocorre o grande desastre militar que acabou com a derrota das forças espanholas que tiveram que se retirar de uma zona marroquina conquistada em doze penosos anos de lenta penetração. 16 Todas essas dificuldades, somadas, favoreceram o aparecimento de um movimento liderado por um general da Catalunha, Miguel Primo de Rivera, Marquês de Estella que, através de um golpe, se proclama primeiro ministro, estabelecendo uma ditadura que, iniciada em 1923, se estenderá por sete anos. Um ano após o estabelecimento da ditadura, em 1924, nascia Luis Martín-Santos de Ribera, em Larache, cidade marroquina que pertencia ao Protectorado Español onde servia seu pai, médico militar. Se por um lado, a ditadura de Primo de Rivera consegue resolver alguns problemas, como o da Guerra do Marrocos, não consegue, por outro, efetivar as reformas profundas de que necessitava Espanha para solucionar ou, pelo menos, conciliar os conflitos entre o grupo representado pelo latifúndio conservador e o representado pelo capital industrial nacional. Mais uma vez se torna bem difícil o contexto político-econômico do país, com várias tentativas de contra-golpe no final dos anos vinte. Em 1929, a família de Luis Martín-Santos deixa o Marrocos e vem estabelecer-se em San Sebastián, onde seu pai abre uma clínica ortopédica e ele inicia seus primeiros anos escolares, já vivendo, desde essa época, um dos seus dramas pessoais: conviver com um pai médico, dedicado à cura, e uma mãe doente, sofrendo de episódios psicóticos que a mantinham, algumas vezes, reclusa em sanatórios. A derrocada da bolsa de Nova York em 1929 é o marco da grande crise econômica mundial que, na Espanha, se reflete na queda da peseta, na renúncia de Calvo Sotelo, ministro da fazenda, em janeiro de 1930 e abre o caminho inevitável para a queda da ditadura em vinte e oito de janeiro de 1930. Primo de Rivera atravessa os Pirineus e morre em Paris dois meses depois. Espanha estabelece, então, um governo transitório com o objetivo de preparar o retorno do país ao caminho constitucional. Crescem as fileiras republicanas com forte presença da intelectualidade espanhola que, maciçamente, se manifestara contra a ditadura do general Primo de Rivera e que agora colocava suas esperanças na chegada da República. Essa primavera de esperança política, que vê a queda de Alfonso XIII, é ainda mais jubilosa, pois ela vem acompanhada de uma outra bela estação, uma longa primavera poética, já prenunciada anteriormente e que se constitui na geração de 27, cujos poetas, Rafael Alberti, Pedro Salinas, Luis Cernuda, Federico Garcia 17 Lorca, Dámaso Alonso e Vicente Aleixandre, vão dar continuidade à produção cultural espanhola sucedendo à geração de 98, também rica em líricos como Unamuno e Machado e ao mestre solitário da geração intermediária, Juan Ramón Jiménez. Em 1931, enquanto Luis Martín-Santos iniciava seus estudos no colégio dos irmãos maristas de Aldapeta, o país proclamava a República e vivia de 1931 a 1936, sob a égide de diferentes governos, buscando o caminho das mudanças que os levariam à tão sonhada nova Espanha. Durante esses anos de República, Luis Martín-Santos viveu por uns tempos em Castilla, com a avó paterna, devido aos problemas de saúde mental que abalaram sua mãe e pioraram após o nascimento de seu irmão mais novo, Leandro. Aqueles governos republicanos, de 1931 a 1936, “apoyaron los proyectos culturales y educativos como no se había hecho desde el reinado de Carlos III” (BROWN, 1998, p. 23) e a produção artística dos anos da República seguia dando mostras de fortalecimento e originalidade embora muitos artistas e intelectuais se mostrassem reticentes, decepcionados e insatisfeitos com as parcas conquistas e avanços sociais e políticos conseguidos e dando mostras de que continuariam a batalhar pelo ideal de uma sociedade melhor. É aí então, em 1936, nesse ponto exato da história espanhola, que a nação vai sofrer seu mais duro golpe. De 1936 a 1939 Espanha viverá o enfrentamento total entre republicanos legalistas, defensores de um governo democraticamente eleito, e nacionalistas falangistas, defensores do golpe militar. São cidades sitiadas, são pelotões de fuzilamento sem julgamento prévio, é, por um lado, a Brigada Internacional que vem em apoio aos legalistas, e, por outro, o forte apoio bélico aos falangistas dado pelos alemães que se aproveitam desse momento para utilizá-lo, na Espanha , como laboratório de testes para suas armas, especialmente as da força aérea, que logo serão utilizadas para dar início à Segunda Guerra Mundial. É, finalmente, a capitulação de Barcelona e depois a de Madri em 1939 com a conseqüente ascensão do general Francisco Franco que impõe a mais longa ditadura vivida pelo povo espanhol no século XX. A Guerra Civil representou um corte total na vida cultural da nação e transformou-se num “marco histórico-literário” (SANZ VILLANUEVA, 1984, p. 13), marco que fecha uma época da história da Espanha, encerrando, por conseguinte, uma fase de sua produção literária, porque muitos escritores deixam o país, exilam- 18 se, ou são exilados, outros morrem ou são mortos, tanto durante o conflito quanto nas prisões franquistas, e alguns passam a escrever de forma engajada, para uma ou outra facção da luta. Assim, a literatura, durante os quase quatro anos da Guerra Civil, se faz militante, diferenciando-se do que se produzia antes do conflito e do que se produzirá posteriormente. Durante esse período, Luis Martín-Santos que, em 1936, estava com doze anos, dava seus primeiros passos nas sendas da cultura, aprimorando sua educação ainda com os irmãos maristas de Aldapeta, aproximando-se dos clássicos para terminar em 1940, um ano após a guerra, seu curso secundário com “notas sobresalientes” e revelando-se “um joven serio, voluntarioso, tímido y sensible. Un apasionado lector sobretodo de los clásicos” (SALUDES, 1981, p. 176), como relata Esperanza Saludes de quem se recolheu a maior parte das informações biográficas sobre Martín-Santos aqui mencionadas. Muito da visão que nosso trabalho amalgamou, para organizar esse panorama político, social e econômico da Espanha de Martín-Santos, provém de conceitos e análises históricas obtidas no livro de G. G. Brown, já citado, e em Raymond Carr, em sua obra Espanha 1808-1975. 19 1.2. DOLOROSAMENTE SEGUE A VIDA Terminada a Guerra Civil, o início dos anos 40 parece apontar para uma longa etapa de reconstrução da vida nacional. Tarefa dura e penosa, considerandose a ruína econômica em que o país se encontra, ruína geradora de sofrimento, desemprego, doenças, fome e violência. Tarefa difícil considerando-se as novas orientações político-ideológicas da ditadura franquista, geradoras de repressão, censura, prisões e morte. Tarefa quase impossível, sob o ponto de vista da reconstrução cultural, considerando-se os estreitos padrões da política franquista, geradora de rígidos códigos morais e religiosos, de forte controle e censura das atividades culturais e artísticas e de isolamento cultural e o distanciamento de Espanha em relação à Europa e ao mundo. Enquanto o país tentava reiniciar sua marcha, ainda que sob regime ditatorial, Luis Martín-Santos iniciava em 1941 seus estudos de medicina na Universidade de Salamanca. É interessante observar que nessa primeira fase da produção literária do pós-guerra, a narrativa, lentamente, retoma seu curso sob um denominador comum: “el del silencio respecto a la tragedia que acababa de sufrir España y de las duras condiciones de vida en aquellos años en los que se iniciaba penosamente la reconstrución del país” (GARCÍA LÓPEZ, 1994, p. 701). Há uma parada, uma estagnação na prosa narrativa dos anos 40 e a política de censura aos autores estrangeiros, além de não ajudar, cria uma situação de sufocamento, incentivando não só o consumo de uma literatura estrangeira escapista e de fraca “reputación en sus países de origen” (PIZARRO, 2000, p. 16) como também incentivando a transformação de muitos leitores em passivos espectadores dos filmes “hollywoodianos”, fábricas de sonho para onde fogem de uma vida de miséria, amargura e tristeza. Desta forma, carente de informação e liberdade, acha-se a literatura espanhola diante de duas tendências: dar prosseguimento à linha tremendista “con su presentación sistemática de hechos desagradables” ou à linha existencial “con sus personajes frustrados y desorientados y su reflejo del vacío vital”. (PIZARRO, 2000, p. 16). Em ambas as correntes percebe-se a tentativa dos escritores de esquecer os problemas coletivos para centrar-se no individual onde o homem é colocado frente a uma situação limite. 20 Visando incentivar a produção literária espanhola interna, já que a externa, dos exilados, prossegue com Rosa Chacel, Francisco Ayala, Ramón Sender, Max Aub, Arturo Barea, César Arconada, criam-se os prêmios literários. Em 1944 é criado o prêmio Nadal, concedido em 1945 ao romance Nada, de Carmem Laforet. Também em 1945, aos vinte e um anos, Luis Martín-Santos publica seu primeiro livro: Grana Gris, uma coletânea de poemas cuja edição, alguns anos mais tarde, seu autor recolherá e queimarará todos os exemplares encontrados, por considerá-lo uma obra medíocre. No ano seguinte, em 1946, ele cola grau em medicina, com louvor, pela Universidade de Salamanca. Em 1947, vai para Madri, titula-se doutor em medicina e aí permanece até 1949 realizando práticas cirúrgicas no Conselho Superior de Investigações Científicas. É essa fase de sua vida madrilense, reconstituída e recontada por Juan Benet, em um caderno especial de El País Semanal, de vinte e um de dezembro de 1986, que servirá de cenário histórico para as páginas de Tiempo de Silencio. Segundo as palavras de Benet, Luis Martín-Santos foi um “donostiarra que llegó a Madrid en busca de un título de medicina y acabó en la literatura con un libro rotundo, Tiempo de Silencio. Aquel era el Madrid de las tertulias, de la búsqueda literaria y de la golfería de los sábados” (BENET, 1986, p. 64). Nessa época, Martín-Santos obteve, por concurso, o cargo de cirurgião no Hospital Geral de Madri, mas, pouco tempo depois, troca de especialidade, optando pela psiquiatria e sendo orientado por Juan José López Ibor, para aspectos clínicos, e por Pedro Laín Entralgo, na parte referente ao estudo das teorias de Jaspers, que ele aprofundará na sua tese de doutorado. Em 1949, ele obtém, também por concurso, aos vinte e seis anos, o cargo de diretor do Sanatório Psiquiátrico de Ciudad Real, en la Mancha, cargo que ocupa somente por poucos meses, pois, logo depois, parte para Alemanha onde dará continuidade aos estudos de psiquiatria. Por ser ele um homem de excepcionais dotes intelectuais, uniu seu preparo científico a uma sólida formação filosófica cujos pólos foram o existencialismo e o marxismo e como psiquiatra adotou a corrente da psicanálise existencial. Quanto aos aspectos literários da década, anteriormente mencionados, é oportuno ressaltar que se a narrativa que se seguiu à guerra civil “fue de calidad notoriamente baja” (BROWN, 1998, p. 237), como aponta Brown, isto ocorreu devido 21 à situação histórica vivida pela Espanha que, ao enfrentar um conflito fratricida, gerou, com o dilaceramento do seu tecido social, um empobrecimento não só econômico como também cultural. O empobrecimento das letras de um país, quando sua cultura “– que siempre es um fenómeno dinámico y colectivo – se ve violentada en su evolución natural y privada de un sector de sus artífices, en el que, además, figuran las más valiosas individualidades de la época” (SANZ VILLANUEVA, 1984, p. 26), constitui-se na resposta social inevitável diante das concretas circunstâncias sociais desse país. Certamente, o caminho da literatura espanhola do imediato pós-guerra teria sido bem diferente, não fora essa terrível ruptura e o conseqüente exílio de grande parcela de sua intelectualidade. A retomada da pujança intelectual se refaz com lentidão, principalmente levando-se em consideração o pragmatismo, a doutrinação e a censura impostos ao ambiente literário. Todavia, algumas obras aparecem nesta década e recebem algum destaque. Há que mencionar entre elas: A Família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela, em 1942; Nada de Carmen Laforet, ganhadora do Prêmio Nadal de 1945 e que se “constituyó uno de los episodios literários más interesantes de la época” (SANZ VILLANUEVA, 1984, p. 31); El Hombre de José Maria Gironella, ganhadora do Nadal de 1947 e, em 1948, La Sombra Del Ciprés es Alargada, de Miguel Delibes, também ganhadora do Nadal desse mesmo ano. Cela e Delibes se constituem em dois novelistas dos anos 40 que darão prosseguimento a seus projetos literários e desenvolverão e aprofundarão sua produção literária nas décadas seguintes. Nos anos 50, aquela progressiva recuperação da prosa de ficção espanhola vai ajudar na formação de uma atitude mais densa, mais fortalecida por parte dos escritores e vai torná-los mais capazes de entrarem em contato com os múltiplos aspectos de sua realidade, com corações e mentes mais abertas, com menos medo de seus fantasmas e sem deixar de lado as ligações do homem espanhol com sua história. Esses escritores vão constituir-se na geração da segunda década do pósguerra e vão também ser, comumente chamados de Generación del Medio Siglo ou Generación de los Niños de la Guerra. Em 1951, Luis Martín-Santos termina seu curso na Alemanha e volta à Espanha, onde consegue, por concurso, o cargo de diretor do Sanatorio Psiquiátrico de San Sebastián. A opção por fazer esse concurso e obter esse cargo lhe parecerá 22 o melhor caminho para sua carreira pois, essa repentina oportunidade em San Sebastián, “resolvía de entrada muchos problemas” (BENET, 1986, p. 83), como o de seus pais, por exemplo. Sabendo que esta cidade lhe ofereceria melhores possibilidades que qualquer outra província espanhola, não exitou, até porque o novo cargo lhe permitiria também firmar o compromisso de contrair matrimônio com Rocío Laffon, o que fará logo depois de assumir essa nova colocação. Entretanto, antes de tomar posse de su nuevo puesto de director del psiquiátrico, el destino dió su primer aldabonazo para advertir que aquel camino anunciado con tan buenos augurios no sería sólo de rosas: su antecesor en el puesto aquel buen hombre derrotado en las oposiciones -- se ahorcó en una dependencia del hospital, lo que -- aparte del efecto que produjo sobre su sucesor -- no facilitaría la entrada de Luis en la levítica sociedad de San Sebastián ( BENET, 1986, P. 84) Os primeiros anos dessa década ainda foram de intenso sofrimento para o povo espanhol. Os hambrientos anos 40 ainda não haviam acabado. O violento arrocho que havia sido imposto pela política econômica franquista continuava, como continuavam também, as filas para compras de alimentos, as roupas surradas e remendadas, a prostituição, a tuberculose e a miséria geral. Apertando o cinto da classe média, da classe trabalhadora e do campesinato, que já não tem mais o que apertar, o governo consegue poupar e, com o amargo fruto dessa poupança, vai aquecer as bases para o desenvolvimento industrial. Entre 1950 e 1957 “la producción industrial se elevó a casi el doble mientras la producción agrícola bajó de 40% en 1951 al 25% en 1957” (CARR, 1982, p. 706). Luis Martín-Santos, aos vinte e nove anos casa-se com Rocío Laffon, em 1953, com quem teve três filhos, um dos quais veio a falecer, acidentalmente, ainda bebê, fato que se somará a outros eventos trágicos de sua curta vida. Em 1955, ele publica sua tese de doutorado, Dilthey, Jaspers y la Comprensión del Enfermo Mental, cujo tema buscou aprofundar para talvez melhor entender as limitações de sua própria mãe e cujo escopo vai dar-lhe a sólida base psicológico-filosófica que irá explorar, mais tarde, em seu romance. Pois é inegável que as perambulações de Pedro por Madri naqueles poucos dias do outo no de 1949 possuem um profundo significado já que ele 23 sin dejar de ser quien es, se nos presenta sobre todo como un destino individual que lucha por afirmarse, a través del cual Martín-Santos noveliza el problema de la vida en su hacerse paso a paso. Pero, claro está, la visión de lo que es el hombre individualmente considerado y de lo que por vida há de entenderse remite a postulados filosóficos de gran trascendencia”. (REY, 1980, p. 159) Assim pode afirmar-se que o romance Tiempo de Silencio, devido à familiaridade de seu autor “con el pensamiento de Heidegger e sobre todo de Sartre” (REY, 1980, p. 160), possui os germens destas correntes filosóficas tão discutidas não só na Europa de então como também na Espanha. E o testemunho desta familiaridade nos é dado por Benet ao rememorar aqueles anos 40 em que Luis Martín-Santos o induzira a acompanhá -lo às tertúlias de Gambrinos, iniciadas por alunos da faculdade de Filosofia e Letras, que ocorriam no restaurante do mesmo nome, na rua Zorilla, aos sábados à tarde. Conta Benet que, el curso anterior se había dedicado a La Náusea y otros fenómenos, y en este se habían propuesto la lectura, cada Sábado, de un fragmento de L’être et le Néant, com traducción oral directa del francés a cargo de uno de ellos, que, por orden rotatorio, debía preparar su disertación durante toda la semana. Si se piensa que el libro todavía hacía furor en Francia cuatro años después de su descubrimiento tras la liberación, que las fronteras habían estado cerradas y vedada toda información cultural de carácter nocivo se reconocerá que aquellos jóvenes filósofos madrileños hacían más de lo que estaba en su mano para estar al tanto del pensmiento europeo. Así, pues, la amistad con aquellos hombres y con Luis estuvo aquel año dominada por la jerga sartreana, y en los húmedos mostradores del piélago salían a relucir “la mala conciencia”, “el ser del otro”, “el cogito prerreflexivo”, “la epojé fenomenológica” y tantas otras preparaciones del espíritu imprescindibles para paladear un vaso de vino” (BENET, 1986, p. 70). Além destas ressonâncias filosóficas há ainda que apontar outros dois importantes aportamentos filosóficos que Martín-Santos trará ao seu romance. Um deles trata do vitalismo ou razão vital de Ortega y Gasset, que por sua vez possui pontos de contatos com o existencialismo, e o outro do marxismo, já que também não podemos deixar de considerar a linha ideológica de Martín-Santos consubstanciada na sua filiação socialista. Em 1956, ele participa de um concurso para uma cátedra em Madri, mas sofre um pânico emocional e, imaginando que não estava indo bem e estaria aborrecendo a banca, levantou-se e quis retirar-se. Não pôde ser aprovado. Ele é 24 preso, pela primeira vez, no ano seguinte, em 1957, acusado de atividades socialistas. Nada fica provado e Martín-Santos é libertado. Enquanto isso, Espanha começa a assistir a grandes transformações econômicas e culturais. Mais dois prêmios literários foram criados nesta década, o Planeta em 1952 e o Biblioteca Breve em 1958. Começa a ser quebrada, nesses anos 50, a muralha de isolamento que Franco erguera em torno à Espanha. Como o país precisava de bens de capital, pois encontrava-se sem condições de reverter sua balança de pagamentos e estava, praticamente, na banca rota, o governo, segundo Raymond Carr, não teve outra opção senão alterar sua política monopolista e abrir o país aos empréstimos do capital estrangeiro, vindos através do FMI. Seguindo-se a esta aproximação econômica, recomeçam as aproximações políticas e culturais. Os anos 50 são os da guerra fria e, em troca dos empréstimos, o governo norte-americano faz acordos para a instalação de uma base de mísseis em território espanhol. O país, então, reincorpora-se à comunidade internacional. As Nações Unidas suspendem o veto diplomático contra Espanha que é admitida na Unesco, e, em 1955, reintegrada à ONU. Esse período assiste a uma progressiva normalização do fluxo turístico colocando novamente o povo espanhol em contato com outros grupos culturais e os escritores, principalmente os mais jovens, aproveitam para viajar para o estrangeiro e saciar sua sede de informações. Internamente também assiste-se a uma maior liberalização intelectual e a uma reaproximação com a produção literária internacional evidenciada pela publicação da Lost Generation americana, Faulkner, Hemingway, Dos Passos, e Gertrud Stein, além de outros grandes nomes da vida literária universal, pela Editora Seix Barral, de Barcelona. Inicia-se também uma retomada de diálogo com o exílio, com aqueles escritores espanhóis que estão vivendo e produzindo fora de Espanha. O desenvolvimento industrial, cujo ritmo acelera-se nos meados da década, impulsionado por produtos de sucesso junto aos consumidores como, por exemplo, o SEAT 600, carro da Volkswagen, agora produzido na Espanha, e que passa a ser o novo – e não posso dizer obscuro, como Buñuel, porque as ruas e estradas do país já começam a ser percorridas por milhares deles – objeto de desejo do espanhol. 25 E a ficção, uma vez mais, confirma a história pois Miguel Delibes, em seu romance Cinco horas con Mario, nos faz ouvir sua personagem Carmen explicitar também o quanto teve também esse desejo: No quiero llorar, Mario, pero si echo la vista atrás y reparo en las pocas veces que me has echo caso en la vida, no puedo remediarlo. ¿Es que tanto esfuerzo te hubiera costado ganar para un SEISCIENTOS, di, pedazo de holgazán? Porque yo no digo hace años pero lo que es ahora, si parece que los regalan, Mario (…). Los niños se hubieron vueltos locos con un seiscientos, Mario, y en lo tocante a mí, imagina, de cambiarme la vida. (DELIBES, 1981, p. 51-52). Usinas e fábricas localizadas próximas aos grandes conglomerados urbanos atraem e absorvem uma parcela cada vez maior da população rural, cujo fluxo migratório do campo para as zonas urbanas, que já era fo rtemente sentido desde os anos 30, agora intensifica-se ainda mais. Parte da parcela não absorvida pelo sistema produtivo vai, através do fluxo migratório externo , buscar inserção no mercado de trabalho de países mais desenvolvidos, como Alemanha, França e Suíça, enquanto que a outra parte se constituirá no grupo que buscará sobreviver na periferia ou, à margem dos agrupamentos proletários. Além destas características, o contexto do final dos anos 50 assiste ao início de uma maior liberalização intelectual, com a consolidação das primeiras ligações de Espanha com o pensamento europeu. A nação vive a crise da universidade em 1956 e há uma leve tendência a uma tímida abertura política. E era tão tímida mesmo que, em 1958, o Partido Socialista Obrero Espanhol reúne-se na cidade francesa de Toulouse e o regime franquista, esperando encontrar, entre os participantes desse encontro, membros do partido comunista, organiza uma represália, prendendo vários membros do PSOE, em várias cidades espanholas. Entre os presos está Luis Martín-Santos que é processado e fica detido por quatro meses. Esta foi a sua segunda experiência na prisão. Em 1959, em maio, foi preso outra vez e enviado a Carabanchel, tendo sido novamente acusado de atividades socialistas. Durante esse seu período na prisão, lhe é permitido sair, sob vigilância, para concorrer a uma cátedra de psiquiatria em Salamanca. Sofre outro desequilíbrio emocional que o impede de abrir a boca, não conseguindo articular nenhuma 26 palavra. Silêncio. Silêncio completo. Suando muito e num estado de completa prostração nervosa, Martín-Santos sai dali, levando dessa experiência, mais um fracasso. No final de setembro, muda-se sua condição de preso para a de albergado, e seu trabalho fica restrito à região de San Sebastián. Esta é a sua terceira prisão nesta década. Com relação aos aspectos literários desse período, os anos 50 tiveram uma produção já de maior fôlego. Os escritores dessa década, alguns já advindos da geração anterior, como Cela e Delibes, buscaram, com interesse apaixonado, escrever sobre a verdadeira essência da vida espanhola e apresentar seu anticonformismo face à uma concepção burguesa de vida, partilhar um sentimento ético de literatura, baseado num compromisso moral e histórico do escritor com seu tempo e dar seu testemunho, algumas vezes quase documental, da realidade de seu país. Grandes contistas desta geração, como Ignacio Aldecoa, Medardo Fraile, Jesús Fernández Santos, resgatam o tema da guerra civil. Outros nomes de peso, iniciando sua produção literária neste período, foram Carmen Martín Gaite, Ana María Matute, Álvaro Cunqueiro, García Hortelano, Juan e Luis Goytisolo. Toda esta variada contribuição literária trouxe um alento novo para a narrativa de então, segundo críticos e estudiosos desse período como G. G. Brown que aponta o romance El Jarama, de Rafael Sánchez Ferlosio, publicado em 1956, como o melhor dessa geração por sua profundidade simbólica e pela maneira sutil de trazer poesia ao texto. (BROWN, 1998, p. 242) Contudo, a força narrativa desse período, funda-se ainda nos postulados do realismo histórico, na literatura de testemunho e no realismo social. Talvez o excesso de funções informativas e de crítica social, configurando uma literatura antiburguesa e proletária, acabam por levar essa narrativa a um certo descrédito, como aponta Sanz Villanueva e a uma certa inquietação entre os escritores. (SANZ VILLANUEVA, 1984, p. 42). Carlos Barral, numa entrevista dada a Baltasar Porcel em 1969, reafirma essas conclusões de Sanz Villanueva ao apontar que a tradição do romance espanhol dos anos de pós-guerra, anos 40, 50 e 60, com exceção de Sánchez Ferlosio e Luis Martín-Santos, tentou uma experiência, que ele mesmo também apoiou, baseada no criticismo social. Esta experiência, posta em movimento com 27 recursos estéticos limitados, lhe parecia naquele momento completamente esgotada e ultrapassada. Também é importante mencionar que o desengajamento da indústria cultural espanhola desse modelo literário neo-realista segue paralelamente a um processo de auto-reflexão crítica por parte tanto de escritores quanto de críticos. Mar Langa Pizarro, outra voz crítica da história da literatura espanhola, salienta que, “no toda la novela de los cincuenta fue social” (PIZARRO, 2000, p. 19), houve algumas exceções. Segundo ela, esta década fecha-se com um cisma entre os escritores. De um lado, um grupo que ela denomina de “generación de la berza” e de outro, o da “generación del sándalo” o que equivalia a chamá-los de geração dos romancistas sociais, o primeiro, e geração dos partidários de uma renovação literária, o segundo. Divergência é indício de vitalidade, de que algo está sendo revisto, analisado e de que, principalmente, algo novo está sendo gestado. A força da contribuição dessa geração dos anos 50 se constituirá no fermento que vai propiciar o aprofundamento e a continuidade do processo literário espanhol, bem como a ampliação de seus caminhos. 28 1.3. POSIÇÃO E SIGNIFICADO DE TIEMPO DE SILENCIO NA NARRATIVA ESPANHOLA DE PÓS-GUERRA Os anos 60 iniciam-se com o enfrentamento entre aqueles dois grupos de romancistas citados anteriormente e marcam o começo de um novo tempo literário. É a terceira década ou fase do pós-guerra que se estenderá até 1975, data que, com a morte de Franco, marcará o fim da literatura produzida no período ditatorial e estabelecerá o início daquela produzida na fase de reconstrução democrática do país, 1975 em diante. Enfim, com o declínio paulatino do realismo, aquele enfrentamento das tendências literárias não se prolongará por muito tempo, porque a força da estética do grupo partidário de uma renovação termina por sobrepor-se, completamente, a do outro. Os anos 60 constituem-se pois em um novo momento onde escritores e intelectuais buscam encontrar outros caminhos temáticos e formais para a narrativa espanhola. Crítico e profundo conhecedor da literatura espanhola de pós-guerra, Juan Carlos Curutchet aponta para o fato de que, entre os estágios da evolução sofrida pela produção literária dos anos 50 aos 60, não há uma “ruptura tajante, sino sutil, laboriosa y contradictoria transición. Por una parte esta tendencia deriva penosamente hacia su total agotamiento. Pero en ella también ya están gestándose los gérmenes de una ulterior superación”. (CURUTCHET, 1973, p. 12) Ainda, segundo Curutchet, o escritor que exemplifica esta evolução, o elo de ligação entre ambas as etapas: anos 50/anos 60, é José Manuel Caballero Bonald cujo romance Dos días de septiembre “marca la defunción de un período y la inauguración de otro” (CURUTCHET, 1973, p. 12). Também não é por acaso que esse momento de renovação da linguagem narrativa se dê através de um poeta que já “manifestaba su asfixia por el lenguaje realista” (PIZARRO, 2000, p. 20) e que, percebendo a necessidade de uma nova linguagem, “decidió incursionar en el campo narrativo” (CURUTCHET, 1973, p. 25), repoetizando-o. O romance de Bonald, Dos días de septiembre, implica na erradicação de uma estética persistente e anacrônica e no descobrimento de novas possibilidades verbais, até então não exploradas. Se isso, por um lado, o consagra como um 29 precursor, implica também nas limitações “inevitables que le impone su condición de precursor: una parcial ausencia de definiciones últimas, una cierta discontinuidad en los aciertos, una difusa atmósfera de provisionalidad, de experiencia no totalmente consumada en sus múltiples posibilidades de realización”.(CURUTCHET, 1973, p. 26).Fica claro que Dos días de septiembre inaugura e prenuncia o que Luis MartínSantos consumará com total precisão. Luis Martín-Santos, provavelmente, escreve Tiempo de Silencio entre 1959 e 1960 porque, em novembro de 60, foram abertas as inscrições para participação no primeiro concurso ao prêmio Pio Baroja de literatura e Luis Martín-Santos, sob o pseudônimo de Luis Sepúlveda, inscreve seu romance, que então intitulava-se Tiempo Frustrado. O prêmio originou-se na cidade basca de San Sebastián, e aí deveriam ser entregues ao vencedor as vinte e cinco mil pesetas correspondentes ao primeiro lugar. Vinte romances concorriam e, destes, seis foram selecionados, inclusive Tiempo de Silencio ou Tiempo Frustrado, seu título de então. O clima para a premiação parece ter-se conturbado, pois, os jurados se dividiram devido às pressões sofridas e às tentativas de favorecimento de um escritor amigo de um dos membros do júri. Notícias chegadas de Madri dão conta de que o rádio e a TV, que já estavam mobilizados para transmitir o evento, deveriam retirar-se e não transmitir a entrega do prêmio a um socialista. Além disso, o não comparecimento do governador, nem o do prefeito, nem o do presidente da região, que haviam sido convidados e prometido comparecer, criaram um clima estranho. A notícia da desclassificação de Tiempo de Silencio levou um grupo de jovens socialistas a percorrer a avenida do Café Madrid, em San Sebastián, onde seria realizada a entrega do prêmio. Por outro lado, após saberem que Tiempo de Silencio havia sido desclassificado, jornais, rádio e TV recebem contra-ordem de que podiam transmitir a premiação. Os membros do júri sentiram-se manipulados. Como no regulamento do concurso havia uma cláusula determinando que caberia aos jurados decidirem se concederiam ou não o prêmio à obra finalista, requerendo-se, para tanto, que houvesse um mínimo de cinco votos unânimes para um dos participantes, três membros declararam que o prêmio não deveria ser outorgado, um deles absteve-se, três votaram pela premiação. Como não se chegou aos cinco votos unânimes, o júri teve que declarar que não haveria premiação alguma. 30 A esta altura da vida o que Luis Martín-Santos mais desejava era publicar seu romance. Como, em 1950, quando estudava psicologia na Alemanha ele havia conhecido, em Heidelberg, Carlos Barral e com este havia mantido sincera amizade, decide procurá-lo e propor-lhe a publicação de Tiempo de Silencio o que ele, finalmente, consegue em 1962, quando seu romance é lançado no mercado editorial espanhol. Estranhamente, Seix-Barral coloca a data de sua primeira edição como sendo 1961, mas parece que ele só chega ao público em 1962, porque é esta a data que os críticos apontam como a de seu aparecimento, como o afirmam Esperanza Saludes, Juan Luis Suárez Granda, Santos Sanz Villanueva, Gonzalo Sobejano, entre outros. Em agosto de 1962, Luis Martín-Santos volta a ser preso. É sua quarta e última passagem pela cadeia. Desta vez são somente alguns dias de detenção. Ele é libertado e retoma suas atividades de professor da Universidade Complutense de Madrid e de médico do Hospital Psiquiátrico de San Sebastián. Todavia, seguramente, todas estas quatro prisões e vivências nos calabouços franquistas deixaram-lhe impressas no coração e na alma fortes marcas que vão inspirar-lhe algumas das angustiantes páginas deste seu romance. Tiempo de Silencio, buscando afastar-se da tradição do realismo social e encontrar um caminho estético novo, nem sempre, no primeiro momento de sua aparição, foi percebido pelos críticos como um romance que representava uma evolução no processo narrativo espanhol. Entretanto, não demorou muito para que o livro de Martín-Santos se tornasse uma unanimidade entre os críticos e se convertesse numa obra apreciada, elogiada, um romance único e que todos gostariam de ter escrito como disse Cabrera Infante numa entrevista ao jornal El País, de domingo, 07 de julho de 1991. Além disso, é uma obra reconhecida “as a turning point in the history of the Spanish novel, representing a break with both Spain’s tradition of realism and with the objectivist or neorealist trend of the 1950’s” (KNICKERBOCKER, 1994, p. 11)2.Tiempo de Silencio torna-se, portanto uma resposta, um contraponto a uma situação de relativo marasmo literário, porque “es uno de esos raros libros que, a la 2 Como um momento decisivo na história do romance espanhol, representando uma ruptura tanto com a tradição espanhola do realismo quanto com a tendência objetivista ou neo-realista dos anos cinqüenta. (T.A.) 31 vez que cierran caminos viejos, se muestran precursores del futuro” (SANZ VILLANUEVA, 1986, p. 839). Obras literárias nunca aparecem ou são recebidas em condições imaculadas. Elas são muitas vezes definidas pelo momento e pelos espaços nos quais surgem. Assim, a ampla divulgação e o conhecimento de uma obra literária não se origina m, unicamente, de seu texto, mas também do processo de circulação e consumo no qual ela está enredada. O modo como um texto adquire visibilidade em qualquer ambiente é um processo complicado. Até agora, talvez, o mais importante estudo nesta área seja o de Gérard Genette com seu conceito de ‘paratexto’ focado na questão da apresentação e da análise das estratégias e instrumentos usados pelos escritores e editores para assegurar uma certa imagem, um certo valor a seus produtos. Seria interessante ilustrar o que colocamos acima com um paralelo ocorrido entre a publicação, em 1962, pela Seix-Barral, tanto de La Ciudad y los Perros, de Vargas Llosa quanto de Tiempo de Silencio, de Luis Martín-Santos Which is probably the most canonized Spanish text of the decade. It is somewhat surprising that, given the similarities between those two authors and their novels, the paratextual evidence we can gather would point in different directions. Compared to the editorial support granted to Vargas Llosa in 1963, Tiempo de Silencio was left to fend for itself. Martin-Santos’s novel was published in 1962, by the same press, Seix Barral, but it does not appear to have elicited the same degree of editorial apparatus even though, according to Carlos Barral himself, its weight and literary ambition were unsurpassed by any other Spanish novel of the postwar period. The difference of treatment did not go unnoticed to Mario Benedetti, who expressed surprise at the fact that Valverde’s eulogy of La Ciudad y los Perros as poetic novel had not also been used to describe Tiempo de Silencio: “The Spanish critic had in his very own country a novelist like Luis Martín-Santos, who was able to understand narrative prose in the same way 3 as Vargas Llosa. (SANTANA, 2000, p.84) Aqui, a questão não é se La Ciudad y los Perros foi mais bem sucedida e influente do que Tiempo de Silencio e sim o porquê da diferença de apresentação e 3 Que é o mais canônico texto espanhol da década. É de certa forma surpreendente que dada às semelhanças entre aqueles dois escritores e seus romances, a evidência paratextual que reunimos aponta em diferentes direções. Comparado ao suporte editorial oferecido a Vargas Llosa em 1963, Tiempo de Silencio foi deixado à própria sorte. O romance de Martín-Santos foi publicado em 1962, pela mesma editora, Seix-Barral, porém parece não ter obtido o mesmo grau de aparato editorial ainda que, segundo o próprio Carlos Barral, seu valor e aspiração literários não tivessem sido superados por nenhum outro romance espanhol do período da pós-guerra. A diferença de tratamento não passou desapercebida por Mario Benedetti que expressou sua surpresa com o fato do elogio de Valverde feito a La ciudad y los perros como romance poético não tivesse sido estendido a Tiempo de Silencio. O crítico espanhol tinha no seu próprio país um romancista como Martín-Santos, capaz de compreender a prosa narrativa tanto quanto Vargas Llosa. 32 divulgação dos dois romances. Uma das possíveis explicações seria a de que, na época, ser um produto cultural espanhol era ser sinônimo de pobreza e estagnação estética, enquanto que a Latin American origin of the novel and its authors provided an added value also within the national sphere, since culture and ideological climate of the period would confer on the southern continent an aura of excitement. 4 (SANTANA, 2000, p. 84) Uma outra explicação, para este descrédito para com a produção local oriunda dos próprios editores espanhóis no período do boom latino-americano, teria a ver com a biografia: a morte súbita de Martín-Santos, em janeiro de 1964, impossibilitou sua participação direta no debate sobre a renovação do realismo social que ocorreu no mundo literário em jornais, publicações literárias e conferências. Como o próprio Carlos Barral noted in comparing the production of the Spanish novel and the boom novel in 1971, “the truth is that, apart from mistakes in their poetics, none of the Spanish writers of the same generation has the stature, for now, of the four or five leaders of the Latin American generation, with the exception of the late Martín-Santos – who, since he is dead, doesn´t count. (SANTANA, 5 2000, p. 85) Logo após o aparecimento do seu romance, no ano seguinte, 1963, morre sua esposa Rocío, em circunstancias trágicas, acidentalmente, vítima de envenenamento com gás, na cozinha de sua residência. Oito meses depois será o próprio Martín-Santos a vítima da tragédia final. No dia vinte e um de janeiro de 1964 seu carro chocou-se com um caminhão na estrada que o trazia de volta a San Sebastián. Sua morte prematura, aos quarenta anos de idade vem encontrá-lo no momento em que mais se podia esperar dele, pois estava “colocado en una situación bien definida tras haber superado las indecisiones de la primera juventud y 4 O romance de origem latino-americana e seus autores ofereciam um valor a mais também dentro da esfera nacional, uma vez que a cultura e a atmosfera ideológica da época conferiam à América do Sul uma aura de novidade. 5 observou ao comparar a produção do romance espanhol com os romances do boom em 1971, “a verdade é que além de alguns enganos em suas poéticas, nenhum escritor espanhol da mesma geração ficou à altura dos quatro ou cinco expoentes da geração latino-americana, com exceção do finado Martín-Santos —que, como está morto, não conta. (T.A.) 33 dueño de unas facultades tales como para abordar su futuro con plenas garantías de éxito” (BENET, 1986, p. 83). Mas, o destino prega suas peças e, se sua morte interrompe o prosseguimento dessa brilhante carreira literária, seu romance nesses quarenta e cinco anos, se impôs, seguiu vivo no panorama literário espanhol do século XX, gerando cursos, conferências, estudos, artigos e outros livros. Assim, além do seu posterior sucesso junto à crítica pode-se, seguramente, falar de seu sucesso junto ao público, pois, em 1966, quando sai sua terceira edição, T S6 alcança uma tiragem de dez mil exemplares, número bastante significativo, levando-se em conta o panorama do mercado literário da Espanha de então e o fato, como o reconhece Sanz Villanueva, de tratar-se de “un libro exigente y difícil” (SANZ VILLANUEVA, 1986, p. 837). O caminho dessa obra não foi dos mais fáceis e tranqüilos. Sem mencionar o já narrado episódio de sua participação no concurso Pio Baroja, sua pouco prestigiada recepção editorial, comparada aos lançamentos dos textos latinoamericanos, sua primeira edição apareceu mutilada pela tesoura dos censores franquistas: “se suprimieron cuatro pasajes, algunos de los cuales se reponen en las ediciones de 1965” (SUÁREZ GRANDA, 1986, p. 11). Estas e outras edições que lhe seguem continuam ainda contendo supressões. Somente a edição de 1980 e as posteriores conseguem dar ao público o texto definitivo, completo. O texto utilizado nesta tese foi o da 48ª edição, de julho de 2001, como informado na introdução. Luis Martín-Santos escreve seu romance no final da década de 50, mas, fazendo o relógio retroceder uma década no tempo, o situa espacial e temporalmente na Madri dos anos 40, mais precisamente, no outono de 1949. Ao mesmo tempo em que ele conta o drama de Pedro, jovem médico pesquisador, apresenta também, ao longo de sua odisséia, uma visão pessimista da realidade espanhola e do modo de ser ibérico. Assim é que seu personagem Pedro, tendo ficado sem cobaias para dar continuidade ao seu projeto de pesquisas que visava determinar se no aparecimento do câncer contam mais os fatores ambientais ou genéticos, é levado por Amador, funcionário do centro de pesquisas, aos arrabaldes de Madri onde Muecas, criador 6 De agora em diante as referências ao romance Tiempo de Silencio serão feitas com o uso da sigla T S. 34 de cobaias, vive com a mulher Ricarda e as duas filhas em miseráveis e sórdidas condições. Depois dessa visita às chabolas, Pedro retorna à pensão onde mora, cuja proprietária, uma velha e astuta senhora, quer vê-lo casado com sua neta, Dorita. No sábado, Pedro sai para uma noite de farra juntamente com seu amigo Matias. Encontram-se em um café literário de onde saem para outros bares, até que encontram um pintor alemão que os convida a visitar seu ateliê. Dali vão ao bordel de D. Luísa, onde Matias fica e Pedro retorna à pensão. Sob o efeito do álcool desta noite de “borrachera”, ele entra no quarto de Dorita, caindo na armadilha de sedução que esta e a avó lhe prepararam. Algumas horas depois, já em seu próprio quarto, Pedro tenta adormecer, mas é chamado por Muecas, de madrugada, para atender Florita, sua filha mais velha, que está muito mal. Pedro vai até lá e somente quando vê Florita, dá-se conta de que ela, grávida do próprio pai, havia feito um aborto. Pedro faz o que pode para reverter, sem sucesso, a hemorragia da jovem, que vem a falecer, mas, ao invés de ir até a polícia comunicar o acontecido, deixa o local e volta para a pensão. Enquanto isso, Cartucho, personagem violento, apaixonado por Florita, que havia permanecido toda a noite espiando aquela agitação na casa do Muecas, pergunta a Amador, se o médico Pedro, era ou não o responsável pelo que havia acontecido à moça. Amador, covarde e amedrontado, diz que sim. Pedro, no dia seguinte, assistindo a uma conferência na casa de Matias, é procurado pela polícia. Matias o esconde e o leva para o bordel de D. Luísa, onde fica escondido, até o inspetor de polícia, Similiano, encontrá-lo e levá-lo para a prisão. Lá permanece até que a mãe de Florita, Ricarda, em um gesto de coragem, nobreza e humanidade, vem em seu socorro. Aquele ser que não havia nascido para odiar, além de já tê-lo anteriormente consolado, ao dizer-lhe: ”Usted hizo todo lo que pudo” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 131) quando ele terminara sua intervenção com Florita, vem novamente trazer-lhe consolo ainda maior ao inocentá-lo repetindo: “Él no fue. Él no fue. Cuando él fue, ya estaba muerta”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 241). Pedro, de volta à pensão, celebra com Dorita, a mãe e a avó desta, e alguns poucos amigos delas, sua libertação e oficializa seu noivado. À noite, vão os noivos e a mãe da noiva assistir a uma comédia no teatro e, de lá, saem para dançar. Cartucho segue -os sem que seja percebido. Pedro deixa Dorita sozinha por alguns 35 instantes e, enquanto vai comprar-lhe algo, Cartucho aproxima-se dela e a esfaqueia, deixando-a caída e ensangüentada, como Pedro a encontra ao retornar. Além desse duro golpe da vida, Pedro recebe ainda outro mais, porque o diretor do Instituto de Pesquisas, onde ele trabalha, comunica-lhe que, devido ao escândalo de seu processo no caso de Florita, ele não mais poderá continuar trabalhando ali e aconselha-o a ir clinicar no interior. Com ideais e sonhos destroçados, impedido de prosseguir sua pesquisa, símbolo de sua busca da verdade, e com sua liberdade suprimida, a Pedro só resta abandonar seu projeto de vida e aceitar a terrível opção de ter que, não só aprender a conviver com sua dor, seu fracasso e seus fantasmas, como também a aceitar um novo projeto de vida, pautado na mediocridade. É com essa trama, rotulada por alguns críticos de simplista, que Luis MartínSantos, não obstante, desenvolve uma metáfora rica que rememora a vida difícil e dolorosa desse tempo espanhol e, com ela, constrói um mundo amplo, coerente e cheio de significados. 36 1.4. AS MUITAS POSSIBILIDADES INTERPRETATIVAS Luis Martín-Santos parece ser um dos poucos narradores – “quizá el único – de la postguerra española que ha sabido penetrar la totalidad de la realidad española” (ORTEGA, 1968, p. 236) e, uma das evidências desta riqueza polivalente e totalizadora de seu romance reside na ampla variedade de leituras críticas que tem inspirado ao longo dos quarenta e cinco anos de sua publicação. Seu texto tem sido interpretado como romance social, obra existencialista, romance psicológicofilosófico e até mesmo um bildungsroman7 estruturado em torno de temas mitológicos. Esta diversidade de abordagens críticas, feitas a partir de diferentes pontos de vista, evidencia uma das principais dificuldades de interpretação de TS, já que nenhuma destas visões parciais pode abarcar todo o romance que busca englobar tudo, que tenta ser a suma intelectual de seu autor. Seria, portanto, difícil tentar interpretá -lo sem utilizar lentes ecléticas de análise, pois estas, com certeza, permitirão que se revele, nesta leitura da obra, algumas de suas características mais marcantes. Ler e interpretar é procurar significados, é descobrir os possíveis e diferentes sentidos que uma obra traz em si. Assim, buscando encontrar sentidos e significados, entendemos TS: • como um romance cujo texto, escrito por um psiquiatra, propõe um percurso, de natureza psicanalítica, onde se evidenciam as tensões psicosociais de seu personagem central, Pedro. Neste caminho, suas contradições externas, entre ele e o mundo, originadas na sociedade com a qual ele interage, e as internas, entre ele e seu ego, decorrentes de sua própria individualidade, dialogam, deixando entrever a dificuldade do homem em harmonizar seus angustiantes conflitos. Este processo se constituirá na análise de sua insatisfação com o mundo a sua volta, do medo que perpassa seu coração ao perceber a ameaça de perda de sua liberdade, da angústia existencial diante do imponderável e do absurdo da vida, do medo e da angústia diante da violência, do arbítrio e da morte. 7 Um romance de aprendizagem. Cf. Julian Palley e Dale Knickerbocker. 37 • como um romance cujo texto, escrito por um intelectual profundamente sintonizado com a cultura de seu país e do mundo, propõe ao leitor um itinerário cultural pelos vários séculos da produção literária espanhola e européia, estabelecendo um diálogo de polivalência intertextual, onde a presença de outros textos em seu texto lhes confere vida nova, criando um amplo e vasto contexto e possibilitando uma leitura rica e plural. • como um romance cujo texto, escrito por um homem engajado e comprometido com a realidade social e política de seu tempo, propõe ao leitor um roteiro e convida-o a caminhar pelos espaços degradados da sociedade na qual se movem seus personagens, enquanto seu autor procura detectar com um olhar refinado e preciso as causas e origens desta degradação. Suas meditações mordazes tornam as dimensões humanas, geográficas e culturais desses espaços mais explícitas e corporificam-se em uma visão polêmica, mas coerente. 38 1.5 O CAMINHO ESCOLHIDO: A QUESTÃO DO ROMANCE Ao ler uma crônica do escritor e crítico literário Milton Hatoum, Elegia a um Felino do Amazonas, nos deparamos com uma curiosa metáfora, por ele construída, para falar de um ditado chinês que diz ser o cachorro como um romance e o gato, um poema. Explicitando sua linha de pensamento, ele afirma que neste ditado, pleno de sabedoria oriental, reside uma delicada definição de gêneros literários. Assim, o gato, com sua pose hierática, seu salto sem ruído, a fixação do seu olhar em êxtase focando as asas de um pobre passarinho, encarnaria a subjetividade lírica, enquanto que ao pensarmos no cão, nas suas peripécias, no corre-corre e nos latidos, nos momentos de exaltação e melancolia, nos ganidos de dor, saudade ou fome, nos saltos estabanados, nos ataques de raiva, nas mordidas, no afeto meloso, nas disputas ciumentas… tudo isso lembra o traçado de eventos e peripécias de um romance. (HATOUM, s/d, p. 46) De fato, o romance, por estabelecer um sistema de relacionamentos entre dois mundos, o ficcional, criado pelo autor, e o real, o universo compreensivo que o circunda, abarca uma gama tão ampla de possibilidades que nos faz ver nele todas aquelas peripécias e eventos a que o cachorro do provérbio chinês alude. Além disso, a dificuldade de se estudar gênero tão complexo nos põe em estado de alerta por sabermos que El género novela, es el pez enjabonado de la literatura: nada más difícil de atrapar. Puede decretarse fundadamente su muerte y se lo verá nadar ileso; puede retrotraérselo al pasado, a cualquier estructura prosística y él concurrirá diligentemente para evadirse de inmediato con igual soltura. Género vulgar si los ha habido en la historia de la cultura, de sus bajos fondos originarios extrajo su capacidad de adaptación, de supervivencia, de transformación. (…) Cada vez que la retórica pretendió dignificarlo se escabulló de sus manos para volver gozoso al barrizal: de allí resurge con nuevas energías, bajo nuevas formas.(RAMA, 1982, p. 20). Por conseguinte, conscientes da dificuldade deste gênero, buscamos indagar o que mais o caracteriza e o que se deve considerar essencial em sua estrutura. As respostas não são facilmente encontradas, principalmente, quando consideramos a variada linha de teóricos do romance. Optamos por, de início, multifacetar a visão 39 que dele temos para unificá-la no final, por termos percebido que onde a teoria de um termina, a de outro teórico lhe dá continuidade, soluciona alguns impasses, avança nos questionamentos, mas se defronta com outros. Partindo do pressuposto de que “todo romance representa a vida em autodesenvolvimento e a recria e de que este autodesenvolvimento da vida independe do autor, de sua vontade consciente e de suas tendências” (BAKHTIN, 2003, p. 340), observamos que, para Bakhtin, o romance por ser vida humana em auto desenvolvimento, em progresso, é um microcosmo dos discursos sociais e que o uso de categorias históricas juntamente com sua posição filosófica, um tanto idealista, nos leva a pensar o romance como um fenômeno historicamente específico ou quase como um princípio eterno. Se a existência humana é constituída pelo tempo, ela é também igualmente constituída pela linguagem. E esta linguagem, mais que simples instrumento de comunicação é recurso fundamental para a expressão humana que, ao fazer-se literária, guia-se pelo estético e apresenta-se, portanto, como “a thing of beauty” que, como o próprio Keats complementa “is a joy for ever” (KEATS, 1962, p. 15). Além da beleza da linguagem esteticamente recriada é, também, a eternidade dela que nos aprisiona, encanta e estimula. Como afirma Lukács, ao fazer a distinção entre epopéia e romance, quando a vida que ingressa na obra se subordina à utopia, a épica desaparece para dar lugar ao romance, pois a totalidade épica é substituída pela fragmentação do todo e por um ideal subjetivo que busca o sentido perdido da coisa em si e recria um momento a partir de pedaços de vida. Nas palavras de Lukács “o romance é a epopéia de uma era em que a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido da vida tornou-se problemática, mas que, ainda assim, tem por intenção a totalidade”. (LUKÁCS, 2000, p. 55). O romance lukacsiano, como o de Martín-Santos também, não cessa de aspirar à totalidade. Ele visa encontrar uma totalidade secreta da vida ao unir, ou reunir, as incompatibilidades, as incongruências das situações históricas de tal forma que ele passa a ser definido também pelo tipo de herói que através da sua individualidade e sua subjetividade, procura o caminho que nem o mundo dos objetos e das coisas, nem o das normas lhe fornecem pronto e acabado como na epopéia. 40 Cabe, então, ao romance buscar resolver a desorientação inexorável da vida tentando racionalizar, analisar seus descompassos, suas ambivalências e suas contradições. Ele visa também dar forma ao mundo criado pelos homens, aquele mesmo mundo que os aprisiona e lhes nega sentido. Para o autor, a forma de seu romance demandaria um sentido. Todavia, como nos tempos modernos esse sentido se dilui, se esfuma e, se dissolve, por conseqüência, aquela forma buscada pelo autor, mal consegue disfarçar a fragilidade desse mundo instável de onde o sentido se ausento u. Talvez, por estar com sua forma fora do modelo homogêneo pré-formado da antiguidade grega, o autor moderno, consciente das possibilidades de livre criatividade de seu espírito, rejeita aqueles modelos que possam tolhê -lo em uma forma unitária, rígida. Com isso, devido à não homogeneidade de sua forma, temos a impressão de que o romance parece inacabado, sempre em progressão, refletindo uma realidade cuja subjetividade moderna, descontínua, parece tornar-se irrepresentável, levando o gênero a recorrer a outros gêneros, do lirismo ao pensamento filosófico, na busca de dar coerência aos fragmentos de vida nele apresentados. O romance de Martín-Santos nos leva a percebê-lo também dessa maneira, pois emprega uma linguagem por vezes lírica, e transborda seu texto com digressões onde transparece no seu discurso o pensamento ético de seu autor diante das realidades que narra. Lukács também reforça a idéia de que no romance da antiguidade grecolatina as dimensões do mundo reduzem-se às experiências do herói e que estas o levam ao conhecimento dele mesmo. (LUKÁCS, 2000, p. 83). Lucian Goldman, analisando a obra de René Girard e de Lukács, define romance, coincidindo com as idéias deste último, como “a história de uma busca de valores autênticos de um modo degradado numa sociedade degradada”. (GOLDMAN, 1990, p. 15), e por um herói problemático. Esta definição parece pertinente e aplicável ao romance T.S. que apresenta uma busca de valores autênticos, o ideal científico do pesquisador Pedro, um herói problemático, Pedro, num mundo degradado, Espanha, 1949. O romance, entendido desta maneira, seria a “transposição para o plano literário da vida cotidiana na sociedade individualista nascida da produção para o mercado”. (GOLDMAN, 1990, p. 16). 41 Goldman também levanta dois importantes pressupostos. O primeiro, o da existência, no seio desta sociedade, de indivíduos excepcionais que procuram valores autênticos, qualitativos, sem, entretanto , conseguirem escapar, completamente, da estrutura social degradante que os envolve, sendo, por conseguinte, indivíduos problemáticos, como Pedro de T.S. E o segundo, o da existência de uma contradição típica da sociedade burguesa entre a elevação do individualismo a valor universal e a impossibilidade de afirmação deste individualismo, pois ele se encontra sufocado pela massificação. Esta contradição, também está presente na obra de Martín-Santos só que, mais que massificado, o indivíduo se encontra controlado, subjugado pelos ditames autocráticos e castradores de uma sociedade alienada, alienante e autoritária. Ao estudar estas questões sobre um determinado tipo de sociedade, burguesa, industrial, liberal, da Europa ocidental, Goldman levanta a hipótese de que paralelamente, e de forma homóloga à evolução social desta sociedade, se processa também igualmente a evolução da literatura, pois as coordenadas históricas são tão importantes que levam à extinção de determinados gêneros, como a épica clássica, por exemplo, e ao surgimento de outros novos, como o romance, representação artística que une as categorias do social e do individual mantendo, porém, a distinção dos dois termos. Daí os ensaios críticos de Lukács valorizarem os textos que tenham esta íntima relação entre o herói (individual) e seu mundo (social). O pensamento de Lukács de que a arte literária devolve ao público a imagem de si mesmo dentro da luta de classes, elaborada através da imaginação com que o escritor reconstitui os matizes da vida vivida de forma mais nítida do que a vida em si mesma porque ele aponta e denuncia os conflitos ao invés de escondê-los sob o véu da ideologia alienante em que se movimentam seus personagens. Luis Martín-Santos constrói T.S. exatamente dentro desta visão. A obra literária ao restituir, na totalidade interna e coerente de seu texto, a racionalidade da história e o trabalho de desalienação, constrói o requisito fundamental para a tomada de posição, ou de consciência, dos leitores e sua reação à reificação e à nulificação do indivíduo na sociedade capitalista. T.S. é um exemplo perfeito de obra literária construída nesta perspectiva, só que o trabalho de desalienação de seu texto aparece pelo caminho da desmitificação através do uso da ironia. 42 Lukács considera, portanto, a arte como a forma privilegiada de aperfeiçoamento dos seres humanos, pois ela lhes expõe o que eles são e o que poderiam vir a ser, contingenciados, é claro, pelo incontrolável devir do tempo e da história. A Teoria do Romance de Lukács representa, tal como Luis Martín-Santos em seu romance, a expressão de uma repulsa à sociedade burguesa, à racionalidade positivista e ao mundo onde o indivíduo não pode encontrar mais sua realização plena. Lukács, partindo de um presente ignóbil, rememora a constituição do romance a partir do seu contraste com a epopéia e lança seu olhar em direção ao futuro. Para ele, um novo sujeito histórico está surgindo, consciente de si, como no romance, porém integrado ao mundo como na epopéia, expressão de uma coletividade. Pedro, herói de T.S. poderia ser esse novo sujeito histórico, embora com uma diferença, a um tempo sutil e drástica. Ele não tem a necessária consciência de si. Entretanto, por estar integrado ao seu mundo em busca da sua realização, ele, ainda que condenado ao fracasso, acaba sendo a expressão de uma comunidade, pois T.S. aponta o destino frustrado de Pedro como o do homem espanhol coletivo, castrado, sem aquela necessária consciência de si, reprimido, silenciado, impedido do exercício de sua liberdade. 43 1.6. O REALISMO DIALÉTICO DE MARTÍN-SANTOS Em 1945, Georg Lukács apresentou, em um trabalho intitulado, Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels, traduzido por Leandro Konder, algumas reflexões sobre as relações entre literatura e sociedade, onde ele pretende explicar a especificidade dos escritores realistas. A concepção marxista do realismo é a do realismo da essência artisticamente representada. Ela representa a aplicação dialética da teoria do reflexo ao campo da estética. E não é acidental que o conceito de tipo seja aquele que com maior clareza evidencia tal peculiaridade da estética marxista (…) Essa determinação marxista do realismo prolonga a linha que grandes mestres do realismo, como Fielding, adotaram na sua prática artística; esses mestres se intitulavam historiadores da vida burguesa, historiadores da vida privada. (…) Tivemos, contudo, ocasião de constatar que um dos problemas centrais da concepção marxista é a dialética do fenômeno e da essência, a descoberta e a enunciação da essência no contexto das contraditórias manifestações fenomências. (LUKÁCS, 1965, p. 31-32). Parece assim, que Lukács considera que cabe ao escritor representar a dialética entre o fenômeno que ele expõe e a essência desse fenômeno em um nível mais profundo. Ele, ao atribuir sentido às experiências humanas, aponta para a possibilidade de articular fenômenos específicos com princípios gerais. A autêntica dialética da essência do fenômeno se baseia no fato de que essência e fenômeno são momentos da realidade objetiva, produzidos pela realidade e não pela consciência humana. No entanto, – e este é um importante axioma do conhecimento dialético – a realidade apresenta diversos graus: existe a realidade fugaz e epidérmica, que nunca se repete, a realidade do instante que passa, e existem elementos e tendências de uma realidade mais profunda, que ocorrem segundo determinadas leis, ainda que se transformando com a mudança das circunstâncias. Tal dialética atravessa toda a realidade, de modo que, numa relação desse tipo relativizam-se aparência e realidade: aquilo que era uma essência que se contrapunha ao fenômeno aparece, quando nos aprofundamos e superamos a superfície da experiência imediata, como fenômeno ligado a uma outra e diversa essência, que só poderá ser atingida por investigações mais aprofundadas. (…) A verdade na arte visa o maior aprofundamento e a máxima compreensão (…) a verdadeira arte, portanto, fornece sempre um quadro de conjunto da vida humana, representando-a no seu movimento, na sua evolução e desenvolimento. (LUKÁCS, 1965, p. 28-29) 44 Claro que escritores, enquanto seres humanos, são passíveis de se tornarem tendenciosos, mas Lukács considera que existe uma margem de distanciamento entre os referenciais e as idéias políticas defendidos por um intelectual e, os valores defendidos, de um ponto de vista estético, na sua produção artística. A obra de arte, segundo ele, consegue ultrapassar as inclinações ideológicas pessoais de seu autor. Lukács, ao colocar dessa forma essa contradição, ultrapassa, ele próprio, as tendências mecanicistas contidas nas teorias marxistas ampliando a visão por vezes reducionista de seus críticos e evitando uma postura determinista na relação autor e obra. Assim, essa visão do realismo dialético lukácsiano conduz à auto-consciência do gênero humano, ao reconhecimento dos aspectos históricos, sociais e concretos de toda a experiência a ser representada na obra. Lukács, apreciador de Balzac, também acreditava que as obras realistas devem ter em seu horizonte temático o processo histórico, porque nenhum grande escritor pode se permitir permanecer indiferente aos grandes problemas do progresso humano. T.S. possui aquele horizonte temático de que fala Lukácks e, com certeza, Luis Martín-Santos não permanece indiferente a eles. nenhum escritor pode deixar de tomar apaixonadamente posição diante deles, se quer criar autênticos tipos, se quer atingir um profundo realismo . Sem tal tomada de posição, um escritor jamais poderá distinguir aquilo que é essencial daquilo que não é. (LUKÁCS, 1965, p. 36), e Luis Martín-Santos não só não deixa de tomar a sua como também distingue, com muita clareza, o essencial. Para Lukács, “a grandeza artística, o realismo autêntico e humano estão sempre indissoluvelmente conexos” (LUKÁCS, 1965, p. 39). A singularidade de Martín-Santos está no percurso histórico de sua obra. Ao elaborar sua narrativa de ficção dentro dos postulados do seu realismo dialético ele segue uma trilha que conduz à consciência crítica da desumanização da sociedade espanhola franquista num alto grau de profundidade. A proposição do narrador de T.S. não se esgota na contemplação do superficial. A proposta perceptiva sugerida por Martín-Santos se aproxima da elaboração conceitual de Lukács quando este afirma que “a verdadeira arte visa o maior aprofundamento e a máxima compreensão”. (LUKÁCS, 1965, p. 29). 45 Martín-Santos martelou com força e maestria o bloco monolítico em que havia se constituído o realismo social de sua geração conseguindo, ao rompê-lo, fazer deslizar através dele sua escritura prenhe de uma nova estética que seria decisiva para a transformação daqueles hábitos narrativos espanhóis que predominaram até os anos 50. Escritor que teorizou sobre o romance enquanto gênero literário, e sobre sua função na cultura espanhola, não deixou contudo nenhum tratado onde suas reflexões tivessem sido reunidas. Contamos, porém com informações colhidas daqui e dali que refletem sua atitude pensada e coerente sobre esta questão. Existem uns comentários de Martín-Santos recolhidos por Aquilino Duque, umas respostas que deu num questionário de Janet Winicof Díaz sobre a questão do realismo, além de duas conferências que ele proferiu sobre o tema do realismo dialético. É importante destacar três pontos que põem em relevo sua insatisfação e desconforto frente aos caminhos narrativos de seus contemporâneos espanhóis. Sua nova visão e suas discrepâncias se restringem de início á função estética e social do romance e se ampliam aos distintos aspectos da obra literária. Três de suas afirmativas precisam ser destacadas. A primeira é que há na Espanha uma escola realista comprometida e superficial que lhe marca o rumo. Ela precisará alcançar um conteúdo mais amplo e uma maior complexidade para sair do atoleiro da monotonia e do desinteresse. A segunda é de que há um outro tipo de romance que, ao centrar-se em idéias que substituem o homem por sua circunstância, perde significado e valor e se afasta da verdade artística. A terceira é de que ótimos temas para romances são aqueles que mostram as leis modificadoras da existência humana, de onde se pode perceber o condicionamento social, as contradições profundas e a ânsia de liberdade. Esse tríplice ponto de partida o impulsiona na busca por um romance temática, estrutural e estilisticamente diferente do que se produzia então. Ele se apega a uma busca de intelectualização para o romance espanhol tentando, ao mesmo tempo, “entroncar con la propia tradición de la novelística del 98” (ROBERTS, 1973, p. 130). Ainda que Martín-Santos tenha compartilhado com seus contemporâneos um idêntico espírito crítico da realidade espanhola, sua obra se escora em uma estética completamente distinta da dos demais escritores de então. O próprio Martín-Santos 46 percebendo os traços que o diferenciavam da produção realista tradicional batiza sua concepção literária de ‘realismo dialético’. Numa troca de correspondência entre ele e Ricardo Domenech, revelada por Gemma Roberts ele se expressa tentando aclarar os verdadeiros pressupostos que buscou dar à narrativa de seu país. Temo no haberme ajustado del todo a los preceptos del realismo social, pero verás un poc o en qué sentido quisiera llegar a un realismo dialético. Creo que hay que pasar de la simple descripción estática de las enajenaciones, para plantear la real dinâmica de las contradiciones in actu. (ROBERTS, 1973, p. 130) A estas palavras ele acrescentava o quanto por vezes parecia pedante tanto em suas cartas quanto numa simples conversa, demonstrando com isso uma auto ironia, cuja forma habitual de brincar com o que é sério para confundir seus interlocutores, vai se constituir numa comunicação indireta, um dos métodos mais empregados para expressar a ambigüidade da verdade, utilizado também por pensadores como Nietzche e Kierkegaard. Certamente, a ironia se constitui num dos elementos primordiais na dialética de Martín-Santos e vo ltaremos a trazê -la para análise neste estudo nos capítulos posteriores. Martín-Santos, para estruturar seu novo conceito de realismo, estabelece uma relação dialética entre o realismo social, exatamente como era na geração dos anos cinqüenta, e o realismo existencial. Assim, ele representa um esforço consciente para superar as limitações pré-existentes. Ele o consegue graças a uma concepção mais dialética do ser humano e mediante também o aporte de uma série de novos recursos formais que intensificam, ao máximo, a tensão entre o homem e seu mundo. Juan Carlos Curutchet aponta que El novelista no incurre en ese característico fetichismo de la realidad objetiva, no diviniza el mundo de las apariencias. Pero tampoco lo subestima. Lo relativiza, em suma, le restituye su verdadera significación como vía de acceso a otras realidades ya más complejas y contradictorias, menos mecanicistas. Reivindica la naturaleza dialética de la realidad y la realidad objetiva de la contradicción. (CURUTCHET, 1968, p. 17) 47 Ele também estrutura um personagem de tal forma alienado que não percebe o distanciamento tanto no seu âmbito social, quanto no profissional, entre seus sonhos e a realidade, entre seu ideal de sucesso e a fama na busca do conhecimento e o ambiente degradado e sórdido que o circunda. Essas contradições se constituem nos pólos antagônicos com os quais o realismo dialético de Martín-Santos opera. Esperanza Saludes, em La Narativa de Luis Martín-Santos a la Luz de la Psicologia, afirma que: “según la teoria marxista la alienación se produce en el hombre cuando los propios actos de éste se convierten en un poder ajeno que actúa sobre él, y en contra de él, en lugar de ser escogidos por él” (SALUDES, 1981, p. 44). Por esta perspectiva se pode claramente entender a alienação de Pedro nesse mundo de “dioses y pájaros”, (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 173) em que são os demais personagens que vão determinar seu caminho e suas escolhas, transformando-o num herói fadado, tentando evitar “lo inevitable” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 182). Assim é que ele, alienadamente: acompanha Amador, o Amador/ Cassandra, arquiteto que põe em marcha seu destino; deixa-se cegamente iludir pela sedução de Dorita, caindo na armadilha das três moiras que lhe teciam o destino; acompanha por um “impulso de corazón” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 125) o mensageiro Muecas, que o arrasta novamente para a longa noite de sábado “por no haber cumplido aún la total odisea que el destino le había preparado”.(MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 122); participa da reunião na casa de Matias por cuja mãe, deixa perceptível sua cegueira edipiana; apresenta-se ali dividido entre a inveja que sente pelo que vê e o desprezo que se obriga a sentir pelo que inveja; segue, infantilmente, a orientação de seu amigo Matias para refugiar-se no bordel dona Luísa de onde, finalmente, é levado à prisão e acusado de ser o responsável pelo aborto de Florita. Gemma Roberts, analisando essa nova percepção de Martín-Santos, afirma que a tradição do realismo social tende a uma certa estaticidade externa na medida em que, dentro da tradição literária marxista, as contradições eram atribuídas exclusivamente a um tipo de sociedade. Porém, estas mesmas contradições, “hay que empezar buscándolas en el individuo” (ROBERTRS, 1973, p. 173). Assim, talvez se possa melhor compreender a posição a que aludia Martín-Santos, quando se 48 referia a realismo dialético. Na verdade, ele buscava estabelecer uma relação dialética entre o realismo social, visão de crítica social, e o realismo existencial, visão das contradições individuais. Ele, assim, integrava dialeticamente sujeito e objeto, ou seja, o protagonista e o meio. Será esta visão de tensão entre as contradições externas do meio social e as contradições internas do indivíduo que vai criar o dinamismo dialético que perpassa por todo o romance de Martín-Santos. As contradições da sociedade espanhola e as contradições de Pedro se constituirão no conflito que ele, fatalmente, dentro dos estreitos limites de sua liberdade vai ter que resolver. Outro dado esclarecedor dessa questão surge num congresso internacional sobre realismo – Realism and reality in contemporary literature – realizado em Madrid, em outubro de 1963, patrocinado pela Unesco e o Instituto Francês e que reuniu grande número de escritores e críticos para debater o que, na época, se constituía no ponto mais debatido na Espanha: o processo narrativo. A grande importância desse evento é que ele põe um ponto final no realismo social enquanto modelo estético hegemônico na Espanha. Os debates apontavam para profundas diferenças entre os escritores europeus e os espanhóis. De um lado alinhavam-se aqueles que defendiam um realismo literário socialmente comprometido, de outro lado alinhavam-se os que apoiavam uma prática literária não restrita pelas considerações sociais. Martín-Santos que participou desses debates identificava as bases da discordância entre os dois grupos de escritores como uma questão ligada às totalmente divergentes condições sociais desses escritores. Alegava ele que enquanto os europeus gozavam de uma liberdade intelectual e política que lhes permitia acercar-se de um niilismo ideológico e de um refinamento formal, os espanhóis, por sua vez, dizia ele, tinham que lidar com as opressivas condições da ditadura franquista, e também dizia que Spanish writers find it difficult to understand that Chiaromonte is a leftist. When Chiaromonte says the novel has finished its legitimate cycle and that it is no longer possible to write novels except with a certain degree of intellectual hypocrisy, Spanish writers hear something akin to blasphemy. Because the fact is that nowadays the only weapon Spanish writers can count on to modify un unbearable reality is precisely that of writing novels that are sufficiently adept to pass through the censors, or sufficiently real to engage the reader politically…When Mme. Sarraute speaks of the invisible reality writers should bring to light with their creative effort, many Spanish novelists think the reality they need to change is visible, very visible. Under 49 such conditions, dialogue had to be difficult. Not only are previous suppositions and tacitly accepted intentions completely different, but so is 8 the situation in which such positions arise.(SANTANA, 2000, p. 81). Martín-Santos identificava então, com muita lucidez que, na verdade, o grande debate ali não era entre a liberdade estética e o dogmatismo ideológico e sim, entre indivíduos livres e indivíduos desesperadamente em busca de liberdade. Segundo nos relata Santana, Martín-Santos ao invés de criticar fortemente o realismo social, o que se poderia esperar de um escritor que havia posto a pá de cal neste movimento estético, opta por defendê-lo, ainda que mantendo uma visão crítica. Ele menciona o dogmatismo e a ingenuidade dos escritores nacionais porém aponta estas características como um mal necessário, não produto de uma literatura imatura, e sim das deficiências sócio-políticas do país. Entre o realismo social espanhol ultrapassado e as propostas de Chiaromonte e de Sarraute de um anti-romance, Martín-Santos propõe uma te rceira via definida tanto pelas necessidades internas da arte literária quanto pelas demandas da situação histórica espanhola. One should assume that the Madrid meeting won’t be useless. The impact on young Spanish novelists will be indicative of a change, not as its sole cause but correlated with those accelerated social and economic transformations in progress, and with the progressive maturing of the Iberian 9 intelligentsia. (SANTANA, 2000, p. 82). A terceira via de Martín-Santos é a de uma literatura que ainda tenta a transformação da ordem social porém o faz com instrumentos técnicos de uma nova escritura dialética. Para Martín-Santos a literatura tem uma função dupla: descrição da realidade social e descrição de novas mitologias sociais. Este seria o credo 8 Os escritores espanhóis acham difícil entender que Chiaromonte seja de esquerda. Quando Chiaromonte diz que o romance acabou seu ciclo e que não é mais possível escrever romances a não ser com certo grau de hipocrisia intelectual, isto soa como blasfêmia para os escritores espanhóis. Pois o fato é que hoje, a única arma com que os escritores espanhóis podem contar para modificar uma realidade insuportável é exatamente a escrita de romances argutos para passar pela censura ou suficientemente realistas para atrair o leitor politicamente (…) Quando Mme. Sarraute fala da realidade invisível que os escritores deveriam trazer à luz em seu esforço criativo muitos romancis tas espanhóis pensam no quanto a realidade que eles precisam transformar é visível, bem visível. Em tais circunstâncias, é claro que o diálogo tinha que ser difícil. Não somente as suposições anteriores e as intenções tacitamente aceitas são totalmente diferentes, como também a situação na qual tais suposições surgem também é. 9 Deve-se acreditar que o encontro de Madri não terá sido em vão. Seu impacto nos jovens escritores espanhóis será indicativo de mudança, não como sua causa única mas junto com aquelas transformações sociais e econômicas em curso, e com o progressivo amadurecimento da inteligentzia ibérica. (N.A.) 50 artístico para um novo realismo que ele próprio cunhou de realismo dialético e que demandava uma prática literária técnica e artisticamente comparável a tudo que se fazia nos modernos modelos europeus porém intencionalmente diferente deles. Um modelo proposto por Lukács na sua Teoria do Romance vê o indivíduo representado no romance como tendo perdido a generalidade do herói da epopéia, que era o representante de uma comunidade em que a integração com o mundo faz com que ele seja ao mesmo tempo individualizado e coletivo pois sua inserção no todo o define e seus valores são igualmente individuais e coletivos. Já, no romance, o indivíduo problemático, inserido num mundo fracionado e massificado, busca o sentido que lhe falta numa tentativa de superar, embora sempre fracassando, as lacunas do fracionamento que estão a sua volta, e de retomar o sentido subjetivo e interior que pode salvá-lo da sua solidão. Pedro, em T. S., está exatamente nesta posição de busca e fracasso, de impossibilidade de chegar ao autoconhecimento e de romper a solidão que o circunda num mundo de total incomunicabilidade, de silêncio. As marcas de sua chegada pela estação de Príncipe Pio, e de sua partida pela mesma estação, conformam uma circularidade significativa em que início e fim não são arbitrários, mas pontos necessários para determinar o sentido da tragédia do personagem na sua busca e o revelam completamente preso a um círculo vicioso, como o cão correndo atrás da própria cauda, círculo este que ele não tem condições de romper. Sua ironia, marca do indivíduo moderno, emoldura o intenso conflito deste homem que busca a realização de seu ideal, se lança num mundo no qual não se reconhece e contra o qual se choca para viver numa circunstância infeliz e contraditória. Aquela sua atitude irônica que destrói todos os valores e conteúdos positivos por uma pretensa superioridade acaba arrastando-o a um estado melancólico, instalando-se nele uma insatisfação com o mundo e consigo próprio por perceber-se impotente para transformá-lo. E, quanto maior é a autenticidade do personagem, e Pedro é um personagem muito autêntico, maior é o seu afastamento do mundo, sendo maior portanto sua impotência e sua melancolia. Essa situação nos remete à reflexão de Lukács de que “a unidade entre o valor estético permanente da obra de arte e o processo histórico do qual a obra de arte – exatamente na sua perfeição, no seu valor estético – não pode ser separada” (LUKÁCS, 1965, p. 42). 51 Enquanto gênero literário, devido ao alto grau de complexidade que lhe é inerente, o romance constitui-se em um dos mais difíceis gêneros a ser estudado e compreendido e tem sido, desde Cervantes até os nossos dias, uma fiel crônica de existências individuais e coletivas. Ele tem sido instrumento de diálogo profundo, profundo como diz Carlos Fuentes no sentido de que não é “sólo diálogo entre personajes, como lo entendió el realismo social, pero diálogo entre fuerzas sociales, entre lenguajes y entre tiempos históricos, contiguos o alejados” (FUENTES, 1990, p. 170). Luis Martín-Santos, tal como preconiza Carlos Fuentes, soube não só dialogar com as forças sociais que desenhavam a Espanha de sua época, como dialogar com elas de forma sincrônica e diacrônica, movendo-se ao longo do tempo, fazendo referências que vão desde as origens do Estado espanhol, ao mito fundacional de Cava Florinda, por exemplo, até os anos do pós-guerra, os anos 40, período em que se detém para aprofundar o momento histórico onde situa seus personagens. Ele constrói um painel instigante do mundo espanhol e, se seu enredo pode, aos mais desavisados, assemelhar-se a um relato folhetinesco, o tratamento que lhe é dado, lhe confere um amplo alcance existencial, humano e histórico. Os ambientes sociais, apresentados no desenrolar da trama, que vão desde os da alta burguesia, representados pela família e amigos de Matias, até o do miserável mundo “chabolero” de Muecas e Cartucho, recebem toda a força da amarga e demolidora visão crítica de Martín-Santos. Seu olhar irônico, muitas vezes satírico, e sua palavra sempre convincente induzem o leitor a projetar-se e a mergulhar neste espelho crítico onde apreende muito mais do que foi dito, porque é nele que se vê, com clareza, a conformação da sociedade espanhola aí apresentada, percebe-se a dor, o desconforto e a angústia de um homem acossado pela cruel rigidez das margens sociais que o comprimem, reconhecemos sua humanidade e reencontramo-nos, através dele, com a nossa própria imagem e sofrimento. Sim, TS é um texto que faz sofrer, por ser um grito de denúncia do aniquilamento do homem dentro de uma máquina social perversa, mas é também um texto que lava e reconforta o coração e a alma de quem o ler. E o alcance de significado de T.S. em sua riqueza concreta demanda sua análise à luz de uma poética do realismo, ou seja, de uma teoria da arte como 52 representação da essência de uma realidade social e humana historicamente determinada. Por esta razão este primeiro capítulo procurou, por um lado, definir o conteúdo histórico, humano e social que serve de pressuposto às objetivações estéticas de Martín-Santos e, por outro lado o modo como este pressuposto é recolocado artisticamente na estrutura de seu relato. Nos capítulos seguintes nos ocuparemos de peculiaridades formais e técnicas que o modo de reposição estética, adotado por Martín-Santos, nos apresenta. 53 2. A PRIMEIRA PALAVRA JAMAIS É NOSSA As fronteiras de um livro nunca são bem definidas: por trás do título, das primeiras linhas e do último ponto final, por trás de sua configuração interna e de sua forma autônoma ele fica preso num sistema de referência a outros livros, outros textos,outras frases: é como um nó dentro da rede. (FOUCAULT) A lúcida e profunda compreensão da realidade cultural de seu tempo vai levar Martín-Santos à busca de um caminho narrativo novo. Ele consegue perceber a fraqueza da palavra desgastada nos descaminhos do realismo social e toma a decisão, nem sempre fácil, do enfrentamento. Ele vai lutar pela renovação literária de seu momento porém vai fazê-lo, cuidando para não ignorar a força das tradições e raízes da cultura espanhola e, ao mesmo tempo, não se deixando ficar de costas para influências vindas de fora do país. Um dos focos mais fortes que Martín-Santos vai lançar sobre sua escritura diz respeito à utilização deste riquíssimo material contido na sua herança cultural. Neste capítulo abandonam-se as lentes da câmera usada para traçar o panorama amplo do tempo de T.S.e passa-se, simplesmente, a utilizar o olhar que agora se volta e se debruça para os aspectos de polifonia e intertextualidade, buscando mostrar como o autor, ao captar toda aquela força da opulência e da vastidão cultural encontrada em tantos outros textos, acaba por re-contextualizá-los, compondo uma obra original, inovadora e criativa. E mais, todo fausto e requinte deste banquete cultural de que Martín-Santos se serviu, e serve ao seu leitor, forma um contraponto agudo com a pobreza, a miséria e a fome da época da pós-guerra espanhola em que situa seu romance. Comer deste alimento é comungar uma visão de mundo. No festim de TS encontramos história, arte, política, poesia e, principalmente, a própria literatura. Entretanto, para partilhar desta mesa bem posta e farta, é preciso cautela e atenção. É necessário aproximar-se dela, não com o açodamento de um glutão, que 54 provavelmente não se deteria para melhor saborear o que ingere, nem com a selvageria de um canibal, talvez pouco preparado para os sofisticados sabores ali expostos, mas sim, acercar-se dela com a tranqüila serenidade do gourmet para, conscientemente, com requinte, deleitar-se. 55 2.1.DIALOGISMO E POLIFONIA EM TIEMPO DE SILENCIO No capítulo V de Questões de Literatura e Estética, Bakhtin define o romance como: “a expressão da consciência galileana da linguagem” (BAKHTIN, 2002, (1), p. 164), por ter este rejeitado o absolutismo de uma linguagem única e, por esta rejeição, implicar não só o reconhecimento da pluralidade de línguas, principalmente sociais, como também a libertação do poder de uma língua única como forma absoluta de pensamento. Para discutir melhor esta conceituação bakhtiniana, retrocedemos ao capítulo III daquela obra, O Plurilingüismo no Romance, onde Bakthin fazendo um estudo diacrônico do percurso de evolução do romance elege o romance humorístico como responsável pela introdução do plurilingüismo e pela sua utilização no texto. Estas distintas linguagens, de vários e diferentes grupos sociais, com suas perspectivas ideológico-verbais multiformes que foram introduzidas no romance, são apresentadas de forma impessoal por parte do autor porém alternando-as com seu discurso direto. Esse plurilingüismo social e a consciência da diversidade das linguagens do mundo e da sociedade compõem a temática do romance. Tais linguagens entram no romance como estilizações, como imagens do autor, do narrador ou dos personagens evidenciando a multidiscursividade da língua e a multitextualidade do discurso. Nas páginas do romance interagem línguas e discursos de grupos sociais variados e por isso essa discursividade variada será sua marca característica. Pode-se ainda dizer que a língua não é simplesmente o meio de que se vale o romancista para representar o mundo. Ela é também o mundo que ele representa. Bakhtin aponta para o fato de que as questões da interação verbal, do plurilingüismo, da variação lingüística acabam incidindo na natureza dialógica da linguagem. Todo discurso, sob essa perspectiva, é sempre intensamente dialógico. Bakthin reafirma que a língua é plural, que é um espaço onde convivem e dialogam incessantemente vozes distintas que representam diferentes pontos de vista, que elas são por vezes conflitivas, mas estão em constante interação. Segundo ele 56 o romance é uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e vozes individuais. (…) É graças a esse plurilingüismo social e ao crescimento em seu solo de vozes diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo o seu mundo semântico, figurativo e expressivo. (BAKHTIN, 2002, (1), p. 74). Martín-Santos orquestra seu discurso narrativo valendo-se de uma variada gama de linguagens que buscam contrapor-se, por vezes somar-se, formando uma arquitetura crítica do mundo refletido em seu romance. É importante destacar que, como parte da orquestração de Martín-Santos, está o relacionamento ideológico entre o autor de T.S. e seus personagens. Na base dessa relação Bakthin estabelece o critério para distinguir duas diferentes modalidades de romance: os monológicos e os polifônicos. Nos monológicos os personagens são sempre veículos de posições ideológicas para exprimir unicamente uma visão de mundo, uma ideologia dominante, a do próprio autor da obra. Na verdade, embora neste tipo de romance muitos personagens falem, todos eles exprimem a voz do narrador. Nos polifônicos, cada personagem funciona como um ser autônomo, exprimindo sua própria visão de mundo, não importando se ela coincide ou não com a ideologia do autor. A polifonia se instala na obra quando cada personagem fala com sua voz expressando seu pensamento particular. Polifonia, definida por Bakhtin, é “a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis” e acrescenta referindo-se especificamente a Dostoievski, que “seus personagens principais não são em realidade, apenas objetos do discurso do autor mas os próprios sujeitos desses discursos”. (BAKHTIN, 2002, (2), p. 04). Características bem próximas a essas que Bakhtin aponta no romance polifônico de Dostoievski podem ser encontradas no romance T.S. onde seu autor também faz seus personagens participarem da história, interagindo entre si, sem interferir nem controlar, ou calar suas vozes mas, ao contrário, permitindo que elas se cruzem, que participem na condução da trama através de suas falas e ações. Martín-Santos inclusive lhes dá voz própria através do uso do monólogo interior que permite ao leitor perceber os pontos de vista e a visão de mundo destes personagens que se desnudam ao elaborar suas reflexões no seu discurso íntimo e pessoal. 57 As figuras centrais da trama de T.S., Pedro, o protagonista, Cartucho, o violento cigano, Matias, o amigo de Pedro, Amador, o Amador/Cassandra, a velha dona da pensão, todos eles revelam suas personalidades e suas perspectivas de vida através de monólogos interiores que além de serem auto-reveladores, revelam ainda as visões que eles têm de Pedro, o personagem principal a quem o leitor passa a reconhecer também através do olhar dos outros. Tais olhares, tais perspectivas se entrecruzam criando aquela polifonia de vozes anunciada por Bakthin. Cabe aqui um peque no parêntesis explicativo sobre um aspecto estrutural de T.S. já que na continuação de nossa linha de análise da polifonia neste romance vamos utilizar o termo fragmento/fragmentos que, sem este esclarecimento, talvez não fique claro quanto a que nos estamos referindo. Como obra da modernidade, momento em que o homem vive suas angústias diante de um mundo fracionado, partido, Martín-Santos também constrói seu romance, não em capítulos, porém em pedaços, em fragmentos, sem títulos, apenas separados uns dos outros por um espaçamento maior tornados evidentes na impressão do texto. São 63 fragmentos. Embora Gonzalo Sobejano (1975), e Alfonso Rey (1980), dois nomes cujos trabalhos críticos do texto de Martín-Santos são de peso, apenas apontam 57 fragmentos para a obra. Contudo, nesta tese, como já havíamos apontado na introdução, utilizamos a 48ª edição, de 2001, na qual, talvez por não ter tido uma boa revisão, contabilizamos somente 60 fragmentos. Posteriormente ao compará-la com a 33ª edição, de 1990, que havía mos utilizado em nossa primeira leitura da obra, foram encontrados, claramente bem definidos, os 63 fragmentos a que aludimos. Isto posto, podemos retornar à linha anterior de pensamento e à colocação que faz Oscar Tacca de que “La riqueza del mundo noveloso parece fundada, en efecto, en una polifonia, en un coro, en una sabia “diacústica” que recoge su profundidad” (TACCA, 1989, p. 116) Esta visão pode ser bem aplicada a TS, uma vez que esta polifonia é ouvida neste romance e seu efeito sonoro é conseguido através do cuidadoso processo da sua narração. É possível perceber que Martín-Santos faz uma combinação de duas técnicas narrativas: o monólogo interior direto e indireto somado a uma narração em terceira pessoa feita por um narrador omnisciente. 58 O monólogo interior direto “é aquele apresentado quase sem interferência do autor e sem se presumir uma platéia” (HUMPHREY, 1976, p. 23). Este tipo de monólogo é apresentado como se fosse completamente sincero, saído diretamente das reflexões do personagem e com ele criando a ilusão de que ele não tem um destinatário, um leitor. O monólogo final de Pedro, no fragmento 63 (p.278), por exemplo, e o da velha dona da pensão, nos fragmentos 4 (p. 20) e 17 (p.93). Se constituem em bons exemplos desse modelo. TS inicia-se com uma narração em primeira pessoa, também sob a forma de um monólogo interior direto. Através de seu discurso, o personagem desse monólogo, Pedro, apresenta todas as situações e circunstâncias da vida espanhola, do momento presente. Ao final de seu monólogo, vê-se um ser humano real, situado em uma circunstância também muito real, a partir da qual a trama vai-se desenrolar. Entretanto, do fragmento 2 em diante, parece haver um desequilíbrio proposital na narrativa, para dificultar ao leitor a identificação da voz narradora. Será Pedro, que segue narrando, ou já é outra voz que se anuncia? Esse clima de suspense prossegue até o fragmento 3, bem pequeno, que funciona como se fosse um episódio de transição para o fragmento seguinte. O que não se deve deixar de apontar também é que o monólogo interior supõe uma confissão direta do personagem e caracteriza um mimetismo do autor, como se essa atitude de abstenção, de distanciamento, evidenciasse que o romancista deseja deixar seus personagens falarem por si mesmos. É o momento em que lhes dá voz e, ao fazê-lo, põe em ação o princípio dialógico considerado por Bakhtin como a condição do sentido do discurso. A voz de Pedro, principal personagem, tem três momentos fortes de narração no romance. São três monólogos interiores marcantes. Seu primeiro momento é naquele monólogo introdutório de que falávamos, onde surge “el concepto del otro” (SPIRES, 1975, p. 93); o segundo momento é o da sua prisão, onde ele vai revelar a criação de um ‘tu’ íntimo e um ‘eu’ mais maduro, como por exemplo, quando ele diz: “Tú la mataste (…) ¿Por qué dices tú? Tú la mataste. Estaba muerta. Yo no la mate.” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 210); e o terceiro momento, seu monólogo final, que revela seu total amadurecimento e um domínio completo de seu monólogo interior direto através de um ‘eu’ totalmente maduro e auto-centrado. Vemos nestes exemplos que o discurso introspectivo de Pedro impressiona pela extrema dialogação interior, tal qual o discurso monológico de Raskólnikov de 59 que nos fala Bakthin, e “pelo vivo apelo pessoal para tudo sobre o que pensa e fala” (BAKHTIN, 2002, (2), p. 241). Como Raskólnikov, Pedro também não pensa nos fatos, conversa com eles. “É assim que ele se dirige a si mesmo (tratando-se freqüentemente por ‘tu’ como se ele se dirigisse a outro), persuade a si, excita-se, denuncia-se, zomba de si mesmo”. (BAKHTIN, 2002, (2), p. 241). Nesta situação onde aparece a relação eu/tu o conceito de dialogismo pode ser entendido pelo deslocamento do conceito de sujeito. Este perde o papel de centro e é substituído por diferentes, ainda que duas, vozes que fazem dele um sujeito histórico e ideológico a um só tempo. Assim, o dialogismo aparece concebido como espaço de interação entre o ‘eu’ e o ‘tu’, entre o ‘eu’ e o ‘outro’. O sujeito deixa de ser o centro da interlocução que passa a estar não mais no ‘eu’ nem no ‘tu’ mas no espaço criado entre ambos, isto é, no próprio texto. Descentrado o sujeito se divide, se fraciona e torna-se um efeito da linguagem. Aquele monólogo final de Pedro a que nos referimos antes apresenta-se dividido em duas partes. Uma breve, de apenas uma página, e outra mais longa, de sete páginas. A consciência amarga de sua derrota surge neste monólogo final e por isso reaparecem temas do monólogo inicial. Estes surgem através de umas disparatadas associações de idéias, pois Pedro olha as jóias de uma mulher no trem, em que está partindo de Madri, pensa nas jóias da coroa e a palavra coroa o leva à coroa de louros do Prêmio Nobel, idéia que havia aparecido em seu monólogo inicial. Essa união de monólogo final com o inicial é outra forma do narrador reenfatizar a circularidade da narrativa, que assim se fecha, se consolida na sua impossibilidade de abertura ou de mudança. O texto brinca e joga com as palavras ‘princípio’ e ‘fim’; ‘início’ e ‘começo’; ‘acabar’ e ‘começar’. “ ¿Quién sería el Príncipe Pio? Príncipe, príncipe, principio, principio del fin, (…) ya estoy en el principio, ya acabo, he acabado, y me voy. Voy a principiar otra cosa. No puedo acabar lo que había principiado… (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 278). Este ponto da narrativa deve ser enfatizado uma vez que o personagem, neste momento de seu discurso, fecha a circularidade de seu percurso. Ele chegou a Madri por Príncipe Pio, nome atual da antiga Estação do Norte, e após todas as suas peripécias fracassadas na cidade ele a está deixando, partindo pela mesma estação em que havia chegado. Fechou-se para ele o círculo vicioso de um caminho que não 60 pôde levar a lugar nenhum senão a um retorno ao ponto de partida, porque as condições opressoras de vida nesse tempo e nesse espaço não apontam para nenhuma perspectiva de realização de projeto, de futuro, e sim para o inexorável fracasso. Nesse aspecto da narrativa é preciso também salientar a ciranda humana que Martín-Santos consegue formar ao colocar quatro personagens: Cartucho, Amador, Matias e Similiano caminhando pelas ruas de Madri, em direção ao bordel de D. Luísa, quando cada um deles desenvolve durante a caminhada seu próprio monólogo. São quatro vozes, de quatro seres humanos completamente distintos, que se expressam utilizando vocabulários completamente diferentes, revelando seus diferentes objetivos, desejos e limitações. Martín-Santos revela também que a maneira como fala o personagem é uma forma de auto-revelação. Esse fragmento 40 é uma construção engenhosa em que o narrador adota uma posição ambígua. Ele deixa ver sua presença ao analisar e organizar a procissão que ele formou com esses personagens para, em seguida, desaparecer deixando-os totalmente entregues a seus pensamentos e falando por si mesmos. É preciso o leitor descobrir a entonação, a voz e a sintaxe peculiar de cada personagem para que sua fala o revele com precisão. Cartucho e Matias, por exemplo, são discursos opostos, um rude e tosco e o outro culto e sofisticado. Expressam-se de maneira antagônica e, evidenciam o refinamento do narrador ao caracterizá -los a partir de seus discursos. Este processo de ruptura de um grande monólogo em muitos monólogos diferentes constitui-se em um verdadeiro monólogo interior polifônico, e se estende pelo fragmento seguinte. Assim a unidade 41 que inicia-se na página 188 e se estende até a 194 fragmenta-se como fragmentam-se os pensamentos na cabeça desses quatro personagens. São mini-monólogos justapondo-se, interrompendo-se constantemente uns aos outros, o que demanda uma atenção constante do leitor para não se perder no emaranhado dessas vozes e, ao reconhecê-las, perceber claramente onde termina o discurso de um e começa o do outro. É uma ambiciosa construção polifônica a quatro vozes. Este exemplo acima também exemplifica bem o engenhoso processo de narração de T.S. Há no romance uma voz narradora que lidera o desenrolar dos fios de sua trama, entretanto esta voz algumas vezes se ausenta e deixa o fluxo de 61 pensamentos do seu personagem, ou como no exemplo citado, personagens, assumir o tom mais alto na polifonia. Essa saída de cena do narrador onisciente, optando por uma posição mais distanciada, é importante porque permite que o narrador vacile entre sua onisciência e sua falibilidade o que leva a uma perda de sua voz totalmente autoritária e deixa seu leitor, como seus personagens, formar sua própria opinião. Já no fragmento 9, o texto que se inicia “¿Qué se habrá creído? Que yo me iba a amolar y cargar con el crío ” (MARTÍN–SANTOS, 2001, p. 52), a voz que sobressai é a de Cartucho que provém de um monólogo interior onde sua linguagem grosseira e vulgar, de frases curtas, típicas de suas possibilidades intelectuais, vem somar-se ao panorama de informações sobre as circunstâncias da trama e sobre o próprio personagem que são passadas ao leitor. Luis Martín-Santos, numa atitude econômica, reflexo dos tempos de escassez em que estão vivendo, (Madri, outono de 1949) seus personagens, não coloca personagens supérfluos em seu romance: todos têm um papel na trama. Esta economia reflete ainda um paradoxo: faz um contraponto quando confrontada aos excessos de sua prolixidade lingüística. Entretanto, o que importa é salientar que seus personagens não são simples tipos representa ntes de determinadas classes sociais. Não se percebe mais neles a ideologização do operariado nem o tratamento paternalista para com os personagens das camadas mais baixas da sociedade, como freqüentemente ocorria na narrativa realista dos anos cinqüenta. Criar personagens parece ser um dos aspectos mais complexos no processo de elaboração de uma obra literária, especialmente se eles têm aquelas qualidades que os tornam participantes, vivos e reais, “personajes que no son meros voyeurs”, (BENEDETTI, 1968, p. 222), como disse Benedetti em seu ensaio sobre TS. Essas características dos personagens, características apontadas por Benedetti, muito se devem, sem dúvida alguma, a maestria com que sua linguagem é tratada pois a ampla variedade de tons com que essas vozes se fazem ouvir estão assentadas sobre a fala dos seus diversos estratos sociais. A personalíssima mistura dessas linguagens que vão, desde a culta e científica até a coloquial e informal que Martín-Santos consegue compor, corrobora na criação de uma construção polifônica onde se destaca a força dessa linguagem resultante, ou seja, linguagem produto do somatório de todas as linguagens utilizadas. 62 Sanz Villanueva tece um comentário bastante curioso e pertinente em relação aos personagens de TS. Diz ele que, em geral, Martín-Santos parece não prestar muita atenção aos personagens e lembra o caso do esquecimento ou da troca de nomes do personagem Ricarda que o autor chama também, Encarna. Alguns críticos viram nisso um ato proposital de Martín-Santos, uma espécie de aproximação a Cervantes com que Sanz parece discordar (SANZ VILLANUEVA, 1986, p. 851). Contudo, o que ele também enfatiza é que, a despeito desta pouca atenção e dos poucos traços particulares com que o autor apresenta seus personagens, temse a impressão de que ele se concentra, exclusivamente, em Pedro, o seu protagonista. Mas, “sin embargo”, acrescenta Sanz, “cada uno de los personajes está muy bien individualizado, sin que por ello deje de resultar compatible con el carácter integrante de un grupo social”. (SANZ VILLANUEVA, 1986, p. 851). Na verdade, Martín-Santos individualizou seus personagens de forma precisa,em que pese a rapidez de suas pinceladas descritivas sobre eles. Não seria o acúmulo de dados e informações que lhes ressaltariam as características pois estas revelam-se de dentro para fora, através da maneira como articulam seus constructos de personalidades, comprovados por suas ações e fundamentalmente por suas palavras e seus discursos e mais, pelas distintas maneiras com que são percebidos uns pelos outros. A maneira como cada personagem é captado pelos outros é uma forma de mostrá-los, pela técnica do espelhamento e ao oferecer possibilidades de distintas perspectivas, mostrar o personagem como ele, realmente, é. Assim, muito do que se apreende sobre Pedro advém da maneira com que Amador o percebe: um cego, um inexperiente, “ese pobre d. Pedro, ese pobre d. Pedro”(MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 185); de como a avó de Dorita o analisa: um tonto, um angelito, um cientista meio desligado, um cavalheiro, “um muchacho hecho un perdido, como si fuera un perdido (…) pero un infeliz (…) distraído como intelectual o investigador o porras que es. No acaba de ver nunca claro” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 93). Assim, esta visão do outro complementa, ajusta, fecha o sentido que o leitor passa a ter do personagem. Também cada personagem percebe seu próprio sentido de que, no fundo, cada um deles possui uma firmeza própria, uma autodeterminação e uma autonomia para o exercício de seus papéis na trama. Traço fundamental da caracterização do romance polifônico. 63 A completa ausência de laços familiares de Pedro, de qualquer indício sobre sua origem e sua infância passa a idéia de um ser gerado artificialmente, como as cobaias cancerígenas que ele utiliza em suas pesquisas, constituindo-se, portanto, ele também, em um experimento para ser usado por seu criador. Todavia a força deste protagonista, tão bem construída por Martín-Santos, lhe permite preservar sua individualidade sem se transformar em marionete ou alter ego do narrador. A ausência de quaisquer vínculos familiares é mais um de seus traços que lhe dá a possibilidade de ser qualquer um, ou melhor, qualquer um – qualquer espanhol na sua circunstância – pode ser um Pedro. Que dos demais personagens também pouco sabemos de seus traços físicos, de sua história pregressa, e até de seus nomes completos, é verdade. Entretanto, apesar desses vagos contornos, eles têm uma atuação precisa, clara e eficiente como é, o caso de dona Luísa, a proprietária do bordel. Este exemplo pode ser transferido para Dorita, para Matias, para Amador, para Ricarda ou para Muecas, único de quem sabemos, ironicamente, o nome completo, ou para a dona da pensão, sobre quem sabemos, com bastante precisão, informações acerca de seu passado, de sua situação financeira atual, de seus desejos, mas de quem ignoramos nome e sobrenome. É preciso ressaltar que a complexidade destes personagens reside em suas posturas individualizadas e na sua função social. Deve -se acrescentar, ainda, que, em relação ao protagonista, Pedro, Martín-Santos não teve a preocupação de apresentá -lo em um esquema idealizado. Ele o colocou no mesmo nível dos demais personagens – nenhuma idealização. Não se está diante de um pesquisador honesto, vítima de uma situação injusta, e sim, diante de um ser humano, bem humano, inclusive, possuidor de uma certa inveja, por não pertencer a uma classe superior, o que o torna ainda mais real. Aos personagens lhes é oferecido bastante espaço para circular. Matias perambula por aí, sai em peregrinação para buscar ajuda para Pedro, quando este está na prisão, acompanha Pedro ao bordel de dona Luísa, para escondê-lo. Pedro “ante todo no para de moverse, va de un sitio a otro”( SANZ VILLANUEVA, 1986, p. 852), o que o torna o elo entre todos os espaços e classes sociais, já que transita por todos eles. Cinco seriam os grupos sociais marcados em TS: 64 • o do marginal social, representado por Cartucho; • o do lumpemproletariado, cujo personagem emblemático é Muecas; • o do povo simples, a classe mais popular, representado por Amador; • o da pequena burguesia, representado pela dona da pensão; • o da alta burguesia, representado por Matias. Toda esta pequena galeria de personagens é apresentada em seus diferentes momentos e modos de vida, bastante feridos pela ausência de coesão social e espiritual da época, pelo estado de alienação coletiva que dominou o homem que teve que viver nessa pós-guerra tão dolorosa, semeada de devastação, sofrimento e desunião. Perambulando, indo de um espaço a outro, Pedro se liga a todas as diferentes camadas sociais que além de estratificadas, lutam entre si e sofrem uma exploração de cima para baixo. A atuação de Pedro revela sua pusilanimidade, pois deixa-se levar pelos que o rodeiam. Vai às chabolas, conduzido por Amador; retorna às mesmas chabolas atendendo a um pedido de Muecas; é levado aos cafés e tabernas para a noite de bebedeira por seu amigo Matias; deixa-se atrair pela teia das mulheres da pensão que “ya para él no era pensión. Se había convertido en una família protetora y oprimiente” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 40); deixa-se levar também por Matias que o faz esconder-se da polícia no bordel dona Luísa; aceita o desligamento do Instituto de Pesquisas sem nenhuma reação e aceita, com uma certa passividade, ir para o interior. O incrível no caráter de Pedro é sua dualidade. Por um lado, há nele essa pusilanimidade, essa fraqueza de espírito e por outro, uma lucidez incríve l. Ele é o que pensa, pensa, reflete, “el reflexionante” (MARTÍN-SNTOS, 2001, p. 11), racionaliza e percebe sua extrema falta de liberdade. Com esta atitude Pedro, homem mais de palavras que de ação, se transforma em um Hamlet contemporâneo. 65 Alfonso Rey assinala (REY, 1980, p. 58) a proximidade existente entre Pedro e os heróis existencialistas, da mesma maneira que Gemma Roberts a aponta, quando analisa o seu fracasso (ROBERTS, 1973, p. 154). Muito clara também, como fruto da devoção de Martín-Santos a Cervantes, é a sua relação com Amador baseada num elo tipo Quixote/Sancho, um idealista e outro prático, um protagonista e o outro ajudante. Essa dualidade se perde no final do romance, pois o quixotesco Pedro se vê ‘sanchotizado’, pois além da perda da posição de liderança, já não tem mais a quem liderar, começa a ver o lado mais prático das coisas a sua frente, e vai rebaixar seus ideais ao aceitar diagnosticar coisas banais como médico de interior e também, caçar e comer perdizes e rãs, já que seus sonhos e quimeras de Quixote desapareceram. Só lhe resta esta ‘mediocrização’ para assumir e viver. Como personagem-eixo da narrativa, Pedro, através de sua trajetória e de sua odisséia, desenrola o fio condutor do romance. A voz narradora do romance encontra na de Pedro um interlocutor para seu diálogo com a história e a cultura espanholas. De sua alienação inicial Pedro parte em busca do encontro de si mesmo. Essa postura egocêntrica, voltada unicamente para seus interesses, leva-o a sua auto destruição, porém acaba sendo salvo da completa destruição, porque consegue resgatar sua lucidez. Nele coexiste uma rica variedade de matizes de personalidade. Ele mesmo se auto-definia como pacífico, “soy pacífico” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 46), mas, na verdade, era mais submisso que pacífico e por isso, não resistiu às artimanhas das mulheres da pensão. Sua incapacidade de “ver claro” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 96) o tornou uma presa fácil da vida. Esperanza Saludes afirma que “según la teoría marxista, la alienación se produce en el hombre cuando los propios actos de éste se convierten en un poder ajeno que actúa sobre él y en contra de él, en lugar de ser escogido por él.” (SALUDES, 1981, p. 52). A partir desta perspectiva vai-se compreender bem claramente como os demais personagens acabam por converter-se em pequenos deuses, neste mundo de “dioses y pájaros” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 168) que vão predeterminar seu caminho, transformando-o em um herói fadado, tentando evitar “lo inevitable” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 182). Pedro, qual Édipo cego, incapaz de ver sua própria realidade, prossegue dando mostras de seus sinais edipianos, na sua desestruturada carência materna, 66 evidenciada na maneira com que se fixa tão fortemente à imagem da mãe de seu amigo Matias, a quem ele “miraba fascinado – olvidado de que su hijo estaba alli” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 154). Sua passagem pela prisão leva-o a vivenciar um tempo fora do tempo, um tempo de espera, de silêncio, de imobilidade, como o tempo da própria Espanha, de então, mas tempo de experimentar, de sentir, de saber e de buscar vencer seu medo e de aceitar-se.No espaço mínimo da cela, só consigo, ali onde não falta luz ele pode tentar aclarar a compreensão de si mesmo. No pasa nada.Sólo un tiempo. Un tiempo que queda fuera de mi vida, entre paréntesis. Fuera de mi vida tonta. Un tiempo en que, de verdad, viviré más. Ahora vivo más. La vida de fuera está suspendida com todas sus cosas tontas. Han quedado fuera. La vida desnuda. El tiempo, sólo el tiempo llena este vacío…(MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 213) Infelizmente, os acontecimentos que se seguem a sua libertação, morte de Dorita e sua perda do posto de pesquisador, acabam por desumanizá -lo. A alienação social o levou a uma espécie de aniquilação. Ele está impotente diante da férrea e inflexível realidade. Distancia-se de sua responsabilidade, enquanto ser social, e adota uma postura de indiferença a ponto de repetir como São Lourenço: “dame la vuelta, que por este lado ya estoy tostado” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 286). Através de seu personagem Martín-Santos está impugnando a sociedade que o produziu. Ouve-se, claramente, o eco da censura a essa ética cruel que provoca a insolidariedade humana, a crise das relações interpessoais e o esmagamento de toda possibilidade de uma vida de plena realização humana. Resta apontar uma última observação para que não se fique com a dor do esmagamento absoluto. Pedro, diante da consciência que adquiriu, um pouco mais fortalecido pelo processo que viveu em sua dura mas rica experiência de vida, percebe-se aceitando lenta e dolorosamente a realidade de seu destino, para tentar não ser totalmente vencido por seu fracasso e admitindo que “allí la sierra azul acercándose, esperando la perforación del tren, la sierra como si guardase un secreto. Allí está, es mejor que nada. Hay una esperanza“ (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 285), esperança que, embora tênue, porque neste tempo que lhe coube viver só lhe resta a opção do 67 silêncio e da conformação, está ali. Embora pequena, disfarçada e sutil, é esta esperança que lhe faz perceber que esse é um tempo de espera, talvez de um novo tempo. É na força de sua linguagem que residem aspectos profundamente renovadores e onde se sobressai a técnica narrativa de Martín-Santos. Sua expressividade transparece, quando utilizada para transpor a fala ou pensamento, através de monólogos interiores, tanto de um personagem como Cartucho, que utiliza frases curtas, vocabulário popular, gíria,linguagem agressiva e vulgar, como “¡Hale! ¡Chívate, si puedes! (…) ¿crees que me va dar canguelo? Tú si que vas a tener la frusa” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 143), quanto de Matias ou do erudito e onisciente narrador que veicula opiniões e sentimentos dos personagens desde os de mais elevado nível educacional, como Pedro ou Matias, quando então ele utiliza a norma culta, o vocabulário erudito, rebuscado, científico, e até o jargão médico, por exemplo: “…suprarrenales y Hiato de Winslow” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 29) até os de mais baixo estrato sócio cultural como Amador e Muecas. 68 2.2. TIEMPO DE SILENCIO: ROMANCE DA MODERNIDADE TARDIA O artista da modernidade é aquele que devido a sua condição tardia, de ser o que vem depois, mais tarde que os outros, vai viver o grande problema da saturação de seu espaço cultural. Ele vai também constatar a fragmentação do mundo, o excesso de material cultural e a dificuldade de criar em um espaço já saturado onde parece que tudo já foi dito e feito. Não existe mais para ele o espaço virgem, a tabula rasa onde erguer sua obra livre de influências ou contrastes com outras obras. Já no século XVII, em um poema de Sóror Juana Inés de la Cruz, encontra-se esse questionamento: Ó siglo desdichado y desvalido En que todo lo hallamos ya servido, Pues que no hay voz, equívoco ni frase Que por común pase Y digan los censores: ¿Eso? ¡Ya lo pensaron los mayores! (CRUZ, 1988, p. 321), no qual perpassa o sentimento da angústia diante do acúmulo dos fragmentos heterogêneos que atravancam o presente. Eles são heranças que vêm do passado, constituindo-se naqueles excessos que tornam difícil o trabalho do artista criador. Produzir novidade, autenticidade no espaço saturado, eis o seu grande desafio. Bakhtin reitera que os discursos se encontram nos discursos de outrem e que somente o Adão mítico “que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente ele podia realmente evitar por completo essa mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto”. (BAKHTIN, 2002, (1), p. 88). Será preciso que o artista reconheça nesta saturação, não o excesso que atrapalha, tolhe ou impede sua criação mas, sim, a riqueza do material de que dispõe para poder reciclar, recuperar, re-apropriar-se e recriar produzindo uma obra original. Essa obra, fatalmente, será secundária, já que não existe matéria pura para ser trabalhada, inexiste matéria com grau zero de pureza, porque afinal somos todos palavras – palavras que um dia lemos, vimos ou ouvimos. 69 Ao necessitar da linguagem, o literário passa a ser uma criação secundária, onde a literatura é sempre retomada de enunciados que circulam em determinada sociedade. Bakhtin afirma que “no fluxo de nossa consciência, a palavra persuasiva interior é comumente metade nossa, metade de outrem”. (BAKHTIN, 2002, (1) p. 145). Assim, dentro desta enunciação secundária que caracteriza o literário, onde o artista, no seu afã de produzir com originalidade, faz uso de sua tradição cultural, incorporando-a, modificando-a ou rompendo radicalmente com ela, encontra-se Martín-Santos trabalhando em TS com conceitos, idéias e palavras que lhe são anteriores, acrescentando alusões, citações e referências a outras obras literárias, estabelecendo diálogos com Celestina, Teresa de Ávila, Cervantes, Quevedo, Tirso de Molina, Ortega y Gasset, escritores da geração de 98, Goya e todo um universo cultural e mitológico que vai compor um suporte estético para sua obra. Este aspecto de TS caracteriza -o como um produto cultural secundário típico da modernidade tardia. Abordar seus aspectos de intertextualidade, um dos conceitos fundamentais do discurso literário contemporâneo, será o objetivo desta parte da tese, onde se trabalhará a noção de texto literário como intersecção de discursos, concebendo-o como uma tessitura, uma trama de distintos textos reurdida e re-textualizada por Martín-Santos em sua composição. Michael Ugarte comenta no seu livro Trilogy of Treason que, em um dos seus primeiros trabalhos, Júlia Kristeva definia texto como: un appareil translinguistique qui redistribue l’ordre de la langue (…). Le text est donc une PRODUCTIVITÉ, ce qui veut dire: (1) son rapport à la langue dans laquelle il se situe est redistributif, par conséquent il est abordable à travers des catégories logiques et mathématiques plutôt que purement linguistique; (2) il est une permutation de textes, une intertextualité: dans l’espace d’un text plusieurs énoncés, pris a d’autres textes, se croisent et se 10 neutralisent” (KRISTEVA , 1969, p. 29) Este conceito de texto já contém o embrião da intertextualidade, que também estava presente nos textos de Bakhtin, quando ele apontava que, além da utilização 10 […] um aparelho translingüístico que redistribui a ordem da língua (…) O texto é então uma PRODUTIVIDADE, o que significa: (1) sua ligação com a língua na qual ele se situa é redistributiva, conseqüentemente ele pode ser mais abordável através de categorias lógicas e matemáticas que puramente lingüísticas; (2) ele é uma permutação de textos, uma intertextualidade: no espaço de um texto, vários enunciados, tomados de outros textos, se cruzam e se neutralizam. (Trad. da autora) 70 de gêneros intercalados no romance, há também a “introdução no romance de toda sorte de sentenças ou aforismos” (BAKHTIN, 2002, (1), p. 125), que tanto podem ser do próprio autor quanto de outro. Isto ele denomina de plurilingüismo. Introduzido no romance, quaisquer que sejam as formas de sua introdução é o discurso de outrem, na linguagem de outrem que serve para refratar a expressão das intenções do autor. A palavra deste discurso é uma palavra bivocal. (…) O discurso bivocal sempre é dialogizado. Assim é o discurso humorístico, irônico, paródico, (…) todos são bivocais e internamente dialogizados. Neles se encontram um diálogo potencial, um diálogo concentrado de duas vozes, de duas visões de mundo“ (BAKHTIN, 2002, (1)p. 127). O conceito inicial de intertextualidade será aprofundado e Kristeva, posteriormente, vai retomá-lo. Ela explicita o sentido do termo como mediação entre o texto e o mundo, entre vida e literatura. Para Kristeva esta nova forma de perceber a intertextualidade, com todas as suas manifestações, é um princípio que representa uma nova maneira de perceber o mundo e a literatura, o que vai levar Michael Ugarte a entender a “intertextuality as a concept of literary theory” 11 (UGARTE, 1982, p. 34). Gerald Prince, na introdução do livro, Palimpsests – Literature in the Second Degree, de Gérard Genette, outro teórico que estudou as questões ligadas à intertextualidade, coloca de forma bastante clara que para Genette o objetivo da poética não é o texto (literário), mas sua transcendência textual, “its textual links with others texts” e que um aspecto fundamental dessa transcendência diz respeito à “palimpsestuous nature of texts” (PRINCE apud GENETTE, 1997, p. viii)12. Prince lembra ainda que o adjetivo palimpsestuous não é um termo inventado por Genette; ele foi cunhado por Philippe Lejeune. O próprio Genette recorda que, ao iniciar este tipo de estudos, ele usou o termo paratextuality por falta de um outro melhor, mas que depois preferiu abandoná -lo. Na verdade, ele não o abandonou de fato. Ele apenas passou a usá-lo para referir-se ao seu segundo tipo de relação transtextual, como se verá a seguir. Ele optou pelo uso do termo transtextuality, para abranger de forma ampla todo um 11 12 […]intertextualidade como um conceito de teoria literária. (Tradução da autora). […] sua ligação textual com outros textos (…) natureza palimpséstica do texto. (Trad. da autora) 71 conjunto de textos em inter-relação, não importando se eles estão claramente visíveis ou escondidos, em outros textos. (GENETTE, 1997, p. 04). Genette deteve-se para estudar estes aspectos do fenômeno literário por volta dos anos oitenta e acabou por estabelecer cinco tipos de relações transtextuais: • o primeiro tipo, que ele mesmo reconhece, foi aquele: “explored some years ago by Kristeva, under the name of intertextuality” e que ele define “as a relationship of co-presence between two texts or among several texts: the actual presence of one text within another.” 13 (GENETTE, 1997, p. 02). • o segundo tipo: “is generally less explicit and more distant relationship that binds the text (…) what can be called its paratext 14”. (GENETTE, 1997, p. 02). E como paratexto Genette refere-se a títulos, subtítulos, intertítulos; prefácios, posfácios, introduções, observações, notas marginais ou rodapés; epígrafe, ilustrações, capas e contracapas dos livros ou ainda outros tipos de sinais secundários. Este termo é aquele mesmo que ele usava quando iniciou os estudos de transtextualidade. • o terceiro tipo ele denominou de metatextuality que “is a relationship most often labeled “commentary15”. (GENETTE, 1997, p. 04). Este recurso é o que vai unir um texto ao outro sem citá-lo diretamente e, algumas vezes, até mesmo sem mencioná-lo, sendo portanto a relação crítica por excelência. • o quarto tipo foi por Genette denominado hypertextuality e implica “any relationship uniting a text B (which I shall call hypertext) to an earlier text A (I shall, of course, call it the hypotext) upon which it is grafted in a manner that is not that of commentary • 16 ”. (Genette, 1997, p. 05). e, finalmente, há um quinto tipo “the most abstract and most implicit of all, is “architextuality” e “involves a relationship that is completely silent articulated 13 […] explorado por Kristeva há alguns anos passados sob o nome de intertextualidade (…) como uma relação de co-presença entre dois textos ou entre vários textos: a presença real de um texto dentro de outro. (Trad. da autora). 14 […] é geralmente uma relação menos explícita e mais distante que une o texto (…) que pode ser chamado de seu paratexto. (Trad. da autora). 15 […] é uma relação freqüentemente rotulada de “comentário”. (Trad. da autora). 16 […] qualquer relação que unindo um texto B (que eu chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que eu, claro, chamarei de hipotexto) ao qual ele é enxertado de um modo que não é aquele do comentário. (Trad. da autora). 72 at most only by a paratextual mention. 17” (GENETTE, 1997, p.05), e quando ela não é verbalizada, ou pode ser devido a uma recusa de salientar o óbvio, ou a uma intenção de rejeitar ou evitar qualquer tipo de classificação. Assim, a abordagem que este capítulo vai fazer é de caráter interno, considerando-se tanto o texto em si, quanto ele como produtor de efeitos de remissão ao mundo e aos outros textos. Embora o termo original intertextualidade tenha sido rebatizado por Genette de transtextualidade e o termo inicial tenha sido por ele reduzido a sua primeira categoria, que implica aquela relação de co-presença entre dois ou mais textos, ele será utilizado nesta tese por ser originariamente o termo que tornou o conceito conhecido e, até hoje, inclusive, é utilizado por professores e alunos de Letras e o próprio Genette, na sua obra Palimpsests Literature in the Second Degree, com mais precisão e amplitude, o define: as a relationship of the copresence between two texts or among several texts: that is to say, as the actual presence of one text within another. In its most explicit and literal form, it is the tradicional practice of “quotation”. In another less explicit and canonical form, it is the practice of “plagiarism”, which is an undeclared but still literal borrowing. Again in still less explicit and less literal guise, it is the practice of “allusion”; that is an enunciation whose full meaning presupposes the perception of relantionship between it and another text, to which it necessarily refers by some inflections that 18 otherwise remain unintelligible. (GENETTE, 1997, p. 02) Em seu livro A Poética do Pós-Modernismo, Linda Hutcheon elabora uma conceituação em que a intertextualidade poderia ser compreendica como a própria condição da textualidade. É como se a ficção se debrussasse sobre si mesma,revelando uma característica de introversão, mas o fizesse de forma consciente, deslocando-se em direção ao próprio ato de escrever (p. 67), direção para a qual T.S. aponta claramente. 17 […] a mais abstrata e implícita delas todas (…) envolve uma relação que é completamente silenciosa, articulada quando muito somente por uma menção paratextual. (Tradução da autora) 18 […] como uma relação de co-presença entre dois textos ou entre vários textos: quer dizer, como uma presença real de um texto dentro de outro. Na sua forma mais explícita e literal ele é a prática tradicional da “citação”. Em uma outra forma menos explícita e canônica é a prática do “plágio”,que é um empréstimo não declarado mas literal. Mais uma vez de um modo ainda menos explícito e menos literal, é a prática da alusão, que é uma enunciação cujo significado pleno pressupõe a percepção da relação entre ele e um outro texto, ao qual ele necessariamente se refere por algumas inflexões (matizes, nuances) que de outro modo permaneceriam ininteligíveis. (Tradução da autora) 73 2.3. PRIMEIRO PERCURSO PELA TRADIÇÃO CULTURAL ESPANHOLA Na epígrafe inicial deste capítulo fizemos uma citação de Michel Foucault bem apropriada para esclarecer o porquê da busca de interrelações no texto de Luis Martín-Santos, uma vez que TS é um romance cujo significado literário depende, em grande parte, da percepção de seu vasto espaço referencial. Ele é um produto secundário bem marcado e de suas primeiras linhas até seu ponto final ele está preso a um sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases, outros temas. T.S. é, verdadeiramente , um nó dentro de uma rede de inte rrelações textuais. Esta dependência do entendimento dos intertextos de TS para sua melhor compreensão deve-se ao fato de que há uma íntima conexão entre as intenções de seu autor e as apropriações e transformações de outros textos de que ele se utiliza em sua obra. De início é preciso salientar que Martín-Santos, valendo-se de um procedimento metafórico, coloca seu protagonista Pedro, jovem médico pesquisador, para descobrir se as cepas cancerígenas das cobaias de seu laboratório são transmitidas a outras cobaias através de um processo predominantemente genético, de hereditariedade genética, ou se a influência maior nessa transmissão deve-se aos fatores predominantemente ambientais, fenotípicos, portanto. As cepas das cobaias cancerígenas identificam-se, metaforicamente, com o povo espanhol e com a própria Espanha. O câncer, que os ratos/homens trazem em si, passa a simbolizar a doença social e moral que corrói sua sociedade. O narrador de TS, a partir da situação de primeiro plano estabelecida na trama do pesquisador e suas cobaias de laboratório, passa ainda dando prosseguimento à metafóra, num segundo plano, a investigar as causas da enfermidade do Estado, espanhol. Assim, visa comprovar se elas são de origem genética e, portanto, congênitas – lembrando aqui as falhas apontadas no mito racial, de uma possível má formação genética e também, em uma possível intertextualidade com as posições de escritores da geração de 98 – herdadas do sangue e da raça dos antepassados, da sua história, da sua tradição, ou, se elas são de origem ambiental, e portanto, decorrentes de sua estrutura econômica, política e social. 74 Para conseguir seu objetivo, o narrador vai fazendo uma cirurgia exploratória do organismo doente, mostrando os variados tecidos sociais, deteriorados e apodrecidos pela ação do câncer, presente neste corpo social. Nenhuma camada dessa sociedade escapa ao bisturi afiado, preciso e crítico do autor que faz Pedro percorrer as diferentes esferas sociais, numa seqüência de situações encadeadas que vão, por um lado, abrir ao leitor todo um amplo painel de vida sórdida, promíscua, econômica e moralmente decadente da sociedade espanhola de então e, por outro lado, tentar, ambiciosamente, analisar todas as possíveis causas do mal percorrendo a história e a tradição literária e cultural da Espanha . Dessa forma, compõe um texto, construído com uma grande quantidade de citações, alusões e referências a outros textos. Processo interdiscursivo a alusão ocorre quando se incorporam temas e/ou figuras de um discurso que vai servir de contexto, unidade maior, para o que foi incorporado. A alusão é a forma menos literal e menos explícita se comparada à citação, que é forma intertextual mais literal e conseqüentemente mais explícita, e ao plágio que é literal mas não admitido. A alusão à Cava Florinda é feita textualmente no discurso final de Pedro: “El pecado de La Cava hubo tambiém de ser pagado” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.277) e vem, sintomaticamente, precedido de uma referência bíblica, da parábola do devedor cruel, do Evangelho de São Mateus, cap. 18, v. 22, que é a resposta da pergunta de São Pedro a Jesus sobre: quantas vezes deveria perdoar o irmão que havia pecado contra ele, se até sete vezes “. A resposta de Jesus seria essa do narrador de T.S.:– No siete sino setenta veces siete”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 277). Uma das tradições literárias mais antigas da cultura espanhola remonta à fatal atração física que uniu o rei visigodo Rodrigo e “la Cava Florinda” e que se constitui num verdadeiro mito de origem a fornecer a explicação da “pérdida de España”. As mitologias usualmente começam com mitos de criação, fundacionais, e esses mitos pertencem a dois tipos principais, dependendo se o homem olha para cima ou para baixo quando está construindo seu espaço na terra. Se olhar para cima, contempla o sol que eternamente surge a cada amanhecer. Esse é um mito que se forja graças a uma inteligência consciente e calculadora. 75 Entretanto, se o homem olhar para baixo, contempla o ciclo da vida animal e vegetal e os mitos de criação que esta atitude sugere seriam de índole sexual, concentrando-se em algum “género de tierra-madre, cuna y sepultura de todo lo viviente. En los mitos de creación sexual y de la tierra-madre, la muerte no necesita explicación: la muerte está ensamblada dentro de la totalidad del proceso” (FRYE, 1980, p. 129). Segundo Mené ndez Pidal, a antiga epopéia espanhola tem um vasto campo de inspiração que vai desde o século VIII, com o rei Rodrigo, até o XI com o Cid, chegando inclusive ao XII “con Alfonso VII y el rey Luis de Francia. (…) España se manifiesta tenaz, tradicionalista en mantener en actualidad un viejo género literario” (MENÉNDEZ PIDAL, 1962, p. 10). Pidal também assinala quatro fases da produção épica espanhola e já na primeira fase, a da épica primitiva, anterior à influência francesa, se encontra o Romance del Rey D. Rodrigo ao qual o texto de T.S. alude ao mencionar a Cava Florinda. Cabe indagar o porquê de Martín-Santos ter ido tão atrás no passado literário de seu país. Uma possível resposta estaria no desejo de marcar seu percurso pelos caminho/descaminhos da história, da literatura e da cultura da Espanha começando ‘pelo começo’ e já lá naquele ponto marcar a incidência da degradação, da queda, que se inicia a partir de uma violação, do uso da força do poder arbitrário. O romance da destruição de Espanha narra o triste destino de D. Rodrigo, o rei godo, que vê a Cava Florinda banhando-se e dela se enamora. Porém por tê -la tomado à força recebe a punição dada pelo pai dela, o conde D. Julián que, se alia ao rei mouro para lutar contra Rodrigo e destruí-lo. De una torre de palacio Se salió por un postigo La Cava con sus doncellas Con gran fiesta y regocijo. Metiéronse en un jardín Cerca de un espeso ombrío De jazmines y arrayanes De pampanos y racimos. Junto a una fuente que vierte Por sus caños de oro fino Cristal y perlas sonoras Entre espaldañas y lírios Reposaron las doncellas 76 Buscando solaz y alivio Al fuego de mocedad Y a los ardores de estío. Daban al água sus brazos Y tentada de su frio Fue la Cava la primera Que desnudó sus vestidos. En la sombreada alberca Su cuerpo brilla tan lindo Que arde todas las demás Como sol ha escurecido. Pensó la Cava estar sola, Pero la ventura quiso Que entre unas espesas yedras La miraba el rey Rodrigo. Puso la ocasión el fuego En un corazón altivo, Y amor, batiendo sus alas, Abrasóle de improviso. De la pérdida de España Fue aquí funesto principio Una mujer sin ventura Y un hombre de amor rendido. Florinda perdió su flor, El rey padeció el castigo, Ella dice que hubo fuerza, Él que gusto consentido. Se dicen quien de los dos La mayor culpa ha tenido Digan los hombres: la Cava Y las mujeres: Rodrigo. (MENENDEZ PIDAL, 1962, p. 39) Nos romances seguintes deste ciclo o tom vai se modificando adquirindo mais e mais força dramática até o romance final quando Rodrigo, derrotado, segue ao encontro de seu castigo e penitência. O romancero por seu tradicionalismo, pela quantidade de vida e história que representa e pelos reflexos estéticos e morais que abarca “es quintaesencia de características españolas. (…) España es el país del romancero” (MENÉNDEZ PIDAL, 1962, p. 36). Esta característica de ser algo tão tipicamente nacional se constitui também em um bom motivo para Martín-Santos ter iniciado seu percurso pelo mito fundacional da Cava. 77 O que chama a atenção é que das várias versões do mito de D. Rodrigo aparece em todas elas um fato comum: a derrocada de Espanha se prende a um delito de caráter sexual, fazendo portanto parte do grupo de mitos que se originam do olhar para baixo. E assim também, o desmoronamento dos ideais de Pedro se entrelaça com um delito de transgressão sexual, o de Muecas que violou a própria filha, Florita, nome que remete à Florinda. Muecas depois de engravidá-la, e haver tramado que fosse feito um aborto em sua filha, vai, à noite, buscar Pedro para ajudar a jovem que, já está quase moribunda, após o aborto mal sucedido. Florita e Espanha são ambas violadas. Espanha, usurpadamente por Franco, Florita, insestuosamente pelo pai. A reparação de tais circunstâncias demanda atos justos e inequívocos. Entretanto, a reparação da justiça é equivocada e invertida nos árduos tempos em que vive Pedro. No passado, D. Rodrigo paga seu delito com a morte, no presente a morte recai sobre a vítima, Florita, não sobre o pai violador. Por seu comportamento transgressor Pedro, já ultrapassara o metron, ao visitar a cidade proibida. Ele também acabara de sucumbir por sua fraqueza, tibieza e cegueira à tentação de caráter sexual por Dorita, neta da velha dona da pensão, fato que sugere a idéia de perda da inocência, de queda bíblica. Pedro portanto , tal como o Rei Rodrigo, fica na posição de réu que precisa pagar seu pecado e expiar sua culpa. A expiação do rei Rodrigo, segundo narra a Crônica Sarracina, de 1344, referida por Sílvia Cárcamo em seu artigo, El Rey Rodrigo o la Pérdida de España (CÁRCAMO, 2000, p. 16), terá que ser feita com uma cobra de duas cabeças, com a qual ele terá que ficar até que ela cresça. No fim do terceiro dia, a cobra ergue-se e com uma cabeça devora-lhe o pênis e com a outra o lado direito de seu coração. Processo expiatório semelhante , Martín-Santos destina a Pedro que, ao retornar para o interior do país, abandona seus ideais, seus planos de pesquisador, que buscava o reconhecimento da comunidade científica internacional, e ao aceitar um destino medíocre, deixa a serpente devorar-lhe o coração. Ao deixar-se castrar, pergunta -se: ¿Por qué me estoy dejando capar? El hombre fálico de la gorra roja terminada en punta de cilindro rojo, con su fecundidad inagotable para la reproducción de movimientos rectilíneos, ahí se está paseando orgulloso de su gran prepucio rojo-cefálico, con su pito en la mano, con un palo 78 enrollado, dotado de múltiples atributos que desencadenarán la marcha erecta del órgano gigante que se clavará en el vientre de las montañas mientras yo me estoy dejando capar”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 282) É a denúncia da visão de condenação da sexualidade e da salvação através do bárbaro sacrifício. Em TS, a castração de Pedro, se por um lado confirma a visão cristã do castigo, também, por outro, representa o castigo imposto pela sociedade autoritária que o põe no exílio e o mantém capado, anulado e sem voz, silenciandoo, impedindo-o de mudar a realidade social que não deixa espaço aos indivíduos para sua livre e plena expressão. A ironia de Martín-Santos, ao fazer aquela referência religiosa de S. Mateus da idéia de tolerância, se reforça por ficar contrastada à intolerante situação política vivida pelo povo espanhol durante o franquismo. Este regime se apoiava fortemente na religião católica e em suas instituições, com a participação notória e ampla da Opus Dei. Esta situação política estava bem distante daquela idéia de tolerância evangélica pregada na palavra de S. Mateus. A tolerância portanto não está certamente na Espanha que, ao conquistar Granada, lá no século XV, emite a ordem de não só impor uma nova cultura, como também a eliminação da outra passando em seguida ao confisco, feito por soldados e religiosos de livros atribuídos a hereges. Isabel e Fernando, os reis vencedores, autorizaram sua queima. Francisco Jiménez de Cisneros, “o astuto confessor da rainha, advertiu-a de como a tolerância poderia ser perigosa numa cidade em que textos mulçumanos eram lidos em segredo”. (BÁEZ, 2006, p. 139). A ordem era para arrancar pela raiz a perversa e má seita e para sacerdotes confiscarem “alcorões e livros, mais de quatro ou cinco mil volumes, entre grandes e pequenos e fazer grandes fogueiras e queimá-los todos”. (BÁEZ, 2006, p. 140). Com essa queima Cisneros realizou o primeiro auto de fé da religião católica na Europa. A destruição não se limitou ao Corão mas também a tratados religiosos e poéticos dos sufís, o que levou à devastação de um capítulo à parte da literatura dos árabes, a produção poética sufí. Ainda assim os reis católicos não ficaram totalmente satisfeirtos porque salvaram-se livros de medicina, filosofia e crônicas. Essa insatisfação permitiu que a destruição da cultura árabe tivesse prosseguimento em toda a Espanha, enq uanto 79 Cisneros ganhava prestígio e se notabilizava pela imposição do celibato clerical, pelos aconselhamentos de suas majestades à expulsão dos judeus e pela tortura de milhares de pessoas “para convecê-las da bondade da fé cristã. Castrava, açoitava, desmembrava e queimava os rebeldes. (BÁEZ, 2006, p. 141). Atribui-se a Cisneros a nomeação de Torquemada para o cargo de chefe da inquisição na Espanha. T.S., romance que alude a esse aspecto religioso intransigente em seu texto ao falar de Madri como cidade “tan agitadas por tribunales eclesiásticos, com relajación al brazo secular (…) tan abundantes de torpes teólogos” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 16), alude também a esse grande inquisidor quando, referindo-se ao martírio de S. Lourenço que, no texto de T.S. metaforicamente refere-se ao martírio de seu personagem Pedro, (“a ese San Lorenzo que soy yo” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 286)) ao comentar que aquele “no gritaba, estaba en silencio mientras lo tostaban torquemadas paganos”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.286) (Grifo nosso). O próprio romance T.S. foi vítima dessa postura castradora e destrutiva ao ter partes de seu texto censuradas e impedidas de publicação. Só as edições posteriores, as de 1980 em diante, trazem seu texto na íntegra. A questão da destruição total ou parcial de livros pode ser comprendida dentro da perspectiva de que um livro não é destruído como objeto físico e sim como vínculo de memória. John Milton em seu discurso Areopagitica dirigido ao parlamento inglês que em 1643 havia aprovado uma lei requerendo censura prévia de livros a serem publicados, sustentava que o que se destrói no livro é a racionalidade que ele representa. “He who destroys a good book, kills reason itself”. (MILTON, 1960, p. 586). 19 O livro dá consistência à memória humana e a memória, mnemósine, era a mãe das artes. “Do termo grego ao latino o matiz se conserva porque memória provém de memor-oris, que vem a ser “aquele que recorda”. (BÁEZ, 2006, p. 24). Esse vínculo entre livro e memória faz com que o texto seja percebido como uma peça fundamental do patrimônio cultural de uma sociedade e com certeza de toda a humanidade. Báez observa ainda que a palavra patrimônio vem do grego e alude ao pai, pater, e o verbo também moneo se traduz como “fazer saber”, fazer recordar. “Sendo assim, patrimônio é literalmente o que recorda o pai. Deve-se 19 Quem destrói um bom livro, mata a própria razão. (N.A.) 80 entender que o patrimônio cultural existe na medida em que o cultural constitui o patrimônio mais representativo de cada povo”. (BÁEZ, 2006, p. 24). Daí talvez a necessidade de Martín-Santos de revisitar criticamente seu patrimônio neste tempo de silêncio. Dentro da tradição literária espanhola, alguns personagens se tornaram verdadeiras representações de tipos sociais a ponto de serem chamados pelo nome destes personagens. Este é o caso de Celestina, que encarna o mito da alcoviteira e apresenta -se como mestra em aproveitar circunstâncias para conseguir, através de sua astúcia, seus intentos. Martín-Santos, aproveitando-se da riqueza de tal personagem, escolhe um dos seus, em TS, para ser a encarnação da “celestina”. É a velha dona da pensão onde mora Pedro e que manipula este “hombre tan inocente, tan bueno“, (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 94) diz ela, que prossegue revelando-se como verdadeira celestina ao dizer: Me gusta este hombre pero no sé como ponerle en el disparadero de su hombría porque no estaría bien, digo yo, celestinear a la nieta en quien ha celestineao a la hija con tanto provecho como yo lo he sabido hacer. Por que esa tonta cuando el bailarín la dejó como la dejó, si no por mí y por mi celestineo que no me da vergüenza porque al fin y al cabo Dios ha hecho así el mundo…( MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 95) Sem dúvida, mais que dar relevância a seu personagem associando-o ao tipo famoso consagrado na literatura espanhola, Martín-Santos vai mais longe. Ele estabelece um diálogo com uma obra que na tradição literária de sua época também estabeleceu diálogos. Na Celestina de Rojas são encontradas frases, sentenças filosóficas e morais que estabelecem relação entre este texto e os de Petrarca, Camilo e os de sua época como aponta Tereza Cecília Ramos. Rojas, segundo ela, utiliza esses tipos de saberes, tanto os de outros textos quanto os advindos de sentenças filosóficas, misturando-as com linguagem popular. “Esse uso é complementado pela justaposição irônica do que se está citando a um novo conceito”. (RAMOS, 2004, p. 144) E isto revela a intenção de Rojas de jogar com o conhecimento de filosofia moral e utilizá-lo em sua obra produzindo novos contextos. 81 Essa técnica rojana está próxima também da que Martín-Santos utiliza em seu texto. Na Celestina o diálogo com a tradição literária e a moral autorizada se encontra subvertida por transformar em protagonistas, persongens condenáveis que tentam transformar a moral aceita socialemnte da mesma forma que Martín-Santos subverte com sua personagem Celestina. Outro ponto central em comum entre T.S e a Celestina é que ambas são fundamentalmente irônicas. As duas Celestinas, a de Rojas e a de Martín-Santos têm amplo domínio do verbo. Usam bem os argumentos para defender-se e excusarse de seus atos pouco lícitos ou imorais e revestí-los de moralidade segundo suas necessidades e conveniências. Desta forma Rojas, como homem do tempo de uma Espanha que perdeu já suas certezas, nega a existência de verdades absolutas e ta lvez por isso seu texto siga nos falando até hoje, trazido pelo revisitar de Martín-Santos e por si mesmo. Rojas vê a vida humana como uma luta trágica em que o homem é arrastado por forças cujo controle lhe escapa. Martín-Santos coloca seu protagonista vivendo exatamente esta luta. Esta é uma luta onde dor e morte pesam igualmente sobre todos os mortais. Rojas, bem como Martín-Santos, valendo-se de uma trama relativamente simples, criam obras de grande valor dramático devido tanto à dimensão de seus personagens quanto à profunda verdade humana de suas atitudes. E a autenticidade de seus sentimentos, desde a astúcia da Celestina de Rojas até a da velha da pensão de Martín-Santos, passando pela rasteira hipocrisia de Simpronio e de Muecas, até a dor do pai inconsolável Pleberio e a da Ricarda/Encarna , mãe também inconsolável, dá uma visão rica e profunda de suas almas e das obras que narram suas vidas. Em T.S. a caracterização celestinesca da velha da pensão onde vive Pedro reaparece novamente no fragmento 22, em que o narrador apresenta os pensamentos dela , reenfatizando sua imagem como celestina ao regozijar-se, após ter visto Pedro cair na sua armadilha, e sair, “às escondidas”, do quarto de sua neta: Los pliegues del corazón y del cerebro de una vieja. La trampa. La femeneidad vuelta astucia cuando la carne ha dejado de ser carne y es sólo una materia indescriptible. La celestina que es celestina para no morir de hambre o para no tener que quitar los visillos de sus ventanas. Para no tener que fregar el suelo siendo viuda de. La caza. Las ventajas de la caza sobre la venta o el alquiler. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.114) 82 O que torna mais terrível a condição celestinesca deste personagem, é perceber que sua velhacaria é ainda mais repugnante e abjeta , por ter sido ela capaz de prostituir filha e neta. Outros possíveis pontos de semelhança do personagem original Celestina e o de TS reside no fato de ambos terem uma dependência alcoólica, uma de vinho e a outra de rum negrita, e de que, se no texto original a Celestina morre, no de MartínSantos, ao morrer Dorita, é como se ela morresse em vida, devido à impossibilidade de continuar celestineando a neta e à conseqüente perda da possibilidade de redenção de seu nome e da sua ascensão social. O romance é a representação da vida, da enunciação e do discurso. Em suas páginas encontramos uma discursividade variada. As palavras no romance são, tal como as palavras na vida, o pano de fundo lingüístico da cultura que elas exprimem. Seus personagens existem para enunciar as palavrsas que trazem para o texto valoração, positiva ou negativa, da realidade social. A leitura que se faz de seu texto se depara com o problema das relações entre diferentes discursos e entre diferentes textos. Alusões e citações se encontram inseridas na própria tessitura do discurso do romance. Para Júlia Kristeva, “any text is constructed as a mosaic of quotations; any text is the absorption and transformation of another” (KRISTEVA, 1986, p. 37)20, e este de Martín-Santos por ser culturalmente bastante ambicioso, denso, como apontaram vários críticos que se detiveram na sua análise, requer além de uma reflexão atenta uma ampla quantidade de leituras de outros textos para recocnhecêlos, senão todos, pelo menos o maior número possível deles. Qualquer citação, alusão ou recriação textual de uma obra que o leitor desconheça passará desapercebida e se constituirá numa preença adormecida naquela leitura porque terá deixado de lado uma ou mais peças do quebra-cabeças que forma, dá sentido e aumenta a gama de significados do hipertexto. Segundo este raciocínio recolhemos duas passagens encontradas em T.S. que se complementam. Uma é a que diz haver cidades – leia-se Madri – “tan abundantes de torpes teólogos y faltas de excelentes místicos” (MARTÍN-SANTOS, 20 Todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. (T.A.) 83 2001, p. 16) e a outra é “¡Desdichados de los que no servimos para el éxtasis! ¿Quién nos auxiliará? ¿Cómo haremos para penetrar en las más avanzadas y recônditas y profundas de las Moradas donde nos es preciso habitar?” (MARTÍNSantos, 2001, p. 281). Sabe-se que o aparecimento da literatura místico-ascética na Espanha é tardio, se comparado ao florescimento desse gênero e de seus bons frutos na Idade Média. José García-López aponta sua chegada “en España a su cumbre en pleno renacimiento” (GARCÍA -LÓPEZ, 1994, p. 224). Ele também nos acrescenta as informações de que será no reinado de Felipe II que teremos o período de plenitude de seu florescimento e, que das ordens religiosas, foram os carmelitas os que deram os melhores nomes dessa modalidade de produção literária: Teresa de Ávila e S. Juan de la Cruz. Martín-Santos, no primeiro texto que citamos, parece bastante assertivo ao ponderar que seu país não produziu grandes místicos, embora, em contrapartida tenha produzido abundantes teólogos torpes, o que implica um juízo de valor negativo sobre a produção mística. No segundo texto ele reforça a idéia da ausência de grandes místicos ao lamentar a falta de dom ou de tendência para o êxtase entre seus compatriotas, implicação que fica clara no uso do verbo em primeira pessoa do plural, ‘no servimos’. Em seguida indaga como, sem aquela aptidão, conseguirão chegar às mais recônditas Moradas, fazendo aí uma alusão clara e direta à Teresa de Ávila e sua obra clássica, El Libro de las Moradas o Castillo Interior. Na alusão de Martín-Santos a palavra ‘moradas’ aparece grafada com letra maiúscula e vem inscrita numa passagem em que não fica evidente seu usual tom irônico. Isto nos leva à leitura de um possível reconhecimento positivo da obra máxima da mais ilustre mística da igreja católica espanhola. 84 2.4. PERCURSO INTERTEXTUAL PELO SÉCULO DE OURO Nesta abordagem mais interna do texto de Martín-Santos que viemos fazendo ao longo deste capítulo, procuramos considerá-lo mais em si mesmo sem contudo enclausurá-lo no conjunto de seus próprios signos lingüísticos. Isto porque esta obra se inscreve em um determinado universo e a ele se refere. Além disso, MartínSantos e seu leitor, cada um a sua maneira, enriquecem-no com seus conhecimentos e iluminações. T.S. produz efeitos de remissão ao mundo e a outros textos como já temos visto e estes textos, decodificados pelo leitor, participam de sua compreensão e interpretação. Estes mecanismos de referenciação constituem a abertura do texto e é por essa linha que vamos prosseguir esta análise. Desta forma ao percorrer o que chamamos de caminhos do século de ouro, procuraremos nos centrar nas figuras referenciadas pelo texto, Lope de Vega, Tirso de Molina, Cervantes e Quevedo, enfatizando de forma mais detalhada os dois últimos por serem os de mais forte e clara presença no texto. Dias depois de haver estado na chabola de Muecas comprando ratos para prosseguir suas pesquisas, Pedro “como noche de sábado” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 70), jantou apressadamente e preparou-se para sair. Salió a la pequeña calle. Llegó a la plazuela Tirso de Molina. En la entrada del cabaret barato había ya algunos com aspectos de chulos esperando que llegaran los primeros clientes. Siguió por uma calle oblícua de escasa pendiente. El comercio de segunda orden de la calle tenía en su casi totalidad apagadas las luces. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p, 71) O que chama atenção nesta passagem é o contraste entre o espaço físico decadente e empobrecido que o narrador descreve neste fragmento 12 em que alude a Tirso, no nome da praça, incluindo inclusive mais adiante os nomes de Lope e Cervantes, e a riqueza que estas alusões desses nomes implicam, nomes que, não sem motivo, pertencem ao período áureo da literatura espanhola. Uma das ênfases de Martín-Santos está neste contraste entre a pobreza econômica com toda a sua decomposição de paisagem física e humana que a 85 acompanha, – as luzes apagadas, o comércio de segunda ordem, o cabaré barato – e a riqueza implícita na produção desses grandes homens das letrs de seu país. Este contraste nos leva a um comentário de Carlos Fuentres relacionado à produção cervantina em que ele coloca muito bem esta questão dicotômica espanhola e acaba por ampliá-la numa análise histórica muito pertinente do que viveu Espanha. Fuentes aponta o fato de que D. Quijote seria o mais espanhol de todos os romances por sua própria essência ser definida em termos de perda, de impossibilidde, de fracasso. Pela negação do que poderia ter sido e que não foi, se faz uma afirmação de existência no domínio da imaginação onde tudo que não pode ter existência na realidade, encontra no ficcional o mais intenso nível de verdade. Devido ao fato da história da Espanha ter sido o que tem sido, sua arte tem sido o que a história negou à Espanha. Isto também se aplica à poesia mística de S. Juan de la Cruz, às Meninas de Velázquez, aos Caprichos de Goya, aos filmes de Buñuel. A arte dá vida ao que a história matou. A arte dá voz ao que a historia negou, silenciou, perseguiu. A arte traz verdade às mentiras da história. (FUE NTES, 1989, p. 80) Outro dado de arguta observação de Fuentes aponta para a questão de o passado não ser um problema para franceses e ingleses, enquanto que para um espanhol, o passado só é problema talvez, pelo fato das múltiplas heranças – cristã, muçulmana e judaica – ainda se encontrarem irresolvidas. Esses traços latentes tornam o ethos espanhol oscilante entre exaltação e passividade, o que acaba por desaguar no caminho da missão transcedental que separa e opõe valores absolutos do temporal e do eterno, da vida e da morte, da honra e da desonra, da alienação e da sanidade, do racional e do subjetivo. Essa alma dicotomizada refletirá o quanto “sua capacidade para a eficiência política e econômica sempre foi nula, suas conquistas científicas e técnicas, escassas mas sua capacidade para a arte tem sido absoluta” (FUENTES, 1989, p. 83). Deste pensamento se pode então inferir o porquê das grandes obras do gênio espanhol terem sido produzidas em períodos de decadência de sua sociedade. Fuentes cita La Celestina de Rojas como obra prima da Espanha judaica produzida, 86 coincidentemente, durante o período da expulsão e preseguição de judeus e recém convertidos. Aponta também para a produção de todo o século de ouro da literatura haver florescido quando o poder espanhol estava em declínio, nos lembra que Velázquez foi pintor na corte declinante de Felipe IV, de que Goya produz sua altíssima arte enquanto os Bourbons venais e inaptos, Carlos IV e Fernando VII, perdem suas coroas para Bonaparte, perdendo junto suas possessões americanas, de que a minguada produção literária do século XIX dá lugar a uma extraordinária afirmação do intelecto espanhol nas ciências e nas artes com o alvorecer da geração de 98, surgida após a perda do último reduto colonial de seu vasto, passado império. “O valor absoluto da arte sempre alcançou o máximo de seu brilho na Espanha quando suas fortunas política, econômica e técnica se encontravam em seus níveis mais baixos”. (FUENTES, 1989, p. 84). Martín-Santos confirma a regra que detectamos no pensamento de Fuentes pois ele também produz uma obra de brilho e de força em dorida época de opressão e decadência da sociedade de seu país. Retomando a citação do texto de T.S. em que seu protagonista passa pela plazuela Tirso de Molina, como referência local/espacial sim, porém, ao mesmo tempo como referência também dialógica, intertextual com o escritor que depois de Calderón de la Barca e Lope de Vega é a figura mais importante do Teatro espanhol do Século de Ouro. Tirso que, diferentemente da preocupação de Lope com os temas nacionais, preferiu inspirar-se na realidade social de sua época, criando personagens de marcantes características humanas, ficou imortalizado pela criação de uma obra que tem dialogado ao longo desses mais de três séculos com tantos outros escritores. D. Juan, D. Juan tema e D. Juan mito tiveram inúmeras derivações na literatura universal. Eles sobrevivem a escolas literárias, a modas ou às mudanças estéticas da literatura e se adaptam a distintos momentos histórios e distintas circunstâncias. Por isso está em T.S. Por ter se tornado tema/mito D. Juan exemplifica o desafio literário da reescritura. D. Juan é prova contundente de que o funcionamento central da literarura não está somente no ‘que’ mas também no ‘como’ se fazer esta escrita/releirura para instaurar o diálogo do homem com o mundo e o diálogo do homem com outros homens. 87 Desta obra de Tirso há referência direta e alusão em T.S. Um exemplo bem explícito está no episódio 62, quando após a morte de Dorita, Pedro divaga sobre a injustiça de sua morte e parafraseia as palavras da estátua vingadora, no El Burlador de Sevilla, de Tirso de Molina: “no, no, no, no es así. La vida no es así, en la vida no ocurre así. El que la hace no la paga”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 276), deixando implícito que a idéia de justiça divina, em um mundo como este, é inexistente e equivocada. Ele mostra também nessa passagem uma inversão do texto original de Tirso em que as palavras são: “Esta es justicia de Dios,/Quien tal hace que tal pague” (MOLINA, apud, OLIVEIRA, 1996, p. 226), e até no mito literário Martín-Santos contrapõe mito ao mito, desmitificando-o e mostrando que na Espanha em que ele vive, o conceito de justiça não tem mais o valor da justiça clássica. Na Espanha de Pedro, punem-se os inocentes. Ester Abreu de Oliveira que analisou o D. Juan de Tirso aponta em seu estudo a “busca de intertextos dessa obra com outras obras dramáticas da literatura espanhola que tratam de um mesmo motivo: o comportamento de um sedutor e de seu trágico fim” (OLIVEIRA, 1996, p.163). Ela reitera que nesses intertextos estão presentes as tensões de vida e morte. No texto de Martín-Santos estas mesmas tensões também estão presentes comprovando o pensamento de Kristeva de que os textos se constroem como mosaicos de citações e de transformações uns dos outros. E mais um detalhe, detalhe porém de fundamental importância porque enquanto o D. Juan de Tirso de Molina é punido por uma justa e divina providência, em T.S., Cartucho, ao levar avante seu projeto de vingança, vai se contrapor ao impotente Pedro. Cartucho transforma seu ato de vingança não em um ato de rebelião real, mas sim em um engano, porque sacrifica um bode expiatório – Dorita – em vez de punir o verdadeiro poder superior culpado, Muecas,/ Franco, pai violador de Florita/ Espanha. Cartucho não consegue rebelar-se corretamente atacando a figura do poder de onde se origina o delito, não por ser passivo nem covarde e sim por ser ignorante, por não ter clareza suficiente para perceber sua realidade, por ser portanto incapaz de dirigir seu ódio contra quem de direito. Seu nome nos remete à idéia oferecida pelo dicionário da Real Academia Espanhola que dá para a palavra ‘cartucho’ a significação, em sentido figurado, de “cualquier outra (engañifa) de la 88 que se es víctima por excesso de simplicidad”, (p. 428), o que nos leva a reforçar a idéia de ser este personagem o representante da violência cega, daí sua justiça se opor àquela de Tirso cuja mão vingadora pune o verdadeiro agressor. 89 2.4.1. D. Pedro e d. Quixote, heróis da decadência Já com Cervantes e o Quixote, inúmeras são as intertextualidades que permeiam as páginas de T.S. Claras algumas, outras mais implícitas e sugeridas, porém todas de variados matizes. Na arquitetura da obra de Martín-Santos, ele faz quatro digressões, uma delas, no fragmento 12, é sobre Cervantes. Esta passagem do romance constitui-se em um texto de difícil interpretação pelas características intrínsecas de sua própria estruturação e por um certo hermetismo devido ao clima de emoção em que se encontra o narrador ao trazer a figura de Cervantes à mente de Pedro. Este, ao passar pela entrada do metrô, resolve sair da via principal e seguir por “callejas más retorcidas y resguardadas” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 72). Acompanhando os volteios e ziguezagues das ruas, a voz narradora invadindo o pensamento de Pedro – pois aqui, estas duas vozes se fazem ouvir com tons e timbres tão iguais que é difícil separá-los – o deixa vaguear por estas ruas e imaginar que por allí había vivido Cervantes _¿o fue Lope? – o más bien los dos. Si; por allí, por aquellas calles que habían conservado tan limpiamente su aspecto provinciano, como un quiste dentro de la gran ciudad. Cervantes. Cervantes. ¿Puede realmente haber existido en semejante pueblo, en tal ciudad como ésta, en tales calles insignificantes y vulgares un hombre que tuviera esa visión de lo humano, esa creencia en la libertad, esa melancolía desengañada tan lejana de todo heroísmo como de toda exageración, de todo fanatismo como de toda certeza? (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 72). Seria impossível para Martín-Santos percorrer sua tradição cultural pelos caminhos do século de ouro sem deixar de aludir a Lope de Vega. Eis que na citação acima a alusão a ele é feita de forma direta. O narrador se indaga sobre qual deles, Cervantes ou Lope, teria caminhado, como ele está fazendo agora por ali, por aquelas ruelas estreitas, insignificantes e sem valor. Cervantes? E após pequena hesitação se pergunta novamente: ou terá sido Lope? Outra leve hesitação – hesitações marcadas graficamente pelos travessões que deixam o leitor respirar, descansar e dar tempo ao narrador para ordenar seus pensamentos – para concluir que provavelmente os dois haviam caminhado por ali, inserindo assim Lope na linha cultural que Martín-Santos traçara para construção de seus intertextos. 90 Naquele trecho da obra, citada anteriormente, Martín-Santos presta seu tributo, sua homenagem, seu apreço e seu carinho, tanto ao homem que foi Cervantes quanto ao escritor genial, que teve uma vida tão prosaica e sofrida, tendo que cobrar impostos, matar turcos, perder parte do corpo, solicitar favores, “…poblar cárceles y escribir un libro que unicamente había de hacer reír? ¿por qué hubo de hacer reír el hombre que más melancolicamente haya llevado una cabeza serena sobre unos hombros vencidos?” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 72). O narrador indaga-se sobre qual poderia ter sido o real intento de Cervantes, sem todavia encontrar uma reposta definitiva e ele mesmo admitindo que esta seria uma explicação “muy complicada”. Como sua imaginação é do tipo arquitetônico – relembre-se, por exemplo, suas meditações na prisão e as imagens arquitetônicas que ele projeta sobre o espaço dentro do prédio da prisão ou da própria cela – ele aqui, vale-se desta característica e deixa seu pensamento errante ser visualizado em planos de realidade dentro do próprio Quixote. Estes planos tomam a forma de espirais sucessivas. São seis espirais sobre as quais ele elabora suas teorias: Primeira espiral: há uma ética que postula que os leitores de livros de cavalaria são bons e sensatos se admitem que estes livros são falsos. Segunda espiral: um certo homem decide contrapor-se à realidade e resolve acreditar neles. Terceira espiral: apesar da distorção que aquele homem tentou, as pessoas insistem em chamá-lo de bom. Quarta espiral: a crença do homem em uma realidade melhor, em um mundo ideal, não o impede de ver a vileza do mundo real e mesquinho, e de acreditar que pode melhorá-lo. Ao ter esta visão bipartida, ele se assemelha a um louco, logo, riamos dele. Quinta espiral: rir-se não basta. O público precisa crucificá-lo, por ter destruído sua própria realidade. Sexta espiral: crucificá-lo é desnecessário pois ele não é realmente louco. Ele apenas fingiu insanidade para que sua audácia pudesse ser livre. Estas espirais indicam a tentativa do narrador de colocar, sob forma lógica e ordenada, o sentido dado por Cervantes a sua obra. Seus comentários aí contidos 91 constituem-se na metatextualidade, classificação dada por Genette, e garantem um forte traço de união e de visão entre TS e o Quixote. Lukács reitera o conceito de que “o romance é a epopéia do mundo abandonado por Deus’ (LUKÁCS, 2000, p. 89), por referir-se, na verdade, ao contraste do que ocorria antes com o gênero épico, sem contradições internas, onde o escrito era verdadeiro, ainda que fosse na fantasia dos livros de cavalaria. O mundo épico diferentemente do moderno, ainda estava inteiro, sem fissuras, nas mãos de Deus. Cervantes derrotou as epopéias de que se alimentara e, de certa forma, lutou para esta demolição com a consciência de quem se surpreende entre o caudal violento da nova ordem e o passado, o velho, a tradição, tendo que abrir caminho para o novo para a renovação. Martín-Santos também vivencia este mesmo dilema: abandonar o passado, o velho com sua estagnação ou trazer criticamente sua tradição e, a partir dela, construir o caminho renovado. Cervantes, já filho abandonado da Renascença, parece inserir no seu D. Quixote uma ética de amor e justiça, valores que, se não podem ser encontrados na sociedade de seu tempo, ao menos ocupam a imaginação de seu herói. Também na obra de Martín-Santos uma ética de justiça e liberdade lateja no seu texto ainda que estes valores, e Martín-Santos tem consciência disso, não possam ocupar o centro da sociedade em que ele vive, daí sua ironia denunciar a ausência deles. O conteúdo social e ético no D. Quixote fica preso a essa combinação de amor e justiça instaurando uma utopia da fraternidade e da igualdade tão inalcansável quanto os valores de justiça e liberdade de T.S. O aspecto importante a destacar é que Martín-Santos não deixa de apontar as semelhanças entre a Espanha de Cervantes e a de Pedro, porque “el loco manifesto como no-loco, hubiera tenido en lugar de jaula de palo, su buena camisa de fuerza de lino reforzado con panoplias e sus ventidós sesiones de eletroshockterapia” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 74), exatamente, como iria acontecer com Pedro que, ao tentar fazer o bem, acaba preso e, se não chega a viver a experiência traumática dos eletrochoques, vive a do choque moral de uma das mais trágicas experiências humanas: o cárcere. 92 Um dos mais cruentos castigos que pode sofrer o homem é o aprisionamento. Muitos pensadores e escritores como Oscar Wilde, Paul Verlaine, o próprio Cervantes, Gramsci compuseram obras ali e outros as compuseram fora dali, mas retratando aquela experiência infernal como Graciliano Ramos. Martín-Santos, tal qual Cervantes, também conheceu a experiência dolorosa da prisão, e a deixou fixada nas páginas de TS nos episódios narrados em vários fragmentos. Outro ponto comum entre eles é que ambos buscaram construir uma obra que apresentasse o novo, que fizesse um contra-ponto com o que existia literariamente em suas épocas. Bem consciente era esse querer, essa vontade, pois, quando Martín-Santos pergunta, retoricamente, na sua digressão cervantina, ¿qué es lo que realmente él quería hacer? ¿Renovar la forma de la novela, penetrar el alma mezquina de sus semejantes, burlarse del monstruoso país, ganar dinero, mucho dinero para dejar de estar tan amargurado como la recaudación de alcabalas puede amargar un hombre? (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 72), estas mesmas perguntas parecem que podem ser igualmente dirigidas ao próprio Martín-Santos. As respostas positivas que se obteriam quando fossem dadas por Cervantes, seriam também exatamente iguais às que daria Martín-Santos. E por que Martín-Santos fez questão de abrir em seu texto essa digressão com Cervantes? A resposta parece ser encontrada na colocação da professora Maria Augusta Vieira em seu artigo D. Quijote, quando esta afirma que: “además de ser uma obra arraigadamente española, el Quijote contenía los más fundamentales valores humanos” (VIEIRA, 2000, p. 106). O que, exatamente, Martín-Santos procura é mostrar o valor da produção literária espanhola de qualidade e, para tanto, nada mais perfeito que seu aporte do texto de Cervantes, arraigadamente espanhol e de inegável valor literário. Isso vai permitir o aparecimento de uma superposição entre Cervantes e o autor de TS, que também possui valores humanos fundamentais e bem definidos como o decoro, a decência e a dignidade e a busca de liberdade. Estes vão ser o tempo todo apontados e buscados, indiretamente, no texto de Martín-Santos, na apresentação e na crítica dos seus opostos, entranhados na dura realidade descrita por ele. 93 Sua admiração por Cervantes está patente em todo texto da digressão, principalmente, na pergunta: “¿Qué es lo que ha querido decirnos el hombre que más sabía del hombre de su tiempo?” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 73). Martín-Santos, que por sua vez, conhecia bem o homem de seu tempo, reconhece e admite também o quanto Cervantes intuía os meandros da alma e da vida humanas. A intertextualidade, como define Genette, copresença de dois ou mais textos, ou seja, a presença efetiva de um ou mais textos dentro de outro, pode se constituir numa relação intertextual conflituosa, inamistosa ou até mesmo iconoclasta, ou pode adquirir um tom amistoso e até reverente como é o caso das situações intertextuais entre T. S. e D. Quixote . As intertextualidades com D. Quixote são sempre de natureza auto conscientes. Sua presença em T.S. se faz às claras, nos comentários, nas alusões e nas muitas semelhanças entre Pedro e Quixote. Enquanto Quixote tem a Sancho como escudeiro, Pedro tem a Amador. Tanto TS quanto o Quixote são novelas itinerantes, e as saídas de Pedro, tanto quanto as de D. Quixote, conduzem a ação de ambos os romances. Pedro, identificado a Quixote, busca, através de uma postura idealista, alcançar importantes resultados nos seus estudos sobre o câncer. É o verdadeiro paladino das ciências espanholas. Mas, a realidade da falta de recursos para prosseguir sua pesquisa, inclusive a falta de cobaias, tanto poderia levá-lo a ver a realidade “ya no como gigantes en vez de molinos, sino como fantasmas em vez de deseos” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p, 10) como também vão levá-lo, com seu escudeiro Amador, empregado do Instituto de Ciências, às chabolas madrilenses, para ali poder adquirí-las. A saída dos dois é descrita como: ¡Oh qué felices se las prometían los dos compañeros de trabajo al iniciar su marcha hacia las legendarias chabolas y campos de cunicultura y ratología del Muecas! ¡Oh qué compenetrados y amigos se agitaban por entre hordas matritenses … (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 29) Nesta passagem, Martín-Santos imita e parafraseia não tanto o estilo de Cervantes porém mais a ironia sarcástica de Quevedo. Além da alusão à “compenetração” e “amizade” entre cavaleiro e escudeiro, além da semelhança estilística e das alusões para dar continuidade à intertextualidade com Cervantes, 94 Martín-Santos aproxima Pedro a Quixote, colocando-o como o que medita e, Amador a Sancho, como o que se ocupa mais das coisas dos sentidos, das coisas práticas, ao agregar: Esto iba meditando Pedro sin comunicar tales pensamientos a Amador que quizá no hubiera podido elevarse a la consideración de tales leyes cromático-geográficas sino que hubiera sugerido más simplemente el consumo de adecuados líquidos reparadores de la fatiga en cualquiera de las numerosas tabernas que se abrían invitadoras a su paso a través del paisaje urbano. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 29) Podemos, certamente, antever o Sancho guloso nesta descrição de Amador, louco para parar e beber algo para refrescar-se do calor da Madri outonal ensolarada, enquanto D. Pedro, como um D. Quixote quimérico, sonha, delira. Ao chegar às chabolas sua imaginação fantasiosa e quixotesca o faz ver, sob a ótica irônica do narrador, “los soberbios alcázares de la miseria”, “inverosímiles mansiones” e “omníricas construcciones” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.49), exatamente como D. Quixote que “vio no lejos del camino por donde iba, una venta, que fue como si viera una estrella que, no a los portales, sino a los alcázares de su redención le encaminaba” (CERVANTES, 1947, p. 54). Neste par, Pedro, como Quixote, é leal e inocente como quem não conhece a maldade, ou pelo menos se recusa a vê -la. Todos o enganam porque ele é o primeiro a enganar-se. Já Amador, Sancho, é esperto e matreiro: tem a esperteza de um velho macaco, a voracidade de um rato. Se ele acredita na missão do amo, Pedro, ou finge acreditar, como fica bem evidente depois que Pedro é libertado da cadeia e é rejeitado como pesquisador do Instituto de Pesquisas, é porque espera ganhar algo com isso – pelo menos um percentual nas vendas dos ratos de Muecas. Da mesma forma, nos reportando a D. Quixote, o bordel de D. Luísa é imaginado, ironicamente também, como “alcázar de las delicias”. Pedro, compenetrado de seus ideais quixotescos, prepara-se para atender o pedido de Muecas, de auxiliar sua filha doente, “y los preparativos que D. Pedro iniciaba eran clara muestra de que, dispuesto a todo, iba a seguir los pasos de Muecas hasta el mismo lecho del dolor presto a acabar con cuanto mal hay en el mundo” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 123). 95 No monólogo da velha da pensão, fragmento 17, ela reforça a imagem de Pedro associada a do Cavaleiro da Triste Figura: “y ese muchacho andará por ahí hecho perdido, como si fuera un perdido (…) Él es así, un poco distraido (…) No acaba de ver nunca claro (…) Pero el día que se vea comprometido (…) ha de caer con todo el equipo y cumplir como un caballero, porque eso es lo que él es, precisamente, un caballero. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 93) Ao chegar Matias à pensão, no domingo de manhã, para levar Pedro a sua casa, encontra-o dormindo e em lamentável estado. A dona da pensão, maternalmente, manda-lhe preparar um banho e chama a criada, a quem o narrador denomina de “la maritornes ceñuda” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.138) em uma alusão direta ao texto cervantino. Uma das grandes ironias de T S, com relação à quixotização de Pedro, é mostrar, como diz Carlos Jerez- Farrán, que: el medio social que ubica a Pedro es tan contrario a sus proyectos vitales como el de Cervantes lo había sido a los de su héroe. Se infere, pues, que Pedro es el Quijote que la España moderna ha creado y suscitado. Es un Quijote, eso sí, pero carente de las cualidades que nos hace conmiserar con su bien intencionado precursor. (JEREZ-FARRÁN, 1988, p. 125) Este tipo de intertextualidade não tem a pretensão de modernizar o herói lendário que foi Quixote. Isto provavelmente acarretaria a idéia de uma crítica antiquixotesca, o que está longe das intenções de Martín-Santos que, muito pelo contrário, deixa Pedro parecer mesmo o que é, um homem comum, um anti-herói, cuja epopéia “es para esta España de la posguerra, para este país de bajamar políticas e económicas y de pequeñas y grandes injusticias, lo que la epopeya de D. Quijote fue para la de los Felipe”. (JEREZ-FARRÁN, 1988, p. 125). Pedro é o herói possível para este momento histórico. É um Quixote decaído, aviltado. O desejo de Martín-Santos por “imitar“ ou parafrasear temas y atitudes dos personagens do Quixote, como analisa Manuel Sol em seu trabalho D. Quijote en Tiempo de Silencio: “no tiene como objeto sublimar a sus personajes; todo lo contrario de la comparación, desde un punto de vista humano, o más que humano, moral, los personajes de Martín-Santos resultan degradados” (SOL, 1986, p. 80). 96 Além de já se ter mencionado a clara admiração de Martín-Santos por Cervantes se vai lembrar também o detalhe apontado por Ángel Basanta de que Martín-Santos “dedica un velado homenaje en la configuración de nombres de la mujer de Muecas”. (BASANTA, 1988, p. 42). Trata-se daqui das duas ocasiões em que ela é chamada de Ricarda, a primeira pelo marido, Muecas, e em outra ocasião, pela voz do narrador. Mais adiante porém, no fragmento 55, em que há um flashback da vida de Ricarda, esta é chamada de Encarna, “pelo como el de la Encarna, nadie” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 238). Mais que um erro do autor, Basanta aponta, concordando com a explicação de Alfonso Rey, que esse “erro” é intencional e o considera como uma brincadeira de Martín-Santos, pois, tal como Cervantes havia dado cinco nomes diferentes para a mulher de Sancho, aquele dera dois para a mulher de Muecas. Cabe aqui inserir alguns comentários fundamentais sobre essa personagem para que melhor seja compreendida a aludida homenagem a que Basanta se refere. Ricarda/Encarna é apenas “un grueso cuerpo de mujer casi redondo” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 59), mulher que “es alfabeta” no dizer de seu marido Muecas, uma presença “mole, mansa y muda” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 63), tão muda e inarticulada que, no auge do seu desespero, após a morte da filha, só consegue verbalizar: “Hija, hija” (MARTÍN-Santod, 2001, p. 135) em meio aos soluços, e de sua boca só se ouve um “rumrum’” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 133) queixoso e infeliz. Silêncio se impõe ao personagem pois ela “sigue tan callada” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 146), porém mantendo toda a dignidade trágica de uma Antígona grega, ao buscar, incansável, seguir a “Ley” (Martin-Santos, 2001, p. 175) maior, a dos deuses, e encontrar no mundo dos homens uma maneira de sepultar com dignidade a filha, dando-lhe as honras de um funeral com sinos e preces. Ironicamente, devido a sua incapacidade com o mundo da palavra, é de origem grega o termo usado para explicar-lhe o que vão fazer desenterrando sua filha: autópsia. Para quem sequer entende a própria língua, tal palavra não significa nada. Para ela o que importa é que, ao desenterrar sua filha, vão matá -la novamente. Embora Martín-Santos insista na descrição de Ricarda como um ser “redondo, sucio, maloliente” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 237) feito de “una tierra apenas modificada” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 237), ele reconhece nela “una 97 cierta actividad mental, no en forma de cálculo o de pensamiento, sino de coloreados fantasmas del pasado” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 237). É baseado na pequena atividade mental dela que ele vai compor, usando aquilo que ele capta na imaginação dela, um tipo de monólogo interior, verbal, sem dúvida, porém invadido pela força visual. São como imagens fotográficas de “ella misma”, expressão utilizada repetidas vezes, pelo menos doze, no monólogo que esse discurso é construído por Martín-Santos. Nele, no fragmento 55, entre as páginas 237-241, o leitor apreende Ricarda ao fazer, guiado pela engenhosa e criativa mão do narrador, o retrospecto da sua história de vida. Vida de privações e “dolor”, abusada pelo ‘alfenique’ Muecas, parindo com dor, construindo a casa com “las manos quemadas de la cal’ (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 238), tão espancada pelo marido que lhe batia “con la mano, con el puño, con una vara, con alambre largo” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 238), que a dor passa a “significar para ella medida del tiempo” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.239). A evolução da visão de Ricarda de um corpo gordo, passa a “la redonda consorte” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 127) e a “la madre redonda” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 135) para finalmente se engrandecer e se tornar um ser redondo de força telúrica. Telúrica porque é feita de uma terra apenas modificada, porque “ella misma se siente parte de la tierra caliente como un pan bajo el sol de julio, tan lejos de toda agua, siendo ella la única cosa fresca de la tierra”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 238); telúrica porque sua qualidade maior está identificada com a generosidade da terra que, ainda que ferida e magoada, devolve ao homem, em sua prodigalidade, o alimento e a vida, pois é ella misma partiendo en cuatro porciones un boniato y dando a las niñas y dando al alfenique que tiene mucha hambre y repartiendo las cáscaras y cociéndolas y dando de comer a toda la familia cuando los años del hambre (…) y ella no siente lo que es hambre porque no tiene la facultad de sentir sino la de esperar. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 239); telúrica porque a consoladora Ricarda “no había nacido para odiar” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 131). E, por não haver nascido para odiar, é “este ser de tierra que no puede pensar, que no puede leer, (…) que era la que podia cambiar las cosas de como son”(MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 239) que, na sua limitação e 98 ignorância, reunia apenas forças para repetir obstinadamente:” Él no fue. Cuando él fue, ya estaba muerta. Él no fue”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 241) É este ser que Martín-Santos privilegia por apresentar o traço de humanidade não corrompida de todo e salvar Pedro da condenação. Por isso receberá, no texto, a provável e lógica homenagem de ser a personagem com herança cervantina, aludida por Basanta. O professor E. C. Riley inicia um artigo que escreveu sobre a presença de Quixote em grandes romances do século XX, citando Ortega y Gasset.” Every novel contains D. Quijote within it like an ingrained watermark, just as every epic poem contains the Iliad, like the stone in a fruit”21. (ORTEGA Y GASSET apud RILEY, 1994, p. 73). Sem dúvida, Riley concorda com a colocação de Ortega mas, sua análise no referido artigo, não se prende à questão da influência propriamente dita, mas sim ao tema do herói quixotesco. Neste artigo ele escolheu cinco grandes romances contemporâneos para fazer suas observações, sendo que um deles é TS, por conter esta obra, “an explicit tribute to Cervantes 22” (RILEY, 1994, p. 82), tributo este que se vislumbra na digressão do fragmento 12. Riley aponta ainda que esta digressão ou meditação como ele prefere denominá -la (RILEY, 1994, p. 83), constitui-se numa passagem complicada “ analysis of which is difficult and interpretation uncertain23” (RILEY, 1994, p. 83). O que parece menos vago para Riley é que Pedro é um Quixote desiludido, que não podendo superar o mundo que o derrota, junta-se a ele e mais: TS “shows up heroism by making its absence conspicuous 24”(Riley, 1994, p. 84), e ao fazê-lo, Martín-Santos “ recalls the exemplary modern unheroic hero created by his compatriot Cervantes” 25 (RILEY, 1994, p. 84). O que se pode acrescentar a este aspecto observado por Riley é que, o não heroísmo de Pedro, a sua impossibilidade de tragédia, torna-o trágico, exatamente, como no Quixote de Cervantes, “the death of epic becomes epic 26” (ZERAFFA, 1976, p. 87), como afirma Zeraffa, com muita lucidez. 21 Todo romance contém em si D.Quijote como uma marca d’água entranhada, assim, como todo poema épico contém a Ilíada, como o caroço em uma fruta. (Trad. da autora) 22 […] um tributo explícito a Cervantes. (Trad. da autora) 23 […] cuja análise é difícil e a interpretação é incerta. (Trad. da autora) 24 […] mostra o heroísmo ao tornar sua ausência visível. (Trad. da autora) 25 […] evoca o exemplar herói moderno antiheróico criado por seu compatriota Cervantes. (Trad. da autora) 26 […] a morte do épico torna-se épico. (Trad. da autora) 99 Importante é lembrar que o fracasso de Pedro se deve ao fato de não ter ele esperanças de melhorar o país “donde la idea de lo que es futuro se ha perdido hace tres siglos y medio” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 80) e são exatamente três séculos e meio, como aponta Jerez-Farrán, separando a publicação do Quixote, 1605, da de TS, 1962. Tanto Cervantes quanto Martín-Santos, para evitar a censura, já que ambos viveram “en um tiempo obligado de silencio en el que la crítica moral, social e institucional se hacía – o por lo menos la hicieron ellos.”(SOL, 1986, p. 82), disfarçando-se ”en la ingenuidad de sus protagonistas, en la estructura y en la reconditez barroca de su estilo” (SOL, 1986, p. 82). Tanto D. Pedro quanto D. Quixote, em romances de caráter itinerante, perambulam, um por Madri e seus arredores, buscando glória e fama internacional, através do resgate da ciência de seu país, e o outro, por La Mancha e outros lugares de Espanha, levando justiça sobre a Terra e buscando alcançar também glória e fama. Em ambas as narrativas o final aponta para o fracasso dos heróis. Pedro e Quixote vêem o meio ambiente triunfar e suplantá-los. Zeraffa afirma que: Marx rightly observed that Cervantes’ heroe expiates the sin of believing that knightly errantry is compatible with any economic form of society. Yet Freud is also right when he emphasizes the extent to which D. Quijote goes beyond the author’s first intentions as soon as Cervantes provides him with wisdom, the nobility and the determination appropriate to people who believe 27 their ideals can be realized ” (ZERAFFA, 1976, p. 08) O herói de Martín-Santos também expia seu pecado por ter acreditado que poderia atingir seus ideais naquele modelo de sociedade. Só que Pedro, ao ganhar mais sabedoria, ao aprender um pouco mais sobre a sua realidade, retorna a seu status de cidadão comum, menor, esmagado sob o peso de um sistema que não permite ao indivíduo nenhum vôo mais alto. 27 Marx corretamente observou que o herói de Cervantes expia o pecado de acreditar que a cavalaria andante é compatível com qualquer forma econômica de sociedade. Freud também está certo quando ele enfatiza a extensão a qual D.Quixote ultrapassa as primeiras intenções do autor tão logo Cervantes lhe dá sabedoria, nobreza e determinismo apropriado a pessoas que acreditam que seus ideais podem ser realizados. (Trad. da autora) 100 Importante ressaltar que a presença explícita do texto cervantino não é objeto de parodia. Martín-Santos não vê o ideal do cavaleiro (nem D. Pedro nem D. Quixote) como falso. O que ele parece sugerir com esta transposição, como aponta Jerez-Farrán es que Espãna es un país reacio a todo tipo de mejora. El intertexto es pues, una revaloración de las aspiraciones y fracasos del país en el que D. Quijote fue concebido. (…) vemos sí un reconocimiento bien evidente de la validez del ideal quijotesco. (JEREZ-FARRÁN, 1988, p.125). Isto aponta para um outro paralelismo entre Quixote e Pedro. “En los dos la consciencia del fracaso aparece como um acto de lucidez final y de asunción de la derrota” (SUÁREZ GRANDA, 1986, p. 08). D. Quixote passa a considerar uma loucura lutar pela justiça e resigna-se a ter que comer garbanzos e uns palominos aos domingos, o que implica aceitar uma vida limitada e sem perspectivas. Pedro, por sua vez, também assume um novo caminho, acomodando-se a uma vida medíocre de médico interiorano, comendo perdizes, lebres e rãs e diagnosticando “pluritis, peritonitis, soplos, cólicos y um dia um suicídio com veronal de la maestra soltera” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 279). Martín-Santos, além da admiração por Cervantes, deixa claro que sente existir entre eles uma afinidade espiritual, pois comungam de valores humanos perenes e do mesmo idealismo. O final das duas obras, a de Martín-Santos e a de Cervantes, aponta mais que a derrota de seus protagonistas. Narra também o naufrágio de uma liberdade ilusória em um meio hostil a qualquer tipo de empreendimento reformador porque tanto hoje, no presente, com T.S., quanto ontem, no passado, com D. Quixote, o amargor dos narradores precisa se embeber de ironia para impedir que a lucidez do leitor naufrague num vazio e estéril sentimento de pena, dor e piedade. Pedro qual Quixote fracassa porque fez suas escolhas baseado numa análise ilusória, delirante e irreal. Somente transformando-se em escravo de seu destino, poderá se tornar um ser transcedente. É como se o fracasso dele, como foi também o do Quixote, se convertesse em fator de conscientização da alienação do próprio leitor. 101 Aqui, a ironia prece cumprir sua função como aponta Curutchet e faz com que “bajo tanto aparente negativismo, T.S. revele su paradójica condición de ejemplaridad moral” (CURUTCHET, 1973, p. 57). Porque aquele que andar pelas lágrimas perdido, sonâmbulo dos trágicos flagelos, certamente, vai encontrar o Supremo Triunfo nos tercetos de Cruz e Souza porque terá sido aquele que entrou por todas as batalhas às mãos e aos pés e o flanco ensangüentando, amortalhado em todas as mortalhas. Quem florestas e mares foi rasgando e entre raios, pedradas e metralhas ficou gemendo, mas ficou sonhando. (CRUZ E SOUZA, 1961, p. 217) 102 2. 4. 2 Ironia e Sarcasmo em Quevedo e Martín-Santos Em 1580 morria o imortal poeta português Luis de Camões e nascia o não menos imortal Francisco de Quevedo. Portugal naquele ano não perdia unicamente seu grande poeta. Ainda mais que isto, perdia também sua autonomia nacional enquanto Espanha, além de ganhar aquele que viria a ser uma das suas mais ilustres estrelas no constelado céu do século de ouro, incorporava à coroa de Felipe II, a nação portuguesa. Este renomado artista que chegava, viveria até 1645 na Espanha dos Felipes II, III e IV. No El Buscón, de Quevedo, publicado pela Espasa Calpe, na introdução escrita por Ignácio Arellano, encontramos informações do quanto Quevedo fora homem de extraordinária e enorme erudição, conhecedor de línguas estrangeiras, de filosofia e teologia, tradutor de textos clássicos e suas obras estão repletas de referências, aluões e citações de escritores antigos emodernos. Estes seus traços podem perfeitamente ser transpostos para Martín-Santos, homem também de notável erudição, conhecedor de línguas estrangeiras, de filosofia e de psicologia, doutor em psiquiatria com estudos de pósgraduação na Alemanha, amante de textos clássicos e modernos, e cuja obra, T.S., está igualmente repleta de referências, alusões e citações de outros escritores antigos e modernos, nacionais e estrangeiros. Temos assim uma situação de proximidade entre essas duas personalidades literárias e de tendências, em ambos, ao uso constante de intertextualidades em suas respectivas obras. Há ainda uma outra característica da personalidade de Francisco de Quevedo oriunda de sua poderos inteligência: sua profunda curiosidade intelectual que se alia a uma mente lúcida e a uma ética rigorosa. Também tal descrição pode ser feita de Martín-Santos, o que mais uma vez vai aproximar essas fortes personalidades literárias que apresentam em seus discursos algumas características bastante semelhantes, como, por exemplo , a profunda força crítica que aparece nos seus textos e onde transparecem preocupações éticas. Ambos viveram momentos de crise em sua Espanha. Quevedo de 1580 a 1645 e Martín-Santos de 1924 a 1964. Quevedo assistindo às crescentes dificuldades de Felipe II para a manutenção do império espanhol e aos fracassos de 103 Felipre III, panorama que vai contribuir para a construção de sua sofrida e pessimista visão de seu país. Martín-Santos, que dos seis aos doze anos de idade, ainda sem consciência plena da vida, vi ve a República espanhola que busca se solidificar e erguer a nação espanhola, vai, a partir daí, assistir à derrubada dessa república e passar todo o período restante de sua vida marcado tanto pela situação de divisão da Espanha – las dos Espanas – quanto, e principalmente, pelo rigor autoritário e castrador da ditadura franquista. Seu tempo é o da Espanha desigual, faminta, doente, inculta, injusta e controlada pela mão de ferro dos falangistas prontos, a qualquer momento, a colocar o garrote vil nos adversários de seu regime. Sob condições políticas e sociais árduas, ambos vão construir suas obras complexas que revelam seus fortes ataques aos vícios, aos erros, à corrupção social que denunciam em seus textos, valendo-se, tanto um quanto o outro, da força expressiva da crítica satírica e da ironia. Tendo percebido a presença de traços da prosa quevedesca no texto de Martín-Santos, optou-se pela leitura de uma obra em prosa daquele escritor para que se pudesse encontrar pontos de convergência na tessitura desses dois discursos, o de T.S. de Martín-Santos e El Buscón de Quevedo. Se T.S. sofreu com a mutilação de seu texto pelos censores franquistas, El Buscón, também teve que ser ‘retocado’ e teve modificada sua edição original para obter sua aprovação. Suas referências à religião e sua irreverência precisaram ser atenuadas para não lhe causarem maiores problemas. El Buscón, narrativa que segue a linha da picaresca amarga é uma narrativa dividida em três partes onde, Pablos, “el buscón”, conta sua origem, sua infância, sua adolescência como criado de D. Diego até sua juventude livre de andarilho que parte para a corte narrando os encontros que se sucedem neste caminhar até chegar à narração das espertezas e artimanhas de que lança mão para sobreviver na corte. Dentro desta organização estrutural, trama e divisão de eventos em seqüência temporal-linear, o que vai ser de maior interesse para este estudo prendese ao uso da linguagem e aos pontos de contato que esta narrativa encontra com os de T.S. El Buscón oferece ao leitor, de forma impiedosa e crítica uma visão grotesca do ambiente picaresco com a preocupação de conseguir um efeito de comicidade. A 104 repulsiva figura do pícaro vem a ser a concretude do mundo abjeto em que só têm existência real as mais baixas incli nações e, por conseguinte, não sobra espaço para nenhum ripo de idealização. T.S. também oferece essa visão crítica da realidade espanhola e as pinceladas grotescas ocorrem na carcterização de personagens como Muecas, e como Cartucho, onde a sordidez de sua moradia é descrita assim: Cartucho pertenecía a la jurisdición más lamentable de los distintos distritos de chabolas. (…) La de Cartucho (o más bien la de anciana madre de Cartucho) era una chabola avinagrada en precariante y casi cueva. Estas chabolas marginales y súcias no pretendían ya como las otras tener siquiera apariencia de casitas, sino que se resignaban a su naturaleza de agujero mal oliente sin pretensiones de dignidad…(MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 139) Entretanto não se percebe tanto em T.S. aquela busca de comicidade mais procurada por Quevedo que por Martín-Santos. A propósito dessa diferença e pelo evidente tom de maior gravidade encontrado em T.S., acreditamos ter encontrado uma possibilidade de explicação nas palavras de Linda Hutcheon quando afirma que: Se raiva e hostilidade marcam um extremo negativado do espectro afetivo do uso da ironia, então um distanciamento relativamente sem emoção seria o outro. Mas argumenta-se que muitos ironistas apenas ‘parecem’ ser serenos e contidos na superfície como uma maneira de mascarar uma hostilidade real e um envolvimento emocional. (HUTCHEON, 2000, p. 69). Linda Hutcheon afirma ainda que esta forma de um escritor se auto apresentar distanciado em seu escárnio o leva a aparentar também uma calma e um controle em que quase se poderia percebê-lo descomprometido. Ela com isso sugere que possa haver um “distanciamento fingido e uma neutralidade aparente (…) que a ironia funciona como o único sentimento do inteldectual substituindo compromisso e sentimento por seu conhecimento cínico” (HUTCHEON, 2000, p. 69). Estas sugestões ela as percebeu nas idéias desenvolvidas por S. Gaunt, Troubadours and Irony e por C. Newman, The Post Modern Aura. Se o riso distingue o homem dos outros animais, o aparta de Deus, pois parece que não existe em textos religiosos ou em quadros sacros a representação da imagem de Deus sorrindo, não pelo menos, dentro da tradição judaico-cristã 105 ocidental. Dando continuidade a esta reflexão encontra-se no texto de Bakhtin, Questões de Literatura e Estética, no capítulo sobre os problemas da cultura cômica que, embora ao longo do tempo o princípio do riso tenha passado por transformações, ele subsistiu. “O riso não desaparece nem é excluído nas obras sérias, mas no grotesco romântico se atenua e toma a forma de humor, ironia ou sarcasmo” (BAKHTIN, 1987, p. 33). Em seguida, ele dá o exemplo de um escritor que havia apresentado suas opiniões sobre o riso juntamente com uma explicação sobre sua origem: a de que ele havia sido enviado à Terra, pelo diabo, e apareceu aos homens com a máscara da alegria e que estes o haviam acolhido com agrado. No entanto, mais tarde, o riso tira a máscara alegre e começa a refletir sobre o mundo e os homens com a crueldade da sátira. Lukács, por sua vez, aponta a importância da ironia dentro da composição do romance, evidenciando que a reflexão do indivíduo criador e a ética do escritor referem-se “à configuração reflexiva do destino (…), à efetividade desta relação com o destino e à consideração valorativa de sua realidade” (LUKÁCS, 2000, p. 86). Ele acrescenta, também, que “este ter de refletir é a mais profunda melancolia de todo grande e autêntico romance” (LUKÁCS, 2000, p. 86). TS é um romance autêntico e por isso sua ironia destaca-se na composição. Todo ataque aos mitos clássicos foi realizado por meio dela, e os demais, desde os da tradição judaico-cristã até os sociais, político-ideológicos também. A ironia de Martín-Santos é “el puente que une una palabra o idea a un significado que es opuesto al generalmente aceptado” (DOLGUIN, 1991, p. 62). Em TS, a força da ironia, enquanto contraste fortuito que parece um escárnio, serve como alavanca para erguer a trama, onde foi construído o pano de fundo espacial-temporal deste momento da civilização humana, Espanha nos idos dos anos 40, em que Martín-Santos lançou, por uns momentos, seu olhar. Para o romance, diz Lukács, e para TS, (digo eu) também, que A ironia é essa liberdade do escritor perante deus, a condição transcendental da objetividade da configuração. Ironia que, com dupla visão intuitiva é capaz de vislumbrar a plenitude divina do mundo abandonado por deus; que enxerga a pátria utópica e perdida da idéia que se tornou ideal a ao mesmo tempo a apreende em seu condicionamento subjetivo psicológico, em sua única forma de existência possível; ironia que –ela própria demoníaca– concebe o demônio no sujeito como essencialidade metasubjetiva e, com isso, num presentimento inexprimido fala de deuses 106 passados e futuros quando narra as aventuras de almas errantes numa realidade inessencial e vazia; ironia que tem de buscar o mundo que lhe seja adequado no calvário da interioridade, sem poder encontrá-lo(…) A ironia, como auto-superação da subjetividade que foi aos limites, é a mais alta liberdade possível num mundo sem deus. (LUKÁCS, 2000, p. 96). Luis Martín-Santos usou toda essa liberdade de que fala Lukács para explorar o uso da ironia em seu romance. Descreveu seu mundo ibérico valendo-se desta dupla visão que só ela podia, naquele momento histórico em que a censura era muito rígida, ajudar tanto a retratar quanto a refletir e mostrar o quão afastado este mundo se encontra do ideal ou da idéia do ideal. Com esta ironia demolidora, cujo caráter demoníaco aproxima-se do satírico, como assinala Sobejano (SOBEJANO, 1975, p. 357), Martín-Santos abriu as portas para penetração em um mundo de deuses passados/presentes onde as aventuras/desventuras deste Pedro errante e já sem forças, apenas comprovam que, perdido e derrotado, só lhe restava conformar-se com esta circunstância onde homem e mundo foram abandonados pelos deuses. Esta mesma ironia irreverente, satírica, está presente em El Buscón pois seu herói Pablos também parece perambular por um mundo no qual os heróis, enquanto representação coletiva nacional, já não existem mais. Neste tempo os heróis já o serão apesar de suas nações. Serão figuras inividuais num tempo sem espaço para atuações heróicas. Pablos perambula ao rés do chão pois é dali que o leitor assiste sua caminhada em direção a sua própria degeneração. Na narrativa do El Buscón, ainda que haja um humor mais solto, aparentemente mais divertido do que o do texto de Martín-Santos, percebe-se claramente que, por trás desse traço ‘alegre’, há uma profunda tristeza, um traço amargo. Toda a diversão encontrada nas aventuras/desventuras de Pablos se origina em causas lamentáveis: na fome, na miséria, nas trapaças, nas dores físicas e morais. Quevedo busca e encontra o cômico, o risível nas cenas em que narra pela voz de Pablos, porém o tom dessa comicidade é grave. Sua narrativa, ao mostrar grandes males da estrutura social de seu tempo, se configura como uma arte de protesto “contra la sociedad gobernada por los Austrias” (GÓMEZ QUINTERO, 1978, p. 113). 107 Dentre os muitos pontos de contato entre Martín-Santos e Quevedo deve-se salientar a presença de caricaturas de seus personagens, de ridicularizações, mais claramente burlescas no de Quevedo. Como exemplo cita-se a figura do clérigo Cabra, diretor da escola para onde Pablos e seu amigo Diego são enviados, cuja descrição é irreverente e jocosa. “Su andar era muy espacioso; si se desomponía algo, le sonaban los güesos como tabillas de San Lázaro” (QUEVEDO, 2002, p. 73). Ao referir-se às barbas do clérigo Cabra, Quevedo diz que estão “tan descoloridas de miedo de la boca vecina, que, de pura hambre, parecía que amenazaba comérselas” (QUEVEDO, 2002, p. 72). Esta descrição conforma um personagem deformado, criando um efeito monstruoso. Há ainda uma tendência à caricatura com o uso de apelidos. Em MartínSantos, seu personagem Pablo González é sempre mencionado durante todo o transcurso da narrativa como Muecas, pois tinha tiques nervosos e estes o levavam a fazer caretas, daí seu apelido. Esta humanidade é apresentada, em ambos sob um prisma deformador, negativo, animalizado, encharcada no delito, na embriaguez – no vômito, caso de Pablos e Pedro – que beira o grotesco, quando o leitor se depara, por exemplo, com a cena do banquete dos amigos do tio de Pablos, na segunda parte do texto, no capítulo IV do El Buscón, (p. 145-48). Tais traços não trazem ao leitor um riso aberto, leve, gostoso e sim, um riso que incomoda. No texto de Quevedo encontramos uma profusão de imagens, de alusões, de uso de termos religiosos, por exemplo, baralho é chamado de “jugueros ave-marías” (p. 37), outro exemplo “Turíbio casi muere como S. Estéban” (p. 185), ou os escrivães chamados de “Jesús Cristo” (p. 195) ou ainda “yo era el despensero de Judas” (p. 100). Estes exemplos nos remetem também ao texto de Martín-Santos onde essas figuras, comparações e imagens são igualmente freqüentes. Para só lembrar alguns como: Pedro comparado a S. Luis Gonzaga com rosário e lírio (p. 6), em certa altura (p. 117-18), Martín-Santos fala em “pueblo elegido”, “piscina de Siloé” e este “es su hijo muy amado”. Quevedo evidencia no seu texto uma grande quantidade de alusões literárias e culturais. Cita Lope de Vega, (p 131); el “Cid”, (p. 135); Bernardo del Carpio, (p. 135); Garcilaso, (p. 221) e alude a diretores de comédia famosos em sua época, (p. 222) e critica os autores de comédias, (p. 221). 108 Martín-Santos se utiliza destes mesmos procedimentos em seu T.S. como temos visto neste capítulo e inclusive faz uma digressão bastante longa no fragmento 60 onde tece comentários críticos à produção teatral espanhola superficial e de má qualidade, (p. 264-68). Quevedo usa palavras e citações em latim e Martín-Santos também as utiliza principalmente na boca de seu personagem Matias: (jubilatio in carne femina, p. 84). As repetições, os jogos de palavras longamente desenvolvidos com muita agudeza e implicações de idéias surpreendentes, as animalizações e as comparações com animais são também traços tanto de Quevedo quanto de MartínSantos. Cabe ressaltar que tanto o uso daqueles termos latinos e de termos científicos, abundantes no textos de T.S, reforçam, na narrativa de Martín-Santos, uma idéia de ensaio, de estudo de pesquisa, como se seu autor estivesse, na realidade, fazendo, através de seu texto, uma dissecção, um estudo da sociedade espanhola. Entretanto, a rigidez desse discurso de características científicas alternase com as altissonantes frases latinas de Matias “Fortuna audens juvat”, “Jubilatio in carne feminae” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 84), com o toque sutil do jogo de palavras com que, ao falar de expressionismo no ateliê do pintor alemão, brinca com as palavras “Bono, bueno, bien, bienes” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 86). A característica crítica e a natureza irônica de TS vão fazer surgir um jogo lingüístico, com intrincadas associações de palavras, criações de palavras, e com um forte excesso verbal. Estes elementos se espalharão pelo texto de TS e lhe darão toda uma característica própria que vão aproximá-lo do barroco. Assim, a esses traços apontados vão, ainda, somar-se outros como: os neologismos procedentes do francês, (foa = fois); do inglês (aicecrem = ice cream); do alemão e do latim, que geralmente são tido como elementos que reforçam a idéia da universalidade da alienação; o repetido uso de palavras com prefixo no (la nomadre, no-doncela, la todavia no-cadáver) como forma de enfatizar que está mostrando a realidade por meio do que ela não é, mas deveria ser. A reunião de todos estes traços vai aproximar a linguagem de TS da estética barroca que vai adaptar-se desmitificador, reforçando perfeitamente à caracterização de romance 109 el cinismo, ironia y sarcasmo de que el autor se sirve para sondear instituciones y costumbres sociales. La calidad inherentemente crítica de la ironia sirve para revelar uma realidad oculta que es radicalmente diferente de su aspecto aparente. (DOLGUIN, 1991, p. 89) Deste modo se complementam, o que está sendo descrito e a linguagem para descrevê-lo, já que o estilo retorcido, indireto, expressa o significado semântico do conteúdo com mais propriedade. Embora Martín-Santos tenha feito todo um fragmento intertextualizado com Cervantes, apontam alguns críticos como Curutchet, por exemplo, que sua linguagem entronca-se com Quevedo, “con toda una literatura criticista gestada en el seno de la corrupta y decadente sociedad española de la segunda mitad del siglo XVI y principios del XVII.” (CURUTCHET, 1973, p. 37). Assim, essa prosa criada por Martín-Santos, cheia de contrastes vai constituir-se numa herança direta do barroco, de uma clara dialética de contrastes, para uma realidade que é fragmentada, contraditória e decadente, igualmente à de Quevedo. Helmut Hatzfeld, em Estudos sobre o Barroco, menciona que os grandes autores do barroco, Quevedo entre eles, introduziram o que se tornará um traço europeu: a consciência do mal e da podridão moral (HATZFELD, 1988, p. 311), sendo El Buscón uma de suas obraa onde bem claramente esta característica se apresenta. Martín-Santos a retoma em seu romance, refugiando-se no estilo barroco para poder dar conta, através de seu projeto literário, de uma lúcida leitura e compreensão da realidade que retratou. O estilo barroco fornece a Martín-Santos as mesmas armas que a leitura mítica às avessas lhe deu: por trás do véu de um estilo grandiloqüente e altissonante esconde-se uma horrível, amarga e triste realidade. A linguagem desempenha portanto, papel tão importante quanto seus temas, mitos e intertextualidades. Ela distorce sua sintaxe, por exemplo, “incluso para Matias – cuya la casa era” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 150) ou quando, simplesmente, brinca com ela, lembrando o lúdico do barroco, por exemplo: Trás del pasillo por un momento, se atravesaba un patio lleno de automóviles. (…)Trás el que una nueva boca, ya más próxima a las fauces definitivas(…). Trás las que nuevas escaleras conducían a un espacio dispuesto al modo de bar americano,(…). Tras lo que nuevo serpenteante 110 corredor, ahora subterráneo, con luces de neón… (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.202). Este texto pode estar associado ao lúdico, sem dúvida, porém há um trabalho engenhosamente visível na sua construção. Em T.S. muitos seriam os exemplos que poderiam ser citados para ilustrar esta característica da escritura de Martín-Santos como o longo parágrafo sobre Madri, na página 15 construído com o uso da estutura que se inicia assim: “Hay ciudades tan(…), tan (…), tan (…), tan (…), repetidos cerca de 24 vezes, ou os textos encontrados nas páginas 48-51, onde são repetidas primeiramente a palavra “com”, 15 vezes. Ainda na página 49, não só a palabra “que”, mas também a estrutura na qual ela está inserida, começa a ser repetida 7 vezes e na página 51, a expressão “como si”, 9 vezes. Este traço de repetição exaustiva é percebido ao longo de toda a extensão narrativa de T.S. e conforma o aspecto verborrágico do romance. Sua capacidade de adjetivação merece que se mencionem dois exemplos: um, em que ele qualifica a cama da cela da prisão e o outro em que ele qualifica o maestro da conferência com adjetivos, locuções adjetivas e até mesmo frases e orações: 1.este lecho silencioso, indeformable, incombustible, intransponible, a prueba de fuego, a prueba de choque, a prueba de inundación, bajo el que persona alguna podrá jamás ocultarse, que nunca será arrojada alevosamente contra el guardián por preso mal intencionado. (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 212) 2.solemne, herático, consciente de si mismo, dispuesto a bajarse hasta el nível necesario, envuelto en la suma gracia con ochenta años de idealismo europeo a sus espaldas, dotado de una metafísica original, dotado de simpatias en el gran mundo, dotado de una gran cabeza, amante de la vida, retórico, inventor de um nuevo estilo de metáfora, catador de la historia, reverenciado en las universidades alemanas de província, oráculo, periodista, ensayísta, hablista, el-que-lo-había-dicho-ya-antes-queHeidegger…(MARTÍN-SANTOS, 2001,p. 158) Também trabalha sua adjetivação de forma elegante, ora colocando adjetivos antepostos, ora pospostos aos substantivos e ainda em séries de dois ou três. Exemplo: “el nivel económico, profesional, y hasta amoroso; una mirada franca directa y abierta; “consecutiva, escasa y lenta renovación” e “tranquila, polvorienta y 111 oscura sala”, alcançando sua prosa maior leveza e musicalidade, principalmente nos adjetivos antepostos e em número de três. Para dar uma idéia clara do cultismo lingüístico de Martín-Santos, o exemplo de estruturação do fragmento 49 é bem elucidativo. Ele constrói toda esta unidade dentro de uma fórmula. São seis parágrafos, todos iniciados por “Y venían/ y venía”, seguidos de um parágrafo iniciado por “Pero”. Seguem-se mais três parágrafos, iniciados por “Y venía/ y venían” e finaliza a unidade, com o último parágrafo explicativo, iniciado por um “Porque”. A fórmula seria: “Y venían/y venía” x 6 + “Pero” + ”Y venía/ y venían” x 3 + “Porque” = ao dia a dia da prisão. Para que se possa acompanhar, com mais clareza, este exemplo, seguem-se as citações iniciais de cada parágrafo: 1. Y venían los guardias maternales, anchos, gordos, altos, con sus grandes pechos cubiertos de grueso paño gris (…). (p. 218) 2. Y venía el guardia cualquiera al que le tocaba cuidarle y se asomaba al ventanillo (…). (p. 218) 3. Y venían otros y otros guardias, uno nuevo cada dos horas y nada les importaba(…). (p.219) 4. Y venían incansables(…) (p. 219). 5. Y venían otros dos acompañando a un ancianísimo que repartía rancho. (…) (p. 219) 6. Y venían guardias especialmente robustos, especialmente desarrollados, prematuramente encanecidos por el trabajo nocturno. (…) (p. 219) 1. Pero: Los que más le gustaba a todos los guardias (…)(p. 220) 1. Y venía otro guardia, ya em edad de ser padre e preso y explicaba como le había hecho (…) (p.220) 2. Y venía el mágico de lãs catacumbas, duchero divino(…) (p. 220) 3. Y venían los guardias consoladores que calmaban los llantos e hipidos inimterrumpidos de la mujer en la celda(…) (p.220) 1. Porque: Con una comprensión de la naturaleza humana (…) (p. 221) Enquanto intelectual, Pedro pode manipular a linguagem para racionalizar seu comportamento, porém Cartucho, com pouco domínio da fala, traduz mais diretamente suas intenções em ação. A mulher de Muecas, alienada da linguagem e por isso mesmo, sem poder manipulador, faz um relato absolutamente honesto de sua vida, e o faz mais sob a forma de imagens visuais que o narador verbaliza para ela. É ela, como foi apontado, quem inocenta Pedro, por não poder jogar com as palavras, por não conhecer o poder de manipulação do discurso. Os interrogatórios de Pedro na prisão são os melhores exemplos dos discursos manipuladores. Há um total desencontro entre aquilo a que Pedro se 112 refere e aquilo a que o policial se refere. Estas construções revelam todo um jogo de idéias e palavras que os tornam quase absurdos, com as idéias insinuadas com diferentes intenções dos interlocutores, como no exemplo: “–Así q ue usted (…) –¡¡Ya me estoy cansando!! (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 200-01). O outro exemplo termina com o próprio funcionário fazendo um resumo do que foi dito para o escrivão e Pedro, passivamente, concordando e assinando o que foi por seus inquisidores escrito. O exemplo desse diálogo atravessa todo o fragmento 54 que se inicia com: “Después de un número de horas o de días o de noches (…)” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 232) e prossegue até a página 237 quando se encerra com aquele resumo mencionado: “Pedro oía caer estas palabras com(…) (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 237). Também há imagens de luz (sol) e sombras (noite), em TS, que funcionam no esquema da técnica barroca do claro/escuro em que se pode perceber a representação da noção de consciência associada à área da claridade e a de inconsciência à área da escuridão. Ya había luz de dia. (…) Las chabolas aparecían en la luz de la mañana nueva sinrosadas, como si un reflejo de nácar las embelleciera provisionalmente por unos minutos, hasta que los rayos auténticos del sol, todavía oculto, las reconstituyera em toda su íntegra fealdad. (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 135) A luz é a fonte de verdade e a sombra , ou a ausência da luz, a esconde: “Doña Luisa sin levantarse(…) tomó un tomate y lo levantó, haciendo que el sol golpease con dureza sobre la pequeña esfera roja” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 178). Esta cena em que d. Luísa tem Pedro diante dela se completa quando a mesma d. Luísa que se foi “arrastrándose hasta la ventana y con gesto pausado pero consciente de sí mismo, cerró el paso al sol, constituyéndose de este modo de nuevo ama de la noche.“ (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 179). Ela, ao impedir a entrada de luz, impede a visão clara de Pedro. A linguagem produz significados através das contradições que existem entre falsificação da superfície do discurso e as suas implicações subjacentes. Para Martín-Santos, a ficção é como uma máscara que mitifica a realidade (LABANYI, 1989, P. 92), mas que através da ironia, pode mostrar as incertezas que 113 estão por trás do muro das palavras que o homem ergue para dar a sua vida o aparente conforto da solidez. 114 3.GOYA: ARTE ESPANHOLA ENTRE DOIS SÉCULOS Dans le roman comme en peinture, le créateur 28 finit par son génie et commence par celui des autres. André Malraux O título que escolhemos para esse capítulo alude ao fato de que Goya, tendo vivido de 1746 a 1828, teve a sua produção artísitca distribuída entre os séculos XVIII e XIX. Essa escolha também teve como finalidade chamar a atenção para o fato de que este terceiro capítulo se constitui num elo de ligação entre o estudo intertextual que permeia o percurso da tese pela tradição cultural espanhola que, iniciando-se no capítulo 2 com o Romanceiro e o mito fundacional da Cava Florinda, segue os fios intertextuais da narrativa e estende-se até o século XVII com Quevedo. Como a continuação das análises intertextuais saltaria dali para os escritores da geração de 98, lançando um foco especial sobre um dos intelectuais espanhóis mais influentes da primeira metade do século XX, Ortega y Gasset, haveria uma lacuna no percurso: o do século XVIII, já que estaríamos saltando da geração do Século de Ouro para a da Época de Prata. Desta forma a presença de Goya no texto de T.S. propicia a ponte históricocultural que faltava para que a continuidade do diálogo cultural se fizesse seguindo a seqüência cronológica. Cabe observar ainda que a questão intertextual que este capítulo vai explorar centra-se em uma citação feita em outro tipo de linguagem: trata-se da alusão literária a uma produção de artes plásticas, um quadro do pintor Francisco de Goya y Lucientes, El Aquelarre, de 1798, um óleo sobre tela também conhecido por Sabbath das Bruxas. 28 No romance como na pintura, o criador termina com sua genialidade mas começa com a dos outros. (T.A.) 115 O autor introduz esta referência no fragmento 32 de seu romance e será nela que este capítulo se centrará. 116 3.1. O COMPLEXO DIÁLOGO DOS TEXTOS A mitologia grega atribui à ligação de Zeus e Mnemósina a origem das musas. Mnemósina prende-se ao verbo mimnéskein, lembrar,o que a torna a personificação da memória. Após a derrota dos Titãs, os deuses pediram a Zeus que criasse divindades capazes de cantar condignamente a grande vitória dos Olímpicos. Assim nos conta Junito Brandão que “Zeus partilhou o leito de Mnemósina durante nove noites consecutivas e, no tempo devido, nasceram as musas” (BRANDÃO, 1986, p. 203. v. 1). O número de musas variava muito mas, já em Hesíodo, elas aparecem em número de nove e se fixam na época clássica grega: Calíope, preside à poesia épica; Clio, à história; Polímnia, à retórica; Euterpe, à música; Terpsícore, à dança; Érato, à lírica coral; Melpômene, à tragédia; Tália, à comédia; Urânia, à astronomia. Dessa concepção mitológica inicial surgem, posteriormente, na cultura grega, novos conceitos sobre arte. Estas novas visões levaram ao agrupamento das diferentes modalidades artísticas em dois blocos: o primeiro composto pelas artes caracterizadas pela utilização do intelecto, pelo esforço mental; o segundo pelas artes caracterizadas pelo uso do vigor físico e que por isso, possuíam menor status. A pintura incluía -se no conjunto das artes manuais enquanto a poesia não fazia parte de nenhum dos grupos pois, por sua origem sagrada, pairava acima desses aprisionamentos. Somente quando a poesia se aparta do mundo da oralidade para integrar o mundo da escrita, é que, paulatinamente, começa a perder sua aura sagrada. Apesar de Leonardo da Vinci haver afirmado que, com justiça “se queja la pintura de que no es incluida en el número de las artes liberales, siendo como es verdadera hija de la naturaleza y operando por medio de la vista, el más digno de todos nuestros sentidos.”(VINCI, 1964, p. 57), ainda então a separação continuava, embora já com a nítida idéia de valorização introduzida pelo Renascimento. Lee Rensselaer W. observa que o século XVII cultiva a teoria humanista da pintura e esta desenvolve-se em uma direção que antes havia sido ignorada, qual seja, a da idéia de correspondências, puramente formais, é verdade, entre as artes irmãs – composição e argumento, cor e palavra – (RENSSELAER, 1982, p.3). 117 Entretanto será no século XVIII, com Efraim Lessing, que a discussão daquela suposta união ou aproximação das artes parece ruir pois ele vai opor pintura, enquanto arte espacial, à literatura, enquanto arte temporal, apontando que pintura e poesia são criações essencialmente distintas pois usam meios diferentes – cor e palavra – em diferentes molduras de referência – espaço e tempo – o que inviabiliza qualquer analogia entre elas. (LESSING, 1998, p. 193). Abrem-se a partir de Lessing novos questionamentos e discussões porque aquela oposição apontada por ele, de certa forma, destrona a Ut Pictura Poesis 29 horaciana na qual a relação entre as artes pautava-se pela percepção da literatura uma vez que tanto o pintor como o escultor traduziam as palavras em imagens. Ainda que evidentes, e a publicação de Cours de Peinture et Litérature Comparées de Sobry 1810, as confirme, as relações entre literatura e belas artes continuam mal exploradas. “A França faz delas um ramo da estética e as envolve em abstrações”(ROUSSEAU, PICHOIS & BRUNEL, 1995, p. 82), explicando que as artes se endereçariam ao homem em geral, por dirigirem-se aos sentidos, e a literatura, a um grupo específico de homens, por dirigirem-se ao espírito, idéia que parecia evidenciar ainda uma questão com um certo grau de superioridade conferido ao literário. Contudo a realidade da produção artística humana dá continuidade a um caminho de entrelaçamento artístico há muito existente. Para lembrar somente alguns casos mais próximos de nós onde pintura, escultura e música ilustram o literário, ouvimos poemas sinfônicos e óperas de Berlioz e Gounod inspirados no Fausto; contemplamos pinturas e litografias de Ary Scheffer e Delacroix inspiradas também no drama de Goethe; nos deleitamos tanto com as ilustrações de Gustave Doré para o D. Quijote de Cervantes; bem como com as de Gravelot para o teatro de Shakespeare e as de Hoggart para o de Molière. Se artistas plásticos e compositores muito tomaram de empréstimo aos escritores, estes, por sua vez, também não são menos devedores àqueles. Vale também aqui relembrar casos bem expressivos como o de poesias de Théophile Gautier inspiradas em quadros contemplados quando de sua viagem à Espanha, como os poemas de Drummond inspirados na série de Portinari sobre os personagens cervantinos, D. Quixote e Sancho. E, mais um exemplo, encontrado na 29 Como a pintura assim é a poesia. 118 obra de Rafael Alberti Noche de Guerra en el Museo Del Prado cujo subtítulo Água Forte, cujo prólogo escrito comovidamente como eco de sua poesia e cujo ato único que traz para o espectador aqueles personagens dos quadros do museu, demonstram o elo criado pelo autor entre diferentes manifestações artísticas: a pintura e a literatura, sendo esta última lida à luz de sua poesia e de seu teatro. Assim, os estudos de literatura comparada e o avanço de suas concepções teóricas levaram esta disciplina a ultrapassar fronteiras nacionais e lingüísticas, detendo-se não só nos problemas das relações interliterárias e intraliterárias, como também nos que implicam suas relações com outras artes. Se a literatura tocar fronteiras das artes, se estas estiverem no âmbito do verbo e da pintura – com o retorno do eterno debate sobre Ut pictura poesis – a literatura comparada hoje propõe muitos caminhos para que o estudo crítico de obras que estão em diferentes campos da representação artística possa ultrapassálas e explorar os pontos de interseção entre elas. Com isto acentua-se “a mobilidade da literatura comparada como forma de investigação que se situa entre os objetos que analisa, colocando-os em relação e explorando os nexos entre eles, além de suas especificidades.” (CARVALHAL, 2004, P. 74). Este conceito de estudos de literatura tanto efetuados dentro de um mesmo sistema literário nacional, quanto para além das fronteiras de um país, e mais o estudo das relações entre literatura e outras áreas do conhecimento e das crenças humanas, quer sejam artes, filosofia, história, arquitetura ou economia, se englobam no conceito de literatura comparada que adotamos para trabalhar nesta tese. Esse foi o caminho encontrado para estudar este aspecto de T.S., como uma maneira específica de compreensão e interrogação do texto literário na sua interação com outros textos, literários ou não, e outras formas de expressão cultural e artística. Como coloca Sandra Nitrini, “a literatura comparada acena para um cruzamento de metodologias (…) com perspectiva de aproximação da literatura como tal e de sua relação com outras artes e outros domínios do saber” (NITRINI, 1997, p. 123). A complexidade do diálogo entre o texto e a pintura, entre T. S e Goya, não se restringe nem cessa somente com uma busca conceitual que permita estabelecer laços entre esses dois meios de expressão. Ela apenas começa, sobretudo quando, 119 como nossa epígrafe inicial do capítulo sugere, diante do gênio de Goya e da brilhante engenhosidade textual de Martín-Santos. 120 3..2. A INTERTEXTUALIDADE NA REFERÊNCIA AO QUADRO DE GOYA Entre os vários elementos discursivos de T.S. que aparecem ora nas descrições, nas passagens narrativas, ora nas reflexões do narrador, a ironia aprece como elemento constante: ironia sobre os valores morais e espirituais dos habitantes das chabolas, dos moradores da pensão, da dona do prostíbulo, do filósofo altissonante, da pseudo-intelectualidade reunida no café literário, enfim, sobre o homem fruto de uma sociedade também criticada e que impõe esses valores vividos por “el buen pueblo”, (p. 264), entrevistos no espetáculo do teatro de revista no fragmento 60 (p. 261-68), onde a ironia vai além do povo, recaindo sobre a história, as instituições e as artes vulgares como as desse tipo de comédia que o povo acrítico assiste. Esses comentários irônicos fazem parte das reflexões abundantes do narrador, o que quase permite que se perceba o romance como um tipo de ensaio. Neste sentido merece uma especial menção certos casos de digressões puras ou dissertações ideológicas encontradas no texto de T.S. onde aqueles comentários críticos e irônicos se inserem cabalmente. A primeira delas é sobre Cervantes, no fragmento 12, da qual já nos ocupamos no capítulo anterior. Outra é sobre os touros no fragmento 48, outra mais sobre a produção teatral das comédias ou revistas de baixo valor estético no fragmento 60 e finalmente essa de que nos ocuparemos agora: a digressão sobre o quadro de Goya no fragmento 32. Essas digressões formam um corpo unitário em que se colocam os graves problemas sociais do país. Nelas se fazem as alusões ao passado histórico espanhol e à continuidade de suas mazelas no presente. Por esta razão elas promoveriam uma busca pelas autênticas motivações do viver hispânico. Elas são também passagens chave para entendimento do profundo significado do romance. Será de acordo com esta perspectiva que se vai buscar o entendimento dessa digressão com o quadro de Goya. Antes entretanto é preciso chamar a atenção para o fato de que no desenvolvimento da ação do romance há alguns saltos bruscos de uma cena para outra ou de um ambiente para outro, e quando estes são feitos, com a utilização por vezes, do monólogo interior, o leitor pode ficar momentaneamente inseguro sobre 121 quem está falando ou onde se situa esta fala, porém, aos poucos, isto vai sendo clarificado e pode-se então apreender o texto e seu significado em sua totalidade. Raros são os saltos temporais da narrativa, exceto poucos, raros flash backs, como no monólogo da velha da pensão, por exemplo. A organização temporal da narrativa segue um desenvolvimento relativamente linear. O ordenamento dos acontecimentos, dentro da arquitetura narrativa de T.S. seguindo de modo mais simples a linearidade, resulta bastante impactante principalmente quando se leva em conta o contraste desta simplificação temporal com os excessos lingüísticos, os traços barrocos de sua prosa, a sofisticação de seu vocabulário e a erudição de suas referências culturais. Um raro exe mplo de interrupção temporal ocorre quando Pedro e Amador, no caminho para as chabolas em busca de cobaias, são interrompidos no fragmento 7 (p. 40-48) para que o leitor conheça o dia a dia da vida de Pedro na pensão e sua relação com as três mulheres, Dorita, Dora e a avó de Dorita, dona da pensão, as Três Parcas, que tecem seu destino. Assim as seqüências narrativas se encadeiam sem maiores entrelaçamentos do que aqueles derivados de suas proximidades espaciais, ou do que sua montagem sugere ao leitor. Nesta seqüência do fragmento 32 esse dado é importante porque logo no início dele, Pedro, ao acompanhar Matias até o quarto deste para ver o quadro de Goya (p. 151-154) está realizando uma ação que precede a conferência do filósofo no cine Barceló, fragmento 33 (p 154-158). Entretanto o que se percebe é que há aí uma justaposição temporal das cenas. O narrador se concentra no quadro de Goya mas ao comentá-lo salta até a conferência do filósofo trazendo aquilo que seria de um momento posterior, futuro, para o presente, permitindo que se faça um leitura simbólica: o Gran Buco do quadro é “el gran matón de la metafísica” ou vice-versa. Assim a paródia que Martín-Santos vai fazer com Ortega y Gasset centra-se na descrição do quadro de Francisco de Goya cuja reprodução está “casualmente” preso à parede do quarto de Matias, “pinchada con chinches en la pared de su cuarto con absoluto desprecio del mobiliário Império y del papel rosado que la recubría” . (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 150). Choca o olhar do leitor essa descrição que contrasta o aspecto mais refinado, nobre da decoração e dos móveis do quarto com a maneira deselegante, negligente, 122 para com o quadro que, mesmo sendo uma reprodução, sequer possui moldura e é fixado à parede de um ambiente mais sofisticado com simples tachas. Isso aponta certamente para uma outra inferência: é novamente através da marcada ironia que se mostra a desvalorização da obra de arte, que tem real valor, enquanto o refinamento do estilo Império que deveria ser desvalorizado por aludir a uma época imperial, de contrastes e decadência política, vivida por Goya, é ressaltado em sua imponência e sofisticação. Esta sutil implicação crítica abre também ao leitor a possibilidade de ler a censura implícita a toda uma sociedade acrítica incapaz de distinguir o real valor da qualidade da produção cultural de seu país. Depois dessa introdução contrastiva inicia-se uma minuciosa descrição do quadro por onde deslizam referências sobre a força, a potência física e sexual do Gran Buco, cujos chifres são um signo de glorioso domínio fálico. “En el que tener dos cuernos no es sino reduplicación de la potencia” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.151). Esta descrição também forma um contraste terrível com a condição feminina que o rodeia. É uma “muchedumbre femelle” onde esta palavra francesa alude não às mulheres enquanto gênero humano, pois para isso o narrador teria usado a palavra femme. Entretanto o uso da palavra femelle traz para o texto uma conotação mais pejorativa de fêmeas, de animais do sexo feminino, aludindo mesmo a animais em oposição a seres humanos, idéia que reforça aquela característica já percebida ao longo de toda narrativa de T.S. onde seres humanos são metaforicamente comparadas a animais. Assim, temos os exemplos encontrados nas pessoas na rua, na saída do cinema, assemelhadas a peixes num aquário (p. 225); na figura de D. Luísa, “hormiga reina” (p.175) no seu prostíbulo e na de suas prostitutas, laboriosas “obreras ápteras” (p. 175); nos assistentes da conferência do filósofo vistos como pássaros dos mais variados tipos e matizes (p. 160) e na procissão formada por Amador, Similiano, Cartucho e Matias, em que estes são comparados a ciegos gusanos (p. 187). Na visão do narrador a multidão de fêmeas parece lançar-se sobre o Gran Buco em posição de auparishtaka. Na verdade uma delas mais abaixo na tela e inclinada para a frente poderia sugerir essa associação sexual de felação a que o uso do termo auparishtaka, utilizado no Kama Sutra – explicação encontrada no 123 glossário de Suárez Granda, (p. 112), – implica. Algumas crianças apresentadas ao Buco, abortos vivos na sua esqua lidez, parecem suplicar-lhe que os revitalize, fortaleça, enquanto outros corpos infantis jazem já sem esperança alguma, presas da morte pela miséria, fome e inanição. Na parte superior do quadro, morcegos “oscilantes, tres y tres murciélagos descienden a posarse sobre los mismos cuernos que son motivos de fascinación” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 151). A presença dos morcegos traz ao espectador do quadro, pelo escuro do tom que os rodeia, uma idéia de mau agouro, de pessimismo. Ao mesmo tempo em que a pata esquerda do Buco parece tocar com leveza, como numa ação salvadora, a mulher a sua frente, seu olhar indica “el aire puro de la sierra lejana que muestra la vinculación a la tierra de todos nosotros, hijos suyos a la que volvemos! (MARTIN-SANTOS, 2001, p. 115), o que ambiguamente implica, tanto a questão da terra como natureza que pode salvar, quanto à terra a que voltaremos ao encontrar a morte. O narrador em seu percurso descritivo do quadro volta a insistir no fato de que são as mulheres que se voltam para o Buco para “escuchar la verdad. Precisamente aquellas a quienes la verdad deja completamente indiferentes. El levantará su outra pezuña la derecha y en ella depositará uma manzana” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 152).E neste momento ao dizer que o Buco do quadro colocará a maçã sobre a pata direita, Martín -Santos faz o corte narrativo da descrição do quadro para explicitamente concretizar a justaposição com a conferência do filósofo que, realmente, mostrará a maçã, porém este fato só irá ocorrer no fragmento seguinte, o de nº 33, nas pp. 154-160. A partir dessa justaposição, o filósofo, “el gran matón de la metafísica” (p. 152), e o Buco se fundem num paralelismo Buco/Ortega, para sustentar a idéia que Martín-Santos quer apresentar de Ortega – filósofo-teorizador das misérias de Espanha, envaidecido pela admiração reverencial feminina. Como no quadro, o real de Goya, não há maçã, será esta referência inventada que vai fechar o paralelismo e concretizar a justaposição. Esses dois fragmentos, o 32 do quadro e o 33 da conferência estão ligados a um outro fragmento, o 35, que narra uma recepção na casa de Matias em homenagem ao filósofo após a conferência. Estes três episódios sustentam a paródia a Ortega, paródia que se torna cruel e sarcástica ao denunciar o vazio de seu conteúdo e sua postura de ignorar a miséria do povo espanhol, tão acremente 124 retratado por Goya. Aqueles três fragmentos 32, 33 e 35 estão intercalados ao fragmento 34 onde, ironicamente, se narra o enterro de Florita, a vítima fêmea da força viril do Buco que, ao invés de transmitir-lhe vida, transmite-lhe morte. Cabe também indagar se não seriam esses fetos do quadro os filhos dessas mães bruxas, os representantes de “sangre visigótica enmohecida” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 153), e ao mesmo tempo as vítimas “de su sangre gótica de mala calidad”. (MARTIN-SANTOS, 2001, p. 153). Este comentário sobre o sangue gótico de má qualidade é mais uma forma que Martín-Santos encontra de ridicularizar as teorias de Ortega que, em sua obra España Invertebrada, havia apontado “la sangre visigótica” como responsável pela decadência espanhola culpando o fracasso nacional a sua origem biológica. O comentário de Martín-Santos, além de ironizar a teoria racial, está se colocando em aberta oposição a um argumento caro ao franquismo, à idéia de uma raça superior, também cultivada pela ideologia fascista. E, através da ironia com que essa colocação é feita, induz à desmitificação do tema politicamente mitificado pelo franquismo. No estudo intertextual podem ocorrer alusões a um imenso conjunto de objetos e pessoas. Estas são, em geral, mais de caráter literário, porém podem acontecer alusões indiretas a figuras fora do mundo literário, por exemplo, “el hombre de la barba”, do retrato na parede do laboratório de Pedro, que alude a Ramón y Cajal, grande pesquisador espanhol laureado com o prêmio Nobel. As referências ao mundo literário podem ser exemplificadas nas falas e diálogos do Café Literário, no fragmento 13. Assim, Matias vai dizer: “Hay que leer el Ulyses” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 79), aludindo, indiretamente, a James Joyce e, diretamente, a sua obra. Estas outras duas são alusões a escritores também famosos, Proust e Hemingway: “Mira, vale la pena, ha le ído a Proust” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 79) e “No, he leído a Hemingway” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 79). Há alusões também a provérbios, crendices populares, supertições, temas como bruxarias, touradas, raça e ciência, a fatos como, a Guerra Civil e a Inquisição, por exemplo, e a objetos, como esta alusão ao quadro de Goya, cuja perspectiva de análise entre texto e obra “can be found in the tension between artistic médium and 125 represented world.30” (MAYO, 1989, p, 156). Isto é: o que se constitui no ponto comum entre estas duas linguagens é a tradução da realidade que elas fazem. No processo de criação, tanto pintura quanto literatura, traduzem a realidade, uma criando imagens através de linhas e cores e a outra, criando imagens através da palavra. Neste fragmento 32, Pedro, ao ver-se diante da reprodução do quadro de Goya se sente surpreso e responde a Matias com certa indecisão quando indagado sobre o que achava do quadro. “¡Déjame mirarlo…! Casi no me atrevo (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 150). Este primeiro impacto de surpresa de Pedro logo se esvai quando, em seguida, inicia-se a repetitiva enumeração de epítetos para a figura dominante, central do quadro. Le grand Bouc, el gran macho, el gran buco, el buco émissaire, el capro hispánico bien desarrollado. El cabrón expiatorio (…)En el que el cuerno no es cuerno ominoso sino signo de glorioso domínio fálico. En el que tener dos cuernos no es sino reduplicación de la potencia. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p, 151) Assim também começa para Pedro a clarificar-se o significado desta visão, o ‘gran cabrón’, em toda sua força viril, inclusive mostrando seus atributos masculinos, com seus cornos circundados por uma coroa de louros, um ‘cabrón’ laureado, recebendo das mulheres, os corpos esquálidos, mortos ou quase mortos de seus filhos. Esta visão do cabrón laureado desperta em Pedro a lembrança dos seus íntimos desejos de ser ele também um laureado e talvez o faça lembrar igualmente de que há bem pouco tempo acabara de receber, como o cabrón laureado do quadro recebe aqueles corpos mortos, o corpo quase morto de Florita. Esta hipótese se confirma com a colocação do fragmento 34 que traz ao leitor o enterro de Florita, intercalado entre as descrições do quadro e da conferência, exatamente antes da seqüência final que será a recepção em homenagem ao filósofo. Será aí, durante esta recepção, que a imagem do corpo morto de Florita, vítima da potência fálica do pai ‘cabrón’, volta insistentemente à mente de Pedro e não o abandonará até o final do fragmento 35. 30 […] pode ser encontrado na tensão entre o meio artístico e o mundo representado. (Trad. da autora) 126 Percebe-se a nova justaposição que esta cena representa, entre Pedro e o cabrón laureado. O mesmo hipercriticismo que se encontra na tela de Goya existe, também, no texto de Martín-Santos, e esta é, certamente, uma das razões para a opção de Martín-Santos por um quadro deste pintor. Tal como Goya, “os quadros” da sociedade espanhola que Martín-Santos pinta e descreve em TS retratam “el aquelarre española con unos tonos tan fuertes que la realidad así reflejada aparece violentamente deformada, y desconyuntada” (ORTEGA, 1968, p. 257), tal como aparecem as imagens de Goya, especialmente as produzidas nesta fase final (1798), do século XVIII, até 1828. Também dentro de uma outra opção de perspectiva analítica pode-se dizer que as justaposições não se encerram aí. As perspectivas múltiplas, da narrativa de Martín-Santos, concretizam-se, neste episódio, através também daquela paródia a Ortega, já aludida, porém agora vista sob o ângulo do perspectivismo orteguiano, paródia essa refinadamente construída por Martín-Santos. Assim, temos: 1. a perspectiva do quadro vista a partir do texto do romance, no fragmento 32; 2. a perspectiva do quadro do ponto de vista de Pedro; 3. a perspectiva do quadro do ponto de vista do leitor que vai cruzar essas duas visões formando uma terceira; 4. e uma outra perspectiva, que será apresentada mais adiante, quando se descreverá o quadro dentro da ótica de seu tempo histórico, isto é, dentro da perspectiva de seu autor e de seu tempo. Dirá o narrador que são as mulheres que se precipitam, em direção ao Buco, já induzindo no texto a idéia de que são as mulheres ”las que se precipitan a escuchar la verdad” (MARTÍN-SANTOS, 2001,p. 152), aludindo portanto à verdade contida na conferência que o filósofo/Ortega vai pronunciar logo no fragmento seguinte e onde, de fato, serão as mulheres que mais se lançarão para ouvi-lo e serão elas que, e aí já incluindo também a mãe de Matias, cheias de empáfia e vazio, darão mostras de indiferença à essencialidade da maçã, como se não se importassem realmente com a verdade. 127 Assim, à volta de ambos estão as mulheres, ávidas e suplicantes, em volta do Buco no quadro e, pernósticas e vazias, em volta do filósofo, na conferência e na homenagem que lhe é feita em seguida. Na conferência, a maçã mostrada pelo filósofo ilustra, ironicamente, o conceito de perspectivismo. A noção de perspectivismo – de Ortegea – apontada por Mayo seria a de que a estrutura da realidade depende da visão que tomamos dela: “There are many views as there are modes of consciousness. Ortega develops his theory of perspectivism based upon the conviction that the relation between external reality and the perceiving subject is dynamic 31” (MAYO, 1989, p. 157). Para Ortega a perspectiva “is the order and form that reality takes for him that contemplates it32.” (ORTEGA apud MAYO, 1989, p. 157). Ortega explica, segundo Mayo, que o homem muda seu ponto de vista e a realidade muda sua natureza para ele. “In a world of private and changing perspectives, the reality of the object increases as it’s relationship increases33”. (MAYO, 1989, p. 157). Pode-se dizer que Martín-Santos usou a pintura de Goya e transformou-a em um processo criativo de sua narração. A moldura, normalmente rígida num quadro, aqui aparece maleável, e pode-se dividi-lo em quatro planos: • O plano original do q uadro de Goya. • O bode/demônio, el ‘cabrón’, segurando uma maçã que, não está na pintura, mas está no texto que o descreve. • Na definição que o filósofo dá de perspectivismo ao utilizar-se da mesma maçã. • Na ligação deste fragmento do quadro com uma cena, no fragmento 37, em que Pedro, ao esconder-se no bordel e D. Luísa, está, juntamente com esta, filosofando na cozinha, e ela “tomó um tomate y lo levantó, haciendo que el sol golpease con dureza sobre la pequeña esfera roja, Ella miraba el tomate por un lado. Pedro lo miraba por el outro. Ambos lo veían desde diferente perspectiva”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, P. 178). 31 Há tantos pontos de vista quanto há modos de consciência. Ortega desenvolve sua teoria do perspectivismo baseando-se na convicção de que a relação entre realidade externa e o assunto percebido é dinâmica. (Trad. da autora) 32 […] é a ordem e a forma que a realidade toma para aquele que a contempla. (Trad. da autora) 33 Num mundo de perspectivas particulares e mutantes, a realidade do objeto se amplia proporcionalmente ao aumento de sua relação. (Trad. da autora) 128 A sátira de Martín -Santos fica bem evidente. Eugene Mayo, com bastante lucidez, aponta que “this montage of fo ur distinct “paintings” with a common focus clearly implicates art, witchcraft, philosophy and sexuality, by blurring their boundaries he condemns them all to a common absurdity34” (MAYO, 1989, p. 159). Das quatro digressões apontadas em TS, esta do quadro de Goya, no fragmento 32, seria a segunda. Ela se integra perfeitamente ao todo do texto, mas deixa no ar a pergunta: Por que o quadro escolhido foi de Goya? Provavelmente, porque, como Martín-Santos se pretende um iniciador de uma nova narrativa, escolheu aquele pintor porque ele também representa uma quebra na tradição pictórica de seu tempo. Na introdução ao estudo da pintura de Goya da coleção Mestres da Pintura, este artista é o que prefigura toda a arte moderna, pois “esta se inicia com sua liberdade”, (BRUMANA, 1977, p.06). Goya mostra atrevimento e rebeldia contra o meio, traços que encontram eco na própria postura crítica de Martín-Santos. O fundamental na obra de Goya é “a abertura de visão, a aventura estética, a mordacidade crítica com que o artista invadiu a pintura de seu tempo e cujos ecos ainda soam nos tempos atuais” (BRUMANA, 1977, p. 24). Estas qualidades e traços se superpõem aos de Martín-Santos, cuja obra fecha-se aos lugares comuns da narrativa dos anos cinqüenta e abre-se, qual a de Goya, à originalidade que rompe caminhos passados e aponta a novos rumos. As intertextualidades que foram apresentadas neste capítulo apontam para um peso significativo de suas alusões dentro do romance.Não só a quantidade, que talvez a idéia de peso traga, como também a qualidade destas intertextua lidades indicam que o projeto de Martín-Santos quer ler a realidade, valendo-se do próprio universo ficcional. Olhar para trás, para o velho, revisitar os caminhos já percorridos não só para buscar reencontrar “el pueblo perdido”, nem somente como exercício de erudição de seu autor, foi a fórmula encontrada por Martín-Santos para viabilizar seu projeto crítico refazendo e recriando esses caminhos e sustentando sua narrativa através deste seu procedimento retórico. 34 […]esta montagem de quatro quadros distintos com um foco comum implica claramente em arte, bruxaria, filosofia e sexualidade; ao borrar seus limites ele os condena a todos a um absurdo comum. (Trad. da autora) 129 3.3. NOVAS RAZÕES PARA A PRESENÇA DE GOYA EM T.S. Neste capítulo cuja proposta é o estudo intertextual entre Goya e T.S., ou melhor, entre o diálogo estabelecido entre a pintura e a literatura no romance de Martín-Santos, parece importante o esboço de um cotejamento entre o universo artístico de Goya e a narrativa de T.S. Goya, pintor que segundo Malraux, “grita a angústia do homem abandonado por Deus” (MALRAUX, 1951, p. 97) e cuja obra este escritor considera como uma das aventuras “mais desesperadas entre as aventuras espirituais do Ocidente” (MALRAUX, 1951, p. 09) encontra seu ápice nas produções das pinturas murais da Quinta do Surdo e na sua produção de 1800 até o final de sua vida, 1828. Em 1746, começa na Espanha um novo reinado, o de Fernando VI, e também nesse ano, o país tem no nascimento de Francisco de Goya e Lucientes o prenúncio de um novo caminho para sua pintura. Os passos mais firmes deste artista se iniciam no âmbito da pintura cortesã que na época era a estética socialmente relevante. Esta é a época das suas pinturas dos cartões q ue serão usados para estampar tapetes. Seu aprendizado se constitui em uma longa caminhada que começa com a produção destes cartões, sob a orientação de Francisco Bayeu, em 1775, quando Goya contava vinte e nove anos. E, em seguida, passa por um paulatino, mas firme afastamento ao longo da década seguinte, até chegar a consolidar, por volta dos quarenta anos, seu distanciamento das características mais convencionais que dominavam a arte da pintura de então. Entre 1775 e 1792, Goya pintou mais de sessenta cartões para a fábrica de tapeçaria real. Chamar de realista o trabalho de Goya realizado nesta fase seria um pouco forte demais como lembra Hughes, porém deve se apontar que Goya, ainda que soubesse que seus trabalhos destinavam-se à nobreza, não os ambienta naquela classe social nem elege seus personagens na nobreza. Ele os buscava nas classes inferiores, na cidade e no campo. Quando suas cenas de tapeçaria são mais violentas ou dramáticas, como algumas o são, e sempre de uma maneira jocosa ou irônica. Mas estamos muito longe dos trabalhos 130 posteriores – o ceticismo corrosivo dos Caprichos e mais ainda do terrível realismo didático dos Desastres de la Guerra. (HUGHES, 2007, p. 108). O espírito dos cartões de tapeçaria é bem mais diáfano até porque, como acabamos de afirmar, eles se destinavam ao uso da família real e seus amigos. Uma vida tão longa como a de Goya assiste não só a desenvolvimentos e transformações de questões estéticas, como também assiste a profundas transformações de caráter político e social, como enfatiza Bozal. Cuando nace están vigentes el rococó y el neoclasicismo, pero durante el reinado de Fernando VI, primero, y, después, el de Carlos III, a partir de 1759, aunque el neoclasicismo se mantiene y, aún, se consolida, sería improcedente no advertir cambios de considerable importancia, muchos de los cuales están (…) en los orígenes del paso del siglo, los orígenes del romanticismo y la modernidad. (BOZAL, 2002, p. 19) É ainda Bozal quem afirma ser nesta época, da passagem de um século para o outro, que se clarifica na Espanha, com um certo atraso em relação à Europa, a questão da modernidade. Goya, além de seus trabalhos com os cartões, já começava a se notabilizar como retratista e em suas pinturas dos membros da nobreza e da família real equilibra com equanimidade as doses de realidade sem apelar para a bajulação servil. Retratar pessoas era na época de Goya “o ganha-pão de qualquer artista moderadamente bem sucedido. O mais antigo retrato atribuível a Goya foi de um conde de Miranda del Castañar, feito provavelmente por volta de 1773, antes mesmo de sair de Zaragoza” (HUGHES, 2007, p. 132). Por volta de 1785 Goya já está com sua fama de retratista consolidada e seus serviços são requisitados por pessoas importantes, políticos e nobres, e pelos membros da família real. Ao longo do século XVIII, observa-se a preocupação com a estética do sublime para cujo alcance o artista responde com a necessidade de ‘imitar’ a natureza, isto é, de passar tanto para a linguagem, no caso literário, quanto para a tela, no caso da pintura, aqueles aspectos do sublime encontrados na perfeição e na beleza da natureza, fazendo isso através das sensações e dos efeitos que esta ‘sublimidade’ produz no espectador/leitor. 131 Aliado ao sublime natural soma-se “lo sublime moral o espiritual (…) aspecto particular de la categoria que protagoniza buena parte de la pintura realizada bajo los auspicios de la Revolución Francesa y el imperio napoleónico” (BOZAL, 2002, p. 63). Paralelamente àquela estética do sublime enobrecido, desenvolve-se uma estética do sublime terrífico. Na Espanha, o terror se converte em fonte de gozo pois produz efeitos positivos sobre o ser humano, passando assim a ser encarado de forma positiva e admitido, portanto, no domínio da estética como o próprio Bozal assevera. Esta situação se manterá até quando algumas obras de Goya como “Desastres de la Guerra, algunas pinturas y dibujos de la época, se centren en la negatividad absoluta, sin positividad alguna, configurando un punto de vista patético”. (BOZAL, 2002, p. 63). O que é fundamental destacar no século XVIII é que o sublime tem curta e rara presença nas artes espanholas. Críticos como Bozal indagam se “el tradicional apego a lo terreno no será uma difucultad insuperable para que aliente lo sublime.” (BOZAL, 2002, p. 65), e isto cria condições para o surgimento, a partir do sublime terrífico, do grotesco. Nos Desastres, Disparates, nas Pinturas Negras e até mesmo em muitas de suas pinturas singulares – e aí se inclui o quadro El Aquelarre-Sabbath de das Brujas que Martín-Santos utilizou em seu texto – o grotesco e o patético foram marcas que permitiram a abertura para a modernidade artística que encontrou em Goya uma forte e fecunda manifestação. Com a morte de Carlos III, em !788, A Espanha, após breve luto, inicia o reinado o reinado de Carlos IV que teve Maria Luísa de Parma como sua rainha e consorte. Este reinado vai durar quase duas décadas, período que para Goya foi de sucesso material e social, apesar de que para seu país foi um período difícil pelas imensas dificuldades econômicas que seu país enfrentou e que acarretaram miséria e sofrimento para seu povo. Goya já era então o melhor pintor vivo da Espanha. Ele já começava a dar mostras de insatisfação com seu trabalho com os cartões para tapetes. Recebe inúmeras encomendas de quadros e retratos. No final dos anos 80, início dos anos 90, começam a aparecer na Espanha peças de teatro sobre satanismo e feitiçaria, elementos básicos do teatro popular espanhol. 132 A duquesa de Osuna, que gostava deste tipo de teatro e desses temas sobre feitiçaria, bruxaria e satanismo, encomenda a Goya, nos anos noventa, vários quadros pequenos sobre esses temas. Além dos trabalhos que Goya fez para a duquesa, ele produziu também alguns outros trabalhos em que esses temas vão aparecer. Dois deles se referem ao sacrifício de bebês e fetos, supostamente feitos pelas feiticeiras para Satã. Não seria de se estranhar que numa cultura pré-científica, como a espanhola desta época, com alto índice de mortalidade infantil devido às más condições de higiene, de alimentação, de doenças e infecções, esta situação social favorecesse o aparecimento de mitos sobre rituais de mortes de crianças atribuídas ao Demônio. Da mesma forma que se acreditava que Deus e a Virgem Maria protegiam e cuidavam das crianças saudáveis, também se acreditava que o Diabo e seu séqüito espreitavam as crianças para apoderar-se delas, especialmente aquelas doentias pois Satã lhes drenava as forças, retirava -lhes a vitalidade, sugava-lhes o sangue e as reduzia a pele e ossos. Como muitos pais espanhóis nessa época, talvez até a maioria deles, inclusive Goya e Josefa sua esposa, tiveram uma longa e dolorosa experiência da morte prematura de seus filhos. Josefa freqüentemente sofria abortos e dos sete filhos q ue deu à luz somente um viveu além da infância. A metáfora da feiticeira como ladra de crianças era então muito poderosa, não apenas para o povo simples e ignorante, mas até para pessoas da elite como a duquesa de Osuna. De qualquer modo o que isto nos leva a pensar é que Aquelarre, Sabbath das Bruxas como um outro quadro de Goya Escena de Brujas, ambos realizados em 1797-98, enfatizam obsessivamente o rapto, a tortura e a morte sacrificial de bebês. A primeira dessas duas obras é o quadro mencionado por Martín-Santos em seu romance do qual faremos uma breve descrição. Nele as feiticeiras estão reunidas para receber suas ordens e prestar homenagem a Satã, representado sob a forma de um imenso cabrón, bode com chifres curvos em forma de lira, entrelaçados por folhas de louros ou carvalho, que ocupa o centro do quadro. Uma velha segura um bebê adoentado que mal parece vivo. Uma feiticeira mais jovem e mais bonita a sua direita olha embevecidamente para Satã/cabrón enquanto embala sua presa, um bebê mais roliço e em melhores condições físicas, representando parodicamente ta lvez a Madona e o menino Jesus. 133 O cadáver cinza de uma criança repousa no chão à esquerda, e, acima dele uma mulher velha seminua, segura uma vara onde estão amarrados três fetos mortos. Satã estende sua pata dianteira num gesto mais suave de encorajamento à feiticeiras com seu bebê como se dissesse: Entrega-me, eu o quero, este é o sacrifício. Acessórios góticos de horror que então eram habituais também aparecem na cena.São os morcegos, também três, que batem as asas no céu onde, naturalmente, se vê uma lua crescente, indicativa de uma noite sem claridade excessiva. Deve-se procurar pensar em como Goya sentia estas questões e como isso se relacionaria com a sua fé católica. Talvez não encontremos uma resposta definitiva porém, com certeza, Goya não se sentia tão livre em relação a suas crenças religiosas. Ele e seus contemporâneos talvez tenham podido sentir que crenças como essas das bruxas e do satanismo eram mais tipicamente espanholas que uni versais. Claro que não podemos deixar de lembrar que a obra de Goya está repleta de uma sátira feroz dirigida ao clero espanhol: padres vorazes, sujos, embriagados e inclusive abusando de sua autoridade, fazem parte do universo das obras goyescas, onde transparece a indignação de Goya por perceber neles a traição à Igreja com suas atitudes. Goya não aceita a hipocrisia e está sempre alerta para descobrir em que momento os impulsos da fé, que deveriam libertar as pessoas, se transformam em supertição escravizadora. Pensamentos e atitudes muito próximos aos de Martín-Santos. Daí, também, seu fascínio pela religião “negra”, pela feitiçaria e pela magia. Também elas fazem parte das cadeias que atam homens e mulheres a sua natureza inferior e seus elos só podem ser rompidos pelo ato do escrutínio. Olhar, para Goya também é um ato libertador, como todo esforço para ver as coisas em sua real qualidade deve necessariamente ser. Pelos padrões espanhóis isso o tornava um tipo muito incomum de católico. (HUGHES, 2007, p. 190) A investigação sobre Goya reivindicada por esta tese, buscando elos, ligações, aproximações entre este artista e a narrativa de Martín-Santos, viu-se diante de um desafio insuperável e, para ultrapassá-lo, acabou por conformar-se com uma reflexão que ficasse mais articulada a uma formatação pedagogicamente ordenadora da vasta e genial obra goyesca. 134 Com certeza, para lidar com essa linguagem nova foi importante, sem dúvida, esse olhar talvez mais compartimentado da obra de Goya, mas que revelou-se bastante positivo no esclarecimento necessário para a apreensão dos aspectos amplos da obra desse artista. Privilegiou-se assim a possibilidade de uma apreensão ampla de sua obra a partir de grandes blocos ou núcleos de sua produção que se foram construindo ao longo de sua trajetória de vida onde os próprios eventos históricos e as conseqüentes transformações político-ideológicas ocorridas em seu tempo ajudaram a amalgamar. 3.3.1 Primeiro Núcleo da Obra de Goya O primeiro núcleo está constituído pelos cartões de tapeçaria, produzidos entre 1775 e 1795, presos a uma estética mais neoclássica, ainda que não totalmente imersos nela, porque mesmo então o gênio rebelde e criativo já ousava. 3.3.2. Segundo Núcleo da Obra de Goya O segundo núcleo é constituído pelos retratos, trabalhos que se realizaram ao longo de praticamente toda a sua vida, se estende desde o já mencionado quadro do conde del Castañar de 1770 até os que pintou após a guerra contra Napoleão e a posterior restauração monárquica com Fernando VII. Encontramos retratos como o do general José de Palafox, comandante espanhol que se destacara durante os ataques franceses, o retrato do duque de Wellington e o do próprio rei Fernando VII, data de 1814. 135 Nestes trabalhos, como observa Manuela Mena Marqués, Goya não pretendeu como outros contemporâneos como Mengs ou Batoni, Reynolds ou o próprio David, enfatizar o belo ou nobre do personagem, sua boa situação na vida ou suas riquezas, mas procurou, acima de tudo, a verdade. “En cada retrato es posible advinar uma historia, un drama, la bondad, la inteligencia, una flaqueza, un desengaño, a veces la estupidez del necio o simplemente la verdad”. (MENA MARQUÉS, 1996, p. 368). Em seus retratos Goya imprime cada vez mais a força do seu modo pessoal de pintar, onde sobressai a pujança de um estilo marcadamente pessoal e crítico, outro aspecto que também vai ao encontro das características de Martín-Santos cuja escrita igualmente possui essa força da marca pessoal e o olhar agudamente crítico da realidade. 3.3.3 Terceiro Núcleo da Obra de Goya O terceiro núcleo é constituído pela série de gravuras Los Caprichos de 1797 onde Goya mostra toda a sociedade de Madri. Embora neles apareça um ou outro camponês, eles se constituem numa verdadeira pantomima urbana, um retrato da vida na capital espanhola que condensa todos os extremos sociais, o que vai se constituir num ponto de aproximação com T.S. de Martín-Santos. Os anos que antecedem e os que se seguem à produção dos Caprichos conferem a Goya o atributo de melhor desenhista da história européia. Sem o desenvolvimento deste atributo ele provavelmente não teria se tornado o gravador que foi. Dizem os críticos que para entender os Caprichos é preciso saber como foram feitos. Entretanto, os aspectos técnicos envolvidos nestas gravuras não fazem parte da preocupação desta tese, que apena deseja apontá-los enquanto um dos mais brilhantes produtos da genialidade de Goya, determinar a época em que foram produzidos, entre 1796-97, mesma época do quadro presente em T.S., que são 136 cerca de oitenta gravuras com grande variedade temática que configuram um mundo sombrio apresentado através de um ácido olhar crítico. Dos temas dos Caprichos se destacam a feitiçaria, a crítica aos clérigos, a repressão inquisitorial, o mundo às avessas, a relação corrupta entre mulheres velhas e jovens expressando seu caráter celestinesco, a prostituição e o submundo madrilense com seus bas fond e seus tipos marginais. Todos estes temas são igualmente caros ao universo de Martín-Santos e neles, sem dúvida, reside um traço comum de visão entre pintor e escritor e já aponta possíveis motivos para a escolha de Goya como o autor do quadro aludido em T.S. É interessante lembrar que em fevereiro de 1799, Goya publicou um anúncio no Diário de Madri esclarecendo sua posição em relação aos Caprichos afirmando que “é tão próprio da pintura criticar o erro e o vício humano quanto o é da prosa e da poesia (…) que o autor não pretendeu satirizar os defeitos de nenhum indivíduo específico, em qualquer de suas composições”. (HUGHES, 2007, p. 219). Apesar das declarações cautelosas de Goya essas gravuras lhe renderam problemas com a Igreja e com os setores conservadores do poder espanhol. Cabe lembrar que nesta época a caricatura era muito mais livre na Inglaterra, onde a edição de gravuras satíricas tinha já certo status de profissionalismo, graças, principalmente, à agitação fomentada por William Hoggart em defesa do Copyright Act (Lei da Propriedade Literária e Artística) de 1735 que, se não impedia totalmente, pelo menos limitava bastante a possibilidade de processar ou perseguir artistas por difamação visual mas é preciso lembrar que, por lá não andavam instalados tribunais inquisitoriais. Na Espanha, tudo era bem diferente. Qualquer artista que ofendesse “pessoalmente o rei ou os seus ministros, que enfurecesse um nobre poderoso ou que provocasse a ira da Igreja, e dessa maneira, pusesse a Inquisição no seu encalço, tinha pouca proteção além de seus amigos influentes, caso tivesse algum” (HUGHES, 2007, p. 220). Esta situação obscurantista perdurava ao tempo de Martín-Santos pois este escritor teve também seu texto censurado e foi detido nas prisões franquistas por quatro vezes, embora não por sua produção literária, num período de vida tão curto como o seu. 137 3.3.4. Quarto Núcleo da Obra de Goya O quarto núcleo é constituído pela série de 75 gravuras, Desastres de la Guerra, não publicadas durante a vida de Goya. Elas se constituem em manifestaciones centrales, sino la central, de lo patético en la obra de Goya, constituyen una alternativa radical a lo sublime bélico y militar de las pinturas de la época y configuran una perspectiva desde la cual pensar y vivir la época moderna. (BOZAL, 2002, p. 234) Bozal aponta como eixos marcantes do patético goyesco, o terror, a desolação, a morte, a tortura, o sofrimento, a miséria e a fome, todos como paradigmas que dão conformidade à construção do mundo que lhes dá origem onde violência e crueldade se evidenciam em suas formas radicais, absolutas, decorrendo daí a fundamental exigência de narrá-las, de denunciá-las. Tais motivos, tais marcas, as encontramos todas no texto de Martín-Santos onde a miséria e o sofrimento não se confinam a motivos meramente temáticos nem ocasionais. Sua presença constante na narrativa define um horizonte de representação onde a morte e a frustração pessoal e coletiva de um povo resumem o significado da existência humana sob condições de arbítrio, barbárie e violência. Segundo Bozal a morte protagoniza a maioria destas gravuras, aparece em 34 delas, a fome em 14, a luta das mulheres contra os soldados, que provavelmente pode conduzir à morte, em 8. Em outras gravuras Goya representou como uma “sinfonia trágica” variações da morte onde diferentes procedimentos e formas de matar e morrer são apresentados em todo o seu aspecto de crueza e crueldade. O cuidado de composição que Goya teve para definição dos espaços dessas gravuras foi preciso, pois ele buscou não marcá-los, isto é, o espaço da cena não é o “de um lugar específico”. Goya esfumaçou os possíveis motivos arquitetônicos ou geográficos para o local não ser identificado como específico e sim, visto como espaços do mundo. Daí decorre o valor de negatividade absoluta enunciado por Valeriano Bozal. 138 Quando a guerra napoleônica se inicia contra a Espanha, o exército espanhol contava com cerca de cem mil homens e o país possuía uma população de 10,5 milhões de habitantes. O que complicava a situação espanhola era a falta de recursos para equipar, aumentar e manter seu exército. Com a perda das colônias americanas, a partir de 1810, mais ainda se fragiliza a situação espanhola porém, ainda assim, Espanha resiste por seis anos. Nos embates, os franceses geralmente ganhavam as batalhas mas não ganhavam a guerra. A campanha de Napoleão na península Ibérica acabou se mostrando um desastre tão penoso para o exército napoleônico quanto sua campanha de conquista em território russo. Não somente a presença do duque de Wellington no comando da força expedicionária britânica contribuiu para a resistência espanhola. Esta eclode da desesperada vontade coletiva de seu povo que inventa um tipo de guerra que nem Napoleão nem seus soldados jamais tinham ouvido falar: la guerrilla, palavra que nos últimos cinqüenta anos tornou-se corrente e bem conhecida da humanidade. Coube a Goya, assim quis seu destino, tornar-se o poeta épico de um tampo sacrificial de seu país. Essas gravuras que ele denominou Desastres de la Guerra e duas grandes telas onde registra o primeiro levante contra as tropas de Napoleão nos dias dois e três de maio de 1808, se constituem no seu cantochão de dínamos profundos porque Guerra é esforço, é inquietude, é ânsia, é transporte/ é a dramatização sangrenta e dura/ da avidez com que o espírito procura/ser perfeito, ser máximo, ser forte./ É a coorte das raças todas/ que se entrega à morte/para felicidade da criatura./É a obsessão de ver sangue/é o instinto horrendo,/ de subir na ordem cósmica descendo/ à irracionalidade primitiva. (ANJOS, 1994, p.324 ) O quadro do dia dois, El Dos de Mayo de 1808 en Madrid é um documentário amplo cujos detalhes se fixam nas retinas do observador porque são tão vívidos e diferentes dos demais quadros de batalhas pintados até então. No quadro de Goya o medo e a fúria retratados dissolvem as identidades ao reduzir o animal humano a suas essências primitivas e o decoro associado às antigas imagens dos homens em guerra arrefece, quase desaparece, o que explica a modernidade que se antevê nesta pintura. 139 Em contraste com o El dos de Mayo, documentário secular, o El Tres de Mayo tem caráter mais de “um retábulo, de altar religioso – dedicado, entretanto, à religião do patriotismo” (HUGHES, 2007, p. 367). Segundo Hughes, Goya usa neste quadro recursos da iconografia religiosa para levar às reações de piedade e louvor aqueles que o contemplem. O sucesso que a obra alcançou foi tão completo que sobrevive há dois séculos como exemplo de imagem de sofrimento e brutalidade da guerra. Essas impressões, acrescidas da visão do mártir do povo de Goya nessa tela, nos assombram hoje como assombraram a Martín-Santos cuja imaginação talvez tenha saltado dali para a imagem de um outro fuzilamento, o de Lorca, na Guerra Civil espanhola. O personagem de Goya, o mártir, está iluminado a partir de uma grande lanterna no chão que como diz Malraux “vous regarderez bien: elle n’éclaire que lui” (MALRAUX, 1974, p. 42) e ele, sob essa luz intensa e sobrenatural, ganha a aura de um registro poético. O nome completo deste quadro é El Tres de Mayo de 1808 en Madrid o Los fusilamentos em la Montaña del Príncipe Pio, sublinhado nosso para chamar a atenção para o fato de que no texto de T.S., no monólogo final do romance, no fragmento 63, o texto inicia-se assim: “Si no encuentro taxi no llego. ¿Quién sería el Príncipe Pio? Príncipe, príncipe, principio del fin, principio del mal. Ya estoy en el…” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 278). O personagem Pedro, neste monólogo, está em plena estação Príncipe Pio, nome da antiga Estação do Norte, estação por onde chegou à Madri e por onde agora está partindo. A coincidência com o nome do quadro de Goya acentua a situação sacrificial de Pedro também vítima do arbítrio e da violência. Outro aspecto a ressaltar ainda no El Tres de Mayo é que sua imagem de patriotosmo e de insubmissão do povo espanhol dialoga e responde a outra obra pictórica: o quadro de A. J. Gros: La Rendición de Madrid de 1810, que representa a entrega aboluta dos espanhóis, uma cena de verdadeira humilhação, com figuras humanas abaixadas, de cabeças quase tocando o chão, em que um dos personagens franceses no primeiro plano, à direita, segura a carta de rendição e anistia para os cidadãos de Madri. Não se pode, com certeza, saber se Goya chegou a ver o quadro de Gros, ou através de estampas ou se soube dele por informações indiretas. O quadro do 140 francês representa a ótica do vencedor, é compassiva e elogiosa aos heróis franceses, enquanto os dois quadros de Goya plasmam a resistência e a repressão. Os sentimentos de Goya sobre a guerra estão expostos no quadro e sobretudo na série Desastres de la Guerra. Goya não se ausentou da Espanha durante todo o período da guerra, de 1808 a 1814. Já tinha sessenta e dois anos quando ela se inicia, estava velho e surdo para ser chamado para o front. Entretanto, ainda que estivesse surdo, não estava cego e com sua sensibilidade apurada e desenvolvida pôde criar um vívido jornalismo pictórico através de uma arte voltada para a reportagem, arte que reafirma sua força de engajamento com a realidade enquanto ato de testemunho. Já não importa se o que está na gravura dos Desastres tenha sido visto por Goya ou não. O que importa é que criou uma espécie de ilusão a serviço da verdade: a ilusão de estar presente quando coisas horrendas aconteciam. Goya tornou esta ilusão explicitada, real, quando escreveu na gravura nº 44 “Yo lo vi”, na qual refugiados de um povoado fogem dos ataques franceses. Seu poder documental é comovedor. Suas gravuras são ancestrais das grandes reportagens visuais do drama da guerra a que o homem contemporâneo se acostumou a assistir pela mídia tecnológica do século XXI. Das oitenta gravuras dos Desastres, quarenta e seis descrevem incidentes de guerra de guerrilha. Dezoito delas referem-se aos efeitos da grande fome que devastou Madri, numa repetição histórica idêntica a que Martín-Santos viveu nos “anos hambrientos” da pós-guerra civil, cujos efeitos tanto ele como Goya presenciaram. Há mais quinze gravuras que se denominam Caprichos Enfáticos, com imagens alegóricas e satíricas que atacam o que se poderia chamar de ‘Desastres da Paz’, porque evocam as esperanças destruídas dos espanhóis que, após a derrota infligida por Napoleão, assistem ao retorno de Fernando VII ao poder, que revoga a constituição de 1812 e implementa uma política duríssima de repressão, censura e tirania inquisitorial. São tempos historicamente distantes dos de MartínSantos, mas ideologicamente vizinhos. Este núcleo dos Desastres de la Guerra se completa com a produção de uma série de pinturas que oferecem múltiplos pontos de contato com as gravuras. Este conjunto de quadros complementa a visão da guerra já antevista naquelas duas grandes telas a que aludimos antes, El Dos e El Tres de Mayo, e se somam 141 principalmente, ao Colosso, tela que faz referência a Marte, deus da guerra, sob cuja visão fogem todos apavorados, exceto um asno. Os Desastres de la Guerra se constituem em um elo entre o mundo dos Caprichos e o núcleo posterior das Pinturas Negras. 3.3.5. Quinto Núcleo da Obra de Goya O quinto núcleo se constitui de uma série de gravuras denominadas Tauromaquia em que Goya homenageia o grande ritual popular, a festa mais associada à Espanha: a tourada. Goya parece ter sido um aficcionado pelas touradas. Ele, e muitos espanhóis o acompanham nessa visão, via na corrida de touros uma metáfora particularmente intensa do destino humano: a luta entre a consciência humana, o toureiro, e o poder puro da natureza, representado pelo touro. Sua apreciação da festa popular se insinua no seu auto-retrato de 1794 em que ele se apresenta usando uma jaqueta bordada de toureiro. Talvez, como aponta Robert Hughes, Goya quisesse somente ganhar algum dinheiro com essas gravuras da Tauromaquia e divertir-se, ao elaborá-las, lembrando das cenas gloriosas que havia assistido. Goya parece apresentar nelas gravuras as origens do mito da tourada, tema ao qual o artista retornou algumas vezes ao longo de sua vida. As origens da tourada, como espetáculo público, tinham sido cavalheirescas quando nobres, cavalheiros engajados num combate com animais selvagens, estocavam-nos do alto de suas montarias. Esse rito se propaga pelas demais camadas sociais chegando até a plebe. Goya mostrou suas origens brutais porque as considerava a raiz autêntica de um ritual imemorial, introduzindo nas gravuras, lutadores mouros estabelecidos na Espanha que teriam adotado essa arte de caçar touros no campo. As emoções de Goya parecen estar enraizadas na velha Espanha e seu gosto pelas touradas estava, sintonizado com o de Ortega y Gasset, embora seus amigos ilustrados de sua época, Jovellanos e Moratín, não o compartilhassem. Luis- 142 Martín-Santos segue a tradição dos ilustrados e de uma legião de espanhóis que, como ele, mostram seu desagrado por esta tradição. Neste tema o diálogo Martín-Santos/Goya se retoma a partir do texto do romance, em cujo fragmento 48 o narrador faz sua terceira digressão. O texto se inicia com alguma alusões diretas a Goya: Si el visitante ilustre se obstina en que le sean mostradados majas y toreros, si el pintor genial pinta con los milagrosos pinceles majas y toreros, si efectivamente a lo largo y a lo ancho de este territorio tan antiguo hay más anillos redondos que catedrales góticas, esto debe significar algo. Habrá que volver sobre todas las leyendas negras, inclinar-se sobre los prospectos de más éxito turístico de la España de pandereta, levantar la capa de barniz a cada uno de los pintores que nos han pintado y escrudiñar en que lamentable sentido tenían razón”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 216-17) O narrador se refere a Goya como el pintor genial de majas e toreiros e, depois dessa alusão, constata que seu país possui mais ‘anillos redondos’, imagem que se refere às arenas de tourear, que catedrais góticas, e indaga-se ironicamente o que poderia isso significar, tratando-se de Espanha um país tão católico onde o domínio religioso sempre se manifestou tão amplamente em sua história. Martín-Santos prossegue em suas indagações, nesta mesma digressão, procurando entender quais seriam as possíveis motivações que levariam um homem a querer ser toureiro, a poder ser ferido ou morto pelo touro, e o que levaria outros homens a querer ver aquele toureiro ferido ou morto, convertido naquilo que eles realmente desejam que ele seja: “un pelele relleno de trapos rojos”. (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 217). Este ritual macabro para Martín-Santos evidencia tradição e drama, dois aspectos presentes nas touradas. E os touros, antes de entrar para essa dança da morte, passam por um ritual também não menos cruel pois são retirados de suas manadas, mantidos apertados em jaulas minúsculas, transportados em pânico, em fúria, até a arena, algumas vezes submetidos a outros tipos de ações violentas que lhes provocam dores e sofrimento intenso. Depois de derrotados e mortos pelos toureiros suas orelhas cortadas são exibidas como troféus diante de uma platéia exaltada. É a esse ritual que o narrador de T.S. está se reportando, esse ritual exorcizador de uma história de ódios e fracassos como seu texto explicita. Para que este exorcismo se concretize, é preciso que se busque 143 un cauce simbólico en el que la revitalización del santo sacrifício se haga suficientemente a lo vivo para exorcizar la maldición y paralizar el continuo deseo que a todos oprime la garganta. Que el acontecimiento más importante de los años que se seguieron a la gran catástrofe fue esa polarización de odio contra un solo hombre y que esse odio y divinización ambivalentes se conjuraron cuantos revancismos irredentos anidavan el corazón de unos y de otros no parece dudoso. ¿Llamaremos, pues, hostia emisaria del odio popular a esse sujeto que con un bicórneo antiestético pasea por la arena con andares deliberadamente desgarbados…(MARTÍNSANTOS, 2001, p. 217). Há no texto uma clara implicação de que somente através de um rito sacrificial, onde o rito é comparado ao santo sacrifício da missa católica e o toureiro a uma hóstia, se poderá conjurar e exorcizar ao vivo a maldição a que está preso esse povo. Só este ato de exorcismo poderá aplacar o desejo que a todos oprime a garganta. Desejo de liberdade e de libertação do próprio medo, um dos quatro gigantes da alma humana, sentimento inerente à condição humana, o mesmo medo que também sente o toureiro. Na verdade, o homem, como disse Marilena Chauí: “Tem medo da morte e de todos os males que podem simbolizá-la” (CHAUÍ, 1995, p. 36). Tanto o grito de dor ou de revolta, quanto o silêncio, trama fechada tecida pelo autoritarismo para calar a linguagem, despertam seu medo e, em períodos de arbítrio como os da Espanha de Goya e os da Espanha de T.S., o homem certamente tem medo da censura, da delação, da prisão, da traição e de tortura. Não sem motivo essa digressão é feita neste fragmento 48 do romance, disposta em meio de dois outros que se passam no âmbito do cárcere onde Pedro se encontra, local em que se exarceba a situação geradora de sofrimento, angústia e medo do ser humano. Ali o homem teme a autocracia do censor, a perfídia do delator e a crueldade do torturador. Tem medo de seu próprio ódio, desse ódio “que espuma a dor que mora n’alma e destrói cada ilusão que nasce” (CORREIA, 1961, p. 135), teme a loucura, o esquecimento e as torturantes lembranças que não se apagam. A morte do toureiro ou a do touro seria como a morte de um bode expiatório porque ela ocorreria em lugar da morte daquele que realmente origina o mal. Assim como Cartucho não consegue dirigir seu ódio contra o real causador de seu mal, pela sua incapacidade de percepção, também o povo não consegue perceber a fonte de onde se originam seus males, ou mesmo, se a percebe, não 144 dirige seu ódio contra a verdadeira causa do seu sofrimento. Ele o dirige a um bode expiatório, seja ele, toureiro ou touro. O povo sem visão crítica, não dirige seu ódio contra as estruturas sociais que geram os ‘francos’, símbolo da autoridade patriarcal, e acaba por dirigi-lo ao irmão, o que leva ao fratricídio, “a la gran catástrofe”, a guerra civil. A interrogação final encontrada no texto do fragmento 48 “¿Pero qué toro llevamos dentro? (…) ¿Qué toro llevamos dentro?… ¿Qué toro es ése, señor?” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 218) dirige-se a um nós plural, um nós/nação que somente interrogando-se sobre seu ódio e violência, somente olhando-se interiormente, às vezes mesmo com desgosto, poderá enxergar seu próprio rosto. Alusões a Goya ocorrem em outros momentos da narrativa de Martín-Santos cuja linguagem, como lâmina afiada que corta a própria carne, se dirige a todos os setores da vida pública, artística e privada do país. Desde a descrição inicial da cidade de Madri até praticamente o final do romance, essa força dessacralizadora de sua palavra vai demolindo o que sua visão crítica aponta como alvo. No fragmento 60, onde faz sua última digressão através da crítica aos espetáculos teatrais de baixa qualidade e à história de Espanha, o narrador, ao referir-se à vedete que mostra as pernas amareladas, Rodeada de la música apropiada que escriben los que tan acertadamente saben interpretar el alma coletiva de las muchedumbres, envueltas en el recuerdo de la historia feudal y fabulosa de las populacheras infantas abanicadoras de sí mismas y de las duquesas desnudas ante las paletas de los pintores plebeyos…(MARTÍN-SANTOS, 2001, P. 264) alude a Goya na expressão “pintores plebeyos’ e a sua obra: La Maja Desnuda, ao mencionar as ‘duquesas desnudas’ uma vez que a tradição consagrou a Duquesa de Alba como possível modelo desse quadro. O pintor é novamente mencionado mais adiante no seguinte texto: (…)l os venales ministros de Carlos III, conforte y regocije, y haga sentirse vengado al vencido pueblo que retrató el sordo a la luz de un farol entre mameluco y mameluco, exhalando chorros de sangre colorada en las mismas plazas sobre las que sobrevuelan nubecillas blancas, es materia de consolación…(MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 265) 145 A alusão a Goya e à Duquesa de Alba no primeiro exemplo ficam tão claras quanto a alusão ao pintor ‘el sordo’ feita no segundo. Entretanto, enquanto no primeiro exemplo o quadro aludido da Maja Desnuda fica abertamente explícito, neste segundo exemplo o quadro a que o texto se refere fica menos evidente para o leitor. Sabe-se pela descrição que é um quadro pintado ‘a la luz de un farol entre mameluco y mameluco’. Na verdade, estas informações do texto levam a duas obras de Goya: El Dos e El Tres de Mayo. Martín-Santos utiliza indícios que levam o leitor a pensar no quadro El Tres de Mayo quando diz ‘el vencido pueblo a la luz de un farol’ e quando diz ‘entre mameluco y mameluco, exhalando chorros de sangre colorado’ o leva a pensar no quadro El Dos de Mayo. Martín-Santos joga, ilude o leitor fazendo através de sua escritura um engenhoso cruzamento de informações, obrigando seu leitor a percorrer labirinticamente as linhas de sua narrativa. Neste quinto núcleo da obra de Goya que estamos percorrendo, pode-se incluir a imensa quantidade de obras e álbuns, como O Álbum C, um caderno de desenhos de Goya conhecido por este nome, que tratam da Inquisição Espanhola, instituição que Goya sempre detestara e que, em 1815, resolvera investigá-lo por obscenidade. Esta instituição instituída no século XV ressurgiria na época de Goya. A última pessoa a ser queimada na fogueira na Espanha por ordem do Santo Ofício foi uma visionária Maria de Dolores López, em 1781, no reinado de Carlos III. “Inevitavelmente um volume de documentos e lendas, uma parte essencial da Leyenda Negra, sobre uma Igreja implacavelmente cruel, iria condensar-se e cristalizar-se em torno da Inquisição.”(HUGHES, 2007, p. 389). Quase tudo foi registrado e ficou escrito. Martín-Santos, como Goya , também se refere à Inquisição em seu texto como no último exemplo citado de seu romance em que sublinhamos exatamente esta expressão ‘leyendas negras’ e em outras passagens do romance, como na também já citada, no capítulo anterior desta tese, ‘torquemadas paganos’. Desta forma se entrelaçam outra vez Martín-Santos e Goya sendo que este foi o primeiro artista plástico importante a deixar sua obra manifestar-se contra a Inquisição enquanto ela ainda existia e representava ameaça a seus críticos. E foi ele também o último e talvez o único artista ameaçado pelos inquisidores, ainda que em sua época a Iinquisição estivesse entrando em 146 decadência e perdendo poder. Todavia, combinada com o poder real conservador do início da primeira metade do século XIX, ela ainda se constiuía num obstáculo para o livre pensamento. Goya, além do tema Inquisição, representou outros aspectos da religião. Em seu quadro Procesión de Disciplinantes, as confrarias e seus membros com costas e peitos de fora, usando ‘corozas’ – chapéus cônicos longos –, se açoitavam com afiados chicotes. Essa era uma das excentricidades clássicas dos espanhóis que os ilustrados detestavam e colocavam-na no mesmo nível da tourada como sinal de degradação irracional. Como por volta de 1777 estes açoitamentos foram proibidos, quando Goya pinta sua Procesión de Disciplinantes, em 1812-14, ele está na verdade revisitando a velha antiga Espanha, ainda miticamente poderosa. Goya, ao revisitar este passado, mostra que essa é a cultura violenta e supersticiosa para a qual o retorno de Fernando VII os faz voltar. Ela combina com a Inquisição que o rei reinstituiu, em 1816. Esse mesmo olhar crítico retrospectivo faz Martín-Sntos na sua leitura do passado histórico espanhol mostrando ao seu leitor que essa é a cultura violenta e superticiosa para a qual Franco os faz retroceder. E aqui ambos, pintor e escritor se reencontram. 3.3.6 Sexto núcleo da Obra de Goya Este sexto núcleo é constituído pelos Disparates e Pinturas Negras. Antes de sua ida para a França em 1824, Goya havia terminado um outro importante conjunto de gravuras, em número de 22, que seriam denominadas de Disparates e que não foram publicadas enquanto estava vivo. Elas possuem um ar misterioso e poucos críticos se aventuram na busca de uma interpretação. Todavia a maioria deles se pergunta se elas não teriam sido criadas como uma declaração pública do pintor de irracionalidade e mistério ou se teriam sido elaboradas somente para desconsertar seus admiradores. O certo é que nelas o 147 lado pessimista da imaginação de Goya assume o primeiro plano, o disparate seria a condição humana natural. Dessa mesma época enigmática são as produções denominadas Pinturas Negras realizadas em seus últimos anos de vida e pintadas nas paredes de sua casa de campo, nos arredores de Madri, conhecida como Quinta do Surdo. Estas obras foram anos depois dali retiradas e remontadas em tela. Goya, doente e idoso ainda tinha vitalidade para dar continuidade a seu trabalho ainda que a crise em que seu país mergulhava fosse desanimadora. Fernando VII não aceitava a nova realidade das colônias na América e buscava organizar um exército para recolonizar o Peru. Os oficiais de Fernando, longe de apoiá-lo eram uma ameaça a seu regime. Muitos desses oficiais eram maçons. A Igreja e o rei odiavam a Maçonaria. O rei Fernando, ao colocar seu projeto de reorganização militar e reunir sua força em Cádiz, em 1820, pensando em partir dali para reconsquista peruana, saindo como líder, é colocado em cheque pelos líderes de seu exército e o poder se transfere para a esfera militar. Fernando é obrigado a jurar e aceitar a constituição de 1812. Espanha vive o triênio liberal de 1820 a 1823 mas com as bases do poder minadas pelo divisionismo. Fernando consegue, com apoio das forças Sagrada Aliança, lideradas pelo Duque de Angulême, retornar ao poder. Espanha outra vez se divide, instalando-se então uma onda de vingança e contra-terror, de criação de sociedades ultra-secretas que desencadeiam uma perseguição contra tods aqueles que pudessem ser suspeitos de liberalismos. As esperanças dos partidários da constituição de 1812 ruiram: tirania ainda mais absolutista, igreja no comando, Inquisição de volta e Constituição cancelada. Este é o quadro histórico que emoldura as criações finais de Goya. Serão as Pinturas Negras as criações mais dramáticas que ele pintou em vida e, sem dúvida, as mais íntimas já que não tinha um público em mente. Falava, pintava, para ele mesmo, pois os quadros estavam nas paredes de sua casa e não imaginou que seriam vistas um dia em outro lugar que não lá onde ele estava. Dessa fase final interessa mais diretamente para a análise de T.S. duas obras: Saturno devorando a su hijo e Las Parcas. Saturno devorando a su hijo é considerado o mais melodramaticamente horrendo do conjunto. O cadáver que está 148 sendo devorado pode ser de um filho ou filha, pois as proporções do corpo são de filho adulto, entretanto, suas formas físicas se assemelham às de uma mulher. O espectador está diante do apetite incontrolável de Saturno e da vergonha que vem com o vício. O espectador/leitor vê Saturno, qual Muecas, pai de Florita, olhos esbugalhados, atormentado por sua luxúria num incesto impensável. Mais que a fome de Saturno, choca a indagação que fica suspensa no ar: Em que tipo de sociedade pais comeriam filhos? Sem dúvida, naquelas em que o velho vê no novo uma ameaça mortal, uma sociedade tão resistente ao novo que a tradição, imaginada como autoridade absoluta, justifique o assassinato. Metáfora que fora do quadro se repete em T.S., não só com o incesto de Muecas, mas com a consolidação da morte de Florita, arquitetada por seu prórpio pai/Saturno, o planejador de seu aborto. O outro quadro deste conjunto das Pinturas Negras que deve ser trazido para o âmbito da leitura de T.S. é o de Las Parcas que não é, na verdade, um quadro de feitiçaria, já que as Parcas ou Moiras não eram bruxas. Há em T.S.constantes repetições dos termos dioses e também diosas. O termo diosas, este termo é usado para referir-se às três mulheres da pensão: “las tres diosas” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 43) que vão desempenhar um papel marcante no caminho de Pedro e são também chamadas pelo narrador de “la primera generación, la vieja solemne, fuerte, emprendedora (…) de natural monárquico y legitimista” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 41), representando aquela sobre cujos ombros recai a responsabilidade da continuidade daquele grupo, ainda que através de tramas, golpes e ardis. É, simbolicamente também, a representação do poder espanhol, tramando e articulando sua busca de legitimidade e assegurando sua continudade. “La segunda generación gravemente obscurecida por la madre impotente y por la conciencia de su historia anterior, subjugada y vencida” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 41), será apenas um elo de ligação, que dá continuidade e que se deixa manipular, integrando-se plenamente aos objetivos ditados pela mais velha. É a representação do ‘strato’ social espanhol, que vencido, entrega-se e integra-se, co-optado ao regime ditatorial. “La tercera generación no parecía em nada a sus antecesoras (…) tenía al natural lo que su madre había intentado fingir a lo largo de su vida” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 42), é a que representa a formatação perfeita do que foi imposto pelas gerações anteriores. É a representação 149 do grupo social que, mais jovem, já encontra-se moldado e ajustado aos padrões, modelos e objetivos do poder fascista. Cada uma delas possui uma tarefa a cumprir. A velha arquiteta os planos para por em funcionamento a armadilha contra Pedro. A filha, Dora, dá suporte aos planos da mãe e a neta, Dorita, cumpre seu papel de seduzi-lo embalando-se na cadeira e lançando-lhe olhares e sorrisos. As três põem em marcha “al engranaje en que la trimurti 35 de disparejas diosas lo había introducido”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 42). Julián Palley compara-as às figuras das ninfas Calipso e Penélope. (PALLEY, 1976, 173). E a pensão seria Ítaca, a casa para onde Ulisses retorna. Todavia, não parece que esta seja a melhor opção interpretativa, pois o verdadeiro retorno de Pedro, sua Ítaca, será a meseta castelhana. Quanto às três diosas elas respondem a uma ligação bem mais clara com as Moiras gregas, as Parcas, nome inclusive usado textualmente pelo autor para referir-se a elas: “las tres mujeres se volvían más claramente perceptibles para Pedro, como si las tres Parcas hablaran musitando lo que el hilo de su vida significaba” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 48). As Parcas latinas são as Queres gregas, são as fiandeiras, símbolos da grande mãe, que trançam os fios da vida e da morte. Queres, em grego, Kêres, termo etimologicamente ligado à raiz de Ker significa devastar e verbos como destruir e arruinar também não parecem estranhos a esta origem, segundo Brandão. (BRANDÃO, 1986, p. 228, v. II), para quem, inclusive, a determinação precisa do conceito Queres é bastante difícil. Entretanto, Junito Brandão salienta que as Parcas, como filhas da Noite, de Nix, já desde Homero até Platão, possuíam uma tendência a confundir-se com a Moira, que representa o destino cego. Elas são representadas por gênios alados, vestidos de negro. As Moiras estão ‘destinadas’ a cada ser humano e personificam não só o tipo de morte que alguém terá como também o tipo de vida que a cada um é determinado. Quanto à palavra Moira, ela significa a grande condicionadora da vida. A palavra provém de Meíresthai, obter por partilha, obter por sorte, repartir (BRANDÃO, 1986, p. 140, v. I), e assim Moira seria a parte, o lote, o quinhão, o que 35 Espécie de trindade na religião de Brahma. 150 coube por sorte ou destino. Este termo também remete à idéia de fiar, ocupação tida por feminina, simbolizando que o destino é fiado, tecido para cada pessoa. Esta é a idéia exata que se ajusta ao texto de Martín-Santos. As três gerações são as que estão fiando, tecendo a vida de Pedro, confeccionando-lhe um destino fixo, imutável, que não pode ser alterado. Esta idéia corrobora aquela outra, de que as mulheres da pensão significariam a oligarquia do poder espanhol que não permite ao homem fugir, escapar do que para ele foi traçado. A Moira, enquanto destino fixo, fatídico, não pode “nem ser alterado pelos próprios deuses” (BRANDÃO, 1986, p. 141, v. I). A idéia desta Moira inconteste projeta-se em três Moiras: Cloto, Láquesis e Átropos, cada uma com uma função específica. Por este motivo optou-se nesta tese por esta interpretação, e não a de Palley, pois essa ajusta-se, como uma luva, às três diosas de Martín-Santos. Cloto, a que fia, a fiandeira, a que segura o fio da vida, a avó; Láquesis, a sorteadora, a que escolhe, é Dora, ela enrola o fio da vida e sorteia o nome de quem vai morrer; Átropos, a que não volta atrás, a inflexível cuja função é cortar o fio da vida, Dorita, é aquela, que por ironia, terá seu fio de vida cortado. Aí estão simbolizadas as três gerações da pensão, fiandeiras do destino, mas ironicamente derrotadas em suas pretensões, pois seu escolhido escapa-lhes da teia, uma vez que seu destino será alterado pela intervenção de um outro poder, cego, bruto e selvagem, que rasga o tecido por elas preparado, subvertendo ironicamente, mais uma vez, o significado mítico. Neste episódio do romance, também aparece a fusão do mito grego com o cristão. As mulheres da pensão, se por um lado são Moiras, pensam segundo a força da ideologia católica. “Para las tres él tenía carácter de enviado” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 43), aquele que viria com poderes para mudar o destino da família. E, para cada uma delas, com um significado distinto. Para Dorita ele seria o “Ángel de la Anunciación” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 43), que lhe traria a boa nova, augurando-lhe a possibilidade de uma vida digna e abençoada. Para Dora ele seria a “Epifanía”, (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 43), momento religioso em que presentes são ofertados pelo nascimento dos filhos e também o momento em que são, oficialmente, anunciados os nascimentos, em que é dado a conhecer à sociedade o fruto digno da união legítima. 151 E para a mais velha ele seria a possibilidade de sua “transfiguración gloriosa en lo alto de un monte, sostenida por sus dedos” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 43), pois Pedro resgataria o nome da família, dando um sobrenome a sua neta e a elevaria à dignidade de ter, novamente, “reconstruido todo” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p, 115). E a continuação da citação será transcrita porque confirma a idéia de Dorita vir a ter o nome da família novamente sem manchas:” y la legalidad de tu apellido, por un momento extraviada, volverá a pasar cuidadosamente, con acompañamento de firmas y testigos, de generación en generación” (MARTÍNSANTOS, 2001, p, 115). Las Parcas é o maior quadro do conjunto das Pinturas Negras. Tal como Martín-Santos na sua busca de desmitificação, Goya também não se limitava ao esquema clássico antigo e em seu quadro vemos quatro figuras e não três como seria de se esperar na alusão ao mito grego das Parcas. No quadro, à esquerda, uma delas, Cloto, segura uma boneca entre as mãos que, para a leitura do romance pode ser associada à personagem Florita e que, no quadro, representa o lugar do fio da própria vida humana. Perto dela está Laquesis examinando, através de uma lente, o que deve ser o fio da vida, tão fino que seus velhos olhos já não conseguem discerní-lo bem sem essa lente. A terceira Parca, de costas para o espectador, segura uma pequena tesoura para cortar o fio, é Átropos. O problema é que há uma quarta figura no quadro que parece ser masculina, o que nos remete de imediato ao personagem Pedro de T.S. já que no quadro ele aparece com os braços atados às costas, imobilizado, como estão os movimentos de Pedro, nesta sociedade vigilante e rígida. A figura do quadro representa também um prisioneiro, tal qual o personagem de T.S. Além disso, esta figura poderia estar representando o herói atado, acorrentado, Prometeu, punido por ter ousado roubar o fogo sagrado, que simboliza o saber ou a consciência, saber esse que o pesquisador de T.S., qual Prometeu buscava para entregar aos humanos. Essa imagem do prisioneiro pode não ser associada ao Prometeu mitológico mas, sem dúvida, pode e deve estar associada ao personagem criado por MartínSantos em T.S. 152 3.3.7. Entrelaçamentos Finais Hughes observa que ainda hoje, no início do século XXI vemos poucos artistas que tenham conseguido criar arte tão eloqüente, moralmente urgente, a partir do desastre humano como Goya, e, certamente, por isso está em T.S. Goya foi um dos poucos grandes narradores da dor física, do ultraje, do insulto ao corpo e por isso está em T.S. Como diz Hughes “Goya parece ser mesmo uma verdadeira figura axial, a última do que estava acabando e a primeira do que estava por chegar: o último Grande Mestre e o primeiro Modernista”. (HUGHES, 2007, p. 22). E por isso está em T.S. A obra de Goya reafirma a idéia de que homens e mulheres devem ser livres da opressão e das supertições e que torturas, massacres ou quaisquer outras formas de violência física, são intoleráveis. E por isso está em T.S. A atitude crítica e irreverente com que Goya e Martín-Santos questionam a vida os fazem enxergar, nas estruturas da sociedade em que viveram, as falhas, as mazelas e os absurdos nelas existentes, e por isso também suas obras se entrelaçam, e Goya está em T.S. 36 36 Os principais quadros analisados neste capítulo foram colocados no final desta tese no anexo 1. 153 4. LABIRINTO E PARÓDIA NO TEXTO DE MARTÍN-SANTOS Primeiro ninguém pense que as obras e os cantos poderiam ser criados do nada. Eles estão sempre ali,no presente imóvel da memória. Quem se interessaria por uma palavra nova, não transmitida? O que importa não é dizer, mas redizer e, nesse redito, dizer a cada vez, ainda, uma primeira vez. (MAURICE BLANCHOT) Este quarto capítulo dá continuidade ao estudo intertextual iniciado no capítulo 2 e vai resgatar, no universo da geração de 98, aqueles elementos temáticos e formais que nosso olhar detectou como os mais significativos na narrativa de Martín-Santos. Desta forma esta última parte do percurso intertextual se concentra em qua tro aspectos: • na questão da geração de 98 enquanto conceito histórico-literário; • em Pio Baroja e sua obra El Árbol de la Ciência para confrontar elementos do universo e das preocupações barojianas que se mostram também em T.S.; • em Valle-Inclán e em sua obra Luces de Bohemia para destacar como a presença do elemento esperpêntico valle-inclanesco, se apresenta em T.S.; • em Ortega y Gasset, finalmente, para analisar alguns traços mais visíveis deste pensador, elemento chave para compreensão mais ampla de T.S. 154 4. 1. A GERAÇÃO DE 98: ORIGEM E INTERPRETAÇÃO DE UM CONCEITO A perda de possessões coloniais no continente americano, no início do século XIX, foi relativamente bem absorvida pela política nacional espanhola, e recebida como alguma indiferença pela população, provavelmente devido ao fato de que nessa época o país encontrava -se diante de problemas tão graves que todas as atenções se concentravam no âmbito interno de suas fronteiras. Essa atitude de indiferença vai contrastar com a forte reação de oposição ao movimento de libertação de Cuba, que se iniciara em meados do século XIX. A situação histórica do final desse século era bastante distinta daquela do seu início, fato que, certamente, motivava aquela reação interna mais intransigente de tentar garantir a manutenção das colônias que restavam. Os fortes vínculos entre Espanha e Cuba se faziam evidentes na importância considerável de Cuba, especialmente para a Catalunha. Todavia, por mais que tenha tentado manter os restos de seu antigo império, Espanha, ao defrontar-se com a força do expansionismo imperialista norte-americano, capitula e assina o tratado de Paris, concedendo independência à Cuba e cedendo Porto-Rico e as Filipinas para os Estados Unidos. Outra vez o país se encontrava paralisado e não se percebia internamente nenhuma reação pública mais forte ou violenta diante dessas perdas. Para quebrar o silêncio que se havia instaurado o futuro primeiro-ministro Francisco Silvela publicou no jornal de Madri, El Tiempo, um artigo intitulado Sin pulso em que acusava o país de passividade diante dos acontecimentos de sua política externa. Jovens escritores, jornalistas e intelectuais, respondendo à provocação do artigo de Silvela, começam então, a manifestar-se contra a classe dirigente e a culpá-la pelas derrotas. Assim, a partir de 1899, seus artigos e ensaios começam a circular em jornais e revistas e vão conformar a idéia de que uma nova ‘geração’ de escritores e intelectuais estava nascendo na raiz dessa crise de fim de século espanhola, já surgindo marcada por sua atitude de protesto contra o establishment, e por uma busca de algo novo e de uma regeneração política e cultural da Espanha. A primeira referência a essa nova geração aparece, na Espanha, após o ano fatal de 98 e a expressão originária utilizada por Gabriel Maura foi ”generación del 155 desastre” por ele empregada no seu artigo publicado no jornal Faro em 1908, como nos conta Donald Shaw (1997). Esta noção de geração oriunda da crise do fim do século espanhol evoluciona rápidamente hasta convertirse en un concepto historiográfico – la llamada generación del 98 – que ha tenido un papel significativo en la historia intelectual y literaria española de la primera parte de este siglo. (FOX, 1994, p. 16). Uma razão importante na evolução deste conceito deveu-se às discussões de Ortega y Gasset e Ramiro de Maeztu apresentadas em artigos publicados na imprensa, e aprofundados posteriormente por uma correspondência entre eles, a partir de 1908, na qual discutiam não somente o trabalho e o valor daquela geração – que incluía então Maeztu, Unamuno, Baroja e Azorín – como também discutiam seu posicionamento diante do problema da Espanha e da política espanhola. Tudo isso contribui para caracterizá -la como geração nascida com comprometimentos com questões claramente político-ideológicas. Donald Shaw aponta que Sin embargo la polarización del nombre ‘generación de 98’ se debe a uno de sus miembros, José Martinez Ruiz, Azorín, quien en 1910 escribe en breve nota Dos Generaciones en la que contrasta su propia generación con una más joven, de la que no especifica miembros acusándola de comercialismo y escritos pornográficos. (SHAW, 1997, p. 14). Azorín estabelecia como ano marco do surgimento desta geração, o ano de 1896 e nela inclui, além de si mesmo, Valle-Inclán, Baroja, Unamuno, Maeztu, Benavente e Dario. Há afirmações contrárias a que tenha sido Azorín quem teria cunhado o termo geração de 98: ele apenas teria recolhido um termo já em uso. Também quanto aos membros que apontados por Azorín pertenceriam àquela geração, discute-se a exclusão de Ganivet e Antonio Machado e a inclusão de Benavente e, principalmente, a de Rubén Darío, líder de um movimento distinto, o Modernismo, que se originara na América Latina e se havia estendido a Espanha. Estas são questões que levantam amplas discussões e polêmicas. Em 1910, Maeztu fez uma conferência intitulada A revolução e os intelectuais na qual ele dá uma definição mais completa sobre a geração de 98. Maeztu também 156 sinaliza para o fato de que os intelectuais que saíram do silêncio em 98 clamavam contra os erros na Espanha e que esses se encontravam na imprensa, na política, na oligarquia, na literatura, na ciência e na fixação dos espanhóis nas passadas glórias históricas, o que os inibia de uma crítica mais aguda dos fatos e situações vividos no presente. Para Maeztu a própria história havia traçado uma linha divisória entre os homens anteriores a 1898 e os que, como ele, vinham depois. Ele advoga a intervenção desses novos intelectuais na reforma do estado espanhol. As idéias de Maeztu serão abraçadas por Ortega y Gasset nos artigos e ensaios em que discute o problema de Espanha com referência específica à geração de 98. Contudo, como salienta Fox, a utilização deste termo como “concepto historiográfico fundamental y utilizable para una consideración crítica de la literatura española moderna data de 1934”. (FOX, 1994, p.19), quando Pedro Salinas deu um curso na faculdade de Filosofia e Letras de Madri sobre El Concepto de Generación Literária Aplicado a la del 98. Ainda segundo Fox, Salinas utiliza como ponto de partida de suas reflexões os ensaios de Azorín e se apóia em suportes teóricos da ciência da literatura alemã dos anos 20. Essa teoria literária destacava as seguintes características que uma geração literária deveria ter: a proximidade das datas de nascimento; a coincidência ou semelhança de formação; relações pessoais entre os membros da geração; circunstâncias de vida semelhantes ou a vivência de experiências comuns de acontecimentos geracionais; envelhecimento ou imobilização da geração anterior e uma linguagem geracional. Inmán Fox se pergunta por que Salinas teria ido buscar seu conceito de geração em teóricos alemães, mais especificamente em Petersen, cuja obra focaliza principalmente a formação de uma geração e não a questão da periodização dentro de uma continuidade histórica, quando, exatamente um ano antes, em 1933, Ortega y Gasset havia ministrado um curso, naquela mesma universidade, sobre Galile u e a metodologia historiográfica. E mais, levando-se em conta que havia sido Ortega y Gasset o pensador que mais contribuira para o desenvolvimento da historiografia geracional na Europa. No curso dado por Ortega y Gasset, ele apontava que o conceito de geração implicava em dois aspectos: seus integrantes deveriam ter a mesma – dentro de uma faixa de datas – e terem partilhado uma experiência de vida, uma vivência. 157 Para Ortega y Gasset o homem é essencialmente histórico, tem que estar em “um certo aqui e num insubstituível agora. O presente do destino humano, presente no qual estamos vivendo” (ORTEGA Y GASSET, 1989, p. 54), é o presente que somos nós e é o que é porque sobre ele gravitam todos os outros presentes, todas as outras gerações. Nesse sentido, cada geração humana traz em si todas as anteriores, sendo ela então como uma síntese da história universal. E no mesmo sentido é preciso reconhecer que o passado é presente, somos o seu resumo, que nosso presente está feito com a matéria desse passado, o qual passado, portanto, é atual – é a entranha, o culto do atual. É, pois, em princípío, indiferente que uma geração nova aplauda ou vaie a anterior, – faça uma coisa ou outra, trá-la dentro de si. (ORTEGA Y GASSET, 1989, p. 54). Acrescenta Ortega y Gasset que caso não fosse uma idéia tão barroca, as gerações deveriam ser representadas não horizontalmente, mas na vertical, sobrepondo-se umas às outras como os acrobatas do circo quando fazem a torre humana. Uns sobre os ombros dos outros, o que está no alto goza a impressão de dominar os demais, mas devia advertir, ao mesmo tempo, que é seu prisioneiro. Isso nos levaria a precatarmo-nos de que o passado não se foi sem mais nem menos, de que não estamos no ar, mas sobre os seus ombros, de que estamos no passado, num passado determinadíssimo que foi a trajetória humana até hoje, a qual podia ter sido muito distinta da que foi, mas que uma vez sido é irremediável, está aí: é nosso presente no qual, queiramos ou não, bracejamos náufragos. (ORTEGA Y GASSET, 1989, p. 54-55). Este conceito geracional de Ortega y Gasset, visto inclusive dentro de sua construção metafórica da torre humana, parece ajustar-se à perspectiva que MartínSantos adota na elaboração de T.S. e o percurso que ele faz no romance pela sua tradição cultural e o que vimos apontando até aqui em seu texto, parece evidenciar esta visão de que o escritor não está no ar e sim nos ombros de gerações que o precederam. Esta posição privilegiada, a de estar no alto como herdeiro do conhecimento das gerações anteriores, lhe permite ver mais longe, mais à frente, e, portanto, projetar-se para ir ao encontro da renovação dos caminhos até então percorridos pelos que o precederam. 158 Assim, para Ortega y Gasset, em todo presente, em toda atualidade, coexistem articuladas várias gerações cujas relações entre elas configuram um sistema dinâmico de atrações, representado por aquilo que se incorpora, e de rejeições, representado por aquilo que se descarta. E a obra de Martín-Santos evidencia bem este sistema de coincidências e polêmicas quando ele se coloca no alto de muitos ombros geracionais e, de lá escolhe para seu texto aqueles aspectos distintivos que marcaram diferentes períodos e épocas do trajeto cultural de seu país e os faz dialogar dentro de sua narrativa. Inmán Fox no seu ensaio sobre a geração de 98 aponta ainda que além de Azorín, Maezu, Salinas e Ortega y Gasset, também Pedro Laín Entralgo apresentou sua visão historiográfica sobre a geração de 98 no livro que publicou em 1945 La Generación Del 98 onde começa definindo em que consiste a semelhança histórica entre Unamuno, Azorín, Baroja, Antonio Machado, Valle-Inclán, Ganivet e Maeztu. Laín colocava a proximidade histórica entre eles em termos das experiências biográficas que havia partilhado, a saber: suas leituras européias e modernas e sua dissidência do catolicismo ortodoxo. Disso resultaria o repúdio que eles sentem pela Espanha que viam e pelo modelo de vida espanhola que presenciavam, passando, conseqüentemente, a criticar a política do país e a índole do homem espanhol. Fox apresenta ainda outras visões da geração de 98 como a apresentada por Guillermo Díaz-Plaja, que em 1951, analisou as letras espanholas, entre 1875 e 1925, afirmando que para ele la generación del 98, de índole extraestética, abarcaba una obra de trascendente sentido político. En el fondo es esta idea de la coexistencia a principios del siglo una modalidad estética y una modalidad ideológica, dentro de una nueva consciencia, la que se encuentra institucionalizada en la mayor parte de nuestras historias de la literatura española.(FOX, 1994, p. 24). Inmán Fox prossegue em seu levantamento histórico sobre outros depoimentos e interpretações a respeito desta geração e enumera mais três importantes trabalhos sobre o conceito de geração de 98: o estudo de Luis Granjel, de 1959, Panorama de la Generación Del 98 em que este crítico encontrava, nos escritores de 98, atitudes de inquietude política, de preocupação com a situação espanhola e de preocupação com o tema de Espanha; o estudo de Ricardo Gullón, 159 La invención del 98, que faz uma crítica ao trabalho de Granjel e aponta a tendência para analisar a geração de 98 unicamente a partir de focos temáticos; e o estudo de José Luis Abellán, Sociologia Del 98, de 1973, que entende a questão da geração de 98 enquanto conceito que pertence fundamentalmente à história das idéias. De todas as análises anteriores apresentadas, parece claro que o conceito historiográfico de generación aplicado a de 98, que se fixa nos estudos da história literária da Espanha contemporânea “es en el fondo una fabricación hecha de una variedad de construcciones caracterizadas por ideologías díspares y una metodología historiográfica deficiente” (FOX, 1994, p. 24). É importante pensar que aqueles que participaram da geração de 98 eram indivíduos pertencentes à classe média e que esta, na Espanha, era pequena e fechada em si, sem perspectivas de crescimento naquela época. Essa classe mantinha uma relação clientelista com a oligarquia dominante, possuía alguns privilégios, mas tinha muito pouco poder de decisão política. Eles eram parte da inteligentsia burguesa, descartados das alianças tradicionais de poder, porém bem situados, social e estrategicamente, para reexaminar as idéias políticas correntes, para formular novas metas e objetivos sociais. Sem poder nem capital para alterar substancialmente a situação política e econômica do país, só lhes restava a alternativa do socialismo. Contudo, como o socialismo espanhol de então era de inspiração marxista e dogmático em seus pontos de vista, vários membros da geração acabaram atraídos pelo anarquismo e se contentaram em ser uma força intelectual avançada sem buscar um papel mais fortemente revolucionário. Essa situação de ineficácia de suas ações, restritas ao âmbito intelectual, os levou a buscar novas crenças e ideais e para tanto foi na filosofia que eles se encontraram acreditando, cheios de esperança, que, em algum momento ou algum ponto, encontrariam um pensador que os conduziria aos caminhos das certezas. Estavam pessimistas, céticos, influenciados por Schopenhauer e Nietzsche. Os avanços da ciência e a idéia de progresso pareciam transmitir-lhes algumas esperanças, porém não lhes respondiam às questões mais profundas do destino humano. A preocupação básica dos homens dessa geração era com a verdade e com o dever. Sua meta primeira era encontrar um caminho para a ação e, por conseguinte, adotaram como atitude literária a idéia de que escrever era uma 160 maneira de investigar a situação existencial do homem, e de chegar à verdade, não necessariamente à criação da beleza. Como acrescenta Shaw, a geração de 98 se constitui no primeiro grupo da literatura moderna ocidental que explorou sistematicamente o fracasso nas crenças e em nenhum outro lugar, tanto na Europa quanto na América, se vai encontrar um grupo tão compacto de escritores cujas obras ilustrem de forma tão consistente o momento crítico de transição da relativa estabilidade e otimismo do período anterior para o momento espiritual em que a cultura espanhola se encontrava até meados do século XX. Outro aspecto a ressaltar com relação aos participantes da geração de 98 é que sua fidelidade aos imperativos éticos não se perdeu de todo. E aqui jaz a mensagem positiva deste grupo tão engolfado pelo pessimismo: a integridade do homem não está comprometida com a desintegração dos valores sociais que o circunda. Muito ao contrário, o homem que corajosamente assume sua condição, sua circunstância, como diria Ortega y Gasset, e que mesmo admitindo seu fracasso, orgulhe-se dele por perceber que apesar de derrotado sua consciência permaneceu honrada, fiel às suas convicções, não é um perdedor. E, por não ter cedido à degradação dos valores que percebe e denuncia, mantém sua dignidade e esta o eleva à condição de ‘fracassado vitorioso’. G.G. Brown, em sua Historia de la Literatura Española – el siglo XX, refere-se à dificuldade de compreender todo o período cultural espanhol compreendido entre 1900 e 1939 e aponta o quanto é complicado periodizá-lo. Todavia o que lhe chama a atenção é que em trabalhos recentes – G. G. Brown publicou sua obra em 1974 e a republicou em 1983 com notas adicionais de José Carlos Mainer – ele percebe a prevalência da idéia de que a visão de um continuum da produção cultural talvez seja um caminho mais acertado do que aquela implícita numa visão de parcelamento, numa periodização excessiva devendo esperar-se que aquela visão de continuidade corrija “las exageraciones a las que tiende esta última” (BROWN, 1998, p. 35). Embora G.G. Brown reconheça que se detectem elementos de continuidade nas obras literárias publicadas concomitantemente ou seguidas umas às outras, ele afirma que “suele considerarse la existencia de períodos bien distintos en el curso de la vida literaria española de la primera mitad del siglo”. (BROWN, 1998, p. 41). 161 Evidentemente que Brown chama a atenção para o fato de que é preciso ver nesta prática de periodização mais que meros compartimentos estanques ou simples ciclos “que se suceden inexorablemente unos a otros” (BROWN, 1998, p. 41) e sim “situaciones germinales de nuevas actitudes que modifican las anteriores sin anularlas. (BROWN, 1998, p. 41). Brown reconhece que as denominações aplicadas aos escritores finisseculares foram focos de amplos debates. Ele tende a alinhar-se com a idéia de que os termos generación del 98 y modernismo se han visto a menudo como antitéticos, quizá por no reparar en que son fundamentalmente heterogéneos: el primero pertenece a una conceptualización sociológica y el segundo a un orden de categorías artísticas en el que además se mezclan apelaciones a movimientos europeos. (BROWN, 1998, p. 42) Cabe ressaltar que Brown não estabelece ligação entre o termo ‘modernismo’ e Ruben Darío, como outros o fazem, e sim, parece circunscrevê-lo ao âmbito das influências simbolistas européias. Ele também salienta que as opiniões mais atuais negam a oposição entre aqueles termos e apontam características comuns aos dois como, por exemplo, as questões da boemia e as questões da atitude intelectual que não parecem ligar-se, unicamente ao Modernismo, as primeiras e, somente aos de 98, essas últimas. Cem anos já se passaram desde o alvorecer da crise finissecular e um dos fenômenos que mais chama atenção, ainda hoje, no campo da crítica literária espanhola, é a persistência do debate em torno da geração de 98, o questionamento sobre sua existência enquanto grupo a parte do movimento modernista. Devido à longa permanência desse debate e às muitas visões críticas que este têm suscitado, todos os que se propõem a estudar a geração de 98 não podem furtar-se a uma investigação, ainda que mais ligeira como esta que se está fazendo nesta parte da tese, sobre alguns dos temas principais que cercam essas complexas discussões e posicionamentos. Outro estudioso da questão, Herbert Ramsden, The 98 Movement in Spain, apresenta uma contribuição ao debate ao afirmar que o que une os da geração de 98 e os modernistas é sua idêntica desorientação espiritual e o que os separa é a reação que tiveram a tal estado de ânimo. Ramsden reitera que as perplexidades, a 162 abulia, a desagregação dos ideais, o ateísmo mítico, traços característicos da geração de 98, se constituem, todos eles, em aspectos de um único dilema de caráter romântico. A diferença entre os dois grupos se reflete quando voltamos o olhar do dilema para a solução. Enquanto os modernistas buscam refúgio e consolo num mundo hedonista e na sua torre de marfim de auto-contemplação, distanciados dos problemas e do compromisso com a vida, os da geração de 98 encontram, ao menos temporalmente, uma solução no mundo que os rodeia. Donald Shaw (1997) acredita que a percepção que ele agora tem da solução encontrada pelos da geração de 98 fica, não só mais clara do que as de Ramsden, como também o complementa. Shaw percebe que os escritores de 98 para enfrentar a questão do “problema de Espanha” que, certamente, originava-se mais em suas tensões e contradições internas do que em um estudo objetivo da situação econômico-social, adotaram uma solução equivocada (p. 275). A geração de 98 viverá antecipadamente a crise espiritual que o resto da Europa só viverá, e desenvolverá claramente nos anos da Primeira Guerra Mundial. Isso coloca seus integrantes, do ponto de vista histórico-literário, em posição de destaque, porque não se trata mais somente da visão que tinham da Espanha e sim da visão que tinham da condição humana. Exatamente por essa colocação de Shaw, de que a obra da geração de 98 ultrapassa os problemas político-ideológicos e termina por centrar-se no humano, não cabe aquela observação que ele fez anteriormente sobre o equívoco ou erro na adoção da solução que encontram os escritores da geração de 98. Do ponto de vista sociológico, poder-se-ia argumentar que foram ingênuos ao imaginar que suas palavras modificariam as arraigadas estruturas da sociedade espanhola. Entretanto, do ponto de vista literário, suas angústias, seu não conformismo, sua indignação, sua crítica a um mundo envilecido, lhes possibilitou a criação de grandes obras. Assim, se os dois grupos, modernistas e os da geração de 98, partem de crises idênticas – angústia pelo mal estar existencial de viver num mundo deteriorado – a reação distinta da geração de 98 já seria um aspecto suficientemente forte para separar os dois grupos. Ambos foram inovadores quanto a formas e estilos literários 163 Pero un grupo se orientaba hacia lo que podríamos llamar la religión del arte como productora de valores nuevos e incluso se esforzaba por creer que podía contribuir a solucionar el problema nacional. Los del otro grupo, aunque también cultivaban innovaciones literarias y buscaban alivio de sus preocupaciones en el acto mismo de escribir, estaban más directamente comprometidos con el problema colectivo. SHAW , 1997, p. 276) Não se pode deixar de aceitar a idéia de que ambos os grupos viveram a crise do fim de século, crise de valores e de crenças, muito menos se pode deixar de compreender que a conexão entre a cosmovisão da geração de 98 e sua busca de mudança no panorama nacional seja não apenas sua marca distintiva mas a que vai diferenciá-la de uma outra geração que a segue, a de 14, cuja ideologia foi mais concreta e prática, com a liderança de Ortega y Gasset. De qualquer modo o debate parece ainda estar aberto. Contudo já alguns pontos ficaram mais definidos: • os dois grupos viveram a crise de valores do final de século; • o batismo da geração de 98 está nos artigos de Ortega e de Azorín; • na Espanha a literatura de final do século XIX e início do século XX se constrói sobre o solo movediço de uma crise de valores; • não parece haver sido formado ainda um consenso sobre a utilidade do uso dos termos “geração 98” e “Modernismo”. Entretanto, se se puser de lado, por instantes, a polêmica geração 98/Modernismo e se se aceitar, como aceitamos, que a geração existiu e que uma série de fases cronológicas a sucederam, poder-se-á colocar alguns outros aspectos, igualmente ou possivelmente até mais importantes, que vão ser cruciais para a seqüência dessa tese. E por isso é preciso recordar que a rebeldia da geração de 98, contra a Espanha, da juventude de seus participantes, é também uma reação às formas literárias mais estratificadas, com exceção das de Galdós, como aponta Shaw. Este aspecto de enfrentamento literário será um dos pontos que vai distinguir o novo grupo juntamente com o esforço que vão realizar seus membros para promover uma renovação da prosa, enquanto se esforçam os modernistas para renovar a poesia. 164 Sua luta renovadora e a busca por uma expressão forte, profunda e humana os conduzirá ao ensaio, gênero que teve ampla prevalência neste período e cuja variedade de tons se desdobra indo desde o mais áspero e violento até o quase lírico. Praticamente todos os seus membros foram grandes ensaístas e sua atuação coletiva impulsionou o gênero convertendo-o no principal instrumento de divulgação de suas idéias. Por outro lado, esse mesmo instrumento, dominado pelas idéias, viu-se invadido muitas vezes, pelos sentimentos de amor que aqueles escritores tinham por sua terra natal e não conseguiam calar. Eles o transformam em “una nueva visión del paisaje español”(SHAW, 1997, p. 265) que será o refúgio da dor causada por aquele amor. A esta evocação mais lírica da paisagem espanhola, Martín-Santos vai contrapor em seu texto, como forma de ironizar aquela idealização, a questão da aridez da meseta castelhana, de sua secura e aspereza, ‘desidealizando-a’. Como uma maneira de confirmar essa visão de aridez, ele coloca Encarna, seu personagem mais humano, nesta paisagem seca, “tan lejos de toda agua, siendo ella la única cosa fresca de la tierra” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 238). Ele também marca a meseta castelhana como a terra pobre e seca onde seu personagem principal, Pedro, assim denominado por ser igualmente pedra, dura e árida como as daquele solo sem umidade, está como o “amojamado hombre de la meseta, puesto a secar como yo mismo para que me haga mojama” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 281). Será com áspera ironia que ele desconstruirá essa visão idealizada da paisagem que faziam os da geração de 98. Martín-Santos concluirá a citação interrompida acima, prosseguindo assim: mojama en los buenos aires castellanos, donde la Idea de lo que es futuro se ha perdido hace tres siglos y medio y el futuro ya no es sino la carcomida marronez que va tomando un cuerpo de buey puesto a secar y la carne vuelta mojama y gusta la mojama y hay hombres como yo, que se van acostumbrando poco a poco a tomar mojama con un vaso de vino y es mejor que el caviar y que el arenque y que el fua ese de las landes. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 281) Se a geração de 98 inovou e foi criativa no gênero ensaístico não o foi menos no gênero romance onde introduziu importantes modificações na técnica narrativa 165 como as que vamos apontar a seguir ao buscar pontos que estreitem a narrativa de Baroja com a de Martín-Santos. 166 4.2 BAROJA E MARTÍN-SANTOS: CONFLUÊNCIAS E INFLUÊNCIAS Dentre os novos aspectos presentes nos romances da geração de 98 vamos apontar aqueles que se destacam em El Árbol de la Ciência, de Pio Baroja, romance de 1911, e que permitem fazer uma aproximação ao de Martín-Santos. Inicialmente cabe lembrar que muitos romances da geração de 98 aparecem estruturados em torno de um personagem principal cujo processo de mudança de mentalidade se torna um elemento unificador de sua estrutura. Isto ocorre visivelmente com Andrés Hurtado, jovem estudante de medicina em Madri, cuja trajetória profissional e pessoal será acompanhada ao longo de todo o romance até seus últimos momentos. Trajetória idêntica é a de Pedro em T.S., embora no romance de MartínSantos se observe uma contração bem mais forte no âmbito temporal. Pois ele se passa em pouco mais de duas ou três semanas, o que lhe daria uma rapidez maior de desenvolvimento temático do que o de Baroja, não fora pelos excessos discursivos do texto de T.S. que o amarram impedindo sua maior mobilidade. Entretanto, estes aspectos discursivos lhe conferem um de seus traços distintivos de maior significação estrutural, porque são eles que escamoteiam e escondem, por vezes, uma realidade descrita em meandros labirínticos, iludindo, em época de forte censura, os censores. Um outro ponto de confluência entre T.S. e El Árbol de la Ciência está no fato de que os personagens principais de ambos os romances são médicos. Há um episódio em que Andrés Hurtado é chamado para atender a filha adoentada de um moleiro. É noite, como também é alta noite quando Muecas vem pedir que d. Pedro atenda sua filha que está muito mal. A cena do romance de Baroja é toda construída com diálogos intercalados entre o médico e o pai da paciente, entre o médico e a mãe da paciente, e entrecortada pelas descrições do narrador que vão dar andamento ao episódio. Assim, o moleiro (…)se calló. La muchacha era hidrópica, tenía vómitos, disnéa y ligeras convulsiones. Andrés examinó a la enferma; su vientre hinchado parecía el de una rana, a la palpación se notaba claramente la fluctuación del líquido que llenaba el peritóneo. 167 —¿Qué? ¿Qué tiene? —preguntó la madre. —Esto es una enfermedad del hígado, crónica, grave —contestó Andrés, retirándose de la cama para que la muchacha no le oyera—; ahora la hidropesía se ha complicado con la retención de orina. —¿Y qué hay que hacer, Dios mío? ¿O no tiene cura? —Si se pudiera esperar, sería mejor que viniera Sánchez. Él debe conocer la marcha de la enfermedad. —¿Pero se puede esperar? —preguntó el padre con voz colérica. Andrés volvió a reconocer a la enferma; el pulso estaba muy débil; la insuficiencia respiratória, probablemente resultado de la absorción de la urea en la sangre iba aumentando; las convulsiones se sucedían con más fuerza. Andrés tomó la temperatura. No llegaba a la normal. —No se puede esperar— dijo Hurtado, dirigiéndose a la madre. —¿Qué hay que hacer? —exclamó el molinero. Obre usted… —Habría que hacer uma punción abdominal —repuso Andrés, siempre hablando a la madre—. Si no quieren ustedes que la haga yo… —Sí, sí, usted. —Bueno; entonces iré a casa, cogeré mi estuche y volveré. (BAROJA, 2001, p. 199) Podemos neste texto de Baroja apontar o uso de vocabulário da linguagem médico-científica: hidrópica, disnéa, hidropesía, por exemplo, vocabulário também presente no texto de T.S. A comparação da doente com um animal, una rana, é outra característica que faz parte dos dois romances, onde o uso de metáforas de animais aplicada aos personagens é constante. Quando Andrés sai em busca de seu material médico, esse fato imediatamente nos recorda a Amador que vai ao Centro de Investigações Científicas onde Pedro trabalha para pegar o material usado para cirurgias com animais das experiências científicas e trazê-lo para que d. Pedro os utilize no atendimento a Florita. Outro aspecto contido nesta citação acima é o de Andrés tomando a temperatura da doente e preocupado com a sua pulsação, que estava muito fraca, exatamente como estava a de Florita no momento de seu atendimento quando também a preocupação e a angústia constante de Pedro o fazem indagar repetidas vezes a Amador como estava a pulsação dela. A seqüência deste episódio já nos mostra Andrés, com seu material na mão, animando um pouco a doente, limpando bem o local onde a punção será feita e o momento em que ele hundió el trócar en el vientre abultado de la muchacha. Al retirar el trócar y dejar la cánula, manaba el agua, verdosa, llena de serosidades, como una fuente a un barreño. 168 Después de vaciarse el líquido, Andrés pudo sondar la vejiga y la enferma comenzó a respirar facilmente, la temperatura subió por encima del normal. Los síntomas de la uremia iban desapareciendo. Andrés hizo que le dieran leche a la muchacha que quedó tranqüila. En la casa había un gran regocijo. —No creo que esto haya acabado—dijo Andrés a la madre—; se reproducirá, probablemente. (BAROJA, 2001, p. 199) Esta cena que descreve com todo realismo a punção realizada pelo médico também faz eco com a descrição do procedimento médico efetuado por Pedro em Florita que seguía raspando la oscura superficie interna imaginando la forma de la cavidad ya limpia, escuchando y al mismo tiempo sintiendo en la mano, rigidamente transmitido por el instrumento, el crujir de la materia rota (…). Continuaba automáticamente el raspado y una vez concluido taponaba con la gasa limpia destinada a los ratones, aplicaba un apósito, se limpiaba las manos, depositaba el cuerpo en forma más decente y se volvía hacia la madre redonda(…) (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 131). Uma diferença básica entre os dois episódios é que a intervenção de Andrés foi parcialmente bem sucedida, o que não ocorreu na intervenção de Pedro em Florita, porém o ponto que vai novamente aproximar as duas cenas está nas mãos de seus narradores que as complementam descrevendo a proximidade da manhã que avança como que lembrando que quanto mais longa é a noite mais carrega em si a madrugada. As duas cenas se fecham com a luz do amanhecer. La mañana comenzaba a sonreír em el cielo; el sol brillaba en los viñedos y en los Olivares; las parejas de mulas iban a la labranza, y los campesinos, de negro, montadas em las ancas de los borricos les seguían. Grandes bandadas de cuervos pasaban por el aire. (BAROJA, 2001, p. 200), lê-se no texto barojiano e Ya había luz de dia. (…) El aire frío y la luz nueva le escocieron en los ojos. Las chabolas aparecían em la luz de la mañana nueva sonrosadas, como si um reflejo de nácar las embelleciera provisionalmente por unos minutos, hasta que los rayos auténticos del sol, todavía oculto, las reconstruyeran en toda su íntegra fealdad. (MARTIN-SANTOS, 2001, p. 135), lê-se no texto de Martín-Santos. E em ambos afluem as pinceladas artísticas de suas linguagens. 169 Tanto Baroja quanto Martín-Santos prestam seu tributo ao gênio de Cervantes. São intertextualidades tanto em um quanto em outro, sem ironia paródica ou animosidade. Pelo contrário, há enaltecimento ao homem que depositou nossos “cánceres sobre el papel”, como diz Martín-Santos, cuja digressão é fundamentalmente de reconhecimento pelo artista. Na quarta parte do livro de Baroja, no capítulo 3, desenvolvido praticamente com o uso de diálogos diretos, poucas vezes interrompidos, Andrés e Iturrioz conversam e filosofam. Será também o personagem principal de El Árbol de la Ciencia, Andrés, quem trará Cervantes para a cena El hombre, cuya necesidad es conocer, es como la mariposa que rompe la crisálida para morir. El individuo sano, vivo, fuerte, no ve las cosas como son, porque no le conviene. Está dentro de una alucinación. Don Quijote, a quien Cervantes quiso dar un sentido negativo, es un símbolo de la afirmación de la vida. Don Quijote vive más que todas las personas cuerdas que le rodean , vive más y con más intensidade que los otros. El individuo o el pueblo que quiere vivir se envuelve en nubes como los antiguos dioses se aparecían a los mortales. El instinto vital necesita de la ficcón para afirmarse. (BAROJA, 2001, p. 167) Andrés alude ao Quixote como símbolo de vida e lucidez e, como MartínSantos, Baroja também faz sua alusão a Cervantes de maneira positiva e enaltecedora. Não só Andrés traz Cervantes à narrativa. Outro personagem do romance de Baroja, Iturrioz, também o faz no exemplo a seguir em que este ao conversar com seu sobrinho lhe indaga como fora sua experiência no interior, e lhe pede que fale sobre esse tempo, dizendo-lhe: “Cuenta, veamos tu odisea en esa tierra de D. Quijote”. (BAROJA, 2001, p. 237) Igualmente o ponto de vista histórico dos dois escritores converge em suas críticas para os aspectos degradantes da história espanhola. Nos dois romances há alusões à Inquisição enquanto instrumento político. No caso de Martín-Santos, isso foi apontado no capítulo anterior e, no de Baroja, aparece explicitamente no diálogo entre Andrés e Iturrioz quando Iturrioz lhe diz: (…)ni creo en la ruina del semitismo. El semitismo judío, cristiano musulmán, seguirá siendo el amo del mundo, tomará avatares extraordinarios. ¿Hay nada más interesante que la Inquisición de índole tan semítica, dedicada a limpiar de judíos y moros al mundo? ¿Hay caso más curioso que el de Torquemada, de origen judío?. (BAROJA, 2001, p.168). 170 A ironia de Baroja sobressai nesta passagem em que faz alusão indireta à história da Espanha, através dos episódios de expulsão de judeus e mouros e alusão direta a Torquemada 37, insinuando que este personagem, da história política do país, tinha uma origem judaica, o que se configura numa forte ironia. Um traço que une definitivamente estes dois romancistas é a força criativa e irônica de seus textos. Assim como Martín-Santos, Baroja é um demolidor. Protesta e critica quase tudo: a religião, a Igreja, os sistemas políticos e suas estruturas de corrupção, Espanha e os espanhóis, a história, a ciência e a cultura. A comprovação dessa atitude de extremada crítica pode ser percebida na segunda parte de El Árbol de la Ciencia intitulada Las Carnarias, onde Baroja apresenta, nos nove capítulos que a compõem, uma análise crítica impiedosa de vários grupos de indivíduos de diferentes estratos sociais espanhóis. Assim, logo no capítulo I dessa segunda parte, atendendo a um convite de seu colega Júlio Aracil, Andrés Hurtado vai com ele à casa de suas amigas, las Minglanillas. Embora o nome verdadeiro delas não seja esse, Aracil as denomina assim por achar que elas, principalmente a mãe das duas moças, Mimi e Lulu, dona Leonarda, parecem personagens de Taboada 38. Elas viviam, “La viuda y las dos hijas em la calle Fúcar, en una casa sórdida de esas con patio de vecinidad y galerias llenas de puertas. Había en casa de la viuda un ambiente de miséria bastante triste.” (BAROJA, 2001, p. 92). O ambiente desta família é degradado física e moralmente, com a mãe, d. Leonarda, vivendo da recordação dos tempos de opulência da família quando ainda vivia seu marido. D. Leonarda, com uma atitude de permissividade, deixa que a filha Mimi se aproxime mais intimamente de Aracil, pretendendo envolvê-lo, já que, “sin duda ella misma había dejado que la chica se comprometiera pensando que luego Aracil no la abandonaría.” (BAROJA, 2001, p. 93). Se esta casa é sórdida, o local onde André faz cursos que complementam seus estudos médicos, Hospital de San Juan de Dios, é ainda um espaço mais degradado pois é um prédio 37 Tomás de Torquemada, nasceu, em Valladolid, em 1420, e morreu em Ávila, em 1498, foi eclesiástico e inquisidor espanhol que com sua atuação pessoal deu ao Tibunal da Inquisição um caráter de dureza e brutalidade inimaginável. 38 Luis Taboada y González, 1848-1906, escritor ligeiramente satírico cujas obras são costumbristas e ambientadas em Madri. 171 ya derruído por fortuna, un edifício inmundo, sucio, mal oliente; las ventanas de las salas daban a la calle Atocha y tenían, además de las rejas, unas alambreras para que las mujeres recluidas no se asomaran y escandalizaran. De este modo no entraba allí ni el sol ni el aire. (BAROJA, 2001, p. 79) Não somente o ambiente urbano se reveste de baixeza e decadência, o rural, onde Andrés viveu um período de sua vida exercendo a medicina, uma pequena cidade do interior, também aparece nas páginas de El Árbol de la Ciencia descrita com suas mazelas. Na quinta parte do romance, La Experiencia en el Pueblo, no capítulo V, Alcolea del Campo, o texto se inicia com uma sentença crítica e irônica do narrador: “Las costumbres de Alcolea eran españolas puras; es decir, de um absurdo completo” (BAROJA, 2001, p. 203). Nesta forma de expressão já se pode ouvir nitidamente os ecos de onde provêem aquela maneira sutil e ferina de que Martín-Santos tanto gosta de usar para referir-se aos aspectos e às situações que seu sentido crítico lhe apontam como alvos para suas mordacidades. E Baroja prossegue apresentando sua visão sobre Alcolea comentando que El pueblo no tenía el menor sentido social; las famílias se metían en sus casas, como los trogloditas en su cueva. No había solidaridad; nadie ni podía utilizar la fuerza de la asociación. (…) Por falta de instindo colectivo el pueblo se había arruinado. (BAROJA, 2001, p. 203) E o pior ainda foi que “el pueblo aceptó la ruína con resignación. (…) Aquel estoicismo acabó de hundir al pueblo” (BAROJA, 2001, p. 204). Essa crítica ao estoicismo, enquanto atitude de conformismo, de entrega, de inação, é fonte de angústia especialmente porque Baroja sempre deu mostras de ser o tipo do indivíduo para quem o essencial na vida é a luta, é a ação, atitude que seu personagem Andrés Hurtado busca compartilhar sem entretanto lograr assumi-la, com êxito. Não seria de se estranhar, portanto, perceber este personagem incomodado com aquela acomodação aburguesada dos habitantes de Alcolea, cidade que lhe parecia sitiada e cujo “sitiador era la moral, la moral católica. Allí no había nada que no estuviera almacenado y recogido: las mujeres, en sus casas, el dinero, en las carpetas, el vino en las tinajas” (BAROJA, 2001, p. 204). 172 Esse incoformismo de Andrés com o marasmo de Alcolea o leva a concluir seu pensamento sobre a cidade construindo uma imagem, também bastante irônica, constatando que “con aquel régimen de guardarlo todo, Alcolea gozaba de un orden admirable; solo un cementerio bien cuidado podía sobrepasar tal perfección.” (BAROJA, 2001, p. 204). Segue-se uma análise das condições políticas de Alcolea, que, espelhando o estado de inércia e desconfiança da população, vivenciava o caciquismo e uma disputa de poder “entre dos bandos contrarios que se llamaban el de los Ratones y el de los Mochuelos, los Ratones eran liberales, y los Mochuelos conservadores”. (BAROJA, 2001, p. 205). Neste tipo de ambiente, a situação de Andrés se exacerba e ele pouco a pouco se afasta das pessoas, isola-se até finalmente perceber que precisa deixar Alcolea e voltar a trabalhar em Madri. Essa sua inadaptação é bastante semelhante à de Pedro em T.S. que se enreda de tal forma na sua visão crítica e nos seus questionamentos que se percebe inadaptado àquela estrutura social. Como médicos os dois, e Pedro ainda mais como pesquisador, estão ambos imbuídos de que a ciência e o desenvolvimento científico poderiam ser um caminho possível de aprimoramento das condições da vida humana. Andrés, em conversa com Iturrioz, declara que para ele a ciência se baseia na razão e na experimentação e que “La ciencia es la única construcción fuerte de la humanidad” (BAROJA, 2001, p. 164). Entretanto com aguda perspectiva crítica, tanto o personagem de Baroja, Andrés, quanto o de Martín-Santos, Pedro, percebem a grande dificuldade de trilhar tal caminho em um país onde faltam condições materiais básicas para este desenvolvimento científico. Trata-se de uma evidência bem clara em T.S., pois logo nos primeiros fragmentos, nas divagações de Pedro sobre a situação de seu laboratório, sem verba para importar novas cobaias, tendo que utilizar um simples “binocular, a falta de electrónico, porque no hay créditos”. (MARTÍN-SANTOS, 2201, p. 09), e sabendo que “a pesar del hombre del cuadro (…) nunca el investigador ante el rey alto recibirá la copa, el laurel” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.09). Trata-se de uma evidência clara também em El Árbol de la Ciencia desde o início da narrativa quando Andrés, ainda aluno da faculdade de Medicina, percebe o ambiente de falsas pespectivas, de um “pragmatismo viejo y sin renovación” (BAROJA, 2001, p. 38) em que vivia Madri e que “la ilusión del país pobre que se 173 aisla, contribuía al estancamiento, a la fosilificación de las ideas”(BAROJA, 2001, p. 39). Nesse contexto, sua decepção com as condições de ensino universitário é um choque que o tira do idealismo e o traz de volta à realidade. Andrés Hurtado los primeros días de clase no salía de su asombro. Todo aquello era demasiado absurdo. Él hubiese querido encontrar una disciplina fuerte y se encontraba con una clase grotesca en que los alumnos se burlaban del profesor. Su preparación para la Ciencia no podía ser más desdichada. (BAROJA, 2001, p. 41) Tal comentário expressa a idéia de que a sede mais poderosa do pensamento espanhol, a Universidade de Madri, se acha na mais completa indigência intelectual. A frustração desses dois personagens vai conduzi-los, por caminhos pessoais distintos, a um desenlace final semelhante. Andrés, ainda se questiona, quase no fim da narrativa: “¿Por qué no había experimentadores en España cuando la experimentación para dar frutos no exigía más que dedicarse a ella?” (BAROJA, 2001, p. 283) E responde com ironia: Sin duda faltaban laboratorios, talleres para seguir el proceso evolutivo de una rama de la ciencia; sobraba también un poco de sol, un poco de ignorancia y bastante de la protección del Santo Padre; que generalmente es muy útil para el alma pero muy prejudicial para la ciencia y para la industria. Estas ideas que hacía tiempo le hubieran producido indignación y cólera ya no le exasperaban. (BAROJA, 2001, p. 283) O personagem de Baroja vacila entre a necessidade de transformar as estruturas da sociedade utilizando a ciência e sua acomodação a uma visão pessimista, fruto de uma situação de real dificuldade, de emperramento com relação às mudanças. Sua opção por um caminho aburguesado de realização pessoal vai levá-lo ao aniquilamento pois, ao perder a esposa e o filho que esta acabara de dar a luz, sente -se só sem perspectivas de atuação social satisfatória, sem condições emocionais de reverter sua sensação de que “La vida en general, y sobre todo la suya, le parecía una cosa fea, turbia, dolorosa e indomable”. (BAROJA, 2001, p. 60), resolve por fim a ela. O personagem de Martín-Santos terá seu caminho de cientista interrompido, será impedido de levar avante suas pesquisas e seu projeto. Quanto a esse aspecto 174 da ciência em T.S. é preciso abrir um parênteses para explicar que, neste romance, tanto o tema da ciência quanto o tema da raça, nem sempre são discutidos isoladamente. Estas questões, muitas vezes, aparecem entrelaçadas e o narrador faz seus juízos de valor sobre elas simultaneamente. É preciso lembrar que um dos exemplos mais expressivos da ideologia fascista ao engrandecimento nacional repousa sobre a idéia de uma raça enobrecida e de grandes realizações no campo das ciências e das artes. Martín-Santos aborda estes temas da raça e da ciência em TS, sob uma perspectiva extremamente crítica, desnudando esta tendência fascista grandiloqüente de enaltecimento racial e dos grandes feitos da ciência. Para que fiquem mais claras as colocações e a insistência de Martín-Santos em trazer para seu texto o tema da raça, faz-se necessário lembrar que, ao explicar a história espanhola em termos de uma característica nacional mítica, escritores da geração de 98, acabaram valendo-se de uma certa dose de determinismo racial (LABANYI, 1989, p. 61), e partiram do pressuposto de que o povo era incapaz de progredir e melhorar devido às suas características raciais. Os argumentos que utilizavam eram invocados de maneira contraditória: por um lado, afirmavam que as virtudes essenciais da raça haviam sido deturpadas por uma história inautêntica e, por outro lado, sugeriam que o caráter nacional possuía uma falha, uma imperfeição congênita. Para ambos os casos era necessário que surgisse um redentor, uma figura que viesse para salvar a nação. Segundo Labanyi esta “positivist concept of racial determinism leads to the mythical concept of mesianismo 39” (LABANYI, 1989, p. 61), posição também defendida por alguns escritores da geração de 98. Martín-Santos, discordando desta visão, faz percorrer por todo seu romance uma ironia demolidora, cujo objetivo era atacar essa postura de mito racial, lembrando ao leitor que, aquela obsessão espanhola, por pureza racial, aparece desde os tempos da expulsão dos mouros e da perseguição aos judeus movida pela Inquisição, o que levou ao estabelecimento,desde então, de uma sociedade “tan poblada de um pueblo achulapado (…) tan carente de auténtica judería” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 16). 39 […]concepção positivista de determinismo racial leva ao conceito mítico de messianismo.(Trad.da aut.) 175 Estes conceitos de pureza racial, também relacionados às teorias nazifascistas,vão aparecer ironizados no episódio do encontro de Pedro e Matias com o pintor alemão quando o narrador comenta: “Pero tu cuerpo no está donde era – protestó el alemán que provenía de uma raza más dotada para la estricta metafísica” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 82). O narrador além de insinuar ironicamente a menor capacidade espanhola para assuntos metafísicos, ataca este conceito fascista de raça superior, inclusive, fazendo o pintor alemão, no final do fragmento, declarar-se judeu por parte de mãe, o que, é óbvio, amplia o censo de ironia contida na crítica ao pensamento de origem positivista, exatamente como Baroja construiu sua ironia ao imputar a Torquemada uma possível origem judaica. Os mitos raciais são parodiados também nas descrições de Muecas sobre si mesmo, como se este fosse superior “a los coreanos” que têm no rosto “la marca de la ignominia y de la raza inferior (…) que nunca serán capaces – como él – de elevarse a la dignidad de un empresario libre” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 68). Empresário cuja atividade é administrar uma “fazenda” de criação de ratos, a Mueca’s farm, cuja produção é obtida através das mais abjetas circunstâncias. Sarcasticamente, Muecas torna-se o criador de uma “raza de ratones cancerígenos degenerada y superviviente milagrosamente a pesar del niu dial para la época de la escasez crítica decretado por F. D. Muecas.” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 33). Homens e ratos se iguala m: os ratos, assim como Muecas, fazem parte desta raça que não se sabe bem como sobrevive nas mais penosas e desumanas condições. Muecas transformou-se em F. D. Muecas, alusão ao presidente americano Franklin Delano Roosevelt e o ‘niu dial’, espanholização fonética que corresponde ao New Deal, refere-se à fórmula com que ficou conhecida a política econômica agrícola decretada por aquele presidente americano durante o período da grande depressão. Também no fragmento 39, ao descrever Amador, Martín-Santos fala de sua origem: Por parte de pai, ele descende de gente do norte, “astur-bravío” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 185), cuja herança inclui “um cierto amor a la vida, uma cierta capacidad de risa, uma abundante potencia bebestible” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 185) que não conseguiu ser totalmente “rebajada en grado apreciable” pela “seca matriz de su madre toledana” (MARTÍN-SANTOS, 2001, P, 185). Amador também sente-se superior à massa dos demais imigrantes, por ser já nascido em Madri, em Tetuán de las Victorias, e já estar, portanto, bem ambientado, tendo, inclusive, 176 conseguido uma posição melhor que a dos imigrantes recentes que vão viver nas chabolas. Martín-Santos retoma o tema da raça hispânica, redobrando sua ácida ironia, ao apontar como o Buco emissário, símbolo do macho procriador vê, “la sangre visigótica enmohecida con ojos azagayadores circular, como en rayos equis divertido, por nuestras venas umbilicales y qué listo eres tú para un pueblo que tiene las frentes tan menguadas” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p, 153). É este povo que puesto que víctimas de su sangre visigótica de mala calidad y de bajo pueblo mediterrâneo permanecerán adheridos a sus estructuras asiáticas y así miserablemente vegetarán vestidos únicamente de gracia y no de la repulsiva técnica del noroeste. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p, 153) Mais um outro objetivo de Martín-Santos ao ironizar aquelas teorias raciais em seu romance, é que com elas pode explicar a aparente inferioridade intelectual de Espanha também no campo científico. Assim, ao iniciar seu romance, no primeiro fragmento, o narrador relembra que estava diante do retrato do “hombre de barba” e que este havia testemunhado tudo que acontecera no laboratório e “libró al pueblo ibero de su inferioridad nativa ante la ciencia, escrutador e inmóvil, presidiendo la falta de cobayas. Su sonrisa comprensiva y libertadora de la inferioridad – comprende – la falta de créditos. Pueblo pobre” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 07). Nesta citação Martín-Santos refere-se ao retrato de Ramón y Cajal, figura também citada por Baroja em El Árbol de la Ciencia (p. 170), biólogo e pesquisdor espanhol (1852-1934) que, em 1906, junta mente com Camillo Golgi, recebeu o prêmio Nobel de Medicina, em reconhecimento por seu trabalho sobre a estrutura do sistema nervoso. Por ter ganho tão nobre distinção, ele salva o povo ibérico do complexo de inferioridade por não ter condição de fazer grandes descobertas científicas, tendo que se conformar com a realidade de sua ciência subdesenvolvida, sufocada pela penúria da inanição, não só do homem mal alimentado, que jamais poderá vir a ser um futuro bom pesquisador, como também da ausência de verbas e material para uma pesquisa de qualidade. As condições de trabalho e pesquisa no laboratório de Pedro são precárias de recursos e contrastam, vivamente, com aquelas existentes nos laboratórios dos Estados Unidos. Martín-Santos mostra que esta situação de indigência científica de Espanha se combina com a situação de indigência do grupo social marginal das 177 chabolas. Estas são pessoas que, para sobreviver, passam a criar cobaias, a partir de filhotes roubados do laboratório, para vendê-las de volta ao mesmo laboratório, evidenciando uma total falta de moralidade, produto da fome e das condições de miséria da vida que levam. Como pode o homem espanhol querer continuar, arrogantemente, a acreditarse superior quando a miséria do povo que comia as ratas e vivia do dinheiro que obtinha da criação delas, é idêntica àquela do laboratório que, sem verbas, não tem nem cobaias para a pesquisa? Pedro elocubra tais pensamentos diante do retrato de Ramón y Cajal, símbolo da esperança de que este povo pobre, atrasado na ciência, possa chegar a destacar-se e produzir um novo pesquisador laureado. Este é o sonho que Pedro idealisticamente acalenta e, com a força de sua juventude quer, através de seu trabalho, tentar romper o círculo de pobreza, de atraso, de falta de técnicas adequadas de pesquisas ainda existentes na Espanha. Esta possibilidade, de o prêmio ser ganho por um cidadão de um país subdesenvolvido, lhe serve de incentivo para lutar contra as circunstâncias negativas e adversas da realidade espanhola do pós-guerra. Entretanto estes pensamentos de Pedro chocam-se com a realidade encontrada no gordo e risonho Amador e o fluxo de seus pensamentos se interrompe e aponta para a impossibilidade, para a frustração de seus altos projetos e sonhos: “Como si de cobaya a toro nada hubiera, como si todavía nosotros a pesar de la desesperación, a pesar de los créditos” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 08). E este ponto aí colocado estanca o pensamento dele e corta sua linha de raciocínio. Esta sintaxe usada deixa claro ao leitor que aquilo que Pedro almeja é impossível, como Martín-Santos conclui: Esta Espanha não tem condições de produzir um prêmio Nobel. E mais: que homem de ciência é este que sonha com o galardão nórdico? Martín-Santos, ao descrever a descida de Pedro e Amador até as chabolas, vai apontando e descrevendo ruas, tabernas, lojas pelas quais os dois vão passando até que passam por tiendas de aspecto más nocivo –no eran sino farmacias y droguerías donde amarilleaban a la venta todos los insecticidas del globo, amén de abundantes balsámicos y jarabes para la tos de mil laboratorios diferentes alguno de los cuales estaba allí instalado en la misma trastienda con olvido 178 de todas las normas de producción de la ciencia farmacéutica. (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 35). Por sobre os velhos balcões eram colocados pequenos cartazes com o nome das doenças a que se destinavam os grandes frascos e Pedro, como achava que isso se destinava ao povo, pouco se importava com isso. Ele ante estas muestras florescientes de explotación industrial de la ciencia a cuya edificación él mismo colaboraba, no se sentía molesto sino que noblemente consideraba esta proyección sobre el bajo pueblo y la más indocta de tan sublimes principios, como un hecho en sí mismo deseado. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 35). Este tipo de passagem demonstra o grau de alienação de Pedro e enfatiza sua visão estreita, sua falta de perspectiva crítica com relação a seu trabalho, a sua posição enquanto membro da comunidade acadêmica e científica e a sua contribuição social. Para ele estava tudo bem. A distinção do acesso a uma medicina mais cara e eficiente para os que têm condição de pagar e outra barata e de má qualidade para os que não têm, não o incomoda. Para ele “bien estaban los lavados com permanganato en la era penicilínica” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 35) que se destinavam aos indivíduos de baixo poder aquisitivo. A alienação moderna mostra-se como conseqüência de uma realidade coletiva que se mantêm graças aos mais variados mitos sociais que condicionam as identidades dos indivíduos, como a de Pedro, perfeitamente conformado como médico e como pesquisador, com o quadro descrito acima. Ao expor esta incapacidade Martín-Santos o faz através de sua veia satírica, mofando-se do valor excessivo da ciência num texto onde aquele jogo irônico é magistralmente conduzido, afirmando no fragmento 57: Que la ciencia, más que ninguna de las otras actividades de la humanidad ha modificado la vida humana del hombre sobre la tierra es tenido por verdad indudable. Que la ciencia es una palanca de las ínfimas alienaciones (…) tampoco es dudado por nadie. Que los gloriosos protagonistas … (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 245). e refere-se, ironicamente, aos produtores da ciência como cidadãos de primeira classe, “ligeramente cursis”, mas dignos e sérios. Seu discurso ferino, atinge também as instituições científicas enquanto locais onde ocorre o grande desfile dos 179 “constructores del futuro” (MARTÍN-SANTOS. 2001, p. 246), que comparados a exércitos, a falanges, recebem assim sua mais forte estocada crítica ao serem aproximados, pelo uso daqueles termos militares, ao grupo de sustentação da ditadura espanhola porque como um ejército aguerrido, llevando al brazo no armas destructoras, bayonetas relampagueantes, sino microscópios, teodolitos, reglas de cálculo y pipetas papilares, las falanges de la ciência marchan así em grandes pelotones bien organizados. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 246). Suas investigações resultam em um minguado produto final, este também ironiozado na página seguinte através das exclamações: “Cuántas patentes (…), cuántas drogas inéditas (…), cuántos teóricos desarrollados (…), cuántos ingeniosos prodigios ” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 247). A figura do diretor do Instituto de Pesquisas onde Pedro trabalha, também não é poupada, e através dela Martín-Santos critica, não só a hipocrisia que graça nas hostes científicas, como também impede o real desenvolvimento de uma mentalidade cientifica mais comprometida com os verdadeiros interesses da humanidade e do progresso. Através de todas estas passagens, referentes à ironização dos mitos raciais e da ciência, fica claro o propósito do autor de desmitificar a própria Espanha, cujo povo vai constituir-se no alvo em que Martín-Santos vai atirar seus dados certeiros. O romancista tem a clareza, e seu texto o confirma, de que se o país se tornou o que é, não foi por acaso, nem pela casual reunião dos grupos étnicos que o constituíram e sim pelas posturas e estruturas que desenvolveram, por seu hermetismo, por seu distanciamento do resto do mundo, distanciando-se por conseguinte de conhecimentos, de técnicas novas e do desenvolvimento industrial. Sua miséria material e moral encontra-se radicada na atitude do homem espanhol. Como forma de denúncia deste estado de coisas, Martín-Santos usa uma estética através da qual, com ironia crítica refinada, revela a dura e horrenda realidade do final dos anos quarenta que a cegueira pública imposta por mitos sociais criados pelo poder, pretende que continue desconhecida. Também quanto à visão que tinham sobre as touradas, os pontos de vista dos dois escritores, Baroja e Martín-Santos, são coincidentes. Em T.S. há toda uma longa digressão sobre a tourada como ato exorcizador de violência e, por outro lado, 180 em várias passagens de El árbol de la Ciencia há comentários onde também a idéia da tourada é negativa, como nestes exemplos recolhidos de sua narrativa: O velho médico da cidadezinha para onde Andrés foi enviado era um (…)manchego apático y triste, muy serio, muy grave, muy aficionado a toros. No perdía ninguna de las corridas importantes de la provincia. Llegaba a ir hasta las fiestas de los pueblos de la Mancha baja y de Andalucía. Esta afición bastó a Andrés para considerarle como un bruto. Él primer rozamiento que tuvieron Hurtado y él fue por haber ido Sánchez a uma corrida de Baeza. (BAROJA, 2001, p. 197), Este exemplo evidencia a posição de rejeição de Andrés à apreciação que o outro médico tinha sobre as touradas, cerimônia percebida por Andrés como algo que somente os brutos, os pouco refinados podiam apreciar. No comentário seguinte Iturrioz, além de evidenciar também seu desagrado pelas touradas, as compara a outras atividades completamente inaceitáveis do ponto de vista ético, como, por exemplo, a exploração de uma casa de prostituição que, por ironia ainda mais ferina, ele sugere ser dirigida por um membro da igreja. Entre los dueños de casa de lenocínio había personas decentes: un cura tenía dos y las explotaba con una ciencia evangélica completa. ¡Qué labor más católica, más conservadora podía haber que dirigir una casa de prostitución! Solamente teninedo al mismo tiempo una plaza de toros y una casa de préstamos podía concebirse algo más perfecto. (BAROJA, 2001, p. 255). Finalmente, neste último exemplo, Andrés reage de maneira fortemente emocional ao desejar a eliminação dos aficcionados pelas touradas: (…) No dejar uno de los que volvían de la estúpida y sangrienta fiesta. (…) la moral del espectador de corrida de toros se había revelado en ellos; la moral del cobarde que exige valor em otro, en el soldado en campo de batalla, o en el torero en el circo. A aquella turba de bestas crueles y sanguinarias, estúpidas y petulantes le hubiera impuesto Hurtado el respeto al dolor ajeno por la fuerza. (BAROJA, 2001, p. 265) Esta reação levaria Andrés a tomar uma atitude contraditória porque estaria se propondo a combater o que ele percebe como violento com violência também. 181 No capítulo 9 da segunda parte do romance de Baroja, em uma de suas muitas discussões filosóficas, Andrés ouve Iturrioz afirmar que “la vida es una luta constante, una cacería cruel en que nos vamos devorando los unos a los otros”. (BAROJA, 2001, p. 125). Eles seguem argumentando sobre a cadeia alimentar nos animais quando Andrés indaga sobre que tipo de luta seria essa pela vida que torna também o homem predador de outro homem. Iturrioz lhe responde com a frase latina: (…)Homo, homini lupus, el hombre es un lobo para el hombre? Está bien. En cuatro o cinco mil años lo podremos conseguir. El hombre ha hecho de un carnívoro como el chacal un omnívoro como el perro.(BAROJA, 2001, p. 127), comentário que vai prosseguir com Iturrioz ferinamente lembrando o caso de um naturalista italiano que havia acostumado uma pomba a comer carne e uma águia a comer e digerir pão. “Aí tienes el caso de esos grandes apóstoles religiosos y laicos, son águilas que se alimentan de pan en vez de alimentarse de carnes palpitantes, son lobos vegetarianos.” (BAROJA, 2001, p. 127). Quase ao final de T.S., no monólogo interior de Pedro, aparece essa mesma reflexão do homem como predador de outro homem. Pedro deixa seu pensamento discorrer em diferentes direções tomando como ponto de partida aquela alusão barojiana homo, homini lupus. ¿Hombre o lobo? ¿El hombre/lobo? ¿El lobo que era hombre durante las noches de luna llena? ¿El lobo feroz cuya boca es cuatro veces más ancha que las de un hombre? El hombre lobo para el hombre. ¿La batida contra las alimañas dañinas que descienden al valle y estragan los rebaños? El hombre es la medida de todas las cosas. Mídase la boca de un lobo con la boca de um hombre y se hallará que es cuatro veces más grande y que la parte de paladar, tan tierna y sonrosada en la boca del hombre (y de la mujer) cuya zona posterior – especialmente delicada – suele ser llamada velo (en ambos sexos) a causa de su blandura y de sus aptitudes para la ocultación es en el lobo por el contrario, de un alarmante colorido negruzco.(MARTIN-SANTOS, 2001, p. 277). Este pensamento digressivo compõe a idéia do homem, medida de todas as coisas, como centro de um processo que o leva a ser um predador que explora o outro homem de maneira por vezes feroz, idéia da qual o personagem se afasta para associar a uma nova idéia, do homem-lobo, figura fantasiosa do lobisomem em 182 noites de lua cheia. Desta nova idéia ele parte para uma outra associação, de caráter sensual/sexual ao associar o céu da boca, região delicada e sensível ao paladar, suave e rosada na espécie humana, mas negra nas bocas dos animais e desconcerta o leitor que não pode definir com certeza se a boca negra, assustadora, também não seria a do próprio homem que, identificado com o lobo, assume também suas características predadoras. Os dois textos, T.S. e El Árbol de la Ciencia, expressam que a vida humana é uma luta de predadores onde um domina e por vezes destrói o outro, passando uma visão profundamente pessimista da espécie. Em El Árbol de la Ciencia, o personagem Iturrioz tenta repetir e reforçar para Andrés a idéia de que viver é o que importa. “Hay que vivir” (BAROJA, 2001, p. 173).Todavia Andrés em sua angústia existencial não consegue seguir esse impulso vital forte de que fala Iturrioz. O máximo que ele consegue, após haver tomado a decisão de abandonar a pequena cidade de Alcolea do Campo, é atingir um estado de ataraxia. “Ahora se sentía como divinizado por su asceptismo libre; comenzaba a vislumbrar este estado de ataraxia”. (BAROJA, 2001, p. 221). Esta busca por um estado de tranqüilidade máxima da alma é um tema muito freqüente na obra de Baroja como aponta Donald Shaw (1997). Será neste momento de tranqüilidade máxima de seu espírito que Andrés pode olhar a paisagem a sua volta com mais ternura: “Muchas veces salía de casa cuando aún era de noche y veía la estrella del crepúsculo palpitar y disolverse como una perla en el horno de la aurora llena de resplandores”. (BAROJA, 2001, p. 222). Se em El Árbol de la Ciencia a imagem bíblica do bem e do mal aparece no texto reforçando essa distinção, Iturrioz faz sua interpretação irônica daquilo de que Deus teria dito ao Homem: No comáis del árbol de la ciencia, porque ese fruto agrio os dará una tendencia a mejorar que os destruirá.¿No es un consejo admirable? —Si, es un consejo digno de un accionista del banco— repuso Andrés. —¡Como se ve el sentido prático de esa granujería semítica! —dijo Iturrioz (BAROJA, 2001, p. 167). Baroja assim implica que a aquisição da consciência dá ao homem condição de aprimorar-se, lhe dá consciência, porém, nos termos práticos da visão de Iturrioz isto acaba por levá-lo ao aniquilamento. Para Iturrioz, sem esse fruto é possível ao 183 homem, comendo unicamente os frutos da árvore da vida, ser como um animal livre, ser um porco, ser egoísta , rolar pelo chão com alegria, simplesmente viver como acredita Iturrioz, com seu cinismo, ser a única possibilidade aberta ao homem, pois quanto mais consciência mais questionamentos, quanto mais questionamentos mais angústias, quanto mais angústias menos chance de seguir vivendo bem. Martín-Santos retoma essa imagem de Baroja em seu texto, porém sem mais implicar a idéia bíblica de árvore de bem e do mal, não mais centrado em consciência ou inconsciência e sim, simplesmente, em ciência. De forma sarcástica, de ciência na Espanha: ¡Cuántos ingeniosos prodígios de las ciencias aplicadas no sorprenden al visitante de cualquiera de nuestras Exposiciones de inventores! Solamente algunas de las ramas ligeramente descuidadas del árbol de la sabiduría nacional permanecen todavía alojadas en viejos edificios, ya no a la altura de las circunstancias. En tales casos no se trata, pues, sino de modestos pabellones que con aire romántico y recoleto reposan en zonas úmbrias rodeadas de antiguos parques y de senderos donde corretean los niños desarrapados de la vecindad. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 247). Esta reflexão é feita no momento em que Pedro se encaminha para o pavilhão onde funciona o Instituo de Pesquisas onde trabalhava para conversar com seu diretor que, ao final da conversa, o informará que não mais será aceito como pesquisador da instituição devido a escândalo em que se envolvera Pedro. O diretor o aconselha a trabalhar no interior como médico rural, caminho que havia percorrrido já Andrés Hurtado. Um comentário deve ser feito acerca da propalada misoginia de Baroja porque, a julgar-se por esta obra aqui estudada, esse comentário não soaria verdadeiro, pelo menos do ponto de vista literário. Neste romance Andrés Hurtado surpreende com uma terna cena de amor com Dorotéia, a dona da casa que o hospedava em Alcolea. Ao voltar para Madri, Andrés reata sua antiga amizade com Lulu com quem se casa e vive uma relação feliz. Seu sofrimento, ao perdê-la, associado a suas decepções, frustrações e amarguras, o leva à morte. A escolha de El Árbol de la Ciencia para esta comparação com T.S. foi feita por haver sido observado na sua leitura pontos que remetiam à obra de MartínSantos e, principalmente, por ser o romance de Baroja um exemplo de obra bem estruturada como aponta Juan Rodríguez no seu artigo Pio Baroja. Este crítico afirma que El Árbol de la Ciencia é o melhor romance de Baroja , “(…) y ocupa un 184 lugar central en la narrativa barojiana, como punto culminante de la crisis que le conducirá a un cada vez mayor escepticismo”. (RODRÍGUEZ, 1994, p. 330). 185 4.3 A LEITURA EM AÇÃO Leitura em ação é o nome que se deu a essa forma de olhar o texto literário procurando observar seus múltiplos direcionamentos, o que resulta, por vezes, em trajetórias que levam de um autor a outro, de forma aparentemente errática. Na verdade, esses percursos se devem àquele eterno diálogo que as obras literárias estão sempre estabelecendo entre si. Por esta razão, este capítulo, que se detém na busca de diálogos entre T.S. e outros textos encontrados no panorama cultural das primeiras décadas do século XX, se volta para Valle-Inclán para buscar aspectos da estética deste escritor presentes também no texto de Martín-Santos. Da obra valleinclanesca optou-se por Luces de Bohemia, obra teatral de 1920, por ser esta a primeira em que formalmente é assumido por seu autor o recurso da deformação estética que ele mesmo denominou esperpento, termo que utilizou como subtítulo da peça. A situação política espanhola da época em que esta peça foi escrita, anos 20, se caracterizava por períodos de repressão, fundamentalmente contra o movimento operário e a organização do movimento anarquista. Valle-Inclán inclui na segunda e definitiva versão de sua peça, publicada em 1924, mais três cenas, a II, a VI e a XI. Essas três cenas se interrelacionam através de um elemento comum: um preso catalão que Max Estrella, o protagonista de Luces de Bohemia, encontra no calabouço, na cena VI, é o mesmo homem que, no início da peça, na cena II, está sendo conduzindo de mãos atadas por um pelotão de policiais e será ele também que na cena XI será assassinado. Valle -Inclán se utiliza do personagem para denunciar a forte repressão policial que ocorria então. Nesta década dos anos 20, duas obras de Vale-Inclán são escritas: Divinas Palabras e Luces de Bohemia. Em ambas o escritor dá uma orientação bastante inovadora a estas obras dramáticas. É importante salientar que no início do século, intelectuais, escritores e parte da classe teatral espanhola se esforçavam para desenvolver um teatro menos comercial e conservador, mas esbarravam em um problema difícil de ser contornado: o público. O espectador comum preferia assistir melodramas e comédias que retratassem aspectos da vida da burguesia e não dramas mais inovadores como os de Pirandello, Ibsen ou Strindberg. 186 A perspectiva comercial que dominava o teatro, tratado como mero entretenimento, levava os empresários e produtores teatrais a montarem, unicamente, aquilo que eles acreditavam que fosse o que o espectador queria assistir. Assim embora Ibsen, por exemplo, fosse um dramaturgo conhecido no meio intelectual espanhol desde o final do século XIX, inclusive com montagem de suas peças em Madri, sua obra não foi mais divulgada na Espanha por não ter sido bem compreendida e, principalmente, porque as idéias liberais que os textos dele continham não conseguiram agradar à conservadora sociedade espanhola. Com isso, os empreendimentos dos escritores mais identificados com a renovação do teatro e com o teatro de vanguarda, como o de Valle-Inclán, sucumbem por causa da mentalidade retrógrada e pequeno-burguesa da época. Neste cenário político e intelectual, as peças Divinas Palabras e Luces de Bohemia vão surgir e suas montagens teatrais não encontram espaço para serem levadas até o palco. Divinas Palabras só será encenada pela primeira vez, em 1933. Alguns críticos, como Luis Iglesias Feijoo, apontam que Valle-Inclán não se limitava ao mundo do palco e, provavelmente, por perceber que “el aparato comercial del teatro español de entonces no podía asumir sus arriesgadas propuestas” (FEIJOO, 1994, p. 313), escreve o melhor teatro de sua época ao escrever sem pensar diretamente na representação cênica de suas obras e permitir que nelas se dê a contaminação de uma certa grandeza épica. Em Luces de Bohemia, além da denúncia da forte repressão policial já mencionada, Valle-Inclán critica a inversão de valores e a indiferença da sociedade frente às injustiças dela decorrentes. Valle-Inclán também vai aludir à ‘lenda negra’ em sua obra, traço que também o aproxima de T.S. cujo texto faz referência igualmente aos episódios históricos espanhóis marcados pela violência e o terror. Dos episódios da ‘lenda negra’ será a Inquisição o mais destacado no texto de Valle-Inclán, como também no de Martín-Santos. Na cena XI, Max Estrella afirma: “La Leyenda Negra en estos días menguados es la historia de España” (VALLE-INCLÁN, 2003, p. 58) e na cena II encontram-se inúmeros comentários críticos à religião: “Sin religión no puede haber fe en el comercio. /—Maestro, hay que fundar la Iglesia española independiente./—Y la sede vaticana, El Escorial./—¡Magnífica sede!. (VALLE-INCLÁN, 2003, p. 55). Esta mesma crítica religiosa aparece em T.S. e a mesma referência encontrada em Luces de Bohemia sobre o Escorial vai igualmente aparecer no texto 187 de Martín-Santos no fragmento final. Neste fragmento Pedro, após a morte de Dorita se encontra na estação de trem a caminho de uma cidade pequena do interior para trabalhar como médico de aldeia e seu pensamento domina a narrativa correndo solto em suas divagações. Ao entrar no trem, afastando-se de Madri, o personagem de Martín-Santos, desesperado por não estar desesperado, sente -se como um mártir sendo imolado. Sente que lhe (…) están capando vivo. ¿Y por qué no estoy desesperado? Es cómodo ser eunuco, es tranquilo estar desprovisto de testículos, es agradable a pesar de estar castrado tomar el aire y el sol mientras uno se amojama en silencio. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 284). Sua simbólica castração, percebida através do impedimento da realização de seu projeto de vida, o obriga a um conformismo silencioso. Pedro vê o sol que “sigue tan tranqüilo entrando en el departamento y allí se dibuja el Monasterio.” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 285), o mesmo citado por Max, em Luces de Bohemia, o Monasterio de San Lorenzo del Escorial, construído por Felipe II, de 1563 a 1584, como sepulcro para seu pai Carlos V, seus avós e descendentes e também como símbolo da fé católica e monumento a sua vitória militar sobre os franceses em Saint-Quentin, em 1557. Este monumento será também o sepulcro dele próprio, Felipe II. Como o Escorial é o primeiro e o maior monumento arquitetônico da ContraReforma, ao sugeri-lo como sede dessa nova igreja espanhola, Max está sendo irônico e Pedro ao apontá-lo como símbolo do passado imperial espanhol, está se referindo a um tempo histórico de força inquisitorial. O nome completo do monumento, San Lorenzo del Escorial, traz ao pensamento de Pedro a figura deste diácono de Roma, o mártir S. Lourenço, que tendo sido preso pelo prefeito da cidade e intimado a entregar os tesouros da Igreja, apresentou-lhe uma multidão de indigentes, dizendo-lhe que estes seriam os verdadeiros tesouros da igreja, pela riqueza incomparável de sua fé e porque tinham o condão de transformar os donativos em tesouros imperecíveis. Como pena por sua audácia, foi condenado ao tormento da grelha, mas mesmo as chamas da intolerância não puderam vencer a firme postura do diácono 188 que, inabalável, dizia ao carrasco que o virasse já que estava bem-assado daquele lado.S. Lourenço morreu no dia 10 de agosto de 258 D.C.. É a este S. Lourenço que Pedro se refere e com quem se identifica no martírio ao dizer que este: “(…) sanlorenzo de nuestros pecados, a ese sanlorenzacio que sabes, a ese sanlorenzón, a ese que soy yo, a ese lorenzo, lorenzo que me das la vuelta, que ya estoy tostado por este lado como las sardinas”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 286). É a este S. Lourenço, mártir que sofreu calado, que Pedro refere-se em seu monólogo com ferina ironia ao expressar em suas palavras finais que (…)como las sardinas, lorenzo, como sardinitas pobres, humildes, ya me he tostado, el sol tuesta, va tostando, va amojamando, sanlorenzo era un macho, no gritaba, no gritaba, estaba en silencio mientras lo tostaban torquemadas paganos, estaba en silencio y sólo dijo – la historia sólo recuerda que dijo – dame la vuelta que por este lado ya estoy tostado… y el verdugo le dio la vuelta por una simple cuestión de simetría. (MARTÍN-Santos, 2001, p. 286) Este é um exemplo típico da maneira com que Martín-Santos procura expressar sua visão crítica da realidade espanhola, valendo-se de elementos comparativos que conduzem a uma leitura trágico-grotesca daquela realidade. Através da imagem e caricatura de um S. Lourenço macho, de uma imagem distorcida pela ironia, ele busca esperpenticamente revelar a verdadeira essência da sociedade que nestas imagens está contida. Essa conceituação se aproxima daquela encontrada na cena XII de Luces de Bohemia em que Max, cego, moribundo, devido aos excessos do álcool e do frio intenso da madrugada, anuncia a d. Latino seu desejo de imortalizá -lo num romance. D. Latino propõe, em tom divertido e bem humorado, que seja uma tragédia. Max se contrapõe à proposta declarando que não através de tragédia e sim do esperpento pois este seria a mais adequada representação estética para aquele grotesco contexto espanhol. Max lembra ainda que “El esperpentismo lo ha inventado Goya. Los héroes clásicos han ido a pasearse en el callejón del Gato. (VALLE-INCLÁN, 2003, p. 162). A alusão a Goya que Max Estrella faz refere-se não somente às séries de desenhos do pintor, os Caprichos e os Disparates, como também àquelas telas onde situações alusivas à vida e à realidade espanholas são retratadas, como o Aquelarre – Sabbath de brujas, onde a visão grotesca e deformada também se mostra. 189 Valle-Inclán, certamente, está referindo-se à maneira como Goya, em sua crítica à sociedade espanhola, subverte a ordem estabelecida através da deformação. Em desenhos de Goya é possível encontrar alguns recursos estéticos de que Valle-Inclán se utilizará para criar seus esperpentos, como a animalização – técnica também encontrada em Martín-Santos. Em uma das gravuras de Goya, uma pessoa muito vaidosa, ao olhar-se no espelho vê a sua imagem como a de um macaco. Há outras gravuras em que o artista mistura corpos humanos com os de animais, como por exemplo, na Lâmina 56, Subir y Bajar dos Caprichos. Estas imagens acentuam os aspectos satíricos e dão relevo a efeitos que vão do simplesmente risível, cômico, ao grotesco, sinistro. Quanto ao Callejón del Gato, onde os heróis clássicos, segundo Max, foram passear, Valle-Inclán está se referindo à pequena rua do centro de Madri, Calle de Alvarez Gato, entre as ruas de Santa Cruz e Nuñez de Arce, situada na parte boêmia da cidade, onde ainda é possível ver na entrada de um estabelecimento, dois espelhos côncavos e dois convexos que refletem distorcidamente as imagens dos transeuntes. Parece bem provável que Valle-Inclán tenha passado por estes espelhos, divertindo-se com a deformação de sua imagem por eles produzida e tenha tido sua imaginação atraída por essa deformação que iria inspirá-lo a produzir também imagens distorcidas para melhor apresentar a verdadeira essência da sociedade que nestes espelhos se reflete. As relações entre Luces de Bohemia e o contexto histórico em que foi produzida apontam também para o fato de que sua matéria ficcional tem como ponto de partida um rico material histórico, como também tem T.S. Assim como Valle-Inclán critica o teatro espanhol tradicional de sua época, os dramaturgos, os escritores e os intelectuais que gozavam da fama sem mostrar real talento, Martín-Santos também faz o mesmo em seu texto. No fragmento 60 (pp. 261-68) sua digressão discorre sobre as diferentes modalidades de teatro de revista e de comédias de pouco ou nenhum valor estético que não sofrem a censura, pois o censor “nada puede ni quiere el severísimo censor contra esas manifestaciones de popular gozo y triunfo y considera suficientemente formado al abigarrado público” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 266). 190 Estes comentários do fragmento 60 completam e fecham o círculo de críticas irônicas que haviam sido apontadas no início da narrativa quando, na longa enumeração dos aspectos negativos da cidade de Madri, o narrador enfatizara que Hay ciudades (…)tan llenas de tonadilleras y de autores de comedias de costumbres, de comedias de enredo, de comedias de capa y espada, de comedias de café, de comedias de punto de honor, de comedias de linda tapada, de comedias de bajo coturno, de comedias de salón francés, de comedias del café no de comedia dell’arte. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 16). Uma das passagens mais fortes da crítica ácida de Martín-Santos sobre “la continuidad generacional e histórica de ese vacío (…) que llaman literatura castellana” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 78) fica patente não só através desse questionamento de sua tradição como também transparece, mais agudamente ainda no uso de uma linguagem metafórica desenvolvida para abarcar o ambiente do Café (pp. 76-80) local onde estariam reunidos tanto o público ligado à literatura e às artes quanto escritores poetas e artistas contemporâneos. Nesta passagem Martín-Santos toma a figura de Ramón Gómez de la Serna, escritor do período da geração de 98, mas que está mais próximo da vanguarda, da arte como puro jogo, onde o racional é substituído pelo intuitivo e a realidade por um mundo em que domina o incoerente, para alvo de sua ironia. Ramón de la Serna, a partir de 1910, havia ficado famoso com a criação da greguería, tendência a definir o indefinível e a capturar o efêmero. A greguería, como explica García López, viene a ser una asociación ingeniosa de ideas que unas veces nos hace pensar en la metáfora y otras en el concepto; de aí su aire barroco. En ocasiones se acerca a la imagen lírica pero lo más freqüente es la ‘cabriola irónica’, la observación irracional, divertida y sutil ocurrencia provocada por cualquier detalle insignifcante. (GARCÍA LÓPEZ, 1994, p. 673). Martín-Santos faz seu personagem atravessar da “ribera misma de la playa” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 78) até um “trocito de arena libre” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 78) onde pode mostrar sua intelectualidade e comentar suas últimas leituras. Entretanto para chegar até 191 (…) allá era preciso atravesar el caos sonoro, las rimas, los restos de todos 40 los fenecidos ultraísmos, las palabras vacías de Ramón y su fantasma greguerizándose todavía a chorros en el urinario de los actores maricas, las ensoberbecidas muchachas pálidas vestidas de negro (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.78), que reservam ainda uns trocados para o café com leite da noite e lhes “da derecho (con su azúcar) a permanecer en el templo donde la miel de la sabiduría va poniendo pegajosos los mármoles.” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 78). Este “unflattering remark 41” (UGARTE, 1984, p. 358) como o descreve Michael Ugarte, sobre Gómez de la Serna, é fruto da forma mais dominante de ironia em T.S., a ironia verbal, que marca sua mordaz visão de mundo. O esperpentismo valleinclanesco também pode ser apontado no texto de Martín-Santos tanto nas figuras feias, sórdidas e desagradáveis como Muecas, Cartucho, a velha da pensão e o filósofo Ortega y Gasset, quanto nas situações absurdas ou disparatadas, como o incesto de que Florita é vítima, o assassinato de Dorita e o banimento profissional de Pedro do Instituto de Pesquisas. Os esperpentos assentavam-se em aspectos como o grotesco, a dramaticidade e a uma determinada visão existencialista em que o homem se descobre diante do grande drama moral de seu tempo: como não tem em suas mãos o meio de decisão, de modificação da realidade, ele também não pode avaliar a validade de suas opções devido a seu alto grau de alienação. Pedro e Max, dois heróis do absurdo espanhol, têm em comum essa alienação em relação a uma leitura mais clara dos acontecimentos políticos e sociais que os circundam. Max, nas conversas com o anarquista catalão na prisão (cena VI) revela seu desinteresse pelas lutas operárias. Ao ser libertado e conseguir uma entrevista com um Ministro para protestar contra os maus tratos que recebera na prisão, não intercede, em momento algum, pelo anarquista mesmo sabendo que, provavelmente, iriam matá-lo, como de fato ocorre. Pedro, por sua vez circula pelos espaços de T.S., e pela vida enfim, sempre levado ou induzido à ação por outros. Amador o conduz às chabolas; Matias o espera no café literário para as saídas de sábado à noite; Matias o leva ao bordel; a velha da pensão o induz a cair nos braços de sua neta; Muecas vem buscá-lo para 40 41 Grifo nosso. Comentário desairoso. (Trad. da autora) 192 atender sua filha; Matias decide escondê-lo da polícia no bordel de d. Luísa; as mulheres da pensão o levam ao teatro de revista. Enfim, Pedro pode dizer de si, sem erro, não sou dos que levam, sou coisa levada. A tendência às citações latinas, grandiloquentes, de d. Latino, em Luces de Bohemia e de Matias, em T.S., somadas às vivências boêmias de Max e d. Latino e de Pedro e de Matias se constituem em mais um aspecto que forja elos entre os dois textos. Desta forma, através de suas personalíssimas visões e concepções artísticas, a partir de uma determinada particularidade histórica, em que ambos vivenciam a desintegração política, social e moral da história espanhola de seus tempos, ValleInclán e Martín-Santos conseguem captar a conduta incauta que, de um modo geral, caracteriza a absurda condição humana. 193 4.4 CAMINHOS PARA DIALOGAR COM A REALIDADE Em uma comunicação proferida no I Seminário de História da Filosofia Espanhola na Universidade de Salamanca, o professor Serafín Tabernero del Rio chama a atenção para o fato de que, se por um lado, Ortega e Gasset é o pensador de língua espanhola que mais tem suscitado artigos, estudos e pesquisas sobre sua obra, por outro lado, é o que mais levanta polêmicas quanto às díspares atitudes encontradas em tais estudos. Segundo Tabernero del Rio tales estudios representan las más variadas actitudes, que van desde el elogio más rotundo hasta la más enconada repulsa. Ante este hecho, fácil de constatar, surge, en quien quiera acercarse a la obra orteguiana con pretensiones de objetividad, uma actitud de cautela que pudiera formularse así: ¿ no habrá sido Ortega desmesuradamente encomiado por unos, y, tal vez, vituperado por otros con no menos desmesura? (TABERNERO DEL RÍO, 1978, p. 253) Tabernero del Rio salienta também que na história dos estudos orteguianos fica patente que tanto a atitude de hostilidade quanto a de apreço se fundamentam em contradições monumentais. Os campos de pensamento que mais se atacam em Ortega são: o clerical, o político conservador, segundo uns, e o político liberal, segundo outros. De Ortega y Gasset se pode afirmar que as mais contraditórias opiniões foram emitidas que es metafísico y que no lo es, que se queda en la lógica y que la lógica no es su fuerte, que no ha sabido interpretar a España y que ha dado de ella las más agudas interpretaciones, que escribía maravillosamente y que su estilo era de una pesadez insoportable, que era elitista y que quería que las masas se hicieran espiritualmente aristocráticas. (TABERNERO DEL RÍO, 1978, p. 264) Como se pode perceber a questão religiosa, a questão sobre a Espanha – Espanha tem problemas/ Espanha não tem problemas/ Espanha é o problema/ Espanha não é o problema, sua vertebração ou invertebração – e seus conceitos filosóficos, todas estas questões de forte conotação ideológica, estiveram sempre na 194 base dos olhares lançados por muitos espanhóis sobre Ortega y Gasset. Alguns de franca admiração, uns de certo receio e outros até de aberta hostilidade. Como exemplo desta variada gama de reações que se produziu entre os espanhóis em relação a Ortega y Gasset, Gregório Marañón, nome associado aos olhares admirativos, deixou seu testemunho numa carta escrita para Indalecio Prieto onde aquele comenta as reações de seus compatriotas quanto ao fato de ter Ortega y Gasset recebido ou não o sacramento da confissão nos últimos dias de sua vida. Escreve Marañón: Lo de Ortega ha actuado sobre la opinión española de una manera que evidencia la pasión del país. Ha producido cuatro reacciones: la de los católicos que se alegran de que Ortega haya muerto en el seno de la Iglesia; la de los católicos más papistas que el papa que no consideran que haya muerto con las condiciones adecuadas para salvarse, en parte por puritanismo y en parte porque no admiten que se salven sino ellos; la de los de izquierda que dicen que Ortega ha renegado de su historia y ha sido al final un tránsfuga, y la de los de derecha que afirman que todo fue una farsa, que no hubo tal reconciliación. (MARAÑÒN, apud, TABERNERO DEL RÍO, 1978, p. 261). Estas atitudes refletem de forma exacerbada um comportamento de intolerância dos cidadãos de um país que vivera o tão violento conflito de divisão da guerra civil que, ao colocar amigos, familiares e irmãos em campos opostos, fracionou de forma violenta seu tecido social. Elas podem ser interpretadas como marcas que sinalizam o desentendimento, a desagregação, a desconfiança, todos frutos que brotaram da cruel colheita que a semeadura de ódio, violência e arbítrio havia plantado no solo da nação espanhola nesse período de sua história. Esse exemplo de atitudes ambivalentes terá continuação nos anos seguintes ao da morte do filósofo, estendendo-se até nossos dias. No final do século XX, outro Gregório, Gregório Morán, este associado aos olhares cautelosos, publica, em 1998, um livro sobre Ortega intitulado El Maestro en el Erial no qual ele se concentra nos últimos dez anos (1945-1955) da vida de Ortega, período de seu retorno à Espanha e de seus encontros e desencontros com o franquismo. O estudo de Morán não é especificamente filosófico nem chega a ser uma biografia intelectual de Ortega. Ele percorre um tempo da Espanha cuja visão está marcada pelas polarizações de grupos de intelectuais de distintas filiações. Segundo Jo Labanyi, foram idéias surgidas entre os escritores da geração de 98 e Ortega que forneceram as bases para o que viria a constituir-se no debate 195 sobre o “problema espanhol” (LABANYI, 1989, p. 55), e que este debate acabou por monopolizar o cenário das discussões políticas nos anos quarenta e cinqüenta. Martín-Santos certamente travou contato com estas discussões durante os anos em que freqüentou a Universidade de Madri, no final dos anos 40. Diz-se “certamente” porque para sua tese de doutorado em psiquiatria contou com a orientação de dois professores, Pedro Laim Entralgo, liberal católico falangista e López Ibor, professor de psquiatria e membro do Conselho Nacional da Falange. Cada um deles manifestou-se de forma distinta sobre os debates da época. Pedro Laín Entralgo, com uma posição mais crítica, insistia que os problemas, levantados pelos escritores da geração de 98, ainda precisavam ser melhor analisados para chegar-se a uma solução, enquanto Lopes Ibor, justificava o status quo e defendia a posição de que o apontado pela geração de 98 como problema, era na verdade, sinais da superioridade espanhola. Um outro conhecido de Martín-Santos, Calvo Serer, membro do grupo de pressão católico Opus Dei, insistia em atacar Laín Entralgo afirmando que, qualquer problema que os espanhóis tivessem tido ou enfrentado, já havia sido superado e resolvido com a Guerra Civil. Martín-Santos pendeu para as colocações de Laín Entralgo e, em TS, torna esta posição bem clara, pois, em uma passagem do romance, seu narrador declara que: “no está tan mal todo lo que verdaderamente está muy mal” (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 19), confirmando assim o pensamento de que o problema espanhol é, exatamente, o de assumir a postura do avestruz que enterra a cabeça para não ver o que está acontecendo, recusando-se, portanto, a reconhecer a existência de problemas. Com tudo isso o que é fundamental acrescentar é que, discuta -se ou não o protagonismo histórico da figura de Ortega y Gasset, o valor de seu legado intelectual chega até nossos dias, pois se está diante do maior filósofo espanhol do século XX. Utilizando-se o estudo intertextual pôde-se perceber a maneira como se delineia e se conforma a presença de Ortega em T.S. de Martín-Santos. A captação deste universo intertextual urdido em torno de dois eixos – o do escritor com sua visão de mundo, sua percepção crítica do outro, suas iluminações e até seus preconceitos e o do filósofo com seu saber, sua ciência, seus conceitos e suas representações de mundo – se faz lançando-se sobre o texto do romance um 196 olhar que vai desvelar a maneira como Martín-Santos questiona e ironiza idéias contidas na obra do filósofo Ortega y Gasset e um outro que aponta para o modo como ele satiriza e parodia a figura humana do filósofo. Esta animosidade de Martín-Santos contra o filósofo espanhol perpassa todo seu romance. Nele, o ataque a Ortega é, por vezes, irônico e satírico, sempre profundamente irreverente e, em algumas passagens, sua construção paródica é impiedosa. A crítica dirigida a Ortega apresenta-se sob dois aspectos: um ligado às idéias defendidas pelo filósofo e o outro, de caráter pessoal. No campo das idéias os ataques de Martín-Santos centram-se naquelas idéias que Ortega defendeu em vários de seus trabalhos. Aparecem críticas desde as posições do filósofo apresentadas em España Invertebrada, La Deshumanización del Arte até suas colocações nas Meditaciones del Quijote. Para um intelectual progressista e aberto como Martín-Santos, era difícil aceitar a posição de Ortega de que o mérito pessoal, obtido através de uma adequada intelectualização, fosse suficiente para que o indivíduo chegasse a fazer parte da classe dirigente. Esta posição orteguiana era percebida por Martín-Santos como manifestação de uma atitude de superioridade intelectual e de enquistamento em uma posição, no fundo, que reforçava as barreiras entre as classes. Tal postura, tão cultivada em seu país de forte tendência hierarquizante, mantinha os de baixo excluídos e, portanto, incapacitados para romperem as ditas barreiras. Assim, duvidando das intenções pouco claras de Ortega, ou seja, de sua sinceridade, Martín-Santos sugere uma atitude de hipocrisia por parte do filósofo quanto às suas aspirações de querer construir uma sociedade baseada apenas em uma hierarquização intelectual. Seguem-se as dúvidas levantadas por Martín-Santos sobre as intenções pouco claras de Ortega. Martín-Santos ataca-o quando, no fragmento 32, declara: ¡Oh proclamación profética hecha precisamente para que la profecia nunca se cumpla! ¡Como traición te llamo! No eres expiatório buco, sino buco gozador, das tu pezuña izquierda con gesto dadivoso, pero amagas con la derecha.”(MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 253). Era impossível para Martín-Santos aceitar aqueles que, arrogantemente, acreditam que o direcionamento do mundo é tarefa de homens seletos, e que a 197 presença das massas na história, é sinal de deterioração. Para Martín-Santos, escritor engajado na construção do socialismo, o homem que não tem humildade não pode ser companheiro do povo no direcionamento do mundo, nem tem lugar no encontro verdadeiro dos homens, onde não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos, apenas homens em comunhão buscando saber mais. O desacordo de Martín-Santos com algumas colocações orteguianas e com sua atitude de uma certa superioridade arrogante motivou a reação sarcástica do ecritor contra o filósofo, a quem descreve com tintas desfavoráveis, mostrando-o no episódio 33, o da conferência, como um mestre vaidoso e soberbo, buscando rebaixá-lo com sua descrição sarcástica. Na última frase desta citação as palavras separadas com hífens constituem-se em mais um adjetivo designativo do filósofo. Martín-Santos se utiliza desse aspecto gráfico para ressaltar a ironia e a comicidade que reduzem a importância da figura parodiada do filósofo. con ochenta años de idealismo europeo a sus espaldas (…),retórico, inventor de un nuevo estilo de metáfora, catador de la historia, reverenciado en las universidades alemanas de província, oráculo, ensaysta, hablista, el – que – lo – había – dicho – ya – antes – que – Heidegger”. (MARTÍNSANTOS, 2001, p. 158) A desconsideração pela figura de Ortega prossegue na visão que MartínSantos dá do palestrante ao narrar, com ironia corrosiva a conferência, enfatizando o pedantismo do mestre. Assim o texto o descreve: Señoras (pausa), señores (pausa) esto que yo tengo en la mano (pausa) es una manzana (gran pausa). Ustedes (pausa) la están viendo (gran pausa), pero (pausa) la vem (pausa) desde ahí, desde donde están ustedes (gran pausa). Yo (gran pausa) veo la misma manzana (pausa) desde aquí, desde donde estoy yo (pausa muy larga). (MARTÍN-SNTOS, 2001, p. 158). Todas estas passagens, referentes à conferência do filósofo, vão constituir-se em uma das mais ambiciosas construções paródicas de TS, como aponta A. Rey, para quem, Lo que Martín-Santos trata de describir es el “fenómeno Ortega”, en la sociedad española, es decir, la actitud de uma intelectualidad que, vuelta de espaldas a las lacras sociales del país, disfruta de una veneración desmesurada entre las clases altas, aunque estas convierten la cultura en una serie de actos sociales totalmente triviales” (REY, 1980,p. 82). 198 Esta visão de Rey se confirma na descrição que Martín-Santos faz do local da conferência proferida por Ortega, que ocorre em um espaço simetricamente ordenado, em três níveis superpostos: uma esfera inferior; uma esfera intermediária e uma esfera superior. Há dois eventos simultâneos ocorrendo neste espaço. Na esfera inferior há um baile e as pessoas que ali estão, em sua maior parte, são empregados pertencentes à categoria social mais baixa, e não percebem o que ocorre acima deles. Nas esferas média e superior ocorre a conferência do filósofo, e lá concentram-se intelectuais e pseudo-intelectuais. Há uma diferença entre estas duas esferas porque, na esfera intermediária, os lugares são mais baratos. A esfera superior fica no mesmo plano do filósofo. Há ainda uma superposição de alusões nesta passagem, porque além desses espaços referirem-se à cena da conferência, eles também remetem à visão tripartida da Divina Comedia, pois “la esfera inferior, estaba consagrada a los infiernos”, a esfera intermediária a “los círculos del purgatório” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 155) e a superior, a culminante, onde ficava o filósofo corresponderia, ironicamente, ao paraíso. A posição do filósofo nessa distribuição espacial vai conferir-lhe uma dimensão de deus supremo mas, ao mesmo tempo, estes espaços representam também extratos sociais: classe operária, esfera inferior; classe média, esfera intermediária; burguesia e elite dirigente, esfera superior. Na conferência, o filósofo utiliza -se da maçã para introduzir, com muita simplicidade, mas ao mesmo tempo com solenidade pedante, a versão da teoria orteguiana de perspectivismo que, pela maneira como é colocada, fica parecendo um insulto à inteligência dos assistentes. No entanto, todos parecem indiferentes à “verdade” e, reagem positivamente, como se não se dessem conta do insulto ou, não compreendendo mesmo.-. Em alguns pontos de T.S., Martín-Santos traduz semelhanças com Ortega, como por exemplo, na tendência a valorizar a visão histórica e a cultivar uma atitude crítica com relação ao passado. Segundo Benet, esta passagem de T.S., relativa à conferência, relaciona -se a uma conferência real que Ortega, de fato, pronunciou, no outono de 49, no Cine Barcelò – 199 hoy convertido en discoteca – dentro del ciclo El hombre y la Gente (…). Aquella conferencia de Ortega asistimos, si no me recuerdo mal, Rocío, Luis y yo (…). A la salida fuimos a cenar, y durante toda la sobremesa, haciendo uso de la manzana, no hicimos otra cosa que remedar las frases, la voz, tos, gestos y la retórica de Ortega. (BENET, 1986, p.88) O depoimento de Juan Benet é confirmado pelas pesquisas de Gregório Morán que nos conta ser possível que na história da filosofia seja Ortega y Gasset o primeiro pensador acadêmico a utilizar-se de um cinema como centro de estudos. Afirma Morán que En el otoño de 1949 había puesto los escasos instrumentos burocráticos del Instituo de Humanidades a la búsqueda de un lugar lo suficientemente grande para colmar sus expectativas en uno de los momentos más entusiastas desde que volvió a España en 1945. Se quedó con el cine Barceló. (MORÁN, 1998, p. 259). Morán também revela que o curso El Hombre y la Gente constaria de doze lições e a grande divulgação que teve criou uma enorme expectativa por esse “Ortega entusiasta” (MORÁN, 1998, p. 260). Entretanto, ainda segundo Morán, parece que o sucesso não se confirmou, talvez porque “el viejo pensador ofrecía cada vez más la imagen de tener descompensadas esas condiciones de viejo y pensador, por sus guiños reiterados, por su retórica trasnochada. Vencido más por la edad que por el pensamiento” (MORÁN, 1998, p. 261). Em España Invertebrada, na parte IV, Ortega y Gasset tece comentários sobre a pequena ou quase nula influência direta do escritor sobre a sociedade: “Es fácil que algunos literatos se hagan la ilusión de lo contrario, porque el oficio de escritor lleva consigo, dondequiera que se ejercite, y más en un pueblo de no gran volumen, como el nuestro, cierta aureola que puede ser un espejismo” (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 138). Ortega y Gasset chega inclusive a afirmar que na Penísnula Ibérica o homem de letras goza de um poder negativo y compara esta atitude com o que ocorre na França, país onde há prestígio para o escritor. Ele ainda contrargumenta comentando o fato de que se poderia citar o caso de respeito, homenagem e amor na popularidade de que goza Ramón y Cajal na Espanha. Ortega y Gasset considera essa a única exceção de pretigio em seu país a um nome ilustre que é 200 utilizado como uma espécie de fetiche para aplacar “las iras del demonio Inteligencia.” (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 139). Afirma Ortega y Gasset também que a sociedade elege um para elogiar e liberar-se com a homenagem excessiva a esse escolido, de qualquer obrigação com os outros. Martín-Santos, provavelmente, inclui a figura de Ramón y Cajal nas primeiras folhas de T.S. como forma de iniciar seu irônico diálogo com o filosofo, partindo daquelas observações feitas em Espana Invertebrada. Nas Meditaciones del Quijote, alguns pontos merecem comentário e procuramos apontar aqueles traços que contrastam com T.S. No texto de Ortega y Gasset, a palavra “circunstância” é definida por ele da seguinte maneira: “¡Circum-stantia! ¡Las cosas mudas que están en nuestro derredor!” (ORTEGA Y GASSET, 1990, p. 65). Ortega vai insistir muito neste conceito porque, segundo ele o homem é sua circunstância. “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” (ORTEGA Y GASSET, 1990, p. 77). A insistência para que se busque esta circunstância é fundamental para que se conquiste a vida individual, e ao reabsorver-se individualmente a circunstância, se atinja a realização do destino de cada um. A resposta irônica de Martín-Santos para esta reflexão de Ortega y Gasset sairá em T.S. pela boca de Amador, um personagem de pouco estudo, mas de grande poder de observação e esperteza: “Cada cual con su cuadacula” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 190). Martín-Santos situa seu personagem Pedro sempre frente a sua circunstância, mas suas atitudes vão contradizer Ortega, porque para Martín-Santos existem circunstâncias que impedem a concretização daquele destino, por tolhê -lo de tal maneira que o projeto individual não pode ser realizado e, como o projeto coletivo inexiste, o autoritarismo, como a Moira, vai impor o projeto que deseja às pessoas. Ainda nas Meditaciones, Ortega apresenta uma imagem do homem de ciência como um caçador que “poseyendo el arma y voluntad la pieza es segura; la nueva verdad caerá seguramente a nuestros pies herida como un ave en su trasvuelo” (ORTEGA Y GASSET, 1990, p. 88). Martín-Santos em T.S. configura seu personagem central como pesquisador e prova que só ter arma e vontade para ‘caçar’ ou resolver os problemas da vida não bastam para se chegar à verdade. Os caminhos se fecham por forças poderosas contra as quais o pesquisador não pode lutar. Estas o fazem abandonar seu caminho da busca da verdade. 201 Outro aspecto a considerar é o dos diferentes significados que o Escorial terá para Ortega e para Martín-Santos. El Escorial, imagem bastante cultivada pelos escritores da geração de 98, por sua austeridade estóica, representa inspiração e ideal estético para Ortega, devido à simetria clássica de sua arquitetura. Nas Meditaciones del Quijote, Ortega descreve liricamente o Escorial, onde o silêncio que o cerca é para ouvir a natureza, os pássaros e “los latidos de nuestro corazón” (ORTEGA Y GASSET, 1990, p. 98). Para ele “España es como una planicie en torno al Escorial, una balaustrada o loggia para gentes que ansían espacio libre para sus pensamientos” (REY, 1980, p. 235). Martín-Santos, ao contrário, vê no Escorial e sua arquitetura um símbolo de força que imobiliza e impõe o silêncio, pois no seu texto lê-se: “Tiene todas sus cinco torres apuntado para arriba y ahí se las den todas. No se mueve” (MARTÍNSANTOS, 2001, P. 286), confirmando que para Pedro, ele é símbolo da paralisação e do silenciamento de todo um povo. O martírio de S. Lourenço, evocado no monólogo de Pedro surge a partir da lembrança que o nome completo do Escorial alude: S. Lorenzo del Escorial. Santo que foi queimado, e “no gritaba, no gritaba, estaba em silencio mientras lo tostaban torquemadas paganos” (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 286). Em T.S., o Escorial é o espaço do estóico que anula e castra. É também esta identificação com a austeridade, com o silêncio, com a pobreza árida da região de Castilha que vai ajudar Martín-Santos a compor o forte contraste entre sua percepção e a orteguiana. Nas Meditaciones del Quijote, Ortega prega o retorno às origens para desfazer os erros da História: La realidad tradicional en España ha consistido precisamente en el aniquilamiento progresivo de la posibilidad España. No, no podemos seguir la tradición. Español significa para mí una altísima promesa que solo en casos de extrema rareza ha sido cumplida. No, no podemos seguir la tradición: todo lo contrario: tenemos que ir contra la tradición, más allá de la tradición. De entre los escombros tradicionales nos urge salvar la primaria sustancia de la raza, el módulo hispánico, aquel simple temblor español ante el caos. Lo que suele llamarse España no es eso, sino justamente el fracaso de eso. En un grande, doloroso incendio habríamos de quemar la inerte apariencia tradicional, la España que ha sido, y luego, entre las cenizas bien cribadas hallaremos como una gema iridiscente, la España que pudo ser. (ORTEGA Y GASSET, 1990, p. 172) 202 Ortega y Gasset, nesta passagem, fala do retorno à “primaria sustancia de la raza” e ao implicar uma rejeição à História, “en un grande doloroso incendio habríamos de quemar la España que ha sido”, sua visão se nos depara mais idealista que existencialista. Para ele a História seria inautêntica por ser manifestação imperfeita de um arquétipo original. Talvez por este motivo “el aparente historicismo orteguiano se confunda con el esencialismo noventayochista” (LABANYI, 1985, p. 23). Também os escritores de 98 tentam dissociar o caráter nacional do fracasso histórico, ponto que Martín-Santos explora provando que o fracasso do seu personagem Pedro está associado à estrutura social da Espanha decadente, preconceituosa e arbitrária que obriga o indivíduo a abrir mão de seu projeto pessoal, irrealizável dentro dela. Esta questão implica também por parte de MartínSantos um questionamento do “projeto” individual proposto por Ortega, pois o projeto de Pedro não pôde concretizar-se ainda que ele o desejasse. Outro aspecto da forte implicação de T.S. com os escritores da geração de 98 a considerar reside no fato deles terem recorrido ao estoicismo e utilizado a Meseta Castelhana e sua paisagem austera como um dos seus símbolos preferidos. MartínSantos serviu-se também desta mesma simbologia em seu texto com uma visão, entretanto, completamente oposta a dos que percebiam a atitude estóica como virtude. Ironia e sátira desempenham importantes papéis em T.S. Normalmente ironia e sátira supõem atitudes distintas por parte do autor e por parte também do leitor. A sátira é uma forma de ironia explícita, já que o leitor a percebe de imediato, notando que as palavras significam o contrário do que dizem. Quanto à ironia, ela se adequa bem à crítica social, entretanto, por não ser tão óbvia quanto à sátira é menos clara a falsificação do sentido do que é criticado. Ela pressupõe uma certa benevolência quanto ao objeto de sua crítica. Por outro lado, a sátira é uma mentira total. A ironia pode ser inconsciente, a sátira não. A ironia é ambígua, a sátira não. Por esta razão, muitas vezes, a sátira indica uma atitude dogmática por parte do autor. Em T.S. a sátira é dogmática no caso de Matias e da alta burguesia cuja descrição caricaturesca é superficial. MartínSantos evita a caricatura e prefere a falsa idealização que cria uma visão bidimensional. Segundo Jô Labanyi o uso que Martín-Santos faz da sátira 203 Es brillante no sólo por su virtuosismo lingüístico, sino sobre todo por hacermos sospechar que, detrás de la fachada falsa/embellecida que nos da el texto, existe algo mucho más terrible, de lo que jamás podría expresar la descripción literal. (…) El uso de la sátira rompe con el objetivismo, obligando al lector a elucidar el sentido profundo del texto, puesto que su sentido superficial es obviamente falso. (LABANYI, 1985, p. 145). A sátira mais plenamente realizada no romance foi a lograda por MartínSantos ao confundir a perspectiva crítica do narrador com a do personagem através da alternância entre monólogo interior e discurso indireto livre. Pedro, nos monólogos, se converte em porta voz da ironia social do narrador. Esse mesmo desdobramento da voz narradora vai ocorrer com a sátira ao filósofo Ortega, representado pelo macho cabrón do quadro de Goya. O narrador ora critica Ortega de fora, ora assume a voz deste para parodiá-lo de dentro, ora adota o tom adulador do público da conferência. Não fica claro se quem fala é Pedro ou o narrador. Pedro contempla o quadro de Goya, mas nada indica ao leitor que aquele discurso seja um monólogo interior. A transformação do cabrón em Ortega dando a conferência que só terá lugar no dia seguinte, supõe uma omnisciência que só pode ser do narrador. A voz narradora é resultado de uma mistura de vozes (Pedro/narrador) que além dessas incorpora as de Ortega e seu público. Além da atitude sarcástica com a maneira como o filósofo apresenta sua teoria perspectivista, Martín-Santos vai parodiar/ironizar o próprio conceito do perspectivismo orteguiano. Martín-Santos, possuidor de uma fina veia de humor, retoma essa questão no ejemplo percebido na cena do bordel de D. Luisa em que Pedro e ela olham um tomate por ângulos distintos: “tomó un tomate y lo levantó haciendo que el sol golpease con dureza sobre la pequeña esfera roja. Ella miraba el tomate por un lado. Pedro lo miraba por el otro. Ambos lo veían desde diferentes perspectivas”. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p. 178). O uso de perspectivas dos personagens uns em relação aos outros debe ser entendida como tentativa de criar na obra uma visão dialética cujo sentido reside na contradição e na conseqüente prova de que a verdade não é absoluta, mas comporta muitas visões. O episódio da conferência, fragamento 33, em que Ortega apresenta sua teoria representa também uma das maneiras encontradas por Martín-Santos para 204 levar seu leitor a perceber a distinção entre o uso que ele mesmo faz do perspectivismo em seu romance, como forma de criar a polifonia das diferentes visões de seus personagens, da teoria perspectivista orteguiana. A visão que o leitor faz do personagem principal Pedro, por ejemplo, é fruto das múltiplas perspectivas que o narrador lhe oferece a través do olhar dos demais personagens e da percepção que estes fazem dele. Ao descrever as situações do romance desde “la múltiple perspectiva de los varios personajes, Martín-Santos no intenta crear “una idea total” orteguiana que trascienda las limitaciones de la perspectiva individual, sino demostrar que el significado de la situación está en la contradicción entre las varias interpretaciones” (LABANYI, 1985, p. 127) e, claro, diferentes que cada indivíduo tem da realidade. A utilização dessa ténica cria uma visão, segundo Labanyi, multifacetada do mundo e, ao mesmo tempo, uma visão polifônica da verdade que passa assim a ser construída, no romance, a muitas vozes. Outros bons exemplos dessa maneira de apreender a realidade, vê-se na descrição da cama de cimento da cela da prisão, fragmento 45, p. 205 -06, apresentada a partir das várias perspectivas que o preso, o personagem Pedro, pode adotar em relação a ela, ou na descrição dos diferentes efeitos que a revista musical causa no público que a está assistindo. Em qualquer dos exemplos a ênfase recai na concepção que o indivíduo faz do objeto descrito, analisado ou aprendido através de suas contradições. O uso contínuo das descrições das situações através dos personagens, evidencia a facilidade com que o autor lida com esta técnica que vai caracterizar o realismo dialético, realidade percibida através das contradições. O narrador, por vezes, intervém interpretando a percepção de seus personagens e assumindo uma postura o nisciente e onipresente. A ironia de Martín-Santos com relação ao tema da raça se evidencia no diálogo com o pintor alemão, tanto sobre a questão racial quanto sobre a filosofia metafísica, numa clara dupla alusão a Ortega: a simpatia germânica do filósofo e a metafísica. – Ahora esto está aquí – anunció gravemente mientras iniciaba el gesto de beber – y ahora ya no está – cuando el vaso estuvo vacío –. Ha pasado al interior del corpo. 205 La risa no era el comentário adecuado a este tipo de humor constatativo sino el pasar inmediatamente a la aplicación universal del método, lo que inició Matias, inspirado por su ángel: – Ahora esta silla está aquí abajo – cogiendo aquella en la que estaba sentado –. Y ahora está aquí arriba – colocándola encima del mármol negro de la mesa. – Pero tu corpo no está donde era – protestó el alemán que provenía de uma raza más dotada para la estricta metafísica. (MARTÍN-SANTOS, 2001, p.82) Martín-Santos escolhe Pedro, jovem médico pesquisador e seu personagem principal, para, através de suas pesquisas, provar que o câncer – doença de Espanha e dos ratos de sua pesquisa – não é adquirido geneticamente mas sim, fenotipicamente, através do meio ambiente. Ele quer com isto provar que os problemas originados dessa “doença do país” se derivam, não da existência daquele caráter nacional essencial, porém da estrutura social deteriorada e doente como a da Espanha dos anos 40. O homem espanhol, fadado a apresentar as mesmas mazelas existentes na estrutura apodrecida e viciosa da sociedade em que vive, se vê diante da impossibilidade, como ser social que é, de realizar seu projeto existencial. Os escritores e ideólogos da geração de 98 supunham o caráter nacional como produto da raça e do meio ambiente, porém enfatizando mais o meio geográfico que, tal como o conceito de raça, é elemento de maior fixidez, do que o meio social que, por ser político e histórico, é elemento dinâmico. Eles viam a história como resultado do caráter nacional e não como sua causa. Também, por descartarem as implicações da realidade espanhola em termos de evolução dinâmica, os escritores da geração de 98 buscavam causas fixas para justificar seu pessimismo e um certo fatalismo quanto às possibilidades de mudança. Luis Martín-Santos vai imprimir em sua narrativa uma perspectiva dialética segundo a qual a mudança nasce do jogo das contradições sociais e, com isso, se contrapõe à visão daqueles escritores. Ele desmonta a crença de que a realidade se explica em termos de uma causa fixa. Os textos vivem no mundo dos textos e as intertextualidades se configuram na condição mesma da textualidade. É como se a própria ficção se debruçasse sobre si mesma, revelando uma característica de introversão, mas o fizesse de forma consciente, deslocando-se em direção ao próprio ato de escrever. 206 T.S. evidencia esta tendência referencial na grande variedade de textos nele tão bem entrelaçados, o que torna este romance, sem dúvida, uma das mais marcantes realizações da narrativa espanhola do século XX. 207 CONCLUSÃO “A literatura destrói os limites precisos dos objetos. Tem um caráter de desequilíbrio. Se não é loucura, se mantém no limite da loucura (...) Propõe ao homem não acabar com o mal, mas enfrentá-lo com olhar lúcido. A literatura é a possibilidade de lucidez quando sujeito e consciência são negados ou destruídos” George Bataille O caminho percorrido por esta tese, iniciou-se no momento histórico da publicação de Tiempo de Silencio e seguiu norteado pela própria sinalização que seu autor apresenta em suas páginas, onde ele vai buscar seu povo ou o reconhecimento de sua face no resgate de sua história, de seus temas e mitos culturais de sua tradição literária. Porém não bastava para Martín-Santos resgatar a tradição, era preciso renová-la e para isso utilizou-se de toda uma elaboração conceitual, por ele denominada de realismo dialético, que estudamos no capítulo inicial da tese como ponto de partida para melhor entender esse percurso. Assim vimos como os aspectos da nova proposta estabelecida por MartínSantos se concretizam em seu romance através do aprofundamento da intectualização, do emprego de uma temática em que ele pode mostrar as leis que modificam a existência humana, o condicionamento social a que seus personagens estão sujeitos e suas contradições profundas conflitando, muitas vezes, com sua ânsia de liberdade. Martín-Santos encontra assim, um caminho narrativo novo para o romance social espanhol dos anos 50 e com TS aponta para a renovação da prosa narrativa espanhola. Para seguir com Martín-Santos no percurso definido por seu romance, este estudo procurou centrar-se nos aspectos que poderiam servir de focos iluminadores 208 para que não se corresse o risco de perder-se pelas estreitas e pouco eliminadas ruelas madrilenses, por onde perambularam Pedro, Matias, Amador e tantos outros espanhóis que, com eles, dividiram aquela Espanha fragmentada e autoritária dos tempos difíceis da pós-guerra civil. Martín-Santos pertence à generación herida, como a denominava José Ortega, cujos escritores, ainda que não tenham participado diretamente também da gran catástrofe, passaram a juventude convivendo com o desencanto, a violência e a pobreza dos tempos de paz. Impuseram-se a tarefa de romper o pesado silêncio daqueles tempos e através de seus escritos expor a acomodação de uma parte da sociedade e a lutar, com outra parte dela, pela sobrevivência e resistência. Martín-Santos, com fina sensibilidade, percebe que existe em todos os grandes sistemas literários uma ânsia de verdade, uma busca dramática por valores que muitas vezes conseguem tornar a vida humana mais digna de ser vivida do que aqueles encontrados na rotina mesquinha e sem alma da sociedade burguesa onde eles se encontram mergulhados. A obra de arte pode, portanto, ensinar a resistir e a superar a pequenez de tempos de silêncio e fazer se ouvir como voz que clama por libertação. Para que esses árduos tempos fossem compreendidos, após a contextualização de T.S em seu momento histórico, seguimos em busca de sua voz narradora e das vozes que a acompanham por serem elas as que imprimem a marca polifônica do texto, as que o ampliam com visões da realidade obtidas através das variadas e diferentes modulações que fornecem ao leitor. O estudo prosseguiu apontando para a presença da cultura espanhola, também construída no texto do romance através das intertextualidades. Os poucos dias nos quais decorre a ação do romance encerram vários séculos da tradição cultural espanhola . Esta tese acompanhou o desenrolar destas seqüências intertextuais trazendo à tona não somente aquelas que se encontravam nas alusões mais claras e diretas no texto como também as que estavam menos visíveis, mas que, nem por isso seriam menos relevantes e foram detectadas por nosso olhar. Esta tese, portanto, ao revisitar com Martín-Santos a tradição cultural espanhola, mostrou que essa herança cultural, rica e pujante, está viva e tem neste escritor um grande interprete, pois a recriou com originalidade em seu romance, onde deixou pulsando o sentimento de tradição e renovação. 209 Northrop Frye, afirma que toda estrutura verbal está constituída por dois aspectos literários que dirigem a leitura. Um, que ele chama de centrípeto e outro que ele chama de centrífugo. Estes dois movimentos são respectivamente direcionados para dentro e para fora. Um envolve o amplo espaço intertextual baseado em textos literários, conceitos, seqüências históricas e até da própria vida do escritor. O outro, que ele denomina de significação literária, é o texto final que deriva daquela e no qual deve mergulhar a interpretação leitora. Ambos são importantes para guiar a leitura, porque caso haja falha na compreensão de um, haverá uma leitura incompleta, e, se houver falha na leitura do outro, haverá uma leitura incompetente. O texto de T.S demanda uma leitura completa e competente para sua compreensão ampla. Demanda também um campo de percepção bastante refinado por parte do seu leitor para poder acompanhar o refinamento de visão crítica nele encontrado e que representa a summa intelectual de seu autor. Ao trabalhar com relações de aproximações, de desvios e também de oposições a outros textos, esta tese procurou perceber pontos que fazem convergir e divergir leituras, que instauram diálogos entre T.S e sua tradição literária. Tais diálogos nem sempre são processos pacíficos porque, sendo os textos um espaço onde se inserem dialeticamente estruturas textuais e extratextuais, eles são um local, muitas vezes, de conflito, e cabe aos estudos de literatura comprada, como este, buscar investigá-los através de uma perspectiva sistemática de leitura intertextual. Foi necessário cuidado e paciência para que os mais significativos intertextos de T.S pudessem ser encontrados e apontados. Devido ao momento de forte controle social em que este romance foi escrito, algumas das idéias intertextuais encontravam-se disfarçadas. Este disfarce, logrado pela ironia ou pelo jogo barroco de revela r e esconder empregado por Martín-Santos, dificulta a um leitor menos sensível, uma apreesão mais profunda do romance evitando que ele se torne senhor de um texto tão exigente. Devido ainda a esta complexa concepção textual tivemos que nos reportar somente a alguns escritores da geração de 98 e deixa r outros, como Perez de Ayala, de fora, no desejo de que novos investigadores e estudiosos sigam com a analise de um romance tão denso. 210 Espera-se que o nível de competência desta leitura tenha sido suficiente para, pelo menos não ter traído, ou se afastado muito do pensamento de Martín-Santos, nas interpretações que foram propostas. Também espera-se ter podido por a descoberto, partindo-se do seu contexto e de seus intertextos, o real pretexto onde estão contidos objetivos, motivações e intenções de seu autor. A apropriação que se fez do texto de Martín-Santos, para encontrar todo um mundo aí contido e revelado, passou, sem dúvida, pelos desvãos da intuição e da subjetividade, porém, devido à fundamental necessidade de resgate da lucidez, foi a racionalidade e a objetividade que a nortearam. Como ficou implícito na epigrafe que abre esta conclusão, quando a literatura se coloca no limite entre loucura e razão, é porque o momento por ela retratado aprisiona e nega sujeito e consciência. O texto que estudamos retrata um momento de semelhante aprisionamento e negação de consciência. Seu autor, seguindo a colocação desta mesma epigrafe, de que nesses momentos é preciso que o homem enfrente o mal com um olhar lúcido, coloca seu personagem Pedro ancorado na sua racionalidade e recolhido ao silêncio que o momento impunha. Entretanto lhe permite conservar a lucidez. A evidencia desta lucidez faz-se no momento em que Pedro /Martín-Santos mantém seu olhar lúcido, não cravado no Escorial, símbolo de esmagamento e imobilismo, mas sim, mirando ao longe a serra azul, que guarda a secreta esperança de um novo tempo. 211 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTI, Rafael. Noche de Guerra en El Museo del Prado y el Deshabitado. Madrid: Biblioteca Nueva, 2003. Hombre ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. ARELLANO, Ignácio. Introducción a El Buscón. In: História de La Vida del Buscón de Francisco de Quevedo. Madrid: Espasa Calpe, 2002. BAEZ, Fernando. História Universal da Destruição dos Livros. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1987. _____.1 Questões de Literatura e Estética. A Teoria do Romance. São Paulo: Hucitec, 2002. _____.2 Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. _____. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martin Fontes, 2003. BAROJA, Pío. El Árbol de La Ciencia. Madrid: Cátedra, 2001. BASANTA, Ángel. Cervantes y El Quijote en Algunas Novelas Españolas de Nuestro Tiempo. In: Actas de I Coloquio Internacional de la Asociación de Cervantistas. Alcalá de Henares: Anthropos, 1988. pp. 35-51 BENEDETTI, Mario. Sobre Artes y Oficios. Montevideo: Alfa, 1968. BENET, Juan.Luis. Martín-Santos. Un Memento. In: El País Semanal. Madrid: Domingo, 21 diciembre 1986. BÍBLIA SAGRADA. Petrópolis: Vozes, 1983. BORGES, Jorge Luis. Curso de Literatura Inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. BOZAL, Valeriano. Goya y el Gusto Moderno. Madrid: Alianza, 2002. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1986. 212 BROWN. G.G. Historia de la Literatura Española – el siglo XX. Barcelona: Ariel, 1998. CABRERA, Infante. El Armistício del Tiempo. El País – Suplemento Libros. Ano VII, nº 229. Domingo, 7 de julio de 1991. CAMÕES, Luis de. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1963. CÁRCAMO, Silvia Inés. El Rey Rodrigo o la Pérdida de España. In: Mitos Españoles, Imaginación y Cultura. Rio de Janeiro: APEERJ, 2000. CARR, Raymond. España 1808 – 1975. Barcelona: Ariel, 1982. CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2004. CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Buenos Aires: Joaquim Gil, 1947. CHAUÍ, Marilena. Sobre o Medo. In: Os Sentidos da Paixão. (Org.) M. Chauí. São Paulo: Cia das Letras, 1997. pp. 35-75. CORREIA, Raimundo. Poesia Completa e Prosa. São Paulo: Aguilar, 1961. CRUZ e SOUZA. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1961. CRUZ, Juana Inés de la. Obras completas de Sor Juana Inés de la Cruz. México: Fondo de Cultura Econômico, 1988. CURUTCHET, Juan Carlos. Cuatro Ensayos sobre la Nueva Novela Española. Montevideo: Alfa, 1973. _____. Luis Martins Santos, el fundador. In: Cuadernos de Ruedo Ibérico, n. 17 (février/mars). Paris. 1978, pp.17-28. VINCI, Leonardo da.Tratado de la Pintura. Madrid: Aguilar, 1964. DELIBES, Miguel. Cinco Horas con Mario. Barcelona: Destino,1981. DOLGIN, Stacey L. La Novela Desmitificadora Española – 1961-1982. Barcelona: Anthropos, 1991. EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001. FEIJOO, Luis Iglesias. Del Teatro a La Novela . In: Historia y Crítica de La Literatura Española. Modernismo y 98. (Org.) José Carlos Mainer. Barcelona: Crítica, 1994, pp.309-314 . FOX, Inman y VIU, Vicente Cacho. La Generación del 98: Crítica de un Concepto. In: 213 Historia Y Crítica de La Literatura Española. Modernismo y 98. (Org). José Carlos Mainer. Barcelona: Ed. Crítica, 1994, pp. 17-30. FRYE, Northrop. La Escritura Profana. Barcelona: Monte Á vila, 1980. FUENTES, Carlos. Eu e os Outros – Ensaios Escolhidos. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. _____. Valiente Mundo Nuevo. México: Fondo de Cultura Económico, 1990. GALAN FONT, Eduardo. Claves para la Lectura de Tiempo de Silencio de Luis Martín-Santos. Madrid: Ediciones Daimon, 1986. GARCÍA LÓPEZ, José. Historia de la Literatura Española. Barcelona: Vicenz- Vives, 1994. GENETTE, Gé rard. Palimpsests: Literature in the Second Degree. Lincoln and London: University of Nebraska Press, 1997. GOLDMAN, Lucien. A Sociologia do Romance. São Paulo: Paz e Te rra, 1990. GÓMEZ – QUINTERO, Ella Rosa. Quevedo, Hombre y escritor en conflicto con su Época. Miami: Universal, 1978. GONZÁLEZ, Mario. Ler Leituras. In: Cadernos de Letras da UFF. Niterói: n.11, 1° Semestre, 1996, pp. 117-124. HATOUM, Milton. Elegia a um Felino do Amazonas. In: Revista Entrelivros. São Paulo: Duetto, Ano 2, n. 24. S/data HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. São Paulo: Perspectiva, 1988. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. O Breve Século XX. 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HUGHES, Robert. Goya. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. HUMPHREY, Robert. O Fluxo de Consciência. São Paulo: Mc Graw-Hill, 1976. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991. _____. Teoria e Política da Ironia. Belo Horizonte: UFMG, 2000. JERREZ-FARRÁN, Carlos. Ansiedad de Influencia Versus Intertextualidad Autoconsciente en Tiempo de Silencio de Martín-Santos. In: Symposium , 42. Washington D. C., 1988, pp. 119-132. JOSEF, Bella. Romance Hispanoamericano. São Paulo: Ática, 1986. 214 KNICKERBOCKER, Dale F. Tiempo de Silencio and the Narrative of the Abject. In: Anales de la Literatura Española Contemporánea. n. 19, 1-2, E.U.A, 31237, 1994, pp 11-29. KRISTEVA, Julia. Semiotique: Recherches pour une Sémanalyse. Paris: Seuil, 1969. _____. Word, Dialog and Novel. In: The Kristeva Reader. Oxford: Toril Moi, 1986. LABANYI, Jo. Ironia e Historia en Tiempo de Silencio. Madrid: Taurus, 1985. _____. Myth and History in The Contemporany Spanish Novel. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. LEENHARDT, Jacques. La Lecture Politique du Roman. Paris: Les Éditions de Minuit, 1973. LESSING, Ephrain Gotthold. Lacoonte. São Paulo: Iluminuras, 1998. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades, 2000. _____. Ensaios Sobre Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. _____. Estética. Barcelona: Grijalbo, 1966. MALRAUX, André. La voix du Silence. Paris: La Galerie de La Pléiade, 1951. _____. La Tête d’Obsidienne. Paris: Gallimard, 1974. MENA MARQUÉS, Manuela. Goya: Al Margen de Los Acontecimientos Políticos de Su Tiempo. In: Historia del Arte de España. (Org). Xavier Barral y Alt. Bordas Lundwerg: Lundwerg, 1996. MARTÍN-SANTOS, Luis. Tiempo de Silencio. Barcelona: Seix Barral, 2001. MAYO, Eugene A. Tiempo de Silencio and the Aesthetics of Modern Art. In: Critique: Studies in contemporary Fiction. 30:3. Washington D.C, 1989, pp.155-162. MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. Flor Nueva de Romances Viejos. Buenos Aires: Espasa – Calpe, 1962. MILTON, John. Areopagitica. In: English Literature, A College Anthology. (Orgs.) D. Clark L. Dickinson, C.Hudson and G. Pace. New York: The Macmillan Company, 1960. MORÁN, Gregorio. El Maestro en el Erial .Barcelona: Fábula Tusquets, 1998. NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: História, Teoria e Crítica. São Paulo: Edusp, 1997. 215 OLIVEIRA, Ester Abreu de. O Mito de D. Juan. Vitória: Ediouro – Universidade do Espírito Santo, 1996. ORTEGA Y GASSET, José. Em Torno a Galileu. Petrópolis: Vozes, 1989. _____. España Invertebrada. Madrid: Alianza, 2001. _____. Meditaciones Del Quijote. Madrid: Cátedra, 1990. ORTEGA, José. La Sociedad Española Contemporánea en Tiempo de Silencio de Martín-Santos. In: Symposium: A Quarterly Journal in Modern Foreign Languages. Syracuse, n. 22, N York, 1968, pp. 236-260. PALLEY, Julián. El Périplo de D. Pedro en Tiempo de Silencio. In: Novelistas Españoles de Pos-guerra. (Org.) CORDONA, Rodolfo. Madrid: Ed. Taurus, 1976. PIZARRO, Mar Langa M. Del Franquismo a la Postmodernnidad. Alicante: Publicacions de la Universidad de Alicante, 2000. PORCEL, Baltazar. Guerra literária: Españoles contra Latinoamericanos. Destino Magazine, 1693. 14 de março de 1970. PORTELA, Eduardo. Fundamento da Investigação Literária. Fortaleza: Tempo Brasileiro, n. 33, Universidade Federal do Ceará, 1981. QUEVEDO, Francisco de. Historia de la Vida del Buscón. Madrid: Espasa-Calpe 1997. RAMA, Ángel. Temas Latinoamericanos – La Novela Latinoamericana 1920 -1980. Colombia: Procultura, 1982. RAMOS, Tereza Cecília. A Possível Moral em Celestina de Fernando Rojas. In: Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos. n. XIV. Brasilia: Thesaurus, 2004, pp.143154. RAMSDEN, Herbert. The 98 Movement in Spain. Manchester: Manchester University Press, 1974. RENSSELAER W Lee. Ut Pictura Poesis – La Teoria de La Pintura. Madrid: Cátedra, 1982. REY, Alfonso. Construcción y Sentido de Tiempo de Silencio. Madrid: Porrúa Turanza S/A, 1980. RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. RIFFATERRE, Michael. La Production du texte. Paris: Seuil, 1979. 216 RILEY, E. C. Whatever Happened to Heroes? D. Quijote and Some Major European Novels of the Twentieth Century. In: Cervantes and the Modernists. (Org.) Willians, Edwin . London: Tamesis Book Limited, 1994. ROBERTS, Gemma. Temas Existenciales en la novela Española de Postguerra. Madrid: Gredos, 1973. RODRÍGUEZ, Juan. Pío Baroja. In Historia y Crítica de La Literatura Española. Modernismo y 98. (Org). José Carlos Mainer. Barcelona: Crítica, 1994, pp. 325-336. ROUSSEAU, A.M., PICHOIS, C. & BRUNEL, P. Que é Literatura Comparada? São Paulo: Perspectiva, 1995. SALUDES, Esperanza. La Narrativa de Luis Martín-Santos a la Luz de la Psicología. Miami: Ed. Universal, 1981. SANTANA, Mario. Foreigners in the homeland. London: Bucknell University Press, 2000. SANZ VILLANUEVA, Santos. Historia de la Literatura Española- El siglo XX. Barcelona: Ariel, 1984. _____. Historia de la Novela Social Española – 1942-1975. Madrid: Alhambra, 1986. SHAW, Donald. La Generación del 98. Madrid: Cátedra,1997. SOBEJANO, Gonzalo. Novelas Españolas de Nuestro Tiempo. Madrid: Prensa Española, 1975. SOL, Manuel. Don Quijote en Tiempo de Hispanoamericanos. n. 430. Madrid: 1986, pp. 73-83 Silencio. In: Cuadernos SUÁREZ GRANDA, Juan Luis. Guías de Lectura-Tiempo de Silencio de Luis MartínSantos. Madrid: Alhambra, 1986 TABERNERO DEL RIO, Serafim. Actas del I Seminario de Historia de la Filosofía Española. Salamanca: Ed. de La Universidad de Salamanca, 1978, pp. 253-264. TACCA, Oscar. Las Voces de la Novela. Madrid: Gredos, 1989. UGARTE, Michael. Tiempo de Silencio and the Language of Displacement In: Modern Language Notes, vol. 96, n. 2, Hispanic issue. John Hopkings University Press, 1981, pp 340-357 _____. Trilogy of Treason – An Intertextual Study of Juan Goytisolo. Columbia and London: University of Missouri Press, 1982. VALLE INCLÁN, Ramón del. Luces de Bohemia. Madrid: Espasa Calpe, 2003. 217 VIEIRA, Maria Augusta. Don Quijote. In: Mitos Españoles – Imaginación y Cultura. Org. Silvia Cárcamo. Rio de Janeiro: Ed. APEERJ, 2000, pp. 105-114. ZERAFFA, Michael. Fictions. The Novel and Social Reality. England: Penguin Books, 1976. 218 ANEXOS Figura 1 GOYA, Aquelarre – Sabbath de las Brujas, 1797-98. Óleo sobre tela, 44x31 cm. Fundação Lázaro Galdiano, Madri: Figura 2 GOYA, Procesión de Disciplinantes. 1812-14. Óleo sobre painel, 46x73 cm. Museu da Real Academia de Belas Artes de São Fernando, Madri. Figura 3 GOYA. Coloso. 1810. Óleo sobre tela, 116x105 cm. Museu Nacional do Prado, Madri. Figura 4 GOYA. Las Parcas, 1820-24. Óleo transferido de mural para tela. 123x266 cm. Museu Nacional do Prado, Madri. Figura 5 GOYA. El Dos de Mayo de 1808 em Madrid, 1808-14. Óleo sobre tela, 266x345 cm. Museu Nacional do Prado, Madri. Figura 6 GOYA. El Tres de Mayo de 1808 en Madrid o Los Fusilamientos en la Montaña del Príncipe Pío, 1814. Óleo sobre tela, 266x345 cm. Museu Nacional do Prado, Madri. Figura 7 GOYA. Saturno Devorando a su Hijo, 1820-24. Óleo transferido de mural para tela, 144x82 cm. Museu Nacional do Prado, Madri. 219 220 221 222 223