1
O DIREITO E A LINGUAGEM: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES A PARTIR DA LEGISLAÇÃO E DA
JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRAS
FLÁVIO BENTO. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de
Londrina/UEL. Doutor em Educação pela Universidade Estadual
Paulista/UNESP. Professor do Curso de Mestrado em Direito do Centro
Universitário Toledo/UNITOLEDO de Araçatuba, do Curso de Graduação
em Direito da Universidade Norte do Paraná/UNOPAR, e do Centro
Universitário Eurípides de Marília/UNIVEM. e-mail: [email protected].
SAMYRA HAYDÊE DAL FARRA NASPOLINI SANCHES. Doutora em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC. Mestre
em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC.
Coordenadora do Curso de Mestrado em Direito do Centro Universitário
Toledo/UNITOLEDO de Araçatuba. e-mail: [email protected].
RESUMO:
O presente estudo trata de aspectos importantes que destacam a
necessidade
dos
profissionais jurídicos
utilizarem uma
linguagem
correta e cortês. A legislação educacional brasileira expressa uma
preocupação com a formação adequada do graduando em Direito,
inclusive no que se refere a aspectos da linguagem, como a elaboração
de textos, a correta utilização de termos jurídicos, a capacidade de
argumentação. No que se refere à atuação profissional, destaca-se a
exigência
de
linguagem
escorreita
e
polida
pelos
advogados,
magistrados, e demais profissionais do Direito. Constata-se, ainda, a
existência de alguns estudos sobre a linguagem e o Direito, com
destaque para os trabalhos em nível de mestrado e doutorado.
PALAVRAS-CHAVES:
Direito. Linguagem. Linguagem jurídica. Ensino jurídico. Profissões
jurídicas.
2
“A palavra tende a ser útil em qualquer ofício,
sendo às vezes até imprescindível. No mundo
do direito as palavras são indispensáveis”.
(CARMO, 2009, p. 203)
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Linguagem e formação do graduando em
Direito. 3. Linguagem jurídica e atuação profissional dos bacharéis em
Direito. 4. Direito e linguagem em estudos na Pós-Graduação. 5.
Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Existem alguns aspectos importantes que relacionam a
adequação da linguagem à atuação dos profissionais jurídicos, como
advogados e magistrados.
Considera-se a linguagem, no contexto restrito deste artigo,
a forma de manifestação de ideias, de argumentos e de informações
jurídicas, especialmente por profissionais envolvidos com o Direito e o
ensino jurídico.
Não será analisada, especificamente, a relação entre a
linguagem jurídica e a população leiga nos assuntos jurídicos. Destaquese, entretanto, que existem iniciativas do Poder Judiciário brasileiro
visando apresentar às pessoas uma noção mais comum de alguns
conceitos técnicos, como o glossário que foi elaborado pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul com as principais expressões
utilizadas nas decisões judiciais (RIO GRANDE DO SUL, 2009), ou o
texto
elaborado
pela
Associação
dos
Magistrados
Brasileiros
3
(ASSOCIAÇÃO
DOS
MAGISTRADOS
BRASILEIROS,
2009),
ambos
disponíveis na internet.
O presente estudo objetiva analisar alguns aspectos que
relacionam a linguagem e o Direito, especialmente no que se refere ao
ensino jurídico e a atuação dos profissionais formados nas Academias, e
examinar o nível de preocupação das pesquisas em pós-graduação com
temas sobre a linguagem e o Direito.
Destacamos, ainda, que a relação entre o Direito e a
linguagem envolve um número razoável de temas e problemas jurídicos,
alguns de grande complexidade, como a interpretação da legislação
[hermenêutica jurídica], e os diversos problemas de escrita e de
determinação do sentido da lei que surgem tanto no sistema normativo
escrito [codificado], como no sistema de precedentes jurisprudenciais.
2. LINGUAGEM E FORMAÇÃO DO GRADUANDO EM DIREITO
A preocupação com a formação adequada do graduando em
Direito, inclusive no que se refere a aspectos da linguagem, como a
elaboração de textos, a correta utilização de
termos jurídicos, a
capacidade de argumentação, está expressa nas Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Direito, Resolução n. 9, de 29 de
Setembro de 2004, do Ministério da Educação, Conselho Nacional de
Educação, Câmara de Educação Superior. Estabelece o artigo 4o. da
Resolução especificada que:
O curso de graduação em Direito deverá possibilitar a
formação profissional que revele, pelo menos, as
seguintes habilidades e competências:
I - leitura, compreensão e elaboração de textos, atos e
documentos jurídicos ou normativos, com a devida
utilização das normas técnico-jurídicas;
4
II - interpretação e aplicação do Direito1;
III - pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência,
da doutrina e de outras fontes do Direito;
IV - adequada atuação técnico-jurídica, em diferentes
instâncias, administrativas ou judiciais, com a devida
utilização de processos, atos e procedimentos;
V - correta utilização da terminologia jurídica ou da
Ciência do Direito;
VI - utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de
persuasão e de reflexão crítica;
VII - julgamento e tomada de decisões; e,
VIII - domínio de tecnologias e métodos para permanente
compreensão e aplicação do Direito. (BRASIL, 2009a)
A atenção com a escrita, ainda na Academia, justifica-se, por
exemplo, em razão de que uma linguagem confusa e imprecisa, na
propositura de uma ação judicial, pode gerar a chamada inépcia ou
inaptidão da petição inicial. Prevê o artigo 295 do Código de Processo
Civil [parágrafo único] que “considera-se inepta a petição inicial quando:
[...] II - da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão”
(BRASIL, 2009b).
Já há alguns anos a literatura jurídica brasileira apresenta a
edição de obras que tratam da linguagem jurídica. Destacam-se,
especialmente, Edmundo Dantès Nascimento, Linguagem forense
(2009); Eduardo Carlos Bianca Bittar, Linguagem jurídica (2008) e
Metodologia da pesquisa jurídica (2009); Adalberto José Kaspary,
Habeas Verba: português para juristas (2007) e O verbo na
linguagem jurídica: acepções e regimes (2006); Regina Toledo
Damião e Antonio Henriques, Curso de português jurídico (2007);
Antonio Henriques, Prática de linguagem jurídica (2008); Ronaldo
Caldeira Xavier, Português no Direito (1998); Luis Alberto Warat, O
Direito e sua linguagem (1995); Maria Stella Ferreira Levy [Org.],
1
Um dos grandes problemas dos profissionais que atuam com o Direito, que não será
tratado neste estudo, é a necessidade de enfrentar a falta de clareza e objetividade dos
textos legais.
5
Linguagem e suas aplicações no Direito (2006); Eliaser Rosa,
Linguagem Forense (2003); entre outros.
Alguns bons estudos sobre Direito e linguagem também
podem ser encontrados na internet, especialmente textos originais ou
traduzidos por estudiosos italianos: Júlio Bernardo do Carmo, Técnica
de redação de sentença e de conciliação no juízo monocrático
(2009);
Roberto
Ernani
Porcher
Junior,
Direito
e
arte:
intersubjetividade e emancipação pela linguagem (2009); Carlos
Roberto Faleiros Diniz, Discurso jurídico: Ferramenta e arma do
advogado. Necessidade de todo operador do Direito (2009);
Malcolm Coulthard, Linguistas como peritos/as (2009); José Manoel
Lastra Lastra, Derecho a la lengua y lenguaje jurídico (2009);
Winfried Hassemer, Diritto giusto attraverso un linguajo correto?
Sul divieto di analogia nel Diritto Penale (2009); Michele Strazza,
Le parole della Legge: per una semplificazione del linguaggio
normativo (2009); Rodolfo Sacco, Lingua e Diritto (2009); Patrizia
Brugnoli,
Qualche
osservazione
sulle
potenzialità
generative
semantiche e pragmatiche della lingua costituzionale: il punto di
vista dei linguisti (2009); Cláudio Panzera, Tutela dei diritti
fondamentali, tecniche di normazione e tipologia delle pronunce
costituzionali: la “rivoluzione della flessibilità” (2009); GerardRené de Groot, La traduzione di informazioni giuridiche (2009);
Jerzy Wróblewski, Il problema della traduzione giuridica (2009);
Tecla Mazzarese, Interpretazione giuridica come traduzione: tre
letture de un’analogia ricorrente (2009); entre outros2.
2
As referências bibliográficas indicadas nos artigos citados em língua italiana nos
remetem a uma considerável lista de fontes bibliográficas sobre o Direito e a linguagem,
especialmente estudos de juristas europeus.
6
3.
LINGUAGEM
JURÍDICA
E
ATUAÇÃO
PROFISSIONAL
DOS
BACHARÉIS EM DIREITO
Historicamente, os bacharéis e o ensino jurídico foram vistos
por alguns estudos, inclusive sociológicos, sob uma perspectiva menos
positiva, como Gilberto Freyre e o seu “bacharel ou doutor afrancesado”
(1936, p. 311), com suas ideias e seus modismos europeus; ou Sérgio
Buarque de Holanda, que se referiu à “praga” e ao “vício do
bacharelismo” (1995, p. 156-157). Em consonância com essas e outras
visões é que surgiu a acepção de bacharelismo como “dito pretensioso e
enfadonho, com pouco ou nenhum nexo, ou irrelevante” (HOUAISS;
VILLAR, 2001, p. 371), ou como expressão sinônima de bacharelice,
“costume de falar à toa [...]. Palavreado pretensioso” (GRANDE
ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA, v. 3, p. 994).
Mais recentemente surgiu a expressão “juridiquês”, muito
utilizada
nos
meios
de
comunicação,
e
que
representa
“o
uso
desnecessário e excessivo do jargão jurídico e de termos técnicos de
Direito”,
e
“denota
floreio
excessivo
da
língua
e
subterfúgio
desnecessário a termos [jurídicos] pouco conhecidos do grande público”
(WIKIPÉDIA, 2009).
Apresenta-se apenas um exemplo que se encaixa na ideia de
“juridiquês”. Verifica-se a existência de diversas expressões que foram
criadas para representar o que a lei denomina simplesmente por
“petição inicial”: peça atrial, autoral, de arranque, de ingresso, de
intróito, dilucular, exordial, gênese, inaugural, incoativa, introdutória,
ovo, preambular, prefacial, preludial, primeva, primígena, prodrômica,
proemial, prologal, pórtico, umbilical, vestibular (WIKIPÉDIA, 2009).
Conforme já observou Eduardo Carlos Bianca Bittar, a
linguagem jurídica é técnica, “especializada a partir da linguagem
7
comum, e, dela tendo partido, dela cada vez mais se distancia” (2009,
p. 76).
Localizamos um exemplo bem trabalhado e inteligente de
como o discurso jurídico pode ser incompreensível. Trata-se de texto
apresentado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (2009):
Diagnosticada a mazela, põe-se a querela a avocar o
poliglotismo. A solvência, a nosso sentir, divorcia-se de
qualquer iniciativa legiferante. Viceja na dialética
meditabunda, ao inverso da almejada simplicidade
teleológica, semiótica e sintática, a rabulegência
tautológica, transfigurada em plurilingüismo ululante
indecifrável. Na esteira trilhada, somam-se aberrantes
neologismos insculpidos por arremedos do insigne
Guimarães
Rosa,
espalmados
com
o
latinismo
vituperante.
Afigura-se até mesmo ignominioso o emprego da liturgia
instrumental, especialmente por ocasião de solenidades
presenciais, hipótese em que a incompreensão reina. A
oitiva dos litigantes e das vestigiais por eles arroladas
acarreta intransponível óbice à efetiva saga da obtenção
da verdade real. Ad argumentandum tantum, os pleitos
inaugurados pela Justiça pública, preceituando a
estocástica que as imputações e defesas se escudem de
forma ininteligível, gestando obstáculo à hermenêutica.
Portanto, o hercúleo despendimento de esforços para o
desaforamento
do
“juridiquês”
deve
contemplar
igualmente a magistratura, o ínclito Parquet, os doutos
patronos das partes, os corpos discentes e docentes do
magistério das ciências jurídicas.
Entendeu?
A preocupação da Associação dos Magistrados Brasileiros
com a simplificação da linguagem jurídica é justificável quando se
verifica
a
existência
de
decisões
judiciais
com
linguagem
incompreensível até mesmo para profissionais experientes. Como
exemplo se destaca uma decisão que trata da indenização decorrente de
8
acidente de trabalho do qual resultou a morte de trabalhador. O texto
inicial do acórdão3, apesar de mais apurado, pode ser compreendido:
INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
- CAPTAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE
OBJETIVA. A questão de acidente de trabalho e da
indenização expressamente ressalvada pela Constituição
da República de 1988 (art. 7o., inciso XXVIII), trafegam
pela teoria do risco, e não da culpa. A se falar nesta,
necessariamente dever-se-á desfraldar a questão da
causa eficiente do fato danoso (acidente de trabalho) - ou
culpa decisiva como também nomeada -, e sendo ele
derivado da não exigência e fiscalização do uso de
Equipamentos de Proteção e ou de Segurança Individuais,
se resolve apenas e tão-somente no plano da causalidade
material, de modo que, ainda que a vítima tenha agido
com culpa, dever-se-á verificar se sua atuação interferiu
no resultado e contribuiu para a sua ocorrência. [...]
(MINAS GERAIS, 2009)
A conclusão, entretanto, mostra-se incompreensível:
Ou seja, entronizar-se-á o que doutrina e jurisprudência
inadmitem, a respeito do chamado suicídio voluntário,
impossível de ser configurado, o que, sendo vertido ao
acidente de trabalho - ainda que não fatal - é suficiente
para avultar a inviabilidade da aceitação do que seria o
auto infligir por descabimento de ser erigido como causa
de responsabilidade o quadro de evidente morbidez.
(MINAS GERAIS, 2009)
No que se refere ao advogado, o Código de Ética e Disciplina
da Ordem dos Advogados do Brasil, no artigo 45, impõe o “emprego de
linguagem escorreita e polida” (2009, p. 8).
O Código de Processo Civil, no artigo 15, no capítulo que
regula os deveres das partes e dos seus procuradores, prevê a figura
3
No sistema normativo brasileiro, o acórdão é a decisão e o documento, de um órgão
judicial colegiado, normalmente um Tribunal Estadual, Regional ou Federal. Enquanto
decisão, o acórdão, como regra, resolve sobre a aplicação de determinado direito a uma
situação fática específica.
9
das “expressões injuriosas”, que devem ser riscadas, quando escritas,
ou ser objeto de advertência pelo juiz, quando forem proferidas
oralmente.
É defeso às partes e seus advogados empregar
expressões injuriosas nos escritos apresentados no
processo, cabendo ao juiz, de ofício ou a requerimento do
ofendido, mandar riscá-las.
Parágrafo único. Quando as expressões injuriosas forem
proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado
que não as use, sob pena de Ihe ser cassada a palavra.
(BRASIL, 2009b).
No tocante ao dever de manter uma “linguagem escorreita e
polida” (ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 2009, p. 8), evitando-se
o emprego de “expressões injuriosas nos escritos apresentados no
processo”
(BRASIL,
2009b),
duas
decisões
judiciais
que
foram
pesquisadas merecem destaque.
No
primeiro
julgamento,
o
Supremo
Tribunal
Federal
observou a necessidade da utilização de linguagem adequada, mesmo
em se tratando de habeas corpus4, medida judicial que pode ser
proposta por qualquer pessoa [até por leigos] em favor da liberdade de
outrem:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL.
LEGITIMIDADE ATIVA. INADEQUAÇÃO DA LINGUAGEM.
Todo cidadão é parte legítima para impetrar ação de
habeas corpus, independente de qualificação profissional
(CF, art. 5º, LXVIII e LXXIII c/c CPP, art. 654). A
impetração deve ser redigida em linguagem adequada aos
princípios de urbanidade e civismo. O Tribunal não tolera
o emprego de expressões de baixo calão, de linguajar
chulo e deselegante. Habeas indeferido. (BRASIL, 2009c)
4
O habeas corpus é medida judicial que pode ser proposta sempre que alguém sofrer ou
se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por
ilegalidade ou abuso de poder [Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 5o.,
inciso LXVIII] (BRASIL, 2009h).
10
A segunda decisão, proferida pelo Tribunal Regional do
Trabalho da 2a. Região do Estado de São Paulo, observa que o advogado
não deve ser agressivo. A argumentação deve ser sólida e respeitosa,
nunca deselegante ou ofensiva:
RECURSO. DA LINGUAGEM UTILIZADA - A linguagem
jurídica deve ser sempre elevada, não devendo ser
desmerecida pelo emprego de expressões deselegantes
ou ofensivas. Não se diz sentença, decisão, acórdão, mas
r.5 sentença, r. decisão, v.6 acórdão ou mesmo outros
tratamentos que demonstrem respeito. São expressões
ofensivas dizer-se que "mente o expert", "desfaçatez do
perito", etc. A peleja jurisdicional há de ser travada com
elevação e respeito mútuo. O advogado deve ser
combativo, jamais agressivo. E a combatividade não deve
ir além do necessário. "O que impressiona, saibam os
novos, mais ardorosos e menos experientes, é a
abundância e solidez de argumentos aliados à perfeita
cortesia, linguagem ponderada e modéstia habitual"
(Anatole France, in Jardin d'Epicure, apud Maximiliano).
(SÃO PAULO, 2009a)
No mesmo sentido da decisão anterior:
Crítica: Sentença. Primeiramente, deve a parte,
mormente quando representado por advogado, detentor
de dignificante título universitário, usar sempre da
expressão r. sentença, v. acórdão. É uma exigência de
elegância e ética que devem moldar a linguagem jurídica
elevada que se exige nos autos. Por outro lado, sentença
não se critica. Apresentam-se elementos concretos,
objetivos, que demonstrem o lapso, o engano, o equívoco
do Ilustre julgador para que o Tribunal "ad quem" reforme
a sentença, em sendo o caso. O uso dos termos "óbvio" e
"evidente" em demasia, como se dono da verdade fosse,
demonstra ausência de argumentos. (SÃO PAULO, 2009b)
5
6
Abreviação de respeitável.
Abreviação de venerável.
11
A obrigação da utilização de uma linguagem esmera e
apropriada também é imposta ao magistrado, em todos os seus níveis
[juiz, desembargador, ministro]. O Código de Ética da Magistratura,
aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça, prevê no parágrafo único
do artigo 22 que “impõe-se ao magistrado a utilização de linguagem
escorreita, polida, respeitosa e compreensível” (BRASIL, 2009f).
Um episódio recente chamou a atenção para a ausência da
necessária linguagem respeitosa [e também para a complexidade dessa
exigência]. No Supremo Tribunal Federal, dois ministros discutiram, de
forma mais exaltada, durante um julgamento, dentre os quais o seu
Presidente, isto é, o magistrado que ocupa o mais alto posto no Poder
Judiciário brasileiro. A sessão teve que ser encerrada em razão do
episódio (GUERREIRO, 2009).
Apesar de não ter sido editado, ainda, um código de ética
específico, os membros do Ministério Público estadual ou federal
também devem observar a linguagem cortês e respeitosa, por se tratar
de uma norma ética de reconhecida aplicação geral a todas as
profissões jurídicas.
No que se refere à clareza dos textos, já se observou que
“’os Tribunais e Juízes arcam com grande responsabilidade didática, o
que lhes cria o dever de compor os julgados com mãos de artífice,
esmerando-se na linguagem’ (Dinamarco)” (BRASIL, 2009d).
Sobre a obrigação do magistrado de decidir com clareza e
precisão de linguagem, utilizando-se de argumentos substanciosos,
além de se expressar de forma respeitosa, destacam-se as seguintes
decisões:
Ação civil pública. Tutela antecipada. Exigência de
fundamentos de modo claro e preciso para a concessão
(CPC, art. 273, parágrafo 1º). Possibilidade de efeito
suspensivo ao recurso ordinário (Lei 7.347/85, art. 14).
12
Não constitui forma clara e precisa, para efeito de
concessão de tutela antecipada, a simples afirmação do
juiz de que estão preenchidos os requisitos do art. 273 do
CPC. A clareza do raciocínio exige a apresentação de
argumentos jurídicos profundos, tirados dos elementos
dos autos, complementados pela precisão da linguagem
jurídica, de modo a não restar dúvida de que a tutela
antecipada é uma exigência imediata e tem por
pressupostos a ocorrência de má-fé ou abuso do réu e a
inevitável ocorrência de dano irreparável à coletividade de
pessoas ou ao patrimônio público. Não estando a
sentença apoiada em tais pressupostos, é recomendável a
concessão do efeito suspensivo ao recurso ordinário. (São
Paulo, 2009c)
[...]
MAGISTRADO
EXERCÍCIO
DA
FUNÇÃO
JURISDICIONAL - ASPECTOS DEONTOLÓGICOS - A
QUESTÃO DA LINGUAGEM EXCESSIVA OU IMPRÓPRIA NO
DISCURSO JUDICIÁRIO - INOCORRÊNCIA, NO CASO, DE
IMPROPRIEDADE OU EXCESSO DE LINGUAGEM APLICAÇÃO DO ART. 41 DA LOMAN - REJEIÇÃO DA
QUEIXA-CRIME. - O Magistrado, no exercício de sua
atividade profissional, está sujeito a rígidos preceitos de
caráter ético-jurídico que compõem, em seus elementos
essenciais, aspectos deontológicos básicos concernentes à
prática do próprio ofício jurisdicional. A condição funcional
ostentada
pelo
Magistrado,
quando
evidente
a
abusividade
do
seu
comportamento
pessoal
ou
profissional, não deve atuar como manto protetor de
ilegítimas condutas revestidas de tipicidade penal. A
utilização, no discurso judiciário, de linguagem excessiva,
imprópria ou abusiva, que, sem qualquer pertinência com
a discussão da causa, culmine por vilipendiar,
injustamente, a honra de terceiros - revelando, desse
modo, na conduta profissional do juiz, a presença de
censurável intuito ofensivo - pode, eventualmente,
caracterizar a responsabilidade pessoal (inclusive penal)
do Magistrado. [...] (BRASIL, 2009e)
Retornando
à
atuação
do
advogado,
já
destacamos
anteriormente a figura da inépcia ou inaptidão da petição inicial,
prevista no artigo 295 do Código de Processo Civil. O advogado deve
elaborar a petição inicial de forma lógica, e com linguagem coerente,
sob pena de o processo não ter condições de seguir seus trâmites
13
normais. A petição inicial e todos os demais atos processuais devem
observar a língua nacional7.
Nas ações processuais, o pedido manifestamente absurdo
gera a inépcia da inicial (PONTES DE MIRANDA, 1979, v. 4, p. 121),
assim como “a impossibilidade gnosiológica ou cognoscitiva, pela
ininteligibilidade, ou por falta de sentido; a impossibilidade lógica, pela
perplexidade ou contradição das proposições sobre os fatos [...]
(PONTES DE MIRANDA, 1979, v. 4, p. 127). Ao se propor uma ação é
obrigação do interessado “[...] narrar o fato com clareza e precisão e
concluir postulando as consequências que desse fato juridicamente
decorrem. Seu risco e seu erro é colocar mal os fatos ou concluir mal
em relação aos fatos que expôs” (CALMON DE PASSOS, 1977, p. 285).
Nesse sentido destacamos a seguintes decisões:
INÉPCIA DA INICIAL. EXTINÇÃO DO FEITO SEM
RESOLUÇÃO DE MÉRITO. ART. 267, I, DO CPC.
CONFIGURAÇÃO. Se da narração dos fatos da petição
inicial não decorre logicamente a conclusão, ou seja, o
pedido, a peça de ingresso, na realidade, será
estruturalmente ilógica e incoerente. Assim ocorrendo,
como na espécie, a exordial estará maculada de vício
insanável, pois ausente o mínimo de condições para a sua
satisfatória compreensão, impossibilitando a formação e o
desenvolvimento válido da relação jurídica processual.
[...] (SÃO PAULO, 2009d)
Inépcia da inicial. Exposição confusa. A inépcia da inicial
pode ser declarada de ofício, quando a postulação é
confusa e da narração dos fatos não decorre a conclusão
[...]. Nos casos de inépcia, por violação às situações
descritas no parágrafo único do artigo 295 do CPC, a
inicial pode ser indeferida de plano ou mesmo após o
encerramento da fase probatória. [...] (SÃO PAULO,
2009e)
7
Código de Processo Civil. Artigo 156: “Em todos os atos e termos do processo é
obrigatório o uso do vernáculo” (BRASIL, 2009b). Em sentido semelhante, na legislação
italiana: “In tutto il processo e' prescritto l'uso della lingua italiana” [Codice di procedura
civile, art. 122] (ITALIA, 2009).
14
A importância da linguagem escrita para o Direito é
fundamental. No Brasil, a base do ordenamento jurídico se expressa
pelo texto escrito. Sob outro aspecto, a interpretação da escrita da lei é
uma das atividades essenciais dos profissionais e estudiosos do Direito
[e uma das mais complexas]. Como observou Winfried Hassemer, o
Direito é linguagem (2009, p. 173).
Ainda sobre a relevância da linguagem escrita, recordamos
que o Código Penal brasileiro estabelece que só pode ser considerada
criminosa, e consequentemente punida, mediante o devido processo
legal, a conduta expressamente prevista como crime em texto de lei8 9;
e se o texto de uma lei nova deixa de considerar crime um determinado
fato, cessa em virtude dessa nova lei “a execução e os efeitos penais da
sentença condenatória”10.
Em outros textos normativos brasileiros constatamos a
importância da postulação escrita, ou a relevância do que foi escrito nos
atos processuais. Por exemplo: a) como regra, nenhum juiz pode
exercer o poder jurisdicional se não for provocado expressamente pela
parte interessada11; b) “o juiz decidirá a lide nos limites em que foi
8
Código Penal. Artigo 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem
prévia cominação legal. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (BRASIL, 2009i).
Em sentido semelhante, na legislação italiana: “Nessuno può essere punito per un fatto
che non sia espressamente preveduto come reato dalla legge, né con pene che non siano
da essa stabilite” [Codice Penale, art. 1o.] (ITALIA, 2009a).
9
Ver Winfried Hassemer (2009, p. 172).
10
Código Penal. Artigo 2º - Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de
considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença
condenatória. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (BRASIL, 2009i). Em
sentido semelhante, na legislação italiana: “Nessuno può essere punito per un fatto che,
secondo una legge posteriore, non costituisce reato; e, se vi è stata condanna, ne
cessano l'esecuzione e gli effetti penali”[Codice Penale, art. 2o.] (ITALIA, 2009a).
11
Código de Processo Civil. Artigo 2º - Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão
quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais (BRASIL, 2009b).
Em sentido semelhante, na legislação italiana: “Chi vuole far valere un diritto in giudizio
deve proporre domanda al giudice competente” [Codice di procedura civile, art. 99]
(ITALIA, 2009b).
15
proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a
cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte”12; entre outros.
4. DIREITO E LINGUAGEM EM ESTUDOS NA PÓS-GRADUAÇÃO
Mostra-se interessante observar a preocupação de alguns
estudiosos brasileiros com a investigação da linguagem e sua relação
com a ciência do Direito, especialmente os estudos em nível de pósgraduação. Uma constatação interessante é a existência de estudos em
diversas áreas do saber, como o Direito, a Comunicação, a Linguística,
as Letras, a História, dentre outras (BRASIL, 2009g).
Apenas a título ilustrativo, analisamos algumas dissertações
e
teses
que
constam
no
banco
de
dados
da
Coordenação
de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a partir das expressões
“linguagem” e “Direito” (BRASIL, 2009g).
Na
área
do
Direito
localizamos
pesquisas
que
se
preocuparam com: a) a linguagem propriamente dita [“Formação da
linguagem jurídica brasileira”, “O pensamento semiótico e as três
matrizes da linguagem jurídica”; “Uma abordagem linguística dos
princípios na teoria geral do direito”]; b) a argumentação ou o discurso
[“Lógica e Direito: elementos para uma reconstrução formal do
raciocínio jurídico”, “Uma análise crítica do discurso jurídico: os sentidos
implícitos
na
linguagem
dos
livros
didáticos
de
Direito”];
c)
a
interpretação dos conceitos [“Conceitos jurídicos indeterminados e
discricionariedade administrativa”]; d) a linguagem específica de autores
["A irredutibilidade da linguagem jurídica na obra de H. J. A. Hart: um
estudo da responsabilidade"].
12
Código de Processo Civil. Artigo 128 (BRASIL, 2009b).
16
Os
estudos
nas
áreas
de
Letras
e
Linguística
são
encontrados em maior quantidade, e estudaram, especialmente: a) a
linguagem das partes e dos advogados nos processos [“As falas do réu”,
“A espada de Damocles da justiça: o discurso no júri”; “As estratégias
da linguagem jurídica”, “A construção da veridicção do discurso das
petições iniciais: mecanismos semióticos e estratégias retóricas para a
persuasão”]; b) textos, documentos e obras jurídicas [“Os dicionários
jurídicos e seus usuários”; “Clareza e obscuridade no texto legal: um
estudo de caso: análise linguístico-comparativa do Código Civil brasileiro
de 2002 e do de 1916”13; “Textos forenses: um estudo de seus gêneros
textuais e sua relevância para o gênero ‘sentença’”]; c) questões
específicas da linguagem [“Para o reconhecimento da especificidade do
termo jurídico”; “A presença do outro: um viés linguístico-discursivo na
linguagem
jurídica”;
contribuição
para
o
“Termos
ensino
compostos
de leitura
em
língua
instrumental
alemã:
em
uma
Direito”;
“Inferência e linguagem jurídica: sobre a natureza da significação
implícita”; “A pragmática das implicaturas e a linguagem jurídica”].
Existem,
ainda,
estudos
nas
áreas
da
Comunicação
[“Linguagem jurídica, comunicação e cultura; o caso do direito de
família no Brasil”] e História [“Os contos e os vigários: golpes, trapaças
e mentalidades em São Paulo: 1930-1960”].
Constata-se,
apesar
dos
poucos
estudos
que
foram
localizados, uma preocupação dos pesquisadores em estudar temas
vinculados ao Direito e sua relação com a linguagem, não obstante essa
preocupação se mostrar mais presente em estudos de Letras e
13
Informações sobre essa dissertação de Érika Mayrink Vullu estão disponíveis no
endereço
eletrônico
<http://www2.dbd.pucrio.br/pergamum/tesesabertas/0310736_05_pretextual.pdf>. O texto do capítulo “A
linguagem
no
Direito”
está
disponível
no
endereço
eletrônico
<http://www.facape.br/anderson/ied2/A_linguagem_no_Direito.pdf>.
17
Linguística, do que em investigações vinculadas a programas de PósGraduação em Direito.
5. CONCLUSÃO
O objetivo principal deste artigo foi chamar a atenção para a
importância da relação entre o Direito e a linguagem. Essa questão,
como está exemplificativamente expressa neste texto, é objeto de
estudos, de artigos da legislação brasileira e de decisões dos Tribunais.
Mostra-se necessária a preocupação com a linguagem
jurídica técnica, adequada e ética, desde o tempo de formação dos
futuros profissionais do Direito. Os acadêmicos e os docentes precisam
estar atentos a essa necessidade, pois os graduados em Direito estarão
obrigados a observar uma linguagem com qualidades bem delineadas
nas legislações respectivas [Código de Ética e Disciplina da Ordem dos
Advogados do Brasil; Código de Ética da Magistratura Nacional; Código
de Processo Civil etc.].
O Direito possui uma estreita relação com a linguagem, pois
todas as principais atividades dos profissionais do Direito dependem de
manifestações de linguagem escrita ou oral, como a elaboração de
petições, documentos e sentenças; a interpretação das leis; as
manifestações orais em Juízo etc.
A palavra exata, em sua escrita e no seu significado, a
exteriorização correta do pensamento, mediante redação clara e
simples, didaticamente estruturada: esses são alguns dos desafios de
estudantes, professores e profissionais do Direito.
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